Ecos da Polónia no Diário de Miguel Torga

Transcrição

Ecos da Polónia no Diário de Miguel Torga
Acta Universitatis Wratislaviensis No 2979
ESTUDIOS HISPÁNICOS XV Wrocław 2007
WŁODZIMIERZ J. SZYMANIAK
Universidade Jean Piaget, Cabo Verde
Ecos da Polónia no Diário de Miguel Torga
Palabras clave: diario — relaciones luso-polacas — Miguel Torga.
Conheci a escrita de Miguel Torga no início dos anos oitenta, enquanto
estudante da filologia românica, na Faculdade de Letras da Universidade de
Wrocław. Se a memória não me falha, primeiro li Novos Contos da Montanha,
que me proporcionaram imagens das profundas províncias do Norte de
Portugal, que viria conhecer algum tempo depois.
Os volumes do Diário, na sóbria edição do autor de Coimbra, chegavam à nossa biblioteca, por envio do ICALP (Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa), mas sempre com algum atraso… Na altura, nem sabia que continham também reflexões sobre a Polónia.
O Diário de Miguel é uma referência na literatura portuguesa porque
abrange o período entre 3 de Janeiro de 1932 até 10 de Dezembro de 1993.
E como observou Isabel Ponce de Leão1 o texto dele caracteriza-se não só
pela anotação e comentário de acontecimentos concretos, mas também pela
reformulação constante das atitudes manifestadas.
Torga, um observador perspicaz e atento faz a primeira menção à Polónia
no XIII volume do Diário:
Coimbra, 28 de Dezembro de 1981— Protesto contra a repressão na Polónia. Morro a assinar
telegramas de indignação. Sei o que valem, em termos de eficácia imediata. Mas não desisto.
A esperança tem sempre tempo…2
No mesmo dia não escreveu mais nada no Diário. Torga, antigo preso
político dos tempos de Estado Novo, mostrava assim preocupação face
à repressão na Polónia e protestava assinando telegramas de indignação.
Recorde-se que, no dia 13 de Dezembro do mesmo ano, o general Wojciech
Jaruzelski proclamou o Estado Marcial, criando o Conselho Militar de
1 I. Ponce de Leão, A Obrigação, A Devoção e A Maceração (O Diário de Miguel Torga),
Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 2005, p. 46.
2 M. Torga, Diário, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 1454.
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Salvação Nacional (Wojskowa Rada Ocalenia Narodowego), um organismo
estranho, sem enquadramento no contexto legal do país e que se assemelhava às juntas militares da América Latina. Os métodos de actuação deste
Conselho eram idênticos aos dos governos militares; traduziam-se, normalmente, no poder absoluto do caudilho (neste caso Jaruzelski), na supressão
das liberdades (algo particularmente grave no caso de um país comunista,
onde a margem de liberdade nunca era muito ampla), em milhares de pessoas internadas (quer dizer encarceradas sem sentença judiciária). Os polacos
ainda se recordam do discurso do 13 de Dezembro, cheio de tabus linguísticos, dado que Jaruzelski invocava, por um lado, a ameaça da intervenção
soviética, mas, por outro lado, não chamava as coisas pelo nome. O Estado
Marcial nunca atingiu o seu objectivo: aniquilar o sindicato Solidarność,
primeiro sindicato independente no bloco soviético.
