Retrato do Brasil
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EN EX TR CL EV U IS SI T V A A O PALESTINO ABDEL ATWAN CONDENA O OCIDENTE E PROPÕE A TERCEIRA INTIFADA retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 9,50 | NO 54 | JANEIRO DE 2012 doBRASIL MÚSICA A VIDA INTENSA DO ATOR, BOÊMIO, MILITANTE COMUNISTA E COMPOSITOR MARIO LAGO 2 | retratodoBRASIL 54 54 retratodoBRASIL | 3 retrato doBRASIL WWW.RETRATODOBRASIL.COM | N O 54 | JANEIRO DE 2012 5 Ponto de Vista ADIVINHE QUEM VEM PARA O JANTAR Como os crocodilos em relação aos gnus, o mercado espreita para abocanhar os países europeus em crise 44 CLÁSSICO REENCONTRO Dori e Danilo: novos sons da dinastia musical que começou quando Nana e Dorival Caymmi gravaram “Acalanto” [Tárik de Souza] 8 MONSTRUOSIDADES Os perigos do acordo proposto por França e Alemanha contra a crise europeia: a economia dos mais vulneráveis pode piorar [Armando Sartori] 45 HERDEIROS DE RAPHAEL O rigor dos Rabello e a ginga dos Faria em discos familiares, com a nítida influência do grande violonista que morreu em 1995 [Tárik de Souza] 16 ”ISRAEL QUER ME SILENCIAR” Em entrevista exclusiva, o jornalista Abdel Bari Atwan, famoso por seu longo encontro com Bin Laden, defende a Terceira Intifada [Aleksander Aguilar] 46 O OCEANO ARTÍSTICO DE MARIO LAGO Ele brilhou mais como ator, navegou em muitos mares profissionais e foi um dos maiores compositores brasileiros [Tárik de Souza] 20 A INCRÍVEL HISTÓRIA DO PM JOÃO DIAS - PARTE 2 O fato é que todas as denúncias e articulações sempre tiveram como principal alvo o atual governador de Brasília, Agnelo Queiroz [Antonio C. Queiroz e Raimundo R. Pereira] 48 ELA QUER BATER NA PORTA DO CÉU Lisa Randall, musa dos cientistas contemporâneos, fala de ciência, beleza e de seus experimentos com outras dimensões [Flávio de Carvalho Serpa] 36 O PAÍS BASCO, DA VIOLÊNCIA À RECONCILIAÇÃO Findos o terror e a repressão do governo, chegou a hora de reconstruir a paz. Sem revanchismo, mas também sem impunidade [Ricardo Viel, de Salamanca] 52 O QUE FAZ A RIQUEZA (E A POBREZA) DAS NAÇÕES Segundo Erik Reinert, commodities geram pobreza. Por isso, os países ricos dedicam-se à produção industrial e ficam mais ricos [Pergentino Mendes de Almeida] 40 TUDO NORMAL NA ARGENTINA (PERO NO MUCHO...) Uma década após o país ter mergulhado na pobreza, a reeleita Cristina Kirchner se esforça para apagar marcas do passado [João Peres, de Buenos Aires] 56 A POLÍTICA CRIMINAL DO PERDÃO Em Justiça, Luiz Eduardo Soares propõe que o réu busque o perdão da vítima e sejam avaliadas as causas sociais do crime [Leandro Saraiva] FALE CONOSCO: www.retratodobrasil.com CARTAS À REDAÇÃO [email protected] rua fidalga, 146 conj. 42 cep 05432-000 são paulo - sp ASSINATURAS [email protected] tel. 11 | 3032 1204 ou 3813 1527 de 2a a 6a, das 9h30 às 17h ATENDIMENTO AO ASSINANTE [email protected] tel. 31 | 3281 4431 de 2a a 6a, das 9h às 17h PARA ANUNCIAR [email protected] tel. 11 | 3032 1204 ou 3813 1527 de 2a a 6a, das 9h30 às 17h CIRCULAÇÃO EM BANCAS [email protected] EDIÇÕES ANTERIORES [email protected] REDAÇÃO [email protected] Entre em contato com a redação de Retrato do Brasil. Dê sua sugestão, critique, opine. Reservamo-nos o direito de editar as mensagens recebidas para adequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão. ERRATA No artigo “A incrível história do PM João Dias”, publicada na edição nº 53, à pagina 16, no segundo parágrafo da primeira coluna, há um erro. Em vez de “O repórter depois acha o inquérito. Mas outro, específico, sobre a morte do policial investigador. Doutor Michel diz que não tem como ajudá-lo”, o correto é “O repórter depois acha o inquérito. Mas, não acha outro, específico, sobre a morte do policial investigador. Doutor Michel diz que não tem como ajudá-lo.” CAPA Foto de Monique Renne/CB/D.A Press Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. 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MANUSEIO FG Press Reprodução Ponto de Vista Adivinhe quem vem para o jantar O mercado vive à espreita para “morder” os países europeus em crise, exigindo rendimentos cada vez mais altos dos títulos de suas dívidas. E só parece ainda respeitar os EUA, para onde todos correm quando a situação aperta GNUS SÃO ANIMAIS que, anualmente, realizam uma longa jornada de centenas de quilômetros entre o Quênia e a Tanzânia, na África oriental. A certa altura da viagem, repetida há milênios, eles atravessam o rio Mara, que cruza o território dos dois países antes de desembocar no lago Vitória. Nesta época do ano o rio está cheio. Mas, para chegar à outra margem, os gnus têm de enfrentar, além da força das águas, os crocodilos, que, como sempre, estão à espreita. É um massacre. No entanto, apesar da fome – os répteis praticamente não comem durante o período da seca –, os crocodilos não atacam aleatoriamente as presas: por instinto, tendem a abocanhar as mais fracas – velhos, filhotes e doentes –, pois assim a chance de sucesso é maior. O mercado financeiro age como os crocodilos: procura se aproveitar dos mais debilitados. É assim que se pode entender o que ocorre com o grupo de países europeus conhecido como PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, na sigla em inglês. Eles estão no centro da chamada crise da dívida soberana europeia. Alguns, como Grécia e Irlanda, têm déficits públicos correspondentes a mais de 10% do PIB. E a mesma Grécia e a Itália têm dívidas equivalentes a mais de 100% do PIB (ver o artigo “Monstruosidades”, nesta edição). Os países do PIIGS têm sido vítimas dos crocodilos que, no mercado secundário de títulos, costumam exigir rendimentos altos dos papéis de suas dívidas, indicando que, quando for a hora de “rolar” a dívida ou colocar títulos novos à venda, eles terão de oferecer juros bem maiores do que ofereciam até então. A perspectiva, para esses países, é que o financiamento de suas dívidas se torne insustentável. É costume dizer que os crocodilos só temem os elefantes, por seu tamanho e força. Se há um elefante na Europa, é a Alemanha. Só que os crocodilos também o estão desafiando: em novembro, por exemplo, o país da primeira-ministra 54 retratodoBRASIL | 5 Angela Merkel lançou 6 bilhões de euros em títulos, mas só conseguiu vender cerca de 60% desse total. O restante foi rejeitado pelo mercado, que não considerou suficientemente atraentes as condições oferecidas. A crise das dívidas soberanas não se limita ao jogo econômico, no entanto. Ela tem repercussões amplas e profundas em toda a vida social europeia. Dominique Rousseau, jurista e professor da Universidade de Paris, chama a atenção, em artigo publicado pelo diário francês Le Monde, para o fato de que o mercado foi capaz de realizar mudanças políticas que os protestos dos afetados pelas medidas de austeridade fiscal adotadas pelos governos europeus não conseguiram. Os crocodilos, lembra Rousseau, derrubaram no ano passado até meados de dezembro todos os primeiros-ministros do PIIGS e, de quebra, mais um, de fora do grupo. Em fevereiro, o irlandês Brian Cowen; em março, o português José Sócrates; em julho, o espanhol José Zapatero; em outubro, a eslovaca Iveta Radicova; e em novembro, o grego George Papandreou e o italiano Silvio Berlusconi. Todos caíram porque, de alguma forma, desagradaram o mercado, e não porque tivessem adotado medidas antipopulares, diz Rousseau. “Karl Marx, que foi acusado de caricaturizar o funcionamento da república burguesa, sorriria hoje ao ver como a realidade superou sua análise.” É preciso destacar ainda que Papandreou e Berlusconi foram substituídos por burocratas próximos do mercado, sem que sequer fossem realizadas eleições. Mark Weisbrot, economista e articulista americano, aponta para outra evidência importante. Ele cita declarações do presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, que pareciam indicar que a instituição mudaria sua atitude, passando a exercer um papel mais ativo na compra de títulos italianos e espanhóis, o que aliviaria as pressões do mercado sobre esses países. Dessa forma, diz o economista americano, o BCE agiria para manter os juros baixos e os mercados se estabilizariam, o que ajudaria a Europa a se recuperar. Ao admitir tal possibilidade, Draghi contrariaria, no entanto, o que o banco vinha alegando até então: que uma ação de tal natureza ia além de suas atribuições legais. Weisbrot conclui, a partir da aparente mudança de posição de Draghi, que o “BCE – apoiado pela Alemanha e por alguns outros governos – poderia encerrar 6 | retratodoBRASIL 54 a crise a qualquer momento, sem custo algum para os contribuintes europeus”. Mas “está prolongando a crise para forçar a adoção de ‘reformas’ que a maioria dos europeus jamais votaria, como aumento da idade para aposentadoria, privatizações e até mesmo controle da UE sobre os orçamentos nacionais”. A constatação de que o mercado tem poder de fogo suficiente para abalar a vida política dos países foi expressa de forma diferente por Larry Fink, presidente da BlackRock, a maior empresa de asset management (gestão de recursos de terceiros) do mundo. Ele disse em entrevista, durante sua passagem recente pelo Brasil, que a aproximação do presidente da França, Nicolas Sarkozy, com a primeira-ministra da Alemanha (autores da proposta aprovada pelo Conselho Eu- De certa forma, a crise europeia é a etapa mais recente do processo que começou nos EUA nos anos 1970, com a desregulação do sistema bancário americano, iniciada por Ronald Reagan e completada em 1999 por Bill Clinton ropeu no mês passado que permite ampla intervenção nos orçamentos de países da UE) decorreu do fato de os papéis da dívida francesa estarem em situação delicada (o que ameaçaria transformar esse país num gnu). “Os mercados querem ação e pressionam de tal forma que fazem os governos mudarem suas políticas”, disse. Fink reconhece que o principal problema na Europa é promover o crescimento econômico e que as medidas de austeridade fiscal adotadas por todos os governos do PIIGS “não vão promover o crescimento” e podem levar a “uma recessão realmente severa”. Em novembro, a Comissão Europeia lançou a ideia da criação dos chamados eurobonds , títulos coletivos da Zona do Euro que substituiriam os papéis nacionais. Isso faria com que o crédito de melhor qualidade de países como a Alemanha beneficiasse o PIIGS, cujos membros pagariam juros mais baixos que os atuais. Em contrapartida, a Alemanha poderia pagar juros mais altos. Seria uma espécie de equalização dos riscos. A Alemanha, no entanto, se opõe à ideia: o ministro de Finanças alemão, Wolfgang Schauble, disse que os eurobonds não vão resolver a crise e que se forem criados podem diminuir a pressão sobre Estados com problemas para reduzir suas dívidas. Mario Monti, que substituiu Berlusconi, no entanto, disse, após a reunião do mês passado do Conselho Europeu, que a ideia não está morta. Segundo ele, na reunião do conselho agendada para março, ela pode ser retomada. A crise europeia pode ser vista como a etapa mais recente de um longo processo que se iniciou nos EUA no final dos anos 1970 e se acelerou na década de 1980, durante o governo de Ronald Reagan. É quando começam a ganhar força as tendências à desregulação do sistema bancário americano, represadas desde a crise de 1929. Dessa época até o final dos anos 1970, uma série de leis balizou as atividades do setor financeiro. Durante esse período, os EUA viveram a chamada “era de ouro”, entre o final da II Guerra Mundial e meados dos anos 1960, quando a economia alcançou taxas médias de crescimento nunca vistas depois. A regulação bancária americana sofreu seu golpe final em 1999, quando, durante o governo do presidente Bill Clinton, foi revogada a legislação básica que lhe dava estrutura. Isso fez com que, diante da redução das taxas de crescimento, o sistema financeiro assumisse a função de dar maior dinamismo à economia por meio de incentivos ao consumo. Surgiram as “bolhas financeiras”, como a do boom das chamadas empresas pontocom (ligadas à comercialização na internet) e a da construção e comercialização de imóveis, que estão por trás da crise que surgiu nos EUA em 2008, com a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers. Esse processo de financeirização fez o lucro do setor financeiro americano saltar de menos de 20% do lucro total da economia para mais de 40% no final do século passado. A desregulação dos bancos americanos coincidiu com a ampla introdução em várias partes do mundo de políticas À ESPERA DA SOBREMESA Os “crocodilos” devoraram no ano passado, até meados de dezembro, todos os primeiros-ministros do PIIGS: em fevereiro, o irlandês Brian Cowen; em março, o português José Sócrates; em julho, o espanhol José Zapatero e, em novembro, o grego George Papandreou e o italiano Silvio Berlusconi de abertura aos capitais estrangeiros. Essa combinação – associada ao desenvolvimento da telemática – produziu a chamada globalização, que resultou num entrelaçamento amplo e profundo entre os capitais em todo o mundo, especialmente no setor financeiro. A partir daí, crises que tenham como epicentro um país tendem a espalhar-se por outros com uma rapidez nunca vista antes. É dessa época também o processo de mudanças na China, que, desde o final da década de 1970, iniciara uma série de reformas para inserir-se, de modo peculiar, no sistema capitalista ocidental. Recebeu em seu território plantas industriais de empresas do Ocidente, que se mudaram para lá em busca de maior lucratividade. Com o passar dos anos, a China tornou-se, por assim dizer, um país especializado na indústria, enquanto os EUA, particularmente, foram perdendo força nesse setor. Uma das consequências é que os americanos passaram a gerar anualmente enormes déficits comerciais com os chineses. Em contrapartida, boa parte das reservas acumuladas pela China foi aplicada nos títulos do Tesouro americano. Hoje, os EUA não passariam pelos critérios que Alemanha e França impuseram no acordo aprovado pelo Conselho Europeu no mês passado: o país tem um déficit no orçamento federal que fica em torno de 9% do PIB (para os europeus, o limite é 3%) e uma dívida pública que corresponde a pelo menos 100% do que será produzido neste ano (os europeus só admitem 60%). Nos países ricos do Ocidente, de forma geral, a financeirização gerou as bolhas de consumo, como nos EUA. Em boa parte, é isso que explica a crise europeia: a fase de crédito fácil produziu enormes déficits em conta corrente dos países da Zona do Euro – principalmente com a Alemanha, a grande potência industrial do continente – e os obrigou a buscar financiamento junto ao mercado, ampliando suas dívidas. Isso se agravou com a crise de 2008, pois a enorme ajuda dos governos ao setor privado levou a que, na Europa, boa parte do dinheiro inflasse ainda mais o consumo. Sem poder usar o câmbio para se defender, devido à adoção da moeda única em lugar das nacionais, muitos países europeus viram seu setor industrial minguar – um processo que lembra o que envolve EUA e China. Com o enfraquecimento da indústria, a renda média das populações estagnou ou diminuiu, ao mesmo tempo em que uma pequeníssima camada de muito ricos se formou, aumentando as desigualdades. As decisões tomadas pela maioria dos governos europeus para combater a crise tendem a prejudicar os mais pobres, os que mais necessitam dos serviços e benefícios públicos criados a partir do início da idade dourada e que ganharam a denominação de Estado do Bem-Estar Social. A construção desse sistema se iniciou quando foram lançadas as sementes do que se tornaria mais tarde a UE. E ambos apareceram no período em que, do ponto de vista político, o enorme prestígio angariado pela União Soviética na luta contra as tropas da Alemanha nazista deu aos partidos comunistas na Europa grande força, inclusive eleitoral. A queda do prestígio das ideias comunistas com o desmantelamento do regime soviético permitiu que na Europa fosse dado um impulso decisivo para a criação da UE, entre outras causas pela reunificação da Alemanha. E coincidiu com o início do gradativo processo de desmontagem do Estado do Bem-Estar Social. Na nossa história de gnus, crocodilos e elefantes vimos que mesmo Alemanha e França, às vezes, são encaradas pelos crocodilos do mercado não como exemplares do gigantesco paquiderme, mas como candidatos a gnus. Aparentemente, o único elefante que o mercado respeita são os EUA. É para lá que todos correm nas épocas de crise, mesmo com o Tesouro dos EUA pagando juros baixíssimos em seus títulos quando comparados com os da Europa, por exemplo. O mercado sabe que, apesar dos problemas que enfrenta, a economia americana permanece a mais poderosa do mundo. E o mesmo vale para o papel político e militar desempenhado pelos EUA. Os crocodilos percebem que, apesar de o elefante americano às vezes insinuar traços de gnu, ainda é um elefante. E, como diz o ditado, em rio que tem piranha, jacaré nada de costas. 54 retratodoBRASIL | 7 Economia MONSTRUOSIDADES O acordo para salvar a Europa é monstruoso sob os aspectos constitucional e econômico (não respeita as Constituições locais e vai causar recessão nos países mais pobres) por Armando Sartori APÓS LONGAS HORAS de debates tensos, os chefes de Estado e de governo da União Europeia (UE), que compõem o Conselho Europeu, encerraram as discussões que, muitos esperavam, deveriam produzir algum tipo de solução para a crise da chamada “dívida soberana” dos países europeus. O resultado do encontro de cúpula foi, em linhas gerais, o esperado: os líderes aprovaram a proposta apresentada dois dias antes pela primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, e pelo 8 | retratodoBRASIL 54 presidente da França, Nicolas Sarkozy. O surpreendente foram os detalhes da aprovação, comunicados pelo presidente francês, por volta das 5 horas da manhã de 9 de dezembro, a jornalistas que aguardavam ansiosamente notícias na sede da UE, em Bruxelas. Sarkozy informou que a maioria dos 27 países da união havia concordado com a proposta. Ficaram de fora do acordo, explicou o presidente francês, apenas quatro países: Hungria, República Tcheca, Suécia e... Reino Unido – o qual nem sequer se comprometeu a examinar a proposta, como fizeram os representantes dos outros três, que alegaram que necessitavam consultar antes seus Parlamentos e partidos políticos. A pretensão inicial de Alemanha e França era realizar uma mudança nos tratados que formatam a UE. Mas a ameaça de veto do primeiro-ministro britânico, David Cameron, levou a que a proposta acabasse formalizada como um acordo internacional entre os 17 países que adotam o euro como moeda Reuters Berlim, novembro de 2011: o aperto de mão entre David Cameron e Angela Merkel esconde as grandes divergências que se acirraram um mês depois comum – a chamada zona do euro (ZE) – e outras seis nações que pertencem à UE, mas não ao bloco monetário. Basicamente, os 23 países concordaram em incluir em suas Constituições o compromisso de manter suas contas públicas equilibradas ou superavitárias. Déficits correspondentes a até 0,5% do PIB seriam tolerados, mas os situados entre essa marca e 3% levarão o país correspondente a ser monitorado pela UE. Já o país que ultrapassar os 3% estará sujeito a sanção e até mesmo a ser expulso. Além disso, os signatários do pacto terão de promulgar leis que os obriguem a reduzir a relação dívida pública/PIB a no máximo 60%. E o que é importante do ponto de vista político: não haverá mais a exigência de unanimidade para a aprovação de medidas econômicas – bastarão 85% dos votos. Como os votos são ponderados – isto é, tem mais peso o voto de quem contribui mais para o Banco Central Europeu (BCE) – os 85% serão alcançados caso as seis principais economias da ZE estejam de acordo. Ficou definido também que na próxima reunião do conselho, a ser realizada em março, encerra-se o prazo para que os países obtenham a aprovação de seus Parlamentos para o acordo. Meia hora após a entrevista de Sarkozy, Cameron explicou sua posição à imprensa. Disse que havia tomado uma “difícil, mas correta decisão” em defesa dos interesses britânicos, especialmente os do setor financeiro. “O Reino Unido, em troca de sua concordância com o acordo, solicitou um protocolo específico sobre serviços financeiros, o qual, como apresentado, é um risco para a integridade do mercado interno [da UE]”, explicou o presidente da Comissão Europeia (CE), José Manuel Barroso, dias após o encontro. Segundo a revista semanal britânica The Economist, o governo liderado por Cameron convenceu-se de que a CE, encarregada dos assuntos do dia a dia da UE, tem editado regras prejudiciais à City de Londres, como é conhecida a pequena área da capital do Reino Unido que concentra as instituições do polo financeiro britânico, considerado o maior do mundo em transações com câmbio. O isolamento do Reino Unido, a quarta economia da Europa (as três primeiras são, por ordem de grandeza do PIB, Alemanha, França e Itália), provocou intensos debates nos dois ou três dias posteriores, apesar de a atitude de permanecer à parte da maioria dos países europeus não ser exatamente uma novidade. Basta lembrar que o país – o centro do antigo Império Britânico, tão extenso que se dizia que nele o sol nunca se punha – não faz parte da ZE – mantém sua própria moeda, a libra, e que mesmo a integração à UE tem baixo apoio entre a população britânica: 28% são a favor e 65%, contra, de acor- do com dados da própria UE. Para se ter uma ideia, na Alemanha o resultado é praticamente o inverso (66% a 28%), parecido com o da França (69% a 28%). O Reino Unido parece ser a terra dos “eurocéticos”, como são conhecidos os europeus que descreem das virtudes da integração. E o Partido Conservador, de Cameron, é um ninho de eurocéticos. Por isso, analistas concluíram que uma das razões importantes que o levaram a adotar a posição de isolamento foi evitar o desgaste que teria entre seus próprios correligionários caso aprovasse as proposições franco-alemãs sem exigir nada em troca. O resultado, do ponto de vista dos objetivos defendidos publicamente pelo próprio Cameron, pode ser ruim. “Cameron poderia ter declarado que teria aceitado um tratado aplicável apenas aos membros ou candidatos a membros da região do euro”, escreveu o articulista Martin Wolf, do diário londrino Financial Times. “Poderia ter sugerido que colocaria um tratado equivalente em votação no Reino Unido. Em vez disso, acabou sem salvaguardas para a City e com o status de estar semidescolado da UE, da qual ele quer que o Reino Unido continue membro.” Até mesmo dentro do governo britânico a atitude causou consternação. Isso porque fazem parte da coalização liderada por Cameron quatro membros do Partido Liberal Democrático, que defende uma integração maior do país com o continente europeu. Um dos membros do quarteto é o vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, que classificou a ameaça de veto de Cameron como uma “forte decepção” e “ruim” para o país. A controvérsia em torno da atitude de Cameron, no entanto, serviu para desviar as atenções, diz Wolf, do real significado do que foi aprovado. A crise europeia é complexa: está claramente presente em vários países, que apresentam taxas de crescimento da economia muito baixas – e, em alguns casos, negativas –, déficits e dívidas públicos crescentes, com enormes dificuldades de financiamento. E afeta também o sistema bancário europeu, que é em grande parte detentor dos títulos dessas dívidas. É uma crise da zona do euro, onde, apesar da unificação monetária, há muitos desequilíbrios entre os diferentes Estados. Nesse quadro, a 54 retratodoBRASIL | 9 A crise europeia tem contornos dramáticos, pois o tipo de solução escolhida já levou diversos países ao desemprego e à perda de direitos sociais Alemanha (secundada pela França) é o centro dominante. Em torno dela giram países dependentes, em diferentes graus, de sua economia e muitos deles, por extensão, de sua política. A crise europeia tem contornos sociais amplos e dramáticos, pois o tipo de solução adotada até o momento por vários países tem levado ao aumento do desemprego e à perda de direitos sociais. É nesse contexto que se deve compreender a proposta de Angela e Sarkozy. Wolf diz que a ideia foi apresentada por seus autores como sendo de “união e crescimento”, mas prefere chamá-la de “união de estagnação e instabilidade”. Destaca que a aplicação das regras de penalização dos países que tiverem déficit acima de 3% do PIB será feita pela Comissão Europeia – “um órgão de burocratas não eleitos” – “sobre governos eleitos quando estiverem sob intensa pressão”. “O que a comissão fará se os países ainda assim deixarem de cumprir o tratado? Tomará seu controle? A resposta, agora sabemos, é: sim”. “Isso é uma monstruosidade constitucional”, concluiu. Por essas e outras causas, sinais de dificuldades para a consolidação do acordo começaram a surgir logo a seguir. Segundo o Financial Times, os países da UE que não integram a ZE apresentavam problemas particularmente agudos para que o texto fosse aprovado por seus Parlamentos. “Hoje, não há muito mais que uma folha de papel em branco e mesmo o nome do futuro tratado poderá ainda mudar”, queixou-se, por exemplo, Peter Necas, primeiro-ministro da República Tcheca. Mas dentro da ZE também havia problemas. Na Irlanda, líderes de oposição queriam que o primeiro-ministro, Enda Kenny, convocasse um referendo para a aprovação das medidas acertadas. E na Holanda, mesmo os parlamentares de oposição favoráveis à integração na UE criticaram o governo minoritário do primeiro-ministro, Mark 10 | retratodoBRASIL 54 Rutte, pela forma como agiu na negociação do acordo. Uma das principais questões em debate é se, pelo acordo, a UE poderá policiar os orçamentos nacionais somente dos membros da ZE ou de todos os signatários. Em artigo anterior, publicado no início de dezembro, Wolf discutiu as causas da crise à luz da proposta de Angela e Sarkozy. Ele examinou a situação de vários países da ZE do ponto de vista das relações do déficit público e da dívida pública com o PIB. Concluiu que a aplicação dos limites de 3% e 60%, respectivamente, como definidos na proposta, não seria capaz de indicar com certeza quais seriam os países a entrar em crise. Uma comparação entre a Alemanha – tida como um exemplo de virtude em matéria de austeridade e disciplina nas contas públicas – e os países que compõem o grupo chamado PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha –, tidos como entre os mais problemáticos da ZE, ilustra isso. Dados da Eurostat, a agência de estatísticas da UE, organizados em dois períodos – 1999 a 2007 e 2008 a 2010, antes e após a crise que teve como epicentro os EUA –, mostram que, quando se trata do déficit público, anteriormente a 2008, a Grécia apresentou um índice médio anual equivalente a 4,8% do PIB, enquanto o déficit alemão chegou a 2,2% – resultado muito pior, no entanto, que o obtido pela Irlanda, A ALEMANHA “MEIO PIIGS” Em matéria de déficit e de dívida públicos, o país não é nenhum exemplo de “austeridade” e de “disciplina” 2 0 Alemanha Espanha Grécia Irlanda -10 Itália Portugal Média 1999-2007 Média 2008-2010 Resultados da execução dos orçamentos de governos selecionados da zona do euro, em % do PIB -18 140 Dívida bruta de países selecionados da zona do euro, em % do PIB Média 1999-2007 100 Média 2008-2010 Alemanha Espanha 20 Fonte: calculado a partir de dados da Eurostat Grécia Irlanda Itália Portugal que teve superávit médio de 1,7%. No período posterior, o déficit alemão subiu para 2,5%, enquanto o da Grécia foi a 12,1%. E a superavitária Irlanda tornou-se, espantosamente, deficitária em 17,6%. A aplicação desse critério, portanto, antes da crise americana levaria a situar a Alemanha entre os candidatos a país vulnerável – e a excluir a Irlanda. Quando se trata da dívida pública, ocorre algo parecido. No primeiro período, a Grécia já despontava com um endividamento correspondente a 101% do PIB, um pouco abaixo da Itália, com 106%. Mas a Alemanha, com 63%, superava os outros três membros do PIIGS, todos eles com índice menor que 60%. Na etapa seguinte, o índice grego explodiu, chegando a 129%, enquanto o da Itália foi a 113%, e o de Portugal, a 82%. O da Alemanha atingiu 74%, ainda acima dos de Espanha (51%) e Irlanda (67%). Nos dois casos, portanto, se aplicados os critérios do acordo definido em dezembro, o desempenho da Alemanha não poderia ser considerado de modo algum exemplar em nenhum dos dois períodos. Outra conclusão a que se pode chegar é que, no caso de alguns países analisados e levando-se em conta o desempenho alemão, os altos índices do déficit público e da dívida pública podem ser considerados consequências, e não causas, da crise. Para Wolf, a causa principal é o déficit em transações correntes, que leva em conta os resultados das balanças comercial e de serviços de um país em relação ao resto do mundo. Para os países deficitários, a solução é importar capitais para cobrir o déficit e, com isso, aumentar o endividamento. Os dados da Eurostat mostram que a Alemanha foi sempre superavitária e os demais cinco países, deficitários. Entre 1999 e 2007, o superávit médio anual alemão equivaleu a 2,7% do PIB, enquanto no grupo PIIGS os déficits variaram entre o pequeno 0,5% da Itália e 9,3% de Portugal. No período posterior, o superávit alemão saltou para 5,9%, enquanto o déficit da Itália chegou a 2,8%, o de Portugal a 11,2%, e o da Grécia, a 12%. Wolf conclui que o acordo anunciado em Bruxelas é também uma “monstruosidade econômica”. Ele argumenta que “é extremamente difícil eliminar déficits fiscais” – como se A “ALEMANHA-ALEMANHA” Quando se trata das relações econômicas com os PIIGS, fica claro quem é o mais poderoso Resultado de transações correntes de países selecionados da zona do euro, em % do PIB 6 0 Alemanha Espanha Grécia -6 Irlanda Itália Portugal Média 1999-2007 Média 2008-2010 -12 Fonte: calculado a partir de dados da Eurostat pretende – “em países estruturalmente importadores de capital” – como é o caso dos membros do PIIGS. Isso só poderia ocorrer com “recessão prolongada ou melhorias profundas em sua competitividade externa”, mas, como a competitividade é relativa, se os países deficitários em transações correntes da ZE melhorarem seu desempenho nas contas externas, isso significará que os que exportam capitais dentro da área do euro têm de reduzir seu desempenho – a menos que, segundo Wolf, ocorra uma “melhoria radical no desempenho externo da região do euro como um todo”. “A