Retrato do Brasil

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Retrato do Brasil
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O PALESTINO ABDEL ATWAN CONDENA O OCIDENTE E PROPÕE A TERCEIRA INTIFADA
retrato
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 9,50 | NO 54 | JANEIRO DE 2012
doBRASIL
MÚSICA
A VIDA INTENSA DO ATOR, BOÊMIO, MILITANTE COMUNISTA E COMPOSITOR MARIO LAGO
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retrato
doBRASIL
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | N O 54 | JANEIRO DE 2012
5 Ponto de Vista
ADIVINHE QUEM VEM PARA O JANTAR
Como os crocodilos em relação aos gnus, o
mercado espreita para abocanhar os países
europeus em crise
44 CLÁSSICO REENCONTRO
Dori e Danilo: novos sons da dinastia
musical que começou quando Nana e
Dorival Caymmi gravaram “Acalanto”
[Tárik de Souza]
8 MONSTRUOSIDADES
Os perigos do acordo proposto por França
e Alemanha contra a crise europeia: a
economia dos mais vulneráveis pode piorar
[Armando Sartori]
45 HERDEIROS DE RAPHAEL
O rigor dos Rabello e a ginga dos Faria em
discos familiares, com a nítida influência
do grande violonista que morreu em 1995
[Tárik de Souza]
16 ”ISRAEL QUER ME SILENCIAR”
Em entrevista exclusiva, o jornalista Abdel
Bari Atwan, famoso por seu longo encontro
com Bin Laden, defende a Terceira Intifada
[Aleksander Aguilar]
46 O OCEANO ARTÍSTICO
DE MARIO LAGO
Ele brilhou mais como ator, navegou em
muitos mares profissionais e foi um dos
maiores compositores brasileiros
[Tárik de Souza]
20 A INCRÍVEL HISTÓRIA DO PM
JOÃO DIAS - PARTE 2
O fato é que todas as denúncias e articulações
sempre tiveram como principal alvo o atual
governador de Brasília, Agnelo Queiroz
[Antonio C. Queiroz e Raimundo R. Pereira]
48 ELA QUER BATER
NA PORTA DO CÉU
Lisa Randall, musa dos cientistas
contemporâneos, fala de ciência, beleza e de
seus experimentos com outras dimensões
[Flávio de Carvalho Serpa]
36 O PAÍS BASCO, DA VIOLÊNCIA À
RECONCILIAÇÃO
Findos o terror e a repressão do governo,
chegou a hora de reconstruir a paz. Sem
revanchismo, mas também sem impunidade
[Ricardo Viel, de Salamanca]
52 O QUE FAZ A RIQUEZA
(E A POBREZA) DAS NAÇÕES
Segundo Erik Reinert, commodities geram
pobreza. Por isso, os países ricos dedicam-se
à produção industrial e ficam mais ricos
[Pergentino Mendes de Almeida]
40 TUDO NORMAL NA ARGENTINA
(PERO NO MUCHO...)
Uma década após o país ter mergulhado
na pobreza, a reeleita Cristina Kirchner se
esforça para apagar marcas do passado
[João Peres, de Buenos Aires]
56 A POLÍTICA CRIMINAL
DO PERDÃO
Em Justiça, Luiz Eduardo Soares propõe
que o réu busque o perdão da vítima e
sejam avaliadas as causas sociais do crime
[Leandro Saraiva]
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ERRATA
No artigo “A incrível história do PM João Dias”, publicada na edição nº 53, à pagina 16, no segundo parágrafo da
primeira coluna, há um erro. Em vez de “O repórter depois acha o inquérito. Mas outro, específico, sobre a morte do
policial investigador. Doutor Michel diz que não tem como ajudá-lo”, o correto é “O repórter depois acha o inquérito.
Mas, não acha outro, específico, sobre a morte do policial investigador. Doutor Michel diz que não tem como ajudá-lo.”
CAPA Foto de Monique Renne/CB/D.A Press
Retrato do BRASIL é uma publicação mensal
da Editora Manifesto S.A.
EDITORA MANIFESTO S.A.
PRESIDENTE Roberto Davis
DIRETOR VICE-PRESIDENTE Armando Sartori
DIRETOR ADMINISTRATIVO Marcos Montenegro
DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira
DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Sérgio
Miranda
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SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira
EDIÇÃO Armando Sartori
EDIÇÃO DE TEXTO Ruy Fernando Barboza
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO Thiago Domenici
REDAÇÃO Leandro Saraiva • Lia Imanishi • Rafael Hernandes •
Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Téia Magalhães
EDIÇÃO DE ARTE Pedro Ivo Sartori
ESTAGIÁRIOS Simone Freire de Carvalho • Gabriel Sitibaldi
REVISÃO Silvio Lourenço • Bruna Bassette •
Andressa Medeiros [OK Linguística]
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Aleksander
Aguilar • Antonio Carlos Queiroz • Caco Bressane
• Cássio Loredano • Eliana Simonetti • Flávio de
Carvalho Serpa • João Peres • Pergentino Mendes
de Almeida • Ricardo Viel • Tárik de Souza
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REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas
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Reprodução
Ponto de Vista
Adivinhe quem
vem para o jantar
O mercado vive à espreita para “morder” os países europeus em crise, exigindo
rendimentos cada vez mais altos dos títulos de suas dívidas. E só parece ainda
respeitar os EUA, para onde todos correm quando a situação aperta
GNUS SÃO ANIMAIS que, anualmente,
realizam uma longa jornada de centenas
de quilômetros entre o Quênia e a Tanzânia, na África oriental. A certa altura da
viagem, repetida há milênios, eles atravessam o rio Mara, que cruza o território
dos dois países antes de desembocar no
lago Vitória. Nesta época do ano o rio está
cheio. Mas, para chegar à outra margem,
os gnus têm de enfrentar, além da força
das águas, os crocodilos, que, como sempre, estão à espreita. É um massacre.
No entanto, apesar da fome – os répteis
praticamente não comem durante o período da seca –, os crocodilos não atacam
aleatoriamente as presas: por instinto,
tendem a abocanhar as mais fracas –
velhos, filhotes e doentes –, pois assim a
chance de sucesso é maior.
O mercado financeiro age como os
crocodilos: procura se aproveitar dos mais
debilitados. É assim que se pode entender
o que ocorre com o grupo de países europeus conhecido como PIIGS – Portugal,
Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, na sigla em
inglês. Eles estão no centro da chamada
crise da dívida soberana europeia. Alguns,
como Grécia e Irlanda, têm déficits públicos
correspondentes a mais de 10% do PIB.
E a mesma Grécia e a Itália têm dívidas
equivalentes a mais de 100% do PIB (ver
o artigo “Monstruosidades”, nesta edição).
Os países do PIIGS têm sido vítimas
dos crocodilos que, no mercado secundário de títulos, costumam exigir rendimentos altos dos papéis de suas dívidas, indicando que, quando for a hora de “rolar”
a dívida ou colocar títulos novos à venda,
eles terão de oferecer juros bem maiores
do que ofereciam até então. A perspectiva,
para esses países, é que o financiamento
de suas dívidas se torne insustentável.
É costume dizer que os crocodilos só
temem os elefantes, por seu tamanho e
força. Se há um elefante na Europa, é a
Alemanha. Só que os crocodilos também
o estão desafiando: em novembro, por
exemplo, o país da primeira-ministra
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Angela Merkel lançou 6 bilhões de euros
em títulos, mas só conseguiu vender cerca
de 60% desse total. O restante foi rejeitado pelo mercado, que não considerou
suficientemente atraentes as condições
oferecidas. A crise das dívidas soberanas
não se limita ao jogo econômico, no entanto. Ela tem repercussões amplas e profundas em toda a vida social europeia. Dominique Rousseau, jurista e professor da
Universidade de Paris, chama a atenção,
em artigo publicado pelo diário francês Le
Monde, para o fato de que o mercado foi
capaz de realizar mudanças políticas que
os protestos dos afetados pelas medidas
de austeridade fiscal adotadas pelos
governos europeus não conseguiram. Os
crocodilos, lembra Rousseau, derrubaram
no ano passado até meados de dezembro
todos os primeiros-ministros do PIIGS e,
de quebra, mais um, de fora do grupo. Em
fevereiro, o irlandês Brian Cowen; em março, o português José Sócrates; em julho,
o espanhol José Zapatero; em outubro, a
eslovaca Iveta Radicova; e em novembro,
o grego George Papandreou e o italiano
Silvio Berlusconi.
Todos caíram porque, de alguma
forma, desagradaram o mercado, e não
porque tivessem adotado medidas antipopulares, diz Rousseau. “Karl Marx, que foi
acusado de caricaturizar o funcionamento
da república burguesa, sorriria hoje ao ver
como a realidade superou sua análise.” É
preciso destacar ainda que Papandreou
e Berlusconi foram substituídos por burocratas próximos do mercado, sem que
sequer fossem realizadas eleições.
Mark Weisbrot, economista e articulista americano, aponta para outra
evidência importante. Ele cita declarações
do presidente do Banco Central Europeu
(BCE), Mario Draghi, que pareciam indicar
que a instituição mudaria sua atitude,
passando a exercer um papel mais ativo
na compra de títulos italianos e espanhóis,
o que aliviaria as pressões do mercado
sobre esses países. Dessa forma, diz o
economista americano, o BCE agiria para
manter os juros baixos e os mercados se
estabilizariam, o que ajudaria a Europa a
se recuperar. Ao admitir tal possibilidade,
Draghi contrariaria, no entanto, o que
o banco vinha alegando até então: que
uma ação de tal natureza ia além de suas
atribuições legais.
Weisbrot conclui, a partir da aparente
mudança de posição de Draghi, que o
“BCE – apoiado pela Alemanha e por alguns outros governos – poderia encerrar
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a crise a qualquer momento, sem custo
algum para os contribuintes europeus”.
Mas “está prolongando a crise para forçar
a adoção de ‘reformas’ que a maioria dos
europeus jamais votaria, como aumento
da idade para aposentadoria, privatizações e até mesmo controle da UE sobre
os orçamentos nacionais”.
A constatação de que o mercado tem
poder de fogo suficiente para abalar a
vida política dos países foi expressa de
forma diferente por Larry Fink, presidente da BlackRock, a maior empresa de
asset management (gestão de recursos
de terceiros) do mundo. Ele disse em entrevista, durante sua passagem recente
pelo Brasil, que a aproximação do presidente da França, Nicolas Sarkozy, com a
primeira-ministra da Alemanha (autores
da proposta aprovada pelo Conselho Eu-
De certa forma, a crise
europeia é a etapa mais
recente do processo
que começou nos EUA
nos anos 1970, com a
desregulação do sistema
bancário americano,
iniciada por Ronald
Reagan e completada
em 1999 por Bill Clinton
ropeu no mês passado que permite ampla
intervenção nos orçamentos de países da
UE) decorreu do fato de os papéis da dívida francesa estarem em situação delicada
(o que ameaçaria transformar esse país
num gnu). “Os mercados querem ação
e pressionam de tal forma que fazem os
governos mudarem suas políticas”, disse.
Fink reconhece que o principal problema
na Europa é promover o crescimento econômico e que as medidas de austeridade
fiscal adotadas por todos os governos do
PIIGS “não vão promover o crescimento”
e podem levar a “uma recessão realmente
severa”.
Em novembro, a Comissão Europeia
lançou a ideia da criação dos chamados
eurobonds , títulos coletivos da Zona
do Euro que substituiriam os papéis
nacionais. Isso faria com que o crédito
de melhor qualidade de países como a
Alemanha beneficiasse o PIIGS, cujos
membros pagariam juros mais baixos que
os atuais. Em contrapartida, a Alemanha
poderia pagar juros mais altos. Seria
uma espécie de equalização dos riscos.
A Alemanha, no entanto, se opõe à ideia:
o ministro de Finanças alemão, Wolfgang
Schauble, disse que os eurobonds não vão
resolver a crise e que se forem criados
podem diminuir a pressão sobre Estados
com problemas para reduzir suas dívidas.
Mario Monti, que substituiu Berlusconi,
no entanto, disse, após a reunião do mês
passado do Conselho Europeu, que a ideia
não está morta. Segundo ele, na reunião
do conselho agendada para março, ela
pode ser retomada.
A crise europeia pode ser vista como a
etapa mais recente de um longo processo
que se iniciou nos EUA no final dos anos
1970 e se acelerou na década de 1980,
durante o governo de Ronald Reagan.
É quando começam a ganhar força as
tendências à desregulação do sistema
bancário americano, represadas desde a
crise de 1929. Dessa época até o final dos
anos 1970, uma série de leis balizou as
atividades do setor financeiro. Durante
esse período, os EUA viveram a chamada
“era de ouro”, entre o final da II Guerra
Mundial e meados dos anos 1960, quando
a economia alcançou taxas médias de
crescimento nunca vistas depois.
A regulação bancária americana sofreu seu golpe final em 1999, quando, durante o governo do presidente Bill Clinton,
foi revogada a legislação básica que lhe
dava estrutura. Isso fez com que, diante
da redução das taxas de crescimento, o
sistema financeiro assumisse a função
de dar maior dinamismo à economia por
meio de incentivos ao consumo. Surgiram as “bolhas financeiras”, como a do
boom das chamadas empresas pontocom
(ligadas à comercialização na internet)
e a da construção e comercialização de
imóveis, que estão por trás da crise que
surgiu nos EUA em 2008, com a quebra
do banco de investimentos Lehman Brothers. Esse processo de financeirização
fez o lucro do setor financeiro americano
saltar de menos de 20% do lucro total da
economia para mais de 40% no final do
século passado.
A desregulação dos bancos americanos coincidiu com a ampla introdução
em várias partes do mundo de políticas
À ESPERA DA SOBREMESA
Os “crocodilos” devoraram no ano
passado, até meados de dezembro,
todos os primeiros-ministros do PIIGS:
em fevereiro, o irlandês Brian Cowen;
em março, o português José Sócrates;
em julho, o espanhol José Zapatero e,
em novembro, o grego George
Papandreou e o italiano Silvio Berlusconi
de abertura aos capitais estrangeiros.
Essa combinação – associada ao desenvolvimento da telemática – produziu a
chamada globalização, que resultou num
entrelaçamento amplo e profundo entre
os capitais em todo o mundo, especialmente no setor financeiro. A partir daí,
crises que tenham como epicentro um país
tendem a espalhar-se por outros com uma
rapidez nunca vista antes.
É dessa época também o processo
de mudanças na China, que, desde o final
da década de 1970, iniciara uma série
de reformas para inserir-se, de modo
peculiar, no sistema capitalista ocidental. Recebeu em seu território plantas
industriais de empresas do Ocidente, que
se mudaram para lá em busca de maior
lucratividade. Com o passar dos anos, a
China tornou-se, por assim dizer, um país
especializado na indústria, enquanto os
EUA, particularmente, foram perdendo
força nesse setor. Uma das consequências
é que os americanos passaram a gerar
anualmente enormes déficits comerciais
com os chineses. Em contrapartida, boa
parte das reservas acumuladas pela China
foi aplicada nos títulos do Tesouro americano. Hoje, os EUA não passariam pelos
critérios que Alemanha e França impuseram no acordo aprovado pelo Conselho
Europeu no mês passado: o país tem um
déficit no orçamento federal que fica em
torno de 9% do PIB (para os europeus,
o limite é 3%) e uma dívida pública que
corresponde a pelo menos 100% do que
será produzido neste ano (os europeus só
admitem 60%).
Nos países ricos do Ocidente, de forma
geral, a financeirização gerou as bolhas de
consumo, como nos EUA. Em boa parte, é
isso que explica a crise europeia: a fase
de crédito fácil produziu enormes déficits
em conta corrente dos países da Zona do
Euro – principalmente com a Alemanha, a
grande potência industrial do continente –
e os obrigou a buscar financiamento junto
ao mercado, ampliando suas dívidas. Isso
se agravou com a crise de 2008, pois a
enorme ajuda dos governos ao setor privado levou a que, na Europa, boa parte do
dinheiro inflasse ainda mais o consumo.
Sem poder usar o câmbio para se defender, devido à adoção da moeda única
em lugar das nacionais, muitos países europeus viram seu setor industrial minguar
– um processo que lembra o que envolve
EUA e China. Com o enfraquecimento da
indústria, a renda média das populações
estagnou ou diminuiu, ao mesmo tempo
em que uma pequeníssima camada de
muito ricos se formou, aumentando as
desigualdades. As decisões tomadas pela
maioria dos governos europeus para
combater a crise tendem a prejudicar os
mais pobres, os que mais necessitam dos
serviços e benefícios públicos criados a
partir do início da idade dourada e que
ganharam a denominação de Estado do
Bem-Estar Social.
A construção desse sistema se iniciou
quando foram lançadas as sementes do
que se tornaria mais tarde a UE. E ambos
apareceram no período em que, do ponto de vista político, o enorme prestígio
angariado pela União Soviética na luta
contra as tropas da Alemanha nazista
deu aos partidos comunistas na Europa
grande força, inclusive eleitoral. A queda
do prestígio das ideias comunistas com
o desmantelamento do regime soviético
permitiu que na Europa fosse dado um
impulso decisivo para a criação da UE,
entre outras causas pela reunificação
da Alemanha. E coincidiu com o início do
gradativo processo de desmontagem do
Estado do Bem-Estar Social.
Na nossa história de gnus, crocodilos
e elefantes vimos que mesmo Alemanha
e França, às vezes, são encaradas pelos
crocodilos do mercado não como exemplares do gigantesco paquiderme, mas
como candidatos a gnus. Aparentemente,
o único elefante que o mercado respeita
são os EUA. É para lá que todos correm
nas épocas de crise, mesmo com o Tesouro dos EUA pagando juros baixíssimos em
seus títulos quando comparados com os
da Europa, por exemplo. O mercado sabe
que, apesar dos problemas que enfrenta,
a economia americana permanece a mais
poderosa do mundo. E o mesmo vale para
o papel político e militar desempenhado
pelos EUA. Os crocodilos percebem que,
apesar de o elefante americano às vezes
insinuar traços de gnu, ainda é um elefante. E, como diz o ditado, em rio que tem
piranha, jacaré nada de costas.
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Economia
MONSTRUOSIDADES
O acordo para salvar a Europa é monstruoso sob os aspectos
constitucional e econômico (não respeita as Constituições
locais e vai causar recessão nos países mais pobres)
por Armando Sartori
APÓS LONGAS HORAS de debates tensos, os chefes de Estado e de
governo da União Europeia (UE),
que compõem o Conselho Europeu,
encerraram as discussões que, muitos
esperavam, deveriam produzir algum
tipo de solução para a crise da chamada
“dívida soberana” dos países europeus.
O resultado do encontro de cúpula foi,
em linhas gerais, o esperado: os líderes
aprovaram a proposta apresentada
dois dias antes pela primeira-ministra
da Alemanha, Angela Merkel, e pelo
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presidente da França, Nicolas Sarkozy.
O surpreendente foram os detalhes da
aprovação, comunicados pelo presidente francês, por volta das 5 horas da
manhã de 9 de dezembro, a jornalistas
que aguardavam ansiosamente notícias
na sede da UE, em Bruxelas. Sarkozy
informou que a maioria dos 27 países
da união havia concordado com a
proposta. Ficaram de fora do acordo,
explicou o presidente francês, apenas
quatro países: Hungria, República
Tcheca, Suécia e... Reino Unido – o
qual nem sequer se comprometeu a
examinar a proposta, como fizeram os
representantes dos outros três, que alegaram que necessitavam consultar antes
seus Parlamentos e partidos políticos.
A pretensão inicial de Alemanha e
França era realizar uma mudança nos
tratados que formatam a UE. Mas a
ameaça de veto do primeiro-ministro
britânico, David Cameron, levou a que
a proposta acabasse formalizada como
um acordo internacional entre os 17
países que adotam o euro como moeda
Reuters
Berlim, novembro de 2011: o
aperto de mão entre David
Cameron e Angela Merkel esconde
as grandes divergências que se
acirraram um mês depois
comum – a chamada zona do euro (ZE)
– e outras seis nações que pertencem à
UE, mas não ao bloco monetário.
Basicamente, os 23 países concordaram em incluir em suas Constituições
o compromisso de manter suas contas
públicas equilibradas ou superavitárias.
Déficits correspondentes a até 0,5% do
PIB seriam tolerados, mas os situados
entre essa marca e 3% levarão o país
correspondente a ser monitorado pela
UE. Já o país que ultrapassar os 3%
estará sujeito a sanção e até mesmo a
ser expulso. Além disso, os signatários
do pacto terão de promulgar leis que
os obriguem a reduzir a relação dívida
pública/PIB a no máximo 60%. E o
que é importante do ponto de vista
político: não haverá mais a exigência
de unanimidade para a aprovação de
medidas econômicas – bastarão 85%
dos votos. Como os votos são ponderados – isto é, tem mais peso o voto
de quem contribui mais para o Banco
Central Europeu (BCE) – os 85% serão alcançados caso as seis principais
economias da ZE estejam de acordo.
Ficou definido também que na próxima
reunião do conselho, a ser realizada em
março, encerra-se o prazo para que os
países obtenham a aprovação de seus
Parlamentos para o acordo.
Meia hora após a entrevista de
Sarkozy, Cameron explicou sua posição
à imprensa. Disse que havia tomado
uma “difícil, mas correta decisão”
em defesa dos interesses britânicos,
especialmente os do setor financeiro.
“O Reino Unido, em troca de sua
concordância com o acordo, solicitou
um protocolo específico sobre serviços
financeiros, o qual, como apresentado, é
um risco para a integridade do mercado
interno [da UE]”, explicou o presidente
da Comissão Europeia (CE), José
Manuel Barroso, dias após o encontro.
Segundo a revista semanal britânica
The Economist, o governo liderado por
Cameron convenceu-se de que a CE,
encarregada dos assuntos do dia a dia
da UE, tem editado regras prejudiciais
à City de Londres, como é conhecida
a pequena área da capital do Reino
Unido que concentra as instituições do
polo financeiro britânico, considerado
o maior do mundo em transações com
câmbio.
O isolamento do Reino Unido, a
quarta economia da Europa (as três
primeiras são, por ordem de grandeza
do PIB, Alemanha, França e Itália),
provocou intensos debates nos dois ou
três dias posteriores, apesar de a atitude
de permanecer à parte da maioria dos
países europeus não ser exatamente
uma novidade. Basta lembrar que o país
– o centro do antigo Império Britânico,
tão extenso que se dizia que nele o sol
nunca se punha – não faz parte da ZE
– mantém sua própria moeda, a libra,
e que mesmo a integração à UE tem
baixo apoio entre a população britânica:
28% são a favor e 65%, contra, de acor-
do com dados da própria UE. Para se
ter uma ideia, na Alemanha o resultado
é praticamente o inverso (66% a 28%),
parecido com o da França (69% a 28%).
O Reino Unido parece ser a terra dos
“eurocéticos”, como são conhecidos os
europeus que descreem das virtudes da
integração. E o Partido Conservador,
de Cameron, é um ninho de eurocéticos. Por isso, analistas concluíram que
uma das razões importantes que o levaram a adotar a posição de isolamento
foi evitar o desgaste que teria entre seus
próprios correligionários caso aprovasse as proposições franco-alemãs sem
exigir nada em troca.
O resultado, do ponto de vista dos
objetivos defendidos publicamente
pelo próprio Cameron, pode ser ruim.
“Cameron poderia ter declarado que teria aceitado um tratado aplicável apenas
aos membros ou candidatos a membros
da região do euro”, escreveu o articulista Martin Wolf, do diário londrino
Financial Times. “Poderia ter sugerido
que colocaria um tratado equivalente
em votação no Reino Unido. Em vez
disso, acabou sem salvaguardas para a
City e com o status de estar semidescolado da UE, da qual ele quer que o
Reino Unido continue membro.”
Até mesmo dentro do governo britânico a atitude causou consternação.
Isso porque fazem parte da coalização
liderada por Cameron quatro membros do Partido Liberal Democrático,
que defende uma integração maior
do país com o continente europeu.
Um dos membros do quarteto é o
vice-primeiro-ministro, Nick Clegg,
que classificou a ameaça de veto de
Cameron como uma “forte decepção”
e “ruim” para o país.
A controvérsia em torno da atitude
de Cameron, no entanto, serviu para
desviar as atenções, diz Wolf, do real
significado do que foi aprovado. A crise
europeia é complexa: está claramente
presente em vários países, que apresentam taxas de crescimento da economia
muito baixas – e, em alguns casos,
negativas –, déficits e dívidas públicos
crescentes, com enormes dificuldades
de financiamento. E afeta também o
sistema bancário europeu, que é em
grande parte detentor dos títulos dessas
dívidas. É uma crise da zona do euro,
onde, apesar da unificação monetária,
há muitos desequilíbrios entre os diferentes Estados. Nesse quadro, a
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A crise europeia tem contornos dramáticos, pois o
tipo de solução escolhida já levou diversos países
ao desemprego e à perda de direitos sociais
Alemanha (secundada pela França) é o
centro dominante. Em torno dela giram países dependentes, em diferentes
graus, de sua economia e muitos deles,
por extensão, de sua política.
A crise europeia tem contornos
sociais amplos e dramáticos, pois o tipo
de solução adotada até o momento por
vários países tem levado ao aumento
do desemprego e à perda de direitos
sociais.
É nesse contexto que se deve compreender a proposta de Angela e Sarkozy. Wolf diz que a ideia foi apresentada
por seus autores como sendo de “união
e crescimento”, mas prefere chamá-la
de “união de estagnação e instabilidade”. Destaca que a aplicação das regras
de penalização dos países que tiverem
déficit acima de 3% do PIB será feita
pela Comissão Europeia – “um órgão
de burocratas não eleitos” – “sobre
governos eleitos quando estiverem sob
intensa pressão”. “O que a comissão
fará se os países ainda assim deixarem
de cumprir o tratado? Tomará seu
controle? A resposta, agora sabemos,
é: sim”. “Isso é uma monstruosidade
constitucional”, concluiu.
Por essas e outras causas, sinais
de dificuldades para a consolidação
do acordo começaram a surgir logo a
seguir. Segundo o Financial Times, os
países da UE que não integram a ZE
apresentavam problemas particularmente agudos para que o texto fosse
aprovado por seus Parlamentos. “Hoje,
não há muito mais que uma folha de
papel em branco e mesmo o nome do
futuro tratado poderá ainda mudar”,
queixou-se, por exemplo, Peter Necas,
primeiro-ministro da República Tcheca.
Mas dentro da ZE também havia
problemas. Na Irlanda, líderes de oposição queriam que o primeiro-ministro,
Enda Kenny, convocasse um referendo para a aprovação das medidas
acertadas. E na Holanda, mesmo os
parlamentares de oposição favoráveis à
integração na UE criticaram o governo
minoritário do primeiro-ministro, Mark
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Rutte, pela forma como agiu na negociação do acordo. Uma das principais
questões em debate é se, pelo acordo,
a UE poderá policiar os orçamentos
nacionais somente dos membros da ZE
ou de todos os signatários.
Em artigo anterior, publicado no
início de dezembro, Wolf discutiu as
causas da crise à luz da proposta de
Angela e Sarkozy. Ele examinou a situação de vários países da ZE do ponto
de vista das relações do déficit público e
da dívida pública com o PIB. Concluiu
que a aplicação dos limites de 3% e
60%, respectivamente, como definidos
na proposta, não seria capaz de indicar
com certeza quais seriam os países a
entrar em crise. Uma comparação entre
a Alemanha – tida como um exemplo
de virtude em matéria de austeridade
e disciplina nas contas públicas – e os
países que compõem o grupo chamado
PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha –, tidos como entre os
mais problemáticos da ZE, ilustra isso.
Dados da Eurostat, a agência de
estatísticas da UE, organizados em dois
períodos – 1999 a 2007 e 2008 a 2010,
antes e após a crise que teve como
epicentro os EUA –, mostram que,
quando se trata do déficit público, anteriormente a 2008, a Grécia apresentou
um índice médio anual equivalente a
4,8% do PIB, enquanto o déficit alemão
chegou a 2,2% – resultado muito pior,
no entanto, que o obtido pela Irlanda,
A ALEMANHA “MEIO PIIGS”
Em matéria de déficit e de dívida públicos, o país não
é nenhum exemplo de “austeridade” e de “disciplina”
2
0
Alemanha
Espanha
Grécia
Irlanda
-10
Itália
Portugal
Média 1999-2007
Média 2008-2010
Resultados da execução dos
orçamentos de governos selecionados
da zona do euro, em % do PIB
-18
140
Dívida bruta de países selecionados
da zona do euro, em % do PIB
Média 1999-2007
100
Média 2008-2010
Alemanha
Espanha
20
Fonte: calculado a partir de dados da Eurostat
Grécia
Irlanda
Itália
Portugal
que teve superávit médio de 1,7%. No
período posterior, o déficit alemão
subiu para 2,5%, enquanto o da Grécia
foi a 12,1%. E a superavitária Irlanda
tornou-se, espantosamente, deficitária
em 17,6%. A aplicação desse critério,
portanto, antes da crise americana
levaria a situar a Alemanha entre os
candidatos a país vulnerável – e a excluir a Irlanda.
Quando se trata da dívida pública,
ocorre algo parecido. No primeiro período, a Grécia já despontava com um
endividamento correspondente a 101%
do PIB, um pouco abaixo da Itália, com
106%. Mas a Alemanha, com 63%, superava os outros três membros do PIIGS, todos eles com índice menor que
60%. Na etapa seguinte, o índice grego
explodiu, chegando a 129%, enquanto
o da Itália foi a 113%, e o de Portugal,
a 82%. O da Alemanha atingiu 74%,
ainda acima dos de Espanha (51%) e Irlanda (67%). Nos dois casos, portanto,
se aplicados os critérios do acordo definido em dezembro, o desempenho da
Alemanha não poderia ser considerado
de modo algum exemplar em nenhum
dos dois períodos. Outra conclusão a
que se pode chegar é que, no caso de
alguns países analisados e levando-se
em conta o desempenho alemão, os
altos índices do déficit público e da
dívida pública podem ser considerados
consequências, e não causas, da crise.
Para Wolf, a causa principal é o déficit em transações correntes, que leva
em conta os resultados das balanças
comercial e de serviços de um país em
relação ao resto do mundo. Para os
países deficitários, a solução é importar
capitais para cobrir o déficit e, com isso,
aumentar o endividamento. Os dados
da Eurostat mostram que a Alemanha
foi sempre superavitária e os demais
cinco países, deficitários. Entre 1999 e
2007, o superávit médio anual alemão
equivaleu a 2,7% do PIB, enquanto
no grupo PIIGS os déficits variaram
entre o pequeno 0,5% da Itália e 9,3%
de Portugal. No período posterior, o
superávit alemão saltou para 5,9%,
enquanto o déficit da Itália chegou a
2,8%, o de Portugal a 11,2%, e o da
Grécia, a 12%.
Wolf conclui que o acordo anunciado em Bruxelas é também uma
“monstruosidade econômica”. Ele
argumenta que “é extremamente difícil eliminar déficits fiscais” – como se
A “ALEMANHA-ALEMANHA”
Quando se trata das relações econômicas com os PIIGS,
fica claro quem é o mais poderoso
Resultado de transações correntes de
países selecionados da zona do euro,
em % do PIB
6
0
Alemanha
Espanha
Grécia
-6
Irlanda
Itália
Portugal
Média 1999-2007
Média 2008-2010
-12
Fonte: calculado a partir de dados da Eurostat
pretende – “em países estruturalmente
importadores de capital” – como é o
caso dos membros do PIIGS. Isso só
poderia ocorrer com “recessão prolongada ou melhorias profundas em sua
competitividade externa”, mas, como a
competitividade é relativa, se os países
deficitários em transações correntes da
ZE melhorarem seu desempenho nas
contas externas, isso significará que os
que exportam capitais dentro da área do
euro têm de reduzir seu desempenho
– a menos que, segundo Wolf, ocorra
uma “melhoria radical no desempenho
externo da região do euro como um
todo”. “A primeira opção – ele diz –
implica a Alemanha ser bem menos
Alemanha. A última implica a região do
euro tornar-se uma mega-Alemanha.”