Quase um ano depois Torga, no Diário XIV, retoma a sua reflexão sobre
Polónia:
Coimbra, 12 de Novembro de 1982— Morreu ontem Brejnev na Rússia, onde governava,
e hoje foi posto em liberdade Walesa na Polónia, onde protestava. Nos tempos que correm,
o destino de qualquer mortal pode ser decidido a milhares de quilómetros de distância. Tudo
no mundo de agora é planetário. Até a tirania do mesmo tirano.3
Desta feita a situação na Polónia, é comentada num contexto internacional, relacionando a libertação do líder de Solidarność com a morte de Leonid
Brejnev, líder da gerontocracia de Kremlin. Recorde-se que Wałęsa acabava
de sair da cadeia, onde permanecera quase um ano, sem nenhuma sentença
judicial, apenas por decisão da junta militar. Lembre-se ainda que os anos
oitenta, na Polónia, constituíram-se como uma época árdua, mas, ao mesmo
tempo, cheia de esperanças, carregada de gestos simbólicos. Para Miguel
Torga a política situa-se na terceira posição após a medicina (era médico de
profissão) e a literatura. O autor define-se como “cidadão empenhado, mas
descomprometido”4. Nascido em 1907, no fim do regime monárquico em
Portugal, observador atento, vê com um certo cepticismo os avatares da vida
política internacional e portuguesa dedicando, na escrita diarista, mas atenção
às reflexões filosóficas e artísticas. Política só interessa como pretexto para
um raciocínio de cariz moral ou humanista, tal e como acontece na menção
dedicada à situação na Polónia, retractada no Diário XV:
Coimbra, 9 de Maio de 1988— Continuam as greves na Polónia, com a prisão dos cabecilhas.
Os caminhos da liberdade são árduos e vêm mal assinalados nos roteiros das várias ortodoxias. Mas, quer elas queiram quer não, levam sempre às clareiras do triunfo. É só porfiar
e dar tempo ao tempo.5
3
4
5
Ibidem, pp. 1471–1472.
Ibidem, p. 1709.
Ibidem, p. 1625.
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Nesta breve nota o escritor de Coimbra faz questão de demonstrar, mais
uma vez, a sua preocupação pela repressão comunista na Polónia, deixando
transparecer, contudo, algum optimismo e confiança.
Quase um ano mais tarde, em Abril de 1989, o escritor regozija-se pelo
acordo entre o governo comunista e a oposição, até então ilegal:
Coimbra, 5 de Abril de 1989— Acordo na Polónia entre o governo e a oposição. Quem viver
mais algum tempo há-de ver coisas espantosas. Os tiranos de ontem a serem os democratas
de amanhã. E de boa consciência.6
Como sabemos as negociações conduziriam às primeiras eleições multipartidárias no bloco soviético, bem como a uma aceleração dos acontecimentos políticos. Torga não está enganado ao atribuir um valor especial aos acordos da Mesa Redonda polaca já que a queda do Muro de Berlim aconteceria
poucos meses depois.
A última nota sobre a Polónia, no Diário XVI ocorre já em plena transição política. Observador atento, Torga comenta a eleição de Wałęsa para
Presidente da República. Todavia, desta vez o escritor não partilha o entusiasmo dos comentadores de grandes cadeias de televisão, mas ironiza com
a grandiloquência dos Polacos e com a ostentação do catolicismo na vida
política.
Coimbra, 9 de Dezembro de 1990— Wałęsa foi eleito presidente da Polónia. O Papa fez o que
podia. Ir mais longe e nomeá-lo cardeal, seria escandaloso.7
Concluindo este breve comentário dos ecos da Polónia no Diário de
Miguel Torga, gostaria de relevar a firmeza das atitudes e convicções de
Torga que, durante anos, observava o mundo com algum distanciamento,
mas, ao mesmo tempo, com uma inquietude emocional e ética que lhe possibilitavam a formação de um julgamento pessoal, que não se deixa levar pelas
modas e pelos critérios de noticiabilidade das grandes cadeias da comunicação social.
Referencias bibliográficas
PONCE de LEÃO I.
2005 A Obrigação, A Devoção e A Maceração (O Diário de Miguel Torga), Lisboa, Imprensa
Nacional–Casa da Moeda.
TORGA M.
1999 Diário, Lisboa, Edições Dom Quixote.
6
7
Ibidem, p. 1657.
Ibidem, p. 1696.
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Włodzimierz J. Szymaniak
Key words: diary — relations between Portugal and Poland — Miguel Torga.
Polish motifs in the Diary of Miguel Torga
Abstract
The Diary is a hallmark in Portuguese literature because of its meaningful representations of political and intellectual life in Portugal of more than 60 years. The originality
of Torga’s work consists also in his particular ethic sensibility whose commentary about
the events always contain a philosophical reflection. This article is a review and a comment on the reflections of Miguel Torga about the events of the 80s and 90s in the 20th
century in Poland.
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