Vol. 7 (1) - Mar-2008 - Revista Enfoques

Transcrição

Vol. 7 (1) - Mar-2008 - Revista Enfoques
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Enfoques – Revista
dos alunos
do
Programa
Pós- Graduação
e
Eletrônica
Antropologia
PPGSA/IFCS/UFRJ
de
em Sociologia
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor: Aloísio Teixeira
Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas
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Diretor: Jessie Jane Vieira de Sousa
Vice-Diretor: Glaucia Kruse Villas Bôas
PPGSA – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
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ENFOQUES – ONLINE
Editores:
Ana Paula da Silva
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2
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Enfoques On-Line – revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada
pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Organização:
Ana Paula da Silva
Andréa Lúcia da Silva de Paiva
Bernardo Curvelano Freire
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Janayna Alencar Lui
Renata de Sá Gonçalves
Raphael Lima
Ronald Clay dos Santos Ericeira
Thais Schettino
Revisão de textos: Malu Resende
Criação da Logomarca: Luiz Augusto de Souza Carneiro de Campos
(Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
3
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____________________
ENFOQUES on-line: Revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. - V.7,
n.1 (Março, 2008). - Rio de Janeiro: PPGSA, 2008.
Irregular.
ISSN 1678-1813
1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro
de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia.
Endereço para correspondência e assinatura:
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Revista dos alunos do PPGSA –
Comissão Editorial
Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia
Largo de São Francisco, nº 1, sala
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e-mail: [email protected]
SUMÁRIO
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Apresentação
06
“DEMOCRACIA NO DEMOCRATA?”: Travestis e relações de gênero em 08
um prédio do Centro do Rio de Janeiro
SAPINHAS, BIBINHAS E TIAS: sexualidade, geração e vestuário
18
como formas sociais de distinção identitária
REPRESENTAÇÕES
DO
PENSAMENTO
SOCIAL
ACERCA
DO
34
CASAMENTO INTER-RACIAL
ONDE ESTÁ O PLURALISMO: manifestações da religião na metrópole
50
GRAFFITI, PICHAÇÃO E OUTRAS MODALIDADES DE INTERVENÇÃO 73
URBANA: caminhos e destinos da arte de rua brasileira
ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA: reflexões sobre a reforma da 91
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro
5
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APRESENTAÇÃO
Nesta sétima edição da Revista Enfoques on-line – Revista dos alunos do Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – apresentamos algumas novidades, como a mudança de configuração de
página e de normas de publicação.
Com exceção do número 5, que foi dedicado exclusivamente às relações de
trabalho, a pluralidade de temas tem sido um marco da revista. Entretanto, nesta
sétima edição, temos “um encontro” de dois temas centrais que percorrem as
discussões do campo sociológico e antropológico: a questão do “espaço” e da
“identidade” na contemporaneidade. As temáticas racial, de gênero, religiosidade,
arte e trabalho, articuladas criativamente nos artigos, buscam compreender como
determinados grupos organizam-se e revelam-se por meio de suas práticas e
representações.
Renata Franco Saavedra toma como recorte espacial um edifício do Centro do Rio
de Janeiro a fim de analisar a dinâmica das relações de gênero produzidas e
reproduzidas entre os moradores, pondo ênfase nas auto-representações dos
travestis que habitam o local.
Carlos Eduardo Henning, a partir de pesquisa etnográfica, busca debater
questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que dão coesão a
um
grupo
estudado,
mostrando
assim
os
critérios
de
hierarquias,
o
compartilhamento de vivências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo e a
importância do vestuário.
Zelinda dos Santos Barros procura demonstrar de que forma se opera o conceito
de raça em nossa sociedade e a persistência da interdição do casamento entre
indivíduos considerados racialmente diferentes, tendo como foco de análise as
representações do pensamento social acerca do casamento inter-racial.
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Edlaine de Campos Gomes propõe-se a mostrar como as formas de exercício da
religiosidade extrapolam os espaços construídos e identificados como apropriados
às práticas religiosas. A autora demonstra que “a evidência religiosa” está nas
pessoas e nos objetos que percorrem diversos espaços e situações.
David da Costa Aguiar de Souza tem por objetivo analisar o panorama da arte
de rua (street art) brasileira, descrevendo as modalidades e as técnicas encerradas
neste conceito, cuja expressão mais divulgada é o graffiti. O autor busca apontar os
principais desdobramentos sociais e espaciais dessas atividades no Brasil, além do
seu conjunto específico de características.
Andréa Ana do Nascimento discute a reforma da Polícia Civil do Rio de Janeiro a
partir do programa Delegacia Legal (PDL). Traz as problemáticas envolvidas em
campo entre a teoria e a prática, com base na experiência em campo que permitiu
à autora identificar as formas de tratamento dadas aos diversos tipos de
ocorrências registradas e também aos diferentes usuários.
Desejamos uma boa leitura a todos.
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“DEMOCRACIA NO DEMOCRATA?”: Travestis e relações de gênero em um
prédio do Centro do Rio de Janeiro
Renata Franco Saavedra1
Resumo
Ao tomar como recorte espacial um edifício do Centro do Rio de Janeiro, o artigo
analisa a dinâmica das relações de gênero produzidas e reproduzidas entre os
moradores, pondo ênfase nas auto-representações dos travestis que habitam o
local. À luz de um contexto em que se observa a complexificação do gênero como
elemento
de
auto-identificação,
pretende-se
abordar
as
dinâmicas
microssociológicas que, construídas através das práticas e dos discursos cotidianos
dos atores em foco, põem em relevo a transitoriedade das categorias de gênero e
seus potenciais como produtores de posições sociais.
Palavras-chave: relações de gênero; travestis; interacionismo.
Abstract
“Travestis” and gender relations in a central building in Rio de Janeiro. Taking as a
contour a building in the Center of Rio de Janeiro, the article analyses the dynamics
of gender relations produced and reproduced among the residents, emphasizing the
self-representations of travesties that live there. By the light of a context of a
1
Graduanda de comunicação social (jornalismo) pela ECO/UFRJ. Graduanda de história pela UNIRIO.
Bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq
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complexification of gender as an element of self-identification, we intend to
approach the micro-sociological dynamics that, built through everyday life practices
and discourses of the actors studied, highlights the transitoriness of gender
categories and its potential as producers of social positions.
Key-words: gender relations; travesties; interactionism.
Só veste calça apertada
Para mostrar os quadris.
Usa baton, base e diz
Que soutien lhe agrada
Mantém a unha pintada
Adora um cílio postiço,
Eu mesmo não gosto disso
Mas se o sujeito quer
Fazer papel de mulher
Ninguém tem nada com isso.2
Introdução: entrando no Edifício Democrata
Em abril de 2006, mudei-me para o Edifício Democrata, prédio com 237
imóveis situado à Rua do Senado, no Centro do Rio de Janeiro. As eleições para
síndico estavam próximas, o que causava um rebuliço evidente mesmo aos recémchegados, como era o nosso caso – meu e de meu marido.
Logo presenciamos o primeiro de muitos episódios que evidenciariam o
potencial do prédio como “laboratório antropológico”: fomos abordados pelo
candidato a síndico. Nessa breve conversa soubemos que havia no prédio um
conflito de interesses que dividia os moradores: o candidato que nos abordou
representava a oposição, que objetivava impor mais regras ao condomínio e abolir
as práticas de prostituição de mulheres e travestis que ocorriam no prédio e,
segundo ele, eram acobertadas pelo síndico.
Um ponto crucial dessa conversa foi o comentário, feito pelo candidato a
síndico, de que provavelmente não moraríamos ali por muito tempo, dado o nosso
“biótipo”. Lançando mão de estereótipos, poderíamos dizer que meu marido e eu
somos clássicos estudantes universitários oriundos da classe média tijucana,3 de
pele clara, vocabulário polido e gestual discreto. Assim que nos mudamos, éramos
freqüentemente confundidos com “gringos”. Cabe destacar que esse mesmo
2
MONTEIRO, Manoel. A revolta dos pretos, das putas, dos gays, dos pobres,... Academia Brasileira de
Literatura de Cordel. 3.ed., Campina Grande, Paraíba, Brasil, dez. 2005.
3
A Tijuca é um bairro de classe média, situado na zona norte do Rio de Janeiro e conhecido por seu
acentuado conservadorismo.
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indivíduo que ressaltou a incompatibilidade de nossas características físicas com o
local é um homem branco e de olhos azuis, cuja filha estuda em um colégio de
classe médio-alta conhecido por sua qualidade e por suas altas mensalidades.
Estávamos, portanto, ouvindo ali o que já havíamos escutado de minha
família e de tantas outras pessoas de nosso círculo social predominantemente
tijucano: aquele não era o nosso lugar. Embora extremamente respeitados, éramos
uma espécie de intrusos. Havia um claro estranhamento quando entrávamos nos
botecos das proximidades, especialmente se eu estivesse sozinha.
Confirmava-se assim a forte associação do Centro do Rio de Janeiro a uma
imagem degradada. Bairro de “putas e bandidos”, ao Centro não basta passar pela
revitalização que atualmente atinge algumas de suas áreas circunvizinhas, não
basta ter seus imóveis valorizados ou a Lapa lotada de jovens da zona sul. O
Centro, segundo o que ainda fortemente predomina no imaginário espacial carioca,
em especial da zona norte, é por definição sujo, degradado, perigoso – cabe
ressaltar que não me refiro às imediações periféricas do bairro caracterizadas por
um reenobrecimento atual, tais como a Lapa ou a Glória. Esta questão permeia uma
série de outros trabalhos e mesmo a literatura brasileira contemporânea (Ver, e.g.,
Fonseca, 1992).
Curiosa em relação à dinâmica do condomínio, que me parecia a cada dia
mais interessante, encontrei na reunião para eleição do síndico a confirmação do
que me havia dito o candidato. Havia uma clara divisão entre os que gostavam do
síndico e os que desejavam retirá-lo do cargo a todo custo. Poucas pessoas
detinham inúmeras procurações que lhes permitiam votar em nome de outros
apartamentos – às vezes tinham direito a mais de 30 votos, enquanto nós, sendo
locatários sem procuração, a nenhum.
Mesmo com orçamentos mal-justificados e aparentes casos de fraude, o
síndico foi reeleito (pela segunda vez), o que provocou a fúria de alguns, dentre
eles uma mulher que bradou, exibindo um “classificado erótico”, que os condôminos
estavam compactuando com “aquilo”.
A “favela vertical” – expressão usada por alguns moradores da zona norte
para caracterizar o edifício – mostrou-se, então, morada de famílias conservadoras,
senhoras religiosas, crianças e cachorros que usavam roupinhas. Assim, finas
paredes separavam universos tão distintos e tão distantes, da avó religiosa à
travesti que faz programa, enquanto muitos corredores uniam esses mesmos
universos. Se, saindo de casa, eu cruzava com uma travesti no elevador, voltando
poderia encontrar um casal de Nova York que não fala português. Remetidos ao
clássico trabalho de Gilberto Velho, A utopia urbana, nós nos deparamos com mais
uma situação que entrelaça contextos absolutamente diferentes, e reúne, em
alguns metros quadrados, quilômetros de visões de mundo (Velho, 1975).
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Mas por que, nesse complexo de atores sociais tão diversos, o desejo
específico de estudar as travestis? A principal justificativa, além do antigo interesse
pelas questões de gênero e desvio, é o fato de o discurso desses atores não estar
presente no cotidiano do prédio. De maneira geral, tenho acesso a muitas opiniões
dos moradores “não-travestis”, tanto héteros como homossexuais, dos porteiros,
dos faxineiros etc. Por eles, creio ser vista como uma figura inofensiva, e
geralmente sou bem recebida.
Já as travestis vivem “escondidas”: não participam das reuniões de
condomínio,
não “puxam conversa”
no elevador, não olham
nos olhos –
comportamento compreensível e até esperado de indivíduos que sofrem a
discriminação
que
permeia
seus
cotidianos.4
Certamente,
essa
mesma
inacessibilidade que aguçou minha curiosidade foi também um grande obstáculo ao
meu trabalho de campo. Diferente dos outros moradores e funcionários, para elas –
travestis – não sou inofensiva. Nas primeiras tentativas de aproximação percebi ser
vista como uma espécie de “inimiga”.5 Fui bastante evitada; embora marcassem
encontros, deixavam de ir; eram simpáticas, mas falavam pouco e rápido, sempre
com aparente desconfiança.
Objetivos: entrando nos apartamentos
Depois de muitas tentativas frustrantes – demorei cerca de dois meses para
conseguir uma entrevista – finalmente estabeleci um contato mais proveitoso:
Liliane,6 a primeira travesti com quem falei no prédio, interfonou para mim, depois
de semanas sem falar comigo, perguntando se eu ainda estava interessada na
entrevista. Além disso, embora tenha se recusado a participar da pesquisa, Suzana7
passou a conversar comigo, demonstrando interesse em uma maior aproximação.
Através desses contatos, busquei identificar como se inserem as travestis na
dinâmica social de coabitação que caracteriza o Edifício Democrata. Pretendi, assim,
analisar a visão que tais atores têm do prédio e de seus moradores, descobrindo se
o local se lhes apresenta como boa opção de moradia, e as razões decorrentes. Para
isso, explorei principalmente suas experiências de discriminação nas dependências
do edifício e suas relações com os vizinhos – a metodologia utilizada foi a da
observação participante que, basicamente, inclui observação de performances
corporais e de discursos, além de entrevistas.
4
A discriminação sofrida por tais atores pode ser analisada por meio do conceito goffmaniano de
estigma (Goffman, 1982). Opto por não fazer uso de tal estrutura conceitual, focando o significado do
Edifício para as travestis e vice-versa, na dinâmica de coabitação do local.
5
Em A utopia urbana, Gilberto Velho usa este mesmo conceito ao tratar das relações entre vizinhos – o
que mora ao lado é um potencial inimigo.
6
Nome fictício.
7
Idem.
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Como
disse,
Liliane
foi
a
primeira
abordada
na
minha
busca
por
entrevistadas. Encontrei-a na portaria e, em uma breve conversa, expliquei que
estava fazendo um trabalho e gostaria de conversar com travestis que morassem
no prédio. Extremamente receptiva, ela me deu um cartão com seu telefone e disse
que eu poderia combinar a entrevista. No entanto, Liliane estava de mudança, e
quase não ia ao prédio (além disso, seu telefone não estava funcionando), o que
adiou muitas vezes a nossa conversa.
Moram no prédio, em situação estável,8 três travestis – uma delas, porém,
sempre abriga outras em seu apartamento. Era com essa travesti, Suzana, que
Liliane morava. Percebe-se que Suzana é uma espécie de “mãe” para suas
agregadas (Liliane inclusive a define assim), e exerce, naquele espaço, amplo poder
de decisão. Quando fui ao seu apartamento pela primeira vez, embora tenha me
dirigido (da porta, pois em momento nenhum fui convidada a entrar) às quatro
travestis que estavam na sala – e que, de tanto freqüentarem o local, eu julgava
serem moradoras – Suzana atuou como a porta-voz do grupo, não dando
oportunidade para que as outras se dispusessem a falar comigo.
Quando Liliane, em visita a Suzana, procurou-me, marcamos uma entrevista
para o mesmo dia. Ela havia saído quando fui chamá-la no apartamento de Suzana,
e acabei tendo uma agradável conversa com a dona do apartamento também.
Naquele momento, Suzana disse que morava no Edifício Democrata há dezesseis
anos, desde que tinha 14 anos, e que nunca teve problemas ali. Falou que todos a
respeitam e que mantinha boas relações com os vizinhos. Apresentou-se como
“mãe-de-santo”,
apontando
como
local
de
trabalho
um
centro
religioso
(aparentemente de candomblé) em Nova Iguaçu. Suas “agregadas” a ajudavam em
certos trabalhos e algumas eram suas “filhas-de-santo”.9 Ela fez inúmeras
perguntas acerca de minha ocupação, família, fonte de renda – que procurei
responder sem hesitação para demonstrar confiança.
Resultados e discussão: entrando nos discursos
No livro Travesti: sex, gender and culture among Brazilian transgendered
prostitutes (Kulick,1998), uma etnografia lírica sobre os travestis da cidade de
Salvador, Don Kulick argumenta que a distinção de gênero, para os travestis,
8
Quando digo “situação estável”, refiro-me a moradoras que respondem por um contrato de inquilinato
ou são donas dos imóveis, ou seja, não moram temporariamente de favor.
9
Cabe dizer que, no primeiro contato que estabelecemos, Suzana mostrou-se preocupada em ressaltar
que elas não faziam programa. No entanto, sem saber dessa reserva, Liliane disse ter conhecido Suzana
“pondo anúncio no jornal”, e indicou um site em que eu poderia encontrar anúncios eróticos das
freqüentadoras do apartamento.
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baseia-se na posição adotada no ato sexual, e não em uma noção cultural do sexo
do corpo – diferente da concepção de gênero hegemônica, que determina formas de
agir ideais de acordo com a genitália do indivíduo. Assim, há uma distinção básica
entre homens (que penetram) e não-homens (que são penetrados), e não entre
homens e mulheres. Dentre os não-homens estão as mulheres, os homossexuais e
as travestis. Destaco como exemplo um trecho de uma entrevista do autor:
Tina: Três anos ele foi pra mim homem e, depois dos três anos, ele foi mulher.
Eu era o homem, ele era a mulher. Entendeu como é? Os três anos que passei
com ele, a primeira vez, entendeu como é, ele me comia, e eu chupava ele. Eu
era a mulher dele.
[...]
Don: Mas o que aconteceu?
[...]
Tina: Modificou que ele pegando [meu pênis]. Ele criou medo de me perder. Eu
estava sempre na rua e ele viu que eu era uma bicha viciada em comer os
boys. Aí ele viu que, ficou com medo de me perder, e perder a mordomia, né?
[...] Aí começou tirando, brincando de sexo comigo. “Não carece você gozar na
rua não. Eu bato uma punhetinha pra você. Daqui a pouco vamos fazer outra
coisa diferente”. Ele me dá o cu, me deu o cu, começou a me chupar, aí pronto
(Kulick, 1998:227-228).
No entanto, as travestis não se igualam às mulheres ou se assumem como
tais. Guardadas as devidas proporções, os discursos presentes na etnografia do
autor e em meu trabalho de campo apresentam diversos pontos comuns. Ao seguir
o mesmo perfil do discurso das entrevistadas por Kulick, Liliane estabelece clara
distinção: “a gente não é mulher, só quer ser. A gente é uma imitação”. Ela diz que
seu sonho sempre foi ser travesti, que “achava um luxo”; vestia as roupas das
irmãs, maquiava-se, “queria ser mulher porque achava interessante”, mas destaca
que não se submeteria a uma mudança de sexo – apesar de não se dizer religiosa,
diz que “o órgão que Deus deu não tem que tirar”. Ela ressalta também que não se
incomodaria se eu a chamasse de “ele”, pois não pode cobrar que as pessoas
encarem uma não-mulher como mulher. Cabe ressaltar que outras categorias
utilizadas para a autodefinição foram transex e, por Suzana, trava.
Percebe-se nesse discurso que se reconhece uma hierarquia dentro da
categoria “kulickiana” não-homens, de que me aproprio. Como uma representação
deformada, distorcida das mulheres, uma “imitação”, as travestis posicionam-se
“abaixo” delas: as mulheres são naturais, nasceram com curvas e com vaginas e os
travestis concordam que elas são mais valorizadas pelos homens. Segundo as
entrevistadas por Kulick, “os homens se apaixonam por mulheres, não por
travestis” (Kulick, 1998:196), e os elogios de mulheres quanto às suas roupas e à
sua feminilidade (dos travestis), por advirem de uma feminilidade “genuína”, têm
mais valor. Liliane diz que “travesti tem que ter comportamento de travesti, tem
que se pôr no lugar, não vai se comparar com uma mulher, não vai ser depravado
demais”.
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Entretanto, acima dessa hierarquia está uma maior, relacionando os nãohomens aos homens – e que se estende da experiência soteropolitana aqui
retratada. Essa posição, em que se unem mulheres e travestis, gera o que se pode
considerar uma consciência de gênero e parece, ainda que sutilmente, sobreporse às divergências entre as subdivisões dos não-homens. O trecho acima, extraído
do trabalho de Kulick, mostra também este aspecto: a mulher do casal torna-se
mulher a partir do medo de ser abandonada. Assim, as noções de carência,
dependência e submissão estão ligadas ao não-homem, machismo explícito mesmo
na fala dos próprios. Essa espécie de cumplicidade de gênero é percebida também
nos relatos de Liliane sobre as agressões que sofre: já levou “latada, pedrada,
extintor...”, mas sempre de homens, de “garotos que não se assumem” (jovens
homens que discriminam porque são “incubados”), apontados como os mais
preconceituosos. Ela citou como experiência problemática, no prédio, uma fase em
que alguns jovens, amigos de uma moradora, freqüentavam o imóvel e mantinham
o hábito de fumar maconha na frente do prédio, agredindo verbalmente os travestis
que passavam.
Diferente dos homens (ou “garotos que não se assumem”), as mulheres não
se apresentam como inimigas. Liliane diz que, apesar da violência à que se sujeita
no trabalho, não costuma sofrer esse mesmo preconceito nas dependências do
prédio, onde todos – e as mulheres principalmente – a tratam bem. Quanto ao
episódio dos amigos discriminadores da antiga moradora, Liliane diz que o
condomínio decidiu pela expulsão da mesma. Essa boa convivência com a
vizinhança foi destacada pela entrevistada – que apontou conhecer na mesma rua
uma travesti síndica – e ficou explícita em nossa breve caminhada até o restaurante
em que conversamos. Nesse caminho, pude ver que as pessoas que freqüentam a
rua – vendedores de churrasquinho, de cachorro-quente, donos de boteco – e os
moradores do prédio a conhecem e a tratam muito bem, mostrando respeito e, em
alguns casos, carinho. Liliane morou durante seis anos com Suzana, que conheceu
“pondo anúncio no jornal”, e diz que só são repreendidas as travestis que
“abusam”, andando de sutiã pelos corredores, por exemplo. Ela mudou-se para o
Estácio, bairro vizinho, apenas porque quis morar sozinha, mas aponta o Centro,
assim como Copacabana, como bons bairros para morar devido à proximidade do
trabalho – os maiores “pontos” de prostituição encontram-se nesses locais (Ver
Silva, 1993).
Percebe-se, então, que tanto a condição de não-homem quanto a de travesti
é “divisível”: há os que se podem chamar de travestis “respeitáveis” – que “se
põem no seu lugar”, não “abusam” – e os “não-respeitáveis”. O que isso quer dizer?
Creio estar implícita nessa distinção uma questão maior, relacionada às mudanças
de representação e posição social dos não-homens nos últimos anos.
Tais
14
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
mudanças são produtos – e produtoras – de um processo de negação da repressão
sexual que teve o seu ápice, no Brasil, em 1968. No entanto, a “revolução sexual”
(Ver Reich, 1982) continua em andamento, desmistificando de forma lenta tabus de
gênero e “desestigmatizando” os não-homens. Como exemplos notórios de
“revolucionárias sexuais” pode-se citar Dora Vivacqua (conhecida como “Luz del
Fuego”), Danuza Leão, Tonia Carrero e Leila Diniz (Ver Goldenberg, 1996). Não se
pode, no entanto, dedicar os louros somente às famosas: e as mulheres que
transgridem a ditadura de gênero a cada dia? E os não-homens “respeitáveis” do
Edifício Democrata?
Mas como se dá esse processo emancipatório, essa aquisição de um “capital
de gênero” que torna menos desiguais as trocas simbólicas entre não-homens e
homens? A chave da questão está na (re)construção do significado de “respeitável”.
Se antes a respeitabilidade do não-homem dependia de fatores objetivos e externos
– a mulher respeitável é a recatada, a que se veste discretamente, fala baixo e
somente quando solicitada por um homem – ou seja, poderia ser definida à
primeira vista, o atual processo de complexificação de gênero explicita a
insuficiência de tais fatores. A definição do feminino-modelo fica cada vez mais
turva com a ascensão de novas conjugalidades, novas sexualidades, novas
corporalidades, demandando uma correspondente complexificação de critérios.
Assim, recorrendo a categorias goffmanianas, afirmo que essa superação da
submissão do não-homem, que o leva a ser sujeito e não apenas objeto, se dá pela
sobreposição da maneira à aparência. Goffman apresenta a aparência e a
maneira, junto ao cenário, como elementos constituintes da fachada, “equipamento
expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo
indivíduo durante sua representação” (Goffman, 1985:29). Enquanto o cenário seria
o “pano de fundo” do desenrolar da ação social – compreendendo a decoração, a
mobília etc. – a aparência expressa estímulos que funcionam para revelar o status
social do ator, enquanto a maneira informa sobre o papel de interação que o ator
espera desempenhar na situação que se aproxima. A primeira, então, embora não
seja completamente fixa, constitui-se de uma série de fatores estáveis – como
sexo,
características
raciais
e
altura.
Uma
travesti,
por
exemplo,
é
permanentemente travesti, carregando o tempo inteiro esse aparato significativo
extracorporal que lhe rende, geralmente, discriminações. A segunda é mais flexível,
na medida em que depende de atitude, expressões faciais, gestos corporais etc.
Ao defendermos a sobreposição da maneira à aparência, ao diminuirmos o
valor desta última, assumimos que o desempenho dos indivíduos na interação –
nesse caso, dos travestis no Edifício Democrata – é determinante na sua localização
social, capaz de esvaziar de sentido a configuração física dos mesmos. Suzana, por
exemplo, construiu, em seus anos de Democrata, uma imagem sólida e respeitável.
15
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Embora se travista e trabalhe fazendo programas, tendo apenas 30 anos, é vista
como uma “senhora”: veste-se de maneira recatada, usa os cabelos sempre presos,
fala pausadamente, encarna o papel de veterana do Edifício.
Conclusão: saindo da “ditadura de gênero”
As travestis do Edifício Democrata – e aqui reitero os achados etnológicos de
Kulick – adéquam-se à categoria construtivo-essencialista (Kulick, 1998:193): ao
mesmo tempo em que apontam o órgão sexual como definidor e definitivo – “a
gente não é mulher, só quer ser” / “o órgão que Deus deu, não tem que tirar” –
constroem-se como femininas e, mais do que isso, como não-homens respeitáveis e
que se impõem como moradoras tanto quanto os homens.
Dessa forma, evidencia-se o gênero como processo, construído nas
práticas e nos discursos, a cada nova interação. Embora essa constatação não
possa, absolutamente, ser generalizada para a sociedade brasileira como um todo –
na qual ainda predomina a violência de gênero e, com efeito, o “masculino” e o
“feminino” são freqüentemente encarados como conceitos estáticos e estanques –
observa-se um avanço lento e, em grande medida, marginal, em direção a uma
maior flexibilização e fluidificação no processo de definição dos papéis e dos
estatutos sociais ligados ao sexo.
O Edifício Democrata evidencia-se como exemplo dessas transformações,
sendo um ambiente em que as posições de gênero emanam de cada ator social – e
nesse grupo incluem-se homens, mulheres e travestis – desconstruindo a velha
hierarquia que sobrepõe homens a não-homens, na qual a significação e a
legitimação dos atos dos últimos ficam “a cargo” apenas dos primeiros. Como locus
de gradual superação de uma “ditadura de gênero” característica da sociedade
ocidental moderna, o prédio, tomado neste estudo como recorte comunitárioespacial, endossa uma abordagem simbólico-interacionista da vida social que
procura matizar o papel das determinações e dos processos objetivos, destacando o
primado da subjetividade dos indivíduos e o papel dos agentes sociais em suas
lutas cotidianas. Por tudo isso, pode-se dizer que, em se tratando de relações de
gênero, o nome do condomínio parece bastante adequado.
Referências bibliográficas
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Letras, 1992.
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16
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17
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
SAPINHAS, BIBINHAS E TIAS: sexualidade, geração e vestuário
como formas sociais de distinção identitária
CARLOS EDUARDO HENNING10
RESUMO
A intenção específica deste trabalho é, através de pesquisa etnográfica, debater
três questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que dão
coesão ao grupo estudado de bibinhas e sapinhas: o critério geracional; o critério
de compartilhamento de vivências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo; a
importância do vestuário na formação desses vínculos sociais de identidade. Serão
apresentados alguns exemplos etnográficos e a forma como estes critérios, unidos a
outros fatores, auxiliam a explicitar quem pertence (e quem não pertence) ao
agrupamento estudado. Internamente a tal agrupamento, as relações de distinção e
hierarquia social geralmente não desaparecem, porém mudam de caráter,
mantendo o vínculo que une o grupo, mas criando outras hierarquias que
posicionam os indivíduos em pontos de autoridade social.
Palavras-Chave:
Homossexualidades,
identidades,
geração,
vestuário,
juventude.
ABSTRACT
The specific intention of this article is, by ethnographic research, to debate three
important questions to the constitution of the identitary bonds that gives cohesion
to the group of bibinhas and sapinhas that was studied: the criterion of generation
to the group’s formation; the criterion of sharing erotic-affective experiences with
individuals from the same sex, and the importance of clothing on the formation of
these identity social bonds, through some ethnographic examples, and of how these
criterions, united to some other factors, helped to make explicit who belonged (and
who didn’t) to the studied group. Inside this group, the relations of social distinction
and hierarchy, usually didn’t disappeared, but changed the character, keeping the
bond that united the group, although creating other hierarchies that put the
individuals in points of social authority.
Key-Words: Homosexuality, identities, generation, clothing, youth.
10
Mestrando em antropologia social no PPGAS/UFSC.Geógrafo pela FAED/UDESC. Orientado pela Profa.
Dra. Sonia Weidner Maluf e co-orientado pela Profa. Dra. Alícia González Castells.
18
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Este artigo11 tem como característica ser mais um relato etnográfico de
minha recente incursão ao campo do que uma discussão essencialmente teórica.
Apresenta alguns resultados preliminares da pesquisa etnográfica para a minha
dissertação de mestrado em antropologia social12 acerca de sociabilidades,
segmentação, moralidade e hierarquia em espaços freqüentados por sujeitos (auto)
reconhecidos como GLBTTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros13) no centro da cidade de Florianópolis, especialmente em bares e
boates voltados para esse público. Reflete o estágio atual da análise de dados, ou
seja, o fato de ter recentemente saído de campo e estar ainda em uma fase inicial
de análise.
Entretanto, é necessário afirmar os pressupostos teóricos de que me utilizo
para nortear este trabalho. Quanto ao conceito de gênero, embaso-me no texto de
Joan Scott (1990), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Para a autora,
gênero é visto como:
os conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do sentido
dos símbolos, que esforçam para limitar e conter suas possibilidades
metafóricas. Estes conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas,
educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma
oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o sentido
do masculino e do feminino (Scott, 1990:14).
Além disso, tal conceito implica significar relações de poder, percebendo a
diferença dos sexos enquanto jogo político, ao mesmo tempo, cultural e social.14
Vem
aqui
também
corroborar
a
perspectiva construtivista de Heilborn (2006) acerca da sexualidade. Para a autora,
“o âmbito da sexualidade não pode ser visto como uma dimensão ‘natural’,
11
Este trabalho foi apresentado no GT 46 – Técnicas Corporais, Performances e Identidades da VII RAM
(cujos coordenadores eram os professores Silvia Citro e José Bizerril), na cidade de Porto Alegre, na
tarde do dia 25 de julho de 2007.
12
Meu projeto de qualificação intitula-se: “O Pedaço Dividido: Etnografia de um território da noite gay
de Florianópolis enfocando manifestações distintivas e discriminatórias entre GLBTT através de uma
análise de gênero, sexualidade e interseccionalidades”, defendido no PPGAS/UFSC em dezembro de
2006. Sou orientado pela Profa. Dra. Sonia Weidner Maluf e co-orientado pela Profa. Dra. Alícia
González Castells.