“Quem consegue acreditar que alguma dessas opções seja plausível?”, ele
pergunta.
O mais provável, de acordo com
Wolf, é que os países vulneráveis
passem por recessões de longo prazo.
“Para dizer de forma seca, a moeda
única significará quedas nos salários
e depressões econômicas.” Isso, na
opinião do economista James Kenneth Galbraith, da Universidade do
Texas, representa um contrassenso
para os próprios interesses alemães.
Ao diminuir gastos, os demais países
da região vão reduzir o superávit em
conta-corrente da Alemanha. A contrapartida, segundo ele, estaria na ele-
vação das despesas do próprio Estado
alemão, que poderia funcionar como
um estimulador para todo o continente,
Mas como isso se daria sem macular
a imagem de austeridade e disciplina
fiscal emanada pela Alemanha, que é
obrigada a servir de exemplo para os
demais, os “indisciplinados”?
Segundo o diário Valor Econômico, os
países da ZE terão de refinanciar cerca
de 1,1 trilhão de euros em dívidas neste
ano, “metade das quais são papéis italianos, franceses e alemães que vencem
no primeiro semestre”. Até o final de
março, Espanha, Itália e Grécia terão
de refinanciar algo entre 80 bilhões
e 100 bilhões de euros. Isso significa
que títulos emitidos pelos governos
com vencimentos nesses períodos serão “rolados”, isto é, substituídos por
outros, novos.
Os governos emitem títulos com
prazos variados de vencimento – um
ano, três anos, dez anos, por exemplo.
Os prazos indicam a data-limite para
o pagamento do principal e durante
o período o comprador do título – o
emprestador ao governo – recebe o
correspondente aos juros. Suponhamos
que um país emitiu títulos com valor de
100 euros, prazo de pagamento de dez
anos e juros anuais de 5%. Se os papéis
foram lançados em 2002, devem vencer
este ano. Cada título pagou anualmente
5 euros de juros, num total de 50 euros
no período. Neste ano, o detentor do
54 retratodoBRASIL
|
11
Os primeiros sinais graves do drama da Grécia
surgiram em 2009, quando Papandreou descobriu
que o déficit público era o dobro do anunciado
papel deveria receber o principal. Isto
é, os 100 euros emprestados em 2002.
Mas, por diferentes razões – para
evitar aumento do volume de dinheiro
em circulação, por não ter o suficiente
para pagar, ou por uma combinação
desses e de outros fatores –, o governo
prefere rolar a maior parte do principal
da dívida que está vencendo. Para isso,
lança novos títulos e os troca pelos
antigos. Assim, não paga o principal e
continua remunerando os juros.
O problema, nesses casos, é definir
o custo do novo empréstimo. Os detentores dos papéis a serem trocados
podem querer uma taxa de juros maior
que os 5%. O que complica a compreensão desse esquema é que, como norma, quase ninguém “carrega”, como
se diz no jargão da área, um título por
prazo muito longo. Por isso existe o
mercado secundário, em que os títulos
já emitidos e ainda não vencidos são
negociados entre os componentes do
mercado – bancos centrais, fundos de
pensão, bancos comerciais, empresas,
entidades privadas e países estrangeiros.
Supondo o exemplo anterior, de
títulos de dez anos com taxa de juros
de 5%, a negociação no mercado secundário se dará em torno do valor de
face, isto é, o valor da emissão do papel
– 100 euros –, que será pago em seu
vencimento. Assim, quando um título
for negociado no mercado secundário,
o novo comprador pode adquiri-lo, por
exemplo, por 95 euros. Se essa aquisição for feita transcorridos cinco anos
após a emissão, ele terá expectativa de
receber 25 euros por título até o vencimento. O comprador inicial esperava
ter um rendimento de 50% (50 euros)
ao longo dos dez anos. Como ficou
com os títulos apenas a metade desse
tempo, teve rendimento de 25% (25
euros). Já o que adquiriu os títulos por
95 euros, embora vá receber os mesmos
25 euros, tem a expectativa de rendimento de 26,3% até o vencimento. Isso
revela a lógica tomada como referência
nas transações realizadas no mercado
12
| retratodoBRASIL 54
secundário: quanto menor o preço pago
pelo título em relação ao valor de face,
maior o rendimento.
Papéis trocam de mão muitas vezes
no mercado secundário. E, portanto, a
cada vez podem ocorrer variações nas
expectativas de retorno. Quando chega
a hora de o governo rolar sua dívida, ele
tem de levar em conta tais expectativas.
Se, na véspera do vencimento, os títulos
de 100 euros estiverem cotados a um
preço menor que o valor de face, isso
significa que os detentores do papel
esperam um retorno maior do novo
título – o que leva o governo a elevar
a taxa de juros.
É essa a questão envolvida no
refinanciamento da dívidas europeias
neste ano. Os títulos das dívidas de boa
parte dos países têm sido negociados a
preços baixos no mercado, sinal claro
de que o mercado vai querer taxas de
juros mais altas. Como tendência, as
taxas de juros que remuneram os papéis
são maiores quanto maior for o prazo
de vencimento – o que implica maior
risco para o credor. Mas, é claro, dependendo do país devedor, taxas de juros
de curto prazo podem se aproximar ou
até mesmo superar as de longo prazo
de outro, considerado menos arriscado.
Até há três anos, embora houvesse
diferença entre os países da ZE, as taxas de juros cobradas estavam mais ou
menos alinhadas, pois o mercado não
avaliava que houvesse desigualdades
muito grandes de risco. Hoje, no entanto, a situação é bem diferente e entre a
Alemanha e o PIIGS as diferenças de
taxas de juros exigidas pelo mercado se
ampliaram muito. Isso torna a situação
de Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha muito mais complicada quanto
tentarem obter empréstimos novos ou
rolar os velhos.
O grande temor do mercado é o
chamado default, ou moratória, situação em que o país devedor comunica a sua incapacidade de honrar os
compromissos nos termos acertados.
Frequentemente, nesses casos ocorre
uma renegociação dos termos da dívida, em que o país devedor procura
tornar as condições de pagamento mais
suaves. E comum que o Fundo Monetário Internacional (FMI) participe
das negociações, geralmente impondo
ao devedor programas que envolvem
cortes de despesas públicas e aumento
de impostos, além da venda de ativos
– isto é, a privatização de empresas
e serviços – com o objetivo de gerar
superávits fiscais para o pagamento da
dívida. O país que chega a uma situação
desse tipo, no entanto, passa a enfrentar
dificuldades muito grandes para obter
novos empréstimos do mercado.
Nenhum dos países da ZE chegou
oficialmente a esse estágio. Nem mesmo a Grécia, que aparentemente está
em pior situação, já que inaugurou a
corrente crise no continente.
Os primeiros sinais mais fortes
das dificuldades da Grécia surgiram
em novembro de 2009, quando o
recém-eleito primeiro-ministro, George
Papandreou, descobriu que o déficit
público daquele ano seria equivalente
a 12,7% do PIB, mais que o dobro do
que fora anunciado pelo seu antecessor,
Kostas Karamanlis.
No mês seguinte, o governo grego
informou que a dívida soberana grega
– os compromissos assumidos pelo
governo – chegavam a 300 bilhões de
euros, o equivalente a 113% do PIB. A
partir daí até novembro passado, quando Papandreou renunciou, a Grécia
passou por diversos cortes de despesas
públicas e obteve ajuda financeira da
UE e do FMI, enquanto via o status de
sua dívida ser sucessivamente rebaixado
pelas agências de análise de risco, o que
levou à queda vertiginosa dos preços
de seus títulos no mercado secundário.
Essa tendência foi reforçada diante do
teor das medidas adotadas pelo governo grego, que levaram a economia do
país a uma depressão (ver o quadro “O
que é a nova tragédia grega”, à página
seguinte). Sem crescimento econômico,
as receitas públicas caem, o que produz
O QUE É A NOVA TRAGÉDIA GREGA
Entre 2008 e o final deste ano o PIB da Grécia pode encolher 15%
Em artigo publicado em meados do mês passado pelo diário Folha de S.Paulo,
o articulista Vinícius Torres Freire apresenta um balanço sombrio da situação
da Grécia. Ele diz que o país tornou-se “um triste laboratório das políticas que
o pacto franco-germânico quer impor à Europa quase inteira”. Ele afirma que o
PIB grego de 2011 deve ser cerca de 6% menor que o de 2010. E que o deste ano,
por sua vez, será 3% mais baixo que o do ano passado, “se tudo der certo”. “Em
cinco anos recessivos [desde 2008] até o final de 2012, a economia grega terá
diminuído uns 15%.”
Freire diz que, apesar de o país “viver sob arrocho”, no ano passado as despesas
do governo cresceram 3% e a receita caiu 3%. A despesa com o pagamento de
juros e com parte do principal da dívida subiu 19%. Com tudo isso, o déficit público
estimado para 2011 era de em torno de 10% do PIB. “Com o PIB menor, menos
receita e mais déficit, a dívida grega continuará viajando para alturas impagáveis.”
O primeiro plano de cortes de despesas foi apresentado pelo governo liderado por
Papandreou em fevereiro de 2010, com o objetivo de reduzir o déficit público. A
proposta incluía congelamento dos salários de funcionários públicos e aumentos
de impostos. Houve protestos e greves em várias partes do país.
Em maio, um acordo com o FMI garantiu ajuda de 110 bilhões de euros, a ser desembolsada ao longo de três anos. Em resposta, 50 mil manifestantes protestaram
em Atenas. A essa altura, a Standard&Poor’s (S&P) havia rebaixado o status da
dívida grega para o junk status.
Desde meados do ano passado a crise se acelerou. Em junho, nova avaliação da
S&P colocou a dívida soberana grega no nível mais baixo em todo o mundo. Em
julho, os líderes da UE concederam mais 109 bilhões de euros como ajuda adicional ao país. E a dívida grega foi renegociada em condições mais favoráveis, com
a imposição de perdas aos credores. Foi o que a agência de avaliação de risco
Fitche caracterizou na ocasião como um “default seletivo” (moratória parcial).
Em outubro, parlamentares gregos aprovaram nova rodada de aumento de impostos e de cortes de salários dos funcionários públicos, em meio a dois dias de uma
greve geral que paralisou Atenas, com cerca de 50 mil manifestantes ocupando
a praça em frente ao Parlamento (imagem abaixo). A seguir, durante encontro
de líderes da ZE em Bruxelas, Merkel e Sarkozy negociaram com credores uma
troca de títulos da dívida grega, com o objetivo de reduzi-la à metade. De volta a
Atenas, Papandreou anunciou a realização de referendo popular sobre o plano
de ajuda. No início de novembro, durante encontro do G20 na França, Sarkozy
colocou publicamente em dúvida a continuidade da Grécia na ZE. Papandreou
retirou, então, a proposta de referendo.
Dias depois, ele anunciou sua renúncia. No dia 11, Luca Papademos, doutor em
economia pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e ex-vice-presidente
do BCE, após negociações no Parlamento, assumiu seu lugar.
AFP/GettyImages
a percepção de que não haverá recursos
para reduzir o endividamento. Daí para
que os detentores dos títulos gregos
procurem se livrar desses papéis, baixando os preços, é um passo.
Todos os demais membros do PIIGS foram afetados pela crise do endividamento. Eles adotaram medidas de
austeridade mais ou menos profundas,
que quase sempre incluíram o aumento
da idade mínima para aposentadorias.
Portugal e Irlanda obtiveram ajuda
financeira da UE e do FMI em circunstâncias que definiram claramente
a necessidade de corte de despesas e
a elevação das receitas públicas, com
mais impostos. Mesmo após os governos apresentarem e os respectivos
Parlamentos aprovarem esse tipo de
medidas, alguns dos países tiveram o
status de suas dívidas rebaixado. No
caso de Portugal, para o junk status (algo
como “categoria lixo”).
Com o objetivo de elevar as receitas
públicas, além de aumentar impostos,
os portugueses devem privatizar a
participação estatal em empresas importantes do país. As mais notáveis
são a Energias de Portugal (EDP), da
qual o governo tem 25% das ações,
que teve faturamento de mais de 14
bilhões de euros no último ano fiscal,
e a TAP Portugal, de serviços aéreos,
com capital 100% estatal e faturamento
de mais de 2 bilhões de euros.
Para ajudar os países em dificuldade, a UE criou dois fundos. O primeiro
foi o Fundo Europeu de Estabilidade
Financeira (EFSE, na sigla em inglês),
de 440 bilhões de euros. O segundo
foi o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM), de 500 bilhões de
euros. No total, a soma chega perto de
um trilhão de euros. Os membros do
Conselho Europeu decidiram que o
ESM, previsto para começar a operar
em meados do ano que vem, iniciará
seu funcionamento em julho próximo.
Mas, por pressão da Alemanha, não
haverá a junção dos recursos dos dois
fundos , pois o EFSE deixará de existir.
O Conselho Europeu também decidiu
que a UE deve reforçar o FMI com 200
bilhões de euros.
O professor e economista paulista
Luiz Gonzaga Belluzzo avalia que o
volume desses e de outros recursos
empregados no combate à crise ainda é
pequeno. Em entrevistas e artigos publicados nos últimos meses, ele tem dito
54 retratodoBRASIL
|
13
A poderosa Alemanha beneficiou-se de déficits
gerados nas transações correntes com países
periféricos da zona do euro, onde o crédito era fácil
que é preciso de algo mais “parrudo”.
Belluzzo tem destacado a relação entre
as dívidas dos países e os bancos europeus. Em outubro passado os governos
de Bélgica, França e Luxemburgo nacionalizaram o Dexie, grupo financeiro
que já havia sido socorrido em 2008
com 6 bilhões de euros. Os resultados
do balanço da empresa referentes ao
segundo semestre de 2010 registraram
prejuízos de 4 bilhões de euros – em
consequência, principalmente, da reavaliação, em sua carteira, dos títulos da
dívida soberana grega (dívida soberana
é a que é assumida por um Estado ou
por seu Banco Central). Menos de uma
semana antes da nacionalização, o preço
da ação da empresa caiu 22% na Bolsa
de Valores de Bruxelas, para 1,10 euro
(anos antes, a ação chegou a ser negociada a 20 euros).
“É um sinal que aponta para a
situação mais grave dos bancos”, disse
Belluzzo em entrevista concedida na
ocasião. O Dexie “mostrou um excesso
de exposição em relação às dívidas soberanas. Isso, na realidade, é um padrão
dos bancos europeus”. Ele lembra, no
entanto, que os bancos americanos
também mantêm posições pesadas na
Europa, de 600 bilhões a 700 bilhões
de dólares.
Em outra entrevista, publicada na
mesma época, ele expandiu as perspectivas de sua explicação. Disse que
a “globalização financeira ajudou a
tornar o dinheiro barato nos países
desenvolvidos, em especial nos EUA”.
“O fluxo de capitais era tão grande que
era possível emprestar abusivamente a
juros muito baixos.” Segundo ele, com
a China produzindo bens manufaturados baratos, o preço dos bens de
consumo caiu muito. E, embora não
tenha ocorrido elevação da renda da
população – no geral, ela estagnou – o
aumento da oferta de crédito e a queda
dos preços dos bens deram uma sensação de prosperidade. “O sujeito nem
tinha um ótimo emprego, mas trocava
de carro todo ano.”
14
| retratodoBRASIL 54
Foi em meio a esse processo que os
bancos se abarrotaram com os títulos
das dívidas dos países europeus. Até
porque, em 2010, por exemplo, o Comitê da Basileia de Supervisão Bancária,
que coordena as regras de 27 Bancos
Centrais de todo o mundo, aprovou
entre suas diretrizes preliminares,
conhecidas como Basileia 3, uma que
recomenda que os bancos mantenham
“ativos líquidos de alta qualidade” em
quantidades suficientes, principalmente
caixa e dívidas soberanas.
Falando a Retrato do Brasil dias após
o encontro do Conselho Europeu,
Belluzzo explica que a crise europeia
é um prolongamento da de 2008, desencadeada pela quebra, em meados
daquele ano, do banco de investimentos americano Lehman Brothers. A
facilidade de crédito gerou bolhas de
consumo em alguns países, com grande
aumento do endividamento das famílias europeias, que se aproximou do
nível do das americanas, considerado
muito alto.
No caso da ZE, com as facilidades
de financiamento, nos países periféricos
o aumento de consumo gerou déficits
em transações correntes, principalmente com a Alemanha, grande potência
industrial da região. De certa forma, diz
ele, a Alemanha funcionou para a ZE
como a China para os EUA (o déficit
comercial dos EUA com a China em
2010 foi de 273 bilhões de dólares).
Nos dois casos, destaca, a demanda
e a oferta de bens ficaram separadas,
em Estados nacionais diferentes. E,
assim como a indústria perdeu força
nos EUA – muitas empresas transferiram suas plantas industriais para o
leste da Ásia, principalmente para a
China –, no caso da Europa, enquanto
a indústria na Alemanha se manteve
dinâmica, enfraqueceu-se nos países ao
redor dela. A Espanha, por exemplo,
tornou-se um centro industrial sem
maior relevância. Esse divórcio, de
forma geral, vem provocando graves
desequilíbrios.
Belluzzo lembra que parte importante da dívida soberana europeia
resultou da ajuda dos governos ao setor
privado, que fora atingido pela crise
de 2008. Outro tanto dessa dívida foi
resultado do acúmulo dos déficits em
transações correntes, os quais, para serem financiados, tornaram necessários
novos empréstimos. Essa dívida, em
boa parte, foi adquirida pelos bancos.
Diante das avaliações pessimistas a
respeito da qualidade dos papéis, isso
tem gerado problemas para o funcionamento do sistema bancário. Como
um banco não conhece precisamente a
situação do outro, todos desconfiam uns
dos outros e evitam emprestar dinheiro
entre si. Nessas condições, diminui a
liquidez e, por consequência, o crédito,
o que atrapalha enormemente o funcionamento da economia. Para minimizar o
problema, em novembro o Federal Reserve System (Fed, o banco central dos
EUA) e outros bancos centrais, inclusive
o BCE, anunciaram medidas conjuntas
para garantir a liquidez. Dias antes da
reunião do Conselho Europeu, o BCE
agiu isoladamente no mesmo sentido.
Às vésperas do Natal, o BCE emprestou 489 bilhões de euros a 523
bancos, com juros de 1% ao ano e prazo de vencimento de três anos. Desse
total, pouco mais da metade foi para
rolar dívidas de prazos mais curtos dos
bancos com o próprio BCE.
Belluzzo defende a aplicação da
proposta do magnata húngaro americano George Soros. Em artigo publicado
no Financial Times no final de setembro
do ano passado, Soros sugeriu uma espécie de intervenção ampla do BCE nos
bancos europeus, para fazer com que
o sistema volte a funcionar. Belluzzo
avalia que o que foi feito até agora deve
ajudar os bancos a carregarem os títulos
das dívidas soberanas, sem resolver, no
entanto, o problema central, que é o da
qualidade dos papéis, e sem promover
o crescimento econômico.
Ele defende uma atuação mais
ampla e profunda dos Estados nacio-
nais na crise europeia. Em entrevista
divulgada em novembro, disse que a
intervenção estatal para salvar os bancos foi “brutal” e “correta”. “O que
não é correto é, depois da intervenção,
você não conseguir impor as novas
regras de regulação”, disse. “O Estado
tem de impor medidas mais duras de
controle desse setor da economia, que
é um setor fundamental.”
Belluzzo criticou os que veem a
intervenção estatal na economia como
antidemocrática. “O período de maior
efervescência democrática [na Europa]
foi o período em que os governos
mais interferiram na economia. Foi o
período pós-guerra, em que se criou
o sistema de proteção social: o Estado
intervinha para suavizar a flutuação das
economias.” Ele considera uma “simplificação absurda” a ideia baseada na
relação mecânica “entre a intervenção
na economia e a perda das liberdades
civis e políticas”.
UNIÃO EUROPEIA, MAIS DE MEIO SÉCULO DE HISTÓRIA
Tudo começou com um tratado assinado por seis países para evitar o desenvolvimento
da indústria bélica. Há 20 anos foram definidas as primeiras regras para o euro
população
(em milhões)
Alemanha
Áustria
Bélgica
Chipre
Eslováquia
área (em
milhares
de km2)
PIB (em
bilhões de
euros)
PIB per
capita (em
milhares
de euros)
81,8
357,0
2.476,8
8,4
82,5
286,2
30,3
34,1
10,9
30,3
354,4
32,6
21,6
0,8
9,3
17,3
5,5
49,0
65,9
12,1
Eslovênia
2,1
20,1
35,4
17,3
Espanha
46,2
506,0
1.051,3
22,8
Estônia
1,3
43,4
14,3
10,7
Finlândia
5,4
304,0
180,3
33,6
França
65,1
544,0
1.932,8
29,8
Grécia
11,3
130,7
227,3
20,1
Holanda
16,7
33,8
588,1
35,4
Irlanda
4,5
68,4
156,0
34,9
Itália
60,6
295,1
1.556,0
25,7
0,5
2,6
40,3
79,5
Luxemburgo
Malta
0,4
0,3
6,2
14,8
Portugal
10,6
91,9
172,6
16,2
Bulgária
7,5
111,0
36,0
4,8
Dinamarca
5,6
43,1
235,6
42,5
Hungria
10,0
93,0
97,1
9,7
Letônia
2,2
62,3
18,0
8,0
8,4
Lituânia
3,2
62,7
27,5
Polônia
38,2
312,7
354,3
9,3
Reino Unido
62,4
243,8
1.700,1
27,3
Rep. Tcheca
10,5
77,3
149,3
14,2
Romênia
21,4
230,0
121,9
5,7
9,3
410,3
346,5
37,0
Suécia
ZONA DO EURO
A União Europeia é marcada por contrastes. Entre seus 27
Estados membros há a grande e poderosa Alemanha, o país
mais populoso — tem quase 82 milhões de habitantes — e
o terceiro em área territorial – 357 mil km2, e a minúscula
ilha de Malta, com apenas 400 mil habitantes e 300 km2
de área. A Alemanha também tem o maior PIB – quase 2,5
trilhões de euros –, mas o maior PIB por habitante é do
pequenino Luxemburgo, com 79,5 mil euros – equivalente
a 2,5 vezes o alemão.
Em abril do ano passado, a iniciativa que está nas raízes da
UE completou 50 anos. Foi em 1951 que Alemanha Ocidental,
Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo firmaram um
tratado para colocar suas indústrias pesadas de carvão
e aço sob uma autoridade comum. O objetivo declarado
era evitar que qualquer um dos países tivesse facilidades
para produzir armas que pudesse utilizar contra os outros
associados. Seis anos mais tarde, eles assinaram o tratado
de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia
(CEE), ampliando então a cooperação para outras áreas
econômicas e dando origem ao “mercado comum”, com
livre circulação de pessoas, mercadorias e serviços entre
os Estados signatários.
Foi a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o desmantelamento da antiga União Soviética que deram grande impulso
à integração europeia. Uma questão-chave foi a reunificação da Alemanha, com a absorção da parte oriental pela
ocidental em 1990. A essa altura a CEE tinha 12 membros.
Em 1992 surgiu a União Europeia, com a assinatura do
Tratado de Maastrich, que, entre outras coisas, definiu as
regras para a futura moeda única. Foi nessa ocasião que
ficou estabelecido pela primeira vez que os Estados membros não poderiam ter, em relação a seus respectivos PIBs,
déficits e dívidas públicos superiores, respectivamente, a
3% e 60%, o que foi reforçado na reunião do Conselho
Europeu de dezembro.
Em 1999, 11 dos então 15 países da UE adotaram o euro unicamente para realizar transações comerciais e financeiras
(mais tarde a Grécia se juntou ao grupo). Ficaram de fora
Dinamarca, Reino Unido e Suécia, que preferiram manter
suas moedas nacionais. Em 1º de janeiro de 2002 começaram a circular nos 12 países moedas e notas de euro, que
substituíram as moedas locais.
Ao longo de seu mais de meio século de existência, a UE
construiu um conjunto singular de instituições. O Conselho
Europeu, formado por chefes de Estado e de governo, é responsável por definir as prioridades políticas de longo prazo.
Fonte: Eurostar
As tarefas do dia a dia são de responsabilidade da Comissão
Europeia, cujos membros são indicados pelos Estados.
A UE tem uma espécie de Legislativo, dividido em duas
câmaras: o Parlamento Europeu – cujos membros, eleitos
diretamente, representam os cidadãos e são organizados
por partidos políticos pan-europeus – e o Conselho da União
Europeia – formado por ministros de Estado. A união conta
ainda com um Tribunal de Justiça, para assegurar o cumprimento da legislação comum europeia, e com um Tribunal
de Contas. Os tratados que regulam a estrutura da UE são
firmados por líderes dos países e têm de ser ratificados por
seus respectivos Parlamentos.
54 retratodoBRASIL
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AFP/Getty Images
Entrevista
“ISRAEL QUER
ME SILENCIAR”
Autor de A História Secreta da Al Qaeda, sobre seus três dias
com Bin Laden, Abdel Bari Atwan defende a Terceira Intifada e
condena a ingerência das grandes potências no mundo árabe
por Aleksander Aguilar
SEM PAPAS NA língua. Característica inegável que lhe vale,
em suas próprias palavras, ser objeto de uma perseguição
internacional. Abdel Bari Atwan é o editor-chefe do al-Quds
al-Arabi, com sede em Londres e um dos mais influentes
jornais árabes no Ocidente. Atwan ganhou fama mundial ao
entrevistar Osama bin Laden, numa caverna em Tora Bora, no
Afeganistão, cinco anos antes do ataque da Al Qaeda contra
o World Trade Center, em Nova York. Em alto e bom som,
ele opina sobre o Oriente Médio e principalmente sobre a
Palestina, sua terra natal – uma voz que, de tão alta, é quase
estridente para os ouvidos sensíveis de diferentes partes do
globo com interesses na região.
Atwan tornou-se uma das principais figuras públicas da
intelectualidade árabe como comentarista nos canais BBC,
CNN e Al Jazeera, com críticas afiadas e polêmicas sobre os
posicionamentos e papéis de Israel e dos Estados Unidos. Já
foi acusado de antissemita, de ter estado na “folha de pagamento” do ex-ditador da Líbia Muammar Kadafi e de apoiar
o uso da violência. Seu estilo entusiasmado é percebido em
episódios como o da famosa entrevista sobre o programa
nuclear iraniano a um canal de televisão do Líbano, em 2007,
quando ele disse que “se os mísseis iranianos atingissem Israel,
eu juro por Allah que iria a Trafalgar Square (praça central de
Londres) dançar com prazer”.
Autor do livro A História Secreta da Al Qaeda, no qual conta
em detalhes seu encontro de três dias com Bin Laden, Abdel
Bari Atwan, juntamente com Tariq Ali (entrevistado por Retrato
do Brasil na edição de dezembro) e a jornalista e poeta libanesa
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| retratodoBRASIL 54
Joumana Haddad, esteve em Olinda em novembro passado
como uma das principais atrações da VII Festa Literária de
Pernambuco (Fliporto).
Na entrevista exclusiva a Retrato do Brasil, foi categórico:
“Os palestinos agora deveriam iniciar a Terceira Intifada”.
Atwan nasceu no campo de refugiados Deir al-Balah, na faixa
de Gaza, para onde seus pais tiveram de ir depois de expulsos
da então região palestina de Isdud, hoje área do maior porto
israelense e rebatizada de Ahsdod. Seus pais fizeram companhia
aos mais de 800 mil palestinos forçados a deixar suas casas pela
operação de limpeza étnica do Exército de Israel, entre 1947
e 1949. Desde o ano 2000 ele está proibido pelas autoridades
israelenses de entrar em territórios palestinos. “Israel quer
me silenciar”, ele diz. Ainda assim, defende meios pacíficos
para solucionar a questão Israel-Palestina. “Nós temos de
aprender a viver juntos em paz numa sociedade multicultural
e em um único Estado secular democrático. As comunidades
judaicas e árabes compartilham o mesmo espaço em Londres,
o Apartheid terminou na África do Sul; há espaço para todos
também na Palestina.”
Já a recente iniciativa na Organização das Nações Unidas
(ONU) para o reconhecimento de um Estado próprio é, segundo Atwan, uma aposta equivocada da Autoridade Palestina,
que decepcionou seu povo. Ele ainda relaciona os eventos da
Primavera Árabe com a Questão Palestina e critica: a contínua
ingerência das potências ocidentais no mundo árabe, em nome
das chamadas intervenções humanitárias, impede que a região
possa por si só resolver seus problemas.
AFP/Getty Images
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RETRATO DO BRASIL Existe uma
“velha ordem” no mundo árabe que foi sacudida após a série de eventos e mudanças
ocorridos na região?
ABDEL BARI ATWAN É uma revo-
lução para dar fim ao sofrimento árabe.
Se você quer compreender o que está
acontecendo, deve entender a palavra
“humilhação”. Os árabes são humilhados
primeiramente por seus governantes e, em
segundo lugar, pelas potências ocidentais.
Isso atingiu um ponto em que não é possível suportar mais, e os árabes querem
colocar um fim tanto nessa humilhação
interna, que é a corrupção, a opressão e
a falta de liberdade, como na humilhação
externa que se viu na invasão do Iraque,
do Afeganistão, na intervenção na Líbia
e no apoio a Israel. Isso tudo somado é
insuportável, e por isso os povos árabes
querem agora o respeito dos seus governantes e das potências ocidentais.
RB Então, os povos árabes, basicamente,
estão se levantando contra as intervenções
ocidentais?
ABA O Ocidente apoiou esses ditadores
que estão hoje no poder, eles foram postos lá em nome da estabilidade. As políticas do Ocidente no Oriente Médio são
baseadas em dois pontos: obter petróleo
barato e fazer de Israel uma superpotência. É por isso que eles quiseram esses ditadores governando, apesar dos prejuízos
à democracia, é por isso que eles amavam
Mubarak no Egito, ou ainda amam o rei da
Arábia Saudita. Ter esses atores no poder
impede a oposição contra Israel e garante
que o petróleo seja ofertado às potências
ocidentais, e não à China, por exemplo.
RB Mas, se o principal interesse do Ocidente é manter o status quo no Oriente Médio,
já que isso é bom para os negócios, como
você analisa o que ocorreu na Líbia?
ABA Simplesmente um caso do que
servia, mas deixou de servir. Kadafi
tornou-se muito instável, um “menino
mau”, causando muitos problemas ao
Ocidente. Essas potências do Ocidente
queriam se livrar dele e usaram as revoltas
internas como desculpa. A intervenção
ocorreu para garantir que o novo regime
tivesse boas relações com o Ocidente. Foi
uma intervenção barata e serviu como um
ensaio para as armas e os planos militares
para bombardear a Síria ou o Irã. Foi um
exercício militar.
RB Mas a Síria seria um alvo provável para
uma intervenção militar, em função da sua
posição geopolítica?
ABA Não é um alvo provável por várias
razões. A Síria tem fronteiras com Israel
e um forte Exército leal ao regime, além
de ter apoio da Rússia, da China, do Irã
e do Hezbollah, no Líbano. A Síria tem
muitos amigos e muitos grupos minoritários com divisões sectárias internamente.
É como uma caixa de Pandora: você abre
e pode não saber como controlar o que
havia dentro. Israel sofreria se houvesse
uma guerra na Síria. É por isso que o Irã
é um alvo mais factível, já que há a des-
Reprodução
Atwan e Bin Laden, 1996: três dias de conversa sobre a Al Qaeda nas montanhas afegãs
culpa do programa nuclear. Nos últimos
dez anos, o Iraque e a Líbia foram os
dois principais países-alvo do Ocidente,
porque eles possuem petróleo. A Síria não
tem petróleo e tem muitos amigos. Eu
acredito que eles irão atacar o Irã e logo
a Síria indiretamente.
RB E como todo esse cenário decorrente
da Primavera Árabe se relaciona com a
questão palestina?
