SOBERANIA NACIONAL E MEIO AMBIENTE GLOBAL: DESAFIOS

Transcrição

SOBERANIA NACIONAL E MEIO AMBIENTE GLOBAL: DESAFIOS
SOBERANIA NACIONAL E MEIO AMBIENTE GLOBAL:
DESAFIOS AO DIREITO DO SÉCULO XXI
State Sovereignty and Global Environment:
Challenges to the Law of the 21st century
Ana Carla de Albuquerque Pacheco1
Resumo: O presente trabalho tem como objeto de pesquisa os danos ambientais
transfronteiriços e expõe uma reflexão crítica acerca da necessidade de se aperfeiçoar a
acepção clássica do conceito de soberania estatal. Temos presenciado conseqüências da
degradação ambiental que excedem o conceito geopolítico de território nacional
afetando, direta ou indiretamente, todo o planeta. Podem os Estados exercer tão rígido
poder doméstico, fundamentados numa soberania territorial que delimita espaços
geopolíticos a despeito do caráter transfronteiriço dos danos ambientais? Como o
Direito Internacional pode regular a interdependência do meio ambiente global? Nessa
reflexão não se propõe a extinção da soberania, ao contrário, intenta-se a inserção da
conservação ambiental como característica indissociável ao seu exercício; reafirmandoa enquanto manifestação do poder estatal limitado pelos direitos humanos, em especial,
o direito ao meio ambiente equilibrado.
Palavras chave: Soberania. Meio ambiente. Danos ambientais transfronteiriços. Direito
internacional Ambiental.
Abstract: The present work has as object of research the transboundary environmental
damages and exposes a critical reflection about the necessity to improve the classical
sense of the concept of state sovereignty. We have witnessed the consequences of
environmental degradation that exceed the geopolitical concept of national territory
affecting, directly or indirectly, the whole planet. Can the States exercise so rigid
domestic power, based on a territorial sovereignty that delimits geopolitical areas
despite the character of transboundary environmental damage? How International Law
can regulate the interdependence of the global environment? In that reflection does not
propose the extinction of the sovereignty, on the contrary, seeks to reaffirm its concept
as a manifestation of States limited to human rights, in particular, the right to a balanced
environment.
Keywords: Sovereignty. Environment. Transboundary environmental damages.
International Environmental Law.
1 Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa “Ambiente e Consumo Sustentável – CNPq/UFU”. Estagiária do Ministério Público de Minas
Gerais. E-mail: [email protected].
1. Introdução
“De um lado, uma representação do mundo
fragmentado em unidades independentes,
claramente autonomizadas umas das outras;
do outro, a concepção de uma totalidade
física e ecológica insusceptível de ser
fracionada pelo pretenso hermetismo
espacial das fronteiras e avessa à quebra dos
laços temporais entre os fenômenos naturais
que aquela divisão espacial acarreta. O
'domínio soberano' é confrontado pela
biosfera, a estabilidade da 'nação' pela
estabilidade da 'natureza', a economia
nacional pela economia natural, e o 'mundo
dos Estados' pela comunidade global.”
(PUREZA, 1998).
A escolha da temática parte da percepção acerca da crescente interdependência
ecológica, política e econômica que permeia o mundo globalizado. A abordagem
específica dessa investigação volta-se ao estudo dos danos ambientais transfronteiriços
frente ao princípio clássico da soberania estatal e a responsabilidade dos Estados em
proteger o meio ambiente.
A pretensão é desenvolver o tema no sentido de demonstrar que alguns danos
ambientais excedem o conceito geopolítico de território: um problema ambiental, em
um local ou território nacional, pode gerar conseqüências em Estados vizinhos, ou até
mesmo em âmbito global.
Nesse contexto, critica-se a insuficiência da acepção clássica do termo soberania
que, se ao seu tempo tivera o seu valor, já não consegue dar as respostas que as relações
internacionais contemporâneas, muito mais complexas e imersas numa pluralidade de
interesses e necessidades comuns, exigem.
Surge, então, a necessidade de se repensar esse instituto principiológico clássico,
atentando para novos mecanismos jurídicos, tais como a gestão compartilhada e a
responsabilidade comum dos Estados na proteção do meio ambiente.