13
Embora concorde que GLBTTT seja a sigla mais adequada aos indivíduos que difiram da
heteronormatividade, em vários momentos deste texto utilizarei a sigla GLS (Gays, Lésbicas e
Simpatizantes), pois ela é a mais comumente utilizada pelos indivíduos que freqüentam os espaços de
sociabilidade estudados.
14
Grossi, M. P., Heilborn, M. L. & Rial, C. S. Entrevista com Joan Wallach Scott, Revista Estudos
Feministas, v. 6, n.1, p.114-124, 1998.
19
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
‘universal’, ‘inata’ ou através da idéia de pulsões psíquicas ou de funções
biológicas”.15
Embaso-me também em Judith Butler que, em Problemas de gênero (1990),
afirma que a normatização referente às identidades de gênero também assegura
que o desejo seja direcionado ao outro sexo. Portanto, a partir desta perspectiva, os
estudos de sexualidades são indissociáveis dos estudos de gênero.
Ao partir de tais considerações, a intenção específica deste trabalho é
debater três questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que
dão coesão a um dos grupos estudados em minha etnografia: o critério geracional
para a formação grupal; o critério de compartilhamento de vivências eróticoafetivas com pessoas do mesmo sexo; e a importância do vestuário na formação
desses vínculos sociais de identidade. Serão apresentados alguns exemplos
etnográficos e a forma como estes critérios, unidos a outros fatores, auxiliam a
explicitar quem pertence (e quem não pertence) ao agrupamento estudado.
Internamente a tal agrupamento, as relações de distinção e hierarquia social
geralmente não desaparecem, porém mudam de caráter, mantendo os vínculos que
unem tais indivíduos, mas criando outras hierarquias que os posicionam em pontos
de autoridade social.
A análise desses fatores se prenderá
mais aos exemplos retirados de freqüentadores de um dos espaços estudados
durante a minha pesquisa,16 o fast-food Dromedário (nome fictício17). Utilizarei,
portanto, para denominar os seus freqüentadores, assim como as segmentações
internas, as categorias nativas de referência.
No Dromedário, no pátio e na escadaria
Os
freqüentadores
do
Dromedário
que
pesquisei
pertencem
majoritariamente à faixa etária dos 15 aos 22 anos. Entretanto, tratando-se de uma
15
Carol Vance (2002), em seu artigo “Anthropology rediscovers sexuality: a theoretical comment”
(originalmente publicado em 1991), apresenta relações entre pesquisa em antropologia e pesquisa
sobre sexualidade, enfocando três vertentes teóricas: o “essencialismo”, que seria biologicista; o
“modelo de influência cultural”, que consideraria a sexualidade como categoria naturalizada (o papel da
cultura sendo o de modelar atitudes e comportamentos sexuais) e, por fim, a “teoria da construção
social”, compreendendo a sexualidade como construída diferentemente em diversas sociedades, sendo
esta última vertente aquela na qual a autora se inscreveria.
16
Minha pesquisa de campo realizou-se nos meses de março a julho de 2007 e, no caso específico da
convivência com os freqüentadores do fast-food estudado e de outras duas áreas contíguas,
materializou-se em dezenas de idas a campo, quase diariamente, de segunda à sexta-feira durante os
meses citados.
17
A opção de usar nomes fictícios tanto para lugares quanto para as pessoas pesquisadas foi feita na
intenção de procurar preservar os indivíduos estudados contra eventuais intervenções e agressões
homofóbicas por skinheads e outros indivíduos, fato que infelizmente tem ocorrido com certa
regularidade, segundo diversos relatos ouvidos. É um comportamento metodológico também utilizado
por Perlongher (1987).
20
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
grande cadeia de fast-food nacional, seus consumidores não se resumem apenas ao
grupo que abordo neste texto, mas a um número imensamente maior de indivíduos
de várias idades, classes sociais e procedências. É comum encontrar, por exemplo,
nos bancos e nas mesas exteriores do Dromedário – no calçadão de uma rua central
de Florianópolis – senhores e senhoras com mais de 60 anos, aposentados,
tomando cafés, sorvetes, comendo lanches e petiscos.
A região que circunda o Dromedário é povoada por inúmeros centros
comerciais, colégios, universidades e por uma infinidade de ramos de comércio e
serviços. É também uma zona de passagem intensa de indivíduos que vêm e vão de
seus locais de trabalho, moradia, colégios/faculdades, enfim, de suas atribuições
urbanas cotidianas, tornando-se, assim, um importante ponto de encontro para os
integrantes de diversos grupos urbanos.
O grupo que estudei18 costuma utilizarse do Dromedário como ponto de encontro e sociabilidades, majoritariamente de
segunda à sexta-feira e, geralmente, a partir do meio-dia, embora possam
encontrar-se também no período matutino, porém com menor visibilidade. Grande
parte desses indivíduos estuda nos colégios das redondezas (ou possui colegas que
ali estudam), o que facilita a concentração em tal local, o que se dá também devido
à sua centralidade no espaço urbano: partindo dali, é possível caminhar para
qualquer bar ou boate “GLS” do centro da cidade em pouco tempo.19
Aparentemente, os gerentes do Dromedário não vêem o grupo estudado (em
parte reconhecido socialmente como composto por “gays e lésbicas”20) como
potencialmente consumidor, um público que deva ser encarado e tratado com
deferência. Há poucos anos houve um ato público em frente ao Dromedário em
repúdio ao tratamento discriminatório dado a um casal de garotos que foi impedido
de se beijar no interior da lanchonete. O ato foi intitulado “Beijaço” e consistiu na
reunião de dezenas de casais de garotos e casais de garotas que se beijaram
longamente diante da lanchonete. O ato foi coberto por diversas televisões e jornais
locais e teve muita repercussão. Depois dele, o cuidado e o respeito para com os
jovens “casais homossexuais” por parte do Dromedário aumentou. Há um claro
receio em dar declarações sobre tais freqüentadores, comportamento que se refletiu
na relutância dos gerentes em conceder entrevista para esta pesquisa, quando
18
O grupo estudado, apesar de apresentar características gerais que lhe dão certa coesão e senso de
unidade – questões abordadas neste artigo – na verdade é composto por diversos pequenos
agrupamentos, em geral próximos espacialmente, e que se recriam e reconfiguram continuamente.
19
Segundo minha pesquisa para o TCC (Henning, 2005), a grande maioria dos bares e das boates
voltada para o público GLS na cidade de Florianópolis esteve vinculada, desde a década de 1970, à área
do centro histórico da cidade, principalmente as imediações da Av. Hercílio Luz, da Praça XV de
Novembro e da rua Felipe Schmidt, embora obviamente tenham existido várias outras casas noturnas
em pontos externos a este território.
20
Sobre a relação entre homossexualidade, aceitação social e mercado consumidor, ver Resende
(2003).
21
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
afirmei qual seria o tema. Apenas um dos gerentes aceitou ser entrevistado,
conquanto que não houvesse gravação de suas respostas, afirmando que não havia
nenhum tratamento diferenciado (positiva ou negativamente) para os eventuais
casais que se formassem no local.
Além do Dromedário, há outras duas
áreas públicas próximas que também fazem parte do circuito de encontros dos
indivíduos estudados. A primeira é o pátio de um museu público, cuja entrada fica
praticamente em frente ao Dromedário. Tal pátio foi reformado e aberto ao público
há alguns meses, sendo completamente “tomado” por esses jovens e adolescentes.
Permanece aberto de segunda à sexta-feira das 10 horas da manhã às 6 horas da
tarde, e aos sábados, domingos e feriados, das 10 horas da manhã às 4 horas da
tarde. Costumam circular permanentemente dois seguranças pelas áreas sociais do
pátio e não há relatos de confrontos, agressões ou repressão por parte dos guardas.
Entrevistei um dos seguranças que afirmou receber orientação da direção do Museu
para chamar a atenção apenas quando algum dos adolescentes estiver bebendo
álcool, “fumando maconha” ou usando alguma outra droga ilícita. Entretanto,
afirmou que se algum dos casais se exceder nas carícias, os guardas devem
adverti-lo:
aqui vem bastante casal, né, homem e mulher, mas tem muito gay que beija
na boca, abraça, fazem muito carinho um no outro; e vem bastante mulher,
muitas lésbicas, que ficam bastante... acariciando o tempo todo, se beijando e,
quando se excede um pouquinho mais e passa a mão “lá” um no outro, a gente
vai lá e dá um toquezinho pra dar uma “aliviada”. Os gays e as lésbicas é de
15 [anos de idade] pra cima, geralmente. Na verdade, esse pessoal que vem
aqui não chega nem a 21 anos, é de 15 a 21 anos. Os outros [freqüentadores]
daí é de tudo quanto é idade. [...] Eu sou simpatizante. Eu tô aqui, só trabalho,
não pego no pé deles nem nada. E eles até concordam com a gente,
respeitam, o que a gente pede eles atendem na boa. Na hora de fechar [os
portões] também eles levantam, não reclamam, não xingam. Tem alguns que
fazem cara feia, mas não xingam, não, “entendesse”? De vez em quando, a
gente explica o que não pode: que não pode entrar sem camisa, nem beber
bebida alcoólica, só refrigerante e lanche. Vem muito pessoal das lojas daqui
de perto também, vêm descansar e fumar seu cigarrinho (Trecho da
transcrição de gravação de entrevista oral).
O guarda também salientou (e nesse
momento não quis que eu gravasse sua fala), que ele já havia sido ofendido duas
vezes por alguns dos “gays e lésbicas” quando comunicava o fechamento dos
portões do pátio, mas que não revidara porque sabia que “não vale a pena bater de
frente com eles, porque senão ainda dá processo [judicial] e a gente se prejudica”,
e que a maioria “não incomoda”. Sua fala deu a entender que há orientações da
direção do museu visando evitar quaisquer transtornos jurídicos e que há certa
simpatia do entrevistado para com o público (simpatia que, segundo ele, também
22
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
se manifesta nos outros guardas), pois esses adolescentes geralmente “não brigam,
ficam na deles e são gente boa”.
A
terceira
área
freqüentada
pelos
sujeitos estudados fica igualmente próxima ao Dromedário, a cerca de 150 metros
de distância, na mesma rua do fast-food. É uma escadaria que dá acesso a uma das
igrejas históricas da capital (construída na época da chegada dos casais açorianos à
Ilha de Santa Catarina, em meados do século XVIII), e costuma ser ocupada
também de segunda à sexta-feira, principalmente após o fechamento do pátio do
Museu. Os jovens pesquisados concentram-se, então, na escadaria para conversar e
tomar bebidas alcoólicas, que são divididas entre eles (geralmente misturas de
vodca ou cachaça baratas com algum refrigerante).
Este terceiro espaço social costuma ser o de maior liberdade para que as
conversas ocorram em voz alta, sem seguranças por perto, e onde os casais podem
trocar carícias e ficar mais à vontade, embora haja, ao lado da escadaria, um prédio
do Exército, utilizado pelos militares aparentemente apenas pela manhã e à tarde.
Como o grupo se encontra em geral após as 18 horas, não presenciei ou ouvi, em
relação aos militares daquele prédio, nenhum registro ou história de censura ou
críticas ao barulho e às sociabilidades. Ao contrário do que ocorre no Dromedário,
em que há uma obrigação tácita de os jovens consumirem alguns dos produtos do
fast-food e não fazerem uso de bebidas alcoólicas ou alimentos não provenientes do
local, a escadaria dá a eles a possibilidade de comer, beber, rir, pirar21 mais à
vontade, sem os olhares censores e controladores de gerentes e funcionários da
lanchonete (ou dos seguranças do pátio do museu).
A escadaria também é utilizada como ponto de encontro desses grupos de
adolescentes que circulam pelos “points GLS”22 da cidade. É importante ressaltar
que, assim como afirmou Silva (2003) acerca dos freqüentadores do “carnaval do
Roma” e de “bares e boates GLS” da cidade, nem todos os indivíduos que circulam
por esses espaços reivindicam ser “homossexuais”. Há grande número de casais e
de indivíduos “heterossexuais”23 que também circula pelas casas noturnas GLS da
cidade. Esses locais possibilitam um gradiente mais amplo de sociabilidades do que
apenas as sociabilidades homossexuais. Silva (2003) afirma que seria melhor
21
Este termo tem vários sentidos. Costuma ser utilizado para designar diversão (“festar”) e, em alguns
casos, significa alterar a consciência através do consumo de álcool e/ou de outras drogas, ou
simplesmente ter ampla liberdade para fazer o que se quer.
22
“Points” é uma expressão de língua inglesa e, no contexto da noite GLS florianopolitana, denota os
pontos de encontro de referência, geralmente bares e boates, mas diz respeito também a outros
espaços da cidade.
23
Procuro utilizar termos e denominações nativos, muito embora atento à noção da multiplicidade das
identidades que se manifestam no indivíduo, evitando, portanto, reificar apenas uma característica das
identidades do sujeito como se fosse única e imutável, quando na verdade tende a se tratar de
manifestação conjunturalmente marcada.
23
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
chamarmos este contexto social de ethos GLS para que se dê espaço às múltiplas
possibilidades de sociabilidades que podem ocorrer em tais lugares.
Os adolescentes estudados distribuem-se quase igualmente entre garotos e
garotas, sendo que um dos fatores que lhes dão coesão grupal é o fato de muitos
deles serem freqüentadores de bares e boates “GLS” da cidade, mesmo os que são
menores de idade. Estes procuram táticas para driblar a exigência da apresentação
dos documentos oficiais de identificação nas portas das casas noturnas e, quando
não conseguem, costumam permanecer nas suas imediações, conversando com os
que de forma eventual saem para ”tomar um ar” ou com aqueles que também não
puderam entrar, seja por serem menores de idade, seja por não terem dinheiro
para a entrada. Outro ponto que dá coesão ao grupo é a questão da idade: sujeitos
da mesma faixa etária tendem a ser mais facilmente aceitos nos espaços sociais de
encontro.
Os encontros no Dromedário, no pátio
e na escadaria são importantíssimos para o fluxo de informações sobre os
acontecimentos que fazem parte do roteiro de atividades imprescindíveis à vida
social desses sujeitos, como festas em bares e boates (ou festas particulares na
casa de alguém) e encontros em outros espaços públicos da cidade para beber,
conversar e pirar.
Encontrar os amigos no Dromedário é
também
fundamental
para
trocar
fofocas
sobre
figuras
conhecidas
(e
principalmente inimizades); ali as gafes, as brigas, os acontecimentos interessantes
dos últimos dias, enfim, os bafões24 são contados com riqueza de detalhes. Nesses
espaços,
os
indivíduos
também
aprendem
a
conhecer
os
comportamentos
adequados e os inadequados nesse contexto social. É, de certa forma, um lugar de
aprendizado, de iniciação social no “mundo GLS” para vários desses adolescentes, o
que me faz lembrar a importância da rua nos territórios de prostituição para as
travestis que, segundo Benedetti (2000), são locais importantíssimos de trocas – de
experiências, objetos, conhecimentos etc. – mas principalmente de aprendizado
entre elas, auxiliando no processo de “saber ser” travesti. É também onde esses
adolescentes aprendem a se posicionar no mundo social em que vivem. Creio ser
possível perceber essas relações de aprendizado e de reciprocidade também no
grupo estudado, no contexto desses três espaços de sociabilidade (assim como do
conjunto mais amplo de locais onde tais sociabilidades se estabelecem).
24
Bafão ou Bafões é um termo que denota acontecimentos com certo teor de escândalo e que muitas
vezes significa situações vexatórias para alguns dos nele envolvidos. Contar um bafão pode ser um
recurso de poder, “sujando (ou elevando)” a imagem de alguns dos sujeitos envolvidos na história,
assim como pode apenas ser um recurso para passar o tempo e rir dos últimos acontecimentos.
Entretanto, é possível de ser visto também como um instrumento de aprendizado comportamental no
contexto social do “mundo GLS”. Aprende-se, ouvindo alguém contar um bafão, quais comportamentos
e condutas são vistos como corretos, e quais são tidos como ridículos ou inadequados naquele contexto
social.
24
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Para muitos dos adolescentes que os freqüentam, são nesses locais que os
comportamentos realmente ansiados podem ocorrer. Para alguns deles, é também
ali que se pode, aos poucos, “sair do armário” e começar a criar outras visões
possíveis de marcações de identidade.
1. Algumas categorias nativas e alguns signos que identificam
É necessário afirmar que, apesar de
utilizar o termo “grupo” para os indivíduos estudados, talvez seja melhor dizer –
para ter o cuidado de não solidificar as relações que se estabelecem entre esses
sujeitos – que eles estão mais em grupo do que são um grupo. Mesmo existindo os
vínculos que dão coesão ao coletivo das pessoas estudadas (vínculos estes que são
objeto de análise deste artigo), há também um processo de incessante formação,
dissolução e recriação de pequenos agrupamentos internos em relação ao coletivo
maior de adolescentes e jovens estudados. É possível perceber uma incessante
mobilidade social (no sentido de movimentação no espaço, conversas e trocas)
entre esses jovens que se reúnem segundo as mais variadas motivações: por
ligações mais fortes de amizade; por proximidade com aqueles que trouxeram a
bebida; por tentativa de aproximação com os indivíduos mais “populares” (os mais
admirados e referenciais); por interesses erótico-afetivos que visam a um dos
membros,
enfim,
por
inúmeras
razões.
E
como
existem
essas
pequenas
segmentações, há também possibilidade para nominação dos sujeitos nesse espaço
social. Neste tópico, procurarei abordar algumas das categorias nativas de
referência e que dão mostras da lida com a identidade e a alteridade.
Pude perceber em minha pesquisa ser muito mais comum um coletivo dar
nome a outro do que se autodenominar, tendência que, aliás, extravasa o contexto
dos grupos jovens estudados e se reflete em termos mais gerais nas sociabilidades
em bares e boates GLS da cidade. Entretanto, o nome dado a um grupo por outro
algumas vezes não era aceito e reconhecido pelo primeiro (isto quando havia um
“nome de grupo”, posto que nem sempre ocorria a convenção de um nome aceito
coletivamente como seu).
As garotas que ficavam25 com outras
garotas, por exemplo, tendiam a ser denominadas (e a se autodenominar) de
sapinhas ou sapas, termos que provêm do popular “sapatão” e que foi, de certa
forma, redimido do seu teor ofensivo e depreciativo (ao menos naquele contexto
25
“Ficar” é um termo que se popularizou nas últimas décadas principalmente entre os jovens, e tem o
sentido de troca e relação erótica e/ou afetiva, desde beijos e carícias até, algumas vezes, relação
sexual, embora esta conotação não seja a mais comum.
25
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
social) em função de outros apresentados atualmente em forma diminutiva.26
“Sapatão”, durante o tempo em que permaneci em campo, não foi utilizado
nenhuma vez como categoria de identificação pelos sujeitos estudados.
Os garotos que ficavam com outros
garotos costumavam ser denominados (e também se autodenominar) de bibinhas,
bibas, bicha, bichinha,27 viado, e outros termos não tão disseminados entre o grupo.
O uso de palavras no diminutivo (sapinha, bibinha ou bichinha) é reflexo do fato de
esses indivíduos serem mais jovens, tanto que é bem mais rara a sua utilização
quando referente a indivíduos mais velhos e que mantêm relações erótico-afetivas
com pessoas do mesmo sexo.
Outra questão interessante a ressaltar é que “homossexual”, “lésbica” e
“sapatão” não eram categorias utilizadas cotidianamente como autodenominação
dos indivíduos freqüentadores daqueles espaços, sendo empregados, geralmente,
por sujeitos que não faziam parte daquele contexto. Ainda a ressaltar é que tanto
bibinhas quanto sapinhas costumavam utilizar tais denominações mais comumente
de forma individual, embora também servissem para designar coletividade: “Aquela
sapinha tá me dando nos nervos!”, ou então: “Foram aquelas bibinhas lá da
(bairro) Caieira”.
Não quero afirmar aqui que havia
distinções rígidas, mas exatamente o contrário: as sapinhas e as bibinhas
costumavam estar juntas, mescladas, conversando, dividindo espaços de maneira
pacífica e festiva, assim como com outros indivíduos da mesma faixa etária, os
quais afirmavam, porém, não manter relações erótico-afetivas com pessoas do
mesmo sexo. Os indivíduos estudados nesta pesquisa, portanto, não poderiam ser
todos inseridos nas categorias sapinha e bibinha. Aqueles outros (minoritários neste
contexto) que não se adequavam a estas categorias eram geralmente da mesma
faixa etária e, muitas vezes, amigos, vizinhos, parentes ou colegas de aula. A
circulação entre esses indivíduos em tais espaços era incessante (em alguns
momentos, quase caótica).
A proximidade, a coexistência e a convivência socioespacial, aliadas à
identificação por faixa etária e ao fato de essas pessoas se identificarem
majoritariamente como sapinhas e bibinhas (mesmo que nem todos os indivíduos
26
“Sapas”, “Sapinhas”, “Sapatilhas” e outros termos menos usados foram retirados de entrevistas e da
convivência cotidiana com o público estudado. No contexto social do campo, ao serem empregados por
aqueles sujeitos, quase nunca carregavam carga depreciativa.
27
Estes quatro primeiros termos (bibas, bibinhas, bicha, bichinha) eram utilizados quase sempre
acompanhados de artigos femininos, “a” ou “as” – “as bibas”, “a bibinha”, “a bichinha” – e nunca com
artigos masculinos. Assim como em sapinhas, estes termos, no contexto social do campo, e usados por
aqueles sujeitos, raramente eram depreciativos.
26
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
se adequassem a tais categorias) fazem com que seja possível afirmar a existência
de uma coesão grupal, ao invés de apenas um apanhado amorfo de pessoas.
Outra experiência percebida em campo foi a relação de sapinhas e bibinhas
com alguns daqueles indivíduos que também vivenciam experiências eróticoafetivas com pessoas do mesmo sexo, mas que têm bem mais idade do que elas.
Foi possível detectar essas relações em vários momentos da convivência com
sapinhas e bibinhas, a começar pela minha inserção em campo, uma vez que tenho
25 anos de idade e difiro socialmente do grupo estudado, seja por já não ser
adolescente, seja pelo vestuário, ou comportamento menos “brincalhão” e solto. Foi
necessária uma grande adequação de minha parte à dinâmica do grupo para poder
“fazer parte”, integrar-me, na procura por estabelecer o “encontro etnográfico”,
seguindo os conselhos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000).
Comum
em
todos
os
espaços
de
pesquisa, ao começar a dialogar e a fazer perguntas aos indivíduos freqüentadores
de bares e boates GLS, foi responder à recorrente pergunta introdutória que
acabaria por me autorizar a perscrutar aquele universo: qual era minha orientação
sexual? “Tá, mas você é o quê? O que é que tu curte?”, e outras variações da
pergunta, as quais se tornaram constantes no início das minhas abordagens em
campo. Não foi diferente em relação às sapinhas e às bibinhas. Responder que eu
tinha um namorado derrubava algumas barreiras para que eu pudesse conviver e
fazer perguntas. Entretanto, com o grupo de adolescentes não bastava apenas isto,
mas também me amoldar à sua lógica de sociabilidade, o que por si só já seria
razão para produzir um artigo inteiro acerca das adequações metodológicas que
precisei fazer para estar em campo. O que vale a pena dizer aqui é que me envolvi
de tal forma com as sapinhas e as bibinhas que em muitos momentos sequer
precisava fazer perguntas; a convivência e as conversas, quase como amigos, já me
apresentavam inúmeras das respostas que procurava.
Um exemplo dessas respostas ocorreu
quando, já eu mais próximo e aceito pelo grupo, estávamos todos em frente ao
Dromedário conversando e rindo e um homem, com cerca de 50 anos, aproximouse e acabou por sentar-se à nossa mesa (onde estávamos eu e mais cinco pessoas:
quatro garotos e uma garota) sem nos pedir permissão. Eu nunca o vira, mas pelas
reações dos meus acompanhantes, percebi que ele já era bem conhecido e também
um elemento um tanto indesejado. Nikolai28 era um homem com cerca de 1,70m de
altura, calvo da testa à nuca, com cabelo apenas acima das orelhas. Era magro,
mas tinha uma “barriguinha” e, como fiquei sabendo mais tarde, todos faziam
questão de demonstrar que o achavam feio e que sua presença era incômoda.
28
Nome fictício. Quando me referir aos nomes dos indivíduos entrevistados, utilizarei nomes de alguns
dos personagens do romance Humilhados e ofendidos de F. M. Dostoievski.
27
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Durante alguns minutos, as pessoas na mesa o ignoraram solenemente, mesmo
tendo ele tentado “puxar papo”. Como queria ver qual era o comportamento comum
do grupo, não interferi. Percebi que em vários momentos Nikolai procurou
“apimentar” a conversa, falando algumas obscenidades e fazendo perguntas que
eram deixadas constrangedoramente sem resposta, até que Aliosha,29 um garoto
que se tornou um dos meus “informantes privilegiados”, irrompeu: “Tá, tia! Tá! A
tia tá atacada hoje. Tá querendo chamar a atenção. Vai lá pro banheirão que a tia
encontra uma neca,30 vai!”.
Fiquei chocado com a agressividade da
reação de Aliosha, mas procurei disfarçar para ver o que os demais fariam. O
próprio Nikolai não pareceu nada ofendido e ainda riu como se estivesse
acostumado com o tratamento. Tia, como ouviria ainda diversas outras vezes, era
um termo nativo que denominava homens mais velhos que tentam “ficar” com as
bibinhas (e vistos geralmente como não-atraentes, às vezes repulsivos31) e que
costumam lhes propor algum tipo de pagamento ou trocas por atos erótico-sexuais.
Tia é também utilizado contextualmente para depreciar homens não tão velhos,
mas que também se aproximam ou se interessam pelas bibinhas.
Aliosha me diria alguns momentos mais tarde que Nikolai costumava
“pegar”32 sempre alguém no banheiro do Dromedário. Ouvi diversas histórias sobre
encontros erótico-sexuais naquele lugar, e os que assim faziam, ali ou em outros
banheiros, eram chamados de bichas banheirudas, ou então de piranhas do
banheiro, o que geralmente denotava uma posição hierárquica mais baixa, menos
“bem vista” no contexto do grupo. Passados alguns minutos, Nikolai acabou sendo
mais tolerado, embora muitas vezes ignorado em suas perguntas e comentários.
Esse
exemplo
ilustra
algo
muito
perceptível em meu campo: uma clara discriminação para com sujeitos mais velhos
que mantêm relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo neste contexto
da região do Dromedário, muito embora, como já constatado por Córdova (2006),
tal comportamento não se restrinja àquele espaço, mas se espalhe também para
todo um conjunto mais amplo do mundo GLS na cidade. Um dos meus
entrevistados em uma das boates de Florianópolis afirmou: “Gay tem prazo de
validade, sabia? O meu já expirou!”. Andreiev, o entrevistado, tinha cerca de 40
anos e afirmava já não ter muita vontade de sair para bares e boates GLS, pois “há
muito preconceito com quem é mais velho”.
29
Aliosha tem 18 anos de idade, embora pareça ainda mais jovem. Estuda e mora na Barra da Lagoa
(bairro distante cerca de 40 minutos do centro da cidade, vindo de ônibus em dia sem engarrafamento).
30
“Neca” significa “pênis”.
31
Sobre relações de segmentação e discriminação geracional no contexto social homossexual em
Florianópolis, ver Córdova (2006).
32
Sinônimo de fazer sexo, transar.
28
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Além
da
questão
geracional,
há
também outros fatores que são utilizados para reafirmar o vínculo grupal e para
demarcar diferenças sociais (e hierarquia) no contexto das bibinhas e das sapinhas
do Dromedário, do pátio e da escadaria. Um deles é quanto aos moradores do
centro ou da periferia. As bibinhas e as sapinhas moradoras do centro tendem a ser
vistas como melhor posicionadas na cadeia hierárquica das sociabilidades na área
do Dromedário, tanto que várias vezes, contextualmente, a distinção era posta em
evidência, em geral em um tom de brincadeira ou escárnio, como demonstra a fala
de Aliosha para uma sapinha moradora de um bairro afastado na ilha: - “Ah,
querida! Mas tu é periférica, né? Eu sou downtown!”33. Periferia englobaria tanto os
bairros da cidade (na ilha ou no continente), quanto as comunidades do maciço do
Morro da Cruz, que são contíguas ao centro histórico da cidade.
O critério para as “periféricas” não era tanto a proximidade ou a distância
(em sentido geográfico) do centro em si, mas sim se a área em que o indivíduo
morava era de classe média ou de classes populares. Há o exemplo de um garoto
morador do centro, porém mais distante do Dromedário do que uma garota
moradora de um dos morros do maciço: ele levava 15 minutos a pé de sua casa ao
Dromedário; ela, menos de 10 minutos. Entretanto, ele fazia parte dos downtowns,
ela, das periféricas. Embora esta distinção não causasse a criação de setores
distintos – o dos downtowns e o dos periféricos (indivíduos de ambas as
classificações circulavam livremente nesses espaços) – ela acabava por servir de
razão de referência hierárquica interna no contexto de sapinhas e bibinhas.
Muitas vezes, o critério para compor as periféricas combinava-se também
com aqueles de classe, o que se refletia em roupas menos caras (que não eram “de
marca”), em não poder comentar os acontecimentos dos seriados da TV a cabo
(posto que não possuíam a assinatura) e, geralmente (embora não sempre), em
uma posição hierárquica inferior dentro do grupo. Digo “não sempre” para não dar
uma idéia mecânica de hierarquia que, na verdade, é bem contextual e também
móvel, dependendo do acionamento de alguns dispositivos de poder no grupo. Por
exemplo, Müller, um rapaz de 19 anos, branco, bonito e “bombado” (em forma,
musculoso), e que era extremamente popular no contexto grupal, provinha,
entretanto, de camadas populares e morava em um dos morros próximos ao centro
da cidade. Apesar de compor as periféricas, ele era muito respeitado por sua
beleza, carisma e capacidade de conquistar amigos facilmente. Acabava por
33
A utilização de termos em língua inglesa é também um recurso de poder em diversos espaços da
noite GLS da cidade, denotando sofisticação, inteligência e capital cultural. Isto se manifesta em
algumas boates, onde alguns sujeitos fazem questão de cantar alto as letras de músicas em inglês para
demonstrar que sabem falar a língua. Embora “downtown” (que significa parte central da cidade) não
seja um termo utilizado pelo conjunto das bibinhas e sapinhas, eu o empregarei neste trabalho como
categoria contrastante a “periféricas”, uma vez que foi o único termo nativo que denominava esta
distinção.
29
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
conseguir corromper as normas que definem quem está mais alto e quem está
inferiorizado no contexto desta hierarquia.
A beleza, o carisma e a simpatia (questões que pretendo abordar mais
profundamente em artigos futuros) eram os seus dispositivos de poder para
enfrentar aquelas normas sociais na busca por subvertê-las. Pude perceber muitos
outros exemplos de táticas de subversão das normas hierárquicas em meu campo,
mas creio não ser possível expô-las neste trabalho.
2. A referência do vestuário para o vínculo grupal
Assim como já afirmado, os espaços do
Dromedário, do pátio do museu e da escadaria da igreja serviam como locais
importantíssimos de aprendizado e de troca para “saber viver socialmente” no
contexto pesquisado. Aprender a comportar-se socialmente, implica também, em
termos gerais, aprender a vestir-se conforme as expectativas da coletividade à qual
o indivíduo está ligado, ou à qual pretende se vincular.
A
análise
social
do
vestuário
foi
fundamental para perceber que, além de compartilharem as vivências eróticoafetivas por pessoas do mesmo sexo e da mesma faixa etária, as sapinhas e as
bibinhas também reconheciam potenciais novos integrantes a partir das roupas e
dos acessórios que determinadas pessoas usavam. Isto ficou claro em diversos
momentos em que os dois primeiros pré-requisitos (vivência erótico-afetiva com
pessoas do mesmo sexo e compartilhamento da faixa etária) não foram cumpridos
por alguns dos indivíduos. No entanto, eles foram aceitos, pois seguiram outros
critérios, como o do vestuário análogo e o da afinidade na convivência.34
Não
pretendo
entrar
em
detalhes
acerca de tendências específicas da moda jovem contemporânea, mas sim fazer
considerações sobre a atenção metodológica dada ao vestuário nas questões
identitárias.