ABA A questão palestina é parte da
humilhação infligida aos povos árabes
pelas potências ocidentais. A primeira
coisa que ocorreu no Egito depois da
Primavera Árabe foi uma mudança na
sua relação com Israel, pois agora o país
não é mais um servo dos interesses dele,
como costumava ser durante o regime
de Mubarak. E a mesma coisa irá ocorrer
em outras partes. A Primavera Árabe irá
colocar pressão sobre Israel, que terá
de dar mais atenção às resoluções internacionais e pensar duas vezes antes de
obstruir o processo de paz, como faz com
os assentamentos. O atual cenário pode
enfraquecer a posição de Israel, pois há
hoje uma revolução nas comunicações, na
mídia. Já não é tão fácil esconder fatos, em
função do amplo acesso à internet e ao
uso de iPhones, Twitter etc. Mais de 50%
da população do mundo árabe tem menos
de 24 anos. É uma população jovem e
com fome de informação e respeito que
não pode mais ser enganada.
RB A iniciativa da Autoridade Palestina
apresentada à ONU em setembro passado
para o reconhecimento internacional de um
Estado palestino tem amplo apoio da Assembleia Geral da organização, mas enfrenta as
divisões do Conselho de Segurança e o veto
já declarado dos Estados Unidos. Qual é a
sua opinião a respeito?
ABA Os palestinos foram enganados,
ludibriados. No passado, o povo palestino
pegou em armas, fez uso de meios militares para resistir, e o Ocidente dizendo:
“Vocês não podem seguir assim, busquem
rotas pacíficas, sentem para negociar,
conversem com seu inimigo”. Os palestinos então aceitaram a ideia, aprovaram
o plano de partilha que permitiu aceitar
Israel e foram para a Cisjordânia para
formar a Autoridade Palestina (em 1993,
sob comando de Yasser Arafat), na esperança de que ela pudesse guiá-los para a
criação de um Estado. Mas, depois de 18
anos de negociações, o que aconteceu?
Nada. Mais assentamentos judeus e mais
18
| retratodoBRASIL 54
humilhação contra o povo da Palestina.
Aquele processo de paz chegou a um
triste fim. Agora, Mahmoud Abbas quer
se proteger, quer fazer alguma coisa
para mascarar esses anos de negociações
infrutíferas e tenta conseguir reconhecimento para um Estado que não existe...
Os palestinos ficaram chocados, porque
se sabe que mesmo um gesto simbólico
como este não seria permitido, já que os
Estados Unidos usarão seu poder de veto.
Os americanos não querem um Estado
independente na Cisjordânia e na faixa
de Gaza, que é apenas 22% da Palestina
histórica, e não permitirão nem mesmo
essa eventual vitória moral. Depois de 18
anos de negociações, nós somos premiados com o veto estadunidense e com mais
assentamentos na Cisjordânia. Abbas está
humilhado e não sabe o que fazer.
RB Então, a iniciativa diplomática foi um
equívoco completo?
ABA Não, foi um bom teste para os Esta-
dos Unidos e para as intenções ocidentais,
no qual eles falharam. E é bom que as
pessoas que jogam com o processo de
paz percebam que estão fazendo a coisa
errada. O que deveria ocorrer agora é a
desobediência civil, deveria haver resistência à ocupação, os palestinos não devem
acreditar no Ocidente.
RB Você está sugerindo que outra forma de
luta seja iniciada?
ABA Os palestinos deveriam iniciar
agora uma Terceira Intifada. Este é o
momento. O processo de paz falhou
completamente, é preciso uma Terceira
Intifada. A ocupação israelense é a mais
barata do mundo porque é subsidiada
pelos americanos e pelos europeus. Os
palestinos devem dizer “basta”, pois,
se não é possível obter nem um Estado simbólico, como acreditar que se
mobilizarão pela criação de um Estado
de verdade? A Palestina deve regressar
à resistência, porque esse é o único
caminho. E o levante é essencial, pois
o povo palestino não pode viver como
mendigo para sempre, dependendo de
ajuda das Nações Unidas. Israel deve se
responsabilizar pela ocupação.
RB O Quarteto para o Oriente Médio
(grupo mediador das negociações formado
por Rússia, Estados Unidos, Nações Unidas
e União Europeia) acredita que um acordo
possa ser atingido até o final de 2012. Se
mesmo com mediação internacional há
“
A questão palestina é parte da humilhação infligida
aos povos árabes pelas potências ocidentais. A
primeira coisa que ocorreu no Egito depois da
Primavera Árabe foi uma mudança na sua relação
com Israel, pois agora o país não é mais um servo dos
interesses de Israel, como costumava ser durante o regime
de Mubarak. E a mesma coisa irá ocorrer em outras partes.
A Primavera Árabe irá colocar pressão sobre Israel, que
terá de dar mais atenção às resoluções internacionais
e pensar duas vezes antes de obstruir o processo de
paz, como faz com os assentamentos. O atual cenário
pode enfraquecer a posição de Israel, pois há hoje uma
revolução nas comunicações, na mídia. Já não é tão fácil
esconder fatos, em função do amplo acesso à internet e
ao uso de iPhones, Twitter etc. ”
“
O Ocidente apoiou esses ditadores que estão hoje no
poder, eles foram postos lá em nome da estabilidade.
As políticas do Ocidente no Oriente Médio são
baseadas em dois pontos: obter petróleo barato e
fazer de Israel uma superpotência.Ter esses atores no poder
impede a oposição contra Israel e garante que o petróleo será
ofertado às potências ocidentais, e não à China, por exemplo.”
impasse, seria plausível supor que Israel,
pressionado apenas pela luta dos palestinos,
poderia tomar ações unilaterais em prol
da paz?
ABA O quarteto falhou. Eles pediram
aos palestinos que fossem cumpridas
suas obrigações no roadmap (“mapa da
estrada”, plano de paz desenhado pelo
quarteto em 2002), isto é, que os palestinos assegurassem que não haveria ataque
contra os israelenses, e isso foi feito para
que se pudessem seguir as negociações.
Os palestinos atuaram como polícia para
proteger os cidadãos israelenses nos assentamentos nos últimos 18 anos sob a
chamada Segurança Coordenada. Agora
não é mais possível manter isso, porque
Israel nunca sequer se comprometeu em
fazer sua parte. Nem mesmo congelar
os assentamentos por três meses, apenas
por três meses, para que houvesse uma
chance de seguir com a negociação. O
quarteto nunca fez pressão sobre Israel.
A comunidade internacional não ouve
os palestinos. A solução é o levante para
tornar essa ocupação bastante cara para
Israel e chamar a atenção da comunidade
internacional. Dessa forma, a Palestina
poderia voltar a negociar numa posição
mais forte, e é a única forma de retificar
o processo de paz, colocando pressão sob
Israel. Se os financiadores do roadmap não
o fazem, os palestinos devem pressionar
os israelenses, através de meios pacíficos.
RB Meios pacíficos?
ABA Sim, mas também é direito da Pa-
lestina usar a resistência se for necessário.
Quando da invasão do Iraque, o próprio
George Bush Júnior disse: “Se eu fosse
iraquiano e meu país fosse ocupado, eu
resistiria carregando armas”. Por que a
Palestina deveria ser uma exceção? Por
que no nosso caso é um pecado fazer uso
da luta armada? É inacreditável como a
Palestina é demonizada pela mídia com
esse estereótipo de terrorista. Nós não
somos terroristas, nós queremos nossas
terras de volta, queremos nosso país de
volta. Isso é nosso direito.
54 retratodoBRASIL
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19
Ag. O Globo
Política
O SURTO DO PM NO PALÁCIO DO BURITI
Cenas vistas do corredor por câmera de segurança: 1) Pouco
antes das três da tarde do dia 7 de dezembro. João Dias,
de camiseta branca, conduzido por um recepcionista, e seu
auxiliar Dêmis, com bolsa nas costas, no primeiro plano, vão
em direção à sala onde funciona a Secretaria de Governo,
no Palácio do Buriti, em Brasília; 2) da sala na qual João
Dias e Dêmis entraram, sai Paula Araújo para o corredor,
A incrível história do PM João Dias, segunda parte
O ALVO, DESDE SEMPRE, F
O campeão de kung fu que invadiu o Palácio do Buriti e
apresentou em sua defesa laudo psiquiátrico pode até
ser maluco, mas é parte de uma trama contra o novo
governo do Distrito Federal
por Antonio Carlos Queiroz e Raimundo Rodrigues Pereira
colaboraram Lia Imanishi, Sônia Mesquita e Tânia Caliari
1. O surto do PM João Dias parece ser
de pura loucura. Mas nela há um método
AS IMAGENS GRAVADAS pela câmara de segurança de um dos corredores
do Palácio do Buriti, sede do governo do
Distrito Federal, mostradas acima, contam
parte da história. Eram quase três horas
da tarde da quarta feira, 7 de dezembro,
quando o policial militar e ex-campeão
de artes marciais João Dias, pivô das
20
| retratodoBRASIL 54
denúncias que derrubaram o ministro do
Esporte Orlando Silva, chegou à sala de
Paulo Tadeu, secretário de Governo. Estava acompanhado de um funcionário seu,
Dêmis Abreu, que trazia a tiracolo uma
bolsa verde de nylon. O que aconteceu
a seguir é contado por Paula Araújo, que
trabalhava na sala.
Paula, uma morena clara de cabelos
longos, é secretária-executiva da Secretaria
de Governo. Quando o PM chegou, falava
ao telefone. Tinha ao seu lado Niédja
Alves, também da equipe de Tadeu. João
Dias não tinha hora marcada. Paula nunca
o havia visto por ali, mas já o conhecia,
por ser da mesma localidade que ela, a
cidade-satélite de Sobradinho. E por tê-lo
visto várias vezes na TV por conta da intriga da queda do ministro Orlando Silva,
Ag. O Globo
Reprodução do You Tube
chamando a segurança; 3) três seguranças chegam, vão
entrar na sala da Secretaria de Governo para a qual Paula
os convocou; 4) Niédja Alves cai no corredor, arremessada
da sala por João Dias; 5) No primeiro plano, o PM que
estava saindo de cena, agarrado por seguranças, se volta
para trás, quer voltar. Demis acompanha a cena. João Dias
é contido. Paula, que também está sendo contida, é vista
mais ao fundo.
te
E, FOI AGNELO QUEIROZ
do Esporte. “É a senhora a Paulinha?”,
perguntou o PM. Ela corrigiu: “Paula.” E
acrescentou: “O que o senhor faz aqui?”
“Quero falar com o secretário Paulo Tadeu”. “Não vai ser possível, ele está numa
reunião fora, com o governador.” “Então,
quero falar com o chefe de gabinete.”
“Pode falar, sou eu mesma”, disse Paula.
João Dias, então, pegou a bolsa que
estava com Dêmis e jogou seu conteúdo
na mesa de Paula. Depois se foi ver: eram
159 mil reais, em notas de 20, 50, 100 e
algumas moedas. “Diz para o bandido do
seu deputado que eu não estou à venda e
que ele pode ficar com o dinheiro sujo
dele”, teria dito João Dias. “Bandido é
o senhor! E tira esse dinheiro sujo da
minha mesa. O senhor é uma vergonha
para a corporação policial.” “Nega vadia,
vagabunda”, teria dito João Dias.
Voltando à câmara do corredor, se vê
Paula chamando a segurança e voltando
para a sala com três homens. Logo a
seguir, se vê Niédja sendo jogada para
fora da sala. E, pouco depois, o PM ser
conduzido pelo corredor do Palácio, não
sem antes ter tentado voltar para atingir
Paula. Ela gritava: “Bandido! Vagabundo!”
E ele, em resposta: “Eu sei onde você
mora, sua piranha.”
Na tentativa de escapar para alcançar
Paula, João Dias quebrou o dedo de um
segurança, o sargento da PM Manoel de
Souza Silva, que tentava contê-lo. Depois,
foi levado à 5ª Delegacia de Polícia de
Brasília para depor sobre o incidente na
secretaria. E, mais tarde, à Corregedoria
da Polícia Militar, por conta da agressão ao
sargento. Nos dois depoimentos, contou
várias histórias. Entre elas:
• que procurou Paulo Tadeu para
devolver-lhe 200 mil reais que teriam sido
deixados na roda de um veículo seu, em
sua casa, no domingo 4 de dezembro por
uma comitiva de pessoas, entre as quais
estavam Ricardo Tadeu, irmão do secretário, e a própria Paula Araújo. O grupo
teria dito a ele que o dinheiro era para
“amenizar uma tensão política”.
• que só não foi devolver o dinheiro
na segunda porque se encontrava em tratamento psiquiátrico na Policlínica Militar
naquele dia e no dia seguinte (durante o
depoimento, tomou um comprimido, que
seria parte desse tratamento, na frente do
delegado).
• que teria repassado, de forma parcelada, ao deputado Paulo Tadeu, para
pagamento de campanhas do Partido dos
Trabalhadores de 2006, 1 milhão de reais.
• que o coronel Rogerio Leão, chefe
da Casa Militar do governo Agnelo Queiroz, teria dado a ele, em mãos, na sua
residência, “uma quantia de 250 mil reais
para pagar um documento confeccionado por Daniel Tavares”, que delatou
54 retratodoBRASIL
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um suposto pagamento de propina de
5 mil reais para Agnelo Queiroz quando
ele foi diretor da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). Os 250 mil
teriam sido para comprar a retratação de
Daniel Tavares.
João Dias conta muitas histórias, e
elas têm pouca coerência. A campanha
que desencadeou com uma delas, na revista Veja em meados de outubro, e que
derrubou o ministro do Esporte Orlando
Silva, foi, como dissemos, na primeira parte desta história, uma criação alimentada
pela grande mídia a partir de pequenos
fatos verdadeiros e de falsos testemunhos.
Esses testemunhos são tanto de João
Dias quanto de dois outros personagens,
Michael Alexandre Vieira da Silva e Geraldo Nascimento de Andrade, a serem
apresentados num contexto mais amplo
nesta segunda parte de nossa narrativa.
O fato de João Dias ter jogado
dinheiro no Palácio do Buriti pode ser
visto como loucura e também com ironia.
Quando RB o procurou pela quarta vez,
em meados de dezembro, viu, na garagem
e em frente à sua casa, cinco carros, dos
quais quatro de grife: um Camaro, uma
BMW 231, uma Hilux e um Peugeot
esporte. Sua aparente loucura também
deve ser vista de modo mais amplo. Como
disse Polônio sobre Hamlet, na peça de
Shakespeare: “Embora seja pura loucura,
há método nela”. Suas histórias alimentam
uma parte da mídia e da opinião pública. Paula Araújo, a secretária-executiva
agredida verbalmente por ele, disse a RB:
“Tenho 43 anos, trabalho desde os 7 anos
de idade, comecei em casa de família. Sou
uma militante do PT. Trabalho com o
Paulo Tadeu há 14 anos. Ele me chamou
de vagabunda, nega vadia. Disse para a
polícia que eu fui à casa dele levar 200
mil reais. Agora as pessoas ligam para
mim para saber se eu fiz isso. Ele roubou
milhões do Ministério do Esporte e posa
de santo. Os jornais colocam o que ele
diz como se fosse verdade. Ele diz que
tem 22 câmeras na casa dele. Por que
não mostra as cenas em que eu apareço,
levando dinheiro? Ele tem que provar.
Será que ninguém percebe?”
Trinta e nove anos, campeão brasiliense de kung fu, líder de entidades ligadas a
esse esporte em Sobradinho, João Dias
entrou na política pelo PCdoB, partido
pelo qual foi candidato a deputado distrital, como já dissemos. Nessa época conheceu o atual governador, Agnelo Queiroz,
então candidato a senador do DF pelo
22
| retratodoBRASIL 54
mesmo partido. Com relativa popularidade, João Dias não se elegeu, mas foi
o primeiro na lista dos comunistas, com
mais de 4.000 votos. Na eleição de 2010,
João Dias apoiou Agnelo, então candidato
a governador pelo PT. E, tudo indica, esperava que, com Agnelo no governo, seus
problemas estivessem resolvidos.
Não são problemas pequenos. O
governo federal está movendo contra
ele ações em dois campos. No civil, para
que devolva 4,7 milhões de reais que teria
desviado de dois convênios feitos com o
Ministério do Esporte. No campo criminal, é acusado de formação de quadrilha,
apropriação indébita, peculato e outros
crimes. Com dinheiro desviado dos cofres
públicos, é suspeito de ter comprado a
ampla casa onde vive, duas academias de
ginástica e os carros de luxo que ostenta.
No entanto, durante mais de cinco anos,
a partir de começo de 2006, quando o
ministério passou, rigorosamente – como
mostraremos com detalhe no próximo
capítulo – a lhe cobrar os serviços prometidos nos convênios, João Dias agiu
como se Agnelo tivesse a capacidade de
fazer o milagre de perdoar suas dívidas.
E, desde 2008, talvez até sem se dar conta
disso completamente, João Dias foi se
envolvendo cada vez mais numa trama
para destruir a figura política de Agnelo
Queiroz. Desvendar essa trama é o objetivo deste artigo.
2. Que loucura! De apenas dois convênios
foram desviados 4,7 milhões de reais
São nove horas da manhã do dia 1º de
dezembro e RB procura João Dias mais
uma vez. O repórter toca a campainha de
sua residência, no condomínio Vivendas
Bela Vista, no Grande Colorado, um bairro
de Sobradinho. Vê uma criança através do
vidro escurecido da sala da casa, cheia de
cômodos, arranjados elegantemente, como
uma armação de cubos, em dois andares.
João Dias mora ali com a mulher e a filha
RB encontra Célio
Soares, que diz
ter visto o ministro
receber o milhão
na garagem. Célio
ri. Parece gozar de
suas horas de fama
pequena. E está na casa, no momento. Mas
não falará com a revista. Promete falar depois e fica com o celular do repórter. Quem
diz isso é um jovem alto de rosto redondo.
“Posso falar com você, então? Como
é seu nome?”, pergunta o repórter. “Célio”, é a resposta. “Célio? O que apareceu
na revista Veja?”. O repórter pergunta,
referindo-se a Célio Soares, citado na revista Veja em meados de outubro dizendo
que entregou ao então ministro Orlando
Silva um milhão de reais na garagem do
Ministério do Esporte. Célio parece alegre
com seus dias de fama. Sorri e confirma.
Mas também não dá entrevista.
No mesmo condomínio, RB encontra
Ronaldo Oliveira, professor de educação
física, que assinou, como responsável
pela Associação João Dias de Kung Fu e
Fitness (AJDKF), um segundo convênio
com o Ministério do Esporte. Ronaldo é
um tipo atlético, pequeno. Acha que João
Dias tem “genialidade empresarial”, daí
as propriedades que tem – carros, casa,
academias. Diz que quase teve um infarto
com a matéria publicadas pela semanal
IstoÉ, de 2 de novembro. Nela Oliveira foi
colocado num diagrama de um “Esquema
Agnelo”, como o homem que “registrava
ONGs” para o “ministro do Esporte”
Agnelo Queiroz, “o chefe que tinha o
poder de determinar que organizações se
beneficiariam dos programas do ministério
recebendo dinheiro público”. Fica satisfeito quando o repórter lhe diz que leu a
matéria de IstoÉ e a considera um absurdo.
Ronaldo tenta convencer o repórter de
que sua parte no segundo convênio se
limitou a “quatro ou cinco assinaturas”
em documentos de pouca importância.
Não consegue. Nas mais de mil páginas do
convênio 211/2006 que a AJDKF assinou
com o ministério, ele é a figura principal.
Certamente Oliveira funcionou como um
preposto de João Dias, mas assinou muitas
sem muito sucesso, transferir para o clube
parte do atendimento a boa parte das 10
mil crianças que seus convênios pretendiam atingir. A diretora de uma escola próxima, onde o convênio funcionou também
precariamente, diz que o veto deve ter tido
motivos políticos. A secretária da Educação na época, Eurídes Brito, era do grupo
Roriz, contrário ao de Agnelo Queiroz, ao
qual João Dias se ligou. Depois, na campanha de 2010, a secretária caiu em desgraça
por ter sido vista recebendo um pacote
de notas em vídeo feito e divulgado por
Durval Barbosa, o mesmo que detonou o
governador do DF José Roberto Arruda,
preso e afastado do governo depois de
filmagem e divulgação semelhante.
RB procurou também, de várias formas, Eduardo Tomaz, apontado como o
autor de uma entrega de 256 mil reais a
Agnelo Queiroz, a mando de João Dias, de
quem seria o braço direito. Na casa onde ele
morou há até pouco tempo, sua avó, dona
Rosa, conta a vida de Eduardo Tomaz.
Menino pobre, de pai alcoólatra, não tem
um tostão, vivia em sua casa de favor e
hoje estaria trabalhando em uma fazenda.
A SEDE DA FEBRAK, NO PORÃO DA CORAL RIACHO TINTAS
As letras gigantes – o J, de João, e o D, de Dias, continuam
assinalando a porta de entrada do local no qual funcionou, por
pouco tempo, a sede principal da Federação Brasiliense de
Kung Fu, criada pelo PM João Dias, no seu passado de campeão
RB procurou seu advogado. Ele disse que
Tomaz não dá mais entrevistas a ninguém.
O diário O Globo disse recentemente que
Eduardo Tomaz nega ter entregado dinheiro ao atual governador do DF.
Afinal, Tomaz entregou ou não dinheiro a Agnelo? A polícia não fez nenhuma
investigação séria para dirimir dúvidas
como essa. Por que a polícia não ouviu
Eduardo Tomaz a respeito, visto que até
chegou a prendê-lo por cinco dias? Por que
não fez uma acareação dele com Geraldo
Nascimento Andrade, mantido sob regime
de proteção de testemunhas?
Mais adiante nesta história, o trabalho
da polícia será analisado. Agora, resumiremos as conclusões da leitura das mais de 2
mil páginas dos dois convênios assinados
pela Febrak e pela AJDKF com o Ministério do Esporte, onde estão registrados
todos os passos do processo pelo qual as
entidades comandadas por João Dias retiraram dinheiro do Ministério do Esporte
para executar programas que, essencialmente, não realizaram.
O primeiro convênio, o 26/2005, é o da
Febrak, uma instituição criada em 1996,
de artes marciais. Com a Febrak e o apoio de oito escolas de
Sobradinho, cidade-satélite de Brasília, João Dias conseguiu
2,16 milhões de reais em verbas federais, do Programa Segundo
Tempo, do Ministério do Esporte. Hoje o salão, embaixo da
revendedora de tintas local, está fechado
Luiz Antônio
dezenas de vezes nessa condição, e a Justiça
Federal está à sua procura.
O repórter vai então a Sobradinho, onde
passa o dia. Visita o que foi a sede central
da Febrak – Federação Brasiliense de Kung
Fu – , núcleo principal no qual se desenvolveram as atividades do Programa Segundo
Tempo, do convênio firmado pela entidade
presidida por João Dias com o Ministério
do Esporte. Ela está fechada e desativada
há mais de três anos, desde que o PM teve
seus projetos reprovados pelo ministério.
Funcionava num porão do prédio onde hoje
está a firma Coral Tintas. Depois de uma
rampa lateral, se vê o portão de entrada da
sede, pintado de ­vermelho vivo, no qual se
destacam em letras enormes as iniciais JD.
RB visita depois o clube da cidade, o
Sodeso, ao pé de uma bela colina de topo
chapado, extensa, coberta de verde. João
Dias alugou parte das instalações do clube
depois que, em abril de 2006, já candidato
a deputado distrital pelo PCdoB, a Secretaria Regional da Educação do governo
do Distrito Federal proibiu a realização de
parcerias do programa Segundo Tempo
com as escolas locais. O PM quis então,
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ancorada na fama de João Dias, lutador de
kung fu e representante do Brasil em algumas disputas internacionais entre o final
dos anos 1990 e o começo dos anos 2000.
O convênio começou a ser preparado em
2004, quando João Dias assinou acordos de
parceria com oito escolas de Sobradinho.
Pelos acordos, as escolas aceitaram ceder
suas instalações para atividades financiadas
pelo Ministério do Esporte, para crianças
carentes. Detalhe crucial: o ministério exigia
que as atividades ocorressem no turno fora
do período escolar, daí o nome da iniciativa:
Programa Segundo Tempo.
No convênio 26/2005, o ministério
entrou com 2,16 milhões de reais, desembolsados em duas parcelas. Uma, de cerca
de 1,3 milhão de reais, a 23 de junho de
2005, uma semana depois da assinatura da
proposta, e outra com o restante, seis meses
depois. O dinheiro deveria ser gasto, principalmente, em alimentação para as crianças
(1,2 milhão), compra de material esportivo
(580 mil) e pagamento de coordenadores
de núcleo e monitores (380 mil). A parte
de recursos próprios a serem colocados pela
Febrak era de 445 mil reais. Metade dessa
contrapartida era contabilizada como o
equivalente aos aluguéis das sedes da Febrak,
que foram usadas no projeto: a maior, já
descrita, e uma segunda onde funcionava
uma das academias de ginástica de João
Dias, no centro comercial de Sobradinho.
A outra metade corresponderia à doação de
1500 kits com equipamentos de proteção
em lutas para as crianças e para monitores
a serem recrutados pela Febrak.
No dia 27 de março de 2006 surgiu a
primeira denúncia, no Correio Braziliense,
o principal diário da capital federal, de que
o convênio não funcionava. As crianças
não receberiam lanches e haveria muito
menos crianças do que se prometia. E,
pior, o programa não funcionaria no contraturno escolar, regra básica do Segundo
Tempo. Nesse mesmo dia da publicação
da matéria no jornal, em nota que está
na documentação do convênio, o então
ministro Agnelo Queiroz cobrou da sua
equipe resposta da Febrak às acusações
e uma fiscalização “completa e urgente”.
Uma vistoria de dois dias foi feita em
todos os núcleos, nos dias 29 e 30 de março.
E o relatório dos encarregados da inspeção
é contundente: dos 10, três não funcionavam, nos restantes, o número de alunos era
menos de um terço do programado. E as
atividades não eram feitas no contraturno
escolar, desrespeitando a condição essencial
do programa, que é uma espécie de complementação do Bolsa Família e se faz fora
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do turno escolar, para que os beneficiados
tenham mais uma refeição garantida, além
da merenda recebida na escola. Além disso,
a Febrak não tinha entregado os materiais
de proteção que prometera.
Se a fiscalização tivesse se estendido
também à conta aberta na Caixa Econômica Federal para o exclusivo pagamento
das despesas programadas no convênio,
veria o descalabro da administração do
dinheiro público. Por exemplo: do 1,31 milhão da primeira parcela depositados pelo
Ministério do Esporte nessa conta, a 27 de
junho de 2005, no dia seguinte só restavam
5 mil e 14 reais. Coisa parecida aconteceu
com os 730 mil reais depositados a 16 de
dezembro. Cerca de 580 mil reais dessa
parcela saem de uma só vez, a 18 de abril
de 2006, quando o tempo de realização do
convênio já estava esgotado.
Após a fiscalização dos núcleos feita
pelo ME no final de março de 2006, João
Dias e seus prepostos, como Eduardo To-
Com a denúncia,
Agnelo cobrou
fiscalização
“completa e
urgente”. E JD
foi intimado a
devolver o dinheiro
maz e Ronaldo Oliveira, através de cartas ao
ministério e da mobilização de algumas entidades, que elogiam o programa a despeito
de seus defeitos, se empenham em conseguir
um adiamento para realizar o que haviam
prometido. João Dias faz um acordo com
o Clube Soveso e propõe realizar atividades
com 6.500 alunos nas suas instalações. Os
outros 3.500 seriam divididos entre a sede
central da Febrak e outros dois locais, um
deles numa instituição da igreja Assembleia
de Deus na cidade. No dia 14 de abril, o
ME indefere o pedido de prorrogação do
prazo. Para completar, no dia 17 de abril sai
a decisão da Superintendência Regional do
Ensino de Sobradinho dizendo que “está
terminantemente proibida a implantação
do Programa Segundo Tempo nas escolas”.
No início de maio de 2008, o ME dá 60
dias à Febrak para a prestação de contas. Em
meados de junho, em nome da Febrak, Tomaz pede mais prazo para fazer isso. E em
novembro, como não recebera a prestação
de contas, o ME pede que o nome da Febrak seja lançado no Siafi, sistema de contas
do governo federal, como inadimplente. No
final do ano seguinte, em 2 de outubro de
2007, Tomaz ainda está pedindo prazo para
a prestação de contas. Duas semanas depois
o ME ameaça a entidade com uma Tomada
de Contas Especial. Isso significa passar a
cobrança da dívida para as instâncias legais
do governo, em última instância, para o
Ministério Público. Significa também abrir
a possibilidade de uma ação penal contra
os administradores do dinheiro.
No final do mês de outubro de 2007,
a Febrak apresenta finalmente a prestação
de contas. Diz essencialmente que tudo foi
realizado a contento. Diz até mesmo que,
embora não tenha “parâmetros para medir
e evidenciar estatisticamente o impacto”, “é
palpável a redução dos índices de delinquência juvenil nos locais onde funcionam os
núcleos de esportes”. Mesmo para um leigo,
a fraude nas contas é evidente. A principal
manipulação é com a despesa essencial do
convênio: a alimentação das crianças. Ela
praticamente não aconteceu. Grande parte
das atividades, com as poucas crianças que
participaram, foi no turno escolar, no qual
elas recebem a merenda das escolas. A Febrak, como prova a perícia policial feita nas
notas fiscais em 2009, depois de eventos de
natureza policial e política que serão descritos mais adiante, comprou documentos de
empresas especializadas em notas frias. Ou
seja, simulou a compra dos alimentos.
A essa altura, como também mostraremos, uma intervenção política na história
veio mais para atrapalhar do que para
esclarecer. Embora andasse lentamente,
a máquina pública já tinha movido suas
engrenagens para condenar os abusos
sob responsabilidade de João Dias. No
dia 20 de março de 2008, a coordenação
do ME encarregada das prestações de
contas estabelecia que João Dias deveria
devolver à União 3,03 milhões de reais,
correspondentes aos 2,04 milhões que lhe
haviam sido repassados mais a atualização
monetária e os juros de mora.
Como a restituição não aconteceu por
bem, em novembro de 2008 o ministério
enviou a João Dias ofício informando ter
apelado para a Tomada de Contas Especial.
A essa altura, embora o convênio firmado
diretamente por João Dias com o ME fosse
apenas um, de fato ele era responsável por
dois, ou seja, também pelo de número
Veja, uma semana depois da denúncia feita
pela dupla João Dias-Célio Soares sobre
o milhão que teria sido dado a Orlando
Silva na garagem do ministério, foi feita
de forma a tentar incriminar tanto o então
ministro como também o já governador
Agnelo Queiroz. Fez parte da campanha
que derrubou Silva do ministério e faz parte
de campanha em curso contra o governador
de Brasília. Voltaremos a esse detalhe mais
à frente. Por ora, fiquemos com o seguinte
balanço: em meados de 2009, quando a
intervenção pela polícia do governo Arruda
na questão passa a ter grande importância
política, o Ministério já tinha adotado todas
as medidas cabíveis em relação aos dois
convênios de responsabilidade de João Dias.
O Ministério já havia pedido a instauração
de Tomada de Contas Especial (TCE); havia
informado aos órgãos de controle externo,
Controladoria Geral da União (CGU) e
Tribunal de Contas da União (TCU); havia
colaborado com o Ministério Público Federal e autoridades policiais para elucidar
os indícios encontrados pela fiscalização e
auditoria da Secretaria Nacional de Esporte
Educacional (SNEED); e já tinha pedido a
devolução do dinheiro correspondente. No
final de 2010, pelos números do Siafi, João
Dias e seus prepostos estavam condenados
a devolver ao governo federal um total de
4,7 milhões de reais pelos dois convênios, a
serem cobrados na Justiça através de ações
civis. E, pela malversação dos recursos,
estavam sujeitos a ações penais, algumas já
em andamento.
