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Revista da AJUFERGS
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS
DO RIO GRANDE DO SUL
09 - 2016
Revista da AJUFERGS
Publicação oficial da ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES
FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL - AJUFERGS
Diretor Cultural da Revista
Lademiro Dors Filho
Conselho Editorial
Gerson Godinho da Costa
Lademiro Dors Filho
Marcel Citro de Azevedo
Assessoria Editorial
Juliana Chaves Dias
Capa, Projeto Gráfico
Headway Propaganda
Revisão
Gisele Schmidt Moitoso
Editoração
Fábio A. Teixeira dos Santos
Capa
Headway Propaganda
Impressão
Datacerta Editora Ltda.
Revista da AJUFERGS / Associação dos Juízes Federais do
Rio Grande do Sul. – n. 01 (março 2003). – Porto Alegre:
AJUFERGS, 2003- .
Irregular.
ISSN 1679-2262
1. Direito – Periódico. 2. Poder Judiciário – Brasil. I. Associação
dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul.
CDD 34.05
CDU 34(05)
(Bibliotecária responsável: Flavia H. S. Monte, CRB-10/1218)
As opiniões expressas nos trabalhos são de responsabilidade dos Autores.
Não são devidos direitos autorais ou qualquer remuneração
pela publicação dos trabalhos nesta Revista.
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS
DO RIO GRANDE DO SUL
Fundada em 08 de dezembro de 2001
CONSELHOS
Conselho Executivo
Presidente
FÁBIO VITÓRIO MATTIELLO
Vice-presidente Administrativo
ALEX PÉRES ROCHA
Vice-presidente de Patrimônio e Finanças
ALESSANDRO DUTRA LUCARELLI
Vice-presidente Cultural e da ESMAFE
GERSON GODINHO DA COSTA
Vice-presidente de Assuntos Institucionais
MARCIANE BONZANINI
Vice-presidente de Assuntos Jurídicos
FREDERICO VALDEZ PEREIRA
Conselho Fiscal
CARLA EVELISE JUSTINO HENDGES
GIOVANI BIGOLIN
RICARDO NÜSKE
Diretoria AJUFERGS
Diretor Cultural
LADEMIRO DORS FILHO
Diretor Administrativo da ESMAFE
GUILHERME MAINES CAON
Diretor de Ensino da ESMAFE
EDUARDO RIVERA PALMEIRA FILHO
Diretora Social e de Benefícios
RAFAELA SANTOS MARTINS DA ROSA
Diretor de Esportes
ANDRÉ DE SOUZA FISCHER
Diretor de Assuntos do Interior do Estado
MARCELO FURTADO PEREIRA MORALES
Diretor de Assuntos Legislativos
EDUARDO GOMES PHILIPPSEN
Diretoria ESMAFE
Diretor-Geral da ESMAFE
GERSON GODINHO DA COSTA
Diretor Administrativo
GUILHERME MAINES CAON
Diretor de Ensino
EDUARDO RIVERA PALMEIRA FILHO
Diretor Cultural
LADEMIRO DORS FILHO
Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul
AJUFERGS
Biênio Jun/2014 - Jun/2016
Rua dos Andradas, 1001, conjunto 1503
90020-007 Porto Alegre, RS
(51) 3226.7057 - www.ajufergs.org.br
SUMÁRIO
El Derecho Procesal Constitucional en el Perú
Edgardo Torres López......................................................................... 13
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz............................................. 21
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e
consequencial
Gerson Godinho da Costa................................................................... 37
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846,
de 1º de agosto de 2013
Stefan Espirito Santo Hartmann.......................................................... 55
Limites sociológicos ao uso intensivo do
Bacen-Jud
Marcel Citro de Azevedo.................................................................... 87
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E
ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
Ana Paula Martini Tremarin Wedy................................................... 105
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
Ana Cristina Monteiro de Andrade Silva.......................................... 129
Direito fundamental à boa administração pública,
moralidade e improbidade administrativas
Eduardo Kahler Ribeiro.................................................................... 157
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
Alexandre Gonçalves Lippel............................................................. 179
O legado dos votos vencidos nas decisões da
Suprema Corte dos Estados Unidos da América
Gabriel Wedy / Juarez Freitas........................................................... 205
EDITORIAL
Mais uma vez os nossos associados, juízes federais, apresentam notáveis trabalhos para esta já tradicional revista associativa. E, em inestimável
acréscimo, o periódico conta, nesta edição, com trabalho internacional.
Neste nono volume, como sói ocorrer, dez textos lançam profundo debate
sobre temas atuais de interesse de toda a comunidade jurídica.
A edição principia com o trabalho do eminente colega Edgardo Torres
López, Presidente de la Sala Civil Permanente de la Corte Superior de Justicia de Lima Norte, que trata do Direito Processual Constitucional no Peru.
Das terras brasileiras, de início, temos a oportuna lembrança do
centenário de nascimento do eminente e saudoso Ministro Rodrigues de
Alckmin que ocorre neste ano de 2015. Quem nos apresenta os seus dados
biográficos e alguns de seus julgamentos que entraram para a história
do STF (como o seu pronunciamento no caso da Representação n. 961/
RJ, firmando importante precedente quanto aos pressupostos do controle
de constitucionalidade em abstrato) é o nosso eminente Desembargador
Federal do TRF da 4ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.
Em seguida, há o trabalho sobre o acesso à Justiça do estimado
Vice-presidente Cultural e da ESMAFE, Gerson Godinho da Costa. O
eminente magistrado analisa a problemática do acesso à justiça não só sob
o prisma tradicional, mas também considerado o enfoque consequencial.
Tão em voga nos dias de hoje, o assunto corrupção é tema de um
excelente artigo no colega Stefan Espírito Santo Hartmann. O trabalho
examina os dispositivos da Lei n. 12.846 de 1º de agosto de 2013, chamada Lei Anticorrupção (LAC).
Também nosso colega, ex-Diretor Cultural e escritor Marcel Citro
Azevedo apresenta estudo sobre ferramenta usada diuturnamente pelos
juízes: o BACEN-Jud. O autor tece considerações sobre o tema, enfatizando a necessária moderação do uso de tal ferramenta, utilizada para o
bloqueio de contas-correntes como modo de satisfazer o crédito, tendo
em vista o conceito de Estado interventor e o do Estado liberal. Vale
dizer, os limites sociológicos ao uso de tal procedimento.
Ana Paula Martini Tremarin Wedy nos traz considerações sobre a
Responsabilidade Civil Objetiva, tendo em vista a nova sociedade e seu
progresso social. Diante da nova realidade das inovações tecnológicas e dos
direitos de massa, a ilustre magistrada analisa a responsabilidade objetiva
no ordenamento jurídico pátrio e no Direito comparado (alemão e francês).
Depois, Ana Cristina Monteiro de Andrade Silva faz uma análise
sobre o Princípio Constitucional da Solidariedade. Após conceituar e
invocar os fundamentos constitucionais de tal princípio, a eminente magistrada nos mostra como se aplica tal preceito no Direito Previdenciário
e no Direito Ambiental.
Em tempos de escândalos de corrupção na administração pública,
nada mais oportuno que o estudo do Direito à boa administração pública,
moralidade e improbidade administrativa. Sobre tais temas, enfatizando
a moralidade administrativa como princípio que baliza os atos de toda a
administração pública, Eduardo Kahler Ribeiro, aborda os pressupostos
para a improbidade administrativa, com o exame da proporcionalidade
e gravidade das condutas reputadas ímprobas.
Alexandre Gonçalvez Lippel traz assunto de efetivo interesse da
Justiça Federal, falando sobre o Quadro Normativo Indigenista. Partindo
da Convenção n. 169 da OIT, o ilustre Magistrado Federal analisa também
o Direito Indígena surgido após a promulgação da Constituição Federal
de 1988, bem como a aplicação da Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas.
Por fim, nosso ex-Presidente da AJUFERGS e AJUFE, Gabriel Wedy
e o eminente jurista Professor Juarez Freitas, abordam tema pouco analisado na doutrina constitucional brasileira, o legado dos votos vencidos
na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
Algumas das mais famosas decisões judiciais da história norte-americana
são avaliadas com o foco no conteúdo externado pelos votos vencidos.
Como visto, mais uma vez os juízes federais da 4ª Região, acompanhados de insigne magistrado peruano, mostram com grande desenvoltura
intelectual suas teses jurídicas. Tratam-se de assuntos palpitantes, interessando a todos os personagens atuantes no foro ou na academia. Vale
dizer, resta mantido o alto nível dos debates que todo ano são travados
nesta publicação. O que, verdadeiramente, é motivo de orgulho para nossa
Associação que conta com juízes federais tão atentos e interessados no
estudo do Direito.
PALAVRA DA DIRETORIA
Que sina esta a do ser humano! Transitar por incertezas em busca
do absoluto, o qual, de resto, nada mais parece que uma utopia. Quando
cá se encontra, achando-se pleno de felicidade, absorto pela satisfação
imediata e provisória do consumo, depara-se inevitavelmente com a
indagação: de que vale tudo isso?! Estará certo Brás Cubas quando,
em sua derradeira sentença, regozija-se por não ter legado a ninguém a
miséria deste mundo?
Há ainda que se temperar esse caldo com as antes impensadas ou
inéditas manifestações. Paris arde por obra do terrorismo. Não que ele não
existisse, mas eram inauditas a crueldade, a covardia e a envergadura com
que ora se manifesta. E o que haverá por trás disso? Política? Vingança?
Clamor por justiça? Áreas da Terra, distantes culturalmente do mundo
ocidental, por ele vilipendiadas ou abandonadas, estarão legitimadas a
cobrar atenção a qualquer preço?
Ainda no terreno das incertezas, a resposta ao último questionamento
parece ser negativa. Há exemplos de lutas por outros meios, as quais,
apesar das dificuldades, apresentam vitórias. Lancemos nosso olhar aos
irmãos peruanos. Haverá meio de compensar a flagrante injustiça decorrente da destruição do Império Inca? E quanto aos nativos, peruanos ou
brasileiros, haverá reparação pela violência dos conquistadores europeus?
O Judiciário tem dito que sim. Esparsa e lentamente, sem recomposição
do status quo. Todavia, alguma forma de justiça está acontecendo.
E será o progresso inevitável? Sendo, até onde nos levará? O celta
de Llosa nos deu suas pistas. Coincidentemente no Peru, e também no
Congo de Conrad. O capitalismo desregrado cobra solidariedade aos
prejuízos privados, enquanto dogmas políticos, noutra ponta, cobram
igualdade para uns ao custo da vida de muitos. A falta de ética não escolhe
ideologia. Onde devemos pisar? O que ou a quem deveremos seguir?
É nesse cenário que se move o juiz, também vítima das incertezas
do nosso tempo, também perplexo diante desses questionamentos.
Entretanto, dele são exigidas respostas. Ponderadas, claro. Mas, ainda
assim, respostas. Impositivas. Tem tempo para reflexão; contudo, não
pode imergir na inércia. Isso torna seu agir mais difícil. É óbvio! Mas,
então, qual a causa de ser tão incompreendido? Pelo motivo de errar e
acertar? Por que sua decisão não pode ser um produto manufaturado?
Por que tanta resistência à sua independência?
O quadro é sombrio? Sim. Não estamos decerto a contemplar a
escuridão conradiana. Mas é necessário atenção. E é preciso se agarrar
a algo: à fé; aos pequenos gestos; à amizade; à poesia; ao farfalhar das
gotas da chuva nos ramos de uma folhagem. Assim demonstravam a altivez e a disciplina de Don Pepe, cujos ensinamentos transbordavam em
terras incas para quem quisesse ouvir ou estivesse disposto a perceber.
Assim revela a coragem de um Lewandowski, com o mesmo coração
daquele Ricardo da mitologia britânica, a abraçar a causa dos seus, ao
fim, nada mais nada menos, que a causa da independência judicial. Há,
pois, esperança. É preciso investir nela. Seres humanos não magistrados
e magistrados seres humanos. Todos!
E, no tocante a esse investimento, segue a Ajufergs seu caminho. Não
sem óbices. Não sem conquistas. Sempre apostando no futuro; apostando
numa nação mais justa e solidária; apostando na independência da magistratura, convicta de que juiz independente é pressuposto do exercício
de qualquer democracia e de consolidação do Estado de Direito. Assim,
sigamos em frente; sigamos! Na busca do possível, mas também – por
que não? – do irrealizável...
El Derecho Procesal Constitucional
en el Perú
Edgardo Torres López
Presidente de la Sala Civil Permanente de la Corte Superior de Justicia de Lima Norte
I Antecedentes
La Constitución Política de un país es la norma rectora y base del
reconocimiento de derechos y deberes fundamentales; de la organización
jurídica de la nación, y de las garantías esenciales, para el respeto de los
derechos humanos; base de la paz, la libertad, la justicia y el desarrollo
de las personas y de los pueblos.
Imaginémonos que no exista Constitución Política, o existiendo
no se respete las garantías esenciales, de vida, libertad, justicia legal y
debido proceso, en el marco del ordenamiento jurídico.
Las consecuencias serían sencillamente las siguientes: Injusticia,
dictadura, desorden, abuso del derecho y la opresión de los débiles, por
parte de los fuertes y los poderosos.
La Constitución Política del Estado, que contemplan las garantías
mínimas en una sociedad civilizada, cabalmente tiene la finalidad de
proteger a los ciudadanos de abusos y atropellos, brindándoles el derecho de usar recursos expeditivos, eficaces y efectivos para prevenir o
reparar dichas injusticias.
Es el caso de los procesos constitucionales de habeas corpus que
defiende la libertad y los derechos conexos; y el amparo, que protege los
demás derechos previstos por la Constitución Política; el habeas data,
que posibilita la obtención de información legal, salvo la que tenga un
carácter íntimo, o involucre la seguridad del Estado.
II El control de la Constitucionalidad
En la historia del derecho constitucional, la Declaración de Independencia de los Estados Unidos de 1776; y la Declaración Francesa de
los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789, sustentan proba-
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Revista da AJUFERGS / 09
blemente la 2 más grandes Constituciones que sirven de modelo en el
mundo democrático.
La Constitución de Estados Unidos de América de 1787, que afirma
el principio de respeto a la Ley de Leyes; y la Constitución Francesa
de (1791), que propugna el principio de legalidad, limitando el poder
de los jueces.
Respecto al principio de legalidad, en la Constitución Francesa se
les advierte a los jueces, que no juzguen sobre cuestiones de gobierno y
administrativas; que no intervengan en competencia del Poder Legislativo. Asimismo se les recuerda que serán supervisados por unos comisarios
del rey, con facultades para denunciarlos ante el Tribunal de Casación,
en caso de excesos de poder judicial; de allí viene la expresión que los
jueces deben ser únicamente la “boca de la ley”.
En norteamericana con un mayor espíritu liberal, surge en 1803 el
famoso caso que resolvió el Presidente del Tribunal Supremo John Marshall, William Marbury contra James Madison, que reafirmó el Control
Judicial de Constitucionalidad de las Leyes.
Por el control constitucional se inaplican las normas que se oponen
al texto claro o sentido de la Constitución Política; a esto se denomina
el control judicial difuso; por el que todo juez tiene la facultad de no
aplicar en todo o en parte una ley, que vulnera la Constitución Política
del Estado.
En Francia, en cambio se consideró por varias decenas de años, que
por respeto al principio de legalidad, las leyes no deberían estar sujetas
a ningún control.
Sin embargo en la práctica se advirtió algunos casos de error o
injusticia provenientes de normas del Poder Legislativo.
Es entonces que Hans Kelsen propone en Europa un control concentrado de la constitucionalidad de las leyes.
En 1920 concibe un órgano de control con esa finalidad; surgen
de ese modo los Tribunales Constitucionales, como órganos competentes para interpretar la Constitución Política en forma concentrada; a
diferencia del control difuso establecido en la Constitución de Estados
Unidos de América.
El Derecho Procesal Constitucional en el Perú
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Con los nuevos conceptos de control de constitucionalidad, la
posición de Francia cambia en 1958 y es a partir de allí que la ley se
subordina a la Constitución; surge el control de constitucionalidad de
las leyes, como competencia del Consejo Constitucional.
III El Derecho Procesal Constitucional
Es ampliamente conocido en el mundo jurídico, que el jus filosofo
Hans Kelsen, sentó las bases de la nueva disciplina denominada derecho
procesal constitucional; posteriormente los conceptos de Kelsen fueron
seguidos y enriquecidos por grandes juristas como Piero Calamandrei,
Francisco Carnelluti, Mauro Cappelleti, y Francisco Fernández Segado,
entre otros.
La doctrina contemporánea coincide en afirmar que el uso específico
del concepto de Derecho Procesal Constitucional surgió en la década de
1940, por estudios del jurista español Niceto Alcalá Zamora y Castillo,
en diversas obras escritas durante su exilio en Argentina y México.
Años más tarde, y siguiendo éste criterio, el jurista mexicano Héctor
Fix-Zamudio propuso la existencia del Derecho Procesal Constitucional
como una disciplina jurídica especializada.
En su Tesis de Licenciatura en Derecho (1955) denominada “La
garantía jurisdiccional de la Constitución mexicana (ensayo de una
estructuración procesal del amparo)”, sostiene que: “Existe una disciplina instrumental que se ocupa del estudio de las normas que sirven de
medio para la realización de las disposiciones contenidas en los preceptos constitucionales, cuando estos son desconocidos, violados o existe
incertidumbre sobre su significado; siendo esta materia una de las ramas
más jóvenes de la ciencia del Derecho Procesal, y por lo tanto, no ha sido
objeto todavía de una doctrina sistemática que defina su verdadera naturaleza y establezca sus límites dentro del inmenso campo del Derecho”;
IV El Derecho Procesal Constitucional en Perú
La Jurisdicción Constitucional está formada por el conjunto de mecanismos procesales destinados a hacer cumplir la Constitución Política
del Estado, en cuanto ordena que la defensa de la persona humana y el
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Revista da AJUFERGS / 09
respeto a su dignidad son el fin supremo de la sociedad y el estado. Así
como el respeto a los derechos y garantía fundamentales.
La experiencia jurídica orienta que la doctrina, normas y jurisprudencia sobre procesos constitucionales, tienen un objeto de estudio
propio y constituyen una disciplina jurídica autónoma a las normas
sustantivas y normas procesales de otras especialidades.
El ordenamiento procesal se relaciona al ordenamiento sustantivo;
para cada código sustantivo, corresponde un código adjetivo; siendo que
a las Garantías Constitucionales, es decir el Habeas Corpus, El Amparo,
el Habeas Data; les corresponde un ordenamiento procesal constitucional.
Por eso en cumplimiento del artículo 200 de la Constitución Política
de la República de Perú, de 1993, que ordena una ley orgánica regula
el ejercicio de las garantías y los efectos de la declaración de inconstitucionalidad o ilegalidad de las normas; el año de 2004, se promulgó la
Ley 28237 sobre Código de Derecho Procesal Constitucional del Perú
considerado el primer Código Procesal Constitucional en Iberoamérica
y el mundo hispánico.
V El Código Procesal Constitucional Peruano
El anteproyecto de Código Procesal Constitucional Peruano, fue
propuesto por los reconocidos juristas Domingo García Belaúnde, Juan
Monroy Gálvez, Arsenio Oré Guardia, Jorge Danós Ordóñez, Samuel
Abad Yupanqui y Francisco Eguiguren Praeli.
En octubre de 2003, el Congreso lo convirtió en proyecto legislativo
de amplia acogida, que en lo esencial fue aprobado.
El 31 de mayo de 2004, se promulgó la Ley 28237, Código Procesal Constitucional Peruano, dando inicio a un nuevo periodo de la
historia constitucional que ordena en forma sistemática, el conjunto de
los procesos constitucionales y los principios y derechos procesales que
los sustentan.
El nuevo Código Procesal Constitucional es un instrumento, que
propone una cabal concepción para el ejercicio de los procesos constitucionales, sean estos de Garantía Constitucional (Procesos de Habeas
Hábeas, Proceso de Amparo, proceso de Habeas Data, Proceso de Cum-
El Derecho Procesal Constitucional en el Perú
17
plimiento) o de Control Constitucional (Proceso de Inconstitucionalidad,
Proceso de Acción Popular y Competencial).
En el Título Preliminar, se establecen como principios procesales
la dirección judicial del proceso, el impulso de oficio, la gratuidad, la
economía, la inmediación y socialización procesales.
Se impone al juez y al Tribunal Constitucional la obligación de adecuar las formalidades al logro de los fines perseguidos por los procesos
constitucionales; asimismo, se fijan criterios para el pago de costas y
costos del proceso.