Nos primeiros dias de minha pesquisa,
conheci outro garoto que também seria um dos meus informantes privilegiados. Ele
se chamava Vania, e começou a conversar comigo ao me entregar um papel de
divulgação de uma festa que ocorreria nos próximos dias. O rapaz se vestia bem à
semelhança do resto do grupo de sapinhas e bibinhas e parecia pertencer à mesma
faixa etária, pois possuía comportamento, gestual e corporalidade muito parecidos
com os do restante do grupo. Usava um piercing na sobrancelha, um boné preto,
34
É claro que há outros critérios de aceitação e convivência de indivíduos que não apenas estes,
entretanto, vou me ater, para fins de exeqüibilidade, a apenas aqueles que já foram apresentados.
30
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
camiseta escura com estampa de marca conhecida (e um tanto cara), calças jeans
azuis rasgadas em alguns pontos e justas às pernas; os tênis eram como aqueles
usados pela quase unanimidade do grupo. Enfim, portava signos bastante similares
aos dos outros membros do grupo.
Durante todos os meses da pesquisa
eu o tratei como tratava as outras bibinhas, acreditando que cumpria todos os
critérios que julgava serem imprescindíveis para “estar” entre bibinhas. Só nas
últimas semanas do campo, quando ele me disse que faria aniversário num próximo
dia é que me lembrei de lhe perguntar a idade (um lapso), e ele me respondeu que
faria 28 anos. Fiquei impressionado com a informação, pois ele se distanciava
sensivelmente da faixa etária majoritária do grupo (15 a 22 anos), e constatei que
se adequava tão bem ao grupo não só por parecer realmente ter menos idade, mas
também porque, além de “ficar” com outros garotos, comportava-se e vestia-se à
semelhança de qualquer outra bibinha.
Pude também perceber que existem
diversos garotos e garotas que não “ficam” com pessoas do mesmo sexo, mas
convivem e fazem parte (embora minoritariamente) dos agrupamentos de sapinhas
e bibinhas. São quase todos da mesma faixa etária (amigos, parentes e/ou vizinhos
de outros membros do grupo), sendo que, além da afinidade que sustenta o vínculo
social, há também a concordância quanto aos signos do vestuário: vestem jeans
surrados, camisetas de bandas (ou com estampas de marcas reconhecidas), bonés;
alguns adotam piercings e, como é quase unanimidade, escolhem o mesmo modelo
de tênis, apenas variando cores, motivos e estampas.
Além
dos
critérios
de
afinidade
geracional e de afinidade no campo de possibilidades erótico-afetivas há, portanto,
o do vestuário análogo, que tem relações com os outros dois e cria um conjunto de
signos que permite a aceitação de novos indivíduos nas fileiras de bibinhas e
sapinhas. É importante ressaltar que nenhum destes três critérios, particularmente,
garante a aceitação de novos indivíduos entre as pessoas estudadas.
3. Breves considerações finais
Este
texto,
que
inicialmente
se
propunha debater apenas a importância do vestuário para a manutenção do vínculo
identitário de bibinhas e sapinhas, acabou por extravasar seu assunto e discutir
também questões de distinção e segmentação social entre quem mora no centro ou
na periferia (periféricas x downtowns), e outra de distinção por questões
geracionais (quanto à discriminação de sujeitos mais velhos: as tias). Apresentou
31
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
também alguns dos critérios sociais gerais para a aceitação e a incursão de novos
indivíduos no contexto de sapinhas e bibinhas.
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REPRESENTAÇÕES DO PENSAMENTO SOCIAL ACERCA DO CASAMENTO
INTER-RACIAL
Zelinda dos Santos Barros35
RESUMO
Alguns estudos demonstram como opera o conceito de raça em nossa sociedade e a
persistência da interdição do casamento entre indivíduos considerados racialmente
diferentes, o que nos leva a refletir sobre a importância e a influência da raça como
categoria social e as representações existentes a respeito do casamento inter-racial.
Neste artigo, são apresentadas e discutidas as representações sociológicas
dominantes sobre o casamento inter-racial, muitas vezes reduzidas a uma visão
monológica das relações raciais. Após criticar esta concepção, discuto as mudanças
ocorridas no casamento e, por fim, proponho uma nova maneira de analisar os
casamentos inter-raciais.
Palavras-chave: casamento, raça, representações, casais inter-raciais.
ABSTRACT
35
Mestra em Antropologia (FFCH/UFBA). Pesquisadora Convidada do Centro de Estudos Afro-Orientais
(CEAO/UFBA).
34
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Some studies demonstrate how operates the race concept in Brazilian society and
the persistence of the injunction of the marriage between people consider racially
different. This situation leads us to reflect about the importance and influence of
race as social category and the representations about the interracial marriage. In
this paper, I introduce and discuss the dominant sociological representations about
the interracial marriage, many times limited to monological view about racial
relations. After criticizing this conception, I discuss the changes happened in the
marriage and, finally, I propose a new way to analyze the interracial marriages.
Key words: marriage, race, representations, interracial couple.
O CASAMENTO INTER-RACIAL
As representações sobre o casamento inter-racial variam significativamente
conforme o contexto no qual ele é analisado. No apogeu do racismo científico
(século XIX), momento em que as interpretações poligenistas ganham maior
destaque, observa-se uma condenação impiedosa ao que seria o relacionamento
indesejável entre seres de “espécies” diferentes. A miscigenação, tida para muitos
como sinônimo de degeneração, era interpretada diferentemente, podendo ser
considerada causa da infertilidade ou da fertilidade demasiada (e indesejada) dos
mestiços. No Brasil, a influência das idéias poligenistas no pensamento racial se fez
sentir a partir do final do século XIX, porém aqui “... a interpretação darwinista
social se combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista” (Schwarcz,
1993, p. 65).
Ao analisar estudos sociológicos que abordaram o tema das relações afetivosexuais no Brasil até o penúltimo quartel do século XX, Laura Moutinho percebeu
uma diferença no modo como são representados os pares homem “branco”/mulher
“mestiça” e homem “negro”/mulher “branca”. O primeiro “... é concebido no interior
de uma relação não formal (para a época), ou seja, concubinato, amasiamento
entre outros” (Moutinho, 2001, p. 224), e o segundo, “... circunscrito a uma relação
formal”, mas que é concebido como
[...] uma troca de compensações de atributos desprestigiantes visando à
ascensão (ou mobilidade social) – negando-lhe o desejo, o afeto ou o erotismo
–, apresenta-se em parte como uma forma de obscurecer a ameaça que este
casal representa para uma estrutura de dominação calcada no gênero
(masculino) e na “raça” (branca); (idem, p. 224-225).
35
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Tendo em vista as mudanças ocorridas na sociedade em geral - e no
casamento, em particular – no que se refere à proporção de uniões formais entre
negros e brancos, observa-se a inadequação de tal representação, que já não se
sustenta em virtude de o percentual de casamentos inter-raciais formados pelo par
homem branco/mulher negra não diferir significativamente daquele em que o par é
formado por homem negro/mulher branca (Silva, 1987).
Moutinho (2001) chama a atenção, em
seu estudo sobre relacionamentos afetivo-sexuais entre negros e brancos, para o
fato de que, nas análises em que se mencionam relações afetivas inter-raciais –
sejam elas quantitativas ou qualitativas – é bastante recorrente a preocupação em
identificar os fatores que levam à escolha de mulheres brancas ou negras pelos
homens. No entanto, não se percebe a preocupação com os motivos que induzem
as mulheres a escolherem homens brancos ou negros como parceiros, ficando assim
encobertas as relações de gênero que fundamentam a “escolha”.
Nos estudos de Pierson (1971 [1941]), Azevedo (1996 [1953]) e Harris
(1967 [1956]), freqüentemente referidos em algumas análises sobre relações
raciais, as barreiras aos casamentos inter-raciais são atribuídas à posição de classe
dos envolvidos. Entretanto, notam-se variações no que se refere à explicação da
importância da “raça” nesses relacionamentos.
Pierson (op. cit.), a exemplo de Freyre (1933), insiste no caráter amistoso
das relações raciais nesta sociedade. Após traçar um panorama presença do negro
na Bahia, do período colonial à década de 40, conclui pela inexistência de um
racismo
que
negue
o
mesmo
status
ontológico
ao
negro,
atribuindo
as
manifestações de discriminação racial à situação de classe: “... a oposição ao
casamento com pretos se baseia mais em classe que em raça. Quando a cor preta
deixa de identificar o indivíduo como membro da classe ‘inferior’, a oposição tende
a diminuir” (Pierson, [1941], p. 206). Como reforço a esse argumento, ele cita o
grande número de negros que ascenderam socialmente na Bahia e de casamentos
inter-raciais, chegando a afirmar: “A ‘inferioridade’ que existe não é considerada
racial e, por conseguinte, permanente, mas antes cultural, temporária, e já em vias
de extinção” (idem, p. 259).
É importante mencionar que no texto de Pierson, fundado sobre o binômio
branco/negro, a interpretação formulada pelo autor nos leva a perceber na classe
social
a
categoria
predominante,
não
sendo
analisado
de
que
forma
as
representações socialmente partilhadas a respeito de raça são influenciadas por
diferenças de gênero e geração entre negros e brancos.
Para Azevedo (1996 [1953] e 1975), a interdição ao casamento inter-racial
não decorria unicamente da posição de classe de brancos e negros. Como ainda
36
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
persistia na década de 60 o descompasso entre a ordem racial e a ordem social, o
negro era identificado como “pobre”, como membro da “ralé”. Neste contexto, o
casamento inter-racial suscitava resistência ainda maior do que a aceitação do
negro em ocupações privilegiadas. Azevedo, em seu clássico estudo sobre negros e
ascensão social em Salvador, As elites de cor numa cidade brasileira (1996 [1953]),
conclui que a “cor preta” é símbolo de status inferior e que mesmo entre pessoas da
mesma classe constitui um traço diferencial negativo: “Funcionando a cor e os
traços somáticos, em grande parte, como símbolos de status, a resistência aos
intercasamentos traduz ao mesmo tempo preconceitos de classe e raça, ou melhor,
de ‘cor’” (idem, p. 78) Assim, a cor, numa relação inversa à posição social, assume
valor negativo, o que significa dizer que quanto mais escura é a cor da pele, menor
é o status do indivíduo nesta sociedade.
Ao tratar da mestiçagem em seu livro Democracia racial: ideologia e realidade
(1975), Azevedo levanta algumas hipóteses sobre o casamento inter-racial:
-
-
-
Entre os grupos não-brancos o casamento inter-racial é mais aceito devido
à identidade de classe existente entre eles (brancos = ricos, pretos e
pardos = pobres);
A aceitação do par homem negro/mulher branca é maior devido à regra de
matripolaridade, que garante à prole a enculturação nos valores, nas regras
de etiqueta e na estrutura de relações da mãe, o que não provoca a
“queda” do componente branco do casal e assegura uma ascensão ao
componente negro, que passa a se situar num status superior. O homem
negro é melhor aceito como par quando tem status superior ao da esposa
branca, o que serve para “compensar” a diferença entre os dois.
Os casamentos mais aprovados são aqueles que ocorrem entre brancos e
mulatos, que são “indivíduos de características antropofísicas não muito
distantes” (p. 63).
Harris (op. cit.) aponta a existência de estereótipos negativos contra os
negros e as características físicas negróides, inclusive por parte dos próprios
negros, mas diz que estes são fenômenos ideológicos que não afetam gravemente a
conduta real.
O que as pessoas dizem que farão ou deixarão de fazer em relação aos
pretos e mulatos não se transforma em comportamento real. Na verdade,
brasileiros cheios de preconceito racial já foram vistos comportando-se com a maior
deferência para com representantes dos tipos que alegam serem os mais inferiores.
O preconceito racial no Brasil, em outras palavras, não é acompanhado pela
segregação e discriminação racial sistemáticas (p. 95).
Para Harris, a referência a um indivíduo é seguida por último por sua
pertinência racial, ou seja. “ele é rico, instruído e branco”, ou “rico e instruído e
homem de cor” ou “pobre e ignorante homem de cor” ou “pobre e ignorante
branco” (idem, p. 96). Atualmente, podemos notar uma modificação na etiqueta de
37
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
relações raciais: ou se é “rico(a)”, “bonito(a)”, “inteligente” e, conseqüentemente
“branco(a)”, ou “negro(a), mas rico(a)”; “negro(a), mas boa pessoa”; “negro(a),
mas educado(a)”; ou “negro, mas bonito”.
O resultado dessa qualificação de raça por educação e nível econômico
determina a identidade de classe a que o indivíduo pertence. É a classe a que
ele pertence e não a raça que determina a adoção de atitudes subordinadas ou
superiores entre indivíduos específicos nas relações face a face. [...] Não há
grupos raciais contra os quais ocorra a discriminação. Ao invés disso, há
grupos de classe. A cor é um dos critérios para a identidade de classe, mas
não é o único (idem, p. 96).
Harris aponta que a classe é o fator preponderante no sistema brasileiro de relações
raciais, o que faz com que brancos e negros pobres sejam igualmente segregados.
”No que se refere ao comportamento real, as ‘raças’ não existem para os
brasileiros, mas as classes existem tanto para o observador quanto para os
brasileiros” (idem, p. 100-101).
Florestan Fernandes, em seu livro A integração do negro na sociedade de
classes (1978 [1969]), afirma que o objetivo da interdição aos casamentos interraciais era “impedir a mobilidade social vertical – a passagem do ‘negro’ para a
condição de ‘gente’ ou de ‘pessoa respeitável’” (idem, p. 323-324). Mesmo que o
casamento ocorresse, o preconceito dos parentes dos cônjuges não era alterado.
Com freqüência, o mecanismo de aceitação favorecia apenas o indivíduo
envolvido. Se houvesse resistência ao casamento, por exemplo, passadas as
peripécias ligadas aos primeiros anos de afastamento, redefinia-se o “marido”
da filha, da irmã ou da sobrinha, sem que isso afetasse em nada os demais
julgamentos etnocêntricos (idem, p. 327).
Os autores acima citados, mesmo que não vejam o movimento ascendente
em si mesmo como algo negativo, dotam este movimento de uma conotação
negativa para o negro, pois somente se realiza tendo como conseqüência a perda
de sua própria identidade. Podemos observar este reforço nesta citação de Souza
(1983):
O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do
massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus
valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa,
o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única
possibilidade de “tornar-se gente” (p. 18).
Para Souza, o negro que ascende tem duas opções: “tornar-se negro” ou
sucumbir ao “desejo de ser branco”. Para os que optam pela segunda alternativa, o
casamento inter-racial transforma-se em um meio de satisfação desse desejo
impossível. O parceiro branco é transformado em instrumento tático, numa luta
38
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
cuja
estratégia
é
cumprir
os
ditames
superegóicos,
calcados
nos
valores
hegemônicos da ideologia dominante” (idem, p. 43).
Moreira e Sobrinho (1994), partindo de
compreensão similar, dirão:
O casamento inter-racial apresenta-se, aos olhos dos negros, como a via de
acesso a uma melhor integração social e à condição de usufruto e
compartilhamento, com as demais raças, dos bens socioculturais e econômicos
produzidos pela sociedade (p. 96).
Segundo as representações de boa parte dos estudos sobre relações raciais,
não existe margem de escolha possível ao negro: ou casa-se com um “igual”, ou
tenta “branquear”, casando-se com um branco. A visão meramente pragmática da
escolha conjugal somente reforça, a meu ver, as dicotomias e a concepção de
espaços de interação segregados e de escolhas rigidamente demarcadas, como se
ao negro não fosse permitido escolher seu parceiro baseado em critérios distintos
daqueles de natureza racial. Esta posição é dotada de um caráter extremamente
normatizador, pois os sentimentos e os desejos possíveis, até mesmo sua própria
identidade
como
negro,
são
condicionados
a
um
posicionamento
político
“adequado”. Além disto, transmite-se a visão de branquitude como algo acabado,
perfeitamente delimitado. Como não se questiona como ela se mantém, permanece
fadada a ser sinônimo de superioridade. Por outro lado, ao representarem a escolha
de um(a) parceiro(a) branco(a) como fruto de um cálculo, de uma estratégia
previamente elaborada, tais estudos negligenciam o fato de que esta escolha não só
traz “benefícios”, mas tem complicações e desdobramentos que afetam o membro
“negro” e também o membro “branco” do casal.
Podemos identificar um sistema de representações fundamentando o
processo de “escolha” do cônjuge, no qual são recorrentes as classificações do tipo:
“negro” = inferior/negativo; “branco” = superior/positivo. Entretanto, de acordo
com os dados cotejados nesta pesquisa, tal sistema de representações nem sempre
opera de maneira exclusiva, como indicam alguns estudos sobre relações raciais
(Moreira & Sobrinho, 1994; Silva, 1991; Bacelar, 1989), pois podemos observar
certa inconstância, o que faz com que muitas vezes as posições se alterem e
percebamos
que
em
determinados
momentos
o
“branco”
é
considerado
inferior/negativo e o “negro”, superior/positivo ou, ainda, em que ambos são
igualmente considerados.
Na análise do processo de identificação, definir a alteridade a partir de
expectativas mútuas de afastamento ou aproximação é, de certa forma, tomá-la
como algo já constituído e acabado, bastando aos sujeitos o recurso à alternativa
simples de assumir o outro como um espelho ou negá-lo. A meu ver, no processo
de identificação, é possível dizer que há um andamento dinâmico de aceitação ou
39
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
recusa de alguns elementos que constituem positiva ou negativamente aqueles com
os quais dialogamos, mas não só isso, pois há também um intercâmbio entre
aqueles que se comunicam. Daí a necessidade de reavaliação da visão transmitida
por teorias que representam o negro que ascende como alguém que “quer ser
branco”.
Em vez de reforçarmos as dicotomias “branco”/superior, “negro”/inferior,
poderemos alargar nossas análises e considerar que o ser humano é relacional e
que, assim sendo, alguns elementos valorizados naqueles com os quais nos
relacionamos orientam nossas ações, o que é muito diferente de levar em conta que
ser o “outro” in toto é meta perseguida por aqueles que supostamente seriam
integralmente depreciados e inferiorizados. E isto vale tanto para o “negro” em
relação ao “branco”, como para o “branco” em relação ao “negro”.
Num texto que discute o reforço da desvalorização do corpo feminino pela
teoria feminista como decorrência da influência do não-questionamento de
determinadas concepções de corporalidade, Grosz (2000) nos ajuda a entender os
prejuízos da adoção analítica do pensamento dicotômico. Este tipo de pensamento
“hierarquiza e classifica os dois termos polarizados de modo que um deles se torna
o termo privilegiado e o outro sua contrapartida suprimida, subordinada, negativa”
(idem,
p.
47)
Assim,
através
deste
tipo
de
pensamento,
a
análise
do
relacionamento entre negros e brancos é restringida de forma considerável, pois as
possibilidades de interpretação tornam-se restritas a uma visão polarizada, na qual
não há espaço para contemplação das múltiplas possibilidades de relacionamento
entre os sujeitos e, muito menos, de questionamento e superação desta dicotomia.
Segundo Grosz,
... a corporalidade não deve mais ser associada a apenas um sexo (ou raça), o
qual passa a carregar o fardo da corporalidade do outro por isso. As mulheres
não podem mais ter a função de ser o corpo para os homens, enquanto os
homens são deixados livres para escalar as alturas da reflexão teórica e da
produção cultural. Negros, escravos, imigrantes, povos nativos não podem
mais funcionar como o corpo de trabalho para os “cidadãos” brancos,
deixando-os livres para criar valores, a moral, o conhecimento. Existem (pelo
menos) dois tipos de corpos (idem, p. 83).
Como conseqüência da afirmação de um corpo-padrão em função do qual
todos os outros são julgados, temos a existência de comportamentos que traduzem
a negação da identificação com o que pode ser caracterizado como “negro”. O corpo
não é aqui entendido simplesmente como um organismo biológico, mas sim como
“um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais e
geográficas” (idem, p. 84).
Um exemplo da valorização do corpo branco em detrimento do negro é o
processo de demonização que sofrem as religiões de origem africana por parte de
40
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
algumas tendências do pentecostalismo, o que resulta num “disciplinamento” dos
corpos a partir da negação de valores que são associados a um modo de ser negro.
Isto não significa, no entanto, que devemos considerar que pentecostalismo e
afirmação de identidade negra sejam incompatíveis, pois o estudo de John Burdick
(2001) sobre este mesmo assunto nos mostra que, além das tensões do discurso
étnico em face do pensamento pentecostal, é possível perceber elementos de
etnicidade negra nessas congregações.
O casamento inter-racial, utilizado por alguns como reforço ao argumento de
igualdade existente entre negros e brancos no Brasil, somente ocorre, de acordo
com Hasenbalg (1995), em 21% do total de casamentos, o que denuncia a
idealização das relações raciais nesta sociedade. Tais estudos apontam que mesmo
os pardos, socioeconomicamente mais próximos dos pretos, se distanciam destes
no que diz respeito à preferência matrimonial – o que se traduz no maior número
de casamentos inter-raciais entre membros deste grupo com os do grupo branco
(Silva, 1991).
Ao analisar o casamento inter-racial nas décadas de 80 e 90, Petrucelli
(2001) compara dados das Pesquisas por Amostra de Domicílios (PNADs) de 1987 e
1998 e chama a atenção para a classificação da população por grupos de cor, o que
seria um fator determinante no mercado matrimonial. Com uma distribuição da
população brasileira entre brancos, pardos e pretos de aproximadamente 55, 40 e 5
pessoas em cada 100, respectivamente, e sendo a oferta de parceiros proporcional
ao tamanho de cada grupo, se tomarmos apenas os dados brutos para estudar o
comportamento marital, veremos que aspectos significativos do fenômeno não são
devidamente analisados.
Petrucelli (2001), corroborando o que havia sido afirmado por Silva (1987 e
1991), nos mostra como a desconsideração dos tamanhos relativos desiguais das
populações branca, preta e parda na análise de endogamia nos fornece uma visão
distorcida do fenômeno.36 Ao proceder à análise dos dados sem considerar as
diferenças entre os grupos, foi observado que o grupo dos pretos apresentou as
menores taxas de endogamia (60,7%) e o grupo dos brancos, as maiores taxas
(83,2%). Os pardos apresentaram uma taxa de endogamia maior que a dos pretos
(72,7%). Ao efetuar uma padronização das distribuições relativas dos grupos de cor
através de um método estatístico de ajuste, o autor evidenciou que os percentuais
de uniões endogâmicas são completamente diferentes para os grupos branco e
preto: 75,6% e 84,3%, respectivamente; a taxa de endogamia dos pardos não
sofre variação significativa: 72,4%. Estes dados contrariam o que dizem Moreira e
36
Nelson do Valle Silva, em seu artigo “Distância social e casamento inter-racial no Brasil” (1987), já
chamava a atenção para a necessidade de se observar tanto a importância da seletividade marital para
o estudo da composição populacional, quanto o efeito da composição populacional sobre a seletividade
marital.
41
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Sobrinho (op. cit.), que apontam a existência de uma proscrição do casamento com
negros entre os brancos e a busca, ou até mesmo a prescrição, de casamentos com
brancos entre os negros.
Ao considerar a educação como indicador de status e ao analisar os
comportamentos específicos de formação de casais entre os distintos grupos de cor,
Petrucelli (ibidem) observou que quanto maior é o grau de escolaridade, tanto
menor é o percentual de uniões, seja para homens, seja para mulheres; mas os
homens apresentam maior proporção entre os casados do que as mulheres em
qualquer nível de escolaridade. Ao tomar a igualdade dos grupos populacionais por
cor como hipótese e calculando as taxas de endogamia ajustadas, Petrucelli chegou
à conclusão de que as taxas de endogamia se mantêm no mesmo nível (ou até
aumentam) com a ampliação do nível de escolaridade.
De modo geral, quanto menor é a idade da mulher, menor é a taxa de
endogamia. Isto nos leva a inferir que vem ocorrendo um aumento no número de
casamentos mistos ao longo das últimas décadas, o que não anula o fato de que a
seletividade marital por cor ainda contribui de forma significativa para a
manutenção das fronteiras inter-raciais. Assim, Petruceli (ibidem, p. 32) conclui que
a maior visibilidade deste tipo de união “...mascara as reais condições de
reprodução da desigualdade na população brasileira, contribuindo, paradoxalmente,
para
a
manutenção
das
fronteiras
inter-raciais
e
assegurando,
assim,
a
continuidade da transmissão do patrimônio genético coletivo”.
Mesmo se considerarmos que a “cor” é um dos elementos que estão
presentes ao se definir alguém em termos raciais e que ela atua como um princípio
de diferenciação, quando “raça” é utilizada como uma variável analítica em estudos
quantitativos, o pesquisador geralmente classifica por cor os sujeitos de sua
pesquisa, ou permite ao entrevistado a auto-identificação como membro de
determinada raça. A compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos ao se
afirmarem “pardo”, “preto” ou “branco” é negligenciada e, assim, o aspecto
relacional perde terreno para alternativas substancialistas, nas quais raça é
identificada com o biológico.37 Além disso, as análises quantitativas “sugerem
caminhos, reiteram e/ou descartam certas hipóteses, mas não desvelam as
representações e os valores sociais que orientam tais escolhas” (Moutinho, op. cit,
p.27).
Apesar de chamar a atenção para o constrangimento do processo de escolha
dos cônjuges pela “raça”, nos estudos quantitativos sobre casamento inter-racial, a
escolha assume um caráter substancialista e a cor figura como o principal indicador
de pertença dos indivíduos aos grupos raciais. Por outro lado, em muitos estudos
qualitativos que se dedicam ao tema, podemos observar certa limitação nas
37
Ver Piza e& Rosemberg, 2002.
42
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
explicações dadas ao fenômeno, a exemplo da visão do casamento inter-racial
como uma estratégia consciente utilizada pelo negro em seu processo de ascensão
social.
O casamento inter-racial como estratégia de ascensão social do negro
Para que seja bem dimensionada, uma análise do casamento inter-racial em
grupos de classe média deve levar em consideração como são sociologicamente
representados os negros que ascenderam, muitas vezes tidos como trânsfugas,
como “traidores da raça”.38
O negro, quando em processo de ascensão social, figura de modo
idiossincrático nos estudos sobre relações raciais. Se como “povo” o negro tão
somente alimenta a expectativa de ingressar no “mundo dos brancos”, ao se tornar
membro da elite, ele é representado como alguém que luta todo o tempo para
desvincular-se do seu grupo de origem e “tornar-se branco”.
Alguns estudos que tratam das relações raciais (Fernandes, 1978; Souza,
1983; Moreira e Sobrinho, 1994; Ribeiro, 1995), ao descreverem a situação dos
negros
que
passaram
por
um
processo
de
mobilidade
social
ascendente,
freqüentemente recorrem a generalizações equivocadas. Estas representações
apenas corroboram o que é afirmado pelo senso comum em relação ao negro “rico”
ou de “classe média”: “não se considera negro”, “tem vergonha de ser negro”, “é
negro de alma branca” etc.
Para seus descendentes [da elite], o negro livre, o mulato e o branco pobre
são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela
criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como
culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e
não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é
assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender
socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o
negro-massa (Ribeiro, 1995, p. 222).
Outro recurso utilizado em estudos que tratam das relações raciais é a
divisão da população negra entre aqueles que assumem sua negritude e aqueles
que a negam, geralmente associando a afirmação ou a negação da negritude à
situação de classe.
Em seu estudo sobre etnicidade na
cidade de Salvador, Bacelar (1989) divide a população negra em duas categorias: a
primeira, marcada pela ausência de um postulado étnico como matriz, e a segunda,
pautada no estabelecimento da primazia da etnicidade (grupos religiosos e grupos
38
Ver Bento, 2002.
43
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
políticos negros). A primeira categoria, onde estão situados os negros de classe
média, está
... inserida na ética do capitalismo, comprometida com a reprodução da ordem
social, absorvendo os princípios da ideologia liberal burguesa, sobretudo a
igualdade e a liberdade. Ainda, assumindo a versão letrada e ideal da cultura
moderna: a ideologia individualista das classes médias. Pautada na perspectiva
de ascensão social, real ou não, cria formas de auto-representação e sinais
diacríticos que a distancia das classes trabalhadoras (idem, p. 84).
Outras características que, segundo Bacellar (ibidem), definem esta
categoria são: aceitação do paradigma da democracia racial, atribuição do
insucesso individual à sua suposta incapacidade intelectual ou a pessoas,
representação axiológica positiva do mundo dos brancos e representação negativa
do mundo dos negros. O casamento inter-racial, as amizades e as representações
em torno da condição racial seriam atalhos ao “embranquecimento”.
Entre os negros que tomam o postulado étnico como matriz, Bacelar
(ibidem) define três subcategorias:
1. Identificam-se com as classes trabalhadoras urbanas, opõem-se aos
valores de classe média, principalmente ao individualismo. Têm o
componente étnico destacado.
2. “assim
como
identifica-se
a
com
primeira,
as
abarcando
classes
grupos
trabalhadoras
muito
urbanas,
diferenciados,
tendo
baixa
categorização em face das relações de produção e impossibilidade de
assumir os princípios liberais burgueses, sobremodo a igualdade e a
liberdade. Constroem formulações alternativas, com explícita oposição
aos valores da classe média, com ‘um sentimento e prática de
pertencimento a um grupo coabitante de uma mesma região social’,
concedendo ênfase na preeminência do grupo sobre o indivíduo” (p. 86).
3. O campo religioso, mais especificamente o candomblé, por preservar a
identidade negra. Caracteriza-se por uma ampla tolerância religiosa e um
relativo afastamento das questões políticas da integração social.
Segundo Bacelar (ibidem), as representações sobre as relações étnicas
foram alteradas a partir da dinamização da economia baiana, ocorrida desde a
segunda metade do século XX. A pobreza já não era típica da população negra, o
que deslocou o foco da produção simbólica para as relações de produção.
Entretanto, na interpretação do autor, persiste a visão de que a inserção na camada
dominante operou como um dos fatores responsáveis pelo afastamento da autoidentificação como negros por aqueles que ascendiam.
44
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Em A integração do negro na sociedade de classes (1978 [1969]), Florestan
Fernandes analisa a situação do negro após a abolição e denuncia os efeitos da
transição da sociedade escravista para a sociedade de classes. No entanto, opera
com o binômio negro/branco de uma maneira que tolda a contribuição do negro
como um ser ativo, que até mesmo pelas agruras enfrentadas num contexto
extremamente hostil teria expectativas outras que não apenas a assimilação ao
“mundo branco”:
... as motivações e as orientações do comportamento social do “negro”, em
suas manifestações individuais ou coletivas, são calibradas e dirigidas pelo afã
de “pertencer ao sistema”. As críticas que ele faz à organização da sociedade
brasileira afetam a esfera dos ajustamentos e das relações raciais (p. 12).
Ao tomar “negro” e “povo” como sinônimos e considerar o primeiro um
contingente que está fora da sociedade, Fernandes, ao mesmo tempo em que
denuncia o processo de marginalização a que foi submetido o negro, reafirma a
consideração de que este não constitui e é constituído por esta mesma sociedade.
Assim, embora se tratando de um cientista que tenta romper as barreiras do
racismo e luta em prol da inclusão de segmentos excluídos da sociedade, vemos
que há um reforço de posições, o que pode ser comprovado até no sentido evocado
pelos títulos de seus livros, a exemplo de A integração do negro na sociedade de
classes: trata-se de alguém que esteve fora e através de um processo exterior a ele
é incluído, e não de um agente ativo na dinâmica de construção da sociedade que
passa por uma transformação. Podemos observar isto quando ele diz que “a análise
converte-se em um estudo da formação, consolidação e expansão do regime de
classes sociais no Brasil do ângulo das relações raciais e, em particular, da absorção
do negro e do mulato” (idem, p. 10).