primeira opção – ele diz – implica a Alemanha ser bem menos Alemanha. A última implica a região do euro tornar-se uma mega-Alemanha.” “Quem consegue acreditar que alguma dessas opções seja plausível?”, ele pergunta. O mais provável, de acordo com Wolf, é que os países vulneráveis passem por recessões de longo prazo. “Para dizer de forma seca, a moeda única significará quedas nos salários e depressões econômicas.” Isso, na opinião do economista James Kenneth Galbraith, da Universidade do Texas, representa um contrassenso para os próprios interesses alemães. Ao diminuir gastos, os demais países da região vão reduzir o superávit em conta-corrente da Alemanha. A contrapartida, segundo ele, estaria na ele- vação das despesas do próprio Estado alemão, que poderia funcionar como um estimulador para todo o continente, Mas como isso se daria sem macular a imagem de austeridade e disciplina fiscal emanada pela Alemanha, que é obrigada a servir de exemplo para os demais, os “indisciplinados”? Segundo o diário Valor Econômico, os países da ZE terão de refinanciar cerca de 1,1 trilhão de euros em dívidas neste ano, “metade das quais são papéis italianos, franceses e alemães que vencem no primeiro semestre”. Até o final de março, Espanha, Itália e Grécia terão de refinanciar algo entre 80 bilhões e 100 bilhões de euros. Isso significa que títulos emitidos pelos governos com vencimentos nesses períodos serão “rolados”, isto é, substituídos por outros, novos. Os governos emitem títulos com prazos variados de vencimento – um ano, três anos, dez anos, por exemplo. Os prazos indicam a data-limite para o pagamento do principal e durante o período o comprador do título – o emprestador ao governo – recebe o correspondente aos juros. Suponhamos que um país emitiu títulos com valor de 100 euros, prazo de pagamento de dez anos e juros anuais de 5%. Se os papéis foram lançados em 2002, devem vencer este ano. Cada título pagou anualmente 5 euros de juros, num total de 50 euros no período. Neste ano, o detentor do 54 retratodoBRASIL | 11 Os primeiros sinais graves do drama da Grécia surgiram em 2009, quando Papandreou descobriu que o déficit público era o dobro do anunciado papel deveria receber o principal. Isto é, os 100 euros emprestados em 2002. Mas, por diferentes razões – para evitar aumento do volume de dinheiro em circulação, por não ter o suficiente para pagar, ou por uma combinação desses e de outros fatores –, o governo prefere rolar a maior parte do principal da dívida que está vencendo. Para isso, lança novos títulos e os troca pelos antigos. Assim, não paga o principal e continua remunerando os juros. O problema, nesses casos, é definir o custo do novo empréstimo. Os detentores dos papéis a serem trocados podem querer uma taxa de juros maior que os 5%. O que complica a compreensão desse esquema é que, como norma, quase ninguém “carrega”, como se diz no jargão da área, um título por prazo muito longo. Por isso existe o mercado secundário, em que os títulos já emitidos e ainda não vencidos são negociados entre os componentes do mercado – bancos centrais, fundos de pensão, bancos comerciais, empresas, entidades privadas e países estrangeiros. Supondo o exemplo anterior, de títulos de dez anos com taxa de juros de 5%, a negociação no mercado secundário se dará em torno do valor de face, isto é, o valor da emissão do papel – 100 euros –, que será pago em seu vencimento. Assim, quando um título for negociado no mercado secundário, o novo comprador pode adquiri-lo, por exemplo, por 95 euros. Se essa aquisição for feita transcorridos cinco anos após a emissão, ele terá expectativa de receber 25 euros por título até o vencimento. O comprador inicial esperava ter um rendimento de 50% (50 euros) ao longo dos dez anos. Como ficou com os títulos apenas a metade desse tempo, teve rendimento de 25% (25 euros). Já o que adquiriu os títulos por 95 euros, embora vá receber os mesmos 25 euros, tem a expectativa de rendimento de 26,3% até o vencimento. Isso revela a lógica tomada como referência nas transações realizadas no mercado 12 | retratodoBRASIL 54 secundário: quanto menor o preço pago pelo título em relação ao valor de face, maior o rendimento. Papéis trocam de mão muitas vezes no mercado secundário. E, portanto, a cada vez podem ocorrer variações nas expectativas de retorno. Quando chega a hora de o governo rolar sua dívida, ele tem de levar em conta tais expectativas. Se, na véspera do vencimento, os títulos de 100 euros estiverem cotados a um preço menor que o valor de face, isso significa que os detentores do papel esperam um retorno maior do novo título – o que leva o governo a elevar a taxa de juros. É essa a questão envolvida no refinanciamento da dívidas europeias neste ano. Os títulos das dívidas de boa parte dos países têm sido negociados a preços baixos no mercado, sinal claro de que o mercado vai querer taxas de juros mais altas. Como tendência, as taxas de juros que remuneram os papéis são maiores quanto maior for o prazo de vencimento – o que implica maior risco para o credor. Mas, é claro, dependendo do país devedor, taxas de juros de curto prazo podem se aproximar ou até mesmo superar as de longo prazo de outro, considerado menos arriscado. Até há três anos, embora houvesse diferença entre os países da ZE, as taxas de juros cobradas estavam mais ou menos alinhadas, pois o mercado não avaliava que houvesse desigualdades muito grandes de risco. Hoje, no entanto, a situação é bem diferente e entre a Alemanha e o PIIGS as diferenças de taxas de juros exigidas pelo mercado se ampliaram muito. Isso torna a situação de Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha muito mais complicada quanto tentarem obter empréstimos novos ou rolar os velhos. O grande temor do mercado é o chamado default, ou moratória, situação em que o país devedor comunica a sua incapacidade de honrar os compromissos nos termos acertados. Frequentemente, nesses casos ocorre uma renegociação dos termos da dívida, em que o país devedor procura tornar as condições de pagamento mais suaves. E comum que o Fundo Monetário Internacional (FMI) participe das negociações, geralmente impondo ao devedor programas que envolvem cortes de despesas públicas e aumento de impostos, além da venda de ativos – isto é, a privatização de empresas e serviços – com o objetivo de gerar superávits fiscais para o pagamento da dívida. O país que chega a uma situação desse tipo, no entanto, passa a enfrentar dificuldades muito grandes para obter novos empréstimos do mercado. Nenhum dos países da ZE chegou oficialmente a esse estágio. Nem mesmo a Grécia, que aparentemente está em pior situação, já que inaugurou a corrente crise no continente. Os primeiros sinais mais fortes das dificuldades da Grécia surgiram em novembro de 2009, quando o recém-eleito primeiro-ministro, George Papandreou, descobriu que o déficit público daquele ano seria equivalente a 12,7% do PIB, mais que o dobro do que fora anunciado pelo seu antecessor, Kostas Karamanlis. No mês seguinte, o governo grego informou que a dívida soberana grega – os compromissos assumidos pelo governo – chegavam a 300 bilhões de euros, o equivalente a 113% do PIB. A partir daí até novembro passado, quando Papandreou renunciou, a Grécia passou por diversos cortes de despesas públicas e obteve ajuda financeira da UE e do FMI, enquanto via o status de sua dívida ser sucessivamente rebaixado pelas agências de análise de risco, o que levou à queda vertiginosa dos preços de seus títulos no mercado secundário. Essa tendência foi reforçada diante do teor das medidas adotadas pelo governo grego, que levaram a economia do país a uma depressão (ver o quadro “O que é a nova tragédia grega”, à página seguinte). Sem crescimento econômico, as receitas públicas caem, o que produz O QUE É A NOVA TRAGÉDIA GREGA Entre 2008 e o final deste ano o PIB da Grécia pode encolher 15% Em artigo publicado em meados do mês passado pelo diário Folha de S.Paulo, o articulista Vinícius Torres Freire apresenta um balanço sombrio da situação da Grécia. Ele diz que o país tornou-se “um triste laboratório das políticas que o pacto franco-germânico quer impor à Europa quase inteira”. Ele afirma que o PIB grego de 2011 deve ser cerca de 6% menor que o de 2010. E que o deste ano, por sua vez, será 3% mais baixo que o do ano passado, “se tudo der certo”. “Em cinco anos recessivos [desde 2008] até o final de 2012, a economia grega terá diminuído uns 15%.” Freire diz que, apesar de o país “viver sob arrocho”, no ano passado as despesas do governo cresceram 3% e a receita caiu 3%. A despesa com o pagamento de juros e com parte do principal da dívida subiu 19%. Com tudo isso, o déficit público estimado para 2011 era de em torno de 10% do PIB. “Com o PIB menor, menos receita e mais déficit, a dívida grega continuará viajando para alturas impagáveis.” O primeiro plano de cortes de despesas foi apresentado pelo governo liderado por Papandreou em fevereiro de 2010, com o objetivo de reduzir o déficit público. A proposta incluía congelamento dos salários de funcionários públicos e aumentos de impostos. Houve protestos e greves em várias partes do país. Em maio, um acordo com o FMI garantiu ajuda de 110 bilhões de euros, a ser desembolsada ao longo de três anos. Em resposta, 50 mil manifestantes protestaram em Atenas. A essa altura, a Standard&Poor’s (S&P) havia rebaixado o status da dívida grega para o junk status. Desde meados do ano passado a crise se acelerou. Em junho, nova avaliação da S&P colocou a dívida soberana grega no nível mais baixo em todo o mundo. Em julho, os líderes da UE concederam mais 109 bilhões de euros como ajuda adicional ao país. E a dívida grega foi renegociada em condições mais favoráveis, com a imposição de perdas aos credores. Foi o que a agência de avaliação de risco Fitche caracterizou na ocasião como um “default seletivo” (moratória parcial). Em outubro, parlamentares gregos aprovaram nova rodada de aumento de impostos e de cortes de salários dos funcionários públicos, em meio a dois dias de uma greve geral que paralisou Atenas, com cerca de 50 mil manifestantes ocupando a praça em frente ao Parlamento (imagem abaixo). A seguir, durante encontro de líderes da ZE em Bruxelas, Merkel e Sarkozy negociaram com credores uma troca de títulos da dívida grega, com o objetivo de reduzi-la à metade. De volta a Atenas, Papandreou anunciou a realização de referendo popular sobre o plano de ajuda. No início de novembro, durante encontro do G20 na França, Sarkozy colocou publicamente em dúvida a continuidade da Grécia na ZE. Papandreou retirou, então, a proposta de referendo. Dias depois, ele anunciou sua renúncia. No dia 11, Luca Papademos, doutor em economia pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e ex-vice-presidente do BCE, após negociações no Parlamento, assumiu seu lugar. AFP/GettyImages a percepção de que não haverá recursos para reduzir o endividamento. Daí para que os detentores dos títulos gregos procurem se livrar desses papéis, baixando os preços, é um passo. Todos os demais membros do PIIGS foram afetados pela crise do endividamento. Eles adotaram medidas de austeridade mais ou menos profundas, que quase sempre incluíram o aumento da idade mínima para aposentadorias. Portugal e Irlanda obtiveram ajuda financeira da UE e do FMI em circunstâncias que definiram claramente a necessidade de corte de despesas e a elevação das receitas públicas, com mais impostos. Mesmo após os governos apresentarem e os respectivos Parlamentos aprovarem esse tipo de medidas, alguns dos países tiveram o status de suas dívidas rebaixado. No caso de Portugal, para o junk status (algo como “categoria lixo”). Com o objetivo de elevar as receitas públicas, além de aumentar impostos, os portugueses devem privatizar a participação estatal em empresas importantes do país. As mais notáveis são a Energias de Portugal (EDP), da qual o governo tem 25% das ações, que teve faturamento de mais de 14 bilhões de euros no último ano fiscal, e a TAP Portugal, de serviços aéreos, com capital 100% estatal e faturamento de mais de 2 bilhões de euros. Para ajudar os países em dificuldade, a UE criou dois fundos. O primeiro foi o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSE, na sigla em inglês), de 440 bilhões de euros. O segundo foi o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM), de 500 bilhões de euros. No total, a soma chega perto de um trilhão de euros. Os membros do Conselho Europeu decidiram que o ESM, previsto para começar a operar em meados do ano que vem, iniciará seu funcionamento em julho próximo. Mas, por pressão da Alemanha, não haverá a junção dos recursos dos dois fundos , pois o EFSE deixará de existir. O Conselho Europeu também decidiu que a UE deve reforçar o FMI com 200 bilhões de euros. O professor e economista paulista Luiz Gonzaga Belluzzo avalia que o volume desses e de outros recursos empregados no combate à crise ainda é pequeno. Em entrevistas e artigos publicados nos últimos meses, ele tem dito 54 retratodoBRASIL | 13 A poderosa Alemanha beneficiou-se de déficits gerados nas transações correntes com países periféricos da zona do euro, onde o crédito era fácil que é preciso de algo mais “parrudo”. Belluzzo tem destacado a relação entre as dívidas dos países e os bancos europeus. Em outubro passado os governos de Bélgica, França e Luxemburgo nacionalizaram o Dexie, grupo financeiro que já havia sido socorrido em 2008 com 6 bilhões de euros. Os resultados do balanço da empresa referentes ao segundo semestre de 2010 registraram prejuízos de 4 bilhões de euros – em consequência, principalmente, da reavaliação, em sua carteira, dos títulos da dívida soberana grega (dívida soberana é a que é assumida por um Estado ou por seu Banco Central). Menos de uma semana antes da nacionalização, o preço da ação da empresa caiu 22% na Bolsa de Valores de Bruxelas, para 1,10 euro (anos antes, a ação chegou a ser negociada a 20 euros). “É um sinal que aponta para a situação mais grave dos bancos”, disse Belluzzo em entrevista concedida na ocasião. O Dexie “mostrou um excesso de exposição em relação às dívidas soberanas. Isso, na realidade, é um padrão dos bancos europeus”. Ele lembra, no entanto, que os bancos americanos também mantêm posições pesadas na Europa, de 600 bilhões a 700 bilhões de dólares. Em outra entrevista, publicada na mesma época, ele expandiu as perspectivas de sua explicação. Disse que a “globalização financeira ajudou a tornar o dinheiro barato nos países desenvolvidos, em especial nos EUA”. “O fluxo de capitais era tão grande que era possível emprestar abusivamente a juros muito baixos.” Segundo ele, com a China produzindo bens manufaturados baratos, o preço dos bens de consumo caiu muito. E, embora não tenha ocorrido elevação da renda da população – no geral, ela estagnou – o aumento da oferta de crédito e a queda dos preços dos bens deram uma sensação de prosperidade. “O sujeito nem tinha um ótimo emprego, mas trocava de carro todo ano.” 14 | retratodoBRASIL 54 Foi em meio a esse processo que os bancos se abarrotaram com os títulos das dívidas dos países europeus. Até porque, em 2010, por exemplo, o Comitê da Basileia de Supervisão Bancária, que coordena as regras de 27 Bancos Centrais de todo o mundo, aprovou entre suas diretrizes preliminares, conhecidas como Basileia 3, uma que recomenda que os bancos mantenham “ativos líquidos de alta qualidade” em quantidades suficientes, principalmente caixa e dívidas soberanas. Falando a Retrato do Brasil dias após o encontro do Conselho Europeu, Belluzzo explica que a crise europeia é um prolongamento da de 2008, desencadeada pela quebra, em meados daquele ano, do banco de investimentos americano Lehman Brothers. A facilidade de crédito gerou bolhas de consumo em alguns países, com grande aumento do endividamento das famílias europeias, que se aproximou do nível do das americanas, considerado muito alto. No caso da ZE, com as facilidades de financiamento, nos países periféricos o aumento de consumo gerou déficits em transações correntes, principalmente com a Alemanha, grande potência industrial da região. De certa forma, diz ele, a Alemanha funcionou para a ZE como a China para os EUA (o déficit comercial dos EUA com a China em 2010 foi de 273 bilhões de dólares). Nos dois casos, destaca, a demanda e a oferta de bens ficaram separadas, em Estados nacionais diferentes. E, assim como a indústria perdeu força nos EUA – muitas empresas transferiram suas plantas industriais para o leste da Ásia, principalmente para a China –, no caso da Europa, enquanto a indústria na Alemanha se manteve dinâmica, enfraqueceu-se nos países ao redor dela. A Espanha, por exemplo, tornou-se um centro industrial sem maior relevância. Esse divórcio, de forma geral, vem provocando graves desequilíbrios. Belluzzo lembra que parte importante da dívida soberana europeia resultou da ajuda dos governos ao setor privado, que fora atingido pela crise de 2008. Outro tanto dessa dívida foi resultado do acúmulo dos déficits em transações correntes, os quais, para serem financiados, tornaram necessários novos empréstimos. Essa dívida, em boa parte, foi adquirida pelos bancos. Diante das avaliações pessimistas a respeito da qualidade dos papéis, isso tem gerado problemas para o funcionamento do sistema bancário. Como um banco não conhece precisamente a situação do outro, todos desconfiam uns dos outros e evitam emprestar dinheiro entre si. Nessas condições, diminui a liquidez e, por consequência, o crédito, o que atrapalha enormemente o funcionamento da economia. Para minimizar o problema, em novembro o Federal Reserve System (Fed, o banco central dos EUA) e outros bancos centrais, inclusive o BCE, anunciaram medidas conjuntas para garantir a liquidez. Dias antes da reunião do Conselho Europeu, o BCE agiu isoladamente no mesmo sentido. Às vésperas do Natal, o BCE emprestou 489 bilhões de euros a 523 bancos, com juros de 1% ao ano e prazo de vencimento de três anos. Desse total, pouco mais da metade foi para rolar dívidas de prazos mais curtos dos bancos com o próprio BCE. Belluzzo defende a aplicação da proposta do magnata húngaro americano George Soros. Em artigo publicado no Financial Times no final de setembro do ano passado, Soros sugeriu uma espécie de intervenção ampla do BCE nos bancos europeus, para fazer com que o sistema volte a funcionar. Belluzzo avalia que o que foi feito até agora deve ajudar os bancos a carregarem os títulos das dívidas soberanas, sem resolver, no entanto, o problema central, que é o da qualidade dos papéis, e sem promover o crescimento econômico. Ele defende uma atuação mais ampla e profunda dos Estados nacio- nais na crise europeia. Em entrevista divulgada em novembro, disse que a intervenção estatal para salvar os bancos foi “brutal” e “correta”. “O que não é correto é, depois da intervenção, você não conseguir impor as novas regras de regulação”, disse. “O Estado tem de impor medidas mais duras de controle desse setor da economia, que é um setor fundamental.” Belluzzo criticou os que veem a intervenção estatal na economia como antidemocrática. “O período de maior efervescência democrática [na Europa] foi o período em que os governos mais interferiram na economia. Foi o período pós-guerra, em que se criou o sistema de proteção social: o Estado intervinha para suavizar a flutuação das economias.” Ele considera uma “simplificação absurda” a ideia baseada na relação mecânica “entre a intervenção na economia e a perda das liberdades civis e políticas”. UNIÃO EUROPEIA, MAIS DE MEIO SÉCULO DE HISTÓRIA Tudo começou com um tratado assinado por seis países para evitar o desenvolvimento da indústria bélica. Há 20 anos foram definidas as primeiras regras para o euro população (em milhões) Alemanha Áustria Bélgica Chipre Eslováquia área (em milhares de km2) PIB (em bilhões de euros) PIB per capita (em milhares de euros) 81,8 357,0 2.476,8 8,4 82,5 286,2 30,3 34,1 10,9 30,3 354,4 32,6 21,6 0,8 9,3 17,3 5,5 49,0 65,9 12,1 Eslovênia 2,1 20,1 35,4 17,3 Espanha 46,2 506,0 1.051,3 22,8 Estônia 1,3 43,4 14,3 10,7 Finlândia 5,4 304,0 180,3 33,6 França 65,1 544,0 1.932,8 29,8 Grécia 11,3 130,7 227,3 20,1 Holanda 16,7 33,8 588,1 35,4 Irlanda 4,5 68,4 156,0 34,9 Itália 60,6 295,1 1.556,0 25,7 0,5 2,6 40,3 79,5 Luxemburgo Malta 0,4 0,3 6,2 14,8 Portugal 10,6 91,9 172,6 16,2 Bulgária 7,5 111,0 36,0 4,8 Dinamarca 5,6 43,1 235,6 42,5 Hungria 10,0 93,0 97,1 9,7 Letônia 2,2 62,3 18,0 8,0 8,4 Lituânia 3,2 62,7 27,5 Polônia 38,2 312,7 354,3 9,3 Reino Unido 62,4 243,8 1.700,1 27,3 Rep. Tcheca 10,5 77,3 149,3 14,2 Romênia 21,4 230,0 121,9 5,7 9,3 410,3 346,5 37,0 Suécia ZONA DO EURO A União Europeia é marcada por contrastes. Entre seus 27 Estados membros há a grande e poderosa Alemanha, o país mais populoso — tem quase 82 milhões de habitantes — e o terceiro em área territorial – 357 mil km2, e a minúscula ilha de Malta, com apenas 400 mil habitantes e 300 km2 de área. A Alemanha também tem o maior PIB – quase 2,5 trilhões de euros –, mas o maior PIB por habitante é do pequenino Luxemburgo, com 79,5 mil euros – equivalente a 2,5 vezes o alemão. Em abril do ano passado, a iniciativa que está nas raízes da UE completou 50 anos. Foi em 1951 que Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo firmaram um tratado para colocar suas indústrias pesadas de carvão e aço sob uma autoridade comum. O objetivo declarado era evitar que qualquer um dos países tivesse facilidades para produzir armas que pudesse utilizar contra os outros associados. Seis anos mais tarde, eles assinaram o tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia (CEE), ampliando então a cooperação para outras áreas econômicas e dando origem ao “mercado comum”, com livre circulação de pessoas, mercadorias e serviços entre os Estados signatários. Foi a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o desmantelamento da antiga União Soviética que deram grande impulso à integração europeia. Uma questão-chave foi a reunificação da Alemanha, com a absorção da parte oriental pela ocidental em 1990. A essa altura a CEE tinha 12 membros. Em 1992 surgiu a União Europeia, com a assinatura do Tratado de Maastrich, que, entre outras coisas, definiu as regras para a futura moeda única. Foi nessa ocasião que ficou estabelecido pela primeira vez que os Estados membros não poderiam ter, em relação a seus respectivos PIBs, déficits e dívidas públicos superiores, respectivamente, a 3% e 60%, o que foi reforçado na reunião do Conselho Europeu de dezembro. Em 1999, 11 dos então 15 países da UE adotaram o euro unicamente para realizar transações comerciais e financeiras (mais tarde a Grécia se juntou ao grupo). Ficaram de fora Dinamarca, Reino Unido e Suécia, que preferiram manter suas moedas nacionais. Em 1º de janeiro de 2002 começaram a circular nos 12 países moedas e notas de euro, que substituíram as moedas locais. Ao longo de seu mais de meio século de existência, a UE construiu um conjunto singular de instituições. O Conselho Europeu, formado por chefes de Estado e de governo, é responsável por definir as prioridades políticas de longo prazo. Fonte: Eurostar As tarefas do dia a dia são de responsabilidade da Comissão Europeia, cujos membros são indicados pelos Estados. A UE tem uma espécie de Legislativo, dividido em duas câmaras: o Parlamento Europeu – cujos membros, eleitos diretamente, representam os cidadãos e são organizados por partidos políticos pan-europeus – e o Conselho da União Europeia – formado por ministros de Estado. A união conta ainda com um Tribunal de Justiça, para assegurar o cumprimento da legislação comum europeia, e com um Tribunal de Contas. Os tratados que regulam a estrutura da UE são firmados por líderes dos países e têm de ser ratificados por seus respectivos Parlamentos. 54 retratodoBRASIL | 15 AFP/Getty Images Entrevista “ISRAEL QUER ME SILENCIAR” Autor de A História Secreta da Al Qaeda, sobre seus três dias com Bin Laden, Abdel Bari Atwan defende a Terceira Intifada e condena a ingerência das grandes potências no mundo árabe por Aleksander Aguilar SEM PAPAS NA língua. Característica inegável que lhe vale, em suas próprias palavras, ser objeto de uma perseguição internacional. Abdel Bari Atwan é o editor-chefe do al-Quds al-Arabi, com sede em Londres e um dos mais influentes jornais árabes no Ocidente. Atwan ganhou fama mundial ao entrevistar Osama bin Laden, numa caverna em Tora Bora, no Afeganistão, cinco anos antes do ataque da Al Qaeda contra o World Trade Center, em Nova York. Em alto e bom som, ele opina sobre o Oriente Médio e principalmente sobre a Palestina, sua terra natal – uma voz que, de tão alta, é quase estridente para os ouvidos sensíveis de diferentes partes do globo com interesses na região. Atwan tornou-se uma das principais figuras públicas da intelectualidade árabe como comentarista nos canais BBC, CNN e Al Jazeera, com críticas afiadas e polêmicas sobre os posicionamentos e papéis de Israel e dos Estados Unidos. Já foi acusado de antissemita, de ter estado na “folha de pagamento” do ex-ditador da Líbia Muammar Kadafi e de apoiar o uso da violência. Seu estilo entusiasmado é percebido em episódios como o da famosa entrevista sobre o programa nuclear iraniano a um canal de televisão do Líbano, em 2007, quando ele disse que “se os mísseis iranianos atingissem Israel, eu juro por Allah que iria a Trafalgar Square (praça central de Londres) dançar com prazer”. Autor do livro A História Secreta da Al Qaeda, no qual conta em detalhes seu encontro de três dias com Bin Laden, Abdel Bari Atwan, juntamente com Tariq Ali (entrevistado por Retrato do Brasil na edição de dezembro) e a jornalista e poeta libanesa 16 | retratodoBRASIL 54 Joumana Haddad, esteve em Olinda em novembro passado como uma das principais atrações da VII Festa Literária de Pernambuco (Fliporto). Na entrevista exclusiva a Retrato do Brasil, foi categórico: “Os palestinos agora deveriam iniciar a Terceira Intifada”. Atwan nasceu no campo de refugiados Deir al-Balah, na faixa de Gaza, para onde seus pais tiveram de ir depois de expulsos da então região palestina de Isdud, hoje área do maior porto israelense e rebatizada de Ahsdod. Seus pais fizeram companhia aos mais de 800 mil palestinos forçados a deixar suas casas pela operação de limpeza étnica do Exército de Israel, entre 1947 e 1949. Desde o ano 2000 ele está proibido pelas autoridades israelenses de entrar em territórios palestinos. “Israel quer me silenciar”, ele diz. Ainda assim, defende meios pacíficos para solucionar a questão Israel-Palestina. “Nós temos de aprender a viver juntos em paz numa sociedade multicultural e em um único Estado secular democrático. As comunidades judaicas e árabes compartilham o mesmo espaço em Londres, o Apartheid terminou na África do Sul; há espaço para todos também na Palestina.” Já a recente iniciativa na Organização das Nações Unidas (ONU) para o reconhecimento de um Estado próprio é, segundo Atwan, uma aposta equivocada da Autoridade Palestina, que decepcionou seu povo. Ele ainda relaciona os eventos da Primavera Árabe com a Questão Palestina e critica: a contínua ingerência das potências ocidentais no mundo árabe, em nome das chamadas intervenções humanitárias, impede que a região possa por si só resolver seus problemas. AFP/Getty Images 54 retratodoBRASIL | 17 RETRATO DO BRASIL Existe uma “velha ordem” no mundo árabe que foi sacudida após a série de eventos e mudanças ocorridos na região? ABDEL BARI ATWAN É uma revo- lução para dar fim ao sofrimento árabe. Se você quer compreender o que está acontecendo, deve entender a palavra “humilhação”. Os árabes são humilhados primeiramente por seus governantes e, em segundo lugar, pelas potências ocidentais. Isso atingiu um ponto em que não é possível suportar mais, e os árabes querem colocar um fim tanto nessa humilhação interna, que é a corrupção, a opressão e a falta de liberdade, como na humilhação externa que se viu na invasão do Iraque, do Afeganistão, na intervenção na Líbia e no apoio a Israel. Isso tudo somado é insuportável, e por isso os povos árabes querem agora o respeito dos seus governantes e das potências ocidentais. RB Então, os povos árabes, basicamente, estão se levantando contra as intervenções ocidentais? ABA O Ocidente apoiou esses ditadores que estão hoje no poder, eles foram postos lá em nome da estabilidade. As políticas do Ocidente no Oriente Médio são baseadas em dois pontos: obter petróleo barato e fazer de Israel uma superpotência. É por isso que eles quiseram esses ditadores governando, apesar dos prejuízos à democracia, é por isso que eles amavam Mubarak no Egito, ou ainda amam o rei da Arábia Saudita. Ter esses atores no poder impede a oposição contra Israel e garante que o petróleo seja ofertado às potências ocidentais, e não à China, por exemplo. RB Mas, se o principal interesse do Ocidente é manter o status quo no Oriente Médio, já que isso é bom para os negócios, como você analisa o que ocorreu na Líbia? ABA Simplesmente um caso do que servia, mas deixou de servir. Kadafi tornou-se muito instável, um “menino mau”, causando muitos problemas ao Ocidente. Essas potências do Ocidente queriam se livrar dele e usaram as revoltas internas como desculpa. A intervenção ocorreu para garantir que o novo regime tivesse boas relações com o Ocidente. Foi uma intervenção barata e serviu como um ensaio para as armas e os planos militares para bombardear a Síria ou o Irã. Foi um exercício militar. RB Mas a Síria seria um alvo provável para uma intervenção militar, em função da sua posição geopolítica? ABA Não é um alvo provável por várias razões. A Síria tem fronteiras com Israel e um forte Exército leal ao regime, além de ter apoio da Rússia, da China, do Irã e do Hezbollah, no Líbano. A Síria tem muitos amigos e muitos grupos minoritários com divisões sectárias internamente. É como uma caixa de Pandora: você abre e pode não saber como controlar o que havia dentro. Israel sofreria se houvesse uma guerra na Síria. É por isso que o Irã é um alvo mais factível, já que há a des- Reprodução Atwan e Bin Laden, 1996: três dias de conversa sobre a Al Qaeda nas montanhas afegãs culpa do programa nuclear. Nos últimos dez anos, o Iraque e a Líbia foram os dois principais países-alvo do Ocidente, porque eles possuem petróleo. A Síria não tem petróleo e tem muitos amigos. Eu acredito que eles irão atacar o Irã e logo a Síria indiretamente. RB E como todo esse cenário decorrente da Primavera Árabe se relaciona com