En el Código, se consagra la aplicación de principios específicos
como de gratuidad en la actuación del demandante; dirección judicial
del proceso; inmediación que significa que todas las actuaciones se
realizan ante el juez, siendo indelegable esta función bajo sanción de
nulidad; economía que implica que el proceso se realiza procurando que
su desarrollo ocurra en el menor número de actos procesales; por dicho
motivo en los procesos constitucionales no existe etapa probatoria y los
plazos deben ser cortos.
Respecto a los medios probatorios proceden aquellos que no requieren actuación, salvo que el juez lo crea indispensable y siempre que no
se afecte la duración del proceso.
En los procesos constitucionales sólo se adquiere la autoridad de
cosa juzgada, la decisión final que se pronuncie sobre el fondo.
Son inadmisibles las defensas previas en el proceso de hábeas corpus
y proceso de inconstitucionalidad.
Los jueces de paz, son competente para conocer los procesos de
hábeas corpus cuando la afectación de la libertad se realice en lugar distinto y lejano o de difícil acceso de aquel en que tiene su sede el juzgado
donde se interpuso la demanda.
El juez constitucional puede dictar orden perentoria e inmediata, para
que el juez de paz del distrito en que se encuentre el detenido, cumpla
en el día, bajo responsabilidad, con hacer las verificaciones y ordenar
las medidas inmediatas para hacer cesar la afectación.
El Código Procesal Constitucional considera que son derechos
protegidos por el hábeas corpus no ser objeto de vulneración alguna a
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Revista da AJUFERGS / 09
la libertad, prohibiendo terminantemente las prácticas de terrorismo de
Estado o terrorismo de grupos subversivos; y garantizando los derechos
constitucionales conexos a la libertad individual como el debido proceso
y la inviolabilidad del domicilio.
El hábeas corpus, se puede interponer verbalmente, en forma indirecta o por correo, a través de medios electrónicos de comunicación o
similares, cautelando el derecho a accionar en cualquier forma al alcance
del agraviado o sus familiares.
Contra la resolución de segundo grado que declara infundada o
improcedente la demanda, procede el recurso de agravio constitucional
ante el Tribunal Constitucional, siendo ello en la denominación de dicho
recurso, ya que anteriormente se denominaba recurso extraordinario.
Las sentencias del Tribunal Constitucional establecerán un precedente vinculante, siempre y cuando el Tribunal así lo disponga, pudiendo
el propio Tribunal apartarse de dicho procedente expresando los fundamentos justificativos.
Si la sentencia declara fundada la demanda, se ordenará las costas
y costos que el Juez establezca a la autoridad, funcionario o persona
demandada. Si el amparo fuese desestimado por el Juez, éste podrá
condenar al demandante al pago de costas y costos cuando estime que
incurrió en manifiesta temeridad. En los procesos constitucionales, el
estado puede ser condenado al pago de costos.
Los jueces deberán de pronunciarse sobre el fondo del asunto en
los procesos, aunque el daño devenga en irreparable de los derechos supuestamente violados, si existen elementos de prueba de actos delictivos
deberá de poner en conocimiento del Ministerio Público y pronunciarse
sobre daños y perjuicios, precisando el alcance de su decisión.
El Código Procesal Constitucional introduce una novedad respecto
a la finalidad de la acción de amparo.
Así, el amparo no sólo servirá para reponer las cosas al estado
anterior a la amenaza o violación de los derechos constitucionales por
acción u omisión de cumplimiento obligatorio.
Además será procedente en aquellos casos en que la agresión o
amenaza cese después de presentada la demanda o cuando la agresión
se vuelva irreparable.
El Derecho Procesal Constitucional en el Perú
19
El amparo procede contra resolución judiciales firmes, cuando
estas han sido dictadas con manifiesto agravio a la tutela jurisdiccional
efectiva, que comprende el acceso a la justicia y el ejercicio pleno del
debido proceso.
VI Deficiencias advertidas en el Código Procesal Constitucional
El balance de la vigencia del Código Procesal Constitucional en
el Perú, es favorable. Uno de los méritos principales es que se tiene
un conjunto ordenado de normas que facilita la labor de la jurisdicción
constitucional y posibilita la tutela jurisdiccional efectiva, la defensa de
la Constitución y los derechos fundamentales.
Empero como toda obra humana el Código Procesal Constitucional
Peruano tiene omisiones y deficiencias, de concepción y de aplicación,
que pueden subsanarse.
En un estudio preliminar consideramos las siguientes:
1. Las notorias demoras en la resolución de los procesos constitucionales; como el habeas corpus y el amparo, que en determinados casos duran largos meses y hasta años; lo que a veces
hace ilusoria la defensa del derecho constitucional.
2. Una de las razones de estas demoras, es que no existe una jurisdicción de primera y segunda instancia especializada en materia
constitucional; los jueces penales (para el caso habeas corpus)
y los jueces civiles, (para los amparos), son los encargados de
dirigir y tramitar los procesos constitucionales.
3. Se ha dado momentos en que el Tribunal Constitucional, como
máximo intérprete de la Constitución y máxima instancia de los
procesos constitucionales, se ha visto sobresaturado de procesos;
probablemente por este motivo, en la historia se registran casos
de sentencias contradictorias, inconsistentes o que notoriamente
invadieron competencia del Poder Judicial o del Jurado Nacional
de Elecciones.
4. En sus inicios el Tribunal Constitucional Peruano, expedía sentencias, como recopilación de tratados o ensayos doctrinarios,
que por su extensión y letra diminuta en el Diario Oficial, era
20
Revista da AJUFERGS / 09
prácticamente difícil de leer. El Tribunal Constitucional del año
2015, ha superado en gran parte esta deficiencia. Las sentencias
debería ser constitucionales, claras, concretas, congruentes y
concisas.
5. En los juzgados, se presentan casos de uso de plantillas o modelos preconcebidos, para rechazar en forma liminar los procesos
constitucionales; solo para admitir a trámite y lograr el acceso
a la justicia constitucional, en los casos que se justifica; se han
dado casos de demoras mayores a los 6 u 8 meses.
6. No existe una legislación respecto al mal uso de los procesos
constitucionales; por ejemplo el indebido uso del habeas corpus, para enervar o suprimir investigaciones sobre narcotráfico,
lavado de activos u otros graves delitos; que en algunos casos
lamentablemente han cumplido su ilegal propósito.
7. No existe una regulación expeditiva sobre los procesos constitucionales realmente urgentes, que bien podría reducirse en
demanda, contestación y sentencia, en un plazo no mayor a los
30 días.
8. No existe una regulación sobre el uso del expediente electrónico en los procesos constitucionales de amparo, que resulta
necesario, a efecto de ampliar el acceso a la justicia y brindar
mayores facilidades a las víctimas de agravios a sus derechos
constitucionales.
9. No existe un registro procesal único, sobre demandas de habeas
corpus y amparo; existiendo casos, en que la misma demanda,
es presentada a varios juzgados y distritos judiciales de todo el
país.
10.En casos excepcionales, para la defensa de los derechos constitucionales, se debería permitir el uso de formatos, y difundir
las demandas electrónicas; con contestación y sentencia de la
misma forma.
Centenário do Ministro Rodrigues de
Alckmin
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
Desembargador Federal do TRF da 4ª Região
“Como é do conhecimento da Casa, faleceu o nosso eminente
e já tão saudoso Ministro Rodrigues Alckmin, que há um ano
também desempenhava as altas funções de Presidente do Tribunal
Superior Eleitoral.
Recentemente, completara seis anos de exercício entre nós,
marcando sua atuação pela independência, inteligência, dedicação,
alto preparo jurídico e profundo senso das elevadas funções de
juiz, notadamente, desta Suprema Corte. Afável, compreensivo,
carinhoso por vezes, era o amigo de todas as horas. Conviver com
Alckmin era um privilégio e um prazer.
Foi, em tudo, um dos maiores entre os que por aqui passaram.”
Ministro Carlos Thompson Flores
(In Relatório da Presidência Thompson Flores – 1978, p. 257)
Parafraseando ilustre diplomata brasileiro, a partida do Ministro
Rodrigues de Alckmin, nas primeiras horas do dia sete de novembro de
1978, no apogeu da produtividade, pareceu um cruel desperdício, privando a Suprema Corte de um dos juízes mais notáveis de sua História.1
Nos seis anos de sua fecunda judicatura no Supremo Tribunal
Federal, legou-nos uma rica obra, composta de primorosos julgados,
muitos convertidos em súmulas, somada à sua enorme qualificação
intelectual.
Já foi dito, e não constitui originalidade, que se há setor em que os
brasileiros não tenham por que se sentir inferiorizados a quaisquer outros
1 Merquior, José G. O Liberalismo Antigo e Moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações
Editora, 2014. p. 19.
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Revista da AJUFERGS / 09
povos é a Magistratura, bastando mirar no passado e veremos desfilar
uma galeria de juízes notáveis que, honrando a toga, dignificaram a
Justiça Brasileira.
Entre eles, avulta a figura do Ministro Rodrigues de Alckmin, cujo
centenário de nascimento é comemorado no corrente ano.
Paulistano de nascimento, descendente dos velhos troncos do
Brasil que remontam a Baltazar de Godoy, aristocrata castelhano que
veio a São Paulo no final do século XVI, e cujo nome abre o título dos
“Godoys” na já clássica Genealogia Paulistana, de autoria do Historiador Silva Leme.
O Ministro Rodrigues de Alckmin era filho do Professor André
Rodrigues de Alckmin, educador emérito, até hoje reverenciado pelas
suas altas qualidades morais e intelectuais.
Os homens deste país, disse-o Oswaldo Aranha, têm o traço da sua
geografia natal.2
Esse torrão abençoado deu ao país, no Império e na República,
figuras eminentes que, na política, na diplomacia, na magistratura e no
clero tanto o enalteceram e honraram.
Obedecendo a esta destinação, o retraído e discreto José Geraldo
Rodrigues de Alckmin, após realizados os seus primeiros estudos em
sua terra natal, Guaratinguetá, em 1933, foi para a Capital do Estado,
cursar Direito na tradicional Faculdade de Direito do Largo do São
Francisco, onde começou a dar mostras de seus dotes de inteligência
e cultura.
Colou grau como bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na turma
de 1937, da velha Academia.
Após breve período dedicado à advocacia, ingressa mediante concurso na Magistratura Paulista, iniciando, em 1940, a sua notável trajetória que culminaria, em 1972, com a cátedra de Ministro do Supremo
Tribunal Federal.
2 Prefácio de Oswaldo Aranha à obra de Virgílio A. de Mello Franco, Outubro, 1930.
4. ed., Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1931. p. 13.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
23
O critério do merecimento, que sempre o distinguiu, levou Rodrigues de Alckmin a percorrer todos os degraus da carreira como, na
Capital, a Vara Privativa dos Feitos da Fazenda Nacional, os cargos
de Juiz Substituto de Segunda Instância, Juiz e Presidente do Tribunal
de Alçada, Desembargador do Tribunal de Justiça e Corregedor-Geral
da Justiça.
Ao mesmo tempo, com a mesma maestria que dignificou a Magistratura, seguiu o exemplo paterno, dedicando-se ao magistério, lecionando as cadeiras de Direito Civil e Processo Civil nas Faculdades
de Direito de Taubaté, de São Bernardo do Campo e da Universidade
Mackenzie.
Ademais, em 1956, anota a edição brasileira dos volumes VIII, tomos I e II, e XIII, tomo II, do “Tratado de Direito Civil”, do consagrado
civilista português Cunha Gonçalves.
Em 1957, vêm à luz as suas anotações à obra “A Destinação do
Imóvel”, do Ministro Philadelpho Azevedo, onde são revelados os
seus profundos conhecimentos de Direito Civil e Registros Públicos,
aproveitados pelo legislador, pois colaborou ativamente na elaboração
do anteprojeto da nova Lei dos Registros Públicos, a Lei nº 6.015, promulgada em 31 de dezembro de 1973.
Com a aposentadoria do Ministro Moacyr Amaral Santos, é nomeado
Rodrigues de Alckmin, em 3 de outubro de 1972, ministro do Supremo
Tribunal Federal, em vaga que desde 1927 vinha sendo preenchida por
consagrados juristas paulistas.
Chegou ao Supremo Tribunal Federal com larga experiência na arte
de julgar, sempre coroada do maior êxito, revelando alto valor intelectual e moral e que, na Suprema Corte, se consolidaria esplendidamente,
impondo-se ao respeito e à admiração de seus pares e jurisdicionados.
Ao responder às homenagens que lhe foram prestadas quando de sua
posse, disse Rodrigues de Alckmin estas palavras, verdadeira profissão
de fé como Magistrado e que resumem o credo de sua vida:
“Da profunda introspecção com que procuro descobrir quais as
razões que sensibilizaram e me fizeram largamente beneficiário de
vossa bondade, nada colho senão dois pequenos méritos.
24
Revista da AJUFERGS / 09
Levado à magistratura paulista, atendendo ao apelo irresistível
em que se consolidou a minha vocação, a ela dediquei o profundo
respeito às funções e à devoção ao trabalho que só é exigir aos
seus juízes.
Acabei por compreender, como o velho Ransson, que é o
quotidiano que forma, pouco a pouco, a alma do juiz. É no contato
das realidades profissionais que o magistrado aprende a vencer as
tendências do temperamento, para que as decisões não pequem pela
falta de serenidade; que o ânimo se enrijece, salvaguardando-lhe a
independência, para que haja imparcialidade nos julgamentos; que
o magistrado apreende e examina os vários matizes da realidade
social, que não cabe, totalmente estruturada, nas leis.
Procurei, sempre, viver essas lições do quotidiano, e amar o
trabalho, porque na frase de Soler, o trabalho que se faz sem amor
tem todos os caracteres de uma vil escravidão.
É esse respeito, é esse amor pelas funções do Poder Judiciário
que renovam o ânimo com que, já na altura da vida em que os
marcos do caminho projetam sombras do poente, inicio a derradeira
caminhada.” 3
No Pretório Excelso, o insigne juiz ratificou o alto conceito que desfrutava em seu Estado, ali permanecendo cerca de seis anos, com intensa
dedicação à nobre causa da Justiça, sendo as suas decisões impregnadas
de estudo, imparcialidade, experiência, guardando a fidelidade à Lei,
atento à célebre advertência de Lord Devlin: “the discretion of the judge
is the first engine of tyranny”. 4
Com efeito, na judicatura do Ministro Rodrigues de Alckmin o
intérprete não cria prescrições, nem posterga as existentes, mas deduz a
nova regra para o exame de um caso concreto do conjunto das disposições
vigentes, consentâneas com o progresso geral da civilização, obedecendo
ao preceito de Paulo no Digesto: non ex regula jus sumatur, sed ex jure,
quod est, regula fiat.
3 Homenagens prestadas aos Ministros que deixaram a Corte no período de 1977 a 2002.
Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2002. p. 50.
4 Devlin, Patrick. The Judge. Chicago: University of Chicago Press, 1979. p. 201.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
25
Longo seria, nesse momento, arrolar os votos e intervenções mais
importantes proferidas pelo Ministro Rodrigues de Alckmin, todos revelando a sua cultura, a larga experiência e o descortino do magistrado
exemplar.
Permito-me, aqui, reproduzir o depoimento do eminente Ministro
Moreira Alves, quando da homenagem prestada pela Corte Suprema a
Rodrigues de Alckmin, verbis:
“Chegava Rodrigues de Alckmin a este Tribunal precedido
da fama de Magistrado notável que, em São Paulo, ao longo dos
anos, conquistara por suas raras qualidades de inteligência, cultura,
honradez e trabalho.
Aqui, desde logo, impôs-se à admiração de seus Colegas.
Inteligência lúcida e lógica, aliada a sólidos conhecimentos
dos diferentes ramos de Direito e a ampla cultura humanística,
possuía Rodrigues de Alckmin os dois atributos que distinguem
o verdadeiro jurista: a capacidade de discernir, ainda nas questões
mais intrincadas, os acidentes e o essencial, e a de, adstringindo-se
a este, encontrar, no ordenamento jurídico, a norma adequada à
justa composição da lide.” 5
Os votos que proferiu ao longo de seus anos no Pretório Excelso, pela
riqueza de seu conteúdo, constituem uma antologia de lições esplêndidas,
tanto na forma como no conteúdo.
Alguns poucos exemplos bastam para confirmar a verdade da asserção.
Desde o início de sua magistratura em São Paulo, Rodrigues de
Alckmin já afirmava a tese da necessidade de o Poder Judiciário, ao
proceder ao controle da legalidade dos atos administrativos, perquirir o
motivos desses atos.
A propósito, ao relatar o Recurso Extraordinário nº 82.355-PR,
discorreu, verbis:
“Eu diria, apenas, que, no caso, verificar se houve, ou não, o
fato que constitui pressuposto da punição não é verificar se esta foi
justa ou injusta; é verificar se foi, ou não, legal, porque a lei exige
a existência do fato para a aplicação de sanção.
5 Op. cit., p. 50.
26
Revista da AJUFERGS / 09
Tenho, assim, como de absoluta legitimidade o exame, pelo Poder
Judiciário, da prova dos fatos imputados ao funcionário, com a conclusão de que a punição disciplinar, em face dessa prova, é legal, ou não.
O exame da legalidade não se confunde com a apreciação das meras
formalidades do processo administrativo. E no ato demissório, não há
mérito excluído de apreciação judicial.” 6
De outra feita, discutia-se a legitimidade do § único do art. 187 do
Código Tributário Nacional diante do art. 9º, I, da Emenda Constitucional nº 1/69.
Eis como propugnou, nesse particular, o desfecho dessa intrincada
questão constitucional, verbis:
“Este texto constitucional tem raízes no art. 1º, seção 9ª, da Constituição Norte-Americana, em que estipulava que ‘no preference
shall be given by any Regulation of Commerce or Revenue to the
Ports of one State over those of another: no shall Vessels bound to, or
from, one State, be obliged to enter, clear or pay Duties in another’.
O texto constitucional brasileiro, de 1891, proposto, vedava ao
governo federal criar, de qualquer modo, distinções e preferências
em favor dos portos de uns contra os de outros Estados mediante
regulamentos comerciais ou fiscais. Eliminou-se esta última cláusula. E os comentadores, no geral (Aristides Milton, A Constituição
do Brasil, p. 43; Ruy Barbosa, Comentários à Constituição Federal
Brasileira, ao art. 8º; Barbalho, Constituição Federal Brasileira; 2ª
ed., p. 49) acentuaram que a proibição visava a assegurar a igualdade
entre os Estados.
A Constituição de 1934 proibiu que se criassem preferências
em favor de uns contra outros Estados. A Carta de 1937 proibiu
que se criassem desigualdades entre os Estados e Municípios e a
decretação, pela União, de impostos que importassem discriminação
em favor dos portos de uns contra os de outros Estados.
Em 1946 e em 1967, as Constituições se referiram à vedação de
serem criadas preferências em favor de uns contra outros Estados
ou Municípios.
Mas a EC nº 1/1969 deu outra redação ao preceito. Dispôs:
6 In RTJ 81, p. 163.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
27
À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é
vedado:
I — criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor
de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra.
Daí a pretensão a que, já agora, proibidas preferências, os
créditos da União, Estados e Municípios se satisfaçam igualmente,
pro rata, no insuficiente patrimônio dos devedores.
Parece-me, com a devida vênia, que essa substancial mudança de rumo na tradição de nosso direito (que não parificava tais
créditos fiscais), não decorre da redação do art. 9º, inciso I, que
foi tecnicamente menos preciso mas não visou a dilargar a área da
igualdade dos Estados e dos Municípios, em tema de créditos fiscais,
estendendo-a a todos e à União.
Aliás, proibindo se criem preferências entre essas pessoas de
direito público, a lei, em sua letra, não abrangeria, como no caso,
prioridade a favor de créditos de autarquia federal, a que se não
refere.
Creio, pois, que o exato sentido da norma é o de impedir que
se criem desigualdades entre o Distrito Federal e os Estados, ou
desigualdade entre Municípios, favorecendo a alguns em detrimento
de outros, colocados no mesmo plano em face da Constituição.