Pode ser percebida em Fernandes uma recusa em admitir que o fator racial
desempenhou um papel autônomo na organização social, pois ele afirma que as
“tendências históricas de diferenciação e de reintegração da ordem social não
favoreciam, de per se, nenhum agrupamento étnico ou racial determinado” (idem,
p. 247). Como o envolvimento nos processos de crescimento econômico e de
desenvolvimento sociocultural dependia de recursos materiais e morais dos quais o
negro não dispunha, ele aí ingressou em desvantagem. Deste modo, para
Fernandes, a responsabilidade do não-ajustamento à nova situação histórica se
deveu à permanência, na população negra, de um “equipamento adaptativo e
integrativo basicamente modelado para funcionar na sociedade de castas” (idem, p.
248). Esta permanência, devido à ausência de estímulo econômico, político e social
em relação à mudança da situação dos negros, favoreceu o isolamento sociocultural
destes. Fernandes classificou tal situação como um “problema de demora cultural”.
45
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
A ascensão social dos negros não é vista por Fernandes de modo negativo.
Para ele, apesar de se afastarem dos seus “irmãos de cor” e negarem solidariedade
aos movimentos reivindicatórios, a ascensão do negro é positiva, pois este
... impõe ao “branco”, por seu modo de ser, por sua maneira de afirmar-se
socialmente e por seu estilo de vida, uma imagem nova do “preto”. Em
particular, ele contribui para reduzir e, por vezes, até para anular a distância
cultural existente entre os padrões de vida dos dois estoques raciais. [...]
Portanto, o “grã-fino negro” desempenha a sua tarefa histórica, apesar de seu
esnobismo e de sua cruel indiferença diante dos dilemas do “negro pobre”, a
qual consiste em matizar a composição racial dos diferentes estratos sociais da
sociedade inclusiva (idem, p. 180).
A possibilidade de ascensão à classe média teria exercido sobre os negros,
segundo Fernandes, a mesma influência que os imigrantes bem-sucedidos
exerceram sobre os pobres, ou seja, eles seriam a prova de que poderiam “chegar
lá”.
Azevedo (1975) assinala que, mesmo quando ascendem profissionalmente,
os negros são alvo de uma “mobilidade seletiva”, pois são aceitos em determinados
espaços, mas têm o acesso vetado em outros. Isto porque, em face da ameaça que
representam à estabilidade das posições na estrutura social, são criados novos
mecanismos discriminatórios pelos brancos para que garantam status quo. Os
negros, segundo o autor, reagem de diversas maneiras, principalmente através do
retraimento ou da restrição do convívio com os brancos ao espaço de trabalho.
Ao descreverem os espaços “brancos” e “negros” como rigidamente
demarcados, os autores supracitados, mesmo propondo a emancipação do negro,
involuntariamente reforçam aquele que é considerado o seu “lugar”, ou seja, a
posição de subalternidade, de privação material e de acesso à educação. Tal
representação do negro adquire uma conotação que, em última instância, apenas
reproduz alguns fundamentos lógicos do sistema desigual que criticam.
O “branqueamento” atribuído aos negros que ascendem é visto por Bento
(2002) como uma forma de “manter o negro em seu lugar”. Ela aponta como
significativo para compreendermos os propósitos desta ideologia o fato de que esta
maneira ganha maior força justamente a partir
do início
do período de
industrialização no país, quando os negros constituíam um significativo exército de
reserva. Nesse momento, “esse diferente ameaçador ou foi tratado como um ser
despreparado para integrar a sociedade de classes ou como um trânsfuga que
manipulava sua condição racial para poder ascender” (idem, p. 52).
Segundo
Bento,
no
Brasil,
“...
o
branqueamento
é
freqüentemente
considerado como um problema do negro que, descontente e desconfortável com
46
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele
para diluir suas características raciais” (idem, p. 25).
Ela nos mostra como está implícita neste tipo de concepção a idéia do
branco como o único representante legítimo da humanidade. A branquitude e o
processo de construção de sua superioridade, existindo como um modelo a ser
perseguido pelos grupos não-brancos, não são devidamente questionados. Deste
modo, as desigualdades raciais no país terminam por se constituir em um problema
exclusivo do negro. De acordo com Bento, na raiz do problema encontra-se o
interesse do grupo branco dominante em preservar a sua situação de dominação
através da exclusão moral do “outro”, assim como no narcisismo, no medo e na
projeção. No narcisismo, por tomar somente a si mesmo como modelo; na
projeção, ao atribuir ao “outro” suas próprias mazelas e com isso justificar as ações
ofensivas a ele dirigidas, e no medo, por se sentir ameaçado por aqueles que estão
fora de seu padrão de humanidade e que desestabilizam sua própria posição.
Um aspecto decorrente desta situação
é o silenciamento quanto à sua branquitude por parte dos sujeitos que se
beneficiam da condição de brancos, mesmo aqueles que adotam uma postura de
enfrentamento ao racismo. Por outro lado, temos a manipulação da divergência de
identificações por muitos dos que ora são considerados negros, ora brancos,
dependendo do contexto no qual estejam situados.
Além de fatores políticos que justificam o apelo ao argumento do
“branqueamento”,
acredito
que
também
podem
ser
observados
aspectos
epistemológicos. A recorrência a pares binários nas análises das relações raciais faz
com que haja um embotamento da visão no que se refere a aspectos que são
imprescindíveis à adequada compreensão dos fenômenos. Um deles é a gama de
possibilidades que não são contempladas por tais análises em virtude da visão
polarizada que se tem das relações raciais.
Outro aspecto que estudiosos e pessoas envolvidas na luta anti-racista
geralmente não consideram é que, ao associarmos ascensão à branquitude,
negligenciamos o fato de que aquilo que está em pauta é a resistência em ver o
negro como alguém que rompe com uma representação socialmente partilhada, na
qual “negro” é sinônimo de “pobre”.
Em seu livro Novas elites de cor: estudo sobre os profissionais liberais
negros de Salvador (2002), Ângela Figueiredo também questiona a associação
entre ascensão e embranquecimento, e nos mostra como novos significados são
capazes de revestir esta experiência para os negros, que podem alcançar, inclusive,
o fortalecimento de sua identidade como negros a partir da experiência de ascensão
social.
47
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Como foi discutido neste tópico, um dos principais problemas ao se tratar do
casamento inter-racial é a atribuição de uma determinada postura – a de “negar a
raça” – aos negros e às negras que optam por este tipo de relacionamento, sem
que sejam investigadas as representações que os mesmos possuem a respeito do
que é ser “negro” ou “negra”, ou como eles entendem o relacionamento inter-racial.
Do mesmo modo, também não se enfatiza o caráter relacional deste tipo de união,
o que faz com que os “brancos” e as “brancas” que escolhem esta maneira de se
relacionarem também não sejam mencionados em tais análises.
Nos estudos sobre relações raciais que adotam uma visão monológica da
realidade, podemos perceber que a influência dos valores do pesquisador se faz
bastante presente no resultado da investigação, construindo “negros” e “brancos” a
partir de uma perspectiva que recorre a pares dicotômicos que limitam as
possibilidades dos sujeitos representados. Neles, temos a insistência no sentido
absoluto da diferença. “Negros” e “brancos” não são concebidos como construções
decorrentes do processo de interação entre seres fundamentalmente relacionais e
que participam de forma ativa da construção um do outro, mas como meros índices
de presença ou ausência de poder.
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49
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
ONDE ESTÁ O PLURALISMO: manifestações da religião na metrópole
Edlaine de Campos Gomes39
Resumo
As formas de exercício da religiosidade extrapolam os espaços construídos e
identificados como apropriados às práticas religiosas. A religião está em evidência,
manifesta-se em diferentes espaços e situações, como em grandes eventos,
matérias de jornais, pichações em muros, adesivos nos carros, camisetas com
frases bíblicas. Está nas pessoas e nos objetos. O objetivo deste artigo é analisar
comparativamente as estratégias de ocupação do espaço público –
fundamentalmente secularizado e plural – a presença da “religião” na sociedade
contemporânea, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse sentido, buscamse compreender as formas pelas quais diferentes confissões religiosas e indivíduos
utilizam as grandes cidades como locus privilegiados para a transmissão de
preceitos e doutrinas. A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como
combinações no contato entre alteridades.
Palavras-chave: religião, espaço público, pluralismo, experiência religiosa e
cidades.
Abstract
39
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ) e Pós-doutoranda CEM/CEBRAP/FAPESP, SP. Este artigo apresenta as primeiras
impressões de pesquisa mais ampla realizada no âmbito de estágio pós-doutoral junto ao Centro de
Estudos da Metrópole/Cebrap, O projeto de pesquisa “(In)Tolerância, exclusivismo religioso e espaço
público: dinâmicas e transformações nas relações cotidianas urbanas” está sendo desenvolvido com
bolsa PD da Fapesp.
50
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
The many ways of religious practice go way beyond the already established and
identified as appropriated spaces for it. Religion is in evidence, manifested in
different spaces and situations, as during important events, newspapers articles,
graffiti, car stickers, t-shirts printed with biblical sentences. It is on people and
objects. The main goal of this article is to analyze comparatively the strategies used
in public space occupation - fundamentally secularized and plural - by religious
pathways in contemporary society, in the cities of São Paulo and Rio de Janeiro. In
this way, it tries to comprehend the many ways different religious confessions and
human beings use big cities as privileged locus to pass ahead concepts and
doctrines. The adopted perspective analyses conflicts as much as combinations
between different perspectives.
Key-words: religion, public space, pluralism, religious experience and cities.
Na sociedade brasileira atual há um reconhecimento de que ser brasileiro
não significa, automaticamente, ser católico. Neste novo modelo impõe-se uma
qualificação diferenciada do que é ser religioso e de como isso se expressa no
contexto contemporâneo. Transformações, combinações e conflitos têm ocorrido
nas relações cotidianas urbanas, e também nas disposições sociais e pessoais,
diante de um tipo específico de pluralismo religioso marcado pelo crescimento
quantitativo do chamado campo evangélico. Até recentemente, a idéia reinante
sobre religião no país tinha como base o englobamento das religiões afro-brasileiras
pelo catolicismo e, em relação às outras religiões, seu predomínio era considerado
ponto-pacífico (Sanchis, 1994). Atualmente, a liderança quantitativa do catolicismo
é evidente, como mostram os resultados do último Censo (IBGE, 2000). A atuação
institucional da Igreja Católica assume novas roupagens ou atualiza sua influência
no espaço público. Mas não é mais a única protagonista.
A delimitação das fronteiras religiosas no Brasil é um tema bastante
discutido, em princípio, a partir de estudos sobre as religiões afro-brasileiras
(Bastide, 1971; Carneiro, 1984, entre outros). O catolicismo popular constitui-se o
grande aglutinador dessa dinâmica, na qual os limites se apresentam fluidos, em
um movimento tão dinâmico a ponto de diluir ou dificultar seu reconhecimento.
Aqui a noção de sincretismo englobante é central para compreensão do pluralismo
religioso40.
Outro tipo de pluralismo foi impulsionado nas últimas décadas, caracterizado
pela tendência exclusivista. Várias pesquisas (Freston, 1994; Fernandes, 1994;
1998; Mariz e Machado, 1998) evidenciam a crescente complexificação do campo
religioso brasileiro. A entrada em cena, no final da década de 1970, das
40
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse debate, ver Sanchis at al. “Fiéis e cidadãos:
percursos do sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: 2001”; e ainda “A dança dos sincretismos”. Rio de
Janeiro: Comunicações do Iser, 1994.
51
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
denominações evangélicas neopentecostais é apresentada como um dos fatores que
contribuíram para a produção deste novo perfil. O discurso institucional enfatiza o
exclusivismo, embora com atravessamentos e trocas simbólicas entre as confissões.
Há um movimento marcante de mudança no perfil religioso da população,
evidenciado nas relações cotidianas (Gomes. 2006a; 2006b) – assim como no
embate político Mariz e Machado (1998), por exemplo, apontam que há uma forte
proposta de exclusivismo religioso e um investimento no compromisso dos
membros com suas respectivas instituições. Em contrapartida, as autoras também
identificam um processo recorrente de desinstitucionalização.
O panorama religioso contemporâneo apresenta, assim, transformações que
envolvem
simultaneamente
processos
de
institucionalização
e
de
desinstitucionalização. No primeiro, assinalam-se como marcos a expressiva
conversão ao campo evangélico pentecostal e a retomada de identidades religiosas
atribuídas, como o catolicismo. Este apresenta como característica uma forte
proposta de exclusivismo através do investimento no “compromisso identitário” dos
membros com suas respectivas instituições. Ressaltei em outra análise (Gomes,
2006) que, no movimento de rejeição ou aceitação do “outro” – no caso, aceitação
entre evangélicos pentecostais e católicos em uma rede familiar - ocorria de forma
concomitante a afirmação da identidade católica exclusiva, revestida por uma
postura contrastiva. A tendência de se tomar o catolicismo como identidade
religiosa exclusiva foi verificada não somente nas diretrizes institucionais e no
discurso manifestado publicamente pelas lideranças da Igreja. Uma forte adesão às
práticas religiosas institucionalizadas e a intensificação da freqüência à igreja são
exemplos da conformação do pertencimento religioso entre católicos e evangélicos.
O modelo de católico praticante ganha espaço. Surgiu no campo uma nova
categoria: “evangélico não-praticante” – termos inconciliáveis até o momento, já
que “ser evangélico” tem seu significado atado à freqüentação e ao compromisso
institucional
(Fernandes,
1998).
O
movimento
oposto
à
institucionalização
caracteriza-se pelo primado da escolha e da liberdade individual, pela rejeição às
religiões familiares atribuídas, pela não-adesão formal a instituições religiosas e
pelo trânsito religioso. Isto não significa ausência da dimensão religiosa como
experiência vital; o ponto crítico está na desvinculação do sentimento religioso e
em relação ao pertencimento institucional.
Birman (1996) e Semán (2000), entre outros autores, abordam a questão do
trânsito religioso do ponto de vista das passagens e das interpenetrações contínuas.
Outros validam a aplicação da idéia de conversão como ruptura, como Mariz e
Machado (1998), adotando a idéia de que a identificação a um determinado grupo
religioso é perpassada pela adoção de um novo ethos, embora reconheçam que o
52
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
processo de conversão não ocorra subitamente. Contins (1995) considera a
possibilidade de tratar a conversão como um processo contínuo, no qual o
convertido se constitui e não tem sentido sem seus “outros” – no diálogo em que
sua experiência religiosa é construída. Mafra (2002) contribui para o debate,
caracterizando dois tipos de conversão: minimalista e maximalista.
Cabe frisar que o trânsito religioso pode ser pensado como mudança de
vínculo, seja este considerado como ruptura ou como passagem, ou ainda como um
laço frouxo que permite freqüentações mais ou menos intensas. Tal particularidade
remete a considerações sobre as diversas possibilidades inter-relações possíveis em
um campo polifônico e cada vez mais regado pela preeminência da escolha. Ao
menos três dimensões – complementares – são importantes para a análise do
fenômeno
religioso:
“1.
‘religião’,
como
identidade
ou
pertencimento;
2.
‘religiosidade’, como adesão, experiência ou crença; 3. ‘ethos religioso’, como
disposição ética ou comportamental associada a um universo religioso” (Duarte,
2005:141). No nível da adesão religiosa, como já sublinharam Mariz e Machado
(1998) e Gomes (2004), é preciso considerar ainda os diferentes graus de inserção
dos membros nas respectivas religiões, pois dependendo do tipo de vínculo
estabelecido, há maior ou menor comprometimento com a reprodução das diretrizes
institucionais.
A pesquisa que origina a presente análise objetiva investigar eventos
públicos realizados pelas diversas confissões religiosas, em diferentes locais das
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, identificando semelhanças e diferenças no
que tange à relação que estabelecem na e com a metrópole. Em outro nível,
pretende-se problematizar a relação entre dinamismo urbano e as dimensões,
complementares, do fenômeno religioso – pertencimento, adesão e ethos – no
sentido
de
verificar
tanto
a
inserção
do
religioso
na
cidade
quanto
as
transformações que as práticas religiosas contemporâneas provocam em seu
cotidiano.
Trata-se especificamente, aqui, de discutir as estratégias de ocupação
do espaço público, fundamentalmente secularizado e plural, pelas correntes
religiosas na sociedade contemporânea.
A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como combinações no contato
entre alteridades. Nesse sentido, busca-se compreender as formas pelas quais
diferentes confissões religiosas e indivíduos utilizam as grandes cidades como locus
privilegiados para a transmissão de preceitos e doutrinas, assim como investem na
idéia de pertencimento e de adesão religiosa. Ao se seguir esta perspectiva, propõese problematizar a “exposição do exclusivismo” em diferentes eventos – religiosos
ou não – nos quais a religião, em seu sentido amplo, de alguma maneira se faz
presente. Trata-se de buscar uma compreensão sobre os modos com que este
fenômeno aparece em distintas situações nas cidades pesquisadas, considerando
53
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
que a tendência exclusivista não se associa fundamentalmente a posturas
agressivas e intolerantes.
A presente reflexão leva em conta três tipos ideais de estratégias de
utilização do espaço público pelas correntes religiosas. O primeiro é representado
por aqueles eventos religiosos realizados em espaços da cidade que comportam
multidões, tais como estádios, praças e avenidas. Em geral, essas manifestações
ocorrem em finais de semana e feriados. Um segundo tipo manifesta-se em eventos
considerados “mundanos”: carnaval, parada gay, reveillon, entre outros. Outro tipo
significativo ocorre em pequenos grupos ou por meio de atitudes religiosas
individuais, que utilizam o espaço público como lugar de evangelização, somente
possível por meio da confrontação41 com os “outros”; ela ocorre especialmente no
horário comercial ou de “pico” em regiões de passagem e grande fluxo: terminais
rodoviários e de trens, praças, ruas, de casa em casa etc. Outros tipos ainda
poderiam ser listados, no entanto, para o momento, as considerações serão
direcionadas aos dois primeiros tipos apontados.
Pluralismo religioso e a “fé em ação”
O panorama religioso é marcado por um campo de negociação-conflito
constante entre as experiências religiosas individuais e a sociedade mais ampla.
Percebe-se um movimento de mudanças significativo no perfil religioso da
população, especialmente evidenciado nas relações cotidianas das grandes cidades.
Chama a atenção a forma como o religioso aparece no espaço público em seu perfil
contemporâneo: plural, muitas vezes exclusivista, em tensão entre si e em relação
a temas que atingem a sociedade mais ampla. As formas de exercício da
religiosidade extrapolam os espaços dos templos, construídos e identificados como
apropriados às práticas religiosas. A religião está em evidência, manifesta-se em
diferentes espaços e situações: matérias de jornais, pichações em muros, adesivos
nos carros, camisetas com frases bíblicas, fotografias de santos, orixás, buda,
deuses indianos, entre outras. Está nas pessoas e nos objetos. Nesse movimento
em que a religião se evidencia, a cidade não é somente palco dos acontecimentos,
mas também protagonista.
A relação religião-cidade foi abordada por outros autores. Segundo Amaral
(1996:296), “os grupos ‘fazem a cidade’ porque são diferentes e até mesmo
opostos. Sua lógica é o resultado de tantas outras, que por sua vez partilham a
‘lógica da cidade’ em sua práxis”. Em concordância com esta autora, Silva (1996)
41
Confrontação está sendo usada aqui como estar diante de um “outro” ou “outros” e não,
necessariamente, no sentido de conflito, embora este possa se apresentar no contato entre diferentes
alteridades.
54
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
observa que, em relação às religiões afro-brasileiras – o “culto aos orixás” – as
transformações das sociedades urbano-industriais provocam tanto a tentativa de
“recuperação” da natureza quanto uma “ressignificação dos espaços (como
esquinas, ruas, cemitérios e encruzilhadas), pelo reconhecimento da presença dos
deuses nesses lugares” (1996:103). Ao analisar a Festa do Divino Espírito Santo, no
bairro do Catumbi no Rio de Janeiro, Contins (2004) observa que ela aproxima os
moradores, inclusive aqueles que não fazem parte da irmandade, já que está
totalmente vinculada à história do bairro. A “ressignificação dos espaços” e o “fazer
a cidade” são indissociáveis da experiência urbana, marcada pela novidade e pelo
imprevisível, característicos da convivência com estranhos que partilham o mesmo
espaço (Caiafa, 2006).
Alguns autores enfatizam que, mesmo
em contexto de pluralismo, a religião atua como mediadora de conflitos no espaço
público (Novaes, 2004; Mafra, 2003). Essas reflexões aparecem também em estudo
sobre a religião em São Paulo. Almeida (2004) aponta o caráter relacional e distinto
das ações sociais empreendidas pelas diferentes confissões religiosas. Para outros,
vivemos em um momento no qual a autenticidade das identidades dos grupos
religiosos é posta em questão (Carvalho, 1999). Da perspectiva das instituições
religiosas, a exposição na cidade da religião – em seus distintos tipos de
manifestação - é, ao mesmo tempo, forma de legitimação e estratégia de
visibilização. Este ponto é crucial para a reflexão sobre determinadas manifestações
contemporâneas, organizadas por instituições religiosas com o intuito de reunir
multidões. Se considerarmos o aspecto da transmissão da mensagem religiosa, ao
menos no caso dos cristãos (católicos, evangélicos, e outras correntes), o espaço
público, concebido como “mundano”, é aquele privilegiado para a evangelização. As
estratégias de ação religiosa que ocorrem no fluxo das cidades vêm em conjunto
com discursos institucionais sobre a autenticidade de suas crenças e práticas
(Gomes, 2004; Gomes e Contins, 2008). Pode-se dizer que estes têm sido
acionados para contrastar e definir fronteiras de legitimidade no campo religioso
brasileiro contemporâneo.
Os evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos, por exemplo,
realizam seus eventos em grandes espaços no perímetro urbano. No Rio de Janeiro,
alguns locais são preferencialmente escolhidos: Praça XV, Aterro do Flamengo,
Quinta da Boa-Vista, Maracanã, entre outros. Em São Paulo, também os estádios
são utilizados, mas a Avenida Paulista tem lugar especial, assim como o Campo de
Marte. O fato de serem realizados no espaço da grande cidade tem sido considerado
um dado relevante para a compreensão das transformações das relações de
sociabilidade contemporâneas.
55
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
No entanto, não são somente os grandes eventos que estabelecem esse
entrelaçamento. A prática religiosa desses grupos está diretamente articulada ao
fluxo constante da cidade, na qual o proselitismo42 religioso se mantém em
constante alimentação. Vale ressaltar que o caráter evangelizador contemporâneo é
enfático quanto à idéia da “fé em ação”. Esta investida tanto pode significar a
possibilidade de convivência da diferença no espaço público, conforme previsto
pelos códigos da cidade moderna, como provocar a interpretação de que
evangelizar é o mesmo que incomodar e invadir, principalmente quando há
interesses, religiosos, ou não, conflitantes. Evangelizar e invadir são verbos muito
próximos e entram em choque com a heterogeneidade – não apenas no que
concerne às opções religiosas – e a individualidade, características das grandes
cidades43.
O proselitismo religioso é percebido como um pressuposto pelo campo
evangélico pentecostal; trata-se de uma expressão do pertencimento e do grau de
adesão daquele que se converte à transmissão “da Palavra” em sua vida cotidiana:
na família, na escola, no trabalho. Há diversas possibilidades de declaração
contínua de engajamento na causa religiosa: distribuição de panfletos em ruas e
praças; orações e cultos realizados no percurso para o trabalho, como ocorrem nos
trens da Central do Brasil e nas barcas que cruzam a Baía de Guanabara. Observase que, em contexto de exclusivismo, apesar de as estratégias de convivência
emergirem na mesma proporção, as regras de cortesia ou a produção de um
sentimento amigável, inerente ao jogo da sociabilidade, estão pautadas pelo
proselitismo (Gomes, no prelo).
Cabe ressaltar que o proselitismo e a identificação/exposição imediata da "fé
em ação" são características significativas do campo religioso atual, marcado por
crescimento, visibilidade e diversificação de igrejas evangélicas, em especial, as
pentecostais. As posturas exclusivistas são identificadas não somente entre
evangélicos, mas também entre católicos. Há um movimento dinâmico de
aceitação/rejeição do “outro” concomitante com a emergência de um movimento
generalizado de afirmação identitária, fundado no exclusivismo religioso. Esta
característica pode ser identificada nas mais distintas formas de expressão da
42
Utilizo a categoria no sentido de “fazer discípulos, adeptos” e não em seu aspecto pejorativo, assim
como assinala Rolim (1985:62).
43
Contrapondo cidade pequena – “com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais
uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida” – com “cidade grande”, Simmel
(2005) observa que o "comportamento mental" típico do indivíduo moderno, caracteriza-se
por uma aversão e estranheza das relações e contatos no cotidiano: o indivíduo "seleciona" a
quais estímulos responderá ou dedicará atenção e tempo. Os indivíduos modernos, assim,
submetidos a um elevado grau de "impressões" desenvolvem uma atitude blasé, um psiquismo
"protegido" por uma espécie de "reação de defesa". A subjetividade moderna está orientada
para a indiferença nos relacionamentos cotidianos e para a não-interiorização da realidade
social externa.
56
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
religião, seja institucional, seja nas manifestações da religiosidade individual. A
obrigação de levar a “Palavra”, no caso evangélico, por exemplo, faz com que seja
necessário
o
estabelecimento
de
diálogo
e
mediações
no
tenso
processo
comunicativo, evidenciado, em grande medida, pela forma de ocupação dos
espaços da cidade e nos embates provocados pelo encontro de diferentes correntes
religiosas em determinados locais e datas comemorativas, sejam estas religiosas ou
profanas.
Os fenômenos religiosos atravessam as diferentes esferas sociais e são por
elas reconhecidos sempre com algum grau de tensão. Em contexto de pluralismo
religioso constatam-se conflitos e acomodações. As tensões se tornam mais
evidentes quando as identidades religiosas – notadamente as exclusivistas –
buscam ocupar novos espaços e marcar presença. As mediações e os conflitos
extrapolam os limites locais, principalmente quando há reivindicação do "direito à
cidade" e ao espaço público. Sugiro tratar-se de um movimento composto por
valores e posicionamentos contrastivos, que se visibilizam e se consolidam a partir
deste contraste. A adoção de um comportamento exclusivista não significa
obrigatoriamente posturas fundamentalistas ou intolerantes. Há espaço para
combinações e ajustes. Em consonância com Giumbelli (2004:11), considero que
aquilo que está em jogo “é a produção de uma nova versão de cristianismo
hegemônico
(não
necessariamente
intolerante
e
sobretudo
pouco
fundamentalista)”. Além disso, a religião pode ser percebida por uma via menos
formal, não se fixando na análise de rituais, mas destacando especialmente sua
dimensão relacional com outras esferas sociais (Birman, 1996; Giumbelli, 2002).
A realização de etnografias “na cidade” possibilita uma melhor compreensão
do fenômeno religioso na atualidade, que é indissociável do caráter plural do espaço
público moderno. A religião está nas pessoas, nos objetos e nas relações sociais.
Além disso, há que se considerar que “o formato das ofertas religiosas está, de
algum modo, articulado com a difusão permanente, ainda que irregular, da
cosmologia moderna nas sociedades contemporâneas, levado a cabo por uma
disseminação produtora de ‘institucionalizações’ estruturantes que vêm atingindo
inclusive as camadas populares: mercantilização, racionalização, igualitarização,
liberalização do espaço público” (Duarte et al, 2006:17). Para compreender as
formas pelas quais diferentes confissões religiosas utilizam as metrópoles como
locus privilegiados de evangelização, é fundamental que a cidade não seja
percebida
somente
como
palco
dos
acontecimentos,
mas
também,
e
essencialmente, como protagonista desses mesmos eventos.
57
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Desfilando ‘para Jesus’ no espaço público44
Com suas regras de inversão e subversão do cotidiano, o carnaval oferece
situações singulares para análise de relações sociais mais amplas que se expressam
em distintas ramificações: blocos, escolas de samba, fantasias, sambas-enredos,
adereços, entre outros. Cabe frisar que existe uma extensa e excelente produção
antropológica sobre o tema, mas não me deterei aqui em sua apresentação.
Queiroz (1992); DaMatta (1973; 1979); Cavalcanti (1984; 1999; 2002; 2006);
Augras
(1998);
Santos
(2006);
Gonçalves
(2003);
Guimarães
(1992)
são
referenciais para o debate.
O carnaval é um acontecimento marcante na sociedade brasileira. Em geral,
religião e carnaval estão associados a campos semânticos distintos: sagrado e
profano, ordem e desordem, pureza e perigo. No Rio de Janeiro, religião e carnaval
estão em constante diálogo, seja para marcar as distinções, recusando a desordem,
seja para reivindicar espaço, pondo em xeque as dicotomias. Este ponto é central
para a presente reflexão, principalmente pelo fato de vertentes religiosas que
originalmente consideravam o evento como “mundano” – impuro e profano –
passaram a utilizar o período, não somente para a realização de retiros espirituais,
como propostas de afastamento do mundo e purificação, mas também como
estratégia de evangelização.
A presença da temática religiosa no carnaval não é uma novidade. Não é
necessário ir muito longe nos arquivos das escolas de samba para conferir a
existência vívida da temática religiosa em seus enredos. Dos temas históricos
brasileiros aos encomendados por empresas, dificilmente não ocorre a alusão a
termos religiosos. Em 2007, por exemplo, pode ser listada uma série de menções
ao
religioso
nas
sinopses
dos
enredos
das
escolas
do
grupo
especial,
disponibilizadas no site da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba www.liesa.org.br). Fé, deuses, energia, criação, harmonia, devoção; jesuítas,
protestantes, umbanda, candomblé, fé cristã; deus, olorum, odin, thor: todas estas
palavras, entre outras possíveis, constavam nas tramas desenvolvidas para serem
encenadas na Avenida Marquês de Sapucaí.
O catolicismo e as religiões afro-brasileiras sempre foram acionados em
enredos desde o surgimento das escolas de samba. As controvérsias ganharam
visibilidade na década de 1990 com a inserção e a centralidade de figuras
religiosas, como alegorias, principalmente ligadas ao cristianismo. Houve até
44
As informações e as fotografias dos eventos mencionados são provenientes de etnografias realizadas
em São Paulo e Rio de Janeiro, no âmbito do projeto dapesquisa mencionada. Para o trabalho de
campo, a autora contou com a valiosa colaboração dos pesquisadores César Augusto Silva e Jacqueline
Kawauche.
58
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
censura às escolas de samba que adotaram tal recurso. Os principais protagonistas
desse embate foram a Igreja Católica e a escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis.
Em 1989, a escola levou à avenida o enredo “Ratos e urubus, larguem minha
fantasia”. Uma de suas principais alegorias era a imagem do Cristo Redentor, que
entrou na avenida coberta com sacos pretos de lixo portando uma faixa que dizia
“Mesmo proibido, orai por nós”. Houve uma forte reação da Arquidiocese do Rio de
Janeiro, que entrou com um mandado de segurança impedindo a exibição da
alegoria. Em desfiles posteriores a controvérsia foi renovada. Os mais célebres
foram os de 2002 e 2003. No primeiro, a escola teve que modificar a encenação da
coreografia da comissão de frente, que trazia a luta entre jesus cristo e satanás. No
ano seguinte, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida desfilou escondida entre as
alas devido a protestos provenientes da Arquidiocese.
