Feridun Zaimoglu Liebesbrand Kiepenheuer und Witsch Verlag

Transcrição

Feridun Zaimoglu Liebesbrand Kiepenheuer und Witsch Verlag
Excerto traduzido do livro
Feridun Zaimoglu
Liebesbrand
Kiepenheuer und Witsch Verlag
Köln 2008
ISBN 978-3-462-03969-6
pp. 5-20
Feridun Zaimoglu
O amor e o fogo
Tradução de Marcelo Backes
© 2008 Litrix.de
Escureceu, clareou, mas então eu morri. Um golpe – mais do que isso não foi
necessário para me matar. Eu fui arrancado do sono, arremessado do banco, vi, antes de bater
no corredor central, como o monitor de bordo explodiu, e o homem do outro lado da janela se
extinguiu na chuva de faíscas, sim, também ele pagou com a vida, e eu vi o espeto de metal,
ao encontro do qual voei, apenas por um pequeno e horroroso instante, depois a escuridão me
envolveu, fiquei deitado entre os bancos, ouvi um grito poucos segundos antes de minha
morte, cerrei os olhos. E me lembrei: quando a pessoa se maquia para o sonho sombrio, o
brilho empalidece.
E eu me lembrei: quando se morre – pouco antes de o fio se romper – os nervos
conduzem milhões de impulsos adiante, e talvez essa explosão de impulsos seja o purgatório,
o pequeno inferno antes da entrada no grande paraíso. Eu não estava preparado para isso,
tinha medo.
Uma brisa fria perpassou meu rosto, e eu me virei de lado para poder morrer
melhor – quando foi que abri os olhos? Sobre o braço estilhaçado de uma poltrona, pendia um
rapaz, a queimação da barba raspada ou o medo haviam enrubescido suas faces, ele moía com
seus dentes, não, ele falava comigo, agora que nossas cabeças se tocavam, eu tinha de
entendê-lo, ele me sacudiu com a mão livre tentando me despertar, e de repente o barulho
chegou a meu mundo, o barulho dos homens e mulheres no ônibus noturno, eu vi os bancos
traseiros queimando, o fogo fazia o vidro, o metal e a madeira estalarem. Devo ter conseguido
me levantar, o rapaz perdera a consciência, eu queria puxá-lo para fora do banco, mas um
golpe me jogou ao chão, uma sombra passou por cima de mim, e eu senti uma dor aguda no
ombro. Como posso morrer aqui?, pensei eu, não pode ser, e insisti em me levantar de novo,
perdi o equilíbrio ao me erguer, e cerrei os olhos de medo, me obriguei a abri-los, e então
estilhaços de vidro chicotearam no meu rosto, a sombra não parava de bater no alto com um
pequeno martelo. Isso não podia ser, como é que o teto era de vidro, como é que eu sempre
era puxado para o lado, e quando olhei pelo meu corpo abaixo, descobri uma mão sangrenta, o
rapaz se agarrava em mim, eu o envolvi pelos quadris, ele se ergueu, girando o corpo no
banco. Não olhe para cima!, eu berrei, e sequei o suor que encobria meus olhos, nós
estávamos bem próximos dos golpes ribombantes do martelo, e a luz do fogo na parte traseira
do ônibus transformou a sombra em um velho, que se espremia pelo buraco aberto no teto de
vidro, as pontas de vidro cortavam sua calça, a sandália caiu de seu pé direito. Agora é a tua
vez!, eu berrei, e me deixei cair de quatro, o rapaz subiu nas minhas costas, e alguns segundos
mais tarde ele olhava para mim lá de cima, agora és tu!, ele gritou, e me estendeu sua mão, eu
a agarrei, puxei meu corpo para cima, me cortei, chorei desabridamente.
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No teto do ônibus em chamas, demos passos cambaleantes, mas eis que então
homens gritaram para nós que tínhamos de pular, que eles nos pegariam. De onde eles
vinham, aqueles homens desconhecidos, eu fui arrastado para longe da carcaça metálica,
alguém me enfiou uma camisa embolada debaixo da nuca, e então eu estava deitado a céu
aberto naquela terra de ninguém, aquele era um lugar para o qual os cachorros cegos se
retiravam para morrer, foi o que disseram os nativos, eles se agrupavam na faixa nua de terra
ao lado da guarda lateral, à distância, em meio à escuridão, árvores sem folhas se destacavam.