Dar-lhes, porém, prioridade em concurso creditório, dados os
diferentes níveis em que se situam, no sistema constitucional, a
União, os Estados e os Municípios, não põe em risco a igualdade
na Federação, que o texto visa a preservar.” 7
Por outro lado, quando do julgamento da Representação nº 961-RJ,
firmou importante precedente quanto aos pressupostos do controle de
constitucionalidade em abstrato, verbis:
“Quando o texto constitucional permite a Representação ou
ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo ou lei federal ou estadual estabelece a competência, tendo à vista o órgão
(Poder Legislativo, Governador) que editou o ato, não a sede ou
âmbito espacial de eficácia das normas. A não ser assim, quando
se impugnasse ato praticado pelo próprio Poder Executivo, ou pelo
Poder Legislativo do Estado, com eficácia restrita a um município,
7 In RTJ 80, p. 815-6.
28
Revista da AJUFERGS / 09
o Poder Judiciário do Estado seria o competente para apreciar-lhe
a constitucionalidade. Mas é evidente que a Constituição não quis
conceder ao Poder Judiciário do Estado apreciar a impugnação
feita a leis e a atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo do
mesmo Estado, por óbvias razões entre as quais figuram possíveis
influências locais. Preferiu entregar essa apreciação ao Supremo
Tribunal Federal. Assim, não é pela extensão da aplicação da norma,
mas pelo órgão de que emana, que se estabelece a competência do
Supremo Tribunal Federal.” 8
Modelo de síntese e elegância encontra-se no voto que proferiu na
Representação nº 927-SP, oportunidade em que o Supremo Tribunal
Federal fixou a exata exegese da regra da paridade de vencimentos prevista nos artigos 98 e 108, § 1º, da Constituição de 1967, na redação da
Emenda Constitucional nº 1/69.
Nessa ocasião, afirmou, verbis:
“A regra da paridade, inserta na Constituição é, sem dúvida,
inspirada em alto sentido de Justiça. Era de todo desarrazoado que
numerosos funcionários públicos, exercentes de funções de escriturário nos quadros do Executivo porque numerosos e mais afastados
das fontes do Poder, percebessem vencimentos menores enquanto
funcionários outros, de outros Poderes ou de corpos coletivos que
tinham a iniciativa de propor-lhes a fixação de vencimentos, os
recebiam muito maiores.
É certo que a diferença de retribuições procurava diferentes
denominações, que as justificassem. Correspondia, entretanto, a
um princípio de Justiça, quando não a uma imposição de caráter
ético, fossem remunerados igualmente cargos de atribuições iguais
ou assemelhadas, nos quadros dos três Poderes.
Daí, estabelecer, a Constituição Federal, a regra da paridade.” 9
Finalmente, ocorre-me mencionar o pronunciamento histórico que
fez no julgamento da Representação nº 881-MG, em 13 de dezembro de
1972, quando a Suprema Corte, ao dirimir relevante questão constitucional, assentou que, para o efeito do acesso ao cargo de Desembargador, o
8 In RTJ 82, p. 666.
9 In RTJ 82, p. 39.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
29
advogado e o membro do Ministério Público componentes do Tribunal de
Alçada conservam a mesma categoria que proporcionou o seu ingresso
neste Tribunal.
O seu primoroso voto, após rememorar a história da criação do
primeiro Tribunal de Alçada do Brasil, consignou, verbis:
“Quando os que cuidaram de estruturar esse primeiro Tribunal
de Alçada, tiveram de examinar os textos da Constituição, encontraram apenas a autorização para que os Estados criassem Tribunais
de Alçada inferiores. E o legislador constituinte não foi além. Não
estruturou esses Tribunais. Não disse como se inseririam eles no
quadro da organização judiciária dos Estados e deixou assim a
critério do legislador estadual preencher essas lacunas.
Três hipóteses, então, se apresentaram. A primeira seria a de
buscar a conciliação do texto constitucional que permite a criação de
Tribunais de Alçada com o texto constitucional que estabelece uma
carreira na magistratura vitalícia, com ingresso através de concurso,
com promoção alternada por merecimento e antiguidade de entrância
a entrância, até que, da mais alta entrância se seguisse ao Tribunal
de Justiça. Pareceu que seria inadequado classificar Tribunais de
segunda instância como entrância que, tradicionalmente, é a denominação com que se classificam Comarcas, e então se poderia —
conciliação rigorosamente ortodoxa — chegar à conclusão de que
os Tribunais de Alçada seriam fim de carreira. Nela ingressariam
membros do Ministério Público e advogados, pelo quinto, e juízes
em 4/5, e aí se encerraria a carreira desses magistrados, já que não
haveria uma entrância para permitir acesso ao Tribunal de Justiça.
Esta solução, que nenhum texto constitucional repudia e ainda
hoje poderá ser adotada, oferecia notáveis inconvenientes: levaria
aos Tribunais de Alçada juízes desestimulados de promoção aos
Tribunais de Justiça; levaria, também, aos Tribunais de Alçada,
“juristas de menor tomo”, do Ministério Público e da advocacia;
outros se recusariam a ingressar nos Tribunais de Alçada, porque
aspirariam, como juristas melhores, o acesso ao Tribunal de Justiça.
E esses Tribunais de Alçada, já, hoje, têm uma altíssima função,
porque, embora na Organização Judiciária se considerem Tribunais
inferiores aos Tribunais de Justiça, não são Tribunais que se limitam
a julgar causas de pequeno valor. A autorização constitucional,
hoje, permite que se lhes atribuam causas de altíssima relevância,
como julgamentos de todas as questões fiscais e julgamentos de
30
Revista da AJUFERGS / 09
desapropriações. E, evidentemente, não poderiam ser Tribunais de
qualificação inferior, constituídos de juízes desestimulados, ou por
terem, seus membros, menores qualidades intelectuais.
A ideia, portanto, de transformar o Tribunal de Alçada em fim
de carreira, não parecia muito feliz.
A outra, seria a de fazer com que os juízes do chamado
“quinto constitucional”, que ingressassem no Tribunal de Alçada,
passassem a pertencer à magistratura. Mas, aí, haveria texto da
Constituição que se oporia a esse critério. Haveria algo de inconciliável em considerar que há uma carreira de magistratura, que
4/5 dos Tribunais devem compor-se de membros desta carreira da
magistratura — e carreira pressupõe acesso de degrau a degrau
— e considerar que nela ingressavam, pelo último posto, juízes
que não tivessem participado da carreira. O cargo preenchido
pelo quinto constitucional não era, evidentemente, um cargo de
carreira. A ela não se chegava por ascensão de um posto inferior.
Portanto, considerar que, no ingresso aos Tribunais de Alçada,
ocorria ingresso na carreira, não parecia solução acertada, porque
não se ajustava à ideia de promoção de entrância a entrância. E
entrância — disse e repito — é denominação que se reserva à
classificação de juízes e comarcas.
Pensou-se, então, numa solução que não repugnava ao texto
constitucional e que parecia conciliar todas as dificuldades, fazendo que os Tribunais de Alçada fossem, realmente, Tribunais
de alto nível e pudessem permitir o acesso ao Tribunal de Justiça.
Fez-se, na interpretação da Constituição, possível a promoção dos
juízes dos 4/5 do Tribunal, que são de carreira, por antiguidade e
por merecimento ao Tribunal de Justiça. E, quanto aos juízes que
vierem do quinto constitucional, juízes oriundos do Ministério
Público e da advocacia, poderiam eles, a par de outros que têm a
mesma experiência específica de advogados e promotores, galgar o
Tribunal de Justiça, no quinto reservado aos membros da advocacia
e do Ministério Público.
Esta solução afastava todos os outros inconvenientes. Esta
solução recebeu apoio de advogados de São Paulo e, de larga data,
vem sendo adotada, com gerais aplausos e com óbvia utilidade.” 10
10 In RTJ 66, p. 647-8.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
31
Muitos de seus votos se acham compendiados na Súmula e passaram
a constituir a jurisprudência predominante do Pretório Excelso.
É o que ocorreu com a Súmula 562 que teve por precedente o Recurso Extraordinário nº 79.663-SP (Pleno).
Nesse julgamento, prevaleceu o seu douto voto, publicado na RTJ
79/520-1, no qual refutou a tese dos que sustentavam que a atualização
monetária na reparação do ato ilícito violava o princípio nominalista, face
à ausência de lei, na época, que autorizasse o reconhecimento, nesses
casos, da correção monetária.
Eis o seu pronunciamento, pleno de lições:
“Ora, a regra de direito manda reparar, e reparar é dar integral
satisfação ao lesado. É recompor-lhe, com o pagamento da indenização, o desfalque patrimonial que sofreu. Reparação total. Recordo
que, antes da regra do art. 64 do C. Pr. Civ./1939, em sua primitiva
redação, que estabeleceu a responsabilidade por honorários de
advogado nas demandas procedentes, fundadas em dolo ou culpa,
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal mandava pagar tal
verba, sem cuidar da existência, ou não, de específico texto de lei
relativo a tal sucumbência: bastava-lhe a consideração de que a
indenização deve ser completa, e que não o seria se o prejudicado
tivesse o dispêndio dessa verba.
Então, se por circunstâncias próprias dos tempos presentes, os
valores de bens e serviços rapidamente acrescem, entender que o
reparo somente é completo se se repuser, no patrimônio do lesado,
o valor do momento da satisfação, em nada desatende a qualquer
regra jurídica. Antes, a elas se amolda. É de lei, em casos análogos
(C. Civ., art. 1.541, 1.543) o mandamento de reembolso de valor
equivalente. É da lei que nas indenizações por fato ilícito prevalecerá
o valor mais favorável ao lesado. Não encontro, pois, vulneração
de texto legal algum com a consideração que a indenização dos
danos materiais tenha em conta o valor deles quando do pagamento.
Essa atualização legítima do valor pode fazer-se com o determinar, a sentença, que na execução dela se estime novamente o já
ultrapassado montante dos danos, ou que se atualize tal avaliação.
E também pode fazer-se, vista a existência de estimativa nos autos,
pelo mais simples meio de acolher a aplicação de índices de correção
monetária para a atualização desse valor.
32
Revista da AJUFERGS / 09
Infringe, este critério, ao princípio nominalista? Desatende ao
princípio da reserva legal para revalorização de dívidas?
Creio indisputável a negativa.” 11
São ensinamentos preciosos, que nos vêm desde o Direito Romano,
fulcrados na melhor doutrina, recolhida por Fritz Schulz, em seu Classical Roman Law, Oxford Clarendon Press, 1954, p. 610 e seguintes,
bem como Rudolph Sohm, Mestre de Leipzig, em sua consagrada obra
Lehrbuch Der Geschichte und Des Systems Des Römischen Privatrechts, 7. Auflage, Verlag von Duncker & Humbolt, Leipzig, 1898, p.
395-411.
Integri Restitutio est Reditengrandae Rei, Vel Causae Actio (Paulo, Sententiae, 1, 7, 1).
As citações poderiam se multiplicar, pois extremamente rica e fecunda é a magistratura de Rodrigues de Alckmin, sendo extenso o elenco
de matéria por ela versada.
A sua vida foi dedicada, até o último sopro de sua nobre existência,
à magistratura.
Conhecedor como poucos dos problemas que afligem o Judiciário,
empenhou-se decididamente em superar as falhas e deficiências do Poder
Judiciário, de modo a que pudesse corresponder às altas funções que lhe
cabem numa Democracia.
Eleito pelo Supremo Tribunal Federal, integrou a Comissão de Reforma do Poder Judiciário, como relator, juntamente com os Ministros
Thompson Flores (Presidente da Comissão), e Xavier de Albuquerque,
encarregada de elaborar o célebre Diagnóstico do Poder Judiciário,
até hoje considerado o mais completo estudo sobre o Poder Judiciário
Brasileiro.
Esse trabalho notável, publicado na íntegra pela Revista Forense,
v. 251, pp. 7 e seguintes, subsidiou o legislador constituinte quando da
edição da Emenda Constitucional nº 7/77 que estabeleceu a Reforma
do Judiciário.
11 In RTJ 79, p. 520-1.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
33
Para o devido registro da história do Poder Judiciário, convém recordar a introdução desse importante documento, verbis:
“A honrosa visita de cortesia do Sr. Presidente da República ao
Supremo Tribunal Federal, no dia 16 de abril de 1974, revestiu-se
do caráter de profícuo encontro entre o Chefe do Poder Executivo
e a mais alta hierarquia do Poder Judiciário, para declarações concordantes dos dois Poderes, da maior relevância para a justiça e,
portanto, para a Nação. Afirmaram-se naquele diálogo: a necessidade e oportunidade de reforma do Poder Judiciário; a disposição
de fazer o Governo do Presidente ERNESTO GEISEL o que puder
para o aprimoramento dos serviços da justiça; a conveniência de
prévia fixação, pelo próprio Poder Judiciário, do diagnóstico da
justiça, mediante o levantamento imediato dos dados e subsídios
necessários.
Em decorrência do interesse do Governo, na reforma, o senhor
Ministro ARMANDO FALCÃO entrou em entendimento com o
eminente Ministro ELOY DA ROCHA, presidente do Supremo
Tribunal Federal. Ficou assentado, nessa ocasião, que, inicialmente,
o Poder Judiciário procederia aos imprescindíveis estudos, em cada
área de atividade jurisdicional, na medida em que aos Tribunais
parecesse recomendável a ação reformadora.
2. Para desempenhar-se do encargo, foram solicitadas às justiças
especiais e à justiça comum estatísticas, informações e sugestões,
bem como a contribuição de universidades, de associações de classe,
de magistrados, advogados e outros juristas.
Os dados e as opiniões obtidos constam de noventa e quatro
volumes anexos. Foram apresentados relatórios parciais, relativos
à Justiça Federal, à Justiça Militar, à justiça do Trabalho, à justiça
Eleitoral, às Justiças dos Estados e à Justiça do Distrito Federal,
nos quais se encontram, a par de algumas observações de ordem
geral, problemas específicos das respectivas áreas de exercício
jurisdicional.
Esses relatórios parciais se consideram, pois, incorporados ao
presente, que constitui uma visão resumida dos problemas mais
graves do Poder Judiciário.
A pesquisa feita indica, sem que se precise descer a pormenores,
que a reforma da justiça, ampla e global, sem prejuízo do sistema
peculiar à nossa formação histórica, compreenderá medidas sobre
34
Revista da AJUFERGS / 09
recrutamento de juízes a sua preparação profissional, a estrutura e
a competência dos órgãos judiciários, o processo civil e penal (e
suscitará, mesmo, modificação de regras de direito material), problemas de administração, meios materiais e pessoais de execução
dos serviços auxiliares e administrativos, com aproveitamento de
recursos da tecnologia. Avultarão, na reforma, ainda, problemas
pessoais dos juízes, seus direitos, garantias, vantagens, deveres e
responsabilidades. E visará a assegurar o devido prestígio à instituição judiciária, que, no regime da Constituição, se reconhece como
um dos três Poderes, independentes e harmônicos.
3. A extensão da pesquisa realizada corresponde à ideia de que
a reforma do Poder Judiciário deve ser encarada em profundidade,
sem se limitar a meros retoques de textos legais ou de estruturas.
Quer-se que o Poder Judiciário se torne apto a acompanhar as exigências do desenvolvimento do país e que seja instrumento eficiente
de garantia da ordem jurídica. Quer-se que se eliminem delongas
no exercício da atividade judiciária. Quer-se que as decisões do
Poder Judiciário encerrem critérios exatos de justiça. Quer-se que
a atividade punitiva se exerça com observância das garantias da
defesa, com o respeito à pessoa do acusado e com a aplicação de
sanções adequadas. Quer-se que à independência dos magistrados
corresponda o exato cumprimento dos deveres do cargo. Quer-se
que os jurisdicionados encontrem, no Poder Judiciário, a segura e
rápida proteção a restauração de seus direitos, seja qual for a pessoa
ou autoridade que os ameace ou ofenda.
4. Reforma de tal amplitude não se fará sem grandes esforços.
Há dificuldades técnicas a resolver. Serão necessários meios para
corresponder a encargos financeiros indispensáveis. E há interesses
que hão de ser contrariados ou desatendidos.
Impor-se-á alteração de textos constitucionais e legais e será
mister disciplina unitária de direitos e deveres de magistrados.
É certo que a reforma poderá implantar-se por partes. Mas
determinadas medidas, que dizem com a essência dela, ou serão
preferencialmente executadas, ou não haverá, na realidade, reforma
eficaz.” 12
12 In Reforma do Poder Judiciário - Diagnóstico, Supremo Tribunal Federal, 1975, p. 11/5.
Centenário do Ministro Rodrigues de Alckmin
35
A morte veio encontrá-lo na presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em plena e fecunda atividade.
Respeitado e admirado, o seu súbito desaparecimento comoveu a
todos.
O seu grande nome encontra-se, de forma indissociável, ligado à
história judiciária nacional, não somente como um grande Juiz, mas como
um magistrado exemplar, a quem devem as letras jurídicas nacionais
notável contribuição.
Do Ministro Rodrigues de Alckmin pode-se dizer, com justeza, o
que James Boswell, em sua consagrada biografia, concluiu da vida e
obra de Samuel Johnson:
“A man whose talents, acquirements, and virtues, were so extraordinary, that the more his character is considered, the more he will
be regarded by the present age, and by posterity, with admiration
and reverence.” 13
Ao ensejo do centenário do seu nascimento, a vida e a obra do saudoso Ministro Rodrigues de Alckmin merece ser estudada e reverenciada
pelos brasileiros, sobretudo os juízes, pois à magistratura dedicou todas
as suas forças, com independência, dignidade, altivez e imparcialidade,
deixando, ainda hoje, passados tantos anos de seu falecimento, um vazio
incomensurável na sua cátedra no Supremo Tribunal Federal, seja pelo
exemplo edificante que deixou, seja pela lição do muito que pensou e
realizou como Juiz exemplar que sempre foi.
Autêntico magistrado, dedicado como poucos ao cumprimento de
sua apostolar missão, o Ministro Rodrigues de Alckmin seguiu à risca
os ensinamentos de D’Aguesseau, notável Juiz de França:
“Pouvoir tout pour la justice, et ne pouvoir rien pour soi-même,
c’est l’honorable mais pénible condition du magistrat.” 14
13 Boswell, James. Life of Johnson. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 1402.
14 In Oeuvres Choisies Du Chancelier D’Aguesseau, Librairie de Firmin Didot Frères,
Paris, 1863, p. 85.
36
Revista da AJUFERGS / 09
Só nos resta invocar, nesta oportunidade, o conhecido Salmo de
David:
“Feliz daquele que cumpre o seu dever, porque ganha, sem
dúvida, o reino do Céu e deixa, na estrada da vida, um exemplo de
retidão aos que prosseguem na caminhada até serem chamados a
prestar contas ao Senhor.”
Virtus Praestat Ceteris Rebus.
O Acesso à Justiça: enfoques
tradicional e consequencial
Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do RS
Professor da Escola Superior da Magistratura do RS
Resumo: O presente ensaio apresenta uma abordagem crítica dos
elementos identificados por enfoque tradicional do acesso à justiça.
Posteriormente, partindo de uma conceituação ampla do princípio, são
analisados alguns fatores que contribuem para o exame do seu nível de
efetividade, no âmbito do sistema judiciário pátrio. Esse enfoque analítico
será designado como consequencial.
Sumário: Introdução. 1. Enfoque tradicional. 2. Enfoque consequencial. 2.1. A economia do litígio. 2.2. A intensidade recursal. 2.3.
Acesso demasiado em prejuízo do acesso efetivo. 2.4. Desnivelamento
da distribuição da competência. 2.5. Acesso amplo e industrialização da
tutela. Conclusões. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: Acesso. Justiça. Enfoque. Tradicional. Consequencial.
Introdução
Não raro, quando se trata do tema referente ao direito de acesso à
Justiça, o problema é relacionado às variáveis concernentes à confluência do cidadão ao Poder Judiciário, seja na condição de demandante ou
na de demandado. Noutros termos, o assunto é tratado, sob o aspecto
jurídico e/ou sociológico, simplesmente como as medidas necessárias
para dispor o jurisdicionado do aparato necessário ao ingresso no Poder Judiciário. Essa compreensão pode ser designada como enfoque
tradicional da matéria.
Não obstante, é importante atentar para outra abordagem, igualmente imprescindível para a adequada compreensão do que doravante
será mencionado como acesso à justiça. É apropriado denominar essa
reflexão de enfoque consequencial. Em vez de voltar-se para os critérios
que determinam a distribuição da competência territorial, à instalação
de novos juízos ou às ferramentas processuais disponíveis para facilitar
38
Revista da AJUFERGS / 09
o acesso, cuida de apreciar questões como a efetividade necessária da
medida jurisdicional postulada ou a economia do processo, entendida
esta como os custos inerentes ao litígio judicial. Não que esses assuntos
sejam desconhecidos do profissional jurídico. Pelo contrário, alguns deles
apresentam construções práticas e teóricas bastante elaboradas. A questão
é que, embora diretamente relacionados ao problema do acesso à justiça,
são tratados de maneira compartimentada, enquanto indispensável, para
melhor entendimento, uma abordagem global ou concatenada.