Uma novidade ocorreu em 2007 no desfile do grupo especial das escolas de
samba do Rio de Janeiro. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do
Grande Rio apresentou a ala “A festa é nossa” com a fantasia “Assembléia dos
Protestantes”. Os protestantes passaram a figurar como tema, ainda
que
subjacente, do enredo de uma escola de samba, junto com o catolicismo e as
religiões afro-brasileiras. Outra situação importante, que evidencia esse vínculo, é a
inclusão do período carnavalesco no calendário de evangelização de diversas
igrejas45. É notória a existência de blocos carnavalescos organizados por igrejas
evangélicas que promovem evangelização adotando estratégias ”mundanas”, como
o Cara de Leão, do Projeto Vida Nova.
Uma reportagem divulgada pelo jornal Extra de 29 de outubro de 2006
remete ao reconhecimento do pluralismo religioso em data mundana. “Na cadência
dos evangélicos: no enredo que fala sobre Duque de Caxias, Grande Rio vai
misturar coral gospel e pais-de-santo”, dizia a chamada da matéria. A notícia
apresentava o enredo para o desfile do carnaval 2007 da escola de samba
Acadêmicos do Grande Rio46 – integrante do grupo especial dos desfiles do Rio de
Janeiro. Apontava a controvérsia de unir no mesmo setor homenagens às religiões
afro-brasileiras e às igrejas evangélicas, com o intuito de mostrar a importância da
religião para a constituição da cidade que então homenageava: Duque de Caxias,
município da Baixada Fluminense. A escola apresentou esse tema no quarto
45
Sabe-se da semelhança entre as práticas e as manifestações no espaço público de parte das igrejas
do campo evangélico e da renovação carismática católica, contudo, a análise nesta comunicação se
restringirá à primeira vertente. Carnaval de Jesus, Matinê de Jesus, Folia de Jesus intitularam eventos
organizados pelo padre católico Marcelo Rossi. Uma análise comparativa pode ser encontrada em
Contins & Gomes, 2007.
46
Em 2007, a Grande Rio ficou em segundo lugar.
59
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
setor47,chamado “A fé de um povo valente”. A sinopse do enredo explorava o tema
da seguinte maneira:
A fé cristã na região vem do século XVI, como podemos conferir pela igreja do
Pilar, construída no mesmo século e importante monumento do primeiro
período barroco brasileiro, tal qual as religiões afro-brasileiras têm destaque
no que tange às suas verdadeiras raízes; exemplo disso vem do Babalorixá
Joãozinho da Goméia, desde que foi intitulado “Rei do Candomblé”, na década
de 1940, pela rainha Elisabeth da Inglaterra. A partir da compreensão de sua
trajetória, demonstra as razões que levaram à proliferação de terreiros de
Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense, desde a chegada do pai-desanto no município de Duque de Caxias, em 1946, transformando o município
no grande divulgador e popularizador dos cultos Afro-Brasileiros, apontandonos a validade do Candomblé como produtor cultural brasileiro. Do Babalorixá
podemos falar que, “Seu João” fora um dos mais famosos babalorixás em
meados do século que findou. A Rua Goméia, em São Caetano, bairro da
cidade baixa de Salvador, endereço do seu primeiro terreiro, deu-lhe o
sobrenome que carregaria pela vida afora. Mas foi depois de sua transferência
para o município fluminense de Duque de Caxias que sua fama atingiu
contornos nacionais. Tanto que a rua onde Joãozinho fundou seu segundo
terreiro acabou chamando-se também de Goméia em homenagem ao pai-desanto. Um complexo jogo de continuidades e transferências entre reinos,
continentes, estados, cidades, nomes de ruas, homens e deuses concentravase em Salvador e Rio de Janeiro. E eu me surpreendo ao ver alguém do santo
falar com tanto carinho de um sacerdote do rito angola, num ambiente onde a
nagocracia ainda é um imperativo categórico no jogo político pela legitimidade
das tradições. Impressionava aquela voz rouca e devota, firme e afinada com
que o sacerdote saudava de Exu a Oxalá. Aliás, este é um percurso muito
comum no proselitismo involuntário do candomblé; muitos chegam a esta
religião vindos da capoeira, das escolas de samba, dos cursos de samba, das
letras e ritmos de nosso cancioneiro popular, da curiosidade em saber, ou
saber um pouco mais, o que se diz quando usamos termos como axé, ago,
aláfia... “Seu João” foi um dos mais importantes e polêmicos agentes na
divulgação dos significados do candomblé ocorrida nos anos 60 na sociedade
brasileira, sobretudo por fazer da mídia e das artes suas grandes aliadas.
Trouxe para os centros urbanos do sudoeste a percepção das vantagens de
tornar conhecidos os cultos afro-brasileiros. Inclusive para a sua própria
defesa. Numa lista elaborada em 1983, dos 24 terreiros mais antigos da capital
e do litoral paulista, oito deles eram de filhos e filhas-de-santo de Joãozinho da
Goméia. Em terras paulistas, a adesão ao rito angola, praticado por “seu João”,
foi um caminho quase que inevitável na passagem de muitos sacerdotes da
umbanda para o candomblé. Atualmente outras manifestações de fé têm
mostrado a sua força na região; os protestantes também demonstram a sua
força em seus ritos envolventes. Pincelaremos tudo isto para mostrar que o
caxiense tem em seu peito sua crença e que, como já foi provado, o homem de
Fé vai longe e esta é uma das muitas virtudes do nosso povo.
O mais importante personagem do setor “A fé de um povo valente” era
Joãozinho da Goméia, preeminente pai-de-santo que morou na região e é um dos
nomes mais lembrados da nação angola (Silva, 1996:92). O mesmo setor trouxe a
fantasia “Assembléia dos Protestantes”, vestida pela ala “A festa é nossa”. A ala48
47
A escola de samba foi organizada em sete setores: 1. Um povo forte; 2. A fábrica cidade; 3. A
emancipação; 4. A fé de um povo valente; 5. Folguedos e sua raiz saudosa; 6. Combustível para
crescer; 7. Terra de bambas.
48
Alguns autores (DaMatta, 1979; Cavalcanti, 2006) já assinalaram a autonomia como características
das alas das escolas de samba; elas possuem nomes próprios, que lhes asseguram independência e
permanência na configuração da escola à qual pertencem. “O nome próprio da ala atravessa os
diferentes Carnavais vividos por ela, e assinala a autonomia e a permanência de sua rede de
sociabilidade. Mesmo tendo o desfile da escola como motivo, a vida de uma ala corre paralela a ele,
60
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
homenageava os evangélicos, a partir da perspectiva da escola de mostrar a
diversidade religiosa de Duque de Caxias, cidade na qual surgiu a escola de samba
e que era tema do enredo. A dupla homenagem, aparentemente contraditória,
chamou a atenção da imprensa. Entre os evangélicos havia duas interpretações
sobre o vínculo entre religião e carnaval: 1. positividade do reconhecimento do
papel dos evangélicos para a sociedade mais ampla; 2. incompatibilidade de vínculo
entre religião e carnaval, em especial, pelo fato de a ala estar inserida em uma
seção dedicada a homenagear um conhecido pai-de-santo.
A fantasia foi elaborada com o objetivo de mostrar a presença do pluralismo
religioso na cidade homenageada, tendo como foco os evangélicos. Adornada por
um resplendor repleto de plumas brancas, uma túnica branca e dourada servia de
base para símbolos religiosos; curiosamente, o mais destacado, por estar na parte
posterior, à altura do peito do integrante da ala, lembrava o símbolo da Igreja
Universal do Reino de Deus: coração e duas pombas brancas. A Bíblia também
estava em destaque. Segundo o carnavalesco da Grande Rio, a túnica representava
o coral gospel. Na reportagem mencionada, Roberto Sznieck – o carnavalesco –
refuta a polêmica, dizendo: “Se começar com essa história, serei o primeiro a cortar
a ala”. A ala não foi cortada, a polêmica não se acirrou, como previa a reportagem,
nem mesmo gerou atenção maior. A escola fez seu desfile e foi vice-campeã.
Homenagear protestantes, mesmo que em uma única ala, é uma novidade e
reflete o reconhecimento da expansão desse campo pela sociedade mais ampla. A
inclusão dos evangélicos em enredos de escola de samba é um dado muito recente.
O mesmo não pode ser dito sobre a incorporação do carnaval no calendário de
evangelização dessas igrejas e também no da vertente carismática da Igreja
Católica, intensificado a partir de meados dos anos 1990. Em 2006, o desfile do
Cara de Leão – acompanhado pela pesquisadora – teve como samba-enredo o tema
“Povo Campeão”, de autoria de pastor Timóteo.
O povo que andava em trevas
Viu uma grande luz
E sobre os que habitavam na região da morte
Resplandeceu a luz
E este povo se levanta
Pra verdade declarar
Que uma vida inteira de muita alegria Jesus tem pra dar.
Mas por trás da fantasia
Que se veste nesse dia
Só tristeza e solidão
E a falsa alegria
De apenas quatro dias
É pura ilusão
Creia na verdade, no amor e no perdão
Deixe Jesus Cristo libertar teu coração
produzindo ao longo dos anos histórias muito particulares” (Cavalcanti, 2006:208).
61
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
E receba a salvação
Deixe Jesus Cristo libertar seu coração
Para ser um campeão
Embora a visão nativa não considere o Cara de Leão como bloco
carnavalesco, ele está integrado à programação oficial dos desfiles de blocos da
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Participar do evento significa se opor.
Sambar é coisa do “mundo”49. A letra do “hino-enredo” deste bloco, como acentua o
autor, enfatiza as mazelas que a fantasia do carnaval esconde. A alegria não pode
ficar restrita aos quatro dias de folia. Vale ressaltar que o caráter evangelizador
contemporâneo é enfático e exacerba a tradicional característica do protestantismo
de “fé em ação”. A efetiva participação no período momesco, através da
organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir objetivos religiosos que,
a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento. Por analogia, e por
conta da intencionalidade proselitista, o processo e o apelo pela conversão são
mostrados nos versos: trevas, luz, libertação. O ápice é a vitória representada pelo
binômio “salvação-campeão”. A evangelização é a justificativa para a imersão desse
ramo religioso no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro. Como
já foi assinalado, o desfile do bloco50 consta, inclusive, da programação oficial do
carnaval da cidade.
Foto 1 Bloco Cara de Leão, 2006
Edlaine Gomes
49
Na página oficial do Projeto Vida Nova consta a seguinte distinção: “Evangelistas sim, Foliões JAMAIS!
O Bloco Cara de Leão não é um bloco de carnaval. Seus componentes não sambam, não se confundem
com os foliões seculares. A Igreja do Senhor Jesus é santa, separada das coisas do mundo. Durante a
sua passagem, o bloco pára estrategicamente em meio ao carnaval. Os pastores sobem no coreto e
ministram a Palavra e orações específicas, declarando que só JESUS pode dar uma vida de alegria e
repreendendo espíritos de morte, prostituição, vícios e coisas comuns à festa secular. Os integrantes
descompõem o bloco e saem evangelizando as pessoas, orando pelos transeuntes com autoridade do
Espírito Santo, impactando a audiência. Toda a liderança da igreja participa da coordenação do
trabalho, desde os pastores aos diáconos, auxiliares e líderes específicos, todos imbuídos do mesmo
espírito, incentivando os membros a se alistarem na guerra onde todos são mais que vencedores em
Cristo Jesus”. http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEvangCarnaval/galeria.htm, acesso
em 18/09/2007).
50
Outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro, há também o bloco da
Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus.
62
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Classificado como “evangelismo estratégico no carnaval”, o Cara de Leão
segue a rotina dos blocos carnavalescos não-religiosos. Ensaios são realizados para
organizar o desfile e há preparativos para a confecção das alas. O diferencial é que
tudo ocorre em torno da religião. Os instrumentos são consagrados “para que eles
sirvam
para
expressar
sua
glória
e
para
a
salvação
das
almas”
(http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEnsaio/galeria.htm#).
Ocorrem orações e ministração da “palavra”. É nesse aspecto que destacam o
caráter evangelístico e não-carnavalesco do bloco.
O desfile seguiu o formato adotado pelas escolas de samba. Os integrantes
foram dispostos em alas que acompanharam o desenvolvimento do enredo, cada
um vestindo roupas/fantasias que os distinguiam e que destacavam determinados
aspectos do tema proposto. No desfile, a primeira seção mostrou as trevas – as
pessoas vestiam roupas pretas. Havia alas coreografadas e encenações da luta do
bem contra o mal. As últimas alas representavam a luz, a pós-conversão, a
salvação – todos estavam vestidos com roupas brancas. Uma bateria com cerca de
300 ritmistas acompanhava o puxador do samba, que era cantado pelos
participantes. Homens e mulheres compunham a bateria, que emitia um som muito
potente. Porta-bandeira e mestre-sala bailavam a caráter, conduzindo a bandeira
do bloco-igreja. Ressalto que o mesmo figurino foi usado no desfile do ano seguinte
por pessoas diferentes. Um cordão de segurança estabelecia uma barreira humana
entre os componentes do bloco e os demais foliões. Enquanto o bloco percorria a
Avenida Rio Branco, membros da igreja Vida Nova distribuíam panfletos e “levavam
a palavra” para os foliões que ocupavam as diversas ruas do centro da cidade do
Rio de Janeiro. Esse encontro ocorreu sem maiores tensões. O caráter plural do
espaço público estava manifesto nessa interação.
A "Marcha para Jesus" é outra manifestação da religião no espaço público
que traz a marca do pluralismo contemporâneo. A Avenida Rio Branco é outra vez
personagem. Novamente são os evangélicos que se organizam para mostrar e
afirmar sua presença. Está situada no tipo de ocupação de espaços das cidades que
ocorre em dias de menos fluxo, como fins de semana e feriados, nos quais há
menor possibilidade de confrontação com os “outros”. A rejeição pode acontecer ou
ser percebida como tal em outro nível. Exemplo disto foi a não-liberação da Avenida
Paulista para a realização do evento em 2007.
A Marcha foi realizada no dia 7 de junho na zona norte da cidade de São
Paulo. O motivo alegado pela prefeitura para a mudança de local do evento foi a
existência de um documento assinado entre Ministério Público Estadual e a
prefeitura (Folha de São Paulo on line51 de 11/04/2007), que permite apenas a
51
http://tools.folha.com.br/site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol. Acesso em 24/5/2005.
63
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
realização de três eventos na Avenida Paulista, sendo especificados: a corrida de
São Silvestre, o Reveillon e a Parada Gay. A escolha deste último, em detrimento
do evento religioso, repercutiu negativamente entre os evangélicos, que acionaram
a retórica persecutória, na qual o eixo norteador é a rejeição que recebem “do
mundo”.
Foto 2: Marcha para Jesus, S.P, 2007
César Augusto da Silva
Foto 3: Marcha para Jesus, S.P, 2007
César Augusto da Silva
A Marcha para Jesus tem como característica reunir diversas vertentes do
campo evangélico, com o intuito de manifestação pública do pertencimento e do
fortalecimento dessa vertente religiosa. A faixa etária é bastante diversificada. Os
estilos musicais e seus simpatizantes também o são. Os comportamentos mostram
a complexidade inerente ao denominacionalismo que caracteriza o campo religioso
evangélico. Para cada trio elétrico presente, um estilo de música, público e postura
de fé. Tudo ocorrendo ao mesmo tempo. Este tipo de “festa” distancia-se do
carnaval das escolas de samba e aproxima-se daquele realizado no carnaval baiano,
embora a distribuição dos trios e do público assemelhe-se à adotada para os carros
alegóricos e as alas.
Muito me impressionou essa diversidade e contraste de estilos na Marcha
para Jesus ocorrida na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, no dia 9 de junho de
2007. Especialmente quando me deparei com um grupo de pessoas que
encontrava-se à espera da Marcha que chegaria à Cinelândia. Era cerca de uma
64
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
dúzia de pessoas entre mulheres, homens e crianças que marcavam presença no
evento que propunha transformar o Rio “para Jesus”. O contraste era evidente:
integrantes de uma denominação pentecostal extremamente rigorosa acuados na
calçada, enquanto os trios elétricos e a multidão posicionavam-se para o show.
Havia uma nítida fronteira que os distinguia das demais correntes evangélicas que
ali estavam. Pareciam espantados com as músicas, as danças e os comportamentos
que, para eles, caracterizam a vida “no mundo”. As marcas distintivas estavam
especialmente pontuadas na maneira de se vestirem: túnica para as mulheres,
usadas não só para eventos especiais, mas obrigatórias no cotidiano, e terno para
os homens.
Foto 4: Marcha para Jesus, RJ,
Edlaine Gomes
Foto 5: Marcha para Jesus, RJ,
Edlaine Gomes
A música atua como um elo significativo para o mundo cristão, muitas delas
são reconhecidas e cantadas por todos. Mas não há consenso quanto ao estilo
musical, que vai do forró ao havy metal. Na Marcha para Jesus, a diversidade do
campo religioso evangélico evidencia-se. Diferentes manifestações podem ser
vistas: danças coreografadas ou não; grupos de dança de rua e capoeira; pessoas
que acompanham cantando as músicas ou se mantêm em silêncio. Até mesmo é
possível observar pessoas reivindicando mais oração e contenção do que festa. Eles
vêm de todas as regiões e denominações, o que se percebe nas diversas faixas e
nos cartazes que os grupos expõem no decorrer da caminhada. Estão ali utilizando
as grandes avenidas, exibindo-se no espaço público e pondo em prática “fé em
ação”.
Nota-se, seguindo essa lógica de inserção “no mundo”, que o processo de
ramificação de propostas evangélicas segue seu curso com as chamadas “igrejas
inclusivas”. A Parada Gay constitui um evento organizado, de grande porte.
Enquanto as demais igrejas estruturam-se para evangelizar e propor a “salvação”
aos participantes da Parada, panfletando nos arredores da Avenida Paulista, em São
Paulo, integrantes do ramo inclusivista integram-se ativamente na lógica do evento.
A mesma investida ocorre em outras cidades onde a Parada Gay é realizada.
65
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Foto 6: igreja inclusiva na Parada Gay, SP –10/06/2007,
César Augusto Silva
Foto 7 Parada Gay, SP – 10/06/2007,
Jacqueline Kawache
Foto 8: Parada Gay, S.P –
10/06/2007. Jacqueline Kawauche.
As igrejas inclusivas surgiram entre os anos 1990 e 2000 pautando-se,
segundo Natividade (2006:78), pelo “discurso minoritário que rejeita a proibição e
propõe uma igreja inclusiva aos homossexuais”. O autor ressalta que esse
surgimento
concomitante
integra
ao
um
amplo
incremento
de
movimento
trabalhos
de
explosão
pastorais
discursiva,
voltados
à
sendo
“cura
da
homossexualidade”. A controvérsia que cerca o recente aparecimento dessas igrejas
insere-se no âmbito do crescimento e da complexificação das ofertas religiosas
institucionais. A especificidade das igrejas inclusivas está na rejeição que enfrentam
nos dois campos que conformam sua identidade: igrejas evangélicas e movimento
gay.
Nesse caso, as mensagens e a atuação no espaço público são dirigidas a
ambos, como meio de reivindicar legitimidade. A exposição do exclusivismo tornase mais evidente nessa situação, na qual todos os personagens em interação –
mesmo que conflituosa – posicionam-se publicamente como minorias que buscam
reconhecimento.
Um pouco dessa tensão emergiu em comentários sobre a Parada Gay de
Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Em sua coluna no jornal O Dia de 28/06/2007, p.
6, Milton Cunha entre elogios à organização e críticas ao ufanismo do movimento
gay, que propagava a idéia de que “a cidade era gay”, denunciou a presença de
66
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
uma “subparada”. Integrantes de igrejas inclusivas presentes ao evento divulgavam
a missão confessional de “aceitar a todos”. Cunha narra a situação com ironia,
dizendo que: “Não gosto de todos os tipos de pessoa, e não vou pertencer a uma
igreja que aceite todos os tipos”.
Para a presente reflexão o que importa nessa
reação não é a rixa em si, mas sim o impacto que o pluralismo religioso tem
alcançado na contemporaneidade. Em seu viés exclusivista, a ação proselitista está
em constante tensão com as possibilidades de conflitos, sincretismos ou misturas.
Considerações Finais
Cada um dos eventos mencionados pode ser analisado em separado e possui
características
específicas.
No
entanto,
para
a
presente
reflexão,
foram
considerados em conjunto, pois se trata de discutir as diversas estratégias de
ocupação do espaço público pelas correntes religiosas ou, em última instância,
verificar a importância da presença da religião, lato sensu, mesmo em situações
percebidas como laicas. Os grandes eventos religiosos ocorrem no alicerce do que
se chama espaço público moderno que, embora seja fundado na noção de laicidade
– preeminência do secular – possibilita a diversidade de formas e estilos de
manifestação. Além disso, é nele que as instituições religiosas exibem seus
potenciais,
posicionam-se
na
disputa
ou
na
afirmação
das
respectivas
autenticidades.
A convivência e o conflito são tanto opostos quanto característicos do
modelo preconizado pela modernidade. Exemplo desse campo de possibilidades que
o espaço público moderno permite foi o caso da tensão entre evangélicos e católicos
na “Procissão do Senhor Morto”, em 2006, mencionado anteriormente. No ano
seguinte, em 2007, o evento foi etnografado e a rusga não ocorreu. A procissão
percorreu uma cidade vazia, devido ao feriado. Saiu da Catedral Metropolitana,
localizada na Avenida Chile. No trajeto, os escassos transeuntes mostravam pouco
interesse pelo evento. As ruas vazias iam sendo preenchidas pelos fíéis católicos
que adoravam o “senhor morto” e a “nossa senhora das dores”. Nesses breves
instantes, o espaço público tinha um único dono. Logo a cidade assumiu novamente
sua característica plural. Do Passeio Público avistava-se a Lapa, área boêmia por
excelência e “região moral” (Park, 1987). Os bares já estavam abertos, era final da
tarde. O sagrado encontrou o profano no exato momento em que a noite prevalecia
sobre o dia. As pessoas que estavam nos bares não ficaram imunes, grande parte
posicionou-se
nas
portas,
mostrando
algum
interesse
pela
movimentação
provocada pela passagem da procissão. A interação limitava-se à observação
externa, ao olhar. A fronteira não era transposta. Não havia passagem da condição
67
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
profana para a sagrada. O contato entre esses dois mundos foi passageiro. Em
poucos minutos a procissão seguiu seu curso, passando sob os Arcos da Lapa e
retornando para a Catedral Metropolitana.
Esses encontros – na verdade a Lapa e a Catedral Metropolitana são vizinhas
– são possibilitados por ocorrerem no espaço público da cidade, seja na situação de
confronto de 2006, quando o pluralismo de cunho exclusivista evidenciou-se pela
postura dos evangélicos diante da procissão católica, seja quando, em 2007,
nenhum conflito aconteceu. A idéia de observar a procissão teve como objetivo
verificar se o confronto se repetiria. A princípio, pode-se pensar em algum tipo de
frustração do pesquisador ao constatar que, realmente, nada se passou que
prenunciasse qualquer tipo de enfrentamento religioso. No entanto, o fato de em
um ano ocorrer o embate e em outro não constituiu um dado significativo, pois
afirma o caráter plural da utilização do espaço público.
Dos três tipos de estratégias de ocupação do espaço público mencionados no
artigo, o primeiro e o segundo receberam aqui maior destaque por estarem
diretamente referidos à ampla (ou pretensa) visibilidade que as manifestações
religiosas recebem ao utilizarem os grandes centros urbanos. No primeiro, os
eventos são realizados em espaços da cidade que comportam multidões, como na
“Marcha para Jesus” em São Paulo, por exemplo. O segundo é caracterizado pelos
acontecimentos considerados “mundanos”: carnaval, Parada Gay, reveillon. A
religião aparece ou para contestá-los, ou para afirmar e legitimar as confissões e as
práticas das vertentes religiosas que adotam tais estratégias, ou mesmo em uma
junção de ambos. No último tipo, não menos significativo, a interação pode ser
mais tensa e conflituosa, pois o contato se dá em proximidade com o “outro”. A
evangelização – proselitismo – ocorre de casa em casa, nas ruas, na tentativa do
convencimento face a face.
A série de etnografias realizadas, as quais não se esgotaram nesta análise,
possibilitou a constatação de um processo que envolve negociação e conflito
constante no que tange à utilização dos espaços da cidade, por exemplo, quando do
veto da realização da “Marcha para Jesus” na Avenida Paulista. No caso da presença
de um bloco evangélico no carnaval carioca, que utiliza o evento e faz dele palco
para a evangelização, e da fantasia que homenageia a diversidade religiosa –
mesmo atualizando o conflito em um evento como o desfile das escolas de samba –
fica evidente o lugar de destaque da religião, em seu sentido amplo, na sociedade
contemporânea. Além disso, traz à tona as diversas estratégias de ocupação do
espaço público pelas confissões religiosas, sejam institucionalizadas ou não.
Em todos os eventos apresentados, uma característica é marcante: a maioria
dos participantes percorre distâncias consideráveis. Trata-se de um tipo de
deslocamento religioso que, contraditoriamente, vai em direção ao "mundano", à
68
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
cidade e aos seus equipamentos. É possível verificar a diversidade de locais de
origem e as distâncias prováveis percorridas por meio das incontáveis placas que
identificam os grupos através do nome de suas localidades. Revela-se, então, que a
grande maioria desloca-se das periferias metropolitanas e do interior dos estados. O
contato – conflituoso ou pacificado – induz tensões, diálogos e atravessamentos
característicos da grande cidade, com seu movimento permanente de incorporação
e diferenciação de estilos de vida e visões distintas de mundo. No mesmo sentido, a
vida
cosmopolita,
como
ressalta
Magnani
(2003),
oferece
possibilidades
e
alternativas ao indivíduo através de redes de pertencimento, sistemas de troca,
mediações e permutas contínuas inscritas no contexto da cidade. Da mesma forma,
o
fluxo
entre
fronteiras
religiosas
e
as
reinterpretações
das
orientações
institucionais admitem novas representações em termos de categorias espaciais e
sociais (Contins e Gomes, 2007).
Ponto significativo que ainda está sendo aprofundado é o efeito dos
deslocamentos necessários à participação em grandes eventos religiosos realizados
nos centros urbanos. Não são erráticos e apresentam padrões. Os "fiéis" deslocamse em busca "de um lugar de poder mais forte". Em grande parte das vezes, o
percurso não é solitário e tampouco anônimo. Organizam-se em grupos e caravanas
em suas respectivas congregações locais, e partem juntos. Outras vezes, formamse grupos de parentes, amigos ou conhecidos. Um levando o outro, com o propósito
de, individual e coletivamente, terem uma experiência com o sagrado. O peregrino
solitário também tem seu lugar. Ele parte de um ponto preestabelecido em direção
ao “lugar de poder mais forte” (Gomes 2004). Famílias inteiras, incluindo pessoas
idosas e crianças saem de seus respectivos “pedaços” para ter uma experiência
sócio-religiosa vivenciada na zona sul (Magnani, 2002). O contato entre integrantes
de “pedaços” tão distintos provoca novas percepções e tensões e estas podem ser
conflituosas ou pacíficas.
Outro ponto parece ser digno de apreciação posterior. O termo “proselitismo
involuntário”, utilizado na sinopse do enredo da escola de samba Grande Rio, é
sugestivo para as análises sobre as formas de reprodução e transmissão das
religiões afro-brasileiras, especialmente em comparação com o proselitismo
evangélico e carismático atual. O chamado proselitismo tem sido associado às
práticas de evangelização das igrejas evangélicas. A efetiva participação no período
momesco, através da organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir
objetivos religiosos que, a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento.
A evangelização é a justificativa para a imersão, em especial, desse ramo religioso
no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro.
Além do Cara de
Leão, outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro,
há também o bloco da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que
69
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus. Encarar o carnaval como período
propício à evangelização é uma característica significativa do tipo de concepção
religiosa adotada por essas igrejas: a “fé em ação”, esta que se efetiva “no
mundo”; em consonância com as análises weberianas. O carnaval é percebido como
situação privilegiada para a evangelização. É nele que podem ser encontrados os
“desviados”, os “pecadores”, um vasto público-alvo. Nessa dinâmica, a chamada
estratégia proselitista evidencia características fundamentais do exclusivismo
religioso, como a disposição combativa e a reivindicação de legitimidade. Cabe
maior profundidade na análise sobre o “proselitismo involuntário”, relativo às
religiões afro-brasileiras presente na retórica elaborada para compor o enredo de
uma escola de samba. O “proselitismo” nunca esteve associado às suas práticas,
condizendo com o modelo do sincretismo hierárquico. Vale verificar como a retórica
exclusivista e a estratégia proselitista têm sido recebidas, adotadas e/ou reinterpretadas pelas religiões afro-brasileiras.
Em primeira análise, observa-se que junto às estratégias de evangelização
que ocorrem no fluxo das cidades estão em disputa discursos sobre autenticidade.
Pode-se dizer que eles vêm sendo acionados para contrastar e definir fronteiras de
legitimidade entre o religioso e o laico. Os discursos sobre autenticidade
(Gonçalves, 1989; 1995) estão presentes também na dinâmica religião-cidade. Os
evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos realizam seus eventos em
grandes espaços como a Praça XV, a Quinta da Boa Vista, a Enseada de Botafogo e
o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, na Avenida Paulista e no
Campo de Marte, entre outros. O fato de serem realizados no espaço da “grande
cidade” tem sido considerado um dado relevante para a compreensão de práticas e
significados que a experiência religiosa assume na contemporaneidade, na medida
em que estão a eles conjugadas características religiosas e urbanas.
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GRAFFITI,
PICHAÇÃO
E
OUTRAS
MODALIDADES
DE
INTERVENÇÃO
URBANA: caminhos e destinos da arte de rua brasileira
72
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
David da Costa Aguiar de Souza52
Resumo
O trabalho que se segue tem por objetivo analisar o panorama da arte de rua
(street art) brasileira, descrevendo as modalidades e as técnicas encerradas neste
conceito, cuja expressão mais divulgada é o graffiti, além de apresentar um
levantamento
dos
atores
praticantes
e
dos
suportes
preferencialmente
empreendidos. A problemática suscitada tem como base a investigação da
transformação
poluidoras,
em
dessas
modalidades,
atividades
outrora
artísticas,
com
rotuladas
um
como
significativo
desviantes
mercado
e
de
colecionadores, exposições, fóruns, galerias e espaço em museus, além de uma
ampla utilização na decoração de ambientes privados, na publicidade e na
customização de artigos do vestuário.
Palavras-chave: graffiti, arte de rua, intervenção urbana, etnografia urbana,
ambientes construídos.
Abstract
This article analyses the Brazilian street art scenario, describing the modalities and
techniques related to this concept - which the most popular expression is the graffiti
– and also presenting some of the participants and their preferred techniques. The
focus of this investigation is over the changes of these modalities, from deviants
and polluters, as they used to be seen, to artistic activities, with a significant
market of consumers, expositions, forums, galleries and museums, besides a vast
use in house decoration, publicity and clothing.
Key words: graffiti, street art, urban intervention, urban ethnography, built
environments.
Ambientes construídos, modalidades de intervenção urbana e a tríade arte,
decoração e publicidade
52
Mestre em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA).
Bacharel e licenciado em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
73
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Há pelo menos duas décadas a técnica do graffiti tem se deslocado das ruas,
ou seja, do espaço público, em direção ao interior das casas e dos ambientes
privados. A atividade deixou de ser associada a outras práticas juvenis delinqüentes
(como a pichação de muros) e conquistou o recente status de manifestação
artística, não apenas se constituindo na nova vedete vanguardista da decoração de
interiores, mas também se estabelecendo no circuito oficial de artes, ganhando
cada vez mais notoriedade e espaço em galerias e museus.
