Dissidentes ou Mercenários? Objetivo: liquidar a revolução cubana
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Dissidentes ou Mercenários? Objetivo: liquidar a revolução cubana
DISSIDENTES OU MERCENÁRIOS? Objetivo: liquidar a revolução cubana Hernando Calvo Ospina Katlijn Declercq DISSIDENTES OU MERCENÁRIOS? Objetivo: liquidar a revolução cubana EDITORA EXPRESSÃO POPULAR Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular Hernando Calvo Ospina Katlijn Declercq Tradução Ana Corbisier Projeto gráfico, Capa e diagramação ZAP Design Foto da Capa Bille Steiner Impressão e acabamento Cromosete Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Biblioteca Central da UEM. Maringá - PR. Calvo, Hernando C169d Dissidentes ou Mercenários?. Objetivo liquidar a revolução cubana / Hernando Calvo, Katlinj Declerq. - São Paulo : Expressão Popular, 2001. 272 p. : il Livro indexado em GeoDados. http://www.geodados.uem.br ISBN: 85-87394-23-1 1. Cuba. 2. Revolução cubana. 3. Dissidentes cubanos. 4. Mercenários cubanos. I. Declerq, Katlinjn. CDD 21.ed.322.4097291 CIP-NBR 12899-AACR2 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 1ª edição: agosto de 2001 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR Rua Bernardo da Veiga, 14 CEP 01252-020 - São Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3105-5087 Correio eletrônico: [email protected] Sumário Prefácio para a edição brasileira .................................... 9 Um pouco de história (1959-1979) .............................. 13 I .................................................................................... 33 II .................................................................................. 47 III ................................................................................. 59 IV ................................................................................. 73 V .................................................................................. 85 VI ................................................................................. 101 VII ................................................................................ 125 VIII .............................................................................. 145 IX ................................................................................. 167 X................................................................................... 187 XI ................................................................................. 211 XII ................................................................................ 229 XIII .............................................................................. 237 XIV .............................................................................. 241 XV ................................................................................ 251 Umas últimas letras ...................................................... 259 Obrigado pelo apoio e carinho: Nabor Calvo, Elvia Ospina, Tijl Declercq, Paula Andrea Calvo, Sara, Menno e Jana Steel, Koen Steel, Karine Álvarez, Annemie Verbruggen, Pedro e Odile, Manuel e Alina, Antonio e Anita. A Rosita, a avó mais linda de Havana. A Alfi, pelo seu “afecto” em Miami Prefácio para a edição brasileira Cuba é uma ilha do tamanho do Estado de Pernambuco, a 180 km da costa dos EUA. É um país pobre em recursos naturais e com uma população equivalente à da cidade de São Paulo. Mas, tendo feito uma revolução vitoriosa, que implantou o socialismo, as condições de vida de seu povo, principalmente no que se refere a saúde e educação, são das melhores do mundo. Lá, perdem-se apenas 6,4 nascidos vivos em cada mil, taxa menor que a dos Estados Unidos da América, que é de 7,3. Enquanto isso, no Brasil, a imprensa oficialista e o governo neoliberal comemoram uma taxa de 34,6. Em Cuba já não há analfabetos, e todas as crianças fazem, obrigatoriamente, as 8 séries do primeiro grau. Todo o ensino e toda a assistência médica são gratuitos. Os resultados obtidos no esporte são de todos conhecidos. Conseguiram erradicar a miséria. São pobres, mas todos comem, vivem em casas, têm trabalho, divertemse. No Brasil, com toda a sua riqueza, temos 13,3% de analfabetos e apenas na cidade de são Paulo, há 8.740 pessoas 9 morando na rua, enquanto há um carro para cada dois habitantes! Não é preciso conhecer a cidade para imaginar em que garagens estão esses automóveis... No entanto, em lugar de alegrar-se por um êxito tão significativo frente à derrota das políticas do FMI para a América Latina, onde a desigualdade só aumenta, há 42 anos, o grande, poderoso e rico EUA mantém em torno de Cuba um cerco comercial cada vez mais duro, e investe dinheiro para organizar todo tipo de infiltração na ilha: de idéias, por meio de transmissões de rádio e dos turistas, e terroristas, para organizar sabotagens e atentados. Este livro, que reproduz entrevistas com as figuras mais destacadas entre os que deixaram Cuba na época da Revolução e desde então se dedicam a tentar derrubar o governo e o socialismo cubanos, conta a história desses 40 anos de guerra não declarada. A leitura deste livro é importante para nos ensinar como os governos norte-americanos, seus aliados e a imprensa que os apóia usam palavras como democracia, liberdade e direitos humanos para iludir-nos sobre os interesses deles e os nossos. Para nos ensinar a desconfiar do que lemos na imprensa de nosso país, que reproduz fielmente artigos de Carlos Alberto Montaner ou da sub-secretária de Estado dos EUA para Assuntos Globais... Mas é um livro triste. Em primeiro lugar, porque mostra uma covardia: os EUA, o país mais rico e poderoso da terra, por meio de sua Agência Central de Inteligência, a CIA, e de outros órgãos de governo, durante mais de 40 anos, tentando estrangular um país pequeno e pobre. Em segundo lugar, porque deixa falar homens e mulheres que se venderam ao inimigo de sua nação e fizeram da luta contra ela seu meio de vida e de sobrevivência política. Em terceiro, porque mostra como alguns desses homens e mulheres compram parlamen- 10 tares norte-americanos, para que sirvam a seus interesses, num grande mercado, onde a mercadoria é a sobrevivência de uma das experiências mais belas que o mundo já conheceu e dos 11 milhões de pessoas que dela participam. Este título mostra o lado mais feio de seres humanos e de um país que chegam até ao assassinato para impor o seu poder. Que, usando conceitos como liberdade, democracia, direitos humanos, buscam enganar a opinião pública internacional repetindo, à saciedade, que Fidel Castro é um ditador, que há miséria na Ilha e que lá não existe liberdade. É verdade que, como disse um dia um presidente deles mesmos, “não se pode enganar todo o mundo o tempo todo”... Mas, por que tanta sanha? Embora os autores nos forneçam algumas respostas, proporemos outra: se Cuba, estrangulada, consegue proporcionar a seu povo níveis de saúde e de educação melhores do que os países mais desenvolvidos do planeta, inclusive os EUA, e seus esportistas ganham medalhas em todas as Olimpíadas; se lá já não existem mais favelas nem desemprego, que país não seria se pudesse se desenvolver livremente? E, na outra ponta, que país não seria o nosso, e outros, na América Latina, se, como em Cuba, conseguíssemos por fim à exploração das maiorias por minorias que não conseguiriam gastar em gerações o dinheiro que acumulam? O que aconteceria quando nossos povos percebessem que os investidores internacionais, o FMI e o Banco Mundial são sanguessugas, a drenar para fora todo o resultado de nosso trabalho? Que, sem eles, poderíamos também desfrutar de uma sociedade mais justa e solidária? Para os EUA e para os aliados que possuem dentro de nossas fronteiras, deixar Cuba, e os países que viessem a se libertar de seu jugo, em paz e progredindo significaria o fim de sua indústria bélica, o fim da acumulação a qualquer custo, o fim 11 do poderio que exercem sobre dois terços da população mundial. Que é a ALCA, chamada Área de Livre Comércio das Américas, senão mais um instrumento para liberar mercados e eliminar soberanias, facilitando o livre curso das mercadorias e dos capitais norte-americanos, a preços determinados por eles? Esta é a liberdade que apregoam. Estes os direitos humanos que defendem. Se não, se Cuba não representa para eles nenhum perigo, porque não deixá-la seguir livremente o caminho que livremente escolheu? Resposta: porque o exemplo é perigoso, pode “pegar”, transformando a cômoda hegemonia dos EUA, agora ainda mais cômoda sem a URSS, que os mantinha relativamente contidos. Ana Corbisier Julho de 2001. 12 Um pouco de história (1959-1979) “É perigoso ser nosso inimigo. É fatal ser nosso aliado”. Henry Kissinger - Ex Secretário de Estado dos Estados Unidos da América. Prêmio Nobel da Paz A Antes do amanhecer do dia primeiro de janeiro de 1959, o ditador Fulgencio Batista saiu, fugido, de Cuba. Ninguém mais queria saber dele, nem a alta burguesia, nem a máfia, nem os estadunidenses.1 já não servia. A notícia pegou de surpresa boa parte dos cubanos. Em Havana, o povo iniciou a destruição dos parquímetros, símbolo dos impostos da ditadura, mas os “Barbudos” guerrilheiros começaram a por ordem. Cuba se transformou numa algazarra, embora a minoria privilegiada pela riqueza olhasse com receio aquele frenesi. Não era para menos: 1 A América é um continente, não um país. É um erro chamar de americanos os cidadãos de uma nação cujo nome é Estados Unidos. Da mesma forma, é um erro chamá-los de norte-americanos, pois o Canadá e segundo alguns, até o México, também pertencem a esta região. Por isso empregaremos o termo “estadunidense” para tudo o que pertence ou se refere a este país e a seus habitantes. Mas respeitaremos os termos utilizados por nossos entrevistados, assim como os que constam das citações. o jovem Fidel Castro, que o povo reconhecia como seu líder máximo, tinha prometido mudar muitas coisas. E com o apoio e a participação das maiorias, as essenciais começaram a ser, rapidamente, transformadas. É indiscutível que, quando do triunfo da Revolução, as estatísticas mostravam uma renda per capita muito alta. Mas uma coisa era a renda e outra a questão de saber se cada cubano recebia a sua parte. Como se prometera ao povo, as primeiras leis diziam que a renda per capita passaria do papel à realidade. Quando esse novo governo começou a fornecer alimentação, educação e saúde, em partes iguais, isso foi considerado uma manipulação: “estava-se manipulando habilmente os sentimentos das massas”, como disseram muitos inimigos da Revolução2. Os revolucionários tinham avisado desde o começo: a distribuição de riquezas e o significado de soberania vão mudar. A aristocracia cubana, urbana e rural, não acreditou. Em Washington, apenas se suspeitou. Então aconteceu o que devia acontecer. “Em junho de 1959, o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), confiscara quatrocentas propriedades rurais, e em dezembro do mesmo ano tinham se estabelecido quatrocentas ‘lojas do povo’ e quatrocentas e oitenta e cinco cooperativas”3. Um ano depois tinham sido nacionalizadas trezentas e oitenta indústrias e empresas estadunidenses e do grande capital cubano. Um país subdesenvolvido não podia se dar este direito. E ainda menos, se pertencesse ao quintal estadunidense. Pior ainda, quando os desígnios do império tinham decidido, desde sempre, que Cuba era uma extensão natural de seu território. 2 Enrique Encinosa: Cuba en guerra. Historia de la oposición anti-castrista, 1959-1993, Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundación Nacional Cubano-Americana, Miami, 1995. 3 Idem. 14 Atentava-se contra interesses sagrados como, simples exemplo, os de William Pawley, dono da Companhia de Gás de Havana, além de assessor do presidente Dwight Eisenhower para assuntos cubanos; os do coronel J. C. King, chefe da Divisão do Hemisfério Ocidental da Agência Central de Inteligência (CIA), sócio de Pawley e com muitos investimentos na Ilha. Sem esquecer os imensos negócios da máfia ítalo-estadunidense, conhecida como Cosa Nostra, encabeçada por Meyer Lansky e Santos Trafficante. Portanto, era preciso agir urgentemente. E foi isso o que se fez. Em 10 de março de 1959, a pauta secreta do Conselho de Segurança Nacional (NSC), incluíra, como um de seus pontos principais, levar ao poder outro governo em Cuba. Até a revista Time, de 6 de abril de 1959, sentiu-se ultrajada com a atitude independente assumida pelos governantes desse pedacinho de território caribenho: “A neutralidade de Castro é um desafio aos EUA”. Entenda-se: não soa bem um Não, quando a rotina tem sido sempre “Yes, Sir”. Cuba tinha que voltar a sua trilha, não importava como. Este era um anseio compartilhado por aqueles cubanos que sempre sonharam em ver o país que chamavam de “pátria” como uma estrela mais na bandeira estadunidense. B O governo revolucionário ainda não estava totalmente instalado e já se tramava contra ele. A partir da ilha vizinha, a Dominicana, sob os auspícios do ditador Leónidas Trujillo, com a bênção de Washington, organizou-se a “Legião Anticomunista do Caribe”. Eram cerca de oitocentos mercenários: cubanos, franceses, espanhóis, belgas e de outras 15 nacionalidades, que se preparavam para invadir Cuba. Para desgraça da “Conspiração Trujillista”, a primeira investida, composta logicamente por cubanos, foi capturada. Eram os meses finais de 1959 e o complô foi por terra. Mas na mesma data já se preparava a Operação 40, primeiro plano completo que a CIA organizou para acabar com a Revolução nascente. Completo, porque operações militares e terroristas complementavam a guerra ideológica e psicológica, a pressão diplomática e a econômica. Mas, apesar de contar com todos os recursos inimagináveis, falhou. Principalmente porque os Estados Unidos jamais conseguiram organizar grupos contra-revolucionários consistentes no interior de Cuba. Por prepotência, menosprezaram o essencial: a maioria do povo queria esta Revolução, e apoiava seus dirigentes. Além disso, o novo governo sabia quem estava enfrentando, e sem mais tardar organizou um escudo. Assim nasceram, em 1960, os Comitês de Defesa da Revolução (CDR), que são associações de vizinhos para a vigilância: “Apoiavam a Segurança do Estado, munindo-a de informações constantes sobre qualquer atividade suspeita no quarteirão”.4 Pouco a pouco, mas decididamente, o golpe foi sendo isolado e aniquilado, à medida em que se lhe negavam recursos para que se alimentasse. As lideranças caiam, uma depois da outra. Todos esses reveses foram justificados de várias maneiras. A mais lamentável foi: “desde o começo os conspiradores tiveram má sorte”5. Diante da impossibilidade de obter um mínimo apoio social, a contra-revolução decidiu incrementar os ataques terroristas. Em 4 de março de 1960, o navio francês La Coubre, 4 5 Idem. Idem. 16 que trazia armas da Bélgica, explodiu na baía de Havana. Morreram setenta e cinco pessoas; duzentas ficaram feridas. Aviões, procedentes da Flórida, lançaram bombas incendiárias, que explodiram contra engenhos, plantações e empresas. De lanchas rápidas, povoados costeiros foram metralhados, embarcações foram afundadas e pescadores seqüestrados. Não havia nenhum respeito pela população civil. Alguns, como Carlos Alberto Montaner e Armando Valladares, que hoje passeiam glorificados, camuflavam entre pacotes de cigarros o explosivo plástico entregue pela CIA, que incendiava depósitos na capital. C Todos os relatórios confirmavam ao presidente Eisenhower que dia a dia perdia o controle estratégico sobre a Ilha. O mandatário, como primeira medida, ordenou que fosse incrementado o apoio aos grupos contra-revolucionários. Deu luz verde, em março de 1960, para que a CIA preparasse uma invasão militar em larga escala. Disposição ratificada por seu sucessor, John F. Kennedy. Mas os Estados Unidos não queriam aparecer novamente como invasores. Se, para impor seus interesses, viram-se “forçados” a enviar “marines” à Nicarágua, à República Dominicana, à Guatemala etc., neste caso não lhes parecia necessário, pois contavam com alguns milhares de cubanos mercenários. Bastava que estes, como fachada, formassem algum tipo de estrutura política no exílio que, chegado o momento, seria reconhecida internacionalmente como governo transitório. Mas, com todas as ambições de grupos e pessoas em jogo, não foi fácil para a CIA lograr seu 17 intento. Embora fizessem parte do Conselho Revolucionário Cubano apenas cinco grupos, Allen Foster Dulles, diretor da CIA, informou ao presidente Kennedy que seria uma tarefa bem difícil “estabelecer um governo cubano no exílio que unificasse as 184 organizações anti-castristas” 6. Ocorria também que os donativos levavam três a quatro pessoas a criar seu grupo, dentro e fora da Ilha, embora estes, como fantasmas, aparecessem e desaparecessem. Por fim, a gestação da unidade teve seu parto. Desde sua apresentação ao público, o Conselho contou com um exagerado espaço na grande imprensa. Os meios de informação não podiam agir de outra forma, frente ao que se erigia como alternativa ao insolente governo de Havana. Que importava se um ou outro desses grupos tinha apenas uma base social mínima no interior de Cuba, no máximo algumas pessoas e uma sigla? Afinal, o Conselho era apenas uma vitrine para vender ao exterior. Que importava que nenhum dos líderes do Conselho tivesse voz nem voto no que o império preparava contra sua pátria? Quando o poder fosse retomado, receberiam de Washington um pedaço do bolo no governo. Que importava se os dirigentes do Conselho não se suportavam uns aos outros? “Desconfiávamos uns dos outros, mas tínhamos muita confiança nos americanos”.7 Com certeza. Não se tratava de um simples caso de dependência militar ou política. Não. Era vassalagem moral e psicológica. Assim se estabeleceu em Miami um dos maiores escritórios que a CIA já teve em toda a sua história, com a missão principal de recrutar e pagar, naturalmente, os cubanos que quisessem invadir seu próprio país. Como demonstraram pesquisas 6 7 Idem. Haynes Johnson: La Baie des Cochons. L’invasion manquée de Cuba, Ed. Robert Laffont, Paris, 1965. 18 posteriores, um jovem oficial da CIA, futuro presidente da nação, George Bush, seria um dos contratantes. Cada mercenário recebia um número de matrícula. A lista começava em 2.500, para dar a idéia de uma força numericamente grande. Para a preparação militar, organizaram-se acampamentos na Flórida e na América Central. Durante um treinamento, a brigada teve seu primeiro morto, o 2.506, e em sua memória recebeu esse nome. Inicialmente foram destinados treze milhões de dólares para financiar a operação invasora, parte deles procedentes do tráfico de ópio que a CIA organizara a partir do Triângulo de Ouro. 8 Quando, em 3 de janeiro de 1961, Washington, unilateralmente, rompeu relações com Cuba e, no dia 17, proibiu seus cidadãos de visitar a Ilha, supunha-se que os inimigos da Revolução ficassem encantados. Mas, em 16 de abril, em Washington, em Miami, na Europa, e quem sabe aonde mais, a saliva deve ter descido com dificuldade por suas gargantas. Fidel Castro, no momento em que dava o último adeus a vários soldados mortos por bombardeios da aviação estadunidense, proclamava o caráter socialista da Revolução. Faltavam poucas horas para que barcos e aviões, transportando cerca de mil e quinhentos mercenários, rumassem para Praia Girón. Os estadunidenses, de Kennedy para baixo, estavam certos que os invasores contariam com o apoio da maioria do povo cubano. Por meio do Conselho Revolucionário Cubano, tinham enviado tantos dólares para comprar almas na Ilha, que não podiam falhar. O objetivo era a brigada mercenária 8 Martin Lee e Bruce Shlain: LSD et CIA. Quand l’Amérique était sous acide, Les Editions du Lézard, Paris, 1994. Chama-se Triângulo de Ouro a um imenso território entre o Laos, a Birmânia e a Tailândia. 19 fortalecer-se nas zonas próximas ao desembarque, desenvolvendo uma guerra de desgaste. Quando começasse o levantamento geral, seria proclamado o governo provisório, que obteria reconhecimento internacional sem nenhum problema. Mas o que encontraram foi um exército, apoiado pelas milícias, que em poucas horas levou a força invasora às portas do inferno. Estavam tão confiantes, todos, que nem sequer previram um plano de evacuação em caso de derrota. Nem adiantou que, ao desembarcar, o primeiro homem que pisou terra não fosse precisamente um mercenário cubano, mas sim um veterano oficial estadunidense, William Rip Robertson. “A sorte estava lançada. Ao amanhecer do dia 19, as últimas unidades da Brigada desmoronaram diante da superioridade inimiga (...) Quase uma centena de membros da brigada morrera na invasão, outra centena fora ferida e mais de mil, capturados”.9 Os invasores nada puderam fazer contra o denodo de um povo que defendia, gratuitamente, sua soberania recém conquistada. Quando os mercenários cubanos compreenderam que os estadunidenses não se arriscariam a ir mais longe, esquecendo que vinham “libertar” a pátria, “perderam, naquele momento, a vontade de combater”.10 Mas esta era apenas uma parte da maior humilhação militar que o império sofrera até então no continente. Enquanto isso, Fidel Castro e seus “Barbudos” tornavamse o Davi que golpeara Golias. “Um Castro supermacho, audaz e rebelde, que podia derrotar um império em sua própria fronteira”.11 9 Enrique Encinosa. Obra citada. 10 Idem. 11 Idem. 20 Dias depois, em 24 de abril, Kennedy reconhecia a responsabilidade pela agressão mercenária. E no dia seguinte deu início à verdadeira agressão, a mesma que persiste até hoje, embora já ocorresse desde outubro de 1960: o embargo comercial total.12 Em 7 de setembro, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma medida privando de ajuda qualquer país que apoiasse Cuba, salvo se o presidente determinasse que esta assistência servia a seus interesses. Assim o governo estadunidense começava a imiscuir as nações do mundo em “sua guerra” contra Cuba, sem encontrar maior resistência. E os mercenários? Quando já se viam a caminho do “paredón” por “participar de invasão militar organizada e apoiada por uma potência estrangeira”13, foram libertados. Melhor, trocados por remédios, alimentos e equipamentos agrícolas. Voltaram para casa, em Miami, no Natal de 1962. Em 29 de dezembro realizou-se um ato para homenageá-los; estiveram presentes o presidente Kennedy e sua esposa, Jacqueline. Esta se referiu aos mercenários como “os homens mais valentes que existem no mundo”. Depois, quando os chefes entregaram ao mandatário a bandeira da brigada, este prometeu devolvê-la “em uma Havana livre”. Os contrarevolucionários ovacionaram o presidente. Quinze anos mais tarde, a associação de ex-membros da brigada pediu ao Museu Kennedy que a devolvesse, pois a palavra não fora cumprida. Devolveram-na pelo correio. 12 13 É comum a utilização do termo embargo comercial que, por suas implicações de dificuldade e impedimento no comércio e no transporte, é utilizado pelos Estados Unidos para disfarçar sua política hostil frente a Cuba. Na realidade o que ocorre é um bloqueio imposto pelos Estados Unidos, com o objetivo de impedir todo tipo de ações que contribuam para o desenvolvimento da Revolução cubana, criando obstáculos que favoreçam sua paralisação ou estrangulamento. Luiz Báez: Los que se fueron, Editora Política, La Habana, 1994. 21 D Depois de analisar o relatório sobre o fracasso da invasão mercenária e contra-revolucionária, o presidente Kennedy criou um Comitê Especial, no seio do Conselho de Segurança Nacional. O orgulho da nação estava ferido e as principais instâncias deviam salvá-lo. A tal ponto, que o próprio Fiscal Geral, Robert Kennedy, participou do Comitê. Segundo documentos do governo, na reunião de 4 de novembro de 1962, o irmão do presidente anotou o seguinte: “minha idéia é resolver as coisas mediante espionagem, sabotagens, desordem geral, tudo operado e dirigido pelos próprios cubanos de todos os grupos, exceto aliados de Batista e comunistas...” Exceto aliados de Batista, dada a imagem negativa que tinham no mundo; mas os cubanos deviam continuar se expondo, embora todos soubessem que eram apenas um meio, na estratégia global estadunidense. Neste comitê foi aprovada a Operação Mongoose (Rato da Índia) destinada, segundo o presidente, em 30 de novembro, a “utilizar os meios disponíveis (para) ajudar o povo de Cuba a derrubar o regime comunista, de dentro do país, e a instaurar um novo governo, com o qual os EUA possam viver em paz”. Era possivelmente a primeira vez que, na guerra nascente contra o governo cubano, os Estados Unidos punham ênfase no “de dentro do país”, o que se transformaria em uma constante até nossos dias. O mais importante era conseguir uma “desordem geral”, que desembocasse no levantamento popular interno. Quando isso ocorresse, os grupos da contra-revolução pediriam ajuda internacional, sob pretexto de proteger a população de um massacre por parte do governo comunista. Diante desse clamor, acudiriam os Estados Unidos e outras nações do continente, mas sob a bandeira da Organização dos Estados 22 Americanos (OEA). Começava-se a criar o que hoje se conhece como intervenção humanitária. O inesperado desafio representado por Cuba – mais os focos insurrecionais em vários países do continente – exigiram dos estrategistas estadunidenses uma imediata revisão da guerra ideológica. “Gastamos milhões de dólares preparandonos para a guerra das armas, mas muito pouco na guerra das idéias”, lamentava-se o Secretário de Estado do presidente Kennedy. Mas já o diretor da Agência de Informação dos Estados Unidos (United States Information Agency, USIA), um dos órgãos de propaganda ideológica mais poderoso dos Estados Unidos,14 gestava a solução: “A simples introdução da dúvida, no cérebro das pessoas, já significa um grande êxito”.15 Na Operação Mongoose considerou-se muito este aspecto, como parte do conflito. Citemos trechos do que veio a público: Primeiro, criar um clima patético e motivar as forças para a libertação de Cuba; segundo (ilegível no texto do documento); terceiro, demonstrar a preocupação com a situação dos refugiados (cubanos), particularmente a das crianças órfãs; quarto, demonstrar o fracasso do regime cubano no cumprimento das promessas feitas (...); quinto, destacar as intoleráveis condições em Cuba e a situação 14 15 Julien Claude: L’Empire Américain, Ed. Le Livre de Poche, Paris, 1972. Relatório da Comissão Especial do Senado estadunidense sobre conspirações para assassinar dirigentes de outros países, Washington, novembro de 1975. Na segunda-feira, 17 de novembro de 1977, o Pentágono tornou acessíveis ao público outras mil e quinhentas páginas sobre Cuba. Nelas se encontram muitíssimas sugestões – chamadas pelo jornal espanhol El País de “surrealistas” –, que os vários órgãos de espionagem e segurança estadunidense propuseram ao presidente Kennedy, para derrubar ou desacreditar o governo revolucionário. Por exemplo, se o primeiro vôo orbital da nave Mercury não tivesse podido regressar à terra em 20 de fevereiro de 1962, Kennedy acusaria como culpados os “comunistas de Cuba”, por terem provocado “interferências eletrônicas”. 23 dos cubanos na Ilha; sexto (ilegível); sétimo, publicar que os cidadãos comuns, e não apenas os ricos, fugiram de Cuba (...) (Para tanto) deverão ser utilizados todos os meios de comunicação de massa (...). Retomar as idéias de Marti (...) Popularizar canções, em comerciais, que aludam a estas palavras de ordem (...)16 Mudando algumas palavras, este poderia ser um plano atual. Mas a Operação Mongoose também incluía o lançamento de produtos químicos nos canaviais e em outros cultivos, além de atentados contra o Comandante Fidel Castro, que iam desde o assassinato, até a queda de sua barba, à qual era atribuida a atração que exercia sobre o povo. Para estas e outras ações terroristas, a CIA se apoiou no mundo do crime, destacandose os poderosos mafiosos John Rosselli, Santos Trafficante e Momo Salvatore Giancana.17 No final de janeiro de 1962, Cuba foi expulsa da OEA. Em seguida, os Estados Unidos solicitaram à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que considerasse a decisão da OEA, para que seus integrantes pressionassem o governo revolucionário. Da mesma forma, pediu a seus aliados que proibissem o comércio voluntário de materiais estratégicos com Cuba e reduzissem o comércio em geral com este país. Quase todos os governos do mundo aceitaram de boa vontade o pedido. Enquanto isso, a CIA infiltrava em Cuba várias equipes de agentes para unificar e treinar, em táticas de sabotagem e sistemas de comunicação, os focos contra-revolucionários. 16 Idem. 17 Idem. 24 E Acabavam de ser derrotados os últimos redutos da força mercenária, quando Kennedy respondeu a uma nota de advertência soviética, no sentido de que outra agressão militar a Cuba poderia por em perigo a paz mundial. O presidente negava, mais uma vez, que os Estados Unidos tivessem a intenção de invadir Cuba. Mas deixava claro que “embora se abstenha de uma intervenção militar direta, o povo dos EUA não esconde sua admiração pelos patriotas cubanos”. No início de 1962, como parte da Operação Mongoose, começou um recrutamento em massa para formar “Unidades cubanas” do Exército estadunidense. Em reconhecimento pelos serviços prestados, foi oferecido aos derrotados da Brigada 2.506, ingressar nelas como oficiais. O governo revolucionário percebeu que se aproximava uma nova tentativa de invasão. Se os Estados Unidos utilizassem, de verdade, seu poder militar, seria difícil manter viva a soberania. Mas, pelo menos, devia receber golpes contundentes antes de voltar a se apropriar da Ilha. Era necessário, portanto, conseguir armamento pesado. O que foi possível, graças à União Soviética. Em 16 de outubro de 1962, o presidente Kennedy soube que estavam sendo instalados em Cuba mísseis com ogivas nucleares; diante disso, aprovou um bloqueio naval à Ilha, para deter os navios soviéticos que transportassem armas. Ao mesmo tempo, ordenou manter em alerta máximo, milhares de homens, aviões e navios; de fato, uma parte desta força militar já estava preparada desde abril, como bastião da Operação Mongoose. Começava a chamada “Crise dos Mísseis”, ou “Crise de Outubro”, que levou o mundo à beira de uma conflagração apocalíptica. Não é preciso muita imaginação para deduzir que os contra-revolucionários que ainda não haviam se decidido a 25 ingressar no Exército estadunidense se alistaram naquele momento. O cerco naval, apoiado pela aviação, foi ao milímetro. O que “não impediu que continuassem os ataques-comando às costas de Cuba”. 18 Chegou-se à negociação. A União Soviética retirou os mísseis e os Estados Unidos se comprometeram a não invadir Cuba, nem a permitir que os exilados realizassem ações ofensivas a partir de seu território, o que ofendeu gravemente o orgulho dos contra-revolucionários: sentiram-se traídos, relegados, desamparados. Em 22 de novembro de 1963, o presidente Kennedy foi assassinado. As investigações não descartaram a possibilidade de que exilados cubanos, em represália, tenham participado do crime. Idênticas suspeitas pairaram sobre a violenta morte de Robert Kennedy e do mafioso Giancana. Não tinham cumprido sua palavra de ajudar a “libertar” Cuba. Quando Lyndon Johnson assumiu a presidência, entre suas primeiras declarações consta: “Nossa primeira tarefa deve ser isolar Cuba do sistema interamericano”. E assim foi. Todos os paises do continente, exceto o México, deram as costas ao governo revolucionário. Mas a falta de comunicação não ocorreu apenas em nível de estados. Sob o controle da CIA, exilados cubanos foram enviados para residir em paises da América Latina. Sua tarefa consistia em organizar delegações que fizessem propaganda contra-revolucionária. Mas, “estávamos arando no mar. A falsa imagem de Fidel Castro, como rebelde romântico, era muito poderosa (...) o sentimento anti-americano na América Latina é muito forte e, além do mais, éramos subvencionados pelos Estados Unidos (...)”19 18 Miguel Talleda: Alpha 66 y su histórica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995. 19 Enrique Encinosa. Obra citada. 26 Para má sorte dos contra-revolucionários, que queriam, sem mais tardar, Cuba em mãos dos Estados Unidos, a atenção de Washington se voltou gradativamente para o conflito do Vietnam e do Sudeste asiático. Lá combateram muitos estadunidenses de origem cubana. Mas, antes, a CIA enviara algumas dezenas de ex-membros da Brigada 2.506 para o Congo, a “caçar” o Che Guevara. Este “Grupo Voluntário Cubano” esteve ativo até 1966, combatendo contra as forças rebeldes lideradas por Pierre Mulele e Laurent-Désiré Kabila, como integrantes de uma grande força mercenária que incluía ingleses, belgas, sul-africanos, franceses e alemães. Até hoje, os sobreviventes deste “Grupo” se ufanam por ter dado cobertura aérea à evacuação de Leopoldville e barrado a ofensiva de Mulele, com um brutal bombardeio no Vale de Kwilo. No Vietnam, sua principal atividade militar consistiu em colaborar com a tribo Meo, do Laos. “Esta tribo era conhecida anteriormente como traficante de ópio, atividade que a CIA não tentou impedir. Pelo contrário, nesta operação secreta, a fronteira entre armas e drogas era bastante flexível. Neste aspecto, os cubanos, com a experiência da mafiosa Havana pré-revolucionária, eram bons colaboradores”.0 O mais destacado deles seria o oficial da CIA, Félix Rodríguez, especialista em operaçõescomando, que acabava de “glorificar-se” por ter assessorado o exército boliviano na captura e assassinato do Che Guevara, em outubro de 1967. Dirigir os recursos militares e econômicos para o Vietnam mutilou gravemente as ações contra-revolucionárias. 20 Vegard Bye: La paz prohibida. El laberinto centroamericano en la década de los ochenta, Ed. Departamiento Ecuménico de Investigaciones, Costa Rica, 1991. 27 Por volta do final dos anos sessenta, o exílio estava esgotado. Muitos movimentos tinham desaparecido lentamente. A situação era triste, dominada pelo cansaço coletivo dos combatentes. Não havia financiamento bélico e lanchas rápidas. Alguns poucos, os mais teimosos, mantinham-se ativos, agrupando-se, dividindose, e agrupando-se novamente (...)21 F Em 4 de abril de 1972 explodiu uma potente bomba no teto do Escritório de Assuntos Comerciais de Cuba em Montreal, Canadá. A explosão da bomba, fabricada com explosivo plástico, de uso freqüente pela CIA, matou um diplomata e feriu mais sete. A Frente de Libertação Nacional de Cuba (FLNC) reivindicou o atentado. Não era a primeira vez que se realizava este tipo de ato terrorista contra funcionários ou interesses do governo cubano. Mas o que ocorreu a partir daquele momento deixou de ser evento esporádico, para converter-se na Guerra pelos caminhos do mundo, uma estratégia dos contra-revolucionários baseada na conjugação de atentados terroristas com operaçõescomando em Cuba. As bombas se multiplicaram. E já não apenas contra objetivos cubanos, mas contra dependências de governos e de particulares que tivessem relações com o governo da Ilha. Em Nova Iorque foi lançada uma bomba no carro do diplomata Ricardo Alarcón, sem perdas humanas. Explosivos explodiram no México, na Argentina, na Jamaica, na Venezuela, na Colômbia, em Porto Rico etc. A maioria 21 Enrique Encinosa. Obra citada. 28 dos atentados foram reivindicados pela Frente de Libertação Nacional de Cuba, organização terrorista que tinha um braço legal para recrutamento e logística, chamado Abdala. 22 Embora as divisões, devidas a interesses pessoais e de grupo, não faltassem, outras duas organizações do exílio se entenderam com a Frente de Libertação Nacional de Cuba nesta sangrenta estratégia. Uma era a Alpha 66, outra, a Representação Cubana no Exílio (RECE), que naquele momento contava com o ex-membro da Brigada 2.506, Jorge Mas Canosa, como um de seus dirigentes. Juan Felipe de la Cruz chegou à Espanha e passou para a França, ajudado por Carlos Alberto Montaner, contato da CIA em Madri, segundo a Segurança cubana. Sua missão consistia em colocar uma bomba na Embaixada de Cuba, em Paris. Mas, em 3 de agosto de 1973, o material explodiu enquanto a bomba era preparada, em um hotel de Avrainville, perto de Paris. A seu enterro em Miami compareceu uma multidão. A Frente de Libertação Nacional de Cuba e a Representação Cubana no Exílio reivindicaram para si a preparação do malogrado atentado. Em meados dos anos setenta o terrorismo foi mais intenso. Dois especialistas da CIA em sabotagens foram libertados, depois de passar um breve período na prisão, acusados de atos terroristas: Orlando Bosch e Guillermo Novo. Em 1976 eles seriam os principais animadores da Coordenação de Organizações Revolucionárias Unitárias (CORU). Posterior22 Idem. O autor deste livro reconhece haver militado na Abdala. Portanto, tem plena autoridade para afirmar que a Frente de Libertação Nacional de Cuba foi estruturada por “vários veteranos das operações da CIA nos anos 60, alguns membros da Brigada 2.506 e dirigentes do Agrupamento Abdala”. Este, “com suas centenas de membros jovens, dava à FLNC uma base de apoio mais ampla que a outras, tanto para arrecadação de dinheiro, como para o nível operacional. 29 mente, o FBI atribuiria a Bosch e a Novo mais de setenta ações terroristas. Sem contar sua participação no tráfico de drogas junto a outros militantes contra-revolucionários, atividade que servia para financiar as ações terroristas e o benefício pessoal.23 Mas as autoridades estadunidenses começavam a preocuparse. A situação estava lhes escapando das mãos; sabiam que tipo de elementos tinham formado e até onde podiam chegar, se lhes fosse permitido. A isso se acrescentava a pressão que muitos governos começavam a exercer, particularmente os da França e da Espanha. Em Paris, os terroristas conseguiram realizar um atentado contra a Embaixada; enquanto isso, o consulado em Miami era sacudido por outra explosão. Em Madri, uma bomba destruiu todo o andar da representação diplomática. Não havia outra alternativa senão perseguir e encarcerar alguns atores recalcitrantes, o que feriu o exílio: Os americanos nos tinham ensinado a usar explosivos, tinham nos treinado para navegar, tinham nos preparado militarmente e um dia decidiram que já não éramos necessários. (...) O que fazíamos em 1963, com o beneplácito da CIA, dez anos mais tarde era um ato criminoso (...)24 23 24 Peter Dale Scott e Jonathan Marshall: Cocaine Politics. Drugs, Armies, and the CIA in Central America. Ed. University of California Press, Los Angeles, 1991. Naquela época, segundo investigações federais, a Coordenação de Organizações Revolucionárias Unitárias e a Abdala – Frente de Libertação Nacional de Cuba, entre outras, eram financiadas, em parte, com o tráfico de drogas realizado por alguns militantes. Frank Castro, ex-membro da Brigada 2.506 e René Corvo foram dos que mais dinheiro ilícito carrearam para estas organizações. Ambos estiveram implicados no Iran-Contragate. Enrique Encinosa. Obra citada. 30 Para transbordar a taça, em meados dos anos setenta, quando se assinou o acordo de paz no Vietnam, a CIA licenciou milhares de seus agentes, a maioria de origem cubana. Observando-se o conjunto, não é de estranhar que durante o ano de 1975 os escritórios do FBI e o aeroporto de Miami tenham sido alvo de nove bombas. Segundo membros do próprio exílio, a falta de apoio político e financeiro estadunidense abriu caminho para a violência cega, quase demente. “Se uma missão comando podia custar cinqüenta mil dólares, envolvendo duzentos combatentes, para dinamitar uma embaixada em um país estrangeiro bastavam dois homens; cada operação custava menos de dez mil dólares”.25 Em agosto de 1976, em Washington, morreram o exministro chileno do governo de Salvador Allende, Orlando Letelier, e sua secretária estadunidense Ronni Moffitt, quando uma bomba destruiu o veículo em que viajavam, o que desencadeou uma das maiores investigações federais. Durante quatro anos, centenas de contra-revolucionários foram detidos. Até que Michael Townley, um estadunidense que trabalhara como técnico em explosivos para o serviço de inteligência do ditador chileno Augusto Pinochet, acusou diretamente os irmãos Ignácio e Guillermo Novo. Tinham feito isso para receber ajuda e porque, segundo eles, Letelier trabalhava para a Segurança cubana. Quase na mesma data, um comando seqüestrou e fez desaparecer dois diplomatas cubanos radicados em Buenos Aires. Os setores mais reacionários do exílio chamaram o ato de “operação audaciosa”. Mas os contra-revolucionários não utilizavam apenas bombas para manter a pressão contra o povo cubano, seu 25 Idem. 31 governo e aliados comerciais ou políticos. Segundo um despacho da agência de imprensa UPI, de 9 de janeiro de 1977, “a CIA se recusou a comentar uma informação segundo a qual poderia estar implicada em uma epidemia premeditada de peste suína africana em Cuba, em 1971 (...) A introdução fora realizada por agentes cubanos anti-castristas”. Em setembro de 1984, várias agências de imprensa publicaram as declarações de Eduardo Arocena, cubano-estadunidense, que reconheceu, diante de um tribunal dos Estados Unidos, ter introduzido em Cuba, na década de setenta, por ordem da CIA, substâncias biológicas para propagar doenças entre a população. São apenas dois exemplos, mas existem muitíssimos casos do mesmo gênero, provados em órgãos internacionais e realizados a partir do momento em que a Revolução tomou o poder. Mas nenhum ato terrorista foi tão transcendental durante esta estratégia terrorista como a explosão de um avião da Cubana de Aviação, perto da costa de Barbados, em 6 de outubro de 1976. Orlando Bosch e Luis Posada Carriles, ambos operários da CIA, especializados em Fort Benning, foram presos na Venezuela, acusados de planejar o atentado. Setenta e três pessoas morreram, entre elas a equipe cubana juvenil de esgrima. “O impacto da ação foi brutal, tanto para Cuba como para o exílio”.26 Foi o prelúdio do fim da Guerra pelos caminhos do mundo. Mas a agressão continuava. Chegavam os anos oitenta, e a estratégia estadunidense para acabar com o sistema socialista cubano se readaptava. Os contra-revolucionários, por sua vez, deviam se submeter às mudanças: assim sucede quando se é um simples colaboracionista. 26 Idem. 32 I “Na Polônia, o marxismo foi imposto às pessoas. Parece que, em Cuba, a Revolução foi mais inteligente e comprometeu o povo”. Monsenhor Agustín Román Bispo auxiliar de Miami A Ermida de La Caridad é pequena, não muito alta e de arquitetura simples. Parte dos poucos metros que há entre ela e o mar estão destinados à meditação, como informam vários letreiros. A decoração interior é igualmente sóbria. Ao entrar, à direita, há uma mesa com duas caixas médias que contêm garrafinhas plásticas que não devem ter, supomos, capacidade para mais do que cento e cinqüenta mililitros. Um aviso solicita que, depois de tomar a água desejada, sejam levadas à cúria, onde as enchem com água benta. Nas garrafas estão inscritas as indicações de como tomar o líquido. O preço é acessível: três garrafinhas por um dólar. Poucos minutos depois da hora marcada, chegou Monsenhor Agustín Román, todo vestido de preto – sob este sol tórrido – o que contrastava com seu cabelo branquíssimo. Depois de quatro ou cinco perguntas sobre nossa procedência e o objetivo da entrevista, convidou-nos a entrar em seu escritório. Às quatro da tarde estávamos mortos de sede, e 33 Monsenhor Román só podia nos oferecer café quente. Não houve outro remédio senão sair de novo. Por sorte, a dois metros da porta, protegidas do sol, havia três máquinas distribuidoras de Pepsi Cola. Monsenhor Agustín Román foi ordenado sacerdote em 1959. Foi expulso para a Espanha, junto com outros cento e trinta padres e um bispo, em setembro de 1961. Em maio daquele ano, o governo revolucionário anunciara que não permitiria a permanência no país de religiosos contrarevolucionários, não importando sua nacionalidade. Embora insistíssemos com ele de várias formas, e mencionássemos algumas fontes, o bispo negou sempre que tivesse havido participação de membros da Igreja em grupos sediciosos. É um dos poucos que, em Miami, desconhece isto: “No começo da luta clandestina, as igrejas e seitas religiosas desempenharam um papel de destaque (...) Muitos sacerdotes, entre eles o padre Ismael Testé, participaram ativamente da clandestinidade”.27 Também ignora, por exemplo, que o grupo terrorista de influência católica, Movimento 30 de Novembro, escondeu mais de uma tonelada de explosivos trazidos pela CIA “no porão de uma igreja da capital”.28 Monsenhor Román negou para nós muitas coisas que são tão reais como as palmeiras de seu país. Isso fazia com que a cada minuto que passava, sua fala pausada e cerimoniosa nos incomodasse mais e mais. Por acaso não é certo que assim que os “Barbudos” tomaram o poder, começou-se a articular a Conspiração Trujillista? Muitos textos contam que o padre Ricardo Velazco era o contato para a entrada das armas. Velazco foi detido em agosto de 1959, quando chegava clandesti27 Idem. 28 Idem. 34 namente a Cuba para os últimos detalhes. Também se sabe que dois padres desembarcaram, e foram capturados, junto com os mercenários da invasão pela Baía dos Porcos. Que naquele mesmo ano de 1961 foram presos três prelados espanhóis e um cubano, “por servirem de capelães de grupos armados”.29 Nem o chefe contra-revolucionário, Manuel Artime, chegou a negar que os jesuítas tenham facilitado sua entrada na Embaixada estadunidense, disfarçado de jesuíta. E que estes padres, com agentes da CIA, levaram-no clandestinamente para os Estados Unidos, em dezembro de 1959.30 Naturalmente, Monsenhor Román é um dos poucos que ignoram o quanto a contra-revolução foi golpeada durante a década de setenta, com a partida de tantos religiosos: “a resistência começou a perder um de seus pontos de apoio mais significativos”.31 Em março de 1966, um dos últimos “apoios” foi dado pelo franciscano Miguel Ángel Loredo. Ocultou em seu convento um contra-revolucionário que, não tendo conseguido seqüestrar um avião, assassinara o piloto e mais um membro da tripulação. E como Monsenhor Ramón não sabia de nada disso, decidimos não lhe perguntar sobre a Operação Peter Pan. Mas depois, por um folheto que nos deu, soubemos que sim, sabia dela. Para Monsenhor Román e outras autoridades eclesiásticas do exílio, Peter Pan foi “um exemplo notável dos frutos obtidos graças à vontade e à organização da sociedade civil dentro da Ilha, e à solidariedade humana e 29 El Nuevo Herald, Miami, 21/12/1997. 30 Haynes Johnson: “Testimonio de Manuel Artime Buesa”, en La Baie des Cochons. L’invasion manquée de Cuba. Ed. Robert Laffont, Paris, 1965. 31 Enrique Encinosa. Obra citada. 35 eclesial fora”.32 Mas foi mais claro algumas linhas depois, reconhecendo que “foi realizada por meio de uma rede de pessoas na Ilha, da Igreja católica e do governo norteamericano (...)” A Operação Peter Pan, na versão correta, foi uma das ações de guerra ideológica e psicológica mais suja que o governo estadunidense realizou contra a Revolução cubana. E onde a participação das diferentes igrejas, em particular a católica, foi fundamental. A história é simples. Em janeiro de 1961 começou uma gigantesca propaganda onde se assegurava que o “comunismo” arrebataria os filhos dos pais, assumindo o pátrio poder, para enviá-los aos paises socialistas e doutriná-los. Foram então dados amplos poderes a Monsenhor Bryan Walsh para que concedesse visto a qualquer criança cubana entre seis e dezesseis anos. Aterrorizados, os pais aceitaram a dura separação. O Catholic Welfare Bureau destacou-se nesse trabalho sujo. Não só recebia as crianças em Miami, como montou uma rede clandestina de ajuda interna, para facilitar a saída do país de milhares delas. O principal integrante da rede era o movimento terrorista Resgate Revolucionário, dirigido de Miami pelo ex-senador aliado de Batista, Antonio Tony Varona, membro da CIA e sócio do poderoso mafioso Santos Trafficante.33 A aristocrática família do ex-presidente cubano, Ramón Grau, encarregou-se da maior parte dessas saídas, apoiando-se nas embaixadas da Gran Bretanha e da Espanha, 32 “Creced. documento final”, en Conclusiones del Encuentro Internacional de las Comunidades de Reflexión Eclesial Cubana em la Diáspora, Ed Creced, Miami, 1993. 33 A relação entre Varona e Trafficante ficou evidente no Relatório de Comissão Especial do Senado estadunidense sobre conspirações para assassinar dirigentes de outros países, Washington, novembro de 1975. 36 principalmente. Aos Grau se uniram “dezenas de sacerdotes católicos e ministros protestantes...”34 A rede incluía as linhas aéreas Pan Am, estadunidense e KLM, holandesa. Vistos às centenas foram enviados a Cuba. Mas quando não bastaram, devido à demanda crescente, “o movimento decidiu falsificar seus próprios vistos dentro da Ilha”.35 Entre janeiro de 1961 e outubro de 1962 foram autorizados quatorze mil, cento e cinqüenta e seis vistos. Crianças e adolescentes, ao chegar a Miami, eram internados em centros especiais, como parte de um programa chamado “Crianças desacompanhadas”, da Diocese de Miami. Esta operação recebeu uma publicidade internacional de impacto quando, num ato planejado, a primeira dama Jacqueline Kennedy visitou os acampamentos. 36 Em meados de 1961, a Operação Peter Pan se enquadrou na Operação Mongoose, dirigida pela Agência de Informação dos Estados Unidos. O último acampamento foi fechado em 1981. No livro Contra vento e maré,37 escrito por alguns dos jovens que viveram a experiência, diz-se: “A partida das crianças foi utilizada principalmente como campanha de propaganda. O que sairia dos acampamentos seria uma geração ferida”. Gostaríamos de ter perguntado muitas coisas a Monsenhor Román. Mas para que, se davam mostras de não saber do essencial, chegando ao cúmulo de negar que boa parte do exílio caracterizou-se por ser violenta e intransigente, porque os assassinatos e atos terroristas não ocorreram apenas durante a Guerra pelos caminhos do mundo. 34 Mignon Medrano: Todo lo dieron por Cuba. Ed. El Fondo de Estudios Cubanos da Fundación Nacional Cubano-Americana, Miami, 1995. 35 Enrique Encinosa. Obra citada. 36 Relatório da Comissão Especial do Senado estadunidense... Obra citada. 37 Grupo Areíto: Contra viento y marea. Ed. Casa de las Américas, La Habana, 1978. 