Ana Claudia de Sá Teles Minnaert
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Ana Claudia de Sá Teles Minnaert
IV Reunião Equatoriana de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-Ce. Grupo de Trabalho 43: saberes locais, regionais e transnacionais na interface entre alimentação e cultura O dendê no wok: um olhar antropológico sobre a comida chinesa na cidade de Salvador, Bahia1 1 Autor: Ana Claudia de Sá Teles Minnaert, Universidade Federal da Bahia, e-mail: [email protected] RESUMO A culinária chinesa compõe o contexto gastronômico das grandes metrópoles. No entanto, atualmente, ela está longe da imagem de exótica associada aos primeiros restaurantes étnicos. A inventividade no campo da alimentação que caracteriza o povo chinês se deve a simples razão que a comida e o comer são pontos centrais na forma chinesa de viver e faz parte do ethos chinês. A base da sua culinária está na divisão entre fan, grãos e alimentos ricos em amido, e pratos ts'ai, composto por vegetais e carnes. Uma refeição balanceada deve conter quantidades equivalentes de fan e ts’ai e os ingredientes dos pratos são selecionados de forma a manter este equilíbrio. Ainda que muitos prezem pela tradição, observa-se que, no mundo contemporâneo, a cozinha chinesa vem sofrendo muitas adaptações, apresentando uma diversidade cada vez maior. Muitos pratos símbolos da “chinesidade” são produtos da culinária de diferentes regiões da China adaptados às preferências alimentares dos comedores do país de abrigo, não sendo mais identificados como pertencentes à sua cozinha pelos chineses. Destarte, neste trabalho, pretendo compreender a formação da cozinha chinesa em Salvador, tendo como objeto a comida chinesa servida nos restaurantes chineses localizados no centro da capital baiana e a comida consumida pelos imigrantes chineses proprietários destes restaurantes. Palavras-chave: comida chinesa, restaurantes chineses, comidas emblemáticas O INÍCIO A comida chinesa atravessa a minha vida por longo tempo. Lembro-me da época da faculdade, quando eu frequentava um restaurante chinês localizado no centro da cidade. Ou, quando minha família ia comemorar aniversários no restaurante chinês, localizado em um ponto turístico. Neste período, este tipo de comércio se apresentava como uma opção barata de comer fora. E assim passei os anos de faculdade comemorando, me divertindo, matando a fome com rolinhos primaveras, frango xadrez, camarão empanado ao molho agridoce, família feliz. Naquela época, havia poucos restaurantes de comida chinesa em Salvador, apenas dois localizados no centro, e outros seis distribuídos nos bairros da orla. Diferente dos restaurantes de hoje, estes mantinham elementos 1 identificadores, como as lanternas vermelhas, os aquários de carpas, menu escrito em sua língua local, hashi2 sobre as mesas e os biscoitinhos da sorte3. Eu era uma apaixonada pela comida chinesa. Adorava o crocante da casquinha do rolinho primavera, o abacaxi cozido com o molho agridoce que vinha com o camarão empanado, o sabor do molho de soja do frango xadrez e a mistura de carnes e verduras da família feliz, sem falar no macarrão de arroz, o bifun. Certa vez, ao entrar na cozinha de um restaurante, encontrei um grupo de chineses utilizando o espaço para preparação de uma refeição. O grupo chamou minha atenção, pois eles não faziam parte do quadro de funcionários, pareciam clientes. Questionei, então, ao proprietário a presença destas pessoas no local. Ele me informou que era um grupo de amigos que pediu para utilizar a sua cozinha, pois eles não conseguiam comer as refeições que vendiam em seu estabelecimento e em outros da mesma categoria, que estas preparações tinham um sabor “estranho” ao seu paladar. O que eles cozinhavam para si era outro tipo de preparação, diferente daquela oferecida no cardápio dos restaurantes chineses da cidade. Esta situação me fez refletir acerca do que seria esta comida que nós habitualmente identificamos como chinesa, com seus molhos de soja ou vermelhos agridoces, condimentadas com gengibre, cebolinha, cebola e páprica. Foi esta reflexão que me levou a este estudo antropológico, tendo como objeto a comida chinesa. O que proponho é compreender a formação da cozinha chinesa em Salvador, tendo como objeto a comida chinesa servida nos restaurantes chineses localizados no centro da capital baiana e a comida consumida pelos imigrantes chineses que residem nesta cidade. O CAMPO: os pesquisados No Brasil, os primeiros chineses chegaram em 1812, trazidos com o intuito de aclimatar a planta do chá ao clima brasileiro. Um contingente de 400 pessoas desembarcou no país, provenientes de Macau, colônia portuguesa na época, para desenvolver o cultivo de chá em São Paulo e trabalhar na implantação de uma ferrovia no Rio de Janeiro (Silva, 2008). 2 Hashi são os tradicionais palitinhos utilizados pelos orientais para comer. Apesar de não haver referência na bibliografia sobre este tradicional biscoito, ele sempre foi associado à culinária chinesa. 