O cenário da arte urbana está em evidência. Nas ruas ou fora delas, essa
vertente contemporânea experimenta um momento singular: nunca houve tantos
artistas talentosos, público crescente, colecionadores, mídia disposta a dar
visibilidade, pesquisadores no entorno, publicidade interessada nos traços e na
linguagem estética, museus e exposições legitimando o valor das obras, além de
galerias e fóruns. Os grafiteiros passaram a receber encomendas para pintar
cenários de desfiles de moda, fachadas de lojas e paredes de casas noturnas e a
atuar na decoração de interiores de residências. Pintam temas que vão de figuras
conhecidas da arte pop, que remontam a Andy Warhol e a Basquiat, a imagens
abstratas e elaboradas caligrafias em cômodos, móveis e eletrodomésticos dos
domicílios.
Grafiteiros geralmente criam formas de associação com base em laços
anteriores, principalmente territoriais. No Rio de Janeiro existem inúmeras equipes
de graffiti, conhecidas como crews. As equipes não são muito numerosas, tendo em
geral de quatro a cinco integrantes. A Fleshbeck Crew é provavelmente a maior e
mais divulgada equipe carioca de graffiti. Idealizada por moradores da zona sul e
com atuação concentrada na região, a marca já contempla inclusive uma loja para
comercialização de produtos estilizados através da técnica (tênis, bonés etc.), e
também latas de tinta e telas de seus artistas. Além da Fleshbeck, outras equipes –
como a Santa Crew, composta por grafiteiros do bairro de Santa Teresa, o Nação
Crew, de grafiteiros da Baixada Fluminense, e o TPM Crew, uma equipe de três
meninas – ajudam a compor a cena carioca de graffiti.
Além dos graffitis, ao observarmos com um pouco mais de atenção o
ambiente construído (Harvey, 1982) de cidades como o Rio de Janeiro ou São
Paulo, podemos identificar novas modalidades de intervenção urbana. O chamado
“pós-graffiti” é um fenômeno recente, surgido neste início do século XXI no vácuo
da legitimação da concepção de arte de rua, cujo pioneirismo se atribui aos
grafiteiros e se refuta aos pichadores. “A street art é uma evolução do grafite. Os
artistas de rua foram atrás de novas técnicas e passaram a explorar outras
ferramentas, como papel, adesivos em vinil e pôsteres de grandes dimensões”,
explica o publicitário nova-iorquino Marc Schiller, criador do site especializado
74
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Wooster Collective,53 um verdadeiro conglomerado de artistas de rua de todas as
partes do mundo na Internet.
Os sticks, ilustrações em papel adesivo (que podem ser em tamanho A4 ou
menores e também pôsteres fixados com cola de trigo), presos em paredes, postes, pisos,
tetos e placas nas ruas, já adquiriram o status de manifestação estética e constituem uma
das principais vertentes dessa nova arte de rua. O curioso é que, segundo os próprios
praticantes, os stickers,54 o propósito dos adesivos é exatamente constituir uma resposta
à massificação da propaganda, com a qual disputam espaço em meio à poluição visual
da cidade. “Não acho certo que o espaço urbano seja destinado apenas a agências de
publicidade, empresas e políticos. A única coisa permitida por lei é anúncio. Está
errado, o espaço público é de todos”, acredita Stephan Doitschinoff, 27 anos, o “Calma”
55
(codinome), um dos pioneiros da prática de colar adesivos no Brasil.
Não deve ser por acaso que a proliferação de stickers esteja ocorrendo
justamente na época em que o graffiti foi amplamente absorvido pelo mercado e
que grandes marcas tenham contratado seus autores para grafitar tudo, de fachada
de imóveis de instituições financeiras, como a agência do Bank Boston, na Avenida
Paulista, no Centro de São Paulo, a outdoors – o recente da marca Ellus de
vestuário – e até produtos de grifes internacionais, a exemplo da embalagem do
perfume CK One, de Calvin Klein, lançado em 2005 em série limitada. No Brasil, a
idéia dos adesivos rapidamente se alastrou. Na Bahia, a artista plástica Andréa May
envolveu-se de tal modo com a cultura sticker que montou a Galeria de Adesivos,56
anexa a uma loja de discos e a um bar em Salvador. Ali ela reúne trabalhos de
artistas de todo o Brasil. Em São Paulo, na Vila Madalena, um casal há tempos
envolvido com a cultura jovem urbana apostou na qualidade plástica desses artistas
e decidiu montar a Choque Cultural, espaço dedicado a expor e a vender street art.
Na loja, a arquiteta Mariana Martins e o designer Baixo Ribeiro vendem gravuras de
artistas que até então só conheciam a rua como meio de divulgação. “Existe muito
talento perdido pela cidade, as pessoas precisam treinar o olhar para enxergar. Os
53
“Como uma epidemia, a mania navegou pelo mundo a bordo da internet e, por que não, pelo velho e
bom correio. Além da produção nativa, artistas de lugares distantes despacham pilhas de seus adesivos
para todos os cantos do planeta e, depois, pela web, podem ver onde seus trabalhos foram colados.
‘Isso é inspirador e estimula a produzir mais’, conta Marc”. Cf. matéria “Subversão visual: nova forma
de intervenção urbana, o pós-grafite, disputa espaço com propagandas, políticos e anúncios de todo o
tipo”. Lulie Macedo, Revista da Folha, 10/10/2004.
54
As entrevistas com os stickers (coladores de adesivos) estão contidas na matéria citada na nota
anterior.
55
Artista plástico, autodidata, começou aos 17 anos pintando pôsteres e fazendo estêncil (máscaras
usadas como molde) até chegar à pintura em tela. Com seu traço gráfico e inspiração religiosa, Calma
já expôs suas harpias com asas de lágrimas e outras figuras mitológicas em mostras coletivas no
circuito tradicional de arte em São Paulo (dados extraídos da matéria citada na nota nº 34).
56
Site da galeria: www.taracode.com.br.
75
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
artistas que eu tenho aqui também estão nos muros, nos viadutos. Basta olhar em
volta”, diz Mariana.
Camuflados entre o mar de emblemas que anunciam compre, vendo ou vote,
o fato é que os stickers vão aos poucos disputando um lugar ao sol no cenário
urbano. Decidir se poluem ainda mais a vista ou se colocam em xeque o direito de
ocupar o espaço público pode ser apenas uma questão de gosto. Mas, nesse caso,
acredita a antropóloga da PUC/SP, Rita Alves, gosto se discute – e em público, de
preferência. “Deixar sua marca na cidade é um jeito de dizer estou aqui, eu existo,
é uma maneira de se dar voz. Se o cartaz do ‘compro ouro’ pode, por que eles não
podem?”.57
Outra forma de intervenção observada no espaço público na linha “pósgrafite”/street art é o estêncil, uma técnica que utiliza moldes vazados em telas de
papelão através das quais o spray transfere para a superfície escolhida o desenho
ali contido, similar a uma tela de estampar roupas.
Juntamente com os graffitis
e os adesivos, a técnica do estêncil compõe esse cenário um tanto underground,
meio vanguardista e que traz a influência da vida urbana propriamente dita, das
formas e das expressões contidas no exterior dos ambientes construídos das
grandes cidades para o interior dos ambientes domiciliares e privados. Na matéria
“Decoração marginal: o grafite brasileiro sai das ruas e toma conta de paredes de
casas e apartamentos, conquistando um novo e bem remunerado espaço”,58 está a
foto de uma cozinha decorada com gravuras estampadas através da técnica do
estêncil e que traz a seguinte legenda: “Os desenhos de estêncil (técnica com
molde e spray) de Celso Gitahy59 cobrem a parede e a geladeira, dando mais vida
ao espaço”. Recentemente, o encarte do segundo cd do cantor Marcelo D2 (Sony,
2003) foi lançado contendo um estêncil com as iniciais de seu nome (md2) e outro
com os contornos de sua fotografia.
Graffiti X pichação
A confusão que se faz acerca das classificações nativas pichação e graffiti é
recorrente. A principal diferença entre essas duas modalidades consiste em que a
pichação,
prática
encerrada
por
intervenções
na
forma
de
assinaturas
monocromáticas (ou tags) em tinta spray, advém da escrita, enquanto o graffiti
está diretamente relacionado às artes plásticas, à pintura e à gravura. A primeira
57
58
Entrevista realizada com a professora em 08/06/2006.
Revista Época, Editora Globo, n° 377, p.82, 08/08/2005.
59
Celso Gitahy é um dos artistas entrevistados, cujo trabalho é apresentado no artigo mencionado na
nota anterior.
76
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
privilegia a palavra e a letra, ao passo que a segunda relaciona-se com o desenho,
com a representação plástica da imagem.
Em relação à dicotomia pichação-graffiti, pode-se dizer que nas regiões
metropolitanas das capitais brasileiras o degradante efeito da primeira atividade,
caracterizada por sua vocação clandestina e por seu aspecto estético com traços
rápidos e apressados em tinta spray, cuja premissa é a divulgação através da
repetição, é facilmente percebido. O graffiti, por outro lado, é uma atividade
relacionada à apropriação do espaço urbano para o desenvolvimento de painéis
elaborados também em tinta spray (e com outros materiais), porém não
monocromáticos e nem com traços econômicos, mas sim extremamente complexos
e coloridos.
A pichação é usualmente associada a um discurso norteado pelas noções de
vandalismo, delinqüência e poluição visual. O graffiti está atualmente vinculado a
um discurso de conscientização, de salvação ou libertação dos jovens da
delinqüência através da arte. Em entrevista publicada no “Caderno B” do Jornal do
Brasil, Ziraldo (na posição de entrevistador) pergunta ao grafiteiro “Toz” do grupo
Fleshbeck Crew, da zona sul do Rio de Janeiro: “Se qualquer um pode chegar, como
impedem que um pinte em cima do outro?”. A resposta do grafiteiro: “Há um
consenso entre os grafiteiros: não é permitido entre a gente um cobrir o outro. A
não ser que tenha autorização do próprio. O pichador não. Quando fazemos um
graffiti na rua, tiramos logo a foto, porque sabemos que no próximo dia estará
pichado”60.
O graffiti também está atrelado ao movimento hip-hop, sendo um de seus
quatro elementos básicos, juntamente com o dj (o discotecário que toca as
batidas), o b-boy (o dançarino) e o mc (o master of ceremony ou rapper, que canta
os raps). Hoje em dia, chega a se estabelecer um racha entre o graffiti de matriz
nas artes plásticas, relacionado aos movimentos muralistas contemporâneos e à
pop art, que herdou desta última recursos como máscaras e moldes vazados, e o
estilo de graffiti ligado ao movimento hip-hop (a chamada estética nova-iorquina),
cuja expansão se deu durante a década de 1990 e que materializa imagens
referentes às temáticas das letras dos raps: desigualdade social e violência policial
dão a tônica.
O graffiti ganha força nos centros urbanos por constituir um canal através do
qual os jovens podem representar sua subjetividade, materializar algumas de suas
impressões sobre o mundo, e cresce no gosto das elites enquanto elemento de
vanguarda na decoração de interiores,61 concretizando uma ponte da rua em
60
Cf. matéria “A arte no meio da rua”, “Caderno B” (capa) do Jornal do Brasil, 26/06/2005.
61
Cf. a Revista Época, nº 377, de 08/08/2005, matéria “Decoração marginal – O grafite brasileiro sai
das ruas e toma conta das paredes de casas e apartamentos, conquistando um novo e bem
remunerado espaço”.
77
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
direção a casa, ao passo que a pichação de muro permanece em sua posição
estigmatizada de atividade desviante. Grafiteiros, comprometidos com as artes
plásticas ou com um movimento social como o hip-hop, muitas vezes são expichadores e, assim como os ex-fumantes que optam pela militância antitabagista o
são com o cigarro, eles sustentam o discurso mais instrumentalizado e elaborado
contrário à pichação.
Segundo Celso Gitahy (1998), designer, artista plástico e pesquisador da
arte de rua em São Paulo, alguns grafiteiros mostram-se receptivos à pichação.
Maurício Villaça, um dos precursores do graffiti no Brasil, atentou, em depoimento
no livro de Gitahy,62 para os jovens assassinados por terem sido flagrados em
pichação. Segundo o artista, “devemos procurar entender essa manifestação
humana. Se somos da mesma espécie, por que reprimir tão drasticamente uma
atividade muito menos perigosa do que as barbaridades sociais, ecológicas e
políticas, corrupções e violência que se sucedem à nossa vista e são enaltecidas
pela mídia?”.63
“Zezão”, um dos grafiteiros brasileiros mais reconhecidos por seu trabalho,
tem uma posição pouco recorrente quanto à interpretação da pichação pelos
grafiteiros, mas não exclusiva. Zezão entende que “graffiti e pichação são uma
coisa só, o que muda é a estética. O graffiti é uma arte subversiva em sua raiz”.64 A
mesma visão tem o artista carioca “Malc”,65 ao ser questionado a respeito da
dicotomia entre pichação e graffiti, posiciona-se com firmeza e diz que o segundo é
derivado do primeiro. Malc, aluno da Escola de Belas Artes da UFRJ, é também um
exemplo pouco comum de praticante das duas modalidades: mesmo tendo
desenvolvido a técnica do graffiti e aprimorado seu estilo através do estudo de artes
plásticas, ainda faz eventuais incursões para pichar muros, e entende a pichação
como manifestação igualmente artística.
Existe, porém, uma modalidade que se pode dizer intermediária entre a
pichação e o graffiti. Chamada por alguns de “grapicho”, a técnica relaciona-se à
estilização do apelido do grafiteiro (como “acme”, “prema” e “toz”) em letras
altamente elaboradas, coloridas, com contorno e preenchimento. Estabelece
conexões com o graffiti pelo fato da elaboração e do detalhamento dos trabalhos, e
com a pichação, por constituir algo similar a uma assinatura, estando diretamente
ligado à escrita.
Malc apresentou-me nomenclaturas comuns de serem utilizadas pelos
praticantes para classificar a atividade (o “grapicho”). Bomb e throw up são as
62
Cf. “O que é graffiti?”, Gitahy, 1998.
63
Gitahy, Celso (1998), p.25-26.
64
Cf. matéria “Artimanhas da pichação”. Phydia Athayde, Revista Carta Capital, nº 345, 08/06/05.
65
“Malc”, artista plástico, grafiteiro e pichador, foi um dos principais colaboradores para o
desenvolvimento deste trabalho.
78
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
classificações mais freqüentemente usadas. Existe ainda a forma top to bottom (de
cima a baixo), quando as letras tomam o muro em toda a sua altura. Ele explica
que os grafiteiros que fazem esse tipo de trabalho também produzem desenhos e
painéis mais elaborados. O bomb é empregado para a divulgação do nome do
artista, o que acontece muitas vezes em situações adversas: locais de muito
movimento, onde é necessária rapidez para a conclusão de um trabalho nãoautorizado e, principalmente, em dias de sol. As altas temperaturas representam
uma das piores adversidades para a confecção dos graffitis e, nesse sentido, os
trabalhos de finalização mais rápida são mais apropriados nessas ocasiões.66
Definitivamente, graffiti e pichação constituem atividades diferentes. Apesar
de algumas semelhanças estruturais, como o uso do espaço público para a
elaboração e a convergência relativa no uso dos materiais (de maneira mais
específica, da tinta spray), o racha marcante entre as duas práticas se dá na forma
com que são significadas por seus atores, além de suas diferenças objetivas.
Analogamente, podemos considerar graffiti e pichação como primos em primeiro
grau, mas não irmãos.
Proibição legal
Apesar do recente abrandamento dos
pequenos delitos
através
das
transações legais e das punições alternativas adotadas pela Justiça, "pichar, grafitar
ou, por outro meio, conspurcar edificação ou monumento urbano é crime passível
de detenção de três meses a um ano e multa" (parágrafo 65 da lei 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e que especifica outras
providências). Com a preocupação legal, no entanto, entra em cena o debate acerca
do desvio e, nesse sentido, abre-se um leque ainda mais amplo relativo ao
entendimento das motivações que levam os jovens a essas atividades.
Vale lembrar ainda que, segundo o artigo 163 do Código Penal - “causar
dano, destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia” – o graffiti e a pichação são
crimes (espécies de “pirataria”, por conta da pilhagem e da utilização indevida do
patrimônio público ou privado alheio como suporte). O pequeno potencial ofensivo
determina que o pichador ou o grafiteiro seja julgado pela lei 9.099 do Juizado
Especial Criminal, o que geralmente termina em um acordo com o Ministério Público
(pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços públicos). Também é
possível uma ação cível, com pedido de indenização por dano material.
66
Para uma verificação de como o calor é adversário dos grafiteiros, ver no site de relacionamentos
“Orkut” a comunidade virtual “Eu odeio pintar no sol”, no qual grafiteiros revelam a sua insatisfação
com os dias quentes.
79
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Por conta dos onerosos materiais e do tempo despendido com a técnica do
graffiti, muitos dos trabalhos que vemos nos muros e nos equipamentos públicos da
cidade foram realizados com a devida autorização prévia, conseguida junto a
órgãos da administração pública, artifício que evita a interrupção da atividade por
particulares ou pelo patrulhamento ostensivo. As pichações, por outro lado, são
sempre clandestinas e não-autorizadas, realizadas sorrateiramente e na maioria das
vezes durante as madrugadas.
O mercado do graffiti
Ao observarmos o mercado que se constituiu em torno do graffiti e de seus
derivados nesses primeiros anos do século XXI, corremos o risco de perder de vista
o preconceito e o repúdio destinados a essas manifestações (e a outras similares)
até
recentemente,
outrora
entendidas
exclusivamente
como
atividades
delinqüentes, poluidoras, esvaziadas de qualquer caráter estético ou valor artístico.
O sociólogo mexicano José Valenzuela Arce (1999), em pesquisa avaliativa de
continuidades e descontinuidades entre práticas juvenis delinqüentes identificadas
em Tijuana e na Cidade do México e outras em São Paulo e no Rio de Janeiro,
entende que o graffiti tem um componente irrefutável de intervenção, de
customização do espaço público por seus atores. Segundo o autor:
Possivelmente, uma das imagens mais agudas acerca das motivações dos
jovens para elaboração dos grafites nos é proporcionada por um jovem
tijuanense que me expôs o seguinte em entrevista: “Não gosto da cidade, está
feia e suja, por isso tento deixá-la em bom estado, enchê-la de cores, porque,
se você a enche de cores, tem a ilusão de que a vida é menos dolorosa”
(Valenzuela, 1999:128).
A explanação de Valenzuela complementa a posição do artista de rua
“Calma”, exposta acima, acerca das motivações desses jovens a respeito de tais
manifestações e de como as interpretam: insatisfação com as características da
paisagem urbana e com as usuais formas de apropriação dessa paisagem. A partir
da visão dos praticantes dessas modalidades (como vimos anteriormente, os
discursos inerentes às diferentes práticas como graffiti, estêncil e adesivos não são
convergentes), é possível captar questões relativas à alocação juvenil no mercado
de trabalho e às oportunidades de lazer e entretenimento dentro dos limites das
grandes cidades brasileiras. As formas como a sociedade civil (principalmente
através das ONGs) e os governos locais vêm inserindo tais atividades em políticas
de inclusão social, de combate à segregação territorial e de planejamento urbano
também merecem ser esmiuçadas.
80
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Novos caminhos para a arte de rua: inserção das modalidades em políticas
sociais e na dinâmica do planejamento urbano
Robert Park (1967) atentava, no início do século XX, para as implicações
sociais de práticas de lazer, desportivas e artísticas relativas à vida das populações
trabalhadoras das cidades, inserindo-as na perspectiva do consumo (dentro da
lógica dicotômica produção/consumo). Segundo Park:
A verdade parece ser que os homens são trazidos ao mundo com todas as
paixões, instintos e apetites, incontrolados e indisciplinados. A civilização, no
interesse do bem-estar comum, requer algumas vezes a repressão, e sempre o
controle, dessas imposições naturais. No processo de impor sua disciplina ao
indivíduo, de refazer o indivíduo de acordo com o modelo comunitário aceito,
grande parte é completamente reprimida, e uma parte maior encontra uma
expressão substituta nas formas socialmente valorizadas ou pelo menos
inócuas. Nesse ponto é que funcionam o esporte, a diversão e a arte.
Permitem ao indivíduo se purgar desses impulsos selvagens e reprimidos por
meio de expressão simbólica (Park, 1967:64).
Tais atividades, relacionadas ao esporte, à diversão e à arte, muitas vezes
acabam gerando alternativas diante da impraticável concorrência no mercado de
trabalho, especialmente para jovens das populações trabalhadoras de baixa renda
das grandes cidades brasileiras. Elas são deslocadas do âmbito do consumo para o
âmbito da produção, transformando-se em atividades remuneradas.
Voltemos para os dias de hoje, em que podemos observar iniciativas
de governos locais (municipais) voltadas para a inclusão socioprofissional
dos artistas de rua. A ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT), por
exemplo, esteve entre os estudiosos do fenômeno. Com base nisso, tinha
planos de “inclusão” dos pichadores e grafiteiros ao se apresentar aos
eleitores como candidata, em 2000. No poder, porém, a prefeita esqueceu a
matéria, relegada a segundo plano numa tal “Operação Belezura” que
decretou para a maior cidade do Brasil. Em uma das medidas, através de
uma lei municipal, Marta determinou como espaço de livre utilização para
pichadores, grafiteiros e afins todos os tapumes de obras públicas na
cidade de São Paulo,67 numa medida considerada redundante. Seu sucessor,
José Serra, declarou guerra a essas manifestações quatro meses após
assumir o cargo, ao lançar o programa “Cidade Limpa”. Nas primeiras três
semanas do programa, a prefeitura usou 35 galões de removedor para
apagar, todas as manhãs, pichações e graffitis nas principais vias da
cidade.
67
Cf. matéria “Eles picham um país em que não acreditam”. Ricardo A. Setti, coluna “No mínimo” do
site Ibest, de 24/02/04. No título falta a preposição; colocamos?
81
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
A iniciativa de caráter político, que aparentemente fez convergir mais
esforços até o momento em direção à viabilidade de utilização do espaço
público
por
pichadores
e
grafiteiros
em
cidades
brasileiras,
foi
o
interdisciplinar “Projeto Guernica” da Prefeitura de Belo Horizonte. Desde
1999, por iniciativa do então prefeito Célio de Castro, uma comissão
dedicou-se ao exame da pichação e do graffiti, abrindo a discussão para
psicanalistas, engenheiros, artistas plásticos, urbanistas, arquitetos e
profissionais de áreas diversas da universidade e de outros setores, como
grafiteiros,
detetives
e
professores
de
escolas
públicas.
A
seguir,
transcrevo o resumo do projeto:
O projeto Guernica é um programa da Prefeitura de Belo Horizonte, em
parceria com o centro cultural UFMG e a FUNDEP, sendo desde o ano 2000
sustentado não só por se constituir em um espaço de estudo e pesquisa, mas
também por implementar uma proposta de política pública para a pichação e o
grafite na cidade. Nessa proposta, leva-se em consideração o problema do
patrimônio, do urbanismo e da história. Ao perceber a pichação e o grafite
como escrita tomada como necessária pelos jovens, propõe, como objetivos,
abrir o debate e estabelecer ações que abram o leque de alternativas que
possibilitem aos jovens freqüentar outros discursos e espaços da cidade,
buscando ampliar os recursos técnicos e conceituais de cada um. Como
metodologia, disponibiliza aos jovens de bairros populares uma passagem pela
arte, por meio de oficinas com novos suportes para a escrita e a arte,
seminários, palestras, participações em eventos de instituições, apropriação de
espaços urbanos e uma grande campanha para a rede escolar. Como
resultado, há ampliação das possibilidades da escrita, com o abandono das
práticas transgressoras, maior respeito à memória social e o estabelecimento
de laços sociais favoráveis ao mercado de trabalho e à participação cidadã.68
Além das iniciativas das prefeituras de São Paulo e Belo Horizonte,
podemos
destacar
desenvolvimento
de
o
tratamento
mecanismos
dispensado
de
inclusão
à
arte
social
de
rua
no
idealizados
por
instituições da sociedade civil organizada (ONGs notadamente) em parceria
com organismos multilaterais de financiamento, como UNESCO e BID.
Inúmeras oficinas espalhadas pelo Brasil – a exemplo das oficinas das
ONGs cariocas CUFA (Central Única das Favelas) e Afrorregae, e do grupo
Fleshbeck Crew da zona sul, um dos mais atuantes do Rio de Janeiro –
absorvem uma demanda que não pára de crescer e que não tem restrições
etárias ou de classe social. Ali os iniciantes recebem informações a respeito
do uso consciente do espaço público e de como inserir suas intervenções de
forma coerente na paisagem urbana, além de aulas práticas.
Toda a atmosfera construída em torno da arte de rua, como essas
oficinas que multiplicam o número de praticantes, o desenvolvimento de
68
“Anais do 2° Congresso Brasileiro de Extensão Universitária”, Belo Horizonte, 12 a 15 de setembro de
2004.
82
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
novas técnicas, os interesses público e privado relativos ao deslocamento
de tais atividades do âmbito da delinqüência para o da cultura, do consumo
para a produção, e também ao planejamento urbano, revelam a amplitude
de efeitos sociais e espaciais relacionados ao fenômeno. A relevância deste
tema e de outros voltados para o estudo de práticas juvenis urbanas está
inserida numa área de interesse mais ampla – a organização social no meio
urbano – sobre a qual Chombart de Lauwe (1967) traçou o seguinte ponto
de vista:
A “juventude”, enquanto fato social, tem um lugar que tem sido mal
definido na maior parte das sociedades industriais ou de países em
transformação econômica. Daí resultam numerosas dificuldades e
numerosos erros na planificação social. Os pequenos grupos
espontâneos e os grandes movimentos da juventude podem constituirse em objetos de estudos reveladores para o sociólogo que quer
compreender os mecanismos da evolução de uma sociedade urbana
(Chombart de Lauwe, 1967:127).
Estratégias relativas à alocação no mercado de trabalho, oportunidades de
lazer e moradia
Se analisarmos as estratégias desenvolvidas pelas populações trabalhadoras
dentro das grandes cidades brasileiras no que diz respeito a questões como
alocação no mercado de trabalho, opções de lazer, entretenimento e moradia, nós
nos depararemos com interessantes, e muitas vezes criativas, alternativas. Apesar
da ilegalidade de algumas atividades e da reprovação a outras, elas foram
inseridas, através de políticas de governo ou ações sociais, na lógica das profissões
regularizadas e dos direitos ao lazer e à habitação dentro do ambiente construído
das metrópoles. Harvey (1982), em relação à questão da dinâmica dos mercados de
trabalho (desenvolvimento e decadência de funções profissionais e oferta de
serviços) e do consumo em grandes cidades ocidentais, afirma que
No âmbito da mercadoria o trabalho pode, pela organização e pela luta de
classes, alterar a definição de suas necessidades, de maneira a incluir
“razoáveis” padrões de nutrição, saúde, habitação, educação, recreação,
diversão etc. Do ponto de vista do capital, a acumulação requer uma constante
expansão do mercado de mercadorias e isso significa a criação de novos
desejos e necessidades e a organização de um “consumo racional” por parte
do trabalho (Harvey, 1982:80).
Para ilustrar a questão das estratégias desenvolvidas pelas populações
trabalhadoras como mencionado acima, sigo com alguns exemplos, primeiramente
relacionados ao mercado de trabalho. Funções como as de camelôs, “flanelinhas” e
malabaristas de rua estão saindo do âmbito da informalidade e adentrando o campo
das profissões reconhecidas e regulamentadas, ou sendo inseridas em políticas
83
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
sociais de inclusão. A criação de camelódromos nos bairros de Madureira, Centro e
Tijuca, no Rio de Janeiro, reflete uma conjugação da demanda de consumo de
mercadorias menos onerosas para os trabalhadores com uma oferta excessiva de
mão-de-obra (caminhando para a informalidade) voltada para os mercados de
trabalho locais, seja em funções na indústria, no comércio ou na prestação de
serviços.
Nos camelódromos, as barracas dos comerciantes são regularizadas através
de alvarás de funcionamento, e os trabalhadores inseridos numa lógica formal de
tributação. Com relação aos “flanelinhas” (não que eu simpatize com a atividade) –
os outrora compulsórios guardadores de carros – uma lei recente do município do
Rio de Janeiro regulamentou a profissão através do programa “Vaga Certa”:
uniformes, talões de cobrança e o direito garantido de poderem atuar “tomando
conta dos carros” estacionados em locais públicos. Os malabaristas de semáforos,
através de projetos sociais intermediados por ONGs, ensinam suas técnicas em
oficinas para comunidades carentes e são contratados para se exibirem em eventos
privados, como festivais de música eletrônica.
No
que
diz
respeito
ao
lazer,
as
modalidades
esportivas
coletivas
tradicionais, como futebol e basquete, estão sempre sofrendo alterações em suas
regras para poderem ser adequadas à prática nos espaços públicos de recreação.
Nas degradadas quadras polidesportivas existentes nas pracinhas e nos pátios
públicos69 dos subúrbios das grandes cidades brasileiras, apareceu o street-basket70
(basquete de rua), similar ao basquete tradicional, porém com menos jogadores.
Ele é jogado em duplas, trios ou quartetos, ao invés dos quintetos da regra oficial, e
engloba uma série de outras adaptações relativas à adequação da prática à
degradação das quadras (em certos formatos, o basquete de rua utiliza apenas uma
das tabelas da quadra). O exemplo do street-basket torna-se interessante, pois a
Rede Globo de televisão, em agosto de 2006, transmitiu ao vivo o primeiro
campeonato brasileiro da modalidade inserido em seu principal programa de
esportes,
distribuindo
generosas
premiações
em
dinheiro
e
permitindo
a
visualização de uma bem-definida rede de praticantes que já contempla oficinas e
escolinhas de aprimoramento.
Apenas para concluir os exemplos relacionados às alternativas de lazer, nas
urbes francesas nesse final do século XX, início do XXI, surgiu o Le Pakour, esporte
69
O abandono dos locais públicos de recreação das grandes cidades é matéria de discussão desde que,
na primeira fase da matriz modernista do planejamento urbano, eles foram delimitados, sendo próprios
para o divertimento das classes trabalhadoras. Robert Park (1967), em suas “Sugestões para
investigação do comportamento humano no meio urbano”, já colocava a seguinte questão acerca
desses locais, determinantes, na visão do autor, para a formação das chamadas “regiões morais”: “Até
que ponto os pátios de recreio e outros tipos de recreação podem fornecer o estímulo que, de outra
forma, é procurado em prazeres viciosos?”.
70
Notadamente desenvolvido em bairros de distritos nova-iorquinos, como o Brooklin, e emulado pelos
jovens brasileiros através da cultura televisiva.
84
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
considerado radical; nele, os praticantes pulam muros, sobem em beirais e
marquises, saltam obstáculos, escalam postes, enfim, interagem com todo o
conteúdo dos ambientes construídos das cidades, identificando circuitos próprios
para a atividade, utilizando nesses trajetos apenas a força das pernas e dos braços
em corridas, saltos e escaladas. O Le Pakour já é praticado pelas jovens populações
trabalhadoras cariocas, que tiveram contato com a modalidade através de veículos
de comunicação, como televisão e Internet. Uma vez que os ambientes privados
para a prática desportiva estão inseridos, muitas vezes, numa apreensível lógica de
segregação espacial, a atividade aparece relacionada a um conjunto de outras que
constituem um campo não-oneroso de alternativas de lazer e de atividades físicas.
Quanto à habitação, as favelas situadas nos morros e nas encostas da região
metropolitana do Rio de Janeiro são o exemplo cardeal das alternativas encontradas
pelas populações trabalhadoras locais (de baixa renda) em face do processo de
especulação imobiliária e segregação espacial impeditivo de uma inserção formal na
lógica da habitação nesses centros. Após um século de tentativas de remoção, a
agenda referente à questão das favelas adquiriu nos últimos anos uma outra
direção. As favelas consagraram-se como parte constitutiva do ambiente construído
das cidades brasileiras, situação observável na implementação, na última década,
de políticas de infra-estrutura que utilizam a mão-de-obra dos próprios moradores
em empreitadas de saneamento e pavimentação desses locais. Assim como a
atividade dos “flanelinhas” ou a prática de esportes em espaços públicos de
recreação, as favelas “venceram” no espaço urbano carioca, e agora em seu
entorno gravitam o poder público e a sociedade civil organizada, objetivando o
reconhecimento cívico dessas populações ou, nas palavras de Maria Alice Rezende
de Carvalho (1995), tentando garantir-lhes o “acesso à cidade”.
