Dissidentes ou Mercenários? Objetivo: liquidar a revolução cubana

Transcrição

Dissidentes ou Mercenários? Objetivo: liquidar a revolução cubana
DISSIDENTES OU MERCENÁRIOS?
Objetivo: liquidar a revolução cubana
Hernando Calvo Ospina
Katlijn Declercq
DISSIDENTES OU MERCENÁRIOS?
Objetivo: liquidar a revolução cubana
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular
Hernando Calvo Ospina
Katlijn Declercq
Tradução
Ana Corbisier
Projeto gráfico, Capa e diagramação
ZAP Design
Foto da Capa
Bille Steiner
Impressão e acabamento
Cromosete
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Central da UEM. Maringá - PR.
Calvo, Hernando
C169d
Dissidentes ou Mercenários?. Objetivo liquidar a revolução
cubana / Hernando Calvo, Katlinj Declerq. - São Paulo :
Expressão Popular, 2001.
272 p. : il
Livro indexado em GeoDados. http://www.geodados.uem.br
ISBN: 85-87394-23-1
1. Cuba. 2. Revolução cubana. 3. Dissidentes cubanos. 4.
Mercenários cubanos. I. Declerq, Katlinjn.
CDD 21.ed.322.4097291
CIP-NBR 12899-AACR2
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ou reproduzida sem a autorização da editora.
1ª edição: agosto de 2001
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
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Correio eletrônico: [email protected]
Sumário
Prefácio para a edição brasileira .................................... 9
Um pouco de história (1959-1979) .............................. 13
I .................................................................................... 33
II .................................................................................. 47
III ................................................................................. 59
IV ................................................................................. 73
V .................................................................................. 85
VI ................................................................................. 101
VII ................................................................................ 125
VIII .............................................................................. 145
IX ................................................................................. 167
X................................................................................... 187
XI ................................................................................. 211
XII ................................................................................ 229
XIII .............................................................................. 237
XIV .............................................................................. 241
XV ................................................................................ 251
Umas últimas letras ...................................................... 259
Obrigado pelo apoio e carinho:
Nabor Calvo, Elvia Ospina, Tijl Declercq, Paula Andrea Calvo,
Sara, Menno e Jana Steel, Koen Steel, Karine Álvarez, Annemie
Verbruggen, Pedro e Odile, Manuel e Alina, Antonio e Anita.
A Rosita, a avó mais linda de Havana.
A Alfi, pelo seu “afecto” em Miami
Prefácio para a edição brasileira
Cuba é uma ilha do tamanho do Estado de Pernambuco, a
180 km da costa dos EUA. É um país pobre em recursos
naturais e com uma população equivalente à da cidade de São
Paulo. Mas, tendo feito uma revolução vitoriosa, que implantou
o socialismo, as condições de vida de seu povo, principalmente
no que se refere a saúde e educação, são das melhores do
mundo. Lá, perdem-se apenas 6,4 nascidos vivos em cada mil,
taxa menor que a dos Estados Unidos da América, que é de
7,3. Enquanto isso, no Brasil, a imprensa oficialista e o governo
neoliberal comemoram uma taxa de 34,6. Em Cuba já não há
analfabetos, e todas as crianças fazem, obrigatoriamente, as 8
séries do primeiro grau. Todo o ensino e toda a assistência
médica são gratuitos. Os resultados obtidos no esporte são de
todos conhecidos. Conseguiram erradicar a miséria. São pobres,
mas todos comem, vivem em casas, têm trabalho, divertemse. No Brasil, com toda a sua riqueza, temos 13,3% de
analfabetos e apenas na cidade de são Paulo, há 8.740 pessoas
9
morando na rua, enquanto há um carro para cada dois
habitantes! Não é preciso conhecer a cidade para imaginar em
que garagens estão esses automóveis...
No entanto, em lugar de alegrar-se por um êxito tão
significativo frente à derrota das políticas do FMI para a
América Latina, onde a desigualdade só aumenta, há 42 anos,
o grande, poderoso e rico EUA mantém em torno de Cuba
um cerco comercial cada vez mais duro, e investe dinheiro
para organizar todo tipo de infiltração na ilha: de idéias, por
meio de transmissões de rádio e dos turistas, e terroristas, para
organizar sabotagens e atentados. Este livro, que reproduz
entrevistas com as figuras mais destacadas entre os que deixaram
Cuba na época da Revolução e desde então se dedicam a tentar
derrubar o governo e o socialismo cubanos, conta a história
desses 40 anos de guerra não declarada.
A leitura deste livro é importante para nos ensinar como
os governos norte-americanos, seus aliados e a imprensa que
os apóia usam palavras como democracia, liberdade e direitos
humanos para iludir-nos sobre os interesses deles e os nossos.
Para nos ensinar a desconfiar do que lemos na imprensa de
nosso país, que reproduz fielmente artigos de Carlos Alberto
Montaner ou da sub-secretária de Estado dos EUA para
Assuntos Globais...
Mas é um livro triste. Em primeiro lugar, porque mostra
uma covardia: os EUA, o país mais rico e poderoso da terra,
por meio de sua Agência Central de Inteligência, a CIA, e de
outros órgãos de governo, durante mais de 40 anos, tentando
estrangular um país pequeno e pobre. Em segundo lugar,
porque deixa falar homens e mulheres que se venderam ao
inimigo de sua nação e fizeram da luta contra ela seu meio de
vida e de sobrevivência política. Em terceiro, porque mostra
como alguns desses homens e mulheres compram parlamen-
10
tares norte-americanos, para que sirvam a seus interesses, num
grande mercado, onde a mercadoria é a sobrevivência de uma
das experiências mais belas que o mundo já conheceu e dos 11
milhões de pessoas que dela participam.
Este título mostra o lado mais feio de seres humanos e de
um país que chegam até ao assassinato para impor o seu poder.
Que, usando conceitos como liberdade, democracia, direitos
humanos, buscam enganar a opinião pública internacional
repetindo, à saciedade, que Fidel Castro é um ditador, que há
miséria na Ilha e que lá não existe liberdade. É verdade que,
como disse um dia um presidente deles mesmos, “não se pode
enganar todo o mundo o tempo todo”...
Mas, por que tanta sanha? Embora os autores nos forneçam
algumas respostas, proporemos outra: se Cuba, estrangulada,
consegue proporcionar a seu povo níveis de saúde e de educação
melhores do que os países mais desenvolvidos do planeta,
inclusive os EUA, e seus esportistas ganham medalhas em todas
as Olimpíadas; se lá já não existem mais favelas nem
desemprego, que país não seria se pudesse se desenvolver
livremente? E, na outra ponta, que país não seria o nosso, e
outros, na América Latina, se, como em Cuba, conseguíssemos
por fim à exploração das maiorias por minorias que não
conseguiriam gastar em gerações o dinheiro que acumulam?
O que aconteceria quando nossos povos percebessem que os
investidores internacionais, o FMI e o Banco Mundial são
sanguessugas, a drenar para fora todo o resultado de nosso
trabalho? Que, sem eles, poderíamos também desfrutar de uma
sociedade mais justa e solidária?
Para os EUA e para os aliados que possuem dentro de nossas
fronteiras, deixar Cuba, e os países que viessem a se libertar de
seu jugo, em paz e progredindo significaria o fim de sua
indústria bélica, o fim da acumulação a qualquer custo, o fim
11
do poderio que exercem sobre dois terços da população
mundial. Que é a ALCA, chamada Área de Livre Comércio
das Américas, senão mais um instrumento para liberar
mercados e eliminar soberanias, facilitando o livre curso das
mercadorias e dos capitais norte-americanos, a preços
determinados por eles? Esta é a liberdade que apregoam. Estes
os direitos humanos que defendem. Se não, se Cuba não
representa para eles nenhum perigo, porque não deixá-la seguir
livremente o caminho que livremente escolheu? Resposta:
porque o exemplo é perigoso, pode “pegar”, transformando a
cômoda hegemonia dos EUA, agora ainda mais cômoda sem
a URSS, que os mantinha relativamente contidos.
Ana Corbisier
Julho de 2001.
12
Um pouco de história (1959-1979)
“É perigoso ser nosso inimigo. É fatal ser nosso aliado”.
Henry Kissinger - Ex Secretário de Estado dos
Estados Unidos da América. Prêmio Nobel da Paz
A
Antes do amanhecer do dia primeiro de janeiro de 1959, o
ditador Fulgencio Batista saiu, fugido, de Cuba. Ninguém mais
queria saber dele, nem a alta burguesia, nem a máfia, nem os
estadunidenses.1 já não servia. A notícia pegou de surpresa boa
parte dos cubanos. Em Havana, o povo iniciou a destruição dos
parquímetros, símbolo dos impostos da ditadura, mas os
“Barbudos” guerrilheiros começaram a por ordem. Cuba se
transformou numa algazarra, embora a minoria privilegiada pela
riqueza olhasse com receio aquele frenesi. Não era para menos:
1
A América é um continente, não um país. É um erro chamar de americanos os cidadãos
de uma nação cujo nome é Estados Unidos. Da mesma forma, é um erro chamá-los de
norte-americanos, pois o Canadá e segundo alguns, até o México, também pertencem
a esta região. Por isso empregaremos o termo “estadunidense” para tudo o que pertence
ou se refere a este país e a seus habitantes. Mas respeitaremos os termos utilizados por
nossos entrevistados, assim como os que constam das citações.
o jovem Fidel Castro, que o povo reconhecia como seu líder
máximo, tinha prometido mudar muitas coisas. E com o apoio
e a participação das maiorias, as essenciais começaram a ser,
rapidamente, transformadas.
É indiscutível que, quando do triunfo da Revolução, as
estatísticas mostravam uma renda per capita muito alta. Mas
uma coisa era a renda e outra a questão de saber se cada cubano
recebia a sua parte. Como se prometera ao povo, as primeiras
leis diziam que a renda per capita passaria do papel à realidade.
Quando esse novo governo começou a fornecer alimentação,
educação e saúde, em partes iguais, isso foi considerado uma
manipulação: “estava-se manipulando habilmente os
sentimentos das massas”, como disseram muitos inimigos da
Revolução2. Os revolucionários tinham avisado desde o
começo: a distribuição de riquezas e o significado de soberania
vão mudar. A aristocracia cubana, urbana e rural, não acreditou.
Em Washington, apenas se suspeitou. Então aconteceu o que
devia acontecer. “Em junho de 1959, o Instituto Nacional de
Reforma Agrária (INRA), confiscara quatrocentas propriedades
rurais, e em dezembro do mesmo ano tinham se estabelecido
quatrocentas ‘lojas do povo’ e quatrocentas e oitenta e cinco
cooperativas”3. Um ano depois tinham sido nacionalizadas
trezentas e oitenta indústrias e empresas estadunidenses e do
grande capital cubano.
Um país subdesenvolvido não podia se dar este direito. E
ainda menos, se pertencesse ao quintal estadunidense. Pior
ainda, quando os desígnios do império tinham decidido, desde
sempre, que Cuba era uma extensão natural de seu território.
2
Enrique Encinosa: Cuba en guerra. Historia de la oposición anti-castrista, 1959-1993,
Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundación Nacional Cubano-Americana,
Miami, 1995.
3
Idem.
14
Atentava-se contra interesses sagrados como, simples exemplo,
os de William Pawley, dono da Companhia de Gás de Havana,
além de assessor do presidente Dwight Eisenhower para
assuntos cubanos; os do coronel J. C. King, chefe da Divisão
do Hemisfério Ocidental da Agência Central de Inteligência
(CIA), sócio de Pawley e com muitos investimentos na Ilha.
Sem esquecer os imensos negócios da máfia ítalo-estadunidense, conhecida como Cosa Nostra, encabeçada por
Meyer Lansky e Santos Trafficante. Portanto, era preciso agir
urgentemente. E foi isso o que se fez. Em 10 de março de
1959, a pauta secreta do Conselho de Segurança Nacional
(NSC), incluíra, como um de seus pontos principais, levar ao
poder outro governo em Cuba. Até a revista Time, de 6 de
abril de 1959, sentiu-se ultrajada com a atitude independente
assumida pelos governantes desse pedacinho de território
caribenho: “A neutralidade de Castro é um desafio aos EUA”.
Entenda-se: não soa bem um Não, quando a rotina tem sido
sempre “Yes, Sir”.
Cuba tinha que voltar a sua trilha, não importava como.
Este era um anseio compartilhado por aqueles cubanos que
sempre sonharam em ver o país que chamavam de “pátria”
como uma estrela mais na bandeira estadunidense.
B
O governo revolucionário ainda não estava totalmente
instalado e já se tramava contra ele. A partir da ilha vizinha, a
Dominicana, sob os auspícios do ditador Leónidas Trujillo,
com a bênção de Washington, organizou-se a “Legião
Anticomunista do Caribe”. Eram cerca de oitocentos
mercenários: cubanos, franceses, espanhóis, belgas e de outras
15
nacionalidades, que se preparavam para invadir Cuba. Para
desgraça da “Conspiração Trujillista”, a primeira investida,
composta logicamente por cubanos, foi capturada. Eram os
meses finais de 1959 e o complô foi por terra. Mas na mesma
data já se preparava a Operação 40, primeiro plano completo
que a CIA organizou para acabar com a Revolução nascente.
Completo, porque operações militares e terroristas complementavam a guerra ideológica e psicológica, a pressão diplomática
e a econômica.
Mas, apesar de contar com todos os recursos inimagináveis,
falhou. Principalmente porque os Estados Unidos jamais
conseguiram organizar grupos contra-revolucionários
consistentes no interior de Cuba. Por prepotência, menosprezaram o essencial: a maioria do povo queria esta Revolução, e
apoiava seus dirigentes. Além disso, o novo governo sabia quem
estava enfrentando, e sem mais tardar organizou um escudo.
Assim nasceram, em 1960, os Comitês de Defesa da Revolução
(CDR), que são associações de vizinhos para a vigilância:
“Apoiavam a Segurança do Estado, munindo-a de informações
constantes sobre qualquer atividade suspeita no quarteirão”.4
Pouco a pouco, mas decididamente, o golpe foi sendo isolado
e aniquilado, à medida em que se lhe negavam recursos para
que se alimentasse. As lideranças caiam, uma depois da outra.
Todos esses reveses foram justificados de várias maneiras. A
mais lamentável foi: “desde o começo os conspiradores tiveram
má sorte”5.
Diante da impossibilidade de obter um mínimo apoio
social, a contra-revolução decidiu incrementar os ataques
terroristas. Em 4 de março de 1960, o navio francês La Coubre,
4
5
Idem.
Idem.
16
que trazia armas da Bélgica, explodiu na baía de Havana.
Morreram setenta e cinco pessoas; duzentas ficaram feridas.
Aviões, procedentes da Flórida, lançaram bombas incendiárias,
que explodiram contra engenhos, plantações e empresas. De
lanchas rápidas, povoados costeiros foram metralhados,
embarcações foram afundadas e pescadores seqüestrados. Não
havia nenhum respeito pela população civil. Alguns, como
Carlos Alberto Montaner e Armando Valladares, que hoje
passeiam glorificados, camuflavam entre pacotes de cigarros o
explosivo plástico entregue pela CIA, que incendiava depósitos
na capital.
C
Todos os relatórios confirmavam ao presidente Eisenhower
que dia a dia perdia o controle estratégico sobre a Ilha. O
mandatário, como primeira medida, ordenou que fosse
incrementado o apoio aos grupos contra-revolucionários. Deu
luz verde, em março de 1960, para que a CIA preparasse uma
invasão militar em larga escala. Disposição ratificada por seu
sucessor, John F. Kennedy. Mas os Estados Unidos não queriam
aparecer novamente como invasores. Se, para impor seus
interesses, viram-se “forçados” a enviar “marines” à Nicarágua,
à República Dominicana, à Guatemala etc., neste caso não
lhes parecia necessário, pois contavam com alguns milhares
de cubanos mercenários. Bastava que estes, como fachada,
formassem algum tipo de estrutura política no exílio que,
chegado o momento, seria reconhecida internacionalmente
como governo transitório. Mas, com todas as ambições de
grupos e pessoas em jogo, não foi fácil para a CIA lograr seu
17
intento. Embora fizessem parte do Conselho Revolucionário
Cubano apenas cinco grupos, Allen Foster Dulles, diretor da
CIA, informou ao presidente Kennedy que seria uma tarefa
bem difícil “estabelecer um governo cubano no exílio que
unificasse as 184 organizações anti-castristas” 6. Ocorria
também que os donativos levavam três a quatro pessoas a criar
seu grupo, dentro e fora da Ilha, embora estes, como fantasmas,
aparecessem e desaparecessem.
Por fim, a gestação da unidade teve seu parto. Desde sua
apresentação ao público, o Conselho contou com um exagerado
espaço na grande imprensa. Os meios de informação não podiam
agir de outra forma, frente ao que se erigia como alternativa ao
insolente governo de Havana. Que importava se um ou outro
desses grupos tinha apenas uma base social mínima no interior
de Cuba, no máximo algumas pessoas e uma sigla? Afinal, o
Conselho era apenas uma vitrine para vender ao exterior. Que
importava que nenhum dos líderes do Conselho tivesse voz nem
voto no que o império preparava contra sua pátria? Quando o
poder fosse retomado, receberiam de Washington um pedaço
do bolo no governo. Que importava se os dirigentes do Conselho
não se suportavam uns aos outros? “Desconfiávamos uns dos
outros, mas tínhamos muita confiança nos americanos”.7 Com
certeza. Não se tratava de um simples caso de dependência militar
ou política. Não. Era vassalagem moral e psicológica.
Assim se estabeleceu em Miami um dos maiores escritórios
que a CIA já teve em toda a sua história, com a missão principal
de recrutar e pagar, naturalmente, os cubanos que quisessem
invadir seu próprio país. Como demonstraram pesquisas
6
7
Idem.
Haynes Johnson: La Baie des Cochons. L’invasion manquée de Cuba, Ed. Robert Laffont,
Paris, 1965.
18
posteriores, um jovem oficial da CIA, futuro presidente da nação,
George Bush, seria um dos contratantes. Cada mercenário
recebia um número de matrícula. A lista começava em 2.500,
para dar a idéia de uma força numericamente grande. Para a
preparação militar, organizaram-se acampamentos na Flórida e
na América Central. Durante um treinamento, a brigada teve
seu primeiro morto, o 2.506, e em sua memória recebeu esse
nome. Inicialmente foram destinados treze milhões de dólares
para financiar a operação invasora, parte deles procedentes do
tráfico de ópio que a CIA organizara a partir do Triângulo de
Ouro. 8
Quando, em 3 de janeiro de 1961, Washington,
unilateralmente, rompeu relações com Cuba e, no dia 17,
proibiu seus cidadãos de visitar a Ilha, supunha-se que os
inimigos da Revolução ficassem encantados. Mas, em 16 de
abril, em Washington, em Miami, na Europa, e quem sabe
aonde mais, a saliva deve ter descido com dificuldade por suas
gargantas. Fidel Castro, no momento em que dava o último
adeus a vários soldados mortos por bombardeios da aviação
estadunidense, proclamava o caráter socialista da Revolução.
Faltavam poucas horas para que barcos e aviões,
transportando cerca de mil e quinhentos mercenários,
rumassem para Praia Girón.
Os estadunidenses, de Kennedy para baixo, estavam certos
que os invasores contariam com o apoio da maioria do povo
cubano. Por meio do Conselho Revolucionário Cubano,
tinham enviado tantos dólares para comprar almas na Ilha,
que não podiam falhar. O objetivo era a brigada mercenária
8
Martin Lee e Bruce Shlain: LSD et CIA. Quand l’Amérique était sous acide, Les Editions
du Lézard, Paris, 1994. Chama-se Triângulo de Ouro a um imenso território entre o
Laos, a Birmânia e a Tailândia.
19
fortalecer-se nas zonas próximas ao desembarque, desenvolvendo uma guerra de desgaste. Quando começasse o
levantamento geral, seria proclamado o governo provisório,
que obteria reconhecimento internacional sem nenhum
problema. Mas o que encontraram foi um exército, apoiado
pelas milícias, que em poucas horas levou a força invasora às
portas do inferno. Estavam tão confiantes, todos, que nem
sequer previram um plano de evacuação em caso de derrota.
Nem adiantou que, ao desembarcar, o primeiro homem que
pisou terra não fosse precisamente um mercenário cubano,
mas sim um veterano oficial estadunidense, William Rip
Robertson. “A sorte estava lançada. Ao amanhecer do dia 19,
as últimas unidades da Brigada desmoronaram diante da
superioridade inimiga (...) Quase uma centena de membros
da brigada morrera na invasão, outra centena fora ferida e mais
de mil, capturados”.9 Os invasores nada puderam fazer contra
o denodo de um povo que defendia, gratuitamente, sua
soberania recém conquistada.
Quando os mercenários cubanos compreenderam que os
estadunidenses não se arriscariam a ir mais longe, esquecendo
que vinham “libertar” a pátria, “perderam, naquele momento,
a vontade de combater”.10 Mas esta era apenas uma parte da
maior humilhação militar que o império sofrera até então no
continente.
Enquanto isso, Fidel Castro e seus “Barbudos” tornavamse o Davi que golpeara Golias. “Um Castro supermacho, audaz
e rebelde, que podia derrotar um império em sua própria
fronteira”.11
9
Enrique Encinosa. Obra citada.
10
Idem.
11
Idem.
20
Dias depois, em 24 de abril, Kennedy reconhecia a
responsabilidade pela agressão mercenária. E no dia seguinte
deu início à verdadeira agressão, a mesma que persiste até hoje,
embora já ocorresse desde outubro de 1960: o embargo
comercial total.12 Em 7 de setembro, o Congresso dos Estados
Unidos aprovou uma medida privando de ajuda qualquer país
que apoiasse Cuba, salvo se o presidente determinasse que esta
assistência servia a seus interesses. Assim o governo
estadunidense começava a imiscuir as nações do mundo em
“sua guerra” contra Cuba, sem encontrar maior resistência.
E os mercenários? Quando já se viam a caminho do
“paredón” por “participar de invasão militar organizada e
apoiada por uma potência estrangeira”13, foram libertados.
Melhor, trocados por remédios, alimentos e equipamentos
agrícolas. Voltaram para casa, em Miami, no Natal de 1962.
Em 29 de dezembro realizou-se um ato para homenageá-los;
estiveram presentes o presidente Kennedy e sua esposa,
Jacqueline. Esta se referiu aos mercenários como “os homens
mais valentes que existem no mundo”. Depois, quando os
chefes entregaram ao mandatário a bandeira da brigada, este
prometeu devolvê-la “em uma Havana livre”. Os contrarevolucionários ovacionaram o presidente. Quinze anos mais
tarde, a associação de ex-membros da brigada pediu ao Museu
Kennedy que a devolvesse, pois a palavra não fora cumprida.
Devolveram-na pelo correio.
12
13
É comum a utilização do termo embargo comercial que, por suas implicações de
dificuldade e impedimento no comércio e no transporte, é utilizado pelos Estados
Unidos para disfarçar sua política hostil frente a Cuba. Na realidade o que ocorre é um
bloqueio imposto pelos Estados Unidos, com o objetivo de impedir todo tipo de
ações que contribuam para o desenvolvimento da Revolução cubana, criando obstáculos
que favoreçam sua paralisação ou estrangulamento.
Luiz Báez: Los que se fueron, Editora Política, La Habana, 1994.
21
D
Depois de analisar o relatório sobre o fracasso da invasão
mercenária e contra-revolucionária, o presidente Kennedy criou
um Comitê Especial, no seio do Conselho de Segurança
Nacional. O orgulho da nação estava ferido e as principais
instâncias deviam salvá-lo. A tal ponto, que o próprio Fiscal
Geral, Robert Kennedy, participou do Comitê. Segundo
documentos do governo, na reunião de 4 de novembro de
1962, o irmão do presidente anotou o seguinte: “minha idéia
é resolver as coisas mediante espionagem, sabotagens, desordem
geral, tudo operado e dirigido pelos próprios cubanos de todos
os grupos, exceto aliados de Batista e comunistas...” Exceto
aliados de Batista, dada a imagem negativa que tinham no
mundo; mas os cubanos deviam continuar se expondo, embora
todos soubessem que eram apenas um meio, na estratégia global
estadunidense.
Neste comitê foi aprovada a Operação Mongoose (Rato
da Índia) destinada, segundo o presidente, em 30 de novembro,
a “utilizar os meios disponíveis (para) ajudar o povo de Cuba a
derrubar o regime comunista, de dentro do país, e a instaurar
um novo governo, com o qual os EUA possam viver em paz”.
Era possivelmente a primeira vez que, na guerra nascente contra
o governo cubano, os Estados Unidos punham ênfase no “de
dentro do país”, o que se transformaria em uma constante até
nossos dias. O mais importante era conseguir uma “desordem
geral”, que desembocasse no levantamento popular interno.
Quando isso ocorresse, os grupos da contra-revolução pediriam
ajuda internacional, sob pretexto de proteger a população de
um massacre por parte do governo comunista. Diante desse
clamor, acudiriam os Estados Unidos e outras nações do
continente, mas sob a bandeira da Organização dos Estados
22
Americanos (OEA). Começava-se a criar o que hoje se conhece
como intervenção humanitária.
O inesperado desafio representado por Cuba – mais os
focos insurrecionais em vários países do continente – exigiram
dos estrategistas estadunidenses uma imediata revisão da
guerra ideológica. “Gastamos milhões de dólares preparandonos para a guerra das armas, mas muito pouco na guerra das
idéias”, lamentava-se o Secretário de Estado do presidente
Kennedy. Mas já o diretor da Agência de Informação dos
Estados Unidos (United States Information Agency, USIA),
um dos órgãos de propaganda ideológica mais poderoso dos
Estados Unidos,14 gestava a solução: “A simples introdução
da dúvida, no cérebro das pessoas, já significa um grande
êxito”.15 Na Operação Mongoose considerou-se muito este
aspecto, como parte do conflito. Citemos trechos do que
veio a público:
Primeiro, criar um clima patético e motivar as forças para a
libertação de Cuba; segundo (ilegível no texto do documento);
terceiro, demonstrar a preocupação com a situação dos refugiados
(cubanos), particularmente a das crianças órfãs; quarto, demonstrar
o fracasso do regime cubano no cumprimento das promessas feitas
(...); quinto, destacar as intoleráveis condições em Cuba e a situação
14
15
Julien Claude: L’Empire Américain, Ed. Le Livre de Poche, Paris, 1972.
Relatório da Comissão Especial do Senado estadunidense sobre conspirações para assassinar
dirigentes de outros países, Washington, novembro de 1975. Na segunda-feira, 17 de
novembro de 1977, o Pentágono tornou acessíveis ao público outras mil e quinhentas
páginas sobre Cuba. Nelas se encontram muitíssimas sugestões – chamadas pelo jornal
espanhol El País de “surrealistas” –, que os vários órgãos de espionagem e segurança
estadunidense propuseram ao presidente Kennedy, para derrubar ou desacreditar o
governo revolucionário. Por exemplo, se o primeiro vôo orbital da nave Mercury não
tivesse podido regressar à terra em 20 de fevereiro de 1962, Kennedy acusaria como
culpados os “comunistas de Cuba”, por terem provocado “interferências eletrônicas”.
23
dos cubanos na Ilha; sexto (ilegível); sétimo, publicar que os cidadãos
comuns, e não apenas os ricos, fugiram de Cuba (...) (Para tanto)
deverão ser utilizados todos os meios de comunicação de massa (...).
Retomar as idéias de Marti (...) Popularizar canções, em comerciais,
que aludam a estas palavras de ordem (...)16
Mudando algumas palavras, este poderia ser um plano atual.
Mas a Operação Mongoose também incluía o lançamento
de produtos químicos nos canaviais e em outros cultivos, além
de atentados contra o Comandante Fidel Castro, que iam desde
o assassinato, até a queda de sua barba, à qual era atribuida a
atração que exercia sobre o povo. Para estas e outras ações
terroristas, a CIA se apoiou no mundo do crime, destacandose os poderosos mafiosos John Rosselli, Santos Trafficante e
Momo Salvatore Giancana.17
No final de janeiro de 1962, Cuba foi expulsa da OEA.
Em seguida, os Estados Unidos solicitaram à Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que considerasse a
decisão da OEA, para que seus integrantes pressionassem o
governo revolucionário. Da mesma forma, pediu a seus aliados
que proibissem o comércio voluntário de materiais estratégicos
com Cuba e reduzissem o comércio em geral com este país.
Quase todos os governos do mundo aceitaram de boa vontade
o pedido.
Enquanto isso, a CIA infiltrava em Cuba várias equipes
de agentes para unificar e treinar, em táticas de sabotagem
e sistemas de comunicação, os focos contra-revolucionários.
16
Idem.
17
Idem.
24
E
Acabavam de ser derrotados os últimos redutos da força
mercenária, quando Kennedy respondeu a uma nota de
advertência soviética, no sentido de que outra agressão militar a
Cuba poderia por em perigo a paz mundial. O presidente negava,
mais uma vez, que os Estados Unidos tivessem a intenção de
invadir Cuba. Mas deixava claro que “embora se abstenha de
uma intervenção militar direta, o povo dos EUA não esconde
sua admiração pelos patriotas cubanos”.
No início de 1962, como parte da Operação Mongoose,
começou um recrutamento em massa para formar “Unidades
cubanas” do Exército estadunidense. Em reconhecimento pelos
serviços prestados, foi oferecido aos derrotados da Brigada 2.506,
ingressar nelas como oficiais.
O governo revolucionário percebeu que se aproximava uma
nova tentativa de invasão. Se os Estados Unidos utilizassem, de
verdade, seu poder militar, seria difícil manter viva a soberania.
Mas, pelo menos, devia receber golpes contundentes antes de
voltar a se apropriar da Ilha. Era necessário, portanto, conseguir
armamento pesado. O que foi possível, graças à União Soviética.
Em 16 de outubro de 1962, o presidente Kennedy soube
que estavam sendo instalados em Cuba mísseis com ogivas
nucleares; diante disso, aprovou um bloqueio naval à Ilha, para
deter os navios soviéticos que transportassem armas. Ao mesmo
tempo, ordenou manter em alerta máximo, milhares de homens,
aviões e navios; de fato, uma parte desta força militar já estava
preparada desde abril, como bastião da Operação Mongoose.
Começava a chamada “Crise dos Mísseis”, ou “Crise de
Outubro”, que levou o mundo à beira de uma conflagração
apocalíptica. Não é preciso muita imaginação para deduzir que
os contra-revolucionários que ainda não haviam se decidido a
25
ingressar no Exército estadunidense se alistaram naquele
momento. O cerco naval, apoiado pela aviação, foi ao milímetro.
O que “não impediu que continuassem os ataques-comando às
costas de Cuba”. 18
Chegou-se à negociação. A União Soviética retirou os
mísseis e os Estados Unidos se comprometeram a não invadir
Cuba, nem a permitir que os exilados realizassem ações
ofensivas a partir de seu território, o que ofendeu gravemente
o orgulho dos contra-revolucionários: sentiram-se traídos,
relegados, desamparados. Em 22 de novembro de 1963, o
presidente Kennedy foi assassinado. As investigações não
descartaram a possibilidade de que exilados cubanos, em
represália, tenham participado do crime. Idênticas suspeitas
pairaram sobre a violenta morte de Robert Kennedy e do
mafioso Giancana. Não tinham cumprido sua palavra de ajudar
a “libertar” Cuba.
Quando Lyndon Johnson assumiu a presidência, entre suas
primeiras declarações consta: “Nossa primeira tarefa deve ser
isolar Cuba do sistema interamericano”. E assim foi. Todos os
paises do continente, exceto o México, deram as costas ao
governo revolucionário. Mas a falta de comunicação não
ocorreu apenas em nível de estados. Sob o controle da CIA,
exilados cubanos foram enviados para residir em paises da
América Latina. Sua tarefa consistia em organizar delegações
que fizessem propaganda contra-revolucionária. Mas,
“estávamos arando no mar. A falsa imagem de Fidel Castro,
como rebelde romântico, era muito poderosa (...) o sentimento
anti-americano na América Latina é muito forte e, além do
mais, éramos subvencionados pelos Estados Unidos (...)”19
18
Miguel Talleda: Alpha 66 y su histórica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995.
19
Enrique Encinosa. Obra citada.
26
Para má sorte dos contra-revolucionários, que queriam,
sem mais tardar, Cuba em mãos dos Estados Unidos, a
atenção de Washington se voltou gradativamente para o
conflito do Vietnam e do Sudeste asiático. Lá combateram
muitos estadunidenses de origem cubana. Mas, antes, a CIA
enviara algumas dezenas de ex-membros da Brigada 2.506
para o Congo, a “caçar” o Che Guevara. Este “Grupo
Voluntário Cubano” esteve ativo até 1966, combatendo
contra as forças rebeldes lideradas por Pierre Mulele e
Laurent-Désiré Kabila, como integrantes de uma grande força
mercenária que incluía ingleses, belgas, sul-africanos,
franceses e alemães. Até hoje, os sobreviventes deste “Grupo”
se ufanam por ter dado cobertura aérea à evacuação de
Leopoldville e barrado a ofensiva de Mulele, com um brutal
bombardeio no Vale de Kwilo.
No Vietnam, sua principal atividade militar consistiu
em colaborar com a tribo Meo, do Laos. “Esta tribo era
conhecida anteriormente como traficante de ópio, atividade
que a CIA não tentou impedir. Pelo contrário, nesta
operação secreta, a fronteira entre armas e drogas era
bastante flexível. Neste aspecto, os cubanos, com a
experiência da mafiosa Havana pré-revolucionária, eram
bons colaboradores”.0 O mais destacado deles seria o oficial
da CIA, Félix Rodríguez, especialista em operaçõescomando, que acabava de “glorificar-se” por ter assessorado
o exército boliviano na captura e assassinato do Che
Guevara, em outubro de 1967.
Dirigir os recursos militares e econômicos para o Vietnam
mutilou gravemente as ações contra-revolucionárias.
20
Vegard Bye: La paz prohibida. El laberinto centroamericano en la década de los ochenta,
Ed. Departamiento Ecuménico de Investigaciones, Costa Rica, 1991.
27
Por volta do final dos anos sessenta, o exílio estava esgotado.
Muitos movimentos tinham desaparecido lentamente. A situação
era triste, dominada pelo cansaço coletivo dos combatentes. Não
havia financiamento bélico e lanchas rápidas. Alguns poucos, os
mais teimosos, mantinham-se ativos, agrupando-se, dividindose, e agrupando-se novamente (...)21
F
Em 4 de abril de 1972 explodiu uma potente bomba no
teto do Escritório de Assuntos Comerciais de Cuba em
Montreal, Canadá. A explosão da bomba, fabricada com
explosivo plástico, de uso freqüente pela CIA, matou um
diplomata e feriu mais sete. A Frente de Libertação Nacional
de Cuba (FLNC) reivindicou o atentado. Não era a primeira
vez que se realizava este tipo de ato terrorista contra
funcionários ou interesses do governo cubano. Mas o que
ocorreu a partir daquele momento deixou de ser evento
esporádico, para converter-se na Guerra pelos caminhos do
mundo, uma estratégia dos contra-revolucionários baseada
na conjugação de atentados terroristas com operaçõescomando em Cuba. As bombas se multiplicaram. E já não
apenas contra objetivos cubanos, mas contra dependências
de governos e de particulares que tivessem relações com o
governo da Ilha. Em Nova Iorque foi lançada uma bomba
no carro do diplomata Ricardo Alarcón, sem perdas humanas.
Explosivos explodiram no México, na Argentina, na Jamaica,
na Venezuela, na Colômbia, em Porto Rico etc. A maioria
21
Enrique Encinosa. Obra citada.
28
dos atentados foram reivindicados pela Frente de Libertação
Nacional de Cuba, organização terrorista que tinha um braço
legal para recrutamento e logística, chamado Abdala. 22
Embora as divisões, devidas a interesses pessoais e de grupo,
não faltassem, outras duas organizações do exílio se
entenderam com a Frente de Libertação Nacional de Cuba
nesta sangrenta estratégia. Uma era a Alpha 66, outra, a
Representação Cubana no Exílio (RECE), que naquele
momento contava com o ex-membro da Brigada 2.506, Jorge
Mas Canosa, como um de seus dirigentes.
Juan Felipe de la Cruz chegou à Espanha e passou para a
França, ajudado por Carlos Alberto Montaner, contato da CIA
em Madri, segundo a Segurança cubana. Sua missão consistia
em colocar uma bomba na Embaixada de Cuba, em Paris.
Mas, em 3 de agosto de 1973, o material explodiu enquanto a
bomba era preparada, em um hotel de Avrainville, perto de
Paris. A seu enterro em Miami compareceu uma multidão. A
Frente de Libertação Nacional de Cuba e a Representação
Cubana no Exílio reivindicaram para si a preparação do
malogrado atentado.
Em meados dos anos setenta o terrorismo foi mais intenso.
Dois especialistas da CIA em sabotagens foram libertados,
depois de passar um breve período na prisão, acusados de
atos terroristas: Orlando Bosch e Guillermo Novo. Em 1976
eles seriam os principais animadores da Coordenação de
Organizações Revolucionárias Unitárias (CORU). Posterior22
Idem. O autor deste livro reconhece haver militado na Abdala. Portanto, tem plena
autoridade para afirmar que a Frente de Libertação Nacional de Cuba foi estruturada
por “vários veteranos das operações da CIA nos anos 60, alguns membros da Brigada
2.506 e dirigentes do Agrupamento Abdala”. Este, “com suas centenas de membros
jovens, dava à FLNC uma base de apoio mais ampla que a outras, tanto para arrecadação
de dinheiro, como para o nível operacional.
29
mente, o FBI atribuiria a Bosch e a Novo mais de setenta
ações terroristas. Sem contar sua participação no tráfico de
drogas junto a outros militantes contra-revolucionários,
atividade que servia para financiar as ações terroristas e o
benefício pessoal.23
Mas as autoridades estadunidenses começavam a preocuparse. A situação estava lhes escapando das mãos; sabiam que
tipo de elementos tinham formado e até onde podiam chegar,
se lhes fosse permitido. A isso se acrescentava a pressão que
muitos governos começavam a exercer, particularmente os da
França e da Espanha. Em Paris, os terroristas conseguiram
realizar um atentado contra a Embaixada; enquanto isso, o
consulado em Miami era sacudido por outra explosão. Em
Madri, uma bomba destruiu todo o andar da representação
diplomática.
Não havia outra alternativa senão perseguir e encarcerar
alguns atores recalcitrantes, o que feriu o exílio:
Os americanos nos tinham ensinado a usar explosivos, tinham
nos treinado para navegar, tinham nos preparado militarmente e
um dia decidiram que já não éramos necessários. (...) O que
fazíamos em 1963, com o beneplácito da CIA, dez anos mais
tarde era um ato criminoso (...)24
23
24
Peter Dale Scott e Jonathan Marshall: Cocaine Politics. Drugs, Armies, and the CIA in
Central America. Ed. University of California Press, Los Angeles, 1991. Naquela época,
segundo investigações federais, a Coordenação de Organizações Revolucionárias Unitárias
e a Abdala – Frente de Libertação Nacional de Cuba, entre outras, eram financiadas, em
parte, com o tráfico de drogas realizado por alguns militantes. Frank Castro, ex-membro
da Brigada 2.506 e René Corvo foram dos que mais dinheiro ilícito carrearam para estas
organizações. Ambos estiveram implicados no Iran-Contragate.
Enrique Encinosa. Obra citada.
30
Para transbordar a taça, em meados dos anos setenta,
quando se assinou o acordo de paz no Vietnam, a CIA licenciou
milhares de seus agentes, a maioria de origem cubana.
Observando-se o conjunto, não é de estranhar que durante o
ano de 1975 os escritórios do FBI e o aeroporto de Miami
tenham sido alvo de nove bombas.
Segundo membros do próprio exílio, a falta de apoio
político e financeiro estadunidense abriu caminho para a
violência cega, quase demente. “Se uma missão comando podia
custar cinqüenta mil dólares, envolvendo duzentos combatentes, para dinamitar uma embaixada em um país estrangeiro
bastavam dois homens; cada operação custava menos de dez
mil dólares”.25
Em agosto de 1976, em Washington, morreram o exministro chileno do governo de Salvador Allende, Orlando
Letelier, e sua secretária estadunidense Ronni Moffitt, quando
uma bomba destruiu o veículo em que viajavam, o que
desencadeou uma das maiores investigações federais. Durante
quatro anos, centenas de contra-revolucionários foram detidos.
Até que Michael Townley, um estadunidense que trabalhara
como técnico em explosivos para o serviço de inteligência do
ditador chileno Augusto Pinochet, acusou diretamente os
irmãos Ignácio e Guillermo Novo. Tinham feito isso para
receber ajuda e porque, segundo eles, Letelier trabalhava para
a Segurança cubana. Quase na mesma data, um comando
seqüestrou e fez desaparecer dois diplomatas cubanos radicados
em Buenos Aires. Os setores mais reacionários do exílio
chamaram o ato de “operação audaciosa”.
Mas os contra-revolucionários não utilizavam apenas
bombas para manter a pressão contra o povo cubano, seu
25
Idem.
31
governo e aliados comerciais ou políticos. Segundo um
despacho da agência de imprensa UPI, de 9 de janeiro de 1977,
“a CIA se recusou a comentar uma informação segundo a qual
poderia estar implicada em uma epidemia premeditada de peste
suína africana em Cuba, em 1971 (...) A introdução fora
realizada por agentes cubanos anti-castristas”. Em setembro
de 1984, várias agências de imprensa publicaram as declarações
de Eduardo Arocena, cubano-estadunidense, que reconheceu,
diante de um tribunal dos Estados Unidos, ter introduzido
em Cuba, na década de setenta, por ordem da CIA, substâncias
biológicas para propagar doenças entre a população. São apenas
dois exemplos, mas existem muitíssimos casos do mesmo
gênero, provados em órgãos internacionais e realizados a partir
do momento em que a Revolução tomou o poder. Mas nenhum
ato terrorista foi tão transcendental durante esta estratégia
terrorista como a explosão de um avião da Cubana de Aviação,
perto da costa de Barbados, em 6 de outubro de 1976. Orlando
Bosch e Luis Posada Carriles, ambos operários da CIA,
especializados em Fort Benning, foram presos na Venezuela,
acusados de planejar o atentado. Setenta e três pessoas
morreram, entre elas a equipe cubana juvenil de esgrima. “O
impacto da ação foi brutal, tanto para Cuba como para o
exílio”.26 Foi o prelúdio do fim da Guerra pelos caminhos do
mundo.
Mas a agressão continuava. Chegavam os anos oitenta, e a
estratégia estadunidense para acabar com o sistema socialista
cubano se readaptava. Os contra-revolucionários, por sua vez,
deviam se submeter às mudanças: assim sucede quando se é
um simples colaboracionista.
26
Idem.
32
I
“Na Polônia, o marxismo foi imposto às pessoas. Parece que, em Cuba, a
Revolução foi mais inteligente e comprometeu o povo”.
Monsenhor Agustín Román
Bispo auxiliar de Miami
A Ermida de La Caridad é pequena, não muito alta e de
arquitetura simples. Parte dos poucos metros que há entre ela
e o mar estão destinados à meditação, como informam vários
letreiros. A decoração interior é igualmente sóbria. Ao entrar,
à direita, há uma mesa com duas caixas médias que contêm
garrafinhas plásticas que não devem ter, supomos, capacidade
para mais do que cento e cinqüenta mililitros. Um aviso solicita
que, depois de tomar a água desejada, sejam levadas à cúria,
onde as enchem com água benta. Nas garrafas estão inscritas
as indicações de como tomar o líquido. O preço é acessível:
três garrafinhas por um dólar.
Poucos minutos depois da hora marcada, chegou
Monsenhor Agustín Román, todo vestido de preto – sob este
sol tórrido – o que contrastava com seu cabelo branquíssimo.
Depois de quatro ou cinco perguntas sobre nossa procedência
e o objetivo da entrevista, convidou-nos a entrar em seu
escritório. Às quatro da tarde estávamos mortos de sede, e
33
Monsenhor Román só podia nos oferecer café quente. Não
houve outro remédio senão sair de novo. Por sorte, a dois
metros da porta, protegidas do sol, havia três máquinas
distribuidoras de Pepsi Cola.
Monsenhor Agustín Román foi ordenado sacerdote em
1959. Foi expulso para a Espanha, junto com outros cento e
trinta padres e um bispo, em setembro de 1961. Em maio
daquele ano, o governo revolucionário anunciara que não
permitiria a permanência no país de religiosos contrarevolucionários, não importando sua nacionalidade. Embora
insistíssemos com ele de várias formas, e mencionássemos
algumas fontes, o bispo negou sempre que tivesse havido
participação de membros da Igreja em grupos sediciosos. É um
dos poucos que, em Miami, desconhece isto: “No começo da
luta clandestina, as igrejas e seitas religiosas desempenharam um
papel de destaque (...) Muitos sacerdotes, entre eles o padre
Ismael Testé, participaram ativamente da clandestinidade”.27
Também ignora, por exemplo, que o grupo terrorista de
influência católica, Movimento 30 de Novembro, escondeu mais
de uma tonelada de explosivos trazidos pela CIA “no porão de
uma igreja da capital”.28
Monsenhor Román negou para nós muitas coisas que são
tão reais como as palmeiras de seu país. Isso fazia com que a
cada minuto que passava, sua fala pausada e cerimoniosa nos
incomodasse mais e mais. Por acaso não é certo que assim que
os “Barbudos” tomaram o poder, começou-se a articular a
Conspiração Trujillista? Muitos textos contam que o padre
Ricardo Velazco era o contato para a entrada das armas. Velazco
foi detido em agosto de 1959, quando chegava clandesti27
Idem.
28
Idem.
34
namente a Cuba para os últimos detalhes. Também se sabe
que dois padres desembarcaram, e foram capturados, junto
com os mercenários da invasão pela Baía dos Porcos. Que
naquele mesmo ano de 1961 foram presos três prelados
espanhóis e um cubano, “por servirem de capelães de grupos
armados”.29 Nem o chefe contra-revolucionário, Manuel
Artime, chegou a negar que os jesuítas tenham facilitado sua
entrada na Embaixada estadunidense, disfarçado de jesuíta. E
que estes padres, com agentes da CIA, levaram-no clandestinamente para os Estados Unidos, em dezembro de 1959.30
Naturalmente, Monsenhor Román é um dos poucos que
ignoram o quanto a contra-revolução foi golpeada durante a
década de setenta, com a partida de tantos religiosos: “a
resistência começou a perder um de seus pontos de apoio mais
significativos”.31
Em março de 1966, um dos últimos “apoios” foi dado pelo
franciscano Miguel Ángel Loredo. Ocultou em seu convento
um contra-revolucionário que, não tendo conseguido
seqüestrar um avião, assassinara o piloto e mais um membro
da tripulação.
E como Monsenhor Ramón não sabia de nada disso,
decidimos não lhe perguntar sobre a Operação Peter Pan.
Mas depois, por um folheto que nos deu, soubemos que sim,
sabia dela. Para Monsenhor Román e outras autoridades
eclesiásticas do exílio, Peter Pan foi “um exemplo notável
dos frutos obtidos graças à vontade e à organização da
sociedade civil dentro da Ilha, e à solidariedade humana e
29
El Nuevo Herald, Miami, 21/12/1997.
30
Haynes Johnson: “Testimonio de Manuel Artime Buesa”, en La Baie des Cochons.
L’invasion manquée de Cuba. Ed. Robert Laffont, Paris, 1965.
31
Enrique Encinosa. Obra citada.
35
eclesial fora”.32 Mas foi mais claro algumas linhas depois,
reconhecendo que “foi realizada por meio de uma rede de
pessoas na Ilha, da Igreja católica e do governo norteamericano (...)”
A Operação Peter Pan, na versão correta, foi uma das
ações de guerra ideológica e psicológica mais suja que o
governo estadunidense realizou contra a Revolução cubana.
E onde a participação das diferentes igrejas, em particular
a católica, foi fundamental. A história é simples. Em janeiro
de 1961 começou uma gigantesca propaganda onde se
assegurava que o “comunismo” arrebataria os filhos dos pais,
assumindo o pátrio poder, para enviá-los aos paises
socialistas e doutriná-los. Foram então dados amplos
poderes a Monsenhor Bryan Walsh para que concedesse
visto a qualquer criança cubana entre seis e dezesseis anos.
Aterrorizados, os pais aceitaram a dura separação.
O Catholic Welfare Bureau destacou-se nesse trabalho
sujo. Não só recebia as crianças em Miami, como montou
uma rede clandestina de ajuda interna, para facilitar a saída
do país de milhares delas. O principal integrante da rede era
o movimento terrorista Resgate Revolucionário, dirigido de
Miami pelo ex-senador aliado de Batista, Antonio Tony
Varona, membro da CIA e sócio do poderoso mafioso Santos
Trafficante.33 A aristocrática família do ex-presidente cubano,
Ramón Grau, encarregou-se da maior parte dessas saídas,
apoiando-se nas embaixadas da Gran Bretanha e da Espanha,
32
“Creced. documento final”, en Conclusiones del Encuentro Internacional de las
Comunidades de Reflexión Eclesial Cubana em la Diáspora, Ed Creced, Miami, 1993.
33
A relação entre Varona e Trafficante ficou evidente no Relatório de Comissão Especial
do Senado estadunidense sobre conspirações para assassinar dirigentes de outros países,
Washington, novembro de 1975.
36
principalmente. Aos Grau se uniram “dezenas de sacerdotes
católicos e ministros protestantes...”34 A rede incluía as linhas
aéreas Pan Am, estadunidense e KLM, holandesa.
Vistos às centenas foram enviados a Cuba. Mas quando
não bastaram, devido à demanda crescente, “o movimento
decidiu falsificar seus próprios vistos dentro da Ilha”.35 Entre
janeiro de 1961 e outubro de 1962 foram autorizados quatorze
mil, cento e cinqüenta e seis vistos. Crianças e adolescentes,
ao chegar a Miami, eram internados em centros especiais, como
parte de um programa chamado “Crianças desacompanhadas”,
da Diocese de Miami. Esta operação recebeu uma publicidade
internacional de impacto quando, num ato planejado, a
primeira dama Jacqueline Kennedy visitou os acampamentos.
36
Em meados de 1961, a Operação Peter Pan se enquadrou
na Operação Mongoose, dirigida pela Agência de Informação
dos Estados Unidos. O último acampamento foi fechado em
1981. No livro Contra vento e maré,37 escrito por alguns dos
jovens que viveram a experiência, diz-se: “A partida das crianças
foi utilizada principalmente como campanha de propaganda.
O que sairia dos acampamentos seria uma geração ferida”.
Gostaríamos de ter perguntado muitas coisas a Monsenhor Román. Mas para que, se davam mostras de não saber
do essencial, chegando ao cúmulo de negar que boa parte do
exílio caracterizou-se por ser violenta e intransigente, porque
os assassinatos e atos terroristas não ocorreram apenas durante
a Guerra pelos caminhos do mundo.
34
Mignon Medrano: Todo lo dieron por Cuba. Ed. El Fondo de Estudios Cubanos da
Fundación Nacional Cubano-Americana, Miami, 1995.
35
Enrique Encinosa. Obra citada.
36
Relatório da Comissão Especial do Senado estadunidense... Obra citada.
37
Grupo Areíto: Contra viento y marea. Ed. Casa de las Américas, La Habana, 1978.
37
Ficamos arrependidos de não ter perguntado a Monsenhor
Román porque deu apoio e organizou preces em favor da
liberdade do terrorista Orlando Bosch. E porque faz parte da
direção de Of Human Rights, entidade criada pela já
desaparecida organização terrorista Abdala.