37 Ficamos arrependidos de não ter perguntado a Monsenhor Román porque deu apoio e organizou preces em favor da liberdade do terrorista Orlando Bosch. E porque faz parte da direção de Of Human Rights, entidade criada pela já desaparecida organização terrorista Abdala. O que Monsenhor Román deixou transparecer é que compartilha do ambiente pessimista que existe entre muitos, com relação ao resultado que possa vir a ter a visita do Papa João Paulo II a Cuba, porque poucos ainda imaginam que o Pontífice tenha entre suas metas ajudar a desestabilizar o regime. Sabem que passaram por Cuba outros altos dignatários religiosos, como o Grão Rabino de Israel, sem que isso tivesse repercussões no sistema político, embora seja certo que não há outro guia espiritual com a projeção e a influência mundial do Papa. Há pesquisas, sem paixão política, que demonstram que a liberdade de culto sempre existiu em Cuba. De outra forma não se pode explicar a existência de cinqüenta e quatro religiões registradas oficialmente, inclusive algumas que, na Europa e nos Estados Unidos, são consideradas seitas. Não é segredo que o já falecido sacerdote Guillermo Sardiñas, embora tivesse patente de Comandante da Revolução, nunca deixou de oficiar missas, vestindo a batina verde oliva. Ou seja, há uma crença espiritual que parece não ter sido incompatível com a Revolução socialista. Embora tendo telefonado várias vezes, não conseguimos encontrar Monsenhor Román. Queríamos lhe perguntar o que pensava sobre o fato de ser um dos quatro religiosos, no mundo, proibidos pelo governo cubano de entrar na Ilha, durante a visita do Papa.38 38 O visto de entrada em Cuba foi negado a Monsenhor Agustín Román e a outro sacerdote da Ermida de la Caridad, Francisco Santana, devido a suas estreitas relações com a extrema direita do exílio cubano. O prelado Miguel Loredo e o cardeal da 38 – Monsenhor Román, ao ler vários livros escritos por pessoas que se dizem anti-castristas, é fácil concluir que boa parte dos sacerdotes católicos participaram e/ou apoiaram ações contrarevolucionárias durante a década de sessenta. E que os templos serviram para esconder armas e explosivos, com os quais foram realizados atentados terroristas. – Filhos, isso não é certo. Não sei de onde os autores terão tirado essa informação, mas não é certo. Mostrar o caminho do Reino de Deus é suficiente para um sacerdote. E, no meu caso particular, nunca tive comunicação política com ninguém. – Mas diz-se que, quando foram expulsos cerca de cento e trinta sacerdotes, e o senhor estava entre eles, a contra-revolução perdeu um de seus maiores apoios. – Repito-lhes que isso não é certo. Embora, desde antes do triunfo, víssemos que a Revolução tinha uma ideologia marxista, contrária aos princípios da Igreja, tínhamos tanto trabalho pastoral que não havia tempo para estar apoiando quem não estava com a Revolução. E, no que me diz respeito, ainda não sei porque me expulsaram. Creio que o governo queria que permanecessem Nicarágua, Miguel Obando y Bravo foram os outros dois padres que não puderam pisar território cubano. Loredo, por ter sido cúmplice de um assassino; o cardeal por suas posições ultra-reacionárias, além do apoio que deu à força mercenária da Contra. Como dado adicional sobre a viagem do Papa a Cuba, achamos importante destacar algumas linhas de um artigo publicado por Giulio Girardi no jornal El País, da Espanha, de 16.02.98. Girardi, que, com outros três teólogos conversou longamente com Fidel Castro sobre o que fora essa visita pastoral, escreveu: (Fidel) “estava convencido de que a maioria da população fora envolvida nas manifestações pelas organizações de massas e por suas próprias intervenções na televisão”. “Pareceu-nos (aos teólogos que o Papa não fora informado desse esforço de persuasão e de organização realizado pela revolução, pois freqüentemente dirigiu-se aos que estiveram presentes nas diferentes praças como se todos fossem católicos, quando, na realidade, a maioria não o era. Também é provável que a Igreja local tenha tentado atribuir-se, aos olhos do Papa, o principal mérito dessa mobilização popular (...)” 39 apenas uns poucos sacerdotes, sobretudo aqueles que estavam envolvidos com o ideal da Revolução. A Revolução quis fazer uma Igreja nacional, e para isso procuraram um bispo, mas nenhum se dispôs. Então, com uns poucos sacerdotes e um grupo de jovens leigos, criaram o que se chamou “Com a Cruz e com a Pátria”. Mas, que eu saiba, nenhum dos expulsos se prestou a ajudar os que puseram bombas. Isso foi uma invenção. – Monsenhor Román, apesar de ter sido expulso para a Espanha, porque decidiu vir para Miami? – Minha decisão de vir para esta cidade teve a finalidade de ajudar os exilados, enquanto esperava a queda do governo cubano. Mas ainda estamos aqui. – Comenta-se muito, nos Estados Unidos, como em muitos outros países, a intransigência e a violência deste exílio. Um exílio que, além do mais, está muito dividido. Como guia espiritual, qual é sua opinião? – Filhos, todo o exílio se une na busca da liberdade. Agora, creio que a intransigência do exílio é conseqüência do marxismo. Em Cuba as pessoas têm que pedir permissão para tudo, até para dançar. E quando chegam aqui, num país livre, percebem que podem falar como querem. Então se aliviam e discutem aos gritos. Só isso. Creio que existe uma imagem ruim do exílio, porque os europeus e os americanos não se dão conta que esse ardor é parte do sol do Caribe. – Mas afinal, Monsenhor, a intransigência se deve à influência do marxismo ou ao ardor do sol do Caribe? – A ambos. Filhos, é uma mistura. Aqui se discute por qualquer coisa, como se o mundo fosse acabar. Mas isso faz parte da cultura do Caribe, do latino. Agora, o fato de existir essa quantidade de grupos, creio que é parte da democracia. A democracia é a liberdade de pensar. Porque cada um pode 40 decidir como tornar Cuba livre. Mas aqui não há divisões, há diferentes formas de pensar, às vezes muito nervosas, insisto, do jeito caribenho. – Desculpe se repetimos a pergunta de uma forma mais direta: foi devido ao sol caribenho que o insultaram e tentaram agredilo fisicamente na rua, ameaçando-o de morte pelo telefone? E que a polícia protegeu essa Ermida devido às ameaças de bombas, tudo porque o senhor realizou uma campanha para enviar alimentos e remédios a Cuba, em 1996, quando passou o furacão Lili? – Não me parece que isso seja tão grave. Não, não. Foram simples ameaças, e um ou outro grito... Vocês sabem que nunca falta um louco neste mundo. Creio que é a forma como alguns grupos se expressam. São simples gritarias, que assustam os europeus. Filhos, somos latinos, sempre exageramos. Se me ameaçaram, foi algo emotivo. Nada mais. – Mas, Monsenhor, não pode nos dizer que são simples exageros, pois aqui assassinaram muitas pessoas, a tiros ou com bombas. Até os escritórios do FBI foram atacados por terem realizado investigações contra líderes do exílio. – Puseram algumas bombas, mas nem tantas. Foram muito poucos os assassinatos políticos, ou por intransigência... Seja como for, deveriam buscar outra fonte de informação porque eu sei muito pouco sobre isso. Mas olhem, quando esses delitos foram cometidos, as pessoas protestaram. Mas eu não sei de nenhum grupo que tenha atentado contra alguém. Não creio que neste exílio exista um grupo com coração para fazer mal a outro. – Monsenhor Ramón, em alguns setores, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, pensa-se que a visita do Papa a Cuba acarretará efeitos desestabilizadores. Chegou-se a dizer que o Papa desempenhou um importante papel nas mudanças em 41 direção ao capitalismo que ocorreram na Polônia, e que, portanto, o mesmo poderia suceder em Cuba. Qual é a sua opinião? – Filhos, o Santo Padre vai a Cuba porque o povo o espera há vários anos. Mas não creio que o Papa vá questionar o sistema cubano. E se o fizer será para reafirmar o que já disseram e fizeram os grupos de direitos humanos. Mas Cuba não é a Polônia. Na América Latina as raízes da evangelização só têm quinhentos anos; na Polônia, tinham um milênio. A evangelização na Polônia já estava na idade adulta. Por isso a mensagem do Papa na Polônia foi preciosa, como uma aula de história, em que lhes recordou muitas coisas. – Mas é mais fácil convencer uma criança que um adulto. – Não creiam. Além disso, o povo cubano recebeu mais ideologia marxista que o polonês. Segundo o que entendi do comunismo, pois não sou especialista nisso, na Polônia o marxismo foi imposto às pessoas. Parece que em Cuba, a Revolução foi mais inteligente e comprometeu o povo. Agora, lamentavelmente, a visita do Santo Padre a Cuba não terá o mesmo efeito, impacto para ajudar a desestabilizar o governo. Veremos isso nos próximos anos. O discurso do Santo Padre não será novidade para os cubanos, porque este povo já ouviu muitas mensagens da Igreja, pelas rádios no exílio, e que sem dúvida fizeram-nos pensar. A mensagem do Papa, como sempre, será de amor, reconciliação, esperança e caridade. Ao povo cubano já foram chegando outras mensagens, para ajudá-lo a abrir os olhos. E isso até a imprensa européia tem feito, quando passa por Cuba: esses jornalistas falam com as pessoas para que não continuem deixando-se enganar por esse sistema marxista. – Mudemos de assunto, Monsenhor Román. Parece-nos que a Igreja católica apóia os movimentos dissidentes em Cuba. 42 – A Igreja considera que esses grupos merecem respeito, sobretudo os que se preocupam com os direitos humanos. Porque esse é um tema muito importante para a Igreja. Mas a Igreja como tal não apóia nenhum. – Mas até onde sabemos, o senhor e outros religiosos fazem transmissões para Cuba, seja pela Rádio Marti ou por La Voz del CID, apoiando os grupos que se proclamam cristãos. – São coisas mínimas. Nossa tarefa fundamental é levar a todos a mensagem do Reino de Deus. – Monsenhor Román, conte-nos, qual é a situação atual da Igreja católica em Cuba? – A Igreja passou por certos processos. Primeiro sofreu perseguição, época em que perdeu colégios, hospitais, asilos, todas as instituições, permanecendo com os templos e o culto, pois tudo o mais passou para as mãos do Estado. E isso provocou um terror tremendo, pois a ilusão da Revolução era fazer o homem novo, o marxista, o homem científico, como dizem eles, fazendo esquecer o espiritual. Por muitos anos a Igreja ficou sem forças. Mas desde finais dos oitenta, teve um novo despertar, deu pequenos passos, e creio que agora tem muitos fiéis. E isso se deve a que há anos não sofre repressão. Mas a Igreja tem apenas os templos, embora possa publicar folhetos para distribuir. – Finalmente, Monsenhor Román, como o senhor vê o futuro de Cuba? – Pode ser... Filhos, em pesquisas que temos realizado entre os crentes e em reflexões teológico-pastorais, ficaram patentes as analogias entre o exílio cubano e o Êxodo e a Diáspora, narrados na Bíblia. Isso nos reafirmou a crença que têm muitos cubanos, de que o que ocorreu em Cuba não foi por casualidade, mas que por trás de tudo isso existe um plano divino, segundo o qual Deus espera algo especial do povo cubano. 43 Mas, filhos, não é tão fácil. Talvez, há alguns anos, eu visse o futuro mais fácil. Só acredito que o sistema deve cair, de um momento para o outro, ou lentamente, mas reconstruir uma sociedade depois que passou pelo marxismo, não é fácil. – Mas até neste exílio de Miami, poucos se atrevem a negar que o atual sistema político cubano deu coisas muito positivas para o povo. – Mas, por exemplo, o valor da família se perdeu. Prova disso é a quantidade de casais que se divorciam. Filhos, em Cuba casam-se, divorciam-se, voltam a se casar. Tudo muito facilmente. Ou nem se casam, são simples uniões. E isso não pode ser assim. Mas não são culpados: é o marxismo. – Monsenhor Ramón, nos Estados Unidos e na Europa ocorre a mesma coisa. – Sim, mas não com tanta facilidade. Embora não por isso a Igreja o aceite. Outra coisa que se perdeu no povo cubano, devido ao marxismo, foi a criatividade. Deus pôs no homem uma grande criatividade que, com o marxismo, não pode se desenvolver. E isso se vê nos cubanos que chegam aqui. Durante um certo tempo, é difícil para eles acostumarem-se com este país: acham que o governo tem que continuar a dar-lhes tudo. São pessoas dependentes. Têm o complexo estatal. E para que ocorra uma mudança em Cuba, deve-se começar a tirar essa mentalidade de dependência, porque o Estado não deve continuar dando-lhes desde trabalho, até comida, educação e saúde. Filhos, quando eu era garoto, queria estudar. Mas, claro, era muito difícil, porque devia ir do campo a um povoado, onde pegava o ônibus para chegar a Havana. Eu fazia sacrifícios porque, além do mais, tinha que voltar e trabalhar em minha casa. Não me davam nada de graça. 44 Mas em Cuba, não: a Revolução põe tudo nas suas mãos. A pobre criança não percebe que é preciso merecê-lo. E esses técnicos, cientistas e esportistas que Cuba tem, ganharam tudo muito fácil. Assim ficam dependentes desse sistema. 45 II “Nós agimos dentro da Lei americana. Nos acampamentos, o máximo que temos são armas semi-automáticas. De boa pontaria, é claro.” Andrés Nazario Sargén Secretário geral do grupo paramilitar Alpha 66 Eram onze da manhã quando chegamos à sede da Alpha 66, situada no setor conhecido como Pequena Havana. O amigo cubano que nos transportara se desculpou por deixarnos a três quadras dali. Apesar de estar contra Fidel Castro, não teve problemas em reconhecer o temor que lhe infundem todas as organizações contra-revolucionárias, que considera uns bandos de loucos. Três meses antes, haviam jogado um coquetel Molotov numa casa da vizinhança, pelo único motivo aparente de que seu proprietário enviara uma carta a um jornal, criticando alguns líderes do exílio. Então, não queria que, se nos deixasse em frente à Alpha 66, anotassem a placa de seu carro e, se não gostassem da entrevista que publicássemos, fossem buscá-lo para cobrar. Pareceu-nos um exagero, mas respeitamos sua decisão. Na porta havia dois homens conversando. Perguntamos pelo senhor Nazario Sargén. Muito amavelmente nos disseram que estava nos esperando. O lugar é muito modesto. A maior 47 parte das paredes da sala estava forrada com fotos lembrando reuniões, treinamentos militares e militantes, “caídos em combate”, ou presos em Cuba. Quem atuava como recepcionista anotou em um caderno nossos nomes e a hora da chegada. Poucos minutos depois apareceu um homem pequeno, de óculos e aspecto inofensivo que, sorrindo, se apresentou como Andrés Nazario Sargén. Sem mais preâmbulos, levou-nos até um pequeno cômodo cheio de papéis, onde nos serviu uma xícara de café perfumado. Em nenhum momento deixou de falar, a tal ponto que tivemos que lhe pedir que esperasse, enquanto púnhamos o gravador para funcionar: depois de nos cumprimentar, já tentava nos convencer das “vitórias” de seu grupo na “guerra” contra o governo de Fidel Castro. Com seus setenta e cinco anos, sentado diante de nós, parecia um avô, incapaz de fazer mal a alguém. Sorrindo constantemente, era difícil pensar que se tratava de um chefe do grupo paramilitar mais popular de Miami. Nazario Sargén, na época do triunfo da Revolução e depois de participar da II Frente do Escambray, decidiu fugir para os Estados Unidos. Pouco depois fez parte do núcleo fundador da Alpha 66. Nazario não perde oportunidade para lembrar que seu grupo nunca teve a ver com a CIA, e chega até a negar documentos da própria Agência que o afirmam. Ex-militantes do grupo garantem que Nazario e outros dirigentes da Alpha recebiam dinheiro da Agência para que se dedicassem exclusivamente a preparar ataques terroristas contra Cuba.39 Os princípios neofacistas da Alpha 66 levaram sua militância a enfrentar os grupos que se opunham à guerra no Vietnam. Em cidades como Los Angeles, Nova Iorque e 39 Roberto Orihuela: “Testimonio de Enoel Salas”, en Nunca fui un traidor. Retrato de un farsante, Ed. C. San Luis, La Habana, 1991. 48 Washington, agrediram violentamente os manifestantes, que classificavam de parte do “Movimento comunista internacional”. Afirmavam que, no Vietnam, lutavam “americanos e também cubanos, por algo tão sagrado como a liberdade”. 40 “Nazis e cubanos atacam os pacifistas”, foi um título do Los Angeles Times na época. No início da década de setenta, a fascista Liga Mundial Anticomunista (WACL) aceitou em seu seio a Alpha 66, e, em um ataque de delírio, durante o VI Congresso, realizado no México, em 1972, houve consenso em “pedir à OEA que o posto vago de Cuba comunista fosse ocupado pela Alpha 66”41. Nazario não pôde comparecer a esse Congresso, nem tão pouco ao regional no Brasil, em 1974, porque não obteve visto de saída. De fato, pois existia “uma ordem de Washington no sentido de que POR RAZÕES DE SEGURANÇA NACIONAL (maiúsculas no original), o governo dos Estados Unidos proibia que o visto fosse dado”.42 Mas, depois, pôde comparecer a outros eventos desta organização. A investigação realizada em 1975 por uma Comissão Especial do Senado estadunidense chegou à conclusão que um dos grupos do exílio que tinha “motivos, capacidade e recursos” para assassinar o presidente Kennedy era a Alpha 66. Apesar disso – e para citar apenas um exemplo – a Miami City Commission concedeu-lhe uma subvenção de cem mil dólares em 1982. Durante a mesma investigação veio à luz que o grupo havia participado, junto com a CIA, de pelo menos dois atentados contra a vida de Fidel Castro. 40 Miguel Talleda: Alpha 66 y su histórica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995. 41 Idem. 42 Idem. 49 Jornalistas como Manuel Abadia, do Excelsior do México, e o estadunidense Jack Anderson, classificaram a Alpha como instrumento da CIA. Abadia foi assassinado em 1984, quando denunciava os “desalmados capangas assassinos” da Alpha e suas relações com a extrema direita mexicana. No final dos anos 80, correu em Miami que a Alpha 66 tinha pensado em atentar contra a vida de Jorge Mas Canosa, devido à liderança e controle que o chefe da Fundação Nacional Cubano Americana (FNCA) quis impor aos demais grupos contrarevolucionários. Mas o impasse foi rapidamente solucionado. Embora Nazario tenha continuado criticando os sócios da Fundação, as relações são de colaboração. Brilham os olhos de Nazario que se orgulha da “ação constante” que mantém contra o regime de Fidel Castro. Operatividade que se traduz em metralhar, muito esporadicamente, de lanchas velozes, indefesas embarcações pesqueiras. Depois este procedimento criminoso é apresentado como grande façanha militar, conseguindo incentivar o sentimento bélico que os dirigentes do exílio inculcaram, principalmente em seus compatriotas de Miami. Sabem que os ingênuos trabalhadores lhes enviarão sua contribuição financeira, o que lhes permitirá continuar vivendo comodamente e sem esforço. Aproveitando as facilidades proporcionadas por todas as Administrações estadunidenses desde os primeiros dias da Revolução, Alpha 66 e outros grupos paramilitares organizaram campos de treinamento em várias regiões do país, especialmente na Flórida. Neles se deu preparação militar a grupos fascistas mexicanos, vietnamitas, sulcoreanos y contras nicaragüenses. Nos arrabaldes de Miami armaram os campos mais visitados pela imprensa na última década. Nazario se ofereceu para levarnos a um deles. 50 No domingo seguinte, conduziu-nos até um lugar situado a uns quarenta e cinco minutos de Miami. Ao descermos, a primeira coisa que fizemos foi sacudir-nos, pois parte do percurso foi feito por um caminho não pavimentado, e a poeira entrava no modesto carro de Nazario por todos os lados. Na entrada do acampamento havia três homens armados, passeando sob os mastros das bandeiras estadunidense e cubana. Dentro, quase vinte indivíduos entraram em formação e Nazario passou-os em revista. Em seguida, dirigidos por um ex-instrutor das Forças Especiais estadunidenses, exercitaram-se durante uns trinta minutos. À primeira vista não parecia que dali pudesse sair nem um comando, capaz de atemorizar as forças da Segurança cubana. A maioria passava dos quarenta anos, e não poucos tinham dificuldade para correr cem metros, estender-se no chão, disparar, levantar-se e tornar a correr com a mínima destreza necessária a um assalto. Não há dúvida que o matraquear das armas semiautomáticas martelaram duramente nossos ouvidos. Mas tudo nos pareceu mais um bom pretexto para encontrar os amigos no final da semana. E, ao mesmo tempo, nos impressionar. Quando terminou a demonstração, ofereceram-nos um gigantesco e delicioso sanduíche. Enquanto o consumíamos, não perdíamos de vista um garoto de no máximo dez anos, cujo pai ensinava-o a disparar uma pistola. Seu irmão, um pouco maior, melhorava a pontaria utilizando um fuzil. Ambos usavam uniforme de camuflagem. Entre a ida e a volta a esse lugar, completamos a entrevista com Andrés Nazario Sargén. – Comecemos com uma pergunta elementar. Como nasceu a Alpha 66? 51 – Quando eu e um grupo de doze oficiais percebemos a entrega de Castro à URSS, decidimos sair clandestinamente para os Estados Unidos. Aqui fomos internados em uma instalação militar, pois não confiavam em nós. Uns meses depois veio o desastre da Baía dos Porcos, e naquele momento nos deixaram livres. – Desculpe se o interrompemos, mas qual era o ânimo dos exilados diante da derrota da Baía dos Porcos? – As pessoas não acreditavam mais em nada, todos estavam em estado depressivo. Os cubanos, em sua maioria aliados de Batista, diziam que, se com todos os recursos com que contavam os americanos, não se lograra derrotar Castro, os liquidados éramos nós. Então decidimos organizar um movimento novo. Daí o nome de Alpha, que quer dizer princípio. O número 66 se refere às pessoas que fizeram parte inicialmente, em Porto Rico, no final de 1961. Dedicamo-nos a organizar, não uma invasão, que já provara ser ineficaz, mas algo com uma estratégia e um pensamento novos, com um modo de luta para não sermos derrotados nunca. E podemos dizer que em todos estes anos perdemos batalhas, mas não fomos derrotados. – Não foram derrotados, mas Fidel Castro, que é o pesadelo de vocês, continua aí. Mas, o que propunham naquele momento? – Ouçam, Castro não se foi, mas nós tampouco desaparecemos. Naquele momento propusemos uma guerra irregular, cubana, sem pedir licença aos americanos, com recursos financeiros e humanos próprios. Também estávamos certos que em Cuba devia criar-se uma organização para derrotar Castro a partir de dentro. E não nós, mas o povo de Cuba. Nós éramos fatores, apoio. Mas para isso devíamos desencadear 52 ações militares que criassem uma mística, uma lenda, pois sem ela os povos não se levantam. – Senhor Nazario, já se aproximam os quarenta anos da Revolução e o povo não se levanta. Não é uma derrota? – Não. Sabemos que o povo cubano acredita na Alpha. Que continua fazendo pequenas sabotagens, seguindo nossas palavras de ordens, preparando o terreno para o levantamento. – Supomos que durante esses anos o governo estadunidense lhes ofereceu todo tipo de apoio. – Sim, mas não nos termos que vocês imaginam. Começamos com ações tipo comando. Nos dois primeiros anos realizamos quatorze ataques. O governo norte-americano começou a intervir em nosso trabalho, seguramente porque nos viram muito independentes. Começaram a prender nossa gente, mas sem condená-los nem tirar-lhes as armas. Desaparece Kennedy e a situação piora. Mas continuamos, e vários de nós fomos para a cadeia. Além disso, conseguir os recursos necessários não era nada fácil. – Ou seja, não tinham boas relações com a CIA, que controlava todas as ações contra-revolucionárias. – Não tínhamos más relações com a CIA. Às vezes chegavam averiguando coisas e até nos amedrontando. Em todos estes anos nos fizeram várias ofertas. Propuseram-nos trabalhar em conjunto, mas lhes dissemos que não queremos vínculos com nenhum governo. Mas lhes pedimos que não nos persigam, não tirem nossas armas, nem embarcações, nem as instalações de rádio. Sempre lhes propusemos que, se de fato têm vontade de ajudar-nos, larguem umas armas por aí que iremos buscá-las. Disseram-nos que não havia problema quanto a isso, mas qual era o salário que queríamos. Sabiam que com esse salário nos impunham um compromisso. E quanto a isso não havia discussão. 53 – Sabe-se que o governo cubano protestava contra as ações realizadas pelos exilados a partir do território estadunidense. Isso repercutia para vocês? – Quando Fidel protesta vêm o FBI, a CIA e até o Serviço de Alfândega para revistar tudo. Dizem-nos que é proibido utilizar o território americano para agredir um Estado com o qual não estão em guerra. E, ouçam, eles podem não estar em guerra contra Castro, mas nós estamos. – Segundo sabemos, vocês têm transmissões de rádio para Cuba. Continuam sendo incomodados por isso? – Não, isso foi acertado. Vieram aqui e nos disseram que, se tornássemos a ir ao ar clandestinamente, nos punham na cadeia. Então, agora, temos que pagar vários milhares de dólares para que nos deixem transmitir para Cuba. Acreditam? Agora é uma emissora comercial. – Além disso, vocês treinam perto de Miami com armas de verdade, balas de verdade, uniformes de campanha. Ou seja, contam com a cumplicidade de Washington. – Mas isso é legal! Agimos dentro da Lei americana. Nos acampamentos o máximo que temos são armas semiautomáticas. De boa pontaria, é claro. – Além de operações comando, realizaram outro tipo de ação militar, por exemplo, atentar contra Fidel Castro? – Fizemos várias tentativas para matá-lo, até mesmo dentro de Cuba. Eu mesmo participei de um atentado contra Castro em Nova Iorque, mas o FBI nos descobriu. – Senhor Nazario, o chefe do FBI encarregado da segurança de Fidel Castro naquela ocasião disse a uma comissão do Congresso que o atentado fora organizado pela CIA. – Isso não é verdade. Fomos nós: todos cubanos. Mas aonde se chegou mais perto foi no Chile, em 1972. Montamos uma pistola em uma máquina fotográfica e 54 registramos um homem nosso como jornalista; mas, chegado o momento, não atirou, preferiu ir embora. O que acontece é que matar Castro é morrer: é preciso ter muita coragem. – Mas segundo documentos da CIA que foram tornados públicos, também foi ela que organizou esse atentado. – Repito-lhes: não é certo. Foi gente da Alpha. Mas é possível que a CIA tenha querido roubar a autoria. – Vocês fizeram parte da Liga Mundial Anticomunista, onde... – Sim, é verdade. Participamos da Liga Mundial Anticomunista, mas sempre me pareceram muito reacionários; além disso, falavam muito e davam pouco apoio real. Por isso rompemos com eles. Estivemos lá por que podiam fazer denúncias. Vocês sabiam que participavam da Liga até altos dignatários da Igreja católica e políticos reconhecidos mundialmente? – Sim, sabemos, embora não com a sua precisão. Mas vamos a outro assunto. Senhor Nazario, o que deve fazer Fidel Castro para iniciar as mudanças que vocês querem? – Em primeiro lugar e, sobretudo, deve organizar um governo provisório e ir embora de Cuba. Não há outra solução. Ele e sua camarilha, que são uns oitenta ou cem, têm que desaparecer da Ilha... Nós temos apenas uma meta: acabar com Castro. Se for preciso matá-lo, não importa. Mas tem que desaparecer. E não pensem que sou um criminoso. – E, atualmente, realizam ações militares contra o regime cubano? – Nós entramos em Cuba, embora sempre tenham nos flagrado, razão pela qual temos muitos presos e mártires. Mas conseguimos criar um movimento espontâneo no interior, porque noventa e cinco da população está contra Castro. Sabemos que se criaram muitas células clandestinas de Alpha 55 66, constituídas por uma única pessoa, pois quando há mais de três são rapidamente destruídas. O problema é que o sistema de repressão de Castro é eficaz... – Ousamos pensar que se os localizam com tanta facilidade, é porque existe uma colaboração estreita entre a população e os serviços de segurança... – Sim, também pode ser. Mas nós, na base de sabotagens, tentamos destruir a economia, não para fazer o povo passar fome, mas para acabar com a base econômica que sustenta Fidel. E, isso, estamos conseguindo. Hoje, Fidel não pode nem manter seu esquema militar, não pode enfrentar ninguém, porque não tem peças de reposição para o armamento. – E se sabem que está assim, se a defesa cubana está tão limitada, porque vocês não intensificam suas ações, ou a Casa Branca não ordena uma invasão? – Já lhes disse que os americanos nos mantêm sob vigilância. E os americanos não invadem porque, depois de Praia Girón, procuram soluções políticas. – Se Fidel Castro se vai, morre ou o derrubam, o que acontecerá? – Tudo depende de quem tomar o poder. Porque se for um grupo que está manchado de sangue, a guerra vai continuar. Mas, se não for assim, esperamos que proponham encaminhamentos para um governo de transição que convoque eleições. – Temos três últimas perguntas muito precisas. Os inimigos de Fidel Castro continuam afirmando que foi ele que fez desaparecer, por ciúmes do poder, o Comandante Camilo Cienfuegos. O senhor, que esteve próximo a Cienfuegos, e que considera Fidel Castro seu maior inimigo, que opina? – Vou ser sincero com vocês. Castro é meu inimigo, mas estou certo que nada tem a ver com a morte do Comandante Camilo Cienfuegos. Camilo, que eu admirava enormemente, 56 desapareceu no mar. Ajudei a procurar o aviãozinho durante vários dias. E nada. Que aconteceu? Naquele dia o tempo não estava bom. E quase todos os pilotos com que a Revolução contava eram aprendizes. Para mim, o mau tempo e a inexperiência do piloto foram os responsáveis. – A penúltima. Supomos que o senhor conhece as declarações da filha do Che, Aleida, em agosto de 1996. Disse que o escritor francês, Regis Debray, falou demais quando foi capturado na Bolívia, e que, por isso, seu pai foi localizado... – É o único ponto em que eu poderia concordar com a filha do Che. Jamais concordei com o Che, por ser igual a Castro, mas nem por isso posso desconhecer que Debray foi um personagem sinistro e perigoso. Sabe-se que delatou por medo, sem ser realmente torturado. E delatou porque não acreditava nessa Revolução; porque embora se dissesse comunista, era um simples aventureiro, um oportunista. Não conheci Debray pessoalmente, mas soube que tinha um ego imenso, e achava que tinha poder suficiente para resolver nossos problemas... Repito: nunca concordei com o Che, mas os delatores como Debray não valem nada, são os piores seres humanos... – E a última pergunta. Senhor Nazario, gostaria que esclarecesse uma dúvida. Se puder, é claro. É verdade que o governo estadunidense pagava, ou paga, toda organização que diz lutar contra o governo cubano? – Olhem, repito: Alpha 66 nunca recebeu dinheiro dos americanos. Mas aqui, nos anos sessenta, todos os demais eram pagos. Os americanos davam dinheiro a qualquer organização para que se mantivesse. Hoje já não é tanto, embora pareça que na Europa andam ocorrendo algumas coisas. Mas até os anos oitenta, quase todas comiam na mão dos americanos. – O que está ocorrendo na Europa? – Ah! Que pena, vocês disseram que não tinham mais tempo. 57 III “E, para isso, os americanos e nós, o exílio,temos que buscar o apoio dos europeus, porque são mais bem vistos em Cuba”. José Basulto. Ex-membro da Brigada 2.506 Diretor de Irmãos para o Resgate, HAR No dia seguinte ao de nossa chegada em Miami, encontramos um vendedor ambulante de jornais. Não era preciso pedir sua carteira de identidade para saber que era um jovem cubano. Pareceu-nos estranho que em um país que se vangloria de dar tudo que for necessário aos que chegam da Ilha, o rapaz estivesse exercendo essa atividade, própria dos setores mais pobres da sociedade estadunidense. Então, de repente, ocorreu-nos fazer um concurso: qual de nós dois encontrava mais cubanos vendendo flores, amendoim, cigarros, pão, torresmos, doces, em qualquer rua. Antes de acabarem os doze dias, desistimos, porque já perdêramos a conta. Não foi preciso caminhar muito pela cidade: a popular Rua Oito – South West, 8th Street – basta para saber que Miami deixou de ser o paraíso prometido aos que saem de Cuba. Também não vamos dizer que são milhares. Milhares e milhares são aqueles que, por quatro dólares e cinqüenta por hora, arrebentam as costas nas fábricas. Uma quantia que dá apenas 59 para sobreviver. Como disse o jornalista cubano-estadunidense Luis Ortega, no jornal La Prensa, de Nova Iorque: “esse exílio, cuja imagem era a de ricaços aliados de Batista, fugidos de Castro, já não corresponde à realidade. Hoje a maioria é classe operária que vive em casas humildes em Hialeah”. Em Miami, a grande maioria dos imigrantes vive frustrada porque Fidel Castro, que responsabilizam por todos os males, continua no poder. Mas não querem voltar. Embora tenham saudades da Ilha, estão mais preocupados com seu futuro em um país que, cada dia mais, fecha-lhes as portas e lhes nega oportunidades. A chamada Pequena Havana, no centro da cidade, é o retrato da atualidade. Há dez anos era o lugar ideal para se viver e divertir. Hoje, as lojas têm grades e sistemas de segurança: a delinqüência cresceu enormemente, por causa das dificuldades econômicas. É comum encontrar mendigos e loucos. Para boa parte da classe média não restou outra alternativa senão escolher lugares mais afastados para viver e se divertir. Em 1961, poucos minutos antes de deixar o aeroporto de Havana, ouvia-se a voz do presidente Kennedy dando as boas vindas aos que fugiam, ao mesmo tempo em que os animava para que acolhessem com fé e entusiasmo essa oportunidade de começar uma nova vida nesse país.43 Foram considerados combatentes pela liberdade. Automaticamente adquiriam a residência e sem maiores dificuldades, a nacionalidade. Durante muitos anos tiveram prerrogativas de que nenhuma outra nacionalidade do continente desfrutava. Era normal: o império devia apoiar os que se ofereciam para ser inimigos de seu inimigo. Desde que o governo revolucionário reivindicou sua soberania, o estadunidense começou uma enorme campanha 43 Idem. 60 psicológica de difamação, desinformação e provocação. Um de seus objetivos era incentivar a saída de cubanos, como forma de demonstrar que o sistema é incompatível com sua população. Para tanto utilizou os meios de comunicação, principalmente o rádio. Um tal “Pepito Pérez” é entrevistado pelas tantas emissoras dedicadas a tal tarefa; supostamente chegou há dois dias e já está trabalhando em uma empresa com salário de vários milhares de dólares mensais. Nos Estados Unidos, alardeiam os locutores, com um “pequeno esforço”, pode-se conseguir facilmente ser gerente de uma grande indústria ou montar a própria. Que pena, diz uma voz feminina ao microfone, que as cubanas na Ilha não possam desfrutar dos lindos vestidos que nós podemos usar nesta temporada. O resultado obtido foi que, em 1980, saíram pelo menos duzentos mil cubanos pelo porto de Mariel. Quando os “marielitos” chegaram aos Estados Unidos, ao Panamá ou ao Peru, muitos foram retidos em verdadeiros campos de concentração, o que ocasionou revoltas, apaziguadas a bala e mortos. Argumentava-se que o governo cubano tinha aproveitado o êxodo para livrar-se de uma boa quantidade de delinqüentes, mas, “na realidade, em proporção ao número total, o número de criminosos era minoritário”.44 Em Miami, “centenas de marielitos morreram nos primeiros anos de exílio, esfaqueados em brigas, mortos em disputas, baleados pela polícia ou por outros criminosos. Centenas foram encarcerados por uma série de atos que incluíam furtos, estupros, tráfico de drogas e assaltos”.45 Os Estados Unidos lhes haviam oferecido tanto, que ao chegar, não encontrando o Eldorado, mas apenas esmolas, os “marielitos” tinham que explodir. Mas a explicação 44 Enrique Encinosa. Obra citada. 45 Idem. 61 dada foi um tanto simplista: “Existiam sérios problemas de adaptação a uma nova sociedade, em um país estranho, choques culturais, depois de ter vivido décadas sob a ditadura”.46 Seria preciso perguntar se era devido à “ditadura” ou, como disse Monsenhor Román, os cubanos da Ilha estão acostumados a que o Estado ponha tudo em suas mãos. Mas apesar de toda a problemática social criada por essa fuga em massa, os apelos ideológicos e psicológicos não cessaram. Ao contrário, aumentaram. Quando, em 1990, o governo de Cuba declarou o Período Especial, de Miami se bradava que, nos Estados Unidos, a água, a eletricidade, a carne, o frango, o leite, a roupa estavam sobrando. O que não transmitiam era que, para chegar a eles era necessário mais que um “pequeno esforço”. Assim criaram a chamada crise dos balseiros. Essas pobres pessoas que subiam em qualquer coisa que flutuasse, com a intenção de chegar a desfrutar dos privilégios oferecidos no paraíso estadunidense, que, na época existiam apenas nas mentiras dos agitadores. Os primeiros balseiros foram recebidos como heróis. Mas quando, em poucos meses, já chegavam a quatrocentos, Washington mostrou sinais de preocupação. E os cubanos de Miami começaram a se sentir incomodados pelos balseiros, a tal ponto que, para desejar mal a alguém já não se dizia “que um raio o parta”, e sim “tomara que caia um balseiro em sua casa”. Quem soube tirar uma bela azeitona da empadinha que o desespero dos que fugiam significava, foi José Basulto. Ele entrara em Cuba em 1960, como parte das unidades de infiltração, encarregadas dos preparativos para a invasão pela Baía dos Porcos. Seu número de identificação na Brigada era o 2.522. Ou seja, fora o 22o cubano a ser recrutado para a 46 Idem. 62 CIA. Semanas antes e depois da frustrada operação, os mercenários das unidades foram detectados e capturados. Basulto conseguiu escapar, fugindo para a zona naval de Guantánamo; mas continuou suas atividades contrarevolucionárias, realizando incursões pelas costas cubanas para atacar objetivos civis. Ainda que o negue categoricamente, parece que nunca se afastou totalmente da CIA. Sua participação na Contra anti-sandinista, força mercenária dirigida pelas altas instâncias do Pentágono, é prova disso. Andrés Nazario, da Alpha 66, nos disse que Basulto era um “mercenário voluntário, manejado pelos americanos”. Quando começou a crise dos balseiros, Basulto se uniu a outro veterano da CIA, Billy Schuss, especializado em infiltração e ataques comando e, juntos, conceberam Irmãos para o Resgate. Trata-se de uma organização composta por pessoas de várias nacionalidades, todas unidas “por seu desejo de aventura e por suas profundas convicções anticomunistas”47, aparentemente criada para salvar os balseiros das águas perigosas do estreito da Flórida. Efetivamente, resgatou vários deles, motivo pelo qual recebeu, da grande imprensa internacional e de instituições de direitos humanos, o título de “humanitária”. Mas, por trás de sua ação havia propósitos que nada tinham de altruístas. No final de 1994, o governo estadunidense, preocupado com a dimensão que estava tomando aquilo que ajudara a provocar, propôs a seu homólogo cubano a assinatura de um acordo migratório. Assim, desde maio de 1995, está proibida a entrada ilegal de cubanos nos Estados Unidos. No entanto, a prática demonstrou que todo aquele que tivesse interesse político ou publicitário contra o governo cubano continuaria sendo bem vindo. Seja como for, a partir daquele momento 47 El País, Madrid, 1o de março de 1996. 63 quem não correspondesse a essas necessidades já não era considerado “herói da liberdade que foge do comunismo”, mas classificado como “simples haitiano”, entregue imediatamente às autoridades cubanas, ou recluso provisoriamente na Base Naval de Guantánamo, em condições sub-humanas. Isso abalou a direção do exílio em Miami, que tomou os fatos como prova de aproximação entre Clinton e Cuba, e o começo do fim de seus privilégios. Urgentemente, reuniram-se cerca de vinte organizações, conhecidas por suas posições de extrema direita. Entre elas, a Fundação Nacional Cubano Americana, a Fundação Valladares, Alpha 66, Cuba Independente e Democrática (CID) e Irmãos para o Resgate. O encontro realizou-se na sede do grupo paramilitar Brigada 2.506, do qual José Basulto é um dos dirigentes. Como convidados especiais estavam o congressista Lincoln Díaz Balart, colaborador na redação da Lei HelmsBurton, e o terrorista Orlando Bosch. Inicialmente, o objetivo principal era unificar critérios e traçar uma linha de ação para pressionar a Administração estadunidense a recuar quanto ao pacto migratório. No entanto, uma vez mais, “o motivo do encontro era planejar a derrubada de Fidel Castro”.48 Quando se interrompeu o fluxo de balseiros, Irmãos para o Resgate viu sua existência em perigo. Para salvar-se, deu um novo conteúdo a sua missão: “Ser os olhos do exílio no estreito da Flórida para que os Estados Unidos e Cuba não violem os direitos humanos dos cubanos”.49 Mas realmente, Basulto e Irmãos para o Resgate continuaram a fazer o que já faziam, por trás do pretenso resgate dos balseiros: incitar o povo cubano 48 El país, Madrid, maio de 1995. 49 Idem. 64 a conspirar contra seu governo. Mas não só isso: segundo o agente da contra-inteligência cubana, infiltrado nessa organização, Juan Pablo Roque, Irmãos para o Resgate preparava ataques terroristas contra objetivos civis e militares na Ilha. Toda essa informação, mais a que reuniu de outras organizações, como a Fundação Nacional Cubano Americana, foi entregue ao FBI, para quem também trabalhava e em pagamento do que recebeu sete mil dólares, como reconheceu a própria Agência federal.50 Assim, repetidas vezes, e de forma provocadora, pequenos aviões violaram o espaço aéreo da Ilha, até que dois deles foram derrubados, em 24 de fevereiro de 1996. O agente Juan Pablo Roque regressara a Cuba na véspera. Em meados daquele ano, quando Irmãos para o Resgate iniciava outra campanha para reunir fundos, e assim continuar suas atividades ilegais, soube-se em Miami que a residência de Basulto custava mais de meio milhão de dólares. E, como ocorre com muitos líderes contra-revolucionários, não se sabia que tivesse um emprego que lhe permitisse tal luxo. A sede de Irmãos para o Resgate fica em um dos setores mais exclusivos de Miami. No escritório de José Basulto destacam-se as imagens de Cristo e Gandhi, assim como recortes da imprensa internacional onde se comenta, em grandes manchetes, a derrubada dos aviões. Acompanhava-o uma velhinha humilde, mãe de um dos pilotos mortos. Basulto insistiu para que a entrevistássemos. Nós o fizemos. Mas ela tinha muito pouco a dizer, além de expressar sua dor. Com ele falamos pouco. Respondia com muita segurança e voz enérgica, como se estivesse fardado. Infelizmente o convite de Balsulto não pôde concretizarse, devido a outro compromisso inadiável: naquele domingo 50 Le Point, Paris, 27 de julho de 1996. 65 voariam até perto do Paralelo 24 e estavam dispostos a levarnos. Claro que gostaríamos de ter ido. Mas com uma condição: Basulto deveria estar conosco, no mesmo avião. – Senhor Basulto, conte-nos como começou a atividade de Irmãos para o Resgate. – Antes de mais nada, quero esclarecer que embora digam que somos políticos, Irmãos para o Resgate foi uma organização humanitária. Fizemos o primeiro vôo de resgate de balseiros em 1991, em meu próprio avião. Pedimos ajuda à comunidade e ninguém nos ouviu. Mas foram aumentando os balseiros. Até que, em 1994, chegamos a voar umas trinta e duas missões por semana, a um custo de quase um milhão e trezentos mil dólares por ano. Naquele momento era uma operação já financiada totalmente pelo exílio, com contribuições de pessoas ricas, como a cantora Gloria Estefan, que doou um avião no qual, aliás, eu caí. Também American Airlines fez suas contribuições. – Qual é sua versão sobre a derrubada dos aviões em 24 de fevereiro de 1996? Os americanos e o governo cubano sabiam que íamos voar neste dia e ultrapassar o Paralelo 24, porque Juan Pablo Roque, um piloto cubano que foi recebido aqui como dissidente e herói, entregou para eles. Ele tinha se infiltrado entre nós, trabalhando para o FBI e para a inteligência castrista. – Mas, senhor Basulto, segundo alguns meios de informação, o FBI os tinha advertido de que nessa oportunidade os aviões seriam derrubados, porque o governo cubano já não agüentava mais tantas violações de seu território. Além disso, vários meios de informação afirmaram que por isso o senhor permanecera 66 cinco milhas atrás dos outros dois, fora dos limites cubanos, salvando-se. O piloto-espião, Roque, garantiu que o senhor ganhara quatro mártires... – Falso! Totalmente falso! Vejo que há muita gente trabalhando para os comunistas! – Desculpe-nos, mas foi o que lemos. Outros relatórios afirmam que os aviões de Irmãos para o Resgate violaram pelo menos vinte vezes o espaço aéreo cubano, e em quase todas essas ocasiões deixaram cair propaganda contra o governo. É certo? – Positivo. Uma delas foi em 13 de agosto de 1995, quando sobrevoamos Havana. Mas foi para distrair o esquema operativo militar cubano, dirigido contra várias embarcações do exílio. Também nos dias 9 e 13 de janeiro de 1996, aproveitando as condições meteorológicas e de altura, deixamos cair meio milhão de panfletos que continham mensagens simples... – Espere um momento, senhor Basulto. Essas embarcações estavam violando o espaço aéreo cubano. Ainda que estivessem tripuladas por exilados cubanos, tinham registro e bandeira estadunidenses. O senhor sabe muito bem que pretendiam provocar o governo de Cuba. Tentavam ver até onde agüentavam... – Sim, é verdade. Mas desejávamos celebrar e demonstrar apoio ao povo cubano. – Voltando ao assunto. Por que não derrubaram ou obrigaram a descer seus aviões em qualquer das ocasiões anteriores? Em qualquer outro país isso teria ocorrido. – Não sei! Não sei porque não nos derrubaram. E em quase todas essas oportunidades deixamos cair sobre Havana uns panfletinhos, os mesmos que jogávamos nos navios de guerra cubanos. A mensagem era simples, inofensiva, como por exemplo: “companheiros, não, irmãos”, querendo dizer que 67 não somos camaradas. Também lançamos outros que chamavam à desobediência civil... Depois, opositores, dissidentes do Concílio Cubano, jornalistas independentes, a quem estávamos dando nosso apoio, telefonaram para as rádios de Miami, para dizer que tinham recolhido vários deles e distribuído por outras pessoas. – Senhor Basulto, apesar de que violar repetidamente o espaço aéreo de um país para incitar a população contra seu governo é muito grave, não acha que deve ter havido outra razão para a derrubada? – Positivo. Estou certo que também foi por nosso apoio e financiamento ao Concílio Cubano e outras organizações de resistência no interior de Cuba. Porque queríamos, e queremos, ajudar a criar uma alternativa política ao governo de Castro. Por isso decidimos entregar vários milhares de dólares a Sebastián Arcos, como apoio ao Concílio Cubano, em um ato aqui em Miami. Sim, o mais importante para o governo castrista é que Irmãos para o Resgate se convertera em fator de desestabilização. Essa deve ter sido a razão principal para derrubarem os dois aviões. – Senhor Basulto, passemos a outro assunto. Desculpe-nos a pergunta, mas garante-se que Irmãos para o Resgate são financiados pela CIA. – Queremos que nos mostrem as provas! Porque nós, sim, temos provas de como nos financiamos! – Não apenas isso, mas que o senhor também é da CIA. – Essa é outra acusação que o governo de Cuba faz contra mim! Mas não só a mim, mas aos dirigentes do exílio, para desacreditá-los! E para isso dirigiram toda a sua máquina de relações públicas internacionais. – Ou seja, o senhor abandonou as relações com a CIA depois da Baía dos Porcos? 68 – Em 1961, eu, como os outros participantes da Brigada 2.506, trabalhamos com, não para, a CIA. Jamais, nenhum dos cubanos que na época representávamos os interesses de Cuba, trabalhamos para a CIA nem para o governo norteamericano. Pois isso teria sido uma baixeza de nossa parte. Estive sim com eles até novembro de 1961. Naquele momento lhes disse que estavam brincando com o povo cubano, que não havia uma verdadeira cooperação para conseguir a derrubada do regime. E que estavam provocando a morte e a prisão de meus compatriotas. – Desculpe-nos se insistimos, mas há documentos onde se diz que o senhor esteve no Brasil e na América Central por conta da CIA. – Isso é negativo, é falso. Não participei de nenhum tipo de atividade com os americanos, fora minha permanência de treze meses no Exército deles. – Mas, Senhor Basulto, não pode negar que esteve em Honduras, com a Contra nicaragüense. E está provado que a Contra estava sob total controle da CIA... – Eu, José Basulto, como pessoa individual, sem nenhum financiamento norte-americano, ajudei a Contra em Honduras, durante certo tempo. Fui parte de um operativo do exílio cubano. Dele participaram várias organizações; estive com a Brigada 2.506, da qual era diretor militar. – Desculpe, disse “diretor militar”? – Sim, positivo. Minha permanência em Honduras deveuse unicamente a razões humanitárias, ajudando a armar hospitais de campanha, na fronteira com a Nicarágua. Estive ali sob as ordens do coronel nicaragüense Enrique Bermúdez. – Passemos a outro assunto. Como o senhor explica que os Estados Unidos, primeira potência mundial, não tenham sido capazes de derrubar o governo de Fidel Castro? 69 – Os Estados Unidos têm uma grande responsabilidade na permanência do sistema político cubano. Em 1961, quando pela primeira e única vez o regime castrista se viu agredido militarmente, na invasão da Baía dos Porcos, os Estados Unidos abandonaram o povo cubano em sua busca da liberdade. Assim começaram a se criar condições para que esse regime se consolidasse no poder. No ano seguinte, houve a Crise dos Mísseis que os soviéticos queriam instalar em Cuba. E surgiu uma nova possibilidade de enfrentamento direto, mas os americanos, por temor ao que a URSS pudesse fazer, negociaram algo que não era deles: nossa liberdade. E desde aquela data os americanos se comprometeram a não intervir militarmente em Cuba. Mas tampouco deixaram que nós, os cubanos, independentemente, o fizéssemos. E assim acabou de se consolidar o regime castrista. Os Estados Unidos sabem que uma ação de envergadura contra Castro pode sair cara para eles: uma imigração em massa ou uma ação louca de Castro. Porque Castro tem equipamentos militares suficientes para bombardear a usina nuclear da Flórida, e outros objetivos estratégicos americanos. Hoje, uma invasão a Cuba custaria milhares de mortos. – Senhor Basulto, então, qual é a alternativa que o senhor vê para Cuba? – Estamos tentando derrubar esse regime. O povo cubano deve utilizar o desafio não violento sem que se descarte o uso da violência. Mesmo sabendo que atacar Castro militarmente é suicídio. Mas é preciso eliminar esse regime, eliminando Castro e sua camarilha de qualquer maneira. A mudança possível reside na possibilidade de a resistência interna conseguir estabelecer o espaço necessário para funcionar politicamente, ou seja, uma alternativa a Castro. Por isso devese continuar apoiando e fomentando os grupos de direitos 70 humanos: é a melhor arma contra esse regime. E para isso, os americanos e nós, o exílio, devemos buscar o apoio dos europeus, porque são mais bem vistos em Cuba. E isso está sendo feito, ainda que muito lentamente. – Senhor Basulto... – Proponho que continuemos em outra ocasião, porque agora devo encontrar-me com a advogada que está cuidando do caso dos aviões derrubados... 