Vol. 7 (1) - Mar-2008 - Revista Enfoques
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Vol. 7 (1) - Mar-2008 - Revista Enfoques
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Enfoques – Revista dos alunos do Programa Pós- Graduação e Eletrônica Antropologia PPGSA/IFCS/UFRJ de em Sociologia ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor: Aloísio Teixeira Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas CFCH/IFCS Diretor: Jessie Jane Vieira de Sousa Vice-Diretor: Glaucia Kruse Villas Bôas PPGSA – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Coordenadora: Emerson Giumbelli Vice-Coordenador: Elsje Maria Lagrou ENFOQUES – ONLINE Editores: Ana Paula da Silva Andréa Lúcia da Silva de Paiva Bernardo Curvelano Freire Diego Alves Janayna Alencar Lui Renata de Sá Gonçalves Raphael Lima Roberta Guimarães Ronald Clay dos Santos Ericeira Thais Schettino Conselho Editorial Prof. Dr. Amir Geiger (UERJ) Prof. Dr. André Botelho (UFRJ) Profª Drª. Bila Sorj (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Carlos Antonio da Costa Ribeito (UERJ) Profª Drª. Elisa Pereira Reis (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Fernando Ponte de Sousa (UFSC) Prof. Dr. Frederico Guilherme Neiburg (Museu Nacional/UFRJ) Profª Drª. Giralda Seyferth (Museu Nacional/UFRJ) Profª Drª. Gláucia Villas Boas (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Icléia Thiesen (UNI-RIO) Prof. Dr. José Maurício Domingues (IUPERJ/UCAM) Prof. Dr. José Reginaldo Gonçalves (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. José Ricardo Pereira Ramalho (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Laura Moutinho (PUC-RIO) Profª Drª. Laura Segatto (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Leopoldo Waizbort (USP) Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva (IFCS/CFCH/UFRJ) 2 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Profª Drª. Lygia Sigaud (Museu Nacional) Prof. Dr. Marcílio Dias dos Santos (CFH/GCSO/UFSC) Prof. Dr. Marco Aurélio Santana (PPGSA/UFRJ) Prof.ªDrª. Maria Lígia de Oliveira Barbosa (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Michel Misse (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Mirian Goldenberg (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Patrícia Birman (UERJ) Prof. Dr. Paulo Tumolo (UFSC) Profª Drª. Patrícia de Farias (Universidade Cândido Mendes) Prof. Dr. Paulo Henrique Freire Vieira (CFH/PPGSP/UFSC) Prof. Dr. Peter Fry (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Renan Springer de Freitas (UFMG) Prof. Dr. Rodrigo Rosistolato (FE/UFRJ) Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Ruben George Oliven (UFRGS) Profª Drª. Vera Teles (USP) Comissão de Publicação André Filipe dos Santos Denise Pereira Eliska Altmann Gabriela Honorato Maria Izabel dos Santos Garcia Natalia Morais Gaspar Enfoques On-Line – revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Organização: Ana Paula da Silva Andréa Lúcia da Silva de Paiva Bernardo Curvelano Freire Diego Alves Janayna Alencar Lui Renata de Sá Gonçalves Raphael Lima Ronald Clay dos Santos Ericeira Thais Schettino Revisão de textos: Malu Resende Criação da Logomarca: Luiz Augusto de Souza Carneiro de Campos (Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro) 3 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ____________________ ENFOQUES on-line: Revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. - V.7, n.1 (Março, 2008). - Rio de Janeiro: PPGSA, 2008. Irregular. ISSN 1678-1813 1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Endereço para correspondência e assinatura: Mailling address subscriptions Revista dos alunos do PPGSA – Comissão Editorial Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Largo de São Francisco, nº 1, sala 420. Centro – Rio de Janeiro – RJ – 20051-070 e-mail: [email protected] SUMÁRIO 4 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Apresentação 06 “DEMOCRACIA NO DEMOCRATA?”: Travestis e relações de gênero em 08 um prédio do Centro do Rio de Janeiro SAPINHAS, BIBINHAS E TIAS: sexualidade, geração e vestuário 18 como formas sociais de distinção identitária REPRESENTAÇÕES DO PENSAMENTO SOCIAL ACERCA DO 34 CASAMENTO INTER-RACIAL ONDE ESTÁ O PLURALISMO: manifestações da religião na metrópole 50 GRAFFITI, PICHAÇÃO E OUTRAS MODALIDADES DE INTERVENÇÃO 73 URBANA: caminhos e destinos da arte de rua brasileira ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA: reflexões sobre a reforma da 91 Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro 5 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ APRESENTAÇÃO Nesta sétima edição da Revista Enfoques on-line – Revista dos alunos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – apresentamos algumas novidades, como a mudança de configuração de página e de normas de publicação. Com exceção do número 5, que foi dedicado exclusivamente às relações de trabalho, a pluralidade de temas tem sido um marco da revista. Entretanto, nesta sétima edição, temos “um encontro” de dois temas centrais que percorrem as discussões do campo sociológico e antropológico: a questão do “espaço” e da “identidade” na contemporaneidade. As temáticas racial, de gênero, religiosidade, arte e trabalho, articuladas criativamente nos artigos, buscam compreender como determinados grupos organizam-se e revelam-se por meio de suas práticas e representações. Renata Franco Saavedra toma como recorte espacial um edifício do Centro do Rio de Janeiro a fim de analisar a dinâmica das relações de gênero produzidas e reproduzidas entre os moradores, pondo ênfase nas auto-representações dos travestis que habitam o local. Carlos Eduardo Henning, a partir de pesquisa etnográfica, busca debater questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que dão coesão a um grupo estudado, mostrando assim os critérios de hierarquias, o compartilhamento de vivências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo e a importância do vestuário. Zelinda dos Santos Barros procura demonstrar de que forma se opera o conceito de raça em nossa sociedade e a persistência da interdição do casamento entre indivíduos considerados racialmente diferentes, tendo como foco de análise as representações do pensamento social acerca do casamento inter-racial. 6 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Edlaine de Campos Gomes propõe-se a mostrar como as formas de exercício da religiosidade extrapolam os espaços construídos e identificados como apropriados às práticas religiosas. A autora demonstra que “a evidência religiosa” está nas pessoas e nos objetos que percorrem diversos espaços e situações. David da Costa Aguiar de Souza tem por objetivo analisar o panorama da arte de rua (street art) brasileira, descrevendo as modalidades e as técnicas encerradas neste conceito, cuja expressão mais divulgada é o graffiti. O autor busca apontar os principais desdobramentos sociais e espaciais dessas atividades no Brasil, além do seu conjunto específico de características. Andréa Ana do Nascimento discute a reforma da Polícia Civil do Rio de Janeiro a partir do programa Delegacia Legal (PDL). Traz as problemáticas envolvidas em campo entre a teoria e a prática, com base na experiência em campo que permitiu à autora identificar as formas de tratamento dadas aos diversos tipos de ocorrências registradas e também aos diferentes usuários. Desejamos uma boa leitura a todos. 7 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ “DEMOCRACIA NO DEMOCRATA?”: Travestis e relações de gênero em um prédio do Centro do Rio de Janeiro Renata Franco Saavedra1 Resumo Ao tomar como recorte espacial um edifício do Centro do Rio de Janeiro, o artigo analisa a dinâmica das relações de gênero produzidas e reproduzidas entre os moradores, pondo ênfase nas auto-representações dos travestis que habitam o local. À luz de um contexto em que se observa a complexificação do gênero como elemento de auto-identificação, pretende-se abordar as dinâmicas microssociológicas que, construídas através das práticas e dos discursos cotidianos dos atores em foco, põem em relevo a transitoriedade das categorias de gênero e seus potenciais como produtores de posições sociais. Palavras-chave: relações de gênero; travestis; interacionismo. Abstract “Travestis” and gender relations in a central building in Rio de Janeiro. Taking as a contour a building in the Center of Rio de Janeiro, the article analyses the dynamics of gender relations produced and reproduced among the residents, emphasizing the self-representations of travesties that live there. By the light of a context of a 1 Graduanda de comunicação social (jornalismo) pela ECO/UFRJ. Graduanda de história pela UNIRIO. Bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq 8 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ complexification of gender as an element of self-identification, we intend to approach the micro-sociological dynamics that, built through everyday life practices and discourses of the actors studied, highlights the transitoriness of gender categories and its potential as producers of social positions. Key-words: gender relations; travesties; interactionism. Só veste calça apertada Para mostrar os quadris. Usa baton, base e diz Que soutien lhe agrada Mantém a unha pintada Adora um cílio postiço, Eu mesmo não gosto disso Mas se o sujeito quer Fazer papel de mulher Ninguém tem nada com isso.2 Introdução: entrando no Edifício Democrata Em abril de 2006, mudei-me para o Edifício Democrata, prédio com 237 imóveis situado à Rua do Senado, no Centro do Rio de Janeiro. As eleições para síndico estavam próximas, o que causava um rebuliço evidente mesmo aos recémchegados, como era o nosso caso – meu e de meu marido. Logo presenciamos o primeiro de muitos episódios que evidenciariam o potencial do prédio como “laboratório antropológico”: fomos abordados pelo candidato a síndico. Nessa breve conversa soubemos que havia no prédio um conflito de interesses que dividia os moradores: o candidato que nos abordou representava a oposição, que objetivava impor mais regras ao condomínio e abolir as práticas de prostituição de mulheres e travestis que ocorriam no prédio e, segundo ele, eram acobertadas pelo síndico. Um ponto crucial dessa conversa foi o comentário, feito pelo candidato a síndico, de que provavelmente não moraríamos ali por muito tempo, dado o nosso “biótipo”. Lançando mão de estereótipos, poderíamos dizer que meu marido e eu somos clássicos estudantes universitários oriundos da classe média tijucana,3 de pele clara, vocabulário polido e gestual discreto. Assim que nos mudamos, éramos freqüentemente confundidos com “gringos”. Cabe destacar que esse mesmo 2 MONTEIRO, Manoel. A revolta dos pretos, das putas, dos gays, dos pobres,... Academia Brasileira de Literatura de Cordel. 3.ed., Campina Grande, Paraíba, Brasil, dez. 2005. 3 A Tijuca é um bairro de classe média, situado na zona norte do Rio de Janeiro e conhecido por seu acentuado conservadorismo. 9 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ indivíduo que ressaltou a incompatibilidade de nossas características físicas com o local é um homem branco e de olhos azuis, cuja filha estuda em um colégio de classe médio-alta conhecido por sua qualidade e por suas altas mensalidades. Estávamos, portanto, ouvindo ali o que já havíamos escutado de minha família e de tantas outras pessoas de nosso círculo social predominantemente tijucano: aquele não era o nosso lugar. Embora extremamente respeitados, éramos uma espécie de intrusos. Havia um claro estranhamento quando entrávamos nos botecos das proximidades, especialmente se eu estivesse sozinha. Confirmava-se assim a forte associação do Centro do Rio de Janeiro a uma imagem degradada. Bairro de “putas e bandidos”, ao Centro não basta passar pela revitalização que atualmente atinge algumas de suas áreas circunvizinhas, não basta ter seus imóveis valorizados ou a Lapa lotada de jovens da zona sul. O Centro, segundo o que ainda fortemente predomina no imaginário espacial carioca, em especial da zona norte, é por definição sujo, degradado, perigoso – cabe ressaltar que não me refiro às imediações periféricas do bairro caracterizadas por um reenobrecimento atual, tais como a Lapa ou a Glória. Esta questão permeia uma série de outros trabalhos e mesmo a literatura brasileira contemporânea (Ver, e.g., Fonseca, 1992). Curiosa em relação à dinâmica do condomínio, que me parecia a cada dia mais interessante, encontrei na reunião para eleição do síndico a confirmação do que me havia dito o candidato. Havia uma clara divisão entre os que gostavam do síndico e os que desejavam retirá-lo do cargo a todo custo. Poucas pessoas detinham inúmeras procurações que lhes permitiam votar em nome de outros apartamentos – às vezes tinham direito a mais de 30 votos, enquanto nós, sendo locatários sem procuração, a nenhum. Mesmo com orçamentos mal-justificados e aparentes casos de fraude, o síndico foi reeleito (pela segunda vez), o que provocou a fúria de alguns, dentre eles uma mulher que bradou, exibindo um “classificado erótico”, que os condôminos estavam compactuando com “aquilo”. A “favela vertical” – expressão usada por alguns moradores da zona norte para caracterizar o edifício – mostrou-se, então, morada de famílias conservadoras, senhoras religiosas, crianças e cachorros que usavam roupinhas. Assim, finas paredes separavam universos tão distintos e tão distantes, da avó religiosa à travesti que faz programa, enquanto muitos corredores uniam esses mesmos universos. Se, saindo de casa, eu cruzava com uma travesti no elevador, voltando poderia encontrar um casal de Nova York que não fala português. Remetidos ao clássico trabalho de Gilberto Velho, A utopia urbana, nós nos deparamos com mais uma situação que entrelaça contextos absolutamente diferentes, e reúne, em alguns metros quadrados, quilômetros de visões de mundo (Velho, 1975). 10 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Mas por que, nesse complexo de atores sociais tão diversos, o desejo específico de estudar as travestis? A principal justificativa, além do antigo interesse pelas questões de gênero e desvio, é o fato de o discurso desses atores não estar presente no cotidiano do prédio. De maneira geral, tenho acesso a muitas opiniões dos moradores “não-travestis”, tanto héteros como homossexuais, dos porteiros, dos faxineiros etc. Por eles, creio ser vista como uma figura inofensiva, e geralmente sou bem recebida. Já as travestis vivem “escondidas”: não participam das reuniões de condomínio, não “puxam conversa” no elevador, não olham nos olhos – comportamento compreensível e até esperado de indivíduos que sofrem a discriminação que permeia seus cotidianos.4 Certamente, essa mesma inacessibilidade que aguçou minha curiosidade foi também um grande obstáculo ao meu trabalho de campo. Diferente dos outros moradores e funcionários, para elas – travestis – não sou inofensiva. Nas primeiras tentativas de aproximação percebi ser vista como uma espécie de “inimiga”.5 Fui bastante evitada; embora marcassem encontros, deixavam de ir; eram simpáticas, mas falavam pouco e rápido, sempre com aparente desconfiança. Objetivos: entrando nos apartamentos Depois de muitas tentativas frustrantes – demorei cerca de dois meses para conseguir uma entrevista – finalmente estabeleci um contato mais proveitoso: Liliane,6 a primeira travesti com quem falei no prédio, interfonou para mim, depois de semanas sem falar comigo, perguntando se eu ainda estava interessada na entrevista. Além disso, embora tenha se recusado a participar da pesquisa, Suzana7 passou a conversar comigo, demonstrando interesse em uma maior aproximação. Através desses contatos, busquei identificar como se inserem as travestis na dinâmica social de coabitação que caracteriza o Edifício Democrata. Pretendi, assim, analisar a visão que tais atores têm do prédio e de seus moradores, descobrindo se o local se lhes apresenta como boa opção de moradia, e as razões decorrentes. Para isso, explorei principalmente suas experiências de discriminação nas dependências do edifício e suas relações com os vizinhos – a metodologia utilizada foi a da observação participante que, basicamente, inclui observação de performances corporais e de discursos, além de entrevistas. 4 A discriminação sofrida por tais atores pode ser analisada por meio do conceito goffmaniano de estigma (Goffman, 1982). Opto por não fazer uso de tal estrutura conceitual, focando o significado do Edifício para as travestis e vice-versa, na dinâmica de coabitação do local. 5 Em A utopia urbana, Gilberto Velho usa este mesmo conceito ao tratar das relações entre vizinhos – o que mora ao lado é um potencial inimigo. 6 Nome fictício. 7 Idem. 11 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Como disse, Liliane foi a primeira abordada na minha busca por entrevistadas. Encontrei-a na portaria e, em uma breve conversa, expliquei que estava fazendo um trabalho e gostaria de conversar com travestis que morassem no prédio. Extremamente receptiva, ela me deu um cartão com seu telefone e disse que eu poderia combinar a entrevista. No entanto, Liliane estava de mudança, e quase não ia ao prédio (além disso, seu telefone não estava funcionando), o que adiou muitas vezes a nossa conversa. Moram no prédio, em situação estável,8 três travestis – uma delas, porém, sempre abriga outras em seu apartamento. Era com essa travesti, Suzana, que Liliane morava. Percebe-se que Suzana é uma espécie de “mãe” para suas agregadas (Liliane inclusive a define assim), e exerce, naquele espaço, amplo poder de decisão. Quando fui ao seu apartamento pela primeira vez, embora tenha me dirigido (da porta, pois em momento nenhum fui convidada a entrar) às quatro travestis que estavam na sala – e que, de tanto freqüentarem o local, eu julgava serem moradoras – Suzana atuou como a porta-voz do grupo, não dando oportunidade para que as outras se dispusessem a falar comigo. Quando Liliane, em visita a Suzana, procurou-me, marcamos uma entrevista para o mesmo dia. Ela havia saído quando fui chamá-la no apartamento de Suzana, e acabei tendo uma agradável conversa com a dona do apartamento também. Naquele momento, Suzana disse que morava no Edifício Democrata há dezesseis anos, desde que tinha 14 anos, e que nunca teve problemas ali. Falou que todos a respeitam e que mantinha boas relações com os vizinhos. Apresentou-se como “mãe-de-santo”, apontando como local de trabalho um centro religioso (aparentemente de candomblé) em Nova Iguaçu. Suas “agregadas” a ajudavam em certos trabalhos e algumas eram suas “filhas-de-santo”.9 Ela fez inúmeras perguntas acerca de minha ocupação, família, fonte de renda – que procurei responder sem hesitação para demonstrar confiança. Resultados e discussão: entrando nos discursos No livro Travesti: sex, gender and culture among Brazilian transgendered prostitutes (Kulick,1998), uma etnografia lírica sobre os travestis da cidade de Salvador, Don Kulick argumenta que a distinção de gênero, para os travestis, 8 Quando digo “situação estável”, refiro-me a moradoras que respondem por um contrato de inquilinato ou são donas dos imóveis, ou seja, não moram temporariamente de favor. 9 Cabe dizer que, no primeiro contato que estabelecemos, Suzana mostrou-se preocupada em ressaltar que elas não faziam programa. No entanto, sem saber dessa reserva, Liliane disse ter conhecido Suzana “pondo anúncio no jornal”, e indicou um site em que eu poderia encontrar anúncios eróticos das freqüentadoras do apartamento. 12 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ baseia-se na posição adotada no ato sexual, e não em uma noção cultural do sexo do corpo – diferente da concepção de gênero hegemônica, que determina formas de agir ideais de acordo com a genitália do indivíduo. Assim, há uma distinção básica entre homens (que penetram) e não-homens (que são penetrados), e não entre homens e mulheres. Dentre os não-homens estão as mulheres, os homossexuais e as travestis. Destaco como exemplo um trecho de uma entrevista do autor: Tina: Três anos ele foi pra mim homem e, depois dos três anos, ele foi mulher. Eu era o homem, ele era a mulher. Entendeu como é? Os três anos que passei com ele, a primeira vez, entendeu como é, ele me comia, e eu chupava ele. Eu era a mulher dele. [...] Don: Mas o que aconteceu? [...] Tina: Modificou que ele pegando [meu pênis]. Ele criou medo de me perder. Eu estava sempre na rua e ele viu que eu era uma bicha viciada em comer os boys. Aí ele viu que, ficou com medo de me perder, e perder a mordomia, né? [...] Aí começou tirando, brincando de sexo comigo. “Não carece você gozar na rua não. Eu bato uma punhetinha pra você. Daqui a pouco vamos fazer outra coisa diferente”. Ele me dá o cu, me deu o cu, começou a me chupar, aí pronto (Kulick, 1998:227-228). No entanto, as travestis não se igualam às mulheres ou se assumem como tais. Guardadas as devidas proporções, os discursos presentes na etnografia do autor e em meu trabalho de campo apresentam diversos pontos comuns. Ao seguir o mesmo perfil do discurso das entrevistadas por Kulick, Liliane estabelece clara distinção: “a gente não é mulher, só quer ser. A gente é uma imitação”. Ela diz que seu sonho sempre foi ser travesti, que “achava um luxo”; vestia as roupas das irmãs, maquiava-se, “queria ser mulher porque achava interessante”, mas destaca que não se submeteria a uma mudança de sexo – apesar de não se dizer religiosa, diz que “o órgão que Deus deu não tem que tirar”. Ela ressalta também que não se incomodaria se eu a chamasse de “ele”, pois não pode cobrar que as pessoas encarem uma não-mulher como mulher. Cabe ressaltar que outras categorias utilizadas para a autodefinição foram transex e, por Suzana, trava. Percebe-se nesse discurso que se reconhece uma hierarquia dentro da categoria “kulickiana” não-homens, de que me aproprio. Como uma representação deformada, distorcida das mulheres, uma “imitação”, as travestis posicionam-se “abaixo” delas: as mulheres são naturais, nasceram com curvas e com vaginas e os travestis concordam que elas são mais valorizadas pelos homens. Segundo as entrevistadas por Kulick, “os homens se apaixonam por mulheres, não por travestis” (Kulick, 1998:196), e os elogios de mulheres quanto às suas roupas e à sua feminilidade (dos travestis), por advirem de uma feminilidade “genuína”, têm mais valor. Liliane diz que “travesti tem que ter comportamento de travesti, tem que se pôr no lugar, não vai se comparar com uma mulher, não vai ser depravado demais”. 13 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Entretanto, acima dessa hierarquia está uma maior, relacionando os nãohomens aos homens – e que se estende da experiência soteropolitana aqui retratada. Essa posição, em que se unem mulheres e travestis, gera o que se pode considerar uma consciência de gênero e parece, ainda que sutilmente, sobreporse às divergências entre as subdivisões dos não-homens. O trecho acima, extraído do trabalho de Kulick, mostra também este aspecto: a mulher do casal torna-se mulher a partir do medo de ser abandonada. Assim, as noções de carência, dependência e submissão estão ligadas ao não-homem, machismo explícito mesmo na fala dos próprios. Essa espécie de cumplicidade de gênero é percebida também nos relatos de Liliane sobre as agressões que sofre: já levou “latada, pedrada, extintor...”, mas sempre de homens, de “garotos que não se assumem” (jovens homens que discriminam porque são “incubados”), apontados como os mais preconceituosos. Ela citou como experiência problemática, no prédio, uma fase em que alguns jovens, amigos de uma moradora, freqüentavam o imóvel e mantinham o hábito de fumar maconha na frente do prédio, agredindo verbalmente os travestis que passavam. Diferente dos homens (ou “garotos que não se assumem”), as mulheres não se apresentam como inimigas. Liliane diz que, apesar da violência à que se sujeita no trabalho, não costuma sofrer esse mesmo preconceito nas dependências do prédio, onde todos – e as mulheres principalmente – a tratam bem. Quanto ao episódio dos amigos discriminadores da antiga moradora, Liliane diz que o condomínio decidiu pela expulsão da mesma. Essa boa convivência com a vizinhança foi destacada pela entrevistada – que apontou conhecer na mesma rua uma travesti síndica – e ficou explícita em nossa breve caminhada até o restaurante em que conversamos. Nesse caminho, pude ver que as pessoas que freqüentam a rua – vendedores de churrasquinho, de cachorro-quente, donos de boteco – e os moradores do prédio a conhecem e a tratam muito bem, mostrando respeito e, em alguns casos, carinho. Liliane morou durante seis anos com Suzana, que conheceu “pondo anúncio no jornal”, e diz que só são repreendidas as travestis que “abusam”, andando de sutiã pelos corredores, por exemplo. Ela mudou-se para o Estácio, bairro vizinho, apenas porque quis morar sozinha, mas aponta o Centro, assim como Copacabana, como bons bairros para morar devido à proximidade do trabalho – os maiores “pontos” de prostituição encontram-se nesses locais (Ver Silva, 1993). Percebe-se, então, que tanto a condição de não-homem quanto a de travesti é “divisível”: há os que se podem chamar de travestis “respeitáveis” – que “se põem no seu lugar”, não “abusam” – e os “não-respeitáveis”. O que isso quer dizer? Creio estar implícita nessa distinção uma questão maior, relacionada às mudanças de representação e posição social dos não-homens nos últimos anos. Tais 14 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ mudanças são produtos – e produtoras – de um processo de negação da repressão sexual que teve o seu ápice, no Brasil, em 1968. No entanto, a “revolução sexual” (Ver Reich, 1982) continua em andamento, desmistificando de forma lenta tabus de gênero e “desestigmatizando” os não-homens. Como exemplos notórios de “revolucionárias sexuais” pode-se citar Dora Vivacqua (conhecida como “Luz del Fuego”), Danuza Leão, Tonia Carrero e Leila Diniz (Ver Goldenberg, 1996). Não se pode, no entanto, dedicar os louros somente às famosas: e as mulheres que transgridem a ditadura de gênero a cada dia? E os não-homens “respeitáveis” do Edifício Democrata? Mas como se dá esse processo emancipatório, essa aquisição de um “capital de gênero” que torna menos desiguais as trocas simbólicas entre não-homens e homens? A chave da questão está na (re)construção do significado de “respeitável”. Se antes a respeitabilidade do não-homem dependia de fatores objetivos e externos – a mulher respeitável é a recatada, a que se veste discretamente, fala baixo e somente quando solicitada por um homem – ou seja, poderia ser definida à primeira vista, o atual processo de complexificação de gênero explicita a insuficiência de tais fatores. A definição do feminino-modelo fica cada vez mais turva com a ascensão de novas conjugalidades, novas sexualidades, novas corporalidades, demandando uma correspondente complexificação de critérios. Assim, recorrendo a categorias goffmanianas, afirmo que essa superação da submissão do não-homem, que o leva a ser sujeito e não apenas objeto, se dá pela sobreposição da maneira à aparência. Goffman apresenta a aparência e a maneira, junto ao cenário, como elementos constituintes da fachada, “equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação” (Goffman, 1985:29). Enquanto o cenário seria o “pano de fundo” do desenrolar da ação social – compreendendo a decoração, a mobília etc. – a aparência expressa estímulos que funcionam para revelar o status social do ator, enquanto a maneira informa sobre o papel de interação que o ator espera desempenhar na situação que se aproxima. A primeira, então, embora não seja completamente fixa, constitui-se de uma série de fatores estáveis – como sexo, características raciais e altura. Uma travesti, por exemplo, é permanentemente travesti, carregando o tempo inteiro esse aparato significativo extracorporal que lhe rende, geralmente, discriminações. A segunda é mais flexível, na medida em que depende de atitude, expressões faciais, gestos corporais etc. Ao defendermos a sobreposição da maneira à aparência, ao diminuirmos o valor desta última, assumimos que o desempenho dos indivíduos na interação – nesse caso, dos travestis no Edifício Democrata – é determinante na sua localização social, capaz de esvaziar de sentido a configuração física dos mesmos. Suzana, por exemplo, construiu, em seus anos de Democrata, uma imagem sólida e respeitável. 15 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Embora se travista e trabalhe fazendo programas, tendo apenas 30 anos, é vista como uma “senhora”: veste-se de maneira recatada, usa os cabelos sempre presos, fala pausadamente, encarna o papel de veterana do Edifício. Conclusão: saindo da “ditadura de gênero” As travestis do Edifício Democrata – e aqui reitero os achados etnológicos de Kulick – adéquam-se à categoria construtivo-essencialista (Kulick, 1998:193): ao mesmo tempo em que apontam o órgão sexual como definidor e definitivo – “a gente não é mulher, só quer ser” / “o órgão que Deus deu, não tem que tirar” – constroem-se como femininas e, mais do que isso, como não-homens respeitáveis e que se impõem como moradoras tanto quanto os homens. Dessa forma, evidencia-se o gênero como processo, construído nas práticas e nos discursos, a cada nova interação. Embora essa constatação não possa, absolutamente, ser generalizada para a sociedade brasileira como um todo – na qual ainda predomina a violência de gênero e, com efeito, o “masculino” e o “feminino” são freqüentemente encarados como conceitos estáticos e estanques – observa-se um avanço lento e, em grande medida, marginal, em direção a uma maior flexibilização e fluidificação no processo de definição dos papéis e dos estatutos sociais ligados ao sexo. O Edifício Democrata evidencia-se como exemplo dessas transformações, sendo um ambiente em que as posições de gênero emanam de cada ator social – e nesse grupo incluem-se homens, mulheres e travestis – desconstruindo a velha hierarquia que sobrepõe homens a não-homens, na qual a significação e a legitimação dos atos dos últimos ficam “a cargo” apenas dos primeiros. Como locus de gradual superação de uma “ditadura de gênero” característica da sociedade ocidental moderna, o prédio, tomado neste estudo como recorte comunitárioespacial, endossa uma abordagem simbólico-interacionista da vida social que procura matizar o papel das determinações e dos processos objetivos, destacando o primado da subjetividade dos indivíduos e o papel dos agentes sociais em suas lutas cotidianas. Por tudo isso, pode-se dizer que, em se tratando de relações de gênero, o nome do condomínio parece bastante adequado. Referências bibliográficas FONSECA, Rubem. Romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 16 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ _________. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 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Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 17 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ SAPINHAS, BIBINHAS E TIAS: sexualidade, geração e vestuário como formas sociais de distinção identitária CARLOS EDUARDO HENNING10 RESUMO A intenção específica deste trabalho é, através de pesquisa etnográfica, debater três questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que dão coesão ao grupo estudado de bibinhas e sapinhas: o critério geracional; o critério de compartilhamento de vivências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo; a importância do vestuário na formação desses vínculos sociais de identidade. Serão apresentados alguns exemplos etnográficos e a forma como estes critérios, unidos a outros fatores, auxiliam a explicitar quem pertence (e quem não pertence) ao agrupamento estudado. Internamente a tal agrupamento, as relações de distinção e hierarquia social geralmente não desaparecem, porém mudam de caráter, mantendo o vínculo que une o grupo, mas criando outras hierarquias que posicionam os indivíduos em pontos de autoridade social. Palavras-Chave: Homossexualidades, identidades, geração, vestuário, juventude. ABSTRACT The specific intention of this article is, by ethnographic research, to debate three important questions to the constitution of the identitary bonds that gives cohesion to the group of bibinhas and sapinhas that was studied: the criterion of generation to the group’s formation; the criterion of sharing erotic-affective experiences with individuals from the same sex, and the importance of clothing on the formation of these identity social bonds, through some ethnographic examples, and of how these criterions, united to some other factors, helped to make explicit who belonged (and who didn’t) to the studied group. Inside this group, the relations of social distinction and hierarchy, usually didn’t disappeared, but changed the character, keeping the bond that united the group, although creating other hierarchies that put the individuals in points of social authority. Key-Words: Homosexuality, identities, generation, clothing, youth. 10 Mestrando em antropologia social no PPGAS/UFSC.Geógrafo pela FAED/UDESC. Orientado pela Profa. Dra. Sonia Weidner Maluf e co-orientado pela Profa. Dra. Alícia González Castells. 