O que Monsenhor Román deixou transparecer é que
compartilha do ambiente pessimista que existe entre muitos,
com relação ao resultado que possa vir a ter a visita do Papa
João Paulo II a Cuba, porque poucos ainda imaginam que o
Pontífice tenha entre suas metas ajudar a desestabilizar o
regime. Sabem que passaram por Cuba outros altos dignatários
religiosos, como o Grão Rabino de Israel, sem que isso tivesse
repercussões no sistema político, embora seja certo que não
há outro guia espiritual com a projeção e a influência mundial
do Papa. Há pesquisas, sem paixão política, que demonstram
que a liberdade de culto sempre existiu em Cuba. De outra
forma não se pode explicar a existência de cinqüenta e quatro
religiões registradas oficialmente, inclusive algumas que, na
Europa e nos Estados Unidos, são consideradas seitas. Não é
segredo que o já falecido sacerdote Guillermo Sardiñas, embora
tivesse patente de Comandante da Revolução, nunca deixou
de oficiar missas, vestindo a batina verde oliva. Ou seja, há
uma crença espiritual que parece não ter sido incompatível
com a Revolução socialista.
Embora tendo telefonado várias vezes, não conseguimos
encontrar Monsenhor Román. Queríamos lhe perguntar o que
pensava sobre o fato de ser um dos quatro religiosos, no mundo,
proibidos pelo governo cubano de entrar na Ilha, durante a
visita do Papa.38
38
O visto de entrada em Cuba foi negado a Monsenhor Agustín Román e a outro
sacerdote da Ermida de la Caridad, Francisco Santana, devido a suas estreitas relações
com a extrema direita do exílio cubano. O prelado Miguel Loredo e o cardeal da
38
– Monsenhor Román, ao ler vários livros escritos por pessoas
que se dizem anti-castristas, é fácil concluir que boa parte dos
sacerdotes católicos participaram e/ou apoiaram ações contrarevolucionárias durante a década de sessenta. E que os templos
serviram para esconder armas e explosivos, com os quais foram
realizados atentados terroristas.
– Filhos, isso não é certo. Não sei de onde os autores terão
tirado essa informação, mas não é certo. Mostrar o caminho
do Reino de Deus é suficiente para um sacerdote. E, no meu
caso particular, nunca tive comunicação política com ninguém.
– Mas diz-se que, quando foram expulsos cerca de cento e
trinta sacerdotes, e o senhor estava entre eles, a contra-revolução
perdeu um de seus maiores apoios.
– Repito-lhes que isso não é certo. Embora, desde antes do
triunfo, víssemos que a Revolução tinha uma ideologia
marxista, contrária aos princípios da Igreja, tínhamos tanto
trabalho pastoral que não havia tempo para estar apoiando
quem não estava com a Revolução.
E, no que me diz respeito, ainda não sei porque me
expulsaram. Creio que o governo queria que permanecessem
Nicarágua, Miguel Obando y Bravo foram os outros dois padres que não puderam
pisar território cubano. Loredo, por ter sido cúmplice de um assassino; o cardeal por
suas posições ultra-reacionárias, além do apoio que deu à força mercenária da Contra.
Como dado adicional sobre a viagem do Papa a Cuba, achamos importante destacar
algumas linhas de um artigo publicado por Giulio Girardi no jornal El País, da Espanha,
de 16.02.98. Girardi, que, com outros três teólogos conversou longamente com Fidel
Castro sobre o que fora essa visita pastoral, escreveu: (Fidel) “estava convencido de
que a maioria da população fora envolvida nas manifestações pelas organizações de
massas e por suas próprias intervenções na televisão”. “Pareceu-nos (aos teólogos
que o Papa não fora informado desse esforço de persuasão e de organização realizado
pela revolução, pois freqüentemente dirigiu-se aos que estiveram presentes nas diferentes
praças como se todos fossem católicos, quando, na realidade, a maioria não o era.
Também é provável que a Igreja local tenha tentado atribuir-se, aos olhos do Papa, o
principal mérito dessa mobilização popular (...)”
39
apenas uns poucos sacerdotes, sobretudo aqueles que estavam
envolvidos com o ideal da Revolução. A Revolução quis fazer
uma Igreja nacional, e para isso procuraram um bispo, mas
nenhum se dispôs. Então, com uns poucos sacerdotes e um
grupo de jovens leigos, criaram o que se chamou “Com a Cruz
e com a Pátria”. Mas, que eu saiba, nenhum dos expulsos se
prestou a ajudar os que puseram bombas. Isso foi uma
invenção.
– Monsenhor Román, apesar de ter sido expulso para a
Espanha, porque decidiu vir para Miami?
– Minha decisão de vir para esta cidade teve a finalidade
de ajudar os exilados, enquanto esperava a queda do governo
cubano. Mas ainda estamos aqui.
– Comenta-se muito, nos Estados Unidos, como em muitos
outros países, a intransigência e a violência deste exílio. Um exílio
que, além do mais, está muito dividido. Como guia espiritual,
qual é sua opinião?
– Filhos, todo o exílio se une na busca da liberdade. Agora,
creio que a intransigência do exílio é conseqüência do
marxismo. Em Cuba as pessoas têm que pedir permissão para
tudo, até para dançar. E quando chegam aqui, num país livre,
percebem que podem falar como querem. Então se aliviam e
discutem aos gritos. Só isso. Creio que existe uma imagem
ruim do exílio, porque os europeus e os americanos não se dão
conta que esse ardor é parte do sol do Caribe.
– Mas afinal, Monsenhor, a intransigência se deve à influência
do marxismo ou ao ardor do sol do Caribe?
– A ambos. Filhos, é uma mistura. Aqui se discute por
qualquer coisa, como se o mundo fosse acabar. Mas isso faz
parte da cultura do Caribe, do latino. Agora, o fato de existir
essa quantidade de grupos, creio que é parte da democracia. A
democracia é a liberdade de pensar. Porque cada um pode
40
decidir como tornar Cuba livre. Mas aqui não há divisões, há
diferentes formas de pensar, às vezes muito nervosas, insisto,
do jeito caribenho.
– Desculpe se repetimos a pergunta de uma forma mais direta:
foi devido ao sol caribenho que o insultaram e tentaram agredilo fisicamente na rua, ameaçando-o de morte pelo telefone? E
que a polícia protegeu essa Ermida devido às ameaças de bombas,
tudo porque o senhor realizou uma campanha para enviar
alimentos e remédios a Cuba, em 1996, quando passou o furacão
Lili?
– Não me parece que isso seja tão grave. Não, não. Foram
simples ameaças, e um ou outro grito... Vocês sabem que nunca
falta um louco neste mundo. Creio que é a forma como alguns
grupos se expressam. São simples gritarias, que assustam os
europeus. Filhos, somos latinos, sempre exageramos. Se me
ameaçaram, foi algo emotivo. Nada mais.
– Mas, Monsenhor, não pode nos dizer que são simples exageros,
pois aqui assassinaram muitas pessoas, a tiros ou com bombas.
Até os escritórios do FBI foram atacados por terem realizado
investigações contra líderes do exílio.
– Puseram algumas bombas, mas nem tantas. Foram muito
poucos os assassinatos políticos, ou por intransigência... Seja
como for, deveriam buscar outra fonte de informação porque
eu sei muito pouco sobre isso. Mas olhem, quando esses delitos
foram cometidos, as pessoas protestaram. Mas eu não sei de
nenhum grupo que tenha atentado contra alguém. Não creio
que neste exílio exista um grupo com coração para fazer mal a
outro.
– Monsenhor Ramón, em alguns setores, tanto nos Estados
Unidos quanto na Europa, pensa-se que a visita do Papa a Cuba
acarretará efeitos desestabilizadores. Chegou-se a dizer que o
Papa desempenhou um importante papel nas mudanças em
41
direção ao capitalismo que ocorreram na Polônia, e que,
portanto, o mesmo poderia suceder em Cuba. Qual é a sua
opinião?
– Filhos, o Santo Padre vai a Cuba porque o povo o espera
há vários anos. Mas não creio que o Papa vá questionar o
sistema cubano. E se o fizer será para reafirmar o que já disseram
e fizeram os grupos de direitos humanos. Mas Cuba não é a
Polônia. Na América Latina as raízes da evangelização só têm
quinhentos anos; na Polônia, tinham um milênio. A
evangelização na Polônia já estava na idade adulta. Por isso a
mensagem do Papa na Polônia foi preciosa, como uma aula de
história, em que lhes recordou muitas coisas.
– Mas é mais fácil convencer uma criança que um adulto.
– Não creiam. Além disso, o povo cubano recebeu mais
ideologia marxista que o polonês. Segundo o que entendi do
comunismo, pois não sou especialista nisso, na Polônia o
marxismo foi imposto às pessoas. Parece que em Cuba, a
Revolução foi mais inteligente e comprometeu o povo. Agora,
lamentavelmente, a visita do Santo Padre a Cuba não terá o
mesmo efeito, impacto para ajudar a desestabilizar o governo.
Veremos isso nos próximos anos.
O discurso do Santo Padre não será novidade para os
cubanos, porque este povo já ouviu muitas mensagens da Igreja,
pelas rádios no exílio, e que sem dúvida fizeram-nos pensar. A
mensagem do Papa, como sempre, será de amor, reconciliação,
esperança e caridade. Ao povo cubano já foram chegando outras
mensagens, para ajudá-lo a abrir os olhos. E isso até a imprensa
européia tem feito, quando passa por Cuba: esses jornalistas
falam com as pessoas para que não continuem deixando-se
enganar por esse sistema marxista.
– Mudemos de assunto, Monsenhor Román. Parece-nos que a
Igreja católica apóia os movimentos dissidentes em Cuba.
42
– A Igreja considera que esses grupos merecem respeito,
sobretudo os que se preocupam com os direitos humanos.
Porque esse é um tema muito importante para a Igreja. Mas a
Igreja como tal não apóia nenhum.
– Mas até onde sabemos, o senhor e outros religiosos fazem
transmissões para Cuba, seja pela Rádio Marti ou por La Voz del
CID, apoiando os grupos que se proclamam cristãos.
– São coisas mínimas. Nossa tarefa fundamental é levar a
todos a mensagem do Reino de Deus.
– Monsenhor Román, conte-nos, qual é a situação atual da
Igreja católica em Cuba?
– A Igreja passou por certos processos. Primeiro sofreu
perseguição, época em que perdeu colégios, hospitais, asilos,
todas as instituições, permanecendo com os templos e o culto,
pois tudo o mais passou para as mãos do Estado. E isso
provocou um terror tremendo, pois a ilusão da Revolução era
fazer o homem novo, o marxista, o homem científico, como
dizem eles, fazendo esquecer o espiritual. Por muitos anos a
Igreja ficou sem forças. Mas desde finais dos oitenta, teve um
novo despertar, deu pequenos passos, e creio que agora tem
muitos fiéis. E isso se deve a que há anos não sofre repressão.
Mas a Igreja tem apenas os templos, embora possa publicar
folhetos para distribuir.
– Finalmente, Monsenhor Román, como o senhor vê o futuro
de Cuba?
– Pode ser... Filhos, em pesquisas que temos realizado entre
os crentes e em reflexões teológico-pastorais, ficaram patentes
as analogias entre o exílio cubano e o Êxodo e a Diáspora,
narrados na Bíblia. Isso nos reafirmou a crença que têm muitos
cubanos, de que o que ocorreu em Cuba não foi por casualidade,
mas que por trás de tudo isso existe um plano divino, segundo
o qual Deus espera algo especial do povo cubano.
43
Mas, filhos, não é tão fácil. Talvez, há alguns anos, eu visse
o futuro mais fácil. Só acredito que o sistema deve cair, de um
momento para o outro, ou lentamente, mas reconstruir uma
sociedade depois que passou pelo marxismo, não é fácil.
– Mas até neste exílio de Miami, poucos se atrevem a negar
que o atual sistema político cubano deu coisas muito positivas
para o povo.
– Mas, por exemplo, o valor da família se perdeu. Prova
disso é a quantidade de casais que se divorciam. Filhos, em
Cuba casam-se, divorciam-se, voltam a se casar. Tudo muito
facilmente. Ou nem se casam, são simples uniões. E isso não
pode ser assim. Mas não são culpados: é o marxismo.
– Monsenhor Ramón, nos Estados Unidos e na Europa ocorre
a mesma coisa.
– Sim, mas não com tanta facilidade. Embora não por isso
a Igreja o aceite.
Outra coisa que se perdeu no povo cubano, devido ao
marxismo, foi a criatividade. Deus pôs no homem uma
grande criatividade que, com o marxismo, não pode se
desenvolver. E isso se vê nos cubanos que chegam aqui.
Durante um certo tempo, é difícil para eles acostumarem-se
com este país: acham que o governo tem que continuar a
dar-lhes tudo. São pessoas dependentes. Têm o complexo
estatal. E para que ocorra uma mudança em Cuba, deve-se
começar a tirar essa mentalidade de dependência, porque o
Estado não deve continuar dando-lhes desde trabalho, até
comida, educação e saúde.
Filhos, quando eu era garoto, queria estudar. Mas, claro,
era muito difícil, porque devia ir do campo a um povoado,
onde pegava o ônibus para chegar a Havana. Eu fazia sacrifícios
porque, além do mais, tinha que voltar e trabalhar em minha
casa. Não me davam nada de graça.
44
Mas em Cuba, não: a Revolução põe tudo nas suas mãos.
A pobre criança não percebe que é preciso merecê-lo. E esses
técnicos, cientistas e esportistas que Cuba tem, ganharam tudo
muito fácil. Assim ficam dependentes desse sistema.
45
II
“Nós agimos dentro da Lei americana. Nos acampamentos, o máximo que temos são
armas semi-automáticas. De boa pontaria, é claro.”
Andrés Nazario Sargén
Secretário geral do grupo paramilitar Alpha 66
Eram onze da manhã quando chegamos à sede da Alpha
66, situada no setor conhecido como Pequena Havana. O
amigo cubano que nos transportara se desculpou por deixarnos a três quadras dali. Apesar de estar contra Fidel Castro,
não teve problemas em reconhecer o temor que lhe infundem
todas as organizações contra-revolucionárias, que considera uns
bandos de loucos. Três meses antes, haviam jogado um coquetel
Molotov numa casa da vizinhança, pelo único motivo aparente
de que seu proprietário enviara uma carta a um jornal,
criticando alguns líderes do exílio. Então, não queria que, se
nos deixasse em frente à Alpha 66, anotassem a placa de seu
carro e, se não gostassem da entrevista que publicássemos,
fossem buscá-lo para cobrar. Pareceu-nos um exagero, mas
respeitamos sua decisão.
Na porta havia dois homens conversando. Perguntamos
pelo senhor Nazario Sargén. Muito amavelmente nos disseram
que estava nos esperando. O lugar é muito modesto. A maior
47
parte das paredes da sala estava forrada com fotos lembrando
reuniões, treinamentos militares e militantes, “caídos em
combate”, ou presos em Cuba. Quem atuava como recepcionista anotou em um caderno nossos nomes e a hora da chegada.
Poucos minutos depois apareceu um homem pequeno, de
óculos e aspecto inofensivo que, sorrindo, se apresentou como
Andrés Nazario Sargén. Sem mais preâmbulos, levou-nos até
um pequeno cômodo cheio de papéis, onde nos serviu uma
xícara de café perfumado. Em nenhum momento deixou de
falar, a tal ponto que tivemos que lhe pedir que esperasse,
enquanto púnhamos o gravador para funcionar: depois de nos
cumprimentar, já tentava nos convencer das “vitórias” de seu
grupo na “guerra” contra o governo de Fidel Castro. Com seus
setenta e cinco anos, sentado diante de nós, parecia um avô,
incapaz de fazer mal a alguém. Sorrindo constantemente, era
difícil pensar que se tratava de um chefe do grupo paramilitar
mais popular de Miami.
Nazario Sargén, na época do triunfo da Revolução e depois
de participar da II Frente do Escambray, decidiu fugir para os
Estados Unidos. Pouco depois fez parte do núcleo fundador
da Alpha 66. Nazario não perde oportunidade para lembrar
que seu grupo nunca teve a ver com a CIA, e chega até a negar
documentos da própria Agência que o afirmam. Ex-militantes
do grupo garantem que Nazario e outros dirigentes da Alpha
recebiam dinheiro da Agência para que se dedicassem
exclusivamente a preparar ataques terroristas contra Cuba.39
Os princípios neofacistas da Alpha 66 levaram sua
militância a enfrentar os grupos que se opunham à guerra no
Vietnam. Em cidades como Los Angeles, Nova Iorque e
39
Roberto Orihuela: “Testimonio de Enoel Salas”, en Nunca fui un traidor. Retrato de un
farsante, Ed. C. San Luis, La Habana, 1991.
48
Washington, agrediram violentamente os manifestantes, que
classificavam de parte do “Movimento comunista internacional”. Afirmavam que, no Vietnam, lutavam “americanos e
também cubanos, por algo tão sagrado como a liberdade”. 40
“Nazis e cubanos atacam os pacifistas”, foi um título do Los
Angeles Times na época.
No início da década de setenta, a fascista Liga Mundial
Anticomunista (WACL) aceitou em seu seio a Alpha 66, e,
em um ataque de delírio, durante o VI Congresso, realizado
no México, em 1972, houve consenso em “pedir à OEA que
o posto vago de Cuba comunista fosse ocupado pela Alpha
66”41. Nazario não pôde comparecer a esse Congresso, nem
tão pouco ao regional no Brasil, em 1974, porque não obteve
visto de saída. De fato, pois existia “uma ordem de
Washington no sentido de que POR RAZÕES DE
SEGURANÇA NACIONAL (maiúsculas no original), o
governo dos Estados Unidos proibia que o visto fosse dado”.42
Mas, depois, pôde comparecer a outros eventos desta
organização.
A investigação realizada em 1975 por uma Comissão
Especial do Senado estadunidense chegou à conclusão que um
dos grupos do exílio que tinha “motivos, capacidade e recursos”
para assassinar o presidente Kennedy era a Alpha 66. Apesar
disso – e para citar apenas um exemplo – a Miami City
Commission concedeu-lhe uma subvenção de cem mil dólares
em 1982. Durante a mesma investigação veio à luz que o grupo
havia participado, junto com a CIA, de pelo menos dois
atentados contra a vida de Fidel Castro.
40
Miguel Talleda: Alpha 66 y su histórica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995.
41
Idem.
42
Idem.
49
Jornalistas como Manuel Abadia, do Excelsior do México,
e o estadunidense Jack Anderson, classificaram a Alpha como
instrumento da CIA. Abadia foi assassinado em 1984, quando
denunciava os “desalmados capangas assassinos” da Alpha e
suas relações com a extrema direita mexicana. No final dos
anos 80, correu em Miami que a Alpha 66 tinha pensado em
atentar contra a vida de Jorge Mas Canosa, devido à liderança
e controle que o chefe da Fundação Nacional Cubano
Americana (FNCA) quis impor aos demais grupos contrarevolucionários. Mas o impasse foi rapidamente solucionado.
Embora Nazario tenha continuado criticando os sócios da
Fundação, as relações são de colaboração.
Brilham os olhos de Nazario que se orgulha da “ação
constante” que mantém contra o regime de Fidel Castro.
Operatividade que se traduz em metralhar, muito esporadicamente, de lanchas velozes, indefesas embarcações
pesqueiras. Depois este procedimento criminoso é apresentado
como grande façanha militar, conseguindo incentivar o
sentimento bélico que os dirigentes do exílio inculcaram,
principalmente em seus compatriotas de Miami. Sabem que
os ingênuos trabalhadores lhes enviarão sua contribuição
financeira, o que lhes permitirá continuar vivendo comodamente e sem esforço.
Aproveitando as facilidades proporcionadas por todas as
Administrações estadunidenses desde os primeiros dias da
Revolução, Alpha 66 e outros grupos paramilitares organizaram
campos de treinamento em várias regiões do país, especialmente
na Flórida. Neles se deu preparação militar a grupos fascistas
mexicanos, vietnamitas, sulcoreanos y contras nicaragüenses.
Nos arrabaldes de Miami armaram os campos mais visitados
pela imprensa na última década. Nazario se ofereceu para levarnos a um deles.
50
No domingo seguinte, conduziu-nos até um lugar situado
a uns quarenta e cinco minutos de Miami. Ao descermos, a
primeira coisa que fizemos foi sacudir-nos, pois parte do
percurso foi feito por um caminho não pavimentado, e a
poeira entrava no modesto carro de Nazario por todos os
lados. Na entrada do acampamento havia três homens
armados, passeando sob os mastros das bandeiras
estadunidense e cubana. Dentro, quase vinte indivíduos
entraram em formação e Nazario passou-os em revista. Em
seguida, dirigidos por um ex-instrutor das Forças Especiais
estadunidenses, exercitaram-se durante uns trinta minutos.
À primeira vista não parecia que dali pudesse sair nem um
comando, capaz de atemorizar as forças da Segurança cubana.
A maioria passava dos quarenta anos, e não poucos tinham
dificuldade para correr cem metros, estender-se no chão,
disparar, levantar-se e tornar a correr com a mínima destreza
necessária a um assalto.
Não há dúvida que o matraquear das armas semiautomáticas martelaram duramente nossos ouvidos. Mas tudo
nos pareceu mais um bom pretexto para encontrar os amigos
no final da semana. E, ao mesmo tempo, nos impressionar.
Quando terminou a demonstração, ofereceram-nos um
gigantesco e delicioso sanduíche. Enquanto o consumíamos,
não perdíamos de vista um garoto de no máximo dez anos,
cujo pai ensinava-o a disparar uma pistola. Seu irmão, um
pouco maior, melhorava a pontaria utilizando um fuzil. Ambos
usavam uniforme de camuflagem.
Entre a ida e a volta a esse lugar, completamos a entrevista
com Andrés Nazario Sargén.
– Comecemos com uma pergunta elementar. Como nasceu a
Alpha 66?
51
– Quando eu e um grupo de doze oficiais percebemos a
entrega de Castro à URSS, decidimos sair clandestinamente
para os Estados Unidos. Aqui fomos internados em uma
instalação militar, pois não confiavam em nós. Uns meses
depois veio o desastre da Baía dos Porcos, e naquele momento
nos deixaram livres.
– Desculpe se o interrompemos, mas qual era o ânimo dos
exilados diante da derrota da Baía dos Porcos?
– As pessoas não acreditavam mais em nada, todos estavam
em estado depressivo. Os cubanos, em sua maioria aliados de
Batista, diziam que, se com todos os recursos com que
contavam os americanos, não se lograra derrotar Castro, os
liquidados éramos nós.
Então decidimos organizar um movimento novo. Daí o
nome de Alpha, que quer dizer princípio. O número 66 se
refere às pessoas que fizeram parte inicialmente, em Porto Rico,
no final de 1961. Dedicamo-nos a organizar, não uma invasão,
que já provara ser ineficaz, mas algo com uma estratégia e um
pensamento novos, com um modo de luta para não sermos
derrotados nunca. E podemos dizer que em todos estes anos
perdemos batalhas, mas não fomos derrotados.
– Não foram derrotados, mas Fidel Castro, que é o pesadelo
de vocês, continua aí. Mas, o que propunham naquele
momento?
– Ouçam, Castro não se foi, mas nós tampouco
desaparecemos.
Naquele momento propusemos uma guerra irregular,
cubana, sem pedir licença aos americanos, com recursos
financeiros e humanos próprios. Também estávamos certos
que em Cuba devia criar-se uma organização para derrotar
Castro a partir de dentro. E não nós, mas o povo de Cuba.
Nós éramos fatores, apoio. Mas para isso devíamos desencadear
52
ações militares que criassem uma mística, uma lenda, pois sem
ela os povos não se levantam.
– Senhor Nazario, já se aproximam os quarenta anos da
Revolução e o povo não se levanta. Não é uma derrota?
– Não. Sabemos que o povo cubano acredita na Alpha.
Que continua fazendo pequenas sabotagens, seguindo nossas
palavras de ordens, preparando o terreno para o levantamento.
– Supomos que durante esses anos o governo estadunidense
lhes ofereceu todo tipo de apoio.
– Sim, mas não nos termos que vocês imaginam.
Começamos com ações tipo comando. Nos dois primeiros anos
realizamos quatorze ataques. O governo norte-americano
começou a intervir em nosso trabalho, seguramente porque
nos viram muito independentes. Começaram a prender nossa
gente, mas sem condená-los nem tirar-lhes as armas.
Desaparece Kennedy e a situação piora. Mas continuamos, e
vários de nós fomos para a cadeia. Além disso, conseguir os
recursos necessários não era nada fácil.
– Ou seja, não tinham boas relações com a CIA, que controlava
todas as ações contra-revolucionárias.
– Não tínhamos más relações com a CIA. Às vezes
chegavam averiguando coisas e até nos amedrontando. Em
todos estes anos nos fizeram várias ofertas. Propuseram-nos
trabalhar em conjunto, mas lhes dissemos que não queremos
vínculos com nenhum governo. Mas lhes pedimos que não
nos persigam, não tirem nossas armas, nem embarcações, nem
as instalações de rádio. Sempre lhes propusemos que, se de
fato têm vontade de ajudar-nos, larguem umas armas por aí
que iremos buscá-las. Disseram-nos que não havia problema
quanto a isso, mas qual era o salário que queríamos. Sabiam
que com esse salário nos impunham um compromisso. E
quanto a isso não havia discussão.
53
– Sabe-se que o governo cubano protestava contra as ações
realizadas pelos exilados a partir do território estadunidense. Isso
repercutia para vocês?
– Quando Fidel protesta vêm o FBI, a CIA e até o Serviço
de Alfândega para revistar tudo. Dizem-nos que é proibido
utilizar o território americano para agredir um Estado com o
qual não estão em guerra. E, ouçam, eles podem não estar em
guerra contra Castro, mas nós estamos.
– Segundo sabemos, vocês têm transmissões de rádio para Cuba.
Continuam sendo incomodados por isso?
– Não, isso foi acertado. Vieram aqui e nos disseram que,
se tornássemos a ir ao ar clandestinamente, nos punham na
cadeia. Então, agora, temos que pagar vários milhares de dólares
para que nos deixem transmitir para Cuba. Acreditam? Agora
é uma emissora comercial.
– Além disso, vocês treinam perto de Miami com armas de
verdade, balas de verdade, uniformes de campanha. Ou seja,
contam com a cumplicidade de Washington.
– Mas isso é legal! Agimos dentro da Lei americana. Nos
acampamentos o máximo que temos são armas semiautomáticas. De boa pontaria, é claro.
– Além de operações comando, realizaram outro tipo de ação
militar, por exemplo, atentar contra Fidel Castro?
– Fizemos várias tentativas para matá-lo, até mesmo dentro
de Cuba. Eu mesmo participei de um atentado contra Castro
em Nova Iorque, mas o FBI nos descobriu.
– Senhor Nazario, o chefe do FBI encarregado da segurança de
Fidel Castro naquela ocasião disse a uma comissão do Congresso
que o atentado fora organizado pela CIA.
– Isso não é verdade. Fomos nós: todos cubanos.
Mas aonde se chegou mais perto foi no Chile, em 1972.
Montamos uma pistola em uma máquina fotográfica e
54
registramos um homem nosso como jornalista; mas, chegado
o momento, não atirou, preferiu ir embora. O que acontece é
que matar Castro é morrer: é preciso ter muita coragem.
– Mas segundo documentos da CIA que foram tornados
públicos, também foi ela que organizou esse atentado.
– Repito-lhes: não é certo. Foi gente da Alpha. Mas é
possível que a CIA tenha querido roubar a autoria.
– Vocês fizeram parte da Liga Mundial Anticomunista,
onde...
– Sim, é verdade. Participamos da Liga Mundial Anticomunista, mas sempre me pareceram muito reacionários; além
disso, falavam muito e davam pouco apoio real. Por isso
rompemos com eles. Estivemos lá por que podiam fazer
denúncias. Vocês sabiam que participavam da Liga até altos
dignatários da Igreja católica e políticos reconhecidos
mundialmente?
– Sim, sabemos, embora não com a sua precisão. Mas vamos a
outro assunto. Senhor Nazario, o que deve fazer Fidel Castro
para iniciar as mudanças que vocês querem?
– Em primeiro lugar e, sobretudo, deve organizar um
governo provisório e ir embora de Cuba. Não há outra solução.
Ele e sua camarilha, que são uns oitenta ou cem, têm que
desaparecer da Ilha... Nós temos apenas uma meta: acabar com
Castro. Se for preciso matá-lo, não importa. Mas tem que
desaparecer. E não pensem que sou um criminoso.
– E, atualmente, realizam ações militares contra o regime
cubano?
– Nós entramos em Cuba, embora sempre tenham nos
flagrado, razão pela qual temos muitos presos e mártires. Mas
conseguimos criar um movimento espontâneo no interior,
porque noventa e cinco da população está contra Castro.
Sabemos que se criaram muitas células clandestinas de Alpha
55
66, constituídas por uma única pessoa, pois quando há mais
de três são rapidamente destruídas. O problema é que o sistema
de repressão de Castro é eficaz...
– Ousamos pensar que se os localizam com tanta facilidade, é
porque existe uma colaboração estreita entre a população e os
serviços de segurança...
– Sim, também pode ser. Mas nós, na base de sabotagens,
tentamos destruir a economia, não para fazer o povo passar
fome, mas para acabar com a base econômica que sustenta
Fidel. E, isso, estamos conseguindo. Hoje, Fidel não pode nem
manter seu esquema militar, não pode enfrentar ninguém,
porque não tem peças de reposição para o armamento.
– E se sabem que está assim, se a defesa cubana está tão
limitada, porque vocês não intensificam suas ações, ou a Casa
Branca não ordena uma invasão?
– Já lhes disse que os americanos nos mantêm sob vigilância.
E os americanos não invadem porque, depois de Praia Girón,
procuram soluções políticas.
– Se Fidel Castro se vai, morre ou o derrubam, o que
acontecerá?
– Tudo depende de quem tomar o poder. Porque se for um
grupo que está manchado de sangue, a guerra vai continuar.
Mas, se não for assim, esperamos que proponham encaminhamentos para um governo de transição que convoque eleições.
– Temos três últimas perguntas muito precisas. Os inimigos de
Fidel Castro continuam afirmando que foi ele que fez desaparecer,
por ciúmes do poder, o Comandante Camilo Cienfuegos. O senhor,
que esteve próximo a Cienfuegos, e que considera Fidel Castro seu
maior inimigo, que opina?
– Vou ser sincero com vocês. Castro é meu inimigo, mas
estou certo que nada tem a ver com a morte do Comandante
Camilo Cienfuegos. Camilo, que eu admirava enormemente,
56
desapareceu no mar. Ajudei a procurar o aviãozinho durante
vários dias. E nada. Que aconteceu? Naquele dia o tempo não
estava bom. E quase todos os pilotos com que a Revolução
contava eram aprendizes. Para mim, o mau tempo e a
inexperiência do piloto foram os responsáveis.
– A penúltima. Supomos que o senhor conhece as declarações
da filha do Che, Aleida, em agosto de 1996. Disse que o escritor
francês, Regis Debray, falou demais quando foi capturado na
Bolívia, e que, por isso, seu pai foi localizado...
– É o único ponto em que eu poderia concordar com a filha
do Che. Jamais concordei com o Che, por ser igual a Castro,
mas nem por isso posso desconhecer que Debray foi um
personagem sinistro e perigoso. Sabe-se que delatou por medo,
sem ser realmente torturado. E delatou porque não acreditava
nessa Revolução; porque embora se dissesse comunista, era um
simples aventureiro, um oportunista. Não conheci Debray
pessoalmente, mas soube que tinha um ego imenso, e achava
que tinha poder suficiente para resolver nossos problemas...
Repito: nunca concordei com o Che, mas os delatores como
Debray não valem nada, são os piores seres humanos...
– E a última pergunta. Senhor Nazario, gostaria que
esclarecesse uma dúvida. Se puder, é claro. É verdade que o governo
estadunidense pagava, ou paga, toda organização que diz lutar
contra o governo cubano?
– Olhem, repito: Alpha 66 nunca recebeu dinheiro dos
americanos. Mas aqui, nos anos sessenta, todos os demais eram
pagos. Os americanos davam dinheiro a qualquer organização
para que se mantivesse. Hoje já não é tanto, embora pareça
que na Europa andam ocorrendo algumas coisas. Mas até os
anos oitenta, quase todas comiam na mão dos americanos.
– O que está ocorrendo na Europa?
– Ah! Que pena, vocês disseram que não tinham mais tempo.
57
III
“E, para isso, os americanos e nós, o exílio,temos que buscar o apoio dos europeus,
porque são mais bem vistos em Cuba”.
José Basulto. Ex-membro da Brigada 2.506
Diretor de Irmãos para o Resgate, HAR
No dia seguinte ao de nossa chegada em Miami,
encontramos um vendedor ambulante de jornais. Não era
preciso pedir sua carteira de identidade para saber que era um
jovem cubano. Pareceu-nos estranho que em um país que se
vangloria de dar tudo que for necessário aos que chegam da
Ilha, o rapaz estivesse exercendo essa atividade, própria dos
setores mais pobres da sociedade estadunidense. Então, de
repente, ocorreu-nos fazer um concurso: qual de nós dois
encontrava mais cubanos vendendo flores, amendoim, cigarros,
pão, torresmos, doces, em qualquer rua. Antes de acabarem os
doze dias, desistimos, porque já perdêramos a conta. Não foi
preciso caminhar muito pela cidade: a popular Rua Oito –
South West, 8th Street – basta para saber que Miami deixou
de ser o paraíso prometido aos que saem de Cuba. Também
não vamos dizer que são milhares. Milhares e milhares são
aqueles que, por quatro dólares e cinqüenta por hora,
arrebentam as costas nas fábricas. Uma quantia que dá apenas
59
para sobreviver. Como disse o jornalista cubano-estadunidense
Luis Ortega, no jornal La Prensa, de Nova Iorque: “esse exílio,
cuja imagem era a de ricaços aliados de Batista, fugidos de
Castro, já não corresponde à realidade. Hoje a maioria é classe
operária que vive em casas humildes em Hialeah”.
Em Miami, a grande maioria dos imigrantes vive frustrada
porque Fidel Castro, que responsabilizam por todos os males,
continua no poder. Mas não querem voltar. Embora tenham
saudades da Ilha, estão mais preocupados com seu futuro em
um país que, cada dia mais, fecha-lhes as portas e lhes nega
oportunidades. A chamada Pequena Havana, no centro da
cidade, é o retrato da atualidade. Há dez anos era o lugar ideal
para se viver e divertir. Hoje, as lojas têm grades e sistemas de
segurança: a delinqüência cresceu enormemente, por causa das
dificuldades econômicas. É comum encontrar mendigos e
loucos. Para boa parte da classe média não restou outra
alternativa senão escolher lugares mais afastados para viver e
se divertir.
Em 1961, poucos minutos antes de deixar o aeroporto de
Havana, ouvia-se a voz do presidente Kennedy dando as boas
vindas aos que fugiam, ao mesmo tempo em que os animava
para que acolhessem com fé e entusiasmo essa oportunidade de
começar uma nova vida nesse país.43 Foram considerados
combatentes pela liberdade. Automaticamente adquiriam a
residência e sem maiores dificuldades, a nacionalidade. Durante
muitos anos tiveram prerrogativas de que nenhuma outra
nacionalidade do continente desfrutava. Era normal: o império
devia apoiar os que se ofereciam para ser inimigos de seu inimigo.
Desde que o governo revolucionário reivindicou sua
soberania, o estadunidense começou uma enorme campanha
43
Idem.
60
psicológica de difamação, desinformação e provocação. Um de
seus objetivos era incentivar a saída de cubanos, como forma de
demonstrar que o sistema é incompatível com sua população.
Para tanto utilizou os meios de comunicação, principalmente o
rádio. Um tal “Pepito Pérez” é entrevistado pelas tantas emissoras
dedicadas a tal tarefa; supostamente chegou há dois dias e já
está trabalhando em uma empresa com salário de vários milhares
de dólares mensais. Nos Estados Unidos, alardeiam os locutores,
com um “pequeno esforço”, pode-se conseguir facilmente ser
gerente de uma grande indústria ou montar a própria. Que pena,
diz uma voz feminina ao microfone, que as cubanas na Ilha não
possam desfrutar dos lindos vestidos que nós podemos usar nesta
temporada.
O resultado obtido foi que, em 1980, saíram pelo menos
duzentos mil cubanos pelo porto de Mariel. Quando os
“marielitos” chegaram aos Estados Unidos, ao Panamá ou ao
Peru, muitos foram retidos em verdadeiros campos de
concentração, o que ocasionou revoltas, apaziguadas a bala e
mortos. Argumentava-se que o governo cubano tinha
aproveitado o êxodo para livrar-se de uma boa quantidade de
delinqüentes, mas, “na realidade, em proporção ao número
total, o número de criminosos era minoritário”.44 Em Miami,
“centenas de marielitos morreram nos primeiros anos de exílio,
esfaqueados em brigas, mortos em disputas, baleados pela
polícia ou por outros criminosos. Centenas foram encarcerados
por uma série de atos que incluíam furtos, estupros, tráfico de
drogas e assaltos”.45 Os Estados Unidos lhes haviam oferecido
tanto, que ao chegar, não encontrando o Eldorado, mas apenas
esmolas, os “marielitos” tinham que explodir. Mas a explicação
44
Enrique Encinosa. Obra citada.
45
Idem.
61
dada foi um tanto simplista: “Existiam sérios problemas de
adaptação a uma nova sociedade, em um país estranho, choques
culturais, depois de ter vivido décadas sob a ditadura”.46 Seria
preciso perguntar se era devido à “ditadura” ou, como disse
Monsenhor Román, os cubanos da Ilha estão acostumados a
que o Estado ponha tudo em suas mãos.
Mas apesar de toda a problemática social criada por essa
fuga em massa, os apelos ideológicos e psicológicos não
cessaram. Ao contrário, aumentaram. Quando, em 1990, o
governo de Cuba declarou o Período Especial, de Miami se
bradava que, nos Estados Unidos, a água, a eletricidade, a carne,
o frango, o leite, a roupa estavam sobrando. O que não
transmitiam era que, para chegar a eles era necessário mais
que um “pequeno esforço”. Assim criaram a chamada crise
dos balseiros. Essas pobres pessoas que subiam em qualquer
coisa que flutuasse, com a intenção de chegar a desfrutar dos
privilégios oferecidos no paraíso estadunidense, que, na época
existiam apenas nas mentiras dos agitadores. Os primeiros
balseiros foram recebidos como heróis. Mas quando, em poucos
meses, já chegavam a quatrocentos, Washington mostrou sinais
de preocupação. E os cubanos de Miami começaram a se sentir
incomodados pelos balseiros, a tal ponto que, para desejar mal
a alguém já não se dizia “que um raio o parta”, e sim “tomara
que caia um balseiro em sua casa”.
Quem soube tirar uma bela azeitona da empadinha que o
desespero dos que fugiam significava, foi José Basulto. Ele
entrara em Cuba em 1960, como parte das unidades de
infiltração, encarregadas dos preparativos para a invasão pela
Baía dos Porcos. Seu número de identificação na Brigada era
o 2.522. Ou seja, fora o 22o cubano a ser recrutado para a
46
Idem.
62
CIA. Semanas antes e depois da frustrada operação, os
mercenários das unidades foram detectados e capturados.
Basulto conseguiu escapar, fugindo para a zona naval de
Guantánamo; mas continuou suas atividades contrarevolucionárias, realizando incursões pelas costas cubanas para
atacar objetivos civis. Ainda que o negue categoricamente,
parece que nunca se afastou totalmente da CIA. Sua
participação na Contra anti-sandinista, força mercenária
dirigida pelas altas instâncias do Pentágono, é prova disso.
Andrés Nazario, da Alpha 66, nos disse que Basulto era um
“mercenário voluntário, manejado pelos americanos”.
Quando começou a crise dos balseiros, Basulto se uniu a
outro veterano da CIA, Billy Schuss, especializado em infiltração
e ataques comando e, juntos, conceberam Irmãos para o Resgate.
Trata-se de uma organização composta por pessoas de várias
nacionalidades, todas unidas “por seu desejo de aventura e por
suas profundas convicções anticomunistas”47, aparentemente
criada para salvar os balseiros das águas perigosas do estreito da
Flórida. Efetivamente, resgatou vários deles, motivo pelo qual
recebeu, da grande imprensa internacional e de instituições de
direitos humanos, o título de “humanitária”. Mas, por trás de
sua ação havia propósitos que nada tinham de altruístas.
No final de 1994, o governo estadunidense, preocupado
com a dimensão que estava tomando aquilo que ajudara a
provocar, propôs a seu homólogo cubano a assinatura de um
acordo migratório. Assim, desde maio de 1995, está proibida
a entrada ilegal de cubanos nos Estados Unidos. No entanto,
a prática demonstrou que todo aquele que tivesse interesse
político ou publicitário contra o governo cubano continuaria
sendo bem vindo. Seja como for, a partir daquele momento
47
El País, Madrid, 1o de março de 1996.
63
quem não correspondesse a essas necessidades já não era
considerado “herói da liberdade que foge do comunismo”, mas
classificado como “simples haitiano”, entregue imediatamente
às autoridades cubanas, ou recluso provisoriamente na Base
Naval de Guantánamo, em condições sub-humanas. Isso
abalou a direção do exílio em Miami, que tomou os fatos como
prova de aproximação entre Clinton e Cuba, e o começo do
fim de seus privilégios.
Urgentemente, reuniram-se cerca de vinte organizações,
conhecidas por suas posições de extrema direita. Entre elas, a
Fundação Nacional Cubano Americana, a Fundação Valladares,
Alpha 66, Cuba Independente e Democrática (CID) e Irmãos
para o Resgate. O encontro realizou-se na sede do grupo
paramilitar Brigada 2.506, do qual José Basulto é um dos
dirigentes. Como convidados especiais estavam o congressista
Lincoln Díaz Balart, colaborador na redação da Lei HelmsBurton, e o terrorista Orlando Bosch. Inicialmente, o objetivo
principal era unificar critérios e traçar uma linha de ação para
pressionar a Administração estadunidense a recuar quanto ao
pacto migratório. No entanto, uma vez mais, “o motivo do
encontro era planejar a derrubada de Fidel Castro”.48
Quando se interrompeu o fluxo de balseiros, Irmãos para
o Resgate viu sua existência em perigo. Para salvar-se, deu um
novo conteúdo a sua missão: “Ser os olhos do exílio no estreito
da Flórida para que os Estados Unidos e Cuba não violem os
direitos humanos dos cubanos”.49 Mas realmente, Basulto e
Irmãos para o Resgate continuaram a fazer o que já faziam,
por trás do pretenso resgate dos balseiros: incitar o povo cubano
48
El país, Madrid, maio de 1995.
49
Idem.
64
a conspirar contra seu governo. Mas não só isso: segundo o
agente da contra-inteligência cubana, infiltrado nessa
organização, Juan Pablo Roque, Irmãos para o Resgate
preparava ataques terroristas contra objetivos civis e militares
na Ilha. Toda essa informação, mais a que reuniu de outras
organizações, como a Fundação Nacional Cubano Americana,
foi entregue ao FBI, para quem também trabalhava e em
pagamento do que recebeu sete mil dólares, como reconheceu
a própria Agência federal.50 Assim, repetidas vezes, e de forma
provocadora, pequenos aviões violaram o espaço aéreo da Ilha,
até que dois deles foram derrubados, em 24 de fevereiro de
1996. O agente Juan Pablo Roque regressara a Cuba na véspera.
Em meados daquele ano, quando Irmãos para o Resgate
iniciava outra campanha para reunir fundos, e assim continuar
suas atividades ilegais, soube-se em Miami que a residência de
Basulto custava mais de meio milhão de dólares. E, como ocorre
com muitos líderes contra-revolucionários, não se sabia que
tivesse um emprego que lhe permitisse tal luxo.
A sede de Irmãos para o Resgate fica em um dos setores
mais exclusivos de Miami. No escritório de José Basulto
destacam-se as imagens de Cristo e Gandhi, assim como
recortes da imprensa internacional onde se comenta, em
grandes manchetes, a derrubada dos aviões. Acompanhava-o
uma velhinha humilde, mãe de um dos pilotos mortos. Basulto
insistiu para que a entrevistássemos. Nós o fizemos. Mas ela
tinha muito pouco a dizer, além de expressar sua dor. Com ele
falamos pouco. Respondia com muita segurança e voz enérgica,
como se estivesse fardado.
Infelizmente o convite de Balsulto não pôde concretizarse, devido a outro compromisso inadiável: naquele domingo
50
Le Point, Paris, 27 de julho de 1996.
65
voariam até perto do Paralelo 24 e estavam dispostos a levarnos. Claro que gostaríamos de ter ido. Mas com uma condição:
Basulto deveria estar conosco, no mesmo avião.
– Senhor Basulto, conte-nos como começou a atividade de
Irmãos para o Resgate.
– Antes de mais nada, quero esclarecer que embora digam
que somos políticos, Irmãos para o Resgate foi uma organização
humanitária.
Fizemos o primeiro vôo de resgate de balseiros em 1991,
em meu próprio avião. Pedimos ajuda à comunidade e
ninguém nos ouviu. Mas foram aumentando os balseiros. Até
que, em 1994, chegamos a voar umas trinta e duas missões
por semana, a um custo de quase um milhão e trezentos mil
dólares por ano. Naquele momento era uma operação já
financiada totalmente pelo exílio, com contribuições de pessoas
ricas, como a cantora Gloria Estefan, que doou um avião no
qual, aliás, eu caí. Também American Airlines fez suas
contribuições.
– Qual é sua versão sobre a derrubada dos aviões em 24 de
fevereiro de 1996?
Os americanos e o governo cubano sabiam que íamos
voar neste dia e ultrapassar o Paralelo 24, porque Juan Pablo
Roque, um piloto cubano que foi recebido aqui como
dissidente e herói, entregou para eles. Ele tinha se infiltrado
entre nós, trabalhando para o FBI e para a inteligência
castrista.
– Mas, senhor Basulto, segundo alguns meios de informação,
o FBI os tinha advertido de que nessa oportunidade os aviões
seriam derrubados, porque o governo cubano já não agüentava
mais tantas violações de seu território. Além disso, vários meios
de informação afirmaram que por isso o senhor permanecera
66
cinco milhas atrás dos outros dois, fora dos limites cubanos,
salvando-se. O piloto-espião, Roque, garantiu que o senhor
ganhara quatro mártires...
– Falso! Totalmente falso! Vejo que há muita gente
trabalhando para os comunistas!
– Desculpe-nos, mas foi o que lemos. Outros relatórios afirmam
que os aviões de Irmãos para o Resgate violaram pelo menos vinte
vezes o espaço aéreo cubano, e em quase todas essas ocasiões
deixaram cair propaganda contra o governo. É certo?
– Positivo. Uma delas foi em 13 de agosto de 1995,
quando sobrevoamos Havana. Mas foi para distrair o esquema
operativo militar cubano, dirigido contra várias embarcações
do exílio. Também nos dias 9 e 13 de janeiro de 1996,
aproveitando as condições meteorológicas e de altura,
deixamos cair meio milhão de panfletos que continham
mensagens simples...
– Espere um momento, senhor Basulto. Essas embarcações
estavam violando o espaço aéreo cubano. Ainda que estivessem
tripuladas por exilados cubanos, tinham registro e bandeira
estadunidenses. O senhor sabe muito bem que pretendiam
provocar o governo de Cuba. Tentavam ver até onde
agüentavam...
– Sim, é verdade. Mas desejávamos celebrar e demonstrar
apoio ao povo cubano.
– Voltando ao assunto. Por que não derrubaram ou obrigaram
a descer seus aviões em qualquer das ocasiões anteriores? Em
qualquer outro país isso teria ocorrido.
– Não sei! Não sei porque não nos derrubaram. E em quase
todas essas oportunidades deixamos cair sobre Havana uns
panfletinhos, os mesmos que jogávamos nos navios de guerra
cubanos. A mensagem era simples, inofensiva, como por
exemplo: “companheiros, não, irmãos”, querendo dizer que
67
não somos camaradas. Também lançamos outros que
chamavam à desobediência civil... Depois, opositores,
dissidentes do Concílio Cubano, jornalistas independentes, a
quem estávamos dando nosso apoio, telefonaram para as rádios
de Miami, para dizer que tinham recolhido vários deles e
distribuído por outras pessoas.
– Senhor Basulto, apesar de que violar repetidamente o espaço
aéreo de um país para incitar a população contra seu governo é
muito grave, não acha que deve ter havido outra razão para a
derrubada?
– Positivo. Estou certo que também foi por nosso apoio e
financiamento ao Concílio Cubano e outras organizações de
resistência no interior de Cuba. Porque queríamos, e queremos,
ajudar a criar uma alternativa política ao governo de Castro.
Por isso decidimos entregar vários milhares de dólares a
Sebastián Arcos, como apoio ao Concílio Cubano, em um ato
aqui em Miami. Sim, o mais importante para o governo
castrista é que Irmãos para o Resgate se convertera em fator de
desestabilização. Essa deve ter sido a razão principal para
derrubarem os dois aviões.
– Senhor Basulto, passemos a outro assunto. Desculpe-nos a
pergunta, mas garante-se que Irmãos para o Resgate são financiados
pela CIA.
– Queremos que nos mostrem as provas! Porque nós, sim,
temos provas de como nos financiamos!
– Não apenas isso, mas que o senhor também é da CIA.
– Essa é outra acusação que o governo de Cuba faz contra
mim! Mas não só a mim, mas aos dirigentes do exílio, para
desacreditá-los! E para isso dirigiram toda a sua máquina de
relações públicas internacionais.
– Ou seja, o senhor abandonou as relações com a CIA depois
da Baía dos Porcos?
68
– Em 1961, eu, como os outros participantes da Brigada
2.506, trabalhamos com, não para, a CIA. Jamais, nenhum
dos cubanos que na época representávamos os interesses de
Cuba, trabalhamos para a CIA nem para o governo norteamericano. Pois isso teria sido uma baixeza de nossa parte.
Estive sim com eles até novembro de 1961. Naquele momento
lhes disse que estavam brincando com o povo cubano, que
não havia uma verdadeira cooperação para conseguir a
derrubada do regime. E que estavam provocando a morte e a
prisão de meus compatriotas.
– Desculpe-nos se insistimos, mas há documentos onde se diz
que o senhor esteve no Brasil e na América Central por conta da
CIA.
– Isso é negativo, é falso. Não participei de nenhum tipo
de atividade com os americanos, fora minha permanência de
treze meses no Exército deles.
– Mas, Senhor Basulto, não pode negar que esteve em
Honduras, com a Contra nicaragüense. E está provado que a
Contra estava sob total controle da CIA...
– Eu, José Basulto, como pessoa individual, sem nenhum
financiamento norte-americano, ajudei a Contra em
Honduras, durante certo tempo. Fui parte de um operativo
do exílio cubano. Dele participaram várias organizações; estive
com a Brigada 2.506, da qual era diretor militar.
– Desculpe, disse “diretor militar”?
– Sim, positivo. Minha permanência em Honduras deveuse unicamente a razões humanitárias, ajudando a armar
hospitais de campanha, na fronteira com a Nicarágua. Estive
ali sob as ordens do coronel nicaragüense Enrique Bermúdez.
– Passemos a outro assunto. Como o senhor explica que os
Estados Unidos, primeira potência mundial, não tenham sido
capazes de derrubar o governo de Fidel Castro?