71 IV “Fico maravilhada com a hipocrisia européia! Lá os políticos tomam decisões sobre outros países conforme lhes convém”. NINOSKA PÉREZ CASTELLÓN - Membro da Diretoria da Fundação Nacional Cubano Americana,Jornalista e locutora da Rádio La Cubanísima. Diretora de La Voz de la Fundación,Emissora da Fundação Nacional Cubano americana “Estamos trabalhando com a possibilidade de que Castro já esteja morto”. ROBERTO MARTIN PÉREZ - Membro da Diretoria da Fudação Nacional Cubano Americana Enfim, na sexta chamada telefônica, a senhora Ninoska Pérez Castellón aceitou nos receber. Insistiu para que não chegássemos tarde, pois depois devia gravar um programa de rádio. Chegamos ao endereço que nos dera quinze minutos adiantados. Perguntamos ao motorista do táxi se ali era, de fato, a sede de La Cubanísima ou La Voz de la Fundación. Olhou-nos pelo retrovisor e secamente nos esclareceu que se tratava do edifício da Fundação Nacional Cubano América. Seria possível? Tínhamos levado mais de uma semana insistindo com duas secretárias para que obtivessem para nós uma entrevista com um dos altos dirigentes da Fundação. E nada. E tampouco permitiam que fôssemos até lá, pegar algumas de suas publicações. Sempre perguntavam para onde deviam enviá-las em Miami. O que não era possível, porque nenhum de nossos conhecidos, gente afastada dos debates histéricos e estéreis, desejava que seu endereço caísse naquelas mãos. 73 Enquanto uma câmara vigiava o grande estacionamento, outra se encarregava de seguir os passos de quem se aproximava pela frente. Chegamos a uma grande porta de vidro. De dentro, abriu-a um guarda encorpado. Impassível, informou-nos que a senhora Ninoska ainda não chegara, mas que aproveitássemos para anotar nossos nomes no caderno de registro e nos sentássemos para esperar. Assim fizemos, enquanto, de esguelha, víamos como uma terceira câmara nos observava. A senhora Ninoska chegou com dez folgados minutos de atraso. Cumprimentou o guarda. O homem nos anunciou. Ela voltou-se, para olhar-nos. Esboçou um sorriso, cumprimentou-nos e nos convidou a acompanhá-la. Quando a porta e a grade se fecharam às nossas costas, pensamos achar um corredor comprido, muito comprido, que no fim nos tragaria. Mas caminhamos apenas uns trinta metros, até a última porta à esquerda. Ali estava o escritório da diretora da Voz de la Fundación. Grande, um tanto robusta e com as mãos bem cuidadas, serviu-nos um perfumado café instantâneo. Devemos admitir que não estava em nossos planos entrevistá-la. Mas quando, no começo de uma tarde, ouvimos sua voz em La Cubanísima, decidimos fazê-lo. Porque nos surpreendeu. Cada palavra com que se referia ao governo cubano e, em particular, a Fidel Castro, saía repleta de ódio. Utilizando um vocabulário tal, que nos perguntamos como não foi censurada e, pelo contrário, recebeu o prêmio “Jornalista do ano”, outorgado pelo “Colégio Nacional de Jornalistas de Cuba”, com sede em Miami, em 1996. O certo é quando se sabe como as coisas acontecem em Miami, já não se faz nenhuma pergunta. Que autoridade se atreveria contra ela? Nem sendo prefeito dessa cidade, uma vez que é graças a ela e aos que a cercam que se chega a esse posto. 74 Ratificamos nosso desejo de encontrá-la ao ouvir a segunda parte de seu programa Aqui com Ninoska. Porque vão ao ar telefonemas de pessoas que se dizem dissidentes do interior de Cuba. Estes, que especificavam ser defensores dos direitos humanos ou jornalistas independentes, nos cerca de treze programas que ouvimos, tinham conteúdo idêntico e sempre negativo. Que na Ilha não havia sabonete, nem carne, nem leite; que a eletricidade e o gás estavam racionados; que o governo isto, que os serviços de segurança, aquilo. E, para terminar, unanimemente, se desdobravam em agradecimentos e elogios à senhora Ninoska, Mas Canosa e outros líderes contra-revolucionários de Miami, “por tudo o que fazem pela liberdade de Cuba”. Sem deixar de garantir que o exílio podia contar com suas organizações para o que fosse necessário. Naquele momento já haviam repetido seu nome e o de seu grupo várias vezes, como para que fossem muito considerados. Posteriormente, estes programas são retransmitidos para Cuba pela Voz de la Fundación. Claro, como o cubano é tão apaixonado e escandaloso ao falar, imaginem. E a senhora Ninoska acrescentava seu toque melodramático-incendiário. Não se pode negar que conviver com racionamento de carne e de sabonete não deve ser agradável. Ser perseguido pela polícia ou pelos vizinhos, menos ainda. Mas a locutora converte esses protestos em um show manipulador que faz crescer o ódio, dia a dia, dentro e fora da Ilha, contra o governo cubano. Antes de desligar, a senhora Ninoska aconselha-os a unir mais vizinhos à cruzada; a praticar a desobediência civil; a, sempre que possível realizar sabotagens ou pichações contra o governo. Tudo isso pelo rádio! Ao vivo! Mas não é tudo. A jornalista telefonou para o próprio Ministério do Interior, para o de Relações Exteriores, para o Comitê Central do Partido 75 Comunista, em Havana, entrevistando e criticando os funcionários, de maneira provocadora e durante muitos minutos. E eles atenderam e responderam. A única coisa que lhe pediam é que fosse decente quanto aos termos utilizados, ou seriam obrigados a desligar. Já estávamos há vários minutos dialogando com nossa entrevistada, que evitava, na medida do possível, utilizar os modos que a caracterizam pelo rádio, quando apareceu seu marido, Roberto Martín Pérez. Sem mais preâmbulos, depois de nos cumprimentar, sem pedir licença, interveio. Filho, como sua esposa, de um oficial de Batista, foi capturado em 1959, quando tentava entrar clandestinamente em Cuba como vanguarda da Conspiração Trujillista. No mesmo ano, Martín Pérez participara de um atentado contra o embaixador cubano em Santo Domingo. Depois de cumprir dezoito anos de prisão, foi libertado graças ao diálogo e a aproximação entre um setor do exílio e o governo cubano, em 1978. Em Miami, é temido até nos meios contra-revolucionários. Dizem que não tem escrúpulos para com os que se opõem aos planos da Fundação. As autoridades estadunidenses presumem que manipulou o esquema paramilitar da Fundação Nacional Cubano Americana, o qual possivelmente realizou um atentado contra o dirigente portorriquenho Tom Cuevas, que pedia a distensão das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Segundo algumas investigações de jornalistas, não desmentidas, Pérez foi contato importante entre os dirigentes da Fundação, em particular Mas Canosa, e a força mercenária da Contra nicaragüense. Quando já estávamos nos despedindo da senhora Ninoska, seu assistente avisou-a que havia um dissidente cubano ao telefone. Ela o atendeu, começando a gravar a ligação. Um momento depois disse-nos que seria importante falar com ele. Não tivemos alternativa. O senhor nos contou que na véspera 76 a Segurança do Estado detivera um vizinho seu durante três horas; que dois homens vieram perguntar-lhe várias coisas sobre esse vizinho; que na esquina de sua casa havia dois policiais. Perguntamos se fora agredido; se tinham revistado sua casa; se tinham batido em seu vizinho. Não, nada disso. Se sabia os motivos da detenção do vizinho. Ele imaginava que era devido às freqüentes ligações que fazia, com outros amigos, para a senhora Ninoska e para a Rádio Marti. “Senhor, pode nos dizer de onde está falando conosco com tanta tranqüilidade?” “Daqui, da casa do meu vizinho”. – Senhora Ninoska, nós a ouvimos em seu programa de rádio e nos surpreendeu sua forma de atacar o governo cubano por ser, digamos, agressiva, quase virulenta. – É que nenhum ditador tem o direito de me proibir de viver em meu país, e não estou disposta a aceitar isso. Mas, mais ainda. Quando pego o telefone e alguém em Cuba me conta uma tragédia cometida por esse ditador, olhem, é impossível ficar de braços cruzados, ou manter um tom cordial. Porque, apesar de que aqui neste país vivemos comodamente e com liberdade, não esquecemos o que sucede em Cuba. Como também não o esquecem os congressistas cubanoamericanos, embora não tenham realizado o grande sonho desta nação. Tampouco outros, que conseguiram uma grande fortuna, e que poderiam viver tranqüilamente, mas continuam trabalhando por Cuba. – Por documentos que lemos e pelo que nos contaram outros cubanos em Miami, pode-se dizer que a Fundação participa e anima a política estadunidense relativa a Cuba. – Bom, é que nós não somos anti-americanos e funcionamos com as possibilidades que nos oferece este sistema. Exemplo 77 disso é a Lei Helms-Burton, que endurece o embargo contra o governo de Castro, proibindo todos os investidores europeus e canadenses de negociar com as propriedades que esta ditadura roubou de seus donos, cubanos e americanos. Para conseguir essa Lei era necessário o apoio dos políticos americanos no Congresso. Por sua vez, eles precisavam dos votos dos cubanos e nós podíamos oferecê-los. Isso é utilizar o poder político neste país. Assim funciona este sistema. Mas depois, o que acontece? Quando o presidente Bill Clinton estava indeciso em assinar a Lei, o regime castrista derrubou dois aviões de Irmãos para o Resgate, em fevereiro de 1996. E eram aviões registrados nos Estados Unidos, com quatro pessoas a bordo. Então a Fundação pressionou e aí sim o presidente Clinton viu-se obrigado a assinar a Lei. – Tão simples assim? – Não se esqueçam que as eleições se aproximavam e Clinton não podia dispensar os votos cubanos. Repito, esta é a forma de trabalho da Fundação: com as possibilidades que oferece este sistema. Além disso, não vamos negar, a Fundação era muito amiga de presidentes como Reagan e Bush. O próprio Clinton, antes de tomar uma decisão sobre Cuba, chamava Mas Canosa ou outro diretor da Fundação. Por que? Porque conhecem nosso trabalho. E porque os diretores da Fundação contribuíram para financiar suas campanhas. – Vocês incentivaram as leis de embargo contra Cuba, como a Torricelli e a Helms-Burton, certos de que com elas o governo de Fidel Castro vai cair. Mas os europeus dizem que investindo em Cuba se consegue mais facilmente mudar o sistema político. – Como os europeus e os canadenses podem pensar que, levando capitais para Cuba, podem mudar essa ditadura? Não os entendo! Se esse assassino sempre disse que não haverá nenhuma mudança política! Fico maravilhada com a 78 hipocrisia européia! Lá os políticos tomam decisões sobre outro país como lhes convém. É assim também no Canadá. O que acontece é que todos esse países estão unidos por um antiamericanismo ridículo. Mas, afinal, qual é a realidade? Que com a Lei Helms-Burton várias companhias já começaram a sair de Cuba por medo, porque sabem que a Lei existe para golpear os que apóiam essa ditadura assassina. – Diariamente, em seu programa, a senhora recebe ligações de pessoas que supostamente fazem resistência ao governo em Cuba. Qual é a realidade dessa oposição? – A resistência é muito difícil, mas existe. Nós falamos diariamente com opositores dentro de Cuba que organizaram diferentes grupos, coisa impossível antes, pois durante muitos anos a oposição estava nas prisões, para que não incomodasse Castro... (Aqui entra Roberto Martín Pérez. Como intervém, tirando a palavra a sua esposa, nos dá a sensação de que estava ouvindo atrás da porta. ) Roberto: É possível que vocês, como outros jornalistas europeus, não entendam o que vou lhes dizer porque não vivem em um regime policialesco como o cubano. Por isso cometem vinte mil erros quando escrevem. Em Cuba houve muitas formas de resistência pacífica. Por exemplo, o homem e a mulher cubana deixaram de trabalhar porque esse processo comunista não lhes interessava. – Mas, senhor Pérez, segundo o que nos contaram aqui em Miami, a resistência em Cuba é mínima e não tem o apoio real da população. Roberto: É que vocês nem imaginam o que acontece em Cuba. Por exemplo, você tem uma filha estudando e mandam- 79 na para o campo, supostamente para ajudar na produção. Lá é submetida a todo tipo de vexames, para atemorizar em você e sua filha. Se seu filho vai preso, que ele é estuprado, isso é. Não lhes digo mais nada... Imaginem, existem uns presos chamados “leões”, encarregados especialmente de realizar os estupros. Depois são premiados, com a melhora da comida. São mantidos sempre drogados, como mortos. – E uma pessoa nesse estado pode estuprar? Roberto: Mas esperem que vou lhe contar outra história de como esse regime criminoso infunde terror, para que não exista resistência. Se você está em uma unidade militar, tem que trabalhar no campo, e sempre perto de uma escola de moças. Durante o dia trabalham no mesmo lugar. O contato do homem e da mulher acarreta, naturalmente, atos. De noite os rapazes fogem para encontrar as mocinhas, que também fugiram. Conseqüência: tudo isso é preparado pela gente do regime, para incentivar as moças e os rapazes a produzirem mais. Porque têm que fornecer ao Partido cinco milhões de horas de trabalho forçado ao ano. – E o senhor, senhor Pérez, como passou na prisão? Roberto: Passei dezoito anos solitário, de cuecas, em uma célula minúscula. Sobrevivi porque acreditava em uma causa e em Deus. Todos éramos mal alimentados, sem leite nem frutas. Não nos batiam, mas nos deixavam ali, vegetando. Resultado: todos saímos com traumas físicos e psíquicos tremendos. Claro que eu fui uma exceção, pois não perdi nem um dente, nem tive hemorróidas, que é uma coisa muito freqüente, devido à má alimentação; nem tive úlcera, nem problemas para dormir... – E que fez contra o governo cubano para receber tal prisão? Roberto: Acreditar em Deus e lutar pela liberdade... Ninoska: E esse terror carcerário é uma amostra do porque 80 não há grande oposição. Tudo é manipulado. Essa ditadura é um sistema de repressão espantoso... Roberto: Mas vocês devem saber que a máquina... Ninoska: Roberto, espere um momentinho, porque eles querem saber da oposição atual... Roberto: Deixe que eu lhes conto. Conheço Castro desde menino e sei que é um homem violento. Pois não creio que saibam que Castro foi um gângster. Foi um delinqüente que se associou a outros cubanos e estrangeiros. Estes estrangeiros tinham participado com os Aliados da Segunda Guerra Mundial; ou da Guerra civil espanhola, lutando contra Franco. Todos eles queriam viver das pistolas, em Cuba. E o capitalista, que ganhou seus milhões com seu trabalho, honradamente, que não sabe defender seus valores, preferia dar uns pesos que se ver nas mãos desses bandidos. – Mas se Fidel Castro, como diz o senhor, era praticamente um delinqüente, como a maioria da população o apoiou? Roberto: Castro chegou ao poder porque os comunistas, como sempre, começaram a lavar a cabeça das pessoas, dizendo que a sociedade cubana estava cheia de deficiências. Em Cuba, como no mundo todo, existiam classes frustradas e marginalizadas. Castro e o comunismo manipularam-nas, trazendo-as para o seu lado. – Senhor Pérez, como vê o futuro de Cuba? Roberto: Castro é um homem gasto pelo poder. Castro, que ontem podia prometer uma libra de arroz ao povo, hoje não pode lhe dar um pão. Está pior que os donos de escravos, pois até eles davam alimentação balanceada aos negros. Por isso Castro vai cair. E digo isso com segurança, não é uma utopia; na Fundação estamos trabalhando para isso; estamos organizados e sabemos o que queremos, daí a importância da Lei Helms-Burton. 81 E eu lhes digo mais: estamos trabalhando com a possibilidade de que Castro já esteja morto. Porque, para mim, Castro já não está vivo. Sabemos que tem três “clones”. E se você não conhece Castro e lhe dizem que esse homem alto e barbudo é Castro, você acredita. Mas ele já está morto... – Senhor, Pérez, Fidel Castro morto? Isso sim que... Ninoska: Mas Roberto, também não se pode exagerar. Eles podem utilizar sósias, nisso eu acredito, por segurança, mas as imagens que se vêem na televisão, são dele... E Roberto, desculpe, mas eles estão me entrevistando para falar de outros assuntos... (Enfim, Roberto se foi... ) – Senhora Ninoska, sabemos que é contra qualquer diálogo com o governo cubano. Por que? – Bem, parece que os defensores do diálogo são uns pobres ingênuos, que sonham com loucuras. Pode-se propor um diálogo a Fidel Castro; mas para que, se a reação de Castro é dizer que não haverá mudanças políticas? – Então, os encontros que se realizaram em Cuba não levaram nem levarão a algo positivo? – Esse ditador armou uma conferência em Cuba com uns quantos exilados que acreditaram em suas idiotices. Nela, uma advogada de Miami, lamentavelmente, a pobrezinha, jogouse nos braços de Castro, dando-lhe um beijo, dizendo-lhe que ele era seu mestre. Palhaçada! Por isso, quando voltou, foi recebida com ovos; até seus empregados a abandonaram. E depois outro exilado, ex-preso político... – O senhor Menoyo? – Todo o mundo sabe quem é... mas pode ser. Este homem se põe a falar bem do ditador, porque tinha tomado um trago 82 com ele. Maluquice! E qual foi o resultado dessas palhaçadas? Os diretos humanos foram respeitados? Permitiram-lhes se expressar? Não. Apenas deixam-nos viajar por onde queiram na Ilha, nada mais. – Permita-nos uma última pergunta. Internacionalmente, Miami é sinônimo de sol e praias, mas também de um exílio cubano violento. Qual é a sua opinião? – Olhem, sei que a imprensa européia e muitos políticos de lá dizem que o exílio de Miami é violento. Mas eu não respeito essas afirmações. Não se pode negar que tenha havido fatos violentos. Dizem que este exílio é reacionário porque aqui explodiu uma bomba em um museu, ou estraçalharam as pernas de um senhor do rádio que propunha dialogar com Castro. Mas, onde está quem pôs a bomba? Algum grupo cubano do exílio reivindicou o atentado? Um dia a imprensa daqui, a que sai em inglês, disse que era intolerável que o exílio tivesse posto uma bomba em um lugar de onde enviam pacotes para Cuba. Ou que era responsável por outro atentado no Centro Vasco, onde ia cantar a senhora Rosita Fornés. Mas esta é uma mulher que tanto faz ouvir ou não, pois é uma pobre velha ridícula, vestida de vedete. Se veio aqui, foi para buscar problemas, pois continua apoiando o regime tirânico de Castro. – Esta é a outra imagem do exílio, uma intolerância agressiva. Olhe o que aconteceu com o pianista Rubalcaba, reconhecido mundialmente. – Olhem, em princípio não se deve ter nada contra um pianista. Mas esse senhor é um cubano que vive na República Dominicana, fazendo publicidade, falando maravilhas de Cuba. E isso é um trabalho político, que serve aos interesses castristas. Esse senhor Rubalcaba veio se apresentar aqui em Miami e umas quatro pessoas se puseram aos gritos, insultaram- 83 no, tentaram cuspir nele; iam brigar com alguns dos espectadores. Mas apenas protestavam contra sua presença, e isso é legal em uma verdadeira democracia como a americana. Então a imprensa em inglês e a européia dizem que os exilados são provocadores e terroristas. Mas, porque não se pensa que esses atos são feitos por gente de Castro? É ao tirano que mais convêm! – Desculpe, mas provocadores ou terroristas pro governo cubano em plena Miami? Além disso, se fossem um ou dois atos, mas parece que são muitos... – Bom, tudo é possível, Castro é muito esperto... 84 V “O embaixador francês em Washington nos disse que queriam ter um pé ali, para adiantar. Que, por agora, eram pequenos investimentos mas que, depois, quando caísse o governo castrista, seriam grandes”. Hubert Matos Benítez Presidente de Cuba Independente e Democrática Tocamos a campainha. Íamos insistir quando ouvimos o som característico do seguro que se abre de dentro. Em poucos passos atravessamos o jardinzinho. Detivemo-nos diante de uma das portas da casa. Enquanto esperávamos que abrissem, notamos que sobre nossas cabeças havia uma câmara de circuito fechado. Era tão antiga como a primeira que vimos, no outro extremo da casa. Um homem abriu. Depois que respondemos três ou quatro coisas, nos levou até uma ampla e modesta sala de reuniões. As janelas, que davam para a rua, estavam bem protegidas com barras de ferro, numa altura que dificultava a observação a partir do exterior. Tinham marcado encontro conosco às onze da manhã. Os minutos passavam e o personagem esperado não aparecia. Assim, quem nos recebera dispôs-se a entreter-nos, dando rédea solta a seus conhecimentos sobre as bondades do sistema capitalista na América Latina. Já se passavam vinte minutos de espera, quando apareceu o presidente de Cuba Independente e 85 Democrática: muito magro, grisalho, de óculos, paletó e gravata. Hubert Matos Benítez cumpriu duas décadas de prisão, depois que um tribunal revolucionário o condenou em 1959 por conspiração. Nega que tenha atentado contra os princípios da Revolução. Mas reconhece categoricamente que se opôs ao derrotismo que começou a dominar a maioria da direção. O que era normal, por verem contrariados seus interesses. Matos, pedagogo e pequeno proprietário de terras, aderiu à luta contra Batista durante o primeiro semestre de 1958, sendo apoiado pelos proprietários de terras maiores, pelos burgueses e pelo clero reacionário que o promoveram a dirigente político na província de Oriente. Assim subiu até obter o grau de comandante, título máximo na hierarquia do movimento revolucionário. Em 19 de outubro de 1959, Matos, chefe do regimento do Exército Rebelde na província de Camagüey, levantou-se com seus homens, alegando a presença de comunistas no governo. O Comandante Camilo Cienfuegos conseguiu sua rendição. Dias antes, quando se desarticulara a Conspiração Trujillista, entre os documentos capturados dos mercenários foi encontrada uma carta onde se recomendava fazer contato com Matos. Em 1979 saiu da cadeia e partiu para a Costa Rica. Segundo o jornalista ex-aliado de Batista, Luis Manuel Martinez, a partir daquele momento Matos “esteve nas mãos da CIA”.51 No ano seguinte transferiu-se para a Venezuela, com a intenção de fundar Cuba Independente e Democrática, para o que o governo estadunidense entregou-lhe duzentos mil dólares.52 Entre os objetivos centrais desse aparelho estava fazer proselitismo junto 51 Luis Báez: “Entrevista a Luis Manuel Martinez”, en Los que se fueram, Editora Política, La Habana, 1994. 52 Idem. 86 a governos e partidos políticos da América Latina e da Europa. Isso não era novidade: a CIA já tinha tentado, sem êxito, na década de setenta, com outros contra-revolucionários. Agora poderia dar resultado, dado a aura de ex-comandante e ex-preso político que acompanhava o presidente de Cuba Independente e Democrática. Pelo menos, quando passou pelo Velho Continente, a maioria dos meios de informação lhe deu boa publicidade. Uma das tarefas que se tornou fundamental para Matos foi articular La Voz del CID, uma emissora de ondas curtas, dirigida a Cuba. Embora seja certo que no final de 1997 se desconhecia o lugar em que se encontravam seus transmissores, sabe-se que, há pouco tempo, estiveram localizados na República Dominicana e em Costa Rica. Embora Matos afirme que as atividades de Cuba Independente e Democrática são financiadas com as contribuições de seus membros, é difícil acreditar nisso, pois estes não são tantos, nem tão abonados. As contribuições que, de forma legal e pública, lhes deram as agências do governo estadunidense, não devem bastar para cobrir os gastos de todo o equipamento. Entre outros, Jeff Whitte, proprietário de Rádio Miami International, rádio comercial por onde emitem vários grupos contra-revolucionários para Cuba, disse que boa parte do dinheiro de Cuba Independente e Democrática provém da CIA. Mas as transmissões para Cuba também não são novidade. Apesar de violar todos os convênios internacionais, desde o triunfo da Revolução, as diferentes administrações estadunidenses produziram, incentivaram ou fecharam os olhos a esse proceder. Embora agora o objetivo fosse derrubar um governo, desde os anos vinte, em Washington considerava-se que os meios de comunicação deviam ser utilizados para fins de propaganda política e como complemento da política exterior. 87 Simplesmente, para Cuba, a estratégia teve que ser adaptada a uma situação de guerra ideológica e psicológica. Certamente inesperada. Em 1960, como parte da Operação 40, a Marinha estadunidense instalou a Rádio Swam. Transmitia vinte e quatro horas diárias, de uma ilha no Atlântico hondurenho. Sua função era difamar os fins a que se propunha o novo governo cubano com as nacionalizações e expropriações. Quando ocorreu a Crise dos Mísseis, intensificaram-se as emissões a partir de rádios legais e ilegais, controladas ou financiadas pela CIA. Quando passou esse episódio delicado, e os Estados Unidos se envolveram cada vez mais nas guerras do Sudeste asiático, diminuiu a pressão sobre a Revolução, o que durou até 1979, quando a Administração de Jimmy Carter reativou a ofensiva. E foi a partir de 1981, com a chegada de Ronald Reagan à presidência, que voltaram a ser incrementadas as transmissões radiofônicas, numa média de duzentas horas diárias, emitidas de umas quinze estações. Naquele momento surgiu La Voz del CID, que rapidamente encabeçou o trabalho sedicioso, embora por muito pouco tempo, pois entrou em cena um concorrente muito poderoso. Em maio de 1980, um grupo de neoconservadores do Partido Republicano entregou ao candidato Ronald Reagan o “Documento de Santa Fé”, que continha as bases do que viria a ser a política desse governo para a América Latina. No capítulo referente a Cuba constava: “Cuba tem sido, por mais de duas décadas, um problema para os artífices da política norteamericana. O problema não está mais perto de uma solução agora do que esteve em 1961; pelo contrário, aumentou até adquirir proporções verdadeiramente perigosas...” Um dos estratagemas proposto para solucionar o “problema”, era criar uma rádio potente que oferecesse “informação objetiva ao povo 88 cubano”. A emissora deveria contar com todos os recursos possíveis para cumprir o papel fundamental exigido, porque, “se a propaganda fracassar, será necessário lançar uma guerra de libertação contra Castro”. Já na presidência, Reagan criou uma comissão encarregada de dar corpo ao que fora proposto. Entre seus integrantes estavam Charles Wick, diretor da Agência de Informação dos Estados Unidos e o cubano-estadunidense Jorge Mas Canosa. 53 No fim de 1983 Reagan assinou a Lei de Transmissões Radiofônicas para Cuba, dando vida à Rádio Martí, emissora que iniciou suas transmissões em 20 de maio de 1985. Paradoxalmente, os sinais de prova foram emitidos pelas antenas que a CIA utilizava nos anos sessenta, para comunicarse com os grupos de missões especiais e agentes infiltrados em Cuba. Para o governo e o povo cubano, a Rádio Martí foi uma afronta, pois não só era uma forma de invadir seu território, como utilizava o nome do herói que lutara contra a Espanha, pela independência e pela soberania da Ilha. Como presidente da Junta de Assessores Presidenciais da Rádio Martí, foi nomeado Jorge Mas Canosa. Um dos primeiros diretores do serviço de investigação da emissora, Ramón Mestre, vinha de uma militância ativa no grupo Abdala;54 foi oficial dos serviços de inteligência estadunidenses, e atualmente faz parte do conselho editorial de El Nuevo Herald. Mas Mestre não foi o único ex-abdalista que chegou à Rádio Martí: “vários foram diretores de departamento, investigadores e assessores”.55 53 Jean-Marc Pillas: Nos agents à la Havane. Comment les Cubains ont ridiculisé la CIA, Ed. Albin Michel, 1995. 54 Enrique Encinosa. Obra citada. 55 Idem. 89 Para dar uma idéia do papel que desempenhou essa emissora, transcrevemos o seguinte texto, extraído do livro de Enrique Encinosa, já citado: Hilda Inclan, da diretoria de notícias, saiu da Rádio Martí acusando os diretores de violação de leis federais e jornalismo irresponsável. Inclan queixou-se de que o departamento de pesquisas da empresa radiofônica era um esquema de inteligência. Precisamente, o departamento de pesquisas da Rádio Martí se convertera na espinha dorsal da emissora. Seus vinte e três (sic) empregados chegaram a entrevistar quatrocentos recémchegados da Ilha, mensalmente, analisando a informação recebida para atualizar constantemente as transmissões (...)56 Para La Voz del CID, a concorrência com Rádio Martí foi excessiva. Sobretudo pela impossibilidade de obter dezesseis milhões de dólares que correspondem, aproximadamente, ao orçamento anual da emissora estatal. A Voz del CID tinha inovado na programação e na linguagem. A mensagem bélica e cheia de rancor já estava mais controlada. Se o profissionalismo deixava a desejar, tratava de assuntos de atualidade e interesse geral com um vocabulário popular que foi calando. Indubitavelmente, Cuba Independente e Democrática fora bem assessorada por quem conhecia de perto os prós e os contras do trabalho subversivo radiofônico contra Cuba. Mas a emissora oficial estadunidense copiou e melhorou o estilo, ao mesmo tempo em que incluía desde radionovelas, leitura do horóscopo, até conselhos psicológicos. No conjunto de suas 56 Idem. 90 atividades, a estratégia de ambas foi idêntica: lançar dúvidas sobre os benefícios da Revolução, a gestão de seus líderes, a capacidade do socialismo para resolver os problemas econômicos e sociais, e acabar com a autoridade moral de Fidel Castro e dos demais dirigentes cubanos. Como parte dos objetivos, bem depressa a mensagem da programação na Voz del CID e na Rádio Martí teve um rearranjo, quando se tornou urgente incentivar grupos contrarevolucionários na Ilha, os quais começaram a ser chamados de dissidentes ou independentes. Os estrategistas da Administração Reagan estavam experimentando os bons resultados que tais grupos estavam dando na desestabilização dos países do Leste. E parecia possível obter resultados semelhantes em Cuba. Isso ficou implícito em “Santa Fé II. Uma estratégia para a América Latina na década de 1990”, que veio a público em agosto de 1988. O documento, na “Proposta n o 9”, dizia: “Os EUA devem ampliar suas transmissões para Cuba pelos meios de difusão, como uma forma de educação cívica, para criar um regime democrático (...).” Linhas depois, a mesma proposta afirmava que a “oposição interna” aumentava por estar “alimentada pela Rádio Martí, a qual rompeu, com êxito, o monopólio de Castro sobre a informação e a propaganda”. A partir de 1989 uniu-se à tarefa sediciosa La Voz de la Fundación, emissora da Fundação Nacional CubanoAmericana. Esta contou, no primeiro ano, e segundo seus próprios diretores, com um orçamento de um milhão e meio de dólares; não esclarecem, no entanto, de onde veio e continuou fluindo essa quantia. Assim, o trio cumpria uma única tarefa: “Para os dissidentes da Ilha, para os pequenos grupos de direitos humanos que tentavam tornar-se conhecidos, Rádio Martí era o cordão umbilical, a linha direta 91 de informação que podia dar-lhes legitimidade enquanto movimentos.” A jornalista Irene Selser foi mais precisa, na revista mexicana Quehacer Político: Rádio Martí tenta estimular um potencial opositor interno que possa dividir a população e afastá-la de seus líderes, enquanto prepara o terreno para criar uma situação de distúrbios e ações rumorosas. Dito de outro modo, a função de Rádio Martí é fomentar uma frente interna que justifique eventuais ações militares, ou de outro tipo, a partir do exterior, por parte dos EUA, em defesa da oposição. Pouco depois instalado na Casa Branca, William Clinton sancionou a Lei provocadoramente denominada Cuban Democracy Act, de autoria do representante democrata Robert Torricelli, e que somava a busca de uma influência ideológica maior com o recrudescimento do embargo. Em 1997, Cuba recebia diariamente os programas de pelo menos vinte emissoras e linhas telefônicas, que realizaram mais de setenta mil horas anuais de transmissões ilegais. Caso único na história universal de guerras, declaradas ou não. Voltando a Cuba Independente e Democrática, podemos dizer também que conseguiu aproximar-se de algumas altas personalidades do aparelho político estadunidense, como Elliot Abrams, ex-subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos. Até recentemente, Cuba Independente e Democrática dizia manter um trabalho ativo em algumas cidades dos Estados Unidos e da Venezuela, assim como relações em vários países do continente e da Europa. Matos não esquece de dizer que Cuba Independente e Democrática foi a primeira organização contra-revolucionária que abriu um escritório na Polônia, no momento em que balançava o chamado bloco do Leste. Como 92 outros setores do exílio reacionário que respondem à política traçada em Washington, procurava influir para interromper as relações comerciais com Cuba, tal como existiam até aquele momento. No entanto, também várias pessoas abandonaram a militância alegando tratar-se de uma organização dirigida de maneira inflexível e nepotista. Talvez o problema mais grave para Cuba Independente e Democrática tenha ocorrido quando a polícia canadense deteve vários de seus militantes, acusados de tráfico de drogas. Jorge Roblejo, ex-membro da CIA e da Brigada 2.506, garante que o filho de Matos, também dirigente de Cuba Independente e Democrática, esteve comprometido com o narcotráfico, junto com o locutor Armando Pérez Roura.57 Hubert Matos, além de ter se atrasado, disse dispor de apenas uma hora para a entrevista. E gastou hora e meia tentando explicar sua versão sobre sua prisão e posterior julgamento, em 1959. Deu-nos muito trabalho fazê-lo mudar de assunto. Não estávamos ali para isso. Em três quartos de hora liquidou nossas perguntas, enquanto que, de tempos em tempos, voluntária ou involuntariamente, nos deixava ver que usava um revólver na cintura. – Senhor Matos, quais são as propostas que Cuba Independente e Democrática, por meio de sua emissora, faz aos cubanos da Ilha? E ainda, sabe se elas são bem acolhidas? – Posso garantir-lhe que temos muita aceitação. Quem diz isso são os próprios cubanos que chegam de lá ou telefonam... – Desculpe, mas o pessoal da Fundação nos disse que eles também têm uma acolhida muito boa. 57 Luis Báez: “Entrevista a Luis Manuel Martinez”. Obra citada. 93 – Mas os cubanos de lá nos disseram que existe uma grande diferença, porque conosco eles se identificam. Sentem Rádio Martí como algo distante. Com La Voz de la Fundación também não se identificam muito. E é porque nós dizemos o que o povo quer ouvir. Nossa proposta, que é muito clara, é uma mensagem sincera, sem ódio nem vingança. Dizemos ao povo cubano que Fidel não vai ceder a mudanças, mas que tampouco vai deixar o poder. Então, logicamente, é necessário removê-lo. Mas não só ele: também seu irmão e umas doze pessoas mais. Porque aí está o problema central para Cuba. Como fazer isso? Olhem, utilizamos uma palavra de ordem que resume nossa proposta: o poder para o povo em aliança com os militares. Pela Voz del CID dizemos aos cubanos de lá que o modelo de sociedade comunista fracassou. E como não serve, é preciso desmanchá-lo. Entendem? Porque este sistema nega a liberdade de expressão e religiosa, e assim asfixiou o povo cubano. Outra coisa é fazer desmoronar o atual sistema econômico, porque o Estado não pode continuar tendo o controle total da economia. – Mas não se pode negar que... – Sim, já sei o que vão me dizer. Sim, o sistema deu, por muitos anos, educação, remédio, teto, um pouco de comida, mas isso já se acabou, com a crise econômica. Por isso é preciso removê-lo. Agora é preciso buscar uma liberdade pluripartidária. E como eu lhes dizia, a aliança entre militares e o povo é que deve se encarregar desses primeiros passos para a transição. Esta aliança é que vai montar uma Junta de Salvação Nacional. Mas que fique claro que, nessa Junta, os civis serão prioritários, começando por aqueles que estiveram na resistência, tanto lá como no exílio. – Nessa Junta de Transição que propõe, o senhor acha que terá um cargo? 94 – Consideram-me como uma das pessoas que pode ter aspirações dentro de um novo governo em Cuba. Mas nunca desejei subir a esse pódio. Claro que se chamam Cuba Independente e Democrática, não necessariamente Hubert Matos, para participar dessa primeira etapa, aí sim, deverá participar. – O senhor falava de “buscar uma liberdade pluripartidária”. Seguindo a corrente da atualidade política mundial, isso se converteu em um simples sinônimo de eleições. Não acha, senhor Matos, que quando se chegar a eleições desse tipo, agora ou em uma Cuba pós revolucionária, serão as organizações pró estadunidenses que terão tudo a seu favor para ganhar? Isso é o que se quer para o futuro de Cuba? Olhe o que aconteceu com a Nicarágua. – Nós e outras organizações dizemos que a Cuba pós castrista não será uma Cuba americana. Sim, têm razão, aqui tem gente que quer uma Cuba como Porto Rico, ou seja, são anexionistas. Isso, não queremos. Eles podem ter muitos milhões de dólares, mas nós também podemos consegui-los. E é o que estamos tentando. Cuba Independente e Democrática sabe que no pós castrismo haverá grandes disputas, porque alguns pretenderão priorizar o interesse pessoal ou de grupo, sobre o interesse público. Mas, o que vai acontecer? Não vai chegar lá esta ou aquela organização que, por ter mais peso econômico e político, ou relação com os Estados Unidos, vai poder impor sua vontade. Não somos anexionistas. – Não estávamos falando de anexionismo. – Claro que tampouco somos anti-norte-americanos ou anti-europeus. Outra coisa é o interesse que temos no apoio político e econômico dos Estados Unidos. Por isso aplaudimos a proposta do presidente Clinton, no início de 1997, de dar 95 de quatro a oito mil dólares no contexto do que chamou de “Plano de assistência para a transição em Cuba”, e que faz parte da Lei Helms-Burton. É uma contribuição para a transição que virá, logicamente, quando desaparecerem o castrismo e o comunismo. Daí a urgência de que desapareçam. Além disso, aplaudimos esta proposta porque deve ter caído como uma bomba no coração das Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Pois, pela primeira vez, uma administração norte-americana destaca o papel positivo que os militares cubanos poderiam desempenhar nessa transição. – Não acha que se existisse um descontentamento generalizado nas Forças Armadas Cubanas, há muito teria havido um golpe de estado, ainda mais quando se sabe que os Estados Unidos e, sem dúvida, a Europa, o apoiariam imediatamente? – É que os irmãos Castro e essa dúzia de pessoas manipularam, encarceraram e fuzilaram os chefes militares que se lhes opõem. Mas vai chegar o momento; já não está longe. – Ainda temos dúvidas, mas preferimos voltar ao assunto. Achamos que sua posição sobre a necessidade econômica e política que têm dos Estados Unidos, fundamentalmente... – Não. Deixem-me explicar-lhes. Nessa primeira etapa precisamos do apoio dos Estados Unidos, mas também da Europa. Porque uma das minhas grandes preocupações é com que dinheiro vamos contar para reativar a economia. E embora estejamos certos que os Estados Unidos vão nos apoiar, também fui a vários países da América Latina e da Europa para falar com banqueiros e governos. Sei que de algum lado o dinheiro virá. – Mas o senhor deve saber que empréstimos ou contribuições econômicas inevitavelmente acarretam compromissos políticos. – Sim, sei que esse dinheiro, essas ajudas, podem trazer compromissos políticos. Claro, não vão dá-los a um novo 96 ditador. Mas os Estados Unidos e a Europa vão nos apoiar porque o sistema que chegará à Cuba pós castrista terá afinidade política com esses governos. Se estamos lutando pelo mesmo modelo de sociedade livre, como a norte-americana, vão nos apoiar. Mas, não. Não haverá um compromisso político em que se negocie a soberania. – Senhor Matos, respeitamos muito seu ponto de vista, mas vendo a dependência econômica, política e militar que quase todos os países latino-americanos, africanos, asiáticos, e até o ex-bloco do Leste têm em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental, achamos que os senhores pecam por otimismo. – Mas conosco não será assim. E digam-me, quantos anos Cuba esteve sob o domínio da URSS? – Mas, sendo objetivos na análise, concluímos que não se pode comparar o tipo de relação que existiu entre a URSS, Cuba e os demais países do bloco do Leste. Entre esses países existiu um intercâmbio econômico mais ou menos justo. – Podemos discutir mais adiante o que ocorreu entre a URSS e Cuba. Mas vocês podem estar certos que conosco Cuba não vai perder sua soberania. Os americanos sabem que lá vão encontrar a resistência do povo cubano, que é altamente nacionalista... – Senhor Matos, o senhor não vai negar que esse alto grau de nacionalismo, de sentimento soberano, que o povo cubano tem atualmente, foi obra da Revolução... – Bem... Mas, bem, antes também existia um segmento da população nacionalista... Mas não se deve temer compromissos econômicos fortes com os Estados Unidos. Se propõem algo que entre em choque com o conceito de soberania que tenho de minha nação, ora, não aceito. Não. Vamos tratar com os Estados Unidos de nação para nação. A nova Cuba não pode aceitar que a cada dois ou 97 cinco anos os americanos classifiquem-na como democrática ou não, pois perderíamos a soberania. – Senhor Matos, continuemos. Então cai o atual governo cubano, forma-se a Junta de Salvação e Cuba Independente e Democrática faz parte dela. Quais seriam as primeiras medidas que os senhores proporiam? – Temos, há anos, um esquema programático para essa etapa. Nele estabelecemos que fica proibido desalojar alguém de sua casa; mas deve-se dar uma compensação aos antigos donos. As empresas devem ser devolvidas a seus antigos proprietários. Isso é importante, pois pode favorecer a entrada de divisas e um reforço para a economia. Também se deve, em sua presença ou não, julgar Fidel Castro, seu irmão, e mais umas doze pessoas, pelos crimes cometidos contra a nação cubana. Deve-se intervir nas empresas estrangeiras, associadas ao atual Estado cubano, por serem virtualmente cúmplices dessa ditadura. E essas empresas ficariam sujeitas ao processo de descentralização e de privatização da economia nacional que propomos. – Nessa transição, que papel deve desempenhar a União Européia? – Gostaríamos que a Europa desempenhasse um papel muito importante na solução dos problemas cubanos. Eu sempre digo que a Europa deixa Cuba fazer o que quer. Os países europeus esquecem que Cuba foi sua colônia e, portanto, não assumem o papel que lhes cabe historicamente, principalmente a Espanha. Alegra-nos a preocupação de Aznar, o presidente espanhol, de procurar uma solução para o problema cubano. Aznar, antes de ser presidente, esteve aqui e conversou com a Fundação, conosco e com outros grupos. Disse-nos 98 que, se ganhasse as eleições, adotaria uma nova política para com Cuba na União Européia. Também conversei com o eurodeputado do Partido Popular espanhol, José Salafranca, que se mostrou interessado em ajudar-nos. E fui recebido pelo ministro de Relações Exteriores desse governo, senhor Abel Matutes. A todos dissemos que derrubar a ditadura castrista convinha a nossos interesses, aos dos europeus e aos dos americanos. E pela maneira como agiram, vê-se que compreenderam. – Sabemos que vocês, outras organizações do exílio, assim como entidades da Administração estadunidense, realizaram reuniões com dirigentes de empresas que querem investir em Cuba. – É certo. Dissemos a todos esses senhores que nos opomos a que invistam em Cuba, em sociedade com Fidel Castro. Que não garantimos nenhuma segurança a esses investimentos, quando o regime cair; que não serão respeitados, pois foram cúmplices do regime; que serão motivo de atritos. Agora, se nos propõem uma boa ajuda econômica, pode-se negociar. Deixamos claro para todos que nossa visita não era para discutir investimentos, mas para fazer-lhes uma advertência. Visitei vários governos, ou conversei com seus embaixadores. Por exemplo, o embaixador francês em Washington nos disse que queriam ter um pé ali, para adiantar. Que, por agora, eram pequenos investimentos e, que depois, quando caísse o governo castrista, seriam grandes. – Senhor Matos, passemos a um último assunto. Quais são as relações que vocês têm com a chamada dissidência interna? Cuba Independente e Democrática faz parte dela? – Olhem, apoiamos essa dissidência. E fazemos isso independentemente da coincidência com suas posições. Quando se agruparam no Concílio Cubano lhes demos nosso apoio. Além disso, daquela vez pediram que um dirigente de 99 Cuba Independente e Democrática em Cuba se envolvesse publicamente. E lhes dissemos que, se aparecesse como membro de Cuba Independente e Democrática, seria preso. Mas concordamos em participar com o nome que tem nosso movimento lá, e que é o Partido Solidariedade Democrática. – E como funciona Cuba Independente e democrática no interior de Cuba? – Nosso movimento funciona como uma organização de direitos humanos. E muita gente de Cuba Independente e Democrática milita também em grupos de direitos humanos que são muito conhecidos fora de Cuba... Mais detalhes, não posso lhes dar... Formam células clandestinas de Cuba Independente e Democrática... – Finalmente, senhor Matos, para vocês, não há nada que valha a pena na Revolução cubana? – A Revolução cubana trouxe alguma coisa. Mas, nem tanto. Claro, exceto na educação, na saúde, e... bem, o êxito nos esportes. Mas, para as famílias, não trouxe nada importante. Nós temos que tirar proveito dessa quantidade de técnicos, profissionais, cientistas, e gente preparada que há em Cuba... 100 VI “Os Estados Unidos não podem permitir que os europeus forneçam créditos ao governo cubano, ou que invistam facilmente lá. Como os americanos e nós vamos permitir que isso aconteça?”. FRANCISCO JOSÉ HERNÁNDEZ Presidente da Fundação Nacional Cubano-Americana Seis meses depois de ter entrevistado a senhora Ninoska e seu marido Roberto, estávamos outra vez na sede da Fundação Nacional Cubano-Americana. Apesar da amável atenção que nos davam, voltávamos a sentir aquele ambiente estranho, indescritível. Devia ser porque, política e humanamente, não aceitávamos as atividades que essa organização, a mais poderosa do exílio reacionário, mantinha contra o governo e o povo cubanos, como parte da estratégia estadunidense. Mas estávamos dispostos a adiantar o trabalho e ali estávamos. Sensações idênticas nos invadiram com a maioria dos entrevistados. E não apenas em Miami. Chegamos até o amplo e fresco escritório de Francisco José Pepe Hernández, presidente da Fundação Nacional CubanoAmericana. Devíamos falar com ele, na impossibilidade de entrevistar Jorge Mas Canosa, que, na época, era o diretor dos diretores, o Chairman of the Board. Há muitos anos, Canosa tinha aprendido a quase nunca dar entrevistas a quem não 101 pertencesse ao círculo de sua confiança: segundo ele, acabavam distorcendo suas palavras. Assim se manteve até o dia de sua morte. Pois bem, desde que fizemos a primeira pergunta a Hernández, e ele negou que a Administração Reagan fora pai e mãe da Fundação Nacional Cubano-Americana, soubemos que tampouco com ele a verdade seria protagonista. Quando, em janeiro de 1981, Ronald Reagan se instalou na Casa Branca, devolveu à CIA o papel de destaque internacional que o Congresso lhe tirara desde meados da década de setenta, por haver exagerado em suas atribuições. E, como projeto estratégico da política para a América Latina, acolheu o Documento de Santa Fé. O que combinava perfeitamente com o vice-presidente e ex-chefe da CIA, George Bush, assim como com o novo diretor da Agência, William Casey, ambos obstinados em recuperar o poder, em Cuba e na Nicarágua. Na lógica daquele governo, para derrubar o recém instalado governo popular sandinista, era necessário neutralizar o cubano, que considerava seu suporte essencial. Devia-se, portanto, caminhar decididamente nesse sentido. Mas, apesar de sua mentalidade bélica, a Administração Reagan estava preocupada com o desprestígio da contra-revolução cubana. As bombas e mortes que produzira a Guerra pelos caminhos do mundo estavam ainda em fogo na memória dos cidadãos. Segundo diversos documentos, foi Roger Fontaine, um dos ideólogos do Documento de Santa Fé, e responsável pela América Latina no Conselho Nacional de Segurança, que aventou “a possibilidade de criar um lobby no Congresso norteamericano, para justificar a implementação de uma política mais agressiva contra Cuba”. Acolhida a idéia, Casey apresentou um projeto onde propunha criar uma estrutura de relações 102 públicas, que convencesse os membros do Congresso da estratégia elaborada pelos assessores de Reagan. Esta, como desde os tempos de Kennedy, não devia aparecer como vinculada à Administração, e sim como iniciativa e interesse da contra-revolução cubana. Foi Richard Allen, veterano da CIA, assessor de segurança nacional de Reagan, sob a direção do Conselho Nacional de Segurança, que se encarregou de selecionar um reduzido grupo de milionários de origem cubana para por em pé o plano. Coincidentemente, os quatorze primeiros escolhidos tinham antecedentes ou pertenciam à CIA. Entre eles, o banqueiro e ex-membro da Brigada 2506, Raúl Masvidal, e Carlos Salmán, ligado ao Partido Republicano e íntimo da família Bush. Seu primeiro Presidente Executivo foi Frank Calzón, ex-dirigente das organizações terroristas Abdala e Frente de Libertação Nacional de Cuba. Apesar de estar sob investigação por lavagem de dólares, fez parte da direção da Fundação Nacional CubanoAmericana Luis Botifoll, presidente do Republic National Bank. Outro personagem de peso naqueles primeiros anos foi José Sorzano, ex-membro do Conselho Nacional de Segurança. Quase imediatamente, a pedido de Allen, Jorge Mas Canosa tornou-se o diretor dos diretores. Seu ininterrupto ativismo político e os laços de amizade – reconhecidos pelo próprio Canosa – que mantinha com Casey e Theodore Shackley, subdiretor de Operações Especiais da CIA, tornavam-no merecedor do cargo. Assim começou a Fundação Nacional Cubano-Americana. Hoje é um monstro “assistencial” que não paga impostos; com mais de cem abonados diretores, todos de extrema direita, que contribuem com cotas anuais de cinco a cinqüenta mil dólares. A Meta Executiva secreta no 77, conhecida internamente como Projeto Democracia e assinada por Reagan, em janeiro 103 de 1983, serviu de alavanca para os objetivos da Fundação Nacional Cubano-Americana. Vejamos. Quando, em fins de 1986, veio à luz o escândalo Iran-Contragate, soube-se que o Projeto tinha um braço legal e outro clandestino. O primeiro, que contava com o apoio do Congresso, chamava-se National Endowment for Democracy (NED), e era supervisionado por um oficial de Operações Especiais da CIA. Embora definido como uma corporação privada e não lucrativa, seus fundos foram aprovados no orçamento federal e canalizados pelas estruturas dos partidos Republicano e Democrata, e Organizações Não Governamentais (ONGs), como Freedom House, o instituto católico Puebla, e o Instituto Americano para o Desenvolvimento dos Sindicatos Livres, entre outros. Como complemento de seu trabalho, utilizavam-se as atividades da Agência para o Desenvolvimento Internacional (AID), a Agência de Informação dos Estados Unidos, e demais mecanismos da diplomacia pública estadunidense. A National Endowment for Democracy se institucionalizou como um programa para entregar dinheiro a organizações que “promovam o aprimoramento da democracia” no exterior. Mas por ela foram fluindo vultosas quantias que antes passavam pela CIA, ou outras vias clandestinas, com destino a forças políticas, de direitos humanos, humanitárias e de imprensa. Por Lei, a National Endowment for Democracy não podia fornecer ajuda a “trabalho de lobby ou propaganda destinado a influir nas decisões de política pública do governo dos EUA”. Mas desde sempre isso ocorreu. Em 1988 descobriu-se, sem conseqüências jurídicas para os responsáveis, que tinha doado trezentos e noventa mil dólares para a Fundação Nacional CubanoAmericana; por estranha coincidência, era uma quantia idêntica à que foi “doada” pela Fundação Nacional Cubano-Americana a políticos que apoiavam a agressão ao governo cubano. 