3. São duas as testemunhas contra Agnelo.
E o que elas dizem não resiste aos fatos
Michael Alexandre Vieira da Silva e Geraldo Nascimento de Andrade são as duas
testemunhas centrais desta história: os dois
dizem que o ex-ministro do Esporte e atual
governador de Brasília Agnelo Queiroz é
o chefe de um esquema de malversação
de dinheiro público através de ONGs que
fizeram convênios com o Ministério do
Esporte e desviaram, para uso político de
Agnelo, as verbas aprovadas para ajudar
no desenvolvimento de crianças carentes.
Michael Silva diz que participou de uma
operação pela qual foram entregues 150
mil reais a Agnelo. Geraldo Andrade diz
que viu Agnelo receber 256 mil reais do
esquema em Sobradinho. Os dois estão
num programa de proteção de testemunhas da Polícia Civil de Brasília, que os
Reprodução do You Tube
211/2006, assinado pelo professor Ronaldo
Oliveira, seu preposto, em nome da Associação João Dias de Kung Fu e Fitness.
A propósito desse convênio, é necessário fazer uma retificação do que foi escrito
na primeira parte de “A incrível história do
PM João Dias”. Dissemos que “uma denúncia da Folha de S.Paulo”, que seria uma
exceção num quadro de outras, mal apuradas e com conclusões que iriam “muito
além dos fatos observados”, mostraria,
“com precisão, que o segundo convênio,
assinado por entidade controlada por João
Dias”, ocorrera “alguns meses depois de o
primeiro já ter sido considerado completamente fora dos termos acordados”, o que,
para nós, significaria, “no mínimo, falta de
controle no ministério”.
Esse “segundo convênio” é o 211/2006,
assinado a 9 de outubro de 2006, no qual
o Ministério do Esporte entrou com 923
mil reais para atividades de 5 mil crianças,
em 25 núcleos situados fora das escolas
públicas de Sobradinho, que, como vimos,
estavam proibidas de participar do Segundo Tempo. Quando o repórter escreveu a
primeira parte desta história, não tinha em
mãos, ainda, as cerca de 1.300 páginas dos
procedimentos desse convênio. Com esses
documentos, é preciso reformular a nossa
conclusão. O ministério sabia perfeitamente
que as duas entidades estavam ligadas a
João Dias. E foi mais duro nesse convênio
do que havia sido no anterior, porque os
controles dos convênios haviam mudado,
como se verá adiante. Mudou a forma de
liberação das verbas, a qual passou a ser
feita em três parcelas, sendo a primeira de
menos de 20% do total e a segunda de cerca
de 50%, liberada ao final do segundo mês
após o início do programa e desde que cumpridas várias exigências. Em consequência
do não cumprimento de algumas dessas
exigências, essa segunda parcela se atrasou
e só foi depositada na conta da entidade a
3 outubro de 2007, após uma reformulação
do projeto, feita por meio de um aditivo ao
convênio inicial.
O pessoal de João Dias, aparentemente,
fez um esforço maior e, no Sodeso, por
exemplo, chegou a proporcionar atividades
esportivas para 50% das 2.500 crianças e
jovens inscritos. Mesmo assim o ministério
considerou que a AJDKF não cumpriu as
metas necessárias e em janeiro de 2008
rescindiu o convênio. É essa rescisão que
dá origem a vários atritos de João Dias com
dirigentes do ME, inclusive às gravações
clandestinas que ele próprio faz de suas conversas com esses dirigentes. A divulgação
de fragmentos dessas conversas pela revista
A PRIMEIRA GRANDE TESTEMUNHA CONTRA AGNELO
A foto é de um vídeo da propaganda eleitoral de Weslian Roriz, na sua campanha
para o governo de Brasília, em 2010. Michael Silva quer provar que Agnelo
recebeu dele 150 mil reais, desviados de um convênio da ONG Novo Horizonte
com o Ministério do Esporte, no qual o denunciante trabalhou em 2008. Mas, de
fato, o que Michael Silva disse em 2010 e repete agora, na campanha contra o
governador do DF, é que levou essa quantia a um conjunto no qual Agnelo teria
um escritório. Agnelo o desmente, desde 2008
54 retratodoBRASIL
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Reprodução do You Tube
A SEGUNDA GRANDE
TESTEMUNHA CONTRA AGNELO
A imagem é também de um vídeo da
propaganda eleitoral contra Agnelo,
de 2010. Geraldo de Andrade diz que
viu Eduardo Tomaz entregar 256 mil
reais a Agnelo. Um problema é que
há um depoimento de Eduardo Tomaz
negando isso. Outro problema é que
o governador nunca foi procurado
para esclarecer essa história. Ele a
desmente totalmente. E acha que a
Polícia Civil do DF do tempo de José
Roberto Arruda, quando o suposto
fato teria acontecido, facilmente
esclareceria o episódio, se fosse esse
o seu objetivo
considerou ameaçados de morte pelo PM
João Dias. Ambos dizem que João Dias era
como um sócio do atual governador do DF
no esquema de desvio de dinheiro. E que
os teria ameaçado de morte para defender
Agnelo. Michael Silva diz, em depoimento que foi gravado para a campanha de
Weslian Roriz e divulgado na disputa do
segundo turno para o governo do Distrito
Federal em 2010, que sua mão foi quebrada em função de suas denúncias. Geraldo
Andrade diz que presenciou a cena na qual
João Dias quebrou a mão de Silva com um
golpe. Também depôs no programa de
Weslian Roriz no esforço dela para tentar
ganhar de Agnelo no segundo turno da
disputa pelo governo de Brasília em 2010.
Michael Silva e Geraldo Andrade não
entraram nesta história da mesma forma
e com as posições que passaram a ter a
partir do primeiro semestre de 2010, sob
o regime de testemunhas protegidas. Silva
torna-se denunciante do suposto esquema primeiro, a 14 de abril de 2008, num
depoimento para a Promotoria de Justiça
de Tutela das Fundações e Entidades de
Interesse Social (Profis), em Brasília. O
primeiro depoimento de Geraldo Andrade
é de aproximadamente um ano depois, de
7 de maio de 2009, para a Divisão Especial
de Repressão ao Crime Organizado (Deco),
da Polícia Civil do Distrito Federal. E, nesse
momento, ele não denuncia crime algum.
Está sendo investigado, em função das
denúncias de Michael Silva de um ano antes.
Como Michael Silva entra na história?
Ele trabalhava para uma ONG, o Instituto
de Tecnologia Aplicada a Educação Novo
Horizonte, que tinha convênio para o programa Segundo Tempo com o Ministério
do Esporte. O projeto apresentado era do
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mesmo tipo do da Febrak de João Dias, só
que mais sofisticado: previa, por um ano,
atividades esportivas para 6 mil jovens, no
contraturno escolar, em 30 núcleos espalhados por Sobradinho e áreas próximas. Mas
previa também tratamento dentário, psicológico, pedagógico e cursos de informática,
telemática e línguas para os interessados,
que se deslocariam nos sábados para a sede
da entidade, no Plano Piloto de Brasília. Os
custos eram também aproximadamente
os mesmos do primeiro convênio de João
Dias, 2,06 milhões de reais. Desses, 1,64
milhão cabia ao ME e foi repassado pelo
ME em duas parcelas, uma a 26 de junho de
2006, de cerca de 20% do total, uma semana
após a assinatura do convênio, e outra, com
os 80% restantes, três meses depois.
Michael Silva não tem um passado
de glórias. Ao contrário, como mostrou
no programa eleitoral de Agnelo em
2010 o delegado Marcio Michel, hoje
deputado distrital de Brasília pelo PSL
– Partido Social Liberal – a ficha policial
de Michael Silva mostra três processos
por estelionato – em 2000, 2002 e 2003
–, um por receptação de objeto furtado,
em 2004, e outro por agressão, contra a
esposa, em 2007. Michael Silva denunciou
Agnelo muito possivelmente por um desentendimento com os irmãos Coelho de
Medeiros – João Carlos, Antônio Carlos e
Luiz Carlos –, para os quais trabalhou. Em
abril de 2008, no momento da denúncia,
tinha rompido com eles – segundo alega,
por ter ficado com enorme dívida fiscal
decorrente de ter assumido a propriedade
de empresa de fachada dos irmãos. Também tinha se afastado de João Dias que
o empregara por algum tempo em uma
de suas academias e que o teria ameaçado
quando se dispôs a denunciar Agnelo.
Michael Silva, em seus muitos depoimentos à polícia, faz grande carga contra
os três irmãos. Investigar os eventuais malfeitos dos irmãos Coelho de Medeiros, no
entanto, está além das ambições deste artigo.
Aos três seria necessário acrescentar a irmã,
Vera Lúcia, que trabalhou na Casa Civil da
Presidência da República no governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob o
comando de Erenice Guerra, que se tornou
ministra da Casa Civil depois da saída de
Dilma Rousseff para disputar a Presidência
da República. Para nossa história, basta registrar que o convênio da Novo Horizonte
foi reprovado pelo ME. No começo de
julho de 2009, Antônio Carlos, que assinava
os documentos pela ONG, foi oficiado pelo
ministério a devolver todo o dinheiro recebido para o projeto, com juros e correção
monetária – o que correspondia então a
2,5 milhões de reais. E, como registramos
no texto que acompanha a foto de Michael
Silva, entre tantos erros do convênio do ME
com a Novo Horizonte não está qualquer
prova razoável de que o atual governador de
Brasília tenha recebido propina ou dinheiro
público desviado de suas finalidades.
RB teve acesso a quatro depoimentos
de Michael Silva. Em nenhum ele diz,
como sugere no depoimento feito para a
campanha de Weslian Roriz, que teve sua
mão quebrada, muito menos por João Dias.
Só quem diz isso é Geraldo Andrade. Este
é um jovem de 26 anos, que num dos seus
depoimentos confessa que, desempregado,
foi recrutado numa fila de INSS por um
empresário, Miguel dos Santos Souza,
acusado nos processos oficiais como sendo
especialista na criação de empresas produtoras de notas frias. No depoimento de 3
de abril de 2010, Geraldo Andrade muda de
posição em relação ao que declarara à polícia um ano antes e passa a denunciar não só
seu patrão mas também Agnelo Queiroz.
Geraldo Andrade e Michael Silva então
se alinham. Ambos passam a usar João
Dias para atacar Agnelo. Dizem que ele é
sócio de Agnelo, que chega a extremos para
defender o atual governador de Brasília.
Agnelo é o alvo político dos dois nos
depoimentos que dão para a campanha
de Weslian Roriz. E são esses mesmos depoimentos que estão sendo reproduzidos
agora. As acusações básicas são as mesmas.
Isso decorre de um plano comandado pelos
jovens Michael Silva e Geraldo Andrade,
iletrados, pouco informados, relativamente
desarticulados, como se vê nos vídeos de
seus depoimentos hoje na internet? Com
certeza, não, como se verá a seguir (o depoimento de Michael de Silva, de 24 de outubro de 2010, de 10 minutos, postado pela
empresa Agência Marcus- Publicidade em
Vídeos para Youtube, de Brasília, em sua página agenciamarcus, com o endereço www.
youtube.com/watch?v=5biD6lNW1Nk. O
de Geraldo Andrade, de 27 de outubro de
2010, igualmente de 10 minutos e postado
pela mesma agência, está em www.youtube.
com/watch?v=J5V3CzdakS8).
4. Como a Polícia Civil e o Ministério Público
fabricaram um escândalo político
A transformação da investigação dos
malfeitos praticados pelas ONGs com
convênios no Ministério do Esporte em
um escândalo político nacional é obra
da grande mídia conservadora, como já
dissemos no artigo do mês passado. Mas
não é uma criação dessa mídia. Parte
de interesses claros, como veremos no
penúltimo capítulo desta história. E tem,
como protagonistas importantes, entidades de corpo e alma: no caso, a Divisão
de Especial de Repressão ao Crime Organizado (Deco), da polícia civil de Brasília,
e a Promotoria de Tutela das Fundações
e Entidades de Interesse Social (Profis),
também sediada na capital federal. A
Profis, no caso, representada pelo procurador adjunto Ricardo Antônio de Souza,
demonstrou uma dedicação especial pelas
denúncias de Michael Silva.
O procurador tomou o primeiro
depoimento de Michael Silva fora do
horário de expediente normal da procuradoria: a partir das 19h30 de uma sextafeira, 4 de abril de 2008. Mandou lavrar
então um “Termo de Comparecimento
e Declarações” que Michael Silva assina
e no qual diz basicamente tudo que está
repetindo até agora: que trabalhou para
os três irmãos Coelho de Medeiros, que
foi prejudicado e abandonado por eles
com uma dívida enorme em função dos
impostos devidos pela empresa de notas
frias deles, da qual era apenas o “laranja”,
e que está seguro de que 150 mil reais,
que teria levado para o conjunto Gilberto Salomão, no Lago Sul de Brasília, era
dinheiro ilícito para Agnelo Queiroz, que
teria escritório político no mesmo local.
Esse depoimento foi levado à revista
Veja e deu origem à matéria “A Fraude
Documentada”, que a revista editou
em São Paulo, na sexta-feira 19 de abril,
foi para as principais bancas de jornal e
revistas no dia seguinte e é datada do dia
23. O governador Agnelo Queiroz disse,
agora, a RB, que, na época, tentou mostrar ao repórter autor da matéria que as
acusações contra ele não tinham base nos
Em abril de 2010,
ano das eleições
para o governo do
DF, sob a proteção
da polícia, Michael
e Geraldo se unem
contra Agnelo
fatos. O governador diz que na época da
suposta entrega por Michael Silva de 150
mil reais para ele num escritório que teria
no conjunto Geraldo Salomão, um conjunto comercial na região conhecida como
Lago Sul de Brasília, não tinha escritório
lá. O próprio Michael Silva admite isso,
em novo “Termo de Comparecimento e
Declarações” ao promotor Ricardo Souza,
datado do dia 25, de novo uma sexta-feira,
às 19h30. Neste, Michael Silva diz que o
advogado de Agnelo o procurou, logo
depois da matéria publicada no sábado na
Veja, para que assinasse depoimento que
levou pronto. Em seguida, no “Termo”
esclarece que nunca disse ter entregado
dinheiro a Agnelo pessoalmente e dá
autorização ao promotor para a interceptação de suas comunicações telefônicas,
inclusive as já feitas ao longo de todo
o ano de 2008. Se o promotor fez essas
interceptações, não sabemos. Muitas
interceptações foram feitas nesta história
pela Polícia Civil de Brasília. Todas elas
são sigilosas, inclusive para a pessoa que
é a mais atingida no caso, o governador
Agnelo.
Da matéria de Veja, o procurador
Ricardo Souza partiu para um pedido ao
juizado da 3ª Vara Criminal de Brasília
para a realização de um auto de apreensão
de documentos na sede de empresas que
possivelmente teriam emitido notas frias
para fraude no convênio do Ministério do
Esporte com a ONG Novo Horizonte. A
­apreensão foi feita pelo Deco, da Polícia
Civil de Brasília, chefiado pelo delegado
Giancarlos Zuliani Junior, no dia 24 de
junho de 2008, nas sedes da Infinita Comércio e Serviço de Móveis Ltda e da JG
Alimentos Preparados e Serviços Gerais
Ltda. Os documentos apreendidos pelo
Deco na Infinita e JG foram selecionados
e os relativos à Novo Horizonte foram
encaminhados para perícia contábil por
departamento especializado da polícia. O
laudo, de 79 páginas, saiu cerca de um mês
depois, a 1 de agosto. E não é acachapante,
escandaloso: os peritos apontam algumas
irregularidades, mas aparentemente não
localizaram um viveiro de notas frias.
Da ação do Deco saiu também o
inquérito policial de número 018/2008,
comandado pelo delegado. Nele foi
ouvido Miguel dos Santos Souza, considerado dono das principais empresas
cujos documentos foram apreendidos. É
Miguel Souza quem introduz na história
o personagem que viria a ser o segundo
grande denunciante de Agnelo, Geraldo
Andrade, que seria seu sócio. Além disso,
no entanto, não dá nenhuma pista que
esquente a temperatura política do caso.
Diz que não sabe de qualquer relação
de Agnelo com os irmãos Coelho de
Medeiros. E não sabe também quem é
Michael Silva.
Os laudos da perícia são encaminhados para as autoridades federais competentes. O delegado Zuliani os envia, a 15
e 19 de janeiro de 2009, respectivamente,
para o Ministério do Esporte e para o Tribunal de Contas da União. Geraldo An54 retratodoBRASIL
|
27
drade só é ouvido no inquérito 018/2008
pelo delegado Zuliani a 7 de maio de 2009,
como já vimos. Ele confirma as declarações de Miguel Souza. Declara que é sócio
dele. E promete abrir seu sigilo bancário
para que a polícia verifique que ele não
fez depósitos em nome de Luiz Carlos
Coelho de Medeiros – ou seja, que não
devolveu, por fora, ao homem ligado à
Novo Horizonte, dinheiro recebido por
conta de notas frias emitidas pela JG.
Em meados de 2009, no entanto, um
fato faz avançar a engrenagem que procurava se mover contra Agnelo Queiroz. De
forma espontânea, diz o delegado Zuliani,
Michael Silva comparece à sede do Deco
para novo depoimento. Posteriormente,
vai de helicóptero com a polícia apontar
a casa de João Dias no condomínio Vivendas Bela Vista, que, segundo ele, teria
sido construída com dinheiro desviado
dos convênios com o ME. Com essas
informações, o delegado manda fazer
novas apreensões em sedes de empresas
de notas frias. Também reencaminha
para novo exame as notas apreendidas na
Infinita e na JG no ano anterior. O novo
laudo pericial contábil mostra uma fraude
de notas frias bem mais escancarada que o
anterior. Com ele, aparentemente Zuliani
estaria em condições de alimentar melhor a
máquina federal que já se movia para punir
João Dias pelos abusos que teria cometido
em seus dois convênios, através de ações
civis e criminais, algumas delas, como dissemos, já em andamento na procuradoria
da República no Distrito Federal,
Mas não é isso o que, aparentemente,
mais interessa a ele e ao promotor Ricardo de Souza da outra procuradoria, a
de Tutela das Fundações e Entidades de
Natureza Social. Os dois estão interessados em um inquérito próprio, baseado
em escutas telefônicas, cujos laudos são,
por lei, protegidos por segredo de Justiça.
Dessa forma, vale observar, se pode, além
de investigar os delitos, investigar também
as pessoas. E, o que é mais interessante,
como os grampos são sistematicamente
vazados, com eles se cria a oportunidade
para que a grande mídia interessada em
escândalos divulgue trechos estrategicamente escolhidos para atingir adversários
políticos. E é o que acontece.
Agentes sob o comando de Zuliani
pesquisam os telefones de João Dias, de
UM PROMOTOR DE JUSTIÇA OU
UM NEWS PROMOTER?
O promotor Ricardo Antônio de
Souza chegou ao estrelato no
início de 2008, quando capitaneou
o escândalo da Fundação de
Empreendimentos Científicos
e Tecnológicos (Finatec), que
resultou na queda do reitor da
Universidade de Brasília, Timothy
Mulholland, acusado de gastar
470 mil reais na decoração de seu
apartamento funcional. O papel de
Ricardo foi destrinçado na tese de
mestrado defendida na Faculdade de
Comunicação da UnB, em março de
2010, por Érica Santana Neves, sob o
título A Construção do Acontecimento
Jornalístico: o Caso Finatec. Érica
analisou as 43 matérias publicadas
no jornal Correio Braziliense entre os
dias 24 de janeiro, início da crise, e
4 de abril de 2008, o auge da crise,
quando os estudantes invadiram a
reitoria. Dessa análise extrai-se que o
promotor foi o “centro do conflito” e o
“condutor da ação”. É ele que inaugura
a narrativa do escândalo, convocando
a primeira coletiva de imprensa, e é
ele que alimenta os jornalistas com
novas informações nos três meses
seguintes. “Protagonista absoluto da
narrativa”, tornou-se o ator com mais
visibilidade nas matérias do Correio:
19 aparições contra 11 do advogado
da Finatec, Francisco Caputo, e sete
do reitor da UnB, Timothy Mulholland.
Em termos técnicos foi, ao mesmo
tempo, o “definidor primário” e o
“news promoter” do episódio. No mês
passado, o ex-reitor foi absolvido
pelo Tribunal Regional Federal da
1a Região da acusação de improbidade
administrativa que motivou a sua
exoneração
28
| retratodoBRASIL 54
sua mulher, duas irmãs e três irmãos. Vão
atrás de seus negócios, das academias, dos
carros. Os agentes e analistas dos grampos
são instruídos para procurar o relacionamento dos parentes de João Dias e dos
seus negócios com os irmãos Coelho de
Medeiros e com Agnelo Queiroz, cujo
perfil é apresentado em relatório. O sigilo
dos telefones de João Dias e de parentes
é quebrado. A 1º de abril de 2010, ano
eleitoral, João Dias, sua mulher Ana Paula,
um irmão do PM – Carlos Roberto – dois
de seus auxiliares – Dêmis Abreu e Eduardo Tomaz – e Miguel de Souza Santos,
o homem das empresas de notas frias,
são presos pelo Deco. E, pouco depois,
na campanha eleitoral, os telefonemas de
Ana Paula para a secretária de Agnelo, pedindo ajuda para contratar um advogado
para o marido, são vazados para a imprensa. É vazado para a imprensa também um
telefonema de João Dias para a Agnelo no
qual este saúda o PM com um “meu mestre”, que vira a grande manchete de um
jornal como O Globo. Com isso, o diário
da família Marinho pretende mostrar que
o atual governador tinha reverência pelo
seu ex-correligionário de partido. O que
é simplesmente uma falsidade completa,
pois todos que conhecem Agnelo sabem
que ele saúda com esse “meu mestre” praticamente todas as pessoas que encontra.
É uma situação que persistiu até
agora. Michael Silva e Geraldo Andrade,
as duas figuras que acusam Agnelo, estão
escondidas, sob a condição de testemunhas protegidas. Mas apareceram várias
vezes para a mídia conservadora. A
própria defesa de governador até agora
não tem acesso aos grampos do inquérito
028/2009 que, volta e meia, reaparecem
na grande mídia, em trechos selecionados
para criar escândalo.
Recentemente, no dia 19 de outubro,
João Dias informou a O Estado de S. Paulo
que seus advogados tinham conseguido
retirar, da 3ª Vara Criminal de Brasília,
onde corre, protegido pelo sigilo judicial, o inquérito 028/2008, cópias das
gravações que ele próprio teria feito de
conversas suas com altos funcionários
do ME. Esses grampos foram usados por
João Dias, logo a seguir, para alimentar a
segunda capa de Veja, que saiu no sábado
22 de outubro e foi outra peça básica da
campanha pela demissão do ministro
Orlando Silva e pela incriminação de
Agnelo Queiroz. Neles se ouvem as vozes
dos dois funcionários – Fábio Hansen e
Charles Rocha – e a de João Dias.
ministro Orlando Silva lhe recomendou,
explicitamente, um esforço de fiscalização
nos convênios. As irregularidades nos
convênios com as associações controladas
por João Dias foram descobertas nesse
contexto, diz Filgueira. “Nossa primeira
atitude foi constituir uma força tarefa
RB leu o texto
sobre Agnelo fora
do contexto e
ouviu Filgueira
e Hansen,
protagonistas
do contexto
com servidores do ME e consultores
contratados em parceria com o Pnud
(Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento), para fazer detalhadas
auditorias nos documentos e processos.
Encontramos convênios bons, bem
executados; convênios com pequenas
irregularidades que orientamos; convênios
ruins, que rescindimos e denunciamos.”
“Denunciar” administrativamente,
explica Filgueira, é deixar os órgãos de
controle externo, como a Controladoria
Geral da União (CGU), o Tribunal de
Contas da União (TCU) e a Procuradoria
da República, cientes das irregularidades
para que encaminhem as investigações,
tanto civis quanto criminais. Os convênios
das ONGs de João Dias estavam nesse
último grupo. “Tenho um ano e meio de
correspondência com o MP e a Polícia Civil do DF que trata de investigação sobre
as ONGs do João Dias. Esse material foi
a base da operação Shaolin”, diz Filgueira.
Os resultados das auditorias foram
depois analisados em duas instâncias no
ministério. Pela Secretaria Nacional de
Esportes Educacionais (SNEED), que
analisa basicamente se foram cumpridos os
atendimentos propostos, e pela Secretaria
de Planejamento, Orçamento e Administração (SPOA), que examina a coerência
contábil-financeira da prestação de contas.
Filgueira era o chefe da SNEED e, em
janeiro de 2008, assinou o parecer técnico
que reprovava e denunciava o segundo
convênio de João Dias. Antes disso,
DOIS CAMINHOS PARA A PROMOÇÃO DA JUSTIÇA
O promotor Ricardo Antônio de Souza e a promotora Raquel Branquinho.
Ele extrapolou a sua competência e apoiou a operação que foi primeiro em
busca das pessoas, para depois descobrir que crimes poderiam ter cometido.
Ela despachou rapidamente o que lhe competia e cobrou logo a devolução do
dinheiro público diante do evidente descumprimento do convênio
Reprodução
Veja transcreve vários trechos da conversa que, segundo a revista, “prova” que
o policial “gozava de inacreditáveis privilégios dentro do ministério”, entre os quais
o “de receber orientações sobre como enganar os órgãos de fiscalização do próprio
ministério”. A matéria transmite a idéia de
que Agnelo intervinha no ministério, então
comandado por Orlando Silva, para obter
favores para João Dias: “Nós conversamos
com Agnelo hoje. Agnelo estava indignado.
O Agnelo nos chamou de moleques hoje.
O Agnelo ficou p..., ficou indignado. Falou:
‘Vocês não sabem o estado em que está o
João, o João está p...!’”
O que a matéria sugere, como se
verá, é uma falsidade. Como dissemos, no
primeiro artigo da série sobre a história
de João Dias, a mídia conservadora não
mente com pequenas mentiras, mas com
pequenas verdades tiradas do contexto.
Entrevistamos Fábio Hansen e Julio Filgueira, as principais figuras do ME com
as quais João Dias conversou, no episódio citado e no contexto que o explica.
Filgueira relembra o episódio do veto da
Secretaria da Educação do governo Joaquim Roriz, em 2006, à participação das
escolas públicas de Brasília nos convênios
do Programa Segundo Tempo (PST), já
citado nessa história, para explicar parte
das dificuldades do ministério na época.
“A postura do ministério era sempre
firmar convênio preferencialmente com
os governos de Estados e municípios.
Isso porque acreditamos que, para transformar um programa como o Segundo
Tempo em política pública, o melhor
é que tenhamos desde cedo o envolvimento do Estado”, diz Filgueira, que,
quando assumiu, 68% dos convênios do
programa eram firmados com ONGs,
percentagem que caiu para 11% quando
deixou o ministério em 2009. Além disso,
diz ele, em novembro de 2006 o Ministério dos Esportes foi surpreendido por
um Acórdão emitido pelo TCU muito
desfavorável em relação ao Programa
Segundo Tempo. Os ministros do TCU,
em sua avaliação negativa condensada no
Acórdão, diz Filgueira, indicavam, entre
outras coisas, a má qualidade do material
esportivo usado em diversos convênios do
programa, o desvio de mantimentos do
reforço alimentar destinado às crianças, o
não atendimento do número de crianças
contratado, tal como visto nos convênios
de João Dias. Quando assumiu no Ministério a Secretaria encarregada da gestão
do PST em abril de 2007, diz Filgueira, o
54 retratodoBRASIL
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recebeu o PM numa audiência, para apresentar suas conclusões. “É uma reunião de
praxe que o ministério faz para dar ao parceiro no convênio a chance de se defender.
Mas João Dias refutou tudo que dissemos
e as propostas que indicamos para corrigir
os problemas apontados. Pedimos então
a ele para apresentar os documentos que
comprovassem o que dizia. Nessa reunião
estávamos presentes, pelo menos, eu, ele,
e nossa diretora do convênio.”
Numa segunda reunião, também uma
audiência formal, em dezembro, Filgueira
conta que informou João Dias de não
ter mesmo como evitar a rescisão do
convênio e que iria sugerir ao ministro
uma Tomada de Contas Especial (TCE).
Filgueira explica: “É um processo de
investigação feito por uma equipe mista
formada por membros do ministério e
de órgão externos, como o próprio TCU.
Para quem não deve nada, a TCE é uma
vantagem. Sendo feita com a participação
de gente de fora do ministério, evita, inclusive, a politização, a tal perseguição que
João Dias diz ter sofrido”. Nessa ocasião,
o PM, diz Filgueira, perguntou qual seria
o rito que se seguiria. E foi informado de
que, depois de rescindido o convênio, teria
60 dias para prestar contas.
O terceiro e mais tenso encontro entre
ele e João Dias, Filgueira relembra para
RB, ocorreu por volta de abril de 2008.
E o motivo dela, diz ele, foi justamente
o fato de antes de se completarem os
60 dias previstos pelo rito, João Dias ter
sido cobrado para restituir o valor total
do segundo convênio por meio de um
documento formal, uma Guia de Recolhimento à União, emitida pela SPOA. E,
pior que isso, no início de abril, a SPOA
ter respondido a um ofício da corporação
de João Dias, a Polícia Militar, que queria
informações a respeito de seus convênios
com o ministério, dizendo que eles estavam irregulares e em fase de cobrança
administrativa.
“Dias chegou ao ministério sem avisar. A secretária me avisou e eu o recebi
sozinho, na minha sala. Ele estava nervoso, irritado. Entrou dizendo que havia uma
perseguição do ministério contra ele. Ele
já havia dito isso. E eu sempre falava do
amplo trabalho de fiscalização e auditoria
que estávamos realizando. Então ele usou
a antecipação da cobrança pela SPOA para
retomar sua tese. Eu expliquei a ele que o
encurtamento do prazo e a cobrança que
recebeu não tinham partido da SNEED.
Que eu não considerava correto esse
procedimento. Ele estava alterado, mas
30
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não me agrediu fisicamente”, diz Filgueira
em alusão às declarações de João Dias à
revista Veja publicada a 15 de outubro,
de que havia dado coronhadas e virado
uma mesa em cima dele. Filgueira diz
O delegado
não chamou
Agnelo uma só
vez para depor.
Mas, ao concluir
o inquérito,
apontou para ele
que entende o nervosismo de João Dias.
“Afinal, o rito previsto não havia sido
cumprido. João Dias me disse: ‘Você me
falou que o negócio era sério, que eu teria
oportunidade de me defender’”.
O outro encontro de João Dias com
o pessoal do Esporte é em abril, na
Secretaria Executiva do ministério, que
controla a SPOA. Foi esse que João Dias
gravou. Este é também mais um indício
de que João Dias mente quando diz que
deu coronhadas e virou uma mesa sobre
Filgueira. É difícil acreditar que alguém
do ministério se dispusesse a receber no-
vamente o PM se ele houvesse agredido,
como diz que fez, um funcionário da
instituição. Fabio Hansen e Charles dos
Santos, executivos do ministério, receberam o PM. Santos saiu do ministério.
Hansen continua.
Na entrevista a RB, Hansen primeiro
faz a ressalva de que seu advogado ainda
não conseguiu as cópias da gravação usada
para atingi-lo através da revista Veja, que
sugere que ele estava orientando João Dias
a burlar o próprio ministério. “Na revista
está que eu digo ‘está errado’. E de fato
estava errado João Dias ter sido cobrado
antes de ter saído o parecer financeiro que
reprovava suas contas. Quando a revista
me cita dizendo ‘estamos abrindo uma
outra frente’, pode ser de fato uma frase
minha. Com a reunião demos um prazo
para João Dias tentar justificar suas contas.
E corrigimos a informação que havíamos
dado à PM. Dissemos que as contas do
segundo convênio ainda estavam sendo
analisadas. Quanto à referência a Agnelo,
é verdade que eu fiquei sabendo que ele
queria que respeitássemos os prazos legais
a serem dados a João Dias. Mas a revista
não diz isso. Com a divulgação de trechos
da gravação sem o contexto em que elas
estão, quer mostrar que eu fazia parte de
um esquema para beneficiar João Dias, o
que é uma mentira”.