3 2 A maior parte dos imigrantes chineses que aqui residiam era proveniente de três províncias marítimas no sul da China: Guangdong (i.e., Cantão), Fujian e Taiwan (Chan-Sheng, 2010). Inicialmente, o processo migratório se concentrava em São Paulo, contudo nas últimas décadas, foi observado um incremento de imigrantes chineses no Nordeste do Brasil. Eles chegam aqui em busca de uma região com mais perspectivas de negócios. Ainda não há dados sobre a migração chinesa para Salvador, mas ao andar pelas ruas da cidade, principalmente no centro, observo o aumento deste grupo. Eles estão atrás de balcões de restaurantes, pastelarias e lojas de produtos importados, assim como seus precursores. Na minha prática de campo, pude definir quatro perfis de chineses que migram para Salvador. Um primeiro grupo veio diretamente para esta cidade, chegou aqui por volta de 1960. Eles abriram lavanderias4 no centro da cidade, estabelecimentos na área de alimentos ou lojas de produtos provenientes da China. Assim, foi com o pai de Chang5 que chegou a Salvador em 1960. Após 8 anos na cidade, ele trouxe a família. Eles, inicialmente, abriram uma lavanderia no centro. Em 197,1 fecharam este primeiro negócio e abriram um bar, que posteriormente virou um restaurante. Hoje, o restaurante da família está sob os cuidados de Chang, mas seu pai, agora com 80 anos, vai todo dia visitar o local. Para Chang, sua vida é de escravidão, ele refere: “fui escravo de meu pai, depois de meus filhos para que eles não fossem escravos também. Tá todo mundo formado e eu continuo aqui trabalhando”. A condição de escravidão surgiu no discurso de muitos dos entrevistados. Eles se denominam escravos dos pais, de outros chineses e quando conseguem se libertar e abrir seu próprio negócio passam a ser escravos dos filhos, para que estes possam ter uma vida diferente. Um segundo grupo veio trazido por este primeiro grupo, eles chegaram aqui para trabalhar para outros chineses, ficaram ilegais, trabalhando em condições quase escravas. Após um tempo de trabalho, legalizaram sua condição de migrante, trouxeram a família e abriram estabelecimentos comerciais, normalmente na área de alimentos, que segundo eles, exige menor investimento 4 Estas lavanderias já não existem mais. Muitos mudaram para o ramo de restaurante ou loja de importados. Nome fictício de um chinês proveniente da República Popular da China. Ele tem uma churrascaria localizada no centro histórico da cidade. O estabelecimento é de seu pai e Chang trabalha no local desde a década de 1970. 5 3 Um terceiro grupo é formado por chineses que migraram inicialmente para Rio de Janeiro e São Paulo, trabalharam lá na área de alimentos, mas como o mercado estava saturado, buscaram novas áreas onde fosse mais fácil investir, vieram, então, para Salvador, principalmente porque já tinham conhecidos na cidade, que vieram no primeiro grupo. Um quarto grupo veio diretamente para Salvador trazido por parentes ou por razões de casamento. Os casamentos arranjados ainda são uma prática, como Chang que casou com sua esposa com o auxilio de um intermediário, que ele chama de padrinho. Ela residia em São Paulo e ele em Salvador, para onde veio trazido por seu pai quando tinha 8 anos. Segundo conta, ele foi a São Paulo falar com o pai dela, com a intervenção do padrinho, e conhecê-la; ficaram 5 dias juntos. Retornou a Salvador, depois de 6 meses teve a resposta positiva ao seu pedido. Ela veio morar com ele em Salvador, onde permanece até hoje, enquanto seus pais retornaram para China. Muitos dos chineses que aqui chegam, logo iniciam família, pude encontrar muitas crianças nos restaurantes e estabelecimentos do centro da cidade. Acredito que o filho seja uma forma de criar um vinculo com o país hospedeiro, além de facilitar o processo de migração. Como por exemplo, a mulher de John6, que fala muito pouco português, chegou ao Brasil há aproximadamente 1 ano e 6 meses, e já é mãe da pequena Júlia ( apelido brasileiro pelo qual é conhecida pelos vizinhos) de 5 meses. Segundo dados do campo, houve uma intensificação do fluxo migratório há cerca de 8 anos, este novo grupo que chega a cidade abre principalmente lojas de bolsas. Os chineses donos de proprietários dos restaurantes do centro estão aqui a mais tempo. Muitos são de uma mesma família. Observa-se também que eles empregam outros chineses, apesar da maior parte da mão de obra ser brasileira. Segundo Mei7, este aumento do fluxo é “moda na China. Não é moda brasileiro ir pra outro país? Então, era moda na China sair para conhecer outro lugar, morar em outro lugar, a gente saia de lá por causa da moda.” 6 John, nome fictício de um proprietário de restaurante de comida a quilo no centro da cidade. John tem uma irmã que tem uma pastelaria com o marido no mesmo bairro do seu restaurante. No Brasil adotou um nome americano, esta característica foi mantida no seu nome fictício. 7 Chinesa proveniente de Cantão. Ela e o marido têm restaurante de comida chinesa e baiana no centro da cidade. Possui irmão também proprietário de restaurante na mesma região. 4 Em relação à procedência, observo três grupos, os chineses que são provenientes da República Popular da China, estes normalmente oriundos de Cantão; os provenientes de Taiwan e os de Hong Kong8. Apesar de todos serem identificados pelos brasileiros como “china”, para eles esta origem é um fator de diferenciação. Tiago9, dono de 3 pastelarias localizadas no centro histórico da cidade, não gosta que o confundam com chinês, ressalta que ele é de Hong Kong. Para deixar claro para mim que não é chinês, me relata todas as questões políticas que diferenciam seu país da China. Para eles, ser chinês é uma característica depreciativa, sempre refere ao seu vizinho, proveniente da China, como alguém com um status inferior. Observei também que há uma rede de empregos entre eles, a qual envolve, inclusive, brasileiro. Mary10, dona de restaurante, durante uma de nossas conversas foi interrompida por um jovem que lhe entregou um currículo, ela conversou com ele que caso ele não aceitasse a vaga que ela iria arrumar, ele teria que avisar, pois havia outras pessoas aguardando. Mary tem um restaurante no centro, e tem irmão, primo e tio também com restaurantes na mesma região. Todos sob a supervisão de seu pai, um senhor de aproximadamente 60 anos, que é bastante temido pelos filhos. Além dos estabelecimentos na área de alimentos, a família tem lojas de bolsas e material de informática na mesma área. Muitos dos chineses que vieram no primeiro fluxo migratório voltaram para China, outros permaneceram aqui, onde tem família. Mei relata que seus pais tentaram retornar para China, mas não conseguiram mais se adaptar. Ao chegarem a Salvador, a família estranhou e teve dificuldades na adaptação, a