104 Foram vários milhões de dólares entregues pela National Endowment for Democracy aos diversos projetos da Fundação. Sem contar que, como sócia privilegiada, a Fundação Nacional Cubano-Americana serviu em muitas ocasiões de intermediária para fazer chegar somas elevadas a outras organizações contrarevolucionárias, não só em Miami, como na Europa e em Cuba. E, em quase todos os casos, para financiar supostas campanhas pelos direitos humanos. Com semelhante apoio, em pouco tempo a Fundação se converteu em um monstro que devorava tudo o que se opusesse a seus interesses; reivindicando quase tudo o que se propunha no interior dos Estados Unidos. Segundo vários analistas, seu êxito deveu-se a três aspectos. Um, pelo fato de ser o aparelho a serviço da política de Washington, em muito transcendendo o âmbito cubano, como ocorreu com Angola e Nicarágua. O segundo, porque aprendeu sagazmente a fazer lobby, que no caso estadunidense é a arte de molhar com dinheiro as mãos de políticos-chave, no Congresso. Para isso, os membros republicanos foram os preferidos. Mas não se economizou com os democratas, quando foi necessário, como sucedeu com os que apoiaram a Lei Torricelli. O candidato William Clinton recebeu cerca de quatrocentos mil dólares para sua primeira campanha, quando se comprometeu a apoiar a Lei. E, de acordo com declarações posteriores de Mas Canosa, o presidente teria obtido pelo menos dois milhões durante a reeleição, embora nos registros oficiais aparecessem apenas quatrocentos mil. E o terceiro aspecto de seu êxito: quando o dinheiro, os contatos políticos ou pessoais não conseguiam convencer, vinha a chantagem, a ameaça e... seu esquema paramilitar. Mas vejamos alguns casos exemplares, que podem revelar uma parte da alma da Fundação Nacional Cubano-Americana. 105 Em outubro de 1976 foi dinamitado um avião da Cubana de Aviación, nas costas de Barbados. Orlando Bosch e Luis Posada Carriles foram detidos na Venezuela, acusados de serem os responsáveis intelectuais. Ambos desempenharam um papel de primeira grandeza na Guerra pelos caminhos do mundo. Em fevereiro de 1988, Orlando Bosch foi libertado, e voltou a Miami sem se importar com a ordem de prisão emanada do FBI. Depois de dois anos de cadeia, foi deixado em liberdade condicional. The New York Times disse, em editorial: Em nome da luta contra o terrorismo, os EUA enviaram aviões para bombardear a Líbia, e o exército para invadir o Panamá. E, agora, a Administração Bush deixa em liberdade um dos mais notórios terroristas do continente. E por que razão? A única evidente é agradar ao sul da Flórida. Segundo os relatórios do FBI, que se opunha a que o libertassem, Bosch não era mais um “notório”: era o pior. Estando preso, quiseram expulsá-lo, mas só Cuba aceitou recebê-lo para julgá-lo. Vários meios de informação afirmaram que o Secretário da Justiça dera a ordem de liberdade devido a “pressões políticas”. De onde vinham? Pessoas como Monsenhor Román, o congressista Lincoln Díaz-Balart e os diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana utilizaram seus contatos políticos em benefício do terrorista. Sua principal defensora foi a representante republicana cubano-estadunidense, Ileana Ros Lethinen, que chegou a incluir a libertação como parte de sua campanha eleitoral. A política foi quem mais recebeu contribuições da Fundação Nacional Cubano-Americana; seu chefe nas campanhas eleitorais foi Jeb Bush, filho do então presidente dos Estados Unidos; Jeb não só presidiu equipes de trabalho 106 na Fundação Nacional Cubano Americana, como mantém relações de negócio com seus membros. Vejamos o que aconteceu com Posada Carriles. Em 1985, misteriosamente, evadiu-se. Em 1994, enquanto era solicitado pelas autoridades venezuelanas, cubanas e estadunidenses, publicou em Miami o livro Os Caminhos do Guerreiro. Nessa espécie de biografia, reconhece o imenso apoio “econômico e moral” que recebeu dos diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana na cadeia, para sua fuga e posterior transferência para El Salvador. Neste país centro-americano, integrou-se ao trabalho secreto de apoio à Contra nicaragüense. Em um anexo da publicação diz que, dois dias depois de ter chegado: (...) recebi a visita do doutor Alberto Hernández (...) Um grupo de Miami, de pessoas muito qualificadas, entre as quais se encontravam Jorge Mas, Feliciano Foyo, Pepe Hernández e outros, fizeram um “pool” para cobrir minhas necessidades econômicas (...) Destinaram a mim uma quantia suficiente de dinheiro, que chegava cada mês (...) É preciso esclarecer que, na Fundação Nacional CubanoAmericana, Alberto Hernández foi o vicechairman; Foyo, o tesoureiro; e Pepe Hernández, Presidente Executivo. Mas, o que o terrorista não conta é que, segundo os registros da polícia venezuelana, Mas Canosa esteve negociando sua libertação com Gaspar Jiménez e Rolando Mendoza. Posteriormente, estes dois últimos tiveram que deixar a Fundação Nacional Cubano-Americana por seus compromissos quase públicos com o tráfico de drogas, passando a ser os guardas de Alberto Hernández. Em novembro de 1996, também da clandestinidade, e em dois programas, o Canal 23 entrevistou 107 longamente Posada Carriles. Por esse meio de informação, com reconhecida relação com a Fundação Nacional CubanoAmericana e os círculos mais reacionários, fez um chamado para que se empreendessem novas ações terroristas contra Cuba. E naquele mesmo momento ele as estava preparando: teve papel decisivo na série de bombas que explodiram em Cuba entre abril e setembro de 1997. Como anunciaram as autoridades da Ilha, o que foi confirmado por uma extensa investigação publicada pelo El Nuevo Herald em 16 de novembro de 1997, Posada Carriles foi o “elo chave” na série de atentados contra centros turísticos. Ele mesmo recrutou o autor material e seus cúmplices em El Salvador, e conseguiu que, em Miami, fossem arrecadados quinze mil dólares para os gastos. Segundo as declarações do terrorista salvadorenho Raúl Ernesto Cruz León, capturado pela polícia cubana como responsável, a Fundação Nacional Cubano-Americana foi a principal contribuinte, e seus principais dirigentes tinham contato direto com Posada Carriles. Mas voltando um pouco, e tentando seguir cronologicamente, deve-se dizer que Posada Carriles não “saiu” diretamente da prisão venezuelana para El Salvador por mera coincidência. É que nesse país, principalmente, a Fundação Nacional Cubano-Americana e outras organizações contrarevolucionárias tinham um papel no segundo braço do Projeto Democracia, clandestino, e coordenado de Washington pelo coronel Oliver North, sob a direção do Conselho Nacional de Segurança. Este braço estava destinado a apoiar logística e financeiramente a guerra suja contra o governo sandinista da Nicarágua. Félix Rodríguez era um dos poderosos na América Central, e o centro de operações, a base militar salvadorenha de Ilopango. Daí a CIA coordenava todo o abastecimento de armas e demais equipamentos de guerra para a Contra mercenária. 108 Também era usada como passagem de aviões carregados de cocaína e maconha para os Estados Unidos. Droga que era negociada com os chamados cartéis da máfia colombiana. Algo que pode parecer irreal, extremamente difícil de imaginar, quando a quase totalidade dos meios de comunicação no mundo repetia dia após dia que a Administração estava em guerra total contra o narcotráfico. Mas na investigação realizada pelo Senado estadunidense, conhecida como Comissão Kerry, não resta a menor dúvida que Reagan e Bush estavam a par do tráfico que começava na Bolívia e na Colômbia, passava pela América Central, e chegava a Miami, onde a droga era distribuída para as demais cidades para ser vendida. Foi o mais grave do escândalo Iran-Contragate, mas foi minimizado: acabava de cair a cabeça de Richard Nixon e era simplesmente impossível cortar a de outro presidente, ou vice-presidente, da suposta primeira grande democracia do mundo. Ramón Milián Rodríguez, cubano-estadunidense, lavador de dólares para a máfia colombiana, reconheceu, na Comissão do Senado, haver entregue, entre 1983 e 1985, cerca de dez milhões de dólares à Contra, distribuídos segundo as instruções de Félix Rodríguez. Membros da Fundação Nacional CubanoAmericana serviram de contato entre os dois homens. Félix Rodríguez, homenageado por Bush, em 1976, com a mais alta distinção da CIA, negou tudo e acreditaram nele. E Milián Rodríguez não era um desconhecido: fora convidado para a posse de Reagan, por ter doado cento e oitenta mil dólares para sua primeira campanha presidencial, entregues por “amigos” na Colômbia. Também Jorge Mas Canosa teve que declarar na Comissão Kerry: seus telefones pessoais, datas de encontros e anotações sobre seus deslocamentos pela América Central constavam da agenda do coronel North. Nessa investigação, assim como 109 em outras, jornalísticas, ficou provado que Canosa esteve várias vezes em Ilopango. O chefe dos chefes da Fundação Nacional Cubano-Americana garantiu que apenas deu “ajuda humanitária aos contras”. O Presidente Executivo da Fundação, ou seja, nosso entrevistado, também esteve bastante envolvido na guerra mercenária pela “liberdade” da Nicarágua, acompanhado de amigos não muito católicos. Até no livro Cuba em guerra. História da oposição anti-castrista, 1959-1993, pode-se ler: “O exílio cubano, simpático às forças de oposição, deram ampla ajuda aos “contras” da Nicarágua (...). Francisco Hernández “Papito” e René Corvo (...) combateram ativamente na frente guerrilheira”. Lembremos que Corvo, ex-abdalista, foi acusado pelo FBI e pela Comissão Kerry de tráfico de armas e drogas para a Contra. Ele admitiu a primeira acusação. Todas as investigações tornam evidente que desde o começo do governo Reagan, muitos cubano-estadunidenses foram enviados pela CIA a El Salvador, como assessores do esquema nascente. Outros foram designados para Honduras para, aparentemente, prestar assistência médica aos mercenários. Nessa área e na militar teve grande responsabilidade o vicechairman, Alberto Hernández. Já havia experiência nesse tipo de apoio, por terem servido na força reacionária da UNITA, em Angola, em meados dos anos setenta. Seja como for, o proceder delituoso do braço clandestino do Projeto Democracia não era novidade. Simplesmente foi cópia adaptada das operações encobertas que a CIA organizou no Sudeste asiático. Em janeiro de 1990, os membros do Board of Directors da Fundação Nacional Cubano-Americana receberam um documento confidencial, assinado por Jorge Mas Canosa, que dizia: 110 (...) a tática a seguir para garantir a FNCA reside no reconhecimento de toda a comunidade no exílio, dos irmãos cativos na Ilha, do governo dos Estados Unidos, e do resto dos governos e povos do Mundo Livre, o que tornará mais fácil para nós desempenhar o importante papel de protagonista que nos cabe na nova Cuba. Apesar de seu conteúdo ter vazado, pôde-se constatar que boa parte de suas orientações foi levada à prática. Vejamos as mais ilustrativas: Organizar viagens pelos países membros da Comunidade Econômica Européia, da Europa do Leste e da América Latina e Caribe com o propósito de nos apresentar como força beligerante no conflito cubano (...) Formar uma Task Force que sistematize contatos com o Conselho de Segurança Nacional, a CIA e o FBI para garantir, agora mais do que nunca, a identificação da política e das ações a realizar contra o governo stalinista de Cuba, um intercâmbio maior de informações de inteligência e o apoio econômico necessário para levar nossos planos a vias de fato (...) Organizar uma Task Force que sistematize e aprofunde as relações de trabalho estabelecidas com o Departamento de Estado para, de forma conjunta, elaborar e desenvolver novos planos de política internacional que respondam à atualidade (...) O presidente e vice-presidente da Task Force são os embaixadores José Sorzano e Armando Valladares, respectivamente, e como Assessora Especial estará também a Embaixatriz Jeanne Kirkpatrick (...) 111 Criar uma Task Force cuja primeira responsabilidade é conseguir a ida ao ar de nossa televisão Martí. Paralelamente, realizará estudos e planos conjuntos com a USIA/VOA para, em futuro imediato, integrar a programação da Rádio e TV Martí às estações de rádio e TV sob nosso controle junto com outras que venhamos a adquirir proximamente (...). Realizará estudos e propostas para neutralizar ou modificar as posições de jornalistas e meios de imprensa que durante estes anos se destacaram por serem contra a linha da FNCA (...) Criar-se-á outra Task Force cuja responsabilidade consiste em neutralizar aquelas pessoas ou organizações que reclamem para si ou tentem impedir que a Fundação Nacional Cubano-Americana assuma a liderança que conquistou (...) A palavra de ordem a seguir será a compra de vontades; mas, com aqueles que não ouvem outra linguagem senão a da violência, deveremos falar sua própria linguagem. Não vacilaremos diante de nada nem de ninguém; não queremos, mas se for necessário correr sangue, o sangue correrá. (Em negrito no original). Em 23 de novembro de 1997 morreu Jorge Mas Canosa. Todos os líderes do exílio, nos Estados Unidos e na Europa, que tiveram que enfrentar sua arrogância e intransigência política, reconheceram-lhe naquele momento, o mérito de ter sabido navegar entre os mecanismos da vida política estadunidense, e de ter feito da comunidade cubanoestadunidense “um poderoso grupo de pressão em Washington”. Até o presidente Clinton, que dias antes admitira na Argentina que a Fundação Nacional Cubano-Americana era 112 seu guia quando o assunto era Cuba, disse que Canosa fora uma “voz poderosa a favor da liberdade de Cuba”. Falou-se em orfandade do exílio, ao não se vislumbrar um sucessor “moral e político”. Uns acreditam que voltarão às duras e violentas disputas pela liderança única. Outros, mais otimistas, apostam em que as posições moderadas, incluindo as dos chamados dialogueiros, poderão ganhar um imenso terreno. A maioria, que desconhece as intimidades da política implementada em Washington contra Cuba, vê a Fundação Nacional Cubano-Americana como um projeto que nasceu, caminhou e chegou ao auge devido ao ativismo de Canosa. É indiscutível que ele lhe impôs sua dinâmica autoritária, envolta em sagacidade. Mas o essencial, como vimos nos parágrafos anteriores, está em que a Fundação Nacional CubanoAmericana, assim como as outras organizações do recalcitrante exílio, foram projetos da direção política dos Estados Unidos: aquela que sonha anexar Cuba. Por algo Carlos Alberto Montaner garantiu à imprensa espanhola: “o desaparecimento de Mas Canosa não significa nenhuma mudança na política norte-americana, porque esta é irredutível no que se refere ao regime castrista”. Mas falemos de nosso entrevistado. Fugindo da Revolução, Pepe Hernández saiu de Cuba em 1960. Logo em seguida se envolveu com o diretório Revolucionário Estudantil (DRE), organização de influência católica que a CIA utilizava para realizar tarefas de propaganda, sem excluir atos terroristas. Como conta em El exilio indomable, antes que a CIA o infiltrasse em Cuba, recebeu um treinamento muito rápido, de um par de semanas”, em técnicas de sabotagem e até em “como matar um indivíduo com um arame”. Já na Ilha, “fizemos vários ataques e atos contra o regime, inclusive o seqüestro de um professor da universidade, e coisas relacionadas 113 com atentados.” Quando regressou foi enviado à Guatemala, para um dos acampamentos onde a Agência preparava os mercenários que tentariam a invasão pela Baía dos Porcos. Desembarcou com a Brigada 2506, e em poucas horas foi capturado pelo Exército Rebelde. Ao ser libertado, alistou-se na Marinha de Guerra dos Estados Unidos, onde alcançou a patente de capitão. Ali, em Forte Benning, encontrou de novo Mas Canosa. Terminado esse primeiro curso mandaram-no para Quântico, na Virginia, para a Escola de Inteligência dos “Marines”. Por suas capacidades e dedicação foi transferido para o Pentágono, para realizar tarefas de inteligência, sob as ordens de Alexander Haig, que naquela época, era tenentecoronel. Durante a terrível guerra que travaram a França e, particularmente, os Estados Unidos contra os povos da Indochina, foi deslocado para o Camboja, onde “foi encarregado de uma unidade de interrogação de prisioneiros”. De novo nos Estados Unidos e sem deixar suas funções de militar, reiniciou sua colaboração com os grupos contrarevolucionários cubanos que realizavam atos terroristas contra Cuba: “podia ajudá-los sobretudo com treinamento”. Em 1965, “durante a invasão americana a Santo Domingo, também participei (...) Minha atividade consistia, sobretudo, como sempre, na parte de inteligência”. Posteriormente, e sem deixar suas tarefas com os “Marines”, entrou na universidade. Ao finalizar seus estudos, por volta de 1973, formou uma empresa agro-industrial, Agrotec International, e se instalou definitivamente em Miami. Esta empresa começou a “fazer trabalhos em um monte de países, inclusive alguns da África”. Hernández não especifica de onde apareceu o dinheiro para tudo isso, embora esclareça que seus sócios eram um veterinário e um nutricionista. Diz-se, sem que seja possível confirmar, 114 que parte do dinheiro investido provinha de arrecadações e negócios obscuros que, como outros dirigentes revolucionários, realizou. O que o atual presidente da Fundação Nacional CubanoAmericana reconhece é que Vargas Llosa, apesar de suas atividades como empresário, jamais deixou certos contatos especiais em Washington. Durante toda essa época de expansão do meu negócio eu tivera algumas relações também com os serviços de inteligência norte-americanos. Há serviços que os negócios independentes norte-americanos, as empresas privadas, realizam voluntariamente para as agências de inteligência dos Estados Unidos (...) O sistema funciona assim: se você vai à África e tem negócios no Egito, no Quênia ou na Nigéria, – e eu tinha negócios em todos esses países – e pode ajudá-los, vai prestar-lhes um bom serviço. De maneira que eu lhes dava o que em termos de inteligência se chama “cobertura”. Dá-se cobertura a alguns indivíduos que trabalham por conta própria (para os serviços de inteligência), mas que, de alguma forma, estão nas empresas (...) Há centenas de empresas em todo o mundo nessas condições, porque é um trabalho realizado muito freqüentemente. Com as primeiras luzes dos anos oitenta, deu-se a saída em massa pelo porto de Mariel; o empresário Hernández teve uma ativa participação na acolhida aos recém chegados. Estive pessoalmente, uma vez mais, pondo em prática meu treinamento em assuntos de inteligência ao interrogá-los (...) Então, eu, que tinha um grupo de indivíduos 115 especializados, interrogava-os a fundo. Nos interrogatórios determinávamos quem era essa gente (...) Esse trabalho era realizado em coordenação com o FBI. Estivemos dois ou três meses ali (...) Quase desde o começo, desde que era um projeto, Hernández fez parte da Fundação Nacional CubanoAmericana. No livro mencionado descreve, sem economizar nomes de pessoas, como altos níveis hierárquicos do Departamento de Estado e da CIA, inclusive importantes membros do Congresso, durante o governo Reagan, estiveram envolvidos na criação e posterior desenvolvimento da Fundação Nacional Cubano-Americana. E, isso sim, tenta parecer ingênuo no momento de estabelecer quem fertilizou e pariu o projeto: “não sei exatamente de quem veio a idéia original, porque estas coisas no começo tudo é muito difuso e ocorrem muitas conversas muito incertas”. Ele, sem dúvida, colaborou com muitíssimos grãos de areia, por intermédio de seus contatos: “Alguns de meus melhores amigos, durante todo este processo, são indivíduos que chegaram às posições mais altas da CIA.” Em 1991 foi eleito presidente da Fundação Nacional Cubano-Americana. Para o cargo que ocupa, Hernández não é uma pessoa que fale com fluidez. Foi parco nas respostas e dava até vontade de adiantar-lhe as palavras. Como dizíamos, depois de sua primeira resposta, não quisemos aprofundar assuntos mais candentes. Por exemplo, mordemos a língua para não lhe perguntar porque se vinculou aos irmãos Ignácio e Guillermo Novo, na comissão de informação e relações públicas da Fundação Nacional Cubano-Americana, tal como informou The New York Times, em 27 de novembro de 1990. Por acaso não conheciam seus antecedentes como terroristas e 116 traficantes de drogas? Não, não nos atrevemos: contentamonos com sua versão sobre coisas mais gerais. Apesar do aparente esquecimento de quase todos os meios de comunicação no mundo, continua pesando sobre Pepe Hernández um problema judicial um tanto delicado. Trata-se do que o FBI adiantou em Porto Rico, e que o envolve na preparação de um atentado contra a vida do presidente Fidel Castro. Pensava-se realizar o atentado durante a reunião de chefes de Estado Ibero-americanos, no final de 1997, na Venezuela. Embora Hernández não tenha sido preso, foram detidos outros seis contra-revolucionários cubanos, entre eles José Antonio Llama, também diretor da Fundação Nacional CubanoAmericana e da Fundação Hispano Cubana. (Como era de se esperar, no começo de dezembro de 1999, um tribunal federal declarou inocentes essas pessoas, apesar das provas em contrário). Atualmente, e depois da morte de Jorge Mas Canosa, é o grande chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana. E, como tal, tentou estabelecer, junto à justiça espanhola, em novembro de 1998, “ações legais, a nível mundial, contra Fidel Castro e seus cúmplices, por genocídio”. Inspirava-se no tão falado caso do ditador chileno, Augusto Pinochet. Obteve uma total negação, ficando sem recursos para continuar os trâmites. Por último, é interessante saber como Pepe Hernández descrevia a personalidade de Mas Canosa, que morreria alguns meses depois: “Jorge é um homem de um caráter autoritário, não há a menor dúvida; ou seja, um indivíduo que gosta que sua vontade seja feita.” Um pouco mais adiante, também no livro El exilio indomable, diz de si mesmo: “Provavelmente sou mais autoritário do que ele.” Ao sair da entrevista, em uma mesinha na recepção, pegamos o boletim no 390 da Representação Cubana no Exílio. Pelo menos têm a honestidade de não negar as raízes... 117 – Senhor Hernández, por decidiu formar a Fundação Nacional Cubano-Americana? – Embora se diga que a Fundação foi iniciativa da Administração Reagan, a verdade é outra. Olhem, desde 1978 havia interesse de uma série de elementos, no interior dos Estados Unidos, principalmente, em promover a aproximação entre os dois países. Ou seja, para que se levantasse o embargo. E um grupo de pessoas do exílio decidiu opor-se a essa situação, pois não se podia dar legitimidade a esse regime. Assim foi nascendo a Fundação, sem nenhuma relação com Reagan ou com o Departamento de Estado. – Pode-se dizer que a Fundação Nacional Cubano-Americana chegou a este mundo com um poder imenso, a ponto de deixar de lado as outras organizações do exílio. Como o senhor explica isso? – Não se pode saber porque uma organização se desenvolve e prevalece sobre as outras. Possivelmente será devido ao gênio de seus fundadores, ou por seus recursos econômicos, ou devido à clareza de seus princípios. Mas a realidade é que a Fundação nasceu com um conhecimento bastante efetivo do mecanismo do sistema político norte-americano. Nós, em geral, fomos pessoas que, por diferentes razões, tínhamos estado em contato direto com a política deste país, e sabíamos quão flexível e dúctil é. Depois da comunidade judaica, o exílio cubano foi a minoria que mais logrou penetrar neste sistema. Por isso quisemos aprender com ela. E por isso não negamos que fomos, não treinados, mas estimulados e dirigidos por ativistas judeuamericanos, nos primeiros anos. Agora, os demais grupos cubanos do exílio nunca tinham se esforçado por levar suas preocupações e interesses até Washington. Todos achavam que gritando e fazendo manifestações em Miami, iam conseguir repercussão no Congresso ou na Casa Branca. Nós nos 118 organizamos para influir na política americana e lá era o lugar ideal para fazê-lo. Claro que não nos limitamos a aquela cidade. Fomos para Moscou, antes da queda da URSS, e trouxemos os russos. Convidamos Boris Yeltsin em 1989, quando este ainda era um proscrito. E Mas Canosa foi com Armando Valladares para a Polônia, para entrevistar Lech Walesa. E o resultado foi que se conseguiu o cancelamento da ajuda econômica e militar da URSS e do bloco socialista ao regime castrista. A influência da Fundação pode ser atribuída a um modus operandi que ainda não fora utilizado. Mas, também, e sobretudo, porque lutamos com a verdade. Até o reverendo Jesse Jackson, congressista totalmente oposto a nós, acabou nos apoiando. Quando, em março de 1994, Mas Canosa testemunhou no Congresso norte-americano sobre a violação aos direitos humanos em Cuba, o reverendo se aproximou e lhe disse que queria ser seu amigo e dos cubanos livres. – Mas o senhor diz que a Fundação Nacional CubanoAmericana conseguiu influir, tanto no Congresso, como na Casa Branca, por ser um “clube de milionários” que sabem distribuir dinheiro entre os políticos. – Não vou perder meu tempo defendendo a Fundação dessas bobagens. Isto não é um clube de milionários. Claro, nunca o escondemos, a junta de diretores é composta de homens com muito êxito econômico, e que por isso fazem contribuições extraordinárias. Mas é que dificilmente encontramos, em qualquer país da América Latina, e dentro do processo histórico do exílio cubano, homens com tanto êxito que dediquem seu tempo e seu dinheiro para tentar recobrar a liberdade de seu país. E acho que o povo cubano, num futuro não muito distante, sentirá orgulho deles. 119 – Senhor Hernández, uma das observações mais comuns sobre os diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana é que sua maior ambição está em liderar um governo pósrevolucionário. – Essa é outra grande bobagem. Porque, antes de mais nada, nós não somos um partido político; estamos interessados em conseguir a liberdade de nosso povo. Claro, se, depois de expulsar o comunismo de Cuba, algum de nós chega a ser eleito para um cargo importante no novo governo, é porque merece, tanto quanto qualquer outro... – Desculpe a interrupção, mas parece que a Fundação Nacional Cubano-Americana não exclui a possibilidade de entrar em Cuba pela mão dos Estados Unidos... – Quantas bobagens! Como se perde tempo! Nós demonstramos, desde o princípio, que demos voz ao povo cubano e não ao governo norte-americano. Estamos certos que, se não fosse pela Fundação, o governo americano já teria negociado com Castro. Se vocês lerem com atenção nosso Plano de Transição, preparado para quando possamos voltar, verá que não proclamamos que Cuba será outro Porto Rico. Mas o certo é que Cuba é uma nação privilegiada por estar a noventa milhas dos Estados Unidos, e por isso são possíveis relações econômicas cordiais e amistosas, para uma integração de mercados. O que queremos dizer é que não pode haver normalização de relações entre Cuba e os Estados Unidos enquanto lá não exista democracia. – Senhor Hernández, utilizou o termo “transição”... – A transição em Cuba começou mentalmente faz tempo. Desde que as esferas de poder, dentro do regime, compreenderam que não se chegaria a um acordo com os Estados Unidos, devido à intransigência de Castro. Porque Castro quer chegar a entenderse com os americanos, mas sem entregar poder nem liberdades. 120 Nós sabemos que existe um círculo, até dentro das Forças Armadas, consciente que Castro não vai salvar Cuba. E estamos dispostos a chegar a um entendimento com aqueles que estejam no poder e aceitem devolver as liberdades ao povo cubano. – Senhor Hernández, quais foram as maiores vitórias da Fundação Nacional Cubano-Americana nestes anos de atividade? – Fundamentalmente, levar a realidade de Cuba e dos cubanos pelo mundo. E para isso, tivemos uma quantidade de êxitos que seria muito longo enumerar. Mas, entre os primeiros, estão Rádio Martí e Tele-Martí. Isso deu grande impulso à Fundação. Também nos movemos em diferentes campos, como o humanitário, ajudando os cubanos necessitados, o que nos deu um grande espaço entre os exilados. Também temos uma série de projetos, como a Missão Martí, que está sendo preparada como um corpo de paz para quando chegue a libertação. Com a Missão Martí treinamos mais de dois mil jovens cubanos, para que vão e ajudem por um ano ou dois na reconstrução do país. Temos a Fundação para os direitos humanos em Cuba, com a qual estivemos sete vezes na Comissão de Direitos Humanos de Genebra. Como vêem, a Fundação se movimentou em diferentes campos, mas só se ouve falar de seu trabalho político, como as Leis Torricelli e Helms-Burton, onde, não vamos negar, tivemos uma participação substancial. – Já que o menciona. Devido à possibilidade de os Estados Unidos aplicarem definitivamente a Lei Helms-Burton, o que pode afetar as relações com os países da União Européia, Cuba tornou-se tema de discussão... – Sim, sabemos que na Europa aumentou o interesse pelo problema cubano. E esse era um de nossos objetivos: a Lei Helms-Burton era para isso. Pois se os investidores europeus 121 não entendiam com boas maneiras, era necessário mostrar-lhes a questão de outra forma. Porque os europeus não podem continuar mandando seus investidores para que aproveitem e roubem o que não lhes pertence. Agora, se vão continuar fazendo isso, que paguem o preço. Devem enfrentar as conseqüências: agora, com os americanos e depois, na Cuba libertada, conosco. – Mas parece que o presidente Clinton quer negociar com os governos europeus os pontos que ensejam mais conflito. – Pode ser que a Administração Clinton e os europeus negociem. Mas não se pode esquecer que isso teria que passar pelo Congresso norte-americano. E ali não vão derrubar essa Lei. Nós conseguimos tirar a política dos Estados Unidos, com relação a Cuba, das mãos das administrações, que mudam a cada quatro anos. Já não é o presidente que pode levantar o embargo, mas sim os verdadeiros representantes do povo norteamericano. E isso é um triunfo do exílio cubano, porque a realidade é que a Europa se defrontou com uma encruzilhada: escolhem os Estados Unidos ou Castro. Mas eles não vão brigar com os americanos, e sabem muito bem que não podem ser bons amigos de ambos. E isso os ingleses nos disseram. Os Estados Unidos não podem permitir que os europeus dêem créditos ao governo cubano, ou que invistam facilmente lá. Como os americanos e nós vamos permitir que isso aconteça? – Senhor Hernández, a Fundação Nacional CubanoAmericana tem representação em algum país europeu? – Temos delegações em Praga, em Moscou e na Espanha. Nossa presença nesses países pretende evitar que se estabeleçam relações de governo que favoreçam o regime castrista. Além disso, há também uma decisão da Junta diretora de estabelecer outro escritório em Bruxelas. Estamos nesse processo. Sabemos que o trabalho na Europa é diferente, mas estamos aprendendo. Vamos fazê-lo bem e como Fundação. Porque nesse momento 122 é muito importante estar na União Européia para dirigir a atenção dos europeus, em oposição ao regime cubano. – De todo modo, já conseguiram fincar os pés na Espanha, tanto pela proximidade com o Partido Popular, como pela Fundação Hispano-Cubana. – Sim, as relações com o Partido Popular são muito boas. Não o negamos. Mas não temos nada a ver com a Fundação Hispano-Cubana. Claro que a título pessoal eu e outros diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana fazemos parte de sua direção, que eles chamam de Patronato. Mas é dirigida por espanhóis. Mais, dentro da Fundação Hispânica há pessoas com as quais não concordamos quanto aos métodos de luta, como Elizardo Sánchez. Mas, em geral, todos estamos de acordo em que queremos liberdades para o povo cubano. – Parece-nos que os senhores apóiam o trabalho que está desenvolvendo o Embaixador especial do presidente Clinton para assuntos cubanos... – Saudamos e apoiamos seu trabalho. Realizou um trabalho muito bom junto às Organizações Não Governamentais do Canadá e da Europa. Não deixou de insistir com eles para que não aceitem as condições que o governo cubano lhes impõe para estarem presentes lá. E sabemos que foi bem acolhido entre algumas Organizações Não Governamentais da Espanha, da França e da Holanda. Vamos complementar seu trabalho: já estamos nos aproximando, e dialogando com essas organizações, para que nos apoiemos mutuamente. – Senhor Hernández, uma última pergunta. Que relação tem a Fundação Nacional Cubano-Americana com a chamada dissidência interna cubana? – Nós, através dos anos, apoiamos e estimulamos a dissidência. Sobretudo a partir do trabalho com os direitos humanos. Fomos uma das primeiras organizações a começar 123 esse trabalho lá, até convencê-los que deviam se organizar a partir dos direitos humanos, principalmente, por ser uma causa muito nobre e bem recebida em todo o mundo. Fizeram isso e vejam que bons resultados: por toda a Europa se fala dos dissidentes cubanos pelos direitos humanos. É preciso insistir nisso, para que esses grupos e outros tipos de dissidentes, como os jornalistas independentes, cumpram o papel central que tiveram em seu momento os da URSS e da Polônia, para derrubar o regime. Isso é primordial. La Voz de la Fundación e a Rádio Martí tiveram uma atuação de primeira ordem para ajudar a organizá-los, e levarlhes nossas propostas; para ajudá-los a buscar o caminho da liberdade. A dissidência sabe que estamos com eles; que os europeus começaram a apoiá-los. Que na Holanda, na Alemanha e na Espanha há Organizações Não Governamentais que mantêm seu trabalho de direitos humanos; que, na Espanha e em Paris, os Jornalistas Sem Fronteiras se dedicaram a dar a mão aos jornalistas independentes. Por isso a dissidência em Cuba está, a cada dia, criando mais coragem e desafiando o regime. 124 VII “Consideramos que, em Cuba, não há uma política oficial de tortura”. RAMÓN CERNUDA - Colecionador de obras de arte. Representante no exterior da Coordenação de Organizações de Direitos Humanos em Cuba A década de oitenta “será lembrada, nos anais da oposição anti-castrista, como a era da luta pelos direitos humanos e do uso efetivo das telecomunicações para enfrentar o regime”.58 Têm razão. Mas a história parece ser mais complexa. Voltando no tempo, e embora não tenhamos referências para garantir que o fez por iniciativa própria, ou instruída pela CIA, foi a organização terrorista Abdala que começou a marcar o compasso na utilização do tema “direitos humanos”, como elemento ideológico de guerra. No final dos anos setenta e começo da década seguinte, apesar de ter sido “parte vital da luta armada da FLNC”. Foram “os abdalistas que representaram o exílio em fóruns internacionais, criando comitês de direitos humanos”.59 58 Enrique Encinosa. Obra citada. 59 Idem. 125 Mas foi a Administração Reagan que começou a campanha minuciosa e calculada nesse sentido. Todas as possibilidades foram sendo viabilizadas e centralizadas, para que nos grandes fóruns mundiais se começasse a questionar o governo cubano, por supostas violações aos direitos humanos. Possivelmente isso se enquadrava na Disposição Executiva no 77, que em outro de seus parágrafos recomendava: “ir construindo pressões públicas contra Cuba, para evitar que a opinião pública e em especial a estadunidense e a européia, limitem a política de confronto com o governo cubano”. Para tal finalidade, como já foi dito, a Disposição permitia ao Conselho Nacional de Segurança coordenar esforços entre as agências, apoiando pública e secretamente os grupos que, em qualquer lugar do planeta, fossem do agrado ou coincidissem com os objetivos traçados em Washington, ou seja, nesse caso que pretendessem implodir o sistema cubano. Mas, apesar de ter sido um plano do governo estadunidense, foi a Internacional Democrata Cristã, com sede em Bruxelas, que saiu na frente, com um grupo seu em Miami, fazendo lobby. Com esse propósito animou, entre outros, José Ignácio Rasco, ex-dirigente do Conselho Cubano Revolucionário, exmembro da Alpha 66 e ex-agente da CIA, para que tire das cinzas o Movimento Democrata Cristão, fazendo-o participar dos órgãos internacionais. A campanha pela libertação do expolicial de Batista, Armando Valladares, serviu como prática. Muito em breve seria seguida por outras organizações contrarevolucionárias, como Cuba Independente e Democrática, a Fundação Nacional Cubano-Americana, e a Plataforma Democrática Cubana, esta última em Madri. Como sinal do êxito de sua estratégia, com as últimas luzes dos anos oitenta, foi a pique o bloco do Leste. Todos esperavam que Cuba, não podendo contar com esses sócios privilegiados, 126 isolada no Caribe, naufragasse em questão de semanas ou meses. Nada. Embora já fizesse parte fundamental do projeto desestabilizador incentivar a criação de todo tipo de organizações opositoras ao Estado, triplicaram naquele momento, sendo orientadas a priorizar a bandeira dos direitos humanos. Os estrategistas estadunidenses e seus aliados já tinham provado sua eficiência: “O êxito obtido por movimentos de direitos humanos nos países comunistas tinha se baseado em sua ênfase restrita a este tema, para não serem acusados de elementos beligerantes de oposição”.60 Na introdução à entrevista do senhor Hernández, descrevemos as intimidades políticas da National Endowment for Democracy. Vejamos agora uns poucos exemplos de seu apoio financeiro a organizações contra-revolucionárias que começaram a levantar a bandeira em prol dos direitos humanos e da democracia em Cuba, durante aquela conjuntura particular dos três primeiros anos da década de noventa. As fontes são os próprios relatórios da National Endowment for Democracy. Como já se disse, o principal receptor desta organização foi a Fundação Nacional CubanoAmericana. Freedom House recebeu trinta mil dólares para produzir quatro livros, com tiragem de cinco mil exemplares cada um. Seriam entregues a sediciosos em Cuba, para distribuição entre a população. O Comitê Cubano Pró Direitos Humanos, representado em Miami por Ricardo Bofill e dirigido em Cuba pelos irmãos Gustavo e Sebastián Arcos, recebeu trinta mil dólares, em 1990, por intermédio da Fundação Nacional Cubano-Americana. No ano seguinte, obteve quarenta e quatro mil dólares 60 Idem. 127 diretamente. Este dinheiro serviu para distribuir informação contra-revolucionária e cobrir deslocamentos de seus membros para a Espanha, Itália, França e Rússia. O Instituto para Assuntos Internacionais do Partido Republicano recebeu oitenta mil dólares para um encontro promovido pela Fundação Nacional Cubano-Americana. Dele participaram funcionários governamentais e acadêmicos da exURSS, ex-Checoslováquia, Hungria, Estados Unidos, assim como expoentes do setor mais reacionário do exílio. O tema central era de como favorecer as mudanças em Cuba, e a forma de canalizar apoio sistemático aos grupos denominados dissidentes. Parte do encontro foi transmitida a Cuba pela Rádio Marti. No final de 1992, Carl Gershman, diretor da National Endowment for Democracy, informava sobre o aumento de fundos para esse tipo de atividade. Mas, sobretudo, foi anunciado o aumento do apoio à contra-revolução interna. Sem nenhum pudor, garantiu que se utilizaria o turismo como forma de fazer entrar dinheiro e propaganda contrarevolucionária, tal como se fizera na URSS e na Polônia. Como ratificação ao que fora proposto pelo diretor da National Endowment for Democracy, o presidente William Clinton assumiu as recomendações de Donald E. Schulz, do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra do Exército estadunidense, vinculando-as ao que fora estipulado na Lei Torricelli. Parágrafos: Promover os contatos interpessoais entre cidadãos cubanos e norte-americanos mediante correspondência, telefone, serviços de transporte e turismo; assim como intercâmbios culturais e científicos; estabelecimento de escritórios de imprensa etc. (...) dando facilidades para que os elementos 128 dissidentes se comuniquem abertamente e estimulem uma maior fragmentação (...)61 Com a Lei Helms-Burton em cima da mesa, o apoio político e econômico para a contra-revolução tornou-se abundante, a partir de fontes oficiais e privadas. Por exemplo, no começo de dezembro de 1997, o próprio Helms exerceu o poder de seu cargo como presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, para exigir que se entregasse, o mais rapidamente possível, uma remessa de quase dois milhões de dólares a várias organizações “promotoras dos direitos humanos”, que têm como objetivo “fomentar a democracia” no interior da Ilha. Foi assim que a ultra conservadora Associação de ExFazendeiros Cubanos recebeu oitocentos mil dólares para que seu recém criado Instituto pela Democracia em Cuba enviasse materiais e desse “ajuda” à contra-revolução interna. A Frank Calzón, por intermédio do Free Cuba Center, foram entregues quinhentos mil dólares para que continuasse “promovendo a sociedade civil em Cuba”. À International Foundation of Electoral Systems foram entregues trinta e seis mil dólares para que produzisse análises sobre os desafios técnicos de “eleições livres em Cuba”. Ao ex-diretor da Rádio Martí, Ernesto Betancourt, foram atribuídos cento e dez mil dólares para que realizasse pesquisas de opinião com os viajantes cubanos que chegam aos Estados Unidos. O muito ilógico de tudo isso é que a Lei Helms-Burton, em sua Seção 109, referenda o “direito” estadunidense de 61 Donald E. Schulz: EE. UU. y Cuba: de la estrategia de conflicto al compromisso constructivo. Instituto de Estudios Estrategicos de la Escuela Superior de Guerra del Ejercito de Estados Unidos. 1993. 129 contribuir moral, financeira e materialmente para o desenvolvimento da contra-revolução em Cuba. Mas, devido ao embargo, e aqui está o irracional, o Departamento do Tesouro estabelecera disposições radicais para sancionar qualquer cidadão estadunidense que receba dinheiro proveniente de Cuba (do governo, entidade, ou cidadão cubano), com privação de liberdade por até dez anos e uma multa que pode chegar aos duzentos e cinqüenta mil dólares. Mas existem outros elos importantes na cadeia. É o que se pode perceber facilmente pela leitura de certos documentos. A quase totalidade dos meios de informação do mundo, assim como várias organizações internacionais de direitos humanos e políticas, vêm insistindo na “luta heróica de um punhado de homens e mulheres dissidentes e independentes” que, sozinhos e sem recursos, enfrentam o sistema cubano. Mas, em março de 1994, as autoridades da Ilha tornaram público um documento assinado pelo Chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana (SINA), Joseph Sullivan. O documento “Top Secret”, que, segundo disse o governo cubano, “fora trazido por mãos amigas”, estava dirigido ao Departamento de Estado, ao Immigration and Naturalization Service (INS) e à CIA. Classificado com a referência H 18422 693-4, “Assunto: Situação atual do programa para os refugiados cubanos”, o documento foi entregue oficialmente à ONU e aos meios de comunicação pelo governo cubano: nem uma reação. Isso, apesar de que contradiz frontalmente o relatório apresentado naquela época pelo Relator Especial da ONU, Carl-Johan Groth, sobre supostas violações aos direitos humanos em Cuba. Consideramos revelador o relatório do diplomata Sullivam e que, portanto, pode levar a sérios questionamentos sobre a 130 realidade e a honestidade da dissidência. Dada sua importância, transcrevemos a maior parte do texto. No processamento de solicitações de vistos para refugiados continuam se apresentando casos pouco sólidos. A maioria das pessoas apresenta seus pedidos, mais do que por um verdadeiro temor de perseguição, pela deterioração da situação econômica. São particularmente difíceis, para os funcionários da Seção de Interesses norte-americana e do Immigration and Naturalization Service, os casos apresentados pelos ativistas de direitos humanos. Apesar de que temos feito todo o possível para trabalhar com as organizações de direitos humanos, sobre as quais exercemos mais controle na identificação dos ativistas verdadeiramente perseguidos pelo Governo, os casos de direitos humanos representam a categoria menos sólida do programa de refugiados. As solicitações apresentadas pelos membros dos grupos de direitos humanos se caracterizam por constituírem descrições gerais e imprecisas sobre supostas atividades de direitos humanos, pela falta de provas convincentes de perseguição e por não cumprir os parâmetros de processamento fundamentais que o programa estabelece. Nos últimos meses persistiram as acusações de solicitações fraudulentas por parte de ativistas e venda de avais testemunhais, por parte dos líderes de direitos humanos. Devido à falta de provas documentais verificáveis, como norma, os funcionários da Seção de Interesses norte-americana e os membros do Immigration and Naturalization Service consideraram os casos de direitos humanos como os mais susceptíveis de fraude (...) Embora os funcionários da Seção de Interesses norteamericana tenham tentado atender os casos que estejam de 131 acordo com os critérios do processamento, continuaram sendo flexíveis com relação a casos que não cumprem alguns dos requisitos, mas que são de interesse para os Estados Unidos. Já foi reconhecido abertamente, por alguns dos ex-presos políticos, que recorrem ao estatuto de refugiados para escapar da cada vez mais deteriorada economia, e não por causa de um verdadeiro temor de perseguição e pressão (...) Lamentavelmente, a qualidade de muitas das solicitações, em sentido geral, é ruim. São poucos os ex-presos políticos aceitos como refugiados atualmente, quando se compara com os de anos atrás. Como regra, cumpriram sentenças muito mais curtas, em comparação aos primeiros que ingressaram no programa. A maioria desempenhou papéis de menor importância nos grupos contra-revolucionários, integrou o sistema de reeducação política, para que suas sentenças fossem diminuídas e, posteriormente, abandonaram as atividades políticas para reintegrar-se à sociedade cubana (...) Verificou-se um aumento do número de casos de direitos humanos desde 1992. Apesar disso, este aumento não parte de um maior nível na atividade de direitos humanos, do incremento em sua composição, nem da repressão governamental. A maioria dos casos raramente expõe evidências convincentes de perseguição e, com freqüência, só oferece provas mínimas, pouco confiáveis, de participação em atividades de direitos humanos. Os testemunhos dos líderes de direitos humanos geralmente contêm descrições vagas de atividades de direitos humanos como o apoio moral às famílias de presos políticos. Estas descrições demonstram com exatidão o pouco nível das 132 atividades e a atitude de não enfrentamento da maioria dos grupos de direitos humanos em relação ao governo cubano (...) A tendência geral foi a falta de elementos comprobatórios de que a pessoa é de fato um ativista, o que deixa esta categoria praticamente aberta a todo aquele que a reivindica. Os jovens que foram surpreendidos tentando sair ilegalmente do país, a partir do colapso econômico de 1989, começaram a apresentar suas solicitações como ativistas de direitos humanos. Os líderes dos direitos humanos informaram aos funcionários da Seção de Interesses norteamericana que estão conscientes de que a maioria de seus membros só entra nos grupos para fazer jus às vantagens oferecidas pelo programa de refugiados (...) Nos casos em que as provas testemunhais dos ativistas são pobres, mas o nível de compromisso com os Estados Unidos está bem definido, os funcionários responsáveis pela avaliação preliminar concedem ao solicitante o benefício da dúvida. O líder de um dos grupos disse que alguns abandonavam sua organização quando percebiam que esta não dava aval a seus membros. Queixou-se das pressões de membros que pediam avais convincentes sobre suas atividades de direitos humanos. O INS, em suas últimas visitas, foi testemunha de reiterados incidentes de fraudes e supostas fraudes cometidas por ativistas de direitos humanos (...) Também reuniu-se com chefes de organizações de direitos humanos para determinar seus objetivos, o número de integrantes e outros aspectos dos principais 133 grupos. A Seção de Interesses norte-americana limitou a aceitação de testemunhos de grupos aos líderes em que confiamos (...) Lamentavelmente, estas medidas nem sequer impediram as supostas fraudes nem as amargas recriminações entre os altos líderes de organizações de direitos humanos. Pouco antes da visita em dezembro, do INS, Gustavo Arcos e Jesús Yanez, do Comitê Cubano Pró Direitos Humanos, acusaram Aída Valdés de vender avais fraudulentos. Esta, por sua vez, acusou Arcos e Yanez de cometer práticas similares com fins lucrativos. Esta situação exacerba a preocupação geral com relação ao perigo de confiar em testemunhos. A profunda rivalidade e as lutas internas entre grupos de direitos humanos tornam simplesmente inevitáveis as repetidas acusações de fraude vigentes (...) Durante uma reunião com a SINA e o INS, Félix Bonne, chefe do grupo Corrente Cívica, qualificou o programa para refugiados de “o objetivo primeiro de muitos líderes de organizações de direitos humanos” (...) Se bem insistimos ao máximo com os grupos de direitos humanos para que apresentassem os casos mais sólidos, as entrevistas, em sua maioria, ofereceram casos não contundentes (...) A maioria dos ativistas só consegue descrever vagamente sua participação em grupos de direitos humanos (...) Os problemas encontrados ao processar a maioria dos casos de direitos humanos indicam que é necessário que a Seção de Interesses norte-americana continue trabalhando em estreita coordenação com o INS para selecionar casos sólidos. 