69
– Os Estados Unidos têm uma grande responsabilidade na
permanência do sistema político cubano. Em 1961, quando
pela primeira e única vez o regime castrista se viu agredido
militarmente, na invasão da Baía dos Porcos, os Estados Unidos
abandonaram o povo cubano em sua busca da liberdade. Assim
começaram a se criar condições para que esse regime se
consolidasse no poder. No ano seguinte, houve a Crise dos
Mísseis que os soviéticos queriam instalar em Cuba. E surgiu
uma nova possibilidade de enfrentamento direto, mas os
americanos, por temor ao que a URSS pudesse fazer,
negociaram algo que não era deles: nossa liberdade. E desde
aquela data os americanos se comprometeram a não intervir
militarmente em Cuba. Mas tampouco deixaram que nós, os
cubanos, independentemente, o fizéssemos. E assim acabou
de se consolidar o regime castrista.
Os Estados Unidos sabem que uma ação de envergadura
contra Castro pode sair cara para eles: uma imigração em massa
ou uma ação louca de Castro. Porque Castro tem equipamentos
militares suficientes para bombardear a usina nuclear da
Flórida, e outros objetivos estratégicos americanos. Hoje, uma
invasão a Cuba custaria milhares de mortos.
– Senhor Basulto, então, qual é a alternativa que o senhor vê
para Cuba?
– Estamos tentando derrubar esse regime. O povo cubano
deve utilizar o desafio não violento sem que se descarte o uso
da violência. Mesmo sabendo que atacar Castro militarmente
é suicídio. Mas é preciso eliminar esse regime, eliminando
Castro e sua camarilha de qualquer maneira.
A mudança possível reside na possibilidade de a resistência
interna conseguir estabelecer o espaço necessário para funcionar
politicamente, ou seja, uma alternativa a Castro. Por isso devese continuar apoiando e fomentando os grupos de direitos
70
humanos: é a melhor arma contra esse regime. E para isso, os
americanos e nós, o exílio, devemos buscar o apoio dos
europeus, porque são mais bem vistos em Cuba. E isso está
sendo feito, ainda que muito lentamente.
– Senhor Basulto...
– Proponho que continuemos em outra ocasião, porque
agora devo encontrar-me com a advogada que está cuidando
do caso dos aviões derrubados...
71
IV
“Fico maravilhada com a hipocrisia européia! Lá os políticos tomam decisões
sobre outros países conforme lhes convém”.
NINOSKA PÉREZ CASTELLÓN - Membro da Diretoria da Fundação Nacional Cubano
Americana,Jornalista e locutora da Rádio La Cubanísima. Diretora de La Voz de la
Fundación,Emissora da Fundação Nacional Cubano americana
“Estamos trabalhando com a possibilidade de que Castro já esteja morto”.
ROBERTO MARTIN PÉREZ - Membro da Diretoria da Fudação Nacional Cubano Americana
Enfim, na sexta chamada telefônica, a senhora Ninoska
Pérez Castellón aceitou nos receber. Insistiu para que não
chegássemos tarde, pois depois devia gravar um programa
de rádio. Chegamos ao endereço que nos dera quinze minutos
adiantados. Perguntamos ao motorista do táxi se ali era, de
fato, a sede de La Cubanísima ou La Voz de la Fundación.
Olhou-nos pelo retrovisor e secamente nos esclareceu que se
tratava do edifício da Fundação Nacional Cubano América.
Seria possível? Tínhamos levado mais de uma semana
insistindo com duas secretárias para que obtivessem para nós
uma entrevista com um dos altos dirigentes da Fundação. E
nada. E tampouco permitiam que fôssemos até lá, pegar
algumas de suas publicações. Sempre perguntavam para onde
deviam enviá-las em Miami. O que não era possível, porque
nenhum de nossos conhecidos, gente afastada dos debates
histéricos e estéreis, desejava que seu endereço caísse naquelas
mãos.
73
Enquanto uma câmara vigiava o grande estacionamento,
outra se encarregava de seguir os passos de quem se
aproximava pela frente. Chegamos a uma grande porta de
vidro. De dentro, abriu-a um guarda encorpado. Impassível,
informou-nos que a senhora Ninoska ainda não chegara, mas
que aproveitássemos para anotar nossos nomes no caderno
de registro e nos sentássemos para esperar. Assim fizemos,
enquanto, de esguelha, víamos como uma terceira câmara
nos observava. A senhora Ninoska chegou com dez folgados
minutos de atraso. Cumprimentou o guarda. O homem nos
anunciou. Ela voltou-se, para olhar-nos. Esboçou um sorriso,
cumprimentou-nos e nos convidou a acompanhá-la. Quando
a porta e a grade se fecharam às nossas costas, pensamos achar
um corredor comprido, muito comprido, que no fim nos
tragaria. Mas caminhamos apenas uns trinta metros, até a
última porta à esquerda. Ali estava o escritório da diretora
da Voz de la Fundación. Grande, um tanto robusta e com as
mãos bem cuidadas, serviu-nos um perfumado café
instantâneo.
Devemos admitir que não estava em nossos planos
entrevistá-la. Mas quando, no começo de uma tarde, ouvimos
sua voz em La Cubanísima, decidimos fazê-lo. Porque nos
surpreendeu. Cada palavra com que se referia ao governo
cubano e, em particular, a Fidel Castro, saía repleta de ódio.
Utilizando um vocabulário tal, que nos perguntamos como
não foi censurada e, pelo contrário, recebeu o prêmio
“Jornalista do ano”, outorgado pelo “Colégio Nacional de
Jornalistas de Cuba”, com sede em Miami, em 1996. O certo
é quando se sabe como as coisas acontecem em Miami, já não
se faz nenhuma pergunta. Que autoridade se atreveria contra
ela? Nem sendo prefeito dessa cidade, uma vez que é graças a
ela e aos que a cercam que se chega a esse posto.
74
Ratificamos nosso desejo de encontrá-la ao ouvir a segunda
parte de seu programa Aqui com Ninoska. Porque vão ao ar
telefonemas de pessoas que se dizem dissidentes do interior de
Cuba. Estes, que especificavam ser defensores dos direitos
humanos ou jornalistas independentes, nos cerca de treze
programas que ouvimos, tinham conteúdo idêntico e sempre
negativo. Que na Ilha não havia sabonete, nem carne, nem
leite; que a eletricidade e o gás estavam racionados; que o
governo isto, que os serviços de segurança, aquilo. E, para
terminar, unanimemente, se desdobravam em agradecimentos
e elogios à senhora Ninoska, Mas Canosa e outros líderes
contra-revolucionários de Miami, “por tudo o que fazem pela
liberdade de Cuba”. Sem deixar de garantir que o exílio podia
contar com suas organizações para o que fosse necessário.
Naquele momento já haviam repetido seu nome e o de seu
grupo várias vezes, como para que fossem muito considerados.
Posteriormente, estes programas são retransmitidos para
Cuba pela Voz de la Fundación.
Claro, como o cubano é tão apaixonado e escandaloso ao
falar, imaginem. E a senhora Ninoska acrescentava seu toque
melodramático-incendiário. Não se pode negar que conviver
com racionamento de carne e de sabonete não deve ser
agradável. Ser perseguido pela polícia ou pelos vizinhos, menos
ainda. Mas a locutora converte esses protestos em um show
manipulador que faz crescer o ódio, dia a dia, dentro e fora da
Ilha, contra o governo cubano.
Antes de desligar, a senhora Ninoska aconselha-os a unir
mais vizinhos à cruzada; a praticar a desobediência civil; a,
sempre que possível realizar sabotagens ou pichações contra o
governo. Tudo isso pelo rádio! Ao vivo! Mas não é tudo. A
jornalista telefonou para o próprio Ministério do Interior, para
o de Relações Exteriores, para o Comitê Central do Partido
75
Comunista, em Havana, entrevistando e criticando os
funcionários, de maneira provocadora e durante muitos
minutos. E eles atenderam e responderam. A única coisa que
lhe pediam é que fosse decente quanto aos termos utilizados,
ou seriam obrigados a desligar.
Já estávamos há vários minutos dialogando com nossa
entrevistada, que evitava, na medida do possível, utilizar os
modos que a caracterizam pelo rádio, quando apareceu seu
marido, Roberto Martín Pérez. Sem mais preâmbulos, depois
de nos cumprimentar, sem pedir licença, interveio. Filho, como
sua esposa, de um oficial de Batista, foi capturado em 1959,
quando tentava entrar clandestinamente em Cuba como
vanguarda da Conspiração Trujillista. No mesmo ano, Martín
Pérez participara de um atentado contra o embaixador cubano
em Santo Domingo. Depois de cumprir dezoito anos de prisão,
foi libertado graças ao diálogo e a aproximação entre um setor
do exílio e o governo cubano, em 1978. Em Miami, é temido
até nos meios contra-revolucionários. Dizem que não tem
escrúpulos para com os que se opõem aos planos da Fundação.
As autoridades estadunidenses presumem que manipulou o
esquema paramilitar da Fundação Nacional Cubano
Americana, o qual possivelmente realizou um atentado contra
o dirigente portorriquenho Tom Cuevas, que pedia a distensão
das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Segundo algumas
investigações de jornalistas, não desmentidas, Pérez foi contato
importante entre os dirigentes da Fundação, em particular Mas
Canosa, e a força mercenária da Contra nicaragüense.
Quando já estávamos nos despedindo da senhora Ninoska,
seu assistente avisou-a que havia um dissidente cubano ao
telefone. Ela o atendeu, começando a gravar a ligação. Um
momento depois disse-nos que seria importante falar com ele.
Não tivemos alternativa. O senhor nos contou que na véspera
76
a Segurança do Estado detivera um vizinho seu durante três
horas; que dois homens vieram perguntar-lhe várias coisas sobre
esse vizinho; que na esquina de sua casa havia dois policiais.
Perguntamos se fora agredido; se tinham revistado sua casa; se
tinham batido em seu vizinho. Não, nada disso. Se sabia os
motivos da detenção do vizinho. Ele imaginava que era devido
às freqüentes ligações que fazia, com outros amigos, para a
senhora Ninoska e para a Rádio Marti. “Senhor, pode nos
dizer de onde está falando conosco com tanta tranqüilidade?”
“Daqui, da casa do meu vizinho”.
– Senhora Ninoska, nós a ouvimos em seu programa de rádio
e nos surpreendeu sua forma de atacar o governo cubano por ser,
digamos, agressiva, quase virulenta.
– É que nenhum ditador tem o direito de me proibir de
viver em meu país, e não estou disposta a aceitar isso. Mas,
mais ainda. Quando pego o telefone e alguém em Cuba me
conta uma tragédia cometida por esse ditador, olhem, é
impossível ficar de braços cruzados, ou manter um tom
cordial.
Porque, apesar de que aqui neste país vivemos comodamente e com liberdade, não esquecemos o que sucede em Cuba.
Como também não o esquecem os congressistas cubanoamericanos, embora não tenham realizado o grande sonho
desta nação. Tampouco outros, que conseguiram uma grande
fortuna, e que poderiam viver tranqüilamente, mas continuam
trabalhando por Cuba.
– Por documentos que lemos e pelo que nos contaram outros
cubanos em Miami, pode-se dizer que a Fundação participa e
anima a política estadunidense relativa a Cuba.
– Bom, é que nós não somos anti-americanos e funcionamos
com as possibilidades que nos oferece este sistema. Exemplo
77
disso é a Lei Helms-Burton, que endurece o embargo contra o
governo de Castro, proibindo todos os investidores europeus e
canadenses de negociar com as propriedades que esta ditadura
roubou de seus donos, cubanos e americanos. Para conseguir
essa Lei era necessário o apoio dos políticos americanos no
Congresso. Por sua vez, eles precisavam dos votos dos cubanos e
nós podíamos oferecê-los. Isso é utilizar o poder político neste
país. Assim funciona este sistema.
Mas depois, o que acontece? Quando o presidente Bill
Clinton estava indeciso em assinar a Lei, o regime castrista
derrubou dois aviões de Irmãos para o Resgate, em fevereiro
de 1996. E eram aviões registrados nos Estados Unidos, com
quatro pessoas a bordo. Então a Fundação pressionou e aí sim
o presidente Clinton viu-se obrigado a assinar a Lei.
– Tão simples assim?
– Não se esqueçam que as eleições se aproximavam e
Clinton não podia dispensar os votos cubanos. Repito, esta é
a forma de trabalho da Fundação: com as possibilidades que
oferece este sistema. Além disso, não vamos negar, a Fundação
era muito amiga de presidentes como Reagan e Bush. O
próprio Clinton, antes de tomar uma decisão sobre Cuba,
chamava Mas Canosa ou outro diretor da Fundação. Por que?
Porque conhecem nosso trabalho. E porque os diretores da
Fundação contribuíram para financiar suas campanhas.
– Vocês incentivaram as leis de embargo contra Cuba, como a
Torricelli e a Helms-Burton, certos de que com elas o governo de
Fidel Castro vai cair. Mas os europeus dizem que investindo em
Cuba se consegue mais facilmente mudar o sistema político.
– Como os europeus e os canadenses podem pensar que,
levando capitais para Cuba, podem mudar essa ditadura? Não
os entendo! Se esse assassino sempre disse que não haverá
nenhuma mudança política! Fico maravilhada com a
78
hipocrisia européia! Lá os políticos tomam decisões sobre
outro país como lhes convém. É assim também no Canadá.
O que acontece é que todos esse países estão unidos por um
antiamericanismo ridículo. Mas, afinal, qual é a realidade?
Que com a Lei Helms-Burton várias companhias já
começaram a sair de Cuba por medo, porque sabem que a
Lei existe para golpear os que apóiam essa ditadura assassina.
– Diariamente, em seu programa, a senhora recebe ligações de
pessoas que supostamente fazem resistência ao governo em Cuba.
Qual é a realidade dessa oposição?
– A resistência é muito difícil, mas existe. Nós falamos
diariamente com opositores dentro de Cuba que organizaram
diferentes grupos, coisa impossível antes, pois durante muitos
anos a oposição estava nas prisões, para que não incomodasse
Castro...
(Aqui entra Roberto Martín Pérez. Como intervém, tirando
a palavra a sua esposa, nos dá a sensação de que estava ouvindo
atrás da porta. )
Roberto: É possível que vocês, como outros jornalistas
europeus, não entendam o que vou lhes dizer porque não vivem
em um regime policialesco como o cubano. Por isso cometem
vinte mil erros quando escrevem. Em Cuba houve muitas
formas de resistência pacífica. Por exemplo, o homem e a
mulher cubana deixaram de trabalhar porque esse processo
comunista não lhes interessava.
– Mas, senhor Pérez, segundo o que nos contaram aqui em
Miami, a resistência em Cuba é mínima e não tem o apoio real
da população.
Roberto: É que vocês nem imaginam o que acontece em
Cuba. Por exemplo, você tem uma filha estudando e mandam-
79
na para o campo, supostamente para ajudar na produção. Lá é
submetida a todo tipo de vexames, para atemorizar em você e
sua filha. Se seu filho vai preso, que ele é estuprado, isso é.
Não lhes digo mais nada... Imaginem, existem uns presos
chamados “leões”, encarregados especialmente de realizar os
estupros. Depois são premiados, com a melhora da comida.
São mantidos sempre drogados, como mortos.
– E uma pessoa nesse estado pode estuprar?
Roberto: Mas esperem que vou lhe contar outra história de
como esse regime criminoso infunde terror, para que não exista
resistência. Se você está em uma unidade militar, tem que
trabalhar no campo, e sempre perto de uma escola de moças.
Durante o dia trabalham no mesmo lugar. O contato do
homem e da mulher acarreta, naturalmente, atos. De noite os
rapazes fogem para encontrar as mocinhas, que também
fugiram. Conseqüência: tudo isso é preparado pela gente do
regime, para incentivar as moças e os rapazes a produzirem
mais. Porque têm que fornecer ao Partido cinco milhões de
horas de trabalho forçado ao ano.
– E o senhor, senhor Pérez, como passou na prisão?
Roberto: Passei dezoito anos solitário, de cuecas, em uma
célula minúscula. Sobrevivi porque acreditava em uma causa
e em Deus. Todos éramos mal alimentados, sem leite nem
frutas. Não nos batiam, mas nos deixavam ali, vegetando.
Resultado: todos saímos com traumas físicos e psíquicos
tremendos. Claro que eu fui uma exceção, pois não perdi nem
um dente, nem tive hemorróidas, que é uma coisa muito
freqüente, devido à má alimentação; nem tive úlcera, nem
problemas para dormir...
– E que fez contra o governo cubano para receber tal prisão?
Roberto: Acreditar em Deus e lutar pela liberdade...
Ninoska: E esse terror carcerário é uma amostra do porque
80
não há grande oposição. Tudo é manipulado. Essa ditadura é
um sistema de repressão espantoso...
Roberto: Mas vocês devem saber que a máquina...
Ninoska: Roberto, espere um momentinho, porque eles
querem saber da oposição atual...
Roberto: Deixe que eu lhes conto. Conheço Castro desde
menino e sei que é um homem violento. Pois não creio que
saibam que Castro foi um gângster. Foi um delinqüente que
se associou a outros cubanos e estrangeiros. Estes estrangeiros
tinham participado com os Aliados da Segunda Guerra
Mundial; ou da Guerra civil espanhola, lutando contra Franco.
Todos eles queriam viver das pistolas, em Cuba. E o capitalista,
que ganhou seus milhões com seu trabalho, honradamente,
que não sabe defender seus valores, preferia dar uns pesos que
se ver nas mãos desses bandidos.
– Mas se Fidel Castro, como diz o senhor, era praticamente
um delinqüente, como a maioria da população o apoiou?
Roberto: Castro chegou ao poder porque os comunistas,
como sempre, começaram a lavar a cabeça das pessoas, dizendo
que a sociedade cubana estava cheia de deficiências. Em Cuba,
como no mundo todo, existiam classes frustradas e
marginalizadas. Castro e o comunismo manipularam-nas,
trazendo-as para o seu lado.
– Senhor Pérez, como vê o futuro de Cuba?
Roberto: Castro é um homem gasto pelo poder. Castro,
que ontem podia prometer uma libra de arroz ao povo, hoje
não pode lhe dar um pão. Está pior que os donos de escravos,
pois até eles davam alimentação balanceada aos negros. Por
isso Castro vai cair. E digo isso com segurança, não é uma
utopia; na Fundação estamos trabalhando para isso; estamos
organizados e sabemos o que queremos, daí a importância da
Lei Helms-Burton.
81
E eu lhes digo mais: estamos trabalhando com a possibilidade
de que Castro já esteja morto. Porque, para mim, Castro já não
está vivo. Sabemos que tem três “clones”. E se você não conhece
Castro e lhe dizem que esse homem alto e barbudo é Castro,
você acredita. Mas ele já está morto...
– Senhor, Pérez, Fidel Castro morto? Isso sim que...
Ninoska: Mas Roberto, também não se pode exagerar. Eles
podem utilizar sósias, nisso eu acredito, por segurança, mas as
imagens que se vêem na televisão, são dele... E Roberto,
desculpe, mas eles estão me entrevistando para falar de outros
assuntos...
(Enfim, Roberto se foi... )
– Senhora Ninoska, sabemos que é contra qualquer diálogo
com o governo cubano. Por que?
– Bem, parece que os defensores do diálogo são uns pobres
ingênuos, que sonham com loucuras. Pode-se propor um
diálogo a Fidel Castro; mas para que, se a reação de Castro é
dizer que não haverá mudanças políticas?
– Então, os encontros que se realizaram em Cuba não levaram
nem levarão a algo positivo?
– Esse ditador armou uma conferência em Cuba com uns
quantos exilados que acreditaram em suas idiotices. Nela, uma
advogada de Miami, lamentavelmente, a pobrezinha, jogouse nos braços de Castro, dando-lhe um beijo, dizendo-lhe que
ele era seu mestre. Palhaçada! Por isso, quando voltou, foi
recebida com ovos; até seus empregados a abandonaram. E
depois outro exilado, ex-preso político...
– O senhor Menoyo?
– Todo o mundo sabe quem é... mas pode ser. Este homem
se põe a falar bem do ditador, porque tinha tomado um trago
82
com ele. Maluquice! E qual foi o resultado dessas palhaçadas?
Os diretos humanos foram respeitados? Permitiram-lhes se
expressar? Não. Apenas deixam-nos viajar por onde queiram
na Ilha, nada mais.
– Permita-nos uma última pergunta. Internacionalmente,
Miami é sinônimo de sol e praias, mas também de um exílio
cubano violento. Qual é a sua opinião?
– Olhem, sei que a imprensa européia e muitos políticos
de lá dizem que o exílio de Miami é violento. Mas eu não
respeito essas afirmações. Não se pode negar que tenha havido
fatos violentos. Dizem que este exílio é reacionário porque
aqui explodiu uma bomba em um museu, ou estraçalharam as
pernas de um senhor do rádio que propunha dialogar com
Castro. Mas, onde está quem pôs a bomba? Algum grupo
cubano do exílio reivindicou o atentado?
Um dia a imprensa daqui, a que sai em inglês, disse que
era intolerável que o exílio tivesse posto uma bomba em um
lugar de onde enviam pacotes para Cuba. Ou que era
responsável por outro atentado no Centro Vasco, onde ia cantar
a senhora Rosita Fornés. Mas esta é uma mulher que tanto faz
ouvir ou não, pois é uma pobre velha ridícula, vestida de vedete.
Se veio aqui, foi para buscar problemas, pois continua apoiando
o regime tirânico de Castro.
– Esta é a outra imagem do exílio, uma intolerância agressiva.
Olhe o que aconteceu com o pianista Rubalcaba, reconhecido
mundialmente.
– Olhem, em princípio não se deve ter nada contra um
pianista. Mas esse senhor é um cubano que vive na República
Dominicana, fazendo publicidade, falando maravilhas de
Cuba. E isso é um trabalho político, que serve aos interesses
castristas. Esse senhor Rubalcaba veio se apresentar aqui em
Miami e umas quatro pessoas se puseram aos gritos, insultaram-
83
no, tentaram cuspir nele; iam brigar com alguns dos
espectadores. Mas apenas protestavam contra sua presença, e
isso é legal em uma verdadeira democracia como a americana.
Então a imprensa em inglês e a européia dizem que os exilados
são provocadores e terroristas. Mas, porque não se pensa que
esses atos são feitos por gente de Castro? É ao tirano que mais
convêm!
– Desculpe, mas provocadores ou terroristas pro governo cubano
em plena Miami? Além disso, se fossem um ou dois atos, mas
parece que são muitos...
– Bom, tudo é possível, Castro é muito esperto...
84
V
“O embaixador francês em Washington nos disse que queriam ter um pé ali, para
adiantar. Que, por agora, eram pequenos investimentos mas que, depois, quando caísse o
governo castrista, seriam grandes”.
Hubert Matos Benítez
Presidente de Cuba Independente e Democrática
Tocamos a campainha. Íamos insistir quando ouvimos o
som característico do seguro que se abre de dentro. Em poucos
passos atravessamos o jardinzinho. Detivemo-nos diante de
uma das portas da casa. Enquanto esperávamos que abrissem,
notamos que sobre nossas cabeças havia uma câmara de
circuito fechado. Era tão antiga como a primeira que vimos,
no outro extremo da casa. Um homem abriu. Depois que
respondemos três ou quatro coisas, nos levou até uma ampla
e modesta sala de reuniões. As janelas, que davam para a rua,
estavam bem protegidas com barras de ferro, numa altura que
dificultava a observação a partir do exterior. Tinham marcado
encontro conosco às onze da manhã. Os minutos passavam
e o personagem esperado não aparecia. Assim, quem nos
recebera dispôs-se a entreter-nos, dando rédea solta a seus
conhecimentos sobre as bondades do sistema capitalista na
América Latina. Já se passavam vinte minutos de espera,
quando apareceu o presidente de Cuba Independente e
85
Democrática: muito magro, grisalho, de óculos, paletó e
gravata.
Hubert Matos Benítez cumpriu duas décadas de prisão,
depois que um tribunal revolucionário o condenou em 1959
por conspiração. Nega que tenha atentado contra os princípios
da Revolução. Mas reconhece categoricamente que se opôs ao
derrotismo que começou a dominar a maioria da direção. O
que era normal, por verem contrariados seus interesses. Matos,
pedagogo e pequeno proprietário de terras, aderiu à luta contra
Batista durante o primeiro semestre de 1958, sendo apoiado
pelos proprietários de terras maiores, pelos burgueses e pelo clero
reacionário que o promoveram a dirigente político na província
de Oriente. Assim subiu até obter o grau de comandante, título
máximo na hierarquia do movimento revolucionário. Em 19
de outubro de 1959, Matos, chefe do regimento do Exército
Rebelde na província de Camagüey, levantou-se com seus
homens, alegando a presença de comunistas no governo. O
Comandante Camilo Cienfuegos conseguiu sua rendição. Dias
antes, quando se desarticulara a Conspiração Trujillista, entre
os documentos capturados dos mercenários foi encontrada uma
carta onde se recomendava fazer contato com Matos.
Em 1979 saiu da cadeia e partiu para a Costa Rica. Segundo
o jornalista ex-aliado de Batista, Luis Manuel Martinez, a partir
daquele momento Matos “esteve nas mãos da CIA”.51 No ano
seguinte transferiu-se para a Venezuela, com a intenção de fundar
Cuba Independente e Democrática, para o que o governo
estadunidense entregou-lhe duzentos mil dólares.52 Entre os
objetivos centrais desse aparelho estava fazer proselitismo junto
51
Luis Báez: “Entrevista a Luis Manuel Martinez”, en Los que se fueram, Editora Política,
La Habana, 1994.
52
Idem.
86
a governos e partidos políticos da América Latina e da Europa.
Isso não era novidade: a CIA já tinha tentado, sem êxito, na
década de setenta, com outros contra-revolucionários. Agora
poderia dar resultado, dado a aura de ex-comandante e ex-preso
político que acompanhava o presidente de Cuba Independente
e Democrática. Pelo menos, quando passou pelo Velho
Continente, a maioria dos meios de informação lhe deu boa
publicidade.
Uma das tarefas que se tornou fundamental para Matos
foi articular La Voz del CID, uma emissora de ondas curtas,
dirigida a Cuba. Embora seja certo que no final de 1997 se
desconhecia o lugar em que se encontravam seus transmissores,
sabe-se que, há pouco tempo, estiveram localizados na
República Dominicana e em Costa Rica. Embora Matos afirme
que as atividades de Cuba Independente e Democrática são
financiadas com as contribuições de seus membros, é difícil
acreditar nisso, pois estes não são tantos, nem tão abonados.
As contribuições que, de forma legal e pública, lhes deram as
agências do governo estadunidense, não devem bastar para
cobrir os gastos de todo o equipamento. Entre outros, Jeff
Whitte, proprietário de Rádio Miami International, rádio
comercial por onde emitem vários grupos contra-revolucionários para Cuba, disse que boa parte do dinheiro de Cuba
Independente e Democrática provém da CIA.
Mas as transmissões para Cuba também não são novidade.
Apesar de violar todos os convênios internacionais, desde o
triunfo da Revolução, as diferentes administrações estadunidenses produziram, incentivaram ou fecharam os olhos a esse
proceder. Embora agora o objetivo fosse derrubar um governo,
desde os anos vinte, em Washington considerava-se que os
meios de comunicação deviam ser utilizados para fins de
propaganda política e como complemento da política exterior.
87
Simplesmente, para Cuba, a estratégia teve que ser adaptada a
uma situação de guerra ideológica e psicológica. Certamente
inesperada.
Em 1960, como parte da Operação 40, a Marinha
estadunidense instalou a Rádio Swam. Transmitia vinte e
quatro horas diárias, de uma ilha no Atlântico hondurenho.
Sua função era difamar os fins a que se propunha o novo
governo cubano com as nacionalizações e expropriações.
Quando ocorreu a Crise dos Mísseis, intensificaram-se as
emissões a partir de rádios legais e ilegais, controladas ou
financiadas pela CIA. Quando passou esse episódio delicado,
e os Estados Unidos se envolveram cada vez mais nas guerras
do Sudeste asiático, diminuiu a pressão sobre a Revolução, o
que durou até 1979, quando a Administração de Jimmy Carter
reativou a ofensiva. E foi a partir de 1981, com a chegada de
Ronald Reagan à presidência, que voltaram a ser incrementadas
as transmissões radiofônicas, numa média de duzentas horas
diárias, emitidas de umas quinze estações. Naquele momento
surgiu La Voz del CID, que rapidamente encabeçou o trabalho
sedicioso, embora por muito pouco tempo, pois entrou em
cena um concorrente muito poderoso.
Em maio de 1980, um grupo de neoconservadores do
Partido Republicano entregou ao candidato Ronald Reagan o
“Documento de Santa Fé”, que continha as bases do que viria
a ser a política desse governo para a América Latina. No capítulo
referente a Cuba constava: “Cuba tem sido, por mais de duas
décadas, um problema para os artífices da política norteamericana. O problema não está mais perto de uma solução
agora do que esteve em 1961; pelo contrário, aumentou até
adquirir proporções verdadeiramente perigosas...” Um dos
estratagemas proposto para solucionar o “problema”, era criar
uma rádio potente que oferecesse “informação objetiva ao povo
88
cubano”. A emissora deveria contar com todos os recursos
possíveis para cumprir o papel fundamental exigido, porque,
“se a propaganda fracassar, será necessário lançar uma guerra
de libertação contra Castro”.
Já na presidência, Reagan criou uma comissão encarregada
de dar corpo ao que fora proposto. Entre seus integrantes
estavam Charles Wick, diretor da Agência de Informação dos
Estados Unidos e o cubano-estadunidense Jorge Mas Canosa.
53
No fim de 1983 Reagan assinou a Lei de Transmissões
Radiofônicas para Cuba, dando vida à Rádio Martí, emissora
que iniciou suas transmissões em 20 de maio de 1985.
Paradoxalmente, os sinais de prova foram emitidos pelas
antenas que a CIA utilizava nos anos sessenta, para comunicarse com os grupos de missões especiais e agentes infiltrados em
Cuba. Para o governo e o povo cubano, a Rádio Martí foi uma
afronta, pois não só era uma forma de invadir seu território,
como utilizava o nome do herói que lutara contra a Espanha,
pela independência e pela soberania da Ilha.
Como presidente da Junta de Assessores Presidenciais da
Rádio Martí, foi nomeado Jorge Mas Canosa. Um dos
primeiros diretores do serviço de investigação da emissora,
Ramón Mestre, vinha de uma militância ativa no grupo
Abdala;54 foi oficial dos serviços de inteligência estadunidenses,
e atualmente faz parte do conselho editorial de El Nuevo Herald.
Mas Mestre não foi o único ex-abdalista que chegou à Rádio
Martí: “vários foram diretores de departamento, investigadores
e assessores”.55
53
Jean-Marc Pillas: Nos agents à la Havane. Comment les Cubains ont ridiculisé la
CIA, Ed. Albin Michel, 1995.
54
Enrique Encinosa. Obra citada.
55
Idem.
89
Para dar uma idéia do papel que desempenhou essa
emissora, transcrevemos o seguinte texto, extraído do livro de
Enrique Encinosa, já citado:
Hilda Inclan, da diretoria de notícias, saiu da Rádio Martí
acusando os diretores de violação de leis federais e jornalismo
irresponsável. Inclan queixou-se de que o departamento de
pesquisas da empresa radiofônica era um esquema de
inteligência.
Precisamente, o departamento de pesquisas da Rádio Martí
se convertera na espinha dorsal da emissora. Seus vinte e três
(sic) empregados chegaram a entrevistar quatrocentos recémchegados da Ilha, mensalmente, analisando a informação
recebida para atualizar constantemente as transmissões (...)56
Para La Voz del CID, a concorrência com Rádio Martí foi
excessiva. Sobretudo pela impossibilidade de obter dezesseis
milhões de dólares que correspondem, aproximadamente, ao
orçamento anual da emissora estatal. A Voz del CID tinha
inovado na programação e na linguagem. A mensagem bélica
e cheia de rancor já estava mais controlada. Se o profissionalismo deixava a desejar, tratava de assuntos de atualidade e
interesse geral com um vocabulário popular que foi calando.
Indubitavelmente, Cuba Independente e Democrática fora
bem assessorada por quem conhecia de perto os prós e os
contras do trabalho subversivo radiofônico contra Cuba. Mas
a emissora oficial estadunidense copiou e melhorou o estilo,
ao mesmo tempo em que incluía desde radionovelas, leitura
do horóscopo, até conselhos psicológicos. No conjunto de suas
56
Idem.
90
atividades, a estratégia de ambas foi idêntica: lançar dúvidas
sobre os benefícios da Revolução, a gestão de seus líderes, a
capacidade do socialismo para resolver os problemas
econômicos e sociais, e acabar com a autoridade moral de Fidel
Castro e dos demais dirigentes cubanos.
Como parte dos objetivos, bem depressa a mensagem da
programação na Voz del CID e na Rádio Martí teve um
rearranjo, quando se tornou urgente incentivar grupos contrarevolucionários na Ilha, os quais começaram a ser chamados
de dissidentes ou independentes. Os estrategistas da
Administração Reagan estavam experimentando os bons
resultados que tais grupos estavam dando na desestabilização
dos países do Leste. E parecia possível obter resultados
semelhantes em Cuba. Isso ficou implícito em “Santa Fé II.
Uma estratégia para a América Latina na década de 1990”,
que veio a público em agosto de 1988. O documento, na
“Proposta n o 9”, dizia: “Os EUA devem ampliar suas
transmissões para Cuba pelos meios de difusão, como uma
forma de educação cívica, para criar um regime democrático
(...).” Linhas depois, a mesma proposta afirmava que a
“oposição interna” aumentava por estar “alimentada pela Rádio
Martí, a qual rompeu, com êxito, o monopólio de Castro sobre
a informação e a propaganda”.
A partir de 1989 uniu-se à tarefa sediciosa La Voz de la
Fundación, emissora da Fundação Nacional CubanoAmericana. Esta contou, no primeiro ano, e segundo seus
próprios diretores, com um orçamento de um milhão e meio
de dólares; não esclarecem, no entanto, de onde veio e
continuou fluindo essa quantia. Assim, o trio cumpria uma
única tarefa: “Para os dissidentes da Ilha, para os pequenos
grupos de direitos humanos que tentavam tornar-se
conhecidos, Rádio Martí era o cordão umbilical, a linha direta
91
de informação que podia dar-lhes legitimidade enquanto
movimentos.” A jornalista Irene Selser foi mais precisa, na
revista mexicana Quehacer Político:
Rádio Martí tenta estimular um potencial opositor interno
que possa dividir a população e afastá-la de seus líderes,
enquanto prepara o terreno para criar uma situação de
distúrbios e ações rumorosas. Dito de outro modo, a função
de Rádio Martí é fomentar uma frente interna que justifique
eventuais ações militares, ou de outro tipo, a partir do
exterior, por parte dos EUA, em defesa da oposição.
Pouco depois instalado na Casa Branca, William Clinton
sancionou a Lei provocadoramente denominada Cuban
Democracy Act, de autoria do representante democrata Robert
Torricelli, e que somava a busca de uma influência ideológica
maior com o recrudescimento do embargo. Em 1997, Cuba
recebia diariamente os programas de pelo menos vinte
emissoras e linhas telefônicas, que realizaram mais de setenta
mil horas anuais de transmissões ilegais. Caso único na história
universal de guerras, declaradas ou não.
Voltando a Cuba Independente e Democrática, podemos
dizer também que conseguiu aproximar-se de algumas altas
personalidades do aparelho político estadunidense, como Elliot
Abrams, ex-subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos. Até recentemente, Cuba Independente e Democrática
dizia manter um trabalho ativo em algumas cidades dos Estados
Unidos e da Venezuela, assim como relações em vários países
do continente e da Europa. Matos não esquece de dizer que
Cuba Independente e Democrática foi a primeira organização
contra-revolucionária que abriu um escritório na Polônia, no
momento em que balançava o chamado bloco do Leste. Como
92
outros setores do exílio reacionário que respondem à política
traçada em Washington, procurava influir para interromper
as relações comerciais com Cuba, tal como existiam até aquele
momento.
No entanto, também várias pessoas abandonaram a
militância alegando tratar-se de uma organização dirigida de
maneira inflexível e nepotista. Talvez o problema mais grave
para Cuba Independente e Democrática tenha ocorrido
quando a polícia canadense deteve vários de seus militantes,
acusados de tráfico de drogas. Jorge Roblejo, ex-membro da
CIA e da Brigada 2.506, garante que o filho de Matos, também
dirigente de Cuba Independente e Democrática, esteve
comprometido com o narcotráfico, junto com o locutor
Armando Pérez Roura.57
Hubert Matos, além de ter se atrasado, disse dispor de
apenas uma hora para a entrevista. E gastou hora e meia
tentando explicar sua versão sobre sua prisão e posterior
julgamento, em 1959. Deu-nos muito trabalho fazê-lo mudar
de assunto. Não estávamos ali para isso. Em três quartos de
hora liquidou nossas perguntas, enquanto que, de tempos em
tempos, voluntária ou involuntariamente, nos deixava ver que
usava um revólver na cintura.
– Senhor Matos, quais são as propostas que Cuba Independente
e Democrática, por meio de sua emissora, faz aos cubanos da
Ilha? E ainda, sabe se elas são bem acolhidas?
– Posso garantir-lhe que temos muita aceitação. Quem diz
isso são os próprios cubanos que chegam de lá ou telefonam...
– Desculpe, mas o pessoal da Fundação nos disse que eles
também têm uma acolhida muito boa.
57
Luis Báez: “Entrevista a Luis Manuel Martinez”. Obra citada.
93
– Mas os cubanos de lá nos disseram que existe uma grande
diferença, porque conosco eles se identificam. Sentem Rádio
Martí como algo distante. Com La Voz de la Fundación
também não se identificam muito. E é porque nós dizemos o
que o povo quer ouvir. Nossa proposta, que é muito clara, é
uma mensagem sincera, sem ódio nem vingança. Dizemos ao
povo cubano que Fidel não vai ceder a mudanças, mas que
tampouco vai deixar o poder. Então, logicamente, é necessário
removê-lo. Mas não só ele: também seu irmão e umas doze
pessoas mais. Porque aí está o problema central para Cuba.
Como fazer isso? Olhem, utilizamos uma palavra de ordem
que resume nossa proposta: o poder para o povo em aliança
com os militares.
Pela Voz del CID dizemos aos cubanos de lá que o modelo
de sociedade comunista fracassou. E como não serve, é preciso
desmanchá-lo. Entendem? Porque este sistema nega a liberdade
de expressão e religiosa, e assim asfixiou o povo cubano. Outra
coisa é fazer desmoronar o atual sistema econômico, porque o
Estado não pode continuar tendo o controle total da economia.
– Mas não se pode negar que...
– Sim, já sei o que vão me dizer. Sim, o sistema deu, por
muitos anos, educação, remédio, teto, um pouco de comida,
mas isso já se acabou, com a crise econômica. Por isso é preciso
removê-lo. Agora é preciso buscar uma liberdade pluripartidária.
E como eu lhes dizia, a aliança entre militares e o povo é
que deve se encarregar desses primeiros passos para a transição.
Esta aliança é que vai montar uma Junta de Salvação Nacional.
Mas que fique claro que, nessa Junta, os civis serão prioritários,
começando por aqueles que estiveram na resistência, tanto lá
como no exílio.
– Nessa Junta de Transição que propõe, o senhor acha que
terá um cargo?
94
– Consideram-me como uma das pessoas que pode ter
aspirações dentro de um novo governo em Cuba. Mas nunca
desejei subir a esse pódio. Claro que se chamam Cuba
Independente e Democrática, não necessariamente Hubert
Matos, para participar dessa primeira etapa, aí sim, deverá
participar.
– O senhor falava de “buscar uma liberdade pluripartidária”.
Seguindo a corrente da atualidade política mundial, isso se
converteu em um simples sinônimo de eleições. Não acha, senhor
Matos, que quando se chegar a eleições desse tipo, agora ou em
uma Cuba pós revolucionária, serão as organizações pró
estadunidenses que terão tudo a seu favor para ganhar? Isso é o
que se quer para o futuro de Cuba? Olhe o que aconteceu com a
Nicarágua.
– Nós e outras organizações dizemos que a Cuba pós
castrista não será uma Cuba americana. Sim, têm razão, aqui
tem gente que quer uma Cuba como Porto Rico, ou seja, são
anexionistas. Isso, não queremos. Eles podem ter muitos
milhões de dólares, mas nós também podemos consegui-los.
E é o que estamos tentando.
Cuba Independente e Democrática sabe que no pós
castrismo haverá grandes disputas, porque alguns pretenderão
priorizar o interesse pessoal ou de grupo, sobre o interesse
público. Mas, o que vai acontecer? Não vai chegar lá esta ou
aquela organização que, por ter mais peso econômico e
político, ou relação com os Estados Unidos, vai poder impor
sua vontade. Não somos anexionistas.
– Não estávamos falando de anexionismo.
– Claro que tampouco somos anti-norte-americanos ou
anti-europeus. Outra coisa é o interesse que temos no apoio
político e econômico dos Estados Unidos. Por isso aplaudimos
a proposta do presidente Clinton, no início de 1997, de dar
95
de quatro a oito mil dólares no contexto do que chamou de
“Plano de assistência para a transição em Cuba”, e que faz
parte da Lei Helms-Burton. É uma contribuição para a
transição que virá, logicamente, quando desaparecerem o
castrismo e o comunismo. Daí a urgência de que desapareçam.
Além disso, aplaudimos esta proposta porque deve ter caído
como uma bomba no coração das Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Pois, pela primeira vez, uma administração
norte-americana destaca o papel positivo que os militares
cubanos poderiam desempenhar nessa transição.
– Não acha que se existisse um descontentamento generalizado
nas Forças Armadas Cubanas, há muito teria havido um golpe
de estado, ainda mais quando se sabe que os Estados Unidos e,
sem dúvida, a Europa, o apoiariam imediatamente?
– É que os irmãos Castro e essa dúzia de pessoas
manipularam, encarceraram e fuzilaram os chefes militares que
se lhes opõem. Mas vai chegar o momento; já não está longe.
– Ainda temos dúvidas, mas preferimos voltar ao assunto.
Achamos que sua posição sobre a necessidade econômica e política
que têm dos Estados Unidos, fundamentalmente...
– Não. Deixem-me explicar-lhes. Nessa primeira etapa
precisamos do apoio dos Estados Unidos, mas também da
Europa. Porque uma das minhas grandes preocupações é com
que dinheiro vamos contar para reativar a economia. E
embora estejamos certos que os Estados Unidos vão nos
apoiar, também fui a vários países da América Latina e da
Europa para falar com banqueiros e governos. Sei que de
algum lado o dinheiro virá.
– Mas o senhor deve saber que empréstimos ou contribuições
econômicas inevitavelmente acarretam compromissos políticos.
– Sim, sei que esse dinheiro, essas ajudas, podem trazer
compromissos políticos. Claro, não vão dá-los a um novo
96
ditador. Mas os Estados Unidos e a Europa vão nos apoiar
porque o sistema que chegará à Cuba pós castrista terá afinidade
política com esses governos. Se estamos lutando pelo mesmo
modelo de sociedade livre, como a norte-americana, vão nos
apoiar. Mas, não. Não haverá um compromisso político em
que se negocie a soberania.
– Senhor Matos, respeitamos muito seu ponto de vista, mas vendo
a dependência econômica, política e militar que quase todos os países
latino-americanos, africanos, asiáticos, e até o ex-bloco do Leste têm
em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental, achamos que os
senhores pecam por otimismo.
– Mas conosco não será assim. E digam-me, quantos anos
Cuba esteve sob o domínio da URSS?
– Mas, sendo objetivos na análise, concluímos que não se pode
comparar o tipo de relação que existiu entre a URSS, Cuba e os
demais países do bloco do Leste. Entre esses países existiu um
intercâmbio econômico mais ou menos justo.
– Podemos discutir mais adiante o que ocorreu entre a
URSS e Cuba. Mas vocês podem estar certos que conosco
Cuba não vai perder sua soberania. Os americanos sabem que
lá vão encontrar a resistência do povo cubano, que é altamente
nacionalista...
– Senhor Matos, o senhor não vai negar que esse alto grau
de nacionalismo, de sentimento soberano, que o povo cubano
tem atualmente, foi obra da Revolução...
– Bem... Mas, bem, antes também existia um segmento da
população nacionalista...
Mas não se deve temer compromissos econômicos fortes
com os Estados Unidos. Se propõem algo que entre em choque
com o conceito de soberania que tenho de minha nação, ora,
não aceito. Não. Vamos tratar com os Estados Unidos de nação
para nação. A nova Cuba não pode aceitar que a cada dois ou
97
cinco anos os americanos classifiquem-na como democrática
ou não, pois perderíamos a soberania.
– Senhor Matos, continuemos. Então cai o atual governo
cubano, forma-se a Junta de Salvação e Cuba Independente e
Democrática faz parte dela. Quais seriam as primeiras medidas
que os senhores proporiam?
– Temos, há anos, um esquema programático para essa
etapa. Nele estabelecemos que fica proibido desalojar alguém
de sua casa; mas deve-se dar uma compensação aos antigos
donos. As empresas devem ser devolvidas a seus antigos
proprietários. Isso é importante, pois pode favorecer a entrada
de divisas e um reforço para a economia.
Também se deve, em sua presença ou não, julgar Fidel
Castro, seu irmão, e mais umas doze pessoas, pelos crimes
cometidos contra a nação cubana.
Deve-se intervir nas empresas estrangeiras, associadas ao
atual Estado cubano, por serem virtualmente cúmplices dessa
ditadura. E essas empresas ficariam sujeitas ao processo de
descentralização e de privatização da economia nacional que
propomos.
– Nessa transição, que papel deve desempenhar a União
Européia?
– Gostaríamos que a Europa desempenhasse um papel
muito importante na solução dos problemas cubanos. Eu
sempre digo que a Europa deixa Cuba fazer o que quer. Os
países europeus esquecem que Cuba foi sua colônia e, portanto,
não assumem o papel que lhes cabe historicamente,
principalmente a Espanha. Alegra-nos a preocupação de Aznar,
o presidente espanhol, de procurar uma solução para o
problema cubano.
Aznar, antes de ser presidente, esteve aqui e conversou
com a Fundação, conosco e com outros grupos. Disse-nos
98
que, se ganhasse as eleições, adotaria uma nova política para
com Cuba na União Européia. Também conversei com o
eurodeputado do Partido Popular espanhol, José Salafranca,
que se mostrou interessado em ajudar-nos. E fui recebido
pelo ministro de Relações Exteriores desse governo, senhor
Abel Matutes. A todos dissemos que derrubar a ditadura
castrista convinha a nossos interesses, aos dos europeus e aos
dos americanos. E pela maneira como agiram, vê-se que
compreenderam.
– Sabemos que vocês, outras organizações do exílio, assim como
entidades da Administração estadunidense, realizaram reuniões
com dirigentes de empresas que querem investir em Cuba.
– É certo. Dissemos a todos esses senhores que nos opomos
a que invistam em Cuba, em sociedade com Fidel Castro. Que
não garantimos nenhuma segurança a esses investimentos,
quando o regime cair; que não serão respeitados, pois foram
cúmplices do regime; que serão motivo de atritos. Agora, se
nos propõem uma boa ajuda econômica, pode-se negociar.
Deixamos claro para todos que nossa visita não era para discutir
investimentos, mas para fazer-lhes uma advertência.
Visitei vários governos, ou conversei com seus embaixadores. Por exemplo, o embaixador francês em Washington
nos disse que queriam ter um pé ali, para adiantar. Que, por
agora, eram pequenos investimentos e, que depois, quando
caísse o governo castrista, seriam grandes.
– Senhor Matos, passemos a um último assunto. Quais são as
relações que vocês têm com a chamada dissidência interna? Cuba
Independente e Democrática faz parte dela?
– Olhem, apoiamos essa dissidência. E fazemos isso
independentemente da coincidência com suas posições.
Quando se agruparam no Concílio Cubano lhes demos nosso
apoio. Além disso, daquela vez pediram que um dirigente de
99
Cuba Independente e Democrática em Cuba se envolvesse
publicamente. E lhes dissemos que, se aparecesse como
membro de Cuba Independente e Democrática, seria preso.
Mas concordamos em participar com o nome que tem nosso
movimento lá, e que é o Partido Solidariedade Democrática.
– E como funciona Cuba Independente e democrática no
interior de Cuba?
– Nosso movimento funciona como uma organização de
direitos humanos. E muita gente de Cuba Independente e
Democrática milita também em grupos de direitos humanos
que são muito conhecidos fora de Cuba... Mais detalhes, não
posso lhes dar... Formam células clandestinas de Cuba
Independente e Democrática...
– Finalmente, senhor Matos, para vocês, não há nada que
valha a pena na Revolução cubana?
– A Revolução cubana trouxe alguma coisa. Mas, nem
tanto. Claro, exceto na educação, na saúde, e... bem, o êxito
nos esportes. Mas, para as famílias, não trouxe nada importante.
Nós temos que tirar proveito dessa quantidade de técnicos,
profissionais, cientistas, e gente preparada que há em Cuba...
100
VI
“Os Estados Unidos não podem permitir que os europeus forneçam créditos ao
governo cubano, ou que invistam facilmente lá. Como os americanos e nós vamos
permitir que isso aconteça?”.
FRANCISCO JOSÉ HERNÁNDEZ
Presidente da Fundação Nacional Cubano-Americana
Seis meses depois de ter entrevistado a senhora Ninoska e
seu marido Roberto, estávamos outra vez na sede da Fundação
Nacional Cubano-Americana. Apesar da amável atenção que
nos davam, voltávamos a sentir aquele ambiente estranho,
indescritível. Devia ser porque, política e humanamente, não
aceitávamos as atividades que essa organização, a mais poderosa
do exílio reacionário, mantinha contra o governo e o povo
cubanos, como parte da estratégia estadunidense. Mas
estávamos dispostos a adiantar o trabalho e ali estávamos.
Sensações idênticas nos invadiram com a maioria dos
entrevistados. E não apenas em Miami.
Chegamos até o amplo e fresco escritório de Francisco José
Pepe Hernández, presidente da Fundação Nacional CubanoAmericana. Devíamos falar com ele, na impossibilidade de
entrevistar Jorge Mas Canosa, que, na época, era o diretor dos
diretores, o Chairman of the Board. Há muitos anos, Canosa
tinha aprendido a quase nunca dar entrevistas a quem não
101
pertencesse ao círculo de sua confiança: segundo ele, acabavam
distorcendo suas palavras. Assim se manteve até o dia de sua
morte.
Pois bem, desde que fizemos a primeira pergunta a
Hernández, e ele negou que a Administração Reagan fora pai
e mãe da Fundação Nacional Cubano-Americana, soubemos
que tampouco com ele a verdade seria protagonista.
Quando, em janeiro de 1981, Ronald Reagan se instalou
na Casa Branca, devolveu à CIA o papel de destaque
internacional que o Congresso lhe tirara desde meados da
década de setenta, por haver exagerado em suas atribuições.
E, como projeto estratégico da política para a América Latina,
acolheu o Documento de Santa Fé. O que combinava
perfeitamente com o vice-presidente e ex-chefe da CIA, George
Bush, assim como com o novo diretor da Agência, William
Casey, ambos obstinados em recuperar o poder, em Cuba e na
Nicarágua.
Na lógica daquele governo, para derrubar o recém instalado
governo popular sandinista, era necessário neutralizar o cubano,
que considerava seu suporte essencial. Devia-se, portanto,
caminhar decididamente nesse sentido. Mas, apesar de sua
mentalidade bélica, a Administração Reagan estava preocupada
com o desprestígio da contra-revolução cubana. As bombas e
mortes que produzira a Guerra pelos caminhos do mundo
estavam ainda em fogo na memória dos cidadãos.