língua, a falta dos alimentos habituais, o trabalho pesado tornaram este processo muito difícil. Após 40 anos, ao retornar a China, sua mãe não conseguiu mais se adaptar, sentia falta do clima de Salvador. Refere que a sua última viagem programada para 12 meses foi antecipada para 10 meses, pois não se “acostumava mais ao frio de lá.” 8 A República Popular da China foi instituída em 1949. Hong Kong faz parte da República Popular da China, desde sua retornada ao controle chinês desde 1997, apesar de manter controle político independente. A situação de Taiwan é diferente, ele pertence a República da China ou China Nacionalista e não a República Popular da China. Para os interlocutores do estudo esta diferenciação é fundamental. Para a pesquisa considerou-se chinês todo aquele proveniente da RPC, de Taiwan ou Hong Kong apesar das diferenciações políticas, pois desta forma que eles se representam para os demais não chineses. 9 Muitos chineses adotam nomes brasileiros para serem identificados. Quando isto ocorreu eu mantive um nome fictício brasileiro. 10 Nome fictício de uma chinesa proprietária de restaurante no centro da cidade. 5 Mei não voltou mais a seu país de origem desde que veio para Salvador, sente por seus filhos ainda não conhecerem a China, mas refere estar muito adaptada ao calor e à estabilidade do clima soteropolitano. Os chineses entrevistados dizem que uma das razões que escolheram o centro de Salvador para se estabelecerem foi a grande quantidade de imóveis velhos, de preço baixo e a presença de parentes na região. Existe em Salvador cerca de trinta e nove restaurantes de comida chinesa espalhados em shoppings centers, em bairros residenciais e turísticos. Os restaurantes do centro da cidade não são denominados restaurantes de comida chinesa, apesar de serem de propriedade de chineses, o que caracteriza a adaptabilidade deste grupo à Bahia. O MÉTODO: a pesquisa Inicialmente eu havia pensado em desenvolver o estudo com os restaurantes que se identificavam como chinês, contudo com o inicio do trabalho de campo percebi certa resistência de seus proprietários na minha aproximação. Comecei a visitar todos os restaurantes chineses da cidade como consumidora, olhava o cardápio, observava o salão, comia e tentava conversar com os responsáveis chineses. Observei que a maioria dos restaurantes que eu visitava, apesar de ser de propriedade de chineses, tinha apenas brasileiros servindo ou mesmo na área de produção e administração. Quando eu encontrava um chinês, eles utilizavam a dificuldade de comunicação como uma barreira para manter a distância, ou eram diretos e diziam que não tinham tempo para conversar comigo. Essa situação me causou certa estranheza, pois quando eu trabalhava na Vigilância Sanitária e desenvolvi uma pesquisa com os restaurantes chineses, eu era sempre bem recepcionada, eles estavam sempre dispostos a responder as perguntas, a contribuir com a coleta de dados. O acesso era fácil e esta imagem não correspondia com a situação que eu encontrava agora. Busquei restaurantes onde o acesso foi mais fácil anteriormente, como o restaurante localizado no bairro do Rio Vermelho, de propriedade de 3 chineses provenientes de Taiwan. Este estabelecimento se diferenciava dos demais por servir uma comida mais voltada para o público vegetariano. Uma de suas proprietárias 6 sempre era muito atenciosa com a equipe de fiscais e estava sempre disposta a prestar informações. No entanto, ao retornar a este restaurante e ao apresentar meu novo projeto, ela me atendeu com rispidez, disse não ter tempo para conversar comigo, pois estava sempre muito ocupada, já era idosa e estava cansada e sobrecarregada de trabalho. A sua rispidez me causou certo impacto e me fez pensar em outras formas de aproximação do meu grupo de estudo. Comecei, então, a andar pelas ruas do centro da cidade e observei o aumento do fluxo de chineses nesta região. Eles estavam em lojas de bolsas e de produtos importados e principalmente em restaurantes e pastelarias. O largo Dois de Julho parecia se constituir um centro de concentração destes estabelecimentos. Muitos deles apresentavam em seus letreiros “comida chinesa e baiana”. Ao contrário dos outros, estes tinham chineses trabalhando no salão, geralmente eles estavam na atividade de caixa. Então, comecei a frequentar diariamente esta região e estes restaurantes como consumidora. Todos serviam comida a quilo. Apesar de se apresentarem como comida chinesa e baiana, a comida local predominava nos balcões. A comida chinesa servida era principalmente o yakissoba11, preparado em alguns restaurantes no momento que é solicitado pelo cliente. Com estas visitas frequentes me aproximei de alguns proprietários, porém esta relação não me inseriu na comunidade chinesa, como eu havia pensado. Os chineses aparentavam ser um grupo fechado, apesar de conversarem comigo, de permitirem as entrevistas, eles eram resistentes em me apresentar aos demais membros da família. A dificuldade com a língua também constituía um obstáculo ao processo. Muitos estavam aqui há mais de 10 anos, mas ainda falavam o português com muita dificuldade, isso era sempre utilizado como justificativa para evitar o contato comigo. Muitas das minhas tentativas de aproximação eram barradas com a frase: “no falo português”. Ao discutir com uma colega da Vigilância Sanitária minha dificuldade, ela me relatou que eles desenvolviam um trabalho com os chineses do Distrito Sanitário do Centro Histórico e que este trabalho constante criou um clima de parceira entre eles 11 Preparação feita com macarrão tipo lamen, legumes, um ou mais tipo de carne e molho de soja. O macarrão pode ser frito ou não antes da adição dos demais ingredientes. 