Eu estava com frio, sentia dores, tinha medo da escuridão, chorava baixinho.
Su! Su! Alguém gritou nas proximidades, e eu mais uma vez abri os olhos, e vi um
rosto, o rosto de uma mulher, o rosto de uma estrangeira, ela pronunciou a palavra turca para
água com um forte sotaque alemão. O que a senhora quer de mim?, eu disse baixinho, e
depois um pouco mais alto. Não lhe fiz nada, me deixe em paz, por favor. Eu achei que ela
estivesse querendo me saquear, e que por isso se encontrava no local do acidente, para roubar
os relógios e carteiras dos feridos, eu não podia me defender contra ela, ela tinha de
compreender isso. Mas ela não mexeu em meus bolsos, e colocou com cuidado o bico de uma
garrafa de plástico junto ao meu lábio inferior, primeiro a água escorreu pelas comissuras de
minha boca até o pescoço e abaixo, depois eu a bebi gole a gole, e enquanto eu bebia, fixei
meu olhar no anel prateado que ela usava no longo indicador direito. Na cabeça do anel havia
um medalhão de esmalte azul-claro, e os ombros do anel eram enfeitados por pedrinhas de
vidro coloridas em molduras denteadas.
Eu devia ter caído num sono instantâneo e breve, e acordei com as sacudidelas que
ela me dava, pernas em botas militares passavam por mim, depois pernas em sapatos de
passeio, luzes azuis se acendiam e se apagavam, eu vi aventais brancos tremulando, e um
médico me perguntou se eu podia ouvi-lo e entendê-lo, eu quis assentir, mas não consegui.
Sim, disse eu, onde está a mulher que me deu água pra beber? Aqui, disse ela, o médico não
pode entendê-lo, ele não fala alemão. No bolso do meu casaco há um lenço, disse eu, pode
secar o suor de meu rosto?
Isso não é suor, é sangue, disse ela, e bateu em sua boca, o anel estalou contra seus
dentes, ela deu um gritinho agudo de dor, seu batom ficou marcado no dente incisivo. Ela
embebeu o lenço em água, e com toques carinhosos limpou o sangue da minha testa, das
minhas sobrancelhas, das minhas faces, e enquanto ela cuidava de mim, eu a media de cima a
baixo. Ela usava um traje conservador, o prendedor de cabelo havia se soltado e pendia de
uma das mechas loiras, ela não se preocupava com isso, nem com os curiosos parados em
meio à fumaça do incêndio, eu levantei o queixo para poder ver melhor, o trânsito na
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autopista de três faixas havia parado, também na pista contrária os motoristas paravam,
desciam de seus carros e corriam para cá com extintores de incêndio nas mãos.
A senhora está a caminho de uma festa, disse eu, vestida assim, solene. E o senhor
delira em febre, disse ela indignada, no clarão da luz azul que acendia e apagava eu pude
reconhecer que ela lutava contra a raiva que subia dentro dela, ela olhou na direção de um
grupo de pessoas dominadas por uma impaciência cada vez maior, um grito agudo me fez
estremecer, uma filha chorava por sua mãe, cujo corpo sem vida era levado embora numa
maca, e num instante a moça estava rodeada de mulheres, elas acariciavam seus cabelos e
falavam tentando consolá-la, uma curiosa estranhamente lhe deu o conselho de se beliscar no
traseiro, pois assim ela voltaria à sobriedade num instante.
Sua camisa está em frangalhos, disse a alemã, o senhor tem alguns ferimentos
pequenos, mas não se preocupe, sobreviveu ao acidente.
Como é que a senhora está aqui?, disse eu, está de passagem, viajando?