Segundo diversos documentos, foi Roger Fontaine, um dos
ideólogos do Documento de Santa Fé, e responsável pela
América Latina no Conselho Nacional de Segurança, que
aventou “a possibilidade de criar um lobby no Congresso norteamericano, para justificar a implementação de uma política
mais agressiva contra Cuba”. Acolhida a idéia, Casey apresentou
um projeto onde propunha criar uma estrutura de relações
102
públicas, que convencesse os membros do Congresso da
estratégia elaborada pelos assessores de Reagan. Esta, como
desde os tempos de Kennedy, não devia aparecer como
vinculada à Administração, e sim como iniciativa e interesse
da contra-revolução cubana.
Foi Richard Allen, veterano da CIA, assessor de segurança
nacional de Reagan, sob a direção do Conselho Nacional de
Segurança, que se encarregou de selecionar um reduzido grupo
de milionários de origem cubana para por em pé o plano.
Coincidentemente, os quatorze primeiros escolhidos tinham
antecedentes ou pertenciam à CIA. Entre eles, o banqueiro e
ex-membro da Brigada 2506, Raúl Masvidal, e Carlos Salmán,
ligado ao Partido Republicano e íntimo da família Bush. Seu
primeiro Presidente Executivo foi Frank Calzón, ex-dirigente
das organizações terroristas Abdala e Frente de Libertação
Nacional de Cuba. Apesar de estar sob investigação por lavagem
de dólares, fez parte da direção da Fundação Nacional CubanoAmericana Luis Botifoll, presidente do Republic National
Bank. Outro personagem de peso naqueles primeiros anos foi
José Sorzano, ex-membro do Conselho Nacional de Segurança.
Quase imediatamente, a pedido de Allen, Jorge Mas Canosa
tornou-se o diretor dos diretores. Seu ininterrupto ativismo
político e os laços de amizade – reconhecidos pelo próprio
Canosa – que mantinha com Casey e Theodore Shackley, subdiretor de Operações Especiais da CIA, tornavam-no
merecedor do cargo.
Assim começou a Fundação Nacional Cubano-Americana.
Hoje é um monstro “assistencial” que não paga impostos; com
mais de cem abonados diretores, todos de extrema direita, que
contribuem com cotas anuais de cinco a cinqüenta mil dólares.
A Meta Executiva secreta no 77, conhecida internamente
como Projeto Democracia e assinada por Reagan, em janeiro
103
de 1983, serviu de alavanca para os objetivos da Fundação
Nacional Cubano-Americana. Vejamos. Quando, em fins de
1986, veio à luz o escândalo Iran-Contragate, soube-se que o
Projeto tinha um braço legal e outro clandestino. O primeiro,
que contava com o apoio do Congresso, chamava-se National
Endowment for Democracy (NED), e era supervisionado por
um oficial de Operações Especiais da CIA. Embora definido
como uma corporação privada e não lucrativa, seus fundos
foram aprovados no orçamento federal e canalizados pelas
estruturas dos partidos Republicano e Democrata, e
Organizações Não Governamentais (ONGs), como Freedom
House, o instituto católico Puebla, e o Instituto Americano
para o Desenvolvimento dos Sindicatos Livres, entre outros.
Como complemento de seu trabalho, utilizavam-se as
atividades da Agência para o Desenvolvimento Internacional
(AID), a Agência de Informação dos Estados Unidos, e demais
mecanismos da diplomacia pública estadunidense.
A National Endowment for Democracy se institucionalizou
como um programa para entregar dinheiro a organizações que
“promovam o aprimoramento da democracia” no exterior. Mas
por ela foram fluindo vultosas quantias que antes passavam pela
CIA, ou outras vias clandestinas, com destino a forças políticas,
de direitos humanos, humanitárias e de imprensa. Por Lei, a
National Endowment for Democracy não podia fornecer ajuda
a “trabalho de lobby ou propaganda destinado a influir nas
decisões de política pública do governo dos EUA”. Mas desde
sempre isso ocorreu. Em 1988 descobriu-se, sem conseqüências
jurídicas para os responsáveis, que tinha doado trezentos e
noventa mil dólares para a Fundação Nacional CubanoAmericana; por estranha coincidência, era uma quantia idêntica
à que foi “doada” pela Fundação Nacional Cubano-Americana
a políticos que apoiavam a agressão ao governo cubano.
104
Foram vários milhões de dólares entregues pela National
Endowment for Democracy aos diversos projetos da Fundação.
Sem contar que, como sócia privilegiada, a Fundação Nacional
Cubano-Americana serviu em muitas ocasiões de intermediária
para fazer chegar somas elevadas a outras organizações contrarevolucionárias, não só em Miami, como na Europa e em Cuba.
E, em quase todos os casos, para financiar supostas campanhas
pelos direitos humanos.
Com semelhante apoio, em pouco tempo a Fundação se
converteu em um monstro que devorava tudo o que se opusesse
a seus interesses; reivindicando quase tudo o que se propunha
no interior dos Estados Unidos. Segundo vários analistas, seu
êxito deveu-se a três aspectos. Um, pelo fato de ser o aparelho
a serviço da política de Washington, em muito transcendendo
o âmbito cubano, como ocorreu com Angola e Nicarágua. O
segundo, porque aprendeu sagazmente a fazer lobby, que no
caso estadunidense é a arte de molhar com dinheiro as mãos
de políticos-chave, no Congresso. Para isso, os membros
republicanos foram os preferidos. Mas não se economizou com
os democratas, quando foi necessário, como sucedeu com os
que apoiaram a Lei Torricelli. O candidato William Clinton
recebeu cerca de quatrocentos mil dólares para sua primeira
campanha, quando se comprometeu a apoiar a Lei. E, de
acordo com declarações posteriores de Mas Canosa, o
presidente teria obtido pelo menos dois milhões durante a
reeleição, embora nos registros oficiais aparecessem apenas
quatrocentos mil. E o terceiro aspecto de seu êxito: quando o
dinheiro, os contatos políticos ou pessoais não conseguiam
convencer, vinha a chantagem, a ameaça e... seu esquema
paramilitar.
Mas vejamos alguns casos exemplares, que podem revelar
uma parte da alma da Fundação Nacional Cubano-Americana.
105
Em outubro de 1976 foi dinamitado um avião da Cubana
de Aviación, nas costas de Barbados. Orlando Bosch e Luis
Posada Carriles foram detidos na Venezuela, acusados de serem
os responsáveis intelectuais. Ambos desempenharam um papel
de primeira grandeza na Guerra pelos caminhos do mundo.
Em fevereiro de 1988, Orlando Bosch foi libertado, e voltou a
Miami sem se importar com a ordem de prisão emanada do
FBI. Depois de dois anos de cadeia, foi deixado em liberdade
condicional. The New York Times disse, em editorial:
Em nome da luta contra o terrorismo, os EUA enviaram
aviões para bombardear a Líbia, e o exército para invadir
o Panamá. E, agora, a Administração Bush deixa em
liberdade um dos mais notórios terroristas do continente. E
por que razão? A única evidente é agradar ao sul da Flórida.
Segundo os relatórios do FBI, que se opunha a que o
libertassem, Bosch não era mais um “notório”: era o pior. Estando
preso, quiseram expulsá-lo, mas só Cuba aceitou recebê-lo para
julgá-lo. Vários meios de informação afirmaram que o Secretário
da Justiça dera a ordem de liberdade devido a “pressões políticas”.
De onde vinham? Pessoas como Monsenhor Román, o
congressista Lincoln Díaz-Balart e os diretores da Fundação
Nacional Cubano-Americana utilizaram seus contatos políticos
em benefício do terrorista. Sua principal defensora foi a
representante republicana cubano-estadunidense, Ileana Ros
Lethinen, que chegou a incluir a libertação como parte de sua
campanha eleitoral.
A política foi quem mais recebeu contribuições da
Fundação Nacional Cubano-Americana; seu chefe nas
campanhas eleitorais foi Jeb Bush, filho do então presidente
dos Estados Unidos; Jeb não só presidiu equipes de trabalho
106
na Fundação Nacional Cubano Americana, como mantém
relações de negócio com seus membros.
Vejamos o que aconteceu com Posada Carriles. Em 1985,
misteriosamente, evadiu-se. Em 1994, enquanto era solicitado
pelas autoridades venezuelanas, cubanas e estadunidenses,
publicou em Miami o livro Os Caminhos do Guerreiro. Nessa
espécie de biografia, reconhece o imenso apoio “econômico e
moral” que recebeu dos diretores da Fundação Nacional
Cubano-Americana na cadeia, para sua fuga e posterior
transferência para El Salvador. Neste país centro-americano,
integrou-se ao trabalho secreto de apoio à Contra nicaragüense.
Em um anexo da publicação diz que, dois dias depois de ter
chegado:
(...) recebi a visita do doutor Alberto Hernández (...) Um
grupo de Miami, de pessoas muito qualificadas, entre as
quais se encontravam Jorge Mas, Feliciano Foyo, Pepe
Hernández e outros, fizeram um “pool” para cobrir minhas
necessidades econômicas (...) Destinaram a mim uma
quantia suficiente de dinheiro, que chegava cada mês (...)
É preciso esclarecer que, na Fundação Nacional CubanoAmericana, Alberto Hernández foi o vicechairman; Foyo, o
tesoureiro; e Pepe Hernández, Presidente Executivo.
Mas, o que o terrorista não conta é que, segundo os registros
da polícia venezuelana, Mas Canosa esteve negociando sua
libertação com Gaspar Jiménez e Rolando Mendoza.
Posteriormente, estes dois últimos tiveram que deixar a Fundação
Nacional Cubano-Americana por seus compromissos quase
públicos com o tráfico de drogas, passando a ser os guardas de
Alberto Hernández. Em novembro de 1996, também da
clandestinidade, e em dois programas, o Canal 23 entrevistou
107
longamente Posada Carriles. Por esse meio de informação, com
reconhecida relação com a Fundação Nacional CubanoAmericana e os círculos mais reacionários, fez um chamado para
que se empreendessem novas ações terroristas contra Cuba.
E naquele mesmo momento ele as estava preparando: teve
papel decisivo na série de bombas que explodiram em Cuba
entre abril e setembro de 1997. Como anunciaram as
autoridades da Ilha, o que foi confirmado por uma extensa
investigação publicada pelo El Nuevo Herald em 16 de
novembro de 1997, Posada Carriles foi o “elo chave” na série
de atentados contra centros turísticos. Ele mesmo recrutou o
autor material e seus cúmplices em El Salvador, e conseguiu
que, em Miami, fossem arrecadados quinze mil dólares para
os gastos. Segundo as declarações do terrorista salvadorenho
Raúl Ernesto Cruz León, capturado pela polícia cubana como
responsável, a Fundação Nacional Cubano-Americana foi a
principal contribuinte, e seus principais dirigentes tinham
contato direto com Posada Carriles.
Mas voltando um pouco, e tentando seguir cronologicamente, deve-se dizer que Posada Carriles não “saiu” diretamente da prisão venezuelana para El Salvador por mera
coincidência. É que nesse país, principalmente, a Fundação
Nacional Cubano-Americana e outras organizações contrarevolucionárias tinham um papel no segundo braço do Projeto
Democracia, clandestino, e coordenado de Washington pelo
coronel Oliver North, sob a direção do Conselho Nacional de
Segurança. Este braço estava destinado a apoiar logística e
financeiramente a guerra suja contra o governo sandinista da
Nicarágua. Félix Rodríguez era um dos poderosos na América
Central, e o centro de operações, a base militar salvadorenha de
Ilopango. Daí a CIA coordenava todo o abastecimento de armas
e demais equipamentos de guerra para a Contra mercenária.
108
Também era usada como passagem de aviões carregados
de cocaína e maconha para os Estados Unidos. Droga que era
negociada com os chamados cartéis da máfia colombiana. Algo
que pode parecer irreal, extremamente difícil de imaginar,
quando a quase totalidade dos meios de comunicação no
mundo repetia dia após dia que a Administração estava em
guerra total contra o narcotráfico. Mas na investigação realizada
pelo Senado estadunidense, conhecida como Comissão Kerry,
não resta a menor dúvida que Reagan e Bush estavam a par do
tráfico que começava na Bolívia e na Colômbia, passava pela
América Central, e chegava a Miami, onde a droga era
distribuída para as demais cidades para ser vendida. Foi o mais
grave do escândalo Iran-Contragate, mas foi minimizado:
acabava de cair a cabeça de Richard Nixon e era simplesmente
impossível cortar a de outro presidente, ou vice-presidente, da
suposta primeira grande democracia do mundo.
Ramón Milián Rodríguez, cubano-estadunidense, lavador
de dólares para a máfia colombiana, reconheceu, na Comissão
do Senado, haver entregue, entre 1983 e 1985, cerca de dez
milhões de dólares à Contra, distribuídos segundo as instruções
de Félix Rodríguez. Membros da Fundação Nacional CubanoAmericana serviram de contato entre os dois homens. Félix
Rodríguez, homenageado por Bush, em 1976, com a mais
alta distinção da CIA, negou tudo e acreditaram nele. E Milián
Rodríguez não era um desconhecido: fora convidado para a
posse de Reagan, por ter doado cento e oitenta mil dólares
para sua primeira campanha presidencial, entregues por
“amigos” na Colômbia.
Também Jorge Mas Canosa teve que declarar na Comissão
Kerry: seus telefones pessoais, datas de encontros e anotações
sobre seus deslocamentos pela América Central constavam
da agenda do coronel North. Nessa investigação, assim como
109
em outras, jornalísticas, ficou provado que Canosa esteve
várias vezes em Ilopango. O chefe dos chefes da Fundação
Nacional Cubano-Americana garantiu que apenas deu “ajuda
humanitária aos contras”. O Presidente Executivo da
Fundação, ou seja, nosso entrevistado, também esteve
bastante envolvido na guerra mercenária pela “liberdade” da
Nicarágua, acompanhado de amigos não muito católicos. Até
no livro Cuba em guerra. História da oposição anti-castrista,
1959-1993, pode-se ler: “O exílio cubano, simpático às forças
de oposição, deram ampla ajuda aos “contras” da Nicarágua
(...). Francisco Hernández “Papito” e René Corvo (...)
combateram ativamente na frente guerrilheira”. Lembremos
que Corvo, ex-abdalista, foi acusado pelo FBI e pela Comissão
Kerry de tráfico de armas e drogas para a Contra. Ele admitiu
a primeira acusação.
Todas as investigações tornam evidente que desde o começo
do governo Reagan, muitos cubano-estadunidenses foram
enviados pela CIA a El Salvador, como assessores do esquema
nascente. Outros foram designados para Honduras para,
aparentemente, prestar assistência médica aos mercenários.
Nessa área e na militar teve grande responsabilidade o
vicechairman, Alberto Hernández. Já havia experiência nesse
tipo de apoio, por terem servido na força reacionária da
UNITA, em Angola, em meados dos anos setenta.
Seja como for, o proceder delituoso do braço clandestino
do Projeto Democracia não era novidade. Simplesmente foi
cópia adaptada das operações encobertas que a CIA organizou
no Sudeste asiático.
Em janeiro de 1990, os membros do Board of Directors
da Fundação Nacional Cubano-Americana receberam um
documento confidencial, assinado por Jorge Mas Canosa, que
dizia:
110
(...) a tática a seguir para garantir a FNCA reside no
reconhecimento de toda a comunidade no exílio, dos irmãos
cativos na Ilha, do governo dos Estados Unidos, e do resto
dos governos e povos do Mundo Livre, o que tornará mais
fácil para nós desempenhar o importante papel de
protagonista que nos cabe na nova Cuba.
Apesar de seu conteúdo ter vazado, pôde-se constatar que
boa parte de suas orientações foi levada à prática. Vejamos as
mais ilustrativas:
Organizar viagens pelos países membros da Comunidade
Econômica Européia, da Europa do Leste e da América
Latina e Caribe com o propósito de nos apresentar como
força beligerante no conflito cubano (...)
Formar uma Task Force que sistematize contatos com o
Conselho de Segurança Nacional, a CIA e o FBI para
garantir, agora mais do que nunca, a identificação da
política e das ações a realizar contra o governo stalinista de
Cuba, um intercâmbio maior de informações de inteligência
e o apoio econômico necessário para levar nossos planos a
vias de fato (...)
Organizar uma Task Force que sistematize e aprofunde as
relações de trabalho estabelecidas com o Departamento de
Estado para, de forma conjunta, elaborar e desenvolver novos
planos de política internacional que respondam à atualidade
(...) O presidente e vice-presidente da Task Force são os
embaixadores José Sorzano e Armando Valladares, respectivamente, e como Assessora Especial estará também a
Embaixatriz Jeanne Kirkpatrick (...)
111
Criar uma Task Force cuja primeira responsabilidade é
conseguir a ida ao ar de nossa televisão Martí. Paralelamente,
realizará estudos e planos conjuntos com a USIA/VOA para,
em futuro imediato, integrar a programação da Rádio e TV
Martí às estações de rádio e TV sob nosso controle junto com
outras que venhamos a adquirir proximamente (...). Realizará
estudos e propostas para neutralizar ou modificar as posições
de jornalistas e meios de imprensa que durante estes anos se
destacaram por serem contra a linha da FNCA (...)
Criar-se-á outra Task Force cuja responsabilidade consiste
em neutralizar aquelas pessoas ou organizações que reclamem
para si ou tentem impedir que a Fundação Nacional
Cubano-Americana assuma a liderança que conquistou (...)
A palavra de ordem a seguir será a compra de vontades;
mas, com aqueles que não ouvem outra linguagem senão a
da violência, deveremos falar sua própria linguagem.
Não vacilaremos diante de nada nem de ninguém; não
queremos, mas se for necessário correr sangue, o sangue
correrá. (Em negrito no original).
Em 23 de novembro de 1997 morreu Jorge Mas Canosa.
Todos os líderes do exílio, nos Estados Unidos e na Europa,
que tiveram que enfrentar sua arrogância e intransigência
política, reconheceram-lhe naquele momento, o mérito de ter
sabido navegar entre os mecanismos da vida política
estadunidense, e de ter feito da comunidade cubanoestadunidense “um poderoso grupo de pressão em Washington”. Até o presidente Clinton, que dias antes admitira na
Argentina que a Fundação Nacional Cubano-Americana era
112
seu guia quando o assunto era Cuba, disse que Canosa fora
uma “voz poderosa a favor da liberdade de Cuba”.
Falou-se em orfandade do exílio, ao não se vislumbrar um
sucessor “moral e político”. Uns acreditam que voltarão às duras
e violentas disputas pela liderança única. Outros, mais otimistas,
apostam em que as posições moderadas, incluindo as dos
chamados dialogueiros, poderão ganhar um imenso terreno. A
maioria, que desconhece as intimidades da política implementada em Washington contra Cuba, vê a Fundação Nacional
Cubano-Americana como um projeto que nasceu, caminhou e
chegou ao auge devido ao ativismo de Canosa. É indiscutível
que ele lhe impôs sua dinâmica autoritária, envolta em
sagacidade. Mas o essencial, como vimos nos parágrafos
anteriores, está em que a Fundação Nacional CubanoAmericana, assim como as outras organizações do recalcitrante
exílio, foram projetos da direção política dos Estados Unidos:
aquela que sonha anexar Cuba. Por algo Carlos Alberto
Montaner garantiu à imprensa espanhola: “o desaparecimento
de Mas Canosa não significa nenhuma mudança na política
norte-americana, porque esta é irredutível no que se refere ao
regime castrista”.
Mas falemos de nosso entrevistado. Fugindo da Revolução,
Pepe Hernández saiu de Cuba em 1960. Logo em seguida se
envolveu com o diretório Revolucionário Estudantil (DRE),
organização de influência católica que a CIA utilizava para
realizar tarefas de propaganda, sem excluir atos terroristas.
Como conta em El exilio indomable, antes que a CIA o
infiltrasse em Cuba, recebeu um treinamento muito rápido,
de um par de semanas”, em técnicas de sabotagem e até em
“como matar um indivíduo com um arame”. Já na Ilha,
“fizemos vários ataques e atos contra o regime, inclusive o
seqüestro de um professor da universidade, e coisas relacionadas
113
com atentados.” Quando regressou foi enviado à Guatemala,
para um dos acampamentos onde a Agência preparava os
mercenários que tentariam a invasão pela Baía dos Porcos.
Desembarcou com a Brigada 2506, e em poucas horas foi
capturado pelo Exército Rebelde. Ao ser libertado, alistou-se
na Marinha de Guerra dos Estados Unidos, onde alcançou a
patente de capitão. Ali, em Forte Benning, encontrou de novo
Mas Canosa. Terminado esse primeiro curso mandaram-no
para Quântico, na Virginia, para a Escola de Inteligência dos
“Marines”. Por suas capacidades e dedicação foi transferido
para o Pentágono, para realizar tarefas de inteligência, sob as
ordens de Alexander Haig, que naquela época, era tenentecoronel.
Durante a terrível guerra que travaram a França e,
particularmente, os Estados Unidos contra os povos da
Indochina, foi deslocado para o Camboja, onde “foi
encarregado de uma unidade de interrogação de prisioneiros”.
De novo nos Estados Unidos e sem deixar suas funções de
militar, reiniciou sua colaboração com os grupos contrarevolucionários cubanos que realizavam atos terroristas contra
Cuba: “podia ajudá-los sobretudo com treinamento”. Em 1965,
“durante a invasão americana a Santo Domingo, também
participei (...) Minha atividade consistia, sobretudo, como
sempre, na parte de inteligência”. Posteriormente, e sem deixar
suas tarefas com os “Marines”, entrou na universidade.
Ao finalizar seus estudos, por volta de 1973, formou uma
empresa agro-industrial, Agrotec International, e se instalou
definitivamente em Miami. Esta empresa começou a “fazer
trabalhos em um monte de países, inclusive alguns da África”.
Hernández não especifica de onde apareceu o dinheiro para
tudo isso, embora esclareça que seus sócios eram um veterinário
e um nutricionista. Diz-se, sem que seja possível confirmar,
114
que parte do dinheiro investido provinha de arrecadações e
negócios obscuros que, como outros dirigentes revolucionários,
realizou.
O que o atual presidente da Fundação Nacional CubanoAmericana reconhece é que Vargas Llosa, apesar de suas
atividades como empresário, jamais deixou certos contatos
especiais em Washington.
Durante toda essa época de expansão do meu negócio eu
tivera algumas relações também com os serviços de
inteligência norte-americanos. Há serviços que os negócios
independentes norte-americanos, as empresas privadas,
realizam voluntariamente para as agências de inteligência
dos Estados Unidos (...) O sistema funciona assim: se você
vai à África e tem negócios no Egito, no Quênia ou na
Nigéria, – e eu tinha negócios em todos esses países – e pode
ajudá-los, vai prestar-lhes um bom serviço. De maneira que
eu lhes dava o que em termos de inteligência se chama
“cobertura”. Dá-se cobertura a alguns indivíduos que
trabalham por conta própria (para os serviços de
inteligência), mas que, de alguma forma, estão nas empresas
(...) Há centenas de empresas em todo o mundo nessas
condições, porque é um trabalho realizado muito freqüentemente.
Com as primeiras luzes dos anos oitenta, deu-se a saída em
massa pelo porto de Mariel; o empresário Hernández teve uma
ativa participação na acolhida aos recém chegados.
Estive pessoalmente, uma vez mais, pondo em prática meu
treinamento em assuntos de inteligência ao interrogá-los
(...) Então, eu, que tinha um grupo de indivíduos
115
especializados, interrogava-os a fundo. Nos interrogatórios
determinávamos quem era essa gente (...) Esse trabalho era
realizado em coordenação com o FBI. Estivemos dois ou
três meses ali (...)
Quase desde o começo, desde que era um projeto,
Hernández fez parte da Fundação Nacional CubanoAmericana. No livro mencionado descreve, sem economizar
nomes de pessoas, como altos níveis hierárquicos do
Departamento de Estado e da CIA, inclusive importantes
membros do Congresso, durante o governo Reagan, estiveram
envolvidos na criação e posterior desenvolvimento da Fundação
Nacional Cubano-Americana. E, isso sim, tenta parecer
ingênuo no momento de estabelecer quem fertilizou e pariu o
projeto: “não sei exatamente de quem veio a idéia original,
porque estas coisas no começo tudo é muito difuso e ocorrem
muitas conversas muito incertas”. Ele, sem dúvida, colaborou
com muitíssimos grãos de areia, por intermédio de seus
contatos: “Alguns de meus melhores amigos, durante todo este
processo, são indivíduos que chegaram às posições mais altas
da CIA.”
Em 1991 foi eleito presidente da Fundação Nacional
Cubano-Americana. Para o cargo que ocupa, Hernández não
é uma pessoa que fale com fluidez. Foi parco nas respostas e
dava até vontade de adiantar-lhe as palavras. Como dizíamos,
depois de sua primeira resposta, não quisemos aprofundar
assuntos mais candentes. Por exemplo, mordemos a língua
para não lhe perguntar porque se vinculou aos irmãos Ignácio
e Guillermo Novo, na comissão de informação e relações
públicas da Fundação Nacional Cubano-Americana, tal como
informou The New York Times, em 27 de novembro de 1990.
Por acaso não conheciam seus antecedentes como terroristas e
116
traficantes de drogas? Não, não nos atrevemos: contentamonos com sua versão sobre coisas mais gerais.
Apesar do aparente esquecimento de quase todos os meios
de comunicação no mundo, continua pesando sobre Pepe
Hernández um problema judicial um tanto delicado. Trata-se
do que o FBI adiantou em Porto Rico, e que o envolve na
preparação de um atentado contra a vida do presidente Fidel
Castro. Pensava-se realizar o atentado durante a reunião de chefes
de Estado Ibero-americanos, no final de 1997, na Venezuela.
Embora Hernández não tenha sido preso, foram detidos outros
seis contra-revolucionários cubanos, entre eles José Antonio
Llama, também diretor da Fundação Nacional CubanoAmericana e da Fundação Hispano Cubana. (Como era de se
esperar, no começo de dezembro de 1999, um tribunal federal
declarou inocentes essas pessoas, apesar das provas em contrário).
Atualmente, e depois da morte de Jorge Mas Canosa, é o grande
chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana. E, como tal,
tentou estabelecer, junto à justiça espanhola, em novembro de
1998, “ações legais, a nível mundial, contra Fidel Castro e seus
cúmplices, por genocídio”. Inspirava-se no tão falado caso do
ditador chileno, Augusto Pinochet. Obteve uma total negação,
ficando sem recursos para continuar os trâmites.
Por último, é interessante saber como Pepe Hernández
descrevia a personalidade de Mas Canosa, que morreria alguns
meses depois: “Jorge é um homem de um caráter autoritário,
não há a menor dúvida; ou seja, um indivíduo que gosta que
sua vontade seja feita.” Um pouco mais adiante, também no
livro El exilio indomable, diz de si mesmo: “Provavelmente
sou mais autoritário do que ele.”
Ao sair da entrevista, em uma mesinha na recepção,
pegamos o boletim no 390 da Representação Cubana no Exílio.
Pelo menos têm a honestidade de não negar as raízes...
117
– Senhor Hernández, por decidiu formar a Fundação Nacional
Cubano-Americana?
– Embora se diga que a Fundação foi iniciativa da
Administração Reagan, a verdade é outra. Olhem, desde 1978
havia interesse de uma série de elementos, no interior dos
Estados Unidos, principalmente, em promover a aproximação
entre os dois países. Ou seja, para que se levantasse o embargo.
E um grupo de pessoas do exílio decidiu opor-se a essa situação,
pois não se podia dar legitimidade a esse regime. Assim foi
nascendo a Fundação, sem nenhuma relação com Reagan ou
com o Departamento de Estado.
– Pode-se dizer que a Fundação Nacional Cubano-Americana
chegou a este mundo com um poder imenso, a ponto de deixar de
lado as outras organizações do exílio. Como o senhor explica isso?
– Não se pode saber porque uma organização se desenvolve
e prevalece sobre as outras. Possivelmente será devido ao gênio
de seus fundadores, ou por seus recursos econômicos, ou devido
à clareza de seus princípios. Mas a realidade é que a Fundação
nasceu com um conhecimento bastante efetivo do mecanismo
do sistema político norte-americano. Nós, em geral, fomos
pessoas que, por diferentes razões, tínhamos estado em contato
direto com a política deste país, e sabíamos quão flexível e
dúctil é. Depois da comunidade judaica, o exílio cubano foi a
minoria que mais logrou penetrar neste sistema. Por isso
quisemos aprender com ela. E por isso não negamos que fomos,
não treinados, mas estimulados e dirigidos por ativistas judeuamericanos, nos primeiros anos.
Agora, os demais grupos cubanos do exílio nunca
tinham se esforçado por levar suas preocupações e
interesses até Washington. Todos achavam que gritando e
fazendo manifestações em Miami, iam conseguir repercussão no Congresso ou na Casa Branca. Nós nos
118
organizamos para influir na política americana e lá era o
lugar ideal para fazê-lo.
Claro que não nos limitamos a aquela cidade. Fomos para
Moscou, antes da queda da URSS, e trouxemos os russos.
Convidamos Boris Yeltsin em 1989, quando este ainda era
um proscrito. E Mas Canosa foi com Armando Valladares para
a Polônia, para entrevistar Lech Walesa. E o resultado foi que
se conseguiu o cancelamento da ajuda econômica e militar da
URSS e do bloco socialista ao regime castrista.
A influência da Fundação pode ser atribuída a um modus
operandi que ainda não fora utilizado. Mas, também, e
sobretudo, porque lutamos com a verdade. Até o reverendo
Jesse Jackson, congressista totalmente oposto a nós, acabou
nos apoiando. Quando, em março de 1994, Mas Canosa
testemunhou no Congresso norte-americano sobre a violação
aos direitos humanos em Cuba, o reverendo se aproximou e
lhe disse que queria ser seu amigo e dos cubanos livres.
– Mas o senhor diz que a Fundação Nacional CubanoAmericana conseguiu influir, tanto no Congresso, como na Casa
Branca, por ser um “clube de milionários” que sabem distribuir
dinheiro entre os políticos.
– Não vou perder meu tempo defendendo a Fundação
dessas bobagens. Isto não é um clube de milionários.
Claro, nunca o escondemos, a junta de diretores é
composta de homens com muito êxito econômico, e que
por isso fazem contribuições extraordinárias. Mas é que
dificilmente encontramos, em qualquer país da América
Latina, e dentro do processo histórico do exílio cubano,
homens com tanto êxito que dediquem seu tempo e seu
dinheiro para tentar recobrar a liberdade de seu país. E
acho que o povo cubano, num futuro não muito distante,
sentirá orgulho deles.
119
– Senhor Hernández, uma das observações mais comuns sobre
os diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana é que
sua maior ambição está em liderar um governo pósrevolucionário.
– Essa é outra grande bobagem. Porque, antes de mais nada,
nós não somos um partido político; estamos interessados em
conseguir a liberdade de nosso povo. Claro, se, depois de
expulsar o comunismo de Cuba, algum de nós chega a ser
eleito para um cargo importante no novo governo, é porque
merece, tanto quanto qualquer outro...
– Desculpe a interrupção, mas parece que a Fundação Nacional
Cubano-Americana não exclui a possibilidade de entrar em Cuba
pela mão dos Estados Unidos...
– Quantas bobagens! Como se perde tempo! Nós
demonstramos, desde o princípio, que demos voz ao povo
cubano e não ao governo norte-americano. Estamos certos que,
se não fosse pela Fundação, o governo americano já teria
negociado com Castro. Se vocês lerem com atenção nosso Plano
de Transição, preparado para quando possamos voltar, verá
que não proclamamos que Cuba será outro Porto Rico. Mas o
certo é que Cuba é uma nação privilegiada por estar a noventa
milhas dos Estados Unidos, e por isso são possíveis relações
econômicas cordiais e amistosas, para uma integração de
mercados. O que queremos dizer é que não pode haver
normalização de relações entre Cuba e os Estados Unidos
enquanto lá não exista democracia.
– Senhor Hernández, utilizou o termo “transição”...
– A transição em Cuba começou mentalmente faz tempo.
Desde que as esferas de poder, dentro do regime, compreenderam
que não se chegaria a um acordo com os Estados Unidos, devido
à intransigência de Castro. Porque Castro quer chegar a entenderse com os americanos, mas sem entregar poder nem liberdades.
120
Nós sabemos que existe um círculo, até dentro das Forças
Armadas, consciente que Castro não vai salvar Cuba. E estamos
dispostos a chegar a um entendimento com aqueles que estejam
no poder e aceitem devolver as liberdades ao povo cubano.
– Senhor Hernández, quais foram as maiores vitórias da
Fundação Nacional Cubano-Americana nestes anos de
atividade?
– Fundamentalmente, levar a realidade de Cuba e dos
cubanos pelo mundo. E para isso, tivemos uma quantidade de
êxitos que seria muito longo enumerar. Mas, entre os primeiros,
estão Rádio Martí e Tele-Martí. Isso deu grande impulso à
Fundação. Também nos movemos em diferentes campos, como
o humanitário, ajudando os cubanos necessitados, o que nos
deu um grande espaço entre os exilados. Também temos uma
série de projetos, como a Missão Martí, que está sendo
preparada como um corpo de paz para quando chegue a
libertação. Com a Missão Martí treinamos mais de dois mil
jovens cubanos, para que vão e ajudem por um ano ou dois na
reconstrução do país. Temos a Fundação para os direitos
humanos em Cuba, com a qual estivemos sete vezes na
Comissão de Direitos Humanos de Genebra.
Como vêem, a Fundação se movimentou em diferentes
campos, mas só se ouve falar de seu trabalho político, como as
Leis Torricelli e Helms-Burton, onde, não vamos negar, tivemos
uma participação substancial.
– Já que o menciona. Devido à possibilidade de os Estados
Unidos aplicarem definitivamente a Lei Helms-Burton, o que
pode afetar as relações com os países da União Européia, Cuba
tornou-se tema de discussão...
– Sim, sabemos que na Europa aumentou o interesse pelo
problema cubano. E esse era um de nossos objetivos: a Lei
Helms-Burton era para isso. Pois se os investidores europeus
121
não entendiam com boas maneiras, era necessário mostrar-lhes
a questão de outra forma. Porque os europeus não podem
continuar mandando seus investidores para que aproveitem e
roubem o que não lhes pertence. Agora, se vão continuar fazendo
isso, que paguem o preço. Devem enfrentar as conseqüências:
agora, com os americanos e depois, na Cuba libertada, conosco.
– Mas parece que o presidente Clinton quer negociar com os
governos europeus os pontos que ensejam mais conflito.
– Pode ser que a Administração Clinton e os europeus
negociem. Mas não se pode esquecer que isso teria que passar
pelo Congresso norte-americano. E ali não vão derrubar essa
Lei. Nós conseguimos tirar a política dos Estados Unidos, com
relação a Cuba, das mãos das administrações, que mudam a
cada quatro anos. Já não é o presidente que pode levantar o
embargo, mas sim os verdadeiros representantes do povo norteamericano. E isso é um triunfo do exílio cubano, porque a
realidade é que a Europa se defrontou com uma encruzilhada:
escolhem os Estados Unidos ou Castro. Mas eles não vão brigar
com os americanos, e sabem muito bem que não podem ser
bons amigos de ambos. E isso os ingleses nos disseram. Os
Estados Unidos não podem permitir que os europeus dêem
créditos ao governo cubano, ou que invistam facilmente lá.
Como os americanos e nós vamos permitir que isso aconteça?
– Senhor Hernández, a Fundação Nacional CubanoAmericana tem representação em algum país europeu?
– Temos delegações em Praga, em Moscou e na Espanha.
Nossa presença nesses países pretende evitar que se estabeleçam
relações de governo que favoreçam o regime castrista. Além
disso, há também uma decisão da Junta diretora de estabelecer
outro escritório em Bruxelas. Estamos nesse processo. Sabemos
que o trabalho na Europa é diferente, mas estamos aprendendo.
Vamos fazê-lo bem e como Fundação. Porque nesse momento
122
é muito importante estar na União Européia para dirigir a
atenção dos europeus, em oposição ao regime cubano.
– De todo modo, já conseguiram fincar os pés na Espanha,
tanto pela proximidade com o Partido Popular, como pela
Fundação Hispano-Cubana.
– Sim, as relações com o Partido Popular são muito boas.
Não o negamos. Mas não temos nada a ver com a Fundação
Hispano-Cubana. Claro que a título pessoal eu e outros
diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana fazemos
parte de sua direção, que eles chamam de Patronato. Mas é
dirigida por espanhóis. Mais, dentro da Fundação Hispânica
há pessoas com as quais não concordamos quanto aos métodos
de luta, como Elizardo Sánchez. Mas, em geral, todos estamos
de acordo em que queremos liberdades para o povo cubano.
– Parece-nos que os senhores apóiam o trabalho que está
desenvolvendo o Embaixador especial do presidente Clinton para
assuntos cubanos...
– Saudamos e apoiamos seu trabalho. Realizou um trabalho
muito bom junto às Organizações Não Governamentais do
Canadá e da Europa. Não deixou de insistir com eles para que
não aceitem as condições que o governo cubano lhes impõe
para estarem presentes lá. E sabemos que foi bem acolhido
entre algumas Organizações Não Governamentais da Espanha,
da França e da Holanda. Vamos complementar seu trabalho:
já estamos nos aproximando, e dialogando com essas
organizações, para que nos apoiemos mutuamente.
– Senhor Hernández, uma última pergunta. Que relação tem
a Fundação Nacional Cubano-Americana com a chamada
dissidência interna cubana?
– Nós, através dos anos, apoiamos e estimulamos a
dissidência. Sobretudo a partir do trabalho com os direitos
humanos. Fomos uma das primeiras organizações a começar
123
esse trabalho lá, até convencê-los que deviam se organizar a
partir dos direitos humanos, principalmente, por ser uma causa
muito nobre e bem recebida em todo o mundo. Fizeram isso e
vejam que bons resultados: por toda a Europa se fala dos
dissidentes cubanos pelos direitos humanos. É preciso insistir
nisso, para que esses grupos e outros tipos de dissidentes, como
os jornalistas independentes, cumpram o papel central que
tiveram em seu momento os da URSS e da Polônia, para
derrubar o regime. Isso é primordial.
La Voz de la Fundación e a Rádio Martí tiveram uma
atuação de primeira ordem para ajudar a organizá-los, e levarlhes nossas propostas; para ajudá-los a buscar o caminho da
liberdade.
A dissidência sabe que estamos com eles; que os europeus
começaram a apoiá-los. Que na Holanda, na Alemanha e na
Espanha há Organizações Não Governamentais que mantêm
seu trabalho de direitos humanos; que, na Espanha e em Paris,
os Jornalistas Sem Fronteiras se dedicaram a dar a mão aos
jornalistas independentes.
Por isso a dissidência em Cuba está, a cada dia, criando
mais coragem e desafiando o regime.
124
VII
“Consideramos que, em Cuba, não há uma política oficial de tortura”.
RAMÓN CERNUDA - Colecionador de obras de arte. Representante no exterior da
Coordenação de Organizações de Direitos Humanos em Cuba
A década de oitenta “será lembrada, nos anais da
oposição anti-castrista, como a era da luta pelos direitos
humanos e do uso efetivo das telecomunicações para
enfrentar o regime”.58 Têm razão. Mas a história parece ser
mais complexa.
Voltando no tempo, e embora não tenhamos referências
para garantir que o fez por iniciativa própria, ou instruída pela
CIA, foi a organização terrorista Abdala que começou a marcar
o compasso na utilização do tema “direitos humanos”, como
elemento ideológico de guerra. No final dos anos setenta e
começo da década seguinte, apesar de ter sido “parte vital da
luta armada da FLNC”. Foram “os abdalistas que representaram o exílio em fóruns internacionais, criando comitês de
direitos humanos”.59
58
Enrique Encinosa. Obra citada.
59
Idem.
125
Mas foi a Administração Reagan que começou a campanha
minuciosa e calculada nesse sentido. Todas as possibilidades
foram sendo viabilizadas e centralizadas, para que nos grandes
fóruns mundiais se começasse a questionar o governo cubano,
por supostas violações aos direitos humanos. Possivelmente
isso se enquadrava na Disposição Executiva no 77, que em
outro de seus parágrafos recomendava: “ir construindo pressões
públicas contra Cuba, para evitar que a opinião pública e em
especial a estadunidense e a européia, limitem a política de
confronto com o governo cubano”. Para tal finalidade, como
já foi dito, a Disposição permitia ao Conselho Nacional de
Segurança coordenar esforços entre as agências, apoiando
pública e secretamente os grupos que, em qualquer lugar do
planeta, fossem do agrado ou coincidissem com os objetivos
traçados em Washington, ou seja, nesse caso que pretendessem
implodir o sistema cubano.
Mas, apesar de ter sido um plano do governo estadunidense,
foi a Internacional Democrata Cristã, com sede em Bruxelas,
que saiu na frente, com um grupo seu em Miami, fazendo
lobby. Com esse propósito animou, entre outros, José Ignácio
Rasco, ex-dirigente do Conselho Cubano Revolucionário, exmembro da Alpha 66 e ex-agente da CIA, para que tire das
cinzas o Movimento Democrata Cristão, fazendo-o participar
dos órgãos internacionais. A campanha pela libertação do expolicial de Batista, Armando Valladares, serviu como prática.
Muito em breve seria seguida por outras organizações contrarevolucionárias, como Cuba Independente e Democrática, a
Fundação Nacional Cubano-Americana, e a Plataforma
Democrática Cubana, esta última em Madri.
Como sinal do êxito de sua estratégia, com as últimas luzes
dos anos oitenta, foi a pique o bloco do Leste. Todos esperavam
que Cuba, não podendo contar com esses sócios privilegiados,
126
isolada no Caribe, naufragasse em questão de semanas ou
meses. Nada. Embora já fizesse parte fundamental do projeto
desestabilizador incentivar a criação de todo tipo de
organizações opositoras ao Estado, triplicaram naquele
momento, sendo orientadas a priorizar a bandeira dos direitos
humanos. Os estrategistas estadunidenses e seus aliados já
tinham provado sua eficiência: “O êxito obtido por
movimentos de direitos humanos nos países comunistas tinha
se baseado em sua ênfase restrita a este tema, para não serem
acusados de elementos beligerantes de oposição”.60
Na introdução à entrevista do senhor Hernández,
descrevemos as intimidades políticas da National Endowment
for Democracy. Vejamos agora uns poucos exemplos de seu
apoio financeiro a organizações contra-revolucionárias que
começaram a levantar a bandeira em prol dos direitos
humanos e da democracia em Cuba, durante aquela
conjuntura particular dos três primeiros anos da década de
noventa. As fontes são os próprios relatórios da National
Endowment for Democracy. Como já se disse, o principal
receptor desta organização foi a Fundação Nacional CubanoAmericana.
Freedom House recebeu trinta mil dólares para produzir
quatro livros, com tiragem de cinco mil exemplares cada um.
Seriam entregues a sediciosos em Cuba, para distribuição entre
a população.
O Comitê Cubano Pró Direitos Humanos, representado
em Miami por Ricardo Bofill e dirigido em Cuba pelos irmãos
Gustavo e Sebastián Arcos, recebeu trinta mil dólares, em 1990,
por intermédio da Fundação Nacional Cubano-Americana.
No ano seguinte, obteve quarenta e quatro mil dólares
60
Idem.
127
diretamente. Este dinheiro serviu para distribuir informação
contra-revolucionária e cobrir deslocamentos de seus membros
para a Espanha, Itália, França e Rússia.
O Instituto para Assuntos Internacionais do Partido
Republicano recebeu oitenta mil dólares para um encontro
promovido pela Fundação Nacional Cubano-Americana. Dele
participaram funcionários governamentais e acadêmicos da exURSS, ex-Checoslováquia, Hungria, Estados Unidos, assim
como expoentes do setor mais reacionário do exílio. O tema
central era de como favorecer as mudanças em Cuba, e a forma
de canalizar apoio sistemático aos grupos denominados
dissidentes. Parte do encontro foi transmitida a Cuba pela
Rádio Marti.
No final de 1992, Carl Gershman, diretor da National
Endowment for Democracy, informava sobre o aumento de
fundos para esse tipo de atividade. Mas, sobretudo, foi
anunciado o aumento do apoio à contra-revolução interna.
Sem nenhum pudor, garantiu que se utilizaria o turismo como
forma de fazer entrar dinheiro e propaganda contrarevolucionária, tal como se fizera na URSS e na Polônia.
Como ratificação ao que fora proposto pelo diretor da
National Endowment for Democracy, o presidente William
Clinton assumiu as recomendações de Donald E. Schulz, do
Instituto de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra
do Exército estadunidense, vinculando-as ao que fora
estipulado na Lei Torricelli. Parágrafos:
Promover os contatos interpessoais entre cidadãos cubanos e
norte-americanos mediante correspondência, telefone,
serviços de transporte e turismo; assim como intercâmbios
culturais e científicos; estabelecimento de escritórios de
imprensa etc. (...) dando facilidades para que os elementos
128
dissidentes se comuniquem abertamente e estimulem uma
maior fragmentação (...)61
Com a Lei Helms-Burton em cima da mesa, o apoio político
e econômico para a contra-revolução tornou-se abundante, a
partir de fontes oficiais e privadas. Por exemplo, no começo de
dezembro de 1997, o próprio Helms exerceu o poder de seu
cargo como presidente da Comissão de Relações Exteriores do
Senado, para exigir que se entregasse, o mais rapidamente
possível, uma remessa de quase dois milhões de dólares a várias
organizações “promotoras dos direitos humanos”, que têm como
objetivo “fomentar a democracia” no interior da Ilha.
Foi assim que a ultra conservadora Associação de ExFazendeiros Cubanos recebeu oitocentos mil dólares para que
seu recém criado Instituto pela Democracia em Cuba enviasse
materiais e desse “ajuda” à contra-revolução interna.
A Frank Calzón, por intermédio do Free Cuba Center,
foram entregues quinhentos mil dólares para que continuasse
“promovendo a sociedade civil em Cuba”.
À International Foundation of Electoral Systems foram
entregues trinta e seis mil dólares para que produzisse análises
sobre os desafios técnicos de “eleições livres em Cuba”.
Ao ex-diretor da Rádio Martí, Ernesto Betancourt, foram
atribuídos cento e dez mil dólares para que realizasse pesquisas
de opinião com os viajantes cubanos que chegam aos Estados
Unidos.
O muito ilógico de tudo isso é que a Lei Helms-Burton,
em sua Seção 109, referenda o “direito” estadunidense de
61
Donald E. Schulz: EE. UU. y Cuba: de la estrategia de conflicto al compromisso
constructivo. Instituto de Estudios Estrategicos de la Escuela Superior de Guerra del
Ejercito de Estados Unidos. 1993.
129
contribuir moral, financeira e materialmente para o
desenvolvimento da contra-revolução em Cuba. Mas, devido
ao embargo, e aqui está o irracional, o Departamento do
Tesouro estabelecera disposições radicais para sancionar
qualquer cidadão estadunidense que receba dinheiro
proveniente de Cuba (do governo, entidade, ou cidadão
cubano), com privação de liberdade por até dez anos e uma
multa que pode chegar aos duzentos e cinqüenta mil dólares.
Mas existem outros elos importantes na cadeia. É o que se
pode perceber facilmente pela leitura de certos documentos.
A quase totalidade dos meios de informação do mundo,
assim como várias organizações internacionais de direitos
humanos e políticas, vêm insistindo na “luta heróica de
um punhado de homens e mulheres dissidentes e
independentes” que, sozinhos e sem recursos, enfrentam o
sistema cubano. Mas, em março de 1994, as autoridades
da Ilha tornaram público um documento assinado pelo
Chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana
(SINA), Joseph Sullivan. O documento “Top Secret”, que,
segundo disse o governo cubano, “fora trazido por mãos
amigas”, estava dirigido ao Departamento de Estado, ao
Immigration and Naturalization Service (INS) e à CIA.
Classificado com a referência H 18422 693-4, “Assunto:
Situação atual do programa para os refugiados cubanos”, o
documento foi entregue oficialmente à ONU e aos meios
de comunicação pelo governo cubano: nem uma reação.
Isso, apesar de que contradiz frontalmente o relatório
apresentado naquela época pelo Relator Especial da ONU,
Carl-Johan Groth, sobre supostas violações aos direitos
humanos em Cuba.
Consideramos revelador o relatório do diplomata Sullivam
e que, portanto, pode levar a sérios questionamentos sobre a
130
realidade e a honestidade da dissidência. Dada sua importância,
transcrevemos a maior parte do texto.
No processamento de solicitações de vistos para refugiados
continuam se apresentando casos pouco sólidos. A maioria
das pessoas apresenta seus pedidos, mais do que por um
verdadeiro temor de perseguição, pela deterioração da situação
econômica. São particularmente difíceis, para os funcionários
da Seção de Interesses norte-americana e do Immigration and
Naturalization Service, os casos apresentados pelos ativistas
de direitos humanos. Apesar de que temos feito todo o possível
para trabalhar com as organizações de direitos humanos, sobre
as quais exercemos mais controle na identificação dos ativistas
verdadeiramente perseguidos pelo Governo, os casos de direitos
humanos representam a categoria menos sólida do programa
de refugiados.
As solicitações apresentadas pelos membros dos grupos de
direitos humanos se caracterizam por constituírem descrições
gerais e imprecisas sobre supostas atividades de direitos
humanos, pela falta de provas convincentes de perseguição
e por não cumprir os parâmetros de processamento
fundamentais que o programa estabelece. Nos últimos meses
persistiram as acusações de solicitações fraudulentas por parte
de ativistas e venda de avais testemunhais, por parte dos
líderes de direitos humanos. Devido à falta de provas
documentais verificáveis, como norma, os funcionários da
Seção de Interesses norte-americana e os membros do
Immigration and Naturalization Service consideraram os
casos de direitos humanos como os mais susceptíveis de fraude
(...) Embora os funcionários da Seção de Interesses norteamericana tenham tentado atender os casos que estejam de
131
acordo com os critérios do processamento, continuaram sendo
flexíveis com relação a casos que não cumprem alguns dos
requisitos, mas que são de interesse para os Estados Unidos.
Já foi reconhecido abertamente, por alguns dos ex-presos
políticos, que recorrem ao estatuto de refugiados para escapar
da cada vez mais deteriorada economia, e não por causa de
um verdadeiro temor de perseguição e pressão (...)
Lamentavelmente, a qualidade de muitas das solicitações,
em sentido geral, é ruim. São poucos os ex-presos políticos
aceitos como refugiados atualmente, quando se compara com
os de anos atrás. Como regra, cumpriram sentenças muito
mais curtas, em comparação aos primeiros que ingressaram
no programa. A maioria desempenhou papéis de menor
importância nos grupos contra-revolucionários, integrou o
sistema de reeducação política, para que suas sentenças fossem
diminuídas e, posteriormente, abandonaram as atividades
políticas para reintegrar-se à sociedade cubana (...)
Verificou-se um aumento do número de casos de direitos
humanos desde 1992. Apesar disso, este aumento não parte
de um maior nível na atividade de direitos humanos, do
incremento em sua composição, nem da repressão governamental. A maioria dos casos raramente expõe evidências
convincentes de perseguição e, com freqüência, só oferece
provas mínimas, pouco confiáveis, de participação em
atividades de direitos humanos.
Os testemunhos dos líderes de direitos humanos geralmente
contêm descrições vagas de atividades de direitos humanos
como o apoio moral às famílias de presos políticos. Estas
descrições demonstram com exatidão o pouco nível das
132
atividades e a atitude de não enfrentamento da maioria
dos grupos de direitos humanos em relação ao governo
cubano (...)
A tendência geral foi a falta de elementos comprobatórios
de que a pessoa é de fato um ativista, o que deixa esta
categoria praticamente aberta a todo aquele que a
reivindica. Os jovens que foram surpreendidos tentando sair
ilegalmente do país, a partir do colapso econômico de 1989,
começaram a apresentar suas solicitações como ativistas de
direitos humanos. Os líderes dos direitos humanos
informaram aos funcionários da Seção de Interesses norteamericana que estão conscientes de que a maioria de seus
membros só entra nos grupos para fazer jus às vantagens
oferecidas pelo programa de refugiados (...)