134 Não obstante, a Seção de Interesses norte-americana continuará sendo flexível apresentando casos que, embora não cumpram todos os requisitos, por sua natureza possam vir a ser úteis aos interesses dos EUA. Dados os interesses expressos da CIA no tema dos direitos humanos, e sua crescente participação e maior conhecimento dos distintos grupos de direitos humanos, sugerimos uma cooperação mais estreita com a Seção de Interesses norteamericana, de acordo com nossos interesses comuns. Mas, embora com um perfil muito baixo, desestabilizar o sistema, apoiando-se em pessoas ou grupúsculos no interior, não é apenas uma meta do governo estadunidense. Também os europeus participam: “Na maioria das Chancelarias da Europa ocidental, um conselheiro ou secretário tem, entre suas funções, ouvir os militantes dos direitos humanos (...) Durante muito tempo, esta discreta atenção foi oferecida pelo conjunto de missões diplomáticas.”62 Para sermos um pouco mais precisos, retomemos o que William Claes expôs, em 1994. Naquele momento ocupava o cargo de Ministro de Relações Exteriores da Bélgica, passando depois a ocupar a Secretaria Geral da OTAN. Claes respondia a uma pergunta do deputado Van Nieuwenhuysen, sobre porque a Bélgica mantinha uma Embaixada em Cuba. Resposta: A presença de uma Embaixada belga em Cuba nos permite tentar contribuir, junto com nossos aliados da União Européia, para uma transição pacífica para a democracia 62 Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993. 135 (...) Igualmente, este foi o motivo da presença belga nos diferentes países da Europa do Leste, onde nossas missões diplomáticas puderam reagir rapidamente às mudanças políticas e econômicas.63 Agora sim, vamos a Ramón Cernuda. É um homem endinheirado, que se dedica à compra e venda de obras de arte, e que, de um momento para o outro, tornou-se popular em Miami. Tudo começou em 1989, quando agentes da alfândega invadiram sua casa, acusando-o de traficar com obras de arte cubanas, depois do embargo. Poucos dias depois, Mas Canosa se vangloriou, pelo rádio, de ter pressionado o fiscal, Dexter Lethinen, marido da congressista Ileana, a realizar a ação. Cernuda tinha cometido o grave erro de questionar os procedimentos utilizados pelo ex-chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana para desenvolver suas atividades contrarevolucionárias. Por fim a justiça federal deixou o caso sem efeito. Os meios de informação em Miami fizeram de Ramón Cernuda seu assunto preferido, quando tornou-se público que era o representante no exterior de Elizardo Sánchez, que dirige em Havana o grupúsculo Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional. Cernuda se converteu em escândalo a partir do momento em que Sánchez propôs o diálogo como meio de abalar o sistema. Porque, como já sabemos, falar em diálogo em Miami é algo delicado. Sánchez, nas tantas conferências que pronunciou no exterior, e apesar de repetir que é apolítico, que luta pelos direitos humanos, propõe pressionar Fidel Castro para que inicie as transformações políticas e econômicas 63 Camara de Representantes de Belgica: “Preguntas y Respuestas (GZ 1993-1994...). 136 necessárias à dissolução do sistema socialista, sendo o único com poder necessário para implementar uma transição. Não impede que em seguidamente declare que Castro é o principal obstáculo a essas mudanças. Quando chamam sua atenção para essa contradição, responde que “este é um dos paradoxos cubanos”. Como representante, Cernuda realizou uma ativa promoção internacional de Sánchez, a ponto de conseguir que, em 10 de dezembro de 1996, este recebesse a mais alta distinção que o governo francês concede a quem desenvolve atividades em prol dos direitos humanos no mundo. A placa e os quase vinte mil dólares lhe foram concedidos por “dar ajuda legal e assistência humanitária às vítimas de repressão governamental”. Não se soube publicamente que tipo de assistência prestou, nem a que vítimas, e menos a que repressão se faz referência. Enquanto isso, exatamente há um ano, a Anistia Internacional dizia em um boletim que várias pessoas, entre elas familiares de presos cubanos, tinham ido à casa de Sánchez para cobrar um dinheiro do instituto católico Puebla, Organização Não Governamental estadunidense financiada pela National for Endowment Democracy, que teria sido canalizado por seu intermédio. O governo francês concedeu-lhe a distinção, sem que se questionasse o fato de que o laureado fora um dos animadores, no interior de Cuba, da chamada Coordenação Democrática Cubana.64 Essa espécie de grupo “federativo” se organizou sob os auspícios da Plataforma Democrática Cubana, com dirigentes tão reacionários e anexionistas quanto Ignacio Rasco e Carlos Alberto Montaner, e da qual Hubert Matos estaria próximo. Sánchez recebeu o prêmio poucos meses depois de 64 Carlos Alberto Montaner: Cuba hoy. La lenta muerte del castrismo, Fundacion para el Analisis y los Estudios Sociales, Partido Popular espanhol, no 27, Madrid, 1995. 137 ter passado a integrar a direção central da Fundação HispanoCubana, cargo que passou a compartilhar com Mas Canosa, outros quatro dirigentes da Fundação Nacional CubanoAmericana, Carlos Alberto Montaner, e conhecidas figuras do conservadorismo espanhol. Para Eloy Gutiérrez Menoyo, ex-preso político e dirigente de um grupo que apóia o diálogo com o governo cubano, Sánchez “se uniu à extrema direita que quer cortar a cabeça de Fidel Castro”. A realidade é que Sánchez entra e sai regularmente de Cuba; diz no exterior o que quer contra o governo cubano, contradizendo constantemente as afirmações de Cernuda; e se mantém muito elegante e esbanjando saúde. Ou seja, ao contrário do que dizem os comunicados de algumas organizações internacionais de direitos humanos, em sua vida não se vislumbra nenhum martírio. – Senhor Cernuda, internacionalmente tem-se a idéia que o exílio em Miami desempenha um papel de primeira grandeza na situação política cubana. Além disso, que este exílio é básico para mudar o sistema atual. Isso é correto? – Um dos grandes problemas deste exílio é que quis para si um papel de protagonista nos processos de mudança em Cuba. Exigiu sempre um papel principal que não lhe cabe porque, nem histórica nem politicamente, pode cumprir esse papel. Ainda dentro de Cuba, aqueles que se opõem ao governo olham às vezes com certa desconfiança para nós, que estamos no exterior, pois sabem que vivemos outra realidade social, econômica, política e cultural. Situação que se agrava com relação aos que vivemos nos Estados Unidos, já que historicamente a nação cubana teve que lidar com uma corrente de pensamento político de tipo anexionista. Desde finais do 138 século XVIII e durante todo o século XIX, em Cuba existiram cubanos que achavam que nosso destino devia depender dos americanos. E até hoje isso se mantém. Foi um componente minoritário, mas que, por possuir muito poder, pôs em perigo o projeto de uma nação independente. Isso já se viu em 1898, quando os Estados Unidos ocuparam o país, e esses cubanos formaram uma estrutura republicana que pôs a Ilha quase como um protetorado dos norte-americanos. Nos anos sessenta chegou a Miami muita gente que fez parte da Revolução, do processo contra Batista. Mas também chegaram muitos aliados de Batista e gente da alta burguesia. Uns e outros, em sua maioria, desenvolveram uma tendência para a extrema direita, defendendo a proposta de ingerência e hegemonia norte-americana. Mas não se trata da anexação formal, é a visão de que os Estados Unidos devem desempenhar um papel ordenador e orientador no futuro da nação cubana. Até hoje, esta é a força dominante deste exílio. Por isso pode-se ver como a Lei Helms-Burton é aplaudida aqui, embora pretenda impor uma política de extraterritorialidade, e que, em seus itens mais ofensivos, diz à nação cubana como deve organizar sua economia, seu sistema pluripartidário, sua liberdade de imprensa, e até a Constituição. É uma receita de ordem social, política e econômica que se deve implantar; se não, os Estados Unidos, pela Lei, não levantam o embargo. Aplaudem para que a nação cubana comece o século XXI como começou o século XX Tivemos um presidente, nosso primeiro presidente, dom Tomas Estrada Palma, cidadão norte-americano, que foi eleito em 1902, sem estar em Cuba. E aqui há gente que se propôs como candidato à presidência de Cuba, com passaporte americano na mão, e o apoio dos norte-americanos. 139 Então, é natural que um exílio que por si mesmo está desvinculado dos processos sociais internos de seu país, e está radicado na nação que não abandona suas pretensões hegemônicas, seja visto com reservas. Este exílio tem um papel a desempenhar, mas não o de protagonista principal. Seu papel deve ser o de estimular processos autóctones internos sem determiná-los de fora. Um papel de apoio. – Com essas posições, senhor Cernuda, fica fácil entender porque o senhor é uma figura controvertida no exílio de Miami. Mas, agora, conte-nos o que pensa sobre a situação política em Cuba. – Pensamos que a sociedade cubana deve viver um processo de abertura, em que o governo acabe por compreender que seu modelo político não corresponde à realidade atual cubana ou mundial. A proposta do governo cubano é totalitária: nós – o governo – vamos organizar e resolver tudo na sociedade. Alguém disse por aí que o comunismo nunca foi tão longe como em Cuba: organizaram tudo a partir do Estado. Mas esse Estado começou a enfrentar crises econômicas que já não lhe permitiam resolver a totalidade dos problemas da nação, produzindo-se vazios e necessidades. O problema cubano, de fundo, está no afã do Estado em controlar o poder político em sua totalidade. – Senhor Cernuda, mas não se pode esconder que o estado cubano demonstrou que seu sistema político produziu resultados muito positivos no que se refere ao desenvolvimento social, cultural, da saúde... – Não nego que Cuba teve excelentes resultados na saúde, na educação, nos esportes. Mas não foram os professores, nem os médicos, nem os esportistas, os responsáveis; foi o governo, a partir de uma proposta totalitária estatal. Mas o ontem já foi para o vinagre, pois esse modelo já não corresponde às 140 necessidades. Por isso o governo deve empreender agora uma transição baseada em um pacto. – Baseada em um pacto com quem? – Entre o governo e toda a população. Porque vou lhes dizer algo honestamente: a oposição em Cuba não apita nada. Não existe uma oposição que ponha esse Estado em perigo. – Senhor Cernuda, como assim, não existe uma forte oposição interna ao sistema cubano? Não é o que se proclama aos quatro ventos? – Existe uma situação caótica, ou com um potencial caótico, dentro da sociedade cubana. Mas em nenhum momento lhes falei de forças reais que ponham o Estado em perigo, porque não existem. Existe um punhado de gente que, a partir do ativismo pelos direitos humanos, criou uma oposição. – Essas transformações tão necessárias, segundo o senhor, como devem ser encaminhadas? – Não pedimos transformações imediatas. Pode-se ir devagar. É possível que demorem dez anos ou mais, mas que se vejam passo a passo. – Lemos em algum lugar que o senhor propõe que o Partido Comunista Cubano aprenda com o PRI mexicano. Explique-nos isso, porque sabemos que o PRI, além de ser completamente corrupto, não soube nem respeitar o nacionalismo mexicano e foi entregando o país aos estadunidenses... – Correto. Mas o PRI transitou de partido único a partido dominante, e está há cinqüenta anos no poder. O Partido Comunista Cubano e o governo têm suficientes recursos e lastro na população para fazer essa transição, sem repetir os erros do PRI. – Senhor Cernuda, e o que acontece se o governo cubano não realizar essas transformações que o senhor propõe? 141 – Existe o perigo da extrema direita, em Washington e em Miami, chegar ao poder em um momento de anarquia, em conseqüência da morte de Fidel Castro. E digo de Washington porque, embora vocês não acreditem em mim, nessa cidade está a cabeça do cachorro. Washington não é a cauda. Não se enganem. Em Washington existe historicamente uma pretensão de domínio sobre Cuba, a que jamais renunciaram. – Mas acreditamos que a “cauda”, em Miami, não é um poder muito desprezível. Pelo menos tentam demonstrá-lo. – Olhem, vocês sabem que a cauda sempre segue a cabeça do cachorro. Os da cauda têm poder econômico, pois seus integrantes são multimilionários, o que os transforma em poder político. São poder político e social, pois aqui há gente que bate na porta da Casa Branca e é recebido; ou passeia pelos corredores do Congresso como em sua própria casa. Imaginem, controlam quase toda a Flórida. E estão com a cabeça do cachorro porque será esta que lhes entregará o poder em Cuba. – Senhor Cernuda, no início nos dizia que em Cuba a população via com desconfiança o exílio de Miami. Mas, se fosse o caso, o senhor acha que toleraria que essa minoria estadunidense tomasse o poder? – Em Cuba, a população não está disposta a tolerar essa minoria dominante do exílio. Mas, na minha opinião, se o Estado cubano esgotar as reservas de patriotismo, insistindo num modelo caduco, levando a população ao desespero, em um dado momento poderia aceitar qualquer outra coisa. – E aqui em Miami, o que pensa a maioria da comunidade cubana? – A maioria do exílio se desligou do debate político. Em Miami há cerca de um milhão e duzentos mil cubanos e quantos há, ativos na política? Cinqüenta mil? O resto está 142 vivendo sua vida, sua subsistência diária. Os que têm parentes na Ilha, preocupados em enviar-lhes algum dinheiro. – Senhor Cernuda, vamos falar de outro assunto delicado. Internacionalmente, muitos estados e instituições agem em relação ao governo cubano como se este fosse dos mais repressivos. Qual é a realidade, do seu ponto de vista? – Olhem, a mais visível violação dos direitos humanos em Cuba, é um presídio de três mil a cinco mil pessoas. Destas, cinqüenta por cento são presos de opinião. Mas, para nós, não existe em Cuba uma política oficial de tortura. O governo cubano não aplica a tortura. Tem uma política de maus tratos, porque não há atenção médica e alimentação apropriada para os presos. No passado, sim, existia tortura psicológica. Mas, no passado. E mais, a população penal diminuiu. – Como assim, a população carcerária diminuiu, quando em todo lugar, seja em Miami, Madri ou Londres, afirma-se que está sempre aumentando? – Sejamos honestos. Olhem, o Estado percebeu que não necessita dessa arma para controlar os poucos perigos políticos que tem no país. E por três motivos fundamentais. Um. As Leis Torricelli e Helms-Burton foram um presente importante para o regime. Por que? Se eu vivo em Cuba e leio o conteúdo delas, fico horrorizado. E entre escolher entre o mal conhecido, que é Castro, e este que me apresentam como bom lá dos Estados Unidos, fico com o mal conhecido e deixo de estar na oposição. Dois. Um setor importante da sociedade cubana prioriza uma solução econômica, em lugar de envolver-se em problemas de tipo político. Além disso, não se pode negar que a situação econômica, embora lentamente, vem melhorando. E o terceiro motivo importante, é o pacto de imigração assinado em 1995 entre os governos dos Estados Unidos e 143 Cuba. Pois em Havana, cada semana, oitenta pessoas ganham na “loteria”. Ou seja, que a Seção de Interesses rifa, outorga, esta quantidade de vistos. Então as pessoas dizem, muito sabiamente, que em vez de tornar-se oposição preferem esperar que seu número seja premiado para poder sair do país. Porque, aliás, não é que o governo cubano proíba a saída das pessoas, são as embaixadas que não dão vistos. E lhes garanto, com estas três coisas neutralizou-se a oposição interna. 144 VIII “Ouçam bem: faz falta mais reação dos exilados e do governo americano contra esses comunistas!” RICARDO BOFILL Comitê Pró Direitos Humanos em Cuba. Miami “Personalidade confusa, capaz de acessos repentinos de cólera (...), de manifestar uma atração indestrutível pelo poder e a publicidade pessoal (...)”65 Foi a primeira descrição que lemos de Ricardo Bofill enquanto preparávamos este trabalho. Seja como for, mantivemos nossas reservas, porque nos relatórios publicadas por importantes organizações internacionais de direitos humanos, em meados dos anos oitenta, sua imagem era muito positiva. Resumindo, Bofill fora para elas o primeiro líder brilhante, o mais carismático e audaz da nascente dissidência interna, tendo apenas o ideal da liberdade. Dez minutos depois de estar em sua casa, ouvindo-o, cruzamos olhares incrédulos. Era este o personagem que a Anistia Internacional passeou pela Europa, dando conferências e a quem a grande imprensa dedicou páginas inteiras? 65 Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993. 145 Em 1968, Bofill foi condenado a quatro anos de prisão por participar de uma organização contra-revolucionária chamada “microfração”. Foi acusado de espionagem e complô contra a Revolução. Segundo os autos, Bofill produzia e enviava documentos para o exterior, acusando a direção cubana de pouco confiável por ser de “extração burguesa”; de “não ser suficientemente fiel à URSS”; ao mesmo tempo em que pedia aos governantes soviéticos e da Alemanha oriental “que exercessem pressão político-econômica para forçar Castro a estruturar um sistema marxista diferente”.66 Lembremos que, quando Ronald Reagan chegou à Casa Branca, reativando a agressão contra Cuba, usou a tática de isolar o governo cubano, jogando a cartada dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, Bofill, já em liberdade, renovava seus vínculos com velhos colegas da microfração, assim como com diplomatas, agora principalmente de países ocidentais, e organizava um pequeno grupo que se diz pró direitos humanos. Os relatórios que esse grupo enviava clandestinamente para o exterior acabavam sendo utilizados pela delegação estadunidense na ONU, contra o governo cubano. Segundo ele mesmo, os contatos iniciais para canalizar tudo isso “foram com a Anistia Internacional e a Comissão de direitos Humanos da UNESCO”.67 Vale a pena comentar que naquele momento a embaixatriz de Cuba na UNESCO era a senhora Marta Frayde, que foi posteriormente presa em seu país por manter contatos com agentes da CIA, durante sua permanência na UNESCO. Justiça seja feita, nessas atividades primárias dos já mencionados no exterior, dissidentes pró direitos humanos, 66 67 Enrique Encinosa: Obra citada. Idem. 146 não apenas a senhora Frayde acompanhava Bofill. Também o fizeram Gustavo Arcos, ex-embaixador na Bélgica, e Elizardo Sánchez, ex-funcionário do Ministério de Relações Exteriores. Em agosto de 1986, Bofill ingressou na Embaixada francesa, onde ficou até janeiro de 1987. Quando a deixou, por vontade própria, foi caminhando até sua casa, sem que ninguém prestasse atenção nele. Poucos meses depois, o grupúsculo se dividiu devido à disputa entre Sánchez e Bofill, que queriam o poder. E como dividir o dividido foi norma histórica da contra-revolução cubana, em junho de 1988 uma pessoa ligada a Sánchez, Tânia Díaz, decidiu formar seu próprio grupo. Quatro meses depois a senhora Díaz anunciava a Miami que contava com uma organização de dez mil quinhentos e oitenta e dois membros, “cifra extravagante”. Tempos depois a senhora Díaz “fez uma declaração púbica, arrependendo-se de suas atividades anti-castristas e acusando os dirigentes dos comitês na Ilha de trabalhar para a CIA”.68 Pouco antes, em março de 1988, os meios de informação cubanos tinham publicado uma reportagem onde ficavam provadas as relações de Bofill com diplomatas da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana. A televisão mostrouo, recebendo dinheiro deles, e até traindo outros contrarevolucionários. Ainda que as autoridades não o tenham processado judicialmente, saiu de Cuba em outubro. Enquanto em seu país Bofill era apenas mais um que partia, no exterior davam-lhe as boas vindas, sendo a Anistia Internacional uma das organizações que mais espaço abriu para ele na Europa. Mas, pouco a pouco, ao cabo de alguns meses, foi deixando de ser notícia. Assim ficou, como um contra-revolucionário mais, em um canto de Miami. 68 Idem. 147 Segundo as listas que andam pelo exterior, existem em Cuba grupúsculos formados até por uma pessoa, mas com nomes muito pomposos: Comitê internacional de apoio à democracia Abraham Lincoln; Fraternidade de homens de negócios do evangelho negado... Em 1992 garantia-se que existiam sessenta e cinco; em janeiro de 1998, na última vez em que a revimos, já eram trezentos e sessenta69, ou seja, aparentemente surgiram duzentos e noventa e cinco em cinco anos. O que equivale, mais ou menos, à produção de um grupúsculo a cada seis dias. Curiosamente, em 1961, dois anos depois da Revolução, quando também Washington priorizou o incentivo à contra-revolução interna, o então chefe da CIA, Allen Dulles, informou a Kennedy que existiam cento e oitenta e quatro grupúsculos. O que equivalia a ter engendrado um a cada quatro dias. Exatamente como em 1961, hoje também estes grupúsculos parecem fantasmas: aparecem e desaparecem. É por isso que aqueles que, em Miami, puseram a lista na internet, tiveram o cuidado de esclarecer “(...) pode ser também que algumas daquelas que constam aqui já tenham desaparecido (...). Como a situação em Cuba muda muito, recomendamos a todos os que utilizem esta lista que, de tempos em tempos, atualizem-na”.70 Agora, lendo alguns relatórios de entidades governamentais estadunidenses – como o “Top Secret” da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana – e outros estudos independentes, tem-se a sensação que aqueles que figuram internacionalmente como dirigentes da dissidência constituem 69 Lista de organizaciones disidentes, opositoras y de derechos humanos. Documento tirado da internet, em 15. 10. 97 e confirmada em 01/98. Segundo os responsáveis em Miami, entre as “fontes” desta “recopilação”, estão “os relatórios de diferentes organizações internacionais de direitos humanos, como Americas Watch e Anistia Internacional (...) ” 70 Idem. 148 uma espécie de ficção no interior de Cuba. Apesar dos imensos recursos destinados, dos Estados Unidos e da Europa, não pôde surgir um líder contra-revolucionário “inspirado no modelo do Solidariedade, na Polônia”.71 E isto, embora exista um interesse muito grande em erodir o sistema político cubano, tal como sustentam jornalistas que não podem ser considerados seus amigos: “governos estrangeiros, imprensa internacional e organizações humanitárias, depois de ter buscado “dissidentes” representativos da comunidade, só encontraram militantes de direitos humanos quase anônimos na sociedade (...) Mas estes mesmos dirigentes nunca se pronunciaram em público em Cuba, nem sequer diante de algumas dezenas de pessoas. Em uma rua, fora de seu bairro, ninguém os reconhece (...) Sua existência é antes de mais nada um argumento para efetuar pressões internacionais sobre Cuba, objeto de interesse para os repórteres estrangeiros. Como ninguém se importa com eles na Ilha, trabalham sobretudo para exportação.72 Parece que os casos fabricados para exportação foram vários. Talvez o mais conhecido tenha sido o de Armando Valladares, um verdadeiro elefante branco que deixou num ridículo vergonhoso muitos importantes intelectuais europeus. Personagens que compreenderam tarde demais que tinham sido um simples instrumento do governo estadunidense e de seus esquemas de contra-revolução, assim como de algumas organizações européias. 71 Jean-François Fogel e Bertrand Rosenthal: Fin de siècle à La Havane. Lês secrets du pouvoir cubain. Editions du Seuil, Paris, 1993. 72 Idem. 149 Valladares, ex-policial de Batista, foi detido em Havana em 30 de dezembro de 1960, no momento em que se dispunha a por explosivos em lugares públicos. No final dos anos setenta começou uma grande campanha internacional pela libertação do preso, liderada na Europa por Carlos Alberto Montaner. A campanha foi acompanhada da edição do livro de poemas De minha cadeira de rodas. Depois se descobriu que era um plágio, mas já tinha nascido para a publicidade exterior “o poeta paralítico condenado por delito de opinião”. E assim começou uma campanha de pressão contra o governo de Cuba, da qual participou até o próprio presidente François Mitterrand. “Regis Debray esteve aqui em visita e disse que era insustentável a situação do governo francês; quase disse que ia cair o governo francês, era o grande drama”, descreveu Fidel Castro. Organizações de intelectuais, de presos políticos; os partidos social-democratas e democrata-cristãos europeus, todos se mobilizaram pela liberdade de Valladares. A International Pen Society deu-lhe o prêmio Liberty; a Anistia Internacional chamou-o de “prisioneiro de consciência”. A seção da Anistia Internacional na Suécia lhe enviou a cadeira de rodas. Em 1982 foi libertado e partiu para Madri. Ali foi buscálo um avião especial do governo francês. Mas já Mitterrand e Debray sabiam que tudo era uma trama montada pelos estadunidenses e seus esquemas no exílio cubano. Portanto, nenhuma autoridade esperava o famoso ex-prisioneiro. Então Valladares praticamente seqüestrou o avião, obrigando Debray a se apresentar. A multidão de jornalistas e representantes de Organizações Não Governamentais ficou estupefata ao ver como o poeta mártir desceu agilmente a escadinha do avião, enquanto sua cadeira de rodas era discretamente afastada da 150 área. No dia seguinte, Valladares caminhava pelas ruas da Cidade Luz, em perfeitas condições.73 As provas apresentadas pelos médicos cubanos tinham sido afogadas ou ignoradas pela bem aceita campanha. Ninguém deu credibilidade ao vídeo onde se via Valladares na prisão, fazendo violentos exercícios físicos diários. Valladares fez conferências por toda a Europa, e os meios de comunicação amplificaram suas palavras. A National Endowment for Democracy entregou-lhe milhares de dólares para organizar um trabalho em prol dos direitos humanos na Europa, com base na Espanha, assim como para publicar o livro Contra toda esperança. Espécie de biografia, distribuída pela Agência de Informação dos Estados Unidos, em mais de trinta países. Era tão prioritário continuar utilizando Valladares, que a Administração estadunidense concedeu-lhe a nacionalidade sem cumprir o mínimo de requisitos exigidos pela Lei e, logo depois, foi nomeado por Reagan embaixador na ONU em Genebra. Durante dois anos, ele dava a cara e sua história e outro exercia as verdadeiras funções diplomáticas. Depois de 1993, do famoso Valladares apenas restou uma Fundação que leva seu nome, embora melhor seria dizer que se trata de um clube de amigos. O governo estadunidense e seus defensores na Europa o jogaram fora, como se joga um chiclete depois de tirar-lhe todo o sabor. Mas também deve passar pela cabeça de muitos políticos e intelectuais – não de todos – a vergonha de tê-lo apoiado. Um deles, Regis Debray, escreveu em seu livro Les Masques: “O homem não era poeta, o poeta não estava paralítico e o cubano é hoje um americano.” 73 Jean-Marc Pillas: Nos agents à la Havane. Comment les Cubains ont ridiculisé la CIA, Ed. Albin Michel, 1995. 151 Ainda assim, a elaboração internacional de líderes não se interrompeu, embora já sem a mesma resposta por parte da maioria das organizações e personalidades européias, o que veio dificultar a faina. Uma das últimas tentativas falidas foi Elizardo Sánchez, do qual já falamos. A outra foi Gustavo Arcos, que se uniu a seu irmão Sebastián para constituir o chamado Comitê Cubano Pró Direitos Humanos. Sua tese propõe forçar o governo a um diálogo com a chamada dissidência interna e todos os grupos do exílio, fora das fronteiras de Cuba. Mas esse possível diálogo “seria uma maneira de desprestigiar o sistema castrista internacionalmente, caso se negasse a negociar. Se aceitasse a negociação, poder-se-ia plasmar uma solução sem sangue para a problemática nacional”.74 Segundo a mesma fonte, esta posição de Arcos, que também se opõe ao levantamento do embargo, foi influenciada por Carlos Alberto Montaner e José Ignacio Rasco, aos quais uniu seu grupo.75 A ultra-conservadora Organização Não Governamental Freedom House cedeu a palavra a Sebastián Arcos nas Nações Unidas. Seu discurso teve um tom tão contra-revolucionário que Elliot Abrams, Secretário adjunto de Reagan, disse: “não é apenas um homem corajoso, é também um potencial presidente para Cuba, no caso de uma transição democrática na Ilha”.76 Em novembro de 1996 Gustavo Arcos apareceu em vários jornais, principalmente espanhóis e de Miami, por pertencer à diretoria da conservadora Fundação Hispano-Cubana. 74 Enrique Encinosa: Cuba em guerra. Historia de la oposición anti-castrista, 1959-1993, Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundación Nacional Cubano-Americana, Miami, 1995. 75 Idem. 76 Jean-Francois Fogel y Bertrand Rosenthal. Obra citada. 152 No início de 1997, no informativo desta Fundação e de outras poucas ONGs européias, foi reproduzido um texto intitulado “Os princípios Arcos”. O texto, além de ser uma espécie de código de conduta que as empresas estrangeiras que invistam, ou pensem investir em Cuba, deveriam assumir, prova que as relações de Gustavo Arcos com a extrema direita anexionista continuavam latentes, sendo Of Human Rights e Freedom House as principais patrocinadoras. Elizardo Sánchez também apoiou os “princípios”. As últimas frases do texto dizem: As companhias que assinem os princípios Arcos deverão proceder como segue: a) Todos os itens antes mencionados deverão ser inspecionados por uma auditoria reconhecida internacionalmente. Toda companhia que assine este documento, e com mais de 25 empregados cubanos, deverá produzir um relatório escrito. b) Este relatório deverá ser apresentado anualmente a uma ou mais organizações de direitos humanos em Cuba, de preferência ao Comitê Pró Direitos Humanos, com uma cópia para Freedom House, por meio da Unidade Especial de Investimentos Especiais, domiciliada em Of Human Rights, 1319, 18th Street NW, Washington DC. 200036, USA.77 Este denominado “código de conduta” foi assumido pela organização Pax Christi Holanda em sua campanha contra Cuba. E não é de estranhar. Esta Organização Não Governamental está trabalhando publicamente, desde o final de 1997, com Frank Calzón, como consta dos documentos da segunda reunião da chamada Plataforma pelos direitos 77 Reproduzido pela Fundación Hispano Cubana: Boletin informativo, no 1, Madrid, fevereiro de 1997. 153 humanos e pela liberdade em Cuba, realizada semiclandestinamente em Roma. Em 1990, sem exagero, os líderes da contra-revolução no exterior começaram a preparar as malas, porque a qualquer momento cairia o regime cubano e certamente teriam que assumir um cargo no governo. Por isso, de uma ou outra maneira, todos faziam até o impossível para formar um grupo no interior da Ilha, para provar sua influência junto à população. A Fundação Nacional Cubano-Americana e a Plataforma Democrática Cubana, cada uma com seus associados, tomaram a dianteira. Quando chegaram a cerca de dez, fizeram uma espécie de federação. A Fundação Nacional Cubano-Americana chamou-a de Coalizão Democrática Cubana (CDC) e a Plataforma Democrática Cubana deu à sua o nome de Coordenação Democrática Cubana. Um boletim da Fundação assim se expressou sobre o fato: A oposição dentro de Cuba se caracteriza por estar vinculada a duas grandes coalizões: a Coalizão Democrática Cubana e a Coordenação Democrática Cubana (...) Podemos garantir que, em conjunto, compõem-se de milhares de membros que abarcam todo o território nacional (...)78 A Fundação Nacional Cubano-Americana tornou públicos seus objetivos: Pressão dos dissidentes sobre Castro para que abandone o poder. A CDC opor-se-á a qualquer esforço para iniciar diálogo com Castro, a fim de provocar uma mudança pacífica. A nova Coalizão comunicar-se-á com outros grupos 78 Fundacion. Obra citada. 154 dissidentes desde que aceitem sua interdição de contatos com Castro. Esta Coalizão estará respaldada (...) pela Fundação Nacional Cubano-Americana.79 Por seu lado, a Coordenação tinha o mesmo objetivo de derrubar o governo socialista, mas sem descartar o diálogo como arma soterrada de luta. Como dizíamos, Elizardo Sánchez foi o principal responsável pela Coordenação Democrática Cubana à qual, posteriormente, se uniu Gustavo Arcos.80 A Fundação Nacional Cubano-Americana instalou Jorge Castañeda, ex-ator de televisão, como primeiro presidente da Coalizão Democrática Cubana. O ex-chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana dizia, em uma carta de 24 de outubro de 1991: “E, finalmente, não perder em nenhuma hipótese a comunicação conosco, de maneira que possamos guiá-los da melhor maneira possível nesta fase final da luta pela liberdade da Pátria. Reitero minha fé absoluta na vitória próxima e minha total confiança em você (...)” Lamentavelmente para a Coalizão, Castañeda era um agente da contrainteligência cubana. No fim de 1995, os meios de informação em língua espanhola de Miami anunciaram que em fevereiro de 1996 realizar-se-ia uma reunião de toda a dissidência, para o que se estaria formando uma supra-organização chamada Concílio Cubano. Em janeiro de 1996, internacionalmente, nos círculos interessados, a reunião era assunto candente. Segundo um relatório da Anistia Internacional, o Concílio Cubano “englobava uns 140 grupos não oficiais”, de todo tipo. À mesma 79 Lista de las organizaciones... Obra citada. 80 Idem. 155 quantidade se referia a contra-revolução no exterior. O governo cubano respondeu com a prisão de vários dos envolvidos. Diante disso, a Anistia Internacional deduziu: Que a razão da nova ofensiva contra atividades até agora totalmente pacíficas está em que é a primeira vez que o governo do presidente Fidel Castro, no poder desde a Revolução cubana, em 1959, tem que enfrentar um certo grau de oposição séria, de natureza organizada e pacífica.81 O que permanece incompreensível é que nem a Anistia Internacional, nem outras Organizações Não Governamentais internacionais, nem nenhum grande jornal europeu comentassem que os supostos dirigentes do Concílio Cubano na Ilha funcionassem sob as ordens e financiamento da Fundação Nacional Cubano-Americana, a Plataforma Democrática Cubana, Irmãos para o Resgate e Cuba Independente e Democrática, entre outros grupos da extrema direita do exílio. É incompreensível que omitissem uma informação tão importante, que permitiria avaliar objetivamente o Concílio Cubano; e não se pode dizer que fosse por falta de dados, porque os comunicados produzidos pelos grupos contra-revolucionários em Miami, Madri, Londres e Paris eram públicos, e muitos deles até postos na internet. Além do mais, El Nuevo Herald e The Miami Herald forneceram amplos detalhes sobre a verdadeira procedência dessa organização. O jornalista Luis Ortega assim descreveu o episódio do Concílio Cubano: 81 Amnistia Internacional: Cuba, ofensa del gobierno contra la dissidencia, version española, abril de 1996. 156 (...) se existe a possibilidade de que tenham sido enlameados (os dirigentes do Concílio) de forma deliberada para fazêlos fracassar, por que não protestaram? Por que não denunciaram a manobra de Miami? Por que não enfrentaram o esquema de corrupção em Miami e não marcaram as diferenças? O fato de que Sebastián Arcos Bergnes, em Miami, tenha aceito o cheque de Irmãos para o Resgate já indica que se sentem à vontade e tranqüilos associando-se à gente de Miami. Isso, em si, já é o certificado de óbito do Concílio (...) É um ramal dos negócios de Miami. (...) Em Cuba não pode surgir um movimento de oposição sério ao governo de Castro enquanto os que estiverem lá não entendam que, para combater uma revolução que tem 37 anos, que enfrenta os Estados Unidos, e vive em permanente estado de sítio, o mais importante, o fundamental, é a moral política. Tudo aquilo que pretenda combater o governo em Cuba e o faça em cumplicidade com o esquema de corrupção de Miami, e recebendo ajuda dos americanos, está morto de início. “Dead on arrival”, como se diz em inglês. O governo neste momento já está plenamente autorizado a interromper sua passagem (...)82 Por seu lado, Eloy Gutiérrez Menoyo afirmou que seu grupo, Mudança Cubana, rejeitara o convite para participar do Concílio “porque sabíamos que era uma oposição manipulada, que respondia aos interesses norte-americanos e deste exílio de extrema direita”. O ex-preso político disse ainda: 82 Luis Ortega: “El concilio perdió la virgindad”, La Prensa, NY, fevereiro de 1996. 157 Sabemos que na Europa e nos Estados Unidos existem organizações políticas e de direitos humanos que deram, e continuam dando, credibilidade ao Concílio. Que protestaram porque o governo cubano reprimiu os dirigentes do Concílio. Mas, por favor, entendam, ninguém pode se propor a ser dissidente independente e honesto recebendo cheques e orientações dos inimigos de seu país. Olhem, não se pode ser tão ingênuo para acreditar que o governo cubano ia ficar de braços cruzados, sabendo que por trás do Concílio estavam os poderosos inimigos que buscam a grande explosão da Ilha. Por favor, senhores, sem verdadeira independência, não se pode enfrentar um governo como o cubano que, historicamente, foi acossado pelos americanos.83 Finalmente, apresentamos alguns comunicados que estes grupúsculos tornaram públicos. Podem ser obtidos, sem nenhuma dificuldade, nos informativos da contra-revolução no exterior ou pela internet. De nosso ponto de vista, seguramente fornecem mais elementos para continuar refletindo sobre a independência política da chamada dissidência interna cubana. O Partido Ação Nacionalista, o Movimento Nacionalista Democrático Máximo Gómez e a Frente Unida Patriótica têm como objetivos: “Apoiar a política dos EUA e da Europa com relação a Cuba para manter as sanções a Cuba em eqüidade com as mudanças democráticas que a Pátria necessita”. Disse o suposto dirigente do Partido Pró Direitos Humanos de Cuba: “Sempre admirei o senhor Jorge Mas Canosa. Gostaria de agradecer-lhe pessoalmente tudo o que está fazendo por nosso povo... é o homem de que mais necessitamos neste 83 Entrevista dos autores para Eloy Gutierrez Menoyo, Miami, novembro de 1996. 158 país para levar adiante a liberdade e a democracia de que tanto necessitamos.” O Comitê Cubano Pró Direitos Negados, em carta dirigida a Canosa: “Irmão, queremos fazer chegar a você, no dia de hoje, nosso sincero reconhecimento. Enviamos o sentimento dos membros deste Comitê: sentimo-nos profundamente agradecidos a você, por sua nobre contribuição à causa da liberdade de Cuba.” O Partido Solidariedade Democrática, apesar de estar ligado a Hubert Matos, escreveu: “Aspiramos a que um dia, não muito distante, aqui em Havana, possamos recebê-lo com os braços abertos (...) A nós, que somos forjados na luta, nos vêem lágrimas aos olhos, quando ouvimos as palavras de nosso querido líder Jorge Mas.” Ângela Herrera, que substituiu o ex-ator Castañeda como presidente da Coalizão, escreveu: “Contamos com o apoio de nossos irmãos do exílio. Eles são como uma luz que Deus pôs em nosso caminho para ajudar-nos a recuperar a verdadeira liberdade que nos foi arrebatada.” Quando, em julho de 1994, chegou a Miami, disse que a Fundação Nacional CubanoAmericana “é a coisa mais sincera e maior que Deus criou”. A Central Sindical Cristã de Cuba fez chegar uma: Emocionada mensagem de felicitações aos Estados Unidos da América e a todos os seus cidadãos nesta comemoração do dia de sua Independência, como uma demonstração de respeito e carinho que o povo de Cuba sente pela nação norte-americana, sentimentos que não puderam ser eliminados apesar dos 38 anos de sistemática campanha de ódio e difamação por parte do regime comunista. Passemos, de uma vez por todas, à leitura da entrevista de Ricardo Bofill, que nos dá um preocupante e, porque não, 159 desolador testemunho do que é a dissidência. Particularmente da pró direitos humanos. – Senhor Bofill, o senhor, que foi um dos primeiros que organizou grupos de direitos humanos, dissidentes, opositores, ou como se lhes queira chamar, poderia nos explicar porque existem tantos em Cuba? Parece que foram cisões de cisões. – Na dissidência cubana não houve cisões. O que houve foi uma multiplicação de grupos. Por que deve haver apenas um ou dois grupos? – Mas é que não há apenas cinco ou dez. Por exemplo, temos um documento que menciona mais de trezentos e sessenta supostos grupos dissidentes! – E, por que não? Cada um se organiza com quem lhe apraz, com suas preferências e amizades. Cada grupo surge de acordo com as nuances das pessoas. Em um grupo todos somos amigos ou não somos. – Mas, senhor Bofill, esse é um trabalho de organização, político ou simplesmente uma reunião de bons amigos? – Não, senhor! É que a Declaração de Direitos Humanos me permite trabalhar com quem eu quiser. A esta casa vem que eu quiser! – Está bem. Não vamos discutir. Mas, diga-nos, quantas pessoas uma organização opositora em Cuba conseguiu unificar? – No Comitê Pró Direitos Humanos, que foi o que eu fundei, e que era o mais importante, éramos cinco pessoas. E a militância, isso não se sabe... É difícil sabê-lo, porque é um trabalho muito romântico. Mas não conheci nenhuma que passasse de... Já lhes disse que é coisa de amigos! – Mas se os dirigentes do exílio, a grande imprensa mundial, Organizações Não Governamentais, e não poucos governos, passam 160 a vida dizendo que em Cuba há um crescente sentimento de repúdio ao sistema de governo, por que os grupos não se enchem de verdadeiros opositores políticos? – Nenhum governo comunista teve que lidar com uma oposição interna considerável. Esse é um fenômeno que ainda está para acontecer na história universal. É que, num governo comunista, o governo é o empregador. Nesses sistemas, estar com o Partido, com o governo, é uma grande vantagem. O contrário é ser um morto de fome. Na União Soviética, o Partido Comunista despencou devido a contradições na direção, na luta pelo poder. E quem ganhou? Os reformistas, os que queriam ser representantes de grandes companhias norte-americanas ou européias. Lá o sistema não caiu por uma luta majoritária do povo. – E, voltando a Cuba. A segurança política não se infiltrou nestes grupos? – Infiltrados? O que vão infiltrar? O que vocês querem, ouvir esse discurso sobre a infiltração? Deve haver... Mas em Cuba o que há são uns poucos homens e mulheres que vêm a sua casa e a arrebentam porque defendem o governo! Sim, senhor! Em Cuba há milhões desses, jovens e velhos. É a verdade! Milhões estão de acordo com esse sistema, porque são uns bostas, que acreditam no comunismo! – Senhor Bofill, é difícil para nós acreditar no que diz. Não entendemos como tantos governos e tantas Organizações Não Governamentais sustentaram que esses grupos são uma oposição válida ao governo cubano. Então, o que verdadeiramente lideram pessoas como Gustavo Arcos, Leonel Morejón, Osvaldo Payá, ou o próprio senhor Elizardo Sánchez, que recebeu em dezembro de 1996 a distinção máxima do governo francês, por seu suposto trabalho em prol dos direitos humanos? 161 – O que representam? Repito-lhes: é um trabalho voluntário, mínimo, que não funciona. A situação deles é a mesma de todos os tempos. Essas organizações só existem no coração de seus integrantes. Politicamente não representam nada! Não, senhor! Não há nenhum Comitê Pró Direitos Humanos, aquele mesmo que eu fiz, em nenhum lugar de Cuba! Elizardo trabalhou conosco e... Não, senhor! Essa é uma ação do espírito! – Para nós, é difícil entender... – Entender o que? Há pouco para entender. – Que, considerando essa realidade que o senhor nos apresenta, entender, por exemplo, como se deu tanto valor, em fóruns internacionais tão importantes como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas... – Olhem, fui convidado especial da Anistia Internacional. Sim, senhor, estive em seu escritório em Londres. Anistia preparou para mim um grande “tour”, e disse o que tinha que dizer... Mas se Cuba foi condenada em Genebra, foi pela falta de sagacidade política do governo de Castro. Há milhares, digo, centenas de Estados que violam mais os direitos humanos. O que acontece é que a representação cubana vai lá com uma imensa prepotência. Os outros governos, os que mais violam, vão lá e negociam. Salvam-se adotando uma posição diplomática. Mas a gente de Castro, com sua intransigência, agride os outros governos. Com sua intransigência política desgostaram até o governo sueco. Imaginem! – Não lhe parece absurdo que se condene um país por sua intransigência política frente a outras nações e não pelo que se diz estar condenando? Então, é por isso que continuam merecendo crédito e sendo utilizados os relatórios fornecidos pelo governo estadunidense, alguns europeus e Organizações Não Governamentais? Será que o senhor se lembra de algumas das sessões da 162 ONU onde se fazia referência a vários assassinados e desaparecidos pelo governo cubano? Lembra-se que esses mesmos assassinados e desaparecidos faziam, dias depois, conferências de imprensa na própria ONU? E, se não estamos enganados, sua organização foi uma das que ajudou a preparar esses relatórios. – Não... Essa história... Não creiam nisso... – Mas está em documentos oficiais... – Não, não... Eu não os conheço. – Senhor Bofill, fale-nos agora das atividades que organizações como a sua realizam nos Estados Unidos e na Europa. – Bem, às vezes fazemos campanha pelos presos políticos. Mandamos cartas para qualquer lugar... Este é um trabalho voluntário, romântico. Cada um faz o que lhe ocorre. Cada um é independente... Ou seja, meu programa de direitos humanos, é o que eu estabeleço em cada caso. Da mesma forma podem agir outras pessoas que trabalham na mesma coisa. Este não é um trabalho formal. É minoritário, exíguo. Aqui em Miami, com mais de um milhão de exilados, não somos mais de vinte pessoas a trabalhar pelos direitos humanos. Se formos! E na Europa não ganhamos nada. Ainda na Espanha, um mínimo. Mas, quem se importa com Cuba, na Europa? E não quero começar a falar-lhes sobre isso, aqui... É perda de tempo. Eu defendo o que me dá na telha. Faço o que posso... – Senhor Bofill, como foi recebido em Miami, levando em conta que o senhor sempre se disse militante de esquerda, o que é quase um pecado mortal aqui? – Embora eu provenha de uma verdadeira esquerda, de antes de Fidel Castro, tive aqui uma boa acolhida por parte de um grande setor político da cidade. E quase imediatamente comecei a participar de vários projetos. Por exemplo, em 1990 163 nos reunimos em Madri para fundar a Plataforma Democrática Cubana, liderada por exilados anticomunistas como José Ignacio Rasco, católico, dos jesuítas; e Carlos Alberto Montaner, que desde 1960 já estava contra a Revolução. Também participei de outros projetos, como o do comandante Hubert Matos. Na Rádio Martí, que é uma emissora do governo norte-americano, ainda tenho um programa, que se chama Teus Direitos Humanos, e que é transmitido para Cuba duas vezes por semana. Em Miami nada atrapalha meu projeto político, que é de direitos humanos... – Desculpe a interrupção, mas, segundo entendemos, a militância pelos direitos humanos, tal como está proposta atualmente, é um trabalho neutro, apolítico, e o senhor fala de “projeto político”. – Entendam como quiserem, mas esse é meu projeto. E ia lhes dizer que, claro, há setores da sociedade exilada que não me convida para suas reuniões, mas isso não me importa. Aqui há outras pessoas que me atacam. São os que deveriam ser a favor do embargo, e não estar chamando ao diálogo com o comunismo, ou realizando viagens charter a Cuba. – Senhor Bofill, esta quantidade de organizações que estão fora de Cuba, seja nos Estados Unidos, América Latina ou Europa, têm na realidade uma alternativa válida para o povo cubano? – Cada uma tem o seu discurso... Não tenho muita informação. Talvez vocês saibam mais que eu, por serem jornalistas. Mas este assunto não me interessa: vivo minha vida com minha gente. Da mesma forma como vivem os outros que têm seu projeto de direitos humanos, aqui ou em Cuba. Mas não me importa o que eles propõem para o futuro de Cuba... 164 – Mas cremos que o futuro de Cuba é seu problema. – Bem, pode ser... Eles têm seu jogo aqui, no exterior... Já lhes disse, é romantismo. – Mas parece-nos que com esse “romantismo” muitos denominados anticastristas se encheram de dólares... – Não acredito nisso. Isso não passa de propaganda do castrismo. – Vamos ver: e se os militares dão um golpe de Estado em Fidel Castro ou ele morre, o que vai acontecer? – Isso não se sabe. Tudo o que estou lhes dizendo aqui não tem efetividade. Eu não sei nem o que vai acontecer em Cuba no ano que vem! Pode ser que exista uma melhora em Cuba, ou um retrocesso... Nem com uma bola de cristal... Possivelmente tudo vai continuar. Mas, o que vai acontecer? Não sei. – Senhor Bofill, não queremos incomodá-lo com mais perguntas, por isso esta é a última. Se cair o atual sistema cubano e este exílio regressar, existe a possibilidade de uma Guerra civil? Dizemos isso porque há muita gente aqui que fala em vingança... – É muito possível! Porque o exílio e os americanos estão magoados por muitas coisas com os comunistas. Acaso Castro não declarou guerra quando confiscou as propriedades das grandes empresas e dos proprietários de terras? Ouçam bem: o que faz falta é mais reação dos exilados e do governo norteamericano a estes comunistas! E então, que acham que vai acontecer se regressarem? – Sim, então, o que vai acontecer? – Até parece que vocês não sabem que a política não é coisa de sonhadores! 