De resto, ante a ausência dessa atenção, reputam-se superadas
eventuais limitações de acesso – consideração essa que termina por
se constituir em mera ficção – tão-somente pela criação e consequente
instalação de juízos. Essa realização pode cumprir com os pressupostos
do enfoque tradicional, mas permanecem longe de resolver as exigências do enfoque consequencial. A impressão é que pouco se investe, em
termos intelectuais, na intrínseca relação havida entre esses enfoques. E
o primeiro (tradicional), exatamente por descuidar do segundo (consequencial), pode restar ele próprio esvaziado.
Destarte, é essa a tímida pretensão deste ensaio: tratar de modo
correlacionado ambos os enfoques; procurar evidenciar que a adoção
de providências que assegurem apenas e tão-somente o enfoque tradicional não cumpre com o preceito de acesso à justiça; esforçar-se por
demonstrar que o descuido com políticas destinadas a atender o enfoque
consequencial resulta em esvaziamento desse comando.
Evidentemente, inexiste o intuito de considerar o enfoque consequencial mais importante que o tradicional. Este, decerto, não prescinde
daquele. Mas a recíproca também é verdadeira. O primeiro debita sua
razão de existir ao segundo. Tais assertivas já denotam que o tratamento do enfoque tradicional, por sua relevância, também exige especial
dedicação.
Nesse propósito, o ensaio principia com a análise crítica sobre
a (in)consciente identificação do cumprimento da exigência de acesso à justiça com a criação de órgãos jurisdicionais. Posteriormente,
debruça-se sobre questões que apenas aparentemente orbitam o tema
do acesso, mas que estão a ele diretamente vinculadas, contanto que se
lhe atribua uma compreensão ampla, tais como os custos implicados no
litígio e a necessária re-elaboração do sistema recursal, questões essas
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
39
mais diretas, a par de outras, indiretas ou reflexas, v.g., o ativismo e a
contenção judicial.
1 Enfoque tradicional
Consoante ressaltado anteriormente, amiúde o tema do acesso à
justiça é relacionado à disponibilidade material de ingresso do interessado no sistema judiciário, seja na condição de postulante, seja na
de postulado. Nesse norte, as abordagens da matéria inclinam-se ao
estudo e à construção de instrumentos que determinem a superação, ou
pelo menos a amenização, das resistências que impedem ou dificultam
esse exercício.
Observe-se, por exemplo, a chamada interiorização da Justiça
Federal. Inicialmente concentrada nas capitais estaduais, concluiu-se
– acertadamente – pela necessidade de sua aproximação ao jurisdicionado. Principiou-se, em resposta, o processo de capilaridade do órgão
mediante criação e instalação de varas federais pelo interior dos estados
federativos. No entanto, não houve – ou, em havendo, sem os necessários
aprofundamento e divulgação – estudos pormenorizados sobre os critérios
antecipadamente eleitos que determinaram as escolhas das localizações
e se, a posteriori, esses critérios tenham se mostrado acertados.
Essa observação não se restringe à realidade da Justiça Federal. É
apenas reflexo de critérios amplos que orientam a expansão material do
Poder Judiciário em seus mais diversos órgãos e instâncias. Critérios que
se aplicam tanto à criação de varas das justiças estaduais, do Trabalho,
Eleitorais ou Militares, quanto à de tribunais de justiça descentralizados
ou que se dedicam a determinadas causas pela divisão de competência,
como nos casos dos tribunais de alçada1.
Um fator se destaca no que se refere às opções administrativas para
sua expansão material, o geográfico em sentido estrito, considerando-se a distância a ser percorrida pelo jurisdicionado para acessar o órgão
jurisdicional.
1 É cabível nesta oportunidade importante esclarecimento com relação aos exemplos
tratados neste ensaio. A inclinação por situações específicas à Justiça Federal não decorre
de outro propósito senão que da maior familiaridade do autor com esse órgão.
40
Revista da AJUFERGS / 09
Exemplificativamente, um dado bastante interessante condiz com a
divisão nacional da Justiça Federal2. Compare-se a extensão territorial
do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região com a dos demais Tribunais
Regionais. As diferenças são inequívocas e literalmente imensas. O
mesmo sucede com o que antes foi referido a propósito da interiorização, a qual foi mais acentuada na 4.ª Região, que abrange os Estados do
Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, do que na própria 1.ª
Região, integrada pelo Distrito Federal e pelos Estados do Acre, Amapá,
Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará,
Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.
A mera análise da distribuição dos Tribunais Regionais Federais pode
conduzir a conclusões equivocadas. A princípio, afigura-se descabido que
um Tribunal que alcance menor extensão territorial disponha de maior
número de seções judiciárias. A referência apenas ao fator geográfico
como parâmetro confiável, portanto, é suscetível a críticas pertinentes.
Isso por que outros elementos interferem na divisão territorial do Poder
Judiciário. Variáveis culturais, sociológicas, econômicas e geográficas,
em sentido lato, devem ser consideradas.
O exame de informações estatísticas a respeito do índice de litigância
pode indicar maior ou menor propensão de certas comunidades para o
litígio. É provável que grupos sociais que disponham de maior acesso
à educação e a informações jurídicas, e, em decorrência, qualificados
em tese como mais esclarecidos, possam apresentar índice superior
de demanda judicial do que outros a quem os serviços educacionais e
informativos se afigurem impraticáveis ou falhos3.
2 Mesmo no que concerne aos Tribunais de Justiça, cuja instalação obedece ao critério
lógico de que cada qual corresponde a um Estado da federação, o tratamento ora dispensado
ao tema não é desinteressante, ante a possibilidade de criação de câmaras descentralizadas,
nos termos do § 6.º do art. 125 da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Idêntica afirmação é cabível com relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário, em especial à Justiça do Trabalho (art. 115, § 2.º, da Constituição Federal,
incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004) e à própria Justiça Federal (art. 107, §
3.º, da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004).
3 Curioso é que se pode observar situação paradoxalmente inversa. Como atualmente o
Poder Judiciário enfrenta severa crise no que concerne à efetividade e celeridade de sua
atuação, é crível que setores sociais mais esclarecidos se acautelem mediante adoção de
posturas e mecanismos que evitem ao máximo a judicialização do conflito. A inclinação
para a arbitragem pode ser decorrência dessa realidade.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
41
Comunidades compostas por grupos étnica e sociologicamente heterogêneos também podem apresentar maior tendência ao litígio. Quando o
arcabouço jurídico volta-se para respostas sociais inclusivas, intensifica-se o número de demandas judiciais postulando esse tipo de atuação.
Não haverá pretensões jurídicas por cotas étnicas, v.g., num grupo social
homogêneo. Áreas menos infensas a movimentações demográficas estão
sujeitas a maior nível de conflituosidade entre autóctones e migrantes.
Pode haver relação entre o critério econômico e o cultural. Em tese
o maior desenvolvimento de um proporciona o aprimoramento do outro.
Porém, o primeiro pode ser dissociado do segundo. No atual estágio do
capitalismo, exacerbando-se a economia, proporcionalmente avança o
consumo. E dessa relação havida entre tais atores – provedor e consumidor – pode surgir inúmeros conflitos. Sob outro viés, é factível que,
em locais onde a atividade econômica seja mais dinâmica e intensa,
desinteligências sob a ótica trabalhista se apresentem em maior número.
Tomada a variável geográfica em sentido amplo, é correto afirmar
que a simples análise da distribuição judicial por mapeamento desconsidera a distribuição populacional. É justificável, por conseguinte, que as
regiões concentradoras de maior nível populacional contem com número
maior de julgadores. Ainda que significativamente mais extensa a área
territorial do Estado do Amazonas, decerto há maior número de órgãos
judiciais no Estado do Rio de Janeiro, já que sua população é incomparavelmente superior.
Consideradas essas variáveis, há argumentos bastantes para fundamentar as diferenças antes delineadas entre os Tribunais da 1.ª e da 4.ª
Regiões. Problema é identificar se essas variáveis, quando da composição
e da distribuição dos órgãos jurisdicionais, de fato orientaram ou orientam
o administrador. Sob o manto delas, pode estar contido o indizível. Ou
melhor, escolhas meramente subjetivas ou políticas4.
4 Essa suspeita, abstraída a situação concreta dos Tribunais Regionais Federais exemplificativamente referidos, é fomentada quando se considera a formação histórica do Brasil.
Oculta sob a “cordialidade” subjaz a tendência de privilegiar o privado em detrimento do
público (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3.ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997).
42
Revista da AJUFERGS / 09
Portanto, é desejável que a distribuição dos órgãos judiciais seja
operada de forma racional5. Do contrário, de qualquer coisa poderá se
tratar, menos de assegurar o amplo acesso ao jurisdicionado.
2 Enfoque consequencial
O enfoque consequencial se debruça sobre o acesso à justiça pressupondo a plena disposição do aparato jurisdicional ao cidadão. Ou seja,
sob essa ótica, o interessado tem franqueado o acesso físico ao órgão
jurisdicional. Reputa-se vencida essa etapa6. O que se torna relevante
considerar, doravante, são os obstáculos criados a partir desse acesso, os
quais podem interferir no atendimento da sua pretensão7.
5 Paradoxalmente, mesmo a desejada racionalidade quando da distribuição dos
órgãos judiciais pode não assegurar o amplo acesso. O intenso dinamismo das
relações econômicas impõe sensíveis alterações de ordem geográfica. Os grandes
centros populacionais de hoje podem não ser os de amanhã. A história é pródiga em
exemplos, inclusive a brasileira, da qual se extraem os exemplos da ascensão e do
declínio da produção cacaueira, no sul baiano, e borracheira, no noroeste do país.
Nesse contexto, a correta distribuição havida no passado pode não corresponder à
do presente. Por outro lado, o constante aumento populacional, e mesmo do acesso
à educação e à informação, por camadas populacionais dele antes alijado, tem exigido a criação exponencial de órgãos judiciários. Por isso mesmo o tema do acesso
é ainda bastante atual e desafiador.
6 Revigora-se a ideia de que o acesso deve ser equiparado a um processo – tomado o
termo em sentido amplo, e não técnico jurídico relacionado à ciência processual – composto por diversas etapas. Conforme anteriormente salientado, para o que se denominou
enfoque tradicional, satisfaz-se o direito ao acesso ao Judiciário pela disponibilidade
física ou virtual, como no caso do Processo Eletrônico, do órgão jurisdicional. O enfoque
consequencial segue adiante como desdobramento daquele, mas ainda assim integrante
de um mesmo processo.
7 Permitindo-me uma breve digressão literária a fim de ilustrar a assertiva, suscito o
personagem Josef K., de O Processo, de Franz Kafka (KAFKA, Franz. O Processo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005). O acesso ao órgão lhe foi imposto; o problema
maior foi alcançar a resposta sobre o que exatamente estava acontecendo.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
43
2.1 A economia do litígio
Em regra, o litígio exige dispêndio financeiro, exceto nas situações
em que o patrocínio por profissional habilitado é dispensado, como nas
causas de competência dos Juizados Especiais8. Assim, mesmo antes
do ingresso em juízo o interessado deverá contar com a orientação e o
auxílio de procurador, profissional que, por sua qualificação, deve ser
adequadamente remunerado pelos serviços prestados. Por certo esse
trabalho pode ser realizado por defensores públicos, o que dispensa o
pagamento de honorários para o exercício da representação, mas apenas
em situações específicas.
Além do profissional técnico, o interessado também precisa satisfazer as despesas judiciais, as quais, em caso de necessidade, podem
igualmente ser dispensadas. De todo modo, há despesas, v.g., com
custas de distribuição, honorários periciais, o que pode tornar o litígio
bastante oneroso. Ainda, ao final, sucumbente a parte, deverá arcar com
as despesas adiantadas pelo vencedor da lide, inclusive os honorários
advocatícios. Não se descura da possibilidade de concessão do benefício
da assistência judiciária gratuita. No entanto, é pressuposto de deferimento que a parte se encontre em situação econômica que não lhe permita
suprir tais despesas9.
Mas porquanto o acesso à jurisdição, enquanto direito fundamental
do cidadão, implícito na garantia de que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5.º, inciso XXXV,
da Constituição Federal), constitui prestação essencial e indispensável
ao lesado, na tentativa de recomposição ao estágio anterior à violação do
direito, seria desejável que a atuação estatal correspondente fosse aces8 Na Justiça Estadual, consoante dispõe o caput do art. 9.º da Lei n. 9.099/95, há de
ser observado o valor da causa de até vinte salários mínimos. Nos Juizados Especiais
Federais, o limite é de sessenta salários mínimos, em conformidade à regra inscrita no
caput do art. 3.º da Lei n. 10.259/2001. Na hipótese de recurso, contudo, é imperativa
a representação por advogado (§ 2.º do art. 41 da Lei n. 9.099/95, preceito normativo
este que se aplica também nos Juizados Especiais Federais por determinação do art. 1.º
da Lei n. 10.259/2001).
9 Em conformidade com o disposto no parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 1.060/1950, o
qual encontra espeque constitucional no art. 5.º, inciso LXXIV, da Constituição Federal.
44
Revista da AJUFERGS / 09
sada gratuitamente. Essa orientação é escudada pelo legítimo discurso
de que o acesso à Justiça deve ser universal, ademais enquanto serviço
público já custeado pelos tributos integralizados pelos cidadãos. A tese
é sedutora desde que acompanhada de medidas que evitem a utilização
do processo como forma abusiva do exercício de um suposto direito.
Certamente essa aspiração ainda se encontra longe de ser concretizada,
não obstante algumas interpretações pretorianas se apresentem menos
rigorosas na análise dos pedidos de concessão de assistência judiciária
gratuita.
De qualquer maneira, instaura-se desde já um paradoxo: a possibilidade de litigar sob o amparo da assistência judiciária gratuita pode
estimular o ajuizamento de demandas absolutamente infundadas ou
mesmo a utilização do processo como mecanismo procrastinatório do
cumprimento de obrigações. Daí o motivo da cautela antes externada
sobre a aspiração de gratuidade. É fato que o interessado pode se encontrar descompromissado de qualquer parâmetro ético, reputando-se
amparado pela mais absoluta irresponsabilidade sob a ótica processual,
ao interpor demandas naturalmente fadadas ao insucesso10 ou se opor
injustificadamente ao cumprimento de postulações legítimas. São
diversos os casos em que ferramentas processuais são empregadas visando a não satisfação do direito, especialmente no caso de devedores
que abusam desses instrumentos a fim de protelar o pagamento das
respectivas dívidas11.
De todo modo, é provável que as situações abusivas antes aventadas
terminem por se constituir em um dos principais fatores que determinam o monstruoso número de processos em tramitação no país. Há que
se distinguir, por conseguinte, o amplo acesso do estímulo ao acesso.
Aquele visa assegurar que o ofendido busque resguardo junto ao sistema
judiciário, enquanto este proporciona a utilização desse mesmo sistema
como instrumento refratário à solução da controvérsia.
10 Note-se que, assoberbado o Poder Judiciário, os mecanismos iniciais de controle,
como a recomendada detida análise da vestibular, pode restar prejudicada.
11 O fenômeno da elisão fiscal pode ser relacionado como exemplo prático.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
45
2.2 A intensidade recursal
O enfoque tradicional ocupa-se basicamente do ingresso no sistema
judiciário, enquanto o consequencial trata do término do processo e da
qualidade da resposta jurisdicional. Na atual conjuntura, a despeito dos
esforços envidados no sentido de desburocratizar a prática processual –
por vezes em risco da necessária ritualização de circunstâncias jurídicas
específicas –, é fato que são excessivas as ferramentas disponíveis para
prolongamento da lide, sem que paralelamente haja acréscimo de precisão
na resposta jurisdicional.
São notórias as dificuldades para o interessado alcançar o julgado
definitivo. O sistema processual é pródigo em mecanismos que possibilitam ao desejoso em estender o andamento do processo alcançar esse
objetivo. Todavia, há que se visualizar que essa situação não deve ser
tributada apenas ao arcabouço legislativo. Inúmeros são os casos de
construções pretorianas dispostas a acatar os mais diversos recursos,
isso sem descartar hipóteses de soluções contra legem.
A questão, pois, parece beirar o condicionamento ideológico de
grande parte dos operadores jurídicos. A crença em respostas perfeitas,
ou pelo menos mais próximas dessa adjetivação, torna o processo praticamente interminável. A ideia de falibilidade humana, e, portanto, dos
juízos em geral, parece não ser admitida. Ora, não é suficiente dispor de
mecanismo apto a receber postulações quando esse mesmo mecanismo
não estabelece soluções definitivas para tais reivindicações. Nessa realidade, o sistema judicial passa a ser um fim em si mesmo, quando em
verdade deve ser um instrumento de realização da justiça.
O termo justiça, aliás, deve ser compreendido em seu sentido polissêmico, nas mais variadas áreas em que é objeto de estudo (Filosofia, Teoria
do Direito, Sociologia, Economia, etc.). É, como objetivo metafísico,
inalcançável. Nada obsta, entretanto, que determinadas comunidades
possam erigir consensos mínimos por intermédio dos quais o Direito
se realize.
Assim, o processo deve iniciar já com vocação ao término, ainda que
a resposta judicial por ele produzida não se constitua na mais adequada.
Entretanto, observados os princípios constitucionais do contraditório e
da ampla defesa, é suficiente que essa resposta seja razoável, que man-
46
Revista da AJUFERGS / 09
tenha proximidade com os consensos mínimos da comunidade em que
for proferida. Daí a necessidade de ampla revisão acerca do cabimento
de inúmeros recursos.
É preciso esclarecer que essa revisão não deve se compadecer com
juízos apressados. A reflexão, a partir da dialética processual, é intrínseca
à atividade jurisdicional. O que não se admite é a perpetuação da discussão, a pulular pelas mais diversas instâncias, não obstante analisada
com a necessária acuidade em cada uma das etapas.
No atual contexto, a demora nas respostas termina por desacreditar
a atividade jurisdicional. Injustificadamente, são proferidas algumas
críticas públicas, as quais, sem conhecer a realidade do sistema judiciário, generalizam a partir de defeitos e imprecisões pontuais. Em sua
raiz, porém, essas críticas são pertinentes. Observe-se, por exemplo, na
esfera penal, especialmente nos casos a envolver pessoas de categorias
sociais privilegiadas.
Indubitavelmente, é equivocado atribuir única e exclusivamente ao
infindável número de recursos os problemas inerentes à morosidade judicial. Por outro lado, é inequívoco que contribui para essa situação. Isso
além de colaborar para a ideia de que o acesso à justiça, compreendido em
sentido lato pelo enfoque consequencial, seja visto como mero sofisma.
2.3 Acesso demasiado em prejuízo do acesso efetivo
Notáveis fatores históricos determinaram sensíveis alterações de
matriz sociológica, desprendendo profundas e intensas movimentações
no âmbito das relações sociais. Essa conjuntura passou a exigir atenção
estatal para aspectos antes imprevistos ao modelo liberal, emergido em
concomitância ao estado moderno. Em consequência, os ideais liberais
preponderantes precisaram renunciar a espaços, ainda que parcialmente,
e permitir transformações tanto na estrutura quanto nos objetivos do
Estado, o qual passa a ser instado a suprimir demandas antes alheias ao
exercício do poder político. Por conta dessa ampliação, e da consequente
inclusão de segmentos sociais antes afastados do tablado deliberativo,
a exigência de participação no debate público é acentuada. E o Direito,
enquanto ciência social, decerto ressente-se dessas comutações, passando
a refleti-las diretamente nos seus fundamentos.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
47
A ampliação dos objetivos do estado moderno, então, determina o
incremento da constituição, a qual passa a se projetar não apenas sobre
direitos fundamentais de cunho individual, mas também a alcançar aqueles de caráter social12, alargando significativamente o leque da atuação
constitucional.
Decorrente desse fenômeno contemporâneo inscreve-se o chamado
ativismo judicial. A semântica da locução é pródiga em definições. Possivelmente a principal delas se relaciona à atuação do Poder Judiciário
em áreas antes privativas aos outros Poderes republicanos, investindo
contra a hígida tripartição.
Ante a franca omissão do Legislativo e do Executivo no cumprimento
de suas atribuições, o sistema judiciário tem sido amplamente provocado a supri-la. Os efeitos decorrentes são o que se tem reconhecido por
judicialização das políticas públicas e aparecimento de zonas de tensão
entre os Poderes. O que cumpre ressaltar – nos estreitos limites deste
ensaio, não obstante a relevância do tema – são os desdobramentos
desse fenômeno frente às particularidades do sistema judiciário pátrio.