a questão palestina? ABA A questão palestina é parte da humilhação infligida aos povos árabes pelas potências ocidentais. A primeira coisa que ocorreu no Egito depois da Primavera Árabe foi uma mudança na sua relação com Israel, pois agora o país não é mais um servo dos interesses dele, como costumava ser durante o regime de Mubarak. E a mesma coisa irá ocorrer em outras partes. A Primavera Árabe irá colocar pressão sobre Israel, que terá de dar mais atenção às resoluções internacionais e pensar duas vezes antes de obstruir o processo de paz, como faz com os assentamentos. O atual cenário pode enfraquecer a posição de Israel, pois há hoje uma revolução nas comunicações, na mídia. Já não é tão fácil esconder fatos, em função do amplo acesso à internet e ao uso de iPhones, Twitter etc. Mais de 50% da população do mundo árabe tem menos de 24 anos. É uma população jovem e com fome de informação e respeito que não pode mais ser enganada. RB A iniciativa da Autoridade Palestina apresentada à ONU em setembro passado para o reconhecimento internacional de um Estado palestino tem amplo apoio da Assembleia Geral da organização, mas enfrenta as divisões do Conselho de Segurança e o veto já declarado dos Estados Unidos. Qual é a sua opinião a respeito? ABA Os palestinos foram enganados, ludibriados. No passado, o povo palestino pegou em armas, fez uso de meios militares para resistir, e o Ocidente dizendo: “Vocês não podem seguir assim, busquem rotas pacíficas, sentem para negociar, conversem com seu inimigo”. Os palestinos então aceitaram a ideia, aprovaram o plano de partilha que permitiu aceitar Israel e foram para a Cisjordânia para formar a Autoridade Palestina (em 1993, sob comando de Yasser Arafat), na esperança de que ela pudesse guiá-los para a criação de um Estado. Mas, depois de 18 anos de negociações, o que aconteceu? Nada. Mais assentamentos judeus e mais 18 | retratodoBRASIL 54 humilhação contra o povo da Palestina. Aquele processo de paz chegou a um triste fim. Agora, Mahmoud Abbas quer se proteger, quer fazer alguma coisa para mascarar esses anos de negociações infrutíferas e tenta conseguir reconhecimento para um Estado que não existe... Os palestinos ficaram chocados, porque se sabe que mesmo um gesto simbólico como este não seria permitido, já que os Estados Unidos usarão seu poder de veto. Os americanos não querem um Estado independente na Cisjordânia e na faixa de Gaza, que é apenas 22% da Palestina histórica, e não permitirão nem mesmo essa eventual vitória moral. Depois de 18 anos de negociações, nós somos premiados com o veto estadunidense e com mais assentamentos na Cisjordânia. Abbas está humilhado e não sabe o que fazer. RB Então, a iniciativa diplomática foi um equívoco completo? ABA Não, foi um bom teste para os Esta- dos Unidos e para as intenções ocidentais, no qual eles falharam. E é bom que as pessoas que jogam com o processo de paz percebam que estão fazendo a coisa errada. O que deveria ocorrer agora é a desobediência civil, deveria haver resistência à ocupação, os palestinos não devem acreditar no Ocidente. RB Você está sugerindo que outra forma de luta seja iniciada? ABA Os palestinos deveriam iniciar agora uma Terceira Intifada. Este é o momento. O processo de paz falhou completamente, é preciso uma Terceira Intifada. A ocupação israelense é a mais barata do mundo porque é subsidiada pelos americanos e pelos europeus. Os palestinos devem dizer “basta”, pois, se não é possível obter nem um Estado simbólico, como acreditar que se mobilizarão pela criação de um Estado de verdade? A Palestina deve regressar à resistência, porque esse é o único caminho. E o levante é essencial, pois o povo palestino não pode viver como mendigo para sempre, dependendo de ajuda das Nações Unidas. Israel deve se responsabilizar pela ocupação. RB O Quarteto para o Oriente Médio (grupo mediador das negociações formado por Rússia, Estados Unidos, Nações Unidas e União Europeia) acredita que um acordo possa ser atingido até o final de 2012. Se mesmo com mediação internacional há “ A questão palestina é parte da humilhação infligida aos povos árabes pelas potências ocidentais. A primeira coisa que ocorreu no Egito depois da Primavera Árabe foi uma mudança na sua relação com Israel, pois agora o país não é mais um servo dos interesses de Israel, como costumava ser durante o regime de Mubarak. E a mesma coisa irá ocorrer em outras partes. A Primavera Árabe irá colocar pressão sobre Israel, que terá de dar mais atenção às resoluções internacionais e pensar duas vezes antes de obstruir o processo de paz, como faz com os assentamentos. O atual cenário pode enfraquecer a posição de Israel, pois há hoje uma revolução nas comunicações, na mídia. Já não é tão fácil esconder fatos, em função do amplo acesso à internet e ao uso de iPhones, Twitter etc. ” “ O Ocidente apoiou esses ditadores que estão hoje no poder, eles foram postos lá em nome da estabilidade. As políticas do Ocidente no Oriente Médio são baseadas em dois pontos: obter petróleo barato e fazer de Israel uma superpotência.Ter esses atores no poder impede a oposição contra Israel e garante que o petróleo será ofertado às potências ocidentais, e não à China, por exemplo.” impasse, seria plausível supor que Israel, pressionado apenas pela luta dos palestinos, poderia tomar ações unilaterais em prol da paz? ABA O quarteto falhou. Eles pediram aos palestinos que fossem cumpridas suas obrigações no roadmap (“mapa da estrada”, plano de paz desenhado pelo quarteto em 2002), isto é, que os palestinos assegurassem que não haveria ataque contra os israelenses, e isso foi feito para que se pudessem seguir as negociações. Os palestinos atuaram como polícia para proteger os cidadãos israelenses nos assentamentos nos últimos 18 anos sob a chamada Segurança Coordenada. Agora não é mais possível manter isso, porque Israel nunca sequer se comprometeu em fazer sua parte. Nem mesmo congelar os assentamentos por três meses, apenas por três meses, para que houvesse uma chance de seguir com a negociação. O quarteto nunca fez pressão sobre Israel. A comunidade internacional não ouve os palestinos. A solução é o levante para tornar essa ocupação bastante cara para Israel e chamar a atenção da comunidade internacional. Dessa forma, a Palestina poderia voltar a negociar numa posição mais forte, e é a única forma de retificar o processo de paz, colocando pressão sob Israel. Se os financiadores do roadmap não o fazem, os palestinos devem pressionar os israelenses, através de meios pacíficos. RB Meios pacíficos? ABA Sim, mas também é direito da Pa- lestina usar a resistência se for necessário. Quando da invasão do Iraque, o próprio George Bush Júnior disse: “Se eu fosse iraquiano e meu país fosse ocupado, eu resistiria carregando armas”. Por que a Palestina deveria ser uma exceção? Por que no nosso caso é um pecado fazer uso da luta armada? É inacreditável como a Palestina é demonizada pela mídia com esse estereótipo de terrorista. Nós não somos terroristas, nós queremos nossas terras de volta, queremos nosso país de volta. Isso é nosso direito. 54 retratodoBRASIL | 19 Ag. O Globo Política O SURTO DO PM NO PALÁCIO DO BURITI Cenas vistas do corredor por câmera de segurança: 1) Pouco antes das três da tarde do dia 7 de dezembro. João Dias, de camiseta branca, conduzido por um recepcionista, e seu auxiliar Dêmis, com bolsa nas costas, no primeiro plano, vão em direção à sala onde funciona a Secretaria de Governo, no Palácio do Buriti, em Brasília; 2) da sala na qual João Dias e Dêmis entraram, sai Paula Araújo para o corredor, A incrível história do PM João Dias, segunda parte O ALVO, DESDE SEMPRE, F O campeão de kung fu que invadiu o Palácio do Buriti e apresentou em sua defesa laudo psiquiátrico pode até ser maluco, mas é parte de uma trama contra o novo governo do Distrito Federal por Antonio Carlos Queiroz e Raimundo Rodrigues Pereira colaboraram Lia Imanishi, Sônia Mesquita e Tânia Caliari 1. O surto do PM João Dias parece ser de pura loucura. Mas nela há um método AS IMAGENS GRAVADAS pela câmara de segurança de um dos corredores do Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal, mostradas acima, contam parte da história. Eram quase três horas da tarde da quarta feira, 7 de dezembro, quando o policial militar e ex-campeão de artes marciais João Dias, pivô das 20 | retratodoBRASIL 54 denúncias que derrubaram o ministro do Esporte Orlando Silva, chegou à sala de Paulo Tadeu, secretário de Governo. Estava acompanhado de um funcionário seu, Dêmis Abreu, que trazia a tiracolo uma bolsa verde de nylon. O que aconteceu a seguir é contado por Paula Araújo, que trabalhava na sala. Paula, uma morena clara de cabelos longos, é secretária-executiva da Secretaria de Governo. Quando o PM chegou, falava ao telefone. Tinha ao seu lado Niédja Alves, também da equipe de Tadeu. João Dias não tinha hora marcada. Paula nunca o havia visto por ali, mas já o conhecia, por ser da mesma localidade que ela, a cidade-satélite de Sobradinho. E por tê-lo visto várias vezes na TV por conta da intriga da queda do ministro Orlando Silva, Ag. O Globo Reprodução do You Tube chamando a segurança; 3) três seguranças chegam, vão entrar na sala da Secretaria de Governo para a qual Paula os convocou; 4) Niédja Alves cai no corredor, arremessada da sala por João Dias; 5) No primeiro plano, o PM que estava saindo de cena, agarrado por seguranças, se volta para trás, quer voltar. Demis acompanha a cena. João Dias é contido. Paula, que também está sendo contida, é vista mais ao fundo. te E, FOI AGNELO QUEIROZ do Esporte. “É a senhora a Paulinha?”, perguntou o PM. Ela corrigiu: “Paula.” E acrescentou: “O que o senhor faz aqui?” “Quero falar com o secretário Paulo Tadeu”. “Não vai ser possível, ele está numa reunião fora, com o governador.” “Então, quero falar com o chefe de gabinete.” “Pode falar, sou eu mesma”, disse Paula. João Dias, então, pegou a bolsa que estava com Dêmis e jogou seu conteúdo na mesa de Paula. Depois se foi ver: eram 159 mil reais, em notas de 20, 50, 100 e algumas moedas. “Diz para o bandido do seu deputado que eu não estou à venda e que ele pode ficar com o dinheiro sujo dele”, teria dito João Dias. “Bandido é o senhor! E tira esse dinheiro sujo da minha mesa. O senhor é uma vergonha para a corporação policial.” “Nega vadia, vagabunda”, teria dito João Dias. Voltando à câmara do corredor, se vê Paula chamando a segurança e voltando para a sala com três homens. Logo a seguir, se vê Niédja sendo jogada para fora da sala. E, pouco depois, o PM ser conduzido pelo corredor do Palácio, não sem antes ter tentado voltar para atingir Paula. Ela gritava: “Bandido! Vagabundo!” E ele, em resposta: “Eu sei onde você mora, sua piranha.” Na tentativa de escapar para alcançar Paula, João Dias quebrou o dedo de um segurança, o sargento da PM Manoel de Souza Silva, que tentava contê-lo. Depois, foi levado à 5ª Delegacia de Polícia de Brasília para depor sobre o incidente na secretaria. E, mais tarde, à Corregedoria da Polícia Militar, por conta da agressão ao sargento. Nos dois depoimentos, contou várias histórias. Entre elas: • que procurou Paulo Tadeu para devolver-lhe 200 mil reais que teriam sido deixados na roda de um veículo seu, em sua casa, no domingo 4 de dezembro por uma comitiva de pessoas, entre as quais estavam Ricardo Tadeu, irmão do secretário, e a própria Paula Araújo. O grupo teria dito a ele que o dinheiro era para “amenizar uma tensão política”. • que só não foi devolver o dinheiro na segunda porque se encontrava em tratamento psiquiátrico na Policlínica Militar naquele dia e no dia seguinte (durante o depoimento, tomou um comprimido, que seria parte desse tratamento, na frente do delegado). • que teria repassado, de forma parcelada, ao deputado Paulo Tadeu, para pagamento de campanhas do Partido dos Trabalhadores de 2006, 1 milhão de reais. • que o coronel Rogerio Leão, chefe da Casa Militar do governo Agnelo Queiroz, teria dado a ele, em mãos, na sua residência, “uma quantia de 250 mil reais para pagar um documento confeccionado por Daniel Tavares”, que delatou 54 retratodoBRASIL | 21 um suposto pagamento de propina de 5 mil reais para Agnelo Queiroz quando ele foi diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os 250 mil teriam sido para comprar a retratação de Daniel Tavares. João Dias conta muitas histórias, e elas têm pouca coerência. A campanha que desencadeou com uma delas, na revista Veja em meados de outubro, e que derrubou o ministro do Esporte Orlando Silva, foi, como dissemos, na primeira parte desta história, uma criação alimentada pela grande mídia a partir de pequenos fatos verdadeiros e de falsos testemunhos. Esses testemunhos são tanto de João Dias quanto de dois outros personagens, Michael Alexandre Vieira da Silva e Geraldo Nascimento de Andrade, a serem apresentados num contexto mais amplo nesta segunda parte de nossa narrativa. O fato de João Dias ter jogado dinheiro no Palácio do Buriti pode ser visto como loucura e também com ironia. Quando RB o procurou pela quarta vez, em meados de dezembro, viu, na garagem e em frente à sua casa, cinco carros, dos quais quatro de grife: um Camaro, uma BMW 231, uma Hilux e um Peugeot esporte. Sua aparente loucura também deve ser vista de modo mais amplo. Como disse Polônio sobre Hamlet, na peça de Shakespeare: “Embora seja pura loucura, há método nela”. Suas histórias alimentam uma parte da mídia e da opinião pública. Paula Araújo, a secretária-executiva agredida verbalmente por ele, disse a RB: “Tenho 43 anos, trabalho desde os 7 anos de idade, comecei em casa de família. Sou uma militante do PT. Trabalho com o Paulo Tadeu há 14 anos. Ele me chamou de vagabunda, nega vadia. Disse para a polícia que eu fui à casa dele levar 200 mil reais. Agora as pessoas ligam para mim para saber se eu fiz isso. Ele roubou milhões do Ministério do Esporte e posa de santo. Os jornais colocam o que ele diz como se fosse verdade. Ele diz que tem 22 câmeras na casa dele. Por que não mostra as cenas em que eu apareço, levando dinheiro? Ele tem que provar. Será que ninguém percebe?” Trinta e nove anos, campeão brasiliense de kung fu, líder de entidades ligadas a esse esporte em Sobradinho, João Dias entrou na política pelo PCdoB, partido pelo qual foi candidato a deputado distrital, como já dissemos. Nessa época conheceu o atual governador, Agnelo Queiroz, então candidato a senador do DF pelo 22 | retratodoBRASIL 54 mesmo partido. Com relativa popularidade, João Dias não se elegeu, mas foi o primeiro na lista dos comunistas, com mais de 4.000 votos. Na eleição de 2010, João Dias apoiou Agnelo, então candidato a governador pelo PT. E, tudo indica, esperava que, com Agnelo no governo, seus problemas estivessem resolvidos. Não são problemas pequenos. O governo federal está movendo contra ele ações em dois campos. No civil, para que devolva 4,7 milhões de reais que teria desviado de dois convênios feitos com o Ministério do Esporte. No campo criminal, é acusado de formação de quadrilha, apropriação indébita, peculato e outros crimes. Com dinheiro desviado dos cofres públicos, é suspeito de ter comprado a ampla casa onde vive, duas academias de ginástica e os carros de luxo que ostenta. No entanto, durante mais de cinco anos, a partir de começo de 2006, quando o ministério passou, rigorosamente – como mostraremos com detalhe no próximo capítulo – a lhe cobrar os serviços prometidos nos convênios, João Dias agiu como se Agnelo tivesse a capacidade de fazer o milagre de perdoar suas dívidas. E, desde 2008, talvez até sem se dar conta disso completamente, João Dias foi se envolvendo cada vez mais numa trama para destruir a figura política de Agnelo Queiroz. Desvendar essa trama é o objetivo deste artigo. 2. Que loucura! De apenas dois convênios foram desviados 4,7 milhões de reais São nove horas da manhã do dia 1º de dezembro e RB procura João Dias mais uma vez. O repórter toca a campainha de sua residência, no condomínio Vivendas Bela Vista, no Grande Colorado, um bairro de Sobradinho. Vê uma criança através do vidro escurecido da sala da casa, cheia de cômodos, arranjados elegantemente, como uma armação de cubos, em dois andares. João Dias mora ali com a mulher e a filha RB encontra Célio Soares, que diz ter visto o ministro receber o milhão na garagem. Célio ri. Parece gozar de suas horas de fama pequena. E está na casa, no momento. Mas não falará com a revista. Promete falar depois e fica com o celular do repórter. Quem diz isso é um jovem alto de rosto redondo. “Posso falar com você, então? Como é seu nome?”, pergunta o repórter. “Célio”, é a resposta. “Célio? O que apareceu na revista Veja?”. O repórter pergunta, referindo-se a Célio Soares, citado na revista Veja em meados de outubro dizendo que entregou ao então ministro Orlando Silva um milhão de reais na garagem do Ministério do Esporte. Célio parece alegre com seus dias de fama. Sorri e confirma. Mas também não dá entrevista. No mesmo condomínio, RB encontra Ronaldo Oliveira, professor de educação física, que assinou, como responsável pela Associação João Dias de Kung Fu e Fitness (AJDKF), um segundo convênio com o Ministério do Esporte. Ronaldo é um tipo atlético, pequeno. Acha que João Dias tem “genialidade empresarial”, daí as propriedades que tem – carros, casa, academias. Diz que quase teve um infarto com a matéria publicadas pela semanal IstoÉ, de 2 de novembro. Nela Oliveira foi colocado num diagrama de um “Esquema Agnelo”, como o homem que “registrava ONGs” para o “ministro do Esporte” Agnelo Queiroz, “o chefe que tinha o poder de determinar que organizações se beneficiariam dos programas do ministério recebendo dinheiro público”. Fica satisfeito quando o repórter lhe diz que leu a matéria de IstoÉ e a considera um absurdo. Ronaldo tenta convencer o repórter de que sua parte no segundo convênio se limitou a “quatro ou cinco assinaturas” em documentos de pouca importância. Não consegue. Nas mais de mil páginas do convênio 211/2006 que a AJDKF assinou com o ministério, ele é a figura principal. Certamente Oliveira funcionou como um preposto de João Dias, mas assinou muitas sem muito sucesso, transferir para o clube parte do atendimento a boa parte das 10 mil crianças que seus convênios pretendiam atingir. A diretora de uma escola próxima, onde o convênio funcionou também precariamente, diz que o veto deve ter tido motivos políticos. A secretária da Educação na época, Eurídes Brito, era do grupo Roriz, contrário ao de Agnelo Queiroz, ao qual João Dias se ligou. Depois, na campanha de 2010, a secretária caiu em desgraça por ter sido vista recebendo um pacote de notas em vídeo feito e divulgado por Durval Barbosa, o mesmo que detonou o governador do DF José Roberto Arruda, preso e afastado do governo depois de filmagem e divulgação semelhante. RB procurou também, de várias formas, Eduardo Tomaz, apontado como o autor de uma entrega de 256 mil reais a Agnelo Queiroz, a mando de João Dias, de quem seria o braço direito. Na casa onde ele morou há até pouco tempo, sua avó, dona Rosa, conta a vida de Eduardo Tomaz. Menino pobre, de pai alcoólatra, não tem um tostão, vivia em sua casa de favor e hoje estaria trabalhando em uma fazenda. A SEDE DA FEBRAK, NO PORÃO DA CORAL RIACHO TINTAS As letras gigantes – o J, de João, e o D, de Dias, continuam assinalando a porta de entrada do local no qual funcionou, por pouco tempo, a sede principal da Federação Brasiliense de Kung Fu, criada pelo PM João Dias, no seu passado de campeão RB procurou seu advogado. Ele disse que Tomaz não dá mais entrevistas a ninguém. O diário O Globo disse recentemente que Eduardo Tomaz nega ter entregado dinheiro ao atual governador do DF. Afinal, Tomaz entregou ou não dinheiro a Agnelo? A polícia não fez nenhuma investigação séria para dirimir dúvidas como essa. Por que a polícia não ouviu Eduardo Tomaz a respeito, visto que até chegou a prendê-lo por cinco dias? Por que não fez uma acareação dele com Geraldo Nascimento Andrade, mantido sob regime de proteção de testemunhas? Mais adiante nesta história, o trabalho da polícia será analisado. Agora, resumiremos as conclusões da leitura das mais de 2 mil páginas dos dois convênios assinados pela Febrak e pela AJDKF com o Ministério do Esporte, onde estão registrados todos os passos do processo pelo qual as entidades comandadas por João Dias retiraram dinheiro do Ministério do Esporte para executar programas que, essencialmente, não realizaram. O primeiro convênio, o 26/2005, é o da Febrak, uma instituição criada em 1996, de artes marciais. Com a Febrak e o apoio de oito escolas de Sobradinho, cidade-satélite de Brasília, João Dias conseguiu 2,16 milhões de reais em verbas federais, do Programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. Hoje o salão, embaixo da revendedora de tintas local, está fechado Luiz Antônio dezenas de vezes nessa condição, e a Justiça Federal está à sua procura. O repórter vai então a Sobradinho, onde passa o dia. Visita o que foi a sede central da Febrak – Federação Brasiliense de Kung Fu – , núcleo principal no qual se desenvolveram as atividades do Programa Segundo Tempo, do convênio firmado pela entidade presidida por João Dias com o Ministério do Esporte. Ela está fechada e desativada há mais de três anos, desde que o PM teve seus projetos reprovados pelo ministério. Funcionava num porão do prédio onde hoje está a firma Coral Tintas. Depois de uma rampa lateral, se vê o portão de entrada da sede, pintado de vermelho vivo, no qual se destacam em letras enormes as iniciais JD. RB visita depois o clube da cidade, o Sodeso, ao pé de uma bela colina de topo chapado, extensa, coberta de verde. João Dias alugou parte das instalações do clube depois que, em abril de 2006, já candidato a deputado distrital pelo PCdoB, a Secretaria Regional da Educação do governo do Distrito Federal proibiu a realização de parcerias do programa Segundo Tempo com as escolas locais. O PM quis então, 54 retratodoBRASIL | 23 ancorada na fama de João Dias, lutador de kung fu e representante do Brasil em algumas disputas internacionais entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. O convênio começou a ser preparado em 2004, quando João Dias assinou acordos de parceria com oito escolas de Sobradinho. Pelos acordos, as escolas aceitaram ceder suas instalações para atividades financiadas pelo Ministério do Esporte, para crianças carentes. Detalhe crucial: o ministério exigia que as atividades ocorressem no turno fora do período escolar, daí o nome da iniciativa: Programa Segundo Tempo. No convênio 26/2005, o ministério entrou com 2,16 milhões de reais, desembolsados em duas parcelas. Uma, de cerca de 1,3 milhão de reais, a 23 de junho de 2005, uma semana depois da assinatura da proposta, e outra com o restante, seis meses depois. O dinheiro deveria ser gasto, principalmente, em alimentação para as crianças (1,2 milhão), compra de material esportivo (580 mil) e pagamento de coordenadores de núcleo e monitores (380 mil). A parte de recursos próprios a serem colocados pela Febrak era de 445 mil reais. Metade dessa contrapartida era contabilizada como o equivalente aos aluguéis das sedes da Febrak, que foram usadas no projeto: a maior, já descrita, e uma segunda onde funcionava uma das academias de ginástica de João Dias, no centro comercial de Sobradinho. A outra metade corresponderia à doação de 1500 kits com equipamentos de proteção em lutas para as crianças e para monitores a serem recrutados pela Febrak. No dia 27 de março de 2006 surgiu a primeira denúncia, no Correio Braziliense, o principal diário da capital federal, de que o convênio não funcionava. As crianças não receberiam lanches e haveria muito menos crianças do que se prometia. E, pior, o programa não funcionaria no contraturno escolar, regra básica do Segundo Tempo. Nesse mesmo dia da publicação da matéria no jornal, em nota que está na documentação do convênio, o então ministro Agnelo Queiroz cobrou da sua equipe resposta da Febrak às acusações e uma fiscalização “completa e urgente”. Uma vistoria de dois dias foi feita em todos os núcleos, nos dias 29 e 30 de março. E o relatório dos encarregados da inspeção é contundente: dos 10, três não funcionavam, nos restantes, o número de alunos era menos de um terço do programado. E as atividades não eram feitas no contraturno escolar, desrespeitando a condição essencial do programa, que é uma espécie de complementação do Bolsa Família e se faz fora 24 | retratodoBRASIL 54 do turno escolar, para que os beneficiados tenham mais uma refeição garantida, além da merenda recebida na escola. Além disso, a Febrak não tinha entregado os materiais de proteção que prometera. Se a fiscalização tivesse se estendido também à conta aberta na Caixa Econômica Federal para o exclusivo pagamento das despesas programadas no convênio, veria o descalabro da administração do dinheiro público. Por exemplo: do 1,31 milhão da primeira parcela depositados pelo Ministério do Esporte nessa conta, a 27 de junho de 2005, no dia seguinte só restavam 5 mil e 14 reais. Coisa parecida aconteceu com os 730 mil reais depositados a 16 de dezembro. Cerca de 580 mil reais dessa parcela saem de uma só vez, a 18 de abril de 2006, quando o tempo de realização do convênio já estava esgotado. Após a fiscalização dos núcleos feita pelo ME no final de março de 2006, João Dias e seus prepostos, como Eduardo To- Com a denúncia, Agnelo cobrou fiscalização “completa e urgente”. E JD foi intimado a devolver o dinheiro maz e Ronaldo Oliveira, através de cartas ao ministério e da mobilização de algumas entidades, que elogiam o programa a despeito de seus defeitos, se empenham em conseguir um adiamento para realizar o que haviam prometido. João Dias faz um acordo com o Clube Soveso e propõe realizar atividades com 6.500 alunos nas suas instalações. Os outros 3.500 seriam divididos entre a sede central da Febrak e outros dois locais, um deles numa instituição da igreja Assembleia de Deus na cidade. No dia 14 de abril, o ME indefere o pedido de prorrogação do prazo. Para completar, no dia 17 de abril sai a decisão da Superintendência Regional do Ensino de Sobradinho dizendo que “está terminantemente proibida a implantação do Programa Segundo Tempo nas escolas”. No início de maio de 2008, o ME dá 60 dias à Febrak para a prestação de contas. Em meados de junho, em nome da Febrak, Tomaz pede mais prazo para fazer isso. E em novembro, como não recebera a prestação de contas, o ME pede que o nome da Febrak seja lançado no Siafi, sistema de contas do governo federal, como inadimplente. No final do ano seguinte, em 2 de outubro de 2007, Tomaz ainda está pedindo prazo para a prestação de contas. Duas semanas depois o ME ameaça a entidade com uma Tomada de Contas Especial. Isso significa passar a cobrança da dívida para as instâncias legais do governo, em última instância, para o Ministério Público. Significa também abrir a possibilidade de uma ação penal contra os administradores do dinheiro. No final do mês de outubro de 2007, a Febrak apresenta finalmente a prestação de contas. Diz essencialmente que tudo foi realizado a contento. Diz até mesmo que, embora não tenha “parâmetros para medir e evidenciar estatisticamente o impacto”, “é palpável a redução dos índices de delinquência juvenil nos locais onde funcionam os núcleos de esportes”. Mesmo para um leigo, a fraude nas contas é evidente. A principal manipulação é com a despesa essencial do convênio: a alimentação das crianças. Ela praticamente não aconteceu. Grande parte das atividades, com as poucas crianças que participaram, foi no turno escolar, no qual elas recebem a merenda das escolas. A Febrak, como prova a perícia policial feita nas notas fiscais em 2009, depois de eventos de natureza policial e política que serão descritos mais adiante, comprou documentos de empresas especializadas em notas frias. Ou seja, simulou a compra dos alimentos. A essa altura, como também mostraremos, uma intervenção política na história veio mais para atrapalhar do que para esclarecer. Embora andasse lentamente, a máquina pública já tinha movido suas engrenagens para condenar os abusos sob responsabilidade de João Dias. No dia 20 de março de 2008, a coordenação do ME encarregada das prestações de contas estabelecia que João Dias deveria devolver à União 3,03 milhões de reais, correspondentes aos 2,04 milhões que lhe haviam sido repassados mais a atualização monetária e os juros de mora. Como a restituição não aconteceu por bem, em novembro de 2008 o ministério enviou a João Dias ofício informando ter apelado para a Tomada de Contas Especial. A essa altura, embora o convênio firmado diretamente por João Dias com o ME fosse apenas um, de fato ele era responsável por dois, ou seja, também pelo de número Veja, uma semana depois da denúncia feita pela dupla João Dias-Célio Soares sobre o milhão que teria sido dado a Orlando Silva na garagem do ministério, foi feita de forma a tentar incriminar tanto o então ministro como também o já governador Agnelo Queiroz. Fez parte da campanha que derrubou Silva do ministério e faz parte de campanha em curso contra o governador de Brasília. Voltaremos a esse detalhe mais à frente. Por ora, fiquemos com o seguinte balanço: em meados de 2009, quando a intervenção pela polícia do governo Arruda na questão passa a ter grande importância política, o Ministério já tinha adotado todas as medidas cabíveis em relação aos dois convênios de responsabilidade de João Dias. O Ministério já havia pedido a instauração de Tomada de Contas Especial (TCE); havia informado aos órgãos de controle externo, Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU); havia colaborado com o Ministério Público Federal e autoridades policiais para elucidar os indícios encontrados pela fiscalização e auditoria da Secretaria Nacional de Esporte Educacional (SNEED); e já tinha pedido a devolução do dinheiro correspondente. No final de 2010, pelos números do Siafi, João Dias e seus prepostos estavam condenados a devolver ao governo federal um total de 4,7 milhões de reais pelos dois convênios, a serem cobrados na Justiça através de ações civis. E, pela malversação dos recursos, estavam sujeitos a ações penais, algumas já em andamento. 