165 IX “A Fundação Hispano-Cubana é um complemento da ação do governo do PP, porque é preciso dar o mínimo de oxigênio possível ao ditador, para que se consuma sozinho”. GUILLERMO GORTÁZAR Deputado e membro do Comitê Executivo do Partido Popular espanhol. Responsável pelos assuntos cubanos. Secretário geral da Fundação Hispano-Cubana Pela lógica, procuramos o deputado Guillermo Gortázar na sede nacional do Partido Popular, em Madri. Ao explicarmos para que o procurávamos, disseram-nos que a Fundação Hispano-Cubana já não atendia ali, que agora tinha sede própria, a uns duzentos metros. Deram-nos o endereço e os números de telefone. Na hora e dia marcados estávamos diante do parlamentar Gortázar, Secretário Geral da Fundação Hispano-Cubana, associação que em 14 de novembro de 1996 fez sua primeira apresentação pública. Inauguração um tanto acidentada, já que umas trezentas pessoas, pertencentes a Organizações Não Governamentais e de solidariedade com Cuba receberam os seletos convidados com uma chuva de ovos e tomates. Membros do governo espanhol e demais cidadãos desse país foram chamados de sócios de terroristas e mafiosos. Os cubanoestadunidenses e cubano-espanhóis foram chamados de fascistas, mafiosos, assassinos. Um forte dispositivo policial 167 teve que intervir para afastar os manifestantes alguns metros da entrada principal, já que além de tudo tinham conseguido interromper o intenso tráfego da área. Lá dentro, depois de passado o susto e no meio da limpeza, sentaram-se à mesa as principais estrelas do dia: o espanhol Alberto Recarte, presidente da Fundação Hispano-Cubana; Guillermo Gortázar; e os três principais membros da diretoria, neste caso chamada Patronato, o escritor hispano-peruano Mario Vargas Llosa, Carlos Alberto Montaner e Jorge Mas Canosa. No momento dos discursos, Montaner disse que esse tipo de recepção que lhes fora oferecida no exterior era injusto porque: “afinal, somos apenas um grupo de pacíficos cidadãos”. Também Vargas Llosa considerou improcedente a atitude dos manifestantes, lembrando que o cubano “foi o exílio mais caluniado, difamado e satanizado de que tenho lembrança (...) Um dos objetivos da FHC é enfrentar esse trabalho de desqualificação”. A Fundação Hispano-Cubana surgiu de uma proposta do setor mais reacionário da contra-revolução cubana, estimulado por um espectro da direita espanhola, encabeçada pelo Partido Popular. Seus princípios são uma estranha mescla dos que orientam a Fundação Nacional Cubano-Americana em Miami e da Plataforma Democrática Cubana de Madri, adaptados às condições próprias do Estado espanhol. Seu trabalho básico é desenvolver o proselitismo nesta nação; fustigar as relações políticas e econômicas do governo cubano; azedar as relações entre as duas nações; e consolidar um lobby, não apenas na Espanha, mas em outros países europeus. A nenhuma intenção de estabelecer algum tipo de relação ou diálogo com o Estado 168 cubano fica definida em um parágrafo da introdução a seus estatutos: A tarefa de realizar a transição política para a democracia em Cuba cabe aos cubanos. Mas na Espanha e na América há uma ampla corrente de opinião que deseja apoiar iniciativas que sirvam para a defesa dos direitos humanos e para o restabelecimento da liberdade e da democracia na Ilha. A Fundação Hispano-Cubana convocou, então, “em torno destes objetivos, os mais diversos setores e líderes do exílio e da dissidência interna em Cuba, juntamente com personalidades espanholas do mundo da cultura, da empresa e da política”. Os rastros mais definidos dessa amálgama reúnem-se no Patronato da Fundação Hispano-Cubana desde fins de 1995. Em novembro daquele ano o candidato à presidência do governo espanhol, José Maria Aznar, visitou Miami. Segundo os boatos que correram, o objetivo central da visita era buscar contribuições financeiras para sua campanha eleitoral. Naquela ocasião reuniu-se com a Fundação Nacional CubanoAmericana, com Cuba Independente e Democrática, com a Plataforma Democrática Cubana e com Monsenhor Román. Durante um almoço público que lhe foi oferecido pela Fundação Nacional Cubano-Americana, e pelo qual os participantes pagavam um alto preço, disse: “Mais cedo que tarde (...) em Cuba haverá transição, haverá liberdade e haverá democracia”.84 Dessa cidade, Aznar partiu para El Salvador e Costa Rica, regressando uma semana depois “a bordo de um 84 El Nuevo Herald, Miami, 28 de novembro de 1995. 169 avião da Fundação Nacional Cubano-Americana, acompanhado de Jorge Mas, o filho”.85 Dias antes das eleições, demonstrando que estava a par das intenções do candidato, disse Canosa: “não esperamos que Aznar rompa relações com Cuba nem proíba os investimentos espanhóis na Ilha”. Mas não deixou de explicitar sua certeza de que Aznar “introduzirá um elemento moral na política espanhola para com Castro”.86 E não hesitou em afirmar: “a política de Aznar é mais conseqüente com a promoção de um governo democrático em Cuba”. Aznar ganhou as eleições. Já tendo tomado posse, e antes de qualquer outro representante oficial do governo cubano, recebeu Jorge Mas Canosa. Da mesma forma agiu seu Ministro de Relações Exteriores, Abel Matutes. Ato de descortesia diplomática nada usual, que deixava transparecer o novo rumo das relações com o governo cubano. Ainda mais grave, dava à contra-revolução uma espécie de status de governo no exílio. Muitos chegaram a pensar que convinha a Matutes, devido aos grandes investimentos turísticos que tem na República Dominicana, enlamear as relações com Cuba. Diante das críticas, o Secretário de Estado para Cooperação, Fernando Villalonga, disse, depois de ter recebido oficialmente o então chefe da Fundação Nacional Cubano-Americana: “Basta de satanizar o exílio cubano! (...) Mas Canosa não é um gangster como o acusam.” No dia seguinte desta incrível defesa oficial, a Casa Branca, fazendo uso da Ley Helms-Burton, ameaçou com sanções a empresa espanhola Sol-Meliá, por seus investimentos em Cuba. E Canosa, como sabemos, fora um dos grandes articuladores 85 Idem 86 El Pais, Madrid, 2 de março de 1996. 170 dessa Lei. O novo governo espanhol, em vez de defender a empresa, agiu quase com indiferença. Sua política em relação a Cuba já estava definida, e dela o deputado Gortázar nos fez um bom resumo: “as empresas que se decidam a colaborar com Castro deverão enfrentar sozinhas os riscos”. Era o que pedia, desde 1992, a extrema direita do exílio, encabeçada pela Fundação Nacional Cubano-Americana, pela União Liberal Cubana, de Montaner, por Cuba Independente e Democrática, entres outras. (“Carta aberta aos investidores estrangeiros”, maio de 1992.) Segundo os estatutos, a equipe fundadora da Fundação Hispano-Cubana teria um poder quase absoluto sobre as decisões essenciais. Seus membros, e apenas eles, poderiam decidir quem seriam seus substitutos. Conhecendo o que representam politicamente essas pessoas, não é difícil imaginar qual seria a dinâmica que imprimiriam à Fundação. No que se refere aos cidadãos espanhóis, entre os quais o eurodeputado José Ignacio Salafranca, o Partido Popular domina, mas a maioria no Patronato é formada pela extrema direita cubana no exterior. Deles, três são ao mesmo tempo diretores da Fundação Nacional Cubano-Americana: José Hernández, José Llama e Lombardo Pérez; existia um quarto, que era Jorge Mas Canosa, mas este morreu em novembro de 1997. Outros membros são Juan Suárez Rivas, ex-dirigente da Fundação Nacional Cubano-Americana até 1992, e agora próximo a Carlos Alberto Montaner, também patrono, assim como a senhora Marta Frayde. A vinculação de Elizardo Sánchez quase foi reconhecida pelo deputado Gortázar como um recrutamento tático muito adequado, devido a sua imagem internacional de dissidente de esquerda. O outro contra-revolucionário na lista do Patronato é Gustavo Arcos, representado no Estado espanhol 171 pela senhora Frayde, segundo nos disse o próprio deputado Gortázar. Osvaldo Payá, outro denominado dissidente, retirouse logo depois de ter se envolvido. Tal como nos anunciara o deputado, duas pessoas se vincularam em 1997: Félix Bonne Carcassés, residente em Cuba e militante da Coalizão Democrática Cubana, dirigida, de Miami, pela Fundação Nacional Cubano-Americana; e o jornalista Raúl Rivero, também residente em Cuba, ligado politicamente a Cuba Independente e Democrática. Até agora a Fundação foi a cúpula de uma série de tentativas para construir algo que pudesse obter certo espaço no meio espanhol. Armando Valladares já tentara, sem nenhum resultado concreto, mas evaporando milhares de dólares fornecidos pela National Endowment for Democracy. Depois, Montaner e Ignácio Rasco, com o apoio do governo estadunidense; as Internacionais Liberal e Democrata Cristã armaram a Plataforma Democrática Cubana, com muito pouco resultado até o momento. Como atividades preparatórias para o lançamento da Fundação Hispano-Cubana, organizaram-se algumas conferências e seminários. Em 9 de fevereiro de 1996, em Madri, reuniu-se o “Grupo de Trabalho sobre Cuba”. O encontro, realizado em plena campanha eleitoral, foi promovido pela Internacional Democrata Cristã e patrocinado pelo Partido Popular, encabeçado pelo próprio José María Aznar. Como foi dito nos comunicados, o objetivo era “coordenar iniciativas de apoio às forças que lutam por democratizar a Ilha”. Richard Nuccio, então assessor do presidente William Clinton para “assuntos cubanos”, participou do encontro. Também estiveram presentes membros da Fundação Nacional CubanoAmericana e a Plataforma. 172 Posteriormente, em 8 de outubro de 1996, e na mesma cidade, a assim chamada Universidade Latino-americana da Liberdade Friedrich Hayeck, com sede em Miami, organizou um seminário chamado “O papel do Estado e da sociedade na América Latina.” A ministra de Educação e Cultura, Esperanza Aguirre, esteve no ato de inauguração. Uma das sessões tinha como tema “A transição para uma sociedade aberta e democrática. O papel dos cubanos no exílio e o futuro de Cuba.” Entre os expoentes estiveram presentes Gortázar e Montaner; não puderam comparecer José Basulto e o deputado Lincoln Díaz-Balart. Mas é preciso esclarecer algo sobre esta “Universidade”. Para nós, seus objetivos podem ser considerados como ultradireitistas e até racistas. Vocês podem julgar: Reeducar a população cubana, e outras da América Latina, nos conceitos internacionais e modernos de liberdade, como fundamento intelectual de uma nova sociedade, baseada nos três grandes pilares da civilização contemporânea do Capitalismo Democrático: economia de mercado, democracia política e sistema moral e cultural judaico-cristão, tudo isso articulado com os princípios do comércio internacional. Entre seus diretores estão José Sorzano, José Pepe Henández e outros cinco diretores da Fundação Nacional CubanoAmericana; Mario Vargas Llosa e, como chefe dos chefes, o já desaparecido Jorge Mas Canosa. Entre as “personalidades” que apóiam as atividades desta “Universidade” estão a ex-primeira ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, e o politólogo francês Jean-François Revel, que era visto em seu país como uma pessoa de idéias progressistas. Hoje, segundo Le Monde Diplomatique, de Paris, é considerado aliado da CIA. 173 Mas, por que a extrema direita cubana, como instrumento da política estadunidense, despendeu tanto esforço e recursos com a Fundação Hispano-Cubana? A resposta pode ser simples; aliás, está respaldada pela prática: a política da União Européia para Cuba passa por Madri, e, ironias da história: há quase cem anos, a Espanha disputava com os Estados Unidos o controle da Ilha cubana. Hoje, o Partido Popular, no poder, está servindo aos Estados Unidos para recuperar o controle que perdeu em 1959. Vejamos. Quando o presidente Willliam Clinton ratificou a Lei HelmsBurton, em março de 1996, teve que enfrentar a reação dos governos do Canadá e da Europa, que não podiam aceitar que leis estadunidenses interferissem em suas relações comerciais internacionais. Clinton foi condenado a agradar ao Congresso de seu país, e seus aliados. Foi assim que, em pleno conflito com a União Européia, o presidente designou Stuart Eizenstat, Embaixador Especial para Assuntos Cubanos. Apesar do título, a escolha não ocorria por capricho: Eizenstat era também Subsecretário de Comércio para o Comércio Internacional. Eizenstat começou seu périplo no mês de setembro daquele ano, encontrando-se com os governos da Bélgica, Itália, Espanha e Irlanda. Para todos tinha o mesmo discurso e proposta: que coordenassem suas posições com a de Washington, endurecendo suas relações com Havana. Se estes quatro países aceitassem, e se encarregassem de convencer os demais membros da União Européia, diminuiria a tensão entre os aliados. Como forma de pagamento, prometia-lhes que essa ação conjunta e estreitamente coordenada permitiria suspender por um tempo, e possivelmente reavaliar, a aplicação da Lei Helms-Burton. Poucos dias depois, como se já estivesse trabalhando nele, a Espanha apresentou um documento à União Européia. O 174 texto continha pontos idênticos aos que Washington exige de Cuba para levantar o embargo e normalizar relações: tudo ou nada; houve então que readaptá-lo e suavizá-lo, para torná-lo palatável aos membros da União Européia. A maioria dos estados europeus não pensava que fosse necessário “ordenar” a Cuba uma imediata mudança global de seu sistema político, para poder oferecer-lhe algum tipo de apoio econômico. O texto final apresentado por Aznar, e aceito pela União Européia, propunha “reunir vontades para exercer uma pressão política sobre Cuba, favorecendo sua democratização”. Ou seja, procurar que o governo da Ilha se comprometesse a passar do socialismo ao capitalismo de forma gradual, porém efetiva. A Administração Clinton e o Congresso estadunidense contentaram-se com o compromisso no papel da União Européia de “reunir vontades”. Era a reciprocidade e a compreensão que Washington esperava, segundo disse o porta-voz do Departamento de Estado, Nicholas Burns. Pouco antes de ser aprovado pela União Européia, o conteúdo foi comentado por um importante jornal de Madri: “A proposta espanhola aos Quinze, sobre Cuba, copia as solicitações dos Estados Unidos à União Européia”. (El País, Madrid, 17. 11. 96) Vejamos quais foram os pontos mais importantes do que o governo de Aznar praticamente conspirou com Eizenstat, e impôs à União Européia, no que se refere ao assunto de que nos ocupamos: – Atitude mais ofensiva das embaixadas, mediante a nomeação de uma pessoa especial para promover os direitos humanos. – Apoio mais decidido à dissidência, estabelecendo canais flexíveis de cooperação e ajuda. – Exigir do governo cubano que permita todo tipo de Organizações Não Governamentais e associações, e que a 175 ajuda humanitária passe por elas. A União Européia deverá exercer um estrito controle sobre as ajudas. – A União Européia especifica as condições impostas a Fidel Castro para aumentar a cooperação: direitos humanos; presos políticos; liberdade para as atividades de Organizações Não Governamentais nacionais e dissidentes. Com isso, sem sombra de dúvida, os estados membros da União Européia e as Organizações Não Governamentais devem se converter em uma espécie de Cavalo de Tróia dos planos elaborados em Washington. Já com o compromisso da União Européia em mãos, Eizenstat pôde informar sobre o êxito de seu trabalho. A aplicação da Lei Helms-Burton foi temporariamente suspensa. Não voltar a aplicá-la dependeria das pressões que a União Européia exercesse sobre o governo cubano, assim como do estímulo à chamada sociedade civil independente, que no caso cubano é simplesmente a “dissidência”. Em junho de 1997 a Fundação Hispano-Cubana enfrentou sua primeira grande dificuldade. Em um comuicado público, Gortázar informava a renúncia dos dois mais destacados membros contra-revolucionários, Carlos Alberto Montaner e Jorge Mas Canosa. Montaner, o primeiro a renunciar, explicava que saia por suas divergências com Mas Canosa, quanto à maneira de fazer avançar a luta contra o governo de Fidel Castro. Imediatamente Mas Canosa fez o mesmo, argumentando que não queria com sua presença transferir para a Fundação HispanoCubana suas diferenças com outros membros do exílio: “É a hora de cerrar fileiras contra a ditadura castrista e não a de abrir brechas nas fileiras da oposição.” Gortázar, por sua vez, assinalou que estas baixas reduziam consideravelmente a politização da Fundação Hispano-Cubana. 176 Em novembro do mesmo ano, o partido Esquerda Unida apresentou, no Congresso dos Deputados do Estado espanhol, uma proposta Não de Lei, em que solicita ao governo declarar ilegal a Fundação Hispano-Cubana. A petição se baseava na participação de um de seus membros, José Antonio Llama, também dirigente da Fundação Nacional Cubano-Americana, de um projeto para assassinar o presidente Fidel Castro, durante a Cúpula Íbero-americana, realizada na Venezuela, no final de 1997. A Esquerda Unida argumentava que o FBI confirmara o comprometimento de Llama no frustrado atentado, desarticulado em Porto Rico, em 28 de outubro. Também pediu “expulsar os estrangeiros residentes na Espanha e membros dessa Fundação que tenham participado de atividades terroristas e negar-lhes, no futuro, entrada em nosso país.” No texto da proposta a Fundação Nacional CubanoAmericana é vinculada “aos recentes atentados terroristas ocorridos em Havana”. Declarando que enquanto a polícia federal estadunidense sabia que a Fundação Nacional CubanoAmericana era cúmplice daqueles atos, o ministro espanhol de Assuntos Exteriores, Abel Matutes, só conseguia dizer que se tratava de “meras suposições”. Como era de se esperar, a proposta da Esquerda Unida foi rejeitada pela maioria parlamentar. No entanto, e como já expusemos em capítulo anterior, no caso da tentativa de assassinato do presidente Fidel Castro durante a Cúpula Íbero-americana na Venezuela, foram detidos pelo FBI, e levados a tribunais federais, sete contrarevolucionários cubanos, entre eles José Antonio Llama, diretor da Fundação Nacional Cubano-Americana e da Fundação Hispano-Cubana. Pepe Hernández, atual presidente da Fundação e dirigente da Fundação HispanoCubana, também foi processado, embora sem ser preso. 177 Finalmente, no princípio de 1999, todos foram absolvidos, apesar das provas contrárias. No que se refere às bombas que explodiram em vários hotéis cubanos, e que deixaram vários feridos e um cidadão italiano morto, o terrorista Luis Posada Carriles declarou ao The New York Times que a Fundação Nacional CubanoAmericana, tendo à frente seus mais altos dirigentes, estava envolvida. Carriles, que fora o encarregado de contratar mercenários centro-americanos para a execução dos atentados, expôs com riqueza de detalhes os planos que nasceram em Miami. Poucos dias depois, o jornal teve que fazer um esclarecimento, dizendo que Carriles jamais dissera que a Fundação Nacional Cubano-Americana pagara para que se realizassem os atos terroristas, mas todas as suas primeiras declarações, repletas de dados muito precisos, deixam um grande espaço para dúvidas, e a certeza de que na Fundação havia concordância com os atos criminosos. O FBI também não descartou a cumplicidade da Fundação Nacional Cubano-Americana. Posteriormente, os autores materiais dos atos criminosos foram detidos pelas autoridades cubanas. Estes cidadãos centroamericanos declararam ter sido contratados por Posada Carriles. Durante o julgamento ficou plenamente demonstrada a responsabilidade intelectual da Fundação, mas, também, a cumplicidade das autoridades estadunidenses. Agora vamos comentar algo sobre nosso entrevistado. Quando o atual parlamentar Gortázar ingressou no Partido Popular, vinha da ala mais radical do Partido Comunista. Sendo um destacado dirigente do setor mais conservador do Partido Popular, um telegrama internacional (EFE, 21.04.95) informava sobre as reuniões que mantivera com “personalidades da FNCA”, as quais tinham como meta, segundo as palavras 178 de Gortázar, “aprofundar nossas relações”.87 Quase um ano depois, em 27 de julho de 1996, Gortázar representou o Partido Popular no congresso anual da Fundação Nacional CubanoAmericana, onde lhe foi dada a oportunidade de pronunciar um fogoso discurso anticastrista e contra-revolucionário. Quando voltou a Madri, dedicou-se a dar vida à Fundação Hispano-Cubana, depositando um milhão de pesetas no Banco de Vitória, necessário para a inscrição oficial. Durante a instalação da Fundação Hispano-Cubana, assim se manifestou: “O presidente Aznar repetiu que nós, os espanhóis, compartilhamos os mesmos valores de democracia e liberdade que europeus e norte-americanos e que o problema de Cuba está na própria Ilha, e se chama Castro. Não é certo que Castro seja David contra Golias.”88 E sobre a Fundação Nacional Cubano-Americana, que supostamente não deseja se imiscuir nos problemas cubanos: “Esta Fundação é um instrumento para preparar-nos para antes, durante e depois da iminente transição para a democracia em Cuba.” E, no momento em que eram dados os primeiros passos públicos para o restabelecimento de relações entre os governos de Espanha e Cuba, Gortázar fazia inquietantes declarações ao Diário de las Américas, um dos jornais mais reacionários de Miami. Na edição de 12 de junho de 1998, assim se referia à viagem do presidente Aznar a Miami: “O gesto do Presidente do Governo da Espanha, José María Aznar, de vir à Flórida, não à Ilha (Cuba) é em si um gesto de encontro e de apoio ao povo de Cuba, diferentemente de outros governantes que preferem visitar Cuba.” Embora Gortázar apareça como portavoz no que se refere a Cuba, sua anquilosada posição de 87 88 Cable de EFE, 21 de abril de 1995. Fundacion Hispano Cubana: Boletin informativo, no 1, Madrid, fevereiro de 1997. 179 confronto com o Estado cubano difere, aparentemente, da que ficou estabelecida em altas instâncias, como provam as declarações e feitos do presidente Aznar e, em particular, as declarações do rei João Carlos. – Senhor Gortázar, como surgiu a idéia de criar a Fundação Hispano-Cubana? – A idéia surgiu em Madri, da cabeça de duas ou três pessoas, entre as quais eu. Foi o resultado da apreciação, por parte da oposição a Fidel Castro, de dentro e de fora, de linhas de confluência que não se manifestavam na Flórida nem dentro de Cuba. Não ocorriam por problemas de personalismo, pois cada vez que um grupo chamava a uma confluência, isso era interpretado como busca de um protagonismo excessivo. Creio que, salvo o Concílio Cubano, que foi um movimento muito geral dentro da Ilha, reunir o conjunto de pessoas que querem, ou queremos, a liberdade para Cuba, parecia muito difícil. Embora fossem pessoas que clamassem pela mesma coisa. Carlos Alberto Montaner quer para Cuba liberdade, democracia e eleições; Jorge Mas Canosa está querendo liberdade, democracia e eleições; Elizardo Sánchez quer a mesma coisa; assim, parecia fácil que, em Madri, nós, um grupo de deputados e empresários, convocássemos o conjunto de cubanos, de dentro e de fora, para formar a Fundação. E assim temos o espectro mais amplo da oposição ao castrismo. – Ou seja, é uma Fundação para interferir na política interna de Cuba? – Não. Como espanhóis, não podemos dizer nada quanto aos problemas políticos internos cubanos. Mas queremos nos ocupar das relações hispano-cubanas. Sabemos que essas relações deixam muito a desejar por haver em Cuba uma ditadura. Por ser uma ditadura, queremos ajudar as pessoas 180 que a sofrem, particularmente os dissidentes; assim como informar à opinião pública o que se passa no interior. – Com o que acaba de dizer, automaticamente, a Fundação Hispano-Cubana se imiscui profundamente na política interna de Cuba. – Não. Não somos atores da política cubana. Somos pessoas preocupadas com essas relações. Parecia-nos que a política dirigida a Fidel Castro não era adequada. Era preciso ter uma política de princípios e de gestos inequívocos em favor da liberdade. E isso sim é um problema espanhol. – Senhor Gortázar, as posições ad Fundação Hispano-Cubana interferem no governo espanhol? – A Fundação Hispano-Cubana é uma organização cultural que tem implicações políticas, porque nossa referência, Cuba, vive sob uma ditadura. Agora, como Fundação Hispano-Cubana não podemos influir no governo espanhol nem em seu Parlamento, mas antes que o Partido Popular chegasse ao governo, havia um ambiente de opinião em setores liberais, conservadores e social-cristãos, que não viam com simpatia a política de abraços entre Fidel Castro e Felipe González. Então, primeiro da oposição e, depois, do governo, valorizamos a política positiva de firmeza do governo de Aznar, com relação ao governo de Cuba. Assim como o PP, consideramos que dar recursos a Castro, em troca de nada, não é adequado. Consideramos que devem ser entregues às organizações civis em Cuba, que devem chegar a setores independentes da população, aos meios de comunicação independentes, etc. E que seja da maneira mais livre, sem que o governo cubano tenha por que canalizá-los. Nisso a Fundação Hispano-cCubana concorda com a política atual do governo espanhol para Cuba, e se converte em um 181 complemento à ação do governo do PP, porque é preciso dar ao ditador o mínimo de oxigênio possível, para que se consuma sozinho. – Houve muitas críticas no Estado espanhol porque a Fundação Hispano-Cubana abriga reconhecidas personagens da extrema direita do exílio cubano... – É verdade. Mas o que não se vê, é que temos a honra de contar entre os membros, pessoas como Elizardo Sánchez e Gustavo Arcos. O senhor Payá esteve, no princípio. Mas se retirou. Não por estar em desacordo com a Fundação HispanoCubana, mas porque lhe era difícil acompanhar seu funcionamento. E fui eu que fui à Flórida justificar porque era necessário ter um membro da esquerda no Patronato da Fundação Hispano-Cubana. Não foi fácil fazer o senhor Elizardo Sánchez aceitar. Expliquei várias vezes que um projeto como o da Fundação teria uma imagem mais ampla se incluísse uma pessoa de esquerda. Até que entenderam. Mas aqui na Espanha o atacado foi Mas Canosa e os outros exilados cubanos. Porque a Fundação tem um projeto de liberdade e democracia, onde a direita pode sentar-se à mesma mesa com a esquerda. Estas personalidades emprestam respeito à Fundação, demonstrando que não temos uma filiação partidária definida. Mas na Espanha se considera que a Fundação Hispano-Cubana é anticastrista, quando na realidade apenas quer liberdade para Cuba. Queremos que as pessoas vejam que apoiamos gente de esquerda no interior de Cuba, como é o caso do senhor Elizardo Sánchez. – Senhor Gortázar, em nossa opinião pessoal, por sua prática política, duvidamos que o senhor Elizardo Sánchez seja de esquerda; alem de tudo, participa da Plataforma do senhor Montaner. Montaner, embora se diga liberal, em seus escritos deixa 182 transparecer o desejo de que Cuba retorne à órbita estadunidense. E observando o resto dos membros, além do senhor Canosa, há outros quatro diretores e um ex-diretor da Fundação CubanoAmericana, de Miami. O senhor Arcos recebe contribuições econômicas da extrema direita de Miami e também faz parte da Plataforma. Vargas Llosa se converteu em um defensor do capitalismo. E até onde sabemos, o senhor e os demais membros do Patronato militam na direita espanhola. Então, onde está a amplitude política? – Vejo que se prepararam para a entrevista... Convidamos pessoas do Partido Socialista espanhol, mas não aceitaram. A Esquerda Unida nos ataca: deve ser porque, para nós, Castro não conta. Mas a Fundação Hispano-Cubana está aberta para todo aquele que queira lutar pela liberdade e pela democracia em Cuba. E digo-lhes que, nos próximos meses, estaremos em condições de informar sobre novas adesões à Fundação Hispano-Cubana, de residentes dentro da Ilha; também ocorrerão adesões de espanhóis, em nível de assessoria e operacionalidade. A Fundação Hispano-Cubana está crescendo rapidamente. A verdade é que foi bem acolhida. Em Cuba o boletim é muito bem distribuído; sabemos que lá temos bastante prestígio. – E a que devem esse prestígio? E, ainda, que tipo de apoio dão à chamada dissidência? – Ganhamos prestígio porque sabem que estamos em uma linha de apoio político às organizações de direitos humanos. E lhes damos apoio porque constituem nosso ponto de referência. Procuramos fazer chegar alguma ajuda material a essas organizações, por meio de turistas. A Fundação HispanoCubana quer enviar muita ajuda econômica ao povo de Cuba, e também explicar a nova posição espanhola. Apoiamos essas organizações sem preocupar-nos com o que pensa a Segurança 183 cubana, porque a Segurança cubana se viu obrigada a ser relativamente tolerante com essas pessoas. O governo não pode fazer nada contra Elizardo Sánchez ou contra o senhor Arcos, pois essas duas pessoas têm um grande prestígio internacional. Tocar neles custaria caro. – Desculpe, mas quando diz “posição espanhola”, quer dizer a do governo? – Efetivamente, a do atual governo. Nós, como Fundação, manifestamos nosso apoio à posição do governo do presidente Aznar, porque é muito digna. – Senhor Gortázar, qual é a posição da Fundação HispanoCubana frente ao embargo? – Creio que é melhor que lhes responda como deputado do PP. O Partido Popular, como a União Européia, considera que a Lei Helms-Burton não é aceitável. Parece-nos que é uma Lei que serve de propaganda para Castro. Mas, apesar disso, temos relações muito boas com a Fundação Cubano-Americana de Miami, que apóia o embargo, mas, para o Partido Popular, o mais importante é a união em torno dos fins, e por isso podemos desconsiderar os desacordos. – Senhor Gortázar, quanto transcendeu a posição do atual governo espanhol, sobre o caso Cuba, na União Européia? – Não poderia dizer que o governo espanhol conseguiu influir totalmente junto à União Européia. Mas a posição atual da União Européia de fato se deve em boa medida à liderança da Espanha. E hoje, a União Européia diz o mesmo que a Espanha: se Cuba quer cooperação, deve melhorar os direitos humanos e respeitar a dissidência interna e as Organizações Não Governamentais independentes. – Mas essa atitude equivale a apoiar o embargo estadunidense. Mais, revendo o que o governo espanhol apresentou à União Européia, vê-se que não difere muito das exigências que os Estados 184 Unidos faz a Cuba para levantar o embargo. E, há pouco, o senhor dizia que a Espanha e a União Européia estavam contra o embargo... – É possível que tenham razão. Mas a experiência que se tem é que não se sabe aonde foram parar as contribuições feitas ao governo de Cuba. Por isso agora queremos fazer projetos concretos que beneficiem diretamente a população. O governo do presidente Aznar vai acabar com o incentivo que Felipe González dava às empresas espanholas para que investissem em Cuba. A mensagem que o governo transmitiu é clara: as empresas que se decidam a colaborar com Castro deverão enfrentar sozinhas o risco. – Por último, senhor Gortázar, a Fundação Hispano-Cubana tem contatos com Organizações Não Governamentais? – Não. Ainda não. É preciso considerar que cada país europeu tem sua própria dinâmica nas relações com Cuba, mas um dos mais destacados membros do Patronato da Fundação, o senhor José Ignácio Salafranca, é deputado do Parlamento Europeu. Supomos que ele terá em conta os princípios de liberdade e democracia, nos assuntos relativos a Cuba que lhe couberem. Mas, sim, parece-nos muito inteligente o que a Plataforma Democrática Cubana, liderada pelo senhor Montaner aqui na Espanha, realizou: influir sobre outros governos e organizações da Europa. Parece-me que na Holanda obteve resultados muito positivos. Sei muito pouco, mas me parece que conseguiram influir na Europa sobre outras organizações e grupos, para ajudar a estabelecer uma Plataforma Européia pelos Direitos Humanos em Cuba. Nós, como Fundação Hispano-Cubana, temos esse trabalho pendente, pois seria conveniente relacionar-nos com Organizações Não Governamentais importantes da Europa. 185 Na Espanha estamos começando um trabalho com a Cáritas, organização da Igreja católica, mas estamos só no começo. Estou incumbido de fazer um projeto sobre as relações de trabalho com Organizações Não Governamentais que atuam na mesma área, para agir coordenadamente e apoiar-nos mutuamente. E quando começarmos, vamos fazê-lo com força e em toda a Europa. 186 X “Damos cinqüenta dólares mensais a uns vinte jornalistas para que possam sobreviver; para que permaneçam no país, pois, cada vez que os encontramos, a primeira coisa que nos propõem é que os ajudemos a sair de Cuba, devido a problemas econômicos”. ROBERT MÉNARD Secretário Geral de Repórteres sem Fronteiras, RSF JACQUES PERROT Responsável Região Américas - Repórteres Sem Fronteiras Três circunstâncias nos convenceram a realizar a entrevista com o Secretariado Geral de Repórteres Sem Fronteiras, com sede na França. Uma, que em Miami dirigentes de organizações contrarevolucionárias, como o senhor Humberto Esteve, Secretário Geral do Partido Democrata Cristão; a senhora Janiset Rivero do Diretório Revolucionário Democrático Cubano e o senhor Pepe Hernández, da Fundação Nacional Cubano-Americana, exaltaram seu trabalho de apoio aos chamados jornalistas independentes do interior de Cuba. A segunda, quando em Paris dois dos que participavam da reunião promovida, no final de 1996, pelo Embaixador especial da Administração Clinton para assuntos cubanos, Eizenstat, comentaram conosco que o delegado de Repórteres Sem Fronteiras havia sido o mais próximo das posições do anfitrião. A última, foi saber que Repórteres Sem Fronteiras esteve com outras organizações européias, em uma reunião semi-fechada convocada pela Pax 187 Christi Holanda em Haia, que pretendia criar um bloco de pressão sobre o governo cubano, e dar apoio à chamada dissidência. Ao entrevistar Jacques Perrot, encarregado da Região Américas, assim como Robert Ménard, Secretário Geral de Repórteres Sem Fronteiras, não só entendemos porque esses grupos da extrema direita em Miami aprovavam seu trabalho, como confirmamos o resto, algo preocupante, considerando os objetivos, imagem e respeitabilidade desta grande associação internacional. E não nos inquietamos à toa. Foi no final dos anos oitenta que se soube em Miami que, no interior de Cuba, existiam jornalistas independentes. Embora isso fosse recebido com otimismo, não surpreendia. Mais: esperava-se. Naquele momento o chamado bloco do Leste estava vindo abaixo, e as organizações denominadas independentes desempenhavam um papel de primeira grandeza, estando à frente as de defesa dos direitos humanos e agências de imprensa, que tinham cada vez mais presença nos meios de informação do mundo. Hoje, quando nesses países reina a penúria para as maiorias e as máfias estão no poder, existe uma extensa bibliografia que permite saber como essas organizações foram assessoradas e pagas pelas potências ocidentais, especialmente pelos Estados Unidos da América do Norte. Então, o aparecimento em Cuba de agências de imprensa independentes, que se somavam aos grupúsculos em prol dos direitos humanos já existentes, era considerado como uma simples reação em cadeia, e como presságio da queda do sistema. Mas podia existir a dúvida: se, no caso dos países do Leste os jornalistas independentes foram, quase todos, uma fachada, em Cuba primaria a deontologia profissional? O 188 adjetivo independente poderia corresponder à definição do Pequeno Larousse Ilustrado? “Diz-se do que tem e mantém suas próprias opiniões e não se deixa influir pelas de outros. Aplica-se à pessoa que não pertence a um partido determinado.” Ao longo deste trabalho, fomos mostrando como as diferentes administrações estadunidenses, em especial de Reagan em diante, utilizaram os meios de comunicação de massa para lacerar social, ideológica e politicamente o processo revolucionário cubano. Nos diversos textos e exemplos mostrados, achamos que ficou claro o papel desempenhado por Rádio Martí, La Voz del CID, La Voz de la Fundación etc., tanto para dividir a sociedade cubana, como para gestar e alimentar grupúsculos contra-revolucionários. Não nos esqueçamos que a Rádio Marti, e em geral os programas para Cuba, fazem parte das propostas definidas e assumidas em sua maior parte, como prioritárias, no Documento de Santa Fé. Apesar de que foi durante a Administração Bush que veio à tona a tentativa de semear agências de imprensa independentes, foi com a presidência de Clinton que na verdade elas começaram a frutificar. E um fato chave, impossível de ignorar no contexto da estratégia adotada, foi a aplicação da Lei Torricelli. Esta lei ordena – e aqueles que se preocuparam em lê-la do começo ao fim saberão que este é o termo exato – incitar, criar e financiar, direta ou indiretamente, todo tipo de organização que implique em desacreditar e agredir o Estado cubano, incluindo, como algo essencial, as agências de imprensa independentes. A esta sutil tática de semear grupúsculos, básica para a desestabilização deu-se um nome: “Track two”, Rota dois. A um é o nefasto embargo. 189 Como se fosse pouco, quase ao mesmo tempo, Clinton somou à Lei Torricelli o que fora recomendado pelo estrategista Donald E. Schulz, em 1993: “Promover (...) o estabelecimento de escritórios de imprensa (...), dando facilidades aos elementos dissidentes para que se comuniquem abertamente e estimulem uma maior fragmentação (...).”89 Pois bem, pode-se dizer que fomentar a queda do sistema político cubano é um velho projeto de Washington, apoiado tacitamente, insistimos, por seus aliados. E que nem todo aquele que no interior da Ilha se declare dissidente ou independente está necessariamente de acordo com isso. É possível, mas já vimos como vários dos que internacionalmente são reconhecidos como líderes dos direitos humanos, fazem parte da estratégia. Dizíamos que nos inquieta o profundo compromisso, de defesa e de apoio, assumido pelos Repórteres Sem Fronteiras com os chamados jornalistas independentes. Parece-nos que o fizeram sem uma análise fria e desapaixonada do contexto geral em que se desenvolve o processo político cubano, tanto interna como externamente. Pensamos que, por isso a insistência no termo “independente”, que nos parece não corresponder à realidade. Sabendo de nosso interesse pelo assunto, Repórteres Sem Fronteiras enviou-nos La otra voz cubana.90 No prefácio à edição francesa, escrito por um profissional da comunicação que publicou alguns livros sobre Cuba, encontramos a percepção que deve ser a dos Repórteres Sem Fronteiras sobre o mundo dos chamados jornalistas independentes. Em um trecho diz: 89 Donald E. Schulz. Obra citada. 90 Jean-Pierre Clerc: “Prefacio”, L’autre voix cubaine. Des journalistes dissidentes temoignent, Ed. Reporteres Sans Frontieres, Paris, 1997. 190 O método de trabalho destas mulheres e homens é “a pesquisa de proximidade”. Que quer dizer isso? Trata-se de recolher, aqui e ali, informações, até muito vagas, de conhecidos, amigos e simpatizantes mais ou menos declarados da democratização. Fica demais esclarecer que, de maneira nenhuma, têm acesso a documentação ou contatos oficiais (...) É difícil, também, ir à caça de informações fora da capital: em um país onde a desconfiança e a delação foram, durante quase quarenta anos, consideradas virtudes nacionais, é necessário ser conhecido, e reconhecido, para recolher fragmentos do que poderia compor um artigo (...) Aqui vale a pena fazer um pequeno, porém útil, comentário. Quem, como nós, passou por Cuba sabe que, se algo caracteriza esse povo, é sua paixão por falar: tudo se conta, tudo se critica, tudo se discute. E de viva voz. Para saber se neste dia houve pão e leite nas escolas, basta parar entre os que esperam, pacientemente, o ônibus. Ou perguntar, aos que servem num restaurante, como está a situação econômica do país, para que se estendam em comentários, e muito possivelmente se inflamem, em um debate apaixonado, se uma pausa o permitir. Fazem-no com estrangeiros ou nacionais, da maneira mais natural: se natural for a atitude do interessado. Em Havana, em frente ao Hotel Inglaterra, no parque, há um lugar conhecido como a “esquina quente”. Vale a pena misturar-se entre os que ali debatem, sem temer a gritaria, para saber como se desarma e se arma o país; que medidas governamentais não são do agrado de alguns; e se o mau desempenho da equipe nacional de beisebol deve-se ao treinador ou a algum 191 burocrata. Sabemos muito bem que não existe outro país na América Latina que tenha essa peculiaridade. Supomos que seja um legado da Revolução. Continuemos. O texto, uma vez escrito, é passado por telefone ao estrangeiro, geralmente para Miami ou Porto Rico. Daí é divulgado por intermédio de boletins que circulam entre a diáspora, depois enviados a Cuba em cartas particulares; o texto também é lido na Rádio Martí. É preciso esclarecer que os textos de jornalistas independentes não são autorizados na ilha. Mas criou-se uma espécie de dialética (sic): as informações das agências independentes dão a conhecer ao exterior elementos da situação cubana ocultos pelo regime; e a Rádio Martí oferece, não apenas aos dissidentes, mas também a um amplo setor da população, uma abertura única para o mundo (...) Honestamente, tivemos que ler várias vezes a expressão: “uma abertura única para o mundo”. Queremos pensar que seu autor enganou-se involuntariamente. Pois sabendo para que funciona a Rádio Martí, e quem está à sua frente, é fácil imaginar que tipo de “abertura” pode oferecer aos habitantes da Ilha; achamos que foi um equívoco, pois algumas páginas antes afirmara que essa rádio, assim como Tele-Martí, “foram montadas e são mantidas pelos fundos da CIA americana”. Reconhecemos não ter entrado no lar de nenhum dos que internacionalmente se diz jornalista independente. E como em alguns deles funcionam as sedes de suas agências, não podemos saber de maneira direta com que elementos desempenham seu trabalho. O prefácio do livro dos Reporters 192 sans Frontières diz de uma delas: “Algumas velhas máquinas de escrever e gravadores antidiluvianos, um apartamento apenas em parte organizado, dois telefones e a bicicleta de cada um posta a serviço da causa: é todo o poder de dissuasão do BPCI!” Não é demais esclarecer que em Cuba a bicicleta não é sinônimo de pobreza entre os habitantes; simplesmente foi o recurso oferecido pelo governo frente à escassez de transportes coletivos, devido à crise econômica geral que se desencadeou desde princípios da década de 90. Agora, a descrição feita no prefácio contrasta com o seguinte: a Anistia Internacional denunciou que em 10 de julho de 1995, a Segurança cubana confiscara um fax do jornalista independente Nestor Baguer; mas em 18 de agosto Baguer já tinha outro. Segundo a mesma fonte, em 12 de julho confiscaram de José Rivero “um aparelho de fax, uma câmara de vídeo e material fotográfico”. (Anistia Internacional: Cuba, ofensiva do governo contra a dissidência, versão em espanhol, abril de 1996). Recordando as intenções táticas e a estratégia do governo estadunidense, que a União Européia concordou em apoiar desde janeiro de 1997, devese dar credibilidade à Anistia. Já em capítulos anteriores demonstramos como existe uma boa quantidade de dólares destinados a apoiar a dissidência interna. Trata-se de um segredo público: “As agências de imprensa cometeram erros: algumas aceitaram a ajuda material da Seção de Interesses americanos de Havana (...)” (Le Figaro, Paris, 02. 02. 96) Os Repórteres Sem Fronteiras denomina-os “a outra voz”. Está certo. Estão em contradição com o monopólio que o Estado exerce sobre os meios de informação, mas pelo que se pode observar na práxis, esse ato de aparente rebeldia, de dissidência, de insubmissão, foi a justificativa encontrada para entregar-se a outros braços. Nos poucos parágrafos do prefácio que transcrevemos, já existem 193 alguns dados importantes sobre o caminho que escolheram. Aqui vão alguns outros exemplos: Rafael Solano, exilado na Espanha, tem seu ponto de vista sobre a neutralidade política: “Diz a teoria que o jornalismo deve ser imparcial. A prática demonstra exatamente o contrário. O jornalismo oficial em Cuba toma partido a favor do Comitê Central.”91 Isso é inegável, mas contrasta com o que afirma umas linhas depois: “Rádio Martí é uma opção diferente. A imprensa do exílio, particularmente a de Miami, se nutre da imprensa independente de Cuba.”92 Durante vários dias o senhor Solano esteve preso em seu país. Os Repórteres Sem Fronteiras fornecem um dos motivos de sua detenção, junto com um colega: Eles tinham divulgado para o exterior o conteúdo de uns panfletos lançados do céu de Havana por um avião de turismo vindo da Flórida, em 13 de janeiro (de 1996). Esses panfletos, chamando à desobediência civil, tinham sido lançados pela organização Irmãos para o Resgate, de Miami, que ajudava os “balseiros”. (Reporters sans Frontières: Rapport 1997, Paris, 1997) Uma das grandes preocupações que nos assaltam cada vez que lemos relatórios de muitas Organizações Não Governamentais, como Repórteres Sem Fronteiras, é que não são fornecidos, ao público, dados essenciais para que um fato seja compreendido. Vale dizer que essas pessoas leram esses panfletos ao povo cubano na Rádio Martí e na Voz de la Fundación. E que esses panfletos tinham uma função autenticamente sediciosa, pois o fluxo de balseiros se interrompera oito meses atrás. 91 92 Trazos de Cuba, paris, junho de 1996. Idem. 194 Encontramos Raúl Rivero, diretor de Cuba Press, como membro do Partido Solidariedade Democrática, dirigido de Miami pelo ultra-reacionário Hubert Matos, grupo que, por sua vez, está politicamente próximo da Plataforma Democrática Cubana, em Madri. Desde meados de 1997, é diretor da conservadora Fundação Hispano-Cubana. Informa para Rádio Martí e La Cubanísima, Caracol, a cadeia de rádio mais direitista da Colômbia; Rádio Jerusalém, conhecida por suas posições conservadoras; El Nuevo Herald, influenciado pela extrema direita de Miami; El Nuevo Día, informativo portorriquenho de direita; e Trazos de Cuba, boletim editado na França, por exilados de extrema direita. Estes são os meios, primordialmente, para os quais transmite informação. Sem esquecer seus artigos regulares para o ultra-reacionário Diario de las Américas, em Miami. Apesar do grau de compromisso político, claro e muito bem definido, atreve-se a dizer: “Sou jornalista. Eu o demonstrei durante muitos anos, e desejo fazer um trabalho “despolitizado”, de jornalista profissional, sem tendências, que se limita a relatar os fatos”. Em 10 de dezembro de 1997, Dia Internacional pelos Direitos Humanos, recebeu o prêmio Reporters Sans Frontières, em recompensa “a um jornalista que por sua atividade profissional, soube testemunhar seu apego à liberdade de imprensa”.93 Uma devoção à liberdade de informação que, curiosamente, serve a um dos atores no conflito. José Rivero, sem ser jornalista, é vice-presidente da agência. No relatório de Repórteres Sem Fronteiras de 1997 está dito que ele “participa há pouco tempo do programa A Semana em uma Hora, transmitido pela Rádio Martí”. A Anistia 93 “Suplement”, Le Monde, Paris, 17 de janeiro de 1998. 