Indubitavelmente, a preservação ambiental tem ocupado um papel cada vez mais
relevante no cenário internacional contemporâneo. A negociação e implementação de
tratados, acordos, convenções e a realização de reuniões internacionais dão contornos a
um sistema internacional imerso em conflitos e contradições. Busca-se, cada vez mais,
soluções políticas internacionais capazes de gerir cooperativamente e sustentavelmente
o meio ambiente em um mundo globalizado.
Tal constatação instigou o aprofundamento do assunto no sentido de investigar
as dificuldades quanto à consolidação, escolha e aplicação de meios de soluções de
conflitos
internacionais
ambientais.
As
análises,
observações
e
conclusões
(essencialmente provisórias) apontadas são, sobretudo, um convite para pensar acerca
da necessidade de desenvolvermos meios jurídicos eficazes para garantir a proteção
internacional do meio ambiente.
2. O Estado soberano perante o Direito Internacional
A concepção clássica de soberania, originariamente compreendida como o poder
que não reconhece outro acima de si (superiorem non recognoscens), remonta ao século
XIII, quando tiveram início as lutas entre os senhores feudais, o poder estatal francês,
eclesiástico e o império romano. Em sentido amplo, Matteuci (2000, p. 1179) conceitua
a soberania como “o poder de mando de última instância, numa sociedade política”.
O termo atinge seu auge na Idade Média, durante a formação do Estado
Nacional, e a partir daí tem sido fruto de algumas mudanças protagonizadas pelo devir
histórico. A esse respeito, sintetiza Finkelstein (2003, p. 73):
Num primeiro estágio, o detentor da soberania era o rei e, entre outras
características, esta era definida pela perpetuidade e por não conhecer
limites de qualquer natureza; a soberania tinha, antes de tudo, o
caráter de ser elemento essencial do Estado. A primeira evolução do
princípio da soberania já se encarregou de lhe impor limites. O poder
não mais emanava do rei, mas do povo, e os limites eram aqueles
inseridos na Constituição do Estado que o monarca representava.
Outras características da definição clássica, com o passar do tempo e
com a maior interação das nações soberanas e seus cidadãos, foram
recebendo nova interpretação.
Contudo, o conceito de Estado Soberano pode ser analisado sob dois prismas: a
Soberania interna, compreendida como o poder supremo do Estado de impor normas
aos particulares que reconhecem a autoridade estatal como a fonte legítima de direito e a
Soberania externa, objeto desse estudo, a qual se manifesta perante a comunidade
internacional. Nesse prisma, a soberania se ergue com o intuito de manter a igualdade
formal dos países, reconhecidos como soberanos e independentes pelos demais.
O artigo 2º, § 7 da Carta na ONU confirma este princípio declarando que
nenhum Estado é obrigado a se submeter a qualquer intervenção em assuntos
domésticos.2
Ressalte-se que o Estado, desde o seu surgimento como entidade no cenário
internacional, sempre procurou valorizar a idéia de independência como uma das
condições de sua própria existência. E uma das manifestações mais evidentes desta
qualidade de pessoa jurídica independente é a soberania (ALEMAR, 2008, p.1).
Os tratados de “Paz de Westfália” (1648-1659), por exemplo, foram um dos
primeiros textos normativos internacionais que elevaram o princípio da soberania
nacional à estrutura da ordem mundial. Mais que isso, estabeleceram, dentre outras, as
regras da não intervenção em assuntos internos de outros Estados e o respeito aos
limites internacionais.
Posteriormente, em 1791, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
asseverou que “o princípio de toda a soberania reside essencialmente em a Nação.
Sendo que nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que
daquela não emane expressamente3.”
Nesse sentido, o desenvolvimento dessa reflexão científica norteia-se pela prévia
acepção de que a soberania, no âmbito do Direito Internacional, continua a ser
predominantemente identificada e exercida como poder supremo que qualifica
determinado Estado a atuar independentemente e de forma isolada à luz do seu interesse
específico e próprio, fato que tem comprometido a proteção internacional do meio
ambiente.
No mesmo sentido entende Machado (2009, p. 124),
2 Texto original. “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em
assuntos que dependam da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeteram tais
assuntos a um solução, nos termos da presente Carta (...)”