O fato, conclui Filgueira, é que o novo
prazo dado a João Dias se esgotou e ele
não apresentou nada de novo que pudesse
livrá-lo da Tomada de Contas Especial. E
que, afinal, conduziu aos processos contra
ele em curso na Justiça.
5. Não se sabe o que o procurador-geral buscava.
Mas ele conseguiu tumultuar o processo
No dia 21 de outubro, o procurador-geral
da República, Roberto Gurgel, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um
pedido de abertura de inquérito para investigar as denúncias de corrupção contra
o ministro do Esporte Orlando Silva e o
governador do Distrito Federal, Agnelo
Queiroz. Na certa o procurador ficou
impressionado com as denúncias da revista
Veja. Junto com seu pedido, distribuído
para exame da ministra Carmem Lúcia,
havia três cópias da matéria da revista com
a denúncia de João Dias e seu funcionário
Celio Soares, contra os dois. Elas faziam
parte da argumentação recebida por Gurgel dos líderes dos três principais partidos
da oposição ao governo – PSDB, DEM
e PPS. Gurgel, aparentemente, queria os
holofotes. Entre os sete pedidos que fez
ao STF estava o de ouvir o ministro e o
governador. A ministra Carmem Lúcia
não atendeu esse pedido nem a mais outros três. Aceitou os que resumidamente
sugeriam que Gurgel primeiro examinasse
o que já existia na Justiça sobre a história.
Tanto de modo apropriado como de
modo torto, muito já tinha sido feito. Os
inquéritos na Justiça, civil ou criminal, para
reparar e punir irregularidades e crimes
eventualmente praticados em convênios
com verbas federais são, naturalmente, de
competência da Polícia Federal. E encaminhar esses inquéritos à Justiça é tarefa da
Procuradoria da República. Já vimos que
Antonio Cruz / ABR
não foi esse o entendimento do delegado
Giancarlos Zuliani Junior, da Polícia Civil
de Brasília, nem do promotor Ricardo
de Souza, da promotoria de Tutela das
Fundações e Entidades de Interesse Social
que, em 2008, começaram a investigar
o convênio do Esporte com o Instituto
Novo Horizonte e, em 2009, ampliaram
a investigação para os convênios desse
ministério com as entidades comandadas
por João Dias. Por óbvios motivos políticos, embora na investigação que fez em
nenhum momento tenha chamado o atual
governador do DF para depor e nos seus
resultados finais não o tenha indiciado,
Zuliani passou a ter Agnelo Queiroz como
seu alvo principal.
Ao final do seu relatório, a 19 de maio
de 2010, num Capítulo IV, chamado de
“Dos Demais Fatos Identificados Durante
a Investigação”, Zuliani reuniu contra
Agnelo tudo o que ele achara de ruim: o
que diziam suas duas grandes testemunhas
– Michael Silva e Geraldo Andrade – que
ele mantinha “sob proteção”, digamos
assim; os detalhes do que teriam sido as
duas entregas de dinheiro feitas a Agnelo
e presenciadas pelos dois, uma de 256 mil
reais em Sobradinho e outra de 150 mil
num conjunto do Lago Sul de Brasília; e,
misturados a isso, trechos do acompanhamento das comunicações telefônicas que
mantinha sob sigilo e que sugeriam uma
grande proximidade de interesses entre
Agnelo e João Dias – como três telefonemas que Ana Paula, a mulher do PM, tinha
dado para a secretária de Agnelo pedindo
a indicação de um advogado, logo que seu
marido foi preso.
Ao cabo, Zuliani concluía o seguinte:
que “no curso da investigação foram colhidas informações acerca de um suposto
esquema de envio de recursos oriundos
das mencionadas organizações [as de
João Dias] para o ex-ministro Agnelo
Queiroz”. Isso tudo, dizia, então, Zuliani,
deveria ser aprofundado mediante novas
diligências policiais. Deveria ser pedida a
quebra do sigilo telefônico das estações
de transmissão de sinais de celulares no
dia e no local exato da entrega dos 256
mil reais a Agnelo, feita por Geraldo
Nascimento. Com isso se poderia talvez
“identificar eventual linha telefônica
utilizada por Agnelo Queiroz, Eduardo
Pereira Tomaz e Geraldo Nascimento de
Andrade naquele horário e local”. Zuliani
dizia ainda da necessidade de “acesso aos
extratos telefônicos contendo as chamadas
geradas e recebidas pelas linhas utilizadas”
O PROCURADOR-GERAL SOB OS HOLOFOTES
Já existiam meses de trabalho benfeito na procuradoria da República sobre os
convênios de João Dias. Com o escândalo das denúncias do PM em Veja de 15
de outubro, o procurador Gurgel pediu ao Ministério do Esporte um caminhão de
documentos, o que mais tumultua o processo do que facilita a recuperação do
dinheiro público e a punição dos autores de estelionatos, fraudes e outros crimes
pelos três citados naquele dia.
A investigação de Zuliani e do procurador Ricardo Souza, além de extrapolar
a competência que tinham, colocara o
carro adiante dos bois. O certo seria,
primeiro, propor uma ação civil para
apurar se realmente houvera o desvio de
recursos federais, e quantificá-lo. Depois,
com uma ação criminal, buscar punir os
responsáveis. Como vimos, a dupla tinha
resolvido investigar primeiro as pessoas
para, depois, descobrir que crime poderiam ter praticado.
Contudo, trabalhando dentro de sua
competência, com método e rapidamente,
estava uma destacada procuradora, Raquel
Branquinho. Ela estava no caso porque,
em março de 2009, fora sorteada na Procuradoria da República, em Brasília, para
apurar uma denúncia antiga, do noticiário
da Globo em Brasília – um DF-TV, de
dezembro de 2007 – que se transformara
numa diligência da Corregedoria da Polícia
Militar, a corporação na qual João Dias
trabalha, para investigar seus convênios. E
rapidamente se pôs a campo. Solicitou os
dois convênios do PM com o Ministério
do Esporte – o 26/2005 e o 211/2006
– e já em outubro do mesmo ano tinha
pedido à Justiça uma ação civil pública
com pedido de liminar para confiscar os
bens do PM e alguns de seus sócios pelo
não cumprimento do pactuado com o
ME no primeiro convênio. A ação pedia
que devolvessem aos cofres públicos 3,2
milhões de reais. E, como percebera do
exame do papelório, que havia indícios de
crime – apropriação indébita, estelionato,
fraude – também encaminhara cópia da
ação civil para o chefe do Núcleo
54 retratodoBRASIL
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31
Criminal da procuradoria, José Diógenes
Teixeira, para providências nessa área.
A procuradora continuou também
acompanhando a investigação da Polícia
Civil de Brasília. E cobrou de Zuliani uma
cópia dos materiais mantidos sob sigilo: as
transcrições dos “grampos” feitos por seus
agentes, ao que tudo indica, do início de
2010 em diante. E passou esses materiais
para o procurador Diógenes Teixeira. Não
parece, no entanto, que, na área criminal, a
despeito da competência da Procuradoria
da República e da Polícia Federal no caso, a
investigação da história esteja caminhando
num rumo muito melhor que a da Polícia
Civil do DF. No entender do repórter, o
procurador Diógenes Teixeira está seguindo os passos da investigação apressada
da mídia conservadora, que busca um
grande escândalo onde ele não existe. O
promotor, por exemplo, já teria descoberto
uma grande associação entre João Dias e
Miguel Souza, o dono das empresas de
notas frias. Ora, o sistema de notas frias
que Souza parecia comandar tinha a ver
com vários outros problemas e não com
os de João Dias, particularmente. Como os
documentos apreendidos mostram, Miguel
Souza fornecia notas frias para toda a cidade de Brasília, da universidade ao Supremo
Tribunal Federal e às Forças Armadas.
Provavelmente, as notas têm a ver
mais com o processo de terceirização do
trabalho generalizado que se pratica no
País e que faz com que muita gente compre nota para deixar de pagar impostos e
contribuições sociais, tendo um benefício
no curto prazo. Não é uma conjura específica de João Dias com Miguel Souza. Para
provar a formação de uma quadrilha com
a participação dos dois, o procurador teria
de investigar muito mais.
Diógenes Teixeira, tudo indica, parece
ser também adepto do grampo telefônico.
Num documento de 19 de setembro, ele
encaminhou o pedido de transferência da
competência da ação penal que promove,
da 12ª Vara da Justiça Federal do DF, para
o Superior Tribunal de Justiça, devido
a Agnelo ser governador e só poder ser
julgado por essa corte. Mas, no documento, ele usou um argumento extravagante,
para dizer o mínimo. Ele disse: “o prosseguimento do presente procedimento
inquisitorial implicará cedo ou tarde na
necessidade de investigação de natureza
criminal (inclusive com eventual adoção
de medidas excepcionais, tais como, v.g., o
afastamento [e quebra] do sigilo bancário
e/ou telefônico acerca da referida autoridade)” – a referência é a Agnelo.
32
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É preocupante, também, a forma da
ação do procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, no caso. Ele não quis
ouvir o governador nem o ministro do Esporte a despeito do pedido do advogado
de Orlando Silva para que o fizesse. Ele
se pautou essencialmente pela mídia para
pedir a abertura de inquérito. E, ao que
parece, sem fazer, como fez RB em sua
No STJ o
processo ficou
com 365 apensos,
mais de 30
mil páginas. O
procurador-geral
vai ler tudo isso?
primeira matéria, uma leitura cuidadosa
dos artigos publicados para perceber que
se tratava nitidamente de uma campanha
midiática na qual o mais importante
era publicar uma denúncia nova, independentemente de sua qualidade. Uma
investigação mínima que ele poderia ter
feito desqualificaria, nos parece, tanto a
história do milhão repassado a Orlando
Silva na garagem, como os 256 mil e os
150 mil reais que teriam sido desviados
dos convênios por Agnelo. O governador
Agnelo, aliás, poderia ter apresentado a
ele, por exemplo, as provas materiais que
mostrou ao repórter de Veja, em 2008,
quando a revista fez a denúncia dos 150
mil que teria recebido em seu escritório
no Lago Sul da cidade. Michael Silva, o
autor da entrega, aliás, não diz que levou
dinheiro para seu escritório. Diz que levou
o dinheiro para o conjunto – Geraldo
Salomão – no qual seu escritório estaria.
E, como mostrou na época o governador
ao repórter de Veja, ele não tinha mais
escritório no conjunto na data em que a
entrega teria sido feita.
Finalmente, o procurador-geral pediu
ao Ministério do Esporte um conjunto
de documentos que dá a entender que
ele pretende fazer uma devassa e não um
inquérito específico. Parece também que
ele quer começar tudo do zero, sem levar
em conta trabalhos muito criteriosos já
feitos, como o da procuradora Raquel
Branquinho. Ele pediu “cópia integral”
de quatro convênios específicos, uma
relação de todos os convênios celebrados
no âmbito do programa Segundo Tempo, contendo o nome do conveniente, o
objeto do convênio, o valor dos recursos
repassados, a data da vigência e a situação
da prestação de contas respectiva”. O
Ministério do Esporte passou dez dias
recolhendo as informações e ainda pediu
mais cinco dias de prazo para poder atender ao pedido. Em consequência, no STJ,
onde agora estão as informações exigidas,
há uma montanha de material e o processo
tem 365 apensos. A uma média, por baixo,
de 100 páginas por apenso, serão 36.500
páginas para serem examinadas. Como o
procurador vai procurar a verdade dessa
forma? Por enquanto, nos parece, ele
provocou apenas tumulto.
6. Como o escândalo deu uma sobrevida ao
esquema de forças que controlava Brasília
Chove fino e o repórter segura um
guarda-chuva grande para proteger
entrevistador e entrevistado diante do
portão da casa 33, do modesto conjunto
de casas batizado de A3, na Quadra 2,
de Sobradinho. Uma hora antes tentara,
mais uma vez sem sucesso, entrevistar
o irmão de Carlos Roberto, o PM João
Dias Ferreira, no Condomínio Vivendas
Bela Vista, de residências da classe media alta, no bairro Grande Colorado, a
uns cinco quilômetros dali.
“Seu irmão parece bem”, o repórter
diz e relaciona o número de carros de
luxo que viu na frente da casa de João
Dias. Carlos Roberto entende a ironia e
responde no mesmo tom. “O senhor acha
que eu estou bem? Está vendo a casa onde
moro? Sou eletricista. Dependo do meu
carro para trabalhar e não tenho dinheiro
para tirá-lo da oficina. Minha mulher é
empregada doméstica. Meu irmão é uma
coisa e eu sou outra”. Carlos Roberto
conta que o irmão lhe deve dinheiro
e que foi usado por ele para assumir a
propriedade de uma de suas academias, a
Thisway Fitness and Welness no shopping
principal de Sobradinho.
Reprodução
Reprodução do You Tube
DURVAL MOSTRA O VÍDEO,
ARRUDA DEIXA A CENA
Ele tinha feito penitência e dito aos
eleitores do DF, de porta em porta, que
estava regenerado das mentiras que tinha
dito no escândalo anterior, da violaçao do
sigilo do painel eletrônico do Senado.
O delator Durval, agindo sob cobertura
da polícia, o exibiu recebendo dinheiro e
Arruda foi preso e deixou o governo do DF
Mas Carlos Roberto dá razão a João
Dias contra os do grupo Roriz que o criticam. Aparentemente porque acha que
política é isso mesmo, cada um defende
o seu: a conjuntura mudou e seu mano
estava apenas tentando aproveitar-se
da nova situação:“O senhor me diga:
quanto meu irmão roubou?”. “Bem, isso
eu não sei, mas o governo está cobrando
dele cerca de 4,7 milhões de reais, que
João Dias teria desviado”, o repórter
responde. “Pois bem”, Carlos Roberto
continua: “Quanto roubou o Roriz? E
o Paulo Octavio? E o Luiz Estevão?
João Dias está sendo acusado porque
o esquema mudou. A turma do Roriz
se elegia com o Fernando Henrique.
Agora, é outra coisa. O povo quer o
Lula, o Agnelo. Meu irmão está sendo
acusado por isso, porque está com o
Agnelo, com o Lula.”
Carlos Roberto tem razão. A política
em Brasília não era lá essas coisas ainda
em 2006, quando seu irmão João Dias
parece ter imaginado que poderia sair-se
bem tomando o partido das forças que,
afinal, acabaram derrotando o bloco
político articulado há décadas em torno
da figura de Joaquim Roriz, o político
mais popular do Distrito Federal.
“Brasília foi fundada em 1960 para
ser uma experiência de vanguarda em
políticas públicas, mas esse projeto foi
abortado pelo golpe militar de 1964”,
diz Arlete Sampaio, Secretaria do
Desenvolvimento Social do governo
Agnelo “Com o Regime Militar se
formou uma classe empresarial muito
ligada ao Estado e com grande força
política que, se observarmos bem, tem
grande expressão até agora”, diz ela.
Joaquim Roriz é, de fato, o grande nome
de unidade dessas forças desde a redemocratização. Chegou a ser fundador do
PT em Luiziânia em 1980. Foi nomeado
governador do DF em 1988 pelo então
presidente José Sarney e governou então
até 1990. Nesse ano, após um curtíssimo
mandato – menos de um mês - como
ministro da Agricultura do governo
Collor, candidatou-se ao governo do
DF. Foi praticamente reeleito. A legislação da época não permitia a reeleição.
Mas sua candidatura foi aceita nos tribunais sob o argumento extravagante
de que não era uma reeleição: ele não
tinha sido eleito, fora governador nomeado. Poderia dizer, governador biônico,
como eram chamados, pela oposição, os
governadores nomeados para o DF na
época da ditadura.
Para a sua sucessão, nas eleições
de final de 1994, Roriz não encontrou
um nome com carisma popular. E a
oposição liderada pelo PT venceu, com
Cristovam Buarque. Mas Roriz voltou
com o pleito de 1998 e foi reeleito em
2002, quando a lei, de fato, o permitiu.
Nas eleições de 2006, quando começa
a nossa história política com o PM
João Dias, pelo bloco de Roriz surgiu
um político maneiroso, José Roberto
Arruda. Ele tinha perdido o mandato
por quebra do decoro parlamentar, por
sua participação num episódio chamado
de “o escândalo de violação do sigilo
do painel do Senado”, na votação da
cassação em junho de 2000 do mandato
de outro político e empresário famoso
em Brasília, Luiz Estevão, do PMDB.
Arruda era então do PSDB e líder do
governo Fernando Henrique no Senado. Da tribuna, jurou pelos filhos que
não participara da violação do sigilo da
votação. Depois, diante das evidências
de que de fato estava envolvido, renunciou, para não ser cassado e tornar-se
inelegível por 10 anos. E passou todo o
tempo seguinte até as eleições de 2006,
visitando eleitores de casa em casa
dizendo algo como “pequei sim, mas
estou regenerado”.
Do lado da oposição houve uma disputa entre o PT e o PCdoB, pela cabeça
de chapa, com os nomes de Arlete de
um lado e o de Agnelo, então ainda no
PCdoB, de outro. Arlete foi a escolhida
mas perdeu disparado de Arruda, cuja
penitência parece ter funcionado.
Brasília é uma cidade ímpar no País.
Tem a maior renda per capita entre as
capitais - ganha disparado de São Paulo,
a segunda de maior renda. Nas eleições de
2010, por exemplo, no primeiro turno da
disputa para a presidência da República,
ganhou Marina Silva, a candidata dos
verdes, com 41,96% dos votos. Dilma
Rousseff, a candidata de Lula ficou
54 retratodoBRASIL
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33
com 31,74%. E José Serra, o candidato de
Fernando Henrique, ficou com 24,30%.
Em 2006, para o governo do DF,
Arlete perdeu disparado de Arruda, já
então no PFL (o atual DEM). Arruda
ganhou no primeiro turno, com 50,39%
dos votos. Arlete ficou em terceiro
lugar, com 20,93%, atrás de Maria de
Lurdes Abadia, com 24,30%, que era
do PSDB e tinha sido eleita como vice
de Roriz, do PMDB.
Arruda ganhou, mas não terminou
seu mandato. Entre julho e agosto de
2009, Durval Barbosa, um ex-secretário
de Roriz, passou a colaborar com a
Polícia Federal na denúncia de um sistema de corrupção no Distrito Federal.
Durval Barbosa se dedicara a produzir
vídeos documentando as entregas de
dinheiro que fazia a políticos, sem os
avisar. Filmou e divulgou a entrega de
dinheiro ao próprio Arruda e levou o
governador à prisão. Todas as evidências são de que, desde os tempos de
Roriz, quando Durval começou suas
filmagens, os altos dirigentes do bloco
Roriz, aí incluído Arruda, que foi secretário de obras de Roriz antes de ser
eleito, cobrava de empresas interessadas
em contratos com a administração pública e distribuía o dinheiro arrecadado
comprando apoio para formar uma base
na Câmara Distrital.
Arruda foi preso. Paulo Octávio, um dos maiores empresários da
construção civil local, assumiu. Mas,
logo, também renunciou. Ele e outros
empresários também foram filmados
por Durval Barbosa. A ex-deputada
distrital Eurides Brito (PMDB), a secretária que proibiu acordos das escolas públicas com o programa Segundo
Turno, do governo federal, criado por
Agnelo Queiroz, foi filmada escondendo dinheiro na bolsa e foi cassada.
À epóca, Agnelo já despontava como
um político popular, com condições
de disputar nas urnas a hegemonia
que cabia a Roriz. Nas eleições para
o Senado, que disputou diretamente
contra Joaquim Roriz, teve o dobro da
votação de Arlete: 42,93% dos votos,
contra 51,83% de Roriz.
“Os vídeos de Durval mostraram
o que já denunciávamos em 2002,
quando Roriz derrotou a candidatura
à reeleição de Cristovam Buarque”, diz
Arlete a RB. “Em 2010 nós derrotamos
o grupo Roriz nas urnas. Mas o que
aquele esquema representava ainda está
34
| retratodoBRASIL 54
presente na consciência popular. No
governo Cristovam, nós fizemos uma
política de garantias de direitos e não
de clientelismo. Como disse um eleitor, todo enfeitado com o material da
campanha de Roriz em 1998, em Santa
Maria, uma localidade onde tínhamos
feito de tudo: “Seu Cristovam foi muito
bom para Santa Maria, mas para mim
mesmo, não deu nada’”.
Roriz praticamente distribuiu lotes públicos de graça em Brasília, diz
Arlete. “Ele criou 22 assentamentos
humanos no entorno de Brasília. Isso
pesa, politicamente. E a campanha que
nos levou à vitória com Agnelo, em
2010, mostrou como o esquema tinha
força. Como trabalhava, com fraudes,
com depoimentos comprados, que re-
apareceram agora”. Arlete sabe do que
fala. Tem 61 anos. É médica sanitarista,
formada pela Universidade de Brasília.
Foi fundadora do PT no DF. Participa
das lutas políticas na capital federal
desde seus tempos de estudante, no
começo dos anos 1970. Foi uma dos
32 alunos da UnB expulsos na segunda
grande crise da universidade em meados dos anos 1970. Na primeira crise,
em 1965, os militares demitiram 15
dos fundadores da instituição, criada
para ser um modelo para o País. Vários
professores foram cassados. Alguns
tiveram de exilar-se. E, numa demonstração de que em Brasília a resistência e
a luta têm tradição antiga, mais de 200
professores e instrutores se demitiram
em solidariedade aos demitidos.
7. O governador se orgulha de ter criado o
Segundo Tempo. Portanto, tem jogo pela frente
Chove muito em Brasília. É 12 de dezembro e RB vai assistir uma cerimônia
de entrega de geladeiras para a redução
do consumo de energia pela população
de baixa renda em Itapoã, um núcleo
mal urbanizado ao norte do Paranoá,
o grande lago da capital federal. Cai
uma chuva fina e o ato está sendo feito
Agnelo tem, na
Câmara Distrital,
o apoio de 21 dos
24 deputados.
Essa base ampla
o acompanhará
para virar o jogo?
numa quadra coberta com lona numa
área a qual se chega por ruas lamacentas. Umas duas ou três centenas de
pessoas assistem aos discursos, feitos
de um dos cantos da quadra onde estão
o governador Agnelo, Arlete, o líder do
PT na Câmara Distrital, Chico Vigilante,
políticos locais e dirigentes da empresa
de eletricidade do DF, que faz as trocas
de geladeiras. O tom dos discursos de
Arlete e Agnelo enfatiza a política de
dar prioridade aos mais pobres, como
nessa visita a Itapoã.
O deputado Chico Vigilante, porém,
diz que não pode deixar de lembrar
ao público, o quadro mais geral, da
política do DF, onde se destacam os
ataques ao governador. “Políticos do
PSC”, diz ele, começando pelo partido
atual do ex-governador Joaquim Roriz,
“do PSDB, do DEM, que roubaram
bilhões, estão na mídia denunciado a
figura honrada de um homem como
Agnelo Queiroz”. “Vossa Excelência”,
diz Chico Vigilante, voltando-se para
Agnelo, pode ter certeza de que conta
com nossos deputados na Câmara Distrital. Mas, vossa Excelência sabe, que
conta, acima de tudo, com o povo”. As
pessoas aplaudem.
Os problemas que o governador
Agnelo enfrenta, não são pequenos.
Sua popularidade entrou em baixa,
com certeza em virtude da campanha
de denúncias contra ele, que surgiam
uma após a outra, em meados de
dezembro. João Dias, por exemplo,
gravou uma conversa que teve pelo
celular com um oficial da PM, depois
de ser detido pela agressão as duas
mulheres na Secretaria de Governo,
com a qual abrimos nossa história. E
a grande mídia, em geral – os sítios
Reprodução
Monique Renne/CB/D.A Press
O GOVERNADOR E A PRESIDENTA,
O BOLSA ESPORTE E O BOLSA FAMÍLIA
De certo modo, o Segundo Tempo, do Ministério do Esporte,
criado na gestão Agnelo Queiroz, é uma complementação do
Bolsa Família, um dos carros-chefes do governo Lula e do governo
da presidenta Dilma Rousseff. Um dos aspectos essenciais do
Segundo Tempo é garantir aos participantes do programa mais
uma refeição, além da merenda escolar. E as crianças gostam do
programa. A carta acima é tirada dos documentos do convênio da
Associação Gomes de Matos, do DF, aprovado pelo Ministério do
Esporte, a despeito de alguns problemas na sua execução
da UOL e da revista Veja na internet,
por exemplo, que logo receberam a
gravação – apresentaram o material
como uma nova denúncia de João Dias
contra o governo que tenta calar sua
voz. Como se ele fosse um homem
honesto e destemido, que Agnelo
persegue. Na penúltima semana de
dezembro, o destaque da mídia foi para
a denúncia de que a família Agnelo teria
aumentado seu patrimônio. A matéria
era focada num irmão do governador
que teria conseguido umas três franquias de negócios no valor de uns 3
milhões de reais.
O governador tem grande maioria
na Câmara Distrital e, nas condições
políticas atuais do Distrito Federal, o
bloco Roriz está desmantelado e sem
condições de aproveitar o fôlego que
as denúncias lhe deram. O desmanche
desse bloco não é de agora. Vem de
2009, quando o PMDB rachou, após
uma discussão de Roriz com o segundo
homem forte do partido no DF, o deputado federal Tadeu Fillippelli. Roriz
se descontrolou e chamou Fillippelli de
“vagabundo” e “mentiroso”, quando o
deputado questionou as ações políticas
de Jaqueline Roriz, deputada distrital,
filha de Roriz, que também esteve ameaçada de cassação. Filippelli é hoje o vice
de Agnelo. Roriz perdeu deputados até
do PSC, que engrossou com sua saída
do PMDB e sigla pela qual apresentou
para disputar com Agnelo em 2010, sua
mulher, Weslian Roriz, depois que foi
impedido de candidatar-se pela Justiça
Eleitoral.
O governador tem hoje o apoio de
21 dos 24 deputados distritais. Esse
número foi alcançado no dia 18 de
dezembro, com a adesão à base do governador do deputado Raad Massouh,
que saiu do DEM para o PPL. Agnelo
conversou longamente com RB em sua
residência oficial, na cidade de Águas
Claras, numa chácara a oeste do Plano
Piloto. Reafirmou sua convicção de
que o Programa Segundo Tempo que
criou quando ministro do Esporte,
a despeito de muitos problemas que
apresentou, é um instrumento de apoio
às populações mais pobres, como o
Bolsa Família, carro chefe dos governos Lula e Dilma Rousseff. Reafirma
para RB o que disse várias vezes na
campanha eleitoral de 2010: de que
os testemunhos de Michael Silva e
Geraldo Andrade, as duas principais
peças de acusação contra ele, repetidas agora, são falsas, fazem parte do
esquema de seus adversários, que foi
desmascarado explicitamente com os
vídeos de Durval Barbosa e a prisão e
queda de Arruda.
Não resta dúvida, no momento, de
que as denúncias abalaram sua grande
virtude: de conseguir apoio popular,
por ser uma pessoa amigável, que trata
quase todo mundo de “meu mestre” e
que abrigou, na frente que foi formando a partir de 2006, até mesmo uma
pessoa descontrolada como o incrível
PM João Dias. Se, com uma frente tão
ampla, levará a bom termo seu governo, é uma questão a se ver, da mesma
forma como, hoje, é difícil prever qual
será o contexto, por exemplo, no ano
eleitoral de 2014, quando se saberá se
Dilma Rousseff será ou não, candidata.
Agnelo, disse um de seus assessores a
RB, é uma pessoa de grande capacidade
de ação, mesmo nas crises. E terá agora
um Segundo Tempo para reverter o
jogo, visto que o bando de Roriz ainda
está meio desmantelado.
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35
Espanha
O PAÍS BASCO,
DA VIOLÊNCIA À
RECONCILIAÇÃO
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Findos o terror e a brutal repressão do governo,
cabe aos políticos e à sociedade o dever de construir
uma paz sem revanchismo. E sem impunidade
por Ricardo Viel, de Salamanca
QUINTA-FEIRA, 20 de outubro de
2011, começo de noite em San Sebastián,
litoral do País Basco, Espanha. Iñaki
García Arrizabalaga, que participa de um
congresso, termina sua palestra e a organização do evento abre uma rodada de
perguntas. Uma pessoa do público recebe
o microfone e com as mãos trêmulas e a
voz embargada dá a notícia esperada por
décadas pelos espanhóis.
“Foi assim que eu e mais uma centena
de pessoas ficamos sabendo que o ETA
renunciava à violência. Foram minutos
de aplausos”, recorda Arrizabalaga, que é
professor de marketing na Universidade de
Deusto. “Senti uma imensa alegria. Pensei
nas pessoas, alguns amigos meus, inclusive,
que não precisariam mais olhar embaixo
de seus carros à procura de bombas, que
não teriam mais guarda-costas, não viveriam mais com medo de andar nas ruas.”
O abandono das armas por parte
do ETA (Euskadi Ta Askatasuna, que
em euskera, a língua basca, significa País
Basco e Liberdade) era iminente. No
começo de 2011 o grupo havia anunciado um cessar-fogo permanente e se
comprometia a encontrar um caminho
para o fim do “confronto armado”. No
dia 15 de outubro – três dias antes do comunicado final – houve em San Sebastián
uma conferência de paz com a presença
de mediadores renomados, como Kofi
Annan (ex-secretário-geral da ONU). Foi
uma espécie de liturgia exigida pelo grupo,
que se autodenomina marxista-leninista,
para declarar a “cessação incondicional e
definitiva da atividade armada”, como expressado na declaração publicada pelo di36
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ário basco Gara em sua página na internet.
Três semanas depois, em entrevista ao
mesmo jornal, dois membros da organização disseram que a entrega das armas faz
parte de uma agenda, que deve ser acordada com o novo governo espanhol – o qual
assumiu o poder no final de dezembro,
chefiado pelo primeiro-ministro Mariano
Rajoy –, e descartaram o caminho político.
“Não sentaremos à mesa de negociação
política”, diz seu comunicado.
O ETA, como grupo, só não acabou
porque vai tentar proteger seus militantes
presos e foragidos. Não vai mais lutar
institucionalmente pela independência
porque a sua luta, como movimento, era
apenas armada. A esquerda basca também
quer a independência e saiu fortalecida nas
últimas eleições. É nela que quem militou
no ETA deposita suas esperanças agora.
O grupo pede que seus presos (cerca de
700) possam cumprir pena no País Basco
– hoje a grande maioria se encontra em
prisões espalhadas pelo país, distantes de
suas famílias –, pleiteia uma redução nas
penas impostas aos condenados e sonha
com uma pouco provável anistia dos crimes, o que resolveria também a situação
dos foragidos.
O ETA foi criado em 1959, em Bilbao,
por estudantes dissidentes do Partido Nacionalista Basco (PNV), com a finalidade
de lutar pela independência da região
que engloba quatro territórios espanhóis
(Navarra, Álava, Vizcaya e Guipúzcoa) e
três franceses (Lapurdi, Baja Navarra e
Zuberoa).
A Espanha vivia sob a ditadura de
Francisco Franco e a luta armada foi ado-
tada para combater a opressão e buscar a
soberania basca. O primeiro atentado (fracassado) aconteceu em 1961, contra um
trem que levava veteranos da Guerra Civil.
Começavam também as perseguições, prisões e o exílio dos terroristas. A primeira
morte assumida pelo ETA ocorreu em
1968 e a vítima foi um policial civil – em
1960 uma criança de dois anos morreu
após a explosão de uma bomba supostamente colocada pelo grupo, que nunca
reconheceu a autoria desse atentado.
Ao longo de mais de cinco décadas o
ETA cometeu 829 assassinatos, segundo
as contas oficiais – o grupo contabiliza
mais de cem “voluntários caídos”.
Juan Manuel García Cordero, pai de
Arrizabalaga, foi uma das vítimas dessa
guerra. “Eu tinha 19 anos [hoje ele está
com 50]. Meu pai era diretor da Telefónica e a empresa, por ordem judicial,
havia grampeado dezenas de telefones, o
que levou à prisão de vários terroristas. A
vingança foi o sequestro e o assassínio do
meu pai. Como nunca havia sido ameaçado, ele não levava escolta.”