195 Internacional, em um informe de julho de 1996, confirma o que foi dito, especificando que o programa é dirigido para Cuba, e que a emissora é “financiada pelo governo estadunidense”. Em meados de 1997, Repórteres Sem Fronteiras realizou uma campanha contra a detenção provisória de Héctor Peraza. Vários reconhecidos intelectuais franceses apoiaram-na. Peraza é membro do Partido Solidariedade Democrática, dirigido de Miami por Hubert Matos. Também colabora com Trazos de Cuba, grupúsculo que em seu informativo de setembro de 1997 apoiava tacitamente os atos terroristas que estavam sendo cometidos em locais turísticos cubanos. Trazos de Cuba, segundo se diz no prefácio de La otra voz cubana, é uma fonte importante de informação para Repórteres Sem Fronteiras. Nestor Baguer foi escolhido por Repórteres Sem Fronteiras como seu correspondente em Cuba. Mas também é membro do Comitê Martiano pelos Direitos Humanos, e da Corrente Socialista Democrática, ambos grupúsculos ligados aos esquemas contra-revolucionários Coordenação Democrática Cubana e Plataforma Democrática Cubana, dirigidos do exterior por Carlos Alberto Montaner e Ignacio Rasco. Além disso, suas informações aparecem regularmente nos boletins da Fundação Nacional Cubano Americana e da Representação Cubana no Exílio. Os Repórteres Sem Fronteiras publicaram um brevíssimo livro de poemas de Yndamiro Restano, produzido durante os meses em que esteve na prisão. Foi um dos primeiros que, no final dos anos 80, tentou organizar uma agência independente de imprensa. Pouco depois, organizou e presidiu um grupúsculo denominado Movimento Harmonia, que passou a acompanhar as políticas da Coordenação e da Plataforma Democrática Cubana. Restano era um dos assíduos 196 informantes da Rádio Martí, mas também da Voz de la Fundación. Foi para o exterior e não voltou para Cuba, aparentemente porque as autoridades proibiram sua entrada. Em 17 de junho de 1997, utilizava a linha da internet pertencente a Irmãos para o Resgate, para difundir a informação. Vive atualmente em Miami. Olance Nogueras residia em Cienfuegos e tinha o cargo de diretor em uma agência independente de imprensa: “Em 15 de agosto (de 1996), o jornalista recebera a visita de Robin Dayan Meyers, diplomata norte-americano (acreditado na Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana).” É possível que não só nós nos perguntemos, o que tem de especial o senhor Nogueras para fazer deslocar-se até aquela cidade um funcionário tão importante? Em 5 de setembro de 1996, Nogueras, depois de um debate televisionado entre Jorge Mas Canosa e o dirigente cubano Ricardo Alarcón, telefonou para a Voz de la Fundación e fez o seguinte comentário: “O presidente da Junta Diretora da Fundação Nacional CubanoAmericana demonstrou uma vez mais ser um dos grandes líderes do exílio e uma das pessoas mais capacitadas para enfrentar o governo cubano.” Em agosto de 1997 Nogueras saiu para Miami, onde foi recebido pelos dirigentes da Fundação. Em 8 de outubro de 1997, dia em que se inaugurava o V Congresso do Partido Comunista de Cuba, Repórteres Sem Fronteiras tornou público um breve documento onde pedia às autoridades cubanas libertar Lorenzo Paez Nuñez, exmembro de uma agência de imprensa, mas também “presidente do Centro Não Governamental pelos Direitos Humanos José de la Luz y Caballero.” A denúncia de Repórteres Sem Fronteiras especifica que quando foi preso, “o jornalista (cuja profissão real é matemático, segundo a fonte), telefonava para 197 a representante de uma associação de cubanos exilados nos EUA (...).” Para que o leitor compreenda objetivamente o contexto da detenção, só falta acrescentar que o “Centro Não Governamental” está vinculado à Coalizão Democrática Cubana, que é dirigida de Miami pela ultra-reacionária Fundação Nacional Cubano-Americana e que naquele momento era cúmplice das bombas que explodiam nos centros turísticos cubanos. Portanto, o senhor Paez não estava telefonando para qualquer associação de exilados: a polícia chegou “enquanto a Fundação Nacional Cubano-Americana gravava a mensagem do porta-voz do grupo, Lorenzo Paez Nuñez”. Vamos encerrar esta série de exemplos com um fato ocorrido no início de 1997. Mas antes devemos introduzi-lo, brevemente. Em março de 1996, o presidente Clinton assinou a Lei Helms-Burton, que se destaca por ser mais prepotente, ingerente, e anexionista do que a Torricelli. Ela “institucionaliza” o “direito soberano” estadunidense de criar e apoiar moral e economicamente a dissidência interna cubana, inclusive os denominados jornalistas independentes. Naquele momento, como o fariam – e o fizeram em épocas não muito distantes, diante de agressões externas – os governos da França, Inglaterra, Espanha e o próprio governo estadunidense, o cubano estabeleceu em sua legislação que “toda colaboração” interna com as pretensões da Lei Helms-Burton, seria considerada um crime contra a nação. Quase um ano depois, em 28 de fevereiro de 1997, a Casa Branca anunciou a emissão de um documento intitulado “Apoio para uma transição democrática em Cuba.” Este texto, “redigido no contexto da Lei Helms-Burton (e que) devia ser 198 abundantemente divulgado pelas ondas da Rádio Martí”,94 promete uma ajuda econômica maciça aos cubanos, a partir do momento em que os irmãos Castro e parte da atual direção cubana abandonem ou percam o poder. Quando isso acontecer, o governo estadunidense “sente a obrigação” de estar ao lado dos chamados grupos dissidentes. Ou seja, mais e mais, a mesma coisa. Imediatamente a Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana, além de continuar dando o apoio material e econômico habitual, começou a programar seminários. Dito isso, propomos que leiam os comunicados de dois jornalistas, denominados independentes, sobre um mesmo acontecimento.95 Havana, fevereiro de 1997. BPIC. – Ao meio dia de 5 de fevereiro (de 1997), na residência da senhora Mary (sic) Blocker, Primeira Secretária para Assuntos de Imprensa e Cultura do Escritório de Interesses dos EUA em Cuba, foi oferecido um programa de televisão, diretamente de Washington, sobre o jornalismo cívico, de que participaram um membro do Filadélfia (sic) Square (sic) e William Harrys (sic), do Departamento de Ciências Políticas da Universidade da Pennsylvania. As agências APIC, Havana Press, BPIC e Centro Norte Press de Villa Clara estiveram presentes (...). Da imprensa estrangeira, só a Agencia (sic) espanhola, EFE, o Financial Times e a BBC de Londres se fizeram presentes no local. 94 Le Monde, Paris, 1 de fevereiro de 1997. 95 Comunicado de BPIC, Documento tirado da Internet, 4 de julho de 1997. 199 O segundo texto amplia e complementa o anterior, dando mais detalhes sobre o evento. Havana, 5 de fevereiro (BPIC). – Jornalistas de cinco agências de imprensa independentes foram provocados quarta-feira por uma equipe de filmagem do Noticiário Nacional de Televisão durante a transmissão de um programa televisionado sobre jornalismo cívico e público na residência de Merrie (sic) Blocker, primeira secretária (...) “A intenção é criar pânico entre os membros da imprensa independente”, afirmou Raúl Rivero, presidente de Cuba Press (...) A reunião consistiu na apresentação de um debate sobre as novas tendências de um jornalismo democrático, nascido nos Estados Unidos e com uma ampla participação do homem comum (sic). A transmissão do programa Jornalismo Cívico e Público realizou-se pelo canal Worldnet dos serviços públicos (sic) do governo norte-americano, com a participação em Washington da jornalista Jan Schaffer, do Filadelfia (sic) Inquirer e do professor William Harris (...) “Esperava esse encontrão (sic) entre as principais (sic) fontes de informação de Cuba”, disse Lázaro Lazo, diretor do Escritório de Imprensa Independente de Cuba (BPIC), para quem a provocação tem aspectos conjunturais, relacionados com o informe “Apoio para uma Transição Democrática em Cuba”, emitido pelo presente Clinton na semana passada. 200 “Apoio para uma Transição” que Olance Nogueras, redator da notícia, se preocupa em explicar na seqüência: “O Capítulo II do informe mostra a necessidade (estadunidense) de fortalecer os meios de comunicação independentes, dando assistência para capacitar os jornalistas em métodos objetivos e responsáveis de informar os cidadãos.” Não é necessário qualquer comentário sobre a falta de independência jornalística, para não falar da política. O Secretário Geral dos Repórteres Sem Fronteiras, Robert Ménard, não tem dúvida nenhuma: a prioridade da associação na América Latina é Cuba. Isso significa apoiar o trabalho dos chamados jornalistas independentes. Por que este grau de importância? Porque, do ponto de vista dos Repórteres Sem Fronteiras, “é perigoso ser jornalista na Colômbia ou no Peru, mas há liberdade de imprensa”. Nestes países há jornalistas “assassinados e presos”, mas os familiares e colegas podem se contentar com “fazer denúncias”. Isso é preocupante. Porque não se trata do caso isolado desses dois países. Em um continente onde a taxa de analfabetismo é muito alta, e uma mínima parte de seus habitantes tem acesso aos meios de comunicação, por a liberdade de imprensa acima do direito à vida e à integridade física nos parece muito grave. Pode-se alegar que a importante revista The Economist não é especialista no assunto. O certo é que, em abril de 1997, mencionou os doze países do mundo que mais atentam contra a liberdade de imprensa e de expressão: com exceção da China, todos são aliados próximos dos Estados Unidos e da União Européia. Na América Latina, a Colômbia e o México são os primeiros classificados. Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), nos últimos nove anos foram assassinados “com absoluta impunidade” cento e setenta e nove jornalistas no continente, 201 em sua maioria por forças repressivas estatais. Praticamente vinte por ano; ou seja, mais de um e meio por mês. Em Cuba não houve nenhum jornalista agredido fisicamente, nem torturado, nem assassinado, nem desaparecido. Sem olhar a quem servem, ou sem querer fazê-lo, a Sociedade Interamericana de Imprensa entregou um prêmio às agências independentes de imprensa, por sua “valente” contribuição à “democracia” informativa. Nem o Paraguai nem a Argentina estão em conflito com algum país, como é o caso de Cuba, e apesar disso Raquel Rojas, do jornal La Nación do Paraguai, diz que: “fazer jornalismo de investigação hoje em meu país é correr risco de vida todos os dias”, e no mesmo artigo Oscar Cardoso, de El Clarín de Buenos Aires, acrescenta que o presidente Menen “propôs compensar a liberdade de imprensa com a liberdade do porrete”.96 A entrevista se realizou na sede do secretariado internacional dos Repórteres Sem Fronteiras, em Paris. Começamos com Jacques Perrot e acabamos com Robert Ménard. O primeiro, jovem, amável e de temperamento sossegado. O Secretário Geral nos pareceu impulsivo, a ponto de não poder conter expressões que denotam a raiva que tem do governo cubano. Repetimos, é inquietante a defesa assumida pelos Repórteres Sem Fronteiras dos que se denominam jornalistas independentes, porque essa independência profissional é inexistente entre os que sobressaem internacionalmente. Indiscutivelmente, é certo: a independência de que se vangloriam os situou em um dos campos. Porque esses corações e penas optaram por servir, direta ou indiretamente, o poder que deseja ver sua 96 Felipe Sahagun: “Informativo Veraz”, El Mundo, Madrid, 9 de novembro de 1997. 202 nação como a estrela número 51-bis da bandeira dos Estados Unidos: outro Porto Rico. – Em seu relatório de 1997 os senhores dizem que existem cinco agências de imprensa independente em Cuba. Referem-se a elas como se estivessem integradas por um grande número de profissionais da comunicação. Mas, pelo que sabemos, não são tantos. Achamos que não chegam a dez. – Sim, há mais jornalistas. Mas é verdade que a maioria são colaboradores. – Gostaria de concentrar-me no papel que um jornalista deve desempenhar quando sua nação está em guerra, ainda que não militar, como é o caso de Cuba. Quero que se ponha no lugar do Estado cubano: o senhor aceitaria que em meio a essa agressão que os Estados Unidos lhe declarou há quase quarenta anos, aceitaria que alguns cidadãos, por serem jornalistas, enviassem informações que convêm ao inimigo? – Não creio que todos os artigos ataquem o governo cubano. E também não creio que peçam a cabeça de Fidel Castro. Mas, por que alguém não pode criticar o governo e Fidel Castro? Por que um cubano não pode pedir que o ditador Castro deixe o poder? – Mas, no jornal Granma, no dos Trabalhadores e no da Juventude, regularmente pode-se ler críticas contra instituições ou funcionários do Estado. Por exemplo, li vários artigos onde se fala, com nomes próprios, de quadros políticos corruptos. – Precisamente vários desses jornalistas trabalharam em meios de informação oficiais. Foram despedidos por indisciplina, desacato ou por ofensa às autoridades. – Mas, vejamos. Quando surgiu o Concílio Cubano, internacionalmente se dizia que era uma oposição independente e válida ao sistema cubano. Mas, existem suficientes 203 documentos provando que o Concílio foi organizado, financiado e dirigido, não só pela extrema direita do exílio, mas pelo governo estadunidense. E sabe-se que os chamados jornalistas independentes tiveram uma participação muito ativa, sobretudo informando os meios jornalísticos contrarevolucionários no exterior. Muito particularmente a Rádio Martí. – Você deve saber melhor que eu que no Concílio Cubano deve ter havido grupos financiados pela CIA. Ninguém duvida disso, mas também deve haver outros financiados pela Segurança do Estado cubano. Nós, Repórteres Sem Fronteiras, apoiamos constantemente os jornalistas independentes. Mas, por que Raúl Rivero foi ameaçado e às vezes detido? Por que escreveu para El Nuevo Herald? – Mas, o senhor deve saber que esse jornal é praticamente controlado pela extrema direita do exílio cubano. A mesma que deseja a anexação de Cuba aos Estados Unidos. Não acha que isso já é suficiente para estar tomando posição por uma das partes em conflito? Além do que, o senhor Raúl Rivero transmite para Rádio Martí, e tem programas regulares nela. E o senhor sabe que essa rádio é controlada pelo Departamento de Estado. Acha que o governo francês suportaria isso se estivesse na pele do cubano? Mas, enfim, é a pátria ou o ofício? – Estou completamente certo que um jornalista não pode censurar-se por defender a pátria a todo custo. – Quero reconhecer que não acredito na neutralidade jornalística. Por exemplo, desde o momento em que o senhor chamou Fidel Castro de ditador, já assumiu uma posição política. Como se diz, somos humanos e temos um coraçãozinho, mas há pessoas, jornalistas, que em Cuba estão servindo, colaborando com uma das forças em conflito, e que é precisamente a inimiga histórica de sua pátria. Sinceramente não compreendo essa independência 204 e neutralidade, diferente da que se encontra em dicionários e enciclopédias. – Ouça-me. Esses jornalistas falam em seus artigos da vida cotidiana em Cuba, das dificuldades enfrentadas. – É verdade. Embora todos os que lemos sejam bastante negativos. São apenas ataques ao governo cubano. Não lhe parece estranho que não exista nem uma gota de positivismo? Por que acha que a extrema direita do exílio está tão feliz com eles? Mas, mudando de assunto, diga-me o que fazem os Repórteres Sem Fronteiras por estas pessoas? – Primeiro, tomar contato com eles. Tentar publicar seus textos fora, para que sejam conhecidos... Mas, eu gostaria de saber onde se diz que todos são financiados ou apoiados pela CIA... – Eu não disse isso. Mas lendo alguns documentos do governo estadunidense e da extrema direita do exílio, é fácil constatar que pelo menos os mais conhecidos recebem vários tipos de apoio, além de haver diversos e recentes relatórios do governo estadunidense estabelecendo financiá-los ou entregar-lhe os implementos necessários. – Bom, eu acho que são coisas que devem ser provadas. – Não temos provas concretas de que lhes entregam dinheiro por não fazer nada. Mas o senhor sabe que recebem um pagamento pelos artigos que escrevem e que são publicados nos meios de informação da extrema direita e na Rádio Martí. Agora, por sua práxis é fácil constatar que politicamente formam parte, voluntária ou involuntariamente, da estratégia contra-revolucionária, e parece difícil acreditar que pessoas tão inteligentes não saibam como seu trabalho está sendo utilizado no exterior. Mas diga-nos, como esses jornalistas fazem chegar seus textos ao exterior? – Eles telefonam seus artigos para alguém em Miami. E essa pessoa os põe na internet. Mas o certo é que na Europa há uma 205 posição favorável ao regime de Fidel Castro. E, no momento, há pouco eco para esses jornalistas. Um pouco na Espanha. E na França, quase nada... Às vezes Courrier International... – Como é a relação das pessoas, em Cuba, com esses jornalistas? – Regularmente promovem atos de repúdio a eles. Segundo os jornalistas, estas pessoas são membros do Partido Comunista do bairro. Vêm a suas casas para gritar-lhes que são traidores da pátria etc. São assinalados como inimigos do povo. Sua vida é difícil; além disso, a Segurança do Estado os detém por horas ou dias. – E os senhores falaram com gente do governo cubano para que lhes expliquem por que o fazem? – Não, realmente não. Mas, deve-se fazer isso. (Nesse momento passamos para o escritório de Robert Ménard, Secretário Geral dos Repórteres Sem Fronteiras. Ali, na ampla mesa redonda, tratamos de concretizar o assunto que mais nos interessa.) – Senhor Ménard, um jornalista deve pensar antes em sua pátria, em sua nação, do que em seu ofício? – Este não é um debate que diga respeito unicamente a Cuba. Inclui as democracias. Lembre-se da Guerra do Golfo, essa era a pergunta: você é jornalista ou cidadão francês? Foi algo contrário à guerra do Vietnam: vocês são cidadãos americanos; não podem estar fora dos interesses do Estado; não podem informar como queiram. Então selecionavam alguns jornalistas e levavam-nos onde lhes interessava. E a imprensa mundial, embora tenha havido alguns protestos, aceitou este princípio. Então, existe um limite para um jornalista quando seu país está em guerra? Eu entendo o limite quando dele depende a vida dos soldados. 206 Mas, em Cuba, o governo foi um pouco mais longe, pois não se pode dizer uma palavra que possa servir aos americanos, dentro dessa guerra que as autoridades de Havana consideram que existe há quase quarenta anos. E isso é inadmissível. Inadmissível! Creio que os jornalistas têm um papel, embora contra seu próprio país. A informação pode ser contraditória com os interesses de seu próprio país. Na Guerra do Golfo não existiu a liberdade, mas Cuba é outra coisa. – E o senhor acha que o governo cubano deve cruzar os braços, deixando que seus inimigos financiem aqueles que, segundo parece, não se importam com a soberania de sua nação? – Esse é o problema. Por que acha que os Repórteres Sem Fronteiras ajudam financeiramente esses jornalistas independentes? Exatamente por essa razão. Porque é preciso garantir que alguns deles possam existir sem o dinheiro do governo cubano, pois, como são seus críticos, não recebem dinheiro. E que sobrevivam sem Miami e sem a CIA. Se alguém espera que amanhã surja uma alternativa a Castro que seja diferente dos sanguinários de Miami, esta alternativa virá da implicação de organizações como a nossa, na Europa. É por isso que, quando as autoridades da União Européia dizem que é preciso reforçar o embargo, nós dizemos que em Cuba é preciso optar pelo positivo: ajudar aqueles que constituem uma alternativa a Castro no interior. Quando ajudamos os jornalistas independentes em Cuba, lembramos-lhes que esse dinheiro não vem dos americanos, nem sequer da União Européia. Damos cinqüenta dólares mensais a uns vinte jornalistas para que possam sobreviver; para que permaneçam no país, pois cada vez que os encontramos a primeira coisa que propõem é que os ajudemos a sair de Cuba, devido a problemas 207 econômicos; para que resistam à pressão; e para que não necessitem de Rádio Martí. – Os Repórteres Sem Fronteiras estiveram na reunião promovida pelo embaixador especial do governo estadunidense, Eizenstat... – Sim. Sim. – Bem, então sabem que ele passou pela Europa reunindo-se com algumas Organizações Não Governamentais que trabalham com Cuba. Sabem que está propondo o apoio à chamada dissidência interna. Supomos que os Repórteres Sem Fronteiras sabem que essa é uma das mais importantes táticas elaboradas em Washington para desestabilizar o governo cubano. E para isso as Organizações Não Governamentais européias são muito importantes, pois não inspiram a desconfiança das estadunidenses. Mas, qual foi a posição dos Repórteres Sem Fronteiras nessa reunião? Sr. Perrot: Dissemos-lhes que damos este apoio desde setembro de 1995. – Sabemos que em outros países algumas Organizações Não Governamentais acataram este plano. E estamos tratando de averiguar, embora seja muito difícil, que Organizações Não Governamentais aceitaram ou estariam dispostas a receber os milhares de dólares que o governo estadunidense ofereceu. Sr. Ménard: Os Repórteres Sem Fronteiras querem ser precisos sobre o nosso dinheiro: é super limpo! – Em nenhum momento eu disse que os Repórteres Sem Fronteiras receberam dinheiro do governo estadunidense... – Mas é importante deixar isso bem claro! – Parece que na França o embaixador Eizenstat não ofereceu dinheiro às Organizações Não Governamentais que apoiassem seu plano. Para ele, o mais importante é que se apóie a dissidência interna. O plano consiste em consolidar um grupo de Organizações Não Governamentais européias que pressionem o governo cubano 208 e que apóiem a dissidência. E nos parece que os Repórteres Sem Fronteiras estão, inconscientemente, nessa linha. – Ah, mas nós já lhes dávamos apoio e vamos continuar dando! – Não importa se isso se encaixa diretamente na estratégia desestabilizadora para Cuba... – Independentemente da estratégia dos americanos ou da União Européia, continuaremos dando nosso apoio! Para os Repórteres Sem Fronteiras a prioridade, na América Latina, é Cuba! E as três razões para intervir em Cuba são: uma, denunciar o que acontece em Cuba, porque na Europa, particularmente na França, pensa-se que Castro não é um ditador como os outros. E isto é absurdo! Segundo, dar assistência material aos jornalistas. Três, tornar seu trabalho conhecido. – E por que é prioridade, se há países onde ser jornalista – um jornalista honesto – é muito perigoso? Que eu saiba, em Cuba não se torturam nem assassinam os chamados jornalistas independentes. – Por que? Porque é o único país da América Latina onde não há nenhuma liberdade de imprensa! É perigoso ser jornalista na Colômbia ou no Peru, mas há liberdade de imprensa! – Desculpe, mas é muito discutível a liberdade de imprensa que existe na Colômbia ou no Peru... – Sim, você pode discuti-lo! No Peru e na Colômbia há limites à liberdade de imprensa, há jornalistas assassinados e na cadeia, mas você pode fazer denúncias. Mas, em Cuba não pode haver nenhuma voz dissidente! Não há rádio, nem televisão, nem jornal independentes. Tudo está controlado pelo Estado! A única coisa que existe é o boletim da Igreja católica! 209 XI “Claro que os americanos estão felizes com nosso Movimento... Quer dizer, com o que chamamos Plataforma pelos Direitos Humanos e a Democracia em Cuba”. LIDWIEN ZUMPOLLE Coordenadora da Seção América Latina na Pax Christi Holanda Quando telefonamos para pedir um encontro, a senhora Lidwien Zumpolle fez muitas perguntas, a maioria para saber como tínhamos conhecimento que Pax Christi Holanda estava apoiando a chamada dissidência cubana. Quando esclarecemos as incógnitas, riu, comentando que os europeus não aprendiam a manter a boca fechada. Para diversificar nossas fontes de informação, dissemos a ela que tínhamos um artigo da imprensa estadunidense que situava sua organização como afim com a estratégia da Administração Clinton (The Miami Herald, Miami, 28. 12. 98). Tornou a rir, e ficou convencida de que seus passos eram públicos. Em dezembro de 1996 Pax Christi Holanda enviou uma convocação para várias Organizações Não Governamentais européias, que trabalham no campo dos direitos humanos ou do desenvolvimento. Foram então convidadas a formar a Plataforma Européia para a Democracia e os Direitos Humanos em Cuba. Politicamente independente, dizia. Assim, em 21 211 de fevereiro de 1997 houve a primeira reunião, em Haia, na Holanda. Boa parte das organizações convocadas não compareceu, pela falta de correspondência entre a proposta e os critérios com que trabalhavam em relação ao processo cubano. Como o programa da reunião tinha caráter “não público”, apenas se soube que os Repórteres Sem Fronteiras, Justiça e Paz da Itália e da Espanha, e H. Böll Stiftung Alemanha estiveram entre os presentes. Tampouco pudemos nos inteirar dos acertos finais. Retomando um pouco a história mais recente, pareceunos que esta Plataforma é uma continuidade de algo que o governo estadunidense já tentara em 1995. Vejamos. Foi Richard Nuccio, naquele momento assessor do presidente Clinton para a América Central, o encarregado de levar adiante o projeto. A iniciativa pretendia envolver as Organizações Não Governamentais desse país, que mantinham relações com homólogas na Ilha, para que cooperassem na desestabilização do governo cubano. O plano devia adotar medidas que influíssem não apenas na população, mas nos membros “moderados” do governo, do Partido Comunista e das Forças Armadas. Aproximar-se, pouco a pouco, destas instâncias até convencê-las de que não existe alternativa senão uma transição para o capitalismo. Quase todas as Organizações Não Governamentais estadunidenses recusaram o plano do senhor Nuccio. Entretanto, foi possível contar com Freedom House, à qual foi entregue um primeiro meio milhão de dólares, em outubro de 1995. Boa parte dessa quantia foi destinada imediatamente para pagar os deslocamentos, como turistas, de ex-funcionários ou cidadãos da Europa ocidental e do ex-bloco do Leste que, de preferência, houvessem residido anteriormente na Ilha. Sua tarefa central consistia em recrutar antigas amizades, com o 212 propósito de organizar grupos dissidentes. Em 1996, quando foi promulgada a Lei Helms-Burton, Nuccio renunciou e em seu lugar foi nomeado o senhor Eizenstat. Como seu antecessor, entre suas tarefas estava reunir-se com Organizações Não Governamentais. Desta vez, a operação seria desenvolvida no Canadá e na Europa. Por declarações posteriores do senhor Eizenstat, na Comissão de Relações Exteriores do Congresso estadunidense, em janeiro de 1997, conclui-se que Pax Christi Holanda não foi a primeira que recebeu a proposta na Holanda, e ainda menos na Europa, mas sim que aceitou envolver-se em um projeto que nada tem a ver com seus objetivos humanitários de direitos humanos. O senhor Eizenstat, publicamente, sem observações, afirmou: “Já foram dados vários passos positivos para fomentar a sociedade civil independente em Cuba (...) Organizações não governamentais, sob a liderança da (sic) Pax Christi (com sede na Holanda), aumentaram seus esforços para reforçar o setor independente (...)”97 Não foi à toa, então, que Janiset Rivero, do Diretório Revolucionário Democrático Cubano, ou Humberto Esteve, Secretário Geral do Partido Democrata Cristão, ambos em Miami, elogiaram esta organização católica. Pela entrevista realizada com a senhora Zumpolle pode-se concluir que Pax Christi Holanda tem como meta ajudar a acabar com o atual sistema cubano. Então, não é à toa que a Holanda está se convertendo, depois da Espanha, em cabeça de praia para que grupos de extrema direita, como os liderados pela Fundação Nacional Cubano-Americana, Hubert Matos, Carlos Alberto Montaner e Ignacio Rasco continuem se infiltrando na Europa. 97 Stuart Einzenstat: “Enfoque multilateral a los derechos de propiedad”, diario Las Americas, Miami, 27 de abril de 1997. 213 A insistência de Pax Christi Holanda em comprometer-se com a dissidência interna e a desestabilização do Estado cubano ficou provada entre 28 e 29 de novembro de 1997. Nesse período, organizou em Roma a segunda reunião da Plataforma Européia para os Direitos Humanos e a Democracia em Cuba. A agenda de discussão tinha apenas três pontos: insistir junto ao Vaticano para que o Papa pressionasse o governo cubano pelos “direitos humanos e a democracia”; insistir com as empresas que investem em Cuba, para que assumam o “código de conduta” proposto nos chamados “Princípios Arcos”; e “a prostituição infantil e o sexo-turismo em Cuba”. Desde os primeiros dias de outubro, quando Pax Christi Holanda fez o convite, teve que enfrentar outras regionais no mundo. As da América Latina, da Itália e dos Estados Unidos – que é uma das mais fortes – opuseram-se terminantemente à agenda e a seu caráter conspiratório. Como nos disse a senhora Zumpolle, por telefone, cerca de quinze Organizações Não Governamentais européias compareceram ao evento. Os nomes delas, “não posso lhe dizer. Não são públicos. É que essas Organizações Não Governamentais não desejam tensões com as outras”. A senhora Lidwien confirmou que nenhuma organização especializada em prostituição infantil compareceu, e que houve apenas um documento, vindo da Inglaterra, e cuja procedência tampouco quis nos indicar. Posteriormente soubemos que se tratava de um documento de autoria de duas sociólogas inglesas, para a instituição ECPAT International, de 1996. Embora a pesquisa procure, basicamente, mostrar o comportamento sexual de certos homens que viajam a Cuba – e que é idêntico ao que assumem em outros países do mal chamado Terceiro Mundo –, ao ler os relatórios de Pax Christi Holanda tem-se a sensação 214 que, em Cuba, a prostituição infantil e o turismo sexual são como o vinho na França e a tequila no México. O único ato público dessa Plataforma foi uma conferência de imprensa dada por Dariel Alarcón, Benigno, e o sacerdote Miguel Loredo. O primeiro esteve com o Che na Bolívia, em 1967, e desertou há poucos anos da Revolução. Nessa ocasião Benigno não disse que, desde setembro de 1996, mantinha constantes relações pessoais com “um cachorro velho da CIA, Félix Rodríguez, que tem nos ombros um impressionante número de missões em todos os continentes, realizadas durante trinta anos”. Assim informou Le Monde. O importante diário francês, de 10 de outubro de 1998, disse ainda que Benigno passara uns quinze dias no bunquer de Rodríguez em Miami. Ou seja, compartilhando o teto com um dos homens mais temíveis já criados pela Agência. É difícil que Pax Christi Holanda não o soubesse, pois no final de 1996 uma cadeia de televisão de Miami filmara e divulgara o aparente primeiro encontro; depois, foram muitos os meios de imprensa no mundo que falaram deste e de outros encontros. Loredo, convidado especial de Pax Christi Holanda, foi apresentado como exemplo da “repressão do governo cubano contra a Igreja”. É verdade que o sacerdote cumpriu dez anos de prisão. O motivo de tal condenação foi ter escondido Ángel Betancourt em seu convento durante duas semanas e tentado tirá-lo clandestinamente de Cuba. Betancourt tinha assassinado dois tripulantes e ferido outro, quando tentava seqüestrar um avião de Cubana de Aviación. O fato ocorreu em março de 1966. Loredo, ao sair da prisão, transferiu-se para Nova Iorque, onde se vinculou aos grupos de extrema direita do exílio. Um ano depois foi editado um livro, em língua italiana, que reunia as teses do segundo encontro da Plataforma. Na capa de Cuba, la realtà dietro il símbolo figura como autor 215 simplesmente Pax Christi, o que, a nosso ver, torna automaticamente responsáveis por esse trabalho todas as outras regionais no mundo. Com exceção do documento das sociólogas inglesas e da exposição da senhora Lidwien Zumpolle, os outros treze textos são de cubanos denominados dissidentes. Há também uma exposição de Frank Calzón. Na segunda página, sua organização, Of Human Rights, recebe agradecimentos “pela preciosa colaboração”. Na tarde de 3 de dezembro de 1998, Pax Christi Holanda convocou uma Mesa redonda em um local do Parlamento Europeu, em Bruxelas. O tema era “Investimentos estrangeiros e direitos humanos e do trabalho”. Assunto tão importante e complexo contou com apenas quatro horas para ser estudado, analisado e debatido. Embora a Anistia Internacional venha há vários anos trabalhando neste tema em nível mundial, apenas sua seção holandesa apoiou tal atividade; como nos casos anteriores, desconhecem-se quase todas as organizações participantes. Um dos expositores era o cubano Ernesto Díaz Rodríguez. Pax Christi Holanda apresentou-o como representante dos sindicatos independentes em Cuba, e investigador dos casos de violação dos direitos do trabalho em seu país, mas se esqueceu de acrescentar um dado fundamental e preocupante: Ernesto Díaz Rodríguez foi preso em Cuba em 1967 por pertencer ao grupo terrorista Alpha 66, no qual militava há anos.98 Ao sair da cadeia, foi para Miami, onde continuou a participar desta organização. No livro que relata a parte “menos suja” da história de Alpha 66, aparece sua fotografia. Pela 98 Miguel Tellada: Alpha 66 y su historica tarea, Ediciones Universal, Miami, 1995. Ver também Enrique Encinosa: Cuba en gerra. História de la oposicion anti-castrista, 19591994, Ed. El Fondo de Estudios Cubanos de la Fundacion Nacional Cubano Americana, Miami, 1995. 216 bandeira que se vê atrás dele, é possível concluir que a foto foi tirada quando este grupo dava apoio ao sindicado Solidariedade, da Polônia. O livro foi editado em 1995; conhecendo, como conhecemos, o grau de fidelidade e entrega que um militante deve a Alpha 66 para receber um reconhecimento desse tipo, quase se poderia assegurar que nessa data Díaz Rodríguez ainda era um membro dedicado da organização. Na hora combinada batemos à porta. A senhora Lidwien apareceu e depois de um rápido cumprimento, instalamo-nos no pequeno pátio traseiro de sua casa. Ali estivemos quase três horas; quando o assunto Cuba estava esgotado, começamos a falar da Colômbia. Como boa eurocentrista que é, está certa de ser uma peça chave para obter a paz nesse país. E de tudo o que contou o mais condenável foi reconhecer que sentia uma grande admiração pelo narcotraficante e chefe paramilitar colombiano, Carlos Castaño, braço direito do Exército na estratégia contra o movimento popular e guerrilheiro, responsável por semear cadáveres em Urabá, zona bananeira fronteiriça com o Panamá. Ela, com um grande prazer nos olhos, disse: “poderia contar muitas coisas boas que Castaño está fazendo em processos de reintegração de camponeses”. – Senhora Lidwien, por que Pax Christi Holanda começou a se interessar por Cuba? – Você sabe que, em 1990, a União Soviética já estava se retirando. Então a economia começou a ir muito mal e, a mais pobreza, o governo de Castro correspondeu com mais repressão política. E nada de abertura. Foi assim que, em 1991, decidimos enviar uma pequena delegação. Inicialmente negaram-nos o visto. Soubemos que o governo teria dito: “que vão à merda...” – Disseram desta maneira? 217 – Não, não, não. Soubemos que, em Havana, não haviam reagido bem quando souberam que íamos falar com a dissidência. O que disseram na ocasião foi que fôssemos, não à merda, e sim a Miami, mas como veio a Guerra do Golfo, tivemos que atrasar a viagem por seis meses, justo quando Castro e seus aliados estavam reunidos no IV Congresso do Partido Comunista. Aí começamos a perceber a mentira que era Cuba. – Qual era essa mentira? – Que Cuba era um paraíso socialista. Vimos que não havia educação nem saúde. Que essa sociedade era uma ditadura. Falamos com muita gente; estavam sempre trancados em suas casas, com as janelas fechadas para que os vizinhos não percebessem. – Conheço muita gente que passa por Cuba regularmente e nunca teve que viver isso. E é gente que nem sempre está de acordo com o sistema cubano. Além disso, eu também estive em Cuba, falei com muita gente, e nunca me senti perseguido. Ou será que vocês estavam conspirando? – Não, não, nosso trabalho era conhecido. – E como conseguiram os contatos com a chamada dissidência? – Por intermédio de contatos de contatos. E gente que encontramos lá, comum. Claro que essa vez o único dissidente que encontramos foi Osvaldo Payá, do Movimento Cristão. E tudo o que nos contava era espantoso! Conheço a situação colombiana, que é terrível. Lá são trinta mil assassinados por violência política a cada ano... Mas em Cuba! – E em Cuba, quantos assassinatos políticos havia? – Em Cuba não há assassinatos, mas é a ditadura psicológica, esquizofrênica. Confesso a você que prefiro viver na Colômbia que em Cuba. – Em Cuba não há assassinatos políticos. E na Colômbia 218 são trinta mil por ano, sem contar os milhares de presosdesaparecidos... – Olhe, é muito difícil de explicar. Em Cuba é uma repressão muito sofisticada. É uma coisa feita pelos Comitês de Bairro; o Partido Comunista; os sindicatos reais, pois independentes não existem, são tantas as formas de controle público sobre o indivíduo que a pessoa fica maluca. Conheci muitas sociedades da América Latina, e a gente percebe que a cubana é muito diferente. – Nisso estou totalmente de acordo consigo: é outro sistema político. – Claro que o sistema trouxe melhoras para a educação, para o campo, alguma coisa na saúde, nos esportes. Por isso digo que é outro sistema, mas isso não é nada diante da repressão. Para mim, esses avanços sociais são cosméticos para mostrar ao exterior. – A senhora, que conhece a pobreza na América Latina, poderá saber quantas centenas de milhares de pessoas gostariam de ter acesso a esses “cosméticos”. Porque, em toda a América Latina não há “cosméticos” e sim muita repressão. – Mas é que na Colômbia, por exemplo, as pessoas podem tomar iniciativas. Fazer coisas para sair de sua miséria. É verdade, em seguida são mortas, mas pelo menos podem tentar. Em Cuba tudo está paralisado, e é mentira que essa situação seja por culpa da Rússia que já não os ajuda, ou do bloqueio dos americanos. A situação sempre foi ruim. Falei milhares e milhares de horas com cubanos. Digo, centenas de horas. É gente que foi mantida tão fechada, tão reprimida, que uma vez que pode falar, não termina. Falam e falam. – Mas é que o cubano, por natureza, fala demais. Acho que é uma qualidade de quase todos os latinos, embora creia que os cubanos ganham. 219 – Sim, sim. Os colombianos também falam bastante. Mas aqui, em minha casa, fizemos terapia com alguns. E gritavam pela janela: “abaixo Fidel”. Porque lá as pessoas têm que falar baixinho, pois se sentem perseguidas pela Segurança cubana. Isso é muito doentio. Nunca vi um país onde as pessoas tenham os traços do rosto adaptados, como deformados, de falar baixo e com medo; assim, meio de lado... – Eu nunca vi um cubano ou cubana com a boca ou os pômulos deformados, nem por doença. Nem os que se dizem dissidentes. Nunca encontrei nenhum que fizesse caretas especiais para falar. E na Colômbia, não se deu conta da cara que fazem milhões de camponeses e gente da cidade, quando vêem o Exército? E no Peru? E na Guatemala? E em El Salvador? E os meninos de rua, no Brasil? Continuo? Desculpe que o diga. Mas, quem a entrevista conhece a problemática política e social da América Latina. – Mas, todos os cubanos sofrem de neurose por não poderem se expressar... E para voltar ao assunto. Estou certa que é uma desculpa do regime cubano alegar que todo o caos interno se deve aos americanos. É ridículo. Estou certa que Castro não está interessado em que se levante o embargo, nem a Lei HelmsBurton. O embargo não existe, o regime pode comprar em qualquer país! – Mas, que eu saiba, o problema do Estado cubano não é que não possa comprar: é que não conta com divisas. A moeda cubana, o peso, não é aceita no mercado internacional. – Sim, pode ser assim desde 1989. Mas o boicote já existia. – Sim, mas Cuba tinha relações eqüitativas com os países do ex-bloco do Leste. – Quando Castro tinha essa ajuda, dizia que ria do boicote. Por que não ri agora? 220 – E como pode um país sobreviver sem divisas? Não se pode negar que sempre estão criando empecilhos para Cuba, no comércio internacional. Não se pode negar que os Estados Unidos pressionam todos os países e cidadãos que querem fazer negócios com Cuba. – Nós temos falado com muitos governos e até com o dos Estados Unidos. E lhe propusemos que contenha os radicalóides de Miami, que não pressionem mais com a aplicação da Lei Helms-Burton, porque isso ajuda Castro; para ele, o embargo é um pretexto para não dar de comer ao povo. – Senhora Lidwien, quais foram suas atividades quando voltaram daquela primeira visita a Cuba? – Fizemos um relatório em diferentes idiomas e o distribuímos; começamos a trabalhar com as Nações Unidas e o Parlamento Europeu; e iniciamos uma campanha de apoio às pessoas sem voz, à dissidência interna como Osvaldo Payá; foi um trabalho diplomático. E no começo nos acusaram de fazer parte da política dos americanos, mas nós dissemos que trabalhávamos pelos direitos humanos, e que o Estado cubano era criminoso. Digo isso como o disse do governo colombiano... – Eu sou colombiano, e insisto em que me parece muito exagerado comparar o cubano com o Estado colombiano, reconhecidamente assassino e terrorista. – Considero Castro um criminoso, e não tenho nenhum problema em dizê-lo. Ele reprimiu um povo inteiro! Veja a educação em Cuba: é uma coisa militar! Ele é um louco, e não tenho medo de dizê-lo. Que venha a minha casa, se quiser. Não tenho medo dele! – Senhora Lidwien, o trabalho em prol dos direitos humanos é neutro ou faz parte do jogo político mundial? – Claro que é neutro... ! Por que me pergunta? Por causa do que digo de Fidel Castro? 221 – Pode ser. Mas me surpreende que uma pessoa de tanta responsabilidade nesta organização católica se expresse assim. – Mas é que Fidel Castro manteve esse povo trancado. Olhem, nem os soviéticos sabiam o que acontecia na rua. Quando eles já estavam saindo de Cuba, tiveram conversas conosco, mais ou menos secretas. Queriam saber se as pessoas estavam dispostas a levantar-se contra Castro, porque esses soviéticos gostariam que em Cuba ocorresse a abertura que estava ocorrendo em seu país. Cuba é um país feudal, medieval, no que se refere a relações de trabalho. Nós queremos que em Cuba haja sindicatos independentes. Por isso agora estamos em uma campanha de “código de conduta”, dirigida aos investidores que estão em Cuba, porque essas empresas internacionais devem apoiar o trabalhador cubano para que se organize independentemente do governo. – E nessas campanhas encontraram apoio de outras Organizações Não Governamentais européias? – Não é fácil mobilizar organizações internacionais européias contra o governo cubano, mas pelo menos estamos lutando para que se saiba que existe uma dissidência interna e para que acreditem nela. – Se não me engano, Pax Christi Holanda voltou a Cuba em três ocasiões. Conseguiram encontrar outras organizações dissidentes? O governo cubano criou obstáculos a seu trabalho? – Voltamos com visto de turistas. Mas, por que o governo iria criar obstáculos para nós? Por acaso não se pode falar com as pessoas? Não encontramos tantos grupos. Mas, não faz falta, qualquer pessoa na rua lhe conta tudo. Também é difícil encontrar pessoas de grupos organizados porque não há transporte nem telefones. E há tanta repressão! 222 – Mas, apesar da senhora dizer que existe tanta repressão, puderam falar com muita gente. Parece-me que da mesma maneira teriam podido entrar em contato com os chamados dissidentes, porque, segundo dizem, parece que existem muitos. E o transporte e os telefones existem. Não como na Europa, mas existem. – É que lá todo mundo vigia todo mundo! – A senhora sabe se esses assim chamados grupos dissidentes receberam dinheiro, ou algum tipo de apoio, do governo estadunidense e da extrema direita do exílio? – Quais? – Por exemplo, Gustavo Arcos, tão elogiado internacionalmente. Também existem documentos do governo estadunidense, onde se diz que grupos foram financiados. Inclusive o Concílio Cubano, que recebeu orientações e dinheiro da extrema direita do exílio. – Mas, é que também há outros grupos como o de Elizardo Sánchez, que tem apoio, embora modesto, de algum governo da Europa. Mas, qual é o problema? Isso não é justificativa para reprimi-los. Eu não sabia o que você está me dizendo, mas acredito, e qual é o problema? Esses dólares servem a essas pessoas para viver. E se lhes mandam outro tipo de apoio, qual é o problema? – Suponhamos que a senhora seja o governo cubano. E que eu, como dissidente seu, fosse financiado por agências estadunidenses; o que faria? – Acho que o poria na cadeia. Faria o que está fazendo o governo cubano. – Então, qual é a diferença? – Mas, ali há pessoas que recebem dinheiro do governo francês, belga, holandês... qual é o problema? Eu sou muito a favor da abertura. 223 – E não importa se esse tipo de abertura serve para desestabilizar sua nação? – Espere. O Concílio Cubano tinha algo básico: não era violento... Claro que o governo cubano também deve ter financiado vários desses grupos... Mas acho que os americanos não foram inteligentes. – Os documentos e a prática demonstram que o governo estadunidense mudou de tática há alguns anos. A linguagem militarista mudou, até entre os líderes da extrema direita do exílio. Clinton nomeou embaixadores especiais para tratar dos assuntos cubanos... – Nós falamos com Eizenstat. Propõe que se apóie a dissidência pacífica; nós também. E eu acho que isso é muito bom, muito inteligente até porque é a primeira vez que ouvem as organizações européias. Clinton está fazendo isso porque não quer problemas com os empresários europeus. Clinton sabe que a Lei Helms-Burton não é necessária para derrubar o governo de Castro. Espero que continuem assim. – Disseram-nos que o senhor Eizenstat ofereceu dinheiro às Organizações Não Governamentais européias que se integrem a seu projeto. – A quais organizações? A nós não disse nada. Porque, quando começou a falar de financiamento, dissemos-lhe que os Estados Unidos de nenhuma maneira deviam apoiar economicamente grupos de direitos humanos na Europa porque seríamos comparados com a gente de Miami. Eizenstat disse que podia ser feito por intermédio de órgãos europeus em Bruxelas. Disse-lhe que o dinheiro não era problema, porque quando há convicção, o dinheiro vem. Eu sempre consegui dinheiro para as minhas coisas. – E existe convicção na Europa para ajudar os chamados dissidentes? 224 – Consegue-se. Consegue-se. No início de 1997 reunimos umas quinze Organizações Não Governamentais e organismos europeus, que de alguma maneira tem a ver com os direitos humanos, para formar a Plataforma... – Desculpe interrompê-la, mas por que não vieram mais, se existem tantas na Europa? – Fizemos muitos convites, mas só estas aceitaram. Claro que outras, como Terra dos Homens – França, ou OxfamBélgica, não se atreveram a vir porque têm projetos em Cuba e não quiseram perdê-los. Claro que Oxfam-Bélgica... eles estão na posição de apoio ao governo... não sei, não querem denunciar o governo cubano. Então, fizemos a reunião para ver o que podíamos fazer em conjunto para Cuba. E vamos buscar apoio para a dissidência, não tanto financeiro, pois isso é de importância secundária, mas reconhecimento internacional, para que sinta que tem apoio político e moral. A gente de Miami me chamou para protestar porque não foram incluídos; e porque achavam que iríamos receber muitos dólares. Dólares que, supostamente, administraríamos sem levá-los em consideração. Mas aqui na Holanda, os grupos pró-cubanos também disseram que a Plataforma fora planejada, manejada e financiada pelos americanos... – Creio que era fácil dizer que esse encontro era financiado ou apoiado pelo governo estadunidense, pois poucos dias antes, passara por aqui o senhor Eizenstat. Muita coincidência, não acha? – Encontramo-nos com Eizenstat em novembro, mas já havia algumas Organizações Não Governamentais com as quais estávamos tentando nos articular. Mas, sem dúvida, essa reunião serviu para que Clinton, também em janeiro, convencesse o Congresso norte-americano a adiar a 225 implantação da Lei Helms-Burton. Clinton, em função da viagem de Eizenstat, pôde argumentar frente ao congresso que na Europa começava um movimento a favor dos direitos humanos e da democratização em Cuba, que os europeus já não estavam dispostos a dar tanto apoio a Fidel Castro. Nossa reunião foi uma das coisas que influiu. A declaração da União Européia, estimulada pelo governo espanhol, também foi utilíssima. Você conhece a declaração? É fortíssima! Muito boa! Tudo isso aconteceu em torno da viagem de Eizenstat, mas não foi um resultado dela. E eu estou feliz! – Então essa nova tática da Casa Branca, que a senhora considera inteligente, concorda com o apoio à dissidência interna que Pax Christi Holanda e outras Organizações Não Governamentais estão implementando? – Claro que os americanos também estão felizes com nosso Movimento... Isto é, com o que chamamos Plataforma pelos Direitos Humanos e a Democracia em Cuba. Pois viram que agora as Organizações Não Governamentais começam a se dar conta do que está acontecendo em Cuba, porque vêem que muitas pessoas, conhecidas como progressistas, também estão se manifestando a favor dos direitos humanos e da democratização em Cuba. – Vocês foram um dos organizadores da reunião que se realizou também aqui, na Holanda, em abril de 1997? – Não. Foram três partidos holandeses, mas a iniciativa foi do Partido Liberal; deve ser porque Carlos Alberto Montaner, de Madri, é da Internacional Liberal. Os partidos holandeses não puderam organizá-la: eles não têm idéia do que acontece em Cuba. Participaram dessa reunião quatro partidos de cubanos no exílio. Na sala estavam outros políticos e vários empresários holandeses. Pedi a palavra e me dirigi aos empresários para 226 criticá-los por seus investimentos em Cuba. Pedi-lhes que, com seu poder econômico, exijam mudanças democráticas do governo cubano. Montaner e os outros cubanos ficaram muito contentes com minha intervenção. – Imagina-se que sairá de Miami o novo presidente de Cuba, se cair o atual regime, e, se não for um deles, será alguém do agrado do governo estadunidense. Isso está escrito na Lei HelmsBurton. – Sim. Sim. Estou totalmente de acordo, mas isso significa que a Europa tem que entrar em Cuba, mas eu não sei... Creio que os Estados Unidos mudaram muito... Já não é como antes, quando os Estados Unidos podiam manipular tudo. A Europa tem que se meter em Cuba para que haja mais atores. – A senhora acha que a Europa tem condições de fazer contrapeso aos Estados Unidos na América Latina? Observe como a estão excluindo até da África. Não acha que os governos da União Européia, assim como Pax Christi Holanda e as demais Organizações Não Governamentais que fazem parte do plano de apoiar a chamada dissidência interna, estão prestando um grande favor à política agressiva dos Estados Unidos? – Não sei... mas é preciso estar presente em Cuba. Sabe o que propusemos a Eizenstat? Que deixassem militarmente Guantânamo, para que a comunidade internacional, as Nações Unidas, entre como garantia de paz. – Mas se a ONU é controlada pelos Estados Unidos! Isso ficou super claro depois da eleição do último Secretário Geral. – Bom, a ONU não faria isso mesmo, porque não tem dinheiro; mas então, que o faça a comunidade internacional, os que estão a favor de uma saída democrática para Cuba... – Senhora Lidwien, sabia que congressistas cubanoestadunidenses, como Ileana Ros-Lethinen, Díaz-Balart e Bob Menéndez, concordam em aproximar-se da Europa para conseguir 227 a desestabilização em Cuba? Sabia que estão trabalhando com Eizenstat, que são políticos da extrema direita, próximos da Fundação Nacional Cubano-Americana? Sabe que esta Fundação pensa abrir um escritório de relações públicas em Bruxelas? – Não, não tinha idéia, mas não me espanta. Estou muito a favor disso. É ótimo! É necessário que os exilados falem aqui na Europa, e não apenas em Miami. Eu gostaria muito de ir aos Estados Unidos, para conversar com esses congressistas e com os exilados. E acho que vou fazê-lo logo. – Por último, senhora Lidwien, a senhora me dizia que o governo dos Estados Unidos está feliz com a Plataforma de Organizações Não Governamentais dirigida por Pax Christi Holanda, e feliz também com a União Européia. A senhora sabe de alguma vez em que Washington tenha ficado assim por algo que não conviesse a seus interesses? – É verdade que está feliz com a posição de Aznar; com as declarações da União Européia; e por ter encontrado Organizações Não Governamentais européias, como nós, que apoiamos a dissidência. 