7 e a vigilância sanitária. Ela me perguntou se eu não queria me inserir no seu grupo, pois desta forma eu teria um canal para me aproximar da comunidade chinesa do centro e poderia apresentar a eles minha proposta de estudo. Assim, a partir de dezembro de 2012 comecei a trabalhar junto com fiscais da vigilância sanitária nas inspeções realizadas nos restaurantes chineses localizados no centro de Salvador. Nestas inspeções, controlava as condições higiênicosanitárias dos estabelecimentos, conversava com os proprietários e apresentava minha proposta de trabalho. Como a ação de vigilância sanitária geralmente se desenvolve em mais de uma visita, esperava um momento onde sentia que o vinculo havia sido estabelecido e marcava a entrevista. Eles me identificavam como fiscal da vigilância sanitária, mas sabiam que a entrevista ocorria para obtenção de dados do meu projeto de pesquisa. Este foi o caminho que encontrei para me aproximar do grupo estudado. A partir de então passei a ser conhecida no grupo de chineses do centro, como fiscal e como alguém que estava interessada na comida chinesa. Muitos dos que inicialmente estavam resistentes em falar, ou por receio, ou mesmo por vergonha, me pediam que retornassem ao restaurante para outras conversas. Muitas das entrevistas não puderam ser gravadas, pois eles não aceitavam e eu não insistia, por achar que o gravador poderia ser um obstáculo na relação que eu desejava estabelecer. A dificuldade do idioma foi uma dificuldade, principalmente por que criava uma barreira no momento de identificar vegetais ou alimentos que consumiam na China, pois eles não encontravam correspondentes no mercado local, para facilitar o entendimento. Não foi possível estabelecer uma rede de contatos, os chineses apresentaram-se muito fechados na sua unidade familiar, os contatos foram feitos um a um, eles não apresentavam familiares, nem amigos. Cada família é fechada no seu núcleo. As relações são estabelecidas com os parentes e aqueles membros familiares que são trazidos para trabalhar. Todos os 28 restaurantes ou pastelarias de chineses do centro da cidade foram visitados, assim como visitei também os restaurantes localizados no circuito fora do centro, contudo os da região central foram foco do estudo. Não entrevistei todos os proprietários, a dificuldade de comunicação foi um empecilho. Entrevistei 9 proprietários, a maioria eram mulheres (7), apesar de algumas estarem 8 acompanhadas pelos maridos, elas se mostravam mais comunicativas e mais abertas as entrevistas, eles observavam curiosos, mas não participavam. O CONHECIMENTO: a cozinha chinesa A alimentação de determinado grupo é definida a partir da variedade de plantas e animais que crescem livremente no seu território, que aos poucos vão construindo o que denominamos uma cozinha. Contudo, ingredientes e modos de preparo viajam, percorrem territórios e transformam práticas culinárias herdadas12. O que identifica uma cozinha são os procedimentos culinários e um conjunto de regras, usos, práticas, representações simbólicas e valores sociais, morais e religiosos e higiênico-sanitários, que lhe concedem uma dimensão cultural. A estrutura culinária de um grupo é transmitida geração a geração, porém ela não se mantém estática, ela vai se transformando a partir das relações entre os indivíduos e do acesso a ingredientes e utensílios. Assim, o bambu, alimento preferido de Lucy13, é substituído pelo broto de feijão verde, produto mais fácil de ser encontrado no mercado soteropolitano, e este broto de feijão será transmitido para seus filhos e entrará no imaginário deles, nas lembranças das refeições em família, compondo sua herança cultural. Os chineses que residem em Salvador relatam a dificuldade de manter seus hábitos alimentares nesta cidade, devido à falta de ingredientes. Muitos dos produtos que utilizam na preparação de seus pratos são comprados em São Paulo, através do correio. Segundo eles, a falta de produtos afeta a manutenção da sua cozinha nesta cidade, a qual Mei define como o “fim do mundo”. Para ela, Salvador difere muito da sua região de origem, Cantão, onde tinha uma grande variedade de folhas, frutas e verduras. 12 Gostaria de diferenciar aqui estes três conceitos. Entendo alimentação como todo os processo que envolve desde a produção dos alimentos até seu descarte final, perpassando pela sua distribuição, comércio, consumo, escolha, preparação. Relaciona-se a situações socioeconômicas globais. Já a cozinha envolve o número de alimentos disponíveis para consumo, as formas de preparo destes alimentos, os condimentos de base, as regras envolvidas na definição do que é comestível ou não comestível, o número de refeição estabelecido, a comensalidade. Já a culinária seria algo mais restrito e envolveria apenas as formas de preparo do alimento adotadas por determinada grupo. 13 Nome fictício de uma entrevista, proveniente de Taiwan, veio para Salvador em 1997 para tomar conta da avó que estava doente. Atualmente tem um restaurante com o marido, que é da República Popular da China (RPC), no centro da cidade. 9 Ela chegou a Salvador com 16 anos, acompanhada de seus pais. Seu pai veio primeiro para esta cidade, atendendo a um convite para ser cozinheiro do restaurante chinês de um primo. Depois de algum tempo trabalhando, trouxe a mulher e seus filhos. Hoje, o pai de Mei não trabalha mais, mas ela e seu irmão têm restaurantes de comida chinesa e baiana no centro da cidade. A família mantém sua culinária em casa, no jantar, onde prepara refeições com alimentos oriundos de São Paulo. O almoço é feito no restaurante onde trabalha, neste espaço a culinária local predomina. Mintz (2001) refere que muitas comidas são associadas a povos em particular, sendo consideradas inequivocamente nacionais, os franceses supostamente comem rãs e caracóis; os chineses, arroz e soja; e os italianos, macarrão e pizza. Contudo, ele ressalta que a espantosa circulação global de comidas e pessoas traz novas questões sobre comida e etnicidade. Para ele, certas comidas consideradas marcadores étnicos, como