18 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Este artigo11 tem como característica ser mais um relato etnográfico de minha recente incursão ao campo do que uma discussão essencialmente teórica. Apresenta alguns resultados preliminares da pesquisa etnográfica para a minha dissertação de mestrado em antropologia social12 acerca de sociabilidades, segmentação, moralidade e hierarquia em espaços freqüentados por sujeitos (auto) reconhecidos como GLBTTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros13) no centro da cidade de Florianópolis, especialmente em bares e boates voltados para esse público. Reflete o estágio atual da análise de dados, ou seja, o fato de ter recentemente saído de campo e estar ainda em uma fase inicial de análise. Entretanto, é necessário afirmar os pressupostos teóricos de que me utilizo para nortear este trabalho. Quanto ao conceito de gênero, embaso-me no texto de Joan Scott (1990), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Para a autora, gênero é visto como: os conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do sentido dos símbolos, que esforçam para limitar e conter suas possibilidades metafóricas. Estes conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o sentido do masculino e do feminino (Scott, 1990:14). Além disso, tal conceito implica significar relações de poder, percebendo a diferença dos sexos enquanto jogo político, ao mesmo tempo, cultural e social.14 Vem aqui também corroborar a perspectiva construtivista de Heilborn (2006) acerca da sexualidade. Para a autora, “o âmbito da sexualidade não pode ser visto como uma dimensão ‘natural’, 11 Este trabalho foi apresentado no GT 46 – Técnicas Corporais, Performances e Identidades da VII RAM (cujos coordenadores eram os professores Silvia Citro e José Bizerril), na cidade de Porto Alegre, na tarde do dia 25 de julho de 2007. 12 Meu projeto de qualificação intitula-se: “O Pedaço Dividido: Etnografia de um território da noite gay de Florianópolis enfocando manifestações distintivas e discriminatórias entre GLBTT através de uma análise de gênero, sexualidade e interseccionalidades”, defendido no PPGAS/UFSC em dezembro de 2006. Sou orientado pela Profa. Dra. Sonia Weidner Maluf e co-orientado pela Profa. Dra. Alícia González Castells. 13 Embora concorde que GLBTTT seja a sigla mais adequada aos indivíduos que difiram da heteronormatividade, em vários momentos deste texto utilizarei a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), pois ela é a mais comumente utilizada pelos indivíduos que freqüentam os espaços de sociabilidade estudados. 14 Grossi, M. P., Heilborn, M. L. & Rial, C. S. Entrevista com Joan Wallach Scott, Revista Estudos Feministas, v. 6, n.1, p.114-124, 1998. 19 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ‘universal’, ‘inata’ ou através da idéia de pulsões psíquicas ou de funções biológicas”.15 Embaso-me também em Judith Butler que, em Problemas de gênero (1990), afirma que a normatização referente às identidades de gênero também assegura que o desejo seja direcionado ao outro sexo. Portanto, a partir desta perspectiva, os estudos de sexualidades são indissociáveis dos estudos de gênero. Ao partir de tais considerações, a intenção específica deste trabalho é debater três questões importantes para a constituição dos vínculos identitários que dão coesão a um dos grupos estudados em minha etnografia: o critério geracional para a formação grupal; o critério de compartilhamento de vivências eróticoafetivas com pessoas do mesmo sexo; e a importância do vestuário na formação desses vínculos sociais de identidade. Serão apresentados alguns exemplos etnográficos e a forma como estes critérios, unidos a outros fatores, auxiliam a explicitar quem pertence (e quem não pertence) ao agrupamento estudado. Internamente a tal agrupamento, as relações de distinção e hierarquia social geralmente não desaparecem, porém mudam de caráter, mantendo os vínculos que unem tais indivíduos, mas criando outras hierarquias que os posicionam em pontos de autoridade social. A análise desses fatores se prenderá mais aos exemplos retirados de freqüentadores de um dos espaços estudados durante a minha pesquisa,16 o fast-food Dromedário (nome fictício17). Utilizarei, portanto, para denominar os seus freqüentadores, assim como as segmentações internas, as categorias nativas de referência. No Dromedário, no pátio e na escadaria Os freqüentadores do Dromedário que pesquisei pertencem majoritariamente à faixa etária dos 15 aos 22 anos. Entretanto, tratando-se de uma 15 Carol Vance (2002), em seu artigo “Anthropology rediscovers sexuality: a theoretical comment” (originalmente publicado em 1991), apresenta relações entre pesquisa em antropologia e pesquisa sobre sexualidade, enfocando três vertentes teóricas: o “essencialismo”, que seria biologicista; o “modelo de influência cultural”, que consideraria a sexualidade como categoria naturalizada (o papel da cultura sendo o de modelar atitudes e comportamentos sexuais) e, por fim, a “teoria da construção social”, compreendendo a sexualidade como construída diferentemente em diversas sociedades, sendo esta última vertente aquela na qual a autora se inscreveria. 16 Minha pesquisa de campo realizou-se nos meses de março a julho de 2007 e, no caso específico da convivência com os freqüentadores do fast-food estudado e de outras duas áreas contíguas, materializou-se em dezenas de idas a campo, quase diariamente, de segunda à sexta-feira durante os meses citados. 17 A opção de usar nomes fictícios tanto para lugares quanto para as pessoas pesquisadas foi feita na intenção de procurar preservar os indivíduos estudados contra eventuais intervenções e agressões homofóbicas por skinheads e outros indivíduos, fato que infelizmente tem ocorrido com certa regularidade, segundo diversos relatos ouvidos. É um comportamento metodológico também utilizado por Perlongher (1987). 20 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ grande cadeia de fast-food nacional, seus consumidores não se resumem apenas ao grupo que abordo neste texto, mas a um número imensamente maior de indivíduos de várias idades, classes sociais e procedências. É comum encontrar, por exemplo, nos bancos e nas mesas exteriores do Dromedário – no calçadão de uma rua central de Florianópolis – senhores e senhoras com mais de 60 anos, aposentados, tomando cafés, sorvetes, comendo lanches e petiscos. A região que circunda o Dromedário é povoada por inúmeros centros comerciais, colégios, universidades e por uma infinidade de ramos de comércio e serviços. É também uma zona de passagem intensa de indivíduos que vêm e vão de seus locais de trabalho, moradia, colégios/faculdades, enfim, de suas atribuições urbanas cotidianas, tornando-se, assim, um importante ponto de encontro para os integrantes de diversos grupos urbanos. O grupo que estudei18 costuma utilizarse do Dromedário como ponto de encontro e sociabilidades, majoritariamente de segunda à sexta-feira e, geralmente, a partir do meio-dia, embora possam encontrar-se também no período matutino, porém com menor visibilidade. Grande parte desses indivíduos estuda nos colégios das redondezas (ou possui colegas que ali estudam), o que facilita a concentração em tal local, o que se dá também devido à sua centralidade no espaço urbano: partindo dali, é possível caminhar para qualquer bar ou boate “GLS” do centro da cidade em pouco tempo.19 Aparentemente, os gerentes do Dromedário não vêem o grupo estudado (em parte reconhecido socialmente como composto por “gays e lésbicas”20) como potencialmente consumidor, um público que deva ser encarado e tratado com deferência. Há poucos anos houve um ato público em frente ao Dromedário em repúdio ao tratamento discriminatório dado a um casal de garotos que foi impedido de se beijar no interior da lanchonete. O ato foi intitulado “Beijaço” e consistiu na reunião de dezenas de casais de garotos e casais de garotas que se beijaram longamente diante da lanchonete. O ato foi coberto por diversas televisões e jornais locais e teve muita repercussão. Depois dele, o cuidado e o respeito para com os jovens “casais homossexuais” por parte do Dromedário aumentou. Há um claro receio em dar declarações sobre tais freqüentadores, comportamento que se refletiu na relutância dos gerentes em conceder entrevista para esta pesquisa, quando 18 O grupo estudado, apesar de apresentar características gerais que lhe dão certa coesão e senso de unidade – questões abordadas neste artigo – na verdade é composto por diversos pequenos agrupamentos, em geral próximos espacialmente, e que se recriam e reconfiguram continuamente. 19 Segundo minha pesquisa para o TCC (Henning, 2005), a grande maioria dos bares e das boates voltada para o público GLS na cidade de Florianópolis esteve vinculada, desde a década de 1970, à área do centro histórico da cidade, principalmente as imediações da Av. Hercílio Luz, da Praça XV de Novembro e da rua Felipe Schmidt, embora obviamente tenham existido várias outras casas noturnas em pontos externos a este território. 20 Sobre a relação entre homossexualidade, aceitação social e mercado consumidor, ver Resende (2003). 21 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ afirmei qual seria o tema. Apenas um dos gerentes aceitou ser entrevistado, conquanto que não houvesse gravação de suas respostas, afirmando que não havia nenhum tratamento diferenciado (positiva ou negativamente) para os eventuais casais que se formassem no local. Além do Dromedário, há outras duas áreas públicas próximas que também fazem parte do circuito de encontros dos indivíduos estudados. A primeira é o pátio de um museu público, cuja entrada fica praticamente em frente ao Dromedário. Tal pátio foi reformado e aberto ao público há alguns meses, sendo completamente “tomado” por esses jovens e adolescentes. Permanece aberto de segunda à sexta-feira das 10 horas da manhã às 6 horas da tarde, e aos sábados, domingos e feriados, das 10 horas da manhã às 4 horas da tarde. Costumam circular permanentemente dois seguranças pelas áreas sociais do pátio e não há relatos de confrontos, agressões ou repressão por parte dos guardas. Entrevistei um dos seguranças que afirmou receber orientação da direção do Museu para chamar a atenção apenas quando algum dos adolescentes estiver bebendo álcool, “fumando maconha” ou usando alguma outra droga ilícita. Entretanto, afirmou que se algum dos casais se exceder nas carícias, os guardas devem adverti-lo: aqui vem bastante casal, né, homem e mulher, mas tem muito gay que beija na boca, abraça, fazem muito carinho um no outro; e vem bastante mulher, muitas lésbicas, que ficam bastante... acariciando o tempo todo, se beijando e, quando se excede um pouquinho mais e passa a mão “lá” um no outro, a gente vai lá e dá um toquezinho pra dar uma “aliviada”. Os gays e as lésbicas é de 15 [anos de idade] pra cima, geralmente. Na verdade, esse pessoal que vem aqui não chega nem a 21 anos, é de 15 a 21 anos. Os outros [freqüentadores] daí é de tudo quanto é idade. [...] Eu sou simpatizante. Eu tô aqui, só trabalho, não pego no pé deles nem nada. E eles até concordam com a gente, respeitam, o que a gente pede eles atendem na boa. Na hora de fechar [os portões] também eles levantam, não reclamam, não xingam. Tem alguns que fazem cara feia, mas não xingam, não, “entendesse”? De vez em quando, a gente explica o que não pode: que não pode entrar sem camisa, nem beber bebida alcoólica, só refrigerante e lanche. Vem muito pessoal das lojas daqui de perto também, vêm descansar e fumar seu cigarrinho (Trecho da transcrição de gravação de entrevista oral). O guarda também salientou (e nesse momento não quis que eu gravasse sua fala), que ele já havia sido ofendido duas vezes por alguns dos “gays e lésbicas” quando comunicava o fechamento dos portões do pátio, mas que não revidara porque sabia que “não vale a pena bater de frente com eles, porque senão ainda dá processo [judicial] e a gente se prejudica”, e que a maioria “não incomoda”. Sua fala deu a entender que há orientações da direção do museu visando evitar quaisquer transtornos jurídicos e que há certa simpatia do entrevistado para com o público (simpatia que, segundo ele, também 22 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ se manifesta nos outros guardas), pois esses adolescentes geralmente “não brigam, ficam na deles e são gente boa”. A terceira área freqüentada pelos sujeitos estudados fica igualmente próxima ao Dromedário, a cerca de 150 metros de distância, na mesma rua do fast-food. É uma escadaria que dá acesso a uma das igrejas históricas da capital (construída na época da chegada dos casais açorianos à Ilha de Santa Catarina, em meados do século XVIII), e costuma ser ocupada também de segunda à sexta-feira, principalmente após o fechamento do pátio do Museu. Os jovens pesquisados concentram-se, então, na escadaria para conversar e tomar bebidas alcoólicas, que são divididas entre eles (geralmente misturas de vodca ou cachaça baratas com algum refrigerante). Este terceiro espaço social costuma ser o de maior liberdade para que as conversas ocorram em voz alta, sem seguranças por perto, e onde os casais podem trocar carícias e ficar mais à vontade, embora haja, ao lado da escadaria, um prédio do Exército, utilizado pelos militares aparentemente apenas pela manhã e à tarde. Como o grupo se encontra em geral após as 18 horas, não presenciei ou ouvi, em relação aos militares daquele prédio, nenhum registro ou história de censura ou críticas ao barulho e às sociabilidades. Ao contrário do que ocorre no Dromedário, em que há uma obrigação tácita de os jovens consumirem alguns dos produtos do fast-food e não fazerem uso de bebidas alcoólicas ou alimentos não provenientes do local, a escadaria dá a eles a possibilidade de comer, beber, rir, pirar21 mais à vontade, sem os olhares censores e controladores de gerentes e funcionários da lanchonete (ou dos seguranças do pátio do museu). A escadaria também é utilizada como ponto de encontro desses grupos de adolescentes que circulam pelos “points GLS”22 da cidade. É importante ressaltar que, assim como afirmou Silva (2003) acerca dos freqüentadores do “carnaval do Roma” e de “bares e boates GLS” da cidade, nem todos os indivíduos que circulam por esses espaços reivindicam ser “homossexuais”. Há grande número de casais e de indivíduos “heterossexuais”23 que também circula pelas casas noturnas GLS da cidade. Esses locais possibilitam um gradiente mais amplo de sociabilidades do que apenas as sociabilidades homossexuais. Silva (2003) afirma que seria melhor 21 Este termo tem vários sentidos. Costuma ser utilizado para designar diversão (“festar”) e, em alguns casos, significa alterar a consciência através do consumo de álcool e/ou de outras drogas, ou simplesmente ter ampla liberdade para fazer o que se quer. 22 “Points” é uma expressão de língua inglesa e, no contexto da noite GLS florianopolitana, denota os pontos de encontro de referência, geralmente bares e boates, mas diz respeito também a outros espaços da cidade. 23 Procuro utilizar termos e denominações nativos, muito embora atento à noção da multiplicidade das identidades que se manifestam no indivíduo, evitando, portanto, reificar apenas uma característica das identidades do sujeito como se fosse única e imutável, quando na verdade tende a se tratar de manifestação conjunturalmente marcada. 23 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ chamarmos este contexto social de ethos GLS para que se dê espaço às múltiplas possibilidades de sociabilidades que podem ocorrer em tais lugares. Os adolescentes estudados distribuem-se quase igualmente entre garotos e garotas, sendo que um dos fatores que lhes dão coesão grupal é o fato de muitos deles serem freqüentadores de bares e boates “GLS” da cidade, mesmo os que são menores de idade. Estes procuram táticas para driblar a exigência da apresentação dos documentos oficiais de identificação nas portas das casas noturnas e, quando não conseguem, costumam permanecer nas suas imediações, conversando com os que de forma eventual saem para ”tomar um ar” ou com aqueles que também não puderam entrar, seja por serem menores de idade, seja por não terem dinheiro para a entrada. Outro ponto que dá coesão ao grupo é a questão da idade: sujeitos da mesma faixa etária tendem a ser mais facilmente aceitos nos espaços sociais de encontro. Os encontros no Dromedário, no pátio e na escadaria são importantíssimos para o fluxo de informações sobre os acontecimentos que fazem parte do roteiro de atividades imprescindíveis à vida social desses sujeitos, como festas em bares e boates (ou festas particulares na casa de alguém) e encontros em outros espaços públicos da cidade para beber, conversar e pirar. Encontrar os amigos no Dromedário é também fundamental para trocar fofocas sobre figuras conhecidas (e principalmente inimizades); ali as gafes, as brigas, os acontecimentos interessantes dos últimos dias, enfim, os bafões24 são contados com riqueza de detalhes. Nesses espaços, os indivíduos também aprendem a conhecer os comportamentos adequados e os inadequados nesse contexto social. É, de certa forma, um lugar de aprendizado, de iniciação social no “mundo GLS” para vários desses adolescentes, o que me faz lembrar a importância da rua nos territórios de prostituição para as travestis que, segundo Benedetti (2000), são locais importantíssimos de trocas – de experiências, objetos, conhecimentos etc. – mas principalmente de aprendizado entre elas, auxiliando no processo de “saber ser” travesti. É também onde esses adolescentes aprendem a se posicionar no mundo social em que vivem. Creio ser possível perceber essas relações de aprendizado e de reciprocidade também no grupo estudado, no contexto desses três espaços de sociabilidade (assim como do conjunto mais amplo de locais onde tais sociabilidades se estabelecem). 24 Bafão ou Bafões é um termo que denota acontecimentos com certo teor de escândalo e que muitas vezes significa situações vexatórias para alguns dos nele envolvidos. Contar um bafão pode ser um recurso de poder, “sujando (ou elevando)” a imagem de alguns dos sujeitos envolvidos na história, assim como pode apenas ser um recurso para passar o tempo e rir dos últimos acontecimentos. Entretanto, é possível de ser visto também como um instrumento de aprendizado comportamental no contexto social do “mundo GLS”. Aprende-se, ouvindo alguém contar um bafão, quais comportamentos e condutas são vistos como corretos, e quais são tidos como ridículos ou inadequados naquele contexto social. 24 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Para muitos dos adolescentes que os freqüentam, são nesses locais que os comportamentos realmente ansiados podem ocorrer. Para alguns deles, é também ali que se pode, aos poucos, “sair do armário” e começar a criar outras visões possíveis de marcações de identidade. 1. Algumas categorias nativas e alguns signos que identificam É necessário afirmar que, apesar de utilizar o termo “grupo” para os indivíduos estudados, talvez seja melhor dizer – para ter o cuidado de não solidificar as relações que se estabelecem entre esses sujeitos – que eles estão mais em grupo do que são um grupo. Mesmo existindo os vínculos que dão coesão ao coletivo das pessoas estudadas (vínculos estes que são objeto de análise deste artigo), há também um processo de incessante formação, dissolução e recriação de pequenos agrupamentos internos em relação ao coletivo maior de adolescentes e jovens estudados. É possível perceber uma incessante mobilidade social (no sentido de movimentação no espaço, conversas e trocas) entre esses jovens que se reúnem segundo as mais variadas motivações: por ligações mais fortes de amizade; por proximidade com aqueles que trouxeram a bebida; por tentativa de aproximação com os indivíduos mais “populares” (os mais admirados e referenciais); por interesses erótico-afetivos que visam a um dos membros, enfim, por inúmeras razões. E como existem essas pequenas segmentações, há também possibilidade para nominação dos sujeitos nesse espaço social. Neste tópico, procurarei abordar algumas das categorias nativas de referência e que dão mostras da lida com a identidade e a alteridade. Pude perceber em minha pesquisa ser muito mais comum um coletivo dar nome a outro do que se autodenominar, tendência que, aliás, extravasa o contexto dos grupos jovens estudados e se reflete em termos mais gerais nas sociabilidades em bares e boates GLS da cidade. Entretanto, o nome dado a um grupo por outro algumas vezes não era aceito e reconhecido pelo primeiro (isto quando havia um “nome de grupo”, posto que nem sempre ocorria a convenção de um nome aceito coletivamente como seu). As garotas que ficavam25 com outras garotas, por exemplo, tendiam a ser denominadas (e a se autodenominar) de sapinhas ou sapas, termos que provêm do popular “sapatão” e que foi, de certa forma, redimido do seu teor ofensivo e depreciativo (ao menos naquele contexto 25 “Ficar” é um termo que se popularizou nas últimas décadas principalmente entre os jovens, e tem o sentido de troca e relação erótica e/ou afetiva, desde beijos e carícias até, algumas vezes, relação sexual, embora esta conotação não seja a mais comum. 25 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ social) em função de outros apresentados atualmente em forma diminutiva.26 “Sapatão”, durante o tempo em que permaneci em campo, não foi utilizado nenhuma vez como categoria de identificação pelos sujeitos estudados. Os garotos que ficavam com outros garotos costumavam ser denominados (e também se autodenominar) de bibinhas, bibas, bicha, bichinha,27 viado, e outros termos não tão disseminados entre o grupo. O uso de palavras no diminutivo (sapinha, bibinha ou bichinha) é reflexo do fato de esses indivíduos serem mais jovens, tanto que é bem mais rara a sua utilização quando referente a indivíduos mais velhos e que mantêm relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo. Outra questão interessante a ressaltar é que “homossexual”, “lésbica” e “sapatão” não eram categorias utilizadas cotidianamente como autodenominação dos indivíduos freqüentadores daqueles espaços, sendo empregados, geralmente, por sujeitos que não faziam parte daquele contexto. Ainda a ressaltar é que tanto bibinhas quanto sapinhas costumavam utilizar tais denominações mais comumente de forma individual, embora também servissem para designar coletividade: “Aquela sapinha tá me dando nos nervos!”, ou então: “Foram aquelas bibinhas lá da (bairro) Caieira”. Não quero afirmar aqui que havia distinções rígidas, mas exatamente o contrário: as sapinhas e as bibinhas costumavam estar juntas, mescladas, conversando, dividindo espaços de maneira pacífica e festiva, assim como com outros indivíduos da mesma faixa etária, os quais afirmavam, porém, não manter relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo. Os indivíduos estudados nesta pesquisa, portanto, não poderiam ser todos inseridos nas categorias sapinha e bibinha. Aqueles outros (minoritários neste contexto) que não se adequavam a estas categorias eram geralmente da mesma faixa etária e, muitas vezes, amigos, vizinhos, parentes ou colegas de aula. A circulação entre esses indivíduos em tais espaços era incessante (em alguns momentos, quase caótica). A proximidade, a coexistência e a convivência socioespacial, aliadas à identificação por faixa etária e ao fato de essas pessoas se identificarem majoritariamente como sapinhas e bibinhas (mesmo que nem todos os indivíduos 26 “Sapas”, “Sapinhas”, “Sapatilhas” e outros termos menos usados foram retirados de entrevistas e da convivência cotidiana com o público estudado. No contexto social do campo, ao serem empregados por aqueles sujeitos, quase nunca carregavam carga depreciativa. 27 Estes quatro primeiros termos (bibas, bibinhas, bicha, bichinha) eram utilizados quase sempre acompanhados de artigos femininos, “a” ou “as” – “as bibas”, “a bibinha”, “a bichinha” – e nunca com artigos masculinos. Assim como em sapinhas, estes termos, no contexto social do campo, e usados por aqueles sujeitos, raramente eram depreciativos. 26 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ se adequassem a tais categorias) fazem com que seja possível afirmar a existência de uma coesão grupal, ao invés de apenas um apanhado amorfo de pessoas. Outra experiência percebida em campo foi a relação de sapinhas e bibinhas com alguns daqueles indivíduos que também vivenciam experiências eróticoafetivas com pessoas do mesmo sexo, mas que têm bem mais idade do que elas. Foi possível detectar essas relações em vários momentos da convivência com sapinhas e bibinhas, a começar pela minha inserção em campo, uma vez que tenho 25 anos de idade e difiro socialmente do grupo estudado, seja por já não ser adolescente, seja pelo vestuário, ou comportamento menos “brincalhão” e solto. Foi necessária uma grande adequação de minha parte à dinâmica do grupo para poder “fazer parte”, integrar-me, na procura por estabelecer o “encontro etnográfico”, seguindo os conselhos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000). Comum em todos os espaços de pesquisa, ao começar a dialogar e a fazer perguntas aos indivíduos freqüentadores de bares e boates GLS, foi responder à recorrente pergunta introdutória que acabaria por me autorizar a perscrutar aquele universo: qual era minha orientação sexual? “Tá, mas você é o quê? O que é que tu curte?”, e outras variações da pergunta, as quais se tornaram constantes no início das minhas abordagens em campo. Não foi diferente em relação às sapinhas e às bibinhas. Responder que eu tinha um namorado derrubava algumas barreiras para que eu pudesse conviver e fazer perguntas. Entretanto, com o grupo de adolescentes não bastava apenas isto, mas também me amoldar à sua lógica de sociabilidade, o que por si só já seria razão para produzir um artigo inteiro acerca das adequações metodológicas que precisei fazer para estar em campo. O que vale a pena dizer aqui é que me envolvi de tal forma com as sapinhas e as bibinhas que em muitos momentos sequer precisava fazer perguntas; a convivência e as conversas, quase como amigos, já me apresentavam inúmeras das respostas que procurava. Um exemplo dessas respostas ocorreu quando, já eu mais próximo e aceito pelo grupo, estávamos todos em frente ao Dromedário conversando e rindo e um homem, com cerca de 50 anos, aproximouse e acabou por sentar-se à nossa mesa (onde estávamos eu e mais cinco pessoas: quatro garotos e uma garota) sem nos pedir permissão. Eu nunca o vira, mas pelas reações dos meus acompanhantes, percebi que ele já era bem conhecido e também um elemento um tanto indesejado. Nikolai28 era um homem com cerca de 1,70m de altura, calvo da testa à nuca, com cabelo apenas acima das orelhas. Era magro, mas tinha uma “barriguinha” e, como fiquei sabendo mais tarde, todos faziam questão de demonstrar que o achavam feio e que sua presença era incômoda. 28 Nome fictício. Quando me referir aos nomes dos indivíduos entrevistados, utilizarei nomes de alguns dos personagens do romance Humilhados e ofendidos de F. M. Dostoievski. 27 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Durante alguns minutos, as pessoas na mesa o ignoraram solenemente, mesmo tendo ele tentado “puxar papo”. Como queria ver qual era o comportamento comum do grupo, não interferi. Percebi que em vários momentos Nikolai procurou “apimentar” a conversa, falando algumas obscenidades e fazendo perguntas que eram deixadas constrangedoramente sem resposta, até que Aliosha,29 um garoto que se tornou um dos meus “informantes privilegiados”, irrompeu: “Tá, tia! Tá! A tia tá atacada hoje. Tá querendo chamar a atenção. Vai lá pro banheirão que a tia encontra uma neca,30 vai!”. Fiquei chocado com a agressividade da reação de Aliosha, mas procurei disfarçar para ver o que os demais fariam. O próprio Nikolai não pareceu nada ofendido e ainda riu como se estivesse acostumado com o tratamento. Tia, como ouviria ainda diversas outras vezes, era um termo nativo que denominava homens mais velhos que tentam “ficar” com as bibinhas (e vistos geralmente como não-atraentes, às vezes repulsivos31) e que costumam lhes propor algum tipo de pagamento ou trocas por atos erótico-sexuais. Tia é também utilizado contextualmente para depreciar homens não tão velhos, mas que também se aproximam ou se interessam pelas bibinhas. Aliosha me diria alguns momentos mais tarde que Nikolai costumava “pegar”32 sempre alguém no banheiro do Dromedário. Ouvi diversas histórias sobre encontros erótico-sexuais naquele lugar, e os que assim faziam, ali ou em outros banheiros, eram chamados de bichas banheirudas, ou então de piranhas do banheiro, o que geralmente denotava uma posição hierárquica mais baixa, menos “bem vista” no contexto do grupo. Passados alguns minutos, Nikolai acabou sendo mais tolerado, embora muitas vezes ignorado em suas perguntas e comentários. Esse exemplo ilustra algo muito perceptível em meu campo: uma clara discriminação para com sujeitos mais velhos que mantêm relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo neste contexto da região do Dromedário, muito embora, como já constatado por Córdova (2006), tal comportamento não se restrinja àquele espaço, mas se espalhe também para todo um conjunto mais amplo do mundo GLS na cidade. Um dos meus entrevistados em uma das boates de Florianópolis afirmou: “Gay tem prazo de validade, sabia? O meu já expirou!”. Andreiev, o entrevistado, tinha cerca de 40 anos e afirmava já não ter muita vontade de sair para bares e boates GLS, pois “há muito preconceito com quem é mais velho”. 29 Aliosha tem 18 anos de idade, embora pareça ainda mais jovem. Estuda e mora na Barra da Lagoa (bairro distante cerca de 40 minutos do centro da cidade, vindo de ônibus em dia sem engarrafamento). 30 “Neca” significa “pênis”. 31 Sobre relações de segmentação e discriminação geracional no contexto social homossexual em Florianópolis, ver Córdova (2006). 32 Sinônimo de fazer sexo, transar. 28 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Além da questão geracional, há também outros fatores que são utilizados para reafirmar o vínculo grupal e para demarcar diferenças sociais (e hierarquia) no contexto das bibinhas e das sapinhas do Dromedário, do pátio e da escadaria. Um deles é quanto aos moradores do centro ou da periferia. As bibinhas e as sapinhas moradoras do centro tendem a ser vistas como melhor posicionadas na cadeia hierárquica das sociabilidades na área do Dromedário, tanto que várias vezes, contextualmente, a distinção era posta em evidência, em geral em um tom de brincadeira ou escárnio, como demonstra a fala de Aliosha para uma sapinha moradora de um bairro afastado na ilha: - “Ah, querida! Mas tu é periférica, né? Eu sou downtown!”33. Periferia englobaria tanto os bairros da cidade (na ilha ou no continente), quanto as comunidades do maciço do Morro da Cruz, que são contíguas ao centro histórico da cidade. O critério para as “periféricas” não era tanto a proximidade ou a distância (em sentido geográfico) do centro em si, mas sim se a área em que o indivíduo morava era de classe média ou de classes populares. Há o exemplo de um garoto morador do centro, porém mais distante do Dromedário do que uma garota moradora de um dos morros do maciço: ele levava 15 minutos a pé de sua casa ao Dromedário; ela, menos de 10 minutos. Entretanto, ele fazia parte dos downtowns, ela, das periféricas. Embora esta distinção não causasse a criação de setores distintos – o dos downtowns e o dos periféricos (indivíduos de ambas as classificações circulavam livremente nesses espaços) – ela acabava por servir de razão de referência hierárquica interna no contexto de sapinhas e bibinhas. Muitas vezes, o critério para compor as periféricas combinava-se também com aqueles de classe, o que se refletia em roupas menos caras (que não eram “de marca”), em não poder comentar os acontecimentos dos seriados da TV a cabo (posto que não possuíam a assinatura) e, geralmente (embora não sempre), em uma posição hierárquica inferior dentro do grupo. Digo “não sempre” para não dar uma idéia mecânica de hierarquia que, na verdade, é bem contextual e também móvel, dependendo do acionamento de alguns dispositivos de poder no grupo. Por exemplo, Müller, um rapaz de 19 anos, branco, bonito e “bombado” (em forma, musculoso), e que era extremamente popular no contexto grupal, provinha, entretanto, de camadas populares e morava em um dos morros próximos ao centro da cidade. Apesar de compor as periféricas, ele era muito respeitado por sua beleza, carisma e capacidade de conquistar amigos facilmente. Acabava por 33 A utilização de termos em língua inglesa é também um recurso de poder em diversos espaços da noite GLS da cidade, denotando sofisticação, inteligência e capital cultural. Isto se manifesta em algumas boates, onde alguns sujeitos fazem questão de cantar alto as letras de músicas em inglês para demonstrar que sabem falar a língua. Embora “downtown” (que significa parte central da cidade) não seja um termo utilizado pelo conjunto das bibinhas e sapinhas, eu o empregarei neste trabalho como categoria contrastante a “periféricas”, uma vez que foi o único termo nativo que denominava esta distinção. 29 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ conseguir corromper as normas que definem quem está mais alto e quem está inferiorizado no contexto desta hierarquia. A beleza, o carisma e a simpatia (questões que pretendo abordar mais profundamente em artigos futuros) eram os seus dispositivos de poder para enfrentar aquelas normas sociais na busca por subvertê-las. Pude perceber muitos outros exemplos de táticas de subversão das normas hierárquicas em meu campo, mas creio não ser possível expô-las neste trabalho. 