Por conta de Constituição prolixa e de severas desigualdades sociais, o
Poder Judiciário tem sido convocado a concretizar o extenso arcabouço
normativo constitucional e a amenizar aquelas distorções. Por conta
dessas singularidades, acentua-se sensivelmente o ativismo judicial.
Invocada a suprir os desacertos funcionais do Estado, exacerba-se a função jurisdicional pelo exame de atribuições que antes lhe
eram alheias. A sociedade sente-se incentivada a solucionar questões,
outrora sanadas em arenas eminentemente políticas, agora junto ao
Poder Judiciário. De outro lado, essa situação cria para os demais entes
públicos o conforto de não precisar deliberar sobre questões polêmicas, sensíveis ou prejudiciais a determinados segmentos, estimulando
a inércia legislativa e administrativa. Em contrapartida, são incitadas
novas demandas judiciais.
12 Os direitos fundamentais, ao longo da contínua e irreversível marcha da História,
submeteram-se a modificações concernentes ao conteúdo, à titularidade, à eficácia e à
efetivação. O conjunto de alterações tem sido designado como gerações ou dimensões
dos direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4.ed., rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 53).
48
Revista da AJUFERGS / 09
2.4 Desnivelamento da distribuição da competência
A ampliação do espectro constitucional determinou a distensão do
horizonte de atuação do Supremo Tribunal Federal. Essa projeção é diretamente proporcional à intensificação das disposições constitucionais,
porque quanto mais minuciosa a Constituição, maior o alcance jurisdicional do órgão. Restará, consequentemente, alargada sua natural ascendência, desfocando a competência das demais instâncias judiciais, sejam
monocráticas ou colegiadas. A aptidão de avocar a si o insustentável poder
de judicar sobre qualquer tema, inclusive com atípico efeito normativo,
praticamente exaure as atribuições das demais alçadas jurisdicionais.
A factibilidade dessa extrema concentração não é ensejada apenas
pelas ações diretas de constitucionalidade e súmulas vinculantes, mas
reforçada pela reclamação (art. 102, inciso I, alínea l) e pelo recurso extraordinário (art. 102, inciso III). Copiosa nessas ferramentas se encontra
a especial coloração constitucional atribuível a qualquer matéria, que
assim revestida ingressa na competência do Supremo Tribunal Federal.
Nitidamente inexiste fórmula objetiva que assegure classificar determinada questão como constitucional ou despida desse especial significado.
Subjetivismos que porventura adestrem essa deliberação são, portanto,
latentes. A depender da qualidade da fundamentação, uma irrelevante
briga de cães pode ser reputada constitucional, enquanto a incidência de
um tributo federal pode receber outra qualificação. A vagueza da locução
repercussão geral, enquanto pressuposto de admissibilidade ou de conhecimento do recurso extraordinário (§ 3.º do art. 103 da Constituição
Federal) é permissiva de ilações imprevisíveis.
Efeito negativo colhido da concentração, estritamente relacionado
ao acesso à justiça, é a restrição de ingresso e participação no palco da
deliberação, o qual se desloca à Capital Federal. A participação das partes,
enquanto elemento indispensável para correta apreensão da controvérsia13, termina relegada. E é notória a indisponibilidade de significativa
13 É sempre almejada a maior intervenção possível das partes como mecanismo de fundamentação democrática do Poder Judiciário. A propósito do assunto: COSTA, Gerson
Godinho da. O princípio constitucional do contraditório como pressuposto de legitimação
da atividade jurisdicional. In: HIROSE, Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso
Modelar de Direito Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011, p. 14 et. seq.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
49
parcela populacional para se dirigir diretamente ao Supremo Tribunal
Federal. Tampouco institutos processuais como as audiências públicas
ou o amicus curie – em outros contextos, de incriticável pertinência –
são capazes de reverter essa insuficiência. O regular encaminhamento
da demanda, mediante passagem pelas diversas instâncias componentes
do iter formador do juízo natural, permite melhor amadurecimento da
análise fática. Alcançando o Supremo, o colegiado disporá de todos esses
elementos sem desmerecimento da necessária interação dos litigantes.
Contudo, à medida que preconizado tratamento generalizado, será inegável o prejuízo sob essa ótica.
Acentua-se a possibilidade de indesejável tratamento generalizado a
partir da repercussão geral, em conformidade com a sua sistemática processual14. Com efeito, na hipótese em que “houver multiplicidade de recursos
com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral”,
será submetida à seleção pelos colegiados de origem (Tribunais, Turmas
de Uniformização e Turmas Recursais) de “um ou mais recursos representativos da controvérsia” para encaminhamento ao Supremo Tribunal
Federal, restando sobrestados os demais até resolução definitiva. Acaso
não constatada a repercussão geral, os processos sobrestados deverão ser
julgados nos respectivos colegiados de origem, porém, admitida a existência de repercussão geral e julgado o mérito do recurso extraordinário,
poderão ser considerados prejudicados ou submetidos à retratação.
Nessa linha, na hipótese de o Supremo admitir a repercussão geral
sobre determinado tema, após seleção de representativos da controvérsia,
exemplificativamente, pelo tribunal de um Estado da Federação, todos os
demais deverão aguardar a manifestação daquela Corte. Se reconhecida a
repercussão geral e julgado o mérito do extraordinário, haverá indevida
supressão de instância, posto que os demais pretórios serão alijados do
processo decisório15. Eufemisticamente poderão até julgar os processos,
14 Art. 543-B do Código de Processo Civil, incluído pela Lei n. 11.418/2006.
15 Com extrema acuidade, Oscar Vilhena Vieira propõe que a Corte dedique-se
exclusivamente à jurisdição constitucional. Confere que tal “não significa adotar o
modelo europeu de controle de constitucionalidade, mas sim dar seguimento a nossa
experimentação institucional, que compõe o sistema difuso com o concentrado. Com
a arguição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante, o Supremo
terá condição de redefinir sua própria agenda e passar a utilizar do sistema difuso como
50
Revista da AJUFERGS / 09
cujo resultado, no entanto, será adiante adequado pelo Supremo a sua
própria orientação.
Por derradeiro, não há que se descurar do princípio constitucional da
celeridade processual (art. 5.º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).
O reconhecimento descomedido de repercussão geral pode congestionar
a regular tramitação dos demais processos no Supremo Tribunal Federal.
A propósito, cumpre notar que há razoável quantidade de temas com repercussão geral reconhecida. Grosso modo, na suposição de que a Corte
necessite de dia único para deliberar sobre cada assunto, a agenda deverá
consumir pelo menos quinze meses, considerados finais de semana e feriados!16 Isso sem considerar suas demais atribuições. De qualquer modo,
duas indagações se impõem. Primeiro, é preciso questionar se haverá
de fato tantas matérias que dependam de solução universal. Em caso
positivo, impende indagar se essa repercussão geral não recomendaria
prévia atuação legislativa, pelo Poder constitucionalmente incumbido
de estabelecer regras gerais. De todo modo, independentemente dessas
inquirições, urge destacar a incongruência, no tocante ao preceito fundamental da razoável duração do processo, havida em relação a matérias
socialmente sensíveis que permanecerão aguardando indefinidamente por
soluções que poderiam ser alcançadas pelo juízo natural.
Os reflexos no que tange ao acesso à justiça são evidentes. Enquanto
se aguarda indefinidamente pela justiça – enquanto resposta razoável,
elaborada a partir de consensos mínimos –, justiça não há.
instrumento de construção da integridade do sistema judiciário e promoção do interesse
público. Definitivamente não é necessário analisar cada recurso extraordinário e muito
menos cada agravo de instrumento que chega ao Tribunal, todos os dias. Ao restringir
sua própria jurisdição, ao se autoconter, o Supremo estaria ao mesmo tempo reforçando
a sua autoridade remanescente e, indiretamente, fortalecendo as instâncias inferiores,
que passariam, com o tempo, a ser últimas instâncias, nas suas respectivas jurisdições. É
preocupante a posição de subalternidade a que os tribunais de segunda instância foram
relegados no Brasil, a partir de 1988, quando as suas decisões passaram a ser invariavelmente objeto de reapreciação” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de
Direito do Estado. Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, out./dez. 2008, p. 74).
16 Contabilizados os processos julgados e pendentes de julgamento, observa-se que
foram admitidos em repercussão geral 456 assuntos (dados colhidos no sítio oficial do
Supremo Tribunal Federal em 08/05/2013: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.
asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao).
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
51
2.5 Acesso amplo e industrialização da tutela
A ciência jurídica tem amplamente reconhecido que a sentença ou
o acórdão estabelece a regra do caso concreto17. É manifesto, por conseguinte, o elemento interpretativo que compõe a decisão, enriquecido
por inimagináveis fatores a interferir nesse processo de composição. E,
se por um lado, pode causar imprevisibilidade quanto à solução jurídica
a ser proposta, por outro proporciona maior diversidade de argumentos
a instruir a construção dessa resposta18.
Essa constatação remete necessariamente a considerar descabida a
atuação jurisdicional como equiparada a uma linha de produção industrial.
A massificação da demanda, decorrente dos catalisadores jurídicos, políticos e sociais, parece impor, em cumprimento ao anseio de celeridade,
a massificação da resposta. Contudo, essa solução não é desejável sob
pena de irrazoabilidade da resposta judicial.
Por certo há demandas com nítido caráter identitário a reclamar
respostas únicas. A dificuldade está em identificar a similaridade. Superado esse obstáculo, mecanismos processuais como as ações coletivas
ou mesmo os instrumentos constitucionais que conduzem ao Supremo
Tribunal Federal a elaboração da resposta são inequivocamente aptos.
Porém, há de haver equilíbrio, sob pena de prejuízo ao próprio acesso
à justiça19.
17 Pontifica Humberto Ávila que as normas “não são textos nem o conjunto deles, mas os
sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (ÁVILA,
Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 22). Em consequência “os dispositivos se constituem no
objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado” (Idem, ibidem).
18 De todo modo, em algum momento essa decisão deve se tornar definitiva, sob pena
de absoluta insegurança jurídica. Como anteriormente salientado, o atual sistema recursal, conquanto possa permitir em tese o aprimoramento da decisão, de outro lado torna
infindável o processo, em inequívoco prejuízo à segurança jurídica.
19 Conforme antes ressaltado no item 2.4. em relação aos problemas da repercussão
geral e superação de instâncias e de próprio acesso geográfico ao STF. O mesmo pode
ser afirmado a propósito das tutelas coletivas quando proferidas por juízos distantes do
jurisdicionado por elas abrangido.
52
Revista da AJUFERGS / 09
Há que se atentar a situações em que a centralização das decisões
pode conduzir a situações paradoxais. Em país de dimensões continentais, o tratamento genérico dos casos pode determinar soluções indiscutivelmente inábeis e em desconformidade com a própria Constituição
Federal. Quando o requisito para concessão de alguma prestação estatal
depende da verificação da disponibilidade econômica do requerente,
são variáveis seus componentes. Assim, v.g. no caso do benefício
assistencial20, cujo pressuposto é a constatação da miserabilidade,
são distintos os critérios de avaliação. Os ingredientes relacionados à
composição da dieta mínima individual variam regionalmente, assim
como são díspares os valores necessários para tratamento medicamentoso. Descurar dessa realidade implica tornar inócuo o mandamento
constitucional da assistência.21
Conclusões
A pretensão de demonstrar que o acesso à justiça não se confunde
com a mera instalação de órgãos judiciais país afora parece ter sido
demonstrada. Para esse objetivo sequer é preciso estender o alcance do
vocábulo “acesso à justiça” a fim de admitir o enfoque consequencial.
No que hic et nunc se designou como enfoque tradicional já comprova
a assertiva inicial. Deve-se dispor de critérios objetivos e racionais para
a criação de comarcas, sessões judiciárias e órgãos judiciais colegiados.
Sem essa cautela – ainda que óbvio, é sempre recomendado reafirmar – é
alta a probabilidade de injustificado desperdício de recursos públicos, de
resto já insuficientes para atender todos os reclamos sociais. Entretanto,
o prejuízo é ainda maior no que diz respeito ao cumprimento a contento
de um serviço essencial que é o jurisdicional. A alocação impensada
contribui para sua ineficiência.
20 O benefício assistencial encontra-se disciplinado nos artigos 20 e 21 da Lei n. 8.742/93,
com importantes alterações determinadas pela Lei n. 12.435/2011.
21 Art. 203 da Constituição Federal.
O Acesso à Justiça: enfoques tradicional e consequencial
53
Considerada a relevância do problema, a discussão acerca da oportunidade e conveniência da criação e instalação de órgãos jurisdicionais
reclama ativa participação dos mais variados segmentos sociais, e não
apenas daqueles de matriz técnica, como a Ordem dos Advogados do
Brasil - OAB, Ministérios Públicos, órgãos policiais, Defensorias Públicas, os quais, ainda que diretamente implicados, no mais das vezes
também se encontram alijados desse tipo de deliberação.
É acurar a vista e ampliar o horizonte de aplicação do princípio
do acesso à justiça. O termo não está a indicar o simples ingresso em
juízo. Este deve pressupor alguma saída, correspondente ao término do
processo implicado numa decisão definitiva. Esse é o propósito do que
se convencionou designar, neste sucinto e despretensioso trabalho, como
enfoque consequencial. Amplo acesso à justiça não se confunde com
amplo acesso ao Poder Judiciário. Pressupõe este, mas também requer
a solução da demanda proposta, mediante apresentação de uma resposta
juridicamente razoável.
De longe se está a apresentar alguma inédita abordagem sobre o
tema. Apenas se procura repercutir preocupações tópicas que despontam
numa principal, a de que o Poder Judiciário caminha a passos largos
para se tornar um fim em si mesmo, um paquiderme socialmente inútil
a alimentar-se da burocracia gerada por si próprio, enfim, o último lugar
onde deveras se haverá de encontrar justiça – aqui conceituada, reprise-se,
formalmente no sentido de se obter uma resposta jurisdicional razoável
e definitiva.
Identificados os problemas, é preciso propor possíveis soluções. Ou
melhor, singelas propostas de discussão. A única certeza que se extrai
é a de que o quadro atual necessita de profundas modificações. Advém
daí a grande complexidade da questão. O problema do acesso à justiça
– no sentido amplo aqui compreendido – está a exigir que se repensem o
custeio da demanda judicial, o sistema recursal, o ativismo e a contenção
judicial, a reestruturação da competência do Supremo Tribunal Federal
e a funcionalidade judicial na elaboração de suas respostas.
A tarefa é árdua, mas instigante. Mãos à obra.
54
Revista da AJUFERGS / 09
Notas bibliográficas
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
COSTA, Gerson Godinho da. O princípio constitucional do contraditório
como pressuposto de legitimação da atividade jurisdicional. In: HIROSE,
Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso Modelar de Direito
Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011. p. 13-37.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3.ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4.ed.,
rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado.
Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, p. 55-75, out./dez. 2008.
Comentários à Lei Anticorrupção –
Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
Breves reflexões acerca das
consequências da entrada em vigor
da nova legislação no âmbito do
Direito Administrativo
Stefan Espirito Santo Hartmann
Juiz Federal Substituto na 4ª Região. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Ex-Advogado da União.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal examinar, de
maneira geral, os dispositivos mais importantes da Lei nº 12.846, de 1º
de agosto de 2013 – a chamada Lei Anticorrupção (LAC). Com a entrada
em vigor da norma, em janeiro de 2014, tornou-se necessário que todos
aqueles que, de alguma forma, trabalham com o Direito Administrativo,
ou mesmo dedicam-se apenas a estudar tal ramo da ciência jurídica, estejam a par das significativas transformações levadas a efeito pela LAC.
É importante ressaltar, no entanto, que não se pretende – e nem seria
possível neste espaço – analisar, minuciosamente, todas as circunstâncias
e consequências jurídicas que advêm dos 31 (trinta e um) artigos que
compõem a Lei nº 12.846/2013. Com efeito – adotando-se a sistemática
de reproduzir os textos legais, para depois comentá-los –, serão apresentadas, genericamente, breves reflexões acerca das regras previstas na
norma jurídica em comento, sublinhando-se aquelas que mais possuem
importância para os atores envolvidos na aplicação da norma, sobretudo
na esfera do Direito Administrativo Sancionador.
À guisa de conclusão, defende-se que, apesar de alguns problemas pontuais, a LAC representa significativo avanço no combate à corrupção. Dessa
maneira, pretende-se, com este texto, dar uma pequena contribuição a
tão importante debate, o qual já ocupa generosos espaços tanto na imprensa quanto na sociedade civil brasileiras, e que certamente continuará
ocupando-os nos próximos anos.
Sumário: Introdução. 1 Disposições gerais. 2 Dos atos lesivos à
administração pública nacional ou estrangeira. 3 Da responsabilização
administrativa. 4 Do processo administrativo de responsabilização. 5
Do acordo de leniência. 6 Da responsabilização judicial. 7 Disposições
finais. Conclusão. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: Corrupção. Repressão. Direito Administrativo
Sancionador. Ética. Transparência.
56
Revista da AJUFERGS / 09
Introdução
Recentemente, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Lei nº
12.846, de 1º de agosto de 2013, apelidada de Lei Anticorrupção Empresarial, ou simplesmente Lei Anticorrupção. A norma, de suma importância
no combate a uma das maiores mazelas que se abate sobre o país, teve sua
vigência iniciada em 29 de janeiro de 2014, regulamentando, no âmbito
do Direito Administrativo, as relações político-jurídicas entre as pessoas
jurídicas de direito privado e o Poder Público, notadamente no que se
refere à aplicação de sanções a comportamentos lesivos à coisa pública.
Inicialmente, é preciso lembrar que, de acordo com Fernandes e Cos1
ta , a LAC tem origem no episódio da história norte-americana conhecido
como Watergate, o qual deu origem ao Foreign Corrupt Practices Act
(1977). Essa norma introduziu, no sistema jurídico norte-americano, a
responsabilidade objetiva da pessoa jurídica diretamente envolvida em
casos de corrupção, os quais tenham sido praticados no seu interesse,
independentemente da responsabilização individual das pessoas físicas
envolvidas.
Além disso, no âmbito nacional, é notório que a LAC representa
uma resposta, por parte do Congresso Nacional, ao movimento que ficou
conhecido como “manifestações de junho de 2013”, o qual tomou conta
das ruas do país naquela época. Milhares de pessoas foram às ruas das
suas cidades, exigindo maior transparência e ética nas relações políticas, traduzindo clara manifestação de inconformidade com o status quo
vigente.
Ressalta-se, ademais, na esteira do que afirmam Petrelluzzi e Rizek
Junior2, que a LAC visa a dar concretude a compromissos internacionais
relacionados ao combate à corrupção, assumidos pelo Brasil, especialmente a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, a Convenção
1 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; COSTA, Karina Amorim Sampaio. In: NASCIMENTO, Melillo Dinis do (org.). Lei Anticorrupção Empresarial – Aspectos críticos à
Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 29. 192p.
2 PETRELLUZZI, Marco Vinício; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção – Origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 17. 122p.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
57
das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção Interamericana
contra a Corrupção. Trata-se de tratados internacionais firmados no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e da Organização das Nações Unidas (ONU).
Nessa perspectiva, nota-se que o fenômeno da corrupção, mesmo
antes da LAC – em que pese a lacuna, na esfera administrativa, no
que tange às pessoas jurídicas –, já recebia tratamento diferenciado
no direito brasileiro, já que é tipificado como crime no Código Penal
– um direcionado ao corruptor (art. 333 – corrupção ativa) e outro
destinado ao corrupto (art. 317 – corrupção passiva). É certo que a
criminalização de tal conduta reflete o reconhecimento, por parte da
sociedade moderna, da corrupção como flagelo da humanidade, visto
que gera consequências nefastas para todas as nações, especialmente
para os países em desenvolvimento. Demais disso, não há dúvidas de
que a corrupção ganhou força a partir do advento da globalização, a
qual eliminou barreiras comerciais e culturais anteriormente intransponíveis, possibilitando que empresas e pessoas físicas das mais diversas
nacionalidades negociem e comercializem produtos e serviços entre si
e com os Estados estrangeiros.
Nada obstante a abundância de oportunidades negociais dos últimos
anos, percebe-se que, com a evolução do Estado absolutista para o Estado
Democrático de Direito, de acordo com Ferraz Dal Pozzo e outros3, o
exercício do poder de polícia pelo Estado, sobre o particular, constitui
elemento essencial à boa convivência entre os diversos atores sociais, com
o intuito de preservar certos valores coletivos, ao impor aos particulares
determinadas obrigações de fazer ou não fazer. E, justamente em face
do exercício do poder geral de polícia do Estado, a LAC criou uma série
de comportamentos que caracterizam ilícitos, denominados por ela de
atos lesivos à administração pública, em homenagem a certos valores,
tais como o patrimônio público nacional ou estrangeiro, os princípios
da administração pública e os compromissos internacionais assumidos
pelo Estado brasileiro.