No mesmo dia 23 de outubro de 1980
outras duas pessoas foram mortas pelo
ETA. Foi o ano mais sangrento da história
do terrorismo basco.
Em 1969 o governo espanhol condenou seis integrantes do ETA à morte em
julgamentos sem garantias processuais,
medida que causou protestos não apenas
no País Basco, mas na Espanha e fora dela
(o papa Paulo VI pediu a revisão da punição). Ao final, acuado, Franco comutou a
pena para prisão perpétua.
Quatro anos depois, em 1973, o ETA
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San Sebastián, País Basco, outubro de 2011: autoridades regionais e o Partido Socialista Basco comemoram o cessar-fogo do ETA após 40 anos
cometeu seu atentado de maior impacto,
o assassínio de Luis Carrero Blanco,
presidente do Governo (o mesmo que
primeiro-ministro), que ocupara o cargo
como natural sucessor de Francisco Franco, já doente (Franco morreu em 1975). A
“Operação Ogro” foi preparada durante
seis meses.
Os terroristas alugaram uma casa no
centro de Madri e cavaram um túnel de
sete metros até a rua Claudio Coello, por
onde o almirante passava todos os dias
depois de assistir à missa. Cem quilos de
explosivos abriram uma cratera de sete
metros de profundidade e dez de largura,
fizeram o carro oficial voar a mais de 20
metros de altura e cair no terraço de um
prédio. Os três ocupantes [Carrero Blanco
e dois militares que fazia sua segurança] do
veículo morreram no ato.
Nessa época a causa basca era vista
com certa simpatia, explica o historiador
Miguel García Perfecto. “O ETA teve
muitos simpatizantes durante a ditadura e
não apenas no País Basco. Tinha simpatizantes em toda a Espanha e também fora.
Não se aceitavam seus métodos, digamos,
mas havia simpatia porque estava lutando
contra um regime que era bastante duro.”
O grupo passou a perder apoio com
a redemocratização, em 1977, quando
decidiu continuar a luta armada, por
entender que o caminho político aberto
era insuficiente. “Foi quando as coisas
começaram a mudar. Não tinha sentido
reivindicar a independência de um território pela via dos assassínios, dos sequestros,
da extorsão [o ETA cobrava um “imposto
revolucionário” de empresários e comerciantes]”, analisa Perfecto, professor da
Universidade de Salamanca.
Havia no país uma grande expectativa
O maior atentado
foi em 19 de
junho de 1987,
em Barcelona:
25 mortos e
45 feridos
de que o grupo basco entregasse as armas
com a chegada da democracia. O novo
governo anistiou todos os presos ligados
ao ETA. Dentro da organização houve
uma divisão entre os que queriam o fim da
violência e os que defendiam a continuidade
da luta armada. Ganharam estes últimos, e o
conflito, longe de chegar ao fim, se tornou
mais sangrento. Entre os anos da ditadura
o grupo cometeu pouco mais de 15% de
seus assassinatos, sobretudo contra policiais
e pessoas relacionadas ao governo militar.
Com a democracia os ataques se intensificaram em número e em alvos: políticos, jornalistas, juízes, empresários e praticamente
qualquer pessoa que apoiasse suas ideias. A
esses se somam as vítimas que estavam na
hora errada no lugar errado, chamadas de
“danos colaterais” pelo ETA.
O maior atentado (em número de
mortos) foi em 19 de junho de 1987,
em um centro comercial de Barcelona:
25 mortos e 45 feridos. Após o ataque
os terroristas afirmaram que o massacre
poderia ter sido evitado se a polícia tivesse
desalojado o local quando houve o aviso
de que uma bomba havia sido colocada.
Mas a violência indiscriminada foi levando
o ETA cada vez mais ao isolamento.
“O ETA declarou o fim da luta armada não por pensar que foi inútil ou
contraproducente, mas porque está em
uma situação de extrema debilidade”, diz
Perfecto. Segundo o historiador, a ação da
Justiça e da polícia e a falta de apoio dentro
e fora da Espanha explicam a agonia dos
terroristas.
Em 2006, durante um processo de
diálogo aberto entre governo espanhol e
representantes da esquerda basca, uma potente bomba destruiu parte do Terminal
4 do aeroporto de Barajas, em Madri.
Duas pessoas morreram e o repúdio
54 retratodoBRASIL
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37
ao atentado foi praticamente unânime,
inclusive de partidos e personalidades
ligados à causa basca. O número de presos
dissidentes que pediam o fim da violência
aumentava. O ETA estava só e debilitado,
mas continuava com seus ataques – o
último deles aconteceu em 2009 e matou
dois guardas-civis.
No final de 2010 o grupo anunciou
que “mediadores internacionais” estavam
dispostos a participar da verificação de seu
anúncio de cessar-fogo. Era a chave para
que o último grupo armado existente na
Europa depusesse as armas.
“Começamos a escrever as primeiras
linhas de um futuro que ainda não sabemos muito bem como será”, reflete o
ex-presidente do governo autônomo do
País Basco (um governador eleito pelo
Parlamento do território, com mandato de
quatro anos), Juan José Ibarretxe, em um
artigo publicado dias depois do comunicado do fim da violência. “Levamos tanto
tempo esperando a chegada do futuro que
na verdade nos esquecemos de imaginar
como seria a vida sem o ETA”, completa
ele. O Conselho Basco de Vítimas do
Terrorismo – associação que congrega
grupos de afetados pelo terrorismo do
ETA – aposta em uma reconciliação com
“memória e sem impunidade”. Uma das
críticas das organizações de vítimas é de
que o ETA nunca pediu perdão, nunca
falou abertamente de reconciliação, não
assumiu seu erro. Na entrevista ao Gara, o
grupo diz que é consciente do sofrimento
causado, mas que o conflito gerou vítimas
dos dois lados e a principal delas é o “povo
basco”. Diz, também, que a luta não foi
em vão e que foi graças a ela que se geraram as condições existentes atualmente
para que se ponha fim ao conflito.
Ibarretxe advoga por uma “reconciliação sem esquecimento” e diz ser
imprescindível que o grupo reconheça o
sofrimento causado. Pede, também, um
mea-culpa do Estado espanhol pelas violações praticadas não só durante a ditadura,
mas também no período democrático –
torturas, prisões arbitrárias e assassínios
promovidos por grupos paramilitares com
respaldo do governo.
Arrizabalaga participa há 25 anos
de uma das organizações de vítimas do
terrorismo, a Gesto pela Paz. “Depois
de uma longa reflexão eu decidi fazer
parte dessa entidade. Tenho filhas, e essa
preocupação que tenho de tentar livrar as
futuras gerações de coisas como as que eu
passei é o que me motiva.” O professor
de marketing conta que não foi fácil trocar
o ódio após o assassinato de seu pai pela
busca de uma solução para o conflito.
“Passei por uma evolução lógica, creio.
De não aceitar o que havia acontecido
a aceitar e querer rebelar-me. Vieram os
sentimentos de ódio e vingança. Eu queria o confronto pessoal. Depois percebi
que isso contaminava as minhas relações
pessoais, profissionais, sociais. Além disso, odiar é algo que consome, que cansa,
porque você tem de odiar 24 horas por
GettyImages
Madri, 20 de dezembro de 1973: o atentado a bomba contra o primeiro-ministro Luis Carrero Blanco foi o mais importante do ETA
38
| retratodoBRASIL 54
dia. Percebi que isso estava me destruindo.
O terrorismo não só havia assassinado
meu pai, como estava acabando com a
minha vida.”
Em maio de 2011, Arrizabalaga recebeu uma proposta de um instituto ligado
à administração dos presídios espanhóis.
Um grupo de dissidentes do ETA queria
se encontrar com algumas vítimas, pedir
perdão a elas pelo sofrimento causado –
não receberia qualquer benefício carcerário pelo gesto. Ele aceitou fazer parte da
iniciativa. Foi até o presídio e esteve cara
a cara com um ex-terrorista. Após um
aperto de mão, começaram uma conversa
que durou mais de uma hora.
“Por mais que tente, eu não consigo
entender o que leva alguém a matar. Eu
queria tentar entendê-lo e perguntei isso a
ele [o preso havia cometido alguns assassinatos, mas não teve nenhuma implicação
com a morte do familiar de Arrizabalaga].
Ele respondeu o que sempre é dito por
eles. Nenhum dos presos assume que o
ato é uma decisão pessoal. Refugiam-se
no entorno, no grupo, no contexto. É uma
espécie de obediência devida. ‘O entorno
não me deixava ter liberdade’, dizem eles.”
Para o professor, é um mecanismo de
defesa. “Imagine alguém que matou várias
pessoas e de repente se dá conta de que
causou tanto sofrimento para nada. Isso
deve ser muito duro, psicologicamente
falando. Todo mundo, antes de dormir,
reflete um pouco no travesseiro. Deve ser
muito difícil conviver com isso”, completa.
Tiveram tempo para contar suas vidas, refletir sobre o passado e pensar no
futuro. Arrizabalaga avalia que o encontro
foi benéfico para ambos. “Creio que ele
se sentiu melhor depois de falar comigo
e eu também me senti melhor. Acho que
estamos transmitindo uma mensagem ao
conjunto da sociedade de que a normalização é possível. Se queremos colher algo,
temos de semear. E acho que esse tipo de
iniciativa semeia.”
Vítima e terrorista chegaram à mesma
conclusão sobre como construir o futuro.
“Ele concordou comigo que é preciso que
se faça uma leitura comum do que aconteceu. Eles têm de reconhecer seus erros,
fazer uma autocrítica. Não estou pedindo
que renunciem a suas convicções, a suas
ideias políticas, mas que reconheçam que
utilizaram métodos equivocados. Acho
que o que tem de se separar muito bem é
a existência de um conflito político entre
Euskadi e Espanha, e isso há, com a violência que eles praticaram.”
BAIA DE
BUSCAIA
FRANÇA
ESPANHA
PAÍS BASCO
FRANÇA
ESPANHA
ESPANHA
Uma frase dita e repetida no País
Basco nos dias posteriores ao anúncio
do fim da luta armada foi: que bom que
as futuras gerações só vão conhecer o
ETA pelos livros de história. Arrizabalaga
coloca um ponto de interrogação nessa
afirmação. “Está muito bem que seja
assim, mas como vamos contar isso? O
que aprenderão minhas filhas nos livros?
Pikabea, do ETA:
“Algum dia meu
filho vai me
perguntar se eu
matei e terei de
dizer a verdade”
Podemos fazer uma leitura conjunta ou
temos de aguentar que os que assassinaram escrevam a história? O que está claro
é que se fecharmos mal uma ferida ela
voltará a abrir. Veja o que aconteceu aqui
na Espanha na Guerra Civil. Volta e meia
voltamos ao tema, há rancores, enfrentamentos, é uma ferida que se fechou mal.
Isso me preocupa muito agora, porque é
o que ficará para o futuro.”
Ferida aberta é também a expressão
que usa Kepa Pikabea, ex-integrante do
ETA. “Algum dia meu filho, que agora
tem 11 anos, vai me perguntar se eu matei
e terei de dizer a verdade. E vou tentar
convencê-lo de que ele não pode fazer o
que eu fiz, de que não se deve pegar em
armas para se rebelar contra uma injustiça.
Isso deixa feridas que nunca cicatrizam.
Sei que levarei isso até o cemitério.” O
depoimento aparece no documentário “Al
final del túnel” (No final do túnel), de Elías
Querejeta e Eterio Ortega, lançado no dia
25 de outubro no Festival de Cinema de
San Sebastián.
Kepa Pikabea tem 54 anos e passou
os últimos 17 na cadeia. Sua pena é de
192 anos de prisão pela prática de duas
dezenas de homicídios. É um homem de
aparência frágil, fala mansa e vacilante,
que transmite com suas palavras e seu
olhar perdido o tamanho da cicatriz
que o País Basco precisa curar. “Meses
antes de eu ser preso, levei o cachorro da
família para a montanha para sacrificá-lo.
Estava velho e muito doente, mas quando apontei a arma não tive coragem de
atirar. Quando fui preso, a polícia avisou
meu pai, que disse que era impossível
que eu estivesse envolvido no que me
acusavam porque eu era incapaz de matar
um cachorro.”
Finda a violência, agora cabe aos políticos e à sociedade civil a difícil tarefa de
gestar uma reconciliação sem revanchismo
e sem impunidade. Nessa complexa equação está a chave para um futuro diferente.
Um futuro em que os jovens não tenham
coragem de atirar, nem contra cães nem
contra seres humanos.
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América Latina
TUDO NORMAL NA ARG E
(PERO NO MUCHO...)
Uma década após mergulhar na pobreza, a Argentina
começa um novo período do bem-sucedido kirchnerismo.
Mas ainda apaga muitas marcas do passado
por João Peres, de Buenos Aires
GettyImages
Assembleia Legislativa argentina, em
Buenos Aires, 10 de dezembro passado:
Cristina Kirchner faz o juramento como
presidente constitucional reeleita. À sua
direita, o vice-presidente Julio Cobos,
que deixava o cargo. À sua esquerda, o
novo vice-presidente Amado Boudou
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G ENTINA
QUANDO TOMOU POSSE para
o segundo mandato como presidente
da Argentina, no mês passado, Cristina
Fernández de Kirchner não apenas deu
sequência ao maior período de estabilidade
democrática do país. Ela garantiu a manutenção de um projeto de ideias simples e
execução complexa iniciado no momento
de maior dificuldade das últimas décadas,
quando mais da metade da população
estava abaixo da linha de pobreza e o país
era motivo de piada.
Exatos dez anos após a crise estrutural,
na qual os problemas econômicos levaram
a instabilidades no sistema político e à reorganização do tecido social, a confiança
no caminho adotado é tamanha que a
presidente se sente em condições de indicar que a Europa segue pela trilha errada.
“Ainda estamos em tempo de estabelecer
soluções, mas soluções que tenham a ver
com a regulação daqueles que ocasionaram
o problema, as dos mercados financeiros”,
advertiu Cristina durante uma das reuniões
da Cúpula do G20, na França em que
lembrou ainda, com conhecimento de
causa, a associação entre crise econômica,
descrédito na política tradicional e emergência de regimes totalitários. O bom
andamento da economia é um dos êxitos
do atual governo, que em outubro renovou
seu mandato para mais quatro anos com
a maior vitória desde a redemocratização,
em 1983, ao obter 54% dos votos válidos.
Seu falecido marido, Néstor Kirchner,
foi eleito, em 2003, sob a memória do que se
vayan todos, a explosão social de dezembro
de 2001, quando um país inteiro, cansado
da política convencional, foi às ruas exigir
a queda de Fernando de la Rúa. Trocavase de presidente como se troca de roupa.
Foram cinco em 12 dias: após De la Rúa,
o presidente do Senado, Federico Ramón
Puerta; o governador da província de
San Luís, Adolfo Rodríguez Saá; o presidente da Câmara, Oscar Camaño; e o
governador da província de Buenos Aires,
Eduardo Duhalde, que acabou por apoiar
Kirchner no pleito do ano seguinte após
a desistência de Carlos Reutemann, então
governador da província de Santa Fé.
Kirchner, ex-governador da província de
Santa Cruz, era um candidato improvável.
Sofrível orador em um universo balizado
pela oratória. Feioso em um espaço guiado
por aparências. Originário de uma Santa
Cruz responsável por menos de 1% dos
votos em um cenário historicamente dominado pelo eixo Buenos Aires-CórdobaSanta Fé. A Argentina era um país quase
inviável, com 54,7% vivendo na pobreza
e um Produto Interno Bruto (PIB) que
recuara 10,9% nos 12 meses anteriores.
No pleito de 2003, despontava como favorito o responsável por conduzir o país
à calamidade: Carlos Saúl Menem, presidente entre 1989 e 1999, que conquistou
o primeiro turno, mas que, frente à reviravolta ocorrida na preferência dos eleitores
e à projeção de uma estrepitosa derrota
no segundo turno, renunciou à disputa.
Néstor, segundo colocado, chegou à Casa
Rosada com 22% dos votos. Ambos eram
candidatos do mesmo partido, o peronista
Partido Justicialista, o que é permitido pela
legislação eleitoral argentina.
O novo presidente foi um hábil leitor
do momento. Menem, cujo Ministério da
Economia era comandado por Domingo
Cavallo, aplicara à risca as determinações
do Fundo Monetário Internacional (FMI),
com venda das empresas estatais – operação na época apoiada pelos Kirchner
– e manutenção artificial da paridade – a
política do “Um a um”, pela qual um
peso valia um dólar, o que garantiu em
um primeiro momento a redução da inflação e assegurou sensação de bem-estar
a uma população que podia se fartar de
produtos importados e viajar pagando
pouco – as importações foram de US$
4 bilhões a US$ 25 bilhões entre 1990
e 2000. Chegava-se ao banco com cem
pesos e saía-se com cem dólares. Sem
poder competir, milhares de agricultores
hipotecaram as propriedades. Quatrocentas mil pequenas e médias empresas
fecharam as portas, desempregando 1,6
milhão de pessoas. Mais da metade da
dívida argentina foi contraída no “tempo
perdido”: um país que não produz precisa
recorrer a empréstimos. A desocupação
foi a 23,6% em 2002 – estava abaixo de
10% uma década antes – e o emprego
formal era uma realidade para 34%.
“O eleitorado argentino se comporta
de maneira conservadora”, avalia o cientista político Franco Rinaldi. “A política
se transformou, na Argentina, em um
problema quando foi um fator desestabilizador das instituições.” O slogan de
Néstor Kirchner na campanha eleitoral
de 2003 era “Um país normal”. Simples
como os anseios de então da maioria
dos argentinos, que queriam somente
a “normalidade” de um bom asado aos
domingos, um mate na calçada com os
vizinhos, mandar os filhos à escola e ter
um trabalho.
Na Argentina de 2003, “normalidade”
era devolver ao país a estabilidade política
da democracia representativa e, ao povo,
emprego e poder de compra. As 272
assembleias de bairros e cidades surgidas
nos anos anteriores não conseguiram
avançar em alternativas, e a maior parte
da população ansiava pela volta da relação
governo-governados. As eleições de 2007,
ao consagrarem Cristina presidente, deram
uma demonstração de que o governo era
bem-visto, leitura ratificada em outubro
passado. “As urnas, neste último domingo,
nos disseram que este é o caminho que vamos seguir”, disse a presidente dias após a
reeleição, reforçando um dos traços-chave
do kirchnerismo: guiar-se pelo que indica
a conjuntura – “a única verdade é a realidade” é o apotegma do peronismo. “Aqui
estamos recuperando o tempo perdido”,
somou no discurso pós-triunfo.
“Tempo perdido” é o componente
de primeira hora do ideário kirchnerista,
que, assim, coloca-se em oposição ao
menemismo – a fracassada política de Menem. “O povo marcou uma forte opção
pelo futuro e pela mudança”, apontava o
presidente no dia da posse, 25 de maio de
2003. A preocupação maior dos argentinos era saber se o país teria como honrar
os empréstimos assumidos junto ao FMI
e ao Clube de Paris. Néstor disse “não”
ANTES E DEPOIS
Inflação média anual
de 1975 a 1991 – 788%
de 1992 a 2001 – 4%
de 2002 a 2010 – 13%
Desemprego em 2011 7,4%
Taxa de pobreza na
Grande Buenos Aires
38,2% em 1989
18,9% em 1999
25,5% em 2001
39,4% em 2003
8,2% em 2011
Dívida pública em relação ao PIB
em 2002, 166,4%
em 2011, 46,3%
(Fonte: Indec – Instituto Nacional de Estatísticas.
Disponível em www.indec.mecon.gov.ar)
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Reprodução
e foi renegociar a dívida, operação exitosa
que permitiu ao país, não isento de custos,
livrar-se do arbítrio do FMI.
Mafalda, personagem clássica do
cartunista argentino Quino, satiriza o
mundo adulto ao representar o universo
infantil. Susanita, sua amiga, é a tradução
da classe média gorila argentina, sempre
preocupada em levar uma vida fútil, disposta a reproduzir o senso comum e a
assegurar a manutenção do status quo. Em
uma tirinha clássica, Mafalda informa ter
lido no jornal que 43 milhões de crianças
trabalham em todo o mundo. Susanita
reage: “Temos a culpa? Não. Podemos
solucionar o problema? Não. A única
coisa que podemos fazer é indignar-nos e
dizer ‘que barbaridade’”. Susanita vira-se a
uma Mafalda atônita e diz: “Pronto. Diga
você também o seu ‘que barbaridade’,
assim nos despreocupamos deste assunto
e podemos brincar em paz”.
A televisão argentina é um universo repleto de Susanitas, mas nenhuma
encarna o papel com mais maestria que
a apresentadora Mirtha Legrand. Em
2003, após a vitória, Néstor e Cristina
submeteram-se ao crivo do espetáculo,
sendo entrevistados por Mirtha. “Sabe o
que dizem? Que com vocês vem um zurdaje”, diz Mirtha. Zurdaje é uma expressão
de difícil tradução, que saltou dos manuais
da ditadura (1976-83) e que significa algo
na linha do “comunistinha”. Néstor a faz
recordar que a visão de mundo sintetizada por essa palavra levou à morte de 30
Susanita, do cartunista
Quino: ridicularizando
a classe média
insatisfeita
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mil pessoas. Sem se abalar, ela arremata:
“Bom, também um pouco de zurdaje não
vai cair mal em um país na situação em que
estamos. Há tanta pobreza, não?”.
A votação de outubro de 2011 deixou claro que este governo não cai bem
às Susanitas. O espanto teve início logo
nas primeiras semanas do kirchnerismo,
quando a Espanha solicitou a extradição
de militares argentinos para que fossem
julgados pelos crimes cometidos contra
espanhóis durante o regime autoritário
(1976-83). De supetão, o presidente determinou a derrubada dos dispositivos que
garantiam imunidade penal aos repressores. Questionado por um ministro sobre a
consternação que a notícia provocaria na
caserna, Néstor respondeu que poderiam
optar por uma condenação no próprio
país ou por passarem o resto das vidas
em uma prisão na Europa sem receber
a visita de parentes. Até agora, mais de
200 colaboradores e cabeças da repressão
Néstor Kirchner,
de supetão, marcou
um tento ao
derrubar as leis que
davam imunidade
aos repressores
foram condenados, e em torno de 1,7 mil
são alvos de processos. Foi a primeira vez
que um presidente se declarou integrante
da geração “ceifada” pelo regime, ainda
que pairem dúvidas sobre a atuação direta
do casal na resistência. Esse foi um fator
de aproximação ao eleitorado jovem, que
passou a ser um dos vértices do kirchnerismo, sobretudo no governo de Cristina,
e mais ainda após a morte de Néstor. Nos
últimos anos foi aprovada, por iniciativa
do Executivo, a lei que garante aos casais
homoafetivos a equiparação de direitos,
e passou a ser debatida a legalização do
aborto.
A crise com o agronegócio foi o
ponto mais crítico até agora. Em 2009,
o governo de Cristina tentou impor uma
retenção maior ao setor que comanda a
economia nacional, o que desencadeou
uma batalha dura para os dois lados e um
forte desgaste da imagem da atual gestão.
Foi ali, também, que se deu um novo passo
contra o gorilismo. As fortes críticas do
grupo Clarín, principal conglomerado de
mídia, levaram à ruptura da relação, que,
até aquele momento, era ótima.
Os Kirchner se dão conta de que o
poder do grupo Clarín é uma ameaça à
circulação de diferentes pontos de vista e
colocam em marcha um antigo anseio de
setores acadêmicos, logo transformado
em bandeira dos jovens. A nova regulação
dos meios de comunicação visa garantir a
pluralidade da informação mediante uma
distribuição menos desigual das concessões
de emissoras. Aprovada em 2009, a Lei de
Meios, como ficou conhecida, ainda não
foi plenamente implementada por conta de
recursos apresentados à Justiça pelo Clarín.
Somou-se a isso o Futebol para Todos,
depois transformado em Esporte para
Todos, decreto por meio do qual a presidente declarou a modalidade preferida
dos argentinos de interesse cultural da
nação. Isso significa que as transmissões
televisivas não poderiam ficar restritas
às emissoras por assinatura ou, pior, à
modalidade “pague para ver”, fonte de
arrecadação que fez aumentar exponencialmente o poderio do Clarín.
Na aproximação com as classes baixas,
porém, nada teve mais êxito que o Benefício Universal por Filho. O pagamento de
uma bolsa mensal a crianças e adolescentes
cujos pais estejam desempregados ou atuando no trabalho informal beneficia 4,5
milhões de pessoas, nos moldes do Bolsa
Família brasileiro. É um dos fatores que
explicam como a Argentina, a exemplo
de outras nações da região, saiu antes da
primeira perna da crise internacional, entre
2008 e 2009, e tem se segurado melhor
nesta segunda etapa. O fortalecimento
do mercado interno criou um ciclo no
qual aumentam a geração de empregos, a
arrecadação do Estado e o poder de compra, garantindo crescimento econômico.
Há outra questão comum com os
vizinhos: a soja, capaz de encabeçar o
crescimento da balança comercial, que,
por sua vez, garante o superávit que paga
as dívidas argentinas. O aumento vertiginoso do preço no mercado mundial e
a melhoria das tecnologias de produção
garantiram um aumento da área plantada
de 22 milhões para 32 milhões de hectares
em 15 anos. A soja responde hoje por 56%
da área cultivada com cereais e oleaginosas na oitava maior nação do mundo em
território. A exportação de farinha e óleo
foi responsável por 23% das exportações
argentinas em 2009. Para que se tenha um
grau de comparação, no Brasil, onde a sojidependência preocupa, o grão respondeu
por 8,5% das vendas ao exterior em 2010,
colocando-se na quarta posição da pauta, e
neste ano as projeções indicam que chegará
a 48% da área plantada com grãos.
A queda repentina dos preços da
commodity poderia levar a uma redução no
crescimento. Além disso, a população nota
em seu cotidiano os efeitos da “sojização”:
a conversão de áreas de produção de
outros vegetais e de pecuária em lavouras
para a soja uniu-se a fatores mundiais para
elevar os preços nos supermercados. “A
inflação é um problema. Saio com cem pesos e não compro quase nada”, diz Daniel
Muñoz, um eleitor do kirchnerismo que,
como muitos, vive de hacer changas (fazer
bicos). “A única saída é tratar de produzir
com valor agregado”, diz. Cristina deu demonstrações de que sabe deste perigo. Um
de seus últimos compromissos antes das
eleições do ano passado foi uma reunião
com setores do agronegócio abertos ao
diálogo, uma tentativa de transformação
da exportação de produtos primários em
uma agroindústria. “Foi um gesto muito
importante por parte da presidente”,
relatou Carlos Garetto, presidente da Confederação Intercooperativa Agropecuária
(ConInAgro), que admite ter havido excessos que levaram a perdas dos dois lados.
“Abriu-se uma porta. Tomara que a partir
daqui possamos ter uma relação normal.”
Dias após as eleições, Cristina começou a anunciar uma série de medidas
para cercar-se de garantias de que a crise
externa não ancore no país. Foi um anúncio feito “picadinho”, sem dar o caráter
de um grande conjunto – pois “pacote”
remete ao menemismo. Na somatória dos
últimos meses, formou-se um projeto de
políticas que tentam combater o capital
especulativo e retirar gradativamente os
POLÍTICAS MAIS BEM AVALIADAS DO KIRCHNERISMO
• Julgamento de militares por violações aos direitos humanos durante a
ditadura (1976-83): 80%
• Polícia Federal atuando em policiamento ostensivo: 79%
• Lei de Matrimônio Igualitário, que concede às uniões homoafetivas os
mesmos direitos das heteroafetivas: 71%
• Benefício Universal por Filho: 67%
• Subsídios aos serviços públicos, como água, luz e transporte: 62%
• Estatização dos fundos de pensão: 59%
(Fonte: Centro de Estudos de Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais da UBA – Universidade de Buenos Aires.
25/10/2011. Publicada originalmente no jornal Página 12)
subsídios de uma economia dependente
do papel do Estado – uma das conquistas
dos primeiros oito anos do kirchnerismo.
Incrivelmente, Cristina encontra-se
frente a uma das dificuldades detectadas no começo do governo Menem. O
empresariado, que entre o fim da década
de 1990 e os primeiros anos deste século
perdeu muitos recursos por causa da crise
de 2001, resiste à promoção de novos
investimentos. Em termos absolutos, a
compra de máquinas e equipamentos até
aumentou, mas em termos percentuais
ainda é inferior à obtida nos últimos anos
de menemismo. Sem aumento da produção, a demanda força os preços para cima,
e há empresários que calculam que podem
ganhar o mesmo sem precisar investir. “É
uma história cultural que tem a ver com a
história econômica nefasta da Argentina”,
diz Felisa Miceli, ministra da Economia na
segunda metade do mandato de Néstor.
“Nosso país tem um enorme território e
muito pouca população. Precisamos de um
modelo de alto valor agregado.”
Um protesto fecha uma das vias de
acesso à praça de Maio numa tarde quente
de outubro. São professores indignados
Reprodução
De La Rúa e Eduardo Duhalde: dois dos cinco presidentes que o país teve em 12 dias
com mais uma tentativa de corte de direitos promovida pelo chefe de governo
da cidade de Buenos Aires, Mauricio
Macri, que está para a Argentina como
Aécio Neves está para o Brasil: Susanitas
aguardam o momento em que se levantará
em prol da oposição aos “malfeitos” do
governo federal.
Um rapaz de óculos escuros carrega a
bandeira da Juventude Peronista, uma de
várias organizações kirchneristas presentes. Carlos Días, de 36 anos, é um professor
de ensino secundário que cresceu sob teto
peronista e acredita que sê-lo é defender
causas que seguem vigentes após mais de
50 anos, baseadas em uma “pátria livre e
soberana”. “Alguns se montam sob o escudo do peronismo para fazer outras coisas”,
diz, em referência a Menem, tão integrante
do Partido Justicialista quanto Cristina
Kirchner. Carlos e parte da população
argentina veem em Macri uma grande
semelhança com Menem, com a retomada
do livre-mercado e do Estado a serviço
dos lucros privados. Macri, confrontado
por um governo que é popular por fazer
o contrário disso, garante que não – uma
dificuldade que não lhe é exclusiva. Antes das eleições, 63,5% indicavam que a
oposição não possuía projeto alternativo.
Macri terá mais quatro anos para mostrarse. Um intervalo imenso para a política
argentina, se pensarmos que, até um ano e
meio antes do pleito de 2011, Cristina não
parecia ter chances de reeleição, ou que
Néstor não tinha qualquer possibilidade
de vitória até o começo de 2003. “Falar da
Argentina de 2015 é como falar do Brasil
de 2094. É uma política de uma dinâmica
muito peculiar”, pondera o pensador
marxista Atílio Borón. Para ele, o grosso
do movimento social, muito identificado
ao kirchnerismo, não está em condições
de formular alternativas. Por enquanto, a
maioria da população nem as quer – ela
deseja apenas um país normal.
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Música 1
CLÁSSICO
REENCONTRO
Dori e Danilo: a dinastia musical sem o patriarca
por Tárik de Souza
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partir dos títulos são as densas “Canção do amor rasgado” (com Geraldo
Carneiro) e “Arabesco” (“O revés do
mar é meu deserto/ a minha casa, o
meu norte incerto”), esta escrita com a
filha Alice Caymmi, convidada da faixa.
A mesma Alice divide com Pinheiro e
Danilo a autoria da valseada e filosófica
“Carrossel” (“carrilhão é o giro que os
ponteiros dão/ mostrando a precisão
do tempo da ilusão”), num prenúncio
de continuação da dinastia.