2. A referência do vestuário para o vínculo grupal Assim como já afirmado, os espaços do Dromedário, do pátio do museu e da escadaria da igreja serviam como locais importantíssimos de aprendizado e de troca para “saber viver socialmente” no contexto pesquisado. Aprender a comportar-se socialmente, implica também, em termos gerais, aprender a vestir-se conforme as expectativas da coletividade à qual o indivíduo está ligado, ou à qual pretende se vincular. A análise social do vestuário foi fundamental para perceber que, além de compartilharem as vivências eróticoafetivas por pessoas do mesmo sexo e da mesma faixa etária, as sapinhas e as bibinhas também reconheciam potenciais novos integrantes a partir das roupas e dos acessórios que determinadas pessoas usavam. Isto ficou claro em diversos momentos em que os dois primeiros pré-requisitos (vivência erótico-afetiva com pessoas do mesmo sexo e compartilhamento da faixa etária) não foram cumpridos por alguns dos indivíduos. No entanto, eles foram aceitos, pois seguiram outros critérios, como o do vestuário análogo e o da afinidade na convivência.34 Não pretendo entrar em detalhes acerca de tendências específicas da moda jovem contemporânea, mas sim fazer considerações sobre a atenção metodológica dada ao vestuário nas questões identitárias. Nos primeiros dias de minha pesquisa, conheci outro garoto que também seria um dos meus informantes privilegiados. Ele se chamava Vania, e começou a conversar comigo ao me entregar um papel de divulgação de uma festa que ocorreria nos próximos dias. O rapaz se vestia bem à semelhança do resto do grupo de sapinhas e bibinhas e parecia pertencer à mesma faixa etária, pois possuía comportamento, gestual e corporalidade muito parecidos com os do restante do grupo. Usava um piercing na sobrancelha, um boné preto, 34 É claro que há outros critérios de aceitação e convivência de indivíduos que não apenas estes, entretanto, vou me ater, para fins de exeqüibilidade, a apenas aqueles que já foram apresentados. 30 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ camiseta escura com estampa de marca conhecida (e um tanto cara), calças jeans azuis rasgadas em alguns pontos e justas às pernas; os tênis eram como aqueles usados pela quase unanimidade do grupo. Enfim, portava signos bastante similares aos dos outros membros do grupo. Durante todos os meses da pesquisa eu o tratei como tratava as outras bibinhas, acreditando que cumpria todos os critérios que julgava serem imprescindíveis para “estar” entre bibinhas. Só nas últimas semanas do campo, quando ele me disse que faria aniversário num próximo dia é que me lembrei de lhe perguntar a idade (um lapso), e ele me respondeu que faria 28 anos. Fiquei impressionado com a informação, pois ele se distanciava sensivelmente da faixa etária majoritária do grupo (15 a 22 anos), e constatei que se adequava tão bem ao grupo não só por parecer realmente ter menos idade, mas também porque, além de “ficar” com outros garotos, comportava-se e vestia-se à semelhança de qualquer outra bibinha. Pude também perceber que existem diversos garotos e garotas que não “ficam” com pessoas do mesmo sexo, mas convivem e fazem parte (embora minoritariamente) dos agrupamentos de sapinhas e bibinhas. São quase todos da mesma faixa etária (amigos, parentes e/ou vizinhos de outros membros do grupo), sendo que, além da afinidade que sustenta o vínculo social, há também a concordância quanto aos signos do vestuário: vestem jeans surrados, camisetas de bandas (ou com estampas de marcas reconhecidas), bonés; alguns adotam piercings e, como é quase unanimidade, escolhem o mesmo modelo de tênis, apenas variando cores, motivos e estampas. Além dos critérios de afinidade geracional e de afinidade no campo de possibilidades erótico-afetivas há, portanto, o do vestuário análogo, que tem relações com os outros dois e cria um conjunto de signos que permite a aceitação de novos indivíduos nas fileiras de bibinhas e sapinhas. É importante ressaltar que nenhum destes três critérios, particularmente, garante a aceitação de novos indivíduos entre as pessoas estudadas. 3. Breves considerações finais Este texto, que inicialmente se propunha debater apenas a importância do vestuário para a manutenção do vínculo identitário de bibinhas e sapinhas, acabou por extravasar seu assunto e discutir também questões de distinção e segmentação social entre quem mora no centro ou na periferia (periféricas x downtowns), e outra de distinção por questões geracionais (quanto à discriminação de sujeitos mais velhos: as tias). Apresentou 31 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ também alguns dos critérios sociais gerais para a aceitação e a incursão de novos indivíduos no contexto de sapinhas e bibinhas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDETTI, Marcos R. “Hormonizada! Reflexões sobre o uso de hormônios e tecnologia do gênero entre travestis que se prostituem em Porto Alegre”. In: FÁBREGAS-MARTÍNEZ, A. I. & BENEDETTI, M. R. Na batalha: identidade, sexualidade e poder no universo da prostituição. Porto Alegre: Editora Dacasa, 2000. p.47-62. BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. London and New York: Routledge, 1990. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. CÓRDOVA, Luiz F. N. Trajetórias de homossexuais na Ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços. Tese de doutorado em ciências humanas, Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis. 2006. CORADINI, Lisabete. 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ABSTRACT 35 Mestra em Antropologia (FFCH/UFBA). Pesquisadora Convidada do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA). 34 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Some studies demonstrate how operates the race concept in Brazilian society and the persistence of the injunction of the marriage between people consider racially different. This situation leads us to reflect about the importance and influence of race as social category and the representations about the interracial marriage. In this paper, I introduce and discuss the dominant sociological representations about the interracial marriage, many times limited to monological view about racial relations. After criticizing this conception, I discuss the changes happened in the marriage and, finally, I propose a new way to analyze the interracial marriages. Key words: marriage, race, representations, interracial couple. O CASAMENTO INTER-RACIAL As representações sobre o casamento inter-racial variam significativamente conforme o contexto no qual ele é analisado. No apogeu do racismo científico (século XIX), momento em que as interpretações poligenistas ganham maior destaque, observa-se uma condenação impiedosa ao que seria o relacionamento indesejável entre seres de “espécies” diferentes. A miscigenação, tida para muitos como sinônimo de degeneração, era interpretada diferentemente, podendo ser considerada causa da infertilidade ou da fertilidade demasiada (e indesejada) dos mestiços. No Brasil, a influência das idéias poligenistas no pensamento racial se fez sentir a partir do final do século XIX, porém aqui “... a interpretação darwinista social se combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista” (Schwarcz, 1993, p. 65). Ao analisar estudos sociológicos que abordaram o tema das relações afetivosexuais no Brasil até o penúltimo quartel do século XX, Laura Moutinho percebeu uma diferença no modo como são representados os pares homem “branco”/mulher “mestiça” e homem “negro”/mulher “branca”. O primeiro “... é concebido no interior de uma relação não formal (para a época), ou seja, concubinato, amasiamento entre outros” (Moutinho, 2001, p. 224), e o segundo, “... circunscrito a uma relação formal”, mas que é concebido como [...] uma troca de compensações de atributos desprestigiantes visando à ascensão (ou mobilidade social) – negando-lhe o desejo, o afeto ou o erotismo –, apresenta-se em parte como uma forma de obscurecer a ameaça que este casal representa para uma estrutura de dominação calcada no gênero (masculino) e na “raça” (branca); (idem, p. 224-225). 35 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Tendo em vista as mudanças ocorridas na sociedade em geral - e no casamento, em particular – no que se refere à proporção de uniões formais entre negros e brancos, observa-se a inadequação de tal representação, que já não se sustenta em virtude de o percentual de casamentos inter-raciais formados pelo par homem branco/mulher negra não diferir significativamente daquele em que o par é formado por homem negro/mulher branca (Silva, 1987). Moutinho (2001) chama a atenção, em seu estudo sobre relacionamentos afetivo-sexuais entre negros e brancos, para o fato de que, nas análises em que se mencionam relações afetivas inter-raciais – sejam elas quantitativas ou qualitativas – é bastante recorrente a preocupação em identificar os fatores que levam à escolha de mulheres brancas ou negras pelos homens. No entanto, não se percebe a preocupação com os motivos que induzem as mulheres a escolherem homens brancos ou negros como parceiros, ficando assim encobertas as relações de gênero que fundamentam a “escolha”. Nos estudos de Pierson (1971 [1941]), Azevedo (1996 [1953]) e Harris (1967 [1956]), freqüentemente referidos em algumas análises sobre relações raciais, as barreiras aos casamentos inter-raciais são atribuídas à posição de classe dos envolvidos. Entretanto, notam-se variações no que se refere à explicação da importância da “raça” nesses relacionamentos. Pierson (op. cit.), a exemplo de Freyre (1933), insiste no caráter amistoso das relações raciais nesta sociedade. Após traçar um panorama presença do negro na Bahia, do período colonial à década de 40, conclui pela inexistência de um racismo que negue o mesmo status ontológico ao negro, atribuindo as manifestações de discriminação racial à situação de classe: “... a oposição ao casamento com pretos se baseia mais em classe que em raça. Quando a cor preta deixa de identificar o indivíduo como membro da classe ‘inferior’, a oposição tende a diminuir” (Pierson, [1941], p. 206). Como reforço a esse argumento, ele cita o grande número de negros que ascenderam socialmente na Bahia e de casamentos inter-raciais, chegando a afirmar: “A ‘inferioridade’ que existe não é considerada racial e, por conseguinte, permanente, mas antes cultural, temporária, e já em vias de extinção” (idem, p. 259). É importante mencionar que no texto de Pierson, fundado sobre o binômio branco/negro, a interpretação formulada pelo autor nos leva a perceber na classe social a categoria predominante, não sendo analisado de que forma as representações socialmente partilhadas a respeito de raça são influenciadas por diferenças de gênero e geração entre negros e brancos. Para Azevedo (1996 [1953] e 1975), a interdição ao casamento inter-racial não decorria unicamente da posição de classe de brancos e negros. Como ainda 36 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ persistia na década de 60 o descompasso entre a ordem racial e a ordem social, o negro era identificado como “pobre”, como membro da “ralé”. Neste contexto, o casamento inter-racial suscitava resistência ainda maior do que a aceitação do negro em ocupações privilegiadas. Azevedo, em seu clássico estudo sobre negros e ascensão social em Salvador, As elites de cor numa cidade brasileira (1996 [1953]), conclui que a “cor preta” é símbolo de status inferior e que mesmo entre pessoas da mesma classe constitui um traço diferencial negativo: “Funcionando a cor e os traços somáticos, em grande parte, como símbolos de status, a resistência aos intercasamentos traduz ao mesmo tempo preconceitos de classe e raça, ou melhor, de ‘cor’” (idem, p. 78) Assim, a cor, numa relação inversa à posição social, assume valor negativo, o que significa dizer que quanto mais escura é a cor da pele, menor é o status do indivíduo nesta sociedade. Ao tratar da mestiçagem em seu livro Democracia racial: ideologia e realidade (1975), Azevedo levanta algumas hipóteses sobre o casamento inter-racial: - - - Entre os grupos não-brancos o casamento inter-racial é mais aceito devido à identidade de classe existente entre eles (brancos = ricos, pretos e pardos = pobres); A aceitação do par homem negro/mulher branca é maior devido à regra de matripolaridade, que garante à prole a enculturação nos valores, nas regras de etiqueta e na estrutura de relações da mãe, o que não provoca a “queda” do componente branco do casal e assegura uma ascensão ao componente negro, que passa a se situar num status superior. O homem negro é melhor aceito como par quando tem status superior ao da esposa branca, o que serve para “compensar” a diferença entre os dois. Os casamentos mais aprovados são aqueles que ocorrem entre brancos e mulatos, que são “indivíduos de características antropofísicas não muito distantes” (p. 63). Harris (op. cit.) aponta a existência de estereótipos negativos contra os negros e as características físicas negróides, inclusive por parte dos próprios negros, mas diz que estes são fenômenos ideológicos que não afetam gravemente a conduta real. O que as pessoas dizem que farão ou deixarão de fazer em relação aos pretos e mulatos não se transforma em comportamento real. Na verdade, brasileiros cheios de preconceito racial já foram vistos comportando-se com a maior deferência para com representantes dos tipos que alegam serem os mais inferiores. O preconceito racial no Brasil, em outras palavras, não é acompanhado pela segregação e discriminação racial sistemáticas (p. 95). Para Harris, a referência a um indivíduo é seguida por último por sua pertinência racial, ou seja. “ele é rico, instruído e branco”, ou “rico e instruído e homem de cor” ou “pobre e ignorante homem de cor” ou “pobre e ignorante branco” (idem, p. 96). Atualmente, podemos notar uma modificação na etiqueta de 37 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ relações raciais: ou se é “rico(a)”, “bonito(a)”, “inteligente” e, conseqüentemente “branco(a)”, ou “negro(a), mas rico(a)”; “negro(a), mas boa pessoa”; “negro(a), mas educado(a)”; ou “negro, mas bonito”. O resultado dessa qualificação de raça por educação e nível econômico determina a identidade de classe a que o indivíduo pertence. É a classe a que ele pertence e não a raça que determina a adoção de atitudes subordinadas ou superiores entre indivíduos específicos nas relações face a face. [...] Não há grupos raciais contra os quais ocorra a discriminação. Ao invés disso, há grupos de classe. A cor é um dos critérios para a identidade de classe, mas não é o único (idem, p. 96). Harris aponta que a classe é o fator preponderante no sistema brasileiro de relações raciais, o que faz com que brancos e negros pobres sejam igualmente segregados. ”No que se refere ao comportamento real, as ‘raças’ não existem para os brasileiros, mas as classes existem tanto para o observador quanto para os brasileiros” (idem, p. 100-101). Florestan Fernandes, em seu livro A integração do negro na sociedade de classes (1978 [1969]), afirma que o objetivo da interdição aos casamentos interraciais era “impedir a mobilidade social vertical – a passagem do ‘negro’ para a condição de ‘gente’ ou de ‘pessoa respeitável’” (idem, p. 323-324). Mesmo que o casamento ocorresse, o preconceito dos parentes dos cônjuges não era alterado. Com freqüência, o mecanismo de aceitação favorecia apenas o indivíduo envolvido. Se houvesse resistência ao casamento, por exemplo, passadas as peripécias ligadas aos primeiros anos de afastamento, redefinia-se o “marido” da filha, da irmã ou da sobrinha, sem que isso afetasse em nada os demais julgamentos etnocêntricos (idem, p. 327). Os autores acima citados, mesmo que não vejam o movimento ascendente em si mesmo como algo negativo, dotam este movimento de uma conotação negativa para o negro, pois somente se realiza tendo como conseqüência a perda de sua própria identidade. Podemos observar este reforço nesta citação de Souza (1983): O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente” (p. 18). Para Souza, o negro que ascende tem duas opções: “tornar-se negro” ou sucumbir ao “desejo de ser branco”. Para os que optam pela segunda alternativa, o casamento inter-racial transforma-se em um meio de satisfação desse desejo impossível. O parceiro branco é transformado em instrumento tático, numa luta 38 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ cuja estratégia é cumprir os ditames superegóicos, calcados nos valores hegemônicos da ideologia dominante” (idem, p. 43). Moreira e Sobrinho (1994), partindo de compreensão similar, dirão: O casamento inter-racial apresenta-se, aos olhos dos negros, como a via de acesso a uma melhor integração social e à condição de usufruto e compartilhamento, com as demais raças, dos bens socioculturais e econômicos produzidos pela sociedade (p. 96). Segundo as representações de boa parte dos estudos sobre relações raciais, não existe margem de escolha possível ao negro: ou casa-se com um “igual”, ou tenta “branquear”, casando-se com um branco. A visão meramente pragmática da escolha conjugal somente reforça, a meu ver, as dicotomias e a concepção de espaços de interação segregados e de escolhas rigidamente demarcadas, como se ao negro não fosse permitido escolher seu parceiro baseado em critérios distintos daqueles de natureza racial. Esta posição é dotada de um caráter extremamente normatizador, pois os sentimentos e os desejos possíveis, até mesmo sua própria identidade como negro, são condicionados a um posicionamento político “adequado”. Além disto, transmite-se a visão de branquitude como algo acabado, perfeitamente delimitado. Como não se questiona como ela se mantém, permanece fadada a ser sinônimo de superioridade. Por outro lado, ao representarem a escolha de um(a) parceiro(a) branco(a) como fruto de um cálculo, de uma estratégia previamente elaborada, tais estudos negligenciam o fato de que esta escolha não só traz “benefícios”, mas tem complicações e desdobramentos que afetam o membro “negro” e também o membro “branco” do casal. Podemos identificar um sistema de representações fundamentando o processo de “escolha” do cônjuge, no qual são recorrentes as classificações do tipo: “negro” = inferior/negativo; “branco” = superior/positivo. Entretanto, de acordo com os dados cotejados nesta pesquisa, tal sistema de representações nem sempre opera de maneira exclusiva, como indicam alguns estudos sobre relações raciais (Moreira & Sobrinho, 1994; Silva, 1991; Bacelar, 1989), pois podemos observar certa inconstância, o que faz com que muitas vezes as posições se alterem e percebamos que em determinados momentos o “branco” é considerado inferior/negativo e o “negro”, superior/positivo ou, ainda, em que ambos são igualmente considerados. Na análise do processo de identificação, definir a alteridade a partir de expectativas mútuas de afastamento ou aproximação é, de certa forma, tomá-la como algo já constituído e acabado, bastando aos sujeitos o recurso à alternativa simples de assumir o outro como um espelho ou negá-lo. A meu ver, no processo de identificação, é possível dizer que há um andamento dinâmico de aceitação ou 39 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ recusa de alguns elementos que constituem positiva ou negativamente aqueles com os quais dialogamos, mas não só isso, pois há também um intercâmbio entre aqueles que se comunicam. Daí a necessidade de reavaliação da visão transmitida por teorias que representam o negro que ascende como alguém que “quer ser branco”. Em vez de reforçarmos as dicotomias “branco”/superior, “negro”/inferior, poderemos alargar nossas análises e considerar que o ser humano é relacional e que, assim sendo, alguns elementos valorizados naqueles com os quais nos relacionamos orientam nossas ações, o que é muito diferente de levar em conta que ser o “outro” in toto é meta perseguida por aqueles que supostamente seriam integralmente depreciados e inferiorizados. E isto vale tanto para o “negro” em relação ao “branco”, como para o “branco” em relação ao “negro”. Num texto que discute o reforço da desvalorização do corpo feminino pela teoria feminista como decorrência da influência do não-questionamento de determinadas concepções de corporalidade, Grosz (2000) nos ajuda a entender os prejuízos da adoção analítica do pensamento dicotômico. Este tipo de pensamento “hierarquiza e classifica os dois termos polarizados de modo que um deles se torna o termo privilegiado e o outro sua contrapartida suprimida, subordinada, negativa” (idem, p. 47) Assim, através deste tipo de pensamento, a análise do relacionamento entre negros e brancos é restringida de forma considerável, pois as possibilidades de interpretação tornam-se restritas a uma visão polarizada, na qual não há espaço para contemplação das múltiplas possibilidades de relacionamento entre os sujeitos e, muito menos, de questionamento e superação desta dicotomia. Segundo Grosz, ... a corporalidade não deve mais ser associada a apenas um sexo (ou raça), o qual passa a carregar o fardo da corporalidade do outro por isso. As mulheres não podem mais ter a função de ser o corpo para os homens, enquanto os homens são deixados livres para escalar as alturas da reflexão teórica e da produção cultural. Negros, escravos, imigrantes, povos nativos não podem mais funcionar como o corpo de trabalho para os “cidadãos” brancos, deixando-os livres para criar valores, a moral, o conhecimento. Existem (pelo menos) dois tipos de corpos (idem, p. 83). Como conseqüência da afirmação de um corpo-padrão em função do qual todos os outros são julgados, temos a existência de comportamentos que traduzem a negação da identificação com o que pode ser caracterizado como “negro”. O corpo não é aqui entendido simplesmente como um organismo biológico, mas sim como “um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais e geográficas” (idem, p. 84). Um exemplo da valorização do corpo branco em detrimento do negro é o processo de demonização que sofrem as religiões de origem africana por parte de 40 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ algumas tendências do pentecostalismo, o que resulta num “disciplinamento” dos corpos a partir da negação de valores que são associados a um modo de ser negro. Isto não significa, no entanto, que devemos considerar que pentecostalismo e afirmação de identidade negra sejam incompatíveis, pois o estudo de John Burdick (2001) sobre este mesmo assunto nos mostra que, além das tensões do discurso étnico em face do pensamento pentecostal, é possível perceber elementos de etnicidade negra nessas congregações. O casamento inter-racial, utilizado por alguns como reforço ao argumento de igualdade existente entre negros e brancos no Brasil, somente ocorre, de acordo com Hasenbalg (1995), em 21% do total de casamentos, o que denuncia a idealização das relações raciais nesta sociedade. Tais estudos apontam que mesmo os pardos, socioeconomicamente mais próximos dos pretos, se distanciam destes no que diz respeito à preferência matrimonial – o que se traduz no maior número de casamentos inter-raciais entre membros deste grupo com os do grupo branco (Silva, 1991). Ao analisar o casamento inter-racial nas décadas de 80 e 90, Petrucelli (2001) compara dados das Pesquisas por Amostra de Domicílios (PNADs) de 1987 e 1998 e chama a atenção para a classificação da população por grupos de cor, o que seria um fator determinante no mercado matrimonial. Com uma distribuição da população brasileira entre brancos, pardos e pretos de aproximadamente 55, 40 e 5 pessoas em cada 100, respectivamente, e sendo a oferta de parceiros proporcional ao tamanho de cada grupo, se tomarmos apenas os dados brutos para estudar o comportamento marital, veremos que aspectos significativos do fenômeno não são devidamente analisados. Petrucelli (2001), corroborando o que havia sido afirmado por Silva (1987 e 1991), nos mostra como a desconsideração dos tamanhos relativos desiguais das populações branca, preta e parda na análise de endogamia nos fornece uma visão distorcida do fenômeno.36 Ao proceder à análise dos dados sem considerar as diferenças entre os grupos, foi observado que o grupo dos pretos apresentou as menores taxas de endogamia (60,7%) e o grupo dos brancos, as maiores taxas (83,2%). Os pardos apresentaram uma taxa de endogamia maior que a dos pretos (72,7%). Ao efetuar uma padronização das distribuições relativas dos grupos de cor através de um método estatístico de ajuste, o autor evidenciou que os percentuais de uniões endogâmicas são completamente diferentes para os grupos branco e preto: 75,6% e 84,3%, respectivamente; a taxa de endogamia dos pardos não sofre variação significativa: 72,4%. Estes dados contrariam o que dizem Moreira e 36 Nelson do Valle Silva, em seu artigo “Distância social e casamento inter-racial no Brasil” (1987), já chamava a atenção para a necessidade de se observar tanto a importância da seletividade marital para o estudo da composição populacional, quanto o efeito da composição populacional sobre a seletividade marital. 41 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Sobrinho (op. cit.), que apontam a existência de uma proscrição do casamento com negros entre os brancos e a busca, ou até mesmo a prescrição, de casamentos com brancos entre os negros. Ao considerar a educação como indicador de status e ao analisar os comportamentos específicos de formação de casais entre os distintos grupos de cor, Petrucelli (ibidem) observou que quanto maior é o grau de escolaridade, tanto menor é o percentual de uniões, seja para homens, seja para mulheres; mas os homens apresentam maior proporção entre os casados do que as mulheres em qualquer nível de escolaridade. Ao tomar a igualdade dos grupos populacionais por cor como hipótese e calculando as taxas de endogamia ajustadas, Petrucelli chegou à conclusão de que as taxas de endogamia se mantêm no mesmo nível (ou até aumentam) com a ampliação do nível de escolaridade. De modo geral, quanto menor é a idade da mulher, menor é a taxa de endogamia. Isto nos leva a inferir que vem ocorrendo um aumento no número de casamentos mistos ao longo das últimas décadas, o que não anula o fato de que a seletividade marital por cor ainda contribui de forma significativa para a manutenção das fronteiras inter-raciais. Assim, Petruceli (ibidem, p. 32) conclui que a maior visibilidade deste tipo de união “...mascara as reais condições de reprodução da desigualdade na população brasileira, contribuindo, paradoxalmente, para a manutenção das fronteiras inter-raciais e assegurando, assim, a continuidade da transmissão do patrimônio genético coletivo”. Mesmo se considerarmos que a “cor” é um dos elementos que estão presentes ao se definir alguém em termos raciais e que ela atua como um princípio de diferenciação, quando “raça” é utilizada como uma variável analítica em estudos quantitativos, o pesquisador geralmente classifica por cor os sujeitos de sua pesquisa, ou permite ao entrevistado a auto-identificação como membro de determinada raça. A compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos ao se afirmarem “pardo”, “preto” ou “branco” é negligenciada e, assim, o aspecto relacional perde terreno para alternativas substancialistas, nas quais raça é identificada com o biológico.37 Além disso, as análises quantitativas “sugerem caminhos, reiteram e/ou descartam certas hipóteses, mas não desvelam as representações e os valores sociais que orientam tais escolhas” (Moutinho, op. cit, p.27). Apesar de chamar a atenção para o constrangimento do processo de escolha dos cônjuges pela “raça”, nos estudos quantitativos sobre casamento inter-racial, a escolha assume um caráter substancialista e a cor figura como o principal indicador de pertença dos indivíduos aos grupos raciais. Por outro lado, em muitos estudos qualitativos que se dedicam ao tema, podemos observar certa limitação nas 37 Ver Piza e& Rosemberg, 2002. 42 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ explicações dadas ao fenômeno, a exemplo da visão do casamento inter-racial como uma estratégia consciente utilizada pelo negro em seu processo de ascensão social. O casamento inter-racial como estratégia de ascensão social do negro Para que seja bem dimensionada, uma análise do casamento inter-racial em grupos de classe média deve levar em consideração como são sociologicamente representados os negros que ascenderam, muitas vezes tidos como trânsfugas, como “traidores da raça”.38 O negro, quando em processo de ascensão social, figura de modo idiossincrático nos estudos sobre relações raciais. Se como “povo” o negro tão somente alimenta a expectativa de ingressar no “mundo dos brancos”, ao se tornar membro da elite, ele é representado como alguém que luta todo o tempo para desvincular-se do seu grupo de origem e “tornar-se branco”. Alguns estudos que tratam das relações raciais (Fernandes, 1978; Souza, 1983; Moreira e Sobrinho, 1994; Ribeiro, 1995), ao descreverem a situação dos negros que passaram por um processo de mobilidade social ascendente, freqüentemente recorrem a generalizações equivocadas. Estas representações apenas corroboram o que é afirmado pelo senso comum em relação ao negro “rico” ou de “classe média”: “não se considera negro”, “tem vergonha de ser negro”, “é negro de alma branca” etc. Para seus descendentes [da elite], o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa (Ribeiro, 1995, p. 222). Outro recurso utilizado em estudos que tratam das relações raciais é a divisão da população negra entre aqueles que assumem sua negritude e aqueles que a negam, geralmente associando a afirmação ou a negação da negritude à situação de classe. Em seu estudo sobre etnicidade na cidade de Salvador, Bacelar (1989) divide a população negra em duas categorias: a primeira, marcada pela ausência de um postulado étnico como matriz, e a segunda, pautada no estabelecimento da primazia da etnicidade (grupos religiosos e grupos 38 Ver Bento, 2002. 43 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ políticos negros). A primeira categoria, onde estão situados os negros de classe média, está ... inserida na ética do capitalismo, comprometida com a reprodução da ordem social, absorvendo os princípios da ideologia liberal burguesa, sobretudo a igualdade e a liberdade. Ainda, assumindo a versão letrada e ideal da cultura moderna: a ideologia individualista das classes médias. Pautada na perspectiva de ascensão social, real ou não, cria formas de auto-representação e sinais diacríticos que a distancia das classes trabalhadoras (idem, p. 84). Outras características que, segundo Bacellar (ibidem), definem esta categoria são: aceitação do paradigma da democracia racial, atribuição do insucesso individual à sua suposta incapacidade intelectual ou a pessoas, representação axiológica positiva do mundo dos brancos e representação negativa do mundo dos negros. O casamento inter-racial, as amizades e as representações em torno da condição racial seriam atalhos ao “embranquecimento”. Entre os negros que tomam o postulado étnico como matriz, Bacelar (ibidem) define três subcategorias: 1. Identificam-se com as classes trabalhadoras urbanas, opõem-se aos valores de classe média, principalmente ao individualismo. Têm o componente étnico destacado. 2. “assim como identifica-se a com primeira, as abarcando classes grupos trabalhadoras muito urbanas, diferenciados, tendo baixa categorização em face das relações de produção e impossibilidade de assumir os princípios liberais burgueses, sobremodo a igualdade e a liberdade. Constroem formulações alternativas, com explícita oposição aos valores da classe média, com ‘um sentimento e prática de pertencimento a um grupo coabitante de uma mesma região social’, concedendo ênfase na preeminência do grupo sobre o indivíduo” (p. 86). 3. O campo religioso, mais especificamente o candomblé, por preservar a identidade negra. Caracteriza-se por uma ampla tolerância religiosa e um relativo afastamento das questões políticas da integração social. Segundo Bacelar (ibidem), as representações sobre as relações étnicas foram alteradas a partir da dinamização da economia baiana, ocorrida desde a segunda metade do século XX. A pobreza já não era típica da população negra, o que deslocou o foco da produção simbólica para as relações de produção. Entretanto, na interpretação do autor, persiste a visão de que a inserção na camada dominante operou como um dos fatores responsáveis pelo afastamento da autoidentificação como negros por aqueles que ascendiam. 44 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em A integração do negro na sociedade de classes (1978 [1969]), Florestan Fernandes analisa a situação do negro após a abolição e denuncia os efeitos da transição da sociedade escravista para a sociedade de classes. No entanto, opera com o binômio negro/branco de uma maneira que tolda a contribuição do negro como um ser ativo, que até mesmo pelas agruras enfrentadas num contexto extremamente hostil teria expectativas outras que não apenas a assimilação ao “mundo branco”: ... as motivações e as orientações do comportamento social do “negro”, em suas manifestações individuais ou coletivas, são calibradas e dirigidas pelo afã de “pertencer ao sistema”. As críticas que ele faz à organização da sociedade brasileira afetam a esfera dos ajustamentos e das relações raciais (p. 12). Ao tomar “negro” e “povo” como sinônimos e considerar o primeiro um contingente que está fora da sociedade, Fernandes, ao mesmo tempo em que denuncia o processo de marginalização a que foi submetido o negro, reafirma a consideração de que este não constitui e é constituído por esta mesma sociedade. Assim, embora se tratando de um cientista que tenta romper as barreiras do racismo e luta em prol da inclusão de segmentos excluídos da sociedade, vemos que há um reforço de posições, o que pode ser comprovado até no sentido evocado pelos títulos de seus livros, a exemplo de A integração do negro na sociedade de classes: trata-se de alguém que esteve fora e através de um processo exterior a ele é incluído, e não de um agente ativo na dinâmica de construção da sociedade que passa por uma transformação. Podemos observar isto quando ele diz que “a análise converte-se em um estudo da formação, consolidação e expansão do regime de classes sociais no Brasil do ângulo das relações raciais e, em particular, da absorção do negro e do mulato” (idem, p. 10). Pode ser percebida em Fernandes uma recusa em admitir que o fator racial desempenhou um papel autônomo na organização social, pois ele afirma que as “tendências históricas de diferenciação e de reintegração da ordem social não favoreciam, de per se, nenhum agrupamento étnico ou racial determinado” (idem, p. 247). Como o envolvimento nos processos de crescimento econômico e de desenvolvimento sociocultural dependia de recursos materiais e morais dos quais o negro não dispunha, ele aí ingressou em desvantagem. Deste modo, para Fernandes, a responsabilidade do não-ajustamento à nova situação histórica se deveu à permanência, na população negra, de um “equipamento adaptativo e integrativo basicamente modelado para funcionar na sociedade de castas” (idem, p. 248). Esta permanência, devido à ausência de estímulo econômico, político e social em relação à mudança da situação dos negros, favoreceu o isolamento sociocultural destes. Fernandes classificou tal situação como um “problema de demora cultural”. 