3 Article 3: Le príncipe de toute souveranité reside essentiellement dans la Nation. Nul corps, nul
individu NE peut exercer d´autorité qui n´em emane expressément. (DIREITO INTERNACIONAL,
Legislação. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Artigo
inserido em 1791. Disponível em:<www.reocities.com/marceloeva/Declaracao_Direitos_do_Homem.doc
>Acesso em: 15 de julho de 2010.
O modelo tradicional de Estados soberanos, tendo em vista sua
limitação instrumental, ainda é a forma vigente de organização do
direito internacional. A solução encontrada, portanto, tem sido a
cooperação entre os Estados, e a tentativa de conscientização de todos
os atores envolvidos acarretando a responsabilidade perante a
humanidade em proteger o meio ambiente.
Importante observar que o princípio da exclusividade jurisdicional do Estado em
seu território confere a este o poder de determinar comportamentos e impor sanções sem
a interferência de qualquer outro ente da comunidade internacional, e prevê, igualmente,
que o seu território não venha a sofrer danos advindos de outros Estados. No entanto,
devido ao caráter transfronteiriço de alguns danos ambientais, determinada conduta
estatal pode colocar em risco a proteção do meio ambiente de outro Estado, causando
uma interferência externa não autorizada que choca frontalmente com um dos mais
cultuados elementos estruturantes do Estado: a soberania.
Visualiza-se, dessa forma, que os danos ambientais podem transcender o espaço,
o domínio e a competência dos Estados soberanos. Nesse impasse, as normas
internacionais tendem a solucionar a questão impondo aos países que assumam a
responsabilidade de garantir que as atividades dentro de sua jurisdição não venham a
lesar o meio ambiente de outro país. Essa obrigação internacional acaba por impor
limitações à concepção clássica de soberania.
A Declaração de Estocolmo, por exemplo, dispõe em seus princípios 21 e 24
que:
Princípio 21 - Em conformidade com a Carta das Nações
Unidas e os princípios do Direito Internacional, os Estados terão
o direito soberano de explorar os seus próprios recursos de
acordo com a política de ambiente, e a responsabilidade de
assegurar que as atividades exercidas nos limites da sua
jurisdição ou sob seu controle, não prejudiquem o ambiente dos
outros Estados ou as regiões situadas fora dos limites de
qualquer jurisdição nacional.
Princípio 24 - Os assuntos internacionais relativos à proteção e
à melhoria do ambiente deveriam ser tratados por todos os
países, grandes ou pequenos, com espírito de cooperação e em
pé de igualdade. A cooperação, mediante providências
multilaterais ou bilaterais ou outros meios apropriados, é
essencial para eficazmente limitar, evitar, reduzir e eliminar os
efeitos prejudiciais ao ambiente resultantes de atividades
exercidas em todos os domínios, tomando-se todavia na devida
consideração a soberania e os interesses de todos os Estados.
Vê-se, ainda, que a idéia dos interesses distintos ou mesmo opostos que durante
algum tempo sustentou a acepção clássica do termo soberania, cede espaço para
interesses que são comuns à toda comunidade internacional.
O ideal de demarcação do poder estatal face à comunidade de Estados que se
formou em meio à hegemonia de potências bélicas e à crise do poder interno rivalizado
com o poder exercido pela Igreja, trouxe o anseio ideológico de auto-afirmação do
povo, representado pelo Estado, a impor-se como poder máximo, independente de
qualquer rédea ou subjugação, a impor-se como poder absoluto. Entretanto, denota-se
que tal pensamento reveste-se de valores que fogem aos anseios contemporâneos.
Se é certo que ao seu tempo a idéia do Estado Soberano e absoluto tivera o seu
valor, não se pode negar que tal concepção já não consegue dar as respostas que as
relações internacionais contemporâneas exigem, principalmente a partir do século XX
quando começaram a ser declarados e inseridos nas constituições da maioria dos países
ocidentais os direitos da “terceira geração”, cujo titular não é o indivíduo ou um
determinado estado, mas toda a comunidade internacional, incluindo-se a proteção as
futuras gerações.
Em posição de destaque no rol desses direitos está aquele a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, tendo sido acolhido por diversos ordenamentos jurídicos
inclusive pelo nossa Carta Magna:
CF, Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Dantas (2009, p. 93-94) observa, ainda, que algumas cartas, a exemplo da
italiana e da chilena, utilizam expressamente o termo “limitação da soberania” para
dispor a obrigação jurídica estatal de cooperar com os demais entes para a persecução
de fins comuns.