Nos casos em que as provas testemunhais dos ativistas são
pobres, mas o nível de compromisso com os Estados Unidos
está bem definido, os funcionários responsáveis pela avaliação
preliminar concedem ao solicitante o benefício da dúvida.
O líder de um dos grupos disse que alguns abandonavam
sua organização quando percebiam que esta não dava aval
a seus membros. Queixou-se das pressões de membros que
pediam avais convincentes sobre suas atividades de direitos
humanos.
O INS, em suas últimas visitas, foi testemunha de reiterados
incidentes de fraudes e supostas fraudes cometidas por ativistas
de direitos humanos (...) Também reuniu-se com chefes de
organizações de direitos humanos para determinar seus objetivos, o número de integrantes e outros aspectos dos principais
133
grupos. A Seção de Interesses norte-americana limitou a aceitação de testemunhos de grupos aos líderes em que confiamos (...)
Lamentavelmente, estas medidas nem sequer impediram as
supostas fraudes nem as amargas recriminações entre os altos
líderes de organizações de direitos humanos. Pouco antes da
visita em dezembro, do INS, Gustavo Arcos e Jesús Yanez, do
Comitê Cubano Pró Direitos Humanos, acusaram Aída
Valdés de vender avais fraudulentos. Esta, por sua vez, acusou
Arcos e Yanez de cometer práticas similares com fins lucrativos.
Esta situação exacerba a preocupação geral com relação ao
perigo de confiar em testemunhos. A profunda rivalidade e as
lutas internas entre grupos de direitos humanos tornam
simplesmente inevitáveis as repetidas acusações de fraude
vigentes (...)
Durante uma reunião com a SINA e o INS, Félix Bonne,
chefe do grupo Corrente Cívica, qualificou o programa para
refugiados de “o objetivo primeiro de muitos líderes de
organizações de direitos humanos” (...)
Se bem insistimos ao máximo com os grupos de direitos
humanos para que apresentassem os casos mais sólidos, as
entrevistas, em sua maioria, ofereceram casos não contundentes
(...) A maioria dos ativistas só consegue descrever vagamente
sua participação em grupos de direitos humanos (...)
Os problemas encontrados ao processar a maioria dos casos
de direitos humanos indicam que é necessário que a Seção
de Interesses norte-americana continue trabalhando em
estreita coordenação com o INS para selecionar casos sólidos.
134
Não obstante, a Seção de Interesses norte-americana
continuará sendo flexível apresentando casos que, embora
não cumpram todos os requisitos, por sua natureza possam
vir a ser úteis aos interesses dos EUA.
Dados os interesses expressos da CIA no tema dos direitos
humanos, e sua crescente participação e maior conhecimento
dos distintos grupos de direitos humanos, sugerimos uma
cooperação mais estreita com a Seção de Interesses norteamericana, de acordo com nossos interesses comuns.
Mas, embora com um perfil muito baixo, desestabilizar o
sistema, apoiando-se em pessoas ou grupúsculos no interior,
não é apenas uma meta do governo estadunidense. Também os
europeus participam: “Na maioria das Chancelarias da Europa
ocidental, um conselheiro ou secretário tem, entre suas funções,
ouvir os militantes dos direitos humanos (...) Durante muito
tempo, esta discreta atenção foi oferecida pelo conjunto de
missões diplomáticas.”62 Para sermos um pouco mais precisos,
retomemos o que William Claes expôs, em 1994. Naquele
momento ocupava o cargo de Ministro de Relações Exteriores
da Bélgica, passando depois a ocupar a Secretaria Geral da
OTAN. Claes respondia a uma pergunta do deputado Van
Nieuwenhuysen, sobre porque a Bélgica mantinha uma
Embaixada em Cuba. Resposta:
A presença de uma Embaixada belga em Cuba nos permite
tentar contribuir, junto com nossos aliados da União
Européia, para uma transição pacífica para a democracia
62
Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du
pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993.
135
(...) Igualmente, este foi o motivo da presença belga nos
diferentes países da Europa do Leste, onde nossas missões
diplomáticas puderam reagir rapidamente às mudanças
políticas e econômicas.63
Agora sim, vamos a Ramón Cernuda. É um homem
endinheirado, que se dedica à compra e venda de obras de
arte, e que, de um momento para o outro, tornou-se popular
em Miami. Tudo começou em 1989, quando agentes da
alfândega invadiram sua casa, acusando-o de traficar com obras
de arte cubanas, depois do embargo. Poucos dias depois, Mas
Canosa se vangloriou, pelo rádio, de ter pressionado o fiscal,
Dexter Lethinen, marido da congressista Ileana, a realizar a
ação. Cernuda tinha cometido o grave erro de questionar os
procedimentos utilizados pelo ex-chefe da Fundação Nacional
Cubano-Americana para desenvolver suas atividades contrarevolucionárias. Por fim a justiça federal deixou o caso sem
efeito.
Os meios de informação em Miami fizeram de Ramón
Cernuda seu assunto preferido, quando tornou-se público que
era o representante no exterior de Elizardo Sánchez, que dirige
em Havana o grupúsculo Comissão de Direitos Humanos e
Reconciliação Nacional.
Cernuda se converteu em escândalo a partir do momento
em que Sánchez propôs o diálogo como meio de abalar o
sistema. Porque, como já sabemos, falar em diálogo em Miami
é algo delicado. Sánchez, nas tantas conferências que
pronunciou no exterior, e apesar de repetir que é apolítico,
que luta pelos direitos humanos, propõe pressionar Fidel Castro
para que inicie as transformações políticas e econômicas
63
Camara de Representantes de Belgica: “Preguntas y Respuestas (GZ 1993-1994...).
136
necessárias à dissolução do sistema socialista, sendo o único
com poder necessário para implementar uma transição. Não
impede que em seguidamente declare que Castro é o principal
obstáculo a essas mudanças. Quando chamam sua atenção para
essa contradição, responde que “este é um dos paradoxos
cubanos”.
Como representante, Cernuda realizou uma ativa promoção
internacional de Sánchez, a ponto de conseguir que, em 10 de
dezembro de 1996, este recebesse a mais alta distinção que o
governo francês concede a quem desenvolve atividades em prol
dos direitos humanos no mundo. A placa e os quase vinte mil
dólares lhe foram concedidos por “dar ajuda legal e assistência
humanitária às vítimas de repressão governamental”. Não se
soube publicamente que tipo de assistência prestou, nem a
que vítimas, e menos a que repressão se faz referência. Enquanto
isso, exatamente há um ano, a Anistia Internacional dizia em
um boletim que várias pessoas, entre elas familiares de presos
cubanos, tinham ido à casa de Sánchez para cobrar um dinheiro
do instituto católico Puebla, Organização Não Governamental
estadunidense financiada pela National for Endowment
Democracy, que teria sido canalizado por seu intermédio.
O governo francês concedeu-lhe a distinção, sem que se
questionasse o fato de que o laureado fora um dos animadores,
no interior de Cuba, da chamada Coordenação Democrática
Cubana.64 Essa espécie de grupo “federativo” se organizou sob
os auspícios da Plataforma Democrática Cubana, com
dirigentes tão reacionários e anexionistas quanto Ignacio Rasco
e Carlos Alberto Montaner, e da qual Hubert Matos estaria
próximo. Sánchez recebeu o prêmio poucos meses depois de
64
Carlos Alberto Montaner: Cuba hoy. La lenta muerte del castrismo, Fundacion para el
Analisis y los Estudios Sociales, Partido Popular espanhol, no 27, Madrid, 1995.
137
ter passado a integrar a direção central da Fundação HispanoCubana, cargo que passou a compartilhar com Mas Canosa,
outros quatro dirigentes da Fundação Nacional CubanoAmericana, Carlos Alberto Montaner, e conhecidas figuras do
conservadorismo espanhol.
Para Eloy Gutiérrez Menoyo, ex-preso político e dirigente
de um grupo que apóia o diálogo com o governo cubano,
Sánchez “se uniu à extrema direita que quer cortar a cabeça de
Fidel Castro”.
A realidade é que Sánchez entra e sai regularmente de Cuba;
diz no exterior o que quer contra o governo cubano,
contradizendo constantemente as afirmações de Cernuda; e
se mantém muito elegante e esbanjando saúde. Ou seja, ao
contrário do que dizem os comunicados de algumas
organizações internacionais de direitos humanos, em sua vida
não se vislumbra nenhum martírio.
– Senhor Cernuda, internacionalmente tem-se a idéia que o
exílio em Miami desempenha um papel de primeira grandeza na
situação política cubana. Além disso, que este exílio é básico para
mudar o sistema atual. Isso é correto?
– Um dos grandes problemas deste exílio é que quis para si
um papel de protagonista nos processos de mudança em Cuba.
Exigiu sempre um papel principal que não lhe cabe porque,
nem histórica nem politicamente, pode cumprir esse papel.
Ainda dentro de Cuba, aqueles que se opõem ao governo
olham às vezes com certa desconfiança para nós, que estamos
no exterior, pois sabem que vivemos outra realidade social,
econômica, política e cultural. Situação que se agrava com
relação aos que vivemos nos Estados Unidos, já que
historicamente a nação cubana teve que lidar com uma corrente
de pensamento político de tipo anexionista. Desde finais do
138
século XVIII e durante todo o século XIX, em Cuba existiram
cubanos que achavam que nosso destino devia depender dos
americanos. E até hoje isso se mantém. Foi um componente
minoritário, mas que, por possuir muito poder, pôs em perigo
o projeto de uma nação independente. Isso já se viu em 1898,
quando os Estados Unidos ocuparam o país, e esses cubanos
formaram uma estrutura republicana que pôs a Ilha quase como
um protetorado dos norte-americanos.
Nos anos sessenta chegou a Miami muita gente que fez
parte da Revolução, do processo contra Batista. Mas também
chegaram muitos aliados de Batista e gente da alta burguesia.
Uns e outros, em sua maioria, desenvolveram uma tendência
para a extrema direita, defendendo a proposta de ingerência e
hegemonia norte-americana. Mas não se trata da anexação
formal, é a visão de que os Estados Unidos devem desempenhar
um papel ordenador e orientador no futuro da nação cubana.
Até hoje, esta é a força dominante deste exílio.
Por isso pode-se ver como a Lei Helms-Burton é
aplaudida aqui, embora pretenda impor uma política de
extraterritorialidade, e que, em seus itens mais ofensivos,
diz à nação cubana como deve organizar sua economia, seu
sistema pluripartidário, sua liberdade de imprensa, e até a
Constituição. É uma receita de ordem social, política e
econômica que se deve implantar; se não, os Estados
Unidos, pela Lei, não levantam o embargo. Aplaudem para
que a nação cubana comece o século XXI como começou o
século XX
Tivemos um presidente, nosso primeiro presidente, dom
Tomas Estrada Palma, cidadão norte-americano, que foi eleito
em 1902, sem estar em Cuba. E aqui há gente que se propôs
como candidato à presidência de Cuba, com passaporte
americano na mão, e o apoio dos norte-americanos.
139
Então, é natural que um exílio que por si mesmo está
desvinculado dos processos sociais internos de seu país, e está
radicado na nação que não abandona suas pretensões
hegemônicas, seja visto com reservas. Este exílio tem um papel
a desempenhar, mas não o de protagonista principal. Seu papel
deve ser o de estimular processos autóctones internos sem
determiná-los de fora. Um papel de apoio.
– Com essas posições, senhor Cernuda, fica fácil entender
porque o senhor é uma figura controvertida no exílio de Miami.
Mas, agora, conte-nos o que pensa sobre a situação política em
Cuba.
– Pensamos que a sociedade cubana deve viver um processo
de abertura, em que o governo acabe por compreender que
seu modelo político não corresponde à realidade atual cubana
ou mundial. A proposta do governo cubano é totalitária: nós
– o governo – vamos organizar e resolver tudo na sociedade.
Alguém disse por aí que o comunismo nunca foi tão longe
como em Cuba: organizaram tudo a partir do Estado. Mas
esse Estado começou a enfrentar crises econômicas que já não
lhe permitiam resolver a totalidade dos problemas da nação,
produzindo-se vazios e necessidades. O problema cubano, de
fundo, está no afã do Estado em controlar o poder político em
sua totalidade.
– Senhor Cernuda, mas não se pode esconder que o estado
cubano demonstrou que seu sistema político produziu resultados
muito positivos no que se refere ao desenvolvimento social, cultural,
da saúde...
– Não nego que Cuba teve excelentes resultados na saúde,
na educação, nos esportes. Mas não foram os professores, nem
os médicos, nem os esportistas, os responsáveis; foi o governo,
a partir de uma proposta totalitária estatal. Mas o ontem já foi
para o vinagre, pois esse modelo já não corresponde às
140
necessidades. Por isso o governo deve empreender agora uma
transição baseada em um pacto.
– Baseada em um pacto com quem?
– Entre o governo e toda a população. Porque vou lhes
dizer algo honestamente: a oposição em Cuba não apita nada.
Não existe uma oposição que ponha esse Estado em perigo.
– Senhor Cernuda, como assim, não existe uma forte oposição
interna ao sistema cubano? Não é o que se proclama aos quatro
ventos?
– Existe uma situação caótica, ou com um potencial
caótico, dentro da sociedade cubana. Mas em nenhum
momento lhes falei de forças reais que ponham o Estado
em perigo, porque não existem. Existe um punhado de gente
que, a partir do ativismo pelos direitos humanos, criou uma
oposição.
– Essas transformações tão necessárias, segundo o senhor, como
devem ser encaminhadas?
– Não pedimos transformações imediatas. Pode-se ir
devagar. É possível que demorem dez anos ou mais, mas que
se vejam passo a passo.
– Lemos em algum lugar que o senhor propõe que o Partido
Comunista Cubano aprenda com o PRI mexicano. Explique-nos
isso, porque sabemos que o PRI, além de ser completamente
corrupto, não soube nem respeitar o nacionalismo mexicano e foi
entregando o país aos estadunidenses...
– Correto. Mas o PRI transitou de partido único a partido
dominante, e está há cinqüenta anos no poder. O Partido
Comunista Cubano e o governo têm suficientes recursos e
lastro na população para fazer essa transição, sem repetir os
erros do PRI.
– Senhor Cernuda, e o que acontece se o governo cubano não
realizar essas transformações que o senhor propõe?
141
– Existe o perigo da extrema direita, em Washington e em
Miami, chegar ao poder em um momento de anarquia, em
conseqüência da morte de Fidel Castro. E digo de Washington
porque, embora vocês não acreditem em mim, nessa cidade
está a cabeça do cachorro. Washington não é a cauda. Não se
enganem. Em Washington existe historicamente uma pretensão
de domínio sobre Cuba, a que jamais renunciaram.
– Mas acreditamos que a “cauda”, em Miami, não é um poder
muito desprezível. Pelo menos tentam demonstrá-lo.
– Olhem, vocês sabem que a cauda sempre segue a cabeça
do cachorro. Os da cauda têm poder econômico, pois seus
integrantes são multimilionários, o que os transforma em
poder político. São poder político e social, pois aqui há gente
que bate na porta da Casa Branca e é recebido; ou passeia
pelos corredores do Congresso como em sua própria casa.
Imaginem, controlam quase toda a Flórida. E estão com a
cabeça do cachorro porque será esta que lhes entregará o poder
em Cuba.
– Senhor Cernuda, no início nos dizia que em Cuba a
população via com desconfiança o exílio de Miami. Mas, se fosse
o caso, o senhor acha que toleraria que essa minoria estadunidense
tomasse o poder?
– Em Cuba, a população não está disposta a tolerar essa
minoria dominante do exílio. Mas, na minha opinião, se o
Estado cubano esgotar as reservas de patriotismo, insistindo
num modelo caduco, levando a população ao desespero, em
um dado momento poderia aceitar qualquer outra coisa.
– E aqui em Miami, o que pensa a maioria da comunidade
cubana?
– A maioria do exílio se desligou do debate político. Em
Miami há cerca de um milhão e duzentos mil cubanos e
quantos há, ativos na política? Cinqüenta mil? O resto está
142
vivendo sua vida, sua subsistência diária. Os que têm parentes
na Ilha, preocupados em enviar-lhes algum dinheiro.
– Senhor Cernuda, vamos falar de outro assunto delicado.
Internacionalmente, muitos estados e instituições agem em relação
ao governo cubano como se este fosse dos mais repressivos. Qual é
a realidade, do seu ponto de vista?
– Olhem, a mais visível violação dos direitos humanos em
Cuba, é um presídio de três mil a cinco mil pessoas. Destas,
cinqüenta por cento são presos de opinião. Mas, para nós, não
existe em Cuba uma política oficial de tortura. O governo
cubano não aplica a tortura. Tem uma política de maus tratos,
porque não há atenção médica e alimentação apropriada para
os presos. No passado, sim, existia tortura psicológica. Mas,
no passado. E mais, a população penal diminuiu.
– Como assim, a população carcerária diminuiu, quando em
todo lugar, seja em Miami, Madri ou Londres, afirma-se que está
sempre aumentando?
– Sejamos honestos. Olhem, o Estado percebeu que não
necessita dessa arma para controlar os poucos perigos políticos
que tem no país. E por três motivos fundamentais.
Um. As Leis Torricelli e Helms-Burton foram um presente
importante para o regime. Por que? Se eu vivo em Cuba e leio
o conteúdo delas, fico horrorizado. E entre escolher entre o
mal conhecido, que é Castro, e este que me apresentam como
bom lá dos Estados Unidos, fico com o mal conhecido e deixo
de estar na oposição.
Dois. Um setor importante da sociedade cubana prioriza
uma solução econômica, em lugar de envolver-se em problemas
de tipo político. Além disso, não se pode negar que a situação
econômica, embora lentamente, vem melhorando.
E o terceiro motivo importante, é o pacto de imigração
assinado em 1995 entre os governos dos Estados Unidos e
143
Cuba. Pois em Havana, cada semana, oitenta pessoas ganham
na “loteria”. Ou seja, que a Seção de Interesses rifa, outorga,
esta quantidade de vistos. Então as pessoas dizem, muito
sabiamente, que em vez de tornar-se oposição preferem esperar
que seu número seja premiado para poder sair do país. Porque,
aliás, não é que o governo cubano proíba a saída das pessoas,
são as embaixadas que não dão vistos.
E lhes garanto, com estas três coisas neutralizou-se a
oposição interna.
144
VIII
“Ouçam bem: faz falta mais reação dos exilados e do governo americano
contra esses comunistas!”
RICARDO BOFILL
Comitê Pró Direitos Humanos em Cuba. Miami
“Personalidade confusa, capaz de acessos repentinos de
cólera (...), de manifestar uma atração indestrutível pelo poder
e a publicidade pessoal (...)”65 Foi a primeira descrição que
lemos de Ricardo Bofill enquanto preparávamos este trabalho.
Seja como for, mantivemos nossas reservas, porque nos
relatórios publicadas por importantes organizações internacionais de direitos humanos, em meados dos anos oitenta, sua
imagem era muito positiva. Resumindo, Bofill fora para elas o
primeiro líder brilhante, o mais carismático e audaz da nascente
dissidência interna, tendo apenas o ideal da liberdade.
Dez minutos depois de estar em sua casa, ouvindo-o,
cruzamos olhares incrédulos. Era este o personagem que a
Anistia Internacional passeou pela Europa, dando conferências
e a quem a grande imprensa dedicou páginas inteiras?
65
Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du
pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993.
145
Em 1968, Bofill foi condenado a quatro anos de prisão
por participar de uma organização contra-revolucionária
chamada “microfração”. Foi acusado de espionagem e complô
contra a Revolução. Segundo os autos, Bofill produzia e enviava
documentos para o exterior, acusando a direção cubana de
pouco confiável por ser de “extração burguesa”; de “não ser
suficientemente fiel à URSS”; ao mesmo tempo em que pedia
aos governantes soviéticos e da Alemanha oriental “que
exercessem pressão político-econômica para forçar Castro a
estruturar um sistema marxista diferente”.66
Lembremos que, quando Ronald Reagan chegou à Casa
Branca, reativando a agressão contra Cuba, usou a tática de
isolar o governo cubano, jogando a cartada dos direitos
humanos. Ao mesmo tempo, Bofill, já em liberdade,
renovava seus vínculos com velhos colegas da microfração,
assim como com diplomatas, agora principalmente de países
ocidentais, e organizava um pequeno grupo que se diz pró
direitos humanos. Os relatórios que esse grupo enviava
clandestinamente para o exterior acabavam sendo utilizados
pela delegação estadunidense na ONU, contra o governo
cubano. Segundo ele mesmo, os contatos iniciais para
canalizar tudo isso “foram com a Anistia Internacional e a
Comissão de direitos Humanos da UNESCO”.67 Vale a
pena comentar que naquele momento a embaixatriz de
Cuba na UNESCO era a senhora Marta Frayde, que foi
posteriormente presa em seu país por manter contatos com
agentes da CIA, durante sua permanência na UNESCO.
Justiça seja feita, nessas atividades primárias dos já
mencionados no exterior, dissidentes pró direitos humanos,
66
67
Enrique Encinosa: Obra citada.
Idem.
146
não apenas a senhora Frayde acompanhava Bofill. Também o
fizeram Gustavo Arcos, ex-embaixador na Bélgica, e Elizardo
Sánchez, ex-funcionário do Ministério de Relações Exteriores.
Em agosto de 1986, Bofill ingressou na Embaixada francesa,
onde ficou até janeiro de 1987. Quando a deixou, por vontade
própria, foi caminhando até sua casa, sem que ninguém
prestasse atenção nele. Poucos meses depois, o grupúsculo se
dividiu devido à disputa entre Sánchez e Bofill, que queriam
o poder. E como dividir o dividido foi norma histórica da
contra-revolução cubana, em junho de 1988 uma pessoa ligada
a Sánchez, Tânia Díaz, decidiu formar seu próprio grupo.
Quatro meses depois a senhora Díaz anunciava a Miami que
contava com uma organização de dez mil quinhentos e oitenta
e dois membros, “cifra extravagante”. Tempos depois a senhora
Díaz “fez uma declaração púbica, arrependendo-se de suas
atividades anti-castristas e acusando os dirigentes dos comitês
na Ilha de trabalhar para a CIA”.68
Pouco antes, em março de 1988, os meios de informação
cubanos tinham publicado uma reportagem onde ficavam
provadas as relações de Bofill com diplomatas da Seção de
Interesses dos Estados Unidos em Havana. A televisão mostrouo, recebendo dinheiro deles, e até traindo outros contrarevolucionários. Ainda que as autoridades não o tenham
processado judicialmente, saiu de Cuba em outubro. Enquanto
em seu país Bofill era apenas mais um que partia, no exterior
davam-lhe as boas vindas, sendo a Anistia Internacional uma
das organizações que mais espaço abriu para ele na Europa.
Mas, pouco a pouco, ao cabo de alguns meses, foi deixando
de ser notícia. Assim ficou, como um contra-revolucionário
mais, em um canto de Miami.
68
Idem.
147
Segundo as listas que andam pelo exterior, existem em Cuba
grupúsculos formados até por uma pessoa, mas com nomes
muito pomposos: Comitê internacional de apoio à democracia
Abraham Lincoln; Fraternidade de homens de negócios do
evangelho negado... Em 1992 garantia-se que existiam sessenta
e cinco; em janeiro de 1998, na última vez em que a revimos, já
eram trezentos e sessenta69, ou seja, aparentemente surgiram
duzentos e noventa e cinco em cinco anos. O que equivale,
mais ou menos, à produção de um grupúsculo a cada seis dias.
Curiosamente, em 1961, dois anos depois da Revolução, quando
também Washington priorizou o incentivo à contra-revolução
interna, o então chefe da CIA, Allen Dulles, informou a Kennedy
que existiam cento e oitenta e quatro grupúsculos. O que
equivalia a ter engendrado um a cada quatro dias.
Exatamente como em 1961, hoje também estes grupúsculos parecem fantasmas: aparecem e desaparecem. É por
isso que aqueles que, em Miami, puseram a lista na internet,
tiveram o cuidado de esclarecer “(...) pode ser também que
algumas daquelas que constam aqui já tenham desaparecido
(...). Como a situação em Cuba muda muito, recomendamos
a todos os que utilizem esta lista que, de tempos em tempos,
atualizem-na”.70
Agora, lendo alguns relatórios de entidades governamentais
estadunidenses – como o “Top Secret” da Seção de Interesses
dos Estados Unidos em Havana – e outros estudos
independentes, tem-se a sensação que aqueles que figuram
internacionalmente como dirigentes da dissidência constituem
69
Lista de organizaciones disidentes, opositoras y de derechos humanos. Documento tirado da
internet, em 15. 10. 97 e confirmada em 01/98. Segundo os responsáveis em Miami, entre
as “fontes” desta “recopilação”, estão “os relatórios de diferentes organizações internacionais
de direitos humanos, como Americas Watch e Anistia Internacional (...) ”
70
Idem.
148
uma espécie de ficção no interior de Cuba. Apesar dos imensos
recursos destinados, dos Estados Unidos e da Europa, não pôde
surgir um líder contra-revolucionário “inspirado no modelo
do Solidariedade, na Polônia”.71
E isto, embora exista um interesse muito grande em erodir
o sistema político cubano, tal como sustentam jornalistas
que não podem ser considerados seus amigos: “governos
estrangeiros, imprensa internacional e organizações
humanitárias, depois de ter buscado “dissidentes” representativos da comunidade, só encontraram militantes de direitos
humanos quase anônimos na sociedade (...) Mas estes
mesmos dirigentes nunca se pronunciaram em público em
Cuba, nem sequer diante de algumas dezenas de pessoas.
Em uma rua, fora de seu bairro, ninguém os reconhece (...)
Sua existência é antes de mais nada um argumento para
efetuar pressões internacionais sobre Cuba, objeto de interesse
para os repórteres estrangeiros. Como ninguém se importa
com eles na Ilha, trabalham sobretudo para exportação.72
Parece que os casos fabricados para exportação foram vários.
Talvez o mais conhecido tenha sido o de Armando Valladares,
um verdadeiro elefante branco que deixou num ridículo
vergonhoso muitos importantes intelectuais europeus.
Personagens que compreenderam tarde demais que tinham
sido um simples instrumento do governo estadunidense e de
seus esquemas de contra-revolução, assim como de algumas
organizações européias.
71
Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du
pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993.
72
Idem.
149
Valladares, ex-policial de Batista, foi detido em Havana
em 30 de dezembro de 1960, no momento em que se
dispunha a por explosivos em lugares públicos. No final dos
anos setenta começou uma grande campanha internacional
pela libertação do preso, liderada na Europa por Carlos
Alberto Montaner. A campanha foi acompanhada da edição
do livro de poemas De minha cadeira de rodas. Depois se
descobriu que era um plágio, mas já tinha nascido para a
publicidade exterior “o poeta paralítico condenado por delito
de opinião”. E assim começou uma campanha de pressão
contra o governo de Cuba, da qual participou até o próprio
presidente François Mitterrand.
“Regis Debray esteve aqui em visita e disse que era
insustentável a situação do governo francês; quase disse que ia
cair o governo francês, era o grande drama”, descreveu Fidel
Castro. Organizações de intelectuais, de presos políticos; os
partidos social-democratas e democrata-cristãos europeus,
todos se mobilizaram pela liberdade de Valladares. A
International Pen Society deu-lhe o prêmio Liberty; a Anistia
Internacional chamou-o de “prisioneiro de consciência”. A
seção da Anistia Internacional na Suécia lhe enviou a cadeira
de rodas.
Em 1982 foi libertado e partiu para Madri. Ali foi buscálo um avião especial do governo francês. Mas já Mitterrand e
Debray sabiam que tudo era uma trama montada pelos
estadunidenses e seus esquemas no exílio cubano. Portanto,
nenhuma autoridade esperava o famoso ex-prisioneiro. Então
Valladares praticamente seqüestrou o avião, obrigando Debray
a se apresentar. A multidão de jornalistas e representantes de
Organizações Não Governamentais ficou estupefata ao ver
como o poeta mártir desceu agilmente a escadinha do avião,
enquanto sua cadeira de rodas era discretamente afastada da
150
área. No dia seguinte, Valladares caminhava pelas ruas da
Cidade Luz, em perfeitas condições.73
As provas apresentadas pelos médicos cubanos tinham sido
afogadas ou ignoradas pela bem aceita campanha. Ninguém
deu credibilidade ao vídeo onde se via Valladares na prisão,
fazendo violentos exercícios físicos diários. Valladares fez
conferências por toda a Europa, e os meios de comunicação
amplificaram suas palavras. A National Endowment for
Democracy entregou-lhe milhares de dólares para organizar
um trabalho em prol dos direitos humanos na Europa, com
base na Espanha, assim como para publicar o livro Contra
toda esperança. Espécie de biografia, distribuída pela Agência
de Informação dos Estados Unidos, em mais de trinta países.
Era tão prioritário continuar utilizando Valladares, que a
Administração estadunidense concedeu-lhe a nacionalidade
sem cumprir o mínimo de requisitos exigidos pela Lei e, logo
depois, foi nomeado por Reagan embaixador na ONU em
Genebra. Durante dois anos, ele dava a cara e sua história e
outro exercia as verdadeiras funções diplomáticas. Depois de
1993, do famoso Valladares apenas restou uma Fundação que
leva seu nome, embora melhor seria dizer que se trata de um
clube de amigos. O governo estadunidense e seus defensores
na Europa o jogaram fora, como se joga um chiclete depois de
tirar-lhe todo o sabor.
Mas também deve passar pela cabeça de muitos políticos e
intelectuais – não de todos – a vergonha de tê-lo apoiado. Um
deles, Regis Debray, escreveu em seu livro Les Masques: “O
homem não era poeta, o poeta não estava paralítico e o cubano
é hoje um americano.”
73
Jean-Marc Pillas: Nos agents à la Havane. Comment les Cubains ont ridiculisé la
CIA, Ed. Albin Michel, 1995.
151
Ainda assim, a elaboração internacional de líderes não se
interrompeu, embora já sem a mesma resposta por parte da
maioria das organizações e personalidades européias, o que
veio dificultar a faina. Uma das últimas tentativas falidas foi
Elizardo Sánchez, do qual já falamos.
A outra foi Gustavo Arcos, que se uniu a seu irmão Sebastián
para constituir o chamado Comitê Cubano Pró Direitos
Humanos. Sua tese propõe forçar o governo a um diálogo com
a chamada dissidência interna e todos os grupos do exílio,
fora das fronteiras de Cuba. Mas esse possível diálogo “seria
uma maneira de desprestigiar o sistema castrista internacionalmente, caso se negasse a negociar. Se aceitasse a negociação,
poder-se-ia plasmar uma solução sem sangue para a
problemática nacional”.74 Segundo a mesma fonte, esta posição
de Arcos, que também se opõe ao levantamento do embargo,
foi influenciada por Carlos Alberto Montaner e José Ignacio
Rasco, aos quais uniu seu grupo.75
A ultra-conservadora Organização Não Governamental
Freedom House cedeu a palavra a Sebastián Arcos nas Nações
Unidas. Seu discurso teve um tom tão contra-revolucionário
que Elliot Abrams, Secretário adjunto de Reagan, disse: “não
é apenas um homem corajoso, é também um potencial
presidente para Cuba, no caso de uma transição democrática
na Ilha”.76
Em novembro de 1996 Gustavo Arcos apareceu em vários
jornais, principalmente espanhóis e de Miami, por pertencer
à diretoria da conservadora Fundação Hispano-Cubana.
74
Enrique Encinosa: Cuba em guerra. Historia de la oposición anti-castrista, 1959-1993,
Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundación Nacional Cubano-Americana,
Miami, 1995.
75
Idem.
76
Jean-Francois Fogel y Bertrand Rosenthal. Obra citada.
152
No início de 1997, no informativo desta Fundação e de
outras poucas ONGs européias, foi reproduzido um texto
intitulado “Os princípios Arcos”. O texto, além de ser uma
espécie de código de conduta que as empresas estrangeiras que
invistam, ou pensem investir em Cuba, deveriam assumir,
prova que as relações de Gustavo Arcos com a extrema direita
anexionista continuavam latentes, sendo Of Human Rights e
Freedom House as principais patrocinadoras. Elizardo Sánchez
também apoiou os “princípios”. As últimas frases do texto
dizem: As companhias que assinem os princípios Arcos deverão
proceder como segue:
a) Todos os itens antes mencionados deverão ser inspecionados por uma auditoria reconhecida internacionalmente. Toda
companhia que assine este documento, e com mais de 25
empregados cubanos, deverá produzir um relatório escrito.
b) Este relatório deverá ser apresentado anualmente a uma
ou mais organizações de direitos humanos em Cuba, de
preferência ao Comitê Pró Direitos Humanos, com uma cópia
para Freedom House, por meio da Unidade Especial de
Investimentos Especiais, domiciliada em Of Human Rights,
1319, 18th Street NW, Washington DC. 200036, USA.77
Este denominado “código de conduta” foi assumido pela
organização Pax Christi Holanda em sua campanha contra
Cuba. E não é de estranhar. Esta Organização Não
Governamental está trabalhando publicamente, desde o final
de 1997, com Frank Calzón, como consta dos documentos da
segunda reunião da chamada Plataforma pelos direitos
77
Reproduzido pela Fundación Hispano Cubana: Boletin informativo, no 1, Madrid,
fevereiro de 1997.
153
humanos e pela liberdade em Cuba, realizada semiclandestinamente em Roma.
Em 1990, sem exagero, os líderes da contra-revolução no
exterior começaram a preparar as malas, porque a qualquer
momento cairia o regime cubano e certamente teriam que
assumir um cargo no governo. Por isso, de uma ou outra
maneira, todos faziam até o impossível para formar um grupo
no interior da Ilha, para provar sua influência junto à
população. A Fundação Nacional Cubano-Americana e a
Plataforma Democrática Cubana, cada uma com seus
associados, tomaram a dianteira. Quando chegaram a cerca
de dez, fizeram uma espécie de federação. A Fundação Nacional
Cubano-Americana chamou-a de Coalizão Democrática
Cubana (CDC) e a Plataforma Democrática Cubana deu à
sua o nome de Coordenação Democrática Cubana. Um
boletim da Fundação assim se expressou sobre o fato:
A oposição dentro de Cuba se caracteriza por estar vinculada
a duas grandes coalizões: a Coalizão Democrática Cubana
e a Coordenação Democrática Cubana (...) Podemos
garantir que, em conjunto, compõem-se de milhares de
membros que abarcam todo o território nacional (...)78
A Fundação Nacional Cubano-Americana tornou públicos
seus objetivos:
Pressão dos dissidentes sobre Castro para que abandone o
poder. A CDC opor-se-á a qualquer esforço para iniciar
diálogo com Castro, a fim de provocar uma mudança
pacífica. A nova Coalizão comunicar-se-á com outros grupos
78
Fundacion. Obra citada.
154
dissidentes desde que aceitem sua interdição de contatos com
Castro. Esta Coalizão estará respaldada (...) pela Fundação
Nacional Cubano-Americana.79
Por seu lado, a Coordenação tinha o mesmo objetivo de
derrubar o governo socialista, mas sem descartar o diálogo
como arma soterrada de luta. Como dizíamos, Elizardo
Sánchez foi o principal responsável pela Coordenação
Democrática Cubana à qual, posteriormente, se uniu Gustavo
Arcos.80
A Fundação Nacional Cubano-Americana instalou Jorge
Castañeda, ex-ator de televisão, como primeiro presidente da
Coalizão Democrática Cubana. O ex-chefe da Fundação
Nacional Cubano-Americana dizia, em uma carta de 24 de
outubro de 1991: “E, finalmente, não perder em nenhuma
hipótese a comunicação conosco, de maneira que possamos
guiá-los da melhor maneira possível nesta fase final da luta
pela liberdade da Pátria. Reitero minha fé absoluta na vitória
próxima e minha total confiança em você (...)” Lamentavelmente para a Coalizão, Castañeda era um agente da contrainteligência cubana.
No fim de 1995, os meios de informação em língua
espanhola de Miami anunciaram que em fevereiro de 1996
realizar-se-ia uma reunião de toda a dissidência, para o que se
estaria formando uma supra-organização chamada Concílio
Cubano. Em janeiro de 1996, internacionalmente, nos círculos
interessados, a reunião era assunto candente. Segundo um
relatório da Anistia Internacional, o Concílio Cubano
“englobava uns 140 grupos não oficiais”, de todo tipo. À mesma
79
Lista de las organizaciones... Obra citada.
80
Idem.
155
quantidade se referia a contra-revolução no exterior. O governo
cubano respondeu com a prisão de vários dos envolvidos.
Diante disso, a Anistia Internacional deduziu:
Que a razão da nova ofensiva contra atividades até agora
totalmente pacíficas está em que é a primeira vez que o governo
do presidente Fidel Castro, no poder desde a Revolução cubana,
em 1959, tem que enfrentar um certo grau de oposição séria,
de natureza organizada e pacífica.81
O que permanece incompreensível é que nem a Anistia
Internacional, nem outras Organizações Não Governamentais internacionais, nem nenhum grande jornal
europeu comentassem que os supostos dirigentes do Concílio
Cubano na Ilha funcionassem sob as ordens e financiamento
da Fundação Nacional Cubano-Americana, a Plataforma
Democrática Cubana, Irmãos para o Resgate e Cuba
Independente e Democrática, entre outros grupos da extrema
direita do exílio. É incompreensível que omitissem uma
informação tão importante, que permitiria avaliar objetivamente o Concílio Cubano; e não se pode dizer que fosse por
falta de dados, porque os comunicados produzidos pelos
grupos contra-revolucionários em Miami, Madri, Londres e
Paris eram públicos, e muitos deles até postos na internet.
Além do mais, El Nuevo Herald e The Miami Herald
forneceram amplos detalhes sobre a verdadeira procedência
dessa organização.
O jornalista Luis Ortega assim descreveu o episódio do
Concílio Cubano:
81
Amnistia Internacional: Cuba, ofensa del gobierno contra la dissidencia, version española,
abril de 1996.
156
(...) se existe a possibilidade de que tenham sido enlameados
(os dirigentes do Concílio) de forma deliberada para fazêlos fracassar, por que não protestaram? Por que não
denunciaram a manobra de Miami? Por que não
enfrentaram o esquema de corrupção em Miami e não
marcaram as diferenças? O fato de que Sebastián Arcos
Bergnes, em Miami, tenha aceito o cheque de Irmãos para
o Resgate já indica que se sentem à vontade e tranqüilos
associando-se à gente de Miami. Isso, em si, já é o certificado
de óbito do Concílio (...) É um ramal dos negócios de Miami.
(...) Em Cuba não pode surgir um movimento de oposição
sério ao governo de Castro enquanto os que estiverem lá não
entendam que, para combater uma revolução que tem 37
anos, que enfrenta os Estados Unidos, e vive em permanente
estado de sítio, o mais importante, o fundamental, é a moral
política. Tudo aquilo que pretenda combater o governo em
Cuba e o faça em cumplicidade com o esquema de corrupção
de Miami, e recebendo ajuda dos americanos, está morto
de início. “Dead on arrival”, como se diz em inglês. O
governo neste momento já está plenamente autorizado a
interromper sua passagem (...)82
Por seu lado, Eloy Gutiérrez Menoyo afirmou que seu
grupo, Mudança Cubana, rejeitara o convite para participar
do Concílio “porque sabíamos que era uma oposição
manipulada, que respondia aos interesses norte-americanos
e deste exílio de extrema direita”. O ex-preso político disse
ainda:
82
Luis Ortega: “El concilio perdió la virgindad”, La Prensa, NY, fevereiro de 1996.
157
Sabemos que na Europa e nos Estados Unidos existem
organizações políticas e de direitos humanos que deram, e
continuam dando, credibilidade ao Concílio. Que
protestaram porque o governo cubano reprimiu os dirigentes
do Concílio. Mas, por favor, entendam, ninguém pode se
propor a ser dissidente independente e honesto recebendo
cheques e orientações dos inimigos de seu país. Olhem, não
se pode ser tão ingênuo para acreditar que o governo cubano
ia ficar de braços cruzados, sabendo que por trás do Concílio
estavam os poderosos inimigos que buscam a grande explosão
da Ilha. Por favor, senhores, sem verdadeira independência,
não se pode enfrentar um governo como o cubano que,
historicamente, foi acossado pelos americanos.83
Finalmente, apresentamos alguns comunicados que estes
grupúsculos tornaram públicos. Podem ser obtidos, sem
nenhuma dificuldade, nos informativos da contra-revolução
no exterior ou pela internet. De nosso ponto de vista,
seguramente fornecem mais elementos para continuar
refletindo sobre a independência política da chamada
dissidência interna cubana.
O Partido Ação Nacionalista, o Movimento Nacionalista
Democrático Máximo Gómez e a Frente Unida Patriótica têm
como objetivos: “Apoiar a política dos EUA e da Europa com
relação a Cuba para manter as sanções a Cuba em eqüidade
com as mudanças democráticas que a Pátria necessita”.
Disse o suposto dirigente do Partido Pró Direitos Humanos
de Cuba: “Sempre admirei o senhor Jorge Mas Canosa.
Gostaria de agradecer-lhe pessoalmente tudo o que está fazendo
por nosso povo... é o homem de que mais necessitamos neste
83
Entrevista dos autores para Eloy Gutierrez Menoyo, Miami, novembro de 1996.
158
país para levar adiante a liberdade e a democracia de que tanto
necessitamos.”
O Comitê Cubano Pró Direitos Negados, em carta dirigida
a Canosa: “Irmão, queremos fazer chegar a você, no dia de
hoje, nosso sincero reconhecimento. Enviamos o sentimento
dos membros deste Comitê: sentimo-nos profundamente
agradecidos a você, por sua nobre contribuição à causa da
liberdade de Cuba.”
O Partido Solidariedade Democrática, apesar de estar ligado a
Hubert Matos, escreveu: “Aspiramos a que um dia, não muito
distante, aqui em Havana, possamos recebê-lo com os braços
abertos (...) A nós, que somos forjados na luta, nos vêem lágrimas
aos olhos, quando ouvimos as palavras de nosso querido líder
Jorge Mas.”
Ângela Herrera, que substituiu o ex-ator Castañeda como
presidente da Coalizão, escreveu: “Contamos com o apoio de
nossos irmãos do exílio. Eles são como uma luz que Deus pôs
em nosso caminho para ajudar-nos a recuperar a verdadeira
liberdade que nos foi arrebatada.” Quando, em julho de 1994,
chegou a Miami, disse que a Fundação Nacional CubanoAmericana “é a coisa mais sincera e maior que Deus criou”.
A Central Sindical Cristã de Cuba fez chegar uma:
Emocionada mensagem de felicitações aos Estados Unidos
da América e a todos os seus cidadãos nesta comemoração
do dia de sua Independência, como uma demonstração de
respeito e carinho que o povo de Cuba sente pela nação
norte-americana, sentimentos que não puderam ser
eliminados apesar dos 38 anos de sistemática campanha de
ódio e difamação por parte do regime comunista.
Passemos, de uma vez por todas, à leitura da entrevista de
Ricardo Bofill, que nos dá um preocupante e, porque não,
159
desolador testemunho do que é a dissidência. Particularmente
da pró direitos humanos.
– Senhor Bofill, o senhor, que foi um dos primeiros que
organizou grupos de direitos humanos, dissidentes, opositores, ou
como se lhes queira chamar, poderia nos explicar porque existem
tantos em Cuba? Parece que foram cisões de cisões.
– Na dissidência cubana não houve cisões. O que houve
foi uma multiplicação de grupos. Por que deve haver apenas
um ou dois grupos?
– Mas é que não há apenas cinco ou dez. Por exemplo, temos
um documento que menciona mais de trezentos e sessenta supostos
grupos dissidentes!
– E, por que não? Cada um se organiza com quem lhe
apraz, com suas preferências e amizades. Cada grupo surge de
acordo com as nuances das pessoas. Em um grupo todos somos
amigos ou não somos.
– Mas, senhor Bofill, esse é um trabalho de organização, político
ou simplesmente uma reunião de bons amigos?
– Não, senhor! É que a Declaração de Direitos Humanos
me permite trabalhar com quem eu quiser. A esta casa vem
que eu quiser!
– Está bem. Não vamos discutir. Mas, diga-nos, quantas
pessoas uma organização opositora em Cuba conseguiu
unificar?
– No Comitê Pró Direitos Humanos, que foi o que eu
fundei, e que era o mais importante, éramos cinco pessoas. E
a militância, isso não se sabe... É difícil sabê-lo, porque é um
trabalho muito romântico. Mas não conheci nenhuma que
passasse de... Já lhes disse que é coisa de amigos!
– Mas se os dirigentes do exílio, a grande imprensa mundial,
Organizações Não Governamentais, e não poucos governos, passam
160
a vida dizendo que em Cuba há um crescente sentimento de
repúdio ao sistema de governo, por que os grupos não se enchem
de verdadeiros opositores políticos?
– Nenhum governo comunista teve que lidar com uma
oposição interna considerável. Esse é um fenômeno que ainda
está para acontecer na história universal. É que, num governo
comunista, o governo é o empregador. Nesses sistemas, estar
com o Partido, com o governo, é uma grande vantagem. O
contrário é ser um morto de fome. Na União Soviética, o
Partido Comunista despencou devido a contradições na
direção, na luta pelo poder. E quem ganhou? Os reformistas,
os que queriam ser representantes de grandes companhias
norte-americanas ou européias. Lá o sistema não caiu por uma
luta majoritária do povo.
– E, voltando a Cuba. A segurança política não se infiltrou
nestes grupos?
– Infiltrados? O que vão infiltrar? O que vocês querem,
ouvir esse discurso sobre a infiltração? Deve haver... Mas em
Cuba o que há são uns poucos homens e mulheres que vêm a
sua casa e a arrebentam porque defendem o governo! Sim,
senhor! Em Cuba há milhões desses, jovens e velhos. É a
verdade! Milhões estão de acordo com esse sistema, porque
são uns bostas, que acreditam no comunismo!
– Senhor Bofill, é difícil para nós acreditar no que diz.
Não entendemos como tantos governos e tantas Organizações
Não Governamentais sustentaram que esses grupos são uma
oposição válida ao governo cubano. Então, o que verdadeiramente lideram pessoas como Gustavo Arcos, Leonel
Morejón, Osvaldo Payá, ou o próprio senhor Elizardo Sánchez,
que recebeu em dezembro de 1996 a distinção máxima do
governo francês, por seu suposto trabalho em prol dos direitos
humanos?
161
– O que representam? Repito-lhes: é um trabalho
voluntário, mínimo, que não funciona. A situação deles é a
mesma de todos os tempos. Essas organizações só existem no
coração de seus integrantes. Politicamente não representam
nada! Não, senhor! Não há nenhum Comitê Pró Direitos
Humanos, aquele mesmo que eu fiz, em nenhum lugar de
Cuba! Elizardo trabalhou conosco e... Não, senhor! Essa é uma
ação do espírito!
– Para nós, é difícil entender...
– Entender o que? Há pouco para entender.
– Que, considerando essa realidade que o senhor nos apresenta,
entender, por exemplo, como se deu tanto valor, em fóruns
internacionais tão importantes como a Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas...
– Olhem, fui convidado especial da Anistia Internacional.
Sim, senhor, estive em seu escritório em Londres. Anistia
preparou para mim um grande “tour”, e disse o que tinha que
dizer... Mas se Cuba foi condenada em Genebra, foi pela falta
de sagacidade política do governo de Castro. Há milhares, digo,
centenas de Estados que violam mais os direitos humanos. O
que acontece é que a representação cubana vai lá com uma
imensa prepotência. Os outros governos, os que mais violam,
vão lá e negociam. Salvam-se adotando uma posição
diplomática. Mas a gente de Castro, com sua intransigência,
agride os outros governos. Com sua intransigência política
desgostaram até o governo sueco. Imaginem!
– Não lhe parece absurdo que se condene um país por sua
intransigência política frente a outras nações e não pelo que se diz
estar condenando? Então, é por isso que continuam merecendo
crédito e sendo utilizados os relatórios fornecidos pelo governo
estadunidense, alguns europeus e Organizações Não Governamentais? Será que o senhor se lembra de algumas das sessões da
162
ONU onde se fazia referência a vários assassinados e desaparecidos
pelo governo cubano? Lembra-se que esses mesmos assassinados e
desaparecidos faziam, dias depois, conferências de imprensa na
própria ONU? E, se não estamos enganados, sua organização foi
uma das que ajudou a preparar esses relatórios.
– Não... Essa história... Não creiam nisso...
– Mas está em documentos oficiais...
– Não, não... Eu não os conheço.
– Senhor Bofill, fale-nos agora das atividades que
organizações como a sua realizam nos Estados Unidos e na
Europa.
– Bem, às vezes fazemos campanha pelos presos políticos.
Mandamos cartas para qualquer lugar... Este é um trabalho
voluntário, romântico. Cada um faz o que lhe ocorre. Cada
um é independente... Ou seja, meu programa de direitos
humanos, é o que eu estabeleço em cada caso. Da mesma
forma podem agir outras pessoas que trabalham na mesma
coisa. Este não é um trabalho formal. É minoritário, exíguo.
Aqui em Miami, com mais de um milhão de exilados, não
somos mais de vinte pessoas a trabalhar pelos direitos
humanos. Se formos!
E na Europa não ganhamos nada. Ainda na Espanha, um
mínimo. Mas, quem se importa com Cuba, na Europa? E não
quero começar a falar-lhes sobre isso, aqui... É perda de tempo.
Eu defendo o que me dá na telha. Faço o que posso...
– Senhor Bofill, como foi recebido em Miami, levando em
conta que o senhor sempre se disse militante de esquerda, o que é
quase um pecado mortal aqui?
– Embora eu provenha de uma verdadeira esquerda, de
antes de Fidel Castro, tive aqui uma boa acolhida por parte de
um grande setor político da cidade. E quase imediatamente
comecei a participar de vários projetos. Por exemplo, em 1990
163
nos reunimos em Madri para fundar a Plataforma Democrática
Cubana, liderada por exilados anticomunistas como José
Ignacio Rasco, católico, dos jesuítas; e Carlos Alberto
Montaner, que desde 1960 já estava contra a Revolução.
Também participei de outros projetos, como o do comandante
Hubert Matos. Na Rádio Martí, que é uma emissora do
governo norte-americano, ainda tenho um programa, que se
chama Teus Direitos Humanos, e que é transmitido para Cuba
duas vezes por semana. Em Miami nada atrapalha meu projeto
político, que é de direitos humanos...
– Desculpe a interrupção, mas, segundo entendemos, a
militância pelos direitos humanos, tal como está proposta
atualmente, é um trabalho neutro, apolítico, e o senhor fala de
“projeto político”.
– Entendam como quiserem, mas esse é meu projeto.
E ia lhes dizer que, claro, há setores da sociedade exilada
que não me convida para suas reuniões, mas isso não me
importa. Aqui há outras pessoas que me atacam. São os que
deveriam ser a favor do embargo, e não estar chamando ao
diálogo com o comunismo, ou realizando viagens charter a
Cuba.
– Senhor Bofill, esta quantidade de organizações que estão
fora de Cuba, seja nos Estados Unidos, América Latina ou
Europa, têm na realidade uma alternativa válida para o povo
cubano?
– Cada uma tem o seu discurso... Não tenho muita
informação. Talvez vocês saibam mais que eu, por serem
jornalistas. Mas este assunto não me interessa: vivo minha vida
com minha gente. Da mesma forma como vivem os outros
que têm seu projeto de direitos humanos, aqui ou em Cuba.
Mas não me importa o que eles propõem para o futuro de
Cuba...
164
– Mas cremos que o futuro de Cuba é seu problema.