45 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ A ascensão social dos negros não é vista por Fernandes de modo negativo. Para ele, apesar de se afastarem dos seus “irmãos de cor” e negarem solidariedade aos movimentos reivindicatórios, a ascensão do negro é positiva, pois este ... impõe ao “branco”, por seu modo de ser, por sua maneira de afirmar-se socialmente e por seu estilo de vida, uma imagem nova do “preto”. Em particular, ele contribui para reduzir e, por vezes, até para anular a distância cultural existente entre os padrões de vida dos dois estoques raciais. [...] Portanto, o “grã-fino negro” desempenha a sua tarefa histórica, apesar de seu esnobismo e de sua cruel indiferença diante dos dilemas do “negro pobre”, a qual consiste em matizar a composição racial dos diferentes estratos sociais da sociedade inclusiva (idem, p. 180). A possibilidade de ascensão à classe média teria exercido sobre os negros, segundo Fernandes, a mesma influência que os imigrantes bem-sucedidos exerceram sobre os pobres, ou seja, eles seriam a prova de que poderiam “chegar lá”. Azevedo (1975) assinala que, mesmo quando ascendem profissionalmente, os negros são alvo de uma “mobilidade seletiva”, pois são aceitos em determinados espaços, mas têm o acesso vetado em outros. Isto porque, em face da ameaça que representam à estabilidade das posições na estrutura social, são criados novos mecanismos discriminatórios pelos brancos para que garantam status quo. Os negros, segundo o autor, reagem de diversas maneiras, principalmente através do retraimento ou da restrição do convívio com os brancos ao espaço de trabalho. Ao descreverem os espaços “brancos” e “negros” como rigidamente demarcados, os autores supracitados, mesmo propondo a emancipação do negro, involuntariamente reforçam aquele que é considerado o seu “lugar”, ou seja, a posição de subalternidade, de privação material e de acesso à educação. Tal representação do negro adquire uma conotação que, em última instância, apenas reproduz alguns fundamentos lógicos do sistema desigual que criticam. O “branqueamento” atribuído aos negros que ascendem é visto por Bento (2002) como uma forma de “manter o negro em seu lugar”. Ela aponta como significativo para compreendermos os propósitos desta ideologia o fato de que esta maneira ganha maior força justamente a partir do início do período de industrialização no país, quando os negros constituíam um significativo exército de reserva. Nesse momento, “esse diferente ameaçador ou foi tratado como um ser despreparado para integrar a sociedade de classes ou como um trânsfuga que manipulava sua condição racial para poder ascender” (idem, p. 52). Segundo Bento, no Brasil, “... o branqueamento é freqüentemente considerado como um problema do negro que, descontente e desconfortável com 46 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais” (idem, p. 25). Ela nos mostra como está implícita neste tipo de concepção a idéia do branco como o único representante legítimo da humanidade. A branquitude e o processo de construção de sua superioridade, existindo como um modelo a ser perseguido pelos grupos não-brancos, não são devidamente questionados. Deste modo, as desigualdades raciais no país terminam por se constituir em um problema exclusivo do negro. De acordo com Bento, na raiz do problema encontra-se o interesse do grupo branco dominante em preservar a sua situação de dominação através da exclusão moral do “outro”, assim como no narcisismo, no medo e na projeção. No narcisismo, por tomar somente a si mesmo como modelo; na projeção, ao atribuir ao “outro” suas próprias mazelas e com isso justificar as ações ofensivas a ele dirigidas, e no medo, por se sentir ameaçado por aqueles que estão fora de seu padrão de humanidade e que desestabilizam sua própria posição. Um aspecto decorrente desta situação é o silenciamento quanto à sua branquitude por parte dos sujeitos que se beneficiam da condição de brancos, mesmo aqueles que adotam uma postura de enfrentamento ao racismo. Por outro lado, temos a manipulação da divergência de identificações por muitos dos que ora são considerados negros, ora brancos, dependendo do contexto no qual estejam situados. Além de fatores políticos que justificam o apelo ao argumento do “branqueamento”, acredito que também podem ser observados aspectos epistemológicos. A recorrência a pares binários nas análises das relações raciais faz com que haja um embotamento da visão no que se refere a aspectos que são imprescindíveis à adequada compreensão dos fenômenos. Um deles é a gama de possibilidades que não são contempladas por tais análises em virtude da visão polarizada que se tem das relações raciais. Outro aspecto que estudiosos e pessoas envolvidas na luta anti-racista geralmente não consideram é que, ao associarmos ascensão à branquitude, negligenciamos o fato de que aquilo que está em pauta é a resistência em ver o negro como alguém que rompe com uma representação socialmente partilhada, na qual “negro” é sinônimo de “pobre”. Em seu livro Novas elites de cor: estudo sobre os profissionais liberais negros de Salvador (2002), Ângela Figueiredo também questiona a associação entre ascensão e embranquecimento, e nos mostra como novos significados são capazes de revestir esta experiência para os negros, que podem alcançar, inclusive, o fortalecimento de sua identidade como negros a partir da experiência de ascensão social. 47 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Como foi discutido neste tópico, um dos principais problemas ao se tratar do casamento inter-racial é a atribuição de uma determinada postura – a de “negar a raça” – aos negros e às negras que optam por este tipo de relacionamento, sem que sejam investigadas as representações que os mesmos possuem a respeito do que é ser “negro” ou “negra”, ou como eles entendem o relacionamento inter-racial. Do mesmo modo, também não se enfatiza o caráter relacional deste tipo de união, o que faz com que os “brancos” e as “brancas” que escolhem esta maneira de se relacionarem também não sejam mencionados em tais análises. Nos estudos sobre relações raciais que adotam uma visão monológica da realidade, podemos perceber que a influência dos valores do pesquisador se faz bastante presente no resultado da investigação, construindo “negros” e “brancos” a partir de uma perspectiva que recorre a pares dicotômicos que limitam as possibilidades dos sujeitos representados. Neles, temos a insistência no sentido absoluto da diferença. “Negros” e “brancos” não são concebidos como construções decorrentes do processo de interação entre seres fundamentalmente relacionais e que participam de forma ativa da construção um do outro, mas como meros índices de presença ou ausência de poder. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Thales de. 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A religião está em evidência, manifesta-se em diferentes espaços e situações, como em grandes eventos, matérias de jornais, pichações em muros, adesivos nos carros, camisetas com frases bíblicas. Está nas pessoas e nos objetos. O objetivo deste artigo é analisar comparativamente as estratégias de ocupação do espaço público – fundamentalmente secularizado e plural – a presença da “religião” na sociedade contemporânea, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse sentido, buscamse compreender as formas pelas quais diferentes confissões religiosas e indivíduos utilizam as grandes cidades como locus privilegiados para a transmissão de preceitos e doutrinas. A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como combinações no contato entre alteridades. Palavras-chave: religião, espaço público, pluralismo, experiência religiosa e cidades. Abstract 39 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Pós-doutoranda CEM/CEBRAP/FAPESP, SP. Este artigo apresenta as primeiras impressões de pesquisa mais ampla realizada no âmbito de estágio pós-doutoral junto ao Centro de Estudos da Metrópole/Cebrap, O projeto de pesquisa “(In)Tolerância, exclusivismo religioso e espaço público: dinâmicas e transformações nas relações cotidianas urbanas” está sendo desenvolvido com bolsa PD da Fapesp. 50 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ The many ways of religious practice go way beyond the already established and identified as appropriated spaces for it. Religion is in evidence, manifested in different spaces and situations, as during important events, newspapers articles, graffiti, car stickers, t-shirts printed with biblical sentences. It is on people and objects. The main goal of this article is to analyze comparatively the strategies used in public space occupation - fundamentally secularized and plural - by religious pathways in contemporary society, in the cities of São Paulo and Rio de Janeiro. In this way, it tries to comprehend the many ways different religious confessions and human beings use big cities as privileged locus to pass ahead concepts and doctrines. The adopted perspective analyses conflicts as much as combinations between different perspectives. Key-words: religion, public space, pluralism, religious experience and cities. Na sociedade brasileira atual há um reconhecimento de que ser brasileiro não significa, automaticamente, ser católico. Neste novo modelo impõe-se uma qualificação diferenciada do que é ser religioso e de como isso se expressa no contexto contemporâneo. Transformações, combinações e conflitos têm ocorrido nas relações cotidianas urbanas, e também nas disposições sociais e pessoais, diante de um tipo específico de pluralismo religioso marcado pelo crescimento quantitativo do chamado campo evangélico. Até recentemente, a idéia reinante sobre religião no país tinha como base o englobamento das religiões afro-brasileiras pelo catolicismo e, em relação às outras religiões, seu predomínio era considerado ponto-pacífico (Sanchis, 1994). Atualmente, a liderança quantitativa do catolicismo é evidente, como mostram os resultados do último Censo (IBGE, 2000). A atuação institucional da Igreja Católica assume novas roupagens ou atualiza sua influência no espaço público. Mas não é mais a única protagonista. A delimitação das fronteiras religiosas no Brasil é um tema bastante discutido, em princípio, a partir de estudos sobre as religiões afro-brasileiras (Bastide, 1971; Carneiro, 1984, entre outros). O catolicismo popular constitui-se o grande aglutinador dessa dinâmica, na qual os limites se apresentam fluidos, em um movimento tão dinâmico a ponto de diluir ou dificultar seu reconhecimento. Aqui a noção de sincretismo englobante é central para compreensão do pluralismo religioso40. Outro tipo de pluralismo foi impulsionado nas últimas décadas, caracterizado pela tendência exclusivista. Várias pesquisas (Freston, 1994; Fernandes, 1994; 1998; Mariz e Machado, 1998) evidenciam a crescente complexificação do campo religioso brasileiro. A entrada em cena, no final da década de 1970, das 40 Para uma discussão mais aprofundada sobre esse debate, ver Sanchis at al. “Fiéis e cidadãos: percursos do sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: 2001”; e ainda “A dança dos sincretismos”. Rio de Janeiro: Comunicações do Iser, 1994. 51 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ denominações evangélicas neopentecostais é apresentada como um dos fatores que contribuíram para a produção deste novo perfil. O discurso institucional enfatiza o exclusivismo, embora com atravessamentos e trocas simbólicas entre as confissões. Há um movimento marcante de mudança no perfil religioso da população, evidenciado nas relações cotidianas (Gomes. 2006a; 2006b) – assim como no embate político Mariz e Machado (1998), por exemplo, apontam que há uma forte proposta de exclusivismo religioso e um investimento no compromisso dos membros com suas respectivas instituições. Em contrapartida, as autoras também identificam um processo recorrente de desinstitucionalização. O panorama religioso contemporâneo apresenta, assim, transformações que envolvem simultaneamente processos de institucionalização e de desinstitucionalização. No primeiro, assinalam-se como marcos a expressiva conversão ao campo evangélico pentecostal e a retomada de identidades religiosas atribuídas, como o catolicismo. Este apresenta como característica uma forte proposta de exclusivismo através do investimento no “compromisso identitário” dos membros com suas respectivas instituições. Ressaltei em outra análise (Gomes, 2006) que, no movimento de rejeição ou aceitação do “outro” – no caso, aceitação entre evangélicos pentecostais e católicos em uma rede familiar - ocorria de forma concomitante a afirmação da identidade católica exclusiva, revestida por uma postura contrastiva. A tendência de se tomar o catolicismo como identidade religiosa exclusiva foi verificada não somente nas diretrizes institucionais e no discurso manifestado publicamente pelas lideranças da Igreja. Uma forte adesão às práticas religiosas institucionalizadas e a intensificação da freqüência à igreja são exemplos da conformação do pertencimento religioso entre católicos e evangélicos. O modelo de católico praticante ganha espaço. Surgiu no campo uma nova categoria: “evangélico não-praticante” – termos inconciliáveis até o momento, já que “ser evangélico” tem seu significado atado à freqüentação e ao compromisso institucional (Fernandes, 1998). O movimento oposto à institucionalização caracteriza-se pelo primado da escolha e da liberdade individual, pela rejeição às religiões familiares atribuídas, pela não-adesão formal a instituições religiosas e pelo trânsito religioso. Isto não significa ausência da dimensão religiosa como experiência vital; o ponto crítico está na desvinculação do sentimento religioso e em relação ao pertencimento institucional. Birman (1996) e Semán (2000), entre outros autores, abordam a questão do trânsito religioso do ponto de vista das passagens e das interpenetrações contínuas. Outros validam a aplicação da idéia de conversão como ruptura, como Mariz e Machado (1998), adotando a idéia de que a identificação a um determinado grupo religioso é perpassada pela adoção de um novo ethos, embora reconheçam que o 52 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ processo de conversão não ocorra subitamente. Contins (1995) considera a possibilidade de tratar a conversão como um processo contínuo, no qual o convertido se constitui e não tem sentido sem seus “outros” – no diálogo em que sua experiência religiosa é construída. Mafra (2002) contribui para o debate, caracterizando dois tipos de conversão: minimalista e maximalista. Cabe frisar que o trânsito religioso pode ser pensado como mudança de vínculo, seja este considerado como ruptura ou como passagem, ou ainda como um laço frouxo que permite freqüentações mais ou menos intensas. Tal particularidade remete a considerações sobre as diversas possibilidades inter-relações possíveis em um campo polifônico e cada vez mais regado pela preeminência da escolha. Ao menos três dimensões – complementares – são importantes para a análise do fenômeno religioso: “1. ‘religião’, como identidade ou pertencimento; 2. ‘religiosidade’, como adesão, experiência ou crença; 3. ‘ethos religioso’, como disposição ética ou comportamental associada a um universo religioso” (Duarte, 2005:141). No nível da adesão religiosa, como já sublinharam Mariz e Machado (1998) e Gomes (2004), é preciso considerar ainda os diferentes graus de inserção dos membros nas respectivas religiões, pois dependendo do tipo de vínculo estabelecido, há maior ou menor comprometimento com a reprodução das diretrizes institucionais. A pesquisa que origina a presente análise objetiva investigar eventos públicos realizados pelas diversas confissões religiosas, em diferentes locais das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, identificando semelhanças e diferenças no que tange à relação que estabelecem na e com a metrópole. Em outro nível, pretende-se problematizar a relação entre dinamismo urbano e as dimensões, complementares, do fenômeno religioso – pertencimento, adesão e ethos – no sentido de verificar tanto a inserção do religioso na cidade quanto as transformações que as práticas religiosas contemporâneas provocam em seu cotidiano. Trata-se especificamente, aqui, de discutir as estratégias de ocupação do espaço público, fundamentalmente secularizado e plural, pelas correntes religiosas na sociedade contemporânea. A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como combinações no contato entre alteridades. Nesse sentido, busca-se compreender as formas pelas quais diferentes confissões religiosas e indivíduos utilizam as grandes cidades como locus privilegiados para a transmissão de preceitos e doutrinas, assim como investem na idéia de pertencimento e de adesão religiosa. Ao se seguir esta perspectiva, propõese problematizar a “exposição do exclusivismo” em diferentes eventos – religiosos ou não – nos quais a religião, em seu sentido amplo, de alguma maneira se faz presente. Trata-se de buscar uma compreensão sobre os modos com que este fenômeno aparece em distintas situações nas cidades pesquisadas, considerando 53 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ que a tendência exclusivista não se associa fundamentalmente a posturas agressivas e intolerantes. A presente reflexão leva em conta três tipos ideais de estratégias de utilização do espaço público pelas correntes religiosas. O primeiro é representado por aqueles eventos religiosos realizados em espaços da cidade que comportam multidões, tais como estádios, praças e avenidas. Em geral, essas manifestações ocorrem em finais de semana e feriados. Um segundo tipo manifesta-se em eventos considerados “mundanos”: carnaval, parada gay, reveillon, entre outros. Outro tipo significativo ocorre em pequenos grupos ou por meio de atitudes religiosas individuais, que utilizam o espaço público como lugar de evangelização, somente possível por meio da confrontação41 com os “outros”; ela ocorre especialmente no horário comercial ou de “pico” em regiões de passagem e grande fluxo: terminais rodoviários e de trens, praças, ruas, de casa em casa etc. Outros tipos ainda poderiam ser listados, no entanto, para o momento, as considerações serão direcionadas aos dois primeiros tipos apontados. Pluralismo religioso e a “fé em ação” O panorama religioso é marcado por um campo de negociação-conflito constante entre as experiências religiosas individuais e a sociedade mais ampla. Percebe-se um movimento de mudanças significativo no perfil religioso da população, especialmente evidenciado nas relações cotidianas das grandes cidades. Chama a atenção a forma como o religioso aparece no espaço público em seu perfil contemporâneo: plural, muitas vezes exclusivista, em tensão entre si e em relação a temas que atingem a sociedade mais ampla. As formas de exercício da religiosidade extrapolam os espaços dos templos, construídos e identificados como apropriados às práticas religiosas. A religião está em evidência, manifesta-se em diferentes espaços e situações: matérias de jornais, pichações em muros, adesivos nos carros, camisetas com frases bíblicas, fotografias de santos, orixás, buda, deuses indianos, entre outras. Está nas pessoas e nos objetos. Nesse movimento em que a religião se evidencia, a cidade não é somente palco dos acontecimentos, mas também protagonista. A relação religião-cidade foi abordada por outros autores. Segundo Amaral (1996:296), “os grupos ‘fazem a cidade’ porque são diferentes e até mesmo opostos. Sua lógica é o resultado de tantas outras, que por sua vez partilham a ‘lógica da cidade’ em sua práxis”. Em concordância com esta autora, Silva (1996) 41 Confrontação está sendo usada aqui como estar diante de um “outro” ou “outros” e não, necessariamente, no sentido de conflito, embora este possa se apresentar no contato entre diferentes alteridades. 54 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ observa que, em relação às religiões afro-brasileiras – o “culto aos orixás” – as transformações das sociedades urbano-industriais provocam tanto a tentativa de “recuperação” da natureza quanto uma “ressignificação dos espaços (como esquinas, ruas, cemitérios e encruzilhadas), pelo reconhecimento da presença dos deuses nesses lugares” (1996:103). Ao analisar a Festa do Divino Espírito Santo, no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro, Contins (2004) observa que ela aproxima os moradores, inclusive aqueles que não fazem parte da irmandade, já que está totalmente vinculada à história do bairro. A “ressignificação dos espaços” e o “fazer a cidade” são indissociáveis da experiência urbana, marcada pela novidade e pelo imprevisível, característicos da convivência com estranhos que partilham o mesmo espaço (Caiafa, 2006). Alguns autores enfatizam que, mesmo em contexto de pluralismo, a religião atua como mediadora de conflitos no espaço público (Novaes, 2004; Mafra, 2003). Essas reflexões aparecem também em estudo sobre a religião em São Paulo. Almeida (2004) aponta o caráter relacional e distinto das ações sociais empreendidas pelas diferentes confissões religiosas. Para outros, vivemos em um momento no qual a autenticidade das identidades dos grupos religiosos é posta em questão (Carvalho, 1999). Da perspectiva das instituições religiosas, a exposição na cidade da religião – em seus distintos tipos de manifestação - é, ao mesmo tempo, forma de legitimação e estratégia de visibilização. Este ponto é crucial para a reflexão sobre determinadas manifestações contemporâneas, organizadas por instituições religiosas com o intuito de reunir multidões. Se considerarmos o aspecto da transmissão da mensagem religiosa, ao menos no caso dos cristãos (católicos, evangélicos, e outras correntes), o espaço público, concebido como “mundano”, é aquele privilegiado para a evangelização. As estratégias de ação religiosa que ocorrem no fluxo das cidades vêm em conjunto com discursos institucionais sobre a autenticidade de suas crenças e práticas (Gomes, 2004; Gomes e Contins, 2008). Pode-se dizer que estes têm sido acionados para contrastar e definir fronteiras de legitimidade no campo religioso brasileiro contemporâneo. Os evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos, por exemplo, realizam seus eventos em grandes espaços no perímetro urbano. No Rio de Janeiro, alguns locais são preferencialmente escolhidos: Praça XV, Aterro do Flamengo, Quinta da Boa-Vista, Maracanã, entre outros. Em São Paulo, também os estádios são utilizados, mas a Avenida Paulista tem lugar especial, assim como o Campo de Marte. O fato de serem realizados no espaço da grande cidade tem sido considerado um dado relevante para a compreensão das transformações das relações de sociabilidade contemporâneas. 55 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ No entanto, não são somente os grandes eventos que estabelecem esse entrelaçamento. A prática religiosa desses grupos está diretamente articulada ao fluxo constante da cidade, na qual o proselitismo42 religioso se mantém em constante alimentação. Vale ressaltar que o caráter evangelizador contemporâneo é enfático quanto à idéia da “fé em ação”. Esta investida tanto pode significar a possibilidade de convivência da diferença no espaço público, conforme previsto pelos códigos da cidade moderna, como provocar a interpretação de que evangelizar é o mesmo que incomodar e invadir, principalmente quando há interesses, religiosos, ou não, conflitantes. Evangelizar e invadir são verbos muito próximos e entram em choque com a heterogeneidade – não apenas no que concerne às opções religiosas – e a individualidade, características das grandes cidades43. O proselitismo religioso é percebido como um pressuposto pelo campo evangélico pentecostal; trata-se de uma expressão do pertencimento e do grau de adesão daquele que se converte à transmissão “da Palavra” em sua vida cotidiana: na família, na escola, no trabalho. Há diversas possibilidades de declaração contínua de engajamento na causa religiosa: distribuição de panfletos em ruas e praças; orações e cultos realizados no percurso para o trabalho, como ocorrem nos trens da Central do Brasil e nas barcas que cruzam a Baía de Guanabara. Observase que, em contexto de exclusivismo, apesar de as estratégias de convivência emergirem na mesma proporção, as regras de cortesia ou a produção de um sentimento amigável, inerente ao jogo da sociabilidade, estão pautadas pelo proselitismo (Gomes, no prelo). Cabe ressaltar que o proselitismo e a identificação/exposição imediata da "fé em ação" são características significativas do campo religioso atual, marcado por crescimento, visibilidade e diversificação de igrejas evangélicas, em especial, as pentecostais. As posturas exclusivistas são identificadas não somente entre evangélicos, mas também entre católicos. Há um movimento dinâmico de aceitação/rejeição do “outro” concomitante com a emergência de um movimento generalizado de afirmação identitária, fundado no exclusivismo religioso. Esta característica pode ser identificada nas mais distintas formas de expressão da 42 Utilizo a categoria no sentido de “fazer discípulos, adeptos” e não em seu aspecto pejorativo, assim como assinala Rolim (1985:62). 43 Contrapondo cidade pequena – “com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida” – com “cidade grande”, Simmel (2005) observa que o "comportamento mental" típico do indivíduo moderno, caracteriza-se por uma aversão e estranheza das relações e contatos no cotidiano: o indivíduo "seleciona" a quais estímulos responderá ou dedicará atenção e tempo. Os indivíduos modernos, assim, submetidos a um elevado grau de "impressões" desenvolvem uma atitude blasé, um psiquismo "protegido" por uma espécie de "reação de defesa". A subjetividade moderna está orientada para a indiferença nos relacionamentos cotidianos e para a não-interiorização da realidade social externa. 56 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ religião, seja institucional, seja nas manifestações da religiosidade individual. A obrigação de levar a “Palavra”, no caso evangélico, por exemplo, faz com que seja necessário o estabelecimento de diálogo e mediações no tenso processo comunicativo, evidenciado, em grande medida, pela forma de ocupação dos espaços da cidade e nos embates provocados pelo encontro de diferentes correntes religiosas em determinados locais e datas comemorativas, sejam estas religiosas ou profanas. Os fenômenos religiosos atravessam as diferentes esferas sociais e são por elas reconhecidos sempre com algum grau de tensão. Em contexto de pluralismo religioso constatam-se conflitos e acomodações. As tensões se tornam mais evidentes quando as identidades religiosas – notadamente as exclusivistas – buscam ocupar novos espaços e marcar presença. As mediações e os conflitos extrapolam os limites locais, principalmente quando há reivindicação do "direito à cidade" e ao espaço público. Sugiro tratar-se de um movimento composto por valores e posicionamentos contrastivos, que se visibilizam e se consolidam a partir deste contraste. A adoção de um comportamento exclusivista não significa obrigatoriamente posturas fundamentalistas ou intolerantes. Há espaço para combinações e ajustes. Em consonância com Giumbelli (2004:11), considero que aquilo que está em jogo “é a produção de uma nova versão de cristianismo hegemônico (não necessariamente intolerante e sobretudo pouco fundamentalista)”. Além disso, a religião pode ser percebida por uma via menos formal, não se fixando na análise de rituais, mas destacando especialmente sua dimensão relacional com outras esferas sociais (Birman, 1996; Giumbelli, 2002). A realização de etnografias “na cidade” possibilita uma melhor compreensão do fenômeno religioso na atualidade, que é indissociável do caráter plural do espaço público moderno. A religião está nas pessoas, nos objetos e nas relações sociais. Além disso, há que se considerar que “o formato das ofertas religiosas está, de algum modo, articulado com a difusão permanente, ainda que irregular, da cosmologia moderna nas sociedades contemporâneas, levado a cabo por uma disseminação produtora de ‘institucionalizações’ estruturantes que vêm atingindo inclusive as camadas populares: mercantilização, racionalização, igualitarização, liberalização do espaço público” (Duarte et al, 2006:17). Para compreender as formas pelas quais diferentes confissões religiosas utilizam as metrópoles como locus privilegiados de evangelização, é fundamental que a cidade não seja percebida somente como palco dos acontecimentos, mas também, e essencialmente, como protagonista desses mesmos eventos. 57 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Desfilando ‘para Jesus’ no espaço público44 Com suas regras de inversão e subversão do cotidiano, o carnaval oferece situações singulares para análise de relações sociais mais amplas que se expressam em distintas ramificações: blocos, escolas de samba, fantasias, sambas-enredos, adereços, entre outros. Cabe frisar que existe uma extensa e excelente produção antropológica sobre o tema, mas não me deterei aqui em sua apresentação. Queiroz (1992); DaMatta (1973; 1979); Cavalcanti (1984; 1999; 2002; 2006); Augras (1998); Santos (2006); Gonçalves (2003); Guimarães (1992) são referenciais para o debate. O carnaval é um acontecimento marcante na sociedade brasileira. Em geral, religião e carnaval estão associados a campos semânticos distintos: sagrado e profano, ordem e desordem, pureza e perigo. No Rio de Janeiro, religião e carnaval estão em constante diálogo, seja para marcar as distinções, recusando a desordem, seja para reivindicar espaço, pondo em xeque as dicotomias. Este ponto é central para a presente reflexão, principalmente pelo fato de vertentes religiosas que originalmente consideravam o evento como “mundano” – impuro e profano – passaram a utilizar o período, não somente para a realização de retiros espirituais, como propostas de afastamento do mundo e purificação, mas também como estratégia de evangelização. A presença da temática religiosa no carnaval não é uma novidade. Não é necessário ir muito longe nos arquivos das escolas de samba para conferir a existência vívida da temática religiosa em seus enredos. Dos temas históricos brasileiros aos encomendados por empresas, dificilmente não ocorre a alusão a termos religiosos. Em 2007, por exemplo, pode ser listada uma série de menções ao religioso nas sinopses dos enredos das escolas do grupo especial, disponibilizadas no site da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba www.liesa.org.br). Fé, deuses, energia, criação, harmonia, devoção; jesuítas, protestantes, umbanda, candomblé, fé cristã; deus, olorum, odin, thor: todas estas palavras, entre outras possíveis, constavam nas tramas desenvolvidas para serem encenadas na Avenida Marquês de Sapucaí. O catolicismo e as religiões afro-brasileiras sempre foram acionados em enredos desde o surgimento das escolas de samba. As controvérsias ganharam visibilidade na década de 1990 com a inserção e a centralidade de figuras religiosas, como alegorias, principalmente ligadas ao cristianismo. Houve até 44 As informações e as fotografias dos eventos mencionados são provenientes de etnografias realizadas em São Paulo e Rio de Janeiro, no âmbito do projeto dapesquisa mencionada. Para o trabalho de campo, a autora contou com a valiosa colaboração dos pesquisadores César Augusto Silva e Jacqueline Kawauche. 58 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ censura às escolas de samba que adotaram tal recurso. Os principais protagonistas desse embate foram a Igreja Católica e a escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis. Em 1989, a escola levou à avenida o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”. Uma de suas principais alegorias era a imagem do Cristo Redentor, que entrou na avenida coberta com sacos pretos de lixo portando uma faixa que dizia “Mesmo proibido, orai por nós”. Houve uma forte reação da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que entrou com um mandado de segurança impedindo a exibição da alegoria. Em desfiles posteriores a controvérsia foi renovada. Os mais célebres foram os de 2002 e 2003. No primeiro, a escola teve que modificar a encenação da coreografia da comissão de frente, que trazia a luta entre jesus cristo e satanás. No ano seguinte, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida desfilou escondida entre as alas devido a protestos provenientes da Arquidiocese. Uma novidade ocorreu em 2007 no desfile do grupo especial das escolas de samba do Rio de Janeiro. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio apresentou a ala “A festa é nossa” com a fantasia “Assembléia dos Protestantes”. Os protestantes passaram a figurar como tema, ainda que subjacente, do enredo de uma escola de samba, junto com o catolicismo e as religiões afro-brasileiras. Outra situação importante, que evidencia esse vínculo, é a inclusão do período carnavalesco no calendário de evangelização de diversas igrejas45. É notória a existência de blocos carnavalescos organizados por igrejas evangélicas que promovem evangelização adotando estratégias ”mundanas”, como o Cara de Leão, do Projeto Vida Nova. Uma reportagem divulgada pelo jornal Extra de 29 de outubro de 2006 remete ao reconhecimento do pluralismo religioso em data mundana. “Na cadência dos evangélicos: no enredo que fala sobre Duque de Caxias, Grande Rio vai misturar coral gospel e pais-de-santo”, dizia a chamada da matéria. A notícia apresentava o enredo para o desfile do carnaval 2007 da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio46 – integrante do grupo especial dos desfiles do Rio de Janeiro. Apontava a controvérsia de unir no mesmo setor homenagens às religiões afro-brasileiras e às igrejas evangélicas, com o intuito de mostrar a importância da religião para a constituição da cidade que então homenageava: Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. A escola apresentou esse tema no quarto 45 Sabe-se da semelhança entre as práticas e as manifestações no espaço público de parte das igrejas do campo evangélico e da renovação carismática católica, contudo, a análise nesta comunicação se restringirá à primeira vertente. Carnaval de Jesus, Matinê de Jesus, Folia de Jesus intitularam eventos organizados pelo padre católico Marcelo Rossi. Uma análise comparativa pode ser encontrada em Contins & Gomes, 2007. 46 Em 2007, a Grande Rio ficou em segundo lugar. 59 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ setor47,chamado “A fé de um povo valente”. A sinopse do enredo explorava o tema da seguinte maneira: A fé cristã na região vem do século XVI, como podemos conferir pela igreja do Pilar, construída no mesmo século e importante monumento do primeiro período barroco brasileiro, tal qual as religiões afro-brasileiras têm destaque no que tange às suas verdadeiras raízes; exemplo disso vem do Babalorixá Joãozinho da Goméia, desde que foi intitulado “Rei do Candomblé”, na década de 1940, pela rainha Elisabeth da Inglaterra. A partir da compreensão de sua trajetória, demonstra as razões que levaram à proliferação de terreiros de Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense, desde a chegada do pai-desanto no município de Duque de Caxias, em 1946, transformando o município no grande divulgador e popularizador dos cultos Afro-Brasileiros, apontandonos a validade do Candomblé como produtor cultural brasileiro. Do Babalorixá podemos falar que, “Seu João” fora um dos mais famosos babalorixás em meados do século que findou. A Rua Goméia, em São Caetano, bairro da cidade baixa de Salvador, endereço do seu primeiro terreiro, deu-lhe o sobrenome que carregaria pela vida afora. Mas foi depois de sua transferência para o município fluminense de Duque de Caxias que sua fama atingiu contornos nacionais. Tanto que a rua onde Joãozinho fundou seu segundo terreiro acabou chamando-se também de Goméia em homenagem ao pai-desanto. Um complexo jogo de continuidades e transferências entre reinos, continentes, estados, cidades, nomes de ruas, homens e deuses concentravase em Salvador e Rio de Janeiro. E eu me surpreendo ao ver alguém do santo falar com tanto carinho de um sacerdote do rito angola, num ambiente onde a nagocracia ainda é um imperativo categórico no jogo político pela legitimidade das tradições. Impressionava aquela voz rouca e devota, firme e afinada com que o sacerdote saudava de Exu a Oxalá. Aliás, este é um percurso muito comum no proselitismo involuntário do candomblé; muitos chegam a esta religião vindos da capoeira, das escolas de samba, dos cursos de samba, das letras e ritmos de nosso cancioneiro popular, da curiosidade em saber, ou saber um pouco mais, o que se diz quando usamos termos como axé, ago, aláfia... “Seu João” foi um dos mais importantes e polêmicos agentes na divulgação dos significados do candomblé ocorrida nos anos 60 na sociedade brasileira, sobretudo por fazer da mídia e das artes suas grandes aliadas. Trouxe para os centros urbanos do sudoeste a percepção das vantagens de tornar conhecidos os cultos afro-brasileiros. Inclusive para a sua própria defesa. Numa lista elaborada em 1983, dos 24 terreiros mais antigos da capital e do litoral paulista, oito deles eram de filhos e filhas-de-santo de Joãozinho da Goméia. Em terras paulistas, a adesão ao rito angola, praticado por “seu João”, foi um caminho quase que inevitável na passagem de muitos sacerdotes da umbanda para o candomblé. Atualmente outras manifestações de fé têm mostrado a sua força na região; os protestantes também demonstram a sua força em seus ritos envolventes. Pincelaremos tudo isto para mostrar que o caxiense tem em seu peito sua crença e que, como já foi provado, o homem de Fé vai longe e esta é uma das muitas virtudes do nosso povo. O mais importante personagem do setor “A fé de um povo valente” era Joãozinho da Goméia, preeminente pai-de-santo que morou na região e é um dos nomes mais lembrados da nação angola (Silva, 1996:92). O mesmo setor trouxe a fantasia “Assembléia dos Protestantes”, vestida pela ala “A festa é nossa”. A ala48 47 A escola de samba foi organizada em sete setores: 1. Um povo forte; 2. A fábrica cidade; 3. A emancipação; 4. A fé de um povo valente; 5. Folguedos e sua raiz saudosa; 6. Combustível para crescer; 7. Terra de bambas. 48 Alguns autores (DaMatta, 1979; Cavalcanti, 2006) já assinalaram a autonomia como características das alas das escolas de samba; elas possuem nomes próprios, que lhes asseguram independência e permanência na configuração da escola à qual pertencem. “O nome próprio da ala atravessa os diferentes Carnavais vividos por ela, e assinala a autonomia e a permanência de sua rede de sociabilidade. Mesmo tendo o desfile da escola como motivo, a vida de uma ala corre paralela a ele, 60 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ homenageava os evangélicos, a partir da perspectiva da escola de mostrar a diversidade religiosa de Duque de Caxias, cidade na qual surgiu a escola de samba e que era tema do enredo. A dupla homenagem, aparentemente contraditória, chamou a atenção da imprensa. Entre os evangélicos havia duas interpretações sobre o vínculo entre religião e carnaval: 1. positividade do reconhecimento do papel dos evangélicos para a sociedade mais ampla; 2. incompatibilidade de vínculo entre religião e carnaval, em especial, pelo fato de a ala estar inserida em uma seção dedicada a homenagear um conhecido pai-de-santo. A fantasia foi elaborada com o objetivo de mostrar a presença do pluralismo religioso na cidade homenageada, tendo como foco os evangélicos. Adornada por um resplendor repleto de plumas brancas, uma túnica branca e dourada servia de base para símbolos religiosos; curiosamente, o mais destacado, por estar na parte posterior, à altura do peito do integrante da ala, lembrava o símbolo da Igreja Universal do Reino de Deus: coração e duas pombas brancas. A Bíblia também estava em destaque. Segundo o carnavalesco da Grande Rio, a túnica representava o coral gospel. Na reportagem mencionada, Roberto Sznieck – o carnavalesco – refuta a polêmica, dizendo: “Se começar com essa história, serei o primeiro a cortar a ala”. A ala não foi cortada, a polêmica não se acirrou, como previa a reportagem, nem mesmo gerou atenção maior. A escola fez seu desfile e foi vice-campeã. Homenagear protestantes, mesmo que em uma única ala, é uma novidade e reflete o reconhecimento da expansão desse campo pela sociedade mais ampla. A inclusão dos evangélicos em enredos de escola de samba é um dado muito recente. O mesmo não pode ser dito sobre a incorporação do carnaval no calendário de evangelização dessas igrejas e também no da vertente carismática da Igreja Católica, intensificado a partir de meados dos anos 1990. Em 2006, o desfile do Cara de Leão – acompanhado pela pesquisadora – teve como samba-enredo o tema “Povo Campeão”, de autoria de pastor Timóteo. O povo que andava em trevas Viu uma grande luz E sobre os que habitavam na região da morte Resplandeceu a luz E este povo se levanta Pra verdade declarar Que uma vida inteira de muita alegria Jesus tem pra dar. Mas por trás da fantasia Que se veste nesse dia Só tristeza e solidão E a falsa alegria De apenas quatro dias É pura ilusão Creia na verdade, no amor e no perdão Deixe Jesus Cristo libertar teu coração produzindo ao longo dos anos histórias muito particulares” (Cavalcanti, 2006:208). 61 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ E receba a salvação Deixe Jesus Cristo libertar seu coração Para ser um campeão Embora a visão nativa não considere o Cara de Leão como bloco carnavalesco, ele está integrado à programação oficial dos desfiles de blocos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Participar do evento significa se opor. Sambar é coisa do “mundo”49. A letra do “hino-enredo” deste bloco, como acentua o autor, enfatiza as mazelas que a fantasia do carnaval esconde. A alegria não pode ficar restrita aos quatro dias de folia. Vale ressaltar que o caráter evangelizador contemporâneo é enfático e exacerba a tradicional característica do protestantismo de “fé em ação”. A efetiva participação no período momesco, através da organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir objetivos religiosos que, a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento. Por analogia, e por conta da intencionalidade proselitista, o processo e o apelo pela conversão são mostrados nos versos: trevas, luz, libertação. O ápice é a vitória representada pelo binômio “salvação-campeão”. A evangelização é a justificativa para a imersão desse ramo religioso no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro. Como já foi assinalado, o desfile do bloco50 consta, inclusive, da programação oficial do carnaval da cidade. Foto 1 Bloco Cara de Leão, 2006 Edlaine Gomes 49 Na página oficial do Projeto Vida Nova consta a seguinte distinção: “Evangelistas sim, Foliões JAMAIS! O Bloco Cara de Leão não é um bloco de carnaval. Seus componentes não sambam, não se confundem com os foliões seculares. A Igreja do Senhor Jesus é santa, separada das coisas do mundo. Durante a sua passagem, o bloco pára estrategicamente em meio ao carnaval. Os pastores sobem no coreto e ministram a Palavra e orações específicas, declarando que só JESUS pode dar uma vida de alegria e repreendendo espíritos de morte, prostituição, vícios e coisas comuns à festa secular. Os integrantes descompõem o bloco e saem evangelizando as pessoas, orando pelos transeuntes com autoridade do Espírito Santo, impactando a audiência. Toda a liderança da igreja participa da coordenação do trabalho, desde os pastores aos diáconos, auxiliares e líderes específicos, todos imbuídos do mesmo espírito, incentivando os membros a se alistarem na guerra onde todos são mais que vencedores em Cristo Jesus”. http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEvangCarnaval/galeria.htm, acesso em 18/09/2007). 50 Outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro, há também o bloco da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus. 62 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Classificado como “evangelismo estratégico no carnaval”, o Cara de Leão segue a rotina dos blocos carnavalescos não-religiosos. Ensaios são realizados para organizar o desfile e há preparativos para a confecção das alas. O diferencial é que tudo ocorre em torno da religião. Os instrumentos são consagrados “para que eles sirvam para expressar sua glória e para a salvação das almas” (http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEnsaio/galeria.htm#). Ocorrem orações e ministração da “palavra”. É nesse aspecto que destacam o caráter evangelístico e não-carnavalesco do bloco. O desfile seguiu o formato adotado pelas escolas de samba. Os integrantes foram dispostos em alas que acompanharam o desenvolvimento do enredo, cada um vestindo roupas/fantasias que os distinguiam e que destacavam determinados aspectos do tema proposto. No desfile, a primeira seção mostrou as trevas – as pessoas vestiam roupas pretas. Havia alas coreografadas e encenações da luta do bem contra o mal. As últimas alas representavam a luz, a pós-conversão, a salvação – todos estavam vestidos com roupas brancas. Uma bateria com cerca de 300 ritmistas acompanhava o puxador do samba, que era cantado pelos participantes. Homens e mulheres compunham a bateria, que emitia um som muito potente. Porta-bandeira e mestre-sala bailavam a caráter, conduzindo a bandeira do bloco-igreja. Ressalto que o mesmo figurino foi usado no desfile do ano seguinte por pessoas diferentes. Um cordão de segurança estabelecia uma barreira humana entre os componentes do bloco e os demais foliões. Enquanto o bloco percorria a Avenida Rio Branco, membros da igreja Vida Nova distribuíam panfletos e “levavam a palavra” para os foliões que ocupavam as diversas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro. Esse encontro ocorreu sem maiores tensões. O caráter plural do espaço público estava manifesto nessa interação. A "Marcha para Jesus" é outra manifestação da religião no espaço público que traz a marca do pluralismo contemporâneo. A Avenida Rio Branco é outra vez personagem. Novamente são os evangélicos que se organizam para mostrar e afirmar sua presença. Está situada no tipo de ocupação de espaços das cidades que ocorre em dias de menos fluxo, como fins de semana e feriados, nos quais há menor possibilidade de confrontação com os “outros”. A rejeição pode acontecer ou ser percebida como tal em outro nível. Exemplo disto foi a não-liberação da Avenida Paulista para a realização do evento em 2007. A Marcha foi realizada no dia 7 de junho na zona norte da cidade de São Paulo. O motivo alegado pela prefeitura para a mudança de local do evento foi a existência de um documento assinado entre Ministério Público Estadual e a prefeitura (Folha de São Paulo on line51 de 11/04/2007), que permite apenas a 51 http://tools.folha.com.br/site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol. Acesso em 24/5/2005. 63 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ realização de três eventos na Avenida Paulista, sendo especificados: a corrida de São Silvestre, o Reveillon e a Parada Gay. A escolha deste último, em detrimento do evento religioso, repercutiu negativamente entre os evangélicos, que acionaram a retórica persecutória, na qual o eixo norteador é a rejeição que recebem “do mundo”. Foto 2: Marcha para Jesus, S.P, 2007 César Augusto da Silva Foto 3: Marcha para Jesus, S.P, 2007 César Augusto da Silva A Marcha para Jesus tem como característica reunir diversas vertentes do campo evangélico, com o intuito de manifestação pública do pertencimento e do fortalecimento dessa vertente religiosa. A faixa etária é bastante diversificada. Os estilos musicais e seus simpatizantes também o são. Os comportamentos mostram a complexidade inerente ao denominacionalismo que caracteriza o campo religioso evangélico. Para cada trio elétrico presente, um estilo de música, público e postura de fé. Tudo ocorrendo ao mesmo tempo. Este tipo de “festa” distancia-se do carnaval das escolas de samba e aproxima-se daquele realizado no carnaval baiano, embora a distribuição dos trios e do público assemelhe-se à adotada para os carros alegóricos e as alas. Muito me impressionou essa diversidade e contraste de estilos na Marcha para Jesus ocorrida na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, no dia 9 de junho de 2007. Especialmente quando me deparei com um grupo de pessoas que encontrava-se à espera da Marcha que chegaria à Cinelândia. Era cerca de uma 64 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ dúzia de pessoas entre mulheres, homens e crianças que marcavam presença no evento que propunha transformar o Rio “para Jesus”. O contraste era evidente: integrantes de uma denominação pentecostal extremamente rigorosa acuados na calçada, enquanto os trios elétricos e a multidão posicionavam-se para o show. Havia uma nítida fronteira que os distinguia das demais correntes evangélicas que ali estavam. Pareciam espantados com as músicas, as danças e os comportamentos que, para eles, caracterizam a vida “no mundo”. As marcas distintivas estavam especialmente pontuadas na maneira de se vestirem: túnica para as mulheres, usadas não só para eventos especiais, mas obrigatórias no cotidiano, e terno para os homens. Foto 4: Marcha para Jesus, RJ, Edlaine Gomes Foto 5: Marcha para Jesus, RJ, Edlaine Gomes A música atua como um elo significativo para o mundo cristão, muitas delas são reconhecidas e cantadas por todos. Mas não há consenso quanto ao estilo musical, que vai do forró ao havy metal. Na Marcha para Jesus, a diversidade do campo religioso evangélico evidencia-se. Diferentes manifestações podem ser vistas: danças coreografadas ou não; grupos de dança de rua e capoeira; pessoas que acompanham cantando as músicas ou se mantêm em silêncio. Até mesmo é possível observar pessoas reivindicando mais oração e contenção do que festa. Eles vêm de todas as regiões e denominações, o que se percebe nas diversas faixas e nos cartazes que os grupos expõem no decorrer da caminhada. Estão ali utilizando as grandes avenidas, exibindo-se no espaço público e pondo em prática “fé em ação”. Nota-se, seguindo essa lógica de inserção “no mundo”, que o processo de ramificação de propostas evangélicas segue seu curso com as chamadas “igrejas inclusivas”. A Parada Gay constitui um evento organizado, de grande porte. Enquanto as demais igrejas estruturam-se para evangelizar e propor a “salvação” aos participantes da Parada, panfletando nos arredores da Avenida Paulista, em São Paulo, integrantes do ramo inclusivista integram-se ativamente na lógica do evento. A mesma investida ocorre em outras cidades onde a Parada Gay é realizada. 65 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Foto 6: igreja inclusiva na Parada Gay, SP –10/06/2007, César Augusto Silva Foto 7 Parada Gay, SP – 10/06/2007, Jacqueline Kawache Foto 8: Parada Gay, S.P – 10/06/2007. Jacqueline Kawauche. As igrejas inclusivas surgiram entre os anos 1990 e 2000 pautando-se, segundo Natividade (2006:78), pelo “discurso minoritário que rejeita a proibição e propõe uma igreja inclusiva aos homossexuais”. O autor ressalta que esse surgimento concomitante integra ao um amplo incremento de movimento trabalhos de explosão pastorais discursiva, voltados à sendo “cura da homossexualidade”. A controvérsia que cerca o recente aparecimento dessas igrejas insere-se no âmbito do crescimento e da complexificação das ofertas religiosas institucionais. A especificidade das igrejas inclusivas está na rejeição que enfrentam nos dois campos que conformam sua identidade: igrejas evangélicas e movimento gay. Nesse caso, as mensagens e a atuação no espaço público são dirigidas a ambos, como meio de reivindicar legitimidade. A exposição do exclusivismo tornase mais evidente nessa situação, na qual todos os personagens em interação – mesmo que conflituosa – posicionam-se publicamente como minorias que buscam reconhecimento. Um pouco dessa tensão emergiu em comentários sobre a Parada Gay de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Em sua coluna no jornal O Dia de 28/06/2007, p. 6, Milton Cunha entre elogios à organização e críticas ao ufanismo do movimento gay, que propagava a idéia de que “a cidade era gay”, denunciou a presença de 66 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ uma “subparada”. Integrantes de igrejas inclusivas presentes ao evento divulgavam a missão confessional de “aceitar a todos”. Cunha narra a situação com ironia, dizendo que: “Não gosto de todos os tipos de pessoa, e não vou pertencer a uma igreja que aceite todos os tipos”. Para a presente reflexão o que importa nessa reação não é a rixa em si, mas sim o impacto que o pluralismo religioso tem alcançado na contemporaneidade. Em seu viés exclusivista, a ação proselitista está em constante tensão com as possibilidades de conflitos, sincretismos ou misturas. Considerações Finais Cada um dos eventos mencionados pode ser analisado em separado e possui características específicas. No entanto, para a presente reflexão, foram considerados em conjunto, pois se trata de discutir as diversas estratégias de ocupação do espaço público pelas correntes religiosas ou, em última instância, verificar a importância da presença da religião, lato sensu, mesmo em situações percebidas como laicas. Os grandes eventos religiosos ocorrem no alicerce do que se chama espaço público moderno que, embora seja fundado na noção de laicidade – preeminência do secular – possibilita a diversidade de formas e estilos de manifestação. Além disso, é nele que as instituições religiosas exibem seus potenciais, posicionam-se na disputa ou na afirmação das respectivas autenticidades. A convivência e o conflito são tanto opostos quanto característicos do modelo preconizado pela modernidade. Exemplo desse campo de possibilidades que o espaço público moderno permite foi o caso da tensão entre evangélicos e católicos na “Procissão do Senhor Morto”, em 2006, mencionado anteriormente. No ano seguinte, em 2007, o evento foi etnografado e a rusga não ocorreu. A procissão percorreu uma cidade vazia, devido ao feriado. Saiu da Catedral Metropolitana, localizada na Avenida Chile. No trajeto, os escassos transeuntes mostravam pouco interesse pelo evento. As ruas vazias iam sendo preenchidas pelos fíéis católicos que adoravam o “senhor morto” e a “nossa senhora das dores”. Nesses breves instantes, o espaço público tinha um único dono. Logo a cidade assumiu novamente sua característica plural. Do Passeio Público avistava-se a Lapa, área boêmia por excelência e “região moral” (Park, 1987). Os bares já estavam abertos, era final da tarde. O sagrado encontrou o profano no exato momento em que a noite prevalecia sobre o dia. As pessoas que estavam nos bares não ficaram imunes, grande parte posicionou-se nas portas, mostrando algum interesse pela movimentação provocada pela passagem da procissão. A interação limitava-se à observação externa, ao olhar. A fronteira não era transposta. Não havia passagem da condição 67 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ profana para a sagrada. O contato entre esses dois mundos foi passageiro. Em poucos minutos a procissão seguiu seu curso, passando sob os Arcos da Lapa e retornando para a Catedral Metropolitana. Esses encontros – na verdade a Lapa e a Catedral Metropolitana são vizinhas – são possibilitados por ocorrerem no espaço público da cidade, seja na situação de confronto de 2006, quando o pluralismo de cunho exclusivista evidenciou-se pela postura dos evangélicos diante da procissão católica, seja quando, em 2007, nenhum conflito aconteceu. A idéia de observar a procissão teve como objetivo verificar se o confronto se repetiria. A princípio, pode-se pensar em algum tipo de frustração do pesquisador ao constatar que, realmente, nada se passou que prenunciasse qualquer tipo de enfrentamento religioso. No entanto, o fato de em um ano ocorrer o embate e em outro não constituiu um dado significativo, pois afirma o caráter plural da utilização do espaço público. Dos três tipos de estratégias de ocupação do espaço público mencionados no artigo, o primeiro e o segundo receberam aqui maior destaque por estarem diretamente referidos à ampla (ou pretensa) visibilidade que as manifestações religiosas recebem ao utilizarem os grandes centros urbanos. No primeiro, os eventos são realizados em espaços da cidade que comportam multidões, como na “Marcha para Jesus” em São Paulo, por exemplo. O segundo é caracterizado pelos acontecimentos considerados “mundanos”: carnaval, Parada Gay, reveillon. A religião aparece ou para contestá-los, ou para afirmar e legitimar as confissões e as práticas das vertentes religiosas que adotam tais estratégias, ou mesmo em uma junção de ambos. No último tipo, não menos significativo, a interação pode ser mais tensa e conflituosa, pois o contato se dá em proximidade com o “outro”. A evangelização – proselitismo – ocorre de casa em casa, nas ruas, na tentativa do convencimento face a face. A série de etnografias realizadas, as quais não se esgotaram nesta análise, possibilitou a constatação de um processo que envolve negociação e conflito constante no que tange à utilização dos espaços da cidade, por exemplo, quando do veto da realização da “Marcha para Jesus” na Avenida Paulista. No caso da presença de um bloco evangélico no carnaval carioca, que utiliza o evento e faz dele palco para a evangelização, e da fantasia que homenageia a diversidade religiosa – mesmo atualizando o conflito em um evento como o desfile das escolas de samba – fica evidente o lugar de destaque da religião, em seu sentido amplo, na sociedade contemporânea. Além disso, traz à tona as diversas estratégias de ocupação do espaço público pelas confissões religiosas, sejam institucionalizadas ou não. Em todos os eventos apresentados, uma característica é marcante: a maioria dos participantes percorre distâncias consideráveis. Trata-se de um tipo de deslocamento religioso que, contraditoriamente, vai em direção ao "mundano", à 68 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ cidade e aos seus equipamentos. É possível verificar a diversidade de locais de origem e as distâncias prováveis percorridas por meio das incontáveis placas que identificam os grupos através do nome de suas localidades. Revela-se, então, que a grande maioria desloca-se das periferias metropolitanas e do interior dos estados. O contato – conflituoso ou pacificado – induz tensões, diálogos e atravessamentos característicos da grande cidade, com seu movimento permanente de incorporação e diferenciação de estilos de vida e visões distintas de mundo. No mesmo sentido, a vida cosmopolita, como ressalta Magnani (2003), oferece possibilidades e alternativas ao indivíduo através de redes de pertencimento, sistemas de troca, mediações e permutas contínuas inscritas no contexto da cidade. Da mesma forma, o fluxo entre fronteiras religiosas e as reinterpretações das orientações institucionais admitem novas representações em termos de categorias espaciais e sociais (Contins e Gomes, 2007). Ponto significativo que ainda está sendo aprofundado é o efeito dos deslocamentos necessários à participação em grandes eventos religiosos realizados nos centros urbanos. Não são erráticos e apresentam padrões. Os "fiéis" deslocamse em busca "de um lugar de poder mais forte". Em grande parte das vezes, o percurso não é solitário e tampouco anônimo. Organizam-se em grupos e caravanas em suas respectivas congregações locais, e partem juntos. Outras vezes, formamse grupos de parentes, amigos ou conhecidos. Um levando o outro, com o propósito de, individual e coletivamente, terem uma experiência com o sagrado. O peregrino solitário também tem seu lugar. Ele parte de um ponto preestabelecido em direção ao “lugar de poder mais forte” (Gomes 2004). Famílias inteiras, incluindo pessoas idosas e crianças saem de seus respectivos “pedaços” para ter uma experiência sócio-religiosa vivenciada na zona sul (Magnani, 2002). O contato entre integrantes de “pedaços” tão distintos provoca novas percepções e tensões e estas podem ser conflituosas ou pacíficas. Outro ponto parece ser digno de apreciação posterior. O termo “proselitismo involuntário”, utilizado na sinopse do enredo da escola de samba Grande Rio, é sugestivo para as análises sobre as formas de reprodução e transmissão das religiões afro-brasileiras, especialmente em comparação com o proselitismo evangélico e carismático atual. O chamado proselitismo tem sido associado às práticas de evangelização das igrejas evangélicas. A efetiva participação no período momesco, através da organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir objetivos religiosos que, a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento. A evangelização é a justificativa para a imersão, em especial, desse ramo religioso no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro. Além do Cara de Leão, outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro, há também o bloco da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que 69 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus. Encarar o carnaval como período propício à evangelização é uma característica significativa do tipo de concepção religiosa adotada por essas igrejas: a “fé em ação”, esta que se efetiva “no mundo”; em consonância com as análises weberianas. O carnaval é percebido como situação privilegiada para a evangelização. É nele que podem ser encontrados os “desviados”, os “pecadores”, um vasto público-alvo. Nessa dinâmica, a chamada estratégia proselitista evidencia características fundamentais do exclusivismo religioso, como a disposição combativa e a reivindicação de legitimidade. Cabe maior profundidade na análise sobre o “proselitismo involuntário”, relativo às religiões afro-brasileiras presente na retórica elaborada para compor o enredo de uma escola de samba. O “proselitismo” nunca esteve associado às suas práticas, condizendo com o modelo do sincretismo hierárquico. Vale verificar como a retórica exclusivista e a estratégia proselitista têm sido recebidas, adotadas e/ou reinterpretadas pelas religiões afro-brasileiras. Em primeira análise, observa-se que junto às estratégias de evangelização que ocorrem no fluxo das cidades estão em disputa discursos sobre autenticidade. Pode-se dizer que eles vêm sendo acionados para contrastar e definir fronteiras de legitimidade entre o religioso e o laico. Os discursos sobre autenticidade (Gonçalves, 1989; 1995) estão presentes também na dinâmica religião-cidade. Os evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos realizam seus eventos em grandes espaços como a Praça XV, a Quinta da Boa Vista, a Enseada de Botafogo e o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, na Avenida Paulista e no Campo de Marte, entre outros. O fato de serem realizados no espaço da “grande cidade” tem sido considerado um dado relevante para a compreensão de práticas e significados que a experiência religiosa assume na contemporaneidade, na medida em que estão a eles conjugadas características religiosas e urbanas. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Ronaldo. outubro/2004. "Religião na Metrópole Paulista". RBCS, vol.19, n.56, AMARAL, Rita C. "Cidade em festa: o povo-de-santo (e outros povos) comemora em São Paulo. In: Magnani, José Guilherme C. & Torres, Lílian De Lucca. Na metrópole: textos de antropologia urbana. 