o macarrão, o croissant, a baguete, a pizza estão hoje perdendo esse rótulo, “tornando-se, dentro do mercado global de alimentos, o que eu chamaria de comidas etnicamente neutralizadas. As comidas se tornam étnicas; e também deixam de sêlo” (Mintz, 2001). Para Maciel (2005), certas comidas estão associadas a um povo e relacionadas a um território, agindo como referenciais identitários. Esta autora utiliza o termo cozinha emblemática, para definir um conjunto de elementos referenciados na tradição e articulados no sentido de construir algo particular, singular, reconhecível ante outras cozinhas. Neste sentido, o emblema seria uma forma simbólica destinada a representar um grupo, fazer parte de um discurso que expressa um pertencimento e, assim, uma identidade. Apesar destas cozinhas agirem como referenciais identitários, a autora ressalta que elas estão sujeitas a constantes transformações. Diante destas considerações, entendo que a comida chinesa se insere nesse contexto, pois muita das suas características iniciais, embasadas na tradição, vem sendo alteradas com a inserção de novos ingredientes, utensílios e formas de preparo. 10 Os rolinhos primaveras, aqui em Salvador, são preparados com queijo, frango, kani14; o yakissoba não é mais preparado com macarrão frito e sim o macarrão cozido em água e posteriormente misturado com molho de soja e vegetais, o lamén15 é substituído pelo talharim. Para Lucy16, o que identifica a cozinha chinesa é o molho de soja, utilizado em diversas preparações. Já Hwan17 vê a sopa como prato identificador do seu grupo cultural. A lembrança da sua sopa favorita - um caldo grosso e marrom preparado a partir do cozimento prolongado de carnes de cobra, sapo e galinha e verduras, em fogo baixo e mantido tampado por 4h para que os sabores se misturem sob o calor da preparação - lhe traz o sabor, o cheiro da sua terra, lembranças. Segundo Lucy e Hwan, as formas de preparo são modificadas para que a comida seja aceita pelas pessoas não chinesas. Segundo essas entrevistadas, as pessoas não aceitam bem a forma de preparo chinesa que cozinha o alimento em óleo quente, antes de misturá-lo. Diferente dos chineses, que imergem o alimento em óleo quente antes do preparo final final, como uma forma de criar uma crosta que impede a perda de nutrientes, os brasileiros, refogam18 os alimentos em um pouco de óleo com alho e cebola. Segundo Hwan, até mesmo os macarrões instantâneos (miojo) utilizado nos restaurantes de Salvador, na preparação do yakissoba difere muito do produto utilizado por ela. Segundo refere, o macarrão instantâneo que utiliza, comprado em São Paulo, o tradicional lamen, vem com diversos temperos e vegetais desidratados a serem adicionados à preparação final, o que dá um sabor e aparência diferentes da que os soteropolitanos identificam como “preparação chinesa”. A produção de gêneros alimentícios é desigual no território chinês. Além das condições do solo e do clima, guerras e desastres naturais impuseram a população períodos de extrema pobreza e fome. 14 Alimento típico da culinária japonesa, em formato de bastão, feito a partir de carne de peixe processada, com sabor imitando de carne de caranguejo . 15 Alimento de origem chinesa, mas utilizado também na culinária japonesa. Consiste em filamentos longos de massa preparada com ervas e legumes, temperados com carne de porco ou peixe de água-doce. 16 Nome fictício de um entrevistada. Proprietária de restaurante de comida a quilo, proveniente de Taiwan casada com chinês, proveniente da República Popular da China, que também tem um restaurante na mesma região. 17 Entrevistada, oriunda da RPC, de Sichuan mora em Salvador desde 1990 Tem um restaurante junto com o marido e os filhos no Centro da cidade. 18 Refogar é uma técnica culinária de cozimento que consiste em passar os alimentos em gordura fervente e temperos. A gordura é exposta ao calor, posteriormente coloca-se o tempero ( geralmente alho e cebola) e depois passa o alimento principal nesta mistura. 11 Muitos pesquisadores acreditam que o fato dos chineses comerem uma diversidade de animais, insetos e plantas se deve a esses grandes períodos de fome que assolaram a China. Contudo, Chang (1977) acredita que essa inventividade no campo da alimentação se deve a simples razão que a comida e o comer são coisas centrais na forma chinesa de viver e faz parte do ethos chinês. Então, me lembro de Hwan quando lhe questionei sobre a sua preparação predileta. E ela fala de um sapo chamado zin, que era inicialmente passado no alho frito em óleo, depois imerso em óleo quente e, posteriormente, cozido com alho e folhas típicas da região onde morava. Ela diz que a carne desse tipo de sapo é bem saborosa. E concordo com Chang quando este diz que a ampla variedade de produtos comestíveis para os chineses não foi uma forma de sobreviver aos longos períodos de fome que avassalaram o país. Quando Lucy e Hwan me relataram suas memórias culinárias, elas demonstraram que a comestibilidade está associada a fatores que vão muito além da disponibilidade. A sopa de Hwan não é mais preparada aqui em Salvador, ela não consome o sapo que é sua refeição predileta, pois o sapo que é encontrado aqui (a nossa rã) tem sabor muito diferente do sapo que ela consumia na sua cidade natal. Ela ainda prepara refeições tipicamente chinesas em sua casa, mas já incorporou em sua dieta a rabada, sua preparação brasileira predileta. A família de Mei incorporou o dendê a sua dieta, seu marido chinês cozinha caruru e moqueca para os filhos, que pelo menos uma vez por semana pedem à mãe para comer acarajé. Chang (1977) salienta que, em relação à comida, os chineses não são nacionalistas ao ponto de se fecharem a produtos estrangeiros, e estes foram facilmente adotados pela sua culinária, como por exemplo, o trigo, o carneiro e a batata doce. No entanto, outros produtos como os laticínios não foram