De fato, no contexto hodierno já existe alguma aceitabilidade para as
intervenções por razões humanitárias efetivamente capazes de justificar o abalo da
soberania. Basta pensar, para dimensionar no plano teórico a mudança ocorrida, o
quanto teria sido impensável, antes da Carta da ONU, o recurso de um cidadão contra o
próprio Estado perante uma jurisdição internacional (FERRAJOLI, 2002, p. 41).
Dentro desse novo cenário das relações internacionais, o conceito de soberania
precisa ser repensado e adaptado às novas demandas, preterindo o reconhecimento de
auto-suficiência do Estado e primando pela cooperação internacional dos Estados com
vistas a atender interesses comuns, a exemplo da conservação do meio ambiente.
3. Os danos ambientais transfronteiriços
“A quem pertence o ar que respiro?”
(Mauro Cappelletti)
Conforme se mencionou, temos presenciado ações do homem contra a natureza
cujas conseqüências excedem o conceito geopolítico de território nacional, ultrapassam
os contornos da soberania, afetando, direta ou indiretamente, todo o planeta. Para
exemplificar, podemos mencionar a diminuição da camada de ozônio, o aquecimento
global, a poluição e a devastação das florestas. Segundo José Rubens Morato Leite
(2002, p. 71),
O dano transfronteiriço consiste naquele que atinge mais de um
Estado, posto que pode se espalhar de maneira incontrolável pelo
homem, como através do ar ou das águas. Assim, se um determinado
Estado é negligente ou omisso em relação aos cuidados a serem
tomados para evitar a expansão do dano, pode acarretar que outros
sejam atingidos, contaminados.
Sobre o tema, importante mencionar o case Fundição Trail (Trail Smelter) em
que a determinada atividade de fundição de cobre e zinco, praticada no Canadá, emitia
fumaça tóxica de dióxido de enxofre, poluição que atingiu os Estados Unidos e lá se
manifestou na forma de chuva ácida, causando grandes prejuízos às pessoas, animais e
plantações.
Para resolver a questão um tribunal arbitral ad hoc foi então instituído e no dia
11 de março de 1941 foi proferida sentença de mérito. Segundo relata o Soares (2002, p.
52):
A decisão trouxe em seu bojo grande princípio ao cenário
internacional, dando início a uma mudança no pensamento
predominante de que os Estados são soberanos ao permitir a utilização
dos seus respectivos territórios da maneira que quisessem. O princípio
que veio à tona resultante do julgamento desse caso foi no sentido de
nenhum Estado soberano tem o direito supremo de permitir o uso de
seu território na medida em que causem dano noutro. (...) Naquele
momento, foi fundamental e emissão da sentença histórica que dizia:
“Nenhum Estado tem o direito de usar ou de permitir o uso de seu
território de tal modo, que cause dano em razão do lançamento de
emanações no, ou até o território de outro.” (grifo meu)
Tukin (1986, p. 466) observa, corretamente, que “a atenção dedicada hoje aos
problemas do meio ambiente não é causal”. Conforme afirma o autor:
A revolução técnico-científica, o desenvolvimento impetuoso das
forças de produção da sociedade condicionaram a intensificação
brusca [...] da atividade econômica do homem sobre a natureza,
alargando consideravelmente a escala de sua ingerência nos
processos naturais. A utilização intensiva dos recursos naturais e a
poluição da biosfera do planeta puseram a humanidade numa série
crise ecológica. (grifo meu)
Dessa forma, devido ao caráter transfroteiriço dos danos ambientais, a solução
para os efeitos globais advindos da degradação ambiental têm sido buscada com apoio
no Direito Internacional Público, com a proposição de tratados, acordos, convenções,
realização de reuniões internacionais – como a recente Conferência das Nações Unidas
sobre as Mudanças Climáticas (COP-15) – e tentativas de conscientização de todos os
atores envolvidos.
Nesse cenário, destacam-se a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano de 1972, devido à adoção da Declaração de Estocolmo, também
conhecida como a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente de Estocolmo
e a Conferência sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro
e apelidada de ECO-92.
No entanto, por vezes, os acordos internacionais que visam à preservação
ambiental (interesse global) não são ratificados por contrariar interesses específicos de
determinados Estados soberanos, especialmente econômicos – os quais têm
representado um aspecto político importante dessas reuniões, acordos e Convenções.