228 XII “Ser dissidente tornou-se um negócio, pelos dólares que chegam de fora”. FRANCISCO ARUCA Empresário - Diretor e comentarista de rádio Apenas iniciada sua carreira de contra-revolucionário, Francisco Aruca foi preso e condenado a trinta anos de prisão. Começava a cumprir a pena quando fugiu, partindo de Cuba em 1961. Voltou a sua pátria em 1978, no contexto da iniciativa do governo cubano conhecida como Diálogo. Ao regressar a Nova Iorque, onde vivia e lançara raízes, associouse a outros amigos que, com seis mil dólares, criaram a companhia Marazul, especializada em vôos charter para Cuba. “A procura foi tão imensa, que vendíamos hoje para as pessoas voarem daqui a três meses”. Em 1986 Marazul transferiu-se para Miami, achando que sua publicidade não era aceita pelos meios de comunicação hispânicos. Foi assim que resolveram alugar um espaço na Rádio Unión. E Aruca, além de empresário, se transformou em comentarista político. “Não foi apenas pela companhia. É que sentimos necessidade de criar opinião pública; de que as pessoas recebessem uma mensagem diferente do ódio.” 229 Recebeu todo tipo de insultos e ameaças. “Desconhecidos” assaltaram a emissora e bateram em um técnico. Atentaram contra os quatro escritórios com que conta hoje a Marazul. Aruca não se intimidou e, pelo contrário, inaugurou outro programa na Rádio Progresso. A realidade é que ganhou o carinho e o respeito de um segmento dos imigrantes, não apenas cubanos. Houve um tempo em que andava com guardacostas; agora só o acompanha uma pistola. “Não posso dizer que tenham feito algo contra mim. Ah, sim, uma vez um homem chocou-se voluntariamente comigo e derramou uma cerveja em cima de mim. Só pensei na reclamação de minha mulher quando chegasse em casa com aquele cheiro.” – Senhor Aruca, embora já tenha se tornado para nós um clichê, queremos perguntar também sua opinião sobre o exílio cubano. – O exílio cubano é fictício e anti-patriótico, porque desde que chegamos aqui estamos esperando que os americanos nos forneçam uma solução. Ainda que com diferentes enfoques, sua história é a negação da autonomia em relação aos americanos. Olhem, a intenção deles com as leis do embargo é criar uma explosão social em Cuba, para que quando isso aconteça, o que está próximo, chegue um oficial do Exército e dê um golpe de Estado; mas o que esse militar vai ter nas mãos será uma batata quente. Pior, uma panela de pressão com as válvulas tampadas. Ele não vai saber como, diabos, resolver esse problema. Aí aparecerão esses poderosos de Miami, com todo o apoio do governo americano. Sem alternativa, o general lhes perguntará o que deve fazer para que os Estados Unidos suspendam as leis, e assim cheguem a normalização, a ajuda, o comércio. Porque o militar sabe que, sem isso, vai durar pouco no poder. E a resposta que lhe darão será: 230 “pratique a democracia. Deve realizar eleições para nós ganharmos”. Esse é o esquema, à custa do povo e da soberania de Cuba. Muito bonito, não? – Senhor Aruca, na Europa a chamada oposição interna teve certa ressonância. Até a Anistia Internacional chamou o Concílio Cubano de “oposição séria, de natureza organizada”. – Não sei até onde a Anistia Internacional conhece a realidade cubana. Mas quem a conhece, como nós, sabia que o Concílio Cubano ia dar em nada, por estar sob influência desse exílio que não está isolado dos planos americanos. Lamentavelmente, muito depressa, os do Concílio e, em geral, a chamada dissidência, chegaram à conclusão de que sem Miami não poderiam sobreviver, sobretudo economicamente. Mas o Concílio já passou à história. Devoraram-se entre eles pelos apetites pessoais... Olhem, ser dissidente tornou-se um negócio, pelos dólares que chegam de fora. São muitos os que telefonam diariamente para as rádios, dizendo que têm grupos organizados de direitos humanos. Para que? Preparando o terreno que os ajude a sair do país e depois os receba como heróis em Miami ou na Espanha. Ou seja, ser dissidente também se transformou em uma forma de sair do país, sem subir numa balsa. Pode haver opositores honestos: o problema é encontrá-los. Porque o que existe até agora são pessoas que querem resolver seu problema pessoal, ou fazer o jogo dos inimigos de sua nação. E não sei se a Anistia Internacional conhece todas essas pessoas. – Senhor Aruca, dê-nos sua versão sobre porque os Estados Unidos e seus aliados não conseguiram dobrar a Revolução cubana. – Porque se ignorou, não se quis ver, que a Revolução cubana, com todos os seus defeitos, foi um processo autóctone que se desenvolveu em Cuba por vontade dos cubanos. Uma 231 Revolução que, sem dúvida, levou a cabo um profundo trabalho social. E isso criou uma lealdade entre um grande segmento da população. O sistema deu ao cubano de Cuba, em sua história, o verdadeiro sentimento de que lá mandam os cubanos. Isso é uma coisa que pesa muito. – Bem, mas diz-se que em Cuba só mandam Fidel e o Partido Comunista... – Mas são cubanos os que mandam. Falo de nacionalismo, não se o povo manda ou não. Estou por conhecer um país onde o povo mande. Mas vejamos outras conquistas desse sistema. A educação, extensiva a todo o povo. O direito ao trabalho, embora agora haja desemprego devido à situação econômica, mas há, e houve até pouco tempo, trabalho para todo mundo. Embora sempre haja quem discrimine, acabou o racismo como problema social. Em Cuba foi-se, às vezes excessivamente, na minha opinião por erro do sistema, eqüitativo demais. Chegou um momento em que o igualitarismo era um objetivo acima de tudo, e acho que isso não funciona muito. E a que levou? A que os cubanos realmente sintam-se muito iguais uns aos outros. Inclusive, aqui em Miami, poucos meses depois de sua chegada, um balseiro começou a se queixar porque no trabalho não era tratado de igual para igual. Em Cuba, o administrador de uma fábrica não pode tratar o trabalhador como quiser, porque provoca um problema para si mesmo. – Consideramos que foi uma Revolução edificada por homens e mulheres, não por deuses, e deve haver erros. Para o senhor, quais são? – Bem, creio que se perdeu liberdade de expressão... Claro, acho que se deve medir essa liberdade num momento como esse que vive Cuba, em que o inimigo não perde oportunidade para manipular, buscando a explosão social. E é que nos 232 esquecemos que, quando os Estados Unidos e a Europa estiveram em guerra, os cidadãos não podiam expressar as idéias como em tempos de paz. A Guerra do Golfo foi o último exemplo. Também no campo da economia cometeram-se erros graves, que tiveram repercussões políticas. Um deles foi que o Estado centralizou tudo. Acho que devem ser criadas pequenas empresas privadas, para gerar um setor autônomo da população, que compita com o Estado. O que enfatizo, e isso não agrada a muita gente, é que, embora tenham sido cometidos erros, que é preciso corrigir, não se pode pedir que se deixe uns poucos chamados dissidentes fazerem o que querem, porque espera-se que o sistema cubano dê um tropeção para dar-lhe a rasteira final. – Falemos de Francisco Aruca. O senhor é uma das pouquíssimas vozes dissidentes na comunidade cubana em Miami. O que aconteceu consigo para que olhasse Cuba de maneira diferente? – Em Cuba fui um contra-revolucionário de esquerda. Achava que em Cuba era necessária uma Revolução que fizesse transformações profundas; mas fui estudando economia em Washington, e me dei conta de que não restaram muitas opções à Revolução cubana, durante os primeiros quatro anos. Simplesmente fez o que tinha que fazer. Cuba era um país que, naquele momento, estava cercado pelos americanos e por este exílio. Uma Revolução que tinha prometido ao povo avanços em todos os campos, e que tinha que cumprir. Daí que, se os soviéticos não tivessem ajudado, o processo teria perecido. Assim cheguei à conclusão de que nunca devia ter conspirado, e sim ter ficado. E seguramente hoje estaria no grupo dos reformistas. – Que motivos deu para ser preso, naqueles primeiros tempos da Revolução? 233 – Conspirava contra o comunismo. Eu era de esquerda, mas fruto de uma educação católica. Os jesuítas nos ensinaram que o comunismo era intrinsecamente perverso. Essa era a frase. Vou lhes contar uma história para que entendam melhor. Um dia, conspirando em Cuba, conversava com um amigo. E este era, mais ou menos, o diálogo. Eu lhe perguntava: – Ei, somos contra a reforma agrária? – Não, embora não nos agradem os detalhes, mas é necessário que o camponês tenha terras. – Somos contra a nacionalização de empresas americanas? – Não, os americanos tinham muita influência aqui e era preciso por um ponto final nisso. – Somos contra a reforma urbana? – Não, não se deve pagar aluguel. – Então, por que estamos conspirando? – Porque isso é comunismo, homem! – Diabo, é verdade, se não fossem comunistas, estaríamos com essa gente! – Olhe só, e quase nos custa a pele! – Outra pergunta que virou clichê para nós: O que aconteceria em Cuba se Fidel Castro desaparecesse hoje? – Não sei o que pode acontecer. É um indivíduo muito difícil de substituir. Esse é o problema dos grandes líderes que a humanidade produziu. Ele tem uma tal autoridade que, depois que fala, ele falou. E isso impôs uma certa ordem. Ninguém quer que os americanos nem a máfia se apoderem do país. Ninguém quer que aconteça como nos países do ex bloco do Leste. – Mas, não há quem assuma as rédeas do poder? Não há novos quadros bem formados? – Ao contrário do que se diz, existe uma geração inteira de jovens bem formados, estruturados, e que são os que cada vez 234 tomam mais decisões. Ou seja, faz tempo que a geração de Castro já não toma todas as decisões em Cuba. Além disso, a estrutura de poder não é como a típica que existiu na América Latina onde há um ditador, ou um civil, os políticos, os generais e a tropa. A cubana é mais parecida com a que existe na Europa, por ser muito coesa e desenvolvida. E existe uma verdadeira participação do povo na tomada de decisões. Em Cuba tudo se discute, em cada quarteirão, em cada bairro, às vezes até de maneira exagerada. 235 XIII “Os países europeus temem até ser amistosos com Cuba, para não prejudicar as relações com os Estados Unidos”. WILLEM C. VAN T’WOUT Diretor da companhia importadora de níquel, Fondel. Holanda Estrangular Cuba economicamente foi a principal estratégia estadunidense desde 1959. E a maioria dos estados do mundo foi cúmplice. Quando ocorreu a derrocada do chamado bloco do Leste, e Cuba não caiu com eles, Washington apertou mais o laço, e muitos estados aplaudiram sadicamente, ou continuaram como espectadores indiferentes, o que dá na mesma. Mas existem alguns investidores que, aceitando as condições do governo cubano para estabelecer empresas mistas, arriscaram-se a ser “castigados” pelos Estados Unidos. Estes investidores também se expõem a que se cumpram os desígnios que a contra-revolução estabeleceu em sua “Carta aberta aos investidores estrangeiros”, em maio de 1992: Continuamos considerando que qualquer investimento feito em Cuba, nas atuais circunstâncias, não merecerá o apoio das leis formuladas por um futuro governo cubano para proteger a propriedade privada. Insistimos em que estes 237 investimentos deverão ser considerados como parte do patrimônio nacional, e como tal, deles poder-se-á dispor livremente (...) Entramos em contato com cinco investidores europeus: dois nos disseram que não queriam tratar de assuntos políticos. Dos três restantes, ficamos com as palavras de Willem C. van t’Wout, holandês, importador de níquel e de outros produtos cubanos. Como os outros, ele e sua companhia Fondel estão na “lista negra” do governo estadunidense. – Sua companhia investe em Cuba há muitos anos. Isso não foi complicado, devido ao embargo estadunidense? – No início de nossa colaboração com Cuba, sentimos muito as conseqüências do embargo norte-americano, mas com o transcorrer dos anos encontramos soluções adequadas para burlá-lo. Não vou lhes contar quais, porque imagino que os americanos gostariam de saber como fazemos. Mas o embargo criou um clima de temor no mundo comercial, devido às repercussões e sanções que podem vir dos americanos. E isso não melhorou em todos esses anos: ao contrário, piorou. E a Lei Helms-Burton é a última manobra de que dispõem para manter essa atitude intransigente frente a Cuba. – Há poucos anos o governo cubano começou a introduzir variantes na política de investimentos estrangeiros. Qual é sua opinião? – Depois da queda do Muro de Berlim começaram a ocorrer algumas mudanças em Cuba, que consideramos positivas, embora não caminhem suficientemente rápido. As autoridades cubanas têm argumentos muito bons para manter esta forma de agir. E é porque não querem chegar a situações como as que se vivem nos países ex-socialistas, onde reina a máfia. 238 O governo cubano tem sua própria visão, que é oposta à visão que os europeus querem impor. Mas, acho que os cubanos sabem muito bem o que querem e como obtê-lo. Em todo caso, seja o que for que se diga, nossa experiência é que Cuba é um dos países mais honestos para fazer negócios. – E, para o senhor, qual foi a atitude da União Européia? – A verdade é que a União Européia não procura o diálogo com Cuba: só pressões e muitas condições. Porque os países europeus temem até ser amistosos com Cuba para não prejudicar as relações com os Estados Unidos. E por isso, infelizmente, esse país foi tratado de maneira vergonhosa. Não o respeitam. – Cuba não apenas tem que estar “toreando” o embargo comercial, como também as pressões por suposta violação dos direitos humanos... – É verdade. Na Holanda, e em geral na União Européia, está sendo utilizado o argumento dos direitos humanos para condicionar as relações com Cuba. Não há respeito por Cuba. Como é conveniente, esquece-se que os Estados Unidos mantêm contra ela uma guerra declarada há quase quarenta anos. Cuba está ameaçada pelo mundo exterior. Não sou especialista no tema dos direitos humanos, mas acho, como devem saber também os governos europeus, que a maioria dos presos políticos em Cuba, são espiões da CIA. É que também acontecem umas coisas absurdas. Por exemplo, em abril de 1997 os quatro partidos holandeses que estavam no governo organizaram uma conferência chamada: “Cooperação ou confronto? Como promover a democracia em Cuba?” Lá, a maioria dos convidados estava contra o governo cubano. Mas o pior é que, depois de ouvir os debates, um conhecedor médio da situação na Ilha podia concluir que estavam mal informados. Que suas fontes eram as típicas do exílio. Absurdo. 239 – Já que está falando do exílio, não lhe parece que os setores mais reacionários estão procurando abrir espaço na Europa? – Não há dúvida. Com o argumento dos direitos humanos está sendo aceita na Europa gente próxima à Fundação Nacional Cubano-Americana. Para a conferência de abril, estavam convidados Carlos Alberto Montaner e outros cubanos de Miami, o que quer dizer que politicamente estão abrindo os braços para eles. Por sua vez, eles estão tentando bloquear todas as relações que tem o governo cubano e aquelas que possa vir a ter. Embora, eu esteja certo que aqueles que, como eu, negociam com Cuba, não se deixarão influenciar. Eles e o governo americano estão na ofensiva na Europa. Por exemplo, o embaixador especial norte-americano, Eizenstat, veio me procurar tentando modificar minha posição frente a Cuba. E sei que visitou outros empresários. Já conseguiram influenciar algumas organizações como Pax Christi Holanda, porque em meados de 1996 a senhora Zumpolle mandou-me uma carta, propondo-me que recebesse alguns dissidentes cubanos que estavam de passagem. Estão tentando efeitos políticos, e para mim está muito claro que os direitos humanos constituem o último argumento que lhes restou para atacar Cuba. 240 XIV “Na guerra dos Estados Unidos contra Cuba, é parte importante de sua estratégia, envolver as Organizações Não Governamentais, para infiltrar o processo histórico e dividir a sociedade”. XAVIER DECLERCQ Responsável por Mobilização e Ação Política Oxfam-Solidariedade. Bélgica Nos dias 4 e 5 de março de 1996 realizou-se em Bruxelas a Terceira Conferência sobre Cooperação Não Governamental Europa-Cuba. Dela participaram quarenta e sete Organizações Não Governamentais de doze países europeus. Pela parte cubana estiveram presentes nove Organizações Não Governamentais, representantes da Assembléia Nacional do Poder Popular, do Ministério do Investimento e do Ministério de Relações Exteriores. Entre os objetivos da conferência estava “facilitar o intercâmbio entre as organizações participantes sobre dinâmicas, métodos e concepção de trabalho, assim como facilitar ainda mais a presença das ONGs cubanas no âmbito europeu”. O evento se realizou no contexto do Parlamento Europeu, em função do trabalho do intergrupo parlamentar chamado “Contra o Bloqueio”. O evento tinha a finalidade principal de mostrar às instituições e representantes do Parlamento Europeu, “a existência da realidade social cada vez 241 mais dinâmica das ONGs cubanas”, assim como o apoio que estão recebendo de tão importantes parceiras européias. Nas conclusões emanadas da Conferência lê-se: É precisamente a busca de uma nova visão do mundo, ancorada na ética solidária, o que principalmente une as ONGs da Europa e de Cuba. Como edificar sociedades com sistemas políticos que sejam participativos, com economias democráticas e inclusivas, que desenvolvam culturas libertadoras e ecumênicas, e que promovam estilos de vida ecologicamente sustentáveis; esse é o verdadeiro desafio que deve nos unir a todos, seja qual for a latitude geográfica em que desenvolvamos nossa atividade. Juntos declaramos nosso repúdio à pretensão de impor a Cuba, ou a qualquer outro país, modelos já esgotados no fim do século, quando todos, no Norte e no Sul, exploramos caminhos alternativos. De acordo com isso, mais adiante se esclarece: Para as ONGs européias, o fortalecimento do espaço não governamental não significa a consolidação de um contrapoder dentro do Estado cubano, que teria o objetivo de minálo de dentro, como proclama a atual política dos Estados Unidos (...) Estamos convencidos de que essa não é a maneira de apoiar as mudanças econômicas, sociais e políticas estimuladas pelo próprio Estado e menos ainda a maneira de oxigenar as iniciativas de organizações sociais voltadas para melhorar estruturalmente as condições de vida do povo cubano (...) 242 Oxfam-Bélgica foi uma das primeiras Organizações Não governamentais européias que chegou a Cuba para participar de projetos de desenvolvimento. Isso lhe trouxe problemas, pois foi posta sob suspeita pela política da União Européia, o que se traduziu na negativa de apoio econômico a vários projetos apresentados. E que não eram dirigidos apenas ao país caribenho. – Senhor Declercq, como é vista, no círculo das Organizações Não Governamentais européias, a cooperação com Cuba? – Embora as condições estejam mudando nos últimos oito anos, a presença em Cuba das Organizações Não Governamentais internacionais tem sido historicamente muito pequena. Para uma parte delas não é possível trabalhar naquele país por falta de contrapartida local. Para outras, o nível de desenvolvimento é tão grande que Cuba não precisa de apoio. Algumas passam anos analisando se vão apoiar ou não. Muitas, esquecendo o papel que corresponde ao Estado, acham que tudo tem que ser organizado pela chamada “sociedade civil”. Acreditam que a sociedade deve quase substituir o Estado; esquecem que o Estado foi feito para garantir a distribuição e o investimento das riquezas. Quase desejam que tudo fique em mãos da empresa privada. Para estas Organizações Não Governamentais, que são muitas, a sociedade civil é a fórmula mágica. E, com este conceito, entram em confronto com o governo cubano, o que torna difícil ou impossível seu trabalho em Cuba. – Então, por que Oxfam-Bélgica resolveu trabalhar naquele país? – A perspectiva de cooperar com o desenvolvimento, que é a nossa, é um pouco diferente da de muitas outras Organizações Não Governamentais; por isso mudamos há pouco nosso nome 243 para Oxfam-Solidariedade. Deve-se por a tônica na solidariedade para poder enfatizar a justiça. Não tanto em por panos quentes na pobreza, que é onde muitas Organizações Não Governamentais concentram seus esforços. São muitas as Organizações Não Governamentais que perderam a visão, e já não vêem as estruturas políticas criadoras da pobreza, aquelas mesmas que aumentam a injustiça. Esqueceram muito facilmente de trabalhar sobre as origens da pobreza. Demasiadas Organizações Não Governamentais permanecem em seu projetinho que, aliás, pode ser muito bom e benéfico para o grupo a que se destina, mas que não leva à transformação das raízes da injustiça social e econômica. Nós, aplicando os conceitos de solidariedade à atual problemática cubana, consideramos que existe muita justiça naquele país, a qual se traduz em um nível muito alto de saúde, educação, participação política etc., para todo o povo. E essa justiça foi organizada e distribuída pelo Estado. OxfamSolidariedade Bélgica está certa que é preciso apoiar a continuidade dessa justiça. – Senhor Declercq, mas é um pouco nadar contra a corrente. Se existe uma crítica ao processo cubano, é que o Estado centraliza tudo. – É verdade que muitas Organizações Não Governamentais não aceitam que o Estado cubano tenha assumido toda a responsabilidade de atender à sociedade. Não vêem que esse Estado reagiu de modo diferente diante da crise que atravessa. Nos outros países a fórmula aplicada consiste nas recomendações neoliberais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. E todos pudemos constatar que os ajustes econômicos aplicados afetaram as maiorias, deixandoas em uma pobreza maior. A minoria poderosa não é afetada porque, ao contrário de Cuba, os interesses políticos são 244 dependentes de seus interesses econômicos. Em Cuba, o governo trata de dividir a riqueza e a pobreza, o que consegue muito bem. É uma sociedade bastante igualitária, onde o Estado prioriza as necessidades básicas da população. – Então, não vale a pena ajudar a oxigenar uma experiência única neste mundo? – Nossa intenção, e a de algumas poucas Organizações Não Governamentais, é ajudar os esforços cubanos para salvar as conquistas de seu processo histórico. E para isso trabalhamos com organizações de massas e, porque não, com instâncias governamentais. Para muitos não parecerá lógico que se trabalhe com instâncias do Estado, mas se estas servem os interesses das maiorias, por que não podem ser adotadas como contrapartida? – Mas, segundo ouvimos de algumas Organizações Não Governamentais... – Há muitas Organizações Não Governamentais que parecem não ver a injustiça que se comete contra aquele país. A principal é a intenção norte-americana de impor ao mundo inteiro o bloqueio que exercem sobre Cuba. E parece que os outros estados do mundo não se dão conta, ou não querem fazê-lo. Esse bloqueio está ameaçando diretamente o nível de vida de toda a população cubana. Aliás, olhando um pouco além de Cuba, pode-se perceber, com muita facilidade, que nas atuais relações internacionais, cresce uma tendência muito perigosa: os Estados Unidos negam a existência do direito internacional. A novidade é que essa tendência está se institucionalizando. Cuba é um exemplo, para ilustrar como a superpotência decidiu consolidar seus interesses: o direito do mais forte. Creio que é necessária uma política internacional mais ética. Isso também deve ser uma tarefa para as Organizações Não 245 Governamentais. E comprometer-se com o processo histórico cubano é um bom começo. – Oxfam-Bélgica tem uma grande experiência de cooperação em vários países do mundo. Notaram alguma diferença na relação com Cuba? – Em certa medida, é diferente. A cooperação internacional é algo novo para os cubanos. Tiveram pouca experiência e isso às vezes dificulta as relações. Trabalhar com eles também é diferente porque são muito orgulhosos. Melhor dizendo, mais conscientes de seu processo histórico, razão pela qual governo e povo têm muita dignidade, não aceitam imposições. Para algumas Organizações Não Governamentais internacionais, respeitar as prioridades e os termos da cooperação, foi apenas coisa de palavras e papéis. Mas em Cuba a gente tem que respeitar as condições que eles estabelecem, o que é muito valioso para aprender a valorizar seu processo político. Não há dúvida de que as relações com os cubanos são transparentes. É importante mencionar que a comunidade internacional de Organizações Não Governamentais chegou, em três reuniões (a primeira, em 1993, em Havana; a segunda, em 1955, em Madri; e a terceira em 1996, no Parlamento Europeu), a um consenso com suas parceiras cubanas sobre os princípios de cooperação. O mais importante, na minha opinião, é que as Organizações Não Governamentais internacionais apoiarão as iniciativas de suas parceiras cubanas. Não somos nós que devemos inventar qual é o projeto que os cubanos necessitam. – Desculpe a interrupção. Mas, qual é sua versão sobre o incidente que ocorreu em 1993, entre os Médicos Sem Fronteiras e o governo cubano? – É que há um problema muito grande com as Organizações Não Governamentais dos países desenvolvidos. Temos 246 a mentalidade de que podemos resolver os problemas do Terceiro Mundo, que nossa maneira de organização é a melhor e a única. Por acaso o Ministério da Saúde cubano não tinha razão quando proibiu os Médicos Sem Fronteiras de abrir seu próprio local para entregar remédios? Se os cubanos conseguiram ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, superior até ao estadunidense e ao europeu, por que se deve tentar mudá-lo? São os cubanos que decidem para onde vai a ajuda médica que lhe entregamos. E lhes garanto que sempre temos a possibilidade de controlar seu destino correto. É que, lá, uma instituição não pode decidir esse tipo de coisas de acordo com sua vontade. Mas, o que aconteceu com os Médicos Sem Fronteiras, não acho que tenha sido tão grave. Houve o caso de uma ONG estadunidense que oferecia dois milhões de dólares a outra ONG cubana. A única condição que impunha, para entregar tal quantia, era que deixassem entrar seu próprio pessoal, para distribuir Bíblias gratuitamente. À primeira vista pode parecer uma coisa inofensiva, mas não é, de modo nenhum. São organizações que têm um trabalho muito sutil, mas com uma agenda escondida. Não se pode esquecer que muitíssimas Organizações Não Governamentais são utilizadas para interesses políticos dos países ricos. E, no caso de Cuba, os Estados Unidos querem que sirvam aos seus. – Esta é uma afirmação um tanto delicada. Não poderia esclarecê-la melhor? Não acha que o governo cubano tem a paranóia da infiltração? – Na agressão que os Estados Unidos levam a cabo contra Cuba, constitui parte importante de sua estratégia envolver as Organizações Não Governamentais para infiltrar o processo histórico, e dividir a sociedade. E de infiltração os cubanos entendem bem demais, pois desde 1959 tiveram que enfrentar, 247 cada dia, todas as tentativas realizadas pelos americanos e às quais parece que certas Organizações Não Governamentais querem aderir. Deve-se saber que o governo estadunidense fala de dois caminhos. Um é o bloqueio. O segundo é a infiltração, por meio das Organizações Não Governamentais. Não estou inventando: está escrito em textos oficiais, e muitos especialistas analisaram amplamente o assunto. Há alguns anos os Estados Unidos promovem uma verdadeira política de cooperação, que deve ser assumida por Organizações Não Governamentais de seu país, com a dissidência em Cuba. Mas estamos vendo que isso está se estendendo para a Europa. O embaixador especial de Clinton para Cuba, Eizenstat, reuniu-se na Europa com várias Organizações Não Governamentais. E, em alguns casos, ofereceu um fundo de milhões de dólares para as que concordam em trabalhar com a dissidência. Até agora não conheço nenhuma ONG que tenha aceitado esse dinheiro: seria muito idiota de sua parte. Embora em algumas ocasiões tenha criado confusão. – Pelo que sabe, existem Organizações Não Governamentais européias que concordam em seguir a estratégia proposta pela Casa Branca? – Por sorte da Administração Clinton, é possível que existam umas poucas Organizações Não Governamentais européias que concordem em apoiar essa dissidência, sem necessidade de receber os dólares. Mas, no momento há apenas uma ONG, que eu saiba, que está trabalhando de acordo com as instruções estadunidenses. Trata-se de Pax Christi Holanda. E o faz apesar de que isso é muito questionado pelas outras Pax Christi nos demais países do mundo. Embora as intenções dessa ONG em relação a Cuba estejam começando, é necessário ter muito cuidado, 248 pois conseguiu estabelecer um namoro com outras Organizações Não Governamentais da Europa. O inacreditável é que em documentos desta ONG pode-se ler textualmente muitas das palavras da Administração Clinton, no que se refere às exigências feitas à empresa privada européia, por exemplo. Aliás, sei de um texto oficial do governo norte-americano que felicita esta ONG holandesa pela iniciativa de dar voz e apoio à dissidência cubana. Acho que as Organizações Não Governamentais européias estão a par desses fatos. Se não têm o quadro geral, é difícil avaliar as diferentes iniciativas; ver as verdadeiras intenções que estão por trás. E o tema dos direitos humanos é um tema delicado, que está sendo bastante explorado pelos norteamericanos para convencer as Organizações Não Governamentais européias. Quem não concorda com o respeito aos direitos humanos? Mas, a partir do momento em que se utiliza o assunto como arma de guerra, para uma campanha contra o sistema cubano, já me parece bastante suspeito. 249 XV “Esses dissidentes e grupos de direitos humanos em Cuba, que são apenas algumas pessoas, só importam na medida em que nos sirvam para uma única causa: desestabilizar o regime de Fidel Castro”. WAYNE SMITH Acadêmico, ex-chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana. No seio das contradições que ocorrem no interior do estamento estadunidense, dois políticos se distinguem por suas posições contra a estratégia de seu país para Cuba, embora não concordem totalmente com seu sistema político. Um deles é o ex-Fiscal, General Ramsey Clark. Em muitos fóruns repetiu: Durante quatro décadas, com seu massacrante poder econômico e militar, os EUA tentaram derrubar o governo da vizinha Cuba, país pequeno e comparativamente muito mais pobre (...) Enfrentando esse impressionante poder e ameaças constantes, Cuba – que só quarenta anos atrás sofria de uma pobreza extrema, analfabetismo, doenças, violência, corrupção e exploração estrangeira – emergiu como líder internacional em quase todas as esferas do desenvolvimento humano. O 251 analfabetismo foi virtualmente eliminado, estabeleceu-se um excelente sistema de educação superior, e criou-se um enorme caudal de técnicos e profissionais altamente treinados, que prestam seus serviços em países pobres. O sistema cubano de saúde pública não tem igual no Terceiro Mundo no que se refere a prevenção, tratamento, assistência e pesquisa, e se converteu em modelo para todas as nações. Em 30 anos, Cuba reduziu a mortalidade infantil, de cerca de 90 por 1.000 nascidos vivos a um nível inferior ao dos EUA e da maioria dos países ricos do mundo. Desenvolveu vacinas que se equiparam aos parâmetros internacionais. Os médicos, enfermeiras, trabalhadores da saúde e remédios cubanos salvaram milhões de vidas, a serviço dos pobres de dezenas de nações. Em Cuba não existem mendigos. Existem trabalhos decentes para todos. A arte, a música, a dança, o cinema, a poesia e a literatura se desenvolvem em Cuba inteira. As condições físicas de seu povo ficaram demonstradas em Atlanta, onde os cubanos ganharam medalhas de ouro no boxe e no beisebol, obtendo resultados melhores do que os obtidos por nações com níveis de população e condições econômicas semelhantes (...) O bloqueio norte-americano a Cuba é um crime contra a humanidade. Os Estados Unidos pretendem prejudicar o povo cubano; necessariamente, os mais frágeis e vulneráveis são as crianças, os idosos e os doentes crônicos. Os Estados Unidos sabem o que pode acontecer a cerca de 200.000 diabéticos que existem em Cuba, se estes não tiverem possibilidade de obter insulina (...) (“Um crime contra a humanidade”, exposição feita no seminário Helms-Burton e Europa, Fundação Reflexão Global, Amsterdam, 1996) 252 O outro político é Wayne Smith, Acadêmico e ex-chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana. Em sua cruzada perdeu muitas batalhas, por exemplo, quando os congressistas, influenciados pela extrema direita de Miami e Nova Jersey, impuseram a Tele-Martí. Smith discordava frontalmente disso. Tanto porque violava todo tipo de convênio internacional, como por ser um investimento milionário que, como aconteceu, o governo cubano bloquearia totalmente. Naquele momento, os dois governos mantinham diálogos sobre migração e outros assuntos de interesse comum. E Smith sabia que Cuba se retiraria da mesa de negociações se a Tele-Martí iniciasse suas transmissões. Assim aconteceu, e Smith renunciou. Smith se opõe também à Lei Helms-Burton. Está convencido de sua ineficácia como método para obter uma transição rápida para o capitalismo. Em seus escritos e conferências, deixa transparecer sua opção pelo estilo posto em prática nos países do ex-bloco do Leste, onde, segundo ele, não houve necessidade de nenhum tipo de agressão maior para reinstalar o capitalismo. Infelizmente, ele não tinha muito tempo para a entrevista, mas as afirmações que fez naqueles poucos minutos são, a nosso ver, de grande importância. Smith reconhece coisas que dificilmente um político estadunidense expõe ao público. – Senhor Smith, explique-nos, por que não está de acordo com a Lei Helms-Burton? – Porque os Estados Unidos estão equivocados com a implementação dessa Lei. Quando aumenta a pressão sobre Cuba, o regime reage aumentando a disciplina interna e reunindo o povo em torno da bandeira e da soberania. Internacionalmente, esta Lei, analisada a partir de nossos 253 interesses, tem pouco sentido. Enquanto Cuba não representa nenhuma ameaça para nós, ao violar leis internacionais, estamos deteriorando os vínculos comerciais com os canadenses e os europeus. E, embora os europeus e canadenses tenham reagido bem a esta Lei, deixando entender aos Estados Unidos que essa política tem um preço, suas possibilidades são limitadas. A Europa é muito legalista e pensa que se disser aos Estados Unidos que devem respeitar os acordos internacionais, vão mudar. Esqueçam. Os Estados Unidos não aceitam nem a jurisdição de uma Corte Internacional. A iniciativa da Lei Helms-Burton foi de um grupo de pessoas, convencidas de que os Estados Unidos não podem sofrer limitações do Direito Internacional, uma vez que agora, é a única potência mundial. O perigo é que a Lei Helms-Burton pode ser um primeiro passo, não contra Cuba, mas para que os Estados Unidos terminem por impor seus interesses à comunidade internacional, para forçar uma Pax Americana no resto do mundo. – Parece-nos que, apoiando-se nessa Lei, o governo estadunidense comprometeu a União Européia na desestabilização do Estado cubano. E mais, de uma maneira muito tática e sutil, conseguiu que algumas Organizações Não Governamentais européias se submetam a seu desígnio, apoiando a chamada dissidência. – Sim é verdade. Para isso, não só há um embaixador especial como está se apoiando em certas organizações do exílio. Porque esse exílio não é autônomo: funciona como instrumento do governo norte-americano. A Fundação Nacional Cubano-Americana, a Plataforma Democrática Cubana, liderada por Montaner na Espanha, e outros grupos de pressão do exílio já estão fazendo seu trabalho na Europa. E vão trabalhar, como nos Estados Unidos, para 254 conseguir que a Europa adote uma linha intransigente em relação a Cuba. Eles contam com muito dinheiro; são poderosos e agressivos. E, a meu ver, não encontram muita resistência nesses países. O governo espanhol já está influenciado pela Fundação Nacional Cubano-Americana e pela Plataforma Democrática. Lá já atingiram boa parte de suas metas. E vão continuar em outros países. São artistas em infiltrar e entender o funcionamento do sistema político. Estudam, procuram informação para saber que políticos podem comprar. Investigam a vida privada dos que não querem colaborar, para intimidar e fazer chantagem. Até agora esse modus operandi trouxe-lhes ótimos resultados nos Estados Unidos. – Os cubano-estadunidenses... – Deixem-me dizer-lhes algo. Os cubano-americanos tiveram, e têm, muita influência, mas só quando seus interesses coincidem com os das administrações. Durante o governo Carter, eu trabalhava no Departamento de Estado. Existiam muitas organizações de exilados, mas não a Fundação Nacional Cubano-Americana. Naquela época controlávamos todas com muita facilidade. Coube-me ir várias vezes a Miami, para explicar aos líderes que nossas intenções eram normalizar as relações com Cuba. Eles entendiam, mas chegaram Reagan e Bush à presidência e, como queriam uma linha dura com Cuba, criou-se a Fundação Nacional Cubano-Americana. Clinton ficou amigo dos cubano-americanos, jantou com Canosa, ofereceu uma política dura contra Cuba. Assim recebeu uma boa quantidade de dólares para a campanha eleitoral. Em 1996 foi igual. Hoje, Clinton continua se apoiando no setor mais conservador dos cubano-americanos. A atitude do presidente para com eles não tem nada a ver com a política exterior norte- 255 americana, nem com direitos humanos, nem com democracia: tudo é interesse eleitoral e dinheiro. – Senhor Smith, depois de quase quarenta anos de guerra contra a Revolução cubana, por fim, o que pretende o seu governo? – Os objetivos dos Estados Unidos mudaram com o decorrer dos anos. Durante a Guerra Fria, o principal era a mudança de sua política exterior. Desde 1975, pressionouse para que Cuba retirasse suas tropas da África e para que não ajudasse movimentos revolucionários na América Latina. E também para que reduzisse seus vínculos militares com a URSS. Aparentemente, durante a Guerra Fria, a organização interna do sistema não nos interessava: Cuba poderia ter um governo socialista se soubesse comportar-se internacionalmente. Em 1988 Cuba retirou suas tropa da África. E desde 1990 vem retirando seu apoio aos movimentos revolucionários. Em 1992 houve o colapso da URSS, e assim acabou a aliança militar cubano-soviética. Os objetivos da política exterior norteamericana foram alcançados, mas isso em nada melhorou as relações com a Ilha. Porque, realmente, nosso objetivo principal era a queda do regime de Castro. E por que, em se tratando de uma pequena Ilha sem maiores recursos econômicos? Porque Cuba causa o mesmo efeito nas administrações norteamericanas que a lua cheia causa nos lobos: é uma obsessão. Primeiro, a personalidade de Fidel Castro: desafiou o maior poder do mundo e saiu ganhando; está sobrevivendo a nove presidentes nossos; é aceito e respeitado em todos os fóruns internacionais. Durante a Guerra Fria não acreditávamos que fosse possível tirarmos essa pedrinha do sapato. Agora sim. Por isso adotamos as políticas de pressão econômica, por meio da Lei Helms-Burton, e a da democracia e dos direitos humanos. 256 – E, para o senhor, como está se desenvolvendo a pressão política sobre Cuba a partir dos direitos humanos? – A democracia e os direitos humanos nos importam muito pouco. Simplesmente utilizamos essas palavras para ocultar a verdadeira razão. Se democracia e direitos humanos nos importassem, teríamos como inimigos a Indonésia, a Turquia, o México, o Peru ou a Colômbia, por exemplo. Porque a situação em Cuba, comparada com esses países, e a maioria deles no mundo, é um paraíso. E, se desde 1985 estamos anunciando, publicamente, que estimularemos e financiaremos grupos dissidentes e de direitos humanos em Cuba, também é por nossos próprios interesses. Embora os Estados Unidos tampouco estejam financiando todo mundo e sim apenas aqueles que conseguem mais imagem internacional; mas esses dissidentes e grupos de direitos humanos em Cuba, que são apenas algumas pessoas, só interessam na medida em que nos sirvam numa única causa: desestabilizar o regime de Fidel Castro. Por meio dessas duas políticas, a pressão econômica e os direitos humanos, queremos forçar a derrubada de Fidel Castro, para instalar um governo de transição a nosso gosto. Para reinstalar as pessoas que queremos e assim deter novamente o controle da Ilha. 257 UMAS ÚLTIMAS LETRAS A No mundo de hoje, o que aconteceu ontem já não é notícia. Mas existem fatos históricos que não se podem esquecer, pois há os que acreditam que é possível repeti-los. B Em 1979 os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua. Imediatamente o governo dos Estados Unidos afirmou que se tratava de uma revolução comunista, e os principais meios de comunicação começaram a repeti-lo, até que foram acreditando. As provas eram concretas e impossíveis de refutar. Por exemplo, estava se erradicando o analfabetismo, o sistema de saúde foi atendendo a toda a população, a propriedade das terras deixou de estar em mãos de umas poucas famílias, 259 passando a pertencer a cooperativas de camponeses; nacionalizaram-se algumas empresas e o povo começou a participar da tomada de decisões. A Nicarágua, sem possuir um único submarino, nem meio míssil de alcance regular, converteu-se no grande perigo para a segurança dos Estados Unidos, primeira potência econômica e militar do planeta. Mas era o mal exemplo que estava dando essa Revolução de gente alegre, carinhosa e sonhadora, o que a converteu em inimigo. Provou a outros povos oprimidos que era possível lutar, ganhar e começar a viver com dignidade. Perigosíssimo. E o império sabia que a América Latina teve uma particularidade histórica, desde a época colonial espanhola: não importa onde comecem, as chamas se propagam como no capim seco, sopradas pelo vento. O modelo de comportamento sandinista devia ser extirpado, e, se fosse possível, até da memória coletiva. E como acontecera com Cuba, não foi necessário uma invasão de “marines”. Como em Cuba, bastou pagar quem disparasse, quem bombardeasse, quem massacrasse, quem violasse, quem aterrorizasse. Por um punhado de dólares, uns nicaragüenses, dirigidos por Washington, apoiados por contra-revolucionários cubanos, se comprometeram a apagar a luz mais bela que o povo latino-americano conheceu na década de oitenta. Mas, se havia mercenários que faziam estragos com seu agir terrorista, existiam outros que, na base de discursos e escritos faziam sua parte, que acabou sendo essencial para o colapso do projeto. O governo estadunidense, em cumplicidade com alguns da Europa, e sob a cobertura de certas Organizações Não Governamentais, levou-os para quantos fóruns pró direitos humanos existiam. E até leram 260 textos para os quais não tinham contribuído com uma só vírgula, mas que os transformavam em testemunhas da “monstruosidade” sandinista: reprimia em massa, prendia por milhares, torturava, assassinava, traficava drogas, exportava terrorismo, levava a fome ao povo etc. etc. Como mentiram! E como foram multiplicados pela grande imprensa mundial! E quando o governo sandinista tentou impor ordem a aqueles que, vivendo no interior do país, sem balas nem fuzil, colaboravam para arrasar a Revolução, o império e seus aliados gritaram porque a liberdade de expressão e de associação estava sendo atacada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adaptada a suas necessidades, foi exibida como prova, juiz e carrasco. Os governos europeus, além de deixar a Nicarágua sozinha para que os abutres continuassem a devorá-la, bicada a bicada, pressionaram para que aceitasse as eleições exigidas por Washington. Os sandinistas disseram sim a isso e a muito mais. Implantou-se o “pluripartidarismo” exigido: a Contra, repleta de dólares, se dividiu em vários partidos, e enfrentou o governo sandinista. A Europa forneceu moedas a alguns grupos e sentou-se para esperar o final que já conhecia. Até o político mais idiota do planeta sabia que se os sandinistas triunfassem, a agressão continuaria. Sabemos que ganharam os “combatentes pela liberdade e pela democracia”, como foram chamados por Ronald Reagan. Tinham prometido a paz, a fortuna e o céu. Hoje se deve a eles que a Nicarágua seja de novo um dos países com mais desigualdades sociais, econômicas e políticas no mundo. Pior: que tenha perdido a dignidade de ser um Estado soberano. 261 Restabelecida “sua” fórmula democrática, o governo estadunidense voltou a dormir tranqüilo. C Ou quase tranqüilo. Em seu hemisfério, em seu território, em seu quintal, existe um grilinho que perturba seu sono. Há quase quarenta anos, um pequeno país sem maiores recursos estratégicos, não se dobra, não se humilha, não se põe de joelhos. Quase sozinho, resiste. Seu nome é Cuba. O que não inventaram os Estados Unidos para que este povo trabalhador, bebedor de rum, dançarino e solidário, volte humilhado a seus pés? Desde invasões militares até agressões químicas e econômicas, sem deixar um só dia de atacá-lo, interna e externamente, com a maior propaganda concebida na história das guerras, declaradas ou não. E como na Nicarágua, com a cumplicidade, aberta e encoberta, de certos indivíduos. E um povo cercado de tal maneira deve, lamentavelmente, ver alguns de seus direitos limitados e regulados se quiser conservar sua independência e autodeterminação. Não se pode arriscar o futuro das maiorias para permitir a uns poucos, vendedores de almas, colaborar para desestabilizar a nação. Tudo em benefício de uma potência que quer impor o mesmo rumo que causou involução a tantos outros países. O mesmo que os europeus aplicaram na África e que hoje a mantém moribunda. Quem conhece o sistema eleitoral cubano sabe que quem não esteja de acordo com a Revolução, mas que seja fiel à soberania de sua pátria, e quiser ser oposição política real, apenas precisa trabalhar junto ao povo. Se o fizessem poderiam 262 ser eleitos, pois não é preciso ser membro do Partido Comunista para chegar à Assembléia Nacional. Em Cuba não é necessário dinheiro para as campanhas eleitorais; basta convencer as massas, demonstrando capacidade e dedicação a elas: mas isso não provoca aplausos no exterior, nem qualifica como dissidente, portanto, também não rende dólares. Como reconheceram alguns meios de informação internacionais, durante a visita do Papa a Cuba existiram todas as condições para que se desse um golpe de Estado: estava proibido o porte de armas para qualquer membro da polícia de segurança; as pessoas estavam nas ruas em estado de efervescência; e todo tipo de discurso foi transmitido pelo rádio e pela televisão. Além disso, estiveram presentes mais de três mil jornalistas de todo o mundo dedicando-se, em sua maioria, a procurar o descontentamento popular que lhes servisse em bandeja de prata a ambicionada rebelião. Para tanto deram todo o espaço possível aos chamados dissidentes. No entanto, estes não puderam demonstrar nem um mínimo do consenso que se diz, internacionalmente, que gozam junto ao povo. Nem adiantou, como informou Giulio Girardi no jornal El País, da Espanha, em 16 de fevereiro de 1998: “a presença de 16 funcionários do Departamento de Estado dos Estados Unidos, que tinham desembarcado em Havana uma semana antes do Papa e que se foram uma semana depois, dispostos a garantir a “transição democrática”. D Frei Betto, célebre teólogo católico brasileiro, enviou-nos um texto do qual transcrevemos alguns parágrafos, para compartilhá-lo com vocês: 263 Uma sociedade é má quando não garante a vida a toda sua gente. Ou seja, a sociedade cubana é boa, à luz da Fé cristã e dos critérios do Evangelho, porque é a única na América Latina que garante a vida para seu povo. Cuba representa uma grande ameaça para os Estados Unidos, porque mostrou o caminho da vida a tantos povos explorados do Terceiro Mundo. E os EUA, apoiados pela Europa, continuam no planeta sua política da morte. Uma vez, um jornalista norte-americano me perguntou porque não havia democracia em Cuba. E eu lhe respondi: você conhece um país democrático? Ele disse: sim, o meu país. E eu lhe perguntei: quantos milionários há nos EUA? E quantos em Cuba? Quantos pobres sem comida, sem roupa, nem lar há nos EUA? E quantos em Cuba? Quantos negros discriminados ou mortos a tiros pela polícia há nos EUA, e quantos em Cuba? Quantas crianças sem assistência médica nem educação há nos EUA e quantos em Cuba? De quanta gente se ofende a dignidade humana nos EUA e de quanta gente em Cuba? Então, disse-lhe, em qual dos dois existe mais democracia? Porque, para mim, a resposta é uma só: em Cuba. Um coro de gente diz que em Cuba não se respeitam os direitos humanos. E eu me pergunto se falar de direitos humanos na América Latina, para não falar de todo o Terceiro Mundo, não é um luxo. Porque nós ainda, a maioria dos quinhentos milhões de habitantes, não temos garantidos nem os direitos que, na Europa, por exemplo, gozam os animais. Se não fosse porque é de extrema direita, o melhor seria por de presidente do Brasil, Honduras, Argentina, Chile ou qualquer outro país da América Latina, 264 a ex-atriz Brigitte Bardot. Talvez ela pusesse em prática a Lei de Proteção aos Animais pela qual luta na França. E nossa vida estaria muito melhor. Então, devemos nos perguntar: de que estamos falando, quando falamos de democracia? De que estamos falando, quando falamos de direitos humanos? E Em 30 de outubro de 1996, o jornalista cubanoestadunidense Luis Ortega escreveu no jornal La Prensa, editado em Nova Iorque: Respeito as pessoas simples que têm aversão a Fidel Castro ou à própria revolução. É uma reação pessoal muito natural. Grave é quando o indivíduo se torna cúmplice de uma política dirigida à destruição do povo de Cuba, com o pretexto de acabar com Castro. Mal é quando esse sentimento se converte em um negócio. Mal é quando se colabora deliberadamente com uma campanha para arrasar Cuba. F “Dissidentes ou mercenários?” Ou mercenários louvados como dissidentes? 265