– Bem, pode ser... Eles têm seu jogo aqui, no exterior... Já
lhes disse, é romantismo.
– Mas parece-nos que com esse “romantismo” muitos
denominados anticastristas se encheram de dólares...
– Não acredito nisso. Isso não passa de propaganda do
castrismo.
– Vamos ver: e se os militares dão um golpe de Estado em
Fidel Castro ou ele morre, o que vai acontecer?
– Isso não se sabe. Tudo o que estou lhes dizendo aqui não
tem efetividade. Eu não sei nem o que vai acontecer em Cuba
no ano que vem! Pode ser que exista uma melhora em Cuba,
ou um retrocesso... Nem com uma bola de cristal...
Possivelmente tudo vai continuar. Mas, o que vai acontecer?
Não sei.
– Senhor Bofill, não queremos incomodá-lo com mais
perguntas, por isso esta é a última. Se cair o atual sistema cubano
e este exílio regressar, existe a possibilidade de uma Guerra civil?
Dizemos isso porque há muita gente aqui que fala em vingança...
– É muito possível! Porque o exílio e os americanos estão
magoados por muitas coisas com os comunistas. Acaso Castro
não declarou guerra quando confiscou as propriedades das
grandes empresas e dos proprietários de terras? Ouçam bem:
o que faz falta é mais reação dos exilados e do governo norteamericano a estes comunistas! E então, que acham que vai
acontecer se regressarem?
– Sim, então, o que vai acontecer?
– Até parece que vocês não sabem que a política não é
coisa de sonhadores!
165
IX
“A Fundação Hispano-Cubana é um complemento da ação do governo do PP, porque é
preciso dar o mínimo de oxigênio possível ao ditador, para que se consuma sozinho”.
GUILLERMO GORTÁZAR
Deputado e membro do Comitê Executivo do Partido Popular espanhol. Responsável pelos
assuntos cubanos. Secretário geral da Fundação Hispano-Cubana
Pela lógica, procuramos o deputado Guillermo Gortázar
na sede nacional do Partido Popular, em Madri. Ao explicarmos
para que o procurávamos, disseram-nos que a Fundação
Hispano-Cubana já não atendia ali, que agora tinha sede
própria, a uns duzentos metros. Deram-nos o endereço e os
números de telefone.
Na hora e dia marcados estávamos diante do parlamentar
Gortázar, Secretário Geral da Fundação Hispano-Cubana,
associação que em 14 de novembro de 1996 fez sua primeira
apresentação pública. Inauguração um tanto acidentada, já que
umas trezentas pessoas, pertencentes a Organizações Não
Governamentais e de solidariedade com Cuba receberam os
seletos convidados com uma chuva de ovos e tomates.
Membros do governo espanhol e demais cidadãos desse país
foram chamados de sócios de terroristas e mafiosos. Os cubanoestadunidenses e cubano-espanhóis foram chamados de
fascistas, mafiosos, assassinos. Um forte dispositivo policial
167
teve que intervir para afastar os manifestantes alguns metros
da entrada principal, já que além de tudo tinham conseguido
interromper o intenso tráfego da área.
Lá dentro, depois de passado o susto e no meio da limpeza,
sentaram-se à mesa as principais estrelas do dia: o espanhol
Alberto Recarte, presidente da Fundação Hispano-Cubana;
Guillermo Gortázar; e os três principais membros da diretoria,
neste caso chamada Patronato, o escritor hispano-peruano
Mario Vargas Llosa, Carlos Alberto Montaner e Jorge Mas
Canosa. No momento dos discursos, Montaner disse que esse
tipo de recepção que lhes fora oferecida no exterior era injusto
porque:
“afinal, somos apenas um grupo de pacíficos cidadãos”.
Também Vargas Llosa considerou improcedente a atitude
dos manifestantes, lembrando que o cubano “foi o exílio
mais caluniado, difamado e satanizado de que tenho
lembrança (...) Um dos objetivos da FHC é enfrentar esse
trabalho de desqualificação”.
A Fundação Hispano-Cubana surgiu de uma proposta do
setor mais reacionário da contra-revolução cubana, estimulado
por um espectro da direita espanhola, encabeçada pelo Partido
Popular. Seus princípios são uma estranha mescla dos que
orientam a Fundação Nacional Cubano-Americana em Miami
e da Plataforma Democrática Cubana de Madri, adaptados às
condições próprias do Estado espanhol. Seu trabalho básico é
desenvolver o proselitismo nesta nação; fustigar as relações
políticas e econômicas do governo cubano; azedar as relações
entre as duas nações; e consolidar um lobby, não apenas na
Espanha, mas em outros países europeus. A nenhuma intenção
de estabelecer algum tipo de relação ou diálogo com o Estado
168
cubano fica definida em um parágrafo da introdução a seus
estatutos:
A tarefa de realizar a transição política para a democracia
em Cuba cabe aos cubanos. Mas na Espanha e na América
há uma ampla corrente de opinião que deseja apoiar
iniciativas que sirvam para a defesa dos direitos humanos e
para o restabelecimento da liberdade e da democracia na Ilha.
A Fundação Hispano-Cubana convocou, então, “em torno
destes objetivos, os mais diversos setores e líderes do exílio e
da dissidência interna em Cuba, juntamente com personalidades espanholas do mundo da cultura, da empresa e da
política”.
Os rastros mais definidos dessa amálgama reúnem-se no
Patronato da Fundação Hispano-Cubana desde fins de 1995.
Em novembro daquele ano o candidato à presidência do
governo espanhol, José Maria Aznar, visitou Miami. Segundo
os boatos que correram, o objetivo central da visita era buscar
contribuições financeiras para sua campanha eleitoral. Naquela
ocasião reuniu-se com a Fundação Nacional CubanoAmericana, com Cuba Independente e Democrática, com a
Plataforma Democrática Cubana e com Monsenhor Román.
Durante um almoço público que lhe foi oferecido pela
Fundação Nacional Cubano-Americana, e pelo qual os
participantes pagavam um alto preço, disse: “Mais cedo que
tarde (...) em Cuba haverá transição, haverá liberdade e haverá
democracia”.84 Dessa cidade, Aznar partiu para El Salvador e
Costa Rica, regressando uma semana depois “a bordo de um
84
El Nuevo Herald, Miami, 28 de novembro de 1995.
169
avião da Fundação Nacional Cubano-Americana, acompanhado de Jorge Mas, o filho”.85
Dias antes das eleições, demonstrando que estava a par das
intenções do candidato, disse Canosa: “não esperamos que
Aznar rompa relações com Cuba nem proíba os investimentos
espanhóis na Ilha”. Mas não deixou de explicitar sua certeza
de que Aznar “introduzirá um elemento moral na política
espanhola para com Castro”.86 E não hesitou em afirmar: “a
política de Aznar é mais conseqüente com a promoção de um
governo democrático em Cuba”.
Aznar ganhou as eleições. Já tendo tomado posse, e antes
de qualquer outro representante oficial do governo cubano,
recebeu Jorge Mas Canosa. Da mesma forma agiu seu Ministro
de Relações Exteriores, Abel Matutes. Ato de descortesia
diplomática nada usual, que deixava transparecer o novo rumo
das relações com o governo cubano. Ainda mais grave, dava à
contra-revolução uma espécie de status de governo no exílio.
Muitos chegaram a pensar que convinha a Matutes, devido
aos grandes investimentos turísticos que tem na República
Dominicana, enlamear as relações com Cuba. Diante das
críticas, o Secretário de Estado para Cooperação, Fernando
Villalonga, disse, depois de ter recebido oficialmente o então
chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana: “Basta de
satanizar o exílio cubano! (...) Mas Canosa não é um gangster
como o acusam.”
No dia seguinte desta incrível defesa oficial, a Casa Branca,
fazendo uso da Ley Helms-Burton, ameaçou com sanções a
empresa espanhola Sol-Meliá, por seus investimentos em Cuba.
E Canosa, como sabemos, fora um dos grandes articuladores
85
Idem
86
El Pais, Madrid, 2 de março de 1996.
170
dessa Lei. O novo governo espanhol, em vez de defender a
empresa, agiu quase com indiferença. Sua política em relação
a Cuba já estava definida, e dela o deputado Gortázar nos fez
um bom resumo: “as empresas que se decidam a colaborar
com Castro deverão enfrentar sozinhas os riscos”. Era o que
pedia, desde 1992, a extrema direita do exílio, encabeçada pela
Fundação Nacional Cubano-Americana, pela União Liberal
Cubana, de Montaner, por Cuba Independente e Democrática,
entres outras. (“Carta aberta aos investidores estrangeiros”,
maio de 1992.)
Segundo os estatutos, a equipe fundadora da Fundação
Hispano-Cubana teria um poder quase absoluto sobre as
decisões essenciais. Seus membros, e apenas eles, poderiam
decidir quem seriam seus substitutos. Conhecendo o que
representam politicamente essas pessoas, não é difícil imaginar
qual seria a dinâmica que imprimiriam à Fundação. No que
se refere aos cidadãos espanhóis, entre os quais o eurodeputado
José Ignacio Salafranca, o Partido Popular domina, mas a
maioria no Patronato é formada pela extrema direita cubana
no exterior. Deles, três são ao mesmo tempo diretores da
Fundação Nacional Cubano-Americana: José Hernández, José
Llama e Lombardo Pérez; existia um quarto, que era Jorge
Mas Canosa, mas este morreu em novembro de 1997. Outros
membros são Juan Suárez Rivas, ex-dirigente da Fundação
Nacional Cubano-Americana até 1992, e agora próximo a
Carlos Alberto Montaner, também patrono, assim como a
senhora Marta Frayde.
A vinculação de Elizardo Sánchez quase foi reconhecida
pelo deputado Gortázar como um recrutamento tático muito
adequado, devido a sua imagem internacional de dissidente
de esquerda. O outro contra-revolucionário na lista do
Patronato é Gustavo Arcos, representado no Estado espanhol
171
pela senhora Frayde, segundo nos disse o próprio deputado
Gortázar. Osvaldo Payá, outro denominado dissidente, retirouse logo depois de ter se envolvido.
Tal como nos anunciara o deputado, duas pessoas se
vincularam em 1997: Félix Bonne Carcassés, residente em
Cuba e militante da Coalizão Democrática Cubana, dirigida,
de Miami, pela Fundação Nacional Cubano-Americana; e o
jornalista Raúl Rivero, também residente em Cuba, ligado
politicamente a Cuba Independente e Democrática.
Até agora a Fundação foi a cúpula de uma série de tentativas
para construir algo que pudesse obter certo espaço no meio
espanhol. Armando Valladares já tentara, sem nenhum
resultado concreto, mas evaporando milhares de dólares
fornecidos pela National Endowment for Democracy. Depois,
Montaner e Ignácio Rasco, com o apoio do governo
estadunidense; as Internacionais Liberal e Democrata Cristã
armaram a Plataforma Democrática Cubana, com muito pouco
resultado até o momento.
Como atividades preparatórias para o lançamento da
Fundação Hispano-Cubana, organizaram-se algumas
conferências e seminários. Em 9 de fevereiro de 1996, em
Madri, reuniu-se o “Grupo de Trabalho sobre Cuba”. O
encontro, realizado em plena campanha eleitoral, foi
promovido pela Internacional Democrata Cristã e
patrocinado pelo Partido Popular, encabeçado pelo próprio
José María Aznar. Como foi dito nos comunicados, o
objetivo era “coordenar iniciativas de apoio às forças que
lutam por democratizar a Ilha”. Richard Nuccio, então
assessor do presidente William Clinton para “assuntos
cubanos”, participou do encontro. Também estiveram
presentes membros da Fundação Nacional CubanoAmericana e a Plataforma.
172
Posteriormente, em 8 de outubro de 1996, e na mesma
cidade, a assim chamada Universidade Latino-americana da
Liberdade Friedrich Hayeck, com sede em Miami, organizou
um seminário chamado “O papel do Estado e da sociedade na
América Latina.” A ministra de Educação e Cultura, Esperanza
Aguirre, esteve no ato de inauguração. Uma das sessões tinha
como tema “A transição para uma sociedade aberta e
democrática. O papel dos cubanos no exílio e o futuro de
Cuba.” Entre os expoentes estiveram presentes Gortázar e
Montaner; não puderam comparecer José Basulto e o deputado
Lincoln Díaz-Balart.
Mas é preciso esclarecer algo sobre esta “Universidade”.
Para nós, seus objetivos podem ser considerados como
ultradireitistas e até racistas. Vocês podem julgar:
Reeducar a população cubana, e outras da América Latina,
nos conceitos internacionais e modernos de liberdade, como
fundamento intelectual de uma nova sociedade, baseada nos
três grandes pilares da civilização contemporânea do
Capitalismo Democrático: economia de mercado, democracia
política e sistema moral e cultural judaico-cristão, tudo isso
articulado com os princípios do comércio internacional.
Entre seus diretores estão José Sorzano, José Pepe Henández
e outros cinco diretores da Fundação Nacional CubanoAmericana; Mario Vargas Llosa e, como chefe dos chefes, o já
desaparecido Jorge Mas Canosa. Entre as “personalidades” que
apóiam as atividades desta “Universidade” estão a ex-primeira
ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, e o politólogo
francês Jean-François Revel, que era visto em seu país como
uma pessoa de idéias progressistas. Hoje, segundo Le Monde
Diplomatique, de Paris, é considerado aliado da CIA.
173
Mas, por que a extrema direita cubana, como instrumento
da política estadunidense, despendeu tanto esforço e recursos
com a Fundação Hispano-Cubana? A resposta pode ser simples;
aliás, está respaldada pela prática: a política da União Européia
para Cuba passa por Madri, e, ironias da história: há quase
cem anos, a Espanha disputava com os Estados Unidos o
controle da Ilha cubana. Hoje, o Partido Popular, no poder,
está servindo aos Estados Unidos para recuperar o controle
que perdeu em 1959. Vejamos.
Quando o presidente Willliam Clinton ratificou a Lei HelmsBurton, em março de 1996, teve que enfrentar a reação dos
governos do Canadá e da Europa, que não podiam aceitar que
leis estadunidenses interferissem em suas relações comerciais
internacionais. Clinton foi condenado a agradar ao Congresso
de seu país, e seus aliados. Foi assim que, em pleno conflito
com a União Européia, o presidente designou Stuart Eizenstat,
Embaixador Especial para Assuntos Cubanos. Apesar do título,
a escolha não ocorria por capricho: Eizenstat era também
Subsecretário de Comércio para o Comércio Internacional.
Eizenstat começou seu périplo no mês de setembro daquele
ano, encontrando-se com os governos da Bélgica, Itália,
Espanha e Irlanda. Para todos tinha o mesmo discurso e
proposta: que coordenassem suas posições com a de
Washington, endurecendo suas relações com Havana. Se estes
quatro países aceitassem, e se encarregassem de convencer os
demais membros da União Européia, diminuiria a tensão entre
os aliados. Como forma de pagamento, prometia-lhes que essa
ação conjunta e estreitamente coordenada permitiria suspender
por um tempo, e possivelmente reavaliar, a aplicação da Lei
Helms-Burton.
Poucos dias depois, como se já estivesse trabalhando nele,
a Espanha apresentou um documento à União Européia. O
174
texto continha pontos idênticos aos que Washington exige de
Cuba para levantar o embargo e normalizar relações: tudo ou
nada; houve então que readaptá-lo e suavizá-lo, para torná-lo
palatável aos membros da União Européia. A maioria dos
estados europeus não pensava que fosse necessário “ordenar” a
Cuba uma imediata mudança global de seu sistema político,
para poder oferecer-lhe algum tipo de apoio econômico. O
texto final apresentado por Aznar, e aceito pela União Européia,
propunha “reunir vontades para exercer uma pressão política
sobre Cuba, favorecendo sua democratização”. Ou seja,
procurar que o governo da Ilha se comprometesse a passar do
socialismo ao capitalismo de forma gradual, porém efetiva.
A Administração Clinton e o Congresso estadunidense
contentaram-se com o compromisso no papel da União Européia
de “reunir vontades”. Era a reciprocidade e a compreensão que
Washington esperava, segundo disse o porta-voz do Departamento de Estado, Nicholas Burns. Pouco antes de ser aprovado
pela União Européia, o conteúdo foi comentado por um
importante jornal de Madri: “A proposta espanhola aos Quinze,
sobre Cuba, copia as solicitações dos Estados Unidos à União
Européia”. (El País, Madrid, 17. 11. 96)
Vejamos quais foram os pontos mais importantes do que o
governo de Aznar praticamente conspirou com Eizenstat, e
impôs à União Européia, no que se refere ao assunto de que
nos ocupamos:
– Atitude mais ofensiva das embaixadas, mediante a
nomeação de uma pessoa especial para promover os direitos
humanos.
– Apoio mais decidido à dissidência, estabelecendo canais
flexíveis de cooperação e ajuda.
– Exigir do governo cubano que permita todo tipo de
Organizações Não Governamentais e associações, e que a
175
ajuda humanitária passe por elas. A União Européia deverá
exercer um estrito controle sobre as ajudas.
– A União Européia especifica as condições impostas a Fidel
Castro para aumentar a cooperação: direitos humanos; presos
políticos; liberdade para as atividades de Organizações Não
Governamentais nacionais e dissidentes.
Com isso, sem sombra de dúvida, os estados membros da
União Européia e as Organizações Não Governamentais devem
se converter em uma espécie de Cavalo de Tróia dos planos
elaborados em Washington.
Já com o compromisso da União Européia em mãos,
Eizenstat pôde informar sobre o êxito de seu trabalho. A
aplicação da Lei Helms-Burton foi temporariamente suspensa.
Não voltar a aplicá-la dependeria das pressões que a União
Européia exercesse sobre o governo cubano, assim como do
estímulo à chamada sociedade civil independente, que no caso
cubano é simplesmente a “dissidência”.
Em junho de 1997 a Fundação Hispano-Cubana enfrentou
sua primeira grande dificuldade. Em um comuicado público,
Gortázar informava a renúncia dos dois mais destacados
membros contra-revolucionários, Carlos Alberto Montaner e
Jorge Mas Canosa. Montaner, o primeiro a renunciar, explicava
que saia por suas divergências com Mas Canosa, quanto à
maneira de fazer avançar a luta contra o governo de Fidel Castro.
Imediatamente Mas Canosa fez o mesmo, argumentando que
não queria com sua presença transferir para a Fundação HispanoCubana suas diferenças com outros membros do exílio: “É a
hora de cerrar fileiras contra a ditadura castrista e não a de abrir
brechas nas fileiras da oposição.” Gortázar, por sua vez, assinalou
que estas baixas reduziam consideravelmente a politização da
Fundação Hispano-Cubana.
176
Em novembro do mesmo ano, o partido Esquerda Unida
apresentou, no Congresso dos Deputados do Estado espanhol,
uma proposta Não de Lei, em que solicita ao governo declarar
ilegal a Fundação Hispano-Cubana. A petição se baseava na
participação de um de seus membros, José Antonio Llama,
também dirigente da Fundação Nacional Cubano-Americana,
de um projeto para assassinar o presidente Fidel Castro, durante
a Cúpula Íbero-americana, realizada na Venezuela, no final de
1997. A Esquerda Unida argumentava que o FBI confirmara
o comprometimento de Llama no frustrado atentado,
desarticulado em Porto Rico, em 28 de outubro. Também
pediu “expulsar os estrangeiros residentes na Espanha e
membros dessa Fundação que tenham participado de
atividades terroristas e negar-lhes, no futuro, entrada em nosso
país.” No texto da proposta a Fundação Nacional CubanoAmericana é vinculada “aos recentes atentados terroristas
ocorridos em Havana”. Declarando que enquanto a polícia
federal estadunidense sabia que a Fundação Nacional CubanoAmericana era cúmplice daqueles atos, o ministro espanhol
de Assuntos Exteriores, Abel Matutes, só conseguia dizer que
se tratava de “meras suposições”. Como era de se esperar, a
proposta da Esquerda Unida foi rejeitada pela maioria
parlamentar.
No entanto, e como já expusemos em capítulo anterior,
no caso da tentativa de assassinato do presidente Fidel Castro
durante a Cúpula Íbero-americana na Venezuela, foram
detidos pelo FBI, e levados a tribunais federais, sete contrarevolucionários cubanos, entre eles José Antonio Llama,
diretor da Fundação Nacional Cubano-Americana e da
Fundação Hispano-Cubana. Pepe Hernández, atual
presidente da Fundação e dirigente da Fundação HispanoCubana, também foi processado, embora sem ser preso.
177
Finalmente, no princípio de 1999, todos foram absolvidos,
apesar das provas contrárias.
No que se refere às bombas que explodiram em vários
hotéis cubanos, e que deixaram vários feridos e um cidadão
italiano morto, o terrorista Luis Posada Carriles declarou ao
The New York Times que a Fundação Nacional CubanoAmericana, tendo à frente seus mais altos dirigentes, estava
envolvida. Carriles, que fora o encarregado de contratar
mercenários centro-americanos para a execução dos
atentados, expôs com riqueza de detalhes os planos que
nasceram em Miami. Poucos dias depois, o jornal teve que
fazer um esclarecimento, dizendo que Carriles jamais dissera
que a Fundação Nacional Cubano-Americana pagara para
que se realizassem os atos terroristas, mas todas as suas
primeiras declarações, repletas de dados muito precisos,
deixam um grande espaço para dúvidas, e a certeza de que
na Fundação havia concordância com os atos criminosos. O
FBI também não descartou a cumplicidade da Fundação
Nacional Cubano-Americana.
Posteriormente, os autores materiais dos atos criminosos
foram detidos pelas autoridades cubanas. Estes cidadãos centroamericanos declararam ter sido contratados por Posada Carriles.
Durante o julgamento ficou plenamente demonstrada a
responsabilidade intelectual da Fundação, mas, também, a
cumplicidade das autoridades estadunidenses.
Agora vamos comentar algo sobre nosso entrevistado.
Quando o atual parlamentar Gortázar ingressou no Partido
Popular, vinha da ala mais radical do Partido Comunista. Sendo
um destacado dirigente do setor mais conservador do Partido
Popular, um telegrama internacional (EFE, 21.04.95)
informava sobre as reuniões que mantivera com “personalidades
da FNCA”, as quais tinham como meta, segundo as palavras
178
de Gortázar, “aprofundar nossas relações”.87 Quase um ano
depois, em 27 de julho de 1996, Gortázar representou o Partido
Popular no congresso anual da Fundação Nacional CubanoAmericana, onde lhe foi dada a oportunidade de pronunciar
um fogoso discurso anticastrista e contra-revolucionário.
Quando voltou a Madri, dedicou-se a dar vida à Fundação
Hispano-Cubana, depositando um milhão de pesetas no Banco
de Vitória, necessário para a inscrição oficial.
Durante a instalação da Fundação Hispano-Cubana, assim
se manifestou: “O presidente Aznar repetiu que nós, os
espanhóis, compartilhamos os mesmos valores de democracia
e liberdade que europeus e norte-americanos e que o problema
de Cuba está na própria Ilha, e se chama Castro. Não é certo
que Castro seja David contra Golias.”88 E sobre a Fundação
Nacional Cubano-Americana, que supostamente não deseja
se imiscuir nos problemas cubanos: “Esta Fundação é um
instrumento para preparar-nos para antes, durante e depois
da iminente transição para a democracia em Cuba.”
E, no momento em que eram dados os primeiros passos
públicos para o restabelecimento de relações entre os governos
de Espanha e Cuba, Gortázar fazia inquietantes declarações
ao Diário de las Américas, um dos jornais mais reacionários de
Miami. Na edição de 12 de junho de 1998, assim se referia à
viagem do presidente Aznar a Miami: “O gesto do Presidente
do Governo da Espanha, José María Aznar, de vir à Flórida,
não à Ilha (Cuba) é em si um gesto de encontro e de apoio ao
povo de Cuba, diferentemente de outros governantes que
preferem visitar Cuba.” Embora Gortázar apareça como portavoz no que se refere a Cuba, sua anquilosada posição de
87
88
Cable de EFE, 21 de abril de 1995.
Fundacion Hispano Cubana: Boletin informativo, no 1, Madrid, fevereiro de 1997.
179
confronto com o Estado cubano difere, aparentemente, da que
ficou estabelecida em altas instâncias, como provam as
declarações e feitos do presidente Aznar e, em particular, as
declarações do rei João Carlos.
– Senhor Gortázar, como surgiu a idéia de criar a Fundação
Hispano-Cubana?
– A idéia surgiu em Madri, da cabeça de duas ou três
pessoas, entre as quais eu. Foi o resultado da apreciação, por
parte da oposição a Fidel Castro, de dentro e de fora, de linhas
de confluência que não se manifestavam na Flórida nem dentro
de Cuba. Não ocorriam por problemas de personalismo, pois
cada vez que um grupo chamava a uma confluência, isso era
interpretado como busca de um protagonismo excessivo. Creio
que, salvo o Concílio Cubano, que foi um movimento muito
geral dentro da Ilha, reunir o conjunto de pessoas que querem,
ou queremos, a liberdade para Cuba, parecia muito difícil.
Embora fossem pessoas que clamassem pela mesma coisa.
Carlos Alberto Montaner quer para Cuba liberdade,
democracia e eleições; Jorge Mas Canosa está querendo
liberdade, democracia e eleições; Elizardo Sánchez quer a
mesma coisa; assim, parecia fácil que, em Madri, nós, um grupo
de deputados e empresários, convocássemos o conjunto de
cubanos, de dentro e de fora, para formar a Fundação. E assim
temos o espectro mais amplo da oposição ao castrismo.
– Ou seja, é uma Fundação para interferir na política interna
de Cuba?
– Não. Como espanhóis, não podemos dizer nada quanto
aos problemas políticos internos cubanos. Mas queremos nos
ocupar das relações hispano-cubanas. Sabemos que essas
relações deixam muito a desejar por haver em Cuba uma
ditadura. Por ser uma ditadura, queremos ajudar as pessoas
180
que a sofrem, particularmente os dissidentes; assim como
informar à opinião pública o que se passa no interior.
– Com o que acaba de dizer, automaticamente, a Fundação
Hispano-Cubana se imiscui profundamente na política interna
de Cuba.
– Não. Não somos atores da política cubana. Somos pessoas
preocupadas com essas relações.
Parecia-nos que a política dirigida a Fidel Castro não era
adequada. Era preciso ter uma política de princípios e de gestos
inequívocos em favor da liberdade. E isso sim é um problema
espanhol.
– Senhor Gortázar, as posições ad Fundação Hispano-Cubana
interferem no governo espanhol?
– A Fundação Hispano-Cubana é uma organização cultural
que tem implicações políticas, porque nossa referência, Cuba,
vive sob uma ditadura.
Agora, como Fundação Hispano-Cubana não podemos
influir no governo espanhol nem em seu Parlamento, mas antes
que o Partido Popular chegasse ao governo, havia um ambiente
de opinião em setores liberais, conservadores e social-cristãos,
que não viam com simpatia a política de abraços entre Fidel
Castro e Felipe González. Então, primeiro da oposição e,
depois, do governo, valorizamos a política positiva de firmeza
do governo de Aznar, com relação ao governo de Cuba.
Assim como o PP, consideramos que dar recursos a Castro,
em troca de nada, não é adequado. Consideramos que devem
ser entregues às organizações civis em Cuba, que devem chegar
a setores independentes da população, aos meios de
comunicação independentes, etc. E que seja da maneira mais
livre, sem que o governo cubano tenha por que canalizá-los.
Nisso a Fundação Hispano-cCubana concorda com a política
atual do governo espanhol para Cuba, e se converte em um
181
complemento à ação do governo do PP, porque é preciso dar
ao ditador o mínimo de oxigênio possível, para que se consuma
sozinho.
– Houve muitas críticas no Estado espanhol porque a Fundação
Hispano-Cubana abriga reconhecidas personagens da extrema
direita do exílio cubano...
– É verdade. Mas o que não se vê, é que temos a honra de
contar entre os membros, pessoas como Elizardo Sánchez e
Gustavo Arcos. O senhor Payá esteve, no princípio. Mas se
retirou. Não por estar em desacordo com a Fundação HispanoCubana, mas porque lhe era difícil acompanhar seu
funcionamento.
E fui eu que fui à Flórida justificar porque era necessário
ter um membro da esquerda no Patronato da Fundação
Hispano-Cubana. Não foi fácil fazer o senhor Elizardo Sánchez
aceitar. Expliquei várias vezes que um projeto como o da
Fundação teria uma imagem mais ampla se incluísse uma
pessoa de esquerda. Até que entenderam. Mas aqui na Espanha
o atacado foi Mas Canosa e os outros exilados cubanos.
Porque a Fundação tem um projeto de liberdade e
democracia, onde a direita pode sentar-se à mesma mesa com
a esquerda. Estas personalidades emprestam respeito à
Fundação, demonstrando que não temos uma filiação
partidária definida. Mas na Espanha se considera que a
Fundação Hispano-Cubana é anticastrista, quando na realidade
apenas quer liberdade para Cuba. Queremos que as pessoas
vejam que apoiamos gente de esquerda no interior de Cuba,
como é o caso do senhor Elizardo Sánchez.
– Senhor Gortázar, em nossa opinião pessoal, por sua prática
política, duvidamos que o senhor Elizardo Sánchez seja de
esquerda; alem de tudo, participa da Plataforma do senhor
Montaner. Montaner, embora se diga liberal, em seus escritos deixa
182
transparecer o desejo de que Cuba retorne à órbita estadunidense.
E observando o resto dos membros, além do senhor Canosa, há
outros quatro diretores e um ex-diretor da Fundação CubanoAmericana, de Miami. O senhor Arcos recebe contribuições
econômicas da extrema direita de Miami e também faz parte da
Plataforma. Vargas Llosa se converteu em um defensor do
capitalismo. E até onde sabemos, o senhor e os demais membros
do Patronato militam na direita espanhola. Então, onde está a
amplitude política?
– Vejo que se prepararam para a entrevista...
Convidamos pessoas do Partido Socialista espanhol, mas
não aceitaram. A Esquerda Unida nos ataca: deve ser porque,
para nós, Castro não conta. Mas a Fundação Hispano-Cubana
está aberta para todo aquele que queira lutar pela liberdade e
pela democracia em Cuba. E digo-lhes que, nos próximos
meses, estaremos em condições de informar sobre novas adesões
à Fundação Hispano-Cubana, de residentes dentro da Ilha;
também ocorrerão adesões de espanhóis, em nível de assessoria
e operacionalidade. A Fundação Hispano-Cubana está
crescendo rapidamente. A verdade é que foi bem acolhida.
Em Cuba o boletim é muito bem distribuído; sabemos que lá
temos bastante prestígio.
– E a que devem esse prestígio? E, ainda, que tipo de apoio
dão à chamada dissidência?
– Ganhamos prestígio porque sabem que estamos em uma
linha de apoio político às organizações de direitos humanos.
E lhes damos apoio porque constituem nosso ponto de
referência. Procuramos fazer chegar alguma ajuda material a
essas organizações, por meio de turistas. A Fundação HispanoCubana quer enviar muita ajuda econômica ao povo de Cuba,
e também explicar a nova posição espanhola. Apoiamos essas
organizações sem preocupar-nos com o que pensa a Segurança
183
cubana, porque a Segurança cubana se viu obrigada a ser
relativamente tolerante com essas pessoas. O governo não pode
fazer nada contra Elizardo Sánchez ou contra o senhor Arcos,
pois essas duas pessoas têm um grande prestígio internacional.
Tocar neles custaria caro.
– Desculpe, mas quando diz “posição espanhola”, quer dizer
a do governo?
– Efetivamente, a do atual governo. Nós, como Fundação,
manifestamos nosso apoio à posição do governo do presidente
Aznar, porque é muito digna.
– Senhor Gortázar, qual é a posição da Fundação HispanoCubana frente ao embargo?
– Creio que é melhor que lhes responda como deputado
do PP. O Partido Popular, como a União Européia, considera
que a Lei Helms-Burton não é aceitável. Parece-nos que é uma
Lei que serve de propaganda para Castro. Mas, apesar disso,
temos relações muito boas com a Fundação Cubano-Americana
de Miami, que apóia o embargo, mas, para o Partido Popular,
o mais importante é a união em torno dos fins, e por isso
podemos desconsiderar os desacordos.
– Senhor Gortázar, quanto transcendeu a posição do atual
governo espanhol, sobre o caso Cuba, na União Européia?
– Não poderia dizer que o governo espanhol conseguiu
influir totalmente junto à União Européia. Mas a posição atual
da União Européia de fato se deve em boa medida à liderança
da Espanha. E hoje, a União Européia diz o mesmo que a
Espanha: se Cuba quer cooperação, deve melhorar os direitos
humanos e respeitar a dissidência interna e as Organizações
Não Governamentais independentes.
– Mas essa atitude equivale a apoiar o embargo estadunidense.
Mais, revendo o que o governo espanhol apresentou à União
Européia, vê-se que não difere muito das exigências que os Estados
184
Unidos faz a Cuba para levantar o embargo. E, há pouco, o senhor
dizia que a Espanha e a União Européia estavam contra o
embargo...
– É possível que tenham razão. Mas a experiência que se
tem é que não se sabe aonde foram parar as contribuições feitas
ao governo de Cuba. Por isso agora queremos fazer projetos
concretos que beneficiem diretamente a população.
O governo do presidente Aznar vai acabar com o incentivo
que Felipe González dava às empresas espanholas para que
investissem em Cuba. A mensagem que o governo transmitiu
é clara: as empresas que se decidam a colaborar com Castro
deverão enfrentar sozinhas o risco.
– Por último, senhor Gortázar, a Fundação Hispano-Cubana
tem contatos com Organizações Não Governamentais?
– Não. Ainda não. É preciso considerar que cada país
europeu tem sua própria dinâmica nas relações com Cuba,
mas um dos mais destacados membros do Patronato da
Fundação, o senhor José Ignácio Salafranca, é deputado do
Parlamento Europeu. Supomos que ele terá em conta os
princípios de liberdade e democracia, nos assuntos relativos a
Cuba que lhe couberem.
Mas, sim, parece-nos muito inteligente o que a Plataforma
Democrática Cubana, liderada pelo senhor Montaner aqui na
Espanha, realizou: influir sobre outros governos e organizações
da Europa. Parece-me que na Holanda obteve resultados muito
positivos. Sei muito pouco, mas me parece que conseguiram
influir na Europa sobre outras organizações e grupos, para
ajudar a estabelecer uma Plataforma Européia pelos Direitos
Humanos em Cuba.
Nós, como Fundação Hispano-Cubana, temos esse trabalho
pendente, pois seria conveniente relacionar-nos com
Organizações Não Governamentais importantes da Europa.
185
Na Espanha estamos começando um trabalho com a Cáritas,
organização da Igreja católica, mas estamos só no começo.
Estou incumbido de fazer um projeto sobre as relações de
trabalho com Organizações Não Governamentais que atuam
na mesma área, para agir coordenadamente e apoiar-nos
mutuamente.
E quando começarmos, vamos fazê-lo com força e em toda
a Europa.
186
X
“Damos cinqüenta dólares mensais a uns vinte jornalistas para que possam sobreviver;
para que permaneçam no país, pois, cada vez que os encontramos, a primeira coisa que
nos propõem é que os ajudemos a sair de Cuba, devido a problemas econômicos”.
ROBERT MÉNARD
Secretário Geral de Repórteres sem Fronteiras, RSF
JACQUES PERROT
Responsável Região Américas - Repórteres Sem Fronteiras
Três circunstâncias nos convenceram a realizar a entrevista
com o Secretariado Geral de Repórteres Sem Fronteiras, com
sede na França.
Uma, que em Miami dirigentes de organizações contrarevolucionárias, como o senhor Humberto Esteve, Secretário
Geral do Partido Democrata Cristão; a senhora Janiset Rivero
do Diretório Revolucionário Democrático Cubano e o senhor
Pepe Hernández, da Fundação Nacional Cubano-Americana,
exaltaram seu trabalho de apoio aos chamados jornalistas
independentes do interior de Cuba. A segunda, quando em
Paris dois dos que participavam da reunião promovida, no
final de 1996, pelo Embaixador especial da Administração
Clinton para assuntos cubanos, Eizenstat, comentaram conosco
que o delegado de Repórteres Sem Fronteiras havia sido o mais
próximo das posições do anfitrião. A última, foi saber que
Repórteres Sem Fronteiras esteve com outras organizações
européias, em uma reunião semi-fechada convocada pela Pax
187
Christi Holanda em Haia, que pretendia criar um bloco de
pressão sobre o governo cubano, e dar apoio à chamada
dissidência.
Ao entrevistar Jacques Perrot, encarregado da Região
Américas, assim como Robert Ménard, Secretário Geral de
Repórteres Sem Fronteiras, não só entendemos porque esses
grupos da extrema direita em Miami aprovavam seu trabalho,
como confirmamos o resto, algo preocupante, considerando
os objetivos, imagem e respeitabilidade desta grande associação
internacional.
E não nos inquietamos à toa.
Foi no final dos anos oitenta que se soube em Miami que,
no interior de Cuba, existiam jornalistas independentes.
Embora isso fosse recebido com otimismo, não surpreendia.
Mais: esperava-se. Naquele momento o chamado bloco do
Leste estava vindo abaixo, e as organizações denominadas
independentes desempenhavam um papel de primeira
grandeza, estando à frente as de defesa dos direitos humanos e
agências de imprensa, que tinham cada vez mais presença nos
meios de informação do mundo. Hoje, quando nesses países
reina a penúria para as maiorias e as máfias estão no poder,
existe uma extensa bibliografia que permite saber como essas
organizações foram assessoradas e pagas pelas potências
ocidentais, especialmente pelos Estados Unidos da América
do Norte.
Então, o aparecimento em Cuba de agências de imprensa
independentes, que se somavam aos grupúsculos em prol dos
direitos humanos já existentes, era considerado como uma
simples reação em cadeia, e como presságio da queda do
sistema. Mas podia existir a dúvida: se, no caso dos países do
Leste os jornalistas independentes foram, quase todos, uma
fachada, em Cuba primaria a deontologia profissional? O
188
adjetivo independente poderia corresponder à definição do
Pequeno Larousse Ilustrado? “Diz-se do que tem e mantém
suas próprias opiniões e não se deixa influir pelas de outros.
Aplica-se à pessoa que não pertence a um partido
determinado.”
Ao longo deste trabalho, fomos mostrando como as
diferentes administrações estadunidenses, em especial de
Reagan em diante, utilizaram os meios de comunicação de
massa para lacerar social, ideológica e politicamente o
processo revolucionário cubano. Nos diversos textos e
exemplos mostrados, achamos que ficou claro o papel
desempenhado por Rádio Martí, La Voz del CID, La Voz de
la Fundación etc., tanto para dividir a sociedade cubana,
como para gestar e alimentar grupúsculos contra-revolucionários. Não nos esqueçamos que a Rádio Marti, e em
geral os programas para Cuba, fazem parte das propostas
definidas e assumidas em sua maior parte, como prioritárias,
no Documento de Santa Fé.
Apesar de que foi durante a Administração Bush que veio
à tona a tentativa de semear agências de imprensa independentes, foi com a presidência de Clinton que na verdade elas
começaram a frutificar. E um fato chave, impossível de ignorar
no contexto da estratégia adotada, foi a aplicação da Lei
Torricelli. Esta lei ordena – e aqueles que se preocuparam em
lê-la do começo ao fim saberão que este é o termo exato –
incitar, criar e financiar, direta ou indiretamente, todo tipo de
organização que implique em desacreditar e agredir o Estado
cubano, incluindo, como algo essencial, as agências de imprensa
independentes.
A esta sutil tática de semear grupúsculos, básica para a
desestabilização deu-se um nome: “Track two”, Rota dois. A
um é o nefasto embargo.
189
Como se fosse pouco, quase ao mesmo tempo, Clinton
somou à Lei Torricelli o que fora recomendado pelo estrategista
Donald E. Schulz, em 1993: “Promover (...) o estabelecimento
de escritórios de imprensa (...), dando facilidades aos elementos
dissidentes para que se comuniquem abertamente e estimulem
uma maior fragmentação (...).”89
Pois bem, pode-se dizer que fomentar a queda do sistema
político cubano é um velho projeto de Washington, apoiado
tacitamente, insistimos, por seus aliados. E que nem todo
aquele que no interior da Ilha se declare dissidente ou
independente está necessariamente de acordo com isso. É
possível, mas já vimos como vários dos que internacionalmente
são reconhecidos como líderes dos direitos humanos, fazem
parte da estratégia.
Dizíamos que nos inquieta o profundo compromisso, de
defesa e de apoio, assumido pelos Repórteres Sem Fronteiras
com os chamados jornalistas independentes. Parece-nos que o
fizeram sem uma análise fria e desapaixonada do contexto geral
em que se desenvolve o processo político cubano, tanto interna
como externamente. Pensamos que, por isso a insistência no
termo “independente”, que nos parece não corresponder à
realidade.
Sabendo de nosso interesse pelo assunto, Repórteres Sem
Fronteiras enviou-nos La otra voz cubana.90 No prefácio à edição
francesa, escrito por um profissional da comunicação que
publicou alguns livros sobre Cuba, encontramos a percepção
que deve ser a dos Repórteres Sem Fronteiras sobre o mundo
dos chamados jornalistas independentes. Em um trecho diz:
89
Donald E. Schulz. Obra citada.
90
Jean-Pierre Clerc: “Prefacio”, L’autre voix cubaine. Des journalistes dissidentes temoignent,
Ed. Reporteres Sans Frontieres, Paris, 1997.
190
O método de trabalho destas mulheres e homens é “a
pesquisa de proximidade”. Que quer dizer isso? Trata-se
de recolher, aqui e ali, informações, até muito vagas, de
conhecidos, amigos e simpatizantes mais ou menos
declarados da democratização. Fica demais esclarecer que,
de maneira nenhuma, têm acesso a documentação ou
contatos oficiais (...)
É difícil, também, ir à caça de informações fora da capital:
em um país onde a desconfiança e a delação foram, durante
quase quarenta anos, consideradas virtudes nacionais, é
necessário ser conhecido, e reconhecido, para recolher
fragmentos do que poderia compor um artigo (...)
Aqui vale a pena fazer um pequeno, porém útil,
comentário. Quem, como nós, passou por Cuba sabe que,
se algo caracteriza esse povo, é sua paixão por falar: tudo se
conta, tudo se critica, tudo se discute. E de viva voz. Para
saber se neste dia houve pão e leite nas escolas, basta parar
entre os que esperam, pacientemente, o ônibus. Ou
perguntar, aos que servem num restaurante, como está a
situação econômica do país, para que se estendam em
comentários, e muito possivelmente se inflamem, em um
debate apaixonado, se uma pausa o permitir. Fazem-no com
estrangeiros ou nacionais, da maneira mais natural: se
natural for a atitude do interessado. Em Havana, em frente
ao Hotel Inglaterra, no parque, há um lugar conhecido
como a “esquina quente”. Vale a pena misturar-se entre os
que ali debatem, sem temer a gritaria, para saber como se
desarma e se arma o país; que medidas governamentais não
são do agrado de alguns; e se o mau desempenho da equipe
nacional de beisebol deve-se ao treinador ou a algum
191
burocrata. Sabemos muito bem que não existe outro país
na América Latina que tenha essa peculiaridade. Supomos
que seja um legado da Revolução.
Continuemos.
O texto, uma vez escrito, é passado por telefone ao estrangeiro,
geralmente para Miami ou Porto Rico. Daí é divulgado
por intermédio de boletins que circulam entre a diáspora,
depois enviados a Cuba em cartas particulares; o texto
também é lido na Rádio Martí.
É preciso esclarecer que os textos de jornalistas independentes
não são autorizados na ilha. Mas criou-se uma espécie de
dialética (sic): as informações das agências independentes
dão a conhecer ao exterior elementos da situação cubana
ocultos pelo regime; e a Rádio Martí oferece, não apenas aos
dissidentes, mas também a um amplo setor da população,
uma abertura única para o mundo (...)
Honestamente, tivemos que ler várias vezes a expressão:
“uma abertura única para o mundo”. Queremos pensar que
seu autor enganou-se involuntariamente. Pois sabendo para
que funciona a Rádio Martí, e quem está à sua frente, é fácil
imaginar que tipo de “abertura” pode oferecer aos habitantes
da Ilha; achamos que foi um equívoco, pois algumas páginas
antes afirmara que essa rádio, assim como Tele-Martí, “foram
montadas e são mantidas pelos fundos da CIA americana”.
Reconhecemos não ter entrado no lar de nenhum dos que
internacionalmente se diz jornalista independente. E como
em alguns deles funcionam as sedes de suas agências, não
podemos saber de maneira direta com que elementos
desempenham seu trabalho. O prefácio do livro dos Reporters
192
sans Frontières diz de uma delas: “Algumas velhas máquinas
de escrever e gravadores antidiluvianos, um apartamento apenas
em parte organizado, dois telefones e a bicicleta de cada um
posta a serviço da causa: é todo o poder de dissuasão do BPCI!”
Não é demais esclarecer que em Cuba a bicicleta não é
sinônimo de pobreza entre os habitantes; simplesmente foi o
recurso oferecido pelo governo frente à escassez de transportes
coletivos, devido à crise econômica geral que se desencadeou
desde princípios da década de 90. Agora, a descrição feita no
prefácio contrasta com o seguinte: a Anistia Internacional
denunciou que em 10 de julho de 1995, a Segurança cubana
confiscara um fax do jornalista independente Nestor Baguer;
mas em 18 de agosto Baguer já tinha outro. Segundo a mesma
fonte, em 12 de julho confiscaram de José Rivero “um aparelho
de fax, uma câmara de vídeo e material fotográfico”. (Anistia
Internacional: Cuba, ofensiva do governo contra a dissidência,
versão em espanhol, abril de 1996). Recordando as intenções
táticas e a estratégia do governo estadunidense, que a União
Européia concordou em apoiar desde janeiro de 1997, devese dar credibilidade à Anistia. Já em capítulos anteriores
demonstramos como existe uma boa quantidade de dólares
destinados a apoiar a dissidência interna. Trata-se de um
segredo público: “As agências de imprensa cometeram erros:
algumas aceitaram a ajuda material da Seção de Interesses
americanos de Havana (...)” (Le Figaro, Paris, 02. 02. 96)
Os Repórteres Sem Fronteiras denomina-os “a outra
voz”. Está certo. Estão em contradição com o monopólio
que o Estado exerce sobre os meios de informação, mas
pelo que se pode observar na práxis, esse ato de aparente
rebeldia, de dissidência, de insubmissão, foi a justificativa
encontrada para entregar-se a outros braços. Nos poucos
parágrafos do prefácio que transcrevemos, já existem
193
alguns dados importantes sobre o caminho que escolheram. Aqui vão alguns outros exemplos:
Rafael Solano, exilado na Espanha, tem seu ponto de vista
sobre a neutralidade política: “Diz a teoria que o jornalismo
deve ser imparcial. A prática demonstra exatamente o contrário.
O jornalismo oficial em Cuba toma partido a favor do Comitê
Central.”91 Isso é inegável, mas contrasta com o que afirma umas
linhas depois: “Rádio Martí é uma opção diferente. A imprensa
do exílio, particularmente a de Miami, se nutre da imprensa
independente de Cuba.”92 Durante vários dias o senhor Solano
esteve preso em seu país. Os Repórteres Sem Fronteiras fornecem
um dos motivos de sua detenção, junto com um colega:
Eles tinham divulgado para o exterior o conteúdo de uns
panfletos lançados do céu de Havana por um avião de
turismo vindo da Flórida, em 13 de janeiro (de 1996).
Esses panfletos, chamando à desobediência civil, tinham
sido lançados pela organização Irmãos para o Resgate, de
Miami, que ajudava os “balseiros”. (Reporters sans
Frontières: Rapport 1997, Paris, 1997)
Uma das grandes preocupações que nos assaltam cada vez
que lemos relatórios de muitas Organizações Não Governamentais, como Repórteres Sem Fronteiras, é que não são fornecidos,
ao público, dados essenciais para que um fato seja compreendido.
Vale dizer que essas pessoas leram esses panfletos ao povo cubano
na Rádio Martí e na Voz de la Fundación. E que esses panfletos
tinham uma função autenticamente sediciosa, pois o fluxo de
balseiros se interrompera oito meses atrás.
91
92
Trazos de Cuba, paris, junho de 1996.
Idem.
194
Encontramos Raúl Rivero, diretor de Cuba Press, como
membro do Partido Solidariedade Democrática, dirigido de
Miami pelo ultra-reacionário Hubert Matos, grupo que, por
sua vez, está politicamente próximo da Plataforma Democrática
Cubana, em Madri. Desde meados de 1997, é diretor da
conservadora Fundação Hispano-Cubana. Informa para Rádio
Martí e La Cubanísima, Caracol, a cadeia de rádio mais
direitista da Colômbia; Rádio Jerusalém, conhecida por suas
posições conservadoras; El Nuevo Herald, influenciado pela
extrema direita de Miami; El Nuevo Día, informativo
portorriquenho de direita; e Trazos de Cuba, boletim editado
na França, por exilados de extrema direita. Estes são os meios,
primordialmente, para os quais transmite informação. Sem
esquecer seus artigos regulares para o ultra-reacionário Diario
de las Américas, em Miami. Apesar do grau de compromisso
político, claro e muito bem definido, atreve-se a dizer: “Sou
jornalista. Eu o demonstrei durante muitos anos, e desejo fazer
um trabalho “despolitizado”, de jornalista profissional, sem
tendências, que se limita a relatar os fatos”. Em 10 de dezembro
de 1997, Dia Internacional pelos Direitos Humanos, recebeu
o prêmio Reporters Sans Frontières, em recompensa “a um
jornalista que por sua atividade profissional, soube testemunhar
seu apego à liberdade de imprensa”.93 Uma devoção à liberdade
de informação que, curiosamente, serve a um dos atores no
conflito.
José Rivero, sem ser jornalista, é vice-presidente da agência.
No relatório de Repórteres Sem Fronteiras de 1997 está dito
que ele “participa há pouco tempo do programa A Semana em
uma Hora, transmitido pela Rádio Martí”. A Anistia
93
“Suplement”, Le Monde, Paris, 17 de janeiro de 1998.
195
Internacional, em um informe de julho de 1996, confirma o
que foi dito, especificando que o programa é dirigido para
Cuba, e que a emissora é “financiada pelo governo
estadunidense”.
Em meados de 1997, Repórteres Sem Fronteiras realizou
uma campanha contra a detenção provisória de Héctor Peraza.
Vários reconhecidos intelectuais franceses apoiaram-na. Peraza
é membro do Partido Solidariedade Democrática, dirigido de
Miami por Hubert Matos. Também colabora com Trazos de
Cuba, grupúsculo que em seu informativo de setembro de 1997
apoiava tacitamente os atos terroristas que estavam sendo
cometidos em locais turísticos cubanos. Trazos de Cuba,
segundo se diz no prefácio de La otra voz cubana, é uma fonte
importante de informação para Repórteres Sem Fronteiras.
Nestor Baguer foi escolhido por Repórteres Sem Fronteiras
como seu correspondente em Cuba. Mas também é membro
do Comitê Martiano pelos Direitos Humanos, e da Corrente
Socialista Democrática, ambos grupúsculos ligados aos
esquemas contra-revolucionários Coordenação Democrática
Cubana e Plataforma Democrática Cubana, dirigidos do
exterior por Carlos Alberto Montaner e Ignacio Rasco. Além
disso, suas informações aparecem regularmente nos boletins
da Fundação Nacional Cubano Americana e da Representação
Cubana no Exílio.