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A problemática suscitada tem como base a investigação da transformação poluidoras, em dessas modalidades, atividades outrora artísticas, com rotuladas um como significativo desviantes mercado e de colecionadores, exposições, fóruns, galerias e espaço em museus, além de uma ampla utilização na decoração de ambientes privados, na publicidade e na customização de artigos do vestuário. Palavras-chave: graffiti, arte de rua, intervenção urbana, etnografia urbana, ambientes construídos. Abstract This article analyses the Brazilian street art scenario, describing the modalities and techniques related to this concept - which the most popular expression is the graffiti – and also presenting some of the participants and their preferred techniques. The focus of this investigation is over the changes of these modalities, from deviants and polluters, as they used to be seen, to artistic activities, with a significant market of consumers, expositions, forums, galleries and museums, besides a vast use in house decoration, publicity and clothing. Key words: graffiti, street art, urban intervention, urban ethnography, built environments. Ambientes construídos, modalidades de intervenção urbana e a tríade arte, decoração e publicidade 52 Mestre em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA). Bacharel e licenciado em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 73 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Há pelo menos duas décadas a técnica do graffiti tem se deslocado das ruas, ou seja, do espaço público, em direção ao interior das casas e dos ambientes privados. A atividade deixou de ser associada a outras práticas juvenis delinqüentes (como a pichação de muros) e conquistou o recente status de manifestação artística, não apenas se constituindo na nova vedete vanguardista da decoração de interiores, mas também se estabelecendo no circuito oficial de artes, ganhando cada vez mais notoriedade e espaço em galerias e museus. O cenário da arte urbana está em evidência. Nas ruas ou fora delas, essa vertente contemporânea experimenta um momento singular: nunca houve tantos artistas talentosos, público crescente, colecionadores, mídia disposta a dar visibilidade, pesquisadores no entorno, publicidade interessada nos traços e na linguagem estética, museus e exposições legitimando o valor das obras, além de galerias e fóruns. Os grafiteiros passaram a receber encomendas para pintar cenários de desfiles de moda, fachadas de lojas e paredes de casas noturnas e a atuar na decoração de interiores de residências. Pintam temas que vão de figuras conhecidas da arte pop, que remontam a Andy Warhol e a Basquiat, a imagens abstratas e elaboradas caligrafias em cômodos, móveis e eletrodomésticos dos domicílios. Grafiteiros geralmente criam formas de associação com base em laços anteriores, principalmente territoriais. No Rio de Janeiro existem inúmeras equipes de graffiti, conhecidas como crews. As equipes não são muito numerosas, tendo em geral de quatro a cinco integrantes. A Fleshbeck Crew é provavelmente a maior e mais divulgada equipe carioca de graffiti. Idealizada por moradores da zona sul e com atuação concentrada na região, a marca já contempla inclusive uma loja para comercialização de produtos estilizados através da técnica (tênis, bonés etc.), e também latas de tinta e telas de seus artistas. Além da Fleshbeck, outras equipes – como a Santa Crew, composta por grafiteiros do bairro de Santa Teresa, o Nação Crew, de grafiteiros da Baixada Fluminense, e o TPM Crew, uma equipe de três meninas – ajudam a compor a cena carioca de graffiti. Além dos graffitis, ao observarmos com um pouco mais de atenção o ambiente construído (Harvey, 1982) de cidades como o Rio de Janeiro ou São Paulo, podemos identificar novas modalidades de intervenção urbana. O chamado “pós-graffiti” é um fenômeno recente, surgido neste início do século XXI no vácuo da legitimação da concepção de arte de rua, cujo pioneirismo se atribui aos grafiteiros e se refuta aos pichadores. “A street art é uma evolução do grafite. Os artistas de rua foram atrás de novas técnicas e passaram a explorar outras ferramentas, como papel, adesivos em vinil e pôsteres de grandes dimensões”, explica o publicitário nova-iorquino Marc Schiller, criador do site especializado 74 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Wooster Collective,53 um verdadeiro conglomerado de artistas de rua de todas as partes do mundo na Internet. Os sticks, ilustrações em papel adesivo (que podem ser em tamanho A4 ou menores e também pôsteres fixados com cola de trigo), presos em paredes, postes, pisos, tetos e placas nas ruas, já adquiriram o status de manifestação estética e constituem uma das principais vertentes dessa nova arte de rua. O curioso é que, segundo os próprios praticantes, os stickers,54 o propósito dos adesivos é exatamente constituir uma resposta à massificação da propaganda, com a qual disputam espaço em meio à poluição visual da cidade. “Não acho certo que o espaço urbano seja destinado apenas a agências de publicidade, empresas e políticos. A única coisa permitida por lei é anúncio. Está errado, o espaço público é de todos”, acredita Stephan Doitschinoff, 27 anos, o “Calma” 55 (codinome), um dos pioneiros da prática de colar adesivos no Brasil. Não deve ser por acaso que a proliferação de stickers esteja ocorrendo justamente na época em que o graffiti foi amplamente absorvido pelo mercado e que grandes marcas tenham contratado seus autores para grafitar tudo, de fachada de imóveis de instituições financeiras, como a agência do Bank Boston, na Avenida Paulista, no Centro de São Paulo, a outdoors – o recente da marca Ellus de vestuário – e até produtos de grifes internacionais, a exemplo da embalagem do perfume CK One, de Calvin Klein, lançado em 2005 em série limitada. No Brasil, a idéia dos adesivos rapidamente se alastrou. Na Bahia, a artista plástica Andréa May envolveu-se de tal modo com a cultura sticker que montou a Galeria de Adesivos,56 anexa a uma loja de discos e a um bar em Salvador. Ali ela reúne trabalhos de artistas de todo o Brasil. Em São Paulo, na Vila Madalena, um casal há tempos envolvido com a cultura jovem urbana apostou na qualidade plástica desses artistas e decidiu montar a Choque Cultural, espaço dedicado a expor e a vender street art. Na loja, a arquiteta Mariana Martins e o designer Baixo Ribeiro vendem gravuras de artistas que até então só conheciam a rua como meio de divulgação. “Existe muito talento perdido pela cidade, as pessoas precisam treinar o olhar para enxergar. Os 53 “Como uma epidemia, a mania navegou pelo mundo a bordo da internet e, por que não, pelo velho e bom correio. Além da produção nativa, artistas de lugares distantes despacham pilhas de seus adesivos para todos os cantos do planeta e, depois, pela web, podem ver onde seus trabalhos foram colados. ‘Isso é inspirador e estimula a produzir mais’, conta Marc”. Cf. matéria “Subversão visual: nova forma de intervenção urbana, o pós-grafite, disputa espaço com propagandas, políticos e anúncios de todo o tipo”. Lulie Macedo, Revista da Folha, 10/10/2004. 54 As entrevistas com os stickers (coladores de adesivos) estão contidas na matéria citada na nota anterior. 55 Artista plástico, autodidata, começou aos 17 anos pintando pôsteres e fazendo estêncil (máscaras usadas como molde) até chegar à pintura em tela. Com seu traço gráfico e inspiração religiosa, Calma já expôs suas harpias com asas de lágrimas e outras figuras mitológicas em mostras coletivas no circuito tradicional de arte em São Paulo (dados extraídos da matéria citada na nota nº 34). 56 Site da galeria: www.taracode.com.br. 75 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ artistas que eu tenho aqui também estão nos muros, nos viadutos. Basta olhar em volta”, diz Mariana. Camuflados entre o mar de emblemas que anunciam compre, vendo ou vote, o fato é que os stickers vão aos poucos disputando um lugar ao sol no cenário urbano. Decidir se poluem ainda mais a vista ou se colocam em xeque o direito de ocupar o espaço público pode ser apenas uma questão de gosto. Mas, nesse caso, acredita a antropóloga da PUC/SP, Rita Alves, gosto se discute – e em público, de preferência. “Deixar sua marca na cidade é um jeito de dizer estou aqui, eu existo, é uma maneira de se dar voz. Se o cartaz do ‘compro ouro’ pode, por que eles não podem?”.57 Outra forma de intervenção observada no espaço público na linha “pósgrafite”/street art é o estêncil, uma técnica que utiliza moldes vazados em telas de papelão através das quais o spray transfere para a superfície escolhida o desenho ali contido, similar a uma tela de estampar roupas. Juntamente com os graffitis e os adesivos, a técnica do estêncil compõe esse cenário um tanto underground, meio vanguardista e que traz a influência da vida urbana propriamente dita, das formas e das expressões contidas no exterior dos ambientes construídos das grandes cidades para o interior dos ambientes domiciliares e privados. Na matéria “Decoração marginal: o grafite brasileiro sai das ruas e toma conta de paredes de casas e apartamentos, conquistando um novo e bem remunerado espaço”,58 está a foto de uma cozinha decorada com gravuras estampadas através da técnica do estêncil e que traz a seguinte legenda: “Os desenhos de estêncil (técnica com molde e spray) de Celso Gitahy59 cobrem a parede e a geladeira, dando mais vida ao espaço”. Recentemente, o encarte do segundo cd do cantor Marcelo D2 (Sony, 2003) foi lançado contendo um estêncil com as iniciais de seu nome (md2) e outro com os contornos de sua fotografia. Graffiti X pichação A confusão que se faz acerca das classificações nativas pichação e graffiti é recorrente. A principal diferença entre essas duas modalidades consiste em que a pichação, prática encerrada por intervenções na forma de assinaturas monocromáticas (ou tags) em tinta spray, advém da escrita, enquanto o graffiti está diretamente relacionado às artes plásticas, à pintura e à gravura. A primeira 57 58 Entrevista realizada com a professora em 08/06/2006. Revista Época, Editora Globo, n° 377, p.82, 08/08/2005. 59 Celso Gitahy é um dos artistas entrevistados, cujo trabalho é apresentado no artigo mencionado na nota anterior. 76 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ privilegia a palavra e a letra, ao passo que a segunda relaciona-se com o desenho, com a representação plástica da imagem. Em relação à dicotomia pichação-graffiti, pode-se dizer que nas regiões metropolitanas das capitais brasileiras o degradante efeito da primeira atividade, caracterizada por sua vocação clandestina e por seu aspecto estético com traços rápidos e apressados em tinta spray, cuja premissa é a divulgação através da repetição, é facilmente percebido. O graffiti, por outro lado, é uma atividade relacionada à apropriação do espaço urbano para o desenvolvimento de painéis elaborados também em tinta spray (e com outros materiais), porém não monocromáticos e nem com traços econômicos, mas sim extremamente complexos e coloridos. A pichação é usualmente associada a um discurso norteado pelas noções de vandalismo, delinqüência e poluição visual. O graffiti está atualmente vinculado a um discurso de conscientização, de salvação ou libertação dos jovens da delinqüência através da arte. Em entrevista publicada no “Caderno B” do Jornal do Brasil, Ziraldo (na posição de entrevistador) pergunta ao grafiteiro “Toz” do grupo Fleshbeck Crew, da zona sul do Rio de Janeiro: “Se qualquer um pode chegar, como impedem que um pinte em cima do outro?”. A resposta do grafiteiro: “Há um consenso entre os grafiteiros: não é permitido entre a gente um cobrir o outro. A não ser que tenha autorização do próprio. O pichador não. Quando fazemos um graffiti na rua, tiramos logo a foto, porque sabemos que no próximo dia estará pichado”60. O graffiti também está atrelado ao movimento hip-hop, sendo um de seus quatro elementos básicos, juntamente com o dj (o discotecário que toca as batidas), o b-boy (o dançarino) e o mc (o master of ceremony ou rapper, que canta os raps). Hoje em dia, chega a se estabelecer um racha entre o graffiti de matriz nas artes plásticas, relacionado aos movimentos muralistas contemporâneos e à pop art, que herdou desta última recursos como máscaras e moldes vazados, e o estilo de graffiti ligado ao movimento hip-hop (a chamada estética nova-iorquina), cuja expansão se deu durante a década de 1990 e que materializa imagens referentes às temáticas das letras dos raps: desigualdade social e violência policial dão a tônica. O graffiti ganha força nos centros urbanos por constituir um canal através do qual os jovens podem representar sua subjetividade, materializar algumas de suas impressões sobre o mundo, e cresce no gosto das elites enquanto elemento de vanguarda na decoração de interiores,61 concretizando uma ponte da rua em 60 Cf. matéria “A arte no meio da rua”, “Caderno B” (capa) do Jornal do Brasil, 26/06/2005. 61 Cf. a Revista Época, nº 377, de 08/08/2005, matéria “Decoração marginal – O grafite brasileiro sai das ruas e toma conta das paredes de casas e apartamentos, conquistando um novo e bem remunerado espaço”. 77 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ direção a casa, ao passo que a pichação de muro permanece em sua posição estigmatizada de atividade desviante. Grafiteiros, comprometidos com as artes plásticas ou com um movimento social como o hip-hop, muitas vezes são expichadores e, assim como os ex-fumantes que optam pela militância antitabagista o são com o cigarro, eles sustentam o discurso mais instrumentalizado e elaborado contrário à pichação. Segundo Celso Gitahy (1998), designer, artista plástico e pesquisador da arte de rua em São Paulo, alguns grafiteiros mostram-se receptivos à pichação. Maurício Villaça, um dos precursores do graffiti no Brasil, atentou, em depoimento no livro de Gitahy,62 para os jovens assassinados por terem sido flagrados em pichação. Segundo o artista, “devemos procurar entender essa manifestação humana. Se somos da mesma espécie, por que reprimir tão drasticamente uma atividade muito menos perigosa do que as barbaridades sociais, ecológicas e políticas, corrupções e violência que se sucedem à nossa vista e são enaltecidas pela mídia?”.63 “Zezão”, um dos grafiteiros brasileiros mais reconhecidos por seu trabalho, tem uma posição pouco recorrente quanto à interpretação da pichação pelos grafiteiros, mas não exclusiva. Zezão entende que “graffiti e pichação são uma coisa só, o que muda é a estética. O graffiti é uma arte subversiva em sua raiz”.64 A mesma visão tem o artista carioca “Malc”,65 ao ser questionado a respeito da dicotomia entre pichação e graffiti, posiciona-se com firmeza e diz que o segundo é derivado do primeiro. Malc, aluno da Escola de Belas Artes da UFRJ, é também um exemplo pouco comum de praticante das duas modalidades: mesmo tendo desenvolvido a técnica do graffiti e aprimorado seu estilo através do estudo de artes plásticas, ainda faz eventuais incursões para pichar muros, e entende a pichação como manifestação igualmente artística. Existe, porém, uma modalidade que se pode dizer intermediária entre a pichação e o graffiti. Chamada por alguns de “grapicho”, a técnica relaciona-se à estilização do apelido do grafiteiro (como “acme”, “prema” e “toz”) em letras altamente elaboradas, coloridas, com contorno e preenchimento. Estabelece conexões com o graffiti pelo fato da elaboração e do detalhamento dos trabalhos, e com a pichação, por constituir algo similar a uma assinatura, estando diretamente ligado à escrita. Malc apresentou-me nomenclaturas comuns de serem utilizadas pelos praticantes para classificar a atividade (o “grapicho”). Bomb e throw up são as 62 Cf. “O que é graffiti?”, Gitahy, 1998. 63 Gitahy, Celso (1998), p.25-26. 64 Cf. matéria “Artimanhas da pichação”. Phydia Athayde, Revista Carta Capital, nº 345, 08/06/05. 65 “Malc”, artista plástico, grafiteiro e pichador, foi um dos principais colaboradores para o desenvolvimento deste trabalho. 78 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ classificações mais freqüentemente usadas. Existe ainda a forma top to bottom (de cima a baixo), quando as letras tomam o muro em toda a sua altura. Ele explica que os grafiteiros que fazem esse tipo de trabalho também produzem desenhos e painéis mais elaborados. O bomb é empregado para a divulgação do nome do artista, o que acontece muitas vezes em situações adversas: locais de muito movimento, onde é necessária rapidez para a conclusão de um trabalho nãoautorizado e, principalmente, em dias de sol. As altas temperaturas representam uma das piores adversidades para a confecção dos graffitis e, nesse sentido, os trabalhos de finalização mais rápida são mais apropriados nessas ocasiões.66 Definitivamente, graffiti e pichação constituem atividades diferentes. Apesar de algumas semelhanças estruturais, como o uso do espaço público para a elaboração e a convergência relativa no uso dos materiais (de maneira mais específica, da tinta spray), o racha marcante entre as duas práticas se dá na forma com que são significadas por seus atores, além de suas diferenças objetivas. Analogamente, podemos considerar graffiti e pichação como primos em primeiro grau, mas não irmãos. Proibição legal Apesar do recente abrandamento dos pequenos delitos através das transações legais e das punições alternativas adotadas pela Justiça, "pichar, grafitar ou, por outro meio, conspurcar edificação ou monumento urbano é crime passível de detenção de três meses a um ano e multa" (parágrafo 65 da lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e que especifica outras providências). Com a preocupação legal, no entanto, entra em cena o debate acerca do desvio e, nesse sentido, abre-se um leque ainda mais amplo relativo ao entendimento das motivações que levam os jovens a essas atividades. Vale lembrar ainda que, segundo o artigo 163 do Código Penal - “causar dano, destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia” – o graffiti e a pichação são crimes (espécies de “pirataria”, por conta da pilhagem e da utilização indevida do patrimônio público ou privado alheio como suporte). O pequeno potencial ofensivo determina que o pichador ou o grafiteiro seja julgado pela lei 9.099 do Juizado Especial Criminal, o que geralmente termina em um acordo com o Ministério Público (pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços públicos). Também é possível uma ação cível, com pedido de indenização por dano material. 66 Para uma verificação de como o calor é adversário dos grafiteiros, ver no site de relacionamentos “Orkut” a comunidade virtual “Eu odeio pintar no sol”, no qual grafiteiros revelam a sua insatisfação com os dias quentes. 79 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Por conta dos onerosos materiais e do tempo despendido com a técnica do graffiti, muitos dos trabalhos que vemos nos muros e nos equipamentos públicos da cidade foram realizados com a devida autorização prévia, conseguida junto a órgãos da administração pública, artifício que evita a interrupção da atividade por particulares ou pelo patrulhamento ostensivo. As pichações, por outro lado, são sempre clandestinas e não-autorizadas, realizadas sorrateiramente e na maioria das vezes durante as madrugadas. O mercado do graffiti Ao observarmos o mercado que se constituiu em torno do graffiti e de seus derivados nesses primeiros anos do século XXI, corremos o risco de perder de vista o preconceito e o repúdio destinados a essas manifestações (e a outras similares) até recentemente, outrora entendidas exclusivamente como atividades delinqüentes, poluidoras, esvaziadas de qualquer caráter estético ou valor artístico. O sociólogo mexicano José Valenzuela Arce (1999), em pesquisa avaliativa de continuidades e descontinuidades entre práticas juvenis delinqüentes identificadas em Tijuana e na Cidade do México e outras em São Paulo e no Rio de Janeiro, entende que o graffiti tem um componente irrefutável de intervenção, de customização do espaço público por seus atores. Segundo o autor: Possivelmente, uma das imagens mais agudas acerca das motivações dos jovens para elaboração dos grafites nos é proporcionada por um jovem tijuanense que me expôs o seguinte em entrevista: “Não gosto da cidade, está feia e suja, por isso tento deixá-la em bom estado, enchê-la de cores, porque, se você a enche de cores, tem a ilusão de que a vida é menos dolorosa” (Valenzuela, 1999:128). A explanação de Valenzuela complementa a posição do artista de rua “Calma”, exposta acima, acerca das motivações desses jovens a respeito de tais manifestações e de como as interpretam: insatisfação com as características da paisagem urbana e com as usuais formas de apropriação dessa paisagem. A partir da visão dos praticantes dessas modalidades (como vimos anteriormente, os discursos inerentes às diferentes práticas como graffiti, estêncil e adesivos não são convergentes), é possível captar questões relativas à alocação juvenil no mercado de trabalho e às oportunidades de lazer e entretenimento dentro dos limites das grandes cidades brasileiras. As formas como a sociedade civil (principalmente através das ONGs) e os governos locais vêm inserindo tais atividades em políticas de inclusão social, de combate à segregação territorial e de planejamento urbano também merecem ser esmiuçadas. 80 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Novos caminhos para a arte de rua: inserção das modalidades em políticas sociais e na dinâmica do planejamento urbano Robert Park (1967) atentava, no início do século XX, para as implicações sociais de práticas de lazer, desportivas e artísticas relativas à vida das populações trabalhadoras das cidades, inserindo-as na perspectiva do consumo (dentro da lógica dicotômica produção/consumo). Segundo Park: A verdade parece ser que os homens são trazidos ao mundo com todas as paixões, instintos e apetites, incontrolados e indisciplinados. A civilização, no interesse do bem-estar comum, requer algumas vezes a repressão, e sempre o controle, dessas imposições naturais. No processo de impor sua disciplina ao indivíduo, de refazer o indivíduo de acordo com o modelo comunitário aceito, grande parte é completamente reprimida, e uma parte maior encontra uma expressão substituta nas formas socialmente valorizadas ou pelo menos inócuas. Nesse ponto é que funcionam o esporte, a diversão e a arte. Permitem ao indivíduo se purgar desses impulsos selvagens e reprimidos por meio de expressão simbólica (Park, 1967:64). Tais atividades, relacionadas ao esporte, à diversão e à arte, muitas vezes acabam gerando alternativas diante da impraticável concorrência no mercado de trabalho, especialmente para jovens das populações trabalhadoras de baixa renda das grandes cidades brasileiras. Elas são deslocadas do âmbito do consumo para o âmbito da produção, transformando-se em atividades remuneradas. Voltemos para os dias de hoje, em que podemos observar iniciativas de governos locais (municipais) voltadas para a inclusão socioprofissional dos artistas de rua. A ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT), por exemplo, esteve entre os estudiosos do fenômeno. Com base nisso, tinha planos de “inclusão” dos pichadores e grafiteiros ao se apresentar aos eleitores como candidata, em 2000. No poder, porém, a prefeita esqueceu a matéria, relegada a segundo plano numa tal “Operação Belezura” que decretou para a maior cidade do Brasil. Em uma das medidas, através de uma lei municipal, Marta determinou como espaço de livre utilização para pichadores, grafiteiros e afins todos os tapumes de obras públicas na cidade de São Paulo,67 numa medida considerada redundante. Seu sucessor, José Serra, declarou guerra a essas manifestações quatro meses após assumir o cargo, ao lançar o programa “Cidade Limpa”. Nas primeiras três semanas do programa, a prefeitura usou 35 galões de removedor para apagar, todas as manhãs, pichações e graffitis nas principais vias da cidade. 67 Cf. matéria “Eles picham um país em que não acreditam”. Ricardo A. Setti, coluna “No mínimo” do site Ibest, de 24/02/04. No título falta a preposição; colocamos? 81 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ A iniciativa de caráter político, que aparentemente fez convergir mais esforços até o momento em direção à viabilidade de utilização do espaço público por pichadores e grafiteiros em cidades brasileiras, foi o interdisciplinar “Projeto Guernica” da Prefeitura de Belo Horizonte. Desde 1999, por iniciativa do então prefeito Célio de Castro, uma comissão dedicou-se ao exame da pichação e do graffiti, abrindo a discussão para psicanalistas, engenheiros, artistas plásticos, urbanistas, arquitetos e profissionais de áreas diversas da universidade e de outros setores, como grafiteiros, detetives e professores de escolas públicas. A seguir, transcrevo o resumo do projeto: O projeto Guernica é um programa da Prefeitura de Belo Horizonte, em parceria com o centro cultural UFMG e a FUNDEP, sendo desde o ano 2000 sustentado não só por se constituir em um espaço de estudo e pesquisa, mas também por implementar uma proposta de política pública para a pichação e o grafite na cidade. Nessa proposta, leva-se em consideração o problema do patrimônio, do urbanismo e da história. Ao perceber a pichação e o grafite como escrita tomada como necessária pelos jovens, propõe, como objetivos, abrir o debate e estabelecer ações que abram o leque de alternativas que possibilitem aos jovens freqüentar outros discursos e espaços da cidade, buscando ampliar os recursos técnicos e conceituais de cada um. Como metodologia, disponibiliza aos jovens de bairros populares uma passagem pela arte, por meio de oficinas com novos suportes para a escrita e a arte, seminários, palestras, participações em eventos de instituições, apropriação de espaços urbanos e uma grande campanha para a rede escolar. Como resultado, há ampliação das possibilidades da escrita, com o abandono das práticas transgressoras, maior respeito à memória social e o estabelecimento de laços sociais favoráveis ao mercado de trabalho e à participação cidadã.68 Além das iniciativas das prefeituras de São Paulo e Belo Horizonte, podemos destacar desenvolvimento de o tratamento mecanismos dispensado de inclusão à arte social de rua no idealizados por instituições da sociedade civil organizada (ONGs notadamente) em parceria com organismos multilaterais de financiamento, como UNESCO e BID. Inúmeras oficinas espalhadas pelo Brasil – a exemplo das oficinas das ONGs cariocas CUFA (Central Única das Favelas) e Afrorregae, e do grupo Fleshbeck Crew da zona sul, um dos mais atuantes do Rio de Janeiro – absorvem uma demanda que não pára de crescer e que não tem restrições etárias ou de classe social. Ali os iniciantes recebem informações a respeito do uso consciente do espaço público e de como inserir suas intervenções de forma coerente na paisagem urbana, além de aulas práticas. Toda a atmosfera construída em torno da arte de rua, como essas oficinas que multiplicam o número de praticantes, o desenvolvimento de 68 “Anais do 2° Congresso Brasileiro de Extensão Universitária”, Belo Horizonte, 12 a 15 de setembro de 2004. 82 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ novas técnicas, os interesses público e privado relativos ao deslocamento de tais atividades do âmbito da delinqüência para o da cultura, do consumo para a produção, e também ao planejamento urbano, revelam a amplitude de efeitos sociais e espaciais relacionados ao fenômeno. A relevância deste tema e de outros voltados para o estudo de práticas juvenis urbanas está inserida numa área de interesse mais ampla – a organização social no meio urbano – sobre a qual Chombart de Lauwe (1967) traçou o seguinte ponto de vista: A “juventude”, enquanto fato social, tem um lugar que tem sido mal definido na maior parte das sociedades industriais ou de países em transformação econômica. Daí resultam numerosas dificuldades e numerosos erros na planificação social. Os pequenos grupos espontâneos e os grandes movimentos da juventude podem constituirse em objetos de estudos reveladores para o sociólogo que quer compreender os mecanismos da evolução de uma sociedade urbana (Chombart de Lauwe, 1967:127). Estratégias relativas à alocação no mercado de trabalho, oportunidades de lazer e moradia Se analisarmos as estratégias desenvolvidas pelas populações trabalhadoras dentro das grandes cidades brasileiras no que diz respeito a questões como alocação no mercado de trabalho, opções de lazer, entretenimento e moradia, nós nos depararemos com interessantes, e muitas vezes criativas, alternativas. Apesar da ilegalidade de algumas atividades e da reprovação a outras, elas foram inseridas, através de políticas de governo ou ações sociais, na lógica das profissões regularizadas e dos direitos ao lazer e à habitação dentro do ambiente construído das metrópoles. Harvey (1982), em relação à questão da dinâmica dos mercados de trabalho (desenvolvimento e decadência de funções profissionais e oferta de serviços) e do consumo em grandes cidades ocidentais, afirma que No âmbito da mercadoria o trabalho pode, pela organização e pela luta de classes, alterar a definição de suas necessidades, de maneira a incluir “razoáveis” padrões de nutrição, saúde, habitação, educação, recreação, diversão etc. Do ponto de vista do capital, a acumulação requer uma constante expansão do mercado de mercadorias e isso significa a criação de novos desejos e necessidades e a organização de um “consumo racional” por parte do trabalho (Harvey, 1982:80). Para ilustrar a questão das estratégias desenvolvidas pelas populações trabalhadoras como mencionado acima, sigo com alguns exemplos, primeiramente relacionados ao mercado de trabalho. Funções como as de camelôs, “flanelinhas” e malabaristas de rua estão saindo do âmbito da informalidade e adentrando o campo das profissões reconhecidas e regulamentadas, ou sendo inseridas em políticas 83 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ sociais de inclusão. A criação de camelódromos nos bairros de Madureira, Centro e Tijuca, no Rio de Janeiro, reflete uma conjugação da demanda de consumo de mercadorias menos onerosas para os trabalhadores com uma oferta excessiva de mão-de-obra (caminhando para a informalidade) voltada para os mercados de trabalho locais, seja em funções na indústria, no comércio ou na prestação de serviços. Nos camelódromos, as barracas dos comerciantes são regularizadas através de alvarás de funcionamento, e os trabalhadores inseridos numa lógica formal de tributação. Com relação aos “flanelinhas” (não que eu simpatize com a atividade) – os outrora compulsórios guardadores de carros – uma lei recente do município do Rio de Janeiro regulamentou a profissão através do programa “Vaga Certa”: uniformes, talões de cobrança e o direito garantido de poderem atuar “tomando conta dos carros” estacionados em locais públicos. Os malabaristas de semáforos, através de projetos sociais intermediados por ONGs, ensinam suas técnicas em oficinas para comunidades carentes e são contratados para se exibirem em eventos privados, como festivais de música eletrônica. No que diz respeito ao lazer, as modalidades esportivas coletivas tradicionais, como futebol e basquete, estão sempre sofrendo alterações em suas regras para poderem ser adequadas à prática nos espaços públicos de recreação. Nas degradadas quadras polidesportivas existentes nas pracinhas e nos pátios públicos69 dos subúrbios das grandes cidades brasileiras, apareceu o street-basket70 (basquete de rua), similar ao basquete tradicional, porém com menos jogadores. Ele é jogado em duplas, trios ou quartetos, ao invés dos quintetos da regra oficial, e engloba uma série de outras adaptações relativas à adequação da prática à degradação das quadras (em certos formatos, o basquete de rua utiliza apenas uma das tabelas da quadra). O exemplo do street-basket torna-se interessante, pois a Rede Globo de televisão, em agosto de 2006, transmitiu ao vivo o primeiro campeonato brasileiro da modalidade inserido em seu principal programa de esportes, distribuindo generosas premiações em dinheiro e permitindo a visualização de uma bem-definida rede de praticantes que já contempla oficinas e escolinhas de aprimoramento. Apenas para concluir os exemplos relacionados às alternativas de lazer, nas urbes francesas nesse final do século XX, início do XXI, surgiu o Le Pakour, esporte 69 O abandono dos locais públicos de recreação das grandes cidades é matéria de discussão desde que, na primeira fase da matriz modernista do planejamento urbano, eles foram delimitados, sendo próprios para o divertimento das classes trabalhadoras. Robert Park (1967), em suas “Sugestões para investigação do comportamento humano no meio urbano”, já colocava a seguinte questão acerca desses locais, determinantes, na visão do autor, para a formação das chamadas “regiões morais”: “Até que ponto os pátios de recreio e outros tipos de recreação podem fornecer o estímulo que, de outra forma, é procurado em prazeres viciosos?”. 70 Notadamente desenvolvido em bairros de distritos nova-iorquinos, como o Brooklin, e emulado pelos jovens brasileiros através da cultura televisiva. 84 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ considerado radical; nele, os praticantes pulam muros, sobem em beirais e marquises, saltam obstáculos, escalam postes, enfim, interagem com todo o conteúdo dos ambientes construídos das cidades, identificando circuitos próprios para a atividade, utilizando nesses trajetos apenas a força das pernas e dos braços em corridas, saltos e escaladas. O Le Pakour já é praticado pelas jovens populações trabalhadoras cariocas, que tiveram contato com a modalidade através de veículos de comunicação, como televisão e Internet. Uma vez que os ambientes privados para a prática desportiva estão inseridos, muitas vezes, numa apreensível lógica de segregação espacial, a atividade aparece relacionada a um conjunto de outras que constituem um campo não-oneroso de alternativas de lazer e de atividades físicas. Quanto à habitação, as favelas situadas nos morros e nas encostas da região metropolitana do Rio de Janeiro são o exemplo cardeal das alternativas encontradas pelas populações trabalhadoras locais (de baixa renda) em face do processo de especulação imobiliária e segregação espacial impeditivo de uma inserção formal na lógica da habitação nesses centros. Após um século de tentativas de remoção, a agenda referente à questão das favelas adquiriu nos últimos anos uma outra direção. As favelas consagraram-se como parte constitutiva do ambiente construído das cidades brasileiras, situação observável na implementação, na última década, de políticas de infra-estrutura que utilizam a mão-de-obra dos próprios moradores em empreitadas de saneamento e pavimentação desses locais. Assim como a atividade dos “flanelinhas” ou a prática de esportes em espaços públicos de recreação, as favelas “venceram” no espaço urbano carioca, e agora em seu entorno gravitam o poder público e a sociedade civil organizada, objetivando o reconhecimento cívico dessas populações ou, nas palavras de Maria Alice Rezende de Carvalho (1995), tentando garantir-lhes o “acesso à cidade”. Os exemplos acima citados visam ilustrar o seguinte panorama: as alternativas informais encontradas pelos jovens do Rio de Janeiro, relativas ao trabalho, à moradia e ao lazer, estão sendo institucionalizadas através de iniciativas governamentais e, principalmente, pela articulação da própria sociedade civil. Não é diferente o que ocorre com o graffiti e com as demais formas de intervenção artístico-urbanas aqui examinadas. Os grafiteiros podem ser encarados como artistas em potencial que não tiveram oportunidades ou não foram orientados para freqüentar ambientes de aprimoramento de suas técnicas, tendo seu laboratório prático se dado nas ruas. Tais atividades têm suas origens relacionadas à expressão da subjetividade de seus praticantes, à contestação da forma como o espaço público é bombardeado pela propaganda, e constituem, na base, uma alternativa de entretenimento. Por outro lado, a estilização de artigos de vestuário, por exemplo, além de revelar este potencial artístico, insere o jovem numa atividade remunerada. O grafiteiro paulistano “Binho” tem como marca registrada a estampa 85 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ de uma barata, sempre adicionada a seus trabalhos. Na explicação de Tristan Manco (2005), a barata tem um significado simbólico e central para Binho: Binho é um membro da original velha escola de São Paulo e hoje em dia desenvolve um papel central no avanço da cena brasileira de graffiti. Ele geralmente pinta sob o nome “3º mundo”, usualmente incorporando seu personagem característico – uma barata usando uma máscara de gás. A onipresente barata nas ruas brasileiras é utilizada para representar a persistência do artista do graffiti, que sempre vence nos exteriores (Manco, 2005:50; tradução minha).71 A lógica dos suportes Em reportagem publicada no Jornal do Brasil72 sobre a prática do graffiti na cidade do Rio de Janeiro, a jornalista Cleusa Maria assim desfecha o texto da matéria: “Quando não tem suas obras apagadas em faxinas da prefeitura, esses artistas urbanos humanizam o rosto tenso da cidade, desaceleram o ritmo das ruas e derrubam, simbolicamente, os muros entre realidades tão distintas”. O trecho involuntariamente remete à amplamente debatida “cidade de muros” de Tereza Caldeira (2000) e seus “enclaves fortificados”, ou seja, “espaços privados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho que, sobretudo em função do medo da violência, atraem as classes média e alta, enquanto a esfera pública das ruas se destina aos pobres. Discutem-se ainda as inter-relações desta realidade com as modernas concepções de planejamento urbano e arquitetura”.73 Caldeira, em artigo comparativo dos processos de segregação espacial em São Paulo e Los Angeles, ainda assinala que “os muros vêm tornando cada vez mais explícitas a desigualdade e as distâncias sociais, mas não são capazes de obstruir totalmente o exercício da cidadania, nem de impedir os cidadãos pobres de continuar a expansão de seus direitos”.74 Curiosamente, é nesses muros – que determinam o limite entre o espaço público e os enclaves fortificados, e que representam o maior emblema da segregação espacial nas grandes cidades brasileiras – que muitos artistas de rua expõem suas manifestações. Agora as modalidades migram do espaço público, deteriorado, para o interior dos enclaves (da rua em direção a casa). Ainda segundo Caldeira, “A imagem dos enclaves opõese a da cidade, representada como um mundo deteriorado, permeado não apenas 71 Binho is one of São Paulo's original old-school writers and today plays a central role in advancing the brazilian graffiti scene. He often paints under the name 3º Mundo (meaning 'third world'), usually incorporating his trademark character – a cockroach wearing a gasmask into his pieces. The everpresent cockroach on the brazilian streets is used to represent the persistent graffiti artist, who always wins out (Manco, 2005:50). 