3 DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz; DAL POZZO, Augusto Neves; DAL POZZO,
Beatriz Neves; FACCHINATTO, Renan Marcondes. Lei Anticorrupção – Apontamentos
sobre a Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 09-11. 120p.
58
Revista da AJUFERGS / 09
Nesse sentido, Bittencourt4 entende que a edição da LAC demonstra
uma mudança de perspectiva na punição da corrupção, tendo em vista
que ela visa a alcançar as pessoas jurídicas infratoras, as quais somente
eram sancionadas no âmbito da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e
Contratos Administrativos). Destarte, verifica-se que a LAC, ao lado da
Lei de Improbidade Administrativa, é mais uma expressão significativa
do chamado Direito Administrativo Sancionador, o qual, ao lado do Direito Penal, tem por objetivo tutelar as relações ilícitas que se desenrolam
entre o particular e o Estado. Ademais, à luz do que afirmam Petreluzzi e
Rizek Junior5, a LAC precisa ser estudada em conjunto com o arcabouço
jurídico brasileiro de normas que pretendem combater a corrupção, o qual
congrega normas penais, administrativas, civis e de conteúdo político.
Portanto, a título introdutório, é possível dizer, como será demonstrado ao longo deste trabalho, que a LAC mudou o paradigma do
controle da corrupção do Brasil, contribuindo para que sejam reduzidos
os prejuízos experimentados pela sociedade brasileira decorrentes do
ato corrupto. Nas palavras de Nascimento6, a Lei 12.846/2013 é parte
de um esforço transnacional por mais transparência na gestão pública e
ética nas sociedades, temática essa de grande importância para o Brasil.
1. Disposições gerais
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva
administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de
atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas
ou não, independentemente da forma de organização ou
4 BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção – Lei 12.846/2013. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 21-24. 176p.
5 Op. cit., p. 17.
6 Op. cit., p. 17.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
59
modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades
estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no
território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda
que temporariamente.
O caput do art. 1º anuncia o que dispõe a Lei Anticorrupção: responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela
prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. A
partir disso, pode-se afirmar, de início, o seguinte: (a) a responsabilização,
no âmbito da LAC, é objetiva, isto é, independe da presença de dolo ou
culpa, nos moldes do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal;
(b) a LAC trata apenas de responsabilidade administrativa e civil, e não
penal; (c) a LAC tutela as administrações públicas nacional e estrangeira,
ou seja, é possível a sua aplicação quando o sujeito passivo do ato lesivo
for Estado estrangeiro ou organização internacional.
Além disso, o parágrafo único do art. 1º traz quais as espécies de
pessoas jurídicas em relação às quais poderá ser aplicada a LAC. São
elas: sociedades simples e empresárias (personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou do modelo societário adotado),
fundações, associações (de pessoas físicas ou jurídicas) e sociedades
estrangeiras com sede, filial ou representação no país (constituídas de
fato ou de direito, ainda que temporariamente). Vê-se que o dispositivo
pretendeu ser o mais abrangente possível, de tal forma que, considerando
as seis espécies de pessoas jurídicas de direito privado previstas no art.
44 do Código Civil (associações, sociedades, fundações, organizações
religiosas, partidos políticos e empresas individuais de responsabilidade
limitada), apenas as empresas individuais de responsabilidade limitada
não estão, expressa ou implicitamente, abarcadas pela norma. Ressalta-se
que as organizações religiosas e os partidos políticos são tipos de associações, razão pela qual se defende a aplicação da LAC a tais entidades.
Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos
previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício,
exclusivo ou não.
60
Revista da AJUFERGS / 09
O art. 2º reafirma o que determina a norma anterior – responsabilidade objetiva, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos
previstos na LAC –, acrescentando, ainda, que referidos atos, para fins
de responsabilização, devem ser praticados por interesse ou benefício
da pessoa jurídica, exclusivo ou não. Isso significa que é possível que o
sujeito ativo do ato lesivo previsto na LAC seja responsabilizado ainda
que o tenha praticado apenas por interesse ou benefício de terceiros.
Não é demais ressaltar que, como cediço, a responsabilidade objetiva
independe da existência de culpa ou dolo. Por isso, para que a pessoa
jurídica seja responsabilizada nos termos da LAC, basta que estejam
comprovados a conduta, o resultado e o nexo de causalidade entre ambos,
independentemente da intenção do agente.
Art. 3º A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a
responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou
partícipe do ato ilícito.
§ 1º A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais
referidas no caput.
§ 2º Os dirigentes ou administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade.
É possível afirmar que o caput e o § 1º do art. 3º trazem a sistemática da dupla responsabilização (ou imputação): a caracterização da
responsabilidade administrativa ou civil da pessoa jurídica pelos atos
lesivos previstos na LAC não exclui a responsabilização individual dos
seus dirigentes ou administradores, ou ainda de qualquer pessoa física
corresponsável. Assim, tanto a pessoa jurídica quanto as pessoas físicas
que concorreram para a prática dos atos lesivos serão por ela responsabilizadas – sistemática da dupla responsabilização.
Contudo, o § 2º determina que tais pessoas físicas somente serão
responsabilizadas na medida da sua culpabilidade. Isso significa que,
embora a responsabilidade administrativa e civil das pessoas jurídicas,
no âmbito da LAC, seja objetiva, a responsabilidade dos dirigentes ou
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
61
administradores, por outro lado, será subjetiva, isto é, dependerá da
comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa). Portanto, uma
primeira conclusão a que se chega é que a LAC traz a sistemática da
dupla responsabilização, ou seja, a pessoa jurídica é responsabilizada
objetivamente, enquanto as pessoas físicas o são subjetivamente.
Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na
hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.
§ 1º Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento
de multa e reparação integral do dano causado, até o limite
do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos
ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no
caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente
comprovados.
§ 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas
ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas
serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos
previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à
obrigação de pagamento de multa e reparação integral do
dano causado.
Finalizando o primeiro capítulo, o art. 4º da LAC, a exemplo do art.
133 do Código Tributário Nacional, trata da responsabilidade dos sucessores, nos casos de alteração contratual, transformação, incorporação,
fusão ou cisão societária das pessoas jurídicas infratoras.
O caput do artigo, no intuito preservar a aplicação das punições
previstas na LAC, inicia afirmando que subsistirá a responsabilidade
da pessoa jurídica mesmo se forem promovidas as mencionadas alterações. No entanto, o § 1º determina que, exceto nos casos de simulação
ou evidente intuito de fraude, desde que devidamente comprovados, a
responsabilidade da sucessora das hipóteses de fusão e incorporação será
restrita ao pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até
o limite do patrimônio transferido.
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Revista da AJUFERGS / 09
Primeiramente, é preciso destacar que somente nestes dois casos –
fusão e incorporação – a responsabilidade da sucessora estará limitada.
Nos demais casos (alteração contratual, transformação e cisão societária),
aplicam-se a totalidade das punições previstas na LAC. Depois, nota-se
que, se forem comprovados simulação ou intuito de fraude na celebração
do negócio jurídico, mesmo nos casos de fusão e incorporação não haverá
limitação da responsabilidade da sucessora. Percebe-se que, quando a
LAC fala em “devidamente comprovados”, ela está querendo dizer que
comprovação da simulação e/ou da fraude ocorrerá em processo administrativo ou judicial, respeitando-se os postulados do devido processo
legal e da ampla defesa.
Por fim, o § 2º estabelece que, no caso de sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, haverá responsabilidade
solidária com a pessoa jurídica autora do ato lesivo previsto na LAC,
porém limitada ao pagamento de multa e à reparação do dano. Trata-se,
portanto, de responsabilidade solidária – poderá figurar, no polo passivo
do processo administrativo ou judicial, a pessoa jurídica autora e aquela
que detém responsabilidade solidária, conjuntamente, ou somente esta
última, individualmente –, mas que está restrita ao pagamento de multa
e à reparação do dano.
2. Dos atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira
CAPÍTULO II
DOS ATOS LESIVOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NACIONAL OU ESTRANGEIRA
Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública,
nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles
praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo
único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público
nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração
pública ou contra os compromissos internacionais assumidos
pelo Brasil, assim definidos:
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
63
I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele
relacionada;
II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou
de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos
previstos nesta Lei;
III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física
ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses
ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;
IV - no tocante a licitações e contratos:
a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento
licitatório público;
b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer
ato de procedimento licitatório público;
c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude
ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;
d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;
e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica
para participar de licitação pública ou celebrar contrato
administrativo;
f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento,
de modificações ou prorrogações de contratos celebrados
com a administração pública, sem autorização em lei, no
ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos
instrumentos contratuais; ou
g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro
dos contratos celebrados com a administração pública;
V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de
órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua
atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e
dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.
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Revista da AJUFERGS / 09
§ 1º Considera-se administração pública estrangeira os
órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas
de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo,
bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro.
§ 2º Para os efeitos desta Lei, equiparam-se à administração
pública estrangeira as organizações públicas internacionais.
§ 3º Considera-se agente público estrangeiro, para os fins
desta Lei, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública em órgãos,
entidades estatais ou em representações diplomáticas de país
estrangeiro, assim como em pessoas jurídicas controladas,
direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.
O capítulo II da LAC é composto apenas do art. 5º, o qual, em 5
(cinco) incisos, traz o rol de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira e que atentem contra o patrimônio público nacional
ou estrangeiro, contra os princípios da administração pública ou contra
tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro. Entre os atos
lesivos elencados nos incisos do dispositivo, destacam-se dois que
possuem reflexos também na esfera penal, tendo em vista que também
são tipificados como crime: a corrupção ativa, prevista no inciso I (art.
333 do Código Penal), e as condutas relacionadas às fraudes praticadas
em licitações públicas, previstas no inciso IV (art. 89 e seguintes da Lei
8.666/1993).
Demais disso, os parágrafos do art. 5º dispõem sobre as definições
de administração pública estrangeira e agente público estrangeiro, com
destaque para o fato de que a LAC equiparou àquela as organizações
públicas internacionais, como a Organização das Nações Unidas.
3. Da responsabilização administrativa
CAPÍTULO III
DA RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
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Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas
jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções:
I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20%
(vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício
anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem
auferida, quando for possível sua estimação; e
II - publicação extraordinária da decisão condenatória.
§ 1º As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada
ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do
caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações.
§ 2º A aplicação das sanções previstas neste artigo será precedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia
Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente,
do ente público.
§ 3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui,
em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do
dano causado.
§ 4º Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível
utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa
jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$
60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).
§ 5º A publicação extraordinária da decisão condenatória
ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas
da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande
circulação na área da prática da infração e de atuação da
pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital,
pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo
visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de
computadores.
66
Revista da AJUFERGS / 09
Prosseguindo, chega-se ao capítulo III da LAC, constituído de
dois artigos e que trata da responsabilização administrativa das pessoas jurídicas pelos atos lesivos elencados no dispositivo anterior. Por
conseguinte, fica claro que a aplicação das penalidades tratadas neste
capítulo é de competência da autoridade administrativa responsável,
após regular tramitação de processo administrativo com tal desiderato,
e sempre garantindo às pessoas jurídicas e físicas responsáveis as garantias do devido processo legal e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da
Constituição Federal).
Nesse sentido, observa-se que são duas as sanções previstas na
LAC, sem prejuízo da obrigação de reparação integral do dano causado
(art. 6º, § 3º): multa, conforme parâmetros definidos no inciso I do art.
6º, e publicação extraordinária da decisão condenatória. A autoridade
responsável, de modo fundamentado (art. 50, caput, da Lei 9.784/1999,
e art. 93, IX, da CF), poderá aplicar tais sanções cumulativamente, ou
de forma isolada, considerando as peculiaridades do caso concreto, a
gravidade e a natureza das infrações (art. 6º, § 1º).
Além do mais, a LAC exige que a aplicação das mencionadas sanções seja precedida de manifestação do órgão de assessoramento jurídico
competente (Advocacia-Geral da União, Procuradoria do Estado ou
Procuradoria Municipal, conforme o caso), bem como que a sanção de
publicação extraordinária da decisão condenatória seja a mais abrangente
possível.
Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das
sanções:
I - a gravidade da infração;
II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;
III - a consumação ou não da infração;
IV - o grau de lesão ou perigo de lesão;
V - o efeito negativo produzido pela infração;
VI - a situação econômica do infrator;
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
67
VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das
infrações;
VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos
de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta
no âmbito da pessoa jurídica;
IX - o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com
o órgão ou entidade pública lesados; e
Parágrafo único. Os parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão
estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal.
Por fim, percebe-se que o art. 7º determina quais as circunstâncias
que a autoridade responsável deve levar em consideração para a aplicação
das sanções administrativas, destacando-se o inciso VII, que estabelece a
cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações como critério
determinante. Verifica-se, a exemplo do acordo de leniência – instituto
que será examinado mais adiante –, que o legislador cada vez mais tem
conferido incentivos à colaboração entre o investigado e as autoridades,
com o objetivo de apurar os fatos ilícitos com maior eficiência.
4. Do processo administrativo de responsabilização
CAPÍTULO IV
DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE RESPONSABILIZAÇÃO
Art. 8º A instauração e o julgamento de processo administrativo
para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem
à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.
§ 1º A competência para a instauração e o julgamento do
processo administrativo de apuração de responsabilidade da
pessoa jurídica poderá ser delegada, vedada a subdelegação.
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Revista da AJUFERGS / 09
§ 2º No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria-Geral da União – CGU terá competência concorrente para
instaurar processos administrativos de responsabilização de
pessoas jurídicas ou para avocar os processos instaurados
com fundamento nesta Lei, para exame de sua regularidade
ou para corrigir-lhes o andamento.
Depois de tratar das sanções que serão aplicadas na esfera administrativa, a LAC, em seu capítulo IV, estabelece as normas para o processo
e o julgamento administrativo relacionado à responsabilização da pessoa
jurídica, por atos lesivos praticados contra as administrações públicas
nacional ou estrangeira.
Inicia a LAC, no art. 8º, afirmando que compete à autoridade máxima
de órgão ou entidade, de ofício ou mediante provocação, a instauração
e o julgamento do processo administrativo para apuração da responsabilidade. Tal competência, contudo, poderá ser delegada, sendo vedada
a subdelegação. Ademais, a LAC determina que, na esfera do Poder
Executivo federal, a Controladoria-Geral da União terá competência
concorrente com as demais autoridades administrativas responsáveis,
podendo instaurar os processos administrativos ou até mesmo avocar
aqueles instaurados para verificar a sua regularidade.
Art. 9º Competem à Controladoria-Geral da União – CGU
a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos previstos nesta Lei, praticados contra a administração pública
estrangeira, observado o disposto no Artigo 4 da Convenção
sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada pelo Decreto no 3.678, de 30 de novembro de 2000.
Nada obstante as regras anteriores, nota-se que, no que se refere
a atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira, a
competência para apurar a responsabilização administrativa da pessoa
jurídica é da CGU, observado o disposto no art. 4º da Convenção sobre
o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em
Transações Comerciais Internacionais, que trata da aplicação das normas
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
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convencionais no espaço. Acredita-se que a regra prevista no art. 9º é
absoluta, pelo que competirá à CGU instaurar e processar o processo
administrativo para verificar a prática de atos lesivos à administração
pública estrangeira, ainda que, em conjunto com a pessoa jurídica infratora, estejam envolvidos funcionários públicos estaduais e/ou municipais.
Art. 10. O processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão
designada pela autoridade instauradora e composta por 2
(dois) ou mais servidores estáveis.
§ 1º O ente público, por meio do seu órgão de representação
judicial, ou equivalente, a pedido da comissão a que se refere
o caput, poderá requerer as medidas judiciais necessárias
para a investigação e o processamento das infrações, inclusive de busca e apreensão.
§ 2º A comissão poderá, cautelarmente, propor à autoridade
instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo
objeto da investigação.
§ 3º A comissão deverá concluir o processo no prazo de 180
(cento e oitenta) dias contados da data da publicação do ato
que a instituir e, ao final, apresentar relatórios sobre os fatos
apurados e eventual responsabilidade da pessoa jurídica,
sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas.
§ 4º O prazo previsto no § 3o poderá ser prorrogado, mediante
ato fundamentado da autoridade instauradora.
Art. 11. No processo administrativo para apuração de responsabilidade, será concedido à pessoa jurídica prazo de
30 (trinta) dias para defesa, contados a partir da intimação.
Art. 12. O processo administrativo, com o relatório da comissão, será remetido à autoridade instauradora, na forma
do art. 10, para julgamento.
Os artigos 10 a 12 da LAC trazem normas atinentes ao rito do
processo administrativo de apuração da responsabilidade das pessoas
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Revista da AJUFERGS / 09
jurídicas. Destacam-se, entre tais normas, aquelas que permitem que o
ente público requeira medidas judiciais submetidas à reserva de jurisdição (art. 5º, XI e XII, da CF), como busca e apreensão, e também as
que possibilitam a suspensão cautelar dos efeitos do ato lesivo ou do
processo objeto da investigação.
Art. 13. A instauração de processo administrativo específico
de reparação integral do dano não prejudica a aplicação
imediata das sanções estabelecidas nesta Lei.
Parágrafo único. Concluído o processo e não havendo pagamento, o crédito apurado será inscrito em dívida ativa da
fazenda pública.
O art. 13 da LAC estabelece que a instauração de processo administrativo específico para reparação integral do dano causado pela pessoa
jurídica não prejudica a aplicação imediata das sanções de multa e de
publicação da decisão extraordinária, sendo certo que, caso o responsável não realize o pagamento ao final do procedimento, o crédito será
inscrito em dívida ativa.
Aqui, cabe fazer uma indagação: é possível que referido crédito
– reparação integral do dano causado pela pessoa jurídica – possa ser
inscrito em dívida ativa e, consequentemente, aparelhar futura execução
fiscal? Trata-se de questão interessante, mas que transborda os limites
deste trabalho.
Nada obstante, em breves comentários, verifica-se que tal crédito –
obrigação de reparar o dano – possui natureza nitidamente indenizatória,
tendo em vista que, no caso, a Fazenda Pública sofreu um dano e pretende
vê-lo ressarcido por meio do pagamento de um determinado valor. Nessa
perspectiva, considerando-se que o art. 39, § 2º, da Lei 4.320/1964, que
estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle
dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do
Distrito Federal, traz, no rol de créditos não tributários, a indenização,
tem-se que uma leitura fria e isolada desses dispositivos legais enseja a
conclusão de que é possível, sim, a inscrição em dívida ativa da obrigação
de reparar o dano.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
71
Entretanto, entende-se que, à luz dos postulados da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, da CF) e da isonomia (art. 5º, caput e I, também da
CF), não se pode conferir tal prerrogativa à Fazenda Pública, pelo que,
em situações como essas, o mais adequado seria o ajuizamento de ação
judicial de conhecimento para cobrança do referido crédito. Com efeito,
possibilitar que o Poder Público, nesses casos, possa confortavelmente
constituir o seu crédito na esfera administrativa configura odioso privilégio. Isso porque, se o Estado causa um dano ao particular, este deverá
constituir o seu crédito judicialmente, por meio de um título executivo
judicial, enquanto a Fazenda Pública, no mesmo caso, poderia fazê-lo
administrativamente, e desde já ajuizar feito executivo, fato esse que,
defende-se, viola a segurança jurídica e a isonomia.
Portanto, trata-se de questão espinhosa, que deverá ser tratada pela
doutrina e pela jurisprudência nos próximos anos.
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para
facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos
previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial,
sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas
à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com
poderes de administração, observados o contraditório e
a ampla defesa.
Prosseguindo, observa-se que o dispositivo em tela trata da desconsideração da personalidade jurídica, nos casos de abuso de direito,
com intuito de facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos,
ou de confusão patrimonial, desde que observados o contraditório e a
ampla defesa.
O instituto é bastante conhecido no direito brasileiro e possui
previsões em diversos diplomas normativos. Todavia, novamente um
artigo da LAC é objeto de questionamento, no seguinte sentido: poderia
uma autoridade administrativa (o art. 14 está dentro do capítulo IV, que
trata do processo administrativo de responsabilização) desconsiderar a
personalidade jurídica sem ordem judicial ou tal medida está submetida
à reserva de jurisdição?