Pode-se dizer que é isso, disse ela, e voltou a se erguer, eu agora tenho de seguir
adiante, e sem dizer mais palavra ela me deixou, eu me apoiei, erguendo-me, peguei o
prendedor de cabelo que acabara caindo, e a segui com os olhos, ela encaminhou os primeiros
socorros, bebi de sua garrafa de água, e o que mais ela poderia fazer no local do acidente, os
mortos estavam mortos e eram recolhidos, dos feridos eram os médicos que cuidavam, eu a
segui com os olhos até ela parar junto a uma van estacionada no acostamento, ela entrou sem
titubear, e antes de desaparecer de meu campo de visão, eu ainda pude ler as primeiras letras
da placa – NI, eu disse as letras em voz alta, e as repeti, talvez estivesse esperando que elas
parecessem uma fórmula mágica e o reboar em meus ouvidos cessasse.
Agora eu estava deitado no chão, me levantei devagar, os repórteres estavam a
postos para o primeiro relatório, e faziam uma foto após a outra, minhas pernas cederam, mas
antes que eu caísse no chão, um gendarme me segurou, colocou meu braço esquerdo em volta
de seus ombros, o capacete quase lhe caiu da cabeça.
Calma, irmão, disse ele, eu vou te levar ao médico, e ele vai te curar, eu fiquei
mudo, ele achou que tinha de me manter acordado, e me contou, portanto, de sua irmã inútil,
que apesar das advertências de seus três irmãos, de seus pais e até mesmo de toda a parentela,
havia se mudado para a cidade grande, quantas coisas ele não dissera para chamá-la à
consciência, os lobos perambulam à luz do dia por lá, ele teria dito, e mocinhas da roça
acabavam virando, quer quisessem, quer não, nada mais do que ovelhinhas ao dispor daqueles
lobos, ele não duvidava da estabilidade moral de sua irmã, mas... eu manquitolei ao lado do
gendarme e fiquei pasmo com o que poderia fazê-lo esquecer de tal maneira as regras da
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decência, ele falava comigo, um homem estranho, de sua irmã, da qual ele parecia ter
desistido. Devo estar bem mal, eu pensei, provavelmente ele acredite que eu morrerei logo,
provavelmente ele não ache nem um pouco ruim que eu leve esse pequeno segredo comigo ao
túmulo. Tropecei numa peça da carcaça metálica, que soltava rolinhos de fumaça, o gendarme
me levantou usando o próprio corpo como alavanca, deixando-me sentado sobre o degrau de
acesso de uma ambulância, uma médica saiu de dentro dela, me pediu para esticar ambos os
braços para o lado, depois cortaram minha camisa em farrapos com uma tesoura, livrando
meu corpo do tecido. Enquanto ela se ocupava de meus ferimentos, eu fixava os olhos no
prendedor em minha mão, uma plaqueta de tartaruga havia caído, na crosta de cola um farelo
de terra ficara preso. Eu esfreguei o prendedor de casco de tartaruga, limpando-o, fixei os
olhos em minhas mãos que obedeciam à outra vontade, e quando fiz minha vista passear pelo
local do acidente, vi pessoas se movendo na névoa da manhã, homens e mulheres com uma
esperança que já era pouca e ficava cada vez menor, elas estavam deitadas no chão gelado, e o
sangue gotejava ou brotava de dentro delas, estavam paradas, imóveis, ao lado dos médicos e
gendarmes, e se mostravam pouco receptivas a qualquer pergunta e qualquer tentativa de
consolo.
Um oficial latiu uma ordem, e pouco mais tarde cinco corpos foram cobertos com
casacos e lonas de plástico. Uma vergonha, gritou um velho, que pressionava um pedaço de
tecido sobre seu ferimento aberto na têmpora, onde está o maldito motorista, vou acabar com
ele, botar fogo nos cabelos dele... Alguns sobreviventes se juntaram ao velho e gritaram até
ficar roucos, tragam o porco pra cá, eles gritavam, nós estamos no clima certo pra sangrar o
chupa-sangue. Então o rapaz que eu havia salvo, o rapaz que me havia salvo, apontou para um
vulto na escuridão, e os homens correram, mas antes de conseguirem cercar o motorista, os
gendarmes se puseram no caminho deles. A raiva dos sobreviventes era imensa, eles passaram
por cima da barreira humana, gritavam palavras de ordem obscenas, se jogavam sobre o
motorista, que não conseguia fugir para a escuridão. A uma nova ordem, os gendarmes deram
tiros de alerta, e eu senti como se tivessem enfiado aguilhões em meus ouvidos, encolhi a
cabeça e simplesmente caí do degrau de acesso, não entendi como dois homens puderam sair
correndo da carcaça do ônibus. Eram saqueadores, eles acharam que os tiros haviam sido
destinados a eles, sua fuga foi evitada, um dos homens recebeu uma coronhada nos quadris,
do outro o oficial se ocupou pessoalmente, bateu com a quina de seu bloco de espiral no rosto
dele, meteu algemas em seus pulsos e mandou levá-lo embora. Os dois caras são chupasangues, ele gritou aos sobreviventes furiosos, que haviam estremecido de susto e que, porque
haviam lhe arrancado o motorista do ônibus das garras, começaram a praguejar contra a
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ordem falsa daquele Estado. A médica me ajudou a levantar e botou um cobertor de lã em
volta de meus ombros. O senhor sobreviveu ao grave acidente, disse ela, seria realmente uma
pena se agora ainda pegasse uma bronquite.