Assim, em respeito às suas soberanias e à regra internacional do pacta sunt servanda -
segundo a qual um tratado internacional somente vincula as partes contraentes, tais
acordos perdem sua validade e eficácia no âmbito desses territórios.
René-Jean Dupuy (1993, p. 5-6) esclarece que:
Os Estados, sujeitos do Direito Internacional, promulgam em comum
em comum, por meio de acordo, a regulamentação que exprime o
interesse de todos, cabendo a cada um deles avaliar a dimensão do
dever que lhe incumbe e as condições de execução. O Direito interno
é um direito de subordinação que condiciona sujeitos susceptíveis de
serem condicionados, se necessário pela força, à observância da lei,
graças a um aparelho institucional adequado; o Direito
Internacional, pelo contrário, constitui um direito de coordenação
que se limita a favorecer a cooperação entre os Estados. Mas
estes, não estando dependentes de nenhuma autoridade de
sobreposição, unem-se apenas numa base voluntária e são
soberanos na avaliação de seu próprio direito. (grifo meu)
Face o exposto, no que tange aos danos ambientais transfronteiriços, um dos
maiores desafios que se erguem é a contenção da poluição atmosférica. Em que pese sua
danosidade ao ambiente, muitos países ainda relutam em assinar acordos de redução de
emissão de gases poluentes que atingem a camada de ozônio.
Numa análise factual das dificuldades mencionadas, cabe mencionarmos a
recusa dos Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Kyoto, tratado internacional cujo
objetivo principal traduz-se em reduzir as emissões dos gases causadores de efeito
estufa responsáveis pelo aquecimento do planeta, alegando que o pacto era caro demais
e que os cortes prejudicariam a economia do país, altamente dependente de
combustíveis fósseis.
Recentemente, em 2009, na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças
Climáticas de 2009 (COP-15), ocorrida em Copenhague, visualizamos, novamente, o
entrave das negociações e a dificuldade de se estabelecer um consenso internacional
com vistas à preservação do meio ambiente.
Tais fatos ilustram as dificuldades quanto à consolidação, escolha e aplicação de
meios de soluções de conflitos internacionais ambientais. Essa tergiversação deve-se em
grande parte a interesses econômicos específicos que tem prevalecido sobre os
interesses internacionais comuns. Verifica-se, pois, que os Estados têm assumido
posições pouco conflitantes com suas economias, ainda que tais decisões comprometam
a preservação dos recursos naturais.
Nesse contexto, algumas perguntas merecem reflexão: Podem os Estados
exercer tão rígido poder doméstico, fundamentados numa soberania territorial que
delimita espaços geopolíticos a despeito do caráter transfronteiriço dos danos
ambientais? Como o Direito Internacional pode regular a interdependência do meio
ambiente global?
Para Morato Leite (1998, p. 67) “a proclamação de um direito intergeracional
fundamental, extrapola o direito nacional de cada Estado soberano e atinge um patamar
intercomunitário, caracterizando-se como um direito que assiste a toda a humanidade”.
Parece-nos que as questões relativas à preservação do meio ambiente, como
patrimônio comum da humanidade, não podem ser resolvidas fora do Direito
Internacional, razão pela qual defendemos que a soberania dos Estados deve ser
condicionada às normas internacionais de responsabilidade, cooperação e preservação
ambientais para melhor gestão e proteção ambiental, quando os Estados,
individualmente, não podem proteger o meio ambiente.
Nesse pensar não se pretende propor a extinção da soberania estatal, mas a
inserção da conservação ao meio ambiente como característica indissociável ao seu
exercício; também não se intenta diminuir a soberania, ao contrário, visa-se reafirmar
seu conceito enquanto manifestação do poder estatal limitado pelo Direito.
4. Conclusão
A preservação internacional do meio ambiente desponta como um dos maiores
desafios do século XXI. A garantia e eficácia internacional do direito ao meio ambiente
equilibrado encontram inúmeros obstáculos e requerem mudanças em perspectivas
sócio-jurídicas.
Na atual realidade pós-moderna, as questões ambientais não se restringem ao
território dos Estados. A percepção do caráter transfronteiriço dos danos ambientais aquecimento global, degelo polar, destruição de florestas, poluição, entre outros – torna
cada vez mais insustentável o discurso dogmático da soberania absoluta dos Estados no
âmbito internacional.