Os Repórteres Sem Fronteiras publicaram um brevíssimo
livro de poemas de Yndamiro Restano, produzido durante os
meses em que esteve na prisão. Foi um dos primeiros que, no
final dos anos 80, tentou organizar uma agência independente
de imprensa. Pouco depois, organizou e presidiu um
grupúsculo denominado Movimento Harmonia, que passou
a acompanhar as políticas da Coordenação e da Plataforma
Democrática Cubana. Restano era um dos assíduos
196
informantes da Rádio Martí, mas também da Voz de la
Fundación. Foi para o exterior e não voltou para Cuba,
aparentemente porque as autoridades proibiram sua entrada.
Em 17 de junho de 1997, utilizava a linha da internet
pertencente a Irmãos para o Resgate, para difundir a
informação. Vive atualmente em Miami.
Olance Nogueras residia em Cienfuegos e tinha o cargo de
diretor em uma agência independente de imprensa: “Em 15
de agosto (de 1996), o jornalista recebera a visita de Robin
Dayan Meyers, diplomata norte-americano (acreditado na
Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana).” É
possível que não só nós nos perguntemos, o que tem de especial
o senhor Nogueras para fazer deslocar-se até aquela cidade um
funcionário tão importante? Em 5 de setembro de 1996,
Nogueras, depois de um debate televisionado entre Jorge Mas
Canosa e o dirigente cubano Ricardo Alarcón, telefonou para
a Voz de la Fundación e fez o seguinte comentário: “O
presidente da Junta Diretora da Fundação Nacional CubanoAmericana demonstrou uma vez mais ser um dos grandes
líderes do exílio e uma das pessoas mais capacitadas para
enfrentar o governo cubano.”
Em agosto de 1997 Nogueras saiu para Miami, onde foi
recebido pelos dirigentes da Fundação.
Em 8 de outubro de 1997, dia em que se inaugurava o V
Congresso do Partido Comunista de Cuba, Repórteres Sem
Fronteiras tornou público um breve documento onde pedia
às autoridades cubanas libertar Lorenzo Paez Nuñez, exmembro de uma agência de imprensa, mas também “presidente
do Centro Não Governamental pelos Direitos Humanos José
de la Luz y Caballero.” A denúncia de Repórteres Sem
Fronteiras especifica que quando foi preso, “o jornalista (cuja
profissão real é matemático, segundo a fonte), telefonava para
197
a representante de uma associação de cubanos exilados nos
EUA (...).” Para que o leitor compreenda objetivamente o
contexto da detenção, só falta acrescentar que o “Centro Não
Governamental” está vinculado à Coalizão Democrática
Cubana, que é dirigida de Miami pela ultra-reacionária
Fundação Nacional Cubano-Americana e que naquele
momento era cúmplice das bombas que explodiam nos centros
turísticos cubanos. Portanto, o senhor Paez não estava
telefonando para qualquer associação de exilados: a polícia
chegou “enquanto a Fundação Nacional Cubano-Americana
gravava a mensagem do porta-voz do grupo, Lorenzo Paez
Nuñez”.
Vamos encerrar esta série de exemplos com um fato
ocorrido no início de 1997. Mas antes devemos introduzi-lo,
brevemente.
Em março de 1996, o presidente Clinton assinou a Lei
Helms-Burton, que se destaca por ser mais prepotente,
ingerente, e anexionista do que a Torricelli. Ela “institucionaliza” o “direito soberano” estadunidense de criar e apoiar
moral e economicamente a dissidência interna cubana,
inclusive os denominados jornalistas independentes.
Naquele momento, como o fariam – e o fizeram em
épocas não muito distantes, diante de agressões externas –
os governos da França, Inglaterra, Espanha e o próprio
governo estadunidense, o cubano estabeleceu em sua
legislação que “toda colaboração” interna com as pretensões
da Lei Helms-Burton, seria considerada um crime contra a
nação.
Quase um ano depois, em 28 de fevereiro de 1997, a Casa
Branca anunciou a emissão de um documento intitulado
“Apoio para uma transição democrática em Cuba.” Este texto,
“redigido no contexto da Lei Helms-Burton (e que) devia ser
198
abundantemente divulgado pelas ondas da Rádio Martí”,94
promete uma ajuda econômica maciça aos cubanos, a partir
do momento em que os irmãos Castro e parte da atual direção
cubana abandonem ou percam o poder. Quando isso acontecer,
o governo estadunidense “sente a obrigação” de estar ao lado
dos chamados grupos dissidentes. Ou seja, mais e mais, a
mesma coisa.
Imediatamente a Seção de Interesses dos Estados Unidos
em Havana, além de continuar dando o apoio material e
econômico habitual, começou a programar seminários.
Dito isso, propomos que leiam os comunicados de dois
jornalistas, denominados independentes, sobre um mesmo
acontecimento.95
Havana, fevereiro de 1997. BPIC. – Ao meio dia de 5 de
fevereiro (de 1997), na residência da senhora Mary (sic)
Blocker, Primeira Secretária para Assuntos de Imprensa e
Cultura do Escritório de Interesses dos EUA em Cuba, foi
oferecido um programa de televisão, diretamente de
Washington, sobre o jornalismo cívico, de que participaram
um membro do Filadélfia (sic) Square (sic) e William
Harrys (sic), do Departamento de Ciências Políticas da
Universidade da Pennsylvania.
As agências APIC, Havana Press, BPIC e Centro Norte
Press de Villa Clara estiveram presentes (...). Da imprensa
estrangeira, só a Agencia (sic) espanhola, EFE, o Financial
Times e a BBC de Londres se fizeram presentes no local.
94
Le Monde, Paris, 1 de fevereiro de 1997.
95
Comunicado de BPIC, Documento tirado da Internet, 4 de julho de 1997.
199
O segundo texto amplia e complementa o anterior, dando
mais detalhes sobre o evento.
Havana, 5 de fevereiro (BPIC). – Jornalistas de cinco agências
de imprensa independentes foram provocados quarta-feira
por uma equipe de filmagem do Noticiário Nacional de
Televisão durante a transmissão de um programa televisionado
sobre jornalismo cívico e público na residência de Merrie (sic)
Blocker, primeira secretária (...)
“A intenção é criar pânico entre os membros da imprensa
independente”, afirmou Raúl Rivero, presidente de Cuba
Press (...)
A reunião consistiu na apresentação de um debate sobre as
novas tendências de um jornalismo democrático, nascido
nos Estados Unidos e com uma ampla participação do
homem comum (sic).
A transmissão do programa Jornalismo Cívico e Público
realizou-se pelo canal Worldnet dos serviços públicos (sic)
do governo norte-americano, com a participação em
Washington da jornalista Jan Schaffer, do Filadelfia (sic)
Inquirer e do professor William Harris (...)
“Esperava esse encontrão (sic) entre as principais (sic)
fontes de informação de Cuba”, disse Lázaro Lazo, diretor
do Escritório de Imprensa Independente de Cuba (BPIC),
para quem a provocação tem aspectos conjunturais,
relacionados com o informe “Apoio para uma Transição
Democrática em Cuba”, emitido pelo presente Clinton
na semana passada.
200
“Apoio para uma Transição” que Olance Nogueras, redator
da notícia, se preocupa em explicar na seqüência: “O Capítulo
II do informe mostra a necessidade (estadunidense) de
fortalecer os meios de comunicação independentes, dando
assistência para capacitar os jornalistas em métodos objetivos
e responsáveis de informar os cidadãos.” Não é necessário
qualquer comentário sobre a falta de independência
jornalística, para não falar da política.
O Secretário Geral dos Repórteres Sem Fronteiras, Robert
Ménard, não tem dúvida nenhuma: a prioridade da associação
na América Latina é Cuba. Isso significa apoiar o trabalho dos
chamados jornalistas independentes. Por que este grau de
importância? Porque, do ponto de vista dos Repórteres Sem
Fronteiras, “é perigoso ser jornalista na Colômbia ou no Peru,
mas há liberdade de imprensa”. Nestes países há jornalistas
“assassinados e presos”, mas os familiares e colegas podem se
contentar com “fazer denúncias”. Isso é preocupante. Porque
não se trata do caso isolado desses dois países. Em um
continente onde a taxa de analfabetismo é muito alta, e uma
mínima parte de seus habitantes tem acesso aos meios de
comunicação, por a liberdade de imprensa acima do direito à
vida e à integridade física nos parece muito grave.
Pode-se alegar que a importante revista The Economist não
é especialista no assunto. O certo é que, em abril de 1997,
mencionou os doze países do mundo que mais atentam contra
a liberdade de imprensa e de expressão: com exceção da China,
todos são aliados próximos dos Estados Unidos e da União
Européia. Na América Latina, a Colômbia e o México são os
primeiros classificados.
Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP),
nos últimos nove anos foram assassinados “com absoluta
impunidade” cento e setenta e nove jornalistas no continente,
201
em sua maioria por forças repressivas estatais. Praticamente
vinte por ano; ou seja, mais de um e meio por mês. Em Cuba
não houve nenhum jornalista agredido fisicamente, nem
torturado, nem assassinado, nem desaparecido. Sem olhar a
quem servem, ou sem querer fazê-lo, a Sociedade Interamericana de Imprensa entregou um prêmio às agências
independentes de imprensa, por sua “valente” contribuição
à “democracia” informativa.
Nem o Paraguai nem a Argentina estão em conflito com
algum país, como é o caso de Cuba, e apesar disso Raquel
Rojas, do jornal La Nación do Paraguai, diz que: “fazer
jornalismo de investigação hoje em meu país é correr risco de
vida todos os dias”, e no mesmo artigo Oscar Cardoso, de El
Clarín de Buenos Aires, acrescenta que o presidente Menen
“propôs compensar a liberdade de imprensa com a liberdade
do porrete”.96
A entrevista se realizou na sede do secretariado
internacional dos Repórteres Sem Fronteiras, em Paris.
Começamos com Jacques Perrot e acabamos com Robert
Ménard. O primeiro, jovem, amável e de temperamento
sossegado. O Secretário Geral nos pareceu impulsivo, a ponto
de não poder conter expressões que denotam a raiva que tem
do governo cubano.
Repetimos, é inquietante a defesa assumida pelos Repórteres
Sem Fronteiras dos que se denominam jornalistas independentes, porque essa independência profissional é inexistente
entre os que sobressaem internacionalmente. Indiscutivelmente, é certo: a independência de que se vangloriam os situou
em um dos campos. Porque esses corações e penas optaram
por servir, direta ou indiretamente, o poder que deseja ver sua
96
Felipe Sahagun: “Informativo Veraz”, El Mundo, Madrid, 9 de novembro de 1997.
202
nação como a estrela número 51-bis da bandeira dos Estados
Unidos: outro Porto Rico.
– Em seu relatório de 1997 os senhores dizem que existem
cinco agências de imprensa independente em Cuba. Referem-se a
elas como se estivessem integradas por um grande número de
profissionais da comunicação. Mas, pelo que sabemos, não são
tantos. Achamos que não chegam a dez.
– Sim, há mais jornalistas. Mas é verdade que a maioria
são colaboradores.
– Gostaria de concentrar-me no papel que um jornalista deve
desempenhar quando sua nação está em guerra, ainda que não
militar, como é o caso de Cuba. Quero que se ponha no lugar do
Estado cubano: o senhor aceitaria que em meio a essa agressão
que os Estados Unidos lhe declarou há quase quarenta anos,
aceitaria que alguns cidadãos, por serem jornalistas, enviassem
informações que convêm ao inimigo?
– Não creio que todos os artigos ataquem o governo cubano.
E também não creio que peçam a cabeça de Fidel Castro. Mas,
por que alguém não pode criticar o governo e Fidel Castro?
Por que um cubano não pode pedir que o ditador Castro deixe
o poder?
– Mas, no jornal Granma, no dos Trabalhadores e no da
Juventude, regularmente pode-se ler críticas contra instituições
ou funcionários do Estado. Por exemplo, li vários artigos onde se
fala, com nomes próprios, de quadros políticos corruptos.
– Precisamente vários desses jornalistas trabalharam em
meios de informação oficiais. Foram despedidos por
indisciplina, desacato ou por ofensa às autoridades.
– Mas, vejamos. Quando surgiu o Concílio Cubano,
internacionalmente se dizia que era uma oposição independente e válida ao sistema cubano. Mas, existem suficientes
203
documentos provando que o Concílio foi organizado,
financiado e dirigido, não só pela extrema direita do exílio,
mas pelo governo estadunidense. E sabe-se que os chamados
jornalistas independentes tiveram uma participação muito
ativa, sobretudo informando os meios jornalísticos contrarevolucionários no exterior. Muito particularmente a Rádio
Martí.
– Você deve saber melhor que eu que no Concílio Cubano
deve ter havido grupos financiados pela CIA. Ninguém duvida
disso, mas também deve haver outros financiados pela
Segurança do Estado cubano. Nós, Repórteres Sem Fronteiras,
apoiamos constantemente os jornalistas independentes. Mas,
por que Raúl Rivero foi ameaçado e às vezes detido? Por que
escreveu para El Nuevo Herald?
– Mas, o senhor deve saber que esse jornal é praticamente
controlado pela extrema direita do exílio cubano. A mesma que
deseja a anexação de Cuba aos Estados Unidos. Não acha que
isso já é suficiente para estar tomando posição por uma das partes
em conflito? Além do que, o senhor Raúl Rivero transmite para
Rádio Martí, e tem programas regulares nela. E o senhor sabe que
essa rádio é controlada pelo Departamento de Estado. Acha que o
governo francês suportaria isso se estivesse na pele do cubano? Mas,
enfim, é a pátria ou o ofício?
– Estou completamente certo que um jornalista não pode
censurar-se por defender a pátria a todo custo.
– Quero reconhecer que não acredito na neutralidade
jornalística. Por exemplo, desde o momento em que o senhor
chamou Fidel Castro de ditador, já assumiu uma posição política.
Como se diz, somos humanos e temos um coraçãozinho, mas há
pessoas, jornalistas, que em Cuba estão servindo, colaborando com
uma das forças em conflito, e que é precisamente a inimiga histórica
de sua pátria. Sinceramente não compreendo essa independência
204
e neutralidade, diferente da que se encontra em dicionários e
enciclopédias.
– Ouça-me. Esses jornalistas falam em seus artigos da vida
cotidiana em Cuba, das dificuldades enfrentadas.
– É verdade. Embora todos os que lemos sejam bastante
negativos. São apenas ataques ao governo cubano. Não lhe parece
estranho que não exista nem uma gota de positivismo? Por que
acha que a extrema direita do exílio está tão feliz com eles? Mas,
mudando de assunto, diga-me o que fazem os Repórteres Sem
Fronteiras por estas pessoas?
– Primeiro, tomar contato com eles. Tentar publicar seus
textos fora, para que sejam conhecidos...
Mas, eu gostaria de saber onde se diz que todos são
financiados ou apoiados pela CIA...
– Eu não disse isso. Mas lendo alguns documentos do governo
estadunidense e da extrema direita do exílio, é fácil constatar que
pelo menos os mais conhecidos recebem vários tipos de apoio, além
de haver diversos e recentes relatórios do governo estadunidense
estabelecendo financiá-los ou entregar-lhe os implementos
necessários.
– Bom, eu acho que são coisas que devem ser provadas.
– Não temos provas concretas de que lhes entregam dinheiro
por não fazer nada. Mas o senhor sabe que recebem um pagamento
pelos artigos que escrevem e que são publicados nos meios de
informação da extrema direita e na Rádio Martí. Agora, por sua
práxis é fácil constatar que politicamente formam parte, voluntária
ou involuntariamente, da estratégia contra-revolucionária, e parece
difícil acreditar que pessoas tão inteligentes não saibam como seu
trabalho está sendo utilizado no exterior. Mas diga-nos, como
esses jornalistas fazem chegar seus textos ao exterior?
– Eles telefonam seus artigos para alguém em Miami. E essa
pessoa os põe na internet. Mas o certo é que na Europa há uma
205
posição favorável ao regime de Fidel Castro. E, no momento,
há pouco eco para esses jornalistas. Um pouco na Espanha. E
na França, quase nada... Às vezes Courrier International...
– Como é a relação das pessoas, em Cuba, com esses jornalistas?
– Regularmente promovem atos de repúdio a eles. Segundo
os jornalistas, estas pessoas são membros do Partido Comunista
do bairro. Vêm a suas casas para gritar-lhes que são traidores
da pátria etc. São assinalados como inimigos do povo. Sua
vida é difícil; além disso, a Segurança do Estado os detém por
horas ou dias.
– E os senhores falaram com gente do governo cubano para
que lhes expliquem por que o fazem?
– Não, realmente não. Mas, deve-se fazer isso.
(Nesse momento passamos para o escritório de Robert
Ménard, Secretário Geral dos Repórteres Sem Fronteiras. Ali,
na ampla mesa redonda, tratamos de concretizar o assunto
que mais nos interessa.)
– Senhor Ménard, um jornalista deve pensar antes em sua
pátria, em sua nação, do que em seu ofício?
– Este não é um debate que diga respeito unicamente a Cuba.
Inclui as democracias. Lembre-se da Guerra do Golfo, essa era a
pergunta: você é jornalista ou cidadão francês? Foi algo contrário
à guerra do Vietnam: vocês são cidadãos americanos; não podem
estar fora dos interesses do Estado; não podem informar como
queiram. Então selecionavam alguns jornalistas e levavam-nos
onde lhes interessava. E a imprensa mundial, embora tenha
havido alguns protestos, aceitou este princípio.
Então, existe um limite para um jornalista quando seu país
está em guerra? Eu entendo o limite quando dele depende a
vida dos soldados.
206
Mas, em Cuba, o governo foi um pouco mais longe, pois
não se pode dizer uma palavra que possa servir aos americanos,
dentro dessa guerra que as autoridades de Havana consideram
que existe há quase quarenta anos. E isso é inadmissível.
Inadmissível! Creio que os jornalistas têm um papel, embora
contra seu próprio país. A informação pode ser contraditória
com os interesses de seu próprio país.
Na Guerra do Golfo não existiu a liberdade, mas Cuba é
outra coisa.
– E o senhor acha que o governo cubano deve cruzar os braços,
deixando que seus inimigos financiem aqueles que, segundo parece,
não se importam com a soberania de sua nação?
– Esse é o problema. Por que acha que os Repórteres Sem
Fronteiras ajudam financeiramente esses jornalistas independentes? Exatamente por essa razão. Porque é preciso garantir
que alguns deles possam existir sem o dinheiro do governo
cubano, pois, como são seus críticos, não recebem dinheiro. E
que sobrevivam sem Miami e sem a CIA.
Se alguém espera que amanhã surja uma alternativa a Castro
que seja diferente dos sanguinários de Miami, esta alternativa
virá da implicação de organizações como a nossa, na Europa.
É por isso que, quando as autoridades da União Européia dizem
que é preciso reforçar o embargo, nós dizemos que em Cuba é
preciso optar pelo positivo: ajudar aqueles que constituem uma
alternativa a Castro no interior.
Quando ajudamos os jornalistas independentes em
Cuba, lembramos-lhes que esse dinheiro não vem dos
americanos, nem sequer da União Européia. Damos
cinqüenta dólares mensais a uns vinte jornalistas para que
possam sobreviver; para que permaneçam no país, pois cada
vez que os encontramos a primeira coisa que propõem é
que os ajudemos a sair de Cuba, devido a problemas
207
econômicos; para que resistam à pressão; e para que não
necessitem de Rádio Martí.
– Os Repórteres Sem Fronteiras estiveram na reunião
promovida pelo embaixador especial do governo estadunidense,
Eizenstat...
– Sim. Sim.
– Bem, então sabem que ele passou pela Europa reunindo-se
com algumas Organizações Não Governamentais que trabalham
com Cuba. Sabem que está propondo o apoio à chamada dissidência
interna. Supomos que os Repórteres Sem Fronteiras sabem que essa
é uma das mais importantes táticas elaboradas em Washington para
desestabilizar o governo cubano. E para isso as Organizações Não
Governamentais européias são muito importantes, pois não inspiram
a desconfiança das estadunidenses. Mas, qual foi a posição dos
Repórteres Sem Fronteiras nessa reunião?
Sr. Perrot: Dissemos-lhes que damos este apoio desde
setembro de 1995.
– Sabemos que em outros países algumas Organizações Não
Governamentais acataram este plano. E estamos tratando de
averiguar, embora seja muito difícil, que Organizações Não
Governamentais aceitaram ou estariam dispostas a receber os
milhares de dólares que o governo estadunidense ofereceu.
Sr. Ménard: Os Repórteres Sem Fronteiras querem ser
precisos sobre o nosso dinheiro: é super limpo!
– Em nenhum momento eu disse que os Repórteres Sem
Fronteiras receberam dinheiro do governo estadunidense...
– Mas é importante deixar isso bem claro!
– Parece que na França o embaixador Eizenstat não ofereceu
dinheiro às Organizações Não Governamentais que apoiassem
seu plano. Para ele, o mais importante é que se apóie a dissidência
interna. O plano consiste em consolidar um grupo de Organizações
Não Governamentais européias que pressionem o governo cubano
208
e que apóiem a dissidência. E nos parece que os Repórteres Sem
Fronteiras estão, inconscientemente, nessa linha.
– Ah, mas nós já lhes dávamos apoio e vamos continuar dando!
– Não importa se isso se encaixa diretamente na estratégia
desestabilizadora para Cuba...
– Independentemente da estratégia dos americanos ou da
União Européia, continuaremos dando nosso apoio! Para os
Repórteres Sem Fronteiras a prioridade, na América Latina, é
Cuba! E as três razões para intervir em Cuba são: uma, denunciar
o que acontece em Cuba, porque na Europa, particularmente
na França, pensa-se que Castro não é um ditador como os outros.
E isto é absurdo! Segundo, dar assistência material aos jornalistas.
Três, tornar seu trabalho conhecido.
– E por que é prioridade, se há países onde ser jornalista – um
jornalista honesto – é muito perigoso? Que eu saiba, em Cuba
não se torturam nem assassinam os chamados jornalistas
independentes.
– Por que? Porque é o único país da América Latina onde
não há nenhuma liberdade de imprensa! É perigoso ser
jornalista na Colômbia ou no Peru, mas há liberdade de
imprensa!
– Desculpe, mas é muito discutível a liberdade de imprensa
que existe na Colômbia ou no Peru...
– Sim, você pode discuti-lo! No Peru e na Colômbia há
limites à liberdade de imprensa, há jornalistas assassinados e
na cadeia, mas você pode fazer denúncias. Mas, em Cuba não
pode haver nenhuma voz dissidente! Não há rádio, nem
televisão, nem jornal independentes. Tudo está controlado pelo
Estado! A única coisa que existe é o boletim da Igreja católica!
209
XI
“Claro que os americanos estão felizes com nosso Movimento... Quer dizer, com o que
chamamos Plataforma pelos Direitos Humanos e a Democracia em Cuba”.
LIDWIEN ZUMPOLLE
Coordenadora da Seção América Latina na Pax Christi Holanda
Quando telefonamos para pedir um encontro, a senhora
Lidwien Zumpolle fez muitas perguntas, a maioria para saber
como tínhamos conhecimento que Pax Christi Holanda estava
apoiando a chamada dissidência cubana. Quando esclarecemos
as incógnitas, riu, comentando que os europeus não aprendiam
a manter a boca fechada. Para diversificar nossas fontes de
informação, dissemos a ela que tínhamos um artigo da
imprensa estadunidense que situava sua organização como afim
com a estratégia da Administração Clinton (The Miami Herald,
Miami, 28. 12. 98). Tornou a rir, e ficou convencida de que
seus passos eram públicos.
Em dezembro de 1996 Pax Christi Holanda enviou uma
convocação para várias Organizações Não Governamentais
européias, que trabalham no campo dos direitos humanos ou
do desenvolvimento. Foram então convidadas a formar a
Plataforma Européia para a Democracia e os Direitos Humanos
em Cuba. Politicamente independente, dizia. Assim, em 21
211
de fevereiro de 1997 houve a primeira reunião, em Haia, na
Holanda. Boa parte das organizações convocadas não
compareceu, pela falta de correspondência entre a proposta e
os critérios com que trabalhavam em relação ao processo
cubano. Como o programa da reunião tinha caráter “não
público”, apenas se soube que os Repórteres Sem Fronteiras,
Justiça e Paz da Itália e da Espanha, e H. Böll Stiftung
Alemanha estiveram entre os presentes. Tampouco pudemos
nos inteirar dos acertos finais.
Retomando um pouco a história mais recente, pareceunos que esta Plataforma é uma continuidade de algo que o
governo estadunidense já tentara em 1995. Vejamos. Foi
Richard Nuccio, naquele momento assessor do presidente
Clinton para a América Central, o encarregado de levar adiante
o projeto. A iniciativa pretendia envolver as Organizações Não
Governamentais desse país, que mantinham relações com
homólogas na Ilha, para que cooperassem na desestabilização
do governo cubano. O plano devia adotar medidas que
influíssem não apenas na população, mas nos membros
“moderados” do governo, do Partido Comunista e das Forças
Armadas. Aproximar-se, pouco a pouco, destas instâncias até
convencê-las de que não existe alternativa senão uma transição
para o capitalismo.
Quase todas as Organizações Não Governamentais
estadunidenses recusaram o plano do senhor Nuccio.
Entretanto, foi possível contar com Freedom House, à qual
foi entregue um primeiro meio milhão de dólares, em outubro
de 1995. Boa parte dessa quantia foi destinada imediatamente
para pagar os deslocamentos, como turistas, de ex-funcionários
ou cidadãos da Europa ocidental e do ex-bloco do Leste que,
de preferência, houvessem residido anteriormente na Ilha. Sua
tarefa central consistia em recrutar antigas amizades, com o
212
propósito de organizar grupos dissidentes. Em 1996, quando
foi promulgada a Lei Helms-Burton, Nuccio renunciou e em
seu lugar foi nomeado o senhor Eizenstat. Como seu antecessor,
entre suas tarefas estava reunir-se com Organizações Não
Governamentais. Desta vez, a operação seria desenvolvida no
Canadá e na Europa.
Por declarações posteriores do senhor Eizenstat, na Comissão
de Relações Exteriores do Congresso estadunidense, em janeiro
de 1997, conclui-se que Pax Christi Holanda não foi a primeira
que recebeu a proposta na Holanda, e ainda menos na Europa,
mas sim que aceitou envolver-se em um projeto que nada tem a
ver com seus objetivos humanitários de direitos humanos. O
senhor Eizenstat, publicamente, sem observações, afirmou: “Já
foram dados vários passos positivos para fomentar a sociedade
civil independente em Cuba (...) Organizações não governamentais, sob a liderança da (sic) Pax Christi (com sede na
Holanda), aumentaram seus esforços para reforçar o setor
independente (...)”97 Não foi à toa, então, que Janiset Rivero,
do Diretório Revolucionário Democrático Cubano, ou
Humberto Esteve, Secretário Geral do Partido Democrata
Cristão, ambos em Miami, elogiaram esta organização católica.
Pela entrevista realizada com a senhora Zumpolle pode-se
concluir que Pax Christi Holanda tem como meta ajudar a
acabar com o atual sistema cubano. Então, não é à toa que a
Holanda está se convertendo, depois da Espanha, em cabeça
de praia para que grupos de extrema direita, como os liderados
pela Fundação Nacional Cubano-Americana, Hubert Matos,
Carlos Alberto Montaner e Ignacio Rasco continuem se
infiltrando na Europa.
97
Stuart Einzenstat: “Enfoque multilateral a los derechos de propiedad”, diario Las Americas,
Miami, 27 de abril de 1997.
213
A insistência de Pax Christi Holanda em comprometer-se
com a dissidência interna e a desestabilização do Estado cubano
ficou provada entre 28 e 29 de novembro de 1997.
Nesse período, organizou em Roma a segunda reunião da
Plataforma Européia para os Direitos Humanos e a Democracia
em Cuba. A agenda de discussão tinha apenas três pontos:
insistir junto ao Vaticano para que o Papa pressionasse o
governo cubano pelos “direitos humanos e a democracia”;
insistir com as empresas que investem em Cuba, para que
assumam o “código de conduta” proposto nos chamados
“Princípios Arcos”; e “a prostituição infantil e o sexo-turismo
em Cuba”.
Desde os primeiros dias de outubro, quando Pax Christi
Holanda fez o convite, teve que enfrentar outras regionais no
mundo. As da América Latina, da Itália e dos Estados Unidos
– que é uma das mais fortes – opuseram-se terminantemente
à agenda e a seu caráter conspiratório.
Como nos disse a senhora Zumpolle, por telefone, cerca
de quinze Organizações Não Governamentais européias
compareceram ao evento. Os nomes delas, “não posso lhe dizer.
Não são públicos. É que essas Organizações Não Governamentais não desejam tensões com as outras”. A senhora Lidwien
confirmou que nenhuma organização especializada em
prostituição infantil compareceu, e que houve apenas um
documento, vindo da Inglaterra, e cuja procedência tampouco
quis nos indicar. Posteriormente soubemos que se tratava de
um documento de autoria de duas sociólogas inglesas, para a
instituição ECPAT International, de 1996. Embora a pesquisa
procure, basicamente, mostrar o comportamento sexual de
certos homens que viajam a Cuba – e que é idêntico ao que
assumem em outros países do mal chamado Terceiro Mundo
–, ao ler os relatórios de Pax Christi Holanda tem-se a sensação
214
que, em Cuba, a prostituição infantil e o turismo sexual são
como o vinho na França e a tequila no México.
O único ato público dessa Plataforma foi uma conferência
de imprensa dada por Dariel Alarcón, Benigno, e o sacerdote
Miguel Loredo. O primeiro esteve com o Che na Bolívia, em
1967, e desertou há poucos anos da Revolução. Nessa ocasião
Benigno não disse que, desde setembro de 1996, mantinha
constantes relações pessoais com “um cachorro velho da CIA,
Félix Rodríguez, que tem nos ombros um impressionante
número de missões em todos os continentes, realizadas durante
trinta anos”. Assim informou Le Monde. O importante diário
francês, de 10 de outubro de 1998, disse ainda que Benigno
passara uns quinze dias no bunquer de Rodríguez em Miami.
Ou seja, compartilhando o teto com um dos homens mais
temíveis já criados pela Agência. É difícil que Pax Christi
Holanda não o soubesse, pois no final de 1996 uma cadeia de
televisão de Miami filmara e divulgara o aparente primeiro
encontro; depois, foram muitos os meios de imprensa no
mundo que falaram deste e de outros encontros.
Loredo, convidado especial de Pax Christi Holanda, foi
apresentado como exemplo da “repressão do governo cubano
contra a Igreja”. É verdade que o sacerdote cumpriu dez anos
de prisão. O motivo de tal condenação foi ter escondido Ángel
Betancourt em seu convento durante duas semanas e tentado
tirá-lo clandestinamente de Cuba. Betancourt tinha assassinado
dois tripulantes e ferido outro, quando tentava seqüestrar um
avião de Cubana de Aviación. O fato ocorreu em março de
1966. Loredo, ao sair da prisão, transferiu-se para Nova Iorque,
onde se vinculou aos grupos de extrema direita do exílio.
Um ano depois foi editado um livro, em língua italiana,
que reunia as teses do segundo encontro da Plataforma. Na
capa de Cuba, la realtà dietro il símbolo figura como autor
215
simplesmente Pax Christi, o que, a nosso ver, torna
automaticamente responsáveis por esse trabalho todas as outras
regionais no mundo. Com exceção do documento das
sociólogas inglesas e da exposição da senhora Lidwien
Zumpolle, os outros treze textos são de cubanos denominados
dissidentes. Há também uma exposição de Frank Calzón. Na
segunda página, sua organização, Of Human Rights, recebe
agradecimentos “pela preciosa colaboração”.
Na tarde de 3 de dezembro de 1998, Pax Christi Holanda
convocou uma Mesa redonda em um local do Parlamento
Europeu, em Bruxelas. O tema era “Investimentos estrangeiros
e direitos humanos e do trabalho”. Assunto tão importante e
complexo contou com apenas quatro horas para ser estudado,
analisado e debatido. Embora a Anistia Internacional venha
há vários anos trabalhando neste tema em nível mundial,
apenas sua seção holandesa apoiou tal atividade; como nos
casos anteriores, desconhecem-se quase todas as organizações
participantes.
Um dos expositores era o cubano Ernesto Díaz Rodríguez.
Pax Christi Holanda apresentou-o como representante dos
sindicatos independentes em Cuba, e investigador dos casos
de violação dos direitos do trabalho em seu país, mas se
esqueceu de acrescentar um dado fundamental e preocupante:
Ernesto Díaz Rodríguez foi preso em Cuba em 1967 por
pertencer ao grupo terrorista Alpha 66, no qual militava há
anos.98 Ao sair da cadeia, foi para Miami, onde continuou a
participar desta organização. No livro que relata a parte “menos
suja” da história de Alpha 66, aparece sua fotografia. Pela
98
Miguel Tellada: Alpha 66 y su historica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995. Ver
também Enrique Encinosa: Cuba en gerra. História de la oposicion anti-castrista, 19591994, Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundacion Nacional Cubano
Americana, Miami, 1995.
216
bandeira que se vê atrás dele, é possível concluir que a foto foi
tirada quando este grupo dava apoio ao sindicado Solidariedade, da Polônia. O livro foi editado em 1995; conhecendo,
como conhecemos, o grau de fidelidade e entrega que um
militante deve a Alpha 66 para receber um reconhecimento
desse tipo, quase se poderia assegurar que nessa data Díaz
Rodríguez ainda era um membro dedicado da organização.
Na hora combinada batemos à porta. A senhora Lidwien
apareceu e depois de um rápido cumprimento, instalamo-nos
no pequeno pátio traseiro de sua casa. Ali estivemos quase três
horas; quando o assunto Cuba estava esgotado, começamos a
falar da Colômbia. Como boa eurocentrista que é, está certa
de ser uma peça chave para obter a paz nesse país. E de tudo o
que contou o mais condenável foi reconhecer que sentia uma
grande admiração pelo narcotraficante e chefe paramilitar
colombiano, Carlos Castaño, braço direito do Exército na
estratégia contra o movimento popular e guerrilheiro,
responsável por semear cadáveres em Urabá, zona bananeira
fronteiriça com o Panamá. Ela, com um grande prazer nos
olhos, disse: “poderia contar muitas coisas boas que Castaño
está fazendo em processos de reintegração de camponeses”.
– Senhora Lidwien, por que Pax Christi Holanda começou a
se interessar por Cuba?
– Você sabe que, em 1990, a União Soviética já estava se
retirando. Então a economia começou a ir muito mal e, a mais
pobreza, o governo de Castro correspondeu com mais repressão
política. E nada de abertura. Foi assim que, em 1991,
decidimos enviar uma pequena delegação. Inicialmente
negaram-nos o visto. Soubemos que o governo teria dito: “que
vão à merda...”
– Disseram desta maneira?
217
– Não, não, não. Soubemos que, em Havana, não haviam
reagido bem quando souberam que íamos falar com a
dissidência. O que disseram na ocasião foi que fôssemos, não
à merda, e sim a Miami, mas como veio a Guerra do Golfo,
tivemos que atrasar a viagem por seis meses, justo quando
Castro e seus aliados estavam reunidos no IV Congresso do
Partido Comunista.
Aí começamos a perceber a mentira que era Cuba.
– Qual era essa mentira?
– Que Cuba era um paraíso socialista. Vimos que não havia
educação nem saúde. Que essa sociedade era uma ditadura.
Falamos com muita gente; estavam sempre trancados em suas
casas, com as janelas fechadas para que os vizinhos não
percebessem.
– Conheço muita gente que passa por Cuba regularmente e
nunca teve que viver isso. E é gente que nem sempre está de acordo
com o sistema cubano. Além disso, eu também estive em Cuba,
falei com muita gente, e nunca me senti perseguido. Ou será que
vocês estavam conspirando?
– Não, não, nosso trabalho era conhecido.
– E como conseguiram os contatos com a chamada dissidência?
– Por intermédio de contatos de contatos. E gente que
encontramos lá, comum. Claro que essa vez o único dissidente
que encontramos foi Osvaldo Payá, do Movimento Cristão. E
tudo o que nos contava era espantoso! Conheço a situação
colombiana, que é terrível. Lá são trinta mil assassinados por
violência política a cada ano... Mas em Cuba!
– E em Cuba, quantos assassinatos políticos havia?
– Em Cuba não há assassinatos, mas é a ditadura
psicológica, esquizofrênica. Confesso a você que prefiro viver
na Colômbia que em Cuba.
– Em Cuba não há assassinatos políticos. E na Colômbia
218
são trinta mil por ano, sem contar os milhares de presosdesaparecidos...
– Olhe, é muito difícil de explicar. Em Cuba é uma
repressão muito sofisticada. É uma coisa feita pelos Comitês
de Bairro; o Partido Comunista; os sindicatos reais, pois
independentes não existem, são tantas as formas de controle
público sobre o indivíduo que a pessoa fica maluca. Conheci
muitas sociedades da América Latina, e a gente percebe que a
cubana é muito diferente.
– Nisso estou totalmente de acordo consigo: é outro sistema
político.
– Claro que o sistema trouxe melhoras para a educação,
para o campo, alguma coisa na saúde, nos esportes. Por isso
digo que é outro sistema, mas isso não é nada diante da
repressão. Para mim, esses avanços sociais são cosméticos para
mostrar ao exterior.
– A senhora, que conhece a pobreza na América Latina, poderá
saber quantas centenas de milhares de pessoas gostariam de ter
acesso a esses “cosméticos”. Porque, em toda a América Latina não
há “cosméticos” e sim muita repressão.
– Mas é que na Colômbia, por exemplo, as pessoas podem
tomar iniciativas. Fazer coisas para sair de sua miséria. É
verdade, em seguida são mortas, mas pelo menos podem tentar.
Em Cuba tudo está paralisado, e é mentira que essa situação
seja por culpa da Rússia que já não os ajuda, ou do bloqueio
dos americanos. A situação sempre foi ruim. Falei milhares e
milhares de horas com cubanos. Digo, centenas de horas. É
gente que foi mantida tão fechada, tão reprimida, que uma
vez que pode falar, não termina. Falam e falam.
– Mas é que o cubano, por natureza, fala demais. Acho que é
uma qualidade de quase todos os latinos, embora creia que os
cubanos ganham.
219
– Sim, sim. Os colombianos também falam bastante. Mas
aqui, em minha casa, fizemos terapia com alguns. E gritavam
pela janela: “abaixo Fidel”. Porque lá as pessoas têm que falar
baixinho, pois se sentem perseguidas pela Segurança cubana.
Isso é muito doentio. Nunca vi um país onde as pessoas tenham
os traços do rosto adaptados, como deformados, de falar baixo
e com medo; assim, meio de lado...
– Eu nunca vi um cubano ou cubana com a boca ou os
pômulos deformados, nem por doença. Nem os que se dizem
dissidentes. Nunca encontrei nenhum que fizesse caretas especiais
para falar. E na Colômbia, não se deu conta da cara que fazem
milhões de camponeses e gente da cidade, quando vêem o
Exército? E no Peru? E na Guatemala? E em El Salvador? E os
meninos de rua, no Brasil? Continuo? Desculpe que o diga. Mas,
quem a entrevista conhece a problemática política e social da
América Latina.
– Mas, todos os cubanos sofrem de neurose por não
poderem se expressar...
E para voltar ao assunto. Estou certa que é uma desculpa
do regime cubano alegar que todo o caos interno se deve aos
americanos. É ridículo. Estou certa que Castro não está
interessado em que se levante o embargo, nem a Lei HelmsBurton. O embargo não existe, o regime pode comprar em
qualquer país!
– Mas, que eu saiba, o problema do Estado cubano não é que
não possa comprar: é que não conta com divisas. A moeda cubana,
o peso, não é aceita no mercado internacional.
– Sim, pode ser assim desde 1989. Mas o boicote já existia.
– Sim, mas Cuba tinha relações eqüitativas com os países do
ex-bloco do Leste.
– Quando Castro tinha essa ajuda, dizia que ria do boicote.
Por que não ri agora?
220
– E como pode um país sobreviver sem divisas? Não se pode
negar que sempre estão criando empecilhos para Cuba, no comércio
internacional. Não se pode negar que os Estados Unidos pressionam
todos os países e cidadãos que querem fazer negócios com Cuba.
– Nós temos falado com muitos governos e até com o dos
Estados Unidos. E lhe propusemos que contenha os
radicalóides de Miami, que não pressionem mais com a
aplicação da Lei Helms-Burton, porque isso ajuda Castro; para
ele, o embargo é um pretexto para não dar de comer ao povo.
– Senhora Lidwien, quais foram suas atividades quando
voltaram daquela primeira visita a Cuba?
– Fizemos um relatório em diferentes idiomas e o
distribuímos; começamos a trabalhar com as Nações Unidas
e o Parlamento Europeu; e iniciamos uma campanha de apoio
às pessoas sem voz, à dissidência interna como Osvaldo Payá;
foi um trabalho diplomático. E no começo nos acusaram de
fazer parte da política dos americanos, mas nós dissemos que
trabalhávamos pelos direitos humanos, e que o Estado cubano
era criminoso. Digo isso como o disse do governo
colombiano...
– Eu sou colombiano, e insisto em que me parece muito
exagerado comparar o cubano com o Estado colombiano,
reconhecidamente assassino e terrorista.
– Considero Castro um criminoso, e não tenho nenhum
problema em dizê-lo. Ele reprimiu um povo inteiro! Veja a
educação em Cuba: é uma coisa militar! Ele é um louco, e não
tenho medo de dizê-lo. Que venha a minha casa, se quiser.
Não tenho medo dele!
– Senhora Lidwien, o trabalho em prol dos direitos humanos
é neutro ou faz parte do jogo político mundial?
– Claro que é neutro... ! Por que me pergunta? Por causa
do que digo de Fidel Castro?
221
– Pode ser. Mas me surpreende que uma pessoa de tanta
responsabilidade nesta organização católica se expresse assim.
– Mas é que Fidel Castro manteve esse povo trancado.
Olhem, nem os soviéticos sabiam o que acontecia na rua.
Quando eles já estavam saindo de Cuba, tiveram conversas
conosco, mais ou menos secretas. Queriam saber se as pessoas
estavam dispostas a levantar-se contra Castro, porque esses
soviéticos gostariam que em Cuba ocorresse a abertura que
estava ocorrendo em seu país.
Cuba é um país feudal, medieval, no que se refere a relações
de trabalho. Nós queremos que em Cuba haja sindicatos
independentes. Por isso agora estamos em uma campanha de
“código de conduta”, dirigida aos investidores que estão em
Cuba, porque essas empresas internacionais devem apoiar o
trabalhador cubano para que se organize independentemente
do governo.
– E nessas campanhas encontraram apoio de outras
Organizações Não Governamentais européias?
– Não é fácil mobilizar organizações internacionais
européias contra o governo cubano, mas pelo menos estamos
lutando para que se saiba que existe uma dissidência interna e
para que acreditem nela.
– Se não me engano, Pax Christi Holanda voltou a Cuba em
três ocasiões. Conseguiram encontrar outras organizações
dissidentes? O governo cubano criou obstáculos a seu trabalho?
– Voltamos com visto de turistas. Mas, por que o governo
iria criar obstáculos para nós? Por acaso não se pode falar com
as pessoas?
Não encontramos tantos grupos. Mas, não faz falta,
qualquer pessoa na rua lhe conta tudo. Também é difícil
encontrar pessoas de grupos organizados porque não há
transporte nem telefones. E há tanta repressão!
222
– Mas, apesar da senhora dizer que existe tanta repressão,
puderam falar com muita gente. Parece-me que da mesma
maneira teriam podido entrar em contato com os chamados
dissidentes, porque, segundo dizem, parece que existem muitos.
E o transporte e os telefones existem. Não como na Europa, mas
existem.
– É que lá todo mundo vigia todo mundo!
– A senhora sabe se esses assim chamados grupos dissidentes
receberam dinheiro, ou algum tipo de apoio, do governo
estadunidense e da extrema direita do exílio?
– Quais?
– Por exemplo, Gustavo Arcos, tão elogiado internacionalmente. Também existem documentos do governo estadunidense,
onde se diz que grupos foram financiados. Inclusive o Concílio
Cubano, que recebeu orientações e dinheiro da extrema direita
do exílio.
– Mas, é que também há outros grupos como o de Elizardo
Sánchez, que tem apoio, embora modesto, de algum governo
da Europa. Mas, qual é o problema? Isso não é justificativa
para reprimi-los. Eu não sabia o que você está me dizendo,
mas acredito, e qual é o problema? Esses dólares servem a essas
pessoas para viver. E se lhes mandam outro tipo de apoio,
qual é o problema?
– Suponhamos que a senhora seja o governo cubano. E que
eu, como dissidente seu, fosse financiado por agências
estadunidenses; o que faria?
– Acho que o poria na cadeia. Faria o que está fazendo o
governo cubano.
– Então, qual é a diferença?
– Mas, ali há pessoas que recebem dinheiro do governo
francês, belga, holandês... qual é o problema? Eu sou muito a
favor da abertura.
223
– E não importa se esse tipo de abertura serve para
desestabilizar sua nação?
– Espere. O Concílio Cubano tinha algo básico: não era
violento... Claro que o governo cubano também deve ter
financiado vários desses grupos... Mas acho que os americanos
não foram inteligentes.
– Os documentos e a prática demonstram que o governo
estadunidense mudou de tática há alguns anos. A linguagem
militarista mudou, até entre os líderes da extrema direita do exílio.
Clinton nomeou embaixadores especiais para tratar dos assuntos
cubanos...
– Nós falamos com Eizenstat. Propõe que se apóie a
dissidência pacífica; nós também. E eu acho que isso é muito
bom, muito inteligente até porque é a primeira vez que ouvem
as organizações européias. Clinton está fazendo isso porque
não quer problemas com os empresários europeus. Clinton
sabe que a Lei Helms-Burton não é necessária para derrubar o
governo de Castro. Espero que continuem assim.
– Disseram-nos que o senhor Eizenstat ofereceu dinheiro às
Organizações Não Governamentais européias que se integrem a
seu projeto.
– A quais organizações? A nós não disse nada. Porque,
quando começou a falar de financiamento, dissemos-lhe que
os Estados Unidos de nenhuma maneira deviam apoiar
economicamente grupos de direitos humanos na Europa
porque seríamos comparados com a gente de Miami. Eizenstat
disse que podia ser feito por intermédio de órgãos europeus
em Bruxelas. Disse-lhe que o dinheiro não era problema,
porque quando há convicção, o dinheiro vem. Eu sempre
consegui dinheiro para as minhas coisas.
– E existe convicção na Europa para ajudar os chamados
dissidentes?
224
– Consegue-se. Consegue-se. No início de 1997 reunimos
umas quinze Organizações Não Governamentais e organismos
europeus, que de alguma maneira tem a ver com os direitos
humanos, para formar a Plataforma...
– Desculpe interrompê-la, mas por que não vieram mais, se
existem tantas na Europa?
– Fizemos muitos convites, mas só estas aceitaram. Claro
que outras, como Terra dos Homens – França, ou OxfamBélgica, não se atreveram a vir porque têm projetos em Cuba
e não quiseram perdê-los. Claro que Oxfam-Bélgica... eles estão
na posição de apoio ao governo... não sei, não querem
denunciar o governo cubano.
Então, fizemos a reunião para ver o que podíamos fazer
em conjunto para Cuba. E vamos buscar apoio para a
dissidência, não tanto financeiro, pois isso é de importância
secundária, mas reconhecimento internacional, para que sinta
que tem apoio político e moral.
A gente de Miami me chamou para protestar porque não
foram incluídos; e porque achavam que iríamos receber muitos
dólares. Dólares que, supostamente, administraríamos sem
levá-los em consideração. Mas aqui na Holanda, os grupos
pró-cubanos também disseram que a Plataforma fora planejada,
manejada e financiada pelos americanos...
– Creio que era fácil dizer que esse encontro era financiado
ou apoiado pelo governo estadunidense, pois poucos dias antes,
passara por aqui o senhor Eizenstat. Muita coincidência, não
acha?
– Encontramo-nos com Eizenstat em novembro, mas já
havia algumas Organizações Não Governamentais com as quais
estávamos tentando nos articular. Mas, sem dúvida, essa
reunião serviu para que Clinton, também em janeiro,
convencesse o Congresso norte-americano a adiar a
225
implantação da Lei Helms-Burton. Clinton, em função da
viagem de Eizenstat, pôde argumentar frente ao congresso que
na Europa começava um movimento a favor dos direitos
humanos e da democratização em Cuba, que os europeus já
não estavam dispostos a dar tanto apoio a Fidel Castro. Nossa
reunião foi uma das coisas que influiu. A declaração da União
Européia, estimulada pelo governo espanhol, também foi
utilíssima. Você conhece a declaração? É fortíssima! Muito boa!
Tudo isso aconteceu em torno da viagem de Eizenstat, mas
não foi um resultado dela. E eu estou feliz!
– Então essa nova tática da Casa Branca, que a senhora
considera inteligente, concorda com o apoio à dissidência interna
que Pax Christi Holanda e outras Organizações Não Governamentais estão implementando?
– Claro que os americanos também estão felizes com nosso
Movimento... Isto é, com o que chamamos Plataforma pelos
Direitos Humanos e a Democracia em Cuba. Pois viram que
agora as Organizações Não Governamentais começam a se dar
conta do que está acontecendo em Cuba, porque vêem que
muitas pessoas, conhecidas como progressistas, também estão
se manifestando a favor dos direitos humanos e da
democratização em Cuba.
– Vocês foram um dos organizadores da reunião que se realizou
também aqui, na Holanda, em abril de 1997?
– Não. Foram três partidos holandeses, mas a iniciativa foi
do Partido Liberal; deve ser porque Carlos Alberto Montaner,
de Madri, é da Internacional Liberal. Os partidos holandeses
não puderam organizá-la: eles não têm idéia do que acontece
em Cuba.
Participaram dessa reunião quatro partidos de cubanos no
exílio. Na sala estavam outros políticos e vários empresários
holandeses. Pedi a palavra e me dirigi aos empresários para
226
criticá-los por seus investimentos em Cuba. Pedi-lhes que, com
seu poder econômico, exijam mudanças democráticas do
governo cubano. Montaner e os outros cubanos ficaram muito
contentes com minha intervenção.
– Imagina-se que sairá de Miami o novo presidente de Cuba,
se cair o atual regime, e, se não for um deles, será alguém do
agrado do governo estadunidense. Isso está escrito na Lei HelmsBurton.
– Sim. Sim. Estou totalmente de acordo, mas isso significa
que a Europa tem que entrar em Cuba, mas eu não sei... Creio
que os Estados Unidos mudaram muito... Já não é como antes,
quando os Estados Unidos podiam manipular tudo. A Europa
tem que se meter em Cuba para que haja mais atores.
– A senhora acha que a Europa tem condições de fazer
contrapeso aos Estados Unidos na América Latina? Observe como
a estão excluindo até da África. Não acha que os governos da
União Européia, assim como Pax Christi Holanda e as demais
Organizações Não Governamentais que fazem parte do plano de
apoiar a chamada dissidência interna, estão prestando um grande
favor à política agressiva dos Estados Unidos?
– Não sei... mas é preciso estar presente em Cuba.
Sabe o que propusemos a Eizenstat? Que deixassem
militarmente Guantânamo, para que a comunidade
internacional, as Nações Unidas, entre como garantia de paz.
– Mas se a ONU é controlada pelos Estados Unidos! Isso ficou
super claro depois da eleição do último Secretário Geral.
– Bom, a ONU não faria isso mesmo, porque não tem
dinheiro; mas então, que o faça a comunidade internacional,
os que estão a favor de uma saída democrática para Cuba...
– Senhora Lidwien, sabia que congressistas cubanoestadunidenses, como Ileana Ros-Lethinen, Díaz-Balart e Bob
Menéndez, concordam em aproximar-se da Europa para conseguir
227
a desestabilização em Cuba? Sabia que estão trabalhando com
Eizenstat, que são políticos da extrema direita, próximos da
Fundação Nacional Cubano-Americana? Sabe que esta Fundação
pensa abrir um escritório de relações públicas em Bruxelas?