3. São duas as testemunhas contra Agnelo. E o que elas dizem não resiste aos fatos Michael Alexandre Vieira da Silva e Geraldo Nascimento de Andrade são as duas testemunhas centrais desta história: os dois dizem que o ex-ministro do Esporte e atual governador de Brasília Agnelo Queiroz é o chefe de um esquema de malversação de dinheiro público através de ONGs que fizeram convênios com o Ministério do Esporte e desviaram, para uso político de Agnelo, as verbas aprovadas para ajudar no desenvolvimento de crianças carentes. Michael Silva diz que participou de uma operação pela qual foram entregues 150 mil reais a Agnelo. Geraldo Andrade diz que viu Agnelo receber 256 mil reais do esquema em Sobradinho. Os dois estão num programa de proteção de testemunhas da Polícia Civil de Brasília, que os Reprodução do You Tube 211/2006, assinado pelo professor Ronaldo Oliveira, seu preposto, em nome da Associação João Dias de Kung Fu e Fitness. A propósito desse convênio, é necessário fazer uma retificação do que foi escrito na primeira parte de “A incrível história do PM João Dias”. Dissemos que “uma denúncia da Folha de S.Paulo”, que seria uma exceção num quadro de outras, mal apuradas e com conclusões que iriam “muito além dos fatos observados”, mostraria, “com precisão, que o segundo convênio, assinado por entidade controlada por João Dias”, ocorrera “alguns meses depois de o primeiro já ter sido considerado completamente fora dos termos acordados”, o que, para nós, significaria, “no mínimo, falta de controle no ministério”. Esse “segundo convênio” é o 211/2006, assinado a 9 de outubro de 2006, no qual o Ministério do Esporte entrou com 923 mil reais para atividades de 5 mil crianças, em 25 núcleos situados fora das escolas públicas de Sobradinho, que, como vimos, estavam proibidas de participar do Segundo Tempo. Quando o repórter escreveu a primeira parte desta história, não tinha em mãos, ainda, as cerca de 1.300 páginas dos procedimentos desse convênio. Com esses documentos, é preciso reformular a nossa conclusão. O ministério sabia perfeitamente que as duas entidades estavam ligadas a João Dias. E foi mais duro nesse convênio do que havia sido no anterior, porque os controles dos convênios haviam mudado, como se verá adiante. Mudou a forma de liberação das verbas, a qual passou a ser feita em três parcelas, sendo a primeira de menos de 20% do total e a segunda de cerca de 50%, liberada ao final do segundo mês após o início do programa e desde que cumpridas várias exigências. Em consequência do não cumprimento de algumas dessas exigências, essa segunda parcela se atrasou e só foi depositada na conta da entidade a 3 outubro de 2007, após uma reformulação do projeto, feita por meio de um aditivo ao convênio inicial. O pessoal de João Dias, aparentemente, fez um esforço maior e, no Sodeso, por exemplo, chegou a proporcionar atividades esportivas para 50% das 2.500 crianças e jovens inscritos. Mesmo assim o ministério considerou que a AJDKF não cumpriu as metas necessárias e em janeiro de 2008 rescindiu o convênio. É essa rescisão que dá origem a vários atritos de João Dias com dirigentes do ME, inclusive às gravações clandestinas que ele próprio faz de suas conversas com esses dirigentes. A divulgação de fragmentos dessas conversas pela revista A PRIMEIRA GRANDE TESTEMUNHA CONTRA AGNELO A foto é de um vídeo da propaganda eleitoral de Weslian Roriz, na sua campanha para o governo de Brasília, em 2010. Michael Silva quer provar que Agnelo recebeu dele 150 mil reais, desviados de um convênio da ONG Novo Horizonte com o Ministério do Esporte, no qual o denunciante trabalhou em 2008. Mas, de fato, o que Michael Silva disse em 2010 e repete agora, na campanha contra o governador do DF, é que levou essa quantia a um conjunto no qual Agnelo teria um escritório. Agnelo o desmente, desde 2008 54 retratodoBRASIL | 25 Reprodução do You Tube A SEGUNDA GRANDE TESTEMUNHA CONTRA AGNELO A imagem é também de um vídeo da propaganda eleitoral contra Agnelo, de 2010. Geraldo de Andrade diz que viu Eduardo Tomaz entregar 256 mil reais a Agnelo. Um problema é que há um depoimento de Eduardo Tomaz negando isso. Outro problema é que o governador nunca foi procurado para esclarecer essa história. Ele a desmente totalmente. E acha que a Polícia Civil do DF do tempo de José Roberto Arruda, quando o suposto fato teria acontecido, facilmente esclareceria o episódio, se fosse esse o seu objetivo considerou ameaçados de morte pelo PM João Dias. Ambos dizem que João Dias era como um sócio do atual governador do DF no esquema de desvio de dinheiro. E que os teria ameaçado de morte para defender Agnelo. Michael Silva diz, em depoimento que foi gravado para a campanha de Weslian Roriz e divulgado na disputa do segundo turno para o governo do Distrito Federal em 2010, que sua mão foi quebrada em função de suas denúncias. Geraldo Andrade diz que presenciou a cena na qual João Dias quebrou a mão de Silva com um golpe. Também depôs no programa de Weslian Roriz no esforço dela para tentar ganhar de Agnelo no segundo turno da disputa pelo governo de Brasília em 2010. Michael Silva e Geraldo Andrade não entraram nesta história da mesma forma e com as posições que passaram a ter a partir do primeiro semestre de 2010, sob o regime de testemunhas protegidas. Silva torna-se denunciante do suposto esquema primeiro, a 14 de abril de 2008, num depoimento para a Promotoria de Justiça de Tutela das Fundações e Entidades de Interesse Social (Profis), em Brasília. O primeiro depoimento de Geraldo Andrade é de aproximadamente um ano depois, de 7 de maio de 2009, para a Divisão Especial de Repressão ao Crime Organizado (Deco), da Polícia Civil do Distrito Federal. E, nesse momento, ele não denuncia crime algum. Está sendo investigado, em função das denúncias de Michael Silva de um ano antes. Como Michael Silva entra na história? Ele trabalhava para uma ONG, o Instituto de Tecnologia Aplicada a Educação Novo Horizonte, que tinha convênio para o programa Segundo Tempo com o Ministério do Esporte. O projeto apresentado era do 26 | retratodoBRASIL 54 mesmo tipo do da Febrak de João Dias, só que mais sofisticado: previa, por um ano, atividades esportivas para 6 mil jovens, no contraturno escolar, em 30 núcleos espalhados por Sobradinho e áreas próximas. Mas previa também tratamento dentário, psicológico, pedagógico e cursos de informática, telemática e línguas para os interessados, que se deslocariam nos sábados para a sede da entidade, no Plano Piloto de Brasília. Os custos eram também aproximadamente os mesmos do primeiro convênio de João Dias, 2,06 milhões de reais. Desses, 1,64 milhão cabia ao ME e foi repassado pelo ME em duas parcelas, uma a 26 de junho de 2006, de cerca de 20% do total, uma semana após a assinatura do convênio, e outra, com os 80% restantes, três meses depois. Michael Silva não tem um passado de glórias. Ao contrário, como mostrou no programa eleitoral de Agnelo em 2010 o delegado Marcio Michel, hoje deputado distrital de Brasília pelo PSL – Partido Social Liberal – a ficha policial de Michael Silva mostra três processos por estelionato – em 2000, 2002 e 2003 –, um por receptação de objeto furtado, em 2004, e outro por agressão, contra a esposa, em 2007. Michael Silva denunciou Agnelo muito possivelmente por um desentendimento com os irmãos Coelho de Medeiros – João Carlos, Antônio Carlos e Luiz Carlos –, para os quais trabalhou. Em abril de 2008, no momento da denúncia, tinha rompido com eles – segundo alega, por ter ficado com enorme dívida fiscal decorrente de ter assumido a propriedade de empresa de fachada dos irmãos. Também tinha se afastado de João Dias que o empregara por algum tempo em uma de suas academias e que o teria ameaçado quando se dispôs a denunciar Agnelo. Michael Silva, em seus muitos depoimentos à polícia, faz grande carga contra os três irmãos. Investigar os eventuais malfeitos dos irmãos Coelho de Medeiros, no entanto, está além das ambições deste artigo. Aos três seria necessário acrescentar a irmã, Vera Lúcia, que trabalhou na Casa Civil da Presidência da República no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob o comando de Erenice Guerra, que se tornou ministra da Casa Civil depois da saída de Dilma Rousseff para disputar a Presidência da República. Para nossa história, basta registrar que o convênio da Novo Horizonte foi reprovado pelo ME. No começo de julho de 2009, Antônio Carlos, que assinava os documentos pela ONG, foi oficiado pelo ministério a devolver todo o dinheiro recebido para o projeto, com juros e correção monetária – o que correspondia então a 2,5 milhões de reais. E, como registramos no texto que acompanha a foto de Michael Silva, entre tantos erros do convênio do ME com a Novo Horizonte não está qualquer prova razoável de que o atual governador de Brasília tenha recebido propina ou dinheiro público desviado de suas finalidades. RB teve acesso a quatro depoimentos de Michael Silva. Em nenhum ele diz, como sugere no depoimento feito para a campanha de Weslian Roriz, que teve sua mão quebrada, muito menos por João Dias. Só quem diz isso é Geraldo Andrade. Este é um jovem de 26 anos, que num dos seus depoimentos confessa que, desempregado, foi recrutado numa fila de INSS por um empresário, Miguel dos Santos Souza, acusado nos processos oficiais como sendo especialista na criação de empresas produtoras de notas frias. No depoimento de 3 de abril de 2010, Geraldo Andrade muda de posição em relação ao que declarara à polícia um ano antes e passa a denunciar não só seu patrão mas também Agnelo Queiroz. Geraldo Andrade e Michael Silva então se alinham. Ambos passam a usar João Dias para atacar Agnelo. Dizem que ele é sócio de Agnelo, que chega a extremos para defender o atual governador de Brasília. Agnelo é o alvo político dos dois nos depoimentos que dão para a campanha de Weslian Roriz. E são esses mesmos depoimentos que estão sendo reproduzidos agora. As acusações básicas são as mesmas. Isso decorre de um plano comandado pelos jovens Michael Silva e Geraldo Andrade, iletrados, pouco informados, relativamente desarticulados, como se vê nos vídeos de seus depoimentos hoje na internet? Com certeza, não, como se verá a seguir (o depoimento de Michael de Silva, de 24 de outubro de 2010, de 10 minutos, postado pela empresa Agência Marcus- Publicidade em Vídeos para Youtube, de Brasília, em sua página agenciamarcus, com o endereço www. youtube.com/watch?v=5biD6lNW1Nk. O de Geraldo Andrade, de 27 de outubro de 2010, igualmente de 10 minutos e postado pela mesma agência, está em www.youtube. com/watch?v=J5V3CzdakS8). 4. Como a Polícia Civil e o Ministério Público fabricaram um escândalo político A transformação da investigação dos malfeitos praticados pelas ONGs com convênios no Ministério do Esporte em um escândalo político nacional é obra da grande mídia conservadora, como já dissemos no artigo do mês passado. Mas não é uma criação dessa mídia. Parte de interesses claros, como veremos no penúltimo capítulo desta história. E tem, como protagonistas importantes, entidades de corpo e alma: no caso, a Divisão de Especial de Repressão ao Crime Organizado (Deco), da polícia civil de Brasília, e a Promotoria de Tutela das Fundações e Entidades de Interesse Social (Profis), também sediada na capital federal. A Profis, no caso, representada pelo procurador adjunto Ricardo Antônio de Souza, demonstrou uma dedicação especial pelas denúncias de Michael Silva. O procurador tomou o primeiro depoimento de Michael Silva fora do horário de expediente normal da procuradoria: a partir das 19h30 de uma sextafeira, 4 de abril de 2008. Mandou lavrar então um “Termo de Comparecimento e Declarações” que Michael Silva assina e no qual diz basicamente tudo que está repetindo até agora: que trabalhou para os três irmãos Coelho de Medeiros, que foi prejudicado e abandonado por eles com uma dívida enorme em função dos impostos devidos pela empresa de notas frias deles, da qual era apenas o “laranja”, e que está seguro de que 150 mil reais, que teria levado para o conjunto Gilberto Salomão, no Lago Sul de Brasília, era dinheiro ilícito para Agnelo Queiroz, que teria escritório político no mesmo local. Esse depoimento foi levado à revista Veja e deu origem à matéria “A Fraude Documentada”, que a revista editou em São Paulo, na sexta-feira 19 de abril, foi para as principais bancas de jornal e revistas no dia seguinte e é datada do dia 23. O governador Agnelo Queiroz disse, agora, a RB, que, na época, tentou mostrar ao repórter autor da matéria que as acusações contra ele não tinham base nos Em abril de 2010, ano das eleições para o governo do DF, sob a proteção da polícia, Michael e Geraldo se unem contra Agnelo fatos. O governador diz que na época da suposta entrega por Michael Silva de 150 mil reais para ele num escritório que teria no conjunto Geraldo Salomão, um conjunto comercial na região conhecida como Lago Sul de Brasília, não tinha escritório lá. O próprio Michael Silva admite isso, em novo “Termo de Comparecimento e Declarações” ao promotor Ricardo Souza, datado do dia 25, de novo uma sexta-feira, às 19h30. Neste, Michael Silva diz que o advogado de Agnelo o procurou, logo depois da matéria publicada no sábado na Veja, para que assinasse depoimento que levou pronto. Em seguida, no “Termo” esclarece que nunca disse ter entregado dinheiro a Agnelo pessoalmente e dá autorização ao promotor para a interceptação de suas comunicações telefônicas, inclusive as já feitas ao longo de todo o ano de 2008. Se o promotor fez essas interceptações, não sabemos. Muitas interceptações foram feitas nesta história pela Polícia Civil de Brasília. Todas elas são sigilosas, inclusive para a pessoa que é a mais atingida no caso, o governador Agnelo. Da matéria de Veja, o procurador Ricardo Souza partiu para um pedido ao juizado da 3ª Vara Criminal de Brasília para a realização de um auto de apreensão de documentos na sede de empresas que possivelmente teriam emitido notas frias para fraude no convênio do Ministério do Esporte com a ONG Novo Horizonte. A apreensão foi feita pelo Deco, da Polícia Civil de Brasília, chefiado pelo delegado Giancarlos Zuliani Junior, no dia 24 de junho de 2008, nas sedes da Infinita Comércio e Serviço de Móveis Ltda e da JG Alimentos Preparados e Serviços Gerais Ltda. Os documentos apreendidos pelo Deco na Infinita e JG foram selecionados e os relativos à Novo Horizonte foram encaminhados para perícia contábil por departamento especializado da polícia. O laudo, de 79 páginas, saiu cerca de um mês depois, a 1 de agosto. E não é acachapante, escandaloso: os peritos apontam algumas irregularidades, mas aparentemente não localizaram um viveiro de notas frias. Da ação do Deco saiu também o inquérito policial de número 018/2008, comandado pelo delegado. Nele foi ouvido Miguel dos Santos Souza, considerado dono das principais empresas cujos documentos foram apreendidos. É Miguel Souza quem introduz na história o personagem que viria a ser o segundo grande denunciante de Agnelo, Geraldo Andrade, que seria seu sócio. Além disso, no entanto, não dá nenhuma pista que esquente a temperatura política do caso. Diz que não sabe de qualquer relação de Agnelo com os irmãos Coelho de Medeiros. E não sabe também quem é Michael Silva. Os laudos da perícia são encaminhados para as autoridades federais competentes. O delegado Zuliani os envia, a 15 e 19 de janeiro de 2009, respectivamente, para o Ministério do Esporte e para o Tribunal de Contas da União. Geraldo An54 retratodoBRASIL | 27 drade só é ouvido no inquérito 018/2008 pelo delegado Zuliani a 7 de maio de 2009, como já vimos. Ele confirma as declarações de Miguel Souza. Declara que é sócio dele. E promete abrir seu sigilo bancário para que a polícia verifique que ele não fez depósitos em nome de Luiz Carlos Coelho de Medeiros – ou seja, que não devolveu, por fora, ao homem ligado à Novo Horizonte, dinheiro recebido por conta de notas frias emitidas pela JG. Em meados de 2009, no entanto, um fato faz avançar a engrenagem que procurava se mover contra Agnelo Queiroz. De forma espontânea, diz o delegado Zuliani, Michael Silva comparece à sede do Deco para novo depoimento. Posteriormente, vai de helicóptero com a polícia apontar a casa de João Dias no condomínio Vivendas Bela Vista, que, segundo ele, teria sido construída com dinheiro desviado dos convênios com o ME. Com essas informações, o delegado manda fazer novas apreensões em sedes de empresas de notas frias. Também reencaminha para novo exame as notas apreendidas na Infinita e na JG no ano anterior. O novo laudo pericial contábil mostra uma fraude de notas frias bem mais escancarada que o anterior. Com ele, aparentemente Zuliani estaria em condições de alimentar melhor a máquina federal que já se movia para punir João Dias pelos abusos que teria cometido em seus dois convênios, através de ações civis e criminais, algumas delas, como dissemos, já em andamento na procuradoria da República no Distrito Federal, Mas não é isso o que, aparentemente, mais interessa a ele e ao promotor Ricardo de Souza da outra procuradoria, a de Tutela das Fundações e Entidades de Natureza Social. Os dois estão interessados em um inquérito próprio, baseado em escutas telefônicas, cujos laudos são, por lei, protegidos por segredo de Justiça. Dessa forma, vale observar, se pode, além de investigar os delitos, investigar também as pessoas. E, o que é mais interessante, como os grampos são sistematicamente vazados, com eles se cria a oportunidade para que a grande mídia interessada em escândalos divulgue trechos estrategicamente escolhidos para atingir adversários políticos. E é o que acontece. Agentes sob o comando de Zuliani pesquisam os telefones de João Dias, de UM PROMOTOR DE JUSTIÇA OU UM NEWS PROMOTER? O promotor Ricardo Antônio de Souza chegou ao estrelato no início de 2008, quando capitaneou o escândalo da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), que resultou na queda do reitor da Universidade de Brasília, Timothy Mulholland, acusado de gastar 470 mil reais na decoração de seu apartamento funcional. O papel de Ricardo foi destrinçado na tese de mestrado defendida na Faculdade de Comunicação da UnB, em março de 2010, por Érica Santana Neves, sob o título A Construção do Acontecimento Jornalístico: o Caso Finatec. Érica analisou as 43 matérias publicadas no jornal Correio Braziliense entre os dias 24 de janeiro, início da crise, e 4 de abril de 2008, o auge da crise, quando os estudantes invadiram a reitoria. Dessa análise extrai-se que o promotor foi o “centro do conflito” e o “condutor da ação”. É ele que inaugura a narrativa do escândalo, convocando a primeira coletiva de imprensa, e é ele que alimenta os jornalistas com novas informações nos três meses seguintes. “Protagonista absoluto da narrativa”, tornou-se o ator com mais visibilidade nas matérias do Correio: 19 aparições contra 11 do advogado da Finatec, Francisco Caputo, e sete do reitor da UnB, Timothy Mulholland. Em termos técnicos foi, ao mesmo tempo, o “definidor primário” e o “news promoter” do episódio. No mês passado, o ex-reitor foi absolvido pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região da acusação de improbidade administrativa que motivou a sua exoneração 28 | retratodoBRASIL 54 sua mulher, duas irmãs e três irmãos. Vão atrás de seus negócios, das academias, dos carros. Os agentes e analistas dos grampos são instruídos para procurar o relacionamento dos parentes de João Dias e dos seus negócios com os irmãos Coelho de Medeiros e com Agnelo Queiroz, cujo perfil é apresentado em relatório. O sigilo dos telefones de João Dias e de parentes é quebrado. A 1º de abril de 2010, ano eleitoral, João Dias, sua mulher Ana Paula, um irmão do PM – Carlos Roberto – dois de seus auxiliares – Dêmis Abreu e Eduardo Tomaz – e Miguel de Souza Santos, o homem das empresas de notas frias, são presos pelo Deco. E, pouco depois, na campanha eleitoral, os telefonemas de Ana Paula para a secretária de Agnelo, pedindo ajuda para contratar um advogado para o marido, são vazados para a imprensa. É vazado para a imprensa também um telefonema de João Dias para a Agnelo no qual este saúda o PM com um “meu mestre”, que vira a grande manchete de um jornal como O Globo. Com isso, o diário da família Marinho pretende mostrar que o atual governador tinha reverência pelo seu ex-correligionário de partido. O que é simplesmente uma falsidade completa, pois todos que conhecem Agnelo sabem que ele saúda com esse “meu mestre” praticamente todas as pessoas que encontra. É uma situação que persistiu até agora. Michael Silva e Geraldo Andrade, as duas figuras que acusam Agnelo, estão escondidas, sob a condição de testemunhas protegidas. Mas apareceram várias vezes para a mídia conservadora. A própria defesa de governador até agora não tem acesso aos grampos do inquérito 028/2009 que, volta e meia, reaparecem na grande mídia, em trechos selecionados para criar escândalo. Recentemente, no dia 19 de outubro, João Dias informou a O Estado de S. Paulo que seus advogados tinham conseguido retirar, da 3ª Vara Criminal de Brasília, onde corre, protegido pelo sigilo judicial, o inquérito 028/2008, cópias das gravações que ele próprio teria feito de conversas suas com altos funcionários do ME. Esses grampos foram usados por João Dias, logo a seguir, para alimentar a segunda capa de Veja, que saiu no sábado 22 de outubro e foi outra peça básica da campanha pela demissão do ministro Orlando Silva e pela incriminação de Agnelo Queiroz. Neles se ouvem as vozes dos dois funcionários – Fábio Hansen e Charles Rocha – e a de João Dias. ministro Orlando Silva lhe recomendou, explicitamente, um esforço de fiscalização nos convênios. As irregularidades nos convênios com as associações controladas por João Dias foram descobertas nesse contexto, diz Filgueira. “Nossa primeira atitude foi constituir uma força tarefa RB leu o texto sobre Agnelo fora do contexto e ouviu Filgueira e Hansen, protagonistas do contexto com servidores do ME e consultores contratados em parceria com o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), para fazer detalhadas auditorias nos documentos e processos. Encontramos convênios bons, bem executados; convênios com pequenas irregularidades que orientamos; convênios ruins, que rescindimos e denunciamos.” “Denunciar” administrativamente, explica Filgueira, é deixar os órgãos de controle externo, como a Controladoria Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Procuradoria da República, cientes das irregularidades para que encaminhem as investigações, tanto civis quanto criminais. Os convênios das ONGs de João Dias estavam nesse último grupo. “Tenho um ano e meio de correspondência com o MP e a Polícia Civil do DF que trata de investigação sobre as ONGs do João Dias. Esse material foi a base da operação Shaolin”, diz Filgueira. Os resultados das auditorias foram depois analisados em duas instâncias no ministério. Pela Secretaria Nacional de Esportes Educacionais (SNEED), que analisa basicamente se foram cumpridos os atendimentos propostos, e pela Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração (SPOA), que examina a coerência contábil-financeira da prestação de contas. Filgueira era o chefe da SNEED e, em janeiro de 2008, assinou o parecer técnico que reprovava e denunciava o segundo convênio de João Dias. Antes disso, DOIS CAMINHOS PARA A PROMOÇÃO DA JUSTIÇA O promotor Ricardo Antônio de Souza e a promotora Raquel Branquinho. Ele extrapolou a sua competência e apoiou a operação que foi primeiro em busca das pessoas, para depois descobrir que crimes poderiam ter cometido. Ela despachou rapidamente o que lhe competia e cobrou logo a devolução do dinheiro público diante do evidente descumprimento do convênio Reprodução Veja transcreve vários trechos da conversa que, segundo a revista, “prova” que o policial “gozava de inacreditáveis privilégios dentro do ministério”, entre os quais o “de receber orientações sobre como enganar os órgãos de fiscalização do próprio ministério”. A matéria transmite a idéia de que Agnelo intervinha no ministério, então comandado por Orlando Silva, para obter favores para João Dias: “Nós conversamos com Agnelo hoje. Agnelo estava indignado. O Agnelo nos chamou de moleques hoje. O Agnelo ficou p..., ficou indignado. Falou: ‘Vocês não sabem o estado em que está o João, o João está p...!’” O que a matéria sugere, como se verá, é uma falsidade. Como dissemos, no primeiro artigo da série sobre a história de João Dias, a mídia conservadora não mente com pequenas mentiras, mas com pequenas verdades tiradas do contexto. Entrevistamos Fábio Hansen e Julio Filgueira, as principais figuras do ME com as quais João Dias conversou, no episódio citado e no contexto que o explica. Filgueira relembra o episódio do veto da Secretaria da Educação do governo Joaquim Roriz, em 2006, à participação das escolas públicas de Brasília nos convênios do Programa Segundo Tempo (PST), já citado nessa história, para explicar parte das dificuldades do ministério na época. “A postura do ministério era sempre firmar convênio preferencialmente com os governos de Estados e municípios. Isso porque acreditamos que, para transformar um programa como o Segundo Tempo em política pública, o melhor é que tenhamos desde cedo o envolvimento do Estado”, diz Filgueira, que, quando assumiu, 68% dos convênios do programa eram firmados com ONGs, percentagem que caiu para 11% quando deixou o ministério em 2009. Além disso, diz ele, em novembro de 2006 o Ministério dos Esportes foi surpreendido por um Acórdão emitido pelo TCU muito desfavorável em relação ao Programa Segundo Tempo. Os ministros do TCU, em sua avaliação negativa condensada no Acórdão, diz Filgueira, indicavam, entre outras coisas, a má qualidade do material esportivo usado em diversos convênios do programa, o desvio de mantimentos do reforço alimentar destinado às crianças, o não atendimento do número de crianças contratado, tal como visto nos convênios de João Dias. Quando assumiu no Ministério a Secretaria encarregada da gestão do PST em abril de 2007, diz Filgueira, o 54 retratodoBRASIL | 29 recebeu o PM numa audiência, para apresentar suas conclusões. “É uma reunião de praxe que o ministério faz para dar ao parceiro no convênio a chance de se defender. Mas João Dias refutou tudo que dissemos e as propostas que indicamos para corrigir os problemas apontados. Pedimos então a ele para apresentar os documentos que comprovassem o que dizia. Nessa reunião estávamos presentes, pelo menos, eu, ele, e nossa diretora do convênio.” Numa segunda reunião, também uma audiência formal, em dezembro, Filgueira conta que informou João Dias de não ter mesmo como evitar a rescisão do convênio e que iria sugerir ao ministro uma Tomada de Contas Especial (TCE). Filgueira explica: “É um processo de investigação feito por uma equipe mista formada por membros do ministério e de órgão externos, como o próprio TCU. Para quem não deve nada, a TCE é uma vantagem. Sendo feita com a participação de gente de fora do ministério, evita, inclusive, a politização, a tal perseguição que João Dias diz ter sofrido”. Nessa ocasião, o PM, diz Filgueira, perguntou qual seria o rito que se seguiria. E foi informado de que, depois de rescindido o convênio, teria 60 dias para prestar contas. O terceiro e mais tenso encontro entre ele e João Dias, Filgueira relembra para RB, ocorreu por volta de abril de 2008. E o motivo dela, diz ele, foi justamente o fato de antes de se completarem os 60 dias previstos pelo rito, João Dias ter sido cobrado para restituir o valor total do segundo convênio por meio de um documento formal, uma Guia de Recolhimento à União, emitida pela SPOA. E, pior que isso, no início de abril, a SPOA ter respondido a um ofício da corporação de João Dias, a Polícia Militar, que queria informações a respeito de seus convênios com o ministério, dizendo que eles estavam irregulares e em fase de cobrança administrativa. “Dias chegou ao ministério sem avisar. A secretária me avisou e eu o recebi sozinho, na minha sala. Ele estava nervoso, irritado. Entrou dizendo que havia uma perseguição do ministério contra ele. Ele já havia dito isso. E eu sempre falava do amplo trabalho de fiscalização e auditoria que estávamos realizando. Então ele usou a antecipação da cobrança pela SPOA para retomar sua tese. Eu expliquei a ele que o encurtamento do prazo e a cobrança que recebeu não tinham partido da SNEED. Que eu não considerava correto esse procedimento. Ele estava alterado, mas 30 | retratodoBRASIL 54 não me agrediu fisicamente”, diz Filgueira em alusão às declarações de João Dias à revista Veja publicada a 15 de outubro, de que havia dado coronhadas e virado uma mesa em cima dele. Filgueira diz O delegado não chamou Agnelo uma só vez para depor. Mas, ao concluir o inquérito, apontou para ele que entende o nervosismo de João Dias. “Afinal, o rito previsto não havia sido cumprido. João Dias me disse: ‘Você me falou que o negócio era sério, que eu teria oportunidade de me defender’”. O outro encontro de João Dias com o pessoal do Esporte é em abril, na Secretaria Executiva do ministério, que controla a SPOA. Foi esse que João Dias gravou. Este é também mais um indício de que João Dias mente quando diz que deu coronhadas e virou uma mesa sobre Filgueira. É difícil acreditar que alguém do ministério se dispusesse a receber no- vamente o PM se ele houvesse agredido, como diz que fez, um funcionário da instituição. Fabio Hansen e Charles dos Santos, executivos do ministério, receberam o PM. Santos saiu do ministério. Hansen continua. Na entrevista a RB, Hansen primeiro faz a ressalva de que seu advogado ainda não conseguiu as cópias da gravação usada para atingi-lo através da revista Veja, que sugere que ele estava orientando João Dias a burlar o próprio ministério. “Na revista está que eu digo ‘está errado’. E de fato estava errado João Dias ter sido cobrado antes de ter saído o parecer financeiro que reprovava suas contas. Quando a revista me cita dizendo ‘estamos abrindo uma outra frente’, pode ser de fato uma frase minha. Com a reunião demos um prazo para João Dias tentar justificar suas contas. E corrigimos a informação que havíamos dado à PM. Dissemos que as contas do segundo convênio ainda estavam sendo analisadas. Quanto à referência a Agnelo, é verdade que eu fiquei sabendo que ele queria que respeitássemos os prazos legais a serem dados a João Dias. Mas a revista não diz isso. Com a divulgação de trechos da gravação sem o contexto em que elas estão, quer mostrar que eu fazia parte de um esquema para beneficiar João Dias, o que é uma mentira”. O fato, conclui Filgueira, é que o novo prazo dado a João Dias se esgotou e ele não apresentou nada de novo que pudesse livrá-lo da Tomada de Contas Especial. E que, afinal, conduziu aos processos contra ele em curso na Justiça. 