72 “A arte no meio da rua”. Cleusa Maria, Caderno B, Jornal do Brasil, 26/06/05. 73 Caldeira, 1997:155. 74 Idem:176. 86 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ por poluição e barulho, mas principalmente por confusão e mistura, ou seja, heterogeneidade social e encontros indesejáveis”.75 De alguma forma, os domicílios urbanos sempre receberam elementos baseados na estética da exterioridade da urbe, retirando-os da poeira e da fuligem das ruas e inserindo-os nas organizadas arenas privadas de interação. Para a compreensão mais precisa de como se dá a utilização do espaço urbano por esses artistas plásticos, ou seja, como é a dinâmica dos suportes preferencialmente empreendidos, é interessante recorrer às categorias de Harvey (1982) relativas à constituição dos “ambientes construídos das grandes cidades”. Segundo o autor, O ambiente construído pode ser dividido em elementos de capital fixo a serem utilizados na produção (fábricas, rodovias, ferrovias etc.) e em elementos de um fundo de consumo a serem utilizados no consumo (casas, rua, parques, passeios etc.). Alguns elementos, tais como as ruas e os sistemas de esgotos, podem funcionar quer como capital fixo, quer como parte do fundo de consumo, dependendo de seu uso (Harvey, 1982:87). Os grafiteiros, por conta do tempo empreendido na elaboração de suas obras, geralmente muito detalhadas e com a utilização de tintas de diversas cores, costumam inserir seus trabalhos em ambientes urbanos constituídos por elementos de capital fixo. No Rio de Janeiro, observamos que os principais suportes estão situados nas adjacências de grandes vias rodoviárias (como as avenidas Brasil, Presidente Vargas e Radial Oeste), nos muros que cercam as ferrovias dos ramais da Central do Brasil, na zona portuária (os armazéns das Av. Perimetral), além de pilastras de viadutos e outros alvos degradados. Os locais mais procurados são sempre aqueles nos quais se poderá concluir o trabalho sem pressões exteriores, ou seja, sem grandes possibilidades de intervenções privadas ou policiais, o que não significa dizer que muros residenciais não sejam alvos procurados. Adesivos e estênceis são técnicas extremamente rápidas de colocação de desenhos e estampas; nesse sentido, são mais versáteis e prescindem da preocupação dos grafiteiros quanto aos percalços inerentes à confecção do trabalho: nas duas primeiras modalidades, o trabalho já se encontra pronto, devendo apenas ser rapidamente colado ou transferido através da técnica com tela e tinta spray. Dessa forma, além de exteriores, os interiores de ambientes privados, como banheiros de casas noturnas, bares, cinemas, ônibus etc., tornam-se alvos dessas práticas. A arte de rua como objeto de análise 75 Idem:160. 87 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ A escalada da arte urbana mundo afora foi acompanhada sempre de perto por jornalistas, pesquisadores, artistas plásticos e curiosos. Inúmeras produções literárias, com dados, fotografias e interpretações surgiram nesse contexto. Na bibliografia, adiciono uma pequena listagem de trabalhos de interesse específico sobre o assunto. Aqui, porém, considero interessante destacar um trabalho recente, intitulado Graffiti Brasil (2005), do artista e pesquisador inglês Tristan Manco em parceria com outros artistas ingleses, Lost Art e Caleb Neelon. Segundo entrevista ao site da Amazon Books (no qual o livro é comercializado), Tristan expõe que o principal atrativo de pesquisar arte de rua brasileira é a sua originalidade, uma vez que é muito diferenciada da produzida em outras metrópoles do mundo afora. O autor explica que o que viu nas cidades brasileiras foi algo diferente, tanto em estilo quanto em conteúdo. A improvisação para pintar com o material e os recursos disponíveis levou os artistas brasileiros ao estado atual de experimentação e criatividade que os singulariza dentro de uma rede mundial. Os autores assim traçam o panorama da atual cena do graffiti brasileiro. Na atual e vibrante cena, os artistas continuam a fazer sua parte na excepcional história do graffiti brasileiro, ao passo que desenvolvem suas trajetórias individuais. Os estilos continuam a aparecer, com artistas que misturaram pichação e graffiti e desenvolveram o “grapicho” (um estilo híbrido de escrita, combinando pichação e graffiti). Os artistas de rua reavivaram o estêncil e outras antigas tradições de pôsteres. O ato de pichar um muro, a princípio politicamente motivado, continua nos dias de hoje com o mesmo espírito de desafio. Os recursos são otimizados, e o seu risco de ser preso, sofrer uma brutalidade policial, humilhação é aumentado se você grafitar fora das áreas toleradas. Aparentemente ninguém foi desestimulado por esses entraves, e o graffiti aqui se transformou em um estilo de vida, um laço entre os amigos e uma essencial liberdade de expressão (Manco, 2005:18; tradução minha).76 Existe um grande acervo de matérias jornalísticas (muitas disponíveis na Internet), brasileiras e estrangeiras, a respeito da arte de rua. Os recortes são variados: percepções da sociedade civil acerca da atividade, entrevistas com os praticantes, descrições de novas modalidades, medidas governamentais e outros. A variedade de abordagens, levando em consideração os diferentes locais onde são investigadas as informações, constitui um material que, como se pode observar na exposição aqui apresentada, tem um considerável valor informativo e deve continuar sendo visitado enquanto fonte de dados. 76 In today's vibrant graffiti scene, artists continue to play their part in Brazil's exceptional graffiti story while taking their own individual paths. Styles continue to involve, with writers who have been mixing pichação and graffiti to make grapicho (a hybrid lettering style combining graffiti and pichação). Street artists have been reviving stencils and older poster traditions. The act of writing graffiti on a wall, which was originally politically motivated, continues today with that same spirit of defiance. Resources are stretched, and you risk imprisonment, police brutality, humiliation is much worse if you do graffiti outside the tolerated areas. Still no one seems deterred, as graffiti here has become a vital lifestyle, a bond between friends and an essential freedom of expression (Manco, 2005:18). 88 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Uma vez identificado que o fenômeno da arte de rua é mundial, preservadas especificidades e modalidades próprias aos diferentes locais onde se desenvolve, a proposta de uma pesquisa científica abrangente sobre o assunto dá a tônica da relevância da discussão aqui proposta. Para isto, devem ser levados em consideração os principais desdobramentos sociais e espaciais dessas atividades no Brasil e do seu conjunto específico de características. Isto visa, acima de tudo, lançar luz sobre esse complexo movimento juvenil e, desta forma, garantir a possibilidade de comparação com outros registros de atividades similares desenvolvidas aqui e em diversos países. Bibliografia CALDEIRA, Tereza. “Enclaves fortificados: a nova segregação urbana”. Revista Novos Estudos, n.47, Rio de Janeiro, CEBRAP, março de 1997. CARVALHO, M.A. Rezende de. “Cidade escassa e violência urbana”. Série estudos, IUPERJ, n.91, Rio de Janeiro, 1995. CHOMBART DE LAUWE, P.H. “A organização social no meio urbano”. VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1967. DA MATTA, Roberto. “Espaço - casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil”. _______. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1991. HARVEY, David. “O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas”. Revista Espaços e Debates, n.6, São Paulo, 1982. MAGNANI, José Guilherme. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.17, n.49, São Paulo, junho de 2002. PARK, Robert E. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1967. VALENZUELA, José Manuel Arce. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. ZUKIN, Sharon. “Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder”. In: ARANTES, Antônio (org.). O espaço da diferença. Campinas: Editora Papirus, 2000. Bibliografia de interesse específico 89 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ GITAHY, Celso. O que é grafite. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999. MANCO, Tristan. Graffiti Brasil. London: Thames and Hudson, 2005. RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, pichação & cia. São Paulo: Editora Annablume, 1994. Artigos e matérias jornalísticas “Arte no meio da rua: Artistas que buscam humanizar as cidades, os grafiteiros não param de formar novos grupos no Rio”. Cleusa Maria, “Caderno B” (capa) do Jornal do Brasil, 26/06/2005. “Decoração marginal: o grafite brasileiro sai das ruas e toma conta de paredes de casas e apartamentos, conquistando um novo e bem remunerado espaço” (não assinada). Revista Época, Editora Globo, n.377, p.82-85, 08/08/2005. “Eles picham um país em que não acreditam”. Ricardo A. Setti, Coluna “No Mínimo”, site Ibest, 24/02/2004. “Grafite: Uma arte que é muito pichada”. Entrevista de Ziraldo com cinco grafiteiros do Rio de Janeiro. “Caderno B” do Jornal do Brasil, p.b6-b7, 26/06/06. “Subversão Visual: nova forma de intervenção urbana, o pós-grafite disputa espaço com propagandas, políticos e anúncios de todo o tipo”. Lulie Macedo e João Wainer, Revista da Folha, 10/10/2004. ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA: reflexões sobre a reforma da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro 90 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Andréa Ana do Nascimento77 Resumo O Rio de Janeiro se destacou pelo programa de reforma policial Delegacia Legal, que buscou proporcionar tanto mudanças estruturais como culturais no trabalho das delegacias. A proposta era modificar a maneira de operar de uma delegacia de polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e resgatar a função investigativa da polícia através da padronização arquitetônica, técnica e operacional. No entanto, as etnografias e as avaliações feitas sobre as Delegacias Legais indicam que, apesar das mudanças já estarem em andamento, diversos aspectos da prática policial tradicional ainda permanecem ativos. Dentre eles, podemos destacar o tratamento desigual dado aos seus usuários. Durante a pesquisa, acompanhei as atividades de uma Delegacia Legal priorizando o exame dos registros de ocorrência e, através da observação participante, tive contato direto com os policiais e os usuários dessa delegacia. A experiência permitiu identificar as formas de tratamento dadas aos diversos tipos de ocorrências registradas e também aos diferentes usuários. Aparência, nível de escolaridade e renda são elementos considerados na hora de realizar o atendimento policial. Neste artigo – através de registros de ocorrência relatados ao longo trabalho – apresento uma descrição e uma breve análise de situações cotidianas de exclusão, discriminação e tratamento desigual dado aos usuários das Delegacias Legais. Palavras-chave: polícia civil, Delegacia Legal, reforma. Abstract Rio de Janeiro if detached for the program of police reform Legal Police station, which it searched to provide as many structural changes as cultural in the work of the police stations. The proposal was to modify the way to operate of a police station, to characterize the attendance to the citizen and to rescue the investigative function of the police through the standardization architectural and operational technique. However, the ethnographies and the evaluations made on the Legal Police stations indicate that, despite the changes already being in progress, diverse aspects of the practical traditional policemen still remain active. Amongst them, we can detach the different treatment data to its users. During the research, I followed the activities of a Legal Police station prioritizing the examination of the occurrence registers and, through the participant comment; I had direct contact with the policemen and the users of this police station. The experience allowed to also identifying the forms of treatment given to the diverse types of registered occurrences and to the different users. Appearance, level of education and income are elements considered in the hour to carry through the police attendance. In this article - through registers of occurrence told to the long work - I present a description and one brief analysis of daily situations of exclusion, discrimination and different treatment given to the users of the Legal Police stations. 77 A autora é mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduada em políticas públicas de segurança e justiça criminal pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora assistente do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ) e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF), e participante do PRONEX. Moderadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 91 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Key words: Civil police, Legal Police Station, reformation. Este trabalho é parte de uma reflexão iniciada com a pesquisa "Práticas policiais, 'direitos humanos' e os processos de construção de cidadania: um estudo 92 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ sobre o Programa Delegacia Legal", coordenada pelo Prof. Dr. Roberto Kant de Lima e financiada pela FAPERJ. Este artigo busca realizar uma análise sobre a reforma realizada na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) através da implementação do Programa Delegacia Legal (PDL). A proposta do Programa era melhorar a atuação policial diante das novas demandas por segurança. Mais adiante, o Programa Delegacia Legal (PDL) será apresentado com mais detalhes. Neste momento, cabe contextualizar brevemente o surgimento da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Em seu estudo sobre a Polícia do Rio de Janeiro, Holloway (1997) explicita que o controle social deixou de ser exercido pelas hierarquias personalistas para ser executado por uma autoridade impessoal das instituições estatais. Porém, o autor demonstra que estas duas lógicas – a personalista e a impessoal – continuaram a existir e a se complementar nas práticas policiais. Se, por um lado, temos uma instituição impessoal e universal, por outro, constatamos que ela atua de forma a reprimir as transgressões de regras que foram criadas pelas próprias elites políticas, reafirmando assim a continuidade das relações hierárquicas da sociedade. O inimigo da polícia do Rio de Janeiro era a própria sociedade – não a sociedade como um todo, mas os que violavam as regras de comportamento estabelecidas pela elite política que criou a policia e dirigia sua ação. Pode se ver esse exercício de concentração de força como defensivo, visando proteger as pessoas que fizeram as regras, possuíam propriedade e controlavam instituições públicas que precisavam ser defendidas. Mas também se pode vêlo como ofensivo, visando controlar o território social e geográfico – espaço público da cidade – subjugando os escravos e reprimindo as classes inferiores livres pela intimidação, exclusão ou subordinação, conforme as circunstâncias exigissem (Holloway, 1997:50). Deste modo, percebemos que a criação do aparato policial veio para suprir as necessidades de uma burguesia comercial brasileira e defender seus interesses, ao invés de servir e proteger a sociedade como um todo. Naquele período, era necessário manter o controle social dos indivíduos, salvaguardando a ordem estabelecida pelas elites. Sendo assim, as elites brasileiras apropriaram-se de uma instituição burocrática, a polícia, para atender aos seus próprios interesses, contrariando a lógica das instituições burocráticas modernas que têm por base a organização e a impessoalidade de suas ações. À medida que a sociedade foi se tornando mais complexa, fluida e impessoal, novas técnicas se fizeram necessárias para suplementar o controle dos senhores sobre os escravos e para estender esse controle às crescentes camadas inferiores livres. O novo Estado tratou de suprir essa necessidade, e o sistema policial herdado do final do período colonial evoluiu para reprimir e excluir aquele segmento da população urbana que pouco ou nada recebia dos benefícios que o liberalismo garantia para a minoria governante (Holloway, 1997:251). 93 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em seu trabalho, Kant de Lima (1995) demonstra como a polícia civil muitas vezes atua arbitrando os conflitos através da sua discricionariedade. Em muitos casos, os fatos ilícitos não são registrados e acabam sendo administrados pelo próprio delegado. A polícia é que decide se determinado indivíduo é suspeito ou não para a sociedade. Na maioria das vezes, essa suspeita decorre do status quo do indivíduo e não de uma ação criminosa. A investigação da polícia é contaminada pela vigilância da população, que busca selecionar, em um processo preliminar, os possíveis criminosos, como demonstra o trecho a seguir: Ao exercer as funções judiciárias, a polícia não atua simplesmente como agente do sistema judicial, identificando os fatos criminosos previamente tipificados (previstos) pela lei, tal como estipula a teoria jurídica brasileira. Na realidade, a polícia “prevê” os fatos delituosos por meio de suposições relativas ao caráter do delinqüente – os estereótipos [...] (Kant de Lima, 1995:8). A contextualização acima aponta para alguns aspectos da atuação policial antes da reforma proposta pelo governo do estado do Rio de Janeiro através da implementação do Programa Delegacia Legal. Levantarei aqui algumas das mudanças alcançadas pelo Programa e serão esclarecidos, de maneira mais cuidadosa, alguns aspectos do PDL. Contudo, cabe ressaltar que muitos dos pontos abordados sobre a questão de reforma da polícia, em que a PCERJ foi utilizada como referência, aparecem também em outras polícias analisadas por autores como Bittner, Bayley e Monjardet. Não há a pretensão de se fazer uma revisão minuciosa destes autores, mas gostaríamos de tecer alguns comentários sobre determinados aspectos da reforma, que podem ter pontos comparativos em relação aos trabalhos dos autores mencionados. Lembramos que o caso brasileiro é atípico, pois temos uma polícia dividida entre civil e militar, o que requer, em algumas situações, cuidado com os cotejos com as polícias estrangeiras. Desta forma, ao longo do texto, buscaremos confrontar o nosso “modelo de polícia” com outros estudados por diversos autores. O Programa Delegacia Legal O Programa Delegacia Legal foi implementado com o objetivo de proporcionar uma mudança estrutural e cultural na forma de trabalhar das delegacias. Para realizar tal propósito, foi criado um Grupo Executivo, formado por delegados, policiais e outros profissionais e que é, até hoje, responsável pela execução do PDL. Conforme o Plano Estadual, o objetivo do Programa é “mudar” a 94 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ forma de operar de uma delegacia de polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e resgatar a função investigativa da polícia através da padronização arquitetônica, técnica e operacional. Modifica completamente a forma de operar de uma delegacia de polícia, consistindo na transformação radical do desenho dos prédios, tornando-os locais confortáveis e funcionais; na dotação de equipamentos de última geração para todas elas; na modificação das rotinas; e na requalificação do pessoal que nelas opera. Essas mudanças visam melhorar o trabalho policial através de uma qualificação e utilização de novos recursos tecnológicos aproximando os cidadãos da instituição. Desta forma as mudanças propostas pelo Programa são a eliminação da carceragem, com a criação concomitante de Casas de Custódia para abrigar os detentos; a contratação de um corpo de funcionários não-policial responsável pela parte administrativa da delegacia, assim como estagiários das áreas de psicologia, assistência social e comunicação social para atendimento ao público no balcão; incorporação ao espaço da delegacia de instituições como o Ministério Público, Juizado Especial, Polícia Militar e Assistência Social; obrigatoriedade do uso de crachás e gravatas, com o objetivo de facilitar a percepção de um ambiente de ordem, respeito e distinção; identificação e visualização das ocorrências mediante o controle em tempo real dos atos praticados, entre outras (Plano Estadual , 2000). O projeto teve início em março de 1999 com a implementação da primeira Delegacia Legal do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, já conta com quase 80% das delegacias de polícia seguindo este modelo. A partir das mudanças propostas pelo Programa Delegacia Legal, buscaremos demonstrar como isto afetou ou deixou de afetar algumas práticas policiais cotidianas, especialmente naquilo que se refere ao tratamento dado à população que busca os serviços da Delegacia Legal ou, ainda, que é conduzida a ela por ter praticado algum delito. Para isso, consideraremos apenas uma das delegacias pesquisadas, lembrando que a metodologia adotada foi a observação participante e o acompanhamento de registros de ocorrência. Para facilitar a compreensão do artigo, apresentaremos cinco situações que acompanhamos, e que indicam a forma de tratamento que os policiais adotam em relação aos que procuram a delegacia, considerando o perfil da vítima ou do autor. A delegacia escolhida localiza-se na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, tida na representação dos policiais como “Faixa de Gaza”, pois é próxima de duas vias de muita movimentação e integra uma área de aproximadamente 65 favelas. Começando do zero: as “mudanças” e as percepções sobre a reforma trazidas pelo Programa Delegacia Legal 95 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que as informações apresentadas aqui se referem apenas a uma delegacia pesquisada, descrita anteriormente. No entanto, cabe dizer que, na maioria das delegacias estudadas, totalizando quatro áreas geográficas (zona norte, zona sul, Centro e Região Metropolitana), as situações e as formas de tratamento, que serão descritas mais adiante, são muito semelhantes, variando em geral o tipo de delito e o perfil dos usuários de acordo com a área. Segundo Paes (2006), com a experiência atual do Programa Delegacia Legal, dois modelos de delegacia passam a conviver; para distingui-los, não só pela forma, mas também pelo conteúdo, as delegacias podem ser denominadas de delegacia legal ou delegacia tradicional. No primeiro caso, encontram-se aquelas que estão inseridas no Programa Delegacia Legal. No segundo, acham-se as que ainda não estão inseridas no PDL. No entanto, neste último caso, é comum ouvir por parte dos policiais que estas são delegacias convencionais ou, ainda, delegacias “ilegais”, fazendo um trocadilho com o significado do termo, ficando estabelecida, desta forma, uma separação entre os dois modelos de delegacia. Para estabelecer uma contraposição dos dois modelos, mais uma vez utilizamos o trabalho de Paes (2006), que faz uma descrição cuidadosa do modelo convencional de delegacia. Creio ser fundamental tratar de alguns aspectos dessa descrição, pois mais adiante apontaremos as “mudanças”, e só assim será possível comparar os dois modelos. Segundo a autora, o atendimento inicial em uma delegacia convencional é feito por um policial que, dependendo da situação e até mesmo da delegacia, pode acumular algumas funções; estas vão desde o atendimento ao público ou a telefonemas, passam pela orientação à população e pelo registro de ocorrência, até o controle da carceragem. O trâmite dos procedimentos da delegacia convencional inicia-se por um policial que fica no balcão logo na entrada da delegacia para atender ao público que demanda as atividades policiais. Na delegacia em que realizei a maior parte da pesquisa de campo, esse policial estava responsável por atender às ocorrências policiais (principal função a ele destinada), por atender à maior parte dos telefonemas que são dirigidos à delegacia ou a alguém que esteja necessitando de alguma informação, e por dirigir essas pessoas aos setores que deveriam procurar na delegacia, caso fosse necessário. A chave da carceragem da delegacia também ficava com esse policial do atendimento, de forma que eram inúmeras as funções que ele acumulava (Paes, 2006:61). Ainda segundo Paes, no caso da realização dos registros de ocorrências, estes são feitos em um formulário-padrão preenchido em uma máquina de escrever, e depois são encaminhados para o Setor Administrativo, onde são 96 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ protocolados e distribuídos para os Setores de Investigação da Delegacia, ou então são encerrados. Depois de encaminhados, os casos tornam-se VPIs (Verificação Preliminar da Informação ou do Inquérito), e se convertem em uma espécie de relatório preliminar, que pode vir ou não a se tornar um inquérito. Como indica Kant de Lima, esta é uma prática informal institucionalizada. Por ocasião da pesquisa, havia uma prática institucionalizada na polícia do Rio de Janeiro destinada a evitar a supervisão do sistema judicial e da correição policial. Em vez de um inquérito policial, o delegado abria uma investigação preliminar, que era designada também pelas iniciais IP, que coincidiam com as de Inquérito Policial. Essa investigação preliminar, com o nome de investigação policial, era admitida em casos de sindicâncias administrativas que a polícia era solicitada a efetuar em suas atividades de vigilância para esclarecer oficialmente, por exemplo, a situação econômica de um indivíduo (Kant de Lima, 1995:68). Os setores de investigação costumam ser divididos por especializações internas, tais como homicídios, roubos e furtos, entorpecentes, entre outros. A delegacia deve dispor ainda de salas para tomar depoimentos ou realizar interrogatórios. Uma vez descrito o modelo convencional, podemos partir para o perfil do modelo adequado ao PDL. Na medida do possível, tentaremos seguir a ordem que Paes (2006) utilizou para descrever a delegacia convencional. As Delegacias Legais iniciaram suas atividades começando do zero. Isto porque, segundo Paes (2006), assim que uma nova delegacia é inaugurada, todos os procedimentos produzidos pelo modelo anterior são encaminhados a uma Delegacia Especializada de Acervo Cartorário para que continuem a ter andamento, zerando os registros de ocorrência na nova delegacia legal. Ao chegar a uma Delegacia Legal, a primeira impressão que se tem é a de um ambiente limpo, iluminado e transparente. De fato, a reforma arquitetônica é apontada como um elemento positivo tanto pela população quanto pelos policiais. As Delegacias Legais contam com banheiros, telefones públicos e com um atendimento diferenciado. Por esta razão, o atendimento inicial não é realizado por um policial, mas sim por um estagiário de psicologia, serviço social ou outros. Ele é responsável por fazer uma triagem dos casos e orientar a população; também atende o telefone e direciona as ligações para os setores adequados. Se o estagiário perceber que se trata de um caso de polícia, a vítima – ou utilizando uma linguagem administrativa, o cliente ou o usuário da delegacia – é encaminhada para o atendimento policial. 97 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ O policial que faz o registro de ocorrência de acordo com o Programa é o responsável direto pela sua investigação. Dessa forma, não estão previstas pelo Programa especializações como as que existem no setor de investigação da delegacia tradicional, como um setor para homicídios, outro para entorpecentes etc. O próprio policial é o responsável por conduzir a VPI (Verificação Preliminar da Informação) e, se for o caso, o inquérito. Isto tudo é feito através de um sistema informatizado e que se encontra em rede, tendo como propósito, além da circulação da informação, manter um controle sobre a produtividade dos policiais, já que o sistema permite que eles, assim como o Grupo Executivo, mantenham a fiscalização sobre os registros de ocorrência realizados por esses mesmos policiais. Além disso, a delegacia dispõe de uma sessão chamada SESOP (Seção de Suporte Operacional), que deve desempenhar funções semelhantes às do setor administrativo da delegacia tradicional, organizando e distribuindo os documentos dentro e fora da delegacia. Não podemos deixar de falar do SIP (Seção de Inteligência Policial). Esta seção é a responsável pela qualificação dos presos e também tem acesso a sistemas de informações que os outros policiais responsáveis pelos registros de ocorrência não têm. A seção tira fotos dos detidos, lança no sistema, levanta a vida pregressa e pode, através do acesso a diversos bancos de dados, cruzar informações e identificar pessoas. A Delegacia Legal não possui carceragem e, sendo assim, não existe um policial oficialmente designado para o papel de carcereiro. O que há são duas celas, onde os detidos não ficam por mais de 24 horas; após esse período, são transferidos para alguma carceragem – na época da pesquisa, era a POLINTER (Polícia Interestadual), localizada no bairro da Gamboa, próximo ao Centro. Na verdade, segundo os policiais, a origem do nome Delegacia Legal vem dessa mudança pois, segundo eles, a carceragem em delegacias é inconstitucional, portanto, ilegal. Por isso, depois da implementação do Programa, muitos passaram a chamar as delegacias convencionais de ilegais. A Delegacia Legal conta ainda com a figura do síndico. Trata-se de uma pessoa contratada pelo Grupo Executivo e que, assim como os estagiários, não é policial. O papel do síndico é semelhante ao de um almoxarife, pois ele cuida de toda a parte material da delegacia, desde a solicitação de itens como papel, cartuchos para impressoras até a parte de pedidos de reparos em computador, arcondicionado, telefone, e demais necessidades da delegacia. 98 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Se formos analisar a reforma simplesmente pela sua proposta, poderemos afirmar que, além de inovadora, ela é realmente muito positiva, pois tenta dar conta não só dos aspectos objetivos que já destacamos – as mudanças arquitetônicas, a informatização e a divisão das atividades – mas também de aspectos subjetivos, como a sensação de transparência, o conforto e o atendimento especializado. No entanto, vendo cada um desses aspectos de perto e durante certo tempo, é possível identificar que nem tudo funciona como o previsto. As resistências por parte dos policiais em se adequarem às normas do Programa são muitas, como veremos mais à frente. Mais uma vez, buscando manter uma seqüência na descrição do funcionamento da delegacia, buscaremos expor os fatos seguindo a lógica da exposição anterior. O atendimento inicial é realizado por estagiários de ambos os sexos, em geral, oriundos da área de humanas, e supervisionados por um técnico ou técnica já graduado/a. No entanto, depois de algum tempo de convívio, pudemos perceber que essas pessoas passam a reproduzir algumas das práticas ditas “tradicionais” da polícia. Dentre elas, destacamos o chamado “bico”. Na linguagem dos policiais, a palavra pode indicar duas práticas diferentes. A primeira delas refere-se ao segundo emprego, pois muitos policiais desempenham outras atividades profissionais em seus dias de folga, as quais eles chamam de bico.78 A segunda está vinculada à palavra chutar, bicar, dar um pontapé. Neste caso, para a polícia, bicar seria “chutar”, num sentido figurado, a vítima ou o reclamante para fora da delegacia. Isto ocorre quando a pessoa que deseja fazer um registro de ocorrência é convencida a não fazê-lo sob diversas alegações. No caso dos estagiários, eles podem convencer a pessoa de que sua queixa não é assunto de polícia ou, ainda, que o fato não aconteceu na circunscrição daquela delegacia, apesar de o caso poder ser atendido lá e posteriormente encaminhado à delegacia mais próxima do ocorrido. Existem ainda momentos em que a ordem de espera no atendimento pode não ser respeitada, pois o policial liga para o atendente e pergunta quais são os casos, e escolhe qual vai atender, sem considerar quem chegou primeiro. Essas situações demonstram que, apesar de o atendimento inicial não ser realizado por policiais, ele pode não ser muito eficiente em acolher a população, especialmente nas situações em que reproduz atitudes comuns às dos policiais. 