O que foi que aconteceu aqui?
Ela pareceu refletir alguns instantes sobre a minha pergunta, olhou em meus olhos
e esboçou uma tentativa débil de se fazer de desentendida, mas logo depois respirou fundo e
contou que o motorista dormira ao volante e batera na traseira de um caminhão de
transportadora, era duro imaginar, o cara podia andar apenas a cem por hora naquele trecho da
autopista, mas estava a pelo menos cento e trinta, para depois da colisão girar o volante com
toda a força primeiro para a esquerda depois para a direita, fazendo o ônibus bater contra a
guarda central e a guarda lateral, o motorista aliás estava bastante bem.
No momento decisivo ele saltou, disse ela, e o ônibus sem condutor virou, e as
pessoas lá dentro foram entregues à vontade do inferno.
Minha mala, disse eu.
O senhor deveria se sentir feliz pelo fato de sua mala ter queimado e não o senhor,
disse ela, agora já estão circulando boatos maldosos sobre vários cadáveres carbonizados, e
seu nome não está na lista dos mortos.
Quer dizer que alguns de nós se ferraram, foi o que eu constatei.
Pelo menos uma dúzia, segundo me revelou o senhor oficial, disse ela, mas ai do
senhor se disser que fui eu quem lhe contei essas coisas. Mas pode fazê-lo, se quiser, ninguém
lhe dará crédito, o senhor está sob o efeito de choque, e mais tarde nem vai se lembrar de
mim, pode ter certeza disso.
Eu não dei ouvidos à ameaça da médica, a carne me doía, meus ossos estavam
doloridos, não teria lucrado nada se tivesse lhe revelado que eu não esquecia nenhum rosto
para o qual havia olhado um dia, às vezes isso até era uma maldição, pois em meus pesadelos
eu olhava para rostos exangues e olhos de pupilas grandes. A médica pediu que eu entrasse na
ambulância, eu me esgueirei para dentro de cabeça encolhida, baixei um assento estreito, e
quando estava sentado em segurança e a porta de correr foi fechada, percebi as duas mulheres
e o homem que fixavam o vazio a sua frente, assim como eu, eles apresentavam ferimentos
leves, inúmeras pequenas lesões que logo haveriam de estar curadas. Eu lhes desejei boa
viagem seguindo um impulso, e eles olharam para mim com raiva – será que eles acreditaram
de fato que eu seria capaz de fazer piadinhas logo depois de um acidente como aquele? Pouco
me importei com o fato de ver meu rosto refletido na janela lateral, eu olhava para fora, para a
paisagem que passava por nós, terra erma e não cultivada, interrompida aqui e ali por fábricas,
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de cujas chaminés brotava fumaça negro-acinzentada, vi dois camponeses sentados à beira da
estrada, eles haviam empurrado o boné de aba larga para a nuca, rigorosamente de acordo
com os costumes do lugar, seus coletes de tricô estavam abotoados, eram diaristas pouco
antes de começar o trabalho pesado. À distância, pude vislumbrar o subúrbio da cidade
grande, de cujo prefeito se dizia que era parecido com uma criança travessa, que fica puxando
os dedos dos pés dos convidados embaixo da mesa, ele punia os cidadãos pelo fato de terem
votado nele em maioria avassaladora. Pensei no livro de aventuras na minha mala, pensei na
minha identidade e nos meus cartões de crédito na carteira, pensei que estranhamente não me
pediram se deviam ou não informar meus parentes. Eu não tinha mulher, não tinha filhos –
será que isso podia ser visto em mim?