Os exemplos acima citados visam ilustrar o seguinte panorama: as
alternativas informais encontradas pelos jovens do Rio de Janeiro, relativas ao
trabalho, à moradia e ao lazer, estão sendo institucionalizadas através de iniciativas
governamentais e, principalmente, pela articulação da própria sociedade civil. Não é
diferente o que ocorre com o graffiti e com as demais formas de intervenção
artístico-urbanas aqui examinadas. Os grafiteiros podem ser encarados como
artistas em potencial que não tiveram oportunidades ou não foram orientados para
freqüentar ambientes de aprimoramento de suas técnicas, tendo seu laboratório
prático se dado nas ruas. Tais atividades têm suas origens relacionadas à expressão
da subjetividade de seus praticantes, à contestação da forma como o espaço
público é bombardeado pela propaganda, e constituem, na base, uma alternativa
de entretenimento. Por outro lado, a estilização de artigos de vestuário, por
exemplo, além de revelar este potencial artístico, insere o jovem numa atividade
remunerada. O grafiteiro paulistano “Binho” tem como marca registrada a estampa
85
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
de uma barata, sempre adicionada a seus trabalhos. Na explicação de Tristan
Manco (2005), a barata tem um significado simbólico e central para Binho:
Binho é um membro da original velha escola de São Paulo e hoje em dia
desenvolve um papel central no avanço da cena brasileira de graffiti. Ele
geralmente pinta sob o nome “3º mundo”, usualmente incorporando seu
personagem característico – uma barata usando uma máscara de gás. A
onipresente barata nas ruas brasileiras é utilizada para representar a
persistência do artista do graffiti, que sempre vence nos exteriores (Manco,
2005:50; tradução minha).71
A lógica dos suportes
Em reportagem publicada no Jornal do Brasil72 sobre a prática do graffiti na
cidade do Rio de Janeiro, a jornalista Cleusa Maria assim desfecha o texto da
matéria: “Quando não tem suas obras apagadas em faxinas da prefeitura, esses
artistas urbanos humanizam o rosto tenso da cidade, desaceleram o ritmo das ruas
e derrubam, simbolicamente, os muros entre realidades tão distintas”. O trecho
involuntariamente remete à amplamente debatida “cidade de muros” de Tereza
Caldeira (2000) e seus “enclaves fortificados”, ou seja, “espaços privados, fechados
e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho que, sobretudo em
função do medo da violência, atraem as classes média e alta, enquanto a esfera
pública das ruas se destina aos pobres. Discutem-se ainda as inter-relações desta
realidade com as modernas concepções de planejamento urbano e arquitetura”.73
Caldeira, em artigo comparativo dos processos de segregação espacial em
São Paulo e Los Angeles, ainda assinala que “os muros vêm tornando cada vez mais
explícitas a desigualdade e as distâncias sociais, mas não são capazes de obstruir
totalmente o exercício da cidadania, nem de impedir os cidadãos pobres de
continuar a expansão de seus direitos”.74 Curiosamente, é nesses muros – que
determinam o limite entre o espaço público e os enclaves fortificados, e que
representam o maior emblema da segregação espacial nas grandes cidades
brasileiras – que muitos artistas de rua expõem suas manifestações. Agora as
modalidades migram do espaço público, deteriorado, para o interior dos enclaves
(da rua em direção a casa). Ainda segundo Caldeira, “A imagem dos enclaves opõese a da cidade, representada como um mundo deteriorado, permeado não apenas
71
Binho is one of São Paulo's original old-school writers and today plays a central role in advancing the
brazilian graffiti scene. He often paints under the name 3º Mundo (meaning 'third world'), usually
incorporating his trademark character – a cockroach wearing a gasmask into his pieces. The everpresent cockroach on the brazilian streets is used to represent the persistent graffiti artist, who always
wins out (Manco, 2005:50).
72
“A arte no meio da rua”. Cleusa Maria, Caderno B, Jornal do Brasil, 26/06/05.
73
Caldeira, 1997:155.
74
Idem:176.
86
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
por poluição e barulho, mas principalmente por confusão e mistura, ou seja,
heterogeneidade social e encontros indesejáveis”.75 De alguma forma, os domicílios
urbanos sempre receberam elementos baseados na estética da exterioridade da
urbe, retirando-os da poeira e da fuligem das ruas e inserindo-os nas organizadas
arenas privadas de interação.
Para a compreensão mais precisa de como se dá a utilização do espaço
urbano por esses artistas plásticos, ou seja, como é a dinâmica dos suportes
preferencialmente empreendidos, é interessante recorrer às categorias de Harvey
(1982) relativas à constituição dos “ambientes construídos das grandes cidades”.
Segundo o autor,
O ambiente construído pode ser dividido em elementos de capital fixo a serem
utilizados na produção (fábricas, rodovias, ferrovias etc.) e em elementos de
um fundo de consumo a serem utilizados no consumo (casas, rua, parques,
passeios etc.). Alguns elementos, tais como as ruas e os sistemas de esgotos,
podem funcionar quer como capital fixo, quer como parte do fundo de
consumo, dependendo de seu uso (Harvey, 1982:87).
Os grafiteiros, por conta do tempo empreendido na elaboração de suas
obras, geralmente muito detalhadas e com a utilização de tintas de diversas cores,
costumam inserir seus trabalhos em ambientes urbanos constituídos por elementos
de capital fixo. No Rio de Janeiro, observamos que os principais suportes estão
situados nas adjacências de grandes vias rodoviárias (como as avenidas Brasil,
Presidente Vargas e Radial Oeste), nos muros que cercam as ferrovias dos ramais
da Central do Brasil, na zona portuária (os armazéns das Av. Perimetral), além de
pilastras de viadutos e outros alvos degradados.
Os locais mais procurados são
sempre aqueles nos quais se poderá concluir o trabalho sem pressões exteriores, ou
seja, sem grandes possibilidades de intervenções privadas ou policiais, o que não
significa dizer que muros residenciais não sejam alvos procurados.
Adesivos e estênceis são técnicas extremamente rápidas de colocação de
desenhos e estampas; nesse sentido, são mais versáteis e prescindem da
preocupação dos grafiteiros quanto aos percalços inerentes à confecção do
trabalho: nas duas primeiras modalidades, o trabalho já se encontra pronto,
devendo apenas ser rapidamente colado ou transferido através da técnica com tela
e tinta spray. Dessa forma, além de exteriores, os interiores de ambientes privados,
como banheiros de casas noturnas, bares, cinemas, ônibus etc., tornam-se alvos
dessas práticas.
A arte de rua como objeto de análise
75
Idem:160.
87
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
A escalada da arte urbana mundo afora foi acompanhada sempre de perto
por jornalistas, pesquisadores, artistas plásticos e curiosos. Inúmeras produções
literárias, com dados, fotografias e interpretações surgiram nesse contexto. Na
bibliografia, adiciono uma pequena listagem de trabalhos de interesse específico
sobre o assunto.
Aqui, porém, considero interessante destacar um trabalho
recente, intitulado Graffiti Brasil (2005), do artista e pesquisador inglês Tristan
Manco em parceria com outros artistas ingleses, Lost Art e Caleb Neelon. Segundo
entrevista ao site da Amazon Books (no qual o livro é comercializado), Tristan
expõe que o principal atrativo de pesquisar arte de rua brasileira é a sua
originalidade, uma vez que é muito diferenciada da produzida em outras metrópoles
do mundo afora. O autor explica que o que viu nas cidades brasileiras foi algo
diferente, tanto em estilo quanto em conteúdo. A improvisação para pintar com o
material e os recursos disponíveis levou os artistas brasileiros ao estado atual de
experimentação e criatividade que os singulariza dentro de uma rede mundial. Os
autores assim traçam o panorama da atual cena do graffiti brasileiro.
Na atual e vibrante cena, os artistas continuam a fazer sua parte na
excepcional história do graffiti brasileiro, ao passo que desenvolvem suas
trajetórias individuais. Os estilos continuam a aparecer, com artistas que
misturaram pichação e graffiti e desenvolveram o “grapicho” (um estilo híbrido
de escrita, combinando pichação e graffiti). Os artistas de rua reavivaram o
estêncil e outras antigas tradições de pôsteres. O ato de pichar um muro, a
princípio politicamente motivado, continua nos dias de hoje com o mesmo
espírito de desafio. Os recursos são otimizados, e o seu risco de ser preso,
sofrer uma brutalidade policial, humilhação é aumentado se você grafitar fora
das áreas toleradas. Aparentemente ninguém foi desestimulado por esses
entraves, e o graffiti aqui se transformou em um estilo de vida, um laço entre
os amigos e uma essencial liberdade de expressão (Manco, 2005:18; tradução
minha).76
Existe um grande acervo de matérias jornalísticas (muitas disponíveis na
Internet), brasileiras e estrangeiras, a respeito da arte de rua. Os recortes são
variados: percepções da sociedade civil acerca da atividade, entrevistas com os
praticantes, descrições de novas modalidades, medidas governamentais e outros. A
variedade de abordagens, levando em consideração os diferentes locais onde são
investigadas as informações, constitui um material que, como se pode observar na
exposição aqui apresentada, tem um considerável valor informativo e deve
continuar sendo visitado enquanto fonte de dados.
76
In today's vibrant graffiti scene, artists continue to play their part in Brazil's exceptional graffiti story
while taking their own individual paths. Styles continue to involve, with writers who have been mixing
pichação and graffiti to make grapicho (a hybrid lettering style combining graffiti and pichação). Street
artists have been reviving stencils and older poster traditions. The act of writing graffiti on a wall, which
was originally politically motivated, continues today with that same spirit of defiance. Resources are
stretched, and you risk imprisonment, police brutality, humiliation is much worse if you do graffiti
outside the tolerated areas. Still no one seems deterred, as graffiti here has become a vital lifestyle, a
bond between friends and an essential freedom of expression (Manco, 2005:18).
88
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Uma vez identificado que o fenômeno da arte de rua é mundial, preservadas
especificidades e modalidades próprias aos diferentes locais onde se desenvolve, a
proposta de uma pesquisa científica abrangente sobre o assunto dá a tônica da
relevância
da discussão aqui proposta. Para isto, devem ser levados em
consideração os principais desdobramentos sociais e espaciais dessas atividades no
Brasil e do seu conjunto específico de características. Isto visa, acima de tudo,
lançar luz sobre esse complexo movimento juvenil e, desta forma, garantir a
possibilidade
de
comparação
com
outros
registros
de
atividades
similares
desenvolvidas aqui e em diversos países.
Bibliografia
CALDEIRA, Tereza. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Revista
Novos Estudos, n.47, Rio de Janeiro, CEBRAP, março de 1997.
CARVALHO, M.A. Rezende de. “Cidade escassa e violência urbana”. Série estudos,
IUPERJ, n.91, Rio de Janeiro, 1995.
CHOMBART DE LAUWE, P.H. “A organização social no meio urbano”. VELHO, Otávio
(org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1967.
DA MATTA, Roberto. “Espaço - casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil”.
_______. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1991.
HARVEY, David. “O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente
construído nas sociedades capitalistas avançadas”. Revista Espaços e Debates, n.6,
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MAGNANI, José Guilherme. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia
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VALENZUELA, José Manuel Arce. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e
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ZUKIN, Sharon. “Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder”. In:
ARANTES, Antônio (org.). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000.
Bibliografia de interesse específico
89
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
GITAHY, Celso. O que é grafite. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999.
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RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, pichação & cia. São Paulo: Editora
Annablume, 1994.
Artigos e matérias jornalísticas
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param de formar novos grupos no Rio”. Cleusa Maria, “Caderno B” (capa) do Jornal
do Brasil, 26/06/2005.
“Decoração marginal: o grafite brasileiro sai das ruas e toma conta de paredes de
casas e apartamentos, conquistando um novo e bem remunerado espaço” (não
assinada). Revista Época, Editora Globo, n.377, p.82-85, 08/08/2005.
“Eles picham um país em que não acreditam”. Ricardo A. Setti, Coluna “No
Mínimo”, site Ibest, 24/02/2004.
“Grafite: Uma arte que é muito pichada”. Entrevista de Ziraldo com cinco grafiteiros
do Rio de Janeiro. “Caderno B” do Jornal do Brasil, p.b6-b7, 26/06/06.
“Subversão Visual: nova forma de intervenção urbana, o pós-grafite disputa espaço
com propagandas, políticos e anúncios de todo o tipo”. Lulie Macedo e João Wainer,
Revista da Folha, 10/10/2004.
ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA: reflexões sobre a reforma da Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro
90
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Andréa Ana do Nascimento77
Resumo
O Rio de Janeiro se destacou pelo programa de reforma policial Delegacia Legal,
que buscou proporcionar tanto mudanças estruturais como culturais no trabalho das
delegacias. A proposta era modificar a maneira de operar de uma delegacia de
polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e resgatar a função investigativa da
polícia através da padronização arquitetônica, técnica e operacional. No entanto, as
etnografias e as avaliações feitas sobre as Delegacias Legais indicam que, apesar
das mudanças já estarem em andamento, diversos aspectos da prática policial
tradicional ainda permanecem ativos. Dentre eles, podemos destacar o tratamento
desigual dado aos seus usuários. Durante a pesquisa, acompanhei as atividades de
uma Delegacia Legal priorizando o exame dos registros de ocorrência e, através da
observação participante, tive contato direto com os policiais e os usuários dessa
delegacia. A experiência permitiu identificar as formas de tratamento dadas aos
diversos tipos de ocorrências registradas e também aos diferentes usuários.
Aparência, nível de escolaridade e renda são elementos considerados na hora de
realizar o atendimento policial. Neste artigo – através de registros de ocorrência
relatados ao longo trabalho – apresento uma descrição e uma breve análise de
situações cotidianas de exclusão, discriminação e tratamento desigual dado aos
usuários das Delegacias Legais.
Palavras-chave: polícia civil, Delegacia Legal, reforma.
Abstract
Rio de Janeiro if detached for the program of police reform Legal Police station,
which it searched to provide as many structural changes as cultural in the work of
the police stations. The proposal was to modify the way to operate of a police
station, to characterize the attendance to the citizen and to rescue the investigative
function of the police through the standardization architectural and operational
technique. However, the ethnographies and the evaluations made on the Legal
Police stations indicate that, despite the changes already being in progress, diverse
aspects of the practical traditional policemen still remain active. Amongst them, we
can detach the different treatment data to its users. During the research, I followed
the activities of a Legal Police station prioritizing the examination of the occurrence
registers and, through the participant comment; I had direct contact with the
policemen and the users of this police station. The experience allowed to also
identifying the forms of treatment given to the diverse types of registered
occurrences and to the different users. Appearance, level of education and income
are elements considered in the hour to carry through the police attendance. In this
article - through registers of occurrence told to the long work - I present a
description and one brief analysis of daily situations of exclusion, discrimination and
different treatment given to the users of the Legal Police stations.
77
A autora é mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduada em políticas públicas de segurança e justiça criminal pela
Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora assistente do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito
e Violência Urbana (NECVU/UFRJ) e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF), e
participante do PRONEX. Moderadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
91
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Key words: Civil police, Legal Police Station, reformation.
Este trabalho é parte de uma reflexão iniciada com a pesquisa "Práticas
policiais, 'direitos humanos' e os processos de construção de cidadania: um estudo
92
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
sobre o Programa Delegacia Legal", coordenada pelo Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
e financiada pela FAPERJ.
Este artigo busca realizar uma análise sobre a reforma realizada na Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) através da implementação do Programa
Delegacia Legal (PDL). A proposta do Programa era melhorar a atuação policial
diante das novas demandas por segurança. Mais adiante, o Programa Delegacia
Legal
(PDL)
será
apresentado
com
mais
detalhes.
Neste
momento,
cabe
contextualizar brevemente o surgimento da Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro.
Em seu estudo sobre a Polícia do Rio de Janeiro, Holloway (1997) explicita
que o controle social deixou de ser exercido pelas hierarquias personalistas para ser
executado por uma autoridade impessoal das instituições estatais. Porém, o autor
demonstra que estas duas lógicas – a personalista e a impessoal – continuaram a
existir e a se complementar nas práticas policiais. Se, por um lado, temos uma
instituição impessoal e universal, por outro, constatamos que ela atua de forma a
reprimir as transgressões de regras que foram criadas pelas próprias elites políticas,
reafirmando assim a continuidade das relações hierárquicas da sociedade.
O inimigo da polícia do Rio de Janeiro era a própria sociedade – não a
sociedade como um todo, mas os que violavam as regras de comportamento
estabelecidas pela elite política que criou a policia e dirigia sua ação. Pode se
ver esse exercício de concentração de força como defensivo, visando proteger
as pessoas que fizeram as regras, possuíam propriedade e controlavam
instituições públicas que precisavam ser defendidas. Mas também se pode vêlo como ofensivo, visando controlar o território social e geográfico – espaço
público da cidade – subjugando os escravos e reprimindo as classes inferiores
livres pela intimidação, exclusão ou subordinação, conforme as circunstâncias
exigissem (Holloway, 1997:50).
Deste modo, percebemos que a criação do aparato policial veio para suprir
as necessidades de uma burguesia comercial brasileira e defender seus interesses,
ao invés de servir e proteger a sociedade como um todo. Naquele período, era
necessário manter o controle social dos indivíduos, salvaguardando a ordem
estabelecida pelas elites. Sendo assim, as elites brasileiras apropriaram-se de uma
instituição burocrática, a polícia, para atender aos seus próprios interesses,
contrariando a lógica das instituições burocráticas modernas que têm por base a
organização e a impessoalidade de suas ações.
À medida que a sociedade foi se tornando mais complexa, fluida e impessoal,
novas técnicas se fizeram necessárias para suplementar o controle dos
senhores sobre os escravos e para estender esse controle às crescentes
camadas inferiores livres. O novo Estado tratou de suprir essa necessidade, e o
sistema policial herdado do final do período colonial evoluiu para reprimir e
excluir aquele segmento da população urbana que pouco ou nada recebia dos
benefícios que o liberalismo garantia para a minoria governante (Holloway,
1997:251).
93
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Em seu trabalho, Kant de Lima (1995) demonstra como a polícia civil muitas
vezes atua arbitrando os conflitos através da sua discricionariedade. Em muitos
casos, os fatos ilícitos não são registrados e acabam sendo administrados pelo
próprio delegado. A polícia é que decide se determinado indivíduo é suspeito ou não
para a sociedade. Na maioria das vezes, essa suspeita decorre do status quo do
indivíduo e não de uma ação criminosa. A investigação da polícia é contaminada
pela vigilância da população, que busca selecionar, em um processo preliminar, os
possíveis criminosos, como demonstra o trecho a seguir:
Ao exercer as funções judiciárias, a polícia não atua simplesmente como
agente do sistema judicial, identificando os fatos criminosos previamente
tipificados (previstos) pela lei, tal como estipula a teoria jurídica brasileira. Na
realidade, a polícia “prevê” os fatos delituosos por meio de suposições relativas
ao caráter do delinqüente – os estereótipos [...] (Kant de Lima, 1995:8).
A contextualização acima aponta para alguns aspectos da atuação policial
antes da reforma proposta pelo governo do estado do Rio de Janeiro através da
implementação do Programa Delegacia Legal. Levantarei aqui algumas das
mudanças alcançadas pelo Programa e serão esclarecidos, de maneira mais
cuidadosa, alguns aspectos do PDL. Contudo, cabe ressaltar que muitos dos pontos
abordados sobre a questão de reforma da polícia, em que a PCERJ foi utilizada
como referência, aparecem também em outras polícias analisadas por autores como
Bittner, Bayley e Monjardet. Não há a pretensão de se fazer uma revisão minuciosa
destes autores, mas gostaríamos de tecer alguns comentários sobre determinados
aspectos da reforma, que podem ter pontos comparativos em relação aos trabalhos
dos autores mencionados. Lembramos que o caso brasileiro é atípico, pois temos
uma polícia dividida entre civil e militar, o que requer, em algumas situações,
cuidado com os cotejos com as polícias estrangeiras. Desta forma, ao longo do
texto, buscaremos confrontar o nosso “modelo de polícia” com outros estudados por
diversos autores.
O Programa Delegacia Legal
O
Programa
Delegacia
Legal
foi
implementado
com
o
objetivo
de
proporcionar uma mudança estrutural e cultural na forma de trabalhar das
delegacias. Para realizar tal propósito, foi criado um Grupo Executivo, formado por
delegados, policiais e outros profissionais e que é, até hoje, responsável pela
execução do PDL. Conforme o Plano Estadual, o objetivo do Programa é “mudar” a
94
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
forma de operar de uma delegacia de polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e
resgatar a função investigativa da polícia através da padronização arquitetônica,
técnica e operacional.
Modifica completamente a forma de operar de uma delegacia de polícia,
consistindo na transformação radical do desenho dos prédios, tornando-os
locais confortáveis e funcionais; na dotação de equipamentos de última
geração para todas elas; na modificação das rotinas; e na requalificação do
pessoal que nelas opera. Essas mudanças visam melhorar o trabalho policial
através de uma qualificação e utilização de novos recursos tecnológicos
aproximando os cidadãos da instituição. Desta forma as mudanças propostas
pelo Programa são a eliminação da carceragem, com a criação concomitante
de Casas de Custódia para abrigar os detentos; a contratação de um corpo de
funcionários não-policial responsável pela parte administrativa da delegacia,
assim como estagiários das áreas de psicologia, assistência social e
comunicação social para atendimento ao público no balcão; incorporação ao
espaço da delegacia de instituições como o Ministério Público, Juizado Especial,
Polícia Militar e Assistência Social; obrigatoriedade do uso de crachás e
gravatas, com o objetivo de facilitar a percepção de um ambiente de ordem,
respeito e distinção; identificação e visualização das ocorrências mediante o
controle em tempo real dos atos praticados, entre outras (Plano Estadual ,
2000).
O projeto teve início em março de 1999 com a implementação da primeira
Delegacia Legal do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, já conta com quase 80%
das delegacias de polícia seguindo este modelo.
A
partir
das
mudanças
propostas
pelo
Programa
Delegacia
Legal,
buscaremos demonstrar como isto afetou ou deixou de afetar algumas práticas
policiais cotidianas, especialmente naquilo que se refere ao tratamento dado à
população que busca os serviços da Delegacia Legal ou, ainda, que é conduzida a
ela por ter praticado algum delito. Para isso, consideraremos apenas uma das
delegacias pesquisadas, lembrando que a metodologia adotada foi a observação
participante e o acompanhamento de registros de ocorrência. Para facilitar a
compreensão do artigo, apresentaremos cinco situações que acompanhamos, e que
indicam a forma de tratamento que os policiais adotam em relação aos que
procuram a delegacia, considerando o perfil da vítima ou do autor. A delegacia
escolhida localiza-se na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, tida na
representação dos policiais como “Faixa de Gaza”, pois é próxima de duas vias de
muita movimentação e integra uma área de aproximadamente 65 favelas.
Começando do zero: as “mudanças” e as percepções sobre a reforma
trazidas pelo Programa Delegacia Legal
95
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que as informações apresentadas
aqui se referem apenas a uma delegacia pesquisada, descrita anteriormente. No
entanto, cabe dizer que, na maioria das delegacias estudadas, totalizando quatro
áreas geográficas (zona norte, zona sul, Centro e Região Metropolitana), as
situações e as formas de tratamento, que serão descritas mais adiante, são muito
semelhantes, variando em geral o tipo de delito e o perfil dos usuários de acordo
com a área.
Segundo Paes (2006), com a experiência atual do Programa Delegacia Legal,
dois modelos de delegacia passam a conviver; para distingui-los, não só pela
forma, mas também pelo conteúdo, as delegacias podem ser denominadas de
delegacia legal ou delegacia tradicional. No primeiro caso, encontram-se aquelas
que estão inseridas no Programa Delegacia Legal. No segundo, acham-se as que
ainda não estão inseridas no PDL. No entanto, neste último caso, é comum ouvir
por parte dos policiais que estas são delegacias convencionais ou, ainda, delegacias
“ilegais”, fazendo um trocadilho com o significado do termo, ficando estabelecida,
desta forma, uma separação entre os dois modelos de delegacia.
Para estabelecer uma contraposição dos dois modelos, mais uma vez
utilizamos o trabalho de Paes (2006), que faz uma descrição cuidadosa do modelo
convencional de delegacia. Creio ser fundamental tratar de alguns aspectos dessa
descrição, pois mais adiante apontaremos as “mudanças”, e só assim será possível
comparar os dois modelos. Segundo a autora, o atendimento inicial em uma
delegacia convencional é feito por um policial que, dependendo da situação e até
mesmo da delegacia, pode acumular algumas funções; estas vão desde o
atendimento ao público ou a telefonemas, passam pela orientação à população e
pelo registro de ocorrência, até o controle da carceragem.
O trâmite dos procedimentos da delegacia convencional inicia-se por um
policial que fica no balcão logo na entrada da delegacia para atender ao
público que demanda as atividades policiais. Na delegacia em que realizei a
maior parte da pesquisa de campo, esse policial estava responsável por
atender às ocorrências policiais (principal função a ele destinada), por atender
à maior parte dos telefonemas que são dirigidos à delegacia ou a alguém que
esteja necessitando de alguma informação, e por dirigir essas pessoas aos
setores que deveriam procurar na delegacia, caso fosse necessário. A chave da
carceragem da delegacia também ficava com esse policial do atendimento, de
forma que eram inúmeras as funções que ele acumulava (Paes, 2006:61).
Ainda segundo Paes, no caso da realização dos registros de ocorrências,
estes são feitos em um formulário-padrão preenchido em uma máquina de
escrever, e depois são encaminhados para o Setor Administrativo, onde são
96
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
protocolados e distribuídos para os Setores de Investigação da Delegacia, ou então
são encerrados.
Depois de encaminhados, os casos tornam-se VPIs (Verificação
Preliminar da Informação ou do Inquérito), e se convertem em uma espécie de
relatório preliminar, que pode vir ou não a se tornar um inquérito. Como indica
Kant de Lima, esta é uma prática informal institucionalizada.
Por ocasião da pesquisa, havia uma prática institucionalizada na polícia do Rio
de Janeiro destinada a evitar a supervisão do sistema judicial e da correição
policial. Em vez de um inquérito policial, o delegado abria uma investigação
preliminar, que era designada também pelas iniciais IP, que coincidiam com as
de Inquérito Policial. Essa investigação preliminar, com o nome de investigação
policial, era admitida em casos de sindicâncias administrativas que a polícia
era solicitada a efetuar em suas atividades de vigilância para esclarecer
oficialmente, por exemplo, a situação econômica de um indivíduo (Kant de
Lima, 1995:68).
Os setores de investigação costumam ser divididos por especializações
internas, tais como homicídios, roubos e furtos, entorpecentes, entre outros. A
delegacia deve dispor ainda de salas para tomar depoimentos ou realizar
interrogatórios.
Uma vez descrito o modelo convencional, podemos partir para o perfil do
modelo adequado ao PDL. Na medida do possível, tentaremos seguir a ordem que
Paes (2006) utilizou para descrever a delegacia convencional. As Delegacias Legais
iniciaram suas atividades começando do zero. Isto porque, segundo Paes (2006),
assim que uma nova delegacia é inaugurada, todos os procedimentos produzidos
pelo modelo anterior são encaminhados a uma Delegacia Especializada de Acervo
Cartorário para que continuem a ter andamento, zerando os registros de ocorrência
na nova delegacia legal.
Ao chegar a uma Delegacia Legal, a primeira impressão que se tem é a de
um ambiente limpo, iluminado e transparente. De fato, a reforma arquitetônica é
apontada como um elemento positivo tanto pela população quanto pelos policiais.
As Delegacias Legais contam com banheiros, telefones públicos e com um
atendimento diferenciado. Por esta razão, o atendimento inicial não é realizado por
um policial, mas sim por um estagiário de psicologia, serviço social ou outros. Ele é
responsável por fazer uma triagem dos casos e orientar a população; também
atende o telefone e direciona as ligações para os setores adequados. Se o estagiário
perceber que se trata de um caso de polícia, a vítima – ou utilizando uma
linguagem administrativa, o cliente ou o usuário da delegacia – é encaminhada
para o atendimento policial.
97
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
O policial que faz o registro de ocorrência de acordo com o Programa é o
responsável direto pela sua investigação. Dessa forma, não estão previstas pelo
Programa especializações como as que existem no setor de investigação da
delegacia tradicional, como um setor para homicídios, outro para entorpecentes etc.
O próprio policial é o responsável por conduzir a VPI (Verificação Preliminar da
Informação) e, se for o caso, o inquérito. Isto tudo é feito através de um sistema
informatizado e que se encontra em rede, tendo como propósito, além da circulação
da informação, manter um controle sobre a produtividade dos policiais, já que o
sistema permite que eles, assim como o Grupo Executivo, mantenham a fiscalização
sobre os registros de ocorrência realizados por esses mesmos policiais. Além disso,
a delegacia dispõe de uma sessão chamada SESOP (Seção de Suporte Operacional),
que deve desempenhar funções semelhantes às do setor administrativo da
delegacia tradicional, organizando e distribuindo os documentos dentro e fora da
delegacia.
Não podemos deixar de falar do SIP (Seção de Inteligência Policial). Esta
seção é a responsável pela qualificação dos presos e também tem acesso a
sistemas de informações que os outros policiais responsáveis pelos registros de
ocorrência não têm. A seção tira fotos dos detidos, lança no sistema, levanta a vida
pregressa e pode, através do acesso a diversos bancos de dados, cruzar
informações e identificar pessoas.
A Delegacia Legal não possui carceragem e, sendo assim, não existe um
policial oficialmente designado para o papel de carcereiro. O que há são duas celas,
onde os detidos não ficam por mais de 24 horas; após esse período, são
transferidos para alguma carceragem – na época da pesquisa, era a POLINTER
(Polícia Interestadual), localizada no bairro da Gamboa, próximo ao Centro. Na
verdade, segundo os policiais, a origem do nome Delegacia Legal vem dessa
mudança pois, segundo eles, a carceragem em delegacias é inconstitucional,
portanto, ilegal. Por isso, depois da implementação do Programa, muitos passaram
a chamar as delegacias convencionais de ilegais.
A Delegacia Legal conta ainda com a figura do síndico. Trata-se de uma
pessoa contratada pelo Grupo Executivo e que, assim como os estagiários, não é
policial. O papel do síndico é semelhante ao de um almoxarife, pois ele cuida de
toda a parte material da delegacia, desde a solicitação de itens como papel,
cartuchos para impressoras até a parte de pedidos de reparos em computador, arcondicionado, telefone, e demais necessidades da delegacia.
98
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Se formos analisar a reforma simplesmente pela sua proposta, poderemos
afirmar que, além de inovadora, ela é realmente muito positiva, pois tenta dar
conta não só dos aspectos objetivos que já destacamos – as mudanças
arquitetônicas, a informatização e a divisão das atividades – mas também de
aspectos subjetivos, como a sensação de transparência, o conforto e o atendimento
especializado.
No entanto, vendo cada um desses aspectos de perto e durante certo tempo,
é possível identificar que nem tudo funciona como o previsto. As resistências por
parte dos policiais em se adequarem às normas do Programa são muitas, como
veremos mais à frente.