Dori Caymmi ficou um ano sem
compor, emudecido pelo choque da
morte dos pais. Só conseguiu retomar o
fluxo criativo ao encontrar numa gaveta
e musicar “Rede”, um poema do parceiro – comum ao irmão, Danilo – Paulo
César Pinheiro. A dupla autoral (“nossa
obra não é numerosa em se tratando de
tanto tempo, menos de cem canções”,
A força do sobrenome: Nana, Dori e Danilo fazem jus ao talento do velho Caymmi
FolhaImagem
QUANDO, EM 1960, Dinair Tostes
Caymmi, a Nana, gravou com o pai,
Dorival Caymmi, “Acalanto” – cantiga de ninar dele para ela –, estava
inaugurando ao mesmo tempo uma
carreira fulgurante de cantora e uma
das mais sólidas dinastias musicais da
MPB. O sobrenome Caymmi ainda
ganharia o reforço musical dos filhos
mais novos, Dori e Danilo. De trajetos
singulares, eles voltam a encontrar-se
em dois discos lançados praticamente
ao mesmo tempo em 2011, após as
mortes do patriarca e de sua mulher,
a também cantora Stella Maris, ambas
ocorridas em agosto de 2008. Danilo
Caymmi lançou Alvear (Biscoito Fino)
e o mano Dori, Poesia musicada (Acari
Records). Mais afeito à dicção pop,
ainda que depurada (é autor, com
parceiros diversos, dos sucessos “Andança”, “Casaco marrom”, “O bem e o
mal”, “Meu menino”, “Céu de estio”),
Danilo estreou em disco tocando flauta
no clássico encontro familiar, Caymmi
visita Tom [Jobim] e leva seus filhos,
Nana, Dori e Danilo, de 1964. Largou
um curso de arquitetura no quinto ano
e seguiu entre festivais de música e trocas de gravadoras, enquanto construía
uma obra autoral de relevo, ainda pouco avaliada, a bordo do timbre vocal
encorpado, impresso no DNA.
De capa simples e clara, Alvear
anuncia o embranquecimento dos cabelos do solista e delineia temas diretos
em alvos, como a desiludida “Retirança”
(“feito avoantes de arribação/ os retirantes também vão/ fugindo ao sol do
Nordeste”), parceria com Paulo César
Pinheiro, trespassada pela voz de Nana
Caymmi. “Se a correnteza quiser me
impedir/ eu rasgo a mata e o ar”, promete a determinada “Okê arô”, parceria
com Arthur Verocai. Autoexplicativas a
calcula) foi inaugurada em 1970, com
“Evangelho”, regravada pelo MPB4. E
teve êxitos como “Desenredo”, “Velho
piano”, “A porta”, “Desafio” e “Estrela
da terra”. Dori, como o irmão, também
se projetou nos festivais. A canção
“Saveiros” foi seu ponto de partida
na voz da irmã, Nana, e vencedora do
FIC, de 1966, com Nelson Motta (seu
parceiro ainda em “De onde vens”, “O
cantador”, “Festa” e “Velho pescador”).
Construiu uma sólida trajetória como
arranjador e vive em Los Angeles, nos
EUA, onde ainda encontra mercado
para seu estilo clássico de orquestração acústica, alicerçado por cordas
opulentas.
Poesia musicada, também de capa
singela, como seu recheio desnudado e
sóbrio, é lastreado no violão poderoso
do solista, às vezes sem qualquer outro
acompanhamento. Soa como um disco
da vertente “canções praieiras”, que seu
pai inaugurou na MPB nos anos 1950.
Deslizam mansas na voz bem timbrada
do solista “Canto praieiro”, “Rede”,
“Barco”, “Marinheiragem”, “Dona
Iemanjá” e a evidente “Velho do mar
(meu pai)”. Em “Estrela verde”, há um
curioso diálogo entre um poeta e um
canoeiro (“Poesia é peixe não/ mas se
pesca de canoa/ na maré do coração”).
“Vereda” sabe a baião; “Projeto de
vida” desenha uma utopia; e “Violeiro”,
a profissão de fé do artista: “Porque a
vida para/ para quem não cria”.
Divulgação
Música 2
Amélia Rabello: aos
39 anos o quinto
disco, com a nítida
influência do irmão
HERDEIROS
DE RAPHAEL
O rigor dos Rabello e a ginga dos Faria em discos familiares
por Tárik de Souza
A CANTORA AMÉLIA RABELLO
chega aos 39 anos de carreira apenas no
quinto disco solo, A delicadeza que vem
desses sons (Acari Records). Ela começou
em 1972, num Festival Universitário, da
extinta TV Tupi. Defendia “Paralelo”
(Ricardo Ventura/ Tadeu Leal), que só
foi gravar em 1983, num disco do projeto Seis e Meia (criado no Rio de Janeiro
nos anos 1970 pelo agitador cultural
Albino Pinheiro, com o objetivo de dar
espaço a talentos pouco divulgados pela
grande mídia, e reproduzido Brasil afora por entidades culturais oficiais). Ela
é irmã da cavaquinista Luciana Rabello,
integrante dos grupos Os Carioquinhas
e Camerata Carioca e fundadora da Escola Portátil de Música com o violonista
Mauricio Carrilho, também seu parceiro
no selo Acari Records, ambos projetos
de difusão do choro. Amélia e Luciana
são irmãs do violonista Raphael Rabello
(1962–1995, virtuose das sete cordas,
cuja obra autoral a cantora registrou
em Todas as canções, de 2002). É uma
família de alto rigor musical e sem ne-
nhum apego ao estrelato banal. Mesmo
elogiada por um grande propulsor de
carreiras como Caetano Veloso (“fiquei
impressionado com aparição da alma
do samba assim exposta numa precisão
musical de cantor jazzístico”, ratificou
ele em sua coluna de jornal em setembro passado), Amélia seguiu o trajeto
discreto reservado hoje pelo mercado
aos avessos a concessões. Sua voz
muito afinada tem um travo de amargura situado entre Dalva de Oliveira e
Elizeth Cardoso, adequado a sambas
lamentosos como “Tempo perdido”
(Ataulfo Alves), “Tanta despedida”
(Moacyr Luz), “Com as mãos vazias”
(Pedro Amorim) e “Alma vazia”, de
Roque Ferreira, cuja letra exorciza:
“Tanto ser humano sem humanidade/
um jogo de falsidade/ tanto Judas se
passando por Jesus (...) não vai encontrar felicidade/ quem fez do dinheiro
profissão/ e da ambição foi mercador/
quem viveu assim não percebeu/ que
em cada tostão que ganhou/ perdeu
a alma”.
Boa parte do repertório traz assinaturas de familiares da majestosa intérprete.
Nove das treze composições têm letras
do poeta Paulo César Pinheiro, como
o manifesto “Santa voz” (parceria com
Baden Powell), o samba-ode “Seu Ataulfo” (com Radamés Gnattali) e o pianado
“Velho ninho” (com Cristóvão Bastos).
Paulo é casado com Luciana Rabello,
os autores de mais duas faixas do CD,
“Estigma” e “Velhos chorões”. E há
ainda “Descuido”, de Paulo Cesar com
o filho Julião Pinheiro, sobrinho de Amélia, como o violonista João Rabello, que
acaba de lançar seu segundo disco, Uma
pausa de mil compassos (Biscoito Fino). Este
é filho de Lila Rabello, irmã de Amélia,
casada com Paulinho da Viola, autor do
etéreo samba “Para ver as meninas”, de
1971. A faixa abre o disco e forneceu a
frase do título, embora ela não seja dita.
Uma pausa de mil compassos é somente instrumental e, com exceção dessa música,
trata-se praticamente de um álbum de
canções de João Rabello. Anteriormente,
em seu disco de estreia, Roendo as unhas,
de 2006, havia duas composições do pai,
duas de Radamés Gnattali, mais autores
clássicos de temas para o instrumento,
como Agustín Barrios, Garoto e Antonio
Lauro, e só três músicas do solista. Uma
delas, “Sarau para César”, em parceria
com o pai, homenageava o avô, César
Faria, violonista do grupo de Jacob do
Bandolim, onde a dinastia de cordas
começou.
Os temas de João Rabello também
atestam as influências recebidas do tio
Raphael (“desde quando o ouvi no disco Relendo Dilermando Reis, em 1994”),
como na intrincada “Procurando” e no
sincopado recorrente de “Dobrando
esquinas”, ambas calçadas pela bateria
de Rafael Barata. Da primeira, também
participa o baixista Matias Correa, que
ainda pontua a reflexiva “Enquanto
esqueço” e a tensa “Um choro perdido”, espiralada por escalas. Em “Outra
coisa”, João revela mais uma faceta, a
de arranjador, para violoncelo e sopros
(flauta, clarone e trombone) num clima
de profundidade camerística reafirmado em “Pode ser”, com piano e cello.
Trafegando com desembaraço entre as
fronteiras do popular e do erudito, o
rigor dos Rabello e a ginga dos Faria,
João leva adiante a apropriação brasileira
do violão europeu, um instrumento que
hoje fala a nossa língua.
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Música 3
O OCEANO ARTÍSTICO
DE MARIO LAGO
Boêmio, poeta, escritor, dramaturgo, novelista e excelente
ator, navegou como poucos nos mares da composição
por Tárik de Souza
ilustração Cássio Loredano
FILHO ÚNICO DO maestro do teatro de revistas Antonio de Pádua Jovita
Correa do Lago (1887-1955), neto de
músicos por parte de pai (José) e mãe (o
calabrês Giuseppe Croccia, que era anarquista), Mario Lago (1911-2002), nascido
na rua do Resende, na efervescente Lapa,
no centro do Rio de Janeiro, contrariou
sua predestinação. A mãe, Francisca Maria Vicência Croccia, o queria diplomata,
porque ele “era alto e magro e ficaria bem
de fraque”. A história foi contada entre
risadas pelo próprio, em entrevista ao
programa “MPB Especial”, de Fernando
Faro, na TV Cultura, em 1973. De alguma
forma, Mario Lago acabou satisfazendo o
desejo da mãe: vestiu fraque, mas num de
seus inúmeros papéis como ator, carreira
em que se destacaria a ponto de ofuscar
a de compositor, a partir da estreia, em
1944, na rádio Panamericana, de São Paulo. Por 17 anos, reinou na Nacional, do
Rio de Janeiro, no cinema (fez 18 filmes
depois do inaugural “Asas do Brasil”,
sob a direção de Moacyr Fenelon, em
1947) e em emissoras de TV, até próximo
de sua morte, aos 90 anos. Foi também
dramaturgo, novelista e ainda publicou
uma dezena de livros como escritor e
poeta, entre eles Chico Nunes das Alagoas
(1966), Na rolança do tempo (1976) e Bagaço
de beira-estrada (1977).
Era contraditório que a família não
o quisesse músico, já que, aos 7 anos, ele
estudava piano clássico com a professora
Lucília Guimarães Villa-Lobos, mulher
do maestro Heitor Villa-Lobos. A decisão
de suspender os estudos no sexto ano foi
do próprio Mario, que cursou o então
rigoroso Colégio Pedro II e formou-se
em direito, mas exerceu a profissão de
advogado apenas por três meses. Na
faculdade, já se dividia entre a política,
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no Partido Comunista Brasileiro (em
1932, foi detido e fichado pela primeira
vez; seriam sete prisões ao longo da vida),
e a vida boêmia. Em 1933, começou a
escrever revistas para teatro, como Figa
de Guiné, em parceria com Álvaro Pinto.
Debutou na música pelo lado politicamente incorreto, na marchinha “Menina,
eu sei de uma coisa” (“que pode sua vida
encrencar/ se você não quer fazer camaradagem/ me desculpe, mas eu vou espalhar”), parceria com Custódio Mesquita,
lançada por Mario Reis para o Carnaval
de 1936. A inspiração surgiu quando a
dupla viu a filha de um político famoso
sentada à mesa do Hotel Glória, no Rio
Na faculdade
de direito, já se
dividia entre o
Partido Comunista,
a vida boêmia e
a dramaturgia
de Janeiro, com um sujeito mais velho, e
a imaginaram como garota de programa.
“É uma letra de dedo-duro, da qual
me envergonho”, lamentou na entrevista
ao programa, em que também admitiu
não ter sido amigo de Noel Rosa, por
conta de disputas amorosas nos cabarés
que ambos frequentavam. Ainda em
1936, com o mesmo Custódio, um de
seus mais assíduos parceiros, escreveu a
burleta “Sambista da Cinelândia”, montada no teatro Fênix. A música-título da
revista foi gravada pela estrela da época,
Carmen Miranda, e celebra a redenção do
samba: “Hoje está tudo mudado e acabou
a oposição/ escolas há por todo lado/ de
pandeiro e violão”. Também da parceria
com Custódio sairia o primeiro clássico
atemporal de Lago, o fox “Nada além”
(“de uma ilusão/ acreditando em tudo
que o amor/ mentindo sempre diz”),
na voz de Orlando Silva, em 1938, com
regravações posteriores de Cauby Peixoto
(1956) e Maria Bethânia (1970).
O mesmo Orlando, “o cantor das
multidões”, de voz aveludada e melíflua,
considerado o melhor de sua época, ainda
registraria outras parcerias de Lago com
Custódio (a valsa “Enquanto houver
saudade”, 1938, o choro “Mentirosa”,
1941), Roberto Martins (o fox “Dá-me
tuas mãos”, 1939) e “Número um”,
parceria com o flautista Benedito Lacerda, um prato cheio para a oposição das
feministas: “Satisfaz tua vaidade/ muda
de dono à vontade/ que isso em mulher
é comum”, fustiga a letra, regravada por
artistas que não podem ser considerados
machistas, como Caetano Veloso (1978)
e Ney Matogrosso (1991). Lago a excomunga no mesmo programa (“Quero
pedir desculpa e fazer uma autocrítica”),
mas não há como denegrir outro totem,
também combatido pelas feministas, “Ai
que saudades da Amélia”, memorável
parceria com Ataulfo Alves, que perpetuou esse nome feminino. Para uns, como
símbolo da mulher passiva, embora Lago
preferisse ver sua narrativa pelo lado da
cumplicidade solidária entre um casal de
desafortunados. Ele se baseou na história real de estoicismo da empregada do
irmão da cantora Araci de Almeida. Lago
a transformou num poema, adaptado por
Ataulfo, que não conseguiu despertar o
interesse de nenhum cantor (“Isso foi
feito para acompanhar enterro”, objetaram). Com sua voz ralentada, cercada
por coro feminino, mais tarde apelidado
de “Pastoras”, o próprio Ataulfo fez o
registro, em novembro de 1941. Ainda
era raro que os compositores – ainda
mais negros, como ele – gravassem suas
próprias músicas, mas “Amélia” tirou o
primeiro lugar no concurso de Carnaval
do ano seguinte – empatada com outro
clássico, o samba “Praça Onze”, de
Herivelto Martins e Grande Otelo –,
tomou conta da folia e perpetuou-se em
regravações, como as de Roberto Carlos
(1967), raríssimo intérprete de sambas,
Zeca Pagodinho (1991) e até o vanguardista Itamar Assumpção (1996).
Com Ataulfo, Mario Lago também
tomaria de assalto outro Carnaval, em
1944, por meio do bíblico samba “Atire
a primeira pedra” (“aquele que não sofreu
por amor”), também na voz de Orlando
Silva. Farrista confesso, a despeito dos
compromissos com o antigo Partido Comunista Brasileiro, responsáveis por várias
privações (a cada golpe da direita, ele já
preparava a maleta de acessórios pessoais
que levaria para a prisão), Mario Lago
havia pontificado em outro Carnaval, o
de 1941, com a marchinha “Aurora” (a
da rima heterodoxa “Se você fosse sincera/ veja só que bom que era”), parceria
com Roberto Roberti, pela dupla Joel &
Gaúcho. Carmen Miranda a levou para
os EUA, onde teve outras 17 gravações
e chegou ao filme “Segure o fantasma”,
da dupla de humoristas Abbot & Costello. Em 1946, o radiador Mario Lago
uniu-se ao compositor e o samba-canção
“Fracasso” (letra e música dele) para a
novela homônima afrontou o título e se
tornou enorme sucesso, pelo rei da voz,
Francisco Alves. Fafá de Belém revisitou
a música, 30 anos depois, em seu disco
de estreia, Tamba tajá, de 1976. O ecletismo de Mario Lago como autor de obra
ainda pouco estudada o levou das valsas
gravadas por Luiz Gonzaga (“Devolve”,
1946), Carlos Galhardo (“Não quero
saber”, 1941) e até Nelson Ned (“Será”,
1970) ao aval para o início da carreira de
Emilinha Borba (“Faça de conta”, com
Custódio Mesquita, e “Qual a razão?”,
com Antonio Almeida, ambos em 1939) e
o afago na rival da era do rádio, em “Marlene, meu bem” (1955). Do samba-choro
brejeiro (“É tão gostoso, seu moço”, com
Chocolate), por Nora Nei, em 1953, à
bossa “Baladinha lítero-musical”, na voz
de Lucio Alves, em 1960. Concorreu ao
célebre Festival da TV Record em 1967
(“Anda que te anda”, com Ary Toledo),
foi parceiro do maestro Radamés Gnattali
(“Tanto amor nunca mais”), na trilha da
novela global “Cuca legal” (1975), e sambou em “Quem chegou já tá”, na voz de
Hugo Carvana, diretor e ator do filme “Se
segura, malandro” (1978).
Contrariado com a proibição do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP, do Estado Novo de Getulio
Vargas) aos versos de seu samba “ai, ai, a
vida do pobre é penar/ a vida do rico é
gozar”, o compositor Rubens Soares foi
confortado por Mario Lago. Ele escreveu na hora uma nova letra metafórica
(“ai, ai, o galo é que está com a razão/
poleiro de pato é no chão”) e conseguiu
passar a mesma mensagem, gravada por
Francisco Alves, em 1941. Era o político
por trás do artista, cuja obra ciclópica
foi comemorada em diversos eventos
– no Rio de Janeiro e em São Paulo –,
a partir da data do centenário do seu
nascimento (26 de novembro do ano
passado), num projeto organizado por
sua família. “Homem do século XX”,
ele tem um site (www.mariolago.com.br)
com sua produção artística. Foi também
realizada uma exposição, inaugurada uma
estátua na praça Mario Lago, no centro
do Rio de Janeiro, e lançados um selo
pelos Correios, um documentário e mais
dois CDs – um deles de canções inéditas
e poemas musicados por compositores
como Caetano Veloso, Lenine, Jards
Macalé, Frejat, Arnaldo Antunes, Pedro Luís, Joyce e Delcio Carvalho. Um
século, afinal, foi pouco para o oceano
artístico celebrado por Gilberto Gil na
música “O mar e o lago”, em seu disco
Quanta, de 1997.
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47
Livro 1
Divulgação
MEIO CONSTRANGIDA POR seus
belos olhos azuis que lembram a cinematográfica Jodie Foster, a nova-iorquina
Lisa Randall coleciona feitos de causar
espanto na maioria dos colegas de ciência. E assédios também. Ira Flatow, premiado âncora da rádio pública americana
NPR, acabou nas páginas do New York
Times por uma imprudência no ar. O
blog de ciência Cosmic Variance acusou
Flatow de passar uma cantada ao vivo na
cientista, sem falar no conteúdo machista
implícito do tipo “bonita e inteligente”.
Aos 49 anos, solteira e sem filhos,
Randall é altamente competitiva, acredita no poder dos desafios e não quer
nenhum desconto por ser mulher, como
ela não cansa de repetir.
Seu currículo dá inveja a qualquer
marmanjo barbudo da área de física teórica. Além de ser a primeira mulher titular
na cadeira de física em Harvard, a universidade mais conceituada do mundo,
ela coleciona as primeiras titularidades
femininas em Princeton e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).
E foi a pessoa que mais se destacou em
física teórica em todo o planeta durante
cinco anos, período em que ocorreram
mais de 10 mil citações de seu trabalho
por outros cientistas.
A carreira de Randall começou na famosa e de difícil acesso Stuyvesant High
School, em Nova York, onde foi colega
de classe do não menos famoso cientista
das teorias de cordas Brian Greene, autor
de O universo elegante [Companhia das Letras, 2001] e O tecido do cosmo [Companhia
das Letras, 2005]. Recentemente, ela foi
de novo para a ribalta, meio a contragosto, quando o presidente de Harvard,
ELA QUER BATER
NA PORTA DO CÉU
A física teórica Lisa Randall, musa dos cientistas
contemporâneos, fala de ciência, religião, verdade, beleza,
simetria. De quebra, tem experimentos para detectar
partículas vindas de outras dimensões do espaço-tempo
por Flávio de Carvalho Serpa
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Lawrence Summers, cometeu a gafe de
declarar que são poucas as mulheres na
ciência por causa de diferenças genéticas.
Na polêmica que estourou, ele acabou
tendo de admitir que falou demais e
Randall foi indicada para trabalhar numa
força-tarefa com o objetivo de monitorar a participação científica feminina e
sugerir medidas reparadoras da situação.
Depois de conquistar seu lugar na
difícil área da física teórica, Lisa enveredou também pelo campo da divulgação
científica. Afinal, ela nunca abandonou
as aulas tradicionais de física básica nas
várias universidades por que passou.
Seu primeiro livro, Warped Passages
(Passagens torcidas, sem tradução no
Brasil), foi um grande sucesso internacional em 2005, mas aparentemente não
vai chegar tão cedo ao leitor brasileiro,
se algum dia chegar. Ela acaba de lançar
sua segunda obra: Knocking on heaven’s door
(Batendo na porta do céu, sem tradução
no Brasil). Enquanto Warped Passages
foi um livro de divulgação científica
essencialmente baseado no paper que
lhe rendeu as mais de 10 mil citações,
Knocking on heaven’s door (o título é uma
referência a uma canção de Bob Dylan)
tem ambição mais ampla, enveredando
até por teorizações filosóficas sobre arte,
beleza e verdade. Ou mesmo opiniões
práticas sobre trivialidades, como os
aparelhos da moda da Apple. “O iPod
é só engraçado, mas inútil”, escreve ela.
Knocking on heaven’s door, para Randall,
que é declaradamente ateia, é uma metáfora da busca atávica dos humanos pelo
conhecimento. Se os religiosos vão buscar revelações nas esferas celestes, Lisa
tem outro caminho: a ciência e o materialismo, sem concessões místicas. “A parte
religiosa do cérebro não pode agir ao
mesmo tempo que a científica. Elas são
simplesmente incompatíveis”, escreve
ela. Os primeiros capítulos do livro são
justamente de negação da revelação religiosa como fonte de conhecimento da
natureza. Mas ela admite que “as pessoas
querem respostas e orientações que a
ciência não pode dar”, especialmente
quanto ao conforto existencial.
Para entender seu mais recente livro,
é preciso voltar ao primeiro, Warped
Passages. Nele Lisa explica sua teoria para
resolver um dos grandes mistérios da
física: por que a gravidade é uma força
tão fraca em comparação com as outras,
como o magnetismo, a eletricidade e
as forças atômicas? O problema pode
parecer bizarro e menos importante que
assuntos mais populares, como o famoso
bóson de Higgs ou o Big Bang, mas, se for
resolvido, pode levar à solução de muitos
outros problemas atualmente intratáveis
da física e da cosmologia. Quem leva um
tombo imagina que a força da gravidade
é poderosa, mas basta um ímã para atrair
um clipe metálico, vencendo a força da
gravidade de todo o planeta.
Curiosamente, Lisa teve o seu encontro traumático com a gravidade numa
desastrada aventura de alpinismo, que
pratica sempre que tem folga. Despen-
Lisa enfrenta um
grande mistério
da física: como um
simples ímã vence
a força da gravidade
de todo o planeta?
cou de uma montanha e acordou num
helicóptero, voando às pressas para o
hospital, com o calcanhar quase destruído e escoriações generalizadas. Ela foi
acidentalmente atraída pela gravidade,
quando escalava uma rocha no Parque
Nacional de Yosemite.
A pancada gravitacional teve sua
compensação, como no caso de Newton,
que teria sido inspirado pela queda gravitacional de uma maçã na sua cabeça.
Durante vários meses, presa a uma cama
com a perna engessada, rascunhou o
Warped Passages e pôde refletir ironicamente sobre a força da gravidade, que
considera ser tão fraca.
Se ela fosse um pouco mais forte, o
tombo de Yosemite resultaria num bonito
epitáfio: aqui jaz a jovem Lisa Randall, a
física teórica mais citada durante cinco
anos, aquela para quem o inglês Stephen
Hawking guarda o lugar na mesa enquanto ela vai ao pódio proferir suas esotéricas
palestras teóricas, sobre dimensões adicionais ocultas do nosso Universo.
Warped Passages não é uma obra de
exploração dos mundos com mais dimensões, mas sim uma que usa o recurso
de uma dimensão adicional oculta para
explicar a debilidade da força gravitacional. Não espere encontrar especulações
sobre como poderiam ser os seres grotescos ou formidáveis de uma dimensão
onde a força da gravidade é tão poderosa.
Mas ao longo do livro vão aparecer
coisas espantosamente exóticas, como
as “branas”, o nome genérico da nossa
popular membrana, que é uma entidade
matemática de três dimensões, como o
couro de um tambor. Uma membrana
clássica é um caso particular de brana
com apenas duas dimensões, mas teoricamente poderia ter mais dimensões.
Quando essa brana tridimensional ressoa, ela obedece a equações matemáticas
da mesma forma que uma corda de
violino ou um batuque do tambor.
A totalidade do Universo é uma coisa
chamada “bulk” (o volume) ou “espaço
de imersão”, com muitas dimensões.
Dentro dele podem existir várias branasmundos, também de dimensões variadas,
mas sempre com menos dimensões
que o “bulk”. Segundo a tese de Lisa,
vivemos numa brana privilegiada (do
KNOCKING ON HEAVEN’S DOOR
Autora Lisa Randall
Editora Ecco/HarperCollins Publishers
Ano 2011
Páginas 442
54 retratodoBRASIL
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nosso ponto de vista, claro), com três
dimensões espaciais e o espaço-tempo.
Mas, por algum acidente cósmico ou
por força de alguma lei desconhecida,
a gravidade, que faz maçãs e alpinistas
despencarem, não mora na nossa brana. As branas que ela afeta estão quase
amontoadas em outra, batizada de branaPlanck, onde ela reina absoluta e com
potência plena.
Quando Randall e seu colega coautor
Raman Sundrum fizeram os cálculos e
equações, em 1999, descobriram que o
caminho ou o tecido do espaço-tempo
entre as branas contidas no “bulk”, o
nosso Universo, teria de ser fortemente
torcido. Quer dizer, a força da gravidade
(ou os grávitons, suas partículas portadoras) tinha de vazar da brana-Planck e se
retorcer até a nossa brana, a que contém
todas as nossas galáxias visíveis. Por essa
razão, a gravidade chega aqui tão fraca,
teoriza a pesquisadora americana. Na brana onde ela se origina, é tão forte como
o eletromagnetismo e as forças atômicas
– se essas forças existirem lá.
Pode parecer coisa de ficção científica, mas os cientistas do Cern, o Centro
Europeu de Pesquisas Nucleares, levaram
a tese de Lisa a sério e estão preparando
experimentos no LHC, o grande colisor
de prótons, para testar a teoria. Quando
o LHC estiver operando a todo vapor,
existe a possibilidade de aparecerem nos
detectores os rastros de uma partícula
viajante de outra dimensão. A partícula
KK (Kaluza-Klein), como seria apelidado
esse viajante, no entanto, é muito furtiva.
Os físicos de partículas vão ter de se contentar em ver apenas os rastros deixados
pelos viajantes da outra dimensão.
O grande colisor do Cern é como
uma superpista onde dois feixes de prótons, acelerados em direções opostas,
colidem numa área cheia de detectores.
A colisão quebra os prótons e, além dos
cacos, gera energias suficientes para criar
À procura da
partícula KK, os
físicos terão de
contentar-se com
rastros originados
de outra dimensão
novas partículas, segundo a fórmula E =
mc2. Como as energias são muito altas,
aparecerão partículas muito pesadas e instáveis, que não existem livres na natureza.
Uma delas pode ser a Kaluza-Klein,
segundo espera Randall. Essa entidade na
verdade está prevista desde 1920, quando
os físicos Theodor Kaluza e Oskar Klein
resolveram adicionar mais dimensões às
equações relativísticas de Einstein. Essa
famosa equação de gravitação universal
é matematicamente escalável. Isso quer
dizer que o físico pode incluir nela
tantas dimensões (além das tradicionais
x, y, z) quanto quiser, sem atrapalhar a
consistência matemática e a ortodoxia
da equação.
Foi esse também o caminho que Lisa
e Raman Sundrum tomaram. Partiram
dessas clássicas equações einsteinianas,
incluindo mais uma dimensão que não
conseguimos ver ou detectar. A única
concessão não ortodoxa, e bem eclética,
foi usar a ideia matemática da brana, um
conceito que vem da polêmica teoria de
cordas. Pelos cálculos de Lisa e Sundrum,
os “raios” de gravidade (ou a rota dos
grávitons, que seriam as partículas portadoras da força de gravidade) não sairiam
da sua brana de origem em feixes paralelos, mas, por exigências matemáticas,
teriam de avançar num espaço-tempo
espremido e torcido, onde perderiam
força exponencialmente. A partícula
KK, se detectada no LHC, viria de um
universo onde a hierarquia das forças
seria respeitada, sendo a gravidade tão
forte quanto as outras forças básicas da
natureza cósmica.
Knocking on heaven’s door é uma obra
mais ambiciosa, se não em profundidade,
pelo menos em abrangência. Segundo
a autora, são dois livros na verdade.
“Um é a origem do meu primeiro livro,
combinada com uma atualização sobre
onde estamos agora e sobre a expectativa
A GRAVIDADE É UMA VISITANTE DE OUTRA DIMENSÃO?
Na hipótese de Lisa
Randall e Raman
Sundrun o universo
tem cinco dimensões
com bolhas de três
dimensões chamadas
branas. Uma brana
paralela à nossa pode
conter alta densidade
de grávitons. O LHC vai
testar essa hipótese
Berço da gravidade
Brana onde os
grávitons estão
concentrados e de
onde “vazam” para
nossa brana
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Quinta dimensão
O espaço fica torcido pela energia
através do espaço-tempo de cinco
dimensões. Assim a gravidade chega
enfraquecida no nosso mundo
Grávitons
que transmitem
a gravidade
podem viajar
entre as branas
A brana local
é o nosso
universo,
onde as
forças
conhecidas
estão presas,
exceto a
gravidade
Caminhos torcidos
Como o espaço-tempo é torcido,
as coisas são exponencialmente
maiores e mais leves na nossa brana
que temos”, especificamente sobre os
coelhos imprevistos que podem sair do
chapéu mágico dos dados revelados pelo
LHC nos próximos anos. Apesar de ser
física teórica de formação, Lisa mergulhou nos detalhes técnicos de engenharia
dessa monumental máquina – a maior
já construída no planeta – para explicar
como ela vai funcionar e o que poderia
se esperar dela. Os problemas técnicos
e eletrônicos não são apenas detalhes.
Afinal, sua teoria do viajante de outra
dimensão vai ser testada no LHC e ela
quer saber todos os detalhes de como
isso vai ser feito.
De fato, os cientistas do LHC, além
da teoria geral, devem dominar a tecnologia eletrônica dos detectores que
vão registrar os rastros das partículas
resultantes das colisões de prótons no
acelerador. Os sensores do LHC são
tão sensíveis que os físicos tiveram de
adicionar aos softwares de registro coisas
como o nível da água no lago Genebra,
que fica perto do colisor e pode alterar
as leituras embaixo da terra. No LHC, a
fronteira entre físicos teóricos e experimentais está embaralhada e não há lugar
para especializações estanques.
Nos primórdios da física de partículas, esses sensores, além de toscos,
deixavam rastros visíveis aos olhos do
pesquisador. Por exemplo, usavam-se
filmes fotográficos onde as partículas
deixavam um rastro de passagem e o
enxame de outras partículas quando
havia desintegração ou choque. Mas as
partículas que o LHC busca são muito
ariscas. Elas raramente interagem visualmente com o material do sensor.
Bizarramente, muitas das medidas que
vão ser feitas miram em partículas que
simplesmente desaparecem. Mas sabendo a energia e a trajetória da partícula
original, os cientistas podem calcular a
diferença de energia que desapareceu.
Isso quer dizer que foi formada uma
partícula que não interage com as formas de matéria dos sensores e das forças
conhecidas ou que simplesmente fugiu
para outra dimensão.