Pelo canto do olho, percebi como a mais velha das duas mulheres me media de
cima a baixo, a metade esquerda de seu rosto estava inchada por causa de um impacto ou de
um golpe, ela lançava faíscas sobre mim com seu olho direito sadio.
Onde o senhor estava sentado?, disse ela, e chamou a atenção sobre si ao lançar
um olhar em volta.
No meio, disse eu, no banco do corredor, diante dos degraus da porta de entrada.
O banco da janela estava vago, portanto, exclamou a mulher triunfalmente, eu
sabia!
O que a senhora sabia?
O senhor é um daqueles que compra sempre dois lugares, disse ela, com isso tem a
certeza que ninguém a seu lado lhe rouba o ar para respirar.
Se eu fosse rico, mesmo assim reservaria apenas um lugar, disse eu.
E quem diz isso é justamente o homem-da-primeira-classe, gritou a mulher, e
mesmo que sua filha lhe pedisse para ficar em paz, para me deixar em paz, a mulher não pôde
ser acalmada, ela me acusou de ter bloqueado aquele lugar, no qual ela talvez pudesse estar
sentada, e por certo não era tarde demais para me fazer repreensões por meu mau caráter, já
que eu não era capaz de admitir diante de todas as pessoas que havia agido incorretamente. Só
quando a médica interveio dizendo que uma enorme injeção com calmante se encontrava à
disposição, e que com ela era capaz de chamar à consciência qualquer um e qualquer uma, é
que a mulher emudeceu e deixou que a filha cheia de vergonha lhe massageasse os braços.
Agora um segundo acidente, e a coisa se resolve, eu pensei, e puxei o cobertor apertando-o a
meu tronco, eu vivenciara e vivera o suficiente, eu já era íntimo do processo, assim teria dito
um amigo, mas ele estava bem longe, na Alemanha... eu toquei o bolso das calças e apalpei o
volume, graças a Deus, meu celular não havia sido danificado. Por um momento, brinquei
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com a idéia de ligar para o meu amigo, mas não, eu teria de falar alemão com ele, eu não
sentia a menor vontade de encarar mais uma complicação, enquanto estivesse na presença
daquela mulher descontrolada eu estava desprotegido. Nossa viagem ao hospital municipal já
estava demorando demais, andamos por estradas vazias, na maior parte dos cruzamentos os
semáforos estavam desligados, em uma ou outra casa a luz permanecia acesa, e alguns
vendedores de tabuleiro no pescoço puxavam seus carrinhos pesadamente carregados atrás de
si. O acidente nos surpreendera quase exatamente no meio do caminho, esse foi meu último
pensamento antes de cair no sono.
Acordei quando a ambulância estacou de repente, num solavanco. A médica abriu
a porta de correr, nós desembarcamos um após o outro, e ficamos parados ali fora por algum
tempo. Eu já me acostumara a chamados e ordens e não me atrevia mais a dar um passo sem
antes ter recebido uma instrução. No pátio dianteiro da emergência, homens de barba por
fazer passeavam de pijama e roupão, eles formavam uma pequena fila diante da banca de
jornais, estavam sentados em banquinhos de parque ou conversavam com seus parentes em
visita. Eu vi dois guardas, que nos submeteram a um controle visual rápido, a uma palavra da
médica eles chamaram enfermeiros que nos encaminharam à emergência, e uma vez que eu
estava parecendo tolo a mim mesmo, tentei me desvencilhar do enfermeiro que me havia sido
designado, mas ele me segurou com tanto mais força e pediu que eu tivesse paciência. Como
posso ter paciência?, eu pensei, meus ferimentos sangram, meu rosto parece mostrar que fui
atacado por cães selvagens, e vocês todos acreditam que o acidente fez de mim um idiota. O
enfermeiro me levou a uma saleta e, mal eu entrara, o policial levantou os olhos da papelada
que empurrou rudemente para o lado, haviam lhe destinado uma escrivaninha de anão para
sentar, e talvez ele estivesse furioso por ter de seguir uma ordem que o mandava vir
imediatamente à emergência no meio da noite a fim de ouvir os depoimentos de algumas
vítimas de acidente.