78 Bico. 4. Pop. Pequenos ganhos avulsos / ou tarefa adicional que os possibilita; biscate, galho. Mini Dicionário Escolar Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. 99 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em alguns casos, as formas de realização do registro de ocorrência também fogem às propostas do Programa, apesar de ele ser realizado pelos policiais do Grupo de Investigação (GI). Na primeira delas, em geral, o policial que faz o registro não é o mesmo que vai conduzir a investigação. Na verdade, existe um grupo de policiais para cada passo de uma investigação na delegacia pesquisada. Há um grupo de policiais responsável pelo atendimento ao público, aquele que faz, portanto, os registros de ocorrência. Se o registro não for encerrado, existe um outro grupo que cuida das VPIs, esclarecidas anteriormente, o que é uma herança das delegacias convencionais. Na delegacia estudada, as VPIs são devidamente separadas em pares e ímpares: as primeiras ficam sob a responsabilidade de um policial, e as segundas, com outro. Existe ainda um policial designado para trabalhar os inquéritos: pede prazo para o Ministério Público, ouve as pessoas, dentre outras atribuições. Todas as divisões citadas indicam que essa delegacia não está em conformidade com as normas do Programa. Além dos aspectos supracitados, essa delegacia conta ainda com um GIC (Grupo de Investigação Continuada), ou como o chamam ali, “Grupo de Investigação Complementar”, que é composto por policiais diretamente subordinados ao delegado titular e, por isso, também conhecido como “Grupo Íntimo do Chefe”. Tal grupo foi criado posteriormente à implementação do PDL pois, segundo Paes (2006:91), “esse setor não conseguiu acumular as funções de registro e investigação, ocasionando assim um grande acúmulo de investigações sem andamento”. Na delegacia em questão, esse grupo possuía algumas especializações semelhantes às de uma delegacia convencional: GIC de homicídios, GIC de entorpecentes e um GIC que só realizava operações externas (prisões, entrega de intimações etc.). Cabe ressaltar que o GIC é geralmente composto por policiais novatos. Estes, muitas vezes, têm escolaridade mais elevada do que a dos policiais mais velhos, chamados “antigos” ou “cascudos” devido à sua experiência profissional. Esta mudança tornou-se formal através dos recentes concursos que exigem nível superior para cargos que antes eram exercidos por profissionais de nível médio, dentre eles, o de investigador. Esse convívio nem sempre é harmônico. Os policiais novatos acreditam estar mais atualizados e melhor preparados para o “combate”, e acusam os mais velhos de serem preguiçosos e acomodados. Já os mais velhos acreditam que os novatos são imprudentes e exibicionistas, pois cultuam o corpo e adoram andar armados. No caso da polícia norte-americana, Bittner (2003) indica que o quadro atual desses funcionários oferece resistência às propostas de aumento de escolaridade. 100 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Segundo o autor, parece compreensível que os chefes, os capitães e mesmo os policiais veteranos não fiquem contentes em ter que trabalhar com recrutas que os ultrapassam em termos educacionais. Além disso, Bittner questiona a qualidade dos profissionais que, apesar de terem se empenhado em receber o diploma universitário, optam por uma profissão que exige apenas o nível médio de escolaridade e na qual, na maioria dos casos, o que se aprendeu na faculdade não parece ser útil para o trabalho policial. A Seção de Inteligência Policial (SIP) é dotada de diversas ferramentas que permitem a agilização de uma investigação. Ela é alimentada, em parte, pelas informações colocadas pelos policiais que operam o sistema, mas elas nem sempre são preenchidas de forma precisa pelos policiais ao realizarem os registros de ocorrência. Muitas vezes, algumas daquelas de que os policiais dispõem são qualificadas como ignoradas para que o registro possa ser feito de forma mais rápida. Dados como local do crime, descrição do autor e outros detalhamentos não são escritos corretamente. Os policiais do SIP possuem uma senha que dá acesso a determinadas informações que os outros policiais não têm. Mas é comum, na ausência do “sipeiro”,79 a senha ser deixada com outro policial da delegacia, que verificará então os novos dados para ele e para os colegas. Nem mesmo o Grupo Executivo parece ter controle sobre essas senhas. Numa das situações acompanhadas, um “sipeiro”, que havia sido transferido da delegacia pesquisada para a DRFA (Delegacia de Roubos e Furtos de Autos), deixou sua senha com o policial que assumiu o seu lugar; este, enquanto não solicitava a sua própria senha, utilizava a do antigo operador. Ele ainda faz uso dela sem que o sistema bloqueie o seu acesso. Ainda em relação às senhas, alguns policiais, quando precisavam ausentarse da delegacia, pediam para um colega fazer registros em seu terminal; para isto, deixavam a sua senha e o nome completo, de modo a parecer que ele estava lá trabalhando quando, às vezes, não tinha sequer ido à delegacia. Assinar documentos pelo colega, e até mesmo pelo delegado, era muito comum, prática esta chamada de “Baixar o santo do delegado”. Apesar de não haver uma carceragem nessa delegacia, quem ficava com as chaves da cela era o “sipeiro”. Segundo ele, o fato ocorria porque sua sala era a mais próxima das celas. Ele não parecia estar muito satisfeito com tal atribuição e dizia que isso atrapalhava o trabalho por implicar um acúmulo de atividades e o resgate da função de carcereiro. No que se refere ao papel do síndico, ele parecia executar as funções de acordo com o previsto, porém, em algumas situações, ficava 79 Denominação dada ao policial que trabalha no SIP. 101 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ limitado pela falta de papel, tinta para impressão e o não-pagamento de alguns serviços, como o do ar–condicionado, que era desligado pela empresa quando os pagamentos estavam atrasados. De acordo com as informações dos policiais, todo o equipamento eletrônico usado na delegacia é alugado, desde os computadores até o ar-condicionado. Segundo os delegados e os policiais, as mudanças administrativas propostas tiveram que ser adaptadas às necessidades da delegacia. Uma delas é o fato de o Programa Delegacia Legal prever que um mesmo investigador abarque todas as funções, desde o registro até a investigação e a abertura do inquérito. Este foi um dos problemas apontados pelos policiais que trabalham na Delegacia Legal, pois não dá para realizar todas as investigações, já que ficam muito tempo na delegacia fazendo vários registros de ocorrência. Na visão dos delegados entrevistados, cada policial tem um perfil profissional diferenciado, mas isto não está previsto no Programa, ou seja, existem policiais que têm mais habilidade para o trabalho realizado na rua, denominado de "atividade fim", e outros são mais adequados ao trabalho burocrático, denominado "atividade meio". Desta maneira, eles optam por manter o formato anterior ao Programa, designando um policial para cada atividade. Para muitos investigadores, o trabalho que realizam na delegacia não é considerado de “polícia”, pois são, na maioria das vezes, conflitos entre “vizinhos”, “marido que bate na sua mulher”, e outros semelhantes. Em casos como estes, eles agem mais como árbitros do conflito, tentando resolver os problemas que, para eles, “não são de polícia” ou, como gostam de chamar, são “a feijoada”. Eles acreditam que trabalho de policia é prender bandido, e não resolver problemas como estes. Os investigadores deixam claro que sua função na delegacia depende do relacionamento que cada policial tenha com o delegado titular. Cada delegado tem um grupo de policiais de sua confiança que realiza as investigações determinadas por ele, denominado Grupo de Investigação Complementar (GIC) ou, no jargão dos policiais, “Grupo Íntimo do Chefe”.80 De fato, essa equipe trabalha diretamente com o delegado e, no caso da delegacia estudada, possui nela uma posição diferenciada, pois tem escala diferente e raramente os policiais que a ela pertencem são empregados em trabalhos internos ou burocráticos; em geral, eles são os responsáveis pela entrega de intimações, o cumprimento de mandados e as apreensões de armas e drogas. 80 Como mencionado anteriormente, o GIC foi incorporado pelo Programa Delegacia Legal. 102 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ No que se refere ao perfil dos registros de ocorrência da delegacia estudada, a maioria dos atendimentos está relacionada ao encontro e à remoção de cadáveres, à apreensão de armas e drogas, à detenção de usuários de droga e, por fim, aos roubos e aos furtos de celulares e carros. É importante ressaltar que boa parte dessa demanda é trazida pela polícia militar. Segundo os policiais, apesar de o Programa prever que todos os casos que chegam à delegacia devem ser registrados, na prática, a decisão de se fazer um registro de ocorrência depende do investigador. É ele quem decide se existe ou não um fato ilícito. Na maioria das vezes, os policiais tentam não fazer o registro, ora dizendo que o fato não aconteceu na área da circunscrição da delegacia, ora que o ocorrido não é um fato ilícito. Em várias ocasiões também é feita pelos policiais uma arbitragem entre as partes, sem que seja necessária a abertura do registro de ocorrência. Identificando algumas práticas policiais no Programa Delegacia Legal: a administração institucionalizada de conflitos Uma vez já tendo sido feitos diversos apontamentos sobre o Programa Delegacia Legal, faz-se necessário agora o relato de alguns registros de ocorrência que acompanhamos nesse período. O propósito da utilização de tais relatos é demonstrar como a polícia atua ajustando-se não só à estrutura oficial e jurídica legal, mas também às normas de uma sociedade hierárquica e desigual como é a brasileira. Esta composição resulta no que Kant de Lima chama de ética policial, e ela diz respeito a um conjunto de regras e práticas utilizado pela polícia: “A 'ética policial' servia de fundamento para o exercício de uma interpretação autônoma da lei e como tal imprimia à aplicação desta uma característica peculiar, própria das práticas policiais.” (Kant de Lima 1995:65). De acordo com Bayley (2003), apesar de a relativa eficácia para enfrentar responsabilidades ser um aspecto importante, existem outros da atividade policial que são fundamentais para compreender e avaliar o seu funcionamento. Dentre eles, podemos citar o respeito à lei, a criação de confiança pública, as demonstrações de simpatia e preocupação e o tratamento igualitário das pessoas. Alguns destes aspectos são preteridos, às vezes, pelos pesquisadores, que preferem avaliar o impacto das reformas policiais analisando apenas o aspecto quantitativo, como os índices de resolução e a redução da criminalidade. 103 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Para Bayley (2003), se a resolução e o combate ao crime forem tomados como as principais características da atividade policial, os dados institucionais produzidos em relação a este tema não são de todo confiáveis. Isto acontece não só porque pode existir um interesse institucional em prejudicar a transparência dos mesmos, mas também devido a outros fatores, como a confiabilidade que a população tem, ou não, na polícia. Por exemplo, quando a confiabilidade aumenta, o índice de registros de crimes pode aumentar por esta razão, e não necessariamente porque a criminalidade cresceu. E mesmo que esses dados sejam confiáveis, eles medem o que a polícia faz – prender – e não o que ela alcança com isso – a prevenção dos crimes. As situações relatadas a seguir demonstram como a polícia pode, baseada em sua ética, administrar de forma diferenciada conflitos semelhantes. O primeiro caso refere-se a um “não-registro” de ameaça. Tratava-se de um homem que havia sido traído pela mulher. Quando ele descobriu, ligou para a mulher do amante de sua esposa e contou tudo para ela. Depois disso, ele recebeu um telefonema do amante de sua esposa que o ameaçou de morte. Ele revidou a ameaça dizendo que: "Bala trocada não dói". No dia seguinte, uma pessoa que se identificou como policial ligou para ele para tirar satisfação do que estava acontecendo. Ele falou com a esposa do amante de sua mulher que disse a ele que já sabia do caso, e que a mulher dele e o marido dela se encontravam no trabalho toda quinta-feira. O amante era plantonista do Raio-X, e a mulher dele, que tinha plantões alternados, ia toda quinta-feira ao hospital. Ele resolveu dizer para esposa que ia se queixar dela para o diretor do hospital. Ela disse que, se ele fizesse isso, ia se ver com ela. Ele ficou com medo das ligações e decidiu dar queixa. O inspetor teve um trabalho enorme, mas conseguiu reverter a situação, de modo que o homem desistiu de registrar a queixa. O inspetor disse para ele que, como ele havia revidado a ameaça, teria que entrar no registro como vítima, mas também como autor. Nesse caso, segundo o inspetor, isso iria ficar na ficha dele, podendo prejudicá-lo futuramente. Além disso, ele aconselhou o homem a não se queixar da mulher com o diretor do hospital. Segundo ele, não havia provas de que os dois se encontravam lá, e ela poderia processá-lo por calúnia e ele teria que indenizá-la. O desfecho foi que o homem foi embora da delegacia sem fazer o registro. O homem aparentava ser humilde e ter uma escolaridade baixa, pela forma que se expressava com o inspetor. Ele chegou à delegacia sozinho e parecia bem determinado a fazer o registro mas, após uma longa conversa com o inspetor, acabou desistindo. Não temos dados exatos sobre o perfil do mesmo, pois o registro de ocorrência não foi realizado. Neste caso, o ato de “bicar” foi bem aplicado pelo inspetor. Mas nem sempre o policial consegue simplesmente dispensar o reclamante e não realizar o registro. Fatores como escolaridade, perfil profissional ou financeiro e relações pessoais do reclamante são considerados antes de se “bicar” a vítima. Podemos perceber isto na situação descrita abaixo, na qual aparece mais uma circunstância de ameaça. O inspetor fez o registro porque um delegado conhecido dele havia pedido a ele que atendesse ao caso. O reclamante era um arquiteto e havia sido traído e 104 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ameaçado pela mulher. O amante da mulher era ex-policial e trabalhava no mesmo lugar que ela em um cargo de confiança. A mulher era do Tribunal de Justiça e tinha pai influente. O reclamante foi com uma advogada, que era conhecida do delegado e amiga do inspetor que atendeu o caso, e ele permitiu que ela (a advogada) relatasse o fato como achasse melhor. Toda vez que o homem se propunha a falar diretamente com o inspetor, ele mandava o homem esperar. Depois ele [o inspetor] falou para a gente que não ia dar em nada, mas que fez o registro porque conhecia a pessoa que havia indicado a doutora para ele atender. Creio que em outra situação ele não teria feito o registro, ou teria tentado convencer o cara a desistir. Além disso, quando a vítima se retirou, ele fez diversos comentários sobre a sexualidade do mesmo, alegando que ele tinha levado chifre porque era homossexual. Diante dessas duas situações que envolvem um mesmo tipo de delito – a ameaça – percebemos que se mantém a prática de não se fazerem os registros, ou mesmo de registrar o caso baseando-se no perfil da vítima e em suas relações pessoais, o que ainda ocorre nessa delegacia. Além disso, a aplicação e o uso de estereótipos e o tratamento dispensado às vítimas com base em tais fatores também continuam em andamento. As pessoas primeiramente são classificadas por critérios do policial, e só depois disso é que se dá andamento ou não ao registro. Em um de seus trabalhos, Kant de Lima aponta, através da fala de um delegado, esse tipo de classificação. Quando um grupo de pessoas entra na delegacia, antes de ouvi-las, nós enquadramos cada uma delas. Isso é uma coisa profissional, uma coisa de perdigueiro. Após esse primeiro instante, vamos aperfeiçoando a imagem da pessoa, mas a primeira coisa é “tirá-la”: temos de ver se os sapatos são caros ou baratos, sujos ou limpos, se as solas estão gastas ou não, se as calças são formais ou informais e de que tecido são feitas. Observamos o aspecto geral da pessoa para ver se está alinhada ou em desalinho, se fez a barba recentemente, se está bem alimentada, o estado dos dentes. [...] Observamos então sua educação, sua experiência. Após observarmos todas essas coisas, dirigimos algumas perguntas para obter informações. [...]” (Kant de Lima, 1995:53). Quando há o envolvimento de autores de determinados crimes ou delitos, o tratamento diferenciado também ocorre. Podemos observar isto nos dois casos que se seguem, ambos acontecidos no mesmo dia e quase ao mesmo tempo, e nos quais, de acordo com o perfil dos atores, a forma de tratá-los foi bem diversa. Chegaram dois flagrantes do artigo 16 [usuário de drogas] na delegacia. O primeiro deles se tratava de um jovem de classe média que foi pego com 31,4 gramas de maconha em tablete. Ele havia comprado a droga numa favela próxima e, ao tentar embarcar, deu de cara com dois policiais militares que faziam o policiamento no ônibus. Ele foi revistado e depois levado à delegacia. Esse flagrante demorou muito, pois os policiais tiveram que levar a droga ao Instituto Criminal Carlos Éboli de ônibus, pois não tinham viatura. Enquanto isso, o rapaz ficou na delegacia conversando com o policial militar, com o inspetor que atendeu ao seu caso e conosco. O rapaz tinha 22 anos, morava na Taquara e estava no 5º período de Educação Física. Ele conversou muito, e os policiais perguntaram a ele porque ele usava drogas. Ele respondeu que 105 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ gostava e que a droga o ajudava a estudar, além de deixá-lo relaxado. Disse também que os policiais só o pegaram porque ele estava lerdo, pois havia fumado um baseado antes de entrar no ônibus. O rapaz contou sobre sua vida, dizendo que iria chegar atrasado ao trabalho, pois fazia recreação e dava instrução de esportes radicais em um hotel-fazenda em Piraí. Ele distribuiu para todos uns panfletos do hotel. Disse que seu pai tinha um quiosque na Prainha, chamado Quiosque do “B”, e que quando quiséssemos podíamos ir lá tomar uma cerveja. Ele disse que não queria assinar o termo para comparecer no JECRIM, e o inspetor explicou a ele que era melhor fazer isso, pois caso contrário seria preso. Ele concordou, e o inspetor explicou que por causa disso ele não poderia tentar concurso público. Eles conversaram mais um pouco sobre os efeitos da maconha e, depois disso, o inspetor decidiu ir lá fora fumar, e orientou o rapaz a não tentar fugir. Ele ficou algum tempo na DP, e depois foi lá fora fumar junto com o inspetor e com o policial militar. Ao mesmo tempo, outro flagrante acontecia. Era também um artigo 16, em que dois jovens foram pegos com 13,7g e 25 gramas de maconha, respectivamente. Os dois estavam juntos e foram pegos na estação de trem da zona norte por policiais militares do serviço reservado. Eles viram os rapazes embarcarem na estação de trem e, quando estes desembarcaram na outra estação, foram abordados e revistados, e depois conduzidos para a delegacia. O primeiro deles era um paraibano com primeiro grau incompleto e sem ocupação. O outro era um jovem negro também com primeiro grau incompleto, sem ocupação e com duas anotações criminais no artigo 157 [roubo], mas que estava ainda aguardando providências. Quando chegaram, foram imediatamente levados para a cela e em nenhum momento foram chamados lá na frente para serem ouvidos. Quem fez esse registro foi outro inspetor, que ficou um bom tempo conversando com os policiais militares enquanto aguardava o laudo. O ponto importante deste relato é a diferença de tratamento dada ao rapaz de classe média em relação aos dois rapazes de classe mais baixa que foram detidos pelo mesmo artigo. O primeiro entrou pela porta da frente da DP e ficou à vontade, podendo circular dentro e fora da DP e conversar tanto com os PMs quanto com o inspetor. Os últimos entraram pela porta de trás, foram direto para a cela e em nenhum momento ouvidos, ao contrário, foram chamados apenas para assinar o papel dizendo-se para eles que falariam em juízo. O inspetor combinou isto com os policiais militares para que o registro fosse feito mais rapidamente. Os casos citados apontam que a estrutura da Delegacia Legal, ao menos nesta delegacia, não parece ter rompido com os velhos preconceitos e com o universo relacional que beneficiam uns e prejudicam outros. O que se pode observar é que, por um lado, ao aplicar a lei de forma desigual na sociedade, a polícia mantém que alguns criminosos ou vítimas não se beneficiem dos princípios constitucionais igualitários e, por outro lado, aplica os mesmos princípios igualitários a camadas média e alta da sociedade, restabelecendo a sua convicção no sistema político, jurídico e social brasileiro. 106 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Kant de Lima demonstra que as práticas policiais estão relacionadas ao paradoxo legal brasileiro, no qual a ordem igualitária é aplicada de maneira hierárquica. No Brasil uma ordem constitucional igualitária é aplicada de maneira hierárquica pelo sistema judicial. Diferentes tratamentos legais são dispensados às mesmas infrações, dependendo da situação social ou profissional dos suspeitos enquanto aguardam o julgamento, e até depois de condenados, os réus são submetidos a regimes carcerários diferentes, mesmo que tenham cometido crimes da mesma natureza (Kant de Lima, 1995:01). Diante desses fatos, e considerando o contexto geral da pesquisa, é possível constatar que determinadas práticas policiais anteriores ao Programa Delegacia Legal, das quais destaco o tratamento diferenciado dispensado às vítimas e aos autores de crimes, continuam sendo operadas da mesma forma. Apesar da reforma, não ocorreu uma transformação dessas práticas policiais. Fica claro ainda que não existe um padrão para o atendimento dos registros de ocorrência. Além disso, essas práticas desiguais de atendimento reforçam a idéia de que existem sujeitos criminosos e outros que, embora tenham cometido um crime, são de difícil enquadramento como criminosos conforme o sistema de classificação policial. Em sua tese de doutorado, Misse (1999) trata dessas situações, as quais ele chama de sujeição criminal e que está relacionada à identidade que é atribuída a alguém, como essa identidade é interpretada publicamente e o como o sujeito dessa sujeição percebe a sua própria identidade. A sujeição criminal distancia, separa e autonomiza os indivíduos. Desta forma, percebemos que no caso do rapaz de classe média a sujeição criminal não se concretiza, pois a polícia pode percebê-lo como desviante e ele aceita esse rótulo, mas nem a polícia o identifica como criminoso, nem o próprio jovem assim o faz. Já no que se refere aos outros dois rapazes, a identidade atribuída a ambos pela polícia é a de criminosos, não só pela sua posição social, como também pela identidade pública de um deles, que já tinha ficha na polícia. Assim, o tratamento dispensado a eles não se baseia somente na situação atual, mas tem uma referência no passado; além disso, ambos aceitam sem reclamar o tratamento oferecido pela polícia, reforçando sua sujeição. Inicialmente, o tratamento diferenciado pode parecer um desvio do que se espera da polícia. No entanto, esse tipo de interpretação da lei e, em conseqüência, essa forma de ação não são características unicamente brasileiras. De acordo com Monjardet (2003), toda organização comporta duas faces: um lado formal (estrutura, organogramas, recursos humanos e materiais, regras 107 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ etc.) e outro lado informal, que é o conjunto dos comportamentos e das normas observáveis, segundo as quais a organização realmente funciona. Para o autor, o lado informal não designa um desvio. Assim a noção de organização informal à primeira vista não designa um desvio, mas simplesmente o fato de que todo o processo de trabalho organizado necessita de interpretação e adaptação das regras, no caso, negociação e compromisso; e que ela nunca funciona, portanto, em conformidade perfeita com as normas que supostamente a dirigem, mesmo quando estas não são contraditórias (Monjardet, 2003:41). Gostaríamos de encerrar este ponto da discussão citando mais uma situação presenciada nessa delegacia, onde um homem tentou enganar um inspetor fazendo um falso registro de ocorrência. Ele chegou à delegacia dizendo que seu Fiat havia sido roubado. Como o carro era muito velho, o inspetor desconfiou e perguntou a ele qual era a história verdadeira. O rapaz contou que havia vendido o carro, mas o comprador não havia passado o veículo para o seu nome, e vinha cometendo infrações de trânsito que caíam no nome do antigo proprietário. Um amigo sugeriu a ele que fizesse o registro de roubo para não ter que arcar com as multas. Ele foi então até a DP para fazer o falso registro. O inspetor brigou com ele, e disse que iria prendê-lo, pois fazer registro falso de ocorrência é crime. Mas como o cara tinha família e o caso não era tão sério assim, ele decidiu colocar o rapaz de castigo. E de fato fez isso, colocou-o na salinha do síndico sozinho, sentado numa cadeira e olhando para parede e disse que ele ia ficar de castigo ali até o dia seguinte, e lá ele ficou até aproximadamente 1 hora da manhã, segundo nos informaram. O inspetor orientou que se alguém perguntasse a ele o que estava fazendo ali, era para ele dizer que estava de castigo. Ao tratar da polícia, Kant Lima, através de relatos e histórias contadas pelos próprios policiais, nos lembra que a polícia tem uma ética que orienta suas ações. [...] Há muito tempo atrás, esse delegado estava passando pela rua de uma pequena cidade do interior do estado, na qual estava lotado, quando encontrou casualmente um conhecido. Num tom entre polido e paternalista, tratando-o de “meu filho”, perguntou-lhe como estava passando. O conhecido respondeu que estaria passando bem se não fosse uma dolorosa infecção de um de seus dedos do pé, que o estava incomodando terrivelmente. O delegado disse que sentia muito, que toda doença é uma má notícia. O doente disse que o dedo estava doendo tanto que ele gostaria de se livrar dele; gostaria que o delegado desse cabo do dedo acertando-lhe um tiro. O delegado não hesitou: pegou o revólver e acertou o dedo do homem. Este ficou sangrando e apavorado. Ao reclamar do que o delegado tinha feito, este retrucou-lhe que só tinha satisfeito um pedido dele, que era, portanto, o único responsável pelo ocorrido. O delegado insistia que só tinha lhe prestado um favor. A moral dessa história de advertência era: se você não tiver a firme intenção de exprimir alguma coisa, não diga a um policial. A polícia pode sempre reagir de maneira inesperada (Kant de Lima 1995:137). 108 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Ainda segundo o mesmo autor, somente a polícia tem controle de suas ações. Ela não respeita a diferença e a transforma em anormalidade. Para conseguir relacionar-se com a polícia, você tem que entender a sua ética, ter certeza do que diz para ela. Considerações finais Ao analisarmos a forma com que os procedimentos de registros são realizados nas delegacias legais, percebemos que eles são orientados por uma lógica anterior à reforma. Essa lógica ou forma de agir da polícia possui uma ética própria que deve ser considerada ao se lidar com a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Kant de Lima (1999) nos lembra que alguns procedimentos policiais – sempre ameaçados por ilegalidades, mas tachados de desvios – na verdade aparecem com certa regularidade que aponta para a sua consistência. Assim a regulação da tortura de acordo com a gravidade da denúncia ou queixa, e conforme a posição social dos envolvidos; a permissão da participação dos advogados nos inquéritos também de acordo com a posição que estes especialistas ocupam nos quadros profissionais; o registro – ou não – das ocorrências levadas ao conhecimento da polícia; a qualificação e tipificação – ou não – das infrações e crimes registrados e a abertura de investigações preliminares, que levam, ou não, ao arquivamento ou ao prosseguimento do inquérito policial; tudo isso, de acordo com interesses manifestamente particularistas são, sem dúvida, algumas dessas práticas institucionalizadas (Kant de Lima, 1999:30). Desta forma, cabe dizer que algumas mudanças propostas pelo PDL, tais como a inovação tecnológica, a normatização dos procedimentos e a mudança na estrutura física da delegacia, não foram suficientes para que os policiais aderissem ao Programa Delegacia Legal. Nem mesmo essas mudanças em si parecem estar garantidas pois, segundo as obvervações realizadas ao longo deste trabalho, diversos aspectos do Programa funcionam de forma diferente da prevista originalmente. Alguns deles foram incorporados ao Programa, como a criação do GIC; outros, como o controle dos dados que entram e saem do sistema, nem tanto. O próprio controle que o PDL busca ter em relação às atividades policiais falha ao não conseguir racionalizar o uso das senhas e das informações pessoais. No entanto, cabe dizer que tudo o que é registrado de forma equivocada ou incompleta pode ser alvo da Corregedoria, mas enquanto este trabalho era realizado, isto não 109 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ foi presenciado pelos pesquisadores. Ao contrário, todas as correições foram comunicadas com antecedência ao delegado e à sua equipe, que na semana anterior se dedicava em deixar “tudo no esquema” para a visita do corregedor. Além disso, percebemos que a polícia atua se orientando por valores paradoxais presentes na sociedade brasileira. Se, por um lado, esses valores garantem igualdade jurídica, por outro, concretizam-se de forma desigual, baseando-se nas diferenças sociais, econômicas e culturais entre os indivíduos. Isto permite que entrar pela “porta da frente ou de trás” de uma delegacia não esteja necessariamente relacionado ao fato de se ter cometido ou não um delito ou crime, mas sim a quem cometeu essa ação. Por fim, ao que tudo indica, há uma prática policial que não se encaixa nesse novo modelo teórico e prático proposto pelo PDL, apesar de o Programa disponibilizar a capacitação e a atualização dos policiais para atuarem de acordo com ele. Kant de Lima (2003) comenta que não basta só formar os policiais que entraram para a polícia recentemente, pois estes poucos (em relação à totalidade de policiais no Brasil) fariam pequena diferença, mesmo a médio prazo. Segundo ele, o desafio é formar policiais já "formados", ou seja, desconstruir paradigmas de pensamento e ação para que os policiais possam atuar com a concepção de que todos os cidadãos, inclusive os policiais, são sujeitos de direitos e destinatários da proteção da polícia. Nesse sentido, faz-se necessário perceber que existem duas racionalidades coexistentes e antagônicas em um mesmo ambiente da Delegacia Legal. Neste caso, explicitar os conflitos e as resistências referentes ao Programa Delegacia Legal talvez seja uma boa maneira de iniciar uma mudança mais profunda e que tenha a adesão de parte dos policiais. Referências Bibliográficas BAYLEY, David H. Padrões de policiamento. São Paulo: EDUSP, 2003. BITTNER, Ergon. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: EDUSP, 2003. HOLLOWAY. Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. 1.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro. Seus dilemas e paradoxos. 2.ed. revista. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995. 110 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ___________. "Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público". Revista de Sociologia e Política, n.13, p.23-38, Curitiba, nov. 1999. ___________. "Direitos civis, estado de direito e 'cultura policial': a formação policial em questão". Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 11, n.41, p.241 -256, São Paulo, 2003. MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos. Tese de doutorado em sociologia, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia? São Paulo: EDUSP, 2003. PAES, Vivian Ferreira. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Análise de uma (re)forma do governo na Polícia Judiciária. Dissertação de mestrado em sociologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. PLANO ESTADUAL – Política pública para a segurança, justiça e cidadania. Rio de Janeiro, 2000. 111
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