Para quem tiver a perseverança de
atravessar esse capítulo – que a própria
autora sugere pular –, a obra apresenta
um sintético balanço do estado atual
dos conhecimentos científicos sobre a
matéria. Em resumo, estamos praticamente onde estávamos na década de
1970, quando foi consolidado o chamado
“modelo-padrão”, uma tabela que reúne
de forma organizada todas as forças e
partículas conhecidas, com a notável
exceção da força da gravidade.
O LHC, essa poderosa máquina
europeia, vai provocar colisões com as
energias existentes no universo na idade
de apenas alguns trilionésimos de segundo após o Big Bang. Nos destroços dessas
colisões, os físicos esperam achar sinais
de novas partículas que não só revelem o
bóson de Higgs, a partícula que dá massa
a todas as outras, mas também ampliem
o modelo-padrão.
E como surgiu esse milagroso bóson
de Higgs, também apelidado de “partícula Deus”?
Nesses trilionésimos de segundo
após o Big Bang, o universo se expandiu, esfriou e mudou de fase, “como a
transição de fase que acontece quando a
água líquida em ebulição passa à fase de
Ela pretende
chegar a uma
teoria final
que junte a da
relatividade com a
mecânica quântica
vapor”. Para os adeptos do materialismo
dialético, é a famosa transição de saltos
quantitativos para um salto qualitativo
hegeliano. Nessa nova fase do universo
em expansão, aparece um campo qualitativamente novo, o campo de Higgs. As
partículas que interagem com ele ganham
massa, assim como o elétron ganha carga
elétrica do campo eletromagnético. O fóton não interage com o campo de Higgs
e, portanto, não tem massa e pode viajar
na velocidade da luz, sem sofrer “atrito”
com esse campo milagroso.
A parte do livro em que Lisa filosofa
sobre ciência, simetria, beleza e verdade
não é diletantismo poético, e sim uma
prática de metodologia. Desde o surgimento da mecânica quântica, no começo
do século passado, muitos cientistas teóricos foram tentados a ver a “elegância”
de uma equação matemática como prova
da sua verdade. Hoje em dia, a teoria de
cordas é essencialmente uma formulação matemática abstrata e bonita, que
não tem como ser provada na prática.
A teoria de cordas e sua rival, a da gravitação quântica, são teorias chamadas
de “top-botton” (de cima para baixo),
nas quais os elementos primordiais são
definidos e depois se deduzem as escalas
mais baixas. Lisa é adepta de abordagens
“botton-top” (de baixo para cima). Ela
parte da nossa realidade conhecida e
sobe as escalas de energia para tentar
chegar até o topo, numa suposta teoria
final que explique tudo e una a teoria da
relatividade com a mecânica quântica.
Mas, enquanto isso, ela lida com o
conceito de “teoria efetiva” que vale
numa determinada “escala”. Assim ela
afasta, provisoriamente, o espinhoso
problema da unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica, coisa
em que Albert Einstein se empenhou
sem sucesso até o fim da vida.
Há também um capítulo que trata
especificamente da ideia de simetria.
Mas o conceito é mais amplo do que o
da beleza simétrica de borboletas, faces
humanas ou da pintura e fotografia em
geral. Na física, a simetria inclui também a simetria de forças e equações. A
quebra de simetria, muito ao gosto da
pintura japonesa, como observa Lisa,
tem consequências fundamentais para
as leis físicas. Quando a natureza exclui
uma opção simétrica, coisas espantosas
acontecem. O fenômeno físico mais
famoso, que também vai ser testado no
LHC, é o aparecimento de um campo
de forças assimétrico para o bóson de
Higgs, que, como já foi dito, confere
massa a todas as partículas, da mesma
maneira que um campo elétrico confere
carga elétrica a um elétron.
Outro fenômeno que está sendo
estudado no LHC envolve a quebra de
simetria entre a quantidade de matéria e
antimatéria logo após o Big Bang. Não fosse a natureza favorecer a matéria comum,
por alguma razão ainda não totalmente
esclarecida, matéria e antimatéria teriam
se aniquilado ao longo do tempo e só restaria a energia pura no universo. Portanto,
estamos aqui estudando o Big Bang no
LHC porque a natureza violou uma simetria básica. Se os filósofos gregos imaginavam que beleza, simetria e verdade eram a
mesma coisa, erraram redondamente. Ou
melhor, esfericamente, nessa nova era de
coisas multidimensionais.
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Livro 2
O QUE FAZ A RIQUEZA
(E A POBREZA)
DAS NAÇÕES
Segundo Erik Reinert, países pobres se especializam
em ser pobres, produzindo commodities, e os ricos se
especializam em ser ricos, com a produção industrial
por Pergentino Mendes de Almeida
ASSISTA AOS COMENTÁRIOS
especializados na TV aberta ou paga,
ou dê uma olhada nas manchetes do
noticiário econômico da imprensa
escrita. Você ficará com a impressão
de que não existe vida inteligente fora
dos cânones e limites estabelecidos pela
ortodoxia do Consenso de Washington
Mas existe. How rich countries got rich...
and why poor countries stay poor (Como as
nações ricas enriqueceram... e por que
as nações pobres continuam pobres,
em tradução livre), livro do economista norueguês Erik Steenfeldt Reinert,
especialista em desenvolvimento e história econômica, é um exemplo disso.
Reinert nasceu em Oslo, formou-se
em economia em St. Gallen, na Suíça,
e fez pós-graduação nas universidades
americanas de Harvard e Cornell. Durante seus estudos, realizou trabalhos
de desenvolvimento comunitário em
regiões pobres dos Andes peruanos.
Depois se tornou um grande empresário na Itália, mas resolveu dedicar-se,
mais recentemente, a apenas dar aulas
e fazer pesquisas sobre economia e
ambiente, na Universidade de Oslo.
Para entender suas análises, é
preciso antes falar sobre os conceitos
de retornos crescentes, constantes ou
52
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decrescentes. São simples de entender.
Digamos que você tem um negócio que
produz cem unidades de qualquer coisa.
Se investir mais 20 unidades nele e tiver
uma produção de 120, você obteve um
retorno constante. Se tiver mais do
que 120, dizemos que conseguiu um
retorno crescente. Se for menos de 120,
seu retorno foi decrescente. É evidente
que o melhor investimento é sempre
numa atividade de retorno crescente:
isso o deixará mais rico do que antes.
Contudo, quanto mais você investir
num negócio de retorno decrescente,
mais pobre ficará.
A tese defendida por Reinert contradiz a sabedoria estabelecida na mídia,
na política e nos meios acadêmicos. As
nações ricas ficaram ricas por terem se
especializado em atividades de retorno
crescente, enquanto as nações pobres se
especializam em atividades de retorno
decrescente. Ou seja, as nações pobres
se especializaram em ser pobres e as diferenças entre pobres e ricos aumentam
cada vez mais, como se tem observado
há 30 ou 40 anos. O Consenso de
Washington, as políticas dos governos
dos Estados Unidos, da Europa, do
Banco Mundial e do Fundo Monetário
Internacional (FMI) tendem a obedecer
aos princípios da Escola de Chicago, às
ideias neoliberais de Milton Friedman e
de Frederich von Hayek. Aliás, o termo
neoliberal é, em geral, rejeitado pelos
afiliados a essa corrente de pensamento.
Eles se autodenominam “neoclássicos”
ou simplesmente se declaram liberais,
sem o “neo”, para salientar sua fidelidade aos princípios liberais desenvolvidos
por Adam Smith em A Riqueza das
Nações, escrito em 1776.
Em essência, o que nos dizem Adam
Smith e seus seguidores modernos?
Os agentes econômicos atuam sempre em função de seu interesse próprio.
O padeiro não cozinha o pão para alimentar o próximo, mas para vendê-lo.
O produtor sempre procura obter o
maior preço possível para lucrar mais,
enquanto o comprador busca reduzir o
preço a um mínimo para pagar menos.
A compra e venda (o fato econômico)
só se realiza quando ambos chegam a
um meio-termo, cada um procurando
ganhar a máxima vantagem possível.
É esse o ponto de equilíbrio “justo”,
que viabiliza a venda, ou seja, o próprio sistema econômico. Esse ponto
é atingido enquanto as partes forem
livres para negociar em pé de igualdade
e tende a expressar o valor “real” de um
GettyImages
Final do século XVIII, Inglaterra: a rápida mecanização da indústria têxtil baixou o custo da produção do tecido de algodão e das roupas
objeto. Daí a importância da liberdade
de comércio e a necessidade de garantila – e essa seria a principal função dos
governos.
É na troca mercantil, em regime
de concorrência perfeita, que o valor
econômico das coisas se manifesta. E
esse valor está relacionado às horas
de trabalho necessárias para produzir
o objeto. Digamos, às “horas de trabalho social”, uma unidade-padrão,
universalmente aplicável para ser traduzida em qualquer moeda ou preço.
O ferreiro vende ao padeiro quatro
ferraduras pelo número de pães que
compensarem o trabalho que ele teve
para produzi-las, não necessariamente
por quatro pães. O mesmo ocorre com
o padeiro. Portanto, se cada indivíduo
procurar obter a maior vantagem possível e se todos eles forem livres para
chegar a um acordo, então o mercado
estabilizará a economia no ponto de
maior benefício social. As premissas
teóricas de Smith têm uma lógica
perfeita. Credita-se a ele a explicação
do sucesso da Inglaterra na Revolução
Industrial: a potência inglesa apenas
ter-se-ia desenvolvido pela adesão aos
princípios liberais sistematizados em
A Riqueza das Nações.
Pouco depois, David Ricardo segue
Smith, deduzindo o mundo a partir de
uma visão platônica de como as coisas
devem ser. Para ele, cada nação obterá
o máximo benefício se especializar-se
naquilo em que é menos ineficiente
relativamente às demais. Por exemplo,
a Inglaterra produz tecidos com mais
eficiência do que Portugal; Portugal
O desenvolvimento
inglês resultou de
uma interferência
brutal do Estado
e de um ferrenho
protecionismo
produz vinhos com mais eficiência do
que a Inglaterra. Portanto, se a Inglaterra concentrar-se em produzir tecidos,
em vez de produzir vinho, ambas as
nações pagarão menos pelo tecido. Ao
mesmo tempo, Portugal se especializaria em produzir vinhos, trocando-o pelo
valor equivalente de tecidos. Assim,
as duas nações sairiam ganhando e se
tornariam mais prósperas.
Ocorre que Adam Smith ofereceu
uma explicação idealizada do desenvolvimento industrial inglês. Na verdade, a
política inglesa, desde a Idade Média até
a Revolução Industrial, foi exatamente
o oposto do que Adam Smith descreve.
O desenvolvimento inglês só foi possível mediante uma interferência brutal
do Estado e sob condições de ferrenho
protecionismo, colonialismo, barreiras
à exportação de matéria-prima e à importação de produtos industrializados,
reservas de mercado, patrocínio de corsários, conquistas militares e acordos
secretos. Apenas quando os ingleses
se sentiam seguros de sua vantagem,
como primeira nação industrial e não
simplesmente manufatureira, em pleno
século XVIII, é que houve condições
de surgir um Adam Smith e suas ideias
liberais. Estas se alinhavam perfeitamente aos interesses nacionais ingleses,
que precisavam abrir o comércio das
demais nações e colônias (que não as
inglesas) para sua produção crescente.
Praticamente sem exceção, todas
as nações mais ricas do mundo atual
conquistaram sua posição mediante
suporte do Estado, protecionismo,
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53
tarifas alfandegárias etc. – por exemplo, França, Alemanha, Noruega e,
mais recentemente, Japão e Coreia do
Sul. Isso até elas atingirem um estágio
seguro de desenvolvimento econômico
em atividades de retorno crescente. O
liberalismo econômico funciona bem
para e entre elas, mas tende a perpetuar
as desigualdades e a pobreza das nações
que ainda não chegaram lá tanto quanto
a riqueza das nações ricas.
Na Inglaterra recém-industrializada
de Adam Smith, havia quem defendesse a liberdade de mercado como
valor supremo e a ideia de que, para
garanti-la, era necessário que o governo fechasse as fronteiras, proibindo
a exportação de lã e a importação de
tecidos e outros manufaturados, crimes
esses que deveriam ser punidos com
a pena de morte. Sem chegar a esse
extremo, foi o que Colbert fez com
sucesso na França.
A teoria liberal se fundamenta em
suposições idealizadas, que apenas
se aproximam da realidade em certas
condições específicas. Por exemplo,
no mercado de commodities, costumam
prevalecer condições semelhantes
às postuladas para um regime de
concorrência perfeita. Um quilo de
milho é igual a qualquer outro quilo
de milho. Na medida em que existem
vários produtores de milho, é possível
comprar o mais barato. E é aí que
surge o problema com a teoria liberal.
O sistema de livre-mercado funciona
de modo satisfatório quando as partes
são livres para negociar, para aceitar
ou recusar qualquer proposta, porque
dispõem de alternativas equivalentes à
que lhes é ofertada; quando elas têm
igual capacidade de barganha e ambas
dispõem de informações completas
sobre o mercado. Na prática, quando as
partes são desiguais, cabe à mais forte
impor suas condições à mais fraca. Isso
Na prática,
quando as partes
são desiguais, a
mais forte impõe
suas condições
à mais fraca
ocorre entre nações, na diplomacia
mundial, assim como nos negócios do
dia a dia, entre grandes empresas globais e fornecedores de componentes e
serviços locais.
Na agricultura, quando os preços
sobem, os produtores tendem a aumentar a produção. Para isso, precisam
plantar mais. E, para plantar mais,
necessitam de mais terras. Não existe
Reprodução
Adam Smith e David Ricardo: visão platônica de como as coisas deveriam ser no mundo
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uma economia de escala no caso – ao
contrário, com o aumento da procura
de terras, os produtores começam a
estender sua cultura a áreas menos produtivas. Cultivar uma nova terra é como
recomeçar tudo de novo. O efeito disso
é que os custos marginais da produção
não só não diminuem como tendem a
aumentar. Ao mesmo tempo, à medida
que muitos produtores começam a
plantar soja, a concorrência aumenta
e os preços tendem a cair. Quando
uma nação se especializa na produção
e exportação de commodities agrícolas,
ela está fazendo-o em uma atividade
de retornos decrescentes e destinada a
ficar relativamente cada vez mais pobre
e dependente. Essa é a realidade histórica que desmente o arcabouço lógico
das deduções de Ricardo.
A vantagem tecnológica e industrial
proporciona um efeito contrário a esse.
A industrialização, em princípio, assegura retornos crescentes e o aumento
geral da riqueza. Elevar a produção
numa indústria não significa recomeçar
do zero. Mas isso apenas ocorre em
condições de concorrência imperfeita,
em que as circunstâncias de livrecomércio não prevalecem e o Estado
interfere frequentemente com tarifas
e outras medidas protecionistas. Ao
mesmo tempo, a industrialização deve
ser uma que crie condições de sinergia
entre os vários setores da economia
e dela se beneficie. Ou seja, a “especialização” numa atividade industrial
positiva é a especialização em variedade
de indústria, agricultura, serviços, todos
beneficiando e suportando os demais.
São as nações que se especializam numa
commodity para exportar que tendem a
empobrecer.
A vantagem relativa das economias ricas costuma estar na adoção
de inovações de produtos. As nações
menos desenvolvidas e que continuam
a sê-lo tendem a investir em inovações
de processos. A inovação de produtos
gera uma vantagem competitiva que
permite ao fabricante aumentar seus
lucros, pelo menos enquanto desfruta
essa vantagem. Quando a inovação
passa a ser imitada pela concorrência
e as empresas investem na inovação de
processos, a fim de reduzir os custos e
fazer frente à concorrência, os preços
tendem a cair. A partir daí, o produto
começa a aproximar-se mais das condições de concorrência perfeita – o
que força a redução de preços, não
o aumento da renda, e um regime de
retornos decrescentes.
Mesmo um produto industrial, ainda que sofisticado, começa a atuar como
commodity nessa fase. Cabe, então, à
economia mais desenvolvida promover
o outsourcing (terceirização) da produção
para países mais pobres e com mão de
obra mais barata e iniciar um novo ciclo
de inovação de produto.
A globalização atual acentua,
exacerba e expande as contradições
próprias do liberalismo. Devido a essa
dinâmica, não existe refúgio permanente em uma atividade econômica
que garanta a perenização da riqueza
de uma nação. De modo geral, o que
é atividade de vanguarda numa etapa
passa a ser a norma na etapa seguinte
e as assim chamadas nações ricas começam a delegá-las a outras nações
– principalmente a disponibilização
dos insumos necessários à nova etapa
de desenvolvimento, a preços mais
baratos.
De 1770 a 1840, ocorreu a mecanização na indústria têxtil inglesa,
que, além de promover o crescimento
urbano, estimulou, no setor agrário, a
prosperidade da produção de lã. Mediante a proteção mercantilista do governo, acabou praticamente destruindo
a produção de lã na França. Recursos
baratos para isso eram disponíveis na
Inglaterra: água e algodão da colônia
americana.
O período de 1830 a 1890 é o das
máquinas a vapor, dos vapores marítimos e fluviais e das estradas de ferro,
promovendo uma grande expansão dos
transportes. Alargam-se as fronteiras
do mundo, aumentam-se o alcance e
o tamanho do mercado e barateia-se o
custo de distribuição de mercadorias.
Vapor e carvão são recursos baratos e
abundantes.
De 1880 a 1940, predomina a
eletricidade como fonte de energia
barata, e a indústria pesada monta
for tes conglomerados, enquanto
ocorrem disputas por novas colônias
e fontes de matéria-prima, geralmente
Hoje, no Brasil,
predominam
as empresas
globais e na
economia aumenta
a concentração
mediante o uso de força bélica. O aço
torna-se um recurso mais barato. A
vanguarda do desenvolvimento é assumida pelas máquinas elétricas e pela
indústria química. É desenvolvida uma
infraestrutura, com base em estradas
rodoviárias.
O período de 1930 a 1990 é o
da adoção geral do fordismo na indústria. As indústrias de ponta são a
automobilística e a de materiais sintéticos (nylon, matérias plásticas). A
economia toda depende do petróleo,
um recurso especialmente barato até
a crise dos anos 1970. Mais estradas rodoviárias. Mais aviões. Cabos
HOW RICH COUNTRIES
GOT RICH... AND WHY
POOR COUNTRIES STAY POOR
Autor Erik S. Reinert
Editora ECarrol & Graf
Publisher, New York
Ano 2007
Páginas 365
submarinos. Esse é um período de
conflitos e de nacionalismos.
A partir de 1990, a tônica está na
informação e nas telecomunicações.
O recurso-chave barato e abundante
é o dos microchips. A vanguarda do enriquecimento está no processamento
de dados, na produção de softwares e
na biotecnologia. A infraestrutura necessária, como sempre, promovida inicialmente pelo Estado, são as redes de
comunicação digitais e as de satélites.
No Brasil, em praticamente todos
os setores importantes, predominam
as empresas globais e aumenta a concentração da atividade econômica. A
respeito desse domínio das nações mais
pobres (para usar o termo empregado
por Reinert) pelo capital estrangeiro,
apenas uma parte limitada do setor de
serviços permanece intacta: manicures,
cozinheiros, enfermeiros, cabeleireiros,
porteiros, cuidadores et al. Em serviços
especializados de nível mais alto, já são
sensíveis no Brasil as consequências do
Efeito Vanek-Reinert:
“Um dos mecanismos que contribuem para ...[a desindustrialização
e o retrocesso econômico, onde isso
ocorre,] é o Efeito Vanek-Reinert, que
faz com que os setores mais avançados
das nações menos avançadas sejam as
primeiras perdas causadas pelo livrecomércio instantâneo. À medida que o
ciclo virtuoso dos retornos crescentes
é posto em marcha a ré, a periferia
do mundo vive uma sequência de desindustrialização, desagriculturação e
despovoamento, mecanismos que hoje
observamos desde o sul do México até
a Moldávia” (página 166).
Na introdução ao livro, Reinert
admite que quem critica deve propor
alternativas. E ele o faz:
“Assim como não vamos criar mais
comida no Terceiro Mundo se passarmos a comer menos – no momento,
a fome é essencialmente causada por
falta de poder aquisitivo, não por falta
de comida no mundo –, não criaremos
desenvolvimento no Terceiro Mundo
acabando com a nossa agricultura no Primeiro Mundo. Neste livro, defendemos
a ideia de um compromisso pelo qual
o Primeiro Mundo possa proteger sua
própria agricultura (mas que seja impedido de inundar o mercado mundial com
seus excedentes) e o Terceiro Mundo
possa proteger sua indústria e setores de
serviços avançados” (página 26).
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Livro 3
A POLÍTICA CRIMINAL
DO PERDÃO
Em Justiça, Luiz Eduardo Soares propõe um novo paradigma
jurídico, que substitui a punição pela corresponsabilização: o
condenado assumiria sua culpa, buscando o perdão da vítima, e
seriam levadas em conta as causas sociais do crime
por Leandro Saraiva
O QUE É a Justiça? A pergunta parece óbvia, mas, uma vez feita, obriga à
revisão de pressupostos ideológicos e
práticos. Num bate-pronto republicano
e bastante genérico, talvez se possa dizer
que justiça é o oposto da barbárie, o império da lei, que protege os justos. Mas
basta escavar um pouco mais e perguntar
sobre os fundamentos da lei para que
tudo fique menos óbvio. Como costuma
ocorrer nas discussões sobre fundamentos, todos os fundos se revelam falsos. Se
prosseguirmos perguntando, regredindo
na sucessão de eventos que conduziu
ao ordenamento jurídico hoje regido
pela “Justiça”, chegaremos a um “rio de
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ilustração Caco Bressane
sangue”, como diz Luiz Eduardo Soares.
Mas a abordagem do autor, ao contrário do que talvez sugira esta introdução, não é teórica. Ao menos no sentido
corriqueiro da palavra, de uma conceitualização prévia, em relação à qual os casos
concretos devem ser endereçados como
exemplos que ilustram a lógica. Justiça
tem o estilo de uma conversa entretecida
por histórias e interpelações diretas ao
leitor, no estilo dos narradores orais, que
contam causos para deles extrair lições.
É assim que, já na abertura do livro,
a discussão sobre os fundamentos violentos da ordem jurídica é introduzida
através da apresentação de uma corri-
queira conversa sobre a sede de vingança
purificadora: um taxista conta a Soares
sobre o assassinato de um colega de
trabalho e clama por “justiça”, ou seja,
pela punição, exemplar e vingativa, dos
que mataram o trabalhador honesto,
deixando desamparada sua família. O
interlocutor-autor propõe, então, ao
indignado motorista, o exercício de levar
adiante seu temor quanto ao futuro dos
filhos da vítima: crescerão sem proteção,
é provável que a viúva tenha dificuldades
em sua educação, eles podem ficar pelas
ruas, se envolver com atividades ilícitas,
talvez venham a praticar crimes e até,
quem sabe, num desatino, cometer um
assassinato, na pressão de um assalto.
“O sentido de uma história depende
do ponto a partir do qual começamos
a contá-la”, diz o autor, que extrai esta
conclusão do diálogo com o defensor da
pena de morte para os “monstros” que
mataram seu colega.
Soares, graduado em psicologia, com
mestrado em antropologia, doutorado
em ciências sociais e pós-doutorado em
filosofia política, inspira-se na maiêutica
de Sócrates, ou seja, na ideia de que o
conhecimento vive em cada ser humano e pode aflorar a partir de perguntas
bem colocadas. Assim, no movimento
seguinte, ele apresenta novas histórias,
agora sobre crimes contra o patrimônio:
se compro algo de um receptador de
mercadorias roubadas ou adquiro uma
peça arqueológica de reconhecido valor
histórico, corretamente documentada,
o que legitima a segunda e denigre a
primeira? A documentação? E se retrocedemos para a fundamentação destes
papéis? E se o mesmo raciocínio for
aplicado à propriedade da terra?
Da relativização histórica das certezas em relação à concepção de Justiça,
o autor passa às considerações contemporâneas: o que é e o que não é crime?
Quem é criminoso? A definição de um
ato – e, ainda mais crucial, de seu autor
– como “criminoso” é um processo social de várias instâncias: sobre a camada
da legalidade, operam as instituições
policiais e jurídicas. Em nova parábola,
que apresenta sob vários ângulos o que
parece ser um evidente flagrante de
porte de drogas, Soares mostra como a
ação policial, mesmo quando isenta de
corrupção, é marcada por preconceitos.
Mais do que isso: a narração do caso, uma
vez expandida em seu raio de percepção,
ampliando-se agora no horizonte das
cadeias causais do presente (outra forma
de rearranjar a pergunta: “onde começa a
história?”), permite abrir o quadro para
além das ditas “evidências” policiais,
chegando às raízes do crime espalhadas
pelo tecido social.
Mas o dispositivo jurídico-policial
funciona de modo a circunscrever o
sentido legal do ato à identificação inequívoca e unidimensional do criminoso.
Poderíamos dizer, para seguir o raciocí-
O esquema de
punição da Justiça
vigente é arbitrário,
ao estabelecer
equivalência entre
o crime e as penas
nio do autor, que o objetivo do sistema
é produzir a identidade do criminoso,
aprisionando não apenas o corpo, mas
o sujeito, reduzido de sua completude
a uma “prisão sintática”. O autor toma
claramente como referência o filósofo
francês Michel Foucault (1926-1984),
autor de Vigiar e Punir, publicado em
1975, que analisa a evolução das formas
de julgar e punir da Idade Média aos nossos dias – mas sem citações que possam
constranger bem-vindos leitores de primeira viagem. Soares descreve os modos
JUSTIÇA
Autor Luiz Eduardo Soares
Editora Nova Fronteira
Ano 2011
Páginas 196
de sujeição daquele que comete o ato
criminoso: a prisão destitui o sujeito de
suas particularidades e potencialidades
de construção de si, tanto no tempo do
cárcere, que o retira do mundo – o que é
radicalizado pelas condições subumanas
das prisões brasileiras –, quanto posteriormente, pelo estigma.
A essa altura chegamos ao ponto
principal no livro. Mais uma vez examinando o que parece dado, Soares expõe
a arbitrariedade do esquema de punição
da justiça vigente: a equivalência entre
crimes e graus de privação de liberdade.
Uma rápida consideração histórica indica
uma progressão civilizatória (entendida
a civilização como uma racionalização
da mediação dos conflitos sociais). Já
o “olho por olho, dente por dente” é
uma racionalização, na medida em que
impõe uma regra de proporcionalidade
da vingança. A era moderna avançou
nesta racionalização com a teorização
do filósofo e jurista italiano Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, autor de
Dos delitos e das penas, que, publicado em
1764, substituiu a revanche física por
um princípio punitivo que reconhece a
inalienabilidade da dignidade humana,
ou seja, que não é legítimo o Estado
infligir sofrimento físico. Assim, a prisão
tornou-se a regra, o que necessariamente
baseia-se numa racionalização, a qual
abstrai dos diversos atos definidos como
criminosos uma escala de gravidade, e
afirma, por definição, uma equivalência
com uma escala paralela de privações
de liberdade.
A importância de esmiuçar o que
há de arbitrário nesta escala de justiça
reside na possibilidade de imaginar outras formas de racionalização. Se hoje
os espetáculos de violência punitiva
exemplar pré-modernos nos parecem
grotescos, é porque os padrões históricos
de julgamento mudaram.
O que Soares propõe, inspirado na
corrente denominada justiça restaurativa,
é outro modo de pensar o julgamento social do crime, um modo pós-punitivo. A
punição, diz ele, é sempre retrospectiva.
Ela busca “fazer justiça” através de um
“pagamento” por um ato já realizado,
finalizado.
O que o livro sugere de mais profundo é que, à luz da visão multifacetada
da produção do crime acima exposta,
se pense o crime como efeito de uma
multiplicidade de cadeias causais, que
continuam a agir, e se pensem os
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57
julgamentos da Justiça como modos
de o Estado interferir nestes processos
profundos.
Não se trata de afirmar generalidades
sobre as causas sociais da violência, mas
de exigir que a Justiça seja encarada como
um desafio público de reparação da iniquidade (da não igualdade), fazendo, a
cada julgamento, o que for possível para
interferir na cadeia de acontecimentos
que produziu, e continua a produzir, o
ato violento em questão. Desta perspectiva, sobretudo para o juiz – ao contrário
do bordão futebolístico –, a regra não
é clara. Não se trata de mandar para o
chuveiro (ou para prisões insalubres) os
infratores. Soares diz almejar “uma sociedade em que os juízes não estudassem
apenas as doutrinas e as leis, mas também
as sociedades e a psicologia humana, de
tal modo que pudessem compreender e
avaliar as consequências de suas decisões
em todas as esferas da vida individual e
coletiva” (p. 180).
Os princípios deste paradigma alternativo de Justiça são o perdão e a corresponsabilização. Fazer Justiça seria, então,
uma atitude ativa que teria como protagonista a vítima imediata da agressão, a
quem o agressor se dirigiria para tentar
obter o perdão. Este processo, mediado
pelo Estado, expandiria a corresponsabilização do agressor – que deveria assumir
sua culpa e se submeter ao julgamento da
vítima e da sociedade, para o conjunto
das relações sociais que a Justiça indicasse
como corresponsável. Deste modo, o
autor do ato criminoso se comprometeria
A prisão só deveria
ser utilizada em
casos-limite. Não
pode ser a regra
da Justiça, e sim
o seu fracasso
com ações de reparação à vítima (quando
isso fosse possível e pertinente) e com
ações de transformação das causas mediatas do ato, segundo o julgamento do
juiz. Esta perspectiva implicaria, ainda, a
autoridade do juiz em corresponsabilizar
outras instâncias, coletivas e individuais,
consideradas culpadas pelo crime.
Reprodução
O filósofo Michel Foucault: as relações entre os modelos de penas e o poder político
58
Por um lado, é óbvia a solidariedade desta argumentação com as penas
alternativas e, mais amplamente, com
o chamado direito restaurativo, que,
justamente, é pioneiro na superação da
justiça punitiva. Soares é explícito na
referência e reverência a esta fonte, que
ele pretende elevar, de prática complementar e alternativa, restrita a âmbitos e
delitos comunitários, a novo paradigma
de Justiça. Paradigma, entretanto, que
ele apresenta como utopia reguladora,
já que reconhece que – além das óbvias
e imensas dificuldades para implantar
estas ideias – há casos nos quais a prisão
continuará sendo a única alternativa (sobretudo nos casos em que o infrator não
aceita a corresponsabilização). Mas, diz
ele, a ideia é inverter o foco, considerar
estes como casos-limite, de fracasso da
Justiça, e não como regra.
É grande a variedade, criatividade
e contundência da atuação de Luiz
Eduardo Soares no campo da segurança
pública. Por trás dos cargos públicos
ocupados (subsecretário de Segurança
do Rio de Janeiro e secretário nacional
de Segurança Pública), estão os livros
e artigos de pesquisa e intervenção na
área e as obras narrativas, como Elite
da tropa (Editora Objetiva, 2006, em
parceria com os policiais André Batista
e Rodrigo Pimentel), que dramatizam o
confronto das forças que conformam o
campo da segurança pública. Justiça tem
algo de síntese de sua trajetória. Nas
entrelinhas, percebemos as reflexões
de fundo, filosóficas e antropológicas,
do autor-professor; nas fábulas, a capacidade narrativa do romancista; na
articulação da argumentação, a capacidade retórica ao mesmo tempo política
e comunicacional, costurada de forma
a seduzir um leitor-cidadão, não especialista, mas também capaz de dialogar
– pelo tom de busca dos fundamentos
das perguntas – com os doutores da lei.
Tudo considerado, este não é, como outros do autor, um livro de intervenção
imediata. Desta vez, frente à urgência e
gravidade da violência criminosa – tão
chocantemente demonstrada pela retirada para o exterior de Marcelo Freixo,
presidente da CPI das Milícias no Rio
–, Soares apresenta uma obra civilizatória, nos convidando ao exercício da
imaginação política de outras bases de
relacionamento social. Para uma época
tão desastrosamente pragmática como
a que vivemos, não é pouco.
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