72
Revista da AJUFERGS / 09
Mais uma vez, compreende-se que o tema merece maiores digressões, mas se entende, com o intuito de firmar posicionamento, que a
desconsideração da personalidade jurídica, de regra, somente pode ser
determinada por autoridade judicial, salvo quando a lei expressamente
previr a possibilidade de a autoridade administrativa fazê-lo. Veja-se,
a respeito, que: (a) no Código Civil (art. 50) e no Código de Defesa do
Consumidor (art. 28, caput), o legislador, de forma expressa, previu que
somente o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica; (b) na Lei
Antitruste (Lei 12.529/2011, art. 34) e na Lei dos Crimes Ambientais
(Lei 9.605/1998, art. 4º), o legislador, assim como na LAC, foi silente,
pelo que se entende que somente a autoridade judicial poderá determinar a desconsideração; (c) por fim, no Código Tributário Nacional
(art. 116, § único), tratando de instituto similar, o legislador expressamente previu que a autoridade administrativa poderá desconsiderar
atos e negócios jurídicos que pretendam dissimular a ocorrência do
fato gerador do tributo.
Destarte, parece claro que apenas quando o legislador expressamente
autorizar é que será possível que o administrador determine, sem ordem
judicial, a desconsideração da personalidade jurídica, pelo que, no caso
da LAC, somente o juiz poderia fazê-lo.
5. Do acordo de leniência
CAPÍTULO V
DO ACORDO DE LENIÊNCIA
Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade
pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas
jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta
Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:
I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando
couber; e
II - a obtenção célere de informações e documentos que
comprovem o ilícito sob apuração.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
73
§ 1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser
celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes
requisitos:
I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre
seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento
na infração investigada a partir da data de propositura do
acordo;
III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e
coopere plena e permanentemente com as investigações e o
processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas,
sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu
encerramento.
§ 2º A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa
jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º e no
inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o
valor da multa aplicável.
§ 3º O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da
obrigação de reparar integralmente o dano causado.
§ 4º O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o
resultado útil do processo.
§ 5º Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às
pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico,
de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto,
respeitadas as condições nele estabelecidas.
§ 6º A proposta de acordo de leniência somente se tornará
pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no
interesse das investigações e do processo administrativo.
§ 7º Não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.
§ 8º Em caso de descumprimento do acordo de leniência,
a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar novo acordo
74
Revista da AJUFERGS / 09
pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela
administração pública do referido descumprimento.
§ 9º A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo
prescricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei.
§ 10. A Controladoria-Geral da União – CGU é o órgão
competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito
do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.
Art. 17. A administração pública poderá também celebrar
acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela
prática de ilícitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho
de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções
administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.
Depois de tratar do processo administrativo, o capítulo V da LAC
versa sobre instituto que também não é novo no direito brasileiro, mas
que vem sendo bastante aplicado, especialmente na seara criminal: o
acordo de leniência, também chamado de colaboração/delação premiada.
Na verdade, referido acordo constitui-se em benefício concedido à pessoa
jurídica infratora por parte do legislador, sempre que ela decida colaborar
efetivamente com a investigação e o processo administrativo. Apesar de
sofrer críticas por parte de setores da doutrina especializada – que veem
no instituto um pernicioso concerto entre o Estado e o particular infrator
–, fato é que o acordo de leniência, quando bem definido e estruturado,
permite que se tenha acesso a dados e circunstâncias, pertinentes ao
fato investigado, que dificilmente seriam alcançados pelas autoridades
competentes, caso utilizassem apenas as vias ordinárias. Com efeito,
a colaboração entre o infrator e o Estado é largamente utilizada em
outros sistemas jurídicos, como o norte-americano, produzindo resultados bastante significativos, de modo que deve ser saudada a iniciativa
do legislador em inserir o instituto na sistemática de repressão da Lei
Anticorrupção.
Observa-se, assim, que o caput do art. 16 e seus dois incisos trazem
os pressupostos para a celebração do acordo de leniência, enquanto o §
1º apresenta os requisitos que devem ser cumpridos pela pessoa jurídica.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
75
Caso o acordo seja efetivo, a infratora ficará isenta das sanções de publicação da decisão extraordinária e suspensão ou interdição parcial de
suas atividades (nos casos em que há processo judicial), assim como o
valor da multa aplicável será reduzido em até 2/3 (dois terços). Porém,
a celebração do acordo não exime a pessoa jurídica da obrigação de
reparação do dano.
Nota-se, ademais, que, ainda que a proposta de acordo seja rejeitada,
tal circunstância não importará reconhecimento da prática do ilícito por
parte da pessoa jurídica. Além disso, em caso de descumprimento do
acordo, a infratora ficará impedida de celebrar outro, no prazo de 3 (três)
anos a partir do conhecimento da administração do descumprimento.
Por fim, digno de nota é o art. 17 da LAC, que estende a possibilidade de celebração de acordo de leniência no que concerne às sanções
administrativas previstas no art. 86 e seguintes da Lei 8.666/1993 (Lei
de Licitações e Contratos Administrativos). Trata-se de importante
previsão, tendo em vista que é de conhecimento geral que a atividade
licitatória constitui campo fértil para a prática de atos lesivos à administração pública.
6. Da responsabilização judicial
CAPÍTULO VI
DA RESPONSABILIZAÇÃO JUDICIAL
Art. 18. Na esfera administrativa, a responsabilidade da
pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial.
O penúltimo capítulo da Lei Anticorrupção trata da responsabilização
judicial da pessoa jurídica infratora. Trata-se, logo, de regras destinadas
ao eventual processo judicial que poderá surgir em decorrência da prática
dos atos lesivos previstos na LAC.
Nesse diapasão, inicia a LAC, no art. 18, afirmando que a possibilidade de responsabilização judicial da pessoa jurídica infratora não resta
afastada pela configuração de sua responsabilidade na esfera administrativa. Na verdade, a LAC apenas reafirma um entendimento pacificado
76
Revista da AJUFERGS / 09
no ordenamento jurídico pátrio, qual seja a possibilidade de que alguém,
ou alguma pessoa jurídica, seja responsabilizada, por determinados atos
que praticou, em três esferas diferentes: administrativa, cível e penal.
A exemplo da Lei 8.429/1992, que trata da responsabilização por
atos de improbidade administrativa, a LAC, no presente capítulo, estabelece, na esfera cível, as sanções aplicáveis à pessoa jurídica infratora.
Nada obstante, ela também poderá ser punida na esfera administrativa,
conforme capítulos anteriores, e nada impede que os seus diretores e/ou
administradores também sejam punidos na esfera penal, tendo em vista
que muitas das condutas previstas nesta Lei também são tipificadas como
crimes no Código Penal e em leis penais extravagantes. É certo que as
três esferas são independentes e autônomas entre si, o que possibilita a
responsabilização cumulativa ou isolada.
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta
Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos
de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério
Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das
seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:
I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem
vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;
IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções,
doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas
e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo
poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5
(cinco) anos.
§ 1º A dissolução compulsória da pessoa jurídica será determinada quando comprovado:
I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
77
II - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses
ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.
§ 3º As sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou
cumulativa.
§ 4º O Ministério Público ou a Advocacia Pública ou órgão
de representação judicial, ou equivalente, do ente público
poderá requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou
valores necessários à garantia do pagamento da multa ou
da reparação integral do dano causado, conforme previsto
no art. 7º, ressalvado o direito do terceiro de boa-fé.
Dando prosseguimento, percebe-se que o art. 19, no seu caput,
estabelece de quem é a legitimidade para figurar no polo ativo da ação
judicial movida em face da pessoa jurídica infratora, para fins de responsabilização pela prática dos atos previstos no art. 5º da LAC. Isso
porque os entes federativos – União, estados/DF e municípios –, por
meio da advocacia pública, e o Ministério Público, seja da União, seja
dos estados/DF, são quem detêm tal legitimidade.
Aqui, uma particularidade: mesmo nos casos em que os atos lesivos
tenham sido praticados em detrimento de autarquias e/ou fundações públicas, as quais são pessoas jurídicas de direito público, a ação deverá ser
ajuizada pelo ente federativo ao qual tais entidades estão vinculadas ou
pelo Ministério Público competente. Exemplificando, se o Banco Central
do Brasil (autarquia federal) for vítima de algum ato lesivo previsto na
LAC, a legitimidade ativa caberá somente à União e ao Ministério Público Federal. Sucede que, no caso, apesar de as autarquias e as fundações
públicas possuírem capacidade de ser parte – e, portanto, poderem perseguir seus direitos em processo judicial –, o legislador optou por conferir
legitimidade somente às entidades federativas propriamente ditas.
Demais disso, a LAC foi omissa no que tange às pessoas jurídicas de
direito público externo, como os Estados estrangeiros e as organizações
internacionais. Caso essas entidades sejam as vítimas, de quem será a
legitimidade ativa para ajuizar a ação correspondente? Defende-se, para
tal circunstância, que a pertinência subjetiva ativa da ação recairá sobre
a União, por meio da Advocacia-Geral da União, e sobre o Ministério
Público da União, ainda que estejam envolvidos servidores estaduais/
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Revista da AJUFERGS / 09
distritais ou municipais. Isso porque, se na esfera administrativa a competência para apuração da responsabilidade é da Controladoria-Geral da
União (art. 9º), que é órgão federal, a legitimidade será da União e do
MPU, por simetria.
Depois da legitimidade, a LAC, nos incisos do art. 19, traz as sanções
aplicáveis à pessoa jurídica infratora na esfera judicial, que podem ser
(a) perdimento dos bens, direitos ou valores, (b) suspensão ou interdição parcial das atividades, (c) dissolução compulsória e (d) proibição
de receber determinados benefícios de entidades públicas. A dissolução
compulsória, porém, em virtude da gravidade da sanção, somente poderá
ser aplicada em casos específicos, como nas situações em que a pessoa
jurídica foi criada para a prática de ilícitos, de forma habitual, ou para
ocultar e/ou dissimular interesses obscuros ou a identidade de infratores.
Ressalta-se, também, que tais sanções podem ser aplicadas cumulativa
ou isoladamente e que o legitimado ativo pode requerer ao Judiciário a
indisponibilidade de bens, direitos ou valores da pessoa jurídica, a fim
de pagar a multa ou reparar o dano causado pelo ato lesivo.
Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão
ser aplicadas as sanções previstas no art. 6º, sem prejuízo
daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada
a omissão das autoridades competentes para promover a
responsabilização administrativa.
Art. 21. Nas ações de responsabilização judicial, será adotado o rito previsto na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.
Parágrafo único. A condenação torna certa a obrigação
de reparar, integralmente, o dano causado pelo ilícito, cujo
valor será apurado em posterior liquidação, se não constar
expressamente da sentença.
Depois, o art. 20 traz uma interessante previsão, que se traduz na
possibilidade de, nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderem
ser também aplicadas as sanções previstas na esfera administrativa, nos
casos em que houver omissão da autoridade competente, e sem prejuízo
das sanções judiciais. Em outras palavras, se a autoridade administra-
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
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tiva não promover a responsabilização da pessoa jurídica infratora, o
Ministério Público, ao ajuizar a ação correspondente, poderá pleitear a
aplicação das sanções previstas nos artigos 6º e 19, de forma cumulativa
ou isolada. É uma espécie de “ação judicial subsidiária da administrativa”, ressaltando-se, sem embargo, que essa possibilidade somente
foi franqueada, pela LAC, ao órgão ministerial, vedando-a aos demais
legitimados – a saber, aos entes federativos.
Finalizando o capítulo, o caput do art. 21 determina que a ação judicial seguirá o rito previsto na Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985),
o que se mostra deveras relevante, especialmente no que concerne à
aplicação, em tese, de institutos próprios daquela norma, como a possibilidade de firmar compromisso de ajustamento de conduta (art. 5º, § 6º).
Numa primeira análise, parece não haver óbice para que a Lei de Ação
Civil Pública seja aplicada integralmente ao rito da LAC, no que não
lhe for contrária. Entretanto, não há dúvidas de que tais questões logo
serão objeto de debate na jurisprudência, a qual terá papel importante
na pacificação desses temas.
Finalmente, o § único do art. 21 estabelece um efeito automático
da condenação na ação judicial, que é a obrigação de reparar o dano
causado pelo ilícito. Trata-se de obrigação de pagar, cujo valor poderá
constar do dispositivo da sentença condenatória ou ser apurado em
posterior liquidação.
7. Disposições finais
CAPÍTULO VII
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 22. Fica criado no âmbito do Poder Executivo federal o
Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, que reunirá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou
entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de
todas as esferas de governo com base nesta Lei.
§ 1º Os órgãos e entidades referidos no caput deverão informar e manter atualizados, no CNEP, os dados relativos às
sanções por eles aplicadas.
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§ 2º O CNEP conterá, entre outras, as seguintes informações
acerca das sanções aplicadas:
I - razão social e número de inscrição da pessoa jurídica ou
entidade no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ;
II - tipo de sanção; e
III - data de aplicação e data final da vigência do efeito
limitador ou impeditivo da sanção, quando for o caso.
§ 3º As autoridades competentes, para celebrarem acordos
de leniência previstos nesta Lei, também deverão prestar e
manter atualizadas no CNEP, após a efetivação do respectivo acordo, as informações acerca do acordo de leniência
celebrado, salvo se esse procedimento vier a causar prejuízo
às investigações e ao processo administrativo.
§ 4º Caso a pessoa jurídica não cumpra os termos do acordo
de leniência, além das informações previstas no § 3o, deverá
ser incluída no CNEP referência ao respectivo descumprimento.
§ 5º Os registros das sanções e acordos de leniência serão excluídos depois de decorrido o prazo previamente estabelecido
no ato sancionador ou do cumprimento integral do acordo de
leniência e da reparação do eventual dano causado, mediante
solicitação do órgão ou entidade sancionadora.
Inicialmente, o art. 22 trata da criação, no âmbito do Poder Executivo
federal, do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, o qual tem
por função reunir e publicizar as sanções aplicadas às pessoas jurídicas
infratoras por parte dos três Poderes, em todas as esferas federativas. O
órgão responsável pela punição deverá informar e manter atualizados os
dados relativos à aplicação das sanções, especialmente no que se refere
aos termos a quo e ad quem das punições. Ademais, o CNEP também
conterá informações relativas ao acordo de leniência eventualmente
celebrado com a pessoa jurídica infratora, salvo se houver necessidade
de conferir sigilo a tais dados, a fim de não prejudicar as investigações
e o processo administrativo.
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
81
Art. 23. Os órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo deverão
informar e manter atualizados, para fins de publicidade,
no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas
– CEIS, de caráter público, instituído no âmbito do Poder
Executivo federal, os dados relativos às sanções por eles
aplicadas, nos termos do disposto nos arts. 87 e 88 da Lei
nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Art. 24. A multa e o perdimento de bens, direitos ou valores
aplicados com fundamento nesta Lei serão destinados preferencialmente aos órgãos ou entidades públicas lesadas.
Art. 25. Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas
nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de
infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
Parágrafo único. Na esfera administrativa ou judicial, a
prescrição será interrompida com a instauração de processo
que tenha por objeto a apuração da infração.
Já o art. 25 traz regras concernentes ao prazo prescricional, relativo
à pretensão dos entes federativos e do Ministério Público, para aplicação
das sanções previstas na LAC, em face da pessoa jurídica infratora.
Com efeito, a partir da ciência da infração, por parte dessas autoridades, ou do dia em que ela cessar, nos casos de permanência ou continuidade, começa a correr o prazo de 5 (cinco) anos para o ajuizamento
de ação visando à aplicação das sanções aqui examinadas. Tal prazo,
contudo, interrompe-se com a instauração de processo, seja na esfera
administrativa, seja na esfera judicial, que tenha por objeto a apuração
da infração.
Ressalta-se que, ao contrário de outros diplomas, como a Lei de Improbidade Administrativa (art. 23, II, c/c art. 142, § 2º, da Lei 8.112/1990),
no âmbito da LAC, aplica-se o prazo prescricional de 5 (cinco) anos,
ainda que o ato lesivo também seja capitulado como crime na lei penal.
V.g., ainda que o ato lesivo praticado seja a corrupção ativa (art. 5º, I),
conduta considerada crime pelo Código Penal, o prazo para aplicação
das sanções será de 5 (cinco) anos.
82
Revista da AJUFERGS / 09
Art. 26. A pessoa jurídica será representada no processo
administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social.
§ 1º As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de
seus bens.
§ 2º A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo
gerente, representante ou administrador de sua filial, agência
ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.
Art. 27. A autoridade competente que, tendo conhecimento das
infrações previstas nesta Lei, não adotar providências para a
apuração dos fatos será responsabilizada penal, civil e administrativamente nos termos da legislação específica aplicável.
Art. 28. Esta Lei aplica-se aos atos lesivos praticados por
pessoa jurídica brasileira contra a administração pública
estrangeira, ainda que cometidos no exterior.
Art. 29. O disposto nesta Lei não exclui as competências do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério
da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar
fato que constitua infração à ordem econômica.
Logo depois, percebe-se que o art. 28 estabelece uma hipótese de
extraterritorialidade ao determinar que no caso de ato lesivo praticado
por pessoa jurídica brasileira contra Estados estrangeiros ou organizações
internacionais, ainda que cometidos no exterior, aplica-se o disposto na
LAC. Em outras palavras, o legislador, ao determinar a aplicação da
Lei em tela a condutas praticadas no exterior, constitui uma exceção ao
princípio da territorialidade, segundo o qual será aplicada, a determinado fato jurídico, a lei do país em que ele ocorreu. Defende-se que a
aplicação da LAC, nessa hipótese, independe da instauração, ou não, no
país em que ocorrido o ato lesivo, de procedimento destinado a apurar a
responsabilização da pessoa jurídica infratora, na medida em que se trata
de norma que expressamente determina a extraterritorialidade.
Por sua vez, o art. 29 estatui que as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, do Ministério da Justiça e
do Ministério da Fazenda para processar e julgar fatos que constituam
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
83
infração à ordem econômica (Lei 12.259/2011) não são excluídas pelo
disposto na LAC. Isso significa, portanto, que a pessoa jurídica infratora
poderá ter sua conduta sancionada, de forma cumulativa, tanto pelas autoridades que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
quanto por aquelas previstas na LAC, sem que isso importe dupla punição.
Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta
os processos de responsabilização e aplicação de penalidades
decorrentes de:
I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei no
8.429, de 2 de junho de 1992; e
II - atos ilícitos alcançados pela Lei no 8.666, de 21 de
junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos
da administração pública, inclusive no tocante ao Regime
Diferenciado de Contratações Públicas – RDC instituído
pela Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011.
Art. 31. Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias
após a data de sua publicação.
Finalmente, é preciso tecer alguns comentários sobre o art. 30 da
LAC, o qual certamente será objeto de embates e discussões na doutrina
e na jurisprudência.
Verifica-se, na redação do dispositivo, que o legislador determinou
que a aplicação da LAC não afeta nem prejudica a aplicação de penalidades por atos de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992) e também
por atos lesivos praticados na esfera das licitações e das contratações
com a administração pública (Lei 8.666/1993). O que a LAC está dizendo, com isso, é que é possível, em tese, a cumulação de penalidades
decorrentes dos três diplomas normativos. Destarte, uma mesma pessoa
jurídica poderia ser sancionada triplamente: (1) por atos previstos na Lei
Anticorrupção, (2) por atos de improbidade administrativa e (3) por atos
lesivos no âmbito das licitações e dos contratos (3).
Mais uma vez, esclarece-se que um exame minucioso e pormenorizado do tema foge ao escopo deste trabalho, levando-se em conta que
um dos seus objetivos é abordar a LAC de maneira geral, ressaltando-
84
Revista da AJUFERGS / 09
-se aqueles aspectos que dizem respeito ao Direito Administrativo. Sem
embargo, e no intuito de tomar posição, entende-se que é possível, sim, a
aplicação cumulativa das sanções previstas nos três diplomas normativos,
desde que tal circunstância não implique “bis in idem”.
Veja-se, por exemplo, o ato lesivo previsto no art. 5º, I, da LAC
(corrupção ativa). É certo que tal conduta é sancionada, a um só tempo,
pela LAC e pelos artigos 9º e 11 da Lei de Improbidade Administrativa,
tendo em vista que constitui ato que importa enriquecimento ilícito do
agente público (art. 9º da LIA) e também atenta contra os princípios da
administração pública (art. 11 da mesma Lei). Não é demais lembrar que,
nesses casos, a LIA permite a responsabilização de pessoas jurídicas de
direito privado, nos termos do seu art. 3º.