O senhor pode ficar de pé ou precisa se sentar?, perguntou ele.
Estou detido?
Não fale bobagens, disse ele, mas quando descobriu que o enfermeiro me segurava
com ambas as mãos, ordenou com severidade que ele me largasse imediatamente e trouxesse
duas tulipas de chá, e seguiu o enfermeiro que saía à toda pressa, para depois olhar em volta
da sala a sacudir a cabeça, fitando meus olhos.
O que foi que aconteceu, exatamente?, perguntou ele, os detalhes são importantes.
Eu estava dormindo, disse eu, acho que sou uma testemunha imprestável nesse
caso.
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Não é isso que estamos discutindo, disse ele estranhamente, o senhor precisa
apenas esclarecer pra mim como um ônibus novinho em folha pôde ser transformado numa
gaita de foles desse tamanho e assadinha de fio a pavio.
Mas eu tenho de ser examinado primeiro, ou estou errado?
O senhor foi tratado pela emergência médica no local, disse o policial, portanto
não precisamos nos preocupar com o fato de o senhor vir a morrer repentinamente em meu
escritório... Os viajantes nos bancos da frente afirmam que o motorista teria caído sobre o
volante, e juram que ele sofreu um infarto cardíaco.
Mas o motorista ainda está vivo, disse eu, ele não poderia ter se recuperado de um
ataque cardíaco com tanta facilidade...
Infarto cardíaco, ele me corrigiu, e eu de fato excluo a possibilidade de um infarto.
Mas então, o que foi que aconteceu dentro do ônibus?
O inferno tomou conta de tudo, disse eu, eu percebi o que aconteceu quando já
estava deitado no corredor central, e poucos segundos mais tarde me esgueirei por um buraco
da janela... depois veio uma estrangeira e me deu água.
Uma passageira estrangeira?, gritou o policial.
Não, ela correu pra me ajudar. Depois disso, embarcou em seu carro às pressas e
foi embora. Eu não acho que seja uma terrorista.
O senhor não deveria usar essa palavra com tanta despreocupação, disse ele, pois
ela pode lhe trazer conseqüências bem desagradáveis. O senhor sabe muito bem que desviar
os órgãos investigativos de seu caminho é um crime passível de punição?
Eu não sabia que aquilo era uma investigação, admiti, me desculpei com o policial
pelo tratamento desleixado que dava à língua turca, expliquei-lhe que havia passado quase
minha vida inteira no estrangeiro, e quanto mais eu falava, tanto maiores eram as dificuldades,
as palavras saltavam tropeçando como bobos da corte de minha boca, e caíam diante de meus
pés, mas o policial não levou minha frouxidão diante de sua língua materna a mal, pediu que o
enfermeiro me estendesse o copo de chá, mandou-o embora, eu tomei um gole e mais um
segundo e um terceiro, o cobertor pesado de lã envolvia apenas precariamente meu tronco –
eu parecia uma vítima, e sentia vergonha disso. Por fim, o policial me liberou, não sem antes
registrar meus dados pessoais, eu me arrastei atrás do enfermeiro, uma faxineira limpava o
piso de linóleo do corredor, ela estacou em meio a seu movimento quando cruzamos por ela e
eu passei em volta do pano molhado, dobrei no corredor principal e não interrompi o
enfermeiro quando ele explicou pormenorizadamente ao médico de plantão que estava
entregando “o sobrevivente número dois” ao senhor doutor. Depois disso o enfermeiro se foi.
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O senhor tem de desculpar o homem, disse o médico, ele é um pouco esquisito,
mas está fazendo seu trabalho, e é mal pago por isso... aliás como todos nós, aqui, que
fazemos nosso maldito trabalho.
Sem esperar por resposta, ele tirou o cobertor de mim, observou meus ferimentos e
o corte no rosto, e quando tocou meu lado direito, eu dei um gemido. De três a quatro costelas
estilhaçadas ou quebradas, disse ele, nós vamos fazer um raio x, a ferida aberta nas costas está
bem feia, acho melhor dar alguns pontos. Eu estava sentado sobre o catre, e, apesar da
anestesia local, sentia cada uma das pontadas da agulha na carne, louvado seja o que nos torna
duros, exclamou o médico, também pudera, o que ele teria lucrado se tivesse mostrado
compaixão, ele reparava o dano, e as forças me abandonavam lentamente.