5. Não se sabe o que o procurador-geral buscava. Mas ele conseguiu tumultuar o processo No dia 21 de outubro, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um pedido de abertura de inquérito para investigar as denúncias de corrupção contra o ministro do Esporte Orlando Silva e o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz. Na certa o procurador ficou impressionado com as denúncias da revista Veja. Junto com seu pedido, distribuído para exame da ministra Carmem Lúcia, havia três cópias da matéria da revista com a denúncia de João Dias e seu funcionário Celio Soares, contra os dois. Elas faziam parte da argumentação recebida por Gurgel dos líderes dos três principais partidos da oposição ao governo – PSDB, DEM e PPS. Gurgel, aparentemente, queria os holofotes. Entre os sete pedidos que fez ao STF estava o de ouvir o ministro e o governador. A ministra Carmem Lúcia não atendeu esse pedido nem a mais outros três. Aceitou os que resumidamente sugeriam que Gurgel primeiro examinasse o que já existia na Justiça sobre a história. Tanto de modo apropriado como de modo torto, muito já tinha sido feito. Os inquéritos na Justiça, civil ou criminal, para reparar e punir irregularidades e crimes eventualmente praticados em convênios com verbas federais são, naturalmente, de competência da Polícia Federal. E encaminhar esses inquéritos à Justiça é tarefa da Procuradoria da República. Já vimos que Antonio Cruz / ABR não foi esse o entendimento do delegado Giancarlos Zuliani Junior, da Polícia Civil de Brasília, nem do promotor Ricardo de Souza, da promotoria de Tutela das Fundações e Entidades de Interesse Social que, em 2008, começaram a investigar o convênio do Esporte com o Instituto Novo Horizonte e, em 2009, ampliaram a investigação para os convênios desse ministério com as entidades comandadas por João Dias. Por óbvios motivos políticos, embora na investigação que fez em nenhum momento tenha chamado o atual governador do DF para depor e nos seus resultados finais não o tenha indiciado, Zuliani passou a ter Agnelo Queiroz como seu alvo principal. Ao final do seu relatório, a 19 de maio de 2010, num Capítulo IV, chamado de “Dos Demais Fatos Identificados Durante a Investigação”, Zuliani reuniu contra Agnelo tudo o que ele achara de ruim: o que diziam suas duas grandes testemunhas – Michael Silva e Geraldo Andrade – que ele mantinha “sob proteção”, digamos assim; os detalhes do que teriam sido as duas entregas de dinheiro feitas a Agnelo e presenciadas pelos dois, uma de 256 mil reais em Sobradinho e outra de 150 mil num conjunto do Lago Sul de Brasília; e, misturados a isso, trechos do acompanhamento das comunicações telefônicas que mantinha sob sigilo e que sugeriam uma grande proximidade de interesses entre Agnelo e João Dias – como três telefonemas que Ana Paula, a mulher do PM, tinha dado para a secretária de Agnelo pedindo a indicação de um advogado, logo que seu marido foi preso. Ao cabo, Zuliani concluía o seguinte: que “no curso da investigação foram colhidas informações acerca de um suposto esquema de envio de recursos oriundos das mencionadas organizações [as de João Dias] para o ex-ministro Agnelo Queiroz”. Isso tudo, dizia, então, Zuliani, deveria ser aprofundado mediante novas diligências policiais. Deveria ser pedida a quebra do sigilo telefônico das estações de transmissão de sinais de celulares no dia e no local exato da entrega dos 256 mil reais a Agnelo, feita por Geraldo Nascimento. Com isso se poderia talvez “identificar eventual linha telefônica utilizada por Agnelo Queiroz, Eduardo Pereira Tomaz e Geraldo Nascimento de Andrade naquele horário e local”. Zuliani dizia ainda da necessidade de “acesso aos extratos telefônicos contendo as chamadas geradas e recebidas pelas linhas utilizadas” O PROCURADOR-GERAL SOB OS HOLOFOTES Já existiam meses de trabalho benfeito na procuradoria da República sobre os convênios de João Dias. Com o escândalo das denúncias do PM em Veja de 15 de outubro, o procurador Gurgel pediu ao Ministério do Esporte um caminhão de documentos, o que mais tumultua o processo do que facilita a recuperação do dinheiro público e a punição dos autores de estelionatos, fraudes e outros crimes pelos três citados naquele dia. A investigação de Zuliani e do procurador Ricardo Souza, além de extrapolar a competência que tinham, colocara o carro adiante dos bois. O certo seria, primeiro, propor uma ação civil para apurar se realmente houvera o desvio de recursos federais, e quantificá-lo. Depois, com uma ação criminal, buscar punir os responsáveis. Como vimos, a dupla tinha resolvido investigar primeiro as pessoas para, depois, descobrir que crime poderiam ter praticado. Contudo, trabalhando dentro de sua competência, com método e rapidamente, estava uma destacada procuradora, Raquel Branquinho. Ela estava no caso porque, em março de 2009, fora sorteada na Procuradoria da República, em Brasília, para apurar uma denúncia antiga, do noticiário da Globo em Brasília – um DF-TV, de dezembro de 2007 – que se transformara numa diligência da Corregedoria da Polícia Militar, a corporação na qual João Dias trabalha, para investigar seus convênios. E rapidamente se pôs a campo. Solicitou os dois convênios do PM com o Ministério do Esporte – o 26/2005 e o 211/2006 – e já em outubro do mesmo ano tinha pedido à Justiça uma ação civil pública com pedido de liminar para confiscar os bens do PM e alguns de seus sócios pelo não cumprimento do pactuado com o ME no primeiro convênio. A ação pedia que devolvessem aos cofres públicos 3,2 milhões de reais. E, como percebera do exame do papelório, que havia indícios de crime – apropriação indébita, estelionato, fraude – também encaminhara cópia da ação civil para o chefe do Núcleo 54 retratodoBRASIL | 31 Criminal da procuradoria, José Diógenes Teixeira, para providências nessa área. A procuradora continuou também acompanhando a investigação da Polícia Civil de Brasília. E cobrou de Zuliani uma cópia dos materiais mantidos sob sigilo: as transcrições dos “grampos” feitos por seus agentes, ao que tudo indica, do início de 2010 em diante. E passou esses materiais para o procurador Diógenes Teixeira. Não parece, no entanto, que, na área criminal, a despeito da competência da Procuradoria da República e da Polícia Federal no caso, a investigação da história esteja caminhando num rumo muito melhor que a da Polícia Civil do DF. No entender do repórter, o procurador Diógenes Teixeira está seguindo os passos da investigação apressada da mídia conservadora, que busca um grande escândalo onde ele não existe. O promotor, por exemplo, já teria descoberto uma grande associação entre João Dias e Miguel Souza, o dono das empresas de notas frias. Ora, o sistema de notas frias que Souza parecia comandar tinha a ver com vários outros problemas e não com os de João Dias, particularmente. Como os documentos apreendidos mostram, Miguel Souza fornecia notas frias para toda a cidade de Brasília, da universidade ao Supremo Tribunal Federal e às Forças Armadas. Provavelmente, as notas têm a ver mais com o processo de terceirização do trabalho generalizado que se pratica no País e que faz com que muita gente compre nota para deixar de pagar impostos e contribuições sociais, tendo um benefício no curto prazo. Não é uma conjura específica de João Dias com Miguel Souza. Para provar a formação de uma quadrilha com a participação dos dois, o procurador teria de investigar muito mais. Diógenes Teixeira, tudo indica, parece ser também adepto do grampo telefônico. Num documento de 19 de setembro, ele encaminhou o pedido de transferência da competência da ação penal que promove, da 12ª Vara da Justiça Federal do DF, para o Superior Tribunal de Justiça, devido a Agnelo ser governador e só poder ser julgado por essa corte. Mas, no documento, ele usou um argumento extravagante, para dizer o mínimo. Ele disse: “o prosseguimento do presente procedimento inquisitorial implicará cedo ou tarde na necessidade de investigação de natureza criminal (inclusive com eventual adoção de medidas excepcionais, tais como, v.g., o afastamento [e quebra] do sigilo bancário e/ou telefônico acerca da referida autoridade)” – a referência é a Agnelo. 32 | retratodoBRASIL 54 É preocupante, também, a forma da ação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no caso. Ele não quis ouvir o governador nem o ministro do Esporte a despeito do pedido do advogado de Orlando Silva para que o fizesse. Ele se pautou essencialmente pela mídia para pedir a abertura de inquérito. E, ao que parece, sem fazer, como fez RB em sua No STJ o processo ficou com 365 apensos, mais de 30 mil páginas. O procurador-geral vai ler tudo isso? primeira matéria, uma leitura cuidadosa dos artigos publicados para perceber que se tratava nitidamente de uma campanha midiática na qual o mais importante era publicar uma denúncia nova, independentemente de sua qualidade. Uma investigação mínima que ele poderia ter feito desqualificaria, nos parece, tanto a história do milhão repassado a Orlando Silva na garagem, como os 256 mil e os 150 mil reais que teriam sido desviados dos convênios por Agnelo. O governador Agnelo, aliás, poderia ter apresentado a ele, por exemplo, as provas materiais que mostrou ao repórter de Veja, em 2008, quando a revista fez a denúncia dos 150 mil que teria recebido em seu escritório no Lago Sul da cidade. Michael Silva, o autor da entrega, aliás, não diz que levou dinheiro para seu escritório. Diz que levou o dinheiro para o conjunto – Geraldo Salomão – no qual seu escritório estaria. E, como mostrou na época o governador ao repórter de Veja, ele não tinha mais escritório no conjunto na data em que a entrega teria sido feita. Finalmente, o procurador-geral pediu ao Ministério do Esporte um conjunto de documentos que dá a entender que ele pretende fazer uma devassa e não um inquérito específico. Parece também que ele quer começar tudo do zero, sem levar em conta trabalhos muito criteriosos já feitos, como o da procuradora Raquel Branquinho. Ele pediu “cópia integral” de quatro convênios específicos, uma relação de todos os convênios celebrados no âmbito do programa Segundo Tempo, contendo o nome do conveniente, o objeto do convênio, o valor dos recursos repassados, a data da vigência e a situação da prestação de contas respectiva”. O Ministério do Esporte passou dez dias recolhendo as informações e ainda pediu mais cinco dias de prazo para poder atender ao pedido. Em consequência, no STJ, onde agora estão as informações exigidas, há uma montanha de material e o processo tem 365 apensos. A uma média, por baixo, de 100 páginas por apenso, serão 36.500 páginas para serem examinadas. Como o procurador vai procurar a verdade dessa forma? Por enquanto, nos parece, ele provocou apenas tumulto. 6. Como o escândalo deu uma sobrevida ao esquema de forças que controlava Brasília Chove fino e o repórter segura um guarda-chuva grande para proteger entrevistador e entrevistado diante do portão da casa 33, do modesto conjunto de casas batizado de A3, na Quadra 2, de Sobradinho. Uma hora antes tentara, mais uma vez sem sucesso, entrevistar o irmão de Carlos Roberto, o PM João Dias Ferreira, no Condomínio Vivendas Bela Vista, de residências da classe media alta, no bairro Grande Colorado, a uns cinco quilômetros dali. “Seu irmão parece bem”, o repórter diz e relaciona o número de carros de luxo que viu na frente da casa de João Dias. Carlos Roberto entende a ironia e responde no mesmo tom. “O senhor acha que eu estou bem? Está vendo a casa onde moro? Sou eletricista. Dependo do meu carro para trabalhar e não tenho dinheiro para tirá-lo da oficina. Minha mulher é empregada doméstica. Meu irmão é uma coisa e eu sou outra”. Carlos Roberto conta que o irmão lhe deve dinheiro e que foi usado por ele para assumir a propriedade de uma de suas academias, a Thisway Fitness and Welness no shopping principal de Sobradinho. Reprodução Reprodução do You Tube DURVAL MOSTRA O VÍDEO, ARRUDA DEIXA A CENA Ele tinha feito penitência e dito aos eleitores do DF, de porta em porta, que estava regenerado das mentiras que tinha dito no escândalo anterior, da violaçao do sigilo do painel eletrônico do Senado. O delator Durval, agindo sob cobertura da polícia, o exibiu recebendo dinheiro e Arruda foi preso e deixou o governo do DF Mas Carlos Roberto dá razão a João Dias contra os do grupo Roriz que o criticam. Aparentemente porque acha que política é isso mesmo, cada um defende o seu: a conjuntura mudou e seu mano estava apenas tentando aproveitar-se da nova situação:“O senhor me diga: quanto meu irmão roubou?”. “Bem, isso eu não sei, mas o governo está cobrando dele cerca de 4,7 milhões de reais, que João Dias teria desviado”, o repórter responde. “Pois bem”, Carlos Roberto continua: “Quanto roubou o Roriz? E o Paulo Octavio? E o Luiz Estevão? João Dias está sendo acusado porque o esquema mudou. A turma do Roriz se elegia com o Fernando Henrique. Agora, é outra coisa. O povo quer o Lula, o Agnelo. Meu irmão está sendo acusado por isso, porque está com o Agnelo, com o Lula.” Carlos Roberto tem razão. A política em Brasília não era lá essas coisas ainda em 2006, quando seu irmão João Dias parece ter imaginado que poderia sair-se bem tomando o partido das forças que, afinal, acabaram derrotando o bloco político articulado há décadas em torno da figura de Joaquim Roriz, o político mais popular do Distrito Federal. “Brasília foi fundada em 1960 para ser uma experiência de vanguarda em políticas públicas, mas esse projeto foi abortado pelo golpe militar de 1964”, diz Arlete Sampaio, Secretaria do Desenvolvimento Social do governo Agnelo “Com o Regime Militar se formou uma classe empresarial muito ligada ao Estado e com grande força política que, se observarmos bem, tem grande expressão até agora”, diz ela. Joaquim Roriz é, de fato, o grande nome de unidade dessas forças desde a redemocratização. Chegou a ser fundador do PT em Luiziânia em 1980. Foi nomeado governador do DF em 1988 pelo então presidente José Sarney e governou então até 1990. Nesse ano, após um curtíssimo mandato – menos de um mês - como ministro da Agricultura do governo Collor, candidatou-se ao governo do DF. Foi praticamente reeleito. A legislação da época não permitia a reeleição. Mas sua candidatura foi aceita nos tribunais sob o argumento extravagante de que não era uma reeleição: ele não tinha sido eleito, fora governador nomeado. Poderia dizer, governador biônico, como eram chamados, pela oposição, os governadores nomeados para o DF na época da ditadura. Para a sua sucessão, nas eleições de final de 1994, Roriz não encontrou um nome com carisma popular. E a oposição liderada pelo PT venceu, com Cristovam Buarque. Mas Roriz voltou com o pleito de 1998 e foi reeleito em 2002, quando a lei, de fato, o permitiu. Nas eleições de 2006, quando começa a nossa história política com o PM João Dias, pelo bloco de Roriz surgiu um político maneiroso, José Roberto Arruda. Ele tinha perdido o mandato por quebra do decoro parlamentar, por sua participação num episódio chamado de “o escândalo de violação do sigilo do painel do Senado”, na votação da cassação em junho de 2000 do mandato de outro político e empresário famoso em Brasília, Luiz Estevão, do PMDB. Arruda era então do PSDB e líder do governo Fernando Henrique no Senado. Da tribuna, jurou pelos filhos que não participara da violação do sigilo da votação. Depois, diante das evidências de que de fato estava envolvido, renunciou, para não ser cassado e tornar-se inelegível por 10 anos. E passou todo o tempo seguinte até as eleições de 2006, visitando eleitores de casa em casa dizendo algo como “pequei sim, mas estou regenerado”. Do lado da oposição houve uma disputa entre o PT e o PCdoB, pela cabeça de chapa, com os nomes de Arlete de um lado e o de Agnelo, então ainda no PCdoB, de outro. Arlete foi a escolhida mas perdeu disparado de Arruda, cuja penitência parece ter funcionado. Brasília é uma cidade ímpar no País. Tem a maior renda per capita entre as capitais - ganha disparado de São Paulo, a segunda de maior renda. Nas eleições de 2010, por exemplo, no primeiro turno da disputa para a presidência da República, ganhou Marina Silva, a candidata dos verdes, com 41,96% dos votos. Dilma Rousseff, a candidata de Lula ficou 54 retratodoBRASIL | 33 com 31,74%. E José Serra, o candidato de Fernando Henrique, ficou com 24,30%. Em 2006, para o governo do DF, Arlete perdeu disparado de Arruda, já então no PFL (o atual DEM). Arruda ganhou no primeiro turno, com 50,39% dos votos. Arlete ficou em terceiro lugar, com 20,93%, atrás de Maria de Lurdes Abadia, com 24,30%, que era do PSDB e tinha sido eleita como vice de Roriz, do PMDB. Arruda ganhou, mas não terminou seu mandato. Entre julho e agosto de 2009, Durval Barbosa, um ex-secretário de Roriz, passou a colaborar com a Polícia Federal na denúncia de um sistema de corrupção no Distrito Federal. Durval Barbosa se dedicara a produzir vídeos documentando as entregas de dinheiro que fazia a políticos, sem os avisar. Filmou e divulgou a entrega de dinheiro ao próprio Arruda e levou o governador à prisão. Todas as evidências são de que, desde os tempos de Roriz, quando Durval começou suas filmagens, os altos dirigentes do bloco Roriz, aí incluído Arruda, que foi secretário de obras de Roriz antes de ser eleito, cobrava de empresas interessadas em contratos com a administração pública e distribuía o dinheiro arrecadado comprando apoio para formar uma base na Câmara Distrital. Arruda foi preso. Paulo Octávio, um dos maiores empresários da construção civil local, assumiu. Mas, logo, também renunciou. Ele e outros empresários também foram filmados por Durval Barbosa. A ex-deputada distrital Eurides Brito (PMDB), a secretária que proibiu acordos das escolas públicas com o programa Segundo Turno, do governo federal, criado por Agnelo Queiroz, foi filmada escondendo dinheiro na bolsa e foi cassada. À epóca, Agnelo já despontava como um político popular, com condições de disputar nas urnas a hegemonia que cabia a Roriz. Nas eleições para o Senado, que disputou diretamente contra Joaquim Roriz, teve o dobro da votação de Arlete: 42,93% dos votos, contra 51,83% de Roriz. “Os vídeos de Durval mostraram o que já denunciávamos em 2002, quando Roriz derrotou a candidatura à reeleição de Cristovam Buarque”, diz Arlete a RB. “Em 2010 nós derrotamos o grupo Roriz nas urnas. Mas o que aquele esquema representava ainda está 34 | retratodoBRASIL 54 presente na consciência popular. No governo Cristovam, nós fizemos uma política de garantias de direitos e não de clientelismo. Como disse um eleitor, todo enfeitado com o material da campanha de Roriz em 1998, em Santa Maria, uma localidade onde tínhamos feito de tudo: “Seu Cristovam foi muito bom para Santa Maria, mas para mim mesmo, não deu nada’”. Roriz praticamente distribuiu lotes públicos de graça em Brasília, diz Arlete. “Ele criou 22 assentamentos humanos no entorno de Brasília. Isso pesa, politicamente. E a campanha que nos levou à vitória com Agnelo, em 2010, mostrou como o esquema tinha força. Como trabalhava, com fraudes, com depoimentos comprados, que re- apareceram agora”. Arlete sabe do que fala. Tem 61 anos. É médica sanitarista, formada pela Universidade de Brasília. Foi fundadora do PT no DF. Participa das lutas políticas na capital federal desde seus tempos de estudante, no começo dos anos 1970. Foi uma dos 32 alunos da UnB expulsos na segunda grande crise da universidade em meados dos anos 1970. Na primeira crise, em 1965, os militares demitiram 15 dos fundadores da instituição, criada para ser um modelo para o País. Vários professores foram cassados. Alguns tiveram de exilar-se. E, numa demonstração de que em Brasília a resistência e a luta têm tradição antiga, mais de 200 professores e instrutores se demitiram em solidariedade aos demitidos. 7. O governador se orgulha de ter criado o Segundo Tempo. Portanto, tem jogo pela frente Chove muito em Brasília. É 12 de dezembro e RB vai assistir uma cerimônia de entrega de geladeiras para a redução do consumo de energia pela população de baixa renda em Itapoã, um núcleo mal urbanizado ao norte do Paranoá, o grande lago da capital federal. Cai uma chuva fina e o ato está sendo feito Agnelo tem, na Câmara Distrital, o apoio de 21 dos 24 deputados. Essa base ampla o acompanhará para virar o jogo? numa quadra coberta com lona numa área a qual se chega por ruas lamacentas. Umas duas ou três centenas de pessoas assistem aos discursos, feitos de um dos cantos da quadra onde estão o governador Agnelo, Arlete, o líder do PT na Câmara Distrital, Chico Vigilante, políticos locais e dirigentes da empresa de eletricidade do DF, que faz as trocas de geladeiras. O tom dos discursos de Arlete e Agnelo enfatiza a política de dar prioridade aos mais pobres, como nessa visita a Itapoã. O deputado Chico Vigilante, porém, diz que não pode deixar de lembrar ao público, o quadro mais geral, da política do DF, onde se destacam os ataques ao governador. “Políticos do PSC”, diz ele, começando pelo partido atual do ex-governador Joaquim Roriz, “do PSDB, do DEM, que roubaram bilhões, estão na mídia denunciado a figura honrada de um homem como Agnelo Queiroz”. “Vossa Excelência”, diz Chico Vigilante, voltando-se para Agnelo, pode ter certeza de que conta com nossos deputados na Câmara Distrital. Mas, vossa Excelência sabe, que conta, acima de tudo, com o povo”. As pessoas aplaudem. Os problemas que o governador Agnelo enfrenta, não são pequenos. Sua popularidade entrou em baixa, com certeza em virtude da campanha de denúncias contra ele, que surgiam uma após a outra, em meados de dezembro. João Dias, por exemplo, gravou uma conversa que teve pelo celular com um oficial da PM, depois de ser detido pela agressão as duas mulheres na Secretaria de Governo, com a qual abrimos nossa história. E a grande mídia, em geral – os sítios Reprodução Monique Renne/CB/D.A Press O GOVERNADOR E A PRESIDENTA, O BOLSA ESPORTE E O BOLSA FAMÍLIA De certo modo, o Segundo Tempo, do Ministério do Esporte, criado na gestão Agnelo Queiroz, é uma complementação do Bolsa Família, um dos carros-chefes do governo Lula e do governo da presidenta Dilma Rousseff. Um dos aspectos essenciais do Segundo Tempo é garantir aos participantes do programa mais uma refeição, além da merenda escolar. E as crianças gostam do programa. A carta acima é tirada dos documentos do convênio da Associação Gomes de Matos, do DF, aprovado pelo Ministério do Esporte, a despeito de alguns problemas na sua execução da UOL e da revista Veja na internet, por exemplo, que logo receberam a gravação – apresentaram o material como uma nova denúncia de João Dias contra o governo que tenta calar sua voz. Como se ele fosse um homem honesto e destemido, que Agnelo persegue. Na penúltima semana de dezembro, o destaque da mídia foi para a denúncia de que a família Agnelo teria aumentado seu patrimônio. A matéria era focada num irmão do governador que teria conseguido umas três franquias de negócios no valor de uns 3 milhões de reais. O governador tem grande maioria na Câmara Distrital e, nas condições políticas atuais do Distrito Federal, o bloco Roriz está desmantelado e sem condições de aproveitar o fôlego que as denúncias lhe deram. O desmanche desse bloco não é de agora. Vem de 2009, quando o PMDB rachou, após uma discussão de Roriz com o segundo homem forte do partido no DF, o deputado federal Tadeu Fillippelli. Roriz se descontrolou e chamou Fillippelli de “vagabundo” e “mentiroso”, quando o deputado questionou as ações políticas de Jaqueline Roriz, deputada distrital, filha de Roriz, que também esteve ameaçada de cassação. Filippelli é hoje o vice de Agnelo. Roriz perdeu deputados até do PSC, que engrossou com sua saída do PMDB e sigla pela qual apresentou para disputar com Agnelo em 2010, sua mulher, Weslian Roriz, depois que foi impedido de candidatar-se pela Justiça Eleitoral. O governador tem hoje o apoio de 21 dos 24 deputados distritais. Esse número foi alcançado no dia 18 de dezembro, com a adesão à base do governador do deputado Raad Massouh, que saiu do DEM para o PPL. Agnelo conversou longamente com RB em sua residência oficial, na cidade de Águas Claras, numa chácara a oeste do Plano Piloto. Reafirmou sua convicção de que o Programa Segundo Tempo que criou quando ministro do Esporte, a despeito de muitos problemas que apresentou, é um instrumento de apoio às populações mais pobres, como o Bolsa Família, carro chefe dos governos Lula e Dilma Rousseff. Reafirma para RB o que disse várias vezes na campanha eleitoral de 2010: de que os testemunhos de Michael Silva e Geraldo Andrade, as duas principais peças de acusação contra ele, repetidas agora, são falsas, fazem parte do esquema de seus adversários, que foi desmascarado explicitamente com os vídeos de Durval Barbosa e a prisão e queda de Arruda. Não resta dúvida, no momento, de que as denúncias abalaram sua grande virtude: de conseguir apoio popular, por ser uma pessoa amigável, que trata quase todo mundo de “meu mestre” e que abrigou, na frente que foi formando a partir de 2006, até mesmo uma pessoa descontrolada como o incrível PM João Dias. Se, com uma frente tão ampla, levará a bom termo seu governo, é uma questão a se ver, da mesma forma como, hoje, é difícil prever qual será o contexto, por exemplo, no ano eleitoral de 2014, quando se saberá se Dilma Rousseff será ou não, candidata. Agnelo, disse um de seus assessores a RB, é uma pessoa de grande capacidade de ação, mesmo nas crises. E terá agora um Segundo Tempo para reverter o jogo, visto que o bando de Roriz ainda está meio desmantelado. 54 retratodoBRASIL | 35 Espanha O PAÍS BASCO, DA VIOLÊNCIA À RECONCILIAÇÃO Getty Images Findos o terror e a brutal repressão do governo, cabe aos políticos e à sociedade o dever de construir uma paz sem revanchismo. E sem impunidade por Ricardo Viel, de Salamanca QUINTA-FEIRA, 20 de outubro de 2011, começo de noite em San Sebastián, litoral do País Basco, Espanha. Iñaki García Arrizabalaga, que participa de um congresso, termina sua palestra e a organização do evento abre uma rodada de perguntas. Uma pessoa do público recebe o microfone e com as mãos trêmulas e a voz embargada dá a notícia esperada por décadas pelos espanhóis. “Foi assim que eu e mais uma centena de pessoas ficamos sabendo que o ETA renunciava à violência. Foram minutos de aplausos”, recorda Arrizabalaga, que é professor de marketing na Universidade de Deusto. “Senti uma imensa alegria. Pensei nas pessoas, alguns amigos meus, inclusive, que não precisariam mais olhar embaixo de seus carros à procura de bombas, que não teriam mais guarda-costas, não viveriam mais com medo de andar nas ruas.” O abandono das armas por parte do ETA (Euskadi Ta Askatasuna, que em euskera, a língua basca, significa País Basco e Liberdade) era iminente. No começo de 2011 o grupo havia anunciado um cessar-fogo permanente e se comprometia a encontrar um caminho para o fim do “confronto armado”. No dia 15 de outubro – três dias antes do comunicado final – houve em San Sebastián uma conferência de paz com a presença de mediadores renomados, como Kofi Annan (ex-secretário-geral da ONU). Foi uma espécie de liturgia exigida pelo grupo, que se autodenomina marxista-leninista, para declarar a “cessação incondicional e definitiva da atividade armada”, como expressado na declaração publicada pelo di36 | retratodoBRASIL 54 ário basco Gara em sua página na internet. Três semanas depois, em entrevista ao mesmo jornal, dois membros da organização disseram que a entrega das armas faz parte de uma agenda, que deve ser acordada com o novo governo espanhol – o qual assumiu o poder no final de dezembro, chefiado pelo primeiro-ministro Mariano Rajoy –, e descartaram o caminho político. “Não sentaremos à mesa de negociação política”, diz seu comunicado. O ETA, como grupo, só não acabou porque vai tentar proteger seus militantes presos e foragidos. Não vai mais lutar institucionalmente pela independência porque a sua luta, como movimento, era apenas armada. A esquerda basca também quer a independência e saiu fortalecida nas últimas eleições. É nela que quem militou no ETA deposita suas esperanças agora. O grupo pede que seus presos (cerca de 700) possam cumprir pena no País Basco – hoje a grande maioria se encontra em prisões espalhadas pelo país, distantes de suas famílias –, pleiteia uma redução nas penas impostas aos condenados e sonha com uma pouco provável anistia dos crimes, o que resolveria também a situação dos foragidos. O ETA foi criado em 1959, em Bilbao, por estudantes dissidentes do Partido Nacionalista Basco (PNV), com a finalidade de lutar pela independência da região que engloba quatro territórios espanhóis (Navarra, Álava, Vizcaya e Guipúzcoa) e três franceses (Lapurdi, Baja Navarra e Zuberoa). A Espanha vivia sob a ditadura de Francisco Franco e a luta armada foi ado- tada para combater a opressão e buscar a soberania basca. O primeiro atentado (fracassado) aconteceu em 1961, contra um trem que levava veteranos da Guerra Civil. Começavam também as perseguições, prisões e o exílio dos terroristas. A primeira morte assumida pelo ETA ocorreu em 1968 e a vítima foi um policial civil – em 1960 uma criança de dois anos morreu após a explosão de uma bomba supostamente colocada pelo grupo, que nunca reconheceu a autoria desse atentado. Ao longo de mais de cinco décadas o ETA cometeu 829 assassinatos, segundo as contas oficiais – o grupo contabiliza mais de cem “voluntários caídos”. Juan Manuel García Cordero, pai de Arrizabalaga, foi uma das vítimas dessa guerra. “Eu tinha 19 anos [hoje ele está com 50]. Meu pai era diretor da Telefónica e a empresa, por ordem judicial, havia grampeado dezenas de telefones, o que levou à prisão de vários terroristas. A vingança foi o sequestro e o assassínio do meu pai. Como nunca havia sido ameaçado, ele não levava escolta.” No mesmo dia 23 de outubro de 1980 outras duas pessoas foram mortas pelo ETA. Foi o ano mais sangrento da história do terrorismo basco. Em 1969 o governo espanhol condenou seis integrantes do ETA à morte em julgamentos sem garantias processuais, medida que causou protestos não apenas no País Basco, mas na Espanha e fora dela (o papa Paulo VI pediu a revisão da punição). Ao final, acuado, Franco comutou a pena para prisão perpétua. Quatro anos depois, em 1973, o