– Não, não tinha idéia, mas não me espanta. Estou muito
a favor disso. É ótimo! É necessário que os exilados falem aqui
na Europa, e não apenas em Miami. Eu gostaria muito de ir
aos Estados Unidos, para conversar com esses congressistas e
com os exilados. E acho que vou fazê-lo logo.
– Por último, senhora Lidwien, a senhora me dizia que o
governo dos Estados Unidos está feliz com a Plataforma de
Organizações Não Governamentais dirigida por Pax Christi
Holanda, e feliz também com a União Européia. A senhora sabe
de alguma vez em que Washington tenha ficado assim por algo
que não conviesse a seus interesses?
– É verdade que está feliz com a posição de Aznar; com as
declarações da União Européia; e por ter encontrado
Organizações Não Governamentais européias, como nós, que
apoiamos a dissidência.
228
XII
“Ser dissidente tornou-se um negócio, pelos dólares que chegam de fora”.
FRANCISCO ARUCA
Empresário - Diretor e comentarista de rádio
Apenas iniciada sua carreira de contra-revolucionário,
Francisco Aruca foi preso e condenado a trinta anos de prisão.
Começava a cumprir a pena quando fugiu, partindo de Cuba
em 1961. Voltou a sua pátria em 1978, no contexto da
iniciativa do governo cubano conhecida como Diálogo. Ao
regressar a Nova Iorque, onde vivia e lançara raízes, associouse a outros amigos que, com seis mil dólares, criaram a
companhia Marazul, especializada em vôos charter para Cuba.
“A procura foi tão imensa, que vendíamos hoje para as pessoas
voarem daqui a três meses”. Em 1986 Marazul transferiu-se
para Miami, achando que sua publicidade não era aceita pelos
meios de comunicação hispânicos. Foi assim que resolveram
alugar um espaço na Rádio Unión. E Aruca, além de
empresário, se transformou em comentarista político. “Não
foi apenas pela companhia. É que sentimos necessidade de
criar opinião pública; de que as pessoas recebessem uma
mensagem diferente do ódio.”
229
Recebeu todo tipo de insultos e ameaças. “Desconhecidos”
assaltaram a emissora e bateram em um técnico. Atentaram
contra os quatro escritórios com que conta hoje a Marazul.
Aruca não se intimidou e, pelo contrário, inaugurou outro
programa na Rádio Progresso. A realidade é que ganhou o
carinho e o respeito de um segmento dos imigrantes, não
apenas cubanos. Houve um tempo em que andava com guardacostas; agora só o acompanha uma pistola. “Não posso dizer
que tenham feito algo contra mim. Ah, sim, uma vez um
homem chocou-se voluntariamente comigo e derramou uma
cerveja em cima de mim. Só pensei na reclamação de minha
mulher quando chegasse em casa com aquele cheiro.”
– Senhor Aruca, embora já tenha se tornado para nós um
clichê, queremos perguntar também sua opinião sobre o exílio
cubano.
– O exílio cubano é fictício e anti-patriótico, porque desde
que chegamos aqui estamos esperando que os americanos nos
forneçam uma solução. Ainda que com diferentes enfoques, sua
história é a negação da autonomia em relação aos americanos.
Olhem, a intenção deles com as leis do embargo é criar
uma explosão social em Cuba, para que quando isso aconteça,
o que está próximo, chegue um oficial do Exército e dê um
golpe de Estado; mas o que esse militar vai ter nas mãos será
uma batata quente. Pior, uma panela de pressão com as
válvulas tampadas. Ele não vai saber como, diabos, resolver
esse problema. Aí aparecerão esses poderosos de Miami, com
todo o apoio do governo americano. Sem alternativa, o
general lhes perguntará o que deve fazer para que os Estados
Unidos suspendam as leis, e assim cheguem a normalização,
a ajuda, o comércio. Porque o militar sabe que, sem isso, vai
durar pouco no poder. E a resposta que lhe darão será:
230
“pratique a democracia. Deve realizar eleições para nós
ganharmos”.
Esse é o esquema, à custa do povo e da soberania de Cuba.
Muito bonito, não?
– Senhor Aruca, na Europa a chamada oposição interna teve
certa ressonância. Até a Anistia Internacional chamou o Concílio
Cubano de “oposição séria, de natureza organizada”.
– Não sei até onde a Anistia Internacional conhece a
realidade cubana. Mas quem a conhece, como nós, sabia que
o Concílio Cubano ia dar em nada, por estar sob influência
desse exílio que não está isolado dos planos americanos.
Lamentavelmente, muito depressa, os do Concílio e, em geral,
a chamada dissidência, chegaram à conclusão de que sem
Miami não poderiam sobreviver, sobretudo economicamente.
Mas o Concílio já passou à história. Devoraram-se entre
eles pelos apetites pessoais... Olhem, ser dissidente tornou-se
um negócio, pelos dólares que chegam de fora. São muitos os
que telefonam diariamente para as rádios, dizendo que têm
grupos organizados de direitos humanos. Para que? Preparando
o terreno que os ajude a sair do país e depois os receba como
heróis em Miami ou na Espanha. Ou seja, ser dissidente
também se transformou em uma forma de sair do país, sem
subir numa balsa. Pode haver opositores honestos: o problema
é encontrá-los. Porque o que existe até agora são pessoas que
querem resolver seu problema pessoal, ou fazer o jogo dos
inimigos de sua nação. E não sei se a Anistia Internacional
conhece todas essas pessoas.
– Senhor Aruca, dê-nos sua versão sobre porque os Estados
Unidos e seus aliados não conseguiram dobrar a Revolução cubana.
– Porque se ignorou, não se quis ver, que a Revolução
cubana, com todos os seus defeitos, foi um processo autóctone
que se desenvolveu em Cuba por vontade dos cubanos. Uma
231
Revolução que, sem dúvida, levou a cabo um profundo
trabalho social. E isso criou uma lealdade entre um grande
segmento da população. O sistema deu ao cubano de Cuba,
em sua história, o verdadeiro sentimento de que lá mandam
os cubanos. Isso é uma coisa que pesa muito.
– Bem, mas diz-se que em Cuba só mandam Fidel e o Partido
Comunista...
– Mas são cubanos os que mandam. Falo de nacionalismo,
não se o povo manda ou não. Estou por conhecer um país
onde o povo mande.
Mas vejamos outras conquistas desse sistema. A educação,
extensiva a todo o povo. O direito ao trabalho, embora agora
haja desemprego devido à situação econômica, mas há, e houve
até pouco tempo, trabalho para todo mundo. Embora sempre
haja quem discrimine, acabou o racismo como problema social.
Em Cuba foi-se, às vezes excessivamente, na minha opinião
por erro do sistema, eqüitativo demais. Chegou um momento
em que o igualitarismo era um objetivo acima de tudo, e acho
que isso não funciona muito. E a que levou? A que os cubanos
realmente sintam-se muito iguais uns aos outros. Inclusive,
aqui em Miami, poucos meses depois de sua chegada, um
balseiro começou a se queixar porque no trabalho não era
tratado de igual para igual. Em Cuba, o administrador de uma
fábrica não pode tratar o trabalhador como quiser, porque
provoca um problema para si mesmo.
– Consideramos que foi uma Revolução edificada por homens
e mulheres, não por deuses, e deve haver erros. Para o senhor,
quais são?
– Bem, creio que se perdeu liberdade de expressão... Claro,
acho que se deve medir essa liberdade num momento como
esse que vive Cuba, em que o inimigo não perde oportunidade
para manipular, buscando a explosão social. E é que nos
232
esquecemos que, quando os Estados Unidos e a Europa estiveram
em guerra, os cidadãos não podiam expressar as idéias como em
tempos de paz. A Guerra do Golfo foi o último exemplo.
Também no campo da economia cometeram-se erros
graves, que tiveram repercussões políticas. Um deles foi que o
Estado centralizou tudo. Acho que devem ser criadas pequenas
empresas privadas, para gerar um setor autônomo da
população, que compita com o Estado. O que enfatizo, e isso
não agrada a muita gente, é que, embora tenham sido
cometidos erros, que é preciso corrigir, não se pode pedir que
se deixe uns poucos chamados dissidentes fazerem o que
querem, porque espera-se que o sistema cubano dê um tropeção
para dar-lhe a rasteira final.
– Falemos de Francisco Aruca. O senhor é uma das
pouquíssimas vozes dissidentes na comunidade cubana em Miami.
O que aconteceu consigo para que olhasse Cuba de maneira
diferente?
– Em Cuba fui um contra-revolucionário de esquerda.
Achava que em Cuba era necessária uma Revolução que fizesse
transformações profundas; mas fui estudando economia em
Washington, e me dei conta de que não restaram muitas opções
à Revolução cubana, durante os primeiros quatro anos.
Simplesmente fez o que tinha que fazer. Cuba era um país
que, naquele momento, estava cercado pelos americanos e por
este exílio. Uma Revolução que tinha prometido ao povo
avanços em todos os campos, e que tinha que cumprir. Daí
que, se os soviéticos não tivessem ajudado, o processo teria
perecido. Assim cheguei à conclusão de que nunca devia ter
conspirado, e sim ter ficado. E seguramente hoje estaria no
grupo dos reformistas.
– Que motivos deu para ser preso, naqueles primeiros tempos
da Revolução?
233
– Conspirava contra o comunismo. Eu era de esquerda,
mas fruto de uma educação católica. Os jesuítas nos ensinaram
que o comunismo era intrinsecamente perverso. Essa era a
frase. Vou lhes contar uma história para que entendam melhor.
Um dia, conspirando em Cuba, conversava com um amigo. E
este era, mais ou menos, o diálogo. Eu lhe perguntava:
– Ei, somos contra a reforma agrária?
– Não, embora não nos agradem os detalhes, mas é
necessário que o camponês tenha terras.
– Somos contra a nacionalização de empresas americanas?
– Não, os americanos tinham muita influência aqui e era
preciso por um ponto final nisso.
– Somos contra a reforma urbana?
– Não, não se deve pagar aluguel.
– Então, por que estamos conspirando?
– Porque isso é comunismo, homem!
– Diabo, é verdade, se não fossem comunistas, estaríamos
com essa gente!
– Olhe só, e quase nos custa a pele!
– Outra pergunta que virou clichê para nós: O que aconteceria
em Cuba se Fidel Castro desaparecesse hoje?
– Não sei o que pode acontecer. É um indivíduo muito
difícil de substituir. Esse é o problema dos grandes líderes que
a humanidade produziu. Ele tem uma tal autoridade que,
depois que fala, ele falou. E isso impôs uma certa ordem.
Ninguém quer que os americanos nem a máfia se apoderem
do país. Ninguém quer que aconteça como nos países do ex
bloco do Leste.
– Mas, não há quem assuma as rédeas do poder? Não há
novos quadros bem formados?
– Ao contrário do que se diz, existe uma geração inteira de
jovens bem formados, estruturados, e que são os que cada vez
234
tomam mais decisões. Ou seja, faz tempo que a geração de
Castro já não toma todas as decisões em Cuba. Além disso, a
estrutura de poder não é como a típica que existiu na América
Latina onde há um ditador, ou um civil, os políticos, os generais
e a tropa. A cubana é mais parecida com a que existe na Europa,
por ser muito coesa e desenvolvida.
E existe uma verdadeira participação do povo na tomada
de decisões. Em Cuba tudo se discute, em cada quarteirão,
em cada bairro, às vezes até de maneira exagerada.
235
XIII
“Os países europeus temem até ser amistosos com Cuba, para não
prejudicar as relações com os Estados Unidos”.
WILLEM C. VAN T’WOUT
Diretor da companhia importadora de níquel, Fondel. Holanda
Estrangular Cuba economicamente foi a principal estratégia
estadunidense desde 1959. E a maioria dos estados do mundo
foi cúmplice. Quando ocorreu a derrocada do chamado bloco
do Leste, e Cuba não caiu com eles, Washington apertou mais
o laço, e muitos estados aplaudiram sadicamente, ou
continuaram como espectadores indiferentes, o que dá na
mesma. Mas existem alguns investidores que, aceitando as
condições do governo cubano para estabelecer empresas mistas,
arriscaram-se a ser “castigados” pelos Estados Unidos.
Estes investidores também se expõem a que se cumpram
os desígnios que a contra-revolução estabeleceu em sua “Carta
aberta aos investidores estrangeiros”, em maio de 1992:
Continuamos considerando que qualquer investimento feito
em Cuba, nas atuais circunstâncias, não merecerá o apoio
das leis formuladas por um futuro governo cubano para
proteger a propriedade privada. Insistimos em que estes
237
investimentos deverão ser considerados como parte do
patrimônio nacional, e como tal, deles poder-se-á dispor
livremente (...)
Entramos em contato com cinco investidores europeus:
dois nos disseram que não queriam tratar de assuntos políticos.
Dos três restantes, ficamos com as palavras de Willem C. van
t’Wout, holandês, importador de níquel e de outros produtos
cubanos. Como os outros, ele e sua companhia Fondel estão
na “lista negra” do governo estadunidense.
– Sua companhia investe em Cuba há muitos anos. Isso não
foi complicado, devido ao embargo estadunidense?
– No início de nossa colaboração com Cuba, sentimos
muito as conseqüências do embargo norte-americano, mas com
o transcorrer dos anos encontramos soluções adequadas para
burlá-lo. Não vou lhes contar quais, porque imagino que os
americanos gostariam de saber como fazemos. Mas o embargo
criou um clima de temor no mundo comercial, devido às
repercussões e sanções que podem vir dos americanos. E isso
não melhorou em todos esses anos: ao contrário, piorou. E a
Lei Helms-Burton é a última manobra de que dispõem para
manter essa atitude intransigente frente a Cuba.
– Há poucos anos o governo cubano começou a introduzir
variantes na política de investimentos estrangeiros. Qual é sua
opinião?
– Depois da queda do Muro de Berlim começaram a ocorrer
algumas mudanças em Cuba, que consideramos positivas,
embora não caminhem suficientemente rápido. As autoridades
cubanas têm argumentos muito bons para manter esta forma
de agir. E é porque não querem chegar a situações como as
que se vivem nos países ex-socialistas, onde reina a máfia.
238
O governo cubano tem sua própria visão, que é oposta à
visão que os europeus querem impor. Mas, acho que os cubanos
sabem muito bem o que querem e como obtê-lo. Em todo
caso, seja o que for que se diga, nossa experiência é que Cuba
é um dos países mais honestos para fazer negócios.
– E, para o senhor, qual foi a atitude da União Européia?
– A verdade é que a União Européia não procura o diálogo
com Cuba: só pressões e muitas condições. Porque os países
europeus temem até ser amistosos com Cuba para não prejudicar
as relações com os Estados Unidos. E por isso, infelizmente,
esse país foi tratado de maneira vergonhosa. Não o respeitam.
– Cuba não apenas tem que estar “toreando” o embargo
comercial, como também as pressões por suposta violação dos
direitos humanos...
– É verdade. Na Holanda, e em geral na União Européia,
está sendo utilizado o argumento dos direitos humanos para
condicionar as relações com Cuba. Não há respeito por Cuba.
Como é conveniente, esquece-se que os Estados Unidos
mantêm contra ela uma guerra declarada há quase quarenta
anos. Cuba está ameaçada pelo mundo exterior. Não sou
especialista no tema dos direitos humanos, mas acho, como
devem saber também os governos europeus, que a maioria dos
presos políticos em Cuba, são espiões da CIA.
É que também acontecem umas coisas absurdas. Por
exemplo, em abril de 1997 os quatro partidos holandeses que
estavam no governo organizaram uma conferência chamada:
“Cooperação ou confronto? Como promover a democracia
em Cuba?” Lá, a maioria dos convidados estava contra o
governo cubano. Mas o pior é que, depois de ouvir os debates,
um conhecedor médio da situação na Ilha podia concluir que
estavam mal informados. Que suas fontes eram as típicas do
exílio. Absurdo.
239
– Já que está falando do exílio, não lhe parece que os setores
mais reacionários estão procurando abrir espaço na Europa?
– Não há dúvida. Com o argumento dos direitos humanos
está sendo aceita na Europa gente próxima à Fundação
Nacional Cubano-Americana. Para a conferência de abril,
estavam convidados Carlos Alberto Montaner e outros cubanos
de Miami, o que quer dizer que politicamente estão abrindo
os braços para eles. Por sua vez, eles estão tentando bloquear
todas as relações que tem o governo cubano e aquelas que
possa vir a ter. Embora, eu esteja certo que aqueles que, como
eu, negociam com Cuba, não se deixarão influenciar.
Eles e o governo americano estão na ofensiva na Europa.
Por exemplo, o embaixador especial norte-americano,
Eizenstat, veio me procurar tentando modificar minha posição
frente a Cuba. E sei que visitou outros empresários. Já
conseguiram influenciar algumas organizações como Pax
Christi Holanda, porque em meados de 1996 a senhora
Zumpolle mandou-me uma carta, propondo-me que recebesse
alguns dissidentes cubanos que estavam de passagem.
Estão tentando efeitos políticos, e para mim está muito
claro que os direitos humanos constituem o último argumento
que lhes restou para atacar Cuba.
240
XIV
“Na guerra dos Estados Unidos contra Cuba, é parte importante de sua estratégia,
envolver as Organizações Não Governamentais, para infiltrar o processo histórico e dividir
a sociedade”.
XAVIER DECLERCQ
Responsável por Mobilização e Ação Política Oxfam-Solidariedade. Bélgica
Nos dias 4 e 5 de março de 1996 realizou-se em Bruxelas a
Terceira Conferência sobre Cooperação Não Governamental
Europa-Cuba. Dela participaram quarenta e sete Organizações
Não Governamentais de doze países europeus. Pela parte
cubana estiveram presentes nove Organizações Não
Governamentais, representantes da Assembléia Nacional do
Poder Popular, do Ministério do Investimento e do Ministério
de Relações Exteriores.
Entre os objetivos da conferência estava “facilitar o
intercâmbio entre as organizações participantes sobre
dinâmicas, métodos e concepção de trabalho, assim como
facilitar ainda mais a presença das ONGs cubanas no âmbito
europeu”. O evento se realizou no contexto do Parlamento
Europeu, em função do trabalho do intergrupo parlamentar
chamado “Contra o Bloqueio”. O evento tinha a finalidade
principal de mostrar às instituições e representantes do
Parlamento Europeu, “a existência da realidade social cada vez
241
mais dinâmica das ONGs cubanas”, assim como o apoio que
estão recebendo de tão importantes parceiras européias.
Nas conclusões emanadas da Conferência lê-se:
É precisamente a busca de uma nova visão do mundo,
ancorada na ética solidária, o que principalmente une as
ONGs da Europa e de Cuba. Como edificar sociedades com
sistemas políticos que sejam participativos, com economias
democráticas e inclusivas, que desenvolvam culturas
libertadoras e ecumênicas, e que promovam estilos de vida
ecologicamente sustentáveis; esse é o verdadeiro desafio que
deve nos unir a todos, seja qual for a latitude geográfica em
que desenvolvamos nossa atividade.
Juntos declaramos nosso repúdio à pretensão de impor a
Cuba, ou a qualquer outro país, modelos já esgotados no
fim do século, quando todos, no Norte e no Sul, exploramos
caminhos alternativos.
De acordo com isso, mais adiante se esclarece:
Para as ONGs européias, o fortalecimento do espaço não
governamental não significa a consolidação de um contrapoder dentro do Estado cubano, que teria o objetivo de minálo de dentro, como proclama a atual política dos Estados
Unidos (...) Estamos convencidos de que essa não é a maneira
de apoiar as mudanças econômicas, sociais e políticas
estimuladas pelo próprio Estado e menos ainda a maneira
de oxigenar as iniciativas de organizações sociais voltadas
para melhorar estruturalmente as condições de vida do povo
cubano (...)
242
Oxfam-Bélgica foi uma das primeiras Organizações Não
governamentais européias que chegou a Cuba para participar
de projetos de desenvolvimento. Isso lhe trouxe problemas,
pois foi posta sob suspeita pela política da União Européia, o
que se traduziu na negativa de apoio econômico a vários
projetos apresentados. E que não eram dirigidos apenas ao
país caribenho.
– Senhor Declercq, como é vista, no círculo das Organizações
Não Governamentais européias, a cooperação com Cuba?
– Embora as condições estejam mudando nos últimos oito
anos, a presença em Cuba das Organizações Não Governamentais internacionais tem sido historicamente muito
pequena. Para uma parte delas não é possível trabalhar naquele
país por falta de contrapartida local. Para outras, o nível de
desenvolvimento é tão grande que Cuba não precisa de apoio.
Algumas passam anos analisando se vão apoiar ou não. Muitas,
esquecendo o papel que corresponde ao Estado, acham que
tudo tem que ser organizado pela chamada “sociedade civil”.
Acreditam que a sociedade deve quase substituir o Estado;
esquecem que o Estado foi feito para garantir a distribuição e
o investimento das riquezas. Quase desejam que tudo fique
em mãos da empresa privada. Para estas Organizações Não
Governamentais, que são muitas, a sociedade civil é a fórmula
mágica. E, com este conceito, entram em confronto com o
governo cubano, o que torna difícil ou impossível seu trabalho
em Cuba.
– Então, por que Oxfam-Bélgica resolveu trabalhar naquele
país?
– A perspectiva de cooperar com o desenvolvimento, que é
a nossa, é um pouco diferente da de muitas outras Organizações
Não Governamentais; por isso mudamos há pouco nosso nome
243
para Oxfam-Solidariedade. Deve-se por a tônica na
solidariedade para poder enfatizar a justiça. Não tanto em por
panos quentes na pobreza, que é onde muitas Organizações
Não Governamentais concentram seus esforços.
São muitas as Organizações Não Governamentais que
perderam a visão, e já não vêem as estruturas políticas criadoras
da pobreza, aquelas mesmas que aumentam a injustiça.
Esqueceram muito facilmente de trabalhar sobre as origens da
pobreza. Demasiadas Organizações Não Governamentais
permanecem em seu projetinho que, aliás, pode ser muito bom
e benéfico para o grupo a que se destina, mas que não leva à
transformação das raízes da injustiça social e econômica.
Nós, aplicando os conceitos de solidariedade à atual
problemática cubana, consideramos que existe muita justiça
naquele país, a qual se traduz em um nível muito alto de saúde,
educação, participação política etc., para todo o povo. E essa
justiça foi organizada e distribuída pelo Estado. OxfamSolidariedade Bélgica está certa que é preciso apoiar a
continuidade dessa justiça.
– Senhor Declercq, mas é um pouco nadar contra a corrente.
Se existe uma crítica ao processo cubano, é que o Estado centraliza
tudo.
– É verdade que muitas Organizações Não Governamentais não aceitam que o Estado cubano tenha assumido
toda a responsabilidade de atender à sociedade. Não vêem
que esse Estado reagiu de modo diferente diante da crise que
atravessa. Nos outros países a fórmula aplicada consiste nas
recomendações neoliberais do Banco Mundial e do Fundo
Monetário Internacional. E todos pudemos constatar que os
ajustes econômicos aplicados afetaram as maiorias, deixandoas em uma pobreza maior. A minoria poderosa não é afetada
porque, ao contrário de Cuba, os interesses políticos são
244
dependentes de seus interesses econômicos. Em Cuba, o
governo trata de dividir a riqueza e a pobreza, o que consegue
muito bem. É uma sociedade bastante igualitária, onde o
Estado prioriza as necessidades básicas da população.
– Então, não vale a pena ajudar a oxigenar uma experiência
única neste mundo?
– Nossa intenção, e a de algumas poucas Organizações Não
Governamentais, é ajudar os esforços cubanos para salvar as
conquistas de seu processo histórico. E para isso trabalhamos
com organizações de massas e, porque não, com instâncias
governamentais. Para muitos não parecerá lógico que se
trabalhe com instâncias do Estado, mas se estas servem os
interesses das maiorias, por que não podem ser adotadas como
contrapartida?
– Mas, segundo ouvimos de algumas Organizações Não
Governamentais...
– Há muitas Organizações Não Governamentais que
parecem não ver a injustiça que se comete contra aquele país.
A principal é a intenção norte-americana de impor ao mundo
inteiro o bloqueio que exercem sobre Cuba. E parece que os
outros estados do mundo não se dão conta, ou não querem
fazê-lo. Esse bloqueio está ameaçando diretamente o nível de
vida de toda a população cubana. Aliás, olhando um pouco
além de Cuba, pode-se perceber, com muita facilidade, que
nas atuais relações internacionais, cresce uma tendência muito
perigosa: os Estados Unidos negam a existência do direito
internacional. A novidade é que essa tendência está se
institucionalizando. Cuba é um exemplo, para ilustrar como a
superpotência decidiu consolidar seus interesses: o direito do
mais forte.
Creio que é necessária uma política internacional mais ética.
Isso também deve ser uma tarefa para as Organizações Não
245
Governamentais. E comprometer-se com o processo histórico
cubano é um bom começo.
– Oxfam-Bélgica tem uma grande experiência de cooperação
em vários países do mundo. Notaram alguma diferença na relação
com Cuba?
– Em certa medida, é diferente. A cooperação internacional
é algo novo para os cubanos. Tiveram pouca experiência e isso
às vezes dificulta as relações. Trabalhar com eles também é
diferente porque são muito orgulhosos. Melhor dizendo, mais
conscientes de seu processo histórico, razão pela qual governo
e povo têm muita dignidade, não aceitam imposições.
Para algumas Organizações Não Governamentais internacionais, respeitar as prioridades e os termos da cooperação, foi
apenas coisa de palavras e papéis. Mas em Cuba a gente tem
que respeitar as condições que eles estabelecem, o que é muito
valioso para aprender a valorizar seu processo político. Não há
dúvida de que as relações com os cubanos são transparentes.
É importante mencionar que a comunidade internacional
de Organizações Não Governamentais chegou, em três
reuniões (a primeira, em 1993, em Havana; a segunda, em
1955, em Madri; e a terceira em 1996, no Parlamento
Europeu), a um consenso com suas parceiras cubanas sobre os
princípios de cooperação. O mais importante, na minha
opinião, é que as Organizações Não Governamentais
internacionais apoiarão as iniciativas de suas parceiras cubanas.
Não somos nós que devemos inventar qual é o projeto que os
cubanos necessitam.
– Desculpe a interrupção. Mas, qual é sua versão sobre o
incidente que ocorreu em 1993, entre os Médicos Sem Fronteiras
e o governo cubano?
– É que há um problema muito grande com as Organizações Não Governamentais dos países desenvolvidos. Temos
246
a mentalidade de que podemos resolver os problemas do
Terceiro Mundo, que nossa maneira de organização é a melhor
e a única.
Por acaso o Ministério da Saúde cubano não tinha razão
quando proibiu os Médicos Sem Fronteiras de abrir seu próprio
local para entregar remédios? Se os cubanos conseguiram ter
um dos melhores sistemas de saúde do mundo, superior até ao
estadunidense e ao europeu, por que se deve tentar mudá-lo?
São os cubanos que decidem para onde vai a ajuda médica
que lhe entregamos. E lhes garanto que sempre temos a
possibilidade de controlar seu destino correto. É que, lá, uma
instituição não pode decidir esse tipo de coisas de acordo com
sua vontade. Mas, o que aconteceu com os Médicos Sem
Fronteiras, não acho que tenha sido tão grave.
Houve o caso de uma ONG estadunidense que oferecia
dois milhões de dólares a outra ONG cubana. A única condição
que impunha, para entregar tal quantia, era que deixassem
entrar seu próprio pessoal, para distribuir Bíblias gratuitamente.
À primeira vista pode parecer uma coisa inofensiva, mas não
é, de modo nenhum. São organizações que têm um trabalho
muito sutil, mas com uma agenda escondida. Não se pode
esquecer que muitíssimas Organizações Não Governamentais
são utilizadas para interesses políticos dos países ricos. E, no
caso de Cuba, os Estados Unidos querem que sirvam aos seus.
– Esta é uma afirmação um tanto delicada. Não poderia
esclarecê-la melhor? Não acha que o governo cubano tem a
paranóia da infiltração?
– Na agressão que os Estados Unidos levam a cabo contra
Cuba, constitui parte importante de sua estratégia envolver as
Organizações Não Governamentais para infiltrar o processo
histórico, e dividir a sociedade. E de infiltração os cubanos
entendem bem demais, pois desde 1959 tiveram que enfrentar,
247
cada dia, todas as tentativas realizadas pelos americanos e às
quais parece que certas Organizações Não Governamentais
querem aderir.
Deve-se saber que o governo estadunidense fala de dois
caminhos. Um é o bloqueio. O segundo é a infiltração, por
meio das Organizações Não Governamentais. Não estou
inventando: está escrito em textos oficiais, e muitos especialistas
analisaram amplamente o assunto. Há alguns anos os Estados
Unidos promovem uma verdadeira política de cooperação, que
deve ser assumida por Organizações Não Governamentais de
seu país, com a dissidência em Cuba. Mas estamos vendo que
isso está se estendendo para a Europa. O embaixador especial
de Clinton para Cuba, Eizenstat, reuniu-se na Europa com
várias Organizações Não Governamentais. E, em alguns casos,
ofereceu um fundo de milhões de dólares para as que
concordam em trabalhar com a dissidência. Até agora não
conheço nenhuma ONG que tenha aceitado esse dinheiro:
seria muito idiota de sua parte. Embora em algumas ocasiões
tenha criado confusão.
– Pelo que sabe, existem Organizações Não Governamentais
européias que concordam em seguir a estratégia proposta pela Casa
Branca?
– Por sorte da Administração Clinton, é possível que
existam umas poucas Organizações Não Governamentais
européias que concordem em apoiar essa dissidência, sem
necessidade de receber os dólares.
Mas, no momento há apenas uma ONG, que eu saiba,
que está trabalhando de acordo com as instruções estadunidenses. Trata-se de Pax Christi Holanda. E o faz apesar de que
isso é muito questionado pelas outras Pax Christi nos demais
países do mundo. Embora as intenções dessa ONG em relação
a Cuba estejam começando, é necessário ter muito cuidado,
248
pois conseguiu estabelecer um namoro com outras Organizações Não Governamentais da Europa. O inacreditável é que
em documentos desta ONG pode-se ler textualmente muitas
das palavras da Administração Clinton, no que se refere às
exigências feitas à empresa privada européia, por exemplo. Aliás,
sei de um texto oficial do governo norte-americano que felicita
esta ONG holandesa pela iniciativa de dar voz e apoio à
dissidência cubana.
Acho que as Organizações Não Governamentais européias
estão a par desses fatos. Se não têm o quadro geral, é difícil
avaliar as diferentes iniciativas; ver as verdadeiras intenções
que estão por trás. E o tema dos direitos humanos é um tema
delicado, que está sendo bastante explorado pelos norteamericanos para convencer as Organizações Não Governamentais européias.
Quem não concorda com o respeito aos direitos humanos?
Mas, a partir do momento em que se utiliza o assunto como
arma de guerra, para uma campanha contra o sistema cubano,
já me parece bastante suspeito.
249
XV
“Esses dissidentes e grupos de direitos humanos em Cuba, que são apenas algumas
pessoas, só importam na medida em que nos sirvam para uma única causa:
desestabilizar o regime de Fidel Castro”.
WAYNE SMITH
Acadêmico, ex-chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana.
No seio das contradições que ocorrem no interior do
estamento estadunidense, dois políticos se distinguem por
suas posições contra a estratégia de seu país para Cuba,
embora não concordem totalmente com seu sistema político.
Um deles é o ex-Fiscal, General Ramsey Clark. Em muitos
fóruns repetiu:
Durante quatro décadas, com seu massacrante poder
econômico e militar, os EUA tentaram derrubar o governo
da vizinha Cuba, país pequeno e comparativamente muito
mais pobre (...)
Enfrentando esse impressionante poder e ameaças constantes,
Cuba – que só quarenta anos atrás sofria de uma pobreza
extrema, analfabetismo, doenças, violência, corrupção e
exploração estrangeira – emergiu como líder internacional
em quase todas as esferas do desenvolvimento humano. O
251
analfabetismo foi virtualmente eliminado, estabeleceu-se um
excelente sistema de educação superior, e criou-se um enorme
caudal de técnicos e profissionais altamente treinados, que
prestam seus serviços em países pobres. O sistema cubano de
saúde pública não tem igual no Terceiro Mundo no que se
refere a prevenção, tratamento, assistência e pesquisa, e se
converteu em modelo para todas as nações.
Em 30 anos, Cuba reduziu a mortalidade infantil, de cerca
de 90 por 1.000 nascidos vivos a um nível inferior ao dos
EUA e da maioria dos países ricos do mundo. Desenvolveu
vacinas que se equiparam aos parâmetros internacionais.
Os médicos, enfermeiras, trabalhadores da saúde e remédios
cubanos salvaram milhões de vidas, a serviço dos pobres de
dezenas de nações. Em Cuba não existem mendigos. Existem
trabalhos decentes para todos. A arte, a música, a dança, o
cinema, a poesia e a literatura se desenvolvem em Cuba
inteira. As condições físicas de seu povo ficaram demonstradas
em Atlanta, onde os cubanos ganharam medalhas de ouro
no boxe e no beisebol, obtendo resultados melhores do que os
obtidos por nações com níveis de população e condições
econômicas semelhantes (...)
O bloqueio norte-americano a Cuba é um crime contra a
humanidade. Os Estados Unidos pretendem prejudicar o
povo cubano; necessariamente, os mais frágeis e vulneráveis
são as crianças, os idosos e os doentes crônicos. Os Estados
Unidos sabem o que pode acontecer a cerca de 200.000
diabéticos que existem em Cuba, se estes não tiverem
possibilidade de obter insulina (...) (“Um crime contra a
humanidade”, exposição feita no seminário Helms-Burton
e Europa, Fundação Reflexão Global, Amsterdam, 1996)
252
O outro político é Wayne Smith, Acadêmico e ex-chefe da
Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana. Em sua
cruzada perdeu muitas batalhas, por exemplo, quando os
congressistas, influenciados pela extrema direita de Miami e
Nova Jersey, impuseram a Tele-Martí. Smith discordava
frontalmente disso. Tanto porque violava todo tipo de convênio
internacional, como por ser um investimento milionário que,
como aconteceu, o governo cubano bloquearia totalmente.
Naquele momento, os dois governos mantinham diálogos sobre
migração e outros assuntos de interesse comum. E Smith sabia
que Cuba se retiraria da mesa de negociações se a Tele-Martí
iniciasse suas transmissões. Assim aconteceu, e Smith
renunciou.
Smith se opõe também à Lei Helms-Burton. Está
convencido de sua ineficácia como método para obter uma
transição rápida para o capitalismo. Em seus escritos e
conferências, deixa transparecer sua opção pelo estilo posto
em prática nos países do ex-bloco do Leste, onde, segundo
ele, não houve necessidade de nenhum tipo de agressão maior
para reinstalar o capitalismo.
Infelizmente, ele não tinha muito tempo para a entrevista,
mas as afirmações que fez naqueles poucos minutos são, a nosso
ver, de grande importância. Smith reconhece coisas que
dificilmente um político estadunidense expõe ao público.
– Senhor Smith, explique-nos, por que não está de acordo
com a Lei Helms-Burton?
– Porque os Estados Unidos estão equivocados com a
implementação dessa Lei. Quando aumenta a pressão sobre
Cuba, o regime reage aumentando a disciplina interna e
reunindo o povo em torno da bandeira e da soberania.
Internacionalmente, esta Lei, analisada a partir de nossos
253
interesses, tem pouco sentido. Enquanto Cuba não representa
nenhuma ameaça para nós, ao violar leis internacionais,
estamos deteriorando os vínculos comerciais com os canadenses
e os europeus.
E, embora os europeus e canadenses tenham reagido bem a
esta Lei, deixando entender aos Estados Unidos que essa política
tem um preço, suas possibilidades são limitadas. A Europa é
muito legalista e pensa que se disser aos Estados Unidos que
devem respeitar os acordos internacionais, vão mudar. Esqueçam.
Os Estados Unidos não aceitam nem a jurisdição de uma Corte
Internacional. A iniciativa da Lei Helms-Burton foi de um grupo
de pessoas, convencidas de que os Estados Unidos não podem
sofrer limitações do Direito Internacional, uma vez que agora, é
a única potência mundial. O perigo é que a Lei Helms-Burton
pode ser um primeiro passo, não contra Cuba, mas para que os
Estados Unidos terminem por impor seus interesses à
comunidade internacional, para forçar uma Pax Americana no
resto do mundo.
– Parece-nos que, apoiando-se nessa Lei, o governo
estadunidense comprometeu a União Européia na desestabilização
do Estado cubano. E mais, de uma maneira muito tática e sutil,
conseguiu que algumas Organizações Não Governamentais
européias se submetam a seu desígnio, apoiando a chamada
dissidência.
– Sim é verdade. Para isso, não só há um embaixador
especial como está se apoiando em certas organizações do exílio.
Porque esse exílio não é autônomo: funciona como
instrumento do governo norte-americano.
A Fundação Nacional Cubano-Americana, a Plataforma
Democrática Cubana, liderada por Montaner na Espanha, e
outros grupos de pressão do exílio já estão fazendo seu trabalho
na Europa. E vão trabalhar, como nos Estados Unidos, para
254
conseguir que a Europa adote uma linha intransigente em
relação a Cuba. Eles contam com muito dinheiro; são
poderosos e agressivos. E, a meu ver, não encontram muita
resistência nesses países. O governo espanhol já está
influenciado pela Fundação Nacional Cubano-Americana e
pela Plataforma Democrática. Lá já atingiram boa parte de
suas metas. E vão continuar em outros países. São artistas em
infiltrar e entender o funcionamento do sistema político.
Estudam, procuram informação para saber que políticos
podem comprar. Investigam a vida privada dos que não querem
colaborar, para intimidar e fazer chantagem.
Até agora esse modus operandi trouxe-lhes ótimos
resultados nos Estados Unidos.
– Os cubano-estadunidenses...
– Deixem-me dizer-lhes algo. Os cubano-americanos
tiveram, e têm, muita influência, mas só quando seus interesses
coincidem com os das administrações. Durante o governo
Carter, eu trabalhava no Departamento de Estado. Existiam
muitas organizações de exilados, mas não a Fundação Nacional
Cubano-Americana. Naquela época controlávamos todas com
muita facilidade. Coube-me ir várias vezes a Miami, para
explicar aos líderes que nossas intenções eram normalizar as
relações com Cuba. Eles entendiam, mas chegaram Reagan e
Bush à presidência e, como queriam uma linha dura com Cuba,
criou-se a Fundação Nacional Cubano-Americana. Clinton
ficou amigo dos cubano-americanos, jantou com Canosa,
ofereceu uma política dura contra Cuba. Assim recebeu uma
boa quantidade de dólares para a campanha eleitoral. Em 1996
foi igual.
Hoje, Clinton continua se apoiando no setor mais
conservador dos cubano-americanos. A atitude do presidente
para com eles não tem nada a ver com a política exterior norte-
255
americana, nem com direitos humanos, nem com democracia:
tudo é interesse eleitoral e dinheiro.
– Senhor Smith, depois de quase quarenta anos de guerra contra
a Revolução cubana, por fim, o que pretende o seu governo?
– Os objetivos dos Estados Unidos mudaram com o
decorrer dos anos. Durante a Guerra Fria, o principal era a
mudança de sua política exterior. Desde 1975, pressionouse para que Cuba retirasse suas tropas da África e para que
não ajudasse movimentos revolucionários na América Latina.
E também para que reduzisse seus vínculos militares com a
URSS. Aparentemente, durante a Guerra Fria, a organização
interna do sistema não nos interessava: Cuba poderia ter um
governo socialista se soubesse comportar-se internacionalmente.
Em 1988 Cuba retirou suas tropa da África. E desde 1990
vem retirando seu apoio aos movimentos revolucionários. Em
1992 houve o colapso da URSS, e assim acabou a aliança militar
cubano-soviética. Os objetivos da política exterior norteamericana foram alcançados, mas isso em nada melhorou as
relações com a Ilha. Porque, realmente, nosso objetivo principal
era a queda do regime de Castro. E por que, em se tratando de
uma pequena Ilha sem maiores recursos econômicos? Porque
Cuba causa o mesmo efeito nas administrações norteamericanas que a lua cheia causa nos lobos: é uma obsessão.
Primeiro, a personalidade de Fidel Castro: desafiou o maior
poder do mundo e saiu ganhando; está sobrevivendo a nove
presidentes nossos; é aceito e respeitado em todos os fóruns
internacionais. Durante a Guerra Fria não acreditávamos que
fosse possível tirarmos essa pedrinha do sapato. Agora sim.
Por isso adotamos as políticas de pressão econômica, por meio
da Lei Helms-Burton, e a da democracia e dos direitos
humanos.
256
– E, para o senhor, como está se desenvolvendo a pressão política
sobre Cuba a partir dos direitos humanos?
– A democracia e os direitos humanos nos importam muito
pouco. Simplesmente utilizamos essas palavras para ocultar a
verdadeira razão. Se democracia e direitos humanos nos
importassem, teríamos como inimigos a Indonésia, a Turquia,
o México, o Peru ou a Colômbia, por exemplo. Porque a
situação em Cuba, comparada com esses países, e a maioria
deles no mundo, é um paraíso.
E, se desde 1985 estamos anunciando, publicamente, que
estimularemos e financiaremos grupos dissidentes e de direitos
humanos em Cuba, também é por nossos próprios interesses.
Embora os Estados Unidos tampouco estejam financiando
todo mundo e sim apenas aqueles que conseguem mais imagem
internacional; mas esses dissidentes e grupos de direitos
humanos em Cuba, que são apenas algumas pessoas, só
interessam na medida em que nos sirvam numa única causa:
desestabilizar o regime de Fidel Castro.
Por meio dessas duas políticas, a pressão econômica e os
direitos humanos, queremos forçar a derrubada de Fidel Castro,
para instalar um governo de transição a nosso gosto. Para
reinstalar as pessoas que queremos e assim deter novamente o
controle da Ilha.
257
UMAS ÚLTIMAS LETRAS
A
No mundo de hoje, o que aconteceu ontem já não é notícia.
Mas existem fatos históricos que não se podem esquecer, pois
há os que acreditam que é possível repeti-los.
B
Em 1979 os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua.
Imediatamente o governo dos Estados Unidos afirmou que se
tratava de uma revolução comunista, e os principais meios de
comunicação começaram a repeti-lo, até que foram
acreditando. As provas eram concretas e impossíveis de refutar.
Por exemplo, estava se erradicando o analfabetismo, o sistema
de saúde foi atendendo a toda a população, a propriedade das
terras deixou de estar em mãos de umas poucas famílias,
259
passando a pertencer a cooperativas de camponeses;
nacionalizaram-se algumas empresas e o povo começou a
participar da tomada de decisões.
A Nicarágua, sem possuir um único submarino, nem
meio míssil de alcance regular, converteu-se no grande
perigo para a segurança dos Estados Unidos, primeira
potência econômica e militar do planeta. Mas era o mal
exemplo que estava dando essa Revolução de gente alegre,
carinhosa e sonhadora, o que a converteu em inimigo.
Provou a outros povos oprimidos que era possível lutar,
ganhar e começar a viver com dignidade. Perigosíssimo. E
o império sabia que a América Latina teve uma particularidade histórica, desde a época colonial espanhola: não
importa onde comecem, as chamas se propagam como no
capim seco, sopradas pelo vento. O modelo de comportamento sandinista devia ser extirpado, e, se fosse possível,
até da memória coletiva.
E como acontecera com Cuba, não foi necessário uma
invasão de “marines”. Como em Cuba, bastou pagar quem
disparasse, quem bombardeasse, quem massacrasse, quem
violasse, quem aterrorizasse. Por um punhado de dólares,
uns nicaragüenses, dirigidos por Washington, apoiados por
contra-revolucionários cubanos, se comprometeram a
apagar a luz mais bela que o povo latino-americano
conheceu na década de oitenta.
Mas, se havia mercenários que faziam estragos com seu
agir terrorista, existiam outros que, na base de discursos e
escritos faziam sua parte, que acabou sendo essencial para
o colapso do projeto. O governo estadunidense, em
cumplicidade com alguns da Europa, e sob a cobertura de
certas Organizações Não Governamentais, levou-os para
quantos fóruns pró direitos humanos existiam. E até leram
260
textos para os quais não tinham contribuído com uma só
vírgula, mas que os transformavam em testemunhas da
“monstruosidade” sandinista: reprimia em massa, prendia
por milhares, torturava, assassinava, traficava drogas,
exportava terrorismo, levava a fome ao povo etc. etc. Como
mentiram! E como foram multiplicados pela grande
imprensa mundial!
E quando o governo sandinista tentou impor ordem a
aqueles que, vivendo no interior do país, sem balas nem
fuzil, colaboravam para arrasar a Revolução, o império e
seus aliados gritaram porque a liberdade de expressão e de
associação estava sendo atacada. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos, adaptada a suas necessidades, foi exibida
como prova, juiz e carrasco.
Os governos europeus, além de deixar a Nicarágua
sozinha para que os abutres continuassem a devorá-la,
bicada a bicada, pressionaram para que aceitasse as eleições
exigidas por Washington. Os sandinistas disseram sim a
isso e a muito mais. Implantou-se o “pluripartidarismo”
exigido: a Contra, repleta de dólares, se dividiu em vários
partidos, e enfrentou o governo sandinista. A Europa
forneceu moedas a alguns grupos e sentou-se para esperar
o final que já conhecia. Até o político mais idiota do planeta
sabia que se os sandinistas triunfassem, a agressão
continuaria.
Sabemos que ganharam os “combatentes pela liberdade
e pela democracia”, como foram chamados por Ronald
Reagan. Tinham prometido a paz, a fortuna e o céu. Hoje
se deve a eles que a Nicarágua seja de novo um dos países
com mais desigualdades sociais, econômicas e políticas no
mundo. Pior: que tenha perdido a dignidade de ser um
Estado soberano.
261
Restabelecida “sua” fórmula democrática, o governo
estadunidense voltou a dormir tranqüilo.
C
Ou quase tranqüilo. Em seu hemisfério, em seu território,
em seu quintal, existe um grilinho que perturba seu sono. Há
quase quarenta anos, um pequeno país sem maiores recursos
estratégicos, não se dobra, não se humilha, não se põe de
joelhos. Quase sozinho, resiste. Seu nome é Cuba.
O que não inventaram os Estados Unidos para que este
povo trabalhador, bebedor de rum, dançarino e solidário, volte
humilhado a seus pés? Desde invasões militares até agressões
químicas e econômicas, sem deixar um só dia de atacá-lo,
interna e externamente, com a maior propaganda concebida
na história das guerras, declaradas ou não. E como na
Nicarágua, com a cumplicidade, aberta e encoberta, de certos
indivíduos.
E um povo cercado de tal maneira deve, lamentavelmente,
ver alguns de seus direitos limitados e regulados se quiser
conservar sua independência e autodeterminação. Não se pode
arriscar o futuro das maiorias para permitir a uns poucos,
vendedores de almas, colaborar para desestabilizar a nação.
Tudo em benefício de uma potência que quer impor o mesmo
rumo que causou involução a tantos outros países. O mesmo
que os europeus aplicaram na África e que hoje a mantém
moribunda.
Quem conhece o sistema eleitoral cubano sabe que quem
não esteja de acordo com a Revolução, mas que seja fiel à
soberania de sua pátria, e quiser ser oposição política real,
apenas precisa trabalhar junto ao povo. Se o fizessem poderiam
262
ser eleitos, pois não é preciso ser membro do Partido Comunista
para chegar à Assembléia Nacional. Em Cuba não é necessário
dinheiro para as campanhas eleitorais; basta convencer as
massas, demonstrando capacidade e dedicação a elas: mas isso
não provoca aplausos no exterior, nem qualifica como
dissidente, portanto, também não rende dólares.
Como reconheceram alguns meios de informação
internacionais, durante a visita do Papa a Cuba existiram todas
as condições para que se desse um golpe de Estado: estava
proibido o porte de armas para qualquer membro da polícia
de segurança; as pessoas estavam nas ruas em estado de
efervescência; e todo tipo de discurso foi transmitido pelo rádio
e pela televisão. Além disso, estiveram presentes mais de três
mil jornalistas de todo o mundo dedicando-se, em sua maioria,
a procurar o descontentamento popular que lhes servisse em
bandeja de prata a ambicionada rebelião. Para tanto deram
todo o espaço possível aos chamados dissidentes. No entanto,
estes não puderam demonstrar nem um mínimo do consenso
que se diz, internacionalmente, que gozam junto ao povo. Nem
adiantou, como informou Giulio Girardi no jornal El País, da
Espanha, em 16 de fevereiro de 1998: “a presença de 16
funcionários do Departamento de Estado dos Estados Unidos,
que tinham desembarcado em Havana uma semana antes do
Papa e que se foram uma semana depois, dispostos a garantir
a “transição democrática”.
D
Frei Betto, célebre teólogo católico brasileiro, enviou-nos
um texto do qual transcrevemos alguns parágrafos, para
compartilhá-lo com vocês:
263
Uma sociedade é má quando não garante a vida a toda sua
gente. Ou seja, a sociedade cubana é boa, à luz da Fé cristã
e dos critérios do Evangelho, porque é a única na América
Latina que garante a vida para seu povo. Cuba representa
uma grande ameaça para os Estados Unidos, porque mostrou
o caminho da vida a tantos povos explorados do Terceiro
Mundo. E os EUA, apoiados pela Europa, continuam no
planeta sua política da morte.
Uma vez, um jornalista norte-americano me perguntou
porque não havia democracia em Cuba. E eu lhe respondi:
você conhece um país democrático? Ele disse: sim, o meu
país. E eu lhe perguntei: quantos milionários há nos EUA?
E quantos em Cuba? Quantos pobres sem comida, sem
roupa, nem lar há nos EUA? E quantos em Cuba? Quantos
negros discriminados ou mortos a tiros pela polícia há nos
EUA, e quantos em Cuba? Quantas crianças sem assistência
médica nem educação há nos EUA e quantos em Cuba? De
quanta gente se ofende a dignidade humana nos EUA e de
quanta gente em Cuba? Então, disse-lhe, em qual dos dois
existe mais democracia? Porque, para mim, a resposta é uma
só: em Cuba.
Um coro de gente diz que em Cuba não se respeitam os
direitos humanos. E eu me pergunto se falar de direitos
humanos na América Latina, para não falar de todo o
Terceiro Mundo, não é um luxo. Porque nós ainda, a
maioria dos quinhentos milhões de habitantes, não temos
garantidos nem os direitos que, na Europa, por exemplo,
gozam os animais. Se não fosse porque é de extrema direita,
o melhor seria por de presidente do Brasil, Honduras,
Argentina, Chile ou qualquer outro país da América Latina,
264
a ex-atriz Brigitte Bardot. Talvez ela pusesse em prática a
Lei de Proteção aos Animais pela qual luta na França. E
nossa vida estaria muito melhor.
Então, devemos nos perguntar: de que estamos falando,
quando falamos de democracia? De que estamos falando,
quando falamos de direitos humanos?
E
Em 30 de outubro de 1996, o jornalista cubanoestadunidense Luis Ortega escreveu no jornal La Prensa,
editado em Nova Iorque:
Respeito as pessoas simples que têm aversão a Fidel Castro
ou à própria revolução. É uma reação pessoal muito natural.
Grave é quando o indivíduo se torna cúmplice de uma
política dirigida à destruição do povo de Cuba, com o
pretexto de acabar com Castro. Mal é quando esse sentimento
se converte em um negócio. Mal é quando se colabora
deliberadamente com uma campanha para arrasar Cuba.
F
“Dissidentes ou mercenários?”
Ou mercenários louvados como dissidentes?
265