tão bem aceitos. Os chineses de Salvador não aceitam bem o dendê, mas este é consumido pelas novas gerações. Nos meus primeiros contatos, verifiquei certa resistência na inserção de saladas cruas pelos chineses entrevistados. Lucy e Hwan citam as saladas de folhas como a preparação mais diferente que elas viram aqui no Brasil. Todos os entrevistados apresentam certa resistência em consumir este tipo de preparação e referem que na China alimentos crus não são consumidos, até folhosos como alface, 12 acelga são cozidos. Mesmo Lucy, que é vegetariana e oriunda de uma família de vegetarianos, não costuma consumir salada de folhas. Chang (1977) reconhece três marcos históricos no desenvolvimento da cozinha chinesa. O primeiro foi o começo da agricultura, pois, foi a partir de desenvolvimento do cultivo de painço, arroz e outros cereais que se estabilizou o principio fan/ts’ai base da culinária chinesa. Além disso, com o desenvolvimento da agricultura os chineses acumularam grande conhecimento sobre plantas comestíveis e fundamentaram a ideia de alimento e saúde, o que foi sendo sistematizado nas enciclopédias. Um segundo ponto foi o começo da alta estratificação da sociedade, fundamental para a distribuição dos recursos alimentares, além de incentivar o desenvolvimento de um elaborado estilo culinário. O terceiro momento se deu com a alteração na distribuição da comida, que ocorreu com a implantação da República Popular da China, que reforçou ainda mais a adaptabilidade e flexibilidade. Em seu livro Food in Chinese Culture, Chang (1977) questiona: o que caracteriza a comida chinesa? Para este autor, se esta pergunta for feita ao dono de um restaurante chinês ele identificará inúmeros pratos típicos da culinária no seu cardápio; se buscarmos a resposta em um livro de culinária identificaremos ingredientes essenciais, utensílios e recipientes característicos; se questionarmos a um estudante da moderna cultura chinesa, ele fará generalizações aprendidas acerca das denominações comuns e as variedades regionais. Ele ressalta que todos eles estarão corretos, mas os pontos levantados por cada um darão apenas uma diferente perspectiva, pois o que caracteriza a cozinha chinesa são os princípios que regem todo processo de preparação de cada pedaço que será levado à boca, os princípios do yin/yang, quente/frio e fan/ts’ai, que são a base da culinária chinesa. Dentre estes, o fan/ts’ai é o mais importante. Uma refeição balanceada deve ter porções de fan e ts’ai. O fan (grãos e alimentos ricos em amido) é o alimento primário e o ts’ai (vegetais e carnes) o suplementar ou secundário. Sem fan não há saciedade, mas sem o ts’ai a refeição não tem sabor. 13 Os chineses entrevistados não identificaram os princípios definidos na literatura pesquisada. Contudo, posso percebê-los na forma que eles se relacionam com os alimentos. Para eles, o que caracteriza sua cozinha é a forma de preparo. Segundo referem, os chineses não comem alimentos crus, tudo é cozido, principalmente em banho-maria. Açúcar, alho, pimenta, cebolinha, molho de soja, aji-no-moto19 e gengibre são os principais condimentos utilizados por eles. Maria20 refere que as pessoas em Salvador misturam muito a comida, na China come-se cada coisa de uma vez e os alimentos são preparados geralmente em banho-maria, sem muitos condimentos, para que seu sabor seja sentido. John refere que o que diferencia a sua comida é o típico tempero chinês, uma pasta preparada com feijão preto, alho, açúcar e sal que ele adquire em São Paulo. Xin acredita que é o Aji-no-moto o principal produto que caracteriza sua cozinha, pois “ chinês sempre usa Aji-no-moto, em tudo” A variação nos pratos está na forma de cortar e preparar os alimentos, de misturar os sabores. Os ingredientes são cortados e combinados de diversas maneiras e a mistura de sabores, cortes e texturas produzem uma grande variedade de pratos com um mesmo tipo de ingredientes. Nos restaurantes chineses localizados em Salvador, percebo certa influência do princípio fan/t’sai. Quando solicito uma refeição, ela será composta por arroz ou macarrão como base, o amido (fan), e uma carne, misturada com vegetais e um molho ou caldo (ts’ai), que terá sabor mais acentuado. Contudo, o arroz que identifico como chinês é o arroz branco preparado com cenoura, cebolinha, presunto e ovo, o que já iria de encontro a este principio básico. O fan é preparado apenas com o amido, os vegetais e as carnes comporiam o ts’ai. Para nós ocidentais, o arroz branco é o acompanhamento tipicamente chinês, contudo o fan refere-se a qualquer tipo de amido, que varia de acordo com cada região. O trigo é consumido na forma de pães, macarrão de várias formas, ou como 19 Palavra que significa a essência do amor. É o nome da empresa japonesa que produz glutamato monossódico, que concede ao alimento o sabor Unami, o quinto sabor.O glutamato monossódico é um reforçador de sabor obtido a partir de um processo de fermentação da cana de açúcar . Os fabricantes da indústria alimentícia comercializam e usam o MSG para realçar o sabor dos alimentos, porque ele equilibra, mistura e arredonda a percepção total de outros gostos. AJI-NO-MOTO é um dos nomes comerciais do glutamato monossódico. 20 Nome fictício de uma chinesa proveniente de Cantão que trabalha em uma pastelaria no centro da cidade. Veio para o Brasil porque casou com um chinês que morava em Salvador. 