ETA Getty Images San Sebastián, País Basco, outubro de 2011: autoridades regionais e o Partido Socialista Basco comemoram o cessar-fogo do ETA após 40 anos cometeu seu atentado de maior impacto, o assassínio de Luis Carrero Blanco, presidente do Governo (o mesmo que primeiro-ministro), que ocupara o cargo como natural sucessor de Francisco Franco, já doente (Franco morreu em 1975). A “Operação Ogro” foi preparada durante seis meses. Os terroristas alugaram uma casa no centro de Madri e cavaram um túnel de sete metros até a rua Claudio Coello, por onde o almirante passava todos os dias depois de assistir à missa. Cem quilos de explosivos abriram uma cratera de sete metros de profundidade e dez de largura, fizeram o carro oficial voar a mais de 20 metros de altura e cair no terraço de um prédio. Os três ocupantes [Carrero Blanco e dois militares que fazia sua segurança] do veículo morreram no ato. Nessa época a causa basca era vista com certa simpatia, explica o historiador Miguel García Perfecto. “O ETA teve muitos simpatizantes durante a ditadura e não apenas no País Basco. Tinha simpatizantes em toda a Espanha e também fora. Não se aceitavam seus métodos, digamos, mas havia simpatia porque estava lutando contra um regime que era bastante duro.” O grupo passou a perder apoio com a redemocratização, em 1977, quando decidiu continuar a luta armada, por entender que o caminho político aberto era insuficiente. “Foi quando as coisas começaram a mudar. Não tinha sentido reivindicar a independência de um território pela via dos assassínios, dos sequestros, da extorsão [o ETA cobrava um “imposto revolucionário” de empresários e comerciantes]”, analisa Perfecto, professor da Universidade de Salamanca. Havia no país uma grande expectativa O maior atentado foi em 19 de junho de 1987, em Barcelona: 25 mortos e 45 feridos de que o grupo basco entregasse as armas com a chegada da democracia. O novo governo anistiou todos os presos ligados ao ETA. Dentro da organização houve uma divisão entre os que queriam o fim da violência e os que defendiam a continuidade da luta armada. Ganharam estes últimos, e o conflito, longe de chegar ao fim, se tornou mais sangrento. Entre os anos da ditadura o grupo cometeu pouco mais de 15% de seus assassinatos, sobretudo contra policiais e pessoas relacionadas ao governo militar. Com a democracia os ataques se intensificaram em número e em alvos: políticos, jornalistas, juízes, empresários e praticamente qualquer pessoa que apoiasse suas ideias. A esses se somam as vítimas que estavam na hora errada no lugar errado, chamadas de “danos colaterais” pelo ETA. O maior atentado (em número de mortos) foi em 19 de junho de 1987, em um centro comercial de Barcelona: 25 mortos e 45 feridos. Após o ataque os terroristas afirmaram que o massacre poderia ter sido evitado se a polícia tivesse desalojado o local quando houve o aviso de que uma bomba havia sido colocada. Mas a violência indiscriminada foi levando o ETA cada vez mais ao isolamento. “O ETA declarou o fim da luta armada não por pensar que foi inútil ou contraproducente, mas porque está em uma situação de extrema debilidade”, diz Perfecto. Segundo o historiador, a ação da Justiça e da polícia e a falta de apoio dentro e fora da Espanha explicam a agonia dos terroristas. Em 2006, durante um processo de diálogo aberto entre governo espanhol e representantes da esquerda basca, uma potente bomba destruiu parte do Terminal 4 do aeroporto de Barajas, em Madri. Duas pessoas morreram e o repúdio 54 retratodoBRASIL | 37 ao atentado foi praticamente unânime, inclusive de partidos e personalidades ligados à causa basca. O número de presos dissidentes que pediam o fim da violência aumentava. O ETA estava só e debilitado, mas continuava com seus ataques – o último deles aconteceu em 2009 e matou dois guardas-civis. No final de 2010 o grupo anunciou que “mediadores internacionais” estavam dispostos a participar da verificação de seu anúncio de cessar-fogo. Era a chave para que o último grupo armado existente na Europa depusesse as armas. “Começamos a escrever as primeiras linhas de um futuro que ainda não sabemos muito bem como será”, reflete o ex-presidente do governo autônomo do País Basco (um governador eleito pelo Parlamento do território, com mandato de quatro anos), Juan José Ibarretxe, em um artigo publicado dias depois do comunicado do fim da violência. “Levamos tanto tempo esperando a chegada do futuro que na verdade nos esquecemos de imaginar como seria a vida sem o ETA”, completa ele. O Conselho Basco de Vítimas do Terrorismo – associação que congrega grupos de afetados pelo terrorismo do ETA – aposta em uma reconciliação com “memória e sem impunidade”. Uma das críticas das organizações de vítimas é de que o ETA nunca pediu perdão, nunca falou abertamente de reconciliação, não assumiu seu erro. Na entrevista ao Gara, o grupo diz que é consciente do sofrimento causado, mas que o conflito gerou vítimas dos dois lados e a principal delas é o “povo basco”. Diz, também, que a luta não foi em vão e que foi graças a ela que se geraram as condições existentes atualmente para que se ponha fim ao conflito. Ibarretxe advoga por uma “reconciliação sem esquecimento” e diz ser imprescindível que o grupo reconheça o sofrimento causado. Pede, também, um mea-culpa do Estado espanhol pelas violações praticadas não só durante a ditadura, mas também no período democrático – torturas, prisões arbitrárias e assassínios promovidos por grupos paramilitares com respaldo do governo. Arrizabalaga participa há 25 anos de uma das organizações de vítimas do terrorismo, a Gesto pela Paz. “Depois de uma longa reflexão eu decidi fazer parte dessa entidade. Tenho filhas, e essa preocupação que tenho de tentar livrar as futuras gerações de coisas como as que eu passei é o que me motiva.” O professor de marketing conta que não foi fácil trocar o ódio após o assassinato de seu pai pela busca de uma solução para o conflito. “Passei por uma evolução lógica, creio. De não aceitar o que havia acontecido a aceitar e querer rebelar-me. Vieram os sentimentos de ódio e vingança. Eu queria o confronto pessoal. Depois percebi que isso contaminava as minhas relações pessoais, profissionais, sociais. Além disso, odiar é algo que consome, que cansa, porque você tem de odiar 24 horas por GettyImages Madri, 20 de dezembro de 1973: o atentado a bomba contra o primeiro-ministro Luis Carrero Blanco foi o mais importante do ETA 38 | retratodoBRASIL 54 dia. Percebi que isso estava me destruindo. O terrorismo não só havia assassinado meu pai, como estava acabando com a minha vida.” Em maio de 2011, Arrizabalaga recebeu uma proposta de um instituto ligado à administração dos presídios espanhóis. Um grupo de dissidentes do ETA queria se encontrar com algumas vítimas, pedir perdão a elas pelo sofrimento causado – não receberia qualquer benefício carcerário pelo gesto. Ele aceitou fazer parte da iniciativa. Foi até o presídio e esteve cara a cara com um ex-terrorista. Após um aperto de mão, começaram uma conversa que durou mais de uma hora. “Por mais que tente, eu não consigo entender o que leva alguém a matar. Eu queria tentar entendê-lo e perguntei isso a ele [o preso havia cometido alguns assassinatos, mas não teve nenhuma implicação com a morte do familiar de Arrizabalaga]. Ele respondeu o que sempre é dito por eles. Nenhum dos presos assume que o ato é uma decisão pessoal. Refugiam-se no entorno, no grupo, no contexto. É uma espécie de obediência devida. ‘O entorno não me deixava ter liberdade’, dizem eles.” Para o professor, é um mecanismo de defesa. “Imagine alguém que matou várias pessoas e de repente se dá conta de que causou tanto sofrimento para nada. Isso deve ser muito duro, psicologicamente falando. Todo mundo, antes de dormir, reflete um pouco no travesseiro. Deve ser muito difícil conviver com isso”, completa. Tiveram tempo para contar suas vidas, refletir sobre o passado e pensar no futuro. Arrizabalaga avalia que o encontro foi benéfico para ambos. “Creio que ele se sentiu melhor depois de falar comigo e eu também me senti melhor. Acho que estamos transmitindo uma mensagem ao conjunto da sociedade de que a normalização é possível. Se queremos colher algo, temos de semear. E acho que esse tipo de iniciativa semeia.” Vítima e terrorista chegaram à mesma conclusão sobre como construir o futuro. “Ele concordou comigo que é preciso que se faça uma leitura comum do que aconteceu. Eles têm de reconhecer seus erros, fazer uma autocrítica. Não estou pedindo que renunciem a suas convicções, a suas ideias políticas, mas que reconheçam que utilizaram métodos equivocados. Acho que o que tem de se separar muito bem é a existência de um conflito político entre Euskadi e Espanha, e isso há, com a violência que eles praticaram.” BAIA DE BUSCAIA FRANÇA ESPANHA PAÍS BASCO FRANÇA ESPANHA ESPANHA Uma frase dita e repetida no País Basco nos dias posteriores ao anúncio do fim da luta armada foi: que bom que as futuras gerações só vão conhecer o ETA pelos livros de história. Arrizabalaga coloca um ponto de interrogação nessa afirmação. “Está muito bem que seja assim, mas como vamos contar isso? O que aprenderão minhas filhas nos livros? Pikabea, do ETA: “Algum dia meu filho vai me perguntar se eu matei e terei de dizer a verdade” Podemos fazer uma leitura conjunta ou temos de aguentar que os que assassinaram escrevam a história? O que está claro é que se fecharmos mal uma ferida ela voltará a abrir. Veja o que aconteceu aqui na Espanha na Guerra Civil. Volta e meia voltamos ao tema, há rancores, enfrentamentos, é uma ferida que se fechou mal. Isso me preocupa muito agora, porque é o que ficará para o futuro.” Ferida aberta é também a expressão que usa Kepa Pikabea, ex-integrante do ETA. “Algum dia meu filho, que agora tem 11 anos, vai me perguntar se eu matei e terei de dizer a verdade. E vou tentar convencê-lo de que ele não pode fazer o que eu fiz, de que não se deve pegar em armas para se rebelar contra uma injustiça. Isso deixa feridas que nunca cicatrizam. Sei que levarei isso até o cemitério.” O depoimento aparece no documentário “Al final del túnel” (No final do túnel), de Elías Querejeta e Eterio Ortega, lançado no dia 25 de outubro no Festival de Cinema de San Sebastián. Kepa Pikabea tem 54 anos e passou os últimos 17 na cadeia. Sua pena é de 192 anos de prisão pela prática de duas dezenas de homicídios. É um homem de aparência frágil, fala mansa e vacilante, que transmite com suas palavras e seu olhar perdido o tamanho da cicatriz que o País Basco precisa curar. “Meses antes de eu ser preso, levei o cachorro da família para a montanha para sacrificá-lo. Estava velho e muito doente, mas quando apontei a arma não tive coragem de atirar. Quando fui preso, a polícia avisou meu pai, que disse que era impossível que eu estivesse envolvido no que me acusavam porque eu era incapaz de matar um cachorro.” Finda a violência, agora cabe aos políticos e à sociedade civil a difícil tarefa de gestar uma reconciliação sem revanchismo e sem impunidade. Nessa complexa equação está a chave para um futuro diferente. Um futuro em que os jovens não tenham coragem de atirar, nem contra cães nem contra seres humanos. 54 retratodoBRASIL | 39 América Latina TUDO NORMAL NA ARG E (PERO NO MUCHO...) Uma década após mergulhar na pobreza, a Argentina começa um novo período do bem-sucedido kirchnerismo. Mas ainda apaga muitas marcas do passado por João Peres, de Buenos Aires GettyImages Assembleia Legislativa argentina, em Buenos Aires, 10 de dezembro passado: Cristina Kirchner faz o juramento como presidente constitucional reeleita. À sua direita, o vice-presidente Julio Cobos, que deixava o cargo. À sua esquerda, o novo vice-presidente Amado Boudou 40 | retratodoBRASIL 54 G ENTINA QUANDO TOMOU POSSE para o segundo mandato como presidente da Argentina, no mês passado, Cristina Fernández de Kirchner não apenas deu sequência ao maior período de estabilidade democrática do país. Ela garantiu a manutenção de um projeto de ideias simples e execução complexa iniciado no momento de maior dificuldade das últimas décadas, quando mais da metade da população estava abaixo da linha de pobreza e o país era motivo de piada. Exatos dez anos após a crise estrutural, na qual os problemas econômicos levaram a instabilidades no sistema político e à reorganização do tecido social, a confiança no caminho adotado é tamanha que a presidente se sente em condições de indicar que a Europa segue pela trilha errada. “Ainda estamos em tempo de estabelecer soluções, mas soluções que tenham a ver com a regulação daqueles que ocasionaram o problema, as dos mercados financeiros”, advertiu Cristina durante uma das reuniões da Cúpula do G20, na França em que lembrou ainda, com conhecimento de causa, a associação entre crise econômica, descrédito na política tradicional e emergência de regimes totalitários. O bom andamento da economia é um dos êxitos do atual governo, que em outubro renovou seu mandato para mais quatro anos com a maior vitória desde a redemocratização, em 1983, ao obter 54% dos votos válidos. Seu falecido marido, Néstor Kirchner, foi eleito, em 2003, sob a memória do que se vayan todos, a explosão social de dezembro de 2001, quando um país inteiro, cansado da política convencional, foi às ruas exigir a queda de Fernando de la Rúa. Trocavase de presidente como se troca de roupa. Foram cinco em 12 dias: após De la Rúa, o presidente do Senado, Federico Ramón Puerta; o governador da província de San Luís, Adolfo Rodríguez Saá; o presidente da Câmara, Oscar Camaño; e o governador da província de Buenos Aires, Eduardo Duhalde, que acabou por apoiar Kirchner no pleito do ano seguinte após a desistência de Carlos Reutemann, então governador da província de Santa Fé. Kirchner, ex-governador da província de Santa Cruz, era um candidato improvável. Sofrível orador em um universo balizado pela oratória. Feioso em um espaço guiado por aparências. Originário de uma Santa Cruz responsável por menos de 1% dos votos em um cenário historicamente dominado pelo eixo Buenos Aires-CórdobaSanta Fé. A Argentina era um país quase inviável, com 54,7% vivendo na pobreza e um Produto Interno Bruto (PIB) que recuara 10,9% nos 12 meses anteriores. No pleito de 2003, despontava como favorito o responsável por conduzir o país à calamidade: Carlos Saúl Menem, presidente entre 1989 e 1999, que conquistou o primeiro turno, mas que, frente à reviravolta ocorrida na preferência dos eleitores e à projeção de uma estrepitosa derrota no segundo turno, renunciou à disputa. Néstor, segundo colocado, chegou à Casa Rosada com 22% dos votos. Ambos eram candidatos do mesmo partido, o peronista Partido Justicialista, o que é permitido pela legislação eleitoral argentina. O novo presidente foi um hábil leitor do momento. Menem, cujo Ministério da Economia era comandado por Domingo Cavallo, aplicara à risca as determinações do Fundo Monetário Internacional (FMI), com venda das empresas estatais – operação na época apoiada pelos Kirchner – e manutenção artificial da paridade – a política do “Um a um”, pela qual um peso valia um dólar, o que garantiu em um primeiro momento a redução da inflação e assegurou sensação de bem-estar a uma população que podia se fartar de produtos importados e viajar pagando pouco – as importações foram de US$ 4 bilhões a US$ 25 bilhões entre 1990 e 2000. Chegava-se ao banco com cem pesos e saía-se com cem dólares. Sem poder competir, milhares de agricultores hipotecaram as propriedades. Quatrocentas mil pequenas e médias empresas fecharam as portas, desempregando 1,6 milhão de pessoas. Mais da metade da dívida argentina foi contraída no “tempo perdido”: um país que não produz precisa recorrer a empréstimos. A desocupação foi a 23,6% em 2002 – estava abaixo de 10% uma década antes – e o emprego formal era uma realidade para 34%. “O eleitorado argentino se comporta de maneira conservadora”, avalia o cientista político Franco Rinaldi. “A política se transformou, na Argentina, em um problema quando foi um fator desestabilizador das instituições.” O slogan de Néstor Kirchner na campanha eleitoral de 2003 era “Um país normal”. Simples como os anseios de então da maioria dos argentinos, que queriam somente a “normalidade” de um bom asado aos domingos, um mate na calçada com os vizinhos, mandar os filhos à escola e ter um trabalho. Na Argentina de 2003, “normalidade” era devolver ao país a estabilidade política da democracia representativa e, ao povo, emprego e poder de compra. As 272 assembleias de bairros e cidades surgidas nos anos anteriores não conseguiram avançar em alternativas, e a maior parte da população ansiava pela volta da relação governo-governados. As eleições de 2007, ao consagrarem Cristina presidente, deram uma demonstração de que o governo era bem-visto, leitura ratificada em outubro passado. “As urnas, neste último domingo, nos disseram que este é o caminho que vamos seguir”, disse a presidente dias após a reeleição, reforçando um dos traços-chave do kirchnerismo: guiar-se pelo que indica a conjuntura – “a única verdade é a realidade” é o apotegma do peronismo. “Aqui estamos recuperando o tempo perdido”, somou no discurso pós-triunfo. “Tempo perdido” é o componente de primeira hora do ideário kirchnerista, que, assim, coloca-se em oposição ao menemismo – a fracassada política de Menem. “O povo marcou uma forte opção pelo futuro e pela mudança”, apontava o presidente no dia da posse, 25 de maio de 2003. A preocupação maior dos argentinos era saber se o país teria como honrar os empréstimos assumidos junto ao FMI e ao Clube de Paris. Néstor disse “não” ANTES E DEPOIS Inflação média anual de 1975 a 1991 – 788% de 1992 a 2001 – 4% de 2002 a 2010 – 13% Desemprego em 2011 7,4% Taxa de pobreza na Grande Buenos Aires 38,2% em 1989 18,9% em 1999 25,5% em 2001 39,4% em 2003 8,2% em 2011 Dívida pública em relação ao PIB em 2002, 166,4% em 2011, 46,3% (Fonte: Indec – Instituto Nacional de Estatísticas. Disponível em www.indec.mecon.gov.ar) 54 retratodoBRASIL | 41 Reprodução e foi renegociar a dívida, operação exitosa que permitiu ao país, não isento de custos, livrar-se do arbítrio do FMI. Mafalda, personagem clássica do cartunista argentino Quino, satiriza o mundo adulto ao representar o universo infantil. Susanita, sua amiga, é a tradução da classe média gorila argentina, sempre preocupada em levar uma vida fútil, disposta a reproduzir o senso comum e a assegurar a manutenção do status quo. Em uma tirinha clássica, Mafalda informa ter lido no jornal que 43 milhões de crianças trabalham em todo o mundo. Susanita reage: “Temos a culpa? Não. Podemos solucionar o problema? Não. A única coisa que podemos fazer é indignar-nos e dizer ‘que barbaridade’”. Susanita vira-se a uma Mafalda atônita e diz: “Pronto. Diga você também o seu ‘que barbaridade’, assim nos despreocupamos deste assunto e podemos brincar em paz”. A televisão argentina é um universo repleto de Susanitas, mas nenhuma encarna o papel com mais maestria que a apresentadora Mirtha Legrand. Em 2003, após a vitória, Néstor e Cristina submeteram-se ao crivo do espetáculo, sendo entrevistados por Mirtha. “Sabe o que dizem? Que com vocês vem um zurdaje”, diz Mirtha. Zurdaje é uma expressão de difícil tradução, que saltou dos manuais da ditadura (1976-83) e que significa algo na linha do “comunistinha”. Néstor a faz recordar que a visão de mundo sintetizada por essa palavra levou à morte de 30 Susanita, do cartunista Quino: ridicularizando a classe média insatisfeita 42 | retratodoBRASIL 54 mil pessoas. Sem se abalar, ela arremata: “Bom, também um pouco de zurdaje não vai cair mal em um país na situação em que estamos. Há tanta pobreza, não?”. A votação de outubro de 2011 deixou claro que este governo não cai bem às Susanitas. O espanto teve início logo nas primeiras semanas do kirchnerismo, quando a Espanha solicitou a extradição de militares argentinos para que fossem julgados pelos crimes cometidos contra espanhóis durante o regime autoritário (1976-83). De supetão, o presidente determinou a derrubada dos dispositivos que garantiam imunidade penal aos repressores. Questionado por um ministro sobre a consternação que a notícia provocaria na caserna, Néstor respondeu que poderiam optar por uma condenação no próprio país ou por passarem o resto das vidas em uma prisão na Europa sem receber a visita de parentes. Até agora, mais de 200 colaboradores e cabeças da repressão Néstor Kirchner, de supetão, marcou um tento ao derrubar as leis que davam imunidade aos repressores foram condenados, e em torno de 1,7 mil são alvos de processos. Foi a primeira vez que um presidente se declarou integrante da geração “ceifada” pelo regime, ainda que pairem dúvidas sobre a atuação direta do casal na resistência. Esse foi um fator de aproximação ao eleitorado jovem, que passou a ser um dos vértices do kirchnerismo, sobretudo no governo de Cristina, e mais ainda após a morte de Néstor. Nos últimos anos foi aprovada, por iniciativa do Executivo, a lei que garante aos casais homoafetivos a equiparação de direitos, e passou a ser debatida a legalização do aborto. A crise com o agronegócio foi o ponto mais crítico até agora. Em 2009, o governo de Cristina tentou impor uma retenção maior ao setor que comanda a economia nacional, o que desencadeou uma batalha dura para os dois lados e um forte desgaste da imagem da atual gestão. Foi ali, também, que se deu um novo passo contra o gorilismo. As fortes críticas do grupo Clarín, principal conglomerado de mídia, levaram à ruptura da relação, que, até aquele momento, era ótima. Os Kirchner se dão conta de que o poder do grupo Clarín é uma ameaça à circulação de diferentes pontos de vista e colocam em marcha um antigo anseio de setores acadêmicos, logo transformado em bandeira dos jovens. A nova regulação dos meios de comunicação visa garantir a pluralidade da informação mediante uma distribuição menos desigual das concessões de emissoras. Aprovada em 2009, a Lei de Meios, como ficou conhecida, ainda não foi plenamente implementada por conta de recursos apresentados à Justiça pelo Clarín. Somou-se a isso o Futebol para Todos, depois transformado em Esporte para Todos, decreto por meio do qual a presidente declarou a modalidade preferida dos argentinos de interesse cultural da nação. Isso significa que as transmissões televisivas não poderiam ficar restritas às emissoras por assinatura ou, pior, à modalidade “pague para ver”, fonte de arrecadação que fez aumentar exponencialmente o poderio do Clarín. Na aproximação com as classes baixas, porém, nada teve mais êxito que o Benefício Universal por Filho. O pagamento de uma bolsa mensal a crianças e adolescentes cujos pais estejam desempregados ou atuando no trabalho informal beneficia 4,5 milhões de pessoas, nos moldes do Bolsa Família brasileiro. É um dos fatores que explicam como a Argentina, a exemplo de outras nações da região, saiu antes da primeira perna da crise internacional, entre 2008 e 2009, e tem se segurado melhor nesta segunda etapa. O fortalecimento do mercado interno criou um ciclo no qual aumentam a geração de empregos, a arrecadação do Estado e o poder de compra, garantindo crescimento econômico. Há outra questão comum com os vizinhos: a soja, capaz de encabeçar o crescimento da balança comercial, que, por sua vez, garante o superávit que paga as dívidas argentinas. O aumento vertiginoso do preço no mercado mundial e a melhoria das tecnologias de produção garantiram um aumento da área plantada de 22 milhões para 32 milhões de hectares em 15 anos. A soja responde hoje por 56% da área cultivada com cereais e oleaginosas na oitava maior nação do mundo em território. A exportação de farinha e óleo foi responsável por 23% das exportações argentinas em 2009. Para que se tenha um grau de comparação, no Brasil, onde a sojidependência preocupa, o grão respondeu por 8,5% das vendas ao exterior em 2010, colocando-se na quarta posição da pauta, e neste ano as projeções indicam que chegará a 48% da área plantada com grãos. A queda repentina dos preços da commodity poderia levar a uma redução no crescimento. Além disso, a população nota em seu cotidiano os efeitos da “sojização”: a conversão de áreas de produção de outros vegetais e de pecuária em lavouras para a soja uniu-se a fatores mundiais para elevar os preços nos supermercados. “A inflação é um problema. Saio com cem pesos e não compro quase nada”, diz Daniel Muñoz, um eleitor do kirchnerismo que, como muitos, vive de hacer changas (fazer bicos). “A única saída é tratar de produzir com valor agregado”, diz. Cristina deu demonstrações de que sabe deste perigo. Um de seus últimos compromissos antes das eleições do ano passado foi uma reunião com setores do agronegócio abertos ao diálogo, uma tentativa de transformação da exportação de produtos primários em uma agroindústria. “Foi um gesto muito importante por parte da presidente”, relatou Carlos Garetto, presidente da Confederação Intercooperativa Agropecuária (ConInAgro), que admite ter havido excessos que levaram a perdas dos dois lados. “Abriu-se uma porta. Tomara que a partir daqui possamos ter uma relação normal.” Dias após as eleições, Cristina começou a anunciar uma série de medidas para cercar-se de garantias de que a crise externa não ancore no país. Foi um anúncio feito “picadinho”, sem dar o caráter de um grande conjunto – pois “pacote” remete ao menemismo. Na somatória dos últimos meses, formou-se um projeto de políticas que tentam combater o capital especulativo e retirar gradativamente os POLÍTICAS MAIS BEM AVALIADAS DO KIRCHNERISMO • Julgamento de militares por violações aos direitos humanos durante a ditadura (1976-83): 80% • Polícia Federal atuando em policiamento ostensivo: 79% • Lei de Matrimônio Igualitário, que concede às uniões homoafetivas os mesmos direitos das heteroafetivas: 71% • Benefício Universal por Filho: 67% • Subsídios aos serviços públicos, como água, luz e transporte: 62% • Estatização dos fundos de pensão: 59% (Fonte: Centro de Estudos de Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais da UBA – Universidade de Buenos Aires. 25/10/2011. Publicada originalmente no jornal Página 12) subsídios de uma economia dependente do papel do Estado – uma das conquistas dos primeiros oito anos do kirchnerismo. Incrivelmente, Cristina encontra-se frente a uma das dificuldades detectadas no começo do governo Menem. O empresariado, que entre o fim da década de 1990 e os primeiros anos deste século perdeu muitos recursos por causa da crise de 2001, resiste à promoção de novos investimentos. Em termos absolutos, a compra de máquinas e equipamentos até aumentou, mas em termos percentuais ainda é inferior à obtida nos últimos anos de menemismo. Sem aumento da produção, a demanda força os preços para cima, e há empresários que calculam que podem ganhar o mesmo sem precisar investir. “É uma história cultural que tem a ver com a história econômica nefasta da Argentina”, diz Felisa Miceli, ministra da Economia na segunda metade do mandato de Néstor. “Nosso país tem um enorme território e muito pouca população. Precisamos de um modelo de alto valor agregado.” Um protesto fecha uma das vias de acesso à praça de Maio numa tarde quente de outubro. São professores indignados Reprodução De La Rúa e Eduardo Duhalde: dois dos cinco presidentes que o país teve em 12 dias com mais uma tentativa de corte de direitos promovida pelo chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Mauricio Macri, que está para a Argentina como Aécio Neves está para o Brasil: Susanitas aguardam o momento em que se levantará em prol da oposição aos “malfeitos” do governo federal. Um rapaz de óculos escuros carrega a bandeira da Juventude Peronista, uma de várias organizações kirchneristas presentes. Carlos Días, de 36 anos, é um professor de ensino secundário que cresceu sob teto peronista e acredita que sê-lo é defender causas que seguem vigentes após mais de 50 anos, baseadas em uma “pátria livre e soberana”. “Alguns se montam sob o escudo do peronismo para fazer outras coisas”, diz, em referência a Menem, tão integrante do Partido Justicialista quanto Cristina Kirchner. Carlos e parte da população argentina veem em Macri uma grande semelhança com Menem, com a retomada do livre-mercado e do Estado a serviço dos lucros privados. Macri, confrontado por um governo que é popular por fazer o contrário disso, garante que não – uma dificuldade que não lhe é exclusiva. Antes das eleições, 63,5% indicavam que a oposição não possuía projeto alternativo. Macri terá mais quatro anos para mostrarse. Um intervalo imenso para a política argentina, se pensarmos que, até um ano e meio antes do pleito de 2011, Cristina não parecia ter chances de reeleição, ou que Néstor não tinha qualquer possibilidade de vitória até o começo de 2003. “Falar da Argentina de 2015 é como falar do Brasil de 2094. É uma política de uma dinâmica muito peculiar”, pondera o pensador marxista Atílio Borón. Para ele, o grosso do movimento social, muito identificado ao kirchnerismo, não está em condições de formular alternativas. Por enquanto, a maioria da população nem as quer – ela deseja apenas um país normal. 