Essa tensão entre a efetivação da proteção ambiental em âmbito global e a
barreira da soberania estatal parece emergir da tentativa de se aplicar fundamentos
principiológicos clássicos às relações sociais contemporâneas que não preservam as
mesmas características de outrora.
O Direito Internacional Ambiental inova ao exigir uma visão sistêmica no estudo
do seu objeto, por meio da transdisciplinariedade, tendo em vista que o estudo do meio
ambiente rompe fronteiras e acaba por ser influenciado por uma série de fatores não
jurídicos, tais como políticos, sociais, geográficos e, especialmente, econômicos.
Nesse sentido, torna-se importante superar o paradigma da soberania existente
no Estado moderno em que prevalecia a centralização de competências e a
individualização do poder, reafirmando-a enquanto manifestação do poder estatal
limitado pelos direitos humanos, em especial, o direito ao meio ambiente equilibrado.
No cenário apresentado, não se pretendeu negar ou menosprezar o princípio da
soberania estatal que continua norteando os Estados em meio à comunidade
internacional. Propôs-se, contudo, uma reavaliação de seu significado diante das
mudanças históricas que sucederam ao seu surgimento a fim de assegurar direitos
hodiernamente prioritários como a dignidade da vida humana e a proteção ambiental
internacional.
Outro grande desafio a se enfrentar parece ser garantir a proteção do meio
ambiente sem inviabilizar o desenvolvimento do ponto de vista econômico, buscando
soluções que garantam o equilíbrio entre a satisfação das necessidades humanas e a
conservação ambiental no plano internacional.
Bibliografia
ALEMAR, Aguinaldo. Soberania e direito fluvial internacional. Revista do Curso de
Direito da Universidade Federal de Uberlândia. v. 34: 87-106, 2006.
ANUÁRIO: direito e globalização, 1: a soberania / dossiê coordenado por Celso de
Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça
Civil. In Revista de Processo, 5:7 e seguintes.
DANTAS, Juliana Oliveira Jota. A soberania nacional e a proteção ambiental
internacional. São Paulo: Editora Verbatim, 2009.
DUPUY, René-Jean. O Direito Internacional. Coimbra: Almedina, 1993.
FINKELSTEIN, Cláudio. O processo de formação de mercados de bloco. São Paulo:
IOB – Thomson, 2003.
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado
Nacional. São Paulo: Martins, 2002.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O
minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
LEITE, José Rubens Morato. Transdisciplinariedade e a Proteção Jurídicoambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. São Paulo: Ed.
Manole, 2004.
___________; AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco.
Rio de Janeiro: Forense, 2002.
___________; Fontana, Lara Raquel. Cidadania Ambiental Intercomunitária: A
experiência Normativa Brasileira. 2002. Mercosul, Alca E Integração Euro-latinoamericana – Volume II . Curitiba: Editora Juruá, 2001.
MACHADO, Flavio Paulo Meirelles. Soberania e meio ambiente: a adequação do
direito internacional às novas necessidades de gestão ambiental e os mecanismos
da ONU para resolução de conflitos. Disponível em: <http://www.publicacoesacadem
icas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/219> Acesso em: 27 de setembro de
2010.
PUREZA, José Manuel. O patrimônio comum da humanidade - Rumo a um direito
internacional da solidariedade? Cidade do Porto (Portugal): Afrontamento, 1998.
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente:
emergência, obrigações e responsabilidades. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
SALLES, Carlos Alberto de. Injunctions e Contempt of Court em Defesa do Meio
Ambiente. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Tutela coletiva: 20 anos da lei de
Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, 15 anos do Código de
Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004.

Documentos relacionados

O Direito ao Meio Ambiente como Direito Humano Fundamental

O Direito ao Meio Ambiente como Direito Humano Fundamental para a realização dos seus objetivos de Estado, e dessa forma, do bem comum dos seus e de sua harmonização com a comunidade internacional20.

Leia mais

1. Introdução Os Tratados de Paz de Westfália documentaram a

1. Introdução Os Tratados de Paz de Westfália documentaram a Resumo: A presente tese aborda o princípio da soberania dos Estados frente à proteção do meio ambiente. Após uma breve abordagem conceitual do princípio da soberania como poder relativo e histórico...

Leia mais