14 dumplings, tipo de bolinho recheado, cozido em água fervente, que é encontrado nos restaurantes mais tradicionais de Salvador. Na filosofia chinesa, vegetais cozidos, carnes e produtos cárneos (ts’ai) são consumidos com o propósito de hsia fan, para servir como acompanhamento do fan. Isto é tão importante que, muitas vezes, a refeição é chamada de fan, pois ele é o responsável pela saciedade. Lucy me diz que para ela, uma refeição tem que ter arroz, se ela come algo e não tem o arroz é como se fosse um lanche e não uma refeição completa. O arroz é o alimento predileto de Mei que diz adorar arroz, até as massas que consome são feitas de arroz. O arroz foi referido, por todos os chineses entrevistados, como a base de suas refeições. Wesley21 compara o arroz com a farinha consumida pelos baianos. Chang (1977) salienta: envie um cozinheiro chinês para a América, dê a ele ingredientes chineses ou americanos e ele prepara uma quantidade de fan e ts’ai, cortados e misturados em várias combinações e cozidos de diversas maneiras. Dê os ingredientes certos e a chinesidade do prato será evidenciada. Mesmo ingredientes americanos, preparados com utensílios americanos por um cozinheiro chinês se transformarão em uma refeição chinesa. Mas nos restaurantes chineses de Salvador, a comida reconhecida como chinesa pelos comensais baianos é preparada por cozinheiros brasileiros. Os chineses ficam na administração do estabelecimento e no caixa. Apenas uma pastelaria tem chinês na preparação, ele trabalha com ajudantes brasileiros. A soja é consumida em toda China, de várias formas, como leite, grãos, molhos. Ela é o ingrediente característico da cozinha chinesa, presente na forma de molho, queijo, leite, grãos ou mesmo substituindo as carnes. É a soja a principal fonte protéica para os chineses (Chang, 1977). Para Lucy, o molho de soja é o alimento emblemático da sua cultura, ela refere que o utiliza de diversas maneiras e por ser oriunda de uma família vegetariana consome soja como substituto da carne animal. Todos os chineses entrevistados referem que utilizam o molho de soja no preparo dos seus alimentos e este produto é sempre utilizado na comida chinesa servida nos restaurantes e na composição de uma grande variedade de pratos presentes nos livros de receitas pesquisados. 21 Nome fictício de um chinês que possui uma loja de material para artesanato no Centro. Ele foi inserido no grupo , pois trabalhava em restaurante no Rio de Janeiro. 15 Em relação aos alimentos de origem animal, os laticínios não são comuns e a carne mais consumida é a de porco, o que pode ser confirmado com os dados de campo e quando olhamos os cardápios dos restaurantes, onde a carne de porco é mais presente do que a carne bovina. Até 1949, o consumo de carne na China era muito baixo, devido ao alto preço, assim 89,8% do aporte calórico vinha dos cereais, 8.5% de raízes, e 1% de produtos de origem animal, as verduras, frutas e açúcar contribuíam apenas com 0,7% do aporte calórico (Chang,1977). Segundo Mei, a carne de porco é mais consumida na China, pois esta é mais segura. Para ela, a razão do baixo consumo de carne de boi pelos chineses se deve a baixa qualidade deste alimento. O que identificaria, portanto a comida chinesa: os ingredientes, as formas de preparo ou os princípios seguidos na sua preparação? Haveria uma comida chinesa que se come (pelos chineses) e uma comida chinesa que se vende? A forma chinesa de cozinhar ajudou o povo chinês atravessar os tempos difíceis através da sua história e caracteriza sua cozinha. A adaptabilidade é algo desejado e necessário, ela se baseia no conhecimento que os chineses adquiriram acerca dos recursos presentes na natureza, que foi sistematizado nas enciclopédias e do contato que sempre tiveram com produtos importados. Outra característica é o consumo de alimentos preservados, em diferentes formas, o que ajudou a passar pelos períodos difíceis ou de escassez. O alimento é preservado pela defumação, salga, açúcar, maceração, conserva, dessecação, imersão em uma variedade de molhos de soja. Contudo, não verifiquei nos restaurantes da cidade de Salvador a utilização de alimentos conservados nas preparações servidas. Os tradicionais cozinheiros chineses acreditam que a seleção, preparação e apresentação dos alimentos simbolizam o balanço entre opostos, baseado no elaborado sistema do yin/yang, o qual estrutura toda a divisão do universo. Para eles, os alimentos apresentam muitas qualidades e devem ter suas propriedades, como cor, textura e sabor balanceadas (Hernadez, In Beriss e Sutton, 2007) Nas três décadas que frequento restaurantes chineses, tenho observado uma mudança profunda não apenas nas preparações servidas, mas também no espaço da comensalidade. Os grandes aquários de peixes localizados no salão principal são encontrados apenas em alguns restaurantes. As roupas tradicionais não são mais vestidas pelos garçons, que em sua grande maioria, são brasileiros. O cardápio em 16 chinês só foi encontrado em restaurantes chineses fora de Salvador, o que era um traço marcante desses restaurantes na década de 80 e 90. A decoração chinesa era cada vez menos utilizada, aumentava o número de restaurantes com serviço “a quilo” e delivery. Ocorreram mudanças também na composição do cardápio, que não tinha mais uma versão escrita em chinês, era cada vez mais comum a influência da culinária local nas preparações oferecidas. Verifiquei alteração também nas preparações servidas. O rolinho primavera, lumpia, antes servido apenas com recheio de carne e repolho ganhou versões de queijo com goiabada, frango com catupiry, banana com canela dentre outras. O yakissoba, quase desconhecido nos restaurantes de Salvador até a década de 90, é agora o prato mais reconhecido como identitário pelos comedores baianos. Outra mudança que verifiquei foi a invasão das comidas reconhecidas como japonesas, os temakis, sushis e sashimis. Os restaurantes chineses agora se reconhecem como asiáticos e não apenas chinês. O que pode ser uma estratégia utilizada para competir no mercado, com a ascensão da culinária japonesa no mercado da culinária “exótica”. As preparações chinesas, populares no mundo, são produtos da culinária de diferentes regiões da China. Podemos identificar influência da culinária do sul no arroz que é a base das refeições servidas nos restaurantes chineses; da culinária do norte nos pratos