54 retratodoBRASIL | 43 Música 1 CLÁSSICO REENCONTRO Dori e Danilo: a dinastia musical sem o patriarca por Tárik de Souza 44 | retratodoBRASIL 54 partir dos títulos são as densas “Canção do amor rasgado” (com Geraldo Carneiro) e “Arabesco” (“O revés do mar é meu deserto/ a minha casa, o meu norte incerto”), esta escrita com a filha Alice Caymmi, convidada da faixa. A mesma Alice divide com Pinheiro e Danilo a autoria da valseada e filosófica “Carrossel” (“carrilhão é o giro que os ponteiros dão/ mostrando a precisão do tempo da ilusão”), num prenúncio de continuação da dinastia. Dori Caymmi ficou um ano sem compor, emudecido pelo choque da morte dos pais. Só conseguiu retomar o fluxo criativo ao encontrar numa gaveta e musicar “Rede”, um poema do parceiro – comum ao irmão, Danilo – Paulo César Pinheiro. A dupla autoral (“nossa obra não é numerosa em se tratando de tanto tempo, menos de cem canções”, A força do sobrenome: Nana, Dori e Danilo fazem jus ao talento do velho Caymmi FolhaImagem QUANDO, EM 1960, Dinair Tostes Caymmi, a Nana, gravou com o pai, Dorival Caymmi, “Acalanto” – cantiga de ninar dele para ela –, estava inaugurando ao mesmo tempo uma carreira fulgurante de cantora e uma das mais sólidas dinastias musicais da MPB. O sobrenome Caymmi ainda ganharia o reforço musical dos filhos mais novos, Dori e Danilo. De trajetos singulares, eles voltam a encontrar-se em dois discos lançados praticamente ao mesmo tempo em 2011, após as mortes do patriarca e de sua mulher, a também cantora Stella Maris, ambas ocorridas em agosto de 2008. Danilo Caymmi lançou Alvear (Biscoito Fino) e o mano Dori, Poesia musicada (Acari Records). Mais afeito à dicção pop, ainda que depurada (é autor, com parceiros diversos, dos sucessos “Andança”, “Casaco marrom”, “O bem e o mal”, “Meu menino”, “Céu de estio”), Danilo estreou em disco tocando flauta no clássico encontro familiar, Caymmi visita Tom [Jobim] e leva seus filhos, Nana, Dori e Danilo, de 1964. Largou um curso de arquitetura no quinto ano e seguiu entre festivais de música e trocas de gravadoras, enquanto construía uma obra autoral de relevo, ainda pouco avaliada, a bordo do timbre vocal encorpado, impresso no DNA. De capa simples e clara, Alvear anuncia o embranquecimento dos cabelos do solista e delineia temas diretos em alvos, como a desiludida “Retirança” (“feito avoantes de arribação/ os retirantes também vão/ fugindo ao sol do Nordeste”), parceria com Paulo César Pinheiro, trespassada pela voz de Nana Caymmi. “Se a correnteza quiser me impedir/ eu rasgo a mata e o ar”, promete a determinada “Okê arô”, parceria com Arthur Verocai. Autoexplicativas a calcula) foi inaugurada em 1970, com “Evangelho”, regravada pelo MPB4. E teve êxitos como “Desenredo”, “Velho piano”, “A porta”, “Desafio” e “Estrela da terra”. Dori, como o irmão, também se projetou nos festivais. A canção “Saveiros” foi seu ponto de partida na voz da irmã, Nana, e vencedora do FIC, de 1966, com Nelson Motta (seu parceiro ainda em “De onde vens”, “O cantador”, “Festa” e “Velho pescador”). Construiu uma sólida trajetória como arranjador e vive em Los Angeles, nos EUA, onde ainda encontra mercado para seu estilo clássico de orquestração acústica, alicerçado por cordas opulentas. Poesia musicada, também de capa singela, como seu recheio desnudado e sóbrio, é lastreado no violão poderoso do solista, às vezes sem qualquer outro acompanhamento. Soa como um disco da vertente “canções praieiras”, que seu pai inaugurou na MPB nos anos 1950. Deslizam mansas na voz bem timbrada do solista “Canto praieiro”, “Rede”, “Barco”, “Marinheiragem”, “Dona Iemanjá” e a evidente “Velho do mar (meu pai)”. Em “Estrela verde”, há um curioso diálogo entre um poeta e um canoeiro (“Poesia é peixe não/ mas se pesca de canoa/ na maré do coração”). “Vereda” sabe a baião; “Projeto de vida” desenha uma utopia; e “Violeiro”, a profissão de fé do artista: “Porque a vida para/ para quem não cria”. Divulgação Música 2 Amélia Rabello: aos 39 anos o quinto disco, com a nítida influência do irmão HERDEIROS DE RAPHAEL O rigor dos Rabello e a ginga dos Faria em discos familiares por Tárik de Souza A CANTORA AMÉLIA RABELLO chega aos 39 anos de carreira apenas no quinto disco solo, A delicadeza que vem desses sons (Acari Records). Ela começou em 1972, num Festival Universitário, da extinta TV Tupi. Defendia “Paralelo” (Ricardo Ventura/ Tadeu Leal), que só foi gravar em 1983, num disco do projeto Seis e Meia (criado no Rio de Janeiro nos anos 1970 pelo agitador cultural Albino Pinheiro, com o objetivo de dar espaço a talentos pouco divulgados pela grande mídia, e reproduzido Brasil afora por entidades culturais oficiais). Ela é irmã da cavaquinista Luciana Rabello, integrante dos grupos Os Carioquinhas e Camerata Carioca e fundadora da Escola Portátil de Música com o violonista Mauricio Carrilho, também seu parceiro no selo Acari Records, ambos projetos de difusão do choro. Amélia e Luciana são irmãs do violonista Raphael Rabello (1962–1995, virtuose das sete cordas, cuja obra autoral a cantora registrou em Todas as canções, de 2002). É uma família de alto rigor musical e sem ne- nhum apego ao estrelato banal. Mesmo elogiada por um grande propulsor de carreiras como Caetano Veloso (“fiquei impressionado com aparição da alma do samba assim exposta numa precisão musical de cantor jazzístico”, ratificou ele em sua coluna de jornal em setembro passado), Amélia seguiu o trajeto discreto reservado hoje pelo mercado aos avessos a concessões. Sua voz muito afinada tem um travo de amargura situado entre Dalva de Oliveira e Elizeth Cardoso, adequado a sambas lamentosos como “Tempo perdido” (Ataulfo Alves), “Tanta despedida” (Moacyr Luz), “Com as mãos vazias” (Pedro Amorim) e “Alma vazia”, de Roque Ferreira, cuja letra exorciza: “Tanto ser humano sem humanidade/ um jogo de falsidade/ tanto Judas se passando por Jesus (...) não vai encontrar felicidade/ quem fez do dinheiro profissão/ e da ambição foi mercador/ quem viveu assim não percebeu/ que em cada tostão que ganhou/ perdeu a alma”. Boa parte do repertório traz assinaturas de familiares da majestosa intérprete. Nove das treze composições têm letras do poeta Paulo César Pinheiro, como o manifesto “Santa voz” (parceria com Baden Powell), o samba-ode “Seu Ataulfo” (com Radamés Gnattali) e o pianado “Velho ninho” (com Cristóvão Bastos). Paulo é casado com Luciana Rabello, os autores de mais duas faixas do CD, “Estigma” e “Velhos chorões”. E há ainda “Descuido”, de Paulo Cesar com o filho Julião Pinheiro, sobrinho de Amélia, como o violonista João Rabello, que acaba de lançar seu segundo disco, Uma pausa de mil compassos (Biscoito Fino). Este é filho de Lila Rabello, irmã de Amélia, casada com Paulinho da Viola, autor do etéreo samba “Para ver as meninas”, de 1971. A faixa abre o disco e forneceu a frase do título, embora ela não seja dita. Uma pausa de mil compassos é somente instrumental e, com exceção dessa música, trata-se praticamente de um álbum de canções de João Rabello. Anteriormente, em seu disco de estreia, Roendo as unhas, de 2006, havia duas composições do pai, duas de Radamés Gnattali, mais autores clássicos de temas para o instrumento, como Agustín Barrios, Garoto e Antonio Lauro, e só três músicas do solista. Uma delas, “Sarau para César”, em parceria com o pai, homenageava o avô, César Faria, violonista do grupo de Jacob do Bandolim, onde a dinastia de cordas começou. Os temas de João Rabello também atestam as influências recebidas do tio Raphael (“desde quando o ouvi no disco Relendo Dilermando Reis, em 1994”), como na intrincada “Procurando” e no sincopado recorrente de “Dobrando esquinas”, ambas calçadas pela bateria de Rafael Barata. Da primeira, também participa o baixista Matias Correa, que ainda pontua a reflexiva “Enquanto esqueço” e a tensa “Um choro perdido”, espiralada por escalas. Em “Outra coisa”, João revela mais uma faceta, a de arranjador, para violoncelo e sopros (flauta, clarone e trombone) num clima de profundidade camerística reafirmado em “Pode ser”, com piano e cello. Trafegando com desembaraço entre as fronteiras do popular e do erudito, o rigor dos Rabello e a ginga dos Faria, João leva adiante a apropriação brasileira do violão europeu, um instrumento que hoje fala a nossa língua. 54 retratodoBRASIL | 45 Música 3 O OCEANO ARTÍSTICO DE MARIO LAGO Boêmio, poeta, escritor, dramaturgo, novelista e excelente ator, navegou como poucos nos mares da composição por Tárik de Souza ilustração Cássio Loredano FILHO ÚNICO DO maestro do teatro de revistas Antonio de Pádua Jovita Correa do Lago (1887-1955), neto de músicos por parte de pai (José) e mãe (o calabrês Giuseppe Croccia, que era anarquista), Mario Lago (1911-2002), nascido na rua do Resende, na efervescente Lapa, no centro do Rio de Janeiro, contrariou sua predestinação. A mãe, Francisca Maria Vicência Croccia, o queria diplomata, porque ele “era alto e magro e ficaria bem de fraque”. A história foi contada entre risadas pelo próprio, em entrevista ao programa “MPB Especial”, de Fernando Faro, na TV Cultura, em 1973. De alguma forma, Mario Lago acabou satisfazendo o desejo da mãe: vestiu fraque, mas num de seus inúmeros papéis como ator, carreira em que se destacaria a ponto de ofuscar a de compositor, a partir da estreia, em 1944, na rádio Panamericana, de São Paulo. Por 17 anos, reinou na Nacional, do Rio de Janeiro, no cinema (fez 18 filmes depois do inaugural “Asas do Brasil”, sob a direção de Moacyr Fenelon, em 1947) e em emissoras de TV, até próximo de sua morte, aos 90 anos. Foi também dramaturgo, novelista e ainda publicou uma dezena de livros como escritor e poeta, entre eles Chico Nunes das Alagoas (1966), Na rolança do tempo (1976) e Bagaço de beira-estrada (1977). Era contraditório que a família não o quisesse músico, já que, aos 7 anos, ele estudava piano clássico com a professora Lucília Guimarães Villa-Lobos, mulher do maestro Heitor Villa-Lobos. A decisão de suspender os estudos no sexto ano foi do próprio Mario, que cursou o então rigoroso Colégio Pedro II e formou-se em direito, mas exerceu a profissão de advogado apenas por três meses. Na faculdade, já se dividia entre a política, 46 | retratodoBRASIL 54 no Partido Comunista Brasileiro (em 1932, foi detido e fichado pela primeira vez; seriam sete prisões ao longo da vida), e a vida boêmia. Em 1933, começou a escrever revistas para teatro, como Figa de Guiné, em parceria com Álvaro Pinto. Debutou na música pelo lado politicamente incorreto, na marchinha “Menina, eu sei de uma coisa” (“que pode sua vida encrencar/ se você não quer fazer camaradagem/ me desculpe, mas eu vou espalhar”), parceria com Custódio Mesquita, lançada por Mario Reis para o Carnaval de 1936. A inspiração surgiu quando a dupla viu a filha de um político famoso sentada à mesa do Hotel Glória, no Rio Na faculdade de direito, já se dividia entre o Partido Comunista, a vida boêmia e a dramaturgia de Janeiro, com um sujeito mais velho, e a imaginaram como garota de programa. “É uma letra de dedo-duro, da qual me envergonho”, lamentou na entrevista ao programa, em que também admitiu não ter sido amigo de Noel Rosa, por conta de disputas amorosas nos cabarés que ambos frequentavam. Ainda em 1936, com o mesmo Custódio, um de seus mais assíduos parceiros, escreveu a burleta “Sambista da Cinelândia”, montada no teatro Fênix. A música-título da revista foi gravada pela estrela da época, Carmen Miranda, e celebra a redenção do samba: “Hoje está tudo mudado e acabou a oposição/ escolas há por todo lado/ de pandeiro e violão”. Também da parceria com Custódio sairia o primeiro clássico atemporal de Lago, o fox “Nada além” (“de uma ilusão/ acreditando em tudo que o amor/ mentindo sempre diz”), na voz de Orlando Silva, em 1938, com regravações posteriores de Cauby Peixoto (1956) e Maria Bethânia (1970). O mesmo Orlando, “o cantor das multidões”, de voz aveludada e melíflua, considerado o melhor de sua época, ainda registraria outras parcerias de Lago com Custódio (a valsa “Enquanto houver saudade”, 1938, o choro “Mentirosa”, 1941), Roberto Martins (o fox “Dá-me tuas mãos”, 1939) e “Número um”, parceria com o flautista Benedito Lacerda, um prato cheio para a oposição das feministas: “Satisfaz tua vaidade/ muda de dono à vontade/ que isso em mulher é comum”, fustiga a letra, regravada por artistas que não podem ser considerados machistas, como Caetano Veloso (1978) e Ney Matogrosso (1991). Lago a excomunga no mesmo programa (“Quero pedir desculpa e fazer uma autocrítica”), mas não há como denegrir outro totem, também combatido pelas feministas, “Ai que saudades da Amélia”, memorável parceria com Ataulfo Alves, que perpetuou esse nome feminino. Para uns, como símbolo da mulher passiva, embora Lago preferisse ver sua narrativa pelo lado da cumplicidade solidária entre um casal de desafortunados. Ele se baseou na história real de estoicismo da empregada do irmão da cantora Araci de Almeida. Lago a transformou num poema, adaptado por Ataulfo, que não conseguiu despertar o interesse de nenhum cantor (“Isso foi feito para acompanhar enterro”, objetaram). Com sua voz ralentada, cercada por coro feminino, mais tarde apelidado de “Pastoras”, o próprio Ataulfo fez o registro, em novembro de 1941. Ainda era raro que os compositores – ainda mais negros, como ele – gravassem suas próprias músicas, mas “Amélia” tirou o primeiro lugar no concurso de Carnaval do ano seguinte – empatada com outro clássico, o samba “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo –, tomou conta da folia e perpetuou-se em regravações, como as de Roberto Carlos (1967), raríssimo intérprete de sambas, Zeca Pagodinho (1991) e até o vanguardista Itamar Assumpção (1996). Com Ataulfo, Mario Lago também tomaria de assalto outro Carnaval, em 1944, por meio do bíblico samba “Atire a primeira pedra” (“aquele que não sofreu por amor”), também na voz de Orlando Silva. Farrista confesso, a despeito dos compromissos com o antigo Partido Comunista Brasileiro, responsáveis por várias privações (a cada golpe da direita, ele já preparava a maleta de acessórios pessoais que levaria para a prisão), Mario Lago havia pontificado em outro Carnaval, o de 1941, com a marchinha “Aurora” (a da rima heterodoxa “Se você fosse sincera/ veja só que bom que era”), parceria com Roberto Roberti, pela dupla Joel & Gaúcho. Carmen Miranda a levou para os EUA, onde teve outras 17 gravações e chegou ao filme “Segure o fantasma”, da dupla de humoristas Abbot & Costello. Em 1946, o radiador Mario Lago uniu-se ao compositor e o samba-canção “Fracasso” (letra e música dele) para a novela homônima afrontou o título e se tornou enorme sucesso, pelo rei da voz, Francisco Alves. Fafá de Belém revisitou a música, 30 anos depois, em seu disco de estreia, Tamba tajá, de 1976. O ecletismo de Mario Lago como autor de obra ainda pouco estudada o levou das valsas gravadas por Luiz Gonzaga (“Devolve”, 1946), Carlos Galhardo (“Não quero saber”, 1941) e até Nelson Ned (“Será”, 1970) ao aval para o início da carreira de Emilinha Borba (“Faça de conta”, com Custódio Mesquita, e “Qual a razão?”, com Antonio Almeida, ambos em 1939) e o afago na rival da era do rádio, em “Marlene, meu bem” (1955). Do samba-choro brejeiro (“É tão gostoso, seu moço”, com Chocolate), por Nora Nei, em 1953, à bossa “Baladinha lítero-musical”, na voz de Lucio Alves, em 1960. Concorreu ao célebre Festival da TV Record em 1967 (“Anda que te anda”, com Ary Toledo), foi parceiro do maestro Radamés Gnattali (“Tanto amor nunca mais”), na trilha da novela global “Cuca legal” (1975), e sambou em “Quem chegou já tá”, na voz de Hugo Carvana, diretor e ator do filme “Se segura, malandro” (1978). Contrariado com a proibição do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP, do Estado Novo de Getulio Vargas) aos versos de seu samba “ai, ai, a vida do pobre é penar/ a vida do rico é gozar”, o compositor Rubens Soares foi confortado por Mario Lago. Ele escreveu na hora uma nova letra metafórica (“ai, ai, o galo é que está com a razão/ poleiro de pato é no chão”) e conseguiu passar a mesma mensagem, gravada por Francisco Alves, em 1941. Era o político por trás do artista, cuja obra ciclópica foi comemorada em diversos eventos – no Rio de Janeiro e em São Paulo –, a partir da data do centenário do seu nascimento (26 de novembro do ano passado), num projeto organizado por sua família. “Homem do século XX”, ele tem um site (www.mariolago.com.br) com sua produção artística. Foi também realizada uma exposição, inaugurada uma estátua na praça Mario Lago, no centro do Rio de Janeiro, e lançados um selo pelos Correios, um documentário e mais dois CDs – um deles de canções inéditas e poemas musicados por compositores como Caetano Veloso, Lenine, Jards Macalé, Frejat, Arnaldo Antunes, Pedro Luís, Joyce e Delcio Carvalho. Um século, afinal, foi pouco para o oceano artístico celebrado por Gilberto Gil na música “O mar e o lago”, em seu disco Quanta, de 1997. 54 retratodoBRASIL | 47 Livro 1 Divulgação MEIO CONSTRANGIDA POR seus belos olhos azuis que lembram a cinematográfica Jodie Foster, a nova-iorquina Lisa Randall coleciona feitos de causar espanto na maioria dos colegas de ciência. E assédios também. Ira Flatow, premiado âncora da rádio pública americana NPR, acabou nas páginas do New York Times por uma imprudência no ar. O blog de ciência Cosmic Variance acusou Flatow de passar uma cantada ao vivo na cientista, sem falar no conteúdo machista implícito do tipo “bonita e inteligente”. Aos 49 anos, solteira e sem filhos, Randall é altamente competitiva, acredita no poder dos desafios e não quer nenhum desconto por ser mulher, como ela não cansa de repetir. Seu currículo dá inveja a qualquer marmanjo barbudo da área de física teórica. Além de ser a primeira mulher titular na cadeira de física em Harvard, a universidade mais conceituada do mundo, ela coleciona as primeiras titularidades femininas em Princeton e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). E foi a pessoa que mais se destacou em física teórica em todo o planeta durante cinco anos, período em que ocorreram mais de 10 mil citações de seu trabalho por outros cientistas. A carreira de Randall começou na famosa e de difícil acesso Stuyvesant High School, em Nova York, onde foi colega de classe do não menos famoso cientista das teorias de cordas Brian Greene, autor de O universo elegante [Companhia das Letras, 2001] e O tecido do cosmo [Companhia das Letras, 2005]. Recentemente, ela foi de novo para a ribalta, meio a contragosto, quando o presidente de Harvard, ELA QUER BATER NA PORTA DO CÉU A física teórica Lisa Randall, musa dos cientistas contemporâneos, fala de ciência, religião, verdade, beleza, simetria. De quebra, tem experimentos para detectar partículas vindas de outras dimensões do espaço-tempo por Flávio de Carvalho Serpa 48 | retratodoBRASIL 54 Lawrence Summers, cometeu a gafe de declarar que são poucas as mulheres na ciência por causa de diferenças genéticas. Na polêmica que estourou, ele acabou tendo de admitir que falou demais e Randall foi indicada para trabalhar numa força-tarefa com o objetivo de monitorar a participação científica feminina e sugerir medidas reparadoras da situação. Depois de conquistar seu lugar na difícil área da física teórica, Lisa enveredou também pelo campo da divulgação científica. Afinal, ela nunca abandonou as aulas tradicionais de física básica nas várias universidades por que passou. Seu primeiro livro, Warped Passages (Passagens torcidas, sem tradução no Brasil), foi um grande sucesso internacional em 2005, mas aparentemente não vai chegar tão cedo ao leitor brasileiro, se algum dia chegar. Ela acaba de lançar sua segunda obra: Knocking on heaven’s door (Batendo na porta do céu, sem tradução no Brasil). Enquanto Warped Passages foi um livro de divulgação científica essencialmente baseado no paper que lhe rendeu as mais de 10 mil citações, Knocking on heaven’s door (o título é uma referência a uma canção de Bob Dylan) tem ambição mais ampla, enveredando até por teorizações filosóficas sobre arte, beleza e verdade. Ou mesmo opiniões práticas sobre trivialidades, como os aparelhos da moda da Apple. “O iPod é só engraçado, mas inútil”, escreve ela. Knocking on heaven’s door, para Randall, que é declaradamente ateia, é uma metáfora da busca atávica dos humanos pelo conhecimento. Se os religiosos vão buscar revelações nas esferas celestes, Lisa tem outro caminho: a ciência e o materialismo, sem concessões místicas. “A parte religiosa do cérebro não pode agir ao mesmo tempo que a científica. Elas são simplesmente incompatíveis”, escreve ela. Os primeiros capítulos do livro são justamente de negação da revelação religiosa como fonte de conhecimento da natureza. Mas ela admite que “as pessoas querem respostas e orientações que a ciência não pode dar”, especialmente quanto ao conforto existencial. Para entender seu mais recente livro, é preciso voltar ao primeiro, Warped Passages. Nele Lisa explica sua teoria para resolver um dos grandes mistérios da física: por que a gravidade é uma força tão fraca em comparação com as outras, como o magnetismo, a eletricidade e as forças atômicas? O problema pode parecer bizarro e menos importante que assuntos mais populares, como o famoso bóson de Higgs ou o Big Bang, mas, se for resolvido, pode levar à solução de muitos outros problemas atualmente intratáveis da física e da cosmologia. Quem leva um tombo imagina que a força da gravidade é poderosa, mas basta um ímã para atrair um clipe metálico, vencendo a força da gravidade de todo o planeta. Curiosamente, Lisa teve o seu encontro traumático com a gravidade numa desastrada aventura de alpinismo, que pratica sempre que tem folga. Despen- Lisa enfrenta um grande mistério da física: como um simples ímã vence a força da gravidade de todo o planeta? cou de uma montanha e acordou num helicóptero, voando às pressas para o hospital, com o calcanhar quase destruído e escoriações generalizadas. Ela foi acidentalmente atraída pela gravidade, quando escalava uma rocha no Parque Nacional de Yosemite. A pancada gravitacional teve sua compensação, como no caso de Newton, que teria sido inspirado pela queda gravitacional de uma maçã na sua cabeça. Durante vários meses, presa a uma cama com a perna engessada, rascunhou o Warped Passages e pôde refletir ironicamente sobre a força da gravidade, que considera ser tão fraca. Se ela fosse um pouco mais forte, o tombo de Yosemite resultaria num bonito epitáfio: aqui jaz a jovem Lisa Randall, a física teórica mais citada durante cinco anos, aquela para quem o inglês Stephen Hawking guarda o lugar na mesa enquanto ela vai ao pódio proferir suas esotéricas palestras teóricas, sobre dimensões adicionais ocultas do nosso Universo. Warped Passages não é uma obra de exploração dos mundos com mais dimensões, mas sim uma que usa o recurso de uma dimensão adicional oculta para explicar a debilidade da força gravitacional. Não espere encontrar especulações sobre como poderiam ser os seres grotescos ou formidáveis de uma dimensão onde a força da gravidade é tão poderosa. Mas ao longo do livro vão aparecer coisas espantosamente exóticas, como as “branas”, o nome genérico da nossa popular membrana, que é uma entidade matemática de três dimensões, como o couro de um tambor. Uma membrana clássica é um caso particular de brana com apenas duas dimensões, mas teoricamente poderia ter mais dimensões. Quando essa brana tridimensional ressoa, ela obedece a equações matemáticas da mesma forma que uma corda de violino ou um batuque do tambor. A totalidade do Universo é uma coisa chamada “bulk” (o volume) ou “espaço de imersão”, com muitas dimensões. Dentro dele podem existir várias branasmundos, também de dimensões variadas, mas sempre com menos dimensões que o “bulk”. Segundo a tese de Lisa, vivemos numa brana privilegiada (do KNOCKING ON HEAVEN’S DOOR Autora Lisa Randall Editora Ecco/HarperCollins Publishers Ano 2011 Páginas 442 54 retratodoBRASIL | 49 nosso ponto de vista, claro), com três dimensões espaciais e o espaço-tempo. Mas, por algum acidente cósmico ou por força de alguma lei desconhecida, a gravidade, que faz maçãs e alpinistas despencarem, não mora na nossa brana. As branas que ela afeta estão quase amontoadas em outra, batizada de branaPlanck, onde ela reina absoluta e com potência plena. Quando Randall e seu colega coautor Raman Sundrum fizeram os cálculos e equações, em 1999, descobriram que o caminho ou o tecido do espaço-tempo entre as branas contidas no “bulk”, o nosso Universo, teria de ser fortemente torcido. Quer dizer, a força da gravidade (ou os grávitons, suas partículas portadoras) tinha de vazar da brana-Planck e se retorcer até a nossa brana, a que contém todas as nossas galáxias visíveis. Por essa razão, a gravidade chega aqui tão fraca, teoriza a pesquisadora americana. Na brana onde ela se origina, é tão forte como o eletromagnetismo e as forças atômicas – se essas forças existirem lá. Pode parecer coisa de ficção científica, mas os cientistas do Cern, o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, levaram a tese de Lisa a sério e estão preparando experimentos no LHC, o grande colisor de prótons, para testar a teoria. Quando o LHC estiver operando a todo vapor, existe a possibilidade de aparecerem nos detectores os rastros de uma partícula viajante de outra dimensão. A partícula KK (Kaluza-Klein), como seria apelidado esse viajante, no entanto, é muito furtiva. Os físicos de partículas vão ter de se contentar em ver apenas os rastros deixados pelos viajantes da outra dimensão. O grande colisor do Cern é como uma superpista onde dois feixes de prótons, acelerados em direções opostas, colidem numa área cheia de detectores. A colisão quebra os prótons e, além dos cacos, gera energias suficientes para criar À procura da partícula KK, os físicos terão de contentar-se com rastros originados de outra dimensão novas partículas, segundo a fórmula E = mc2. Como as energias são muito altas, aparecerão partículas muito pesadas e instáveis, que não existem livres na natureza. Uma delas pode ser a Kaluza-Klein, segundo espera Randall. Essa entidade na verdade está prevista desde 1920, quando os físicos Theodor Kaluza e Oskar Klein resolveram adicionar mais dimensões às equações relativísticas de Einstein. Essa famosa equação de gravitação universal é matematicamente escalável. Isso quer dizer que o físico pode incluir nela tantas dimensões (além das tradicionais x, y, z) quanto quiser, sem atrapalhar a consistência matemática e a ortodoxia da equação. Foi esse também o caminho que Lisa e Raman Sundrum tomaram. Partiram dessas clássicas equações einsteinianas, incluindo mais uma dimensão que não conseguimos ver ou detectar. A única concessão não ortodoxa, e bem eclética, foi usar a ideia matemática da brana, um conceito que vem da polêmica teoria de cordas. Pelos cálculos de Lisa e Sundrum, os “raios” de gravidade (ou a rota dos grávitons, que seriam as partículas portadoras da força de gravidade) não sairiam da sua brana de origem em feixes paralelos, mas, por exigências matemáticas, teriam de avançar num espaço-tempo espremido e torcido, onde perderiam força exponencialmente. A partícula KK, se detectada no LHC, viria de um universo onde a hierarquia das forças seria respeitada, sendo a gravidade tão forte quanto as outras forças básicas da natureza cósmica. Knocking on heaven’s door é uma obra mais ambiciosa, se não em profundidade, pelo menos em abrangência. Segundo a autora, são dois livros na verdade. “Um é a origem do meu primeiro livro, combinada com uma atualização sobre onde estamos agora e sobre a expectativa A GRAVIDADE É UMA VISITANTE DE OUTRA DIMENSÃO? Na hipótese de Lisa Randall e Raman Sundrun o universo tem cinco dimensões com bolhas de três dimensões chamadas branas. Uma brana paralela à nossa pode conter alta densidade de grávitons. O LHC vai testar essa hipótese Berço da gravidade Brana onde os grávitons estão concentrados e de onde “vazam” para nossa brana 50 | retratodoBRASIL 54 Quinta dimensão O espaço fica torcido pela energia através do espaço-tempo de cinco dimensões. Assim a gravidade chega enfraquecida no nosso mundo Grávitons que transmitem a gravidade podem viajar entre as branas A brana local é o nosso universo, onde as forças conhecidas estão presas, exceto a gravidade Caminhos torcidos Como o espaço-tempo é torcido, as coisas são exponencialmente maiores e mais leves na nossa brana que temos”, especificamente sobre os coelhos imprevistos que podem sair do chapéu mágico dos dados revelados pelo LHC nos próximos anos. Apesar de ser física teórica de formação, Lisa mergulhou nos detalhes técnicos de engenharia dessa monumental máquina – a maior já construída no planeta – para explicar como ela vai funcionar e o que poderia se esperar dela. Os problemas técnicos e eletrônicos não são apenas detalhes. Afinal, sua teoria do viajante de outra dimensão vai ser testada no LHC e ela quer saber todos os detalhes de como isso vai ser feito. De fato, os cientistas do LHC, além da teoria geral, devem dominar a tecnologia eletrônica dos detectores que vão registrar os rastros das partículas resultantes das colisões de prótons no acelerador. Os sensores do LHC são tão sensíveis que os físicos tiveram de adicionar aos softwares de registro coisas como o nível da água no lago Genebra, que fica perto do colisor e pode alterar as leituras embaixo da terra. No LHC, a fronteira entre físicos teóricos e experimentais está embaralhada e não há lugar para especializações estanques. Nos primórdios da física de partículas, esses sensores, além de toscos, deixavam rastros visíveis aos olhos do pesquisador. Por exemplo, usavam-se filmes fotográficos onde as partículas deixavam um rastro de passagem e o enxame de outras partículas quando havia desintegração ou choque. Mas as partículas que o LHC busca são muito ariscas. Elas raramente interagem visualmente com o material do sensor. Bizarramente, muitas das medidas que vão ser feitas miram em partículas que simplesmente desaparecem. Mas sabendo a energia e a trajetória da partícula original, os cientistas podem calcular a diferença de energia que desapareceu. Isso quer dizer que foi formada uma partícula que não interage com as formas de matéria dos sensores e das forças conhecidas ou que simplesmente fugiu para outra dimensão. Para quem tiver a perseverança de atravessar esse capítulo – que a própria autora sugere pular –, a obra apresenta um sintético balanço do estado atual dos conhecimentos científicos sobre a matéria. Em resumo, estamos praticamente onde estávamos na década de 1970, quando foi consolidado o chamado “modelo-padrão”, uma tabela que reúne de forma organizada todas as forças e partículas conhecidas, com a notável exceção da força da gravidade. O LHC, essa poderosa máquina europeia, vai provocar colisões com as energias existentes no universo na idade de apenas alguns trilionésimos de segundo após o Big Bang. Nos destroços dessas colisões, os físicos esperam achar sinais de novas partículas que não só revelem o bóson de Higgs, a partícula que dá massa a todas as outras, mas também ampliem o modelo-padrão. E como surgiu esse milagroso bóson de Higgs, também apelidado de “partícula Deus”? Nesses trilionésimos de segundo após o Big Bang, o universo se expandiu, esfriou e mudou de fase, “como a transição de fase que acontece quando a água líquida em ebulição passa à fase de Ela pretende chegar a uma teoria final que junte a da relatividade com a mecânica quântica vapor”. Para os adeptos do materialismo dialético, é a famosa transição de saltos quantitativos para um salto qualitativo hegeliano. Nessa nova fase do universo em expansão, aparece um campo qualitativamente novo, o campo de Higgs. As partículas que interagem com ele ganham massa, assim como o elétron ganha carga elétrica do campo eletromagnético. O fóton não interage com o campo de Higgs e, portanto, não tem massa e pode viajar na velocidade da luz, sem sofrer “atrito” com esse campo milagroso. A parte do livro em que Lisa filosofa sobre ciência, simetria, beleza e verdade não é diletantismo poético, e sim uma prática de metodologia. Desde o surgimento da mecânica quântica, no começo do século passado, muitos cientistas teóricos foram tentados a ver a “elegância” de uma equação matemática como prova da sua verdade. Hoje em dia, a teoria de cordas é essencialmente uma formulação matemática abstrata e bonita, que não tem como ser provada na prática. A teoria de cordas e sua rival, a da gravitação quântica, são teorias chamadas de “top-botton” (de cima para baixo), nas quais os elementos primordiais são definidos e depois se deduzem as escalas mais baixas. Lisa é adepta de abordagens “botton-top” (de baixo para cima). Ela parte da nossa realidade conhecida e sobe as escalas de energia para tentar chegar até o topo, numa suposta teoria final que explique tudo e una a teoria da relatividade com a mecânica quântica. Mas, enquanto isso, ela lida com o conceito de “teoria efetiva” que vale numa determinada “escala”. Assim ela afasta, provisoriamente, o espinhoso problema da unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica, coisa em que Albert Einstein se empenhou sem sucesso até o fim da vida. Há também um capítulo que trata especificamente da ideia de simetria. Mas o conceito é mais amplo do que o da beleza simétrica de borboletas, faces humanas ou da pintura e fotografia em geral. Na física, a simetria inclui também a simetria de forças e equações. A quebra de simetria, muito ao gosto da pintura japonesa, como observa Lisa, tem consequências fundamentais para as leis físicas. Quando a natureza exclui uma opção simétrica, coisas espantosas acontecem. O fenômeno físico mais famoso, que também vai ser testado no LHC, é o aparecimento de um campo de forças assimétrico para o bóson de Higgs, que, como já foi dito, confere massa a todas as partículas, da mesma maneira que um campo elétrico confere carga elétrica a um elétron. Outro fenômeno que está sendo estudado no LHC envolve a quebra de simetria entre a quantidade de matéria e antimatéria logo após o Big Bang. Não fosse a natureza favorecer a matéria comum, por alguma razão ainda não totalmente esclarecida, matéria e antimatéria teriam se aniquilado ao longo do tempo e só restaria a energia pura no universo. Portanto, estamos aqui estudando o Big Bang no LHC porque a natureza violou uma simetria básica. Se os filósofos gregos imaginavam que beleza, simetria e verdade eram a mesma coisa, erraram redondamente. Ou melhor, esfericamente, nessa nova era de coisas multidimensionais. 