Mais
uma
vez,
buscando
manter
uma
seqüência
na
descrição
do
funcionamento da delegacia, buscaremos expor os fatos seguindo a lógica da
exposição anterior. O atendimento inicial é realizado por estagiários de ambos os
sexos, em geral, oriundos da área de humanas, e supervisionados por um técnico
ou técnica já graduado/a. No entanto, depois de algum tempo de convívio,
pudemos perceber que essas pessoas passam a reproduzir algumas das práticas
ditas “tradicionais” da polícia. Dentre elas, destacamos o chamado “bico”. Na
linguagem dos policiais, a palavra pode indicar duas práticas diferentes. A primeira
delas refere-se ao segundo emprego, pois muitos policiais desempenham outras
atividades profissionais em seus dias de folga, as quais eles chamam de bico.78 A
segunda está vinculada à palavra chutar, bicar, dar um pontapé. Neste caso, para a
polícia, bicar seria “chutar”, num sentido figurado, a vítima ou o reclamante para
fora da delegacia. Isto ocorre quando a pessoa que deseja fazer um registro de
ocorrência é convencida a não fazê-lo sob diversas alegações. No caso dos
estagiários, eles podem convencer a pessoa de que sua queixa não é assunto de
polícia ou, ainda, que o fato não aconteceu na circunscrição daquela delegacia,
apesar de o caso poder ser atendido lá e posteriormente encaminhado à delegacia
mais próxima do ocorrido.
Existem ainda momentos em que a ordem de espera no atendimento pode
não ser respeitada, pois o policial liga para o atendente e pergunta quais são os
casos, e escolhe qual vai atender, sem considerar quem chegou primeiro. Essas
situações demonstram que, apesar de o atendimento inicial não ser realizado por
policiais, ele pode não ser muito eficiente em acolher a população, especialmente
nas situações em que reproduz atitudes comuns às dos policiais.
78
Bico. 4. Pop. Pequenos ganhos avulsos / ou tarefa adicional que os possibilita; biscate, galho. Mini
Dicionário Escolar Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
99
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Em alguns casos, as formas de realização do registro de ocorrência também
fogem às propostas do Programa, apesar de ele ser realizado pelos policiais do
Grupo de Investigação (GI). Na primeira delas, em geral, o policial que faz o
registro não é o mesmo que vai conduzir a investigação. Na verdade, existe um
grupo de policiais para cada passo de uma investigação na delegacia pesquisada.
Há um grupo de policiais responsável pelo atendimento ao público, aquele que faz,
portanto, os registros de ocorrência. Se o registro não for encerrado, existe um
outro grupo que cuida das VPIs, esclarecidas anteriormente, o que é uma herança
das delegacias convencionais. Na delegacia estudada, as VPIs são devidamente
separadas em pares e ímpares: as primeiras ficam sob a responsabilidade de um
policial, e as segundas, com outro. Existe ainda um policial designado para
trabalhar os inquéritos: pede prazo para o Ministério Público, ouve as pessoas,
dentre outras atribuições. Todas as divisões citadas indicam que essa delegacia não
está em conformidade com as normas do Programa.
Além dos aspectos supracitados, essa delegacia conta ainda com um GIC
(Grupo de Investigação Continuada), ou como o chamam ali, “Grupo de
Investigação
Complementar”,
que
é
composto
por
policiais
diretamente
subordinados ao delegado titular e, por isso, também conhecido como “Grupo
Íntimo do Chefe”. Tal grupo foi criado posteriormente à implementação do PDL pois,
segundo Paes (2006:91), “esse setor não conseguiu acumular as funções de
registro e investigação, ocasionando assim um grande acúmulo de investigações
sem andamento”. Na delegacia em questão, esse grupo possuía algumas
especializações semelhantes às de uma delegacia convencional: GIC de homicídios,
GIC de entorpecentes e um GIC que só realizava operações externas (prisões,
entrega de intimações etc.).
Cabe ressaltar que o GIC é geralmente composto por policiais novatos.
Estes, muitas vezes, têm escolaridade mais elevada do que a dos policiais mais
velhos, chamados “antigos” ou “cascudos” devido à sua experiência profissional.
Esta mudança tornou-se formal através dos recentes concursos que exigem nível
superior para cargos que antes eram exercidos por profissionais de nível médio,
dentre eles, o de investigador. Esse convívio nem sempre é harmônico. Os policiais
novatos acreditam estar mais atualizados e melhor preparados para o “combate”, e
acusam os mais velhos de serem preguiçosos e acomodados. Já os mais velhos
acreditam que os novatos são imprudentes e exibicionistas, pois cultuam o corpo e
adoram andar armados.
No caso da polícia norte-americana, Bittner (2003) indica que o quadro atual
desses funcionários oferece resistência às propostas de aumento de escolaridade.
100
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Segundo o autor, parece compreensível que os chefes, os capitães e mesmo os
policiais veteranos não fiquem contentes em ter que trabalhar com recrutas que os
ultrapassam em termos educacionais. Além disso, Bittner questiona a qualidade dos
profissionais que, apesar de terem se empenhado em receber o diploma
universitário, optam por uma profissão que exige apenas o nível médio de
escolaridade e na qual, na maioria dos casos, o que se aprendeu na faculdade não
parece ser útil para o trabalho policial.
A Seção de Inteligência Policial (SIP) é dotada de diversas ferramentas que
permitem a agilização de uma investigação. Ela é alimentada, em parte, pelas
informações colocadas pelos policiais que operam o sistema, mas elas nem sempre
são preenchidas de forma precisa pelos policiais ao realizarem os registros de
ocorrência. Muitas vezes, algumas daquelas de que os policiais dispõem são
qualificadas como ignoradas para que o registro possa ser feito de forma mais
rápida. Dados como local do crime, descrição do autor e outros detalhamentos não
são escritos corretamente. Os policiais do SIP possuem uma senha que dá acesso a
determinadas informações que os outros policiais não têm. Mas é comum, na
ausência do “sipeiro”,79 a senha ser deixada com outro policial da delegacia, que
verificará então os novos dados para ele e para os colegas. Nem mesmo o Grupo
Executivo
parece
ter
controle
sobre
essas
senhas.
Numa
das
situações
acompanhadas, um “sipeiro”, que havia sido transferido da delegacia pesquisada
para a DRFA (Delegacia de Roubos e Furtos de Autos), deixou sua senha com o
policial que assumiu o seu lugar; este, enquanto não solicitava a sua própria senha,
utilizava a do antigo operador. Ele ainda faz uso dela sem que o sistema bloqueie o
seu acesso.
Ainda em relação às senhas, alguns policiais, quando precisavam ausentarse da delegacia, pediam para um colega fazer registros em seu terminal; para isto,
deixavam a sua senha e o nome completo, de modo a parecer que ele estava lá
trabalhando quando, às vezes, não tinha sequer ido à delegacia. Assinar
documentos pelo colega, e até mesmo pelo delegado, era muito comum, prática
esta chamada de “Baixar o santo do delegado”.
Apesar de não haver uma carceragem nessa delegacia, quem ficava com as
chaves da cela era o “sipeiro”. Segundo ele, o fato ocorria porque sua sala era a
mais próxima das celas. Ele não parecia estar muito satisfeito com tal atribuição e
dizia que isso atrapalhava o trabalho por implicar um acúmulo de atividades e o
resgate da função de carcereiro. No que se refere ao papel do síndico, ele parecia
executar as funções de acordo com o previsto, porém, em algumas situações, ficava
79
Denominação dada ao policial que trabalha no SIP.
101
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
limitado pela falta de papel, tinta para impressão e o não-pagamento de alguns
serviços, como o do ar–condicionado, que era desligado pela empresa quando os
pagamentos estavam atrasados. De acordo com as informações dos policiais, todo o
equipamento eletrônico usado na delegacia é alugado, desde os computadores até o
ar-condicionado.
Segundo os delegados e os policiais, as mudanças administrativas propostas
tiveram que ser adaptadas às necessidades da delegacia. Uma delas é o fato de o
Programa Delegacia Legal prever que um mesmo investigador abarque todas as
funções, desde o registro até a investigação e a abertura do inquérito. Este foi um
dos problemas apontados pelos policiais que trabalham na Delegacia Legal, pois
não dá para realizar todas as investigações, já que ficam muito tempo na delegacia
fazendo vários registros de ocorrência.
Na
visão
dos
delegados
entrevistados,
cada
policial
tem
um
perfil
profissional diferenciado, mas isto não está previsto no Programa, ou seja, existem
policiais que têm mais habilidade para o trabalho realizado na rua, denominado de
"atividade fim", e outros são mais adequados ao trabalho burocrático, denominado
"atividade meio". Desta maneira, eles optam por manter o formato anterior ao
Programa, designando um policial para cada atividade.
Para muitos investigadores, o trabalho que realizam na delegacia não é
considerado de “polícia”, pois são, na maioria das vezes, conflitos entre “vizinhos”,
“marido que bate na sua mulher”, e outros semelhantes. Em casos como estes, eles
agem mais como árbitros do conflito, tentando resolver os problemas que, para
eles, “não são de polícia” ou, como gostam de chamar, são “a feijoada”. Eles
acreditam que trabalho de policia é prender bandido, e não resolver problemas
como estes.
Os investigadores deixam claro que sua função na delegacia depende do
relacionamento que cada policial tenha com o delegado titular. Cada delegado tem
um grupo de policiais de sua confiança que realiza as investigações determinadas
por ele, denominado Grupo de Investigação Complementar (GIC) ou, no jargão dos
policiais, “Grupo Íntimo do Chefe”.80 De fato, essa equipe trabalha diretamente com
o delegado e, no caso da delegacia estudada, possui nela uma posição diferenciada,
pois tem escala diferente e raramente os policiais que a ela pertencem são
empregados em trabalhos internos ou burocráticos; em geral, eles são os
responsáveis pela entrega de intimações, o cumprimento de mandados e as
apreensões de armas e drogas.
80
Como mencionado anteriormente, o GIC foi incorporado pelo Programa Delegacia Legal.
102
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
No que se refere ao perfil dos registros de ocorrência da delegacia estudada,
a maioria dos atendimentos está relacionada ao encontro e à remoção de
cadáveres, à apreensão de armas e drogas, à detenção de usuários de droga e, por
fim, aos roubos e aos furtos de celulares e carros. É importante ressaltar que boa
parte dessa demanda é trazida pela polícia militar.
Segundo os policiais, apesar de o Programa prever que todos os casos que
chegam à delegacia devem ser registrados, na prática, a decisão de se fazer um
registro de ocorrência depende do investigador. É ele quem decide se existe ou não
um fato ilícito. Na maioria das vezes, os policiais tentam não fazer o registro, ora
dizendo que o fato não aconteceu na área da circunscrição da delegacia, ora que o
ocorrido não é um fato ilícito. Em várias ocasiões também é feita pelos policiais
uma arbitragem entre as partes, sem que seja necessária a abertura do registro de
ocorrência.
Identificando algumas práticas policiais no Programa Delegacia Legal: a
administração institucionalizada de conflitos
Uma vez já tendo sido feitos diversos apontamentos sobre o Programa
Delegacia Legal, faz-se necessário agora o relato de alguns registros de ocorrência
que acompanhamos nesse período. O propósito da utilização de tais relatos é
demonstrar como a polícia atua ajustando-se não só à estrutura oficial e jurídica
legal, mas também às normas de uma sociedade hierárquica e desigual como é a
brasileira. Esta composição resulta no que Kant de Lima chama de ética policial, e
ela diz respeito a um conjunto de regras e práticas utilizado pela polícia: “A 'ética
policial' servia de fundamento para o exercício de uma interpretação autônoma da
lei e como tal imprimia à aplicação desta uma característica peculiar, própria das
práticas policiais.” (Kant de Lima 1995:65).
De acordo com Bayley (2003), apesar de a relativa eficácia para enfrentar
responsabilidades ser um aspecto importante, existem outros da atividade policial
que são fundamentais para compreender e avaliar o seu funcionamento. Dentre
eles, podemos citar o respeito à lei, a criação de confiança pública, as
demonstrações de simpatia e preocupação e o tratamento igualitário das pessoas.
Alguns destes aspectos são preteridos, às vezes, pelos pesquisadores, que preferem
avaliar o impacto das reformas policiais analisando apenas o aspecto quantitativo,
como os índices de resolução e a redução da criminalidade.
103
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Para Bayley (2003), se a resolução e o combate ao crime forem tomados
como as principais características da atividade policial, os dados institucionais
produzidos em relação a este tema não são de todo confiáveis. Isto acontece não só
porque pode existir um interesse institucional em prejudicar a transparência dos
mesmos, mas também devido a outros fatores, como a confiabilidade que a
população tem, ou não, na polícia. Por exemplo, quando a confiabilidade aumenta,
o
índice
de
registros
de
crimes
pode
aumentar
por
esta
razão,
e
não
necessariamente porque a criminalidade cresceu. E mesmo que esses dados sejam
confiáveis, eles medem o que a polícia faz – prender – e não o que ela alcança com
isso – a prevenção dos crimes.
As situações relatadas a seguir demonstram como a polícia pode, baseada
em sua ética, administrar de forma diferenciada conflitos semelhantes. O primeiro
caso refere-se a um “não-registro” de ameaça.
Tratava-se de um homem que havia sido traído pela mulher. Quando ele
descobriu, ligou para a mulher do amante de sua esposa e contou tudo para
ela. Depois disso, ele recebeu um telefonema do amante de sua esposa que o
ameaçou de morte. Ele revidou a ameaça dizendo que: "Bala trocada não dói".
No dia seguinte, uma pessoa que se identificou como policial ligou para ele
para tirar satisfação do que estava acontecendo. Ele falou com a esposa do
amante de sua mulher que disse a ele que já sabia do caso, e que a mulher
dele e o marido dela se encontravam no trabalho toda quinta-feira. O amante
era plantonista do Raio-X, e a mulher dele, que tinha plantões alternados, ia
toda quinta-feira ao hospital. Ele resolveu dizer para esposa que ia se queixar
dela para o diretor do hospital. Ela disse que, se ele fizesse isso, ia se ver com
ela. Ele ficou com medo das ligações e decidiu dar queixa. O inspetor teve um
trabalho enorme, mas conseguiu reverter a situação, de modo que o homem
desistiu de registrar a queixa. O inspetor disse para ele que, como ele havia
revidado a ameaça, teria que entrar no registro como vítima, mas também
como autor. Nesse caso, segundo o inspetor, isso iria ficar na ficha dele,
podendo prejudicá-lo futuramente. Além disso, ele aconselhou o homem a não
se queixar da mulher com o diretor do hospital. Segundo ele, não havia provas
de que os dois se encontravam lá, e ela poderia processá-lo por calúnia e ele
teria que indenizá-la. O desfecho foi que o homem foi embora da delegacia
sem fazer o registro. O homem aparentava ser humilde e ter uma escolaridade
baixa, pela forma que se expressava com o inspetor. Ele chegou à delegacia
sozinho e parecia bem determinado a fazer o registro mas, após uma longa
conversa com o inspetor, acabou desistindo. Não temos dados exatos sobre o
perfil do mesmo, pois o registro de ocorrência não foi realizado.
Neste caso, o ato de “bicar” foi bem aplicado pelo inspetor. Mas nem
sempre o policial consegue simplesmente dispensar o reclamante e não realizar o
registro. Fatores como escolaridade, perfil profissional ou financeiro e relações
pessoais do reclamante são considerados antes de se “bicar” a vítima. Podemos
perceber isto na situação descrita abaixo, na qual aparece mais uma circunstância
de ameaça.
O inspetor fez o registro porque um delegado conhecido dele havia pedido a
ele que atendesse ao caso. O reclamante era um arquiteto e havia sido traído e
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
ameaçado pela mulher. O amante da mulher era ex-policial e trabalhava no
mesmo lugar que ela em um cargo de confiança. A mulher era do Tribunal de
Justiça e tinha pai influente. O reclamante foi com uma advogada, que era
conhecida do delegado e amiga do inspetor que atendeu o caso, e ele permitiu
que ela (a advogada) relatasse o fato como achasse melhor. Toda vez que o
homem se propunha a falar diretamente com o inspetor, ele mandava o
homem esperar. Depois ele [o inspetor] falou para a gente que não ia dar em
nada, mas que fez o registro porque conhecia a pessoa que havia indicado a
doutora para ele atender. Creio que em outra situação ele não teria feito o
registro, ou teria tentado convencer o cara a desistir. Além disso, quando a
vítima se retirou, ele fez diversos comentários sobre a sexualidade do mesmo,
alegando que ele tinha levado chifre porque era homossexual.
Diante dessas duas situações que envolvem um mesmo tipo de delito – a
ameaça – percebemos que se mantém a prática de não se fazerem os registros, ou
mesmo de registrar o caso baseando-se no perfil da vítima e em suas relações
pessoais, o que ainda ocorre nessa delegacia. Além disso, a aplicação e o uso de
estereótipos e o tratamento dispensado às vítimas com base em tais fatores
também continuam em andamento. As pessoas primeiramente são classificadas por
critérios do policial, e só depois disso é que se dá andamento ou não ao registro.
Em um de seus trabalhos, Kant de Lima aponta, através da fala de um
delegado, esse tipo de classificação.
Quando um grupo de pessoas entra na delegacia, antes de ouvi-las, nós
enquadramos cada uma delas. Isso é uma coisa profissional, uma coisa de
perdigueiro. Após esse primeiro instante, vamos aperfeiçoando a imagem da
pessoa, mas a primeira coisa é “tirá-la”: temos de ver se os sapatos são caros
ou baratos, sujos ou limpos, se as solas estão gastas ou não, se as calças são
formais ou informais e de que tecido são feitas. Observamos o aspecto geral
da pessoa para ver se está alinhada ou em desalinho, se fez a barba
recentemente, se está bem alimentada, o estado dos dentes. [...] Observamos
então sua educação, sua experiência. Após observarmos todas essas coisas,
dirigimos algumas perguntas para obter informações. [...]” (Kant de Lima,
1995:53).
Quando há o envolvimento de autores de determinados crimes ou delitos, o
tratamento diferenciado também ocorre. Podemos observar isto nos dois casos que
se seguem, ambos acontecidos no mesmo dia e quase ao mesmo tempo, e nos
quais, de acordo com o perfil dos atores, a forma de tratá-los foi bem diversa.
Chegaram dois flagrantes do artigo 16 [usuário de drogas] na delegacia. O
primeiro deles se tratava de um jovem de classe média que foi pego com 31,4
gramas de maconha em tablete. Ele havia comprado a droga numa favela
próxima e, ao tentar embarcar, deu de cara com dois policiais militares que
faziam o policiamento no ônibus. Ele foi revistado e depois levado à delegacia.
Esse flagrante demorou muito, pois os policiais tiveram que levar a droga ao
Instituto Criminal Carlos Éboli de ônibus, pois não tinham viatura. Enquanto
isso, o rapaz ficou na delegacia conversando com o policial militar, com o
inspetor que atendeu ao seu caso e conosco. O rapaz tinha 22 anos, morava na
Taquara e estava no 5º período de Educação Física. Ele conversou muito, e os
policiais perguntaram a ele porque ele usava drogas. Ele respondeu que
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
gostava e que a droga o ajudava a estudar, além de deixá-lo relaxado. Disse
também que os policiais só o pegaram porque ele estava lerdo, pois havia
fumado um baseado antes de entrar no ônibus.
O rapaz contou sobre sua vida, dizendo que iria chegar atrasado ao trabalho,
pois fazia recreação e dava instrução de esportes radicais em um hotel-fazenda
em Piraí. Ele distribuiu para todos uns panfletos do hotel. Disse que seu pai
tinha um quiosque na Prainha, chamado Quiosque do “B”, e que quando
quiséssemos podíamos ir lá tomar uma cerveja. Ele disse que não queria
assinar o termo para comparecer no JECRIM, e o inspetor explicou a ele que
era melhor fazer isso, pois caso contrário seria preso. Ele concordou, e o
inspetor explicou que por causa disso ele não poderia tentar concurso público.
Eles conversaram mais um pouco sobre os efeitos da maconha e, depois disso,
o inspetor decidiu ir lá fora fumar, e orientou o rapaz a não tentar fugir. Ele
ficou algum tempo na DP, e depois foi lá fora fumar junto com o inspetor e
com o policial militar.
Ao mesmo tempo, outro flagrante acontecia. Era também um artigo 16, em
que dois jovens foram pegos com 13,7g e 25 gramas de maconha,
respectivamente. Os dois estavam juntos e foram pegos na estação de trem da
zona norte por policiais militares do serviço reservado. Eles viram os rapazes
embarcarem na estação de trem e, quando estes desembarcaram na outra
estação, foram abordados e revistados, e depois conduzidos para a delegacia.
O primeiro deles era um paraibano com primeiro grau incompleto e sem
ocupação. O outro era um jovem negro também com primeiro grau
incompleto, sem ocupação e com duas anotações criminais no artigo 157
[roubo], mas que estava ainda aguardando providências. Quando chegaram,
foram imediatamente levados para a cela e em nenhum momento foram
chamados lá na frente para serem ouvidos. Quem fez esse registro foi outro
inspetor, que ficou um bom tempo conversando com os policiais militares
enquanto aguardava o laudo.
O ponto importante deste relato é a diferença de tratamento dada ao rapaz
de classe média em relação aos dois rapazes de classe mais baixa que foram
detidos pelo mesmo artigo. O primeiro entrou pela porta da frente da DP e ficou à
vontade, podendo circular dentro e fora da DP e conversar tanto com os PMs quanto
com o inspetor. Os últimos entraram pela porta de trás, foram direto para a cela e
em nenhum momento ouvidos, ao contrário, foram chamados apenas para assinar o
papel dizendo-se para eles que falariam em juízo. O inspetor combinou isto com os
policiais militares para que o registro fosse feito mais rapidamente.
Os casos citados apontam que a estrutura da Delegacia Legal, ao menos
nesta delegacia, não parece ter rompido com os velhos preconceitos e com o
universo relacional que beneficiam uns e prejudicam outros. O que se pode
observar é que, por um lado, ao aplicar a lei de forma desigual na sociedade, a
polícia mantém que alguns criminosos ou vítimas não se beneficiem dos princípios
constitucionais
igualitários e, por outro lado, aplica
os mesmos princípios
igualitários a camadas média e alta da sociedade, restabelecendo a sua convicção
no sistema político, jurídico e social brasileiro.
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Kant de Lima demonstra que as práticas policiais estão relacionadas ao
paradoxo legal brasileiro, no qual a ordem igualitária é aplicada de maneira
hierárquica.
No Brasil uma ordem constitucional igualitária é aplicada de maneira
hierárquica pelo sistema judicial. Diferentes tratamentos legais são
dispensados às mesmas infrações, dependendo da situação social ou
profissional dos suspeitos enquanto aguardam o julgamento, e até depois de
condenados, os réus são submetidos a regimes carcerários diferentes, mesmo
que tenham cometido crimes da mesma natureza (Kant de Lima, 1995:01).
Diante desses fatos, e considerando o contexto geral da pesquisa, é possível
constatar que determinadas práticas policiais anteriores ao Programa Delegacia
Legal, das quais destaco o tratamento diferenciado dispensado às vítimas e aos
autores de crimes, continuam sendo operadas da mesma forma. Apesar da reforma,
não ocorreu uma transformação dessas práticas policiais.
Fica claro ainda que não existe um padrão para o atendimento dos registros
de ocorrência. Além disso, essas práticas desiguais de atendimento reforçam a idéia
de que existem sujeitos criminosos e outros que, embora tenham cometido um
crime, são de difícil enquadramento como criminosos conforme o sistema de
classificação policial. Em sua tese de doutorado, Misse (1999) trata dessas
situações, as quais ele chama de sujeição criminal e que está relacionada à
identidade que é atribuída a alguém, como essa identidade é interpretada
publicamente e o como o sujeito dessa sujeição percebe a sua própria identidade. A
sujeição criminal distancia, separa e autonomiza os indivíduos. Desta forma,
percebemos que no caso do rapaz de classe média a sujeição criminal não se
concretiza, pois a polícia pode percebê-lo como desviante e ele aceita esse rótulo,
mas nem a polícia o identifica como criminoso, nem o próprio jovem assim o faz.
Já no que se refere aos outros dois rapazes, a identidade atribuída a ambos
pela polícia é a de criminosos, não só pela sua posição social, como também pela
identidade pública de um deles, que já tinha ficha na polícia. Assim, o tratamento
dispensado a eles não se baseia somente na situação atual, mas tem uma
referência no passado; além disso, ambos aceitam sem reclamar o tratamento
oferecido pela polícia, reforçando sua sujeição.
Inicialmente, o tratamento diferenciado pode parecer um desvio do que se
espera da polícia. No entanto, esse tipo de interpretação da lei e, em conseqüência,
essa forma de ação não são características unicamente brasileiras.
De acordo com Monjardet (2003), toda organização comporta duas faces:
um lado formal (estrutura, organogramas, recursos humanos e materiais, regras
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
etc.) e outro lado informal, que é o conjunto dos comportamentos e das normas
observáveis, segundo as quais a organização realmente funciona. Para o autor, o
lado informal não designa um desvio.
Assim a noção de organização informal à primeira vista não designa um
desvio, mas simplesmente o fato de que todo o processo de trabalho
organizado necessita de interpretação e adaptação das regras, no caso,
negociação e compromisso; e que ela nunca funciona, portanto, em
conformidade perfeita com as normas que supostamente a dirigem, mesmo
quando estas não são contraditórias (Monjardet, 2003:41).
Gostaríamos de encerrar este ponto da discussão citando mais uma situação
presenciada nessa delegacia, onde um homem tentou enganar um inspetor fazendo
um falso registro de ocorrência.
Ele chegou à delegacia dizendo que seu Fiat havia sido roubado. Como o carro
era muito velho, o inspetor desconfiou e perguntou a ele qual era a história
verdadeira. O rapaz contou que havia vendido o carro, mas o comprador não
havia passado o veículo para o seu nome, e vinha cometendo infrações de
trânsito que caíam no nome do antigo proprietário. Um amigo sugeriu a ele
que fizesse o registro de roubo para não ter que arcar com as multas. Ele foi
então até a DP para fazer o falso registro. O inspetor brigou com ele, e disse
que iria prendê-lo, pois fazer registro falso de ocorrência é crime. Mas como o
cara tinha família e o caso não era tão sério assim, ele decidiu colocar o rapaz
de castigo. E de fato fez isso, colocou-o na salinha do síndico sozinho, sentado
numa cadeira e olhando para parede e disse que ele ia ficar de castigo ali até o
dia seguinte, e lá ele ficou até aproximadamente 1 hora da manhã, segundo
nos informaram. O inspetor orientou que se alguém perguntasse a ele o que
estava fazendo ali, era para ele dizer que estava de castigo.
Ao tratar da polícia, Kant Lima, através de relatos e histórias contadas pelos
próprios policiais, nos lembra que a polícia tem uma ética que orienta suas ações.
[...] Há muito tempo atrás, esse delegado estava passando pela rua de uma
pequena cidade do interior do estado, na qual estava lotado, quando
encontrou casualmente um conhecido. Num tom entre polido e paternalista,
tratando-o de “meu filho”, perguntou-lhe como estava passando. O conhecido
respondeu que estaria passando bem se não fosse uma dolorosa infecção de
um de seus dedos do pé, que o estava incomodando terrivelmente. O delegado
disse que sentia muito, que toda doença é uma má notícia. O doente disse que
o dedo estava doendo tanto que ele gostaria de se livrar dele; gostaria que o
delegado desse cabo do dedo acertando-lhe um tiro. O delegado não hesitou:
pegou o revólver e acertou o dedo do homem. Este ficou sangrando e
apavorado. Ao reclamar do que o delegado tinha feito, este retrucou-lhe que
só tinha satisfeito um pedido dele, que era, portanto, o único responsável pelo
ocorrido. O delegado insistia que só tinha lhe prestado um favor. A moral
dessa história de advertência era: se você não tiver a firme intenção de
exprimir alguma coisa, não diga a um policial. A polícia pode sempre reagir de
maneira inesperada (Kant de Lima 1995:137).
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Ainda segundo o mesmo autor, somente a polícia tem controle de
suas ações. Ela não respeita a diferença e a transforma em anormalidade.
Para conseguir relacionar-se com a polícia, você tem que entender a sua
ética, ter certeza do que diz para ela.
Considerações finais
Ao analisarmos a forma com que os procedimentos de registros são
realizados nas delegacias legais, percebemos que eles são orientados por uma
lógica anterior à reforma. Essa lógica ou forma de agir da polícia possui uma ética
própria que deve ser considerada ao se lidar com a Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro.
Kant de Lima (1999) nos lembra que alguns procedimentos policiais –
sempre ameaçados por ilegalidades, mas tachados de desvios – na verdade
aparecem com certa regularidade que aponta para a sua consistência.
Assim a regulação da tortura de acordo com a gravidade da denúncia ou
queixa, e conforme a posição social dos envolvidos; a permissão da
participação dos advogados nos inquéritos também de acordo com a posição
que estes especialistas ocupam nos quadros profissionais; o registro – ou não
– das ocorrências levadas ao conhecimento da polícia; a qualificação e
tipificação – ou não – das infrações e crimes registrados e a abertura de
investigações preliminares, que levam, ou não, ao arquivamento ou ao
prosseguimento do inquérito policial; tudo isso, de acordo com interesses
manifestamente particularistas são, sem dúvida, algumas dessas práticas
institucionalizadas (Kant de Lima, 1999:30).
Desta forma, cabe dizer que algumas mudanças propostas pelo PDL, tais
como a inovação tecnológica, a normatização dos procedimentos e a mudança na
estrutura física da delegacia, não foram suficientes para que os policiais aderissem
ao Programa Delegacia Legal. Nem mesmo essas mudanças em si parecem estar
garantidas pois, segundo as obvervações realizadas ao longo deste trabalho,
diversos aspectos do Programa funcionam de forma diferente da prevista
originalmente. Alguns deles foram incorporados ao Programa, como a criação do
GIC; outros, como o controle dos dados que entram e saem do sistema, nem tanto.
O próprio controle que o PDL busca ter em relação às atividades policiais falha ao
não conseguir racionalizar o uso das senhas e das informações pessoais. No
entanto, cabe dizer que tudo o que é registrado de forma equivocada ou incompleta
pode ser alvo da Corregedoria, mas enquanto este trabalho era realizado, isto não
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
foi presenciado pelos pesquisadores. Ao contrário, todas as correições foram
comunicadas com antecedência ao delegado e à sua equipe, que na semana
anterior se dedicava em deixar “tudo no esquema” para a visita do corregedor.
Além disso, percebemos que a polícia atua se orientando por valores
paradoxais presentes na sociedade brasileira. Se, por um lado, esses valores
garantem igualdade jurídica, por outro, concretizam-se de forma desigual,
baseando-se nas diferenças sociais, econômicas e culturais entre os indivíduos. Isto
permite que entrar pela “porta da frente ou de trás” de uma delegacia não esteja
necessariamente relacionado ao fato de se ter cometido ou não um delito ou crime,
mas sim a quem cometeu essa ação.
Por fim, ao que tudo indica, há uma prática policial que não se encaixa
nesse novo modelo teórico e prático proposto pelo PDL, apesar de o Programa
disponibilizar a capacitação e a atualização dos policiais para atuarem de acordo
com ele. Kant de Lima (2003) comenta que não basta só formar os policiais que
entraram para a polícia recentemente, pois estes poucos (em relação à totalidade
de policiais no Brasil) fariam pequena diferença, mesmo a médio prazo. Segundo
ele, o desafio é formar policiais já "formados", ou seja, desconstruir paradigmas de
pensamento e ação para que os policiais possam atuar com a concepção de que
todos os cidadãos, inclusive os policiais, são sujeitos de direitos e destinatários da
proteção da polícia.
Nesse sentido, faz-se necessário perceber que existem duas racionalidades
coexistentes e antagônicas em um mesmo ambiente da Delegacia Legal. Neste
caso, explicitar os conflitos e as resistências referentes ao Programa Delegacia
Legal talvez seja uma boa maneira de iniciar uma mudança mais profunda e que
tenha a adesão de parte dos policiais.
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