suaves com a utilização de molhos com frutas cítricas; da região de Se-chuan nas típicas preparações picantes e da cozinha cantonesa nos pratos agridoces (Goody, 1992). Muitos dos pratos servidos hoje nos restaurantes chineses espalhados pelo mundo são variações da cozinha tradicional, adaptada às preferências alimentares dos comedores. Como o frango xadrez, que aqui não é preparado mais com pedaços de frango cozidos pela imersão em óleo quente e, sim, refogados no alho e óleo. Segundo Wesley, “o frango xadrez aqui usa cebola, cenoura e frango e molho de soja, castanha e maisena para engrossar o caldo. Na China, você pega o frango, tempera, frita até dourar, tira e depois usa pimenta de dedo de moça seca, cebolinha, só a parte branca, e amendoim, molho shoyo, açúcar e sakê depois.” Hwan diz que foi apenas uma vez em um restaurante chinês em Salvador, mas não conseguiu comer nada, pois o sabor era ruim para seu paladar. Ela não 17 reconhece aquelas preparações como chinesas, e refere como “a comida que vocês acham que é chinesa”. Assim, como ela, os outros entrevistados não frequentam os restaurantes chineses da cidade, a sua memória alimentar é mantida na cozinha de casa, onde são preparadas as receitas ensinadas pelos pais, ou oriundas de livros de receitas ou internet. O banho Maria foi a técnica de preparo típica da culinária chinesa, segundo os entrevistados. Peixes e vegetais são preparados por este método de cozimento sem adição de condimentos. Apenas o molho de soja, cebolinha, o sal ou açúcar são adicionados no final. O FINAL: conclusão Em uma das minhas visitas, uma proprietária de um restaurante, localizado no Dois de Julho, diz, ao ser questionada sobre o fato do seu filho de 12 anos comer caruru: “ a única coisa que não consigo comer aqui é dendê, mas meu filho come, ele é como vocês, é baiano, nasceu aqui, então ele come dendê. Eu não consigo comer, nem eu e nem meu pai”. O alimento entra como um elemento que engloba no novo grupo, no novo espaço. O filho e ela diferem, ele baiano, nasceu em Salvador, come dendê, elemento identificador da cozinha local; ela chinesa, apesar de morar nesta cidade, ter filho baiano, não consegue comer o dendê. Alguns restaurantes no centro de Salvador apresentam na entrada a seguinte indicação: “comida chinesa e baiana”, o que vem a mostrar a dualidade do espaço vivido por seus proprietários, que carregam uma história, uma herança cultural que não pode mais ser referência e buscam neste novo lugar, novos símbolos que permitam reconstruir uma nova familiaridade, uma nova história que passa a ser construída a partir de sua chegada. O restaurante apresenta a contradição do espaço do imigrante, que pode ser visualizado no balcão Buffet, onde na sexta-feira o caruru, o vatapá, a moqueca dividem o espaço com rolinho primavera, frango xadrez e yakissoba. Os símbolos chineses na parede, a foto de Mao Tse Tung próximo ao caixa, símbolos do passado trazem a familiaridade ao novo. Tradição inventada e mudança convivem neste espaço e se mesclam, se reinscrevem. 18 Na sua comida, os chineses revivem suas memórias, resistem. Mas é esta mesma comida que os ajuda a construir seu lugar no novo território, espaço de dominação e resistência. Na construção de uma nova cozinha chinesa se dá a construção do futuro, onde o novo e o velho se mesclam, onde os limites são fluídos e as fronteiras entre o eu e o outro se confundem. Muitos dos ingredientes tradicionais não são encontrados no mercado local e são trazidos de São Paulo, em uma tentativa de manter a herança culinária. Contudo, a dificuldade de encontrar os ingredientes básicos, a rotina diária de trabalho, as exigências alimentares da nova geração causam mudanças nas práticas alimentares deste grupo. No dia a dia da cozinha dos seus restaurantes, onde baianos preparam os pratos, e na cozinha de suas casas, onde se tenta manter os hábitos alimentares chineses, uma nova cozinha chinesa se reinscreve, entre moquecas e yakissobas. A comida que se vende como chinesa não é a comida que se identifica como tal, duas preparações distintas que representam uma mesma cozinha. O yakissoba, preparação predominante nos restaurantes chineses do centro de Salvador não é identificado por nenhum chinês como identitário da sua culinária. As frituras que marcam as pastelarias e restaurantes chineses são evitadas por este grupo que considera sua cozinha como mais saudável, elaborada e variada que a cozinha local ou mesma que a culinária vendida como chinesa. O titulo do trabalho, ‘O dendê no wok ‘ traz o entendimento deste futuro que é comandado pelo presente, como refere Milton Santos (2009), onde o passado comparece “como uma das condições para a realização do evento, mas o dado dinâmico da produção da nova história é o próprio presente, isto é, conjunção seletiva de forças existentes em um dado momento” (Santos, 2009: 330). O wok significa o espaço antigo, as memórias, as práticas herdadas, representadas pelo o utensílio de cozimento que no caso da população estudada simboliza o local para inserção do elemento novo, o dendê a ser adicionado no novo cotidiano, onde o espaço está sendo construído, novas memórias são reinscritas no corpo dos indivíduos. 19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BERRIS, D. Institutions, SUTTON, In D., BERRIS, Restaurants, David, SUTTON, Ideal David Postmodern (Org) The Restaurants Book: ethnographies of where we eat, New York: Berg, 2007. CHANG, K.C. Food in Chinese Culture, USA: Yale University, 1977. CHANG-SHENG. Chineses no Rio de Janeiro. Portal Ciência e Vida. Disponívelem:http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/17/impri me125466.asp, 2010. CHEUNG, Sidney C.H., WU, David Y. H.. The globalization of Chinese Food and Cuisine: Markers and Breakers of Cultural Barriers,. In WU, david e CHEUNG, Sidney C.H. (Org). 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