O enfermeiro voltou a me receber, eu me deixei conduzir por ele, deixei que ele
me aplicasse uma injeção antitetânica, e quando caminhava ao lado dele no corredor, lhe
disse: preciso de uma camisa e de um casaco, tu me pareces ser um daqueles que sabe muito
bem como se providencia abundância quando a escassez impera. Eu tirei uma cédula da
carteira com a ponta dos dedos e a enfiei no bolso do enfermeiro, que nem fez menção de
defender sua incorruptibilidade. Ele me mediu da cabeça aos pés num olhar fugidio,
provavelmente estivesse avaliando o tamanho que eu usava.
Em uma hora, disse ele, em princípio, o que vale é: eu satisfaço qualquer desejo,
mas nada que seja ilegal e nada que seja imoral.
Não se preocupe, disse eu, e além do mais não estamos na prisão.
Ele teve de rir disso, uma risada alta e longa, eu teria preferido empurrá-lo contra a
parede, mas provavelmente estava com três ou quatro costelas quebradas, conseguia respirar
apenas com dificuldades, estava abandonado a mim mesmo por ali e precisava daquele
espírito servil. Ele empurrou uma porta, ela se abriu e deu para uma grande sala cheia de
camas, nas quais estavam deitados homens e mulheres, meu olhar caiu sobre uma mulher
pudica, ela havia cruzado as mãos atrás da cabeça e coberto suas axilas com guardanapos de
papel cor-de-vinho. O enfermeiro me indicou a cama livre à esquerda da porta, e me pediu
para ir deitar e esperar, simplesmente: esperar por ele, pela comida, pela visita do médicochefe da enfermaria, pelo meu anjo da guarda, que tinha de ajeitar e limpar suas asas
esculhambadas, para só depois disso voltar a pousar sobre meu ombro direito intacto. O que
há com o ombro esquerdo?, gritou a mulher pudica atrás dele, esse lugar também está
desocupado, ou o diabo pessoal, responsável pelos danos na vida, o manteve livre, em
recompensa? Alguns homens na sala deram gargalhadas, as mulheres ficaram em silêncio,
elas estavam ocupadas em examinar se o seu corpo ficava desenhado de modo indecoroso
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debaixo do cobertor. Eu fiz meus cumprimentos, os homens responderam, e eu me esgueirei
às pressas para baixo do cobertor e o puxei até o nariz, estava com frio, meu corpo todo
tremia. Sobre a cama vizinha, estava sentado um homem, pernas puxadas para junto do corpo,
ele não havia nem se dado ao trabalho de tirar as pantufas, e permanecia nessa posição como
se estivesse paralisado, para só então se voltar de leve para mim, paz aos que chegam, alegria
aos que ficam, benção aos que se vão, disse ele, queres uma visita acompanhada e gratuita
pelo hospital, queres tua paz, ou queres, já que estás a salvo, bater um papo com o senhor teu
deus debaixo das cobertas?
A segunda, disse eu.
Uma resposta econômica, ele constatou, eu sou o senhor Fígado.
Como?
Assim foi estipulado entre nós, quem é que poderia se lembrar de todos esses
nomes? Eu sou um bebum, tenho problemas no fígado, logo, me chamo senhor Fígado. Há um
outro que foi trazido com uma fratura dupla no tornozelo, ele se chama senhor Tornozelo... e
o que há contigo?
Um ferimento profundo nas costas, algumas costelas quebradas, disse eu.
Ficarás alguns dias conosco. É melhor que tu mesmo escolhas um nome pra ti, aí
ficará claro que temos boas intenções a teu respeito.
Costela, disse eu.
Costela é bom, disse ele, e agora desejo bons sonhos.
GLOSSÁRIO MÍNIMO
COSTELA: no original, Rippe.
FÍGADO: no original, Leber, que significa fígado, em alemão.
TORNOZELO: no original, Knöchel.
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