54 retratodoBRASIL | 51 GettyImages Livro 2 O QUE FAZ A RIQUEZA (E A POBREZA) DAS NAÇÕES Segundo Erik Reinert, países pobres se especializam em ser pobres, produzindo commodities, e os ricos se especializam em ser ricos, com a produção industrial por Pergentino Mendes de Almeida ASSISTA AOS COMENTÁRIOS especializados na TV aberta ou paga, ou dê uma olhada nas manchetes do noticiário econômico da imprensa escrita. Você ficará com a impressão de que não existe vida inteligente fora dos cânones e limites estabelecidos pela ortodoxia do Consenso de Washington Mas existe. How rich countries got rich... and why poor countries stay poor (Como as nações ricas enriqueceram... e por que as nações pobres continuam pobres, em tradução livre), livro do economista norueguês Erik Steenfeldt Reinert, especialista em desenvolvimento e história econômica, é um exemplo disso. Reinert nasceu em Oslo, formou-se em economia em St. Gallen, na Suíça, e fez pós-graduação nas universidades americanas de Harvard e Cornell. Durante seus estudos, realizou trabalhos de desenvolvimento comunitário em regiões pobres dos Andes peruanos. Depois se tornou um grande empresário na Itália, mas resolveu dedicar-se, mais recentemente, a apenas dar aulas e fazer pesquisas sobre economia e ambiente, na Universidade de Oslo. Para entender suas análises, é preciso antes falar sobre os conceitos de retornos crescentes, constantes ou 52 | retratodoBRASIL 54 decrescentes. São simples de entender. Digamos que você tem um negócio que produz cem unidades de qualquer coisa. Se investir mais 20 unidades nele e tiver uma produção de 120, você obteve um retorno constante. Se tiver mais do que 120, dizemos que conseguiu um retorno crescente. Se for menos de 120, seu retorno foi decrescente. É evidente que o melhor investimento é sempre numa atividade de retorno crescente: isso o deixará mais rico do que antes. Contudo, quanto mais você investir num negócio de retorno decrescente, mais pobre ficará. A tese defendida por Reinert contradiz a sabedoria estabelecida na mídia, na política e nos meios acadêmicos. As nações ricas ficaram ricas por terem se especializado em atividades de retorno crescente, enquanto as nações pobres se especializam em atividades de retorno decrescente. Ou seja, as nações pobres se especializaram em ser pobres e as diferenças entre pobres e ricos aumentam cada vez mais, como se tem observado há 30 ou 40 anos. O Consenso de Washington, as políticas dos governos dos Estados Unidos, da Europa, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) tendem a obedecer aos princípios da Escola de Chicago, às ideias neoliberais de Milton Friedman e de Frederich von Hayek. Aliás, o termo neoliberal é, em geral, rejeitado pelos afiliados a essa corrente de pensamento. Eles se autodenominam “neoclássicos” ou simplesmente se declaram liberais, sem o “neo”, para salientar sua fidelidade aos princípios liberais desenvolvidos por Adam Smith em A Riqueza das Nações, escrito em 1776. Em essência, o que nos dizem Adam Smith e seus seguidores modernos? Os agentes econômicos atuam sempre em função de seu interesse próprio. O padeiro não cozinha o pão para alimentar o próximo, mas para vendê-lo. O produtor sempre procura obter o maior preço possível para lucrar mais, enquanto o comprador busca reduzir o preço a um mínimo para pagar menos. A compra e venda (o fato econômico) só se realiza quando ambos chegam a um meio-termo, cada um procurando ganhar a máxima vantagem possível. É esse o ponto de equilíbrio “justo”, que viabiliza a venda, ou seja, o próprio sistema econômico. Esse ponto é atingido enquanto as partes forem livres para negociar em pé de igualdade e tende a expressar o valor “real” de um GettyImages Final do século XVIII, Inglaterra: a rápida mecanização da indústria têxtil baixou o custo da produção do tecido de algodão e das roupas objeto. Daí a importância da liberdade de comércio e a necessidade de garantila – e essa seria a principal função dos governos. É na troca mercantil, em regime de concorrência perfeita, que o valor econômico das coisas se manifesta. E esse valor está relacionado às horas de trabalho necessárias para produzir o objeto. Digamos, às “horas de trabalho social”, uma unidade-padrão, universalmente aplicável para ser traduzida em qualquer moeda ou preço. O ferreiro vende ao padeiro quatro ferraduras pelo número de pães que compensarem o trabalho que ele teve para produzi-las, não necessariamente por quatro pães. O mesmo ocorre com o padeiro. Portanto, se cada indivíduo procurar obter a maior vantagem possível e se todos eles forem livres para chegar a um acordo, então o mercado estabilizará a economia no ponto de maior benefício social. As premissas teóricas de Smith têm uma lógica perfeita. Credita-se a ele a explicação do sucesso da Inglaterra na Revolução Industrial: a potência inglesa apenas ter-se-ia desenvolvido pela adesão aos princípios liberais sistematizados em A Riqueza das Nações. Pouco depois, David Ricardo segue Smith, deduzindo o mundo a partir de uma visão platônica de como as coisas devem ser. Para ele, cada nação obterá o máximo benefício se especializar-se naquilo em que é menos ineficiente relativamente às demais. Por exemplo, a Inglaterra produz tecidos com mais eficiência do que Portugal; Portugal O desenvolvimento inglês resultou de uma interferência brutal do Estado e de um ferrenho protecionismo produz vinhos com mais eficiência do que a Inglaterra. Portanto, se a Inglaterra concentrar-se em produzir tecidos, em vez de produzir vinho, ambas as nações pagarão menos pelo tecido. Ao mesmo tempo, Portugal se especializaria em produzir vinhos, trocando-o pelo valor equivalente de tecidos. Assim, as duas nações sairiam ganhando e se tornariam mais prósperas. Ocorre que Adam Smith ofereceu uma explicação idealizada do desenvolvimento industrial inglês. Na verdade, a política inglesa, desde a Idade Média até a Revolução Industrial, foi exatamente o oposto do que Adam Smith descreve. O desenvolvimento inglês só foi possível mediante uma interferência brutal do Estado e sob condições de ferrenho protecionismo, colonialismo, barreiras à exportação de matéria-prima e à importação de produtos industrializados, reservas de mercado, patrocínio de corsários, conquistas militares e acordos secretos. Apenas quando os ingleses se sentiam seguros de sua vantagem, como primeira nação industrial e não simplesmente manufatureira, em pleno século XVIII, é que houve condições de surgir um Adam Smith e suas ideias liberais. Estas se alinhavam perfeitamente aos interesses nacionais ingleses, que precisavam abrir o comércio das demais nações e colônias (que não as inglesas) para sua produção crescente. Praticamente sem exceção, todas as nações mais ricas do mundo atual conquistaram sua posição mediante suporte do Estado, protecionismo, 54 retratodoBRASIL | 53 tarifas alfandegárias etc. – por exemplo, França, Alemanha, Noruega e, mais recentemente, Japão e Coreia do Sul. Isso até elas atingirem um estágio seguro de desenvolvimento econômico em atividades de retorno crescente. O liberalismo econômico funciona bem para e entre elas, mas tende a perpetuar as desigualdades e a pobreza das nações que ainda não chegaram lá tanto quanto a riqueza das nações ricas. Na Inglaterra recém-industrializada de Adam Smith, havia quem defendesse a liberdade de mercado como valor supremo e a ideia de que, para garanti-la, era necessário que o governo fechasse as fronteiras, proibindo a exportação de lã e a importação de tecidos e outros manufaturados, crimes esses que deveriam ser punidos com a pena de morte. Sem chegar a esse extremo, foi o que Colbert fez com sucesso na França. A teoria liberal se fundamenta em suposições idealizadas, que apenas se aproximam da realidade em certas condições específicas. Por exemplo, no mercado de commodities, costumam prevalecer condições semelhantes às postuladas para um regime de concorrência perfeita. Um quilo de milho é igual a qualquer outro quilo de milho. Na medida em que existem vários produtores de milho, é possível comprar o mais barato. E é aí que surge o problema com a teoria liberal. O sistema de livre-mercado funciona de modo satisfatório quando as partes são livres para negociar, para aceitar ou recusar qualquer proposta, porque dispõem de alternativas equivalentes à que lhes é ofertada; quando elas têm igual capacidade de barganha e ambas dispõem de informações completas sobre o mercado. Na prática, quando as partes são desiguais, cabe à mais forte impor suas condições à mais fraca. Isso Na prática, quando as partes são desiguais, a mais forte impõe suas condições à mais fraca ocorre entre nações, na diplomacia mundial, assim como nos negócios do dia a dia, entre grandes empresas globais e fornecedores de componentes e serviços locais. Na agricultura, quando os preços sobem, os produtores tendem a aumentar a produção. Para isso, precisam plantar mais. E, para plantar mais, necessitam de mais terras. Não existe Reprodução Adam Smith e David Ricardo: visão platônica de como as coisas deveriam ser no mundo 54 | retratodoBRASIL 54 uma economia de escala no caso – ao contrário, com o aumento da procura de terras, os produtores começam a estender sua cultura a áreas menos produtivas. Cultivar uma nova terra é como recomeçar tudo de novo. O efeito disso é que os custos marginais da produção não só não diminuem como tendem a aumentar. Ao mesmo tempo, à medida que muitos produtores começam a plantar soja, a concorrência aumenta e os preços tendem a cair. Quando uma nação se especializa na produção e exportação de commodities agrícolas, ela está fazendo-o em uma atividade de retornos decrescentes e destinada a ficar relativamente cada vez mais pobre e dependente. Essa é a realidade histórica que desmente o arcabouço lógico das deduções de Ricardo. A vantagem tecnológica e industrial proporciona um efeito contrário a esse. A industrialização, em princípio, assegura retornos crescentes e o aumento geral da riqueza. Elevar a produção numa indústria não significa recomeçar do zero. Mas isso apenas ocorre em condições de concorrência imperfeita, em que as circunstâncias de livrecomércio não prevalecem e o Estado interfere frequentemente com tarifas e outras medidas protecionistas. Ao mesmo tempo, a industrialização deve ser uma que crie condições de sinergia entre os vários setores da economia e dela se beneficie. Ou seja, a “especialização” numa atividade industrial positiva é a especialização em variedade de indústria, agricultura, serviços, todos beneficiando e suportando os demais. São as nações que se especializam numa commodity para exportar que tendem a empobrecer. A vantagem relativa das economias ricas costuma estar na adoção de inovações de produtos. As nações menos desenvolvidas e que continuam a sê-lo tendem a investir em inovações de processos. A inovação de produtos gera uma vantagem competitiva que permite ao fabricante aumentar seus lucros, pelo menos enquanto desfruta essa vantagem. Quando a inovação passa a ser imitada pela concorrência e as empresas investem na inovação de processos, a fim de reduzir os custos e fazer frente à concorrência, os preços tendem a cair. A partir daí, o produto começa a aproximar-se mais das condições de concorrência perfeita – o que força a redução de preços, não o aumento da renda, e um regime de retornos decrescentes. Mesmo um produto industrial, ainda que sofisticado, começa a atuar como commodity nessa fase. Cabe, então, à economia mais desenvolvida promover o outsourcing (terceirização) da produção para países mais pobres e com mão de obra mais barata e iniciar um novo ciclo de inovação de produto. A globalização atual acentua, exacerba e expande as contradições próprias do liberalismo. Devido a essa dinâmica, não existe refúgio permanente em uma atividade econômica que garanta a perenização da riqueza de uma nação. De modo geral, o que é atividade de vanguarda numa etapa passa a ser a norma na etapa seguinte e as assim chamadas nações ricas começam a delegá-las a outras nações – principalmente a disponibilização dos insumos necessários à nova etapa de desenvolvimento, a preços mais baratos. De 1770 a 1840, ocorreu a mecanização na indústria têxtil inglesa, que, além de promover o crescimento urbano, estimulou, no setor agrário, a prosperidade da produção de lã. Mediante a proteção mercantilista do governo, acabou praticamente destruindo a produção de lã na França. Recursos baratos para isso eram disponíveis na Inglaterra: água e algodão da colônia americana. O período de 1830 a 1890 é o das máquinas a vapor, dos vapores marítimos e fluviais e das estradas de ferro, promovendo uma grande expansão dos transportes. Alargam-se as fronteiras do mundo, aumentam-se o alcance e o tamanho do mercado e barateia-se o custo de distribuição de mercadorias. Vapor e carvão são recursos baratos e abundantes. De 1880 a 1940, predomina a eletricidade como fonte de energia barata, e a indústria pesada monta for tes conglomerados, enquanto ocorrem disputas por novas colônias e fontes de matéria-prima, geralmente Hoje, no Brasil, predominam as empresas globais e na economia aumenta a concentração mediante o uso de força bélica. O aço torna-se um recurso mais barato. A vanguarda do desenvolvimento é assumida pelas máquinas elétricas e pela indústria química. É desenvolvida uma infraestrutura, com base em estradas rodoviárias. O período de 1930 a 1990 é o da adoção geral do fordismo na indústria. As indústrias de ponta são a automobilística e a de materiais sintéticos (nylon, matérias plásticas). A economia toda depende do petróleo, um recurso especialmente barato até a crise dos anos 1970. Mais estradas rodoviárias. Mais aviões. Cabos HOW RICH COUNTRIES GOT RICH... AND WHY POOR COUNTRIES STAY POOR Autor Erik S. Reinert Editora ECarrol & Graf Publisher, New York Ano 2007 Páginas 365 submarinos. Esse é um período de conflitos e de nacionalismos. A partir de 1990, a tônica está na informação e nas telecomunicações. O recurso-chave barato e abundante é o dos microchips. A vanguarda do enriquecimento está no processamento de dados, na produção de softwares e na biotecnologia. A infraestrutura necessária, como sempre, promovida inicialmente pelo Estado, são as redes de comunicação digitais e as de satélites. No Brasil, em praticamente todos os setores importantes, predominam as empresas globais e aumenta a concentração da atividade econômica. A respeito desse domínio das nações mais pobres (para usar o termo empregado por Reinert) pelo capital estrangeiro, apenas uma parte limitada do setor de serviços permanece intacta: manicures, cozinheiros, enfermeiros, cabeleireiros, porteiros, cuidadores et al. Em serviços especializados de nível mais alto, já são sensíveis no Brasil as consequências do Efeito Vanek-Reinert: “Um dos mecanismos que contribuem para ...[a desindustrialização e o retrocesso econômico, onde isso ocorre,] é o Efeito Vanek-Reinert, que faz com que os setores mais avançados das nações menos avançadas sejam as primeiras perdas causadas pelo livrecomércio instantâneo. À medida que o ciclo virtuoso dos retornos crescentes é posto em marcha a ré, a periferia do mundo vive uma sequência de desindustrialização, desagriculturação e despovoamento, mecanismos que hoje observamos desde o sul do México até a Moldávia” (página 166). Na introdução ao livro, Reinert admite que quem critica deve propor alternativas. E ele o faz: “Assim como não vamos criar mais comida no Terceiro Mundo se passarmos a comer menos – no momento, a fome é essencialmente causada por falta de poder aquisitivo, não por falta de comida no mundo –, não criaremos desenvolvimento no Terceiro Mundo acabando com a nossa agricultura no Primeiro Mundo. Neste livro, defendemos a ideia de um compromisso pelo qual o Primeiro Mundo possa proteger sua própria agricultura (mas que seja impedido de inundar o mercado mundial com seus excedentes) e o Terceiro Mundo possa proteger sua indústria e setores de serviços avançados” (página 26). 54 retratodoBRASIL | 55 Livro 3 A POLÍTICA CRIMINAL DO PERDÃO Em Justiça, Luiz Eduardo Soares propõe um novo paradigma jurídico, que substitui a punição pela corresponsabilização: o condenado assumiria sua culpa, buscando o perdão da vítima, e seriam levadas em conta as causas sociais do crime por Leandro Saraiva O QUE É a Justiça? A pergunta parece óbvia, mas, uma vez feita, obriga à revisão de pressupostos ideológicos e práticos. Num bate-pronto republicano e bastante genérico, talvez se possa dizer que justiça é o oposto da barbárie, o império da lei, que protege os justos. Mas basta escavar um pouco mais e perguntar sobre os fundamentos da lei para que tudo fique menos óbvio. Como costuma ocorrer nas discussões sobre fundamentos, todos os fundos se revelam falsos. Se prosseguirmos perguntando, regredindo na sucessão de eventos que conduziu ao ordenamento jurídico hoje regido pela “Justiça”, chegaremos a um “rio de 56 | retratodoBRASIL 54 ilustração Caco Bressane sangue”, como diz Luiz Eduardo Soares. Mas a abordagem do autor, ao contrário do que talvez sugira esta introdução, não é teórica. Ao menos no sentido corriqueiro da palavra, de uma conceitualização prévia, em relação à qual os casos concretos devem ser endereçados como exemplos que ilustram a lógica. Justiça tem o estilo de uma conversa entretecida por histórias e interpelações diretas ao leitor, no estilo dos narradores orais, que contam causos para deles extrair lições. É assim que, já na abertura do livro, a discussão sobre os fundamentos violentos da ordem jurídica é introduzida através da apresentação de uma corri- queira conversa sobre a sede de vingança purificadora: um taxista conta a Soares sobre o assassinato de um colega de trabalho e clama por “justiça”, ou seja, pela punição, exemplar e vingativa, dos que mataram o trabalhador honesto, deixando desamparada sua família. O interlocutor-autor propõe, então, ao indignado motorista, o exercício de levar adiante seu temor quanto ao futuro dos filhos da vítima: crescerão sem proteção, é provável que a viúva tenha dificuldades em sua educação, eles podem ficar pelas ruas, se envolver com atividades ilícitas, talvez venham a praticar crimes e até, quem sabe, num desatino, cometer um assassinato, na pressão de um assalto. “O sentido de uma história depende do ponto a partir do qual começamos a contá-la”, diz o autor, que extrai esta conclusão do diálogo com o defensor da pena de morte para os “monstros” que mataram seu colega. Soares, graduado em psicologia, com mestrado em antropologia, doutorado em ciências sociais e pós-doutorado em filosofia política, inspira-se na maiêutica de Sócrates, ou seja, na ideia de que o conhecimento vive em cada ser humano e pode aflorar a partir de perguntas bem colocadas. Assim, no movimento seguinte, ele apresenta novas histórias, agora sobre crimes contra o patrimônio: se compro algo de um receptador de mercadorias roubadas ou adquiro uma peça arqueológica de reconhecido valor histórico, corretamente documentada, o que legitima a segunda e denigre a primeira? A documentação? E se retrocedemos para a fundamentação destes papéis? E se o mesmo raciocínio for aplicado à propriedade da terra? Da relativização histórica das certezas em relação à concepção de Justiça, o autor passa às considerações contemporâneas: o que é e o que não é crime? Quem é criminoso? A definição de um ato – e, ainda mais crucial, de seu autor – como “criminoso” é um processo social de várias instâncias: sobre a camada da legalidade, operam as instituições policiais e jurídicas. Em nova parábola, que apresenta sob vários ângulos o que parece ser um evidente flagrante de porte de drogas, Soares mostra como a ação policial, mesmo quando isenta de corrupção, é marcada por preconceitos. Mais do que isso: a narração do caso, uma vez expandida em seu raio de percepção, ampliando-se agora no horizonte das cadeias causais do presente (outra forma de rearranjar a pergunta: “onde começa a história?”), permite abrir o quadro para além das ditas “evidências” policiais, chegando às raízes do crime espalhadas pelo tecido social. Mas o dispositivo jurídico-policial funciona de modo a circunscrever o sentido legal do ato à identificação inequívoca e unidimensional do criminoso. Poderíamos dizer, para seguir o raciocí- O esquema de punição da Justiça vigente é arbitrário, ao estabelecer equivalência entre o crime e as penas nio do autor, que o objetivo do sistema é produzir a identidade do criminoso, aprisionando não apenas o corpo, mas o sujeito, reduzido de sua completude a uma “prisão sintática”. O autor toma claramente como referência o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), autor de Vigiar e Punir, publicado em 1975, que analisa a evolução das formas de julgar e punir da Idade Média aos nossos dias – mas sem citações que possam constranger bem-vindos leitores de primeira viagem. Soares descreve os modos JUSTIÇA Autor Luiz Eduardo Soares Editora Nova Fronteira Ano 2011 Páginas 196 de sujeição daquele que comete o ato criminoso: a prisão destitui o sujeito de suas particularidades e potencialidades de construção de si, tanto no tempo do cárcere, que o retira do mundo – o que é radicalizado pelas condições subumanas das prisões brasileiras –, quanto posteriormente, pelo estigma. A essa altura chegamos ao ponto principal no livro. Mais uma vez examinando o que parece dado, Soares expõe a arbitrariedade do esquema de punição da justiça vigente: a equivalência entre crimes e graus de privação de liberdade. Uma rápida consideração histórica indica uma progressão civilizatória (entendida a civilização como uma racionalização da mediação dos conflitos sociais). Já o “olho por olho, dente por dente” é uma racionalização, na medida em que impõe uma regra de proporcionalidade da vingança. A era moderna avançou nesta racionalização com a teorização do filósofo e jurista italiano Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, autor de Dos delitos e das penas, que, publicado em 1764, substituiu a revanche física por um princípio punitivo que reconhece a inalienabilidade da dignidade humana, ou seja, que não é legítimo o Estado infligir sofrimento físico. Assim, a prisão tornou-se a regra, o que necessariamente baseia-se numa racionalização, a qual abstrai dos diversos atos definidos como criminosos uma escala de gravidade, e afirma, por definição, uma equivalência com uma escala paralela de privações de liberdade. A importância de esmiuçar o que há de arbitrário nesta escala de justiça reside na possibilidade de imaginar outras formas de racionalização. Se hoje os espetáculos de violência punitiva exemplar pré-modernos nos parecem grotescos, é porque os padrões históricos de julgamento mudaram. O que Soares propõe, inspirado na corrente denominada justiça restaurativa, é outro modo de pensar o julgamento social do crime, um modo pós-punitivo. A punição, diz ele, é sempre retrospectiva. Ela busca “fazer justiça” através de um “pagamento” por um ato já realizado, finalizado. O que o livro sugere de mais profundo é que, à luz da visão multifacetada da produção do crime acima exposta, se pense o crime como efeito de uma multiplicidade de cadeias causais, que continuam a agir, e se pensem os 54 retratodoBRASIL | 57 julgamentos da Justiça como modos de o Estado interferir nestes processos profundos. Não se trata de afirmar generalidades sobre as causas sociais da violência, mas de exigir que a Justiça seja encarada como um desafio público de reparação da iniquidade (da não igualdade), fazendo, a cada julgamento, o que for possível para interferir na cadeia de acontecimentos que produziu, e continua a produzir, o ato violento em questão. Desta perspectiva, sobretudo para o juiz – ao contrário do bordão futebolístico –, a regra não é clara. Não se trata de mandar para o chuveiro (ou para prisões insalubres) os infratores. Soares diz almejar “uma sociedade em que os juízes não estudassem apenas as doutrinas e as leis, mas também as sociedades e a psicologia humana, de tal modo que pudessem compreender e avaliar as consequências de suas decisões em todas as esferas da vida individual e coletiva” (p. 180). Os princípios deste paradigma alternativo de Justiça são o perdão e a corresponsabilização. Fazer Justiça seria, então, uma atitude ativa que teria como protagonista a vítima imediata da agressão, a quem o agressor se dirigiria para tentar obter o perdão. Este processo, mediado pelo Estado, expandiria a corresponsabilização do agressor – que deveria assumir sua culpa e se submeter ao julgamento da vítima e da sociedade, para o conjunto das relações sociais que a Justiça indicasse como corresponsável. Deste modo, o autor do ato criminoso se comprometeria A prisão só deveria ser utilizada em casos-limite. Não pode ser a regra da Justiça, e sim o seu fracasso com ações de reparação à vítima (quando isso fosse possível e pertinente) e com ações de transformação das causas mediatas do ato, segundo o julgamento do juiz. Esta perspectiva implicaria, ainda, a autoridade do juiz em corresponsabilizar outras instâncias, coletivas e individuais, consideradas culpadas pelo crime. Reprodução O filósofo Michel Foucault: as relações entre os modelos de penas e o poder político 58 Por um lado, é óbvia a solidariedade desta argumentação com as penas alternativas e, mais amplamente, com o chamado direito restaurativo, que, justamente, é pioneiro na superação da justiça punitiva. Soares é explícito na referência e reverência a esta fonte, que ele pretende elevar, de prática complementar e alternativa, restrita a âmbitos e delitos comunitários, a novo paradigma de Justiça. Paradigma, entretanto, que ele apresenta como utopia reguladora, já que reconhece que – além das óbvias e imensas dificuldades para implantar estas ideias – há casos nos quais a prisão continuará sendo a única alternativa (sobretudo nos casos em que o infrator não aceita a corresponsabilização). Mas, diz ele, a ideia é inverter o foco, considerar estes como casos-limite, de fracasso da Justiça, e não como regra. É grande a variedade, criatividade e contundência da atuação de Luiz Eduardo Soares no campo da segurança pública. Por trás dos cargos públicos ocupados (subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro e secretário nacional de Segurança Pública), estão os livros e artigos de pesquisa e intervenção na área e as obras narrativas, como Elite da tropa (Editora Objetiva, 2006, em parceria com os policiais André Batista e Rodrigo Pimentel), que dramatizam o confronto das forças que conformam o campo da segurança pública. Justiça tem algo de síntese de sua trajetória. Nas entrelinhas, percebemos as reflexões de fundo, filosóficas e antropológicas, do autor-professor; nas fábulas, a capacidade narrativa do romancista; na articulação da argumentação, a capacidade retórica ao mesmo tempo política e comunicacional, costurada de forma a seduzir um leitor-cidadão, não especialista, mas também capaz de dialogar – pelo tom de busca dos fundamentos das perguntas – com os doutores da lei. Tudo considerado, este não é, como outros do autor, um livro de intervenção imediata. Desta vez, frente à urgência e gravidade da violência criminosa – tão chocantemente demonstrada pela retirada para o exterior de Marcelo Freixo, presidente da CPI das Milícias no Rio –, Soares apresenta uma obra civilizatória, nos convidando ao exercício da imaginação política de outras bases de relacionamento social. Para uma época tão desastrosamente pragmática como a que vivemos, não é pouco. | retratodoBRASIL 54 an_ditadu 54 retratodoBRASIL an_ditaduta_retratos.indd 1 | 59 15.09.11 15:19:38 40 retratodoBRASIL | 51