Nessa perspectiva, parece não haver dúvidas de que, ainda que as
mencionadas Leis protejam bens jurídicos diversos, haverá, a princípio, bis in idem, tendo em vista, inclusive, que algumas das sanções
aplicáveis são idênticas (p. ex., o perdimento de bens). E, ainda que as
condutas que lesam a administração pública pátria devam ser gravemente
sancionadas – considerando, sobretudo, os sistemáticos esquemas de
locupletação e aferição de vantagens indevidas que tomaram de assalto
o Estado brasileiro nos últimos anos –, é certo que a punibilidade dos
agentes infratores deve sofrer limitações, como sói acontecer no Estado
Democrático de Direito. Assim, trata-se de mais uma questão que, no seu
devido tempo, deverá ser resolvida pela jurisprudência, a fim de trazer
segurança jurídica e evitar responsabilizações desmedidas.
Conclusão
A edição da Lei Anticorrupção, por meio dos representantes eleitos
do povo brasileiro, deixa claro que a sociedade considera a corrupção,
a burocracia e a má qualidade de gestão como fatores impeditivos do
progresso e da justiça social. Assim, são louváveis os esforços desenvolvidos para melhorar a imagem do país e criar uma cultura de combate à
corrupção, entre os quais a publicação da LAC está inserida.
Destarte, após uma análise geral das normas previstas na referida
norma, é possível concluir que, apesar de pequenas incongruências de
texto e situações esparsas de juridicidade questionáveis, o resultado
Comentários à Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013
85
alcançado foi satisfatório. De acordo com Capanema7, há dois avanços
bastante significativos da LAC, quais sejam a atribuição de responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas infratoras e a inclusão do suborno
no rol de atos lesivos imputáveis a tais pessoas.
Além do mais, é certo que a LAC ainda passa por período de maturação, o que demanda ajustes de interpretação, especialmente por parte
do Poder Judiciário. Trata-se de momento especial de reflexão e crítica
sobre o inovador arcabouço jurídico criado para o combate à corrupção.
Para Bittencourt8, os principais problemas presentes da LAC são os
seguintes: (a) o processo administrativo de responsabilização da pessoa
jurídica será julgado pela autoridade máxima do órgão que o instaurou,
posto normalmente ocupado por políticos; (b) a decisão de tal autoridade
não está vinculada ao parecer dos servidores da comissão julgadora; (c) o
procedimento poderá ser prorrogado indefinidamente; (d) a inexistência
de recurso cabível contra a decisão tomada pela autoridade administrativa; (e) a demasiada concentração de poder pela autoridade administrativa
que decidirá o processo; (f) a falta de critérios claros para a fixação das
penas. Da mesma forma, Petreluzzi e Rizek Junior9 entendem que o
principal problema da LAC reside na imprecisão das consequências dos
acordos de leniência, considerando as várias possibilidades sancionatórias
pela prática de um único fato. Isso porque somente há viabilidade na
confecção de acordos de leniência se a sua efetivação significar prêmio
efetivo às pessoas jurídicas colaboradoras, o que não é possível no momento, ante as incongruências do sistema.
Acrescentam-se, a tais situações, alguns pontos polêmicos levantados
ao longo deste artigo, como a possibilidade de cumulação de sanções entre
a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção e a questão
acerca da possibilidade, ou não, de desconsideração da personalidade
jurídica por autoridades administrativas. Fica claro que caberá ao Judiciário delinear os contornos de aplicação de tais normas, observando, de
um lado, a premente necessidade de moralizar as relações entre pessoas
jurídicas de direito privado e agentes públicos e, de outro, o respeito às
garantias constitucionalmente positivadas.
7 Op. cit., p. 27-28.
8 Op. cit., p. 24-26.
9 Op. cit., p. 106-107.
86
Revista da AJUFERGS / 09
De mais a mais, os mesmos Petreluzzi e Rizek Junior, partilhando
de opinião semelhante à de Fernandes e Costa10, alertam para a necessidade de criação de um sistema jurídico de combate à corrupção, o qual
englobaria normas de diversas esferas do Direito.
Atualmente, é impossível dizer que há tal sistema no Brasil, devido
à existência de superposições e até mesmo de contradições entre os mais
diversos diplomas normativos. Com efeito, o ideal seria a edição de um
Código de Direito Administrativo, o qual buscasse consolidar, em um
só diploma, o sistema de normas que compõem tal esfera da dogmática
jurídica. Enquanto isso não for feito, haverá textos falhos, os quais favorecem a insegurança jurídica e a ação de pseudojuristas.
De todo modo, na esteira do que defende Nascimento11, conclui-se
que o combate à corrupção, no Brasil, ganhou com a edição da Lei Anticorrupção. É certo que a norma – ainda que suscite muitas discussões
e construções ao longo dos anos – imporá uma nova agenda jurídica e
política para as pessoas jurídicas, independentemente do seu tamanho
ou de seu modo de organização. Não há dúvidas que haverá um esforço
coletivo dos atores envolvidos na temática para que, com a edição da
LAC, a corrupção tentacular, que tanto corrói as instituições brasileiras,
seja paulatinamente enfraquecida.
Referências bibliográficas
BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção – Lei
12.846/2013. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 176p.
DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz; DAL POZZO, Augusto Neves;
DAL POZZO, Beatriz Neves; FACCHINATTO, Renan Marcondes. Lei
Anticorrupção – Apontamentos sobre a Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. 120p.
NASCIMENTO, Melillo Dinis do (org.). Lei Anticorrupção Empresarial –
Aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. 192p.
PETRELLUZZI, Marco Vinício; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei
Anticorrupção – Origens, comentários e análise da legislação correlata.
São Paulo: Saraiva, 2014. 122p.
10 Op. cit., p. 57-58.
11 Op. cit., p. 115-116.
Limites sociológicos ao uso
intensivo do Bacen-Jud
Marcel Citro de Azevedo
Juiz Federal substituto do TRF/4ª região, professor da Esmafe-RS e
mestrando em Direito na UFRGS.
RESUMO: Este artigo apresenta um contraste entre os modelos capitalista e comunista da propriedade, fazendo o contraponto entre um
Estado omisso, que nada realiza em prol de seus cidadãos, e o Estado
máximo, que, por conta de sua intervenção contínua e estabanada, acaba
agredindo-os em seus direitos mais elementares. A partir do entrechoque
entre esses dois modelos, o artigo enfatiza a necessidade da moderação
no uso da ferramenta Bacen-Jud, utilizada para o bloqueio de contas-correntes como modo de satisfazer o crédito fazendário, evitando-se
tanto a postura de intervenção mínima adotada pelo Estado Liberal
Clássico como a atitude de menoscabo ao mínimo existencial levada ao
extremo pelo Estado totalitário.
PALAVRAS-CHAVE: Sociologia do Direito. Propriedade. Estado Mínimo. Lide Sociológica. Bacen-Jud.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Desigualdade. 2 O Estado ausente da questão social: capitalismo sem peias. 3 Totalitarismo comunista: terror de
Estado. 4 Em busca de um meio termo estatal: socialismo utópico e
social-democracia. 5 Estado Fiscal contemporâneo como pressuposto
de Estado Social de Direito. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
Uma das definições mais exatas da sociologia é aquela que a determina como um conjunto de conceitos, teorias e métodos aptos a permitir que
se estabeleça “uma postura intelectual ordenada em face dos fenômenos
de equilíbrio social (estrutura), de desequilíbrio social (mudanças) e de
reequilíbrio social (reestruturação)”1.
No ambiente brasileiro deste início de século, esses três fenômenos
vêm ocorrendo cada vez mais simultaneamente: queremos tudo ao mesmo
tempo agora. Nesse contexto de “um querer” extremado e incondicional,
1 CASTRO, Celso Antônio Pinheiro. Sociologia do Direito. 7ª edição. São Paulo: Atlas,
2001, p. 20.
88
Revista da AJUFERGS / 09
a sucessão cadenciada de equilíbrio e de desequilíbrio sociais encontra
um reequilíbrio muito mais precário em nossa realidade multifacetada
e extremamente mutável. Como se estivesse em queda livre, o mundo
acelerou-se.
Tal aceleração impacta diretamente o Direito, de forma que qualquer estudo que almeje investigar seriamente uma questão jurídica deve
preocupar-se também com suas raízes, firmemente presas ao tecido social.
Por vezes, a lide jurídica é pretensamente resolvida sem que se solucione
a lide sociológica a ela subjacente.
O aporte sociológico e o estudo de modelos alternativos de vida
inserem-se no âmbito mais amplo das humanidades, projetando um
modelo de operador de Direito “mais crítico por mais culto”, como já
teve a oportunidade de expressar o jurista espanhol José Calvo Gonzalez,
autor do livro Direito Curvo2.
De fato, no campo sociológico-jurídico, a linha reta não é sempre a
distância mais curta entre dois pontos. Hoje, o Direito não é mais retilíneo como foi outrora, e sim curvo. O Direito empedernido, quadrático e
repleto de ângulos retos, que formam arestas, tende a se separar da vida
e, por vezes, a dificulta; até mesmo a ignora.
Em uma abordagem prática, penso que o aplicador do Direito afasta-se do que é humano – da vida em si – quando, por exemplo, faz uso não
criterioso do Bacen-Jud, privando sem causa jurídica o réu de uma ação
de cobrança – qualquer espécie de cobrança – dos meios para prover a
sua subsistência.
Desde o advento da Lei Complementar 118/2005, a penhora eletrônica de valores em conta-corrente – também conhecida entre os operadores
de Direito como ferramenta “Bacen-Jud”, pois foi desenvolvida a partir
de um convênio celebrado entre vários órgãos do Poder Judiciário e o
Banco Central – passou a ser considerada como meio preferencial para a
ordem de indisponibilidade de ativos. Assim, tão logo citado o executado
e não apresentados bens penhoráveis, o credor postula judicialmente o
bloqueio de valores eventualmente existentes em contas-correntes de
qualquer agência bancária do país.
2 GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
89
O impacto social dessa medida é extremo. Com um simples “enter”
no teclado de um computador, recursos financeiros indispensáveis para
a manutenção do mínimo existencial tornam-se indisponíveis. Quando o
bloqueio é realizado por provocação de Conselhos de Fiscalização Profissional – também habilitados a fazer uso da sistemática –, atinge-se com
mais intensidade valores de pequena monta titulados por pessoas humildes3
ou mesmo hipossuficientes, desprovidas de capacidade contributiva e que
sequer têm conhecimento de que devem dar a baixa no seu registro junto a
autarquia profissional quando da aposentadoria ou da mudança de atividade.
A utilização não criteriosa da ferramenta “Bacen-Jud” redunda em
mais desigualdade, tema recorrente no livro O Futuro Chegou, de Domenico de Masi4. Particularmente interessante nessa obra é o contraste
entre as abordagens capitalista e comunista da propriedade5, a visão de
um estado omisso, que nada realiza em prol de seus cidadãos, permitindo
a exploração da maioria pela minoria (Estado liberal clássico durante
a Revolução Industrial), em contraponto a um Estado reduzido a mero
mecanismo de perpetração do terror (Estado totalitário).
Tenho, assim, que os modelos de vida e os parâmetros sociais que
serão apresentados nos tópicos a seguir oferecem balizas sociológicas
bastante importantes para determinar o alcance do uso da ferramenta
Bacen-Jud, procurando-se um meio-termo em que se evite tanto a
omissão do aparato estatal – conforme se via no capitalismo sem peias
da Revolução Industrial – quanto o excesso de intervenção, que, numa
perspectiva extremada, pode redundar até mesmo em terror de Estado.
Nesse contexto, abordo em primeiro lugar a problemática da desigualdade. Foi justamente a tentativa multisecular de superação de um
modelo anti-isonômico e excludente o motor para que fossem idealizados
vários paradigmas alternativos, que ora passo a sumarizar.
3 Pode-se citar, por exemplo, técnicos em enfermagem, em nutrição e em contabilidade,
operadores de raio X, representantes comerciais de ganhos modestos, etc.
4 MASI, Domenico. O futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
5 Em última análise, estabelecer limites no uso da penhora eletrônica via Bacen-Jud é
procurar uma acomodação entre as tensões inerentes à manutenção do direito de propriedade e a necessidade de financiamento de nosso Estado Social e Democrático de
Direito, com seus custos sempre crescentes.
90
Revista da AJUFERGS / 09
1 Desigualdade
“Todos os homens nascem iguais, mas esta é a última vez que o
são”. Esse inspirado aforismo de Abraham Lincoln bem sintetiza a busca
permanente por alguma espécie de igualdade, busca sempre inconclusa,
incompleta.
Um estudo contundente sobre a desigualdade é realizado na obra
O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, um dos principais lançamentos de 2014. Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a
marcha da desigualdade ganhou manchetes em todo o mundo, gerou
debates nas redes sociais e amealhou elogios de diversos ganhadores
do Prêmio Nobel.
O livro apoia-se em dados históricos de mais de vinte países para
concluir que o capitalismo tende a gerar um círculo vicioso de desigualdade, já que, no médio e no longo prazos, a taxa de retorno sobre os ativos
é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que acaba provocando
uma concentração crescente da riqueza. Adverte o autor que uma situação extremada de desigualdade pode levar a uma crise institucional que
venha a colocar em risco os valores democráticos, como já aconteceu
nos anos 20. Salienta, ainda, que uma acertada e corajosa intervenção
política foi capaz de reverter tal quadro no passado e que poderá voltar
a fazê-lo se houver coragem suficiente para tanto.
De fato, é preciso coragem e discernimento para tentar colocar um
freio no apetite dos grandes capitalistas financeiros supranacionais que
movem as engrenagens do mundo econômico moderno. Ainda repercute
a confissão de Warren Buffet, segunda maior fortuna dos Estados Unidos:
“Existe uma Guerra de classes, é certo, mas é a minha classe, a classe
rica, que está fazendo esta guerra, e nós estamos ganhando”.6
Se há uma guerra de classes em andamento, como propalava Marx
e conforme afirma o Sr. Buffet, pode-se dizer que, no Brasil, o topo
dourado da pirâmide social já ganhou. Não a tão festejada Classe A, pois
ela reúne assalariados, profissionais liberais e pequenos empresários cuja
6 Conforme noticiado no periódico norte-americano New York Times, edição de
15.08.2011 disponível em <http://www.nytimes.com/2011/08/16/business/buffett-calls-on-congress-to-raise-taxes-on-the-rich.html>. Acesso em: 29.01.2015.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
91
renda média por pessoa do grupo familiar é de cerca de sete mil reais7,
e sim o ápice, o cume, o pináculo: os beneficiários do enriquecimento
espetacular, que se alçam à condição de donos de ativos na casa dos sete
ou oito dígitos. É essa casta que venceu a guerra e que agora perpetua o
seu triunfo por meio de uma complexa e intrincada estrutura de poder.
Nesse ponto, é preciso esclarecer que o sujeito que obteve sua riqueza
por mérito próprio ou o bem nascido que tão só administra seu legado
sequer lutaram essa guerra. Não causaram dano, não vitimaram ninguém.
O rico é um sujeito a ser prestigiado no nosso modo de produção capitalista, pois seu poder de investimento, se bem direcionado, cria empregos,
enseja oportunidades e faz gerar renda no seu meio circundante.
Notícia divulgada recentemente em vários jornais brasileiros, a partir
de um estudo encomendado pela Tax Justice Network8, aponta que os
brasileiros detêm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais.
De acordo com relatório daquela entidade, “os super-ricos” brasileiros
titulam o equivalente a um terço do PIB em contas off-shore, ou seja,
livres de tributação e de supervisão pelo Banco Central.
Parte significativa desses recursos advém de monumentais transferências irregulares de recursos públicos para o setor privado, à semelhança
daquelas investigadas na recente operação “Lava-Jato”, de conhecimento geral. Seja advinda da remessa ilegal de recursos particulares, seja
oriunda de dinheiro desviado de estatais ou do próprio erário, o estudo
citado estimou essa fortuna bilionária mantida de forma criminosa por
brasileiros no exterior: em 2011, haveria cerca de 520 bilhões de dólares
em paraísos fiscais.
Não obstante uma demonstração de maior rigor na esfera penal
por parte do STF e de algumas instâncias ordinárias, no âmbito civil,
a localização e o repatriamento desses recursos, quando transferidos
para o estrangeiro, ou mesmo o seu bloqueio em território nacional, são
bastante problemáticos. Paralelamente ao expediente lícito de fazer usos
dos vários recursos que eternizam uma demanda judicial, há a prática
ilegal de blindagem patrimonial: transferem-se bens para terceiros, opera7 Para ser exato, R$ 6.563,73, de acordo com dados de 2011 da ABEP – Associação
Brasileira de Empresas de Pesquisa.
8 Rede de Justiça Fiscal, em uma tradução livre.
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Revista da AJUFERGS / 09
-se no mercado financeiro por prepostos, utilizam-se cartões de crédito
expedidos por bancos situados em paraísos fiscais. E os meios legais de
cobrança perdem-se nos complexos meandros do processo e dos seus
meios de impugnação.
A ferramenta Bacen-Jud, do modo como vem sendo manuseada, somente atinge pequenos empresários fracassados e assalariados em geral.
Os pobres estão, realmente, perdendo no Brasil. Nesse ponto, cabível
desenvolver um tópico que sumarize o início do processo de acumulação
de capital que redundou na desigualdade que hoje se verifica.
2 O Estado ausente da questão social: capitalismo sem peias
Quando Friedrich Engels (1820-1895) chegou a Londres, em 1842,
foi surpreendido pelas condições degradantes em que vivia a classe operária inglesa. Parcelas cada vez maiores de camponeses que migravam
para a cidade marginalizavam-se rapidamente, perdendo seu referencial
anterior e passando a habitar moradias insalubres.
Membro de tradicional família alemã, Engels surpreendeu a Inglaterra quando de sua chegada em pleno processo de substituição da
mão de obra humana pelas máquinas. No século XVIII, a tecelagem e
a costura eram feitas quase que artesanalmente, em pequenas oficinas
familiares. A partir do início do século XIX, não só o algodão passou a
ser tratado industrialmente, como também a lã, o linho e a seda. Todavia,
o resultado mais importante da transformação industrial foi o advento
do proletariado inglês9.
Em Manchester, 70% dos habitantes eram operários, moradores de
bairros sujos e degradados10. Não raro, recebiam comida e mercadoria
9 Na Roma antiga, o rei Sérvio Túlio fez uso da expressão “proletários” (proletarii) para
descrever os cidadãos de classe mais baixa, que não tinham propriedades e cujo único
proveito para o Estado era gerar proles (filhos) para engrossar as fileiras das legiões. No
século XIX, o termo voltou a ser utilizado por socialistas, anarquistas e comunistas para
identificar a classe dos desprovidos de meios de vida do capitalismo industrial.
10 Em função da menor força física exigida dos trabalhadores com o advento das máquinas, homens eram demitidos e, em seu lugar, eram contratadas mulheres e crianças,
a quem se podia pagar salários ainda mais miseráveis. Por essa época, eram comuns
jornadas de trabalho de 12 a 16 horas por dia.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
93
estragada de estabelecimentos mantidos pelos próprios industriais. Engels chegou a afirmar que, comparada à escravidão da Antiguidade, a
situação do proletário era pior: este era vendido não de uma vez só e a
apenas um senhor, como o escravo, mas comercializado em partes, todos
os dias. Não pertencia, assim, a uma pessoa somente, mas a toda uma
classe abastada, numa espécie de condomínio demoníaco. E não era só:
o patrão assumia o papel de legislador absoluto, sempre respaldado pela
força pública11 e pelos tribunais, já que os juízes compartilhavam com o
capitalista a mesma origem burguesa.
Nesse contexto de exploração intensa, não havia tempo para família
ou filhos, nem mesmo para as necessidades corporais e espirituais. A
burguesia, segundo Engels, era uma classe corrompida. Já Karl Marx
(1818-1883) afirmava que o capital, se não lhe são colocados freios,
trabalha sem escrúpulos e sem misericórdia “para rebaixar cada vez
mais a classe operária”.
Conforme acentua Masi12:
O primeiro ensinamento que veio do liberalismo é que o livre mercado, tomado ao pé da letra, resulta em desastre. Nós hoje sabemos
que a ação individual, na busca do próprio bem-estar, é insuficiente
para garantir a prosperidade econômica da sociedade. [...] O estado
deve ditar as regras para que o jogo não se torne sempre vantajoso
para apenas um jogador.
O livre mercado tem verdadeira ojeriza à autorregulação e, se é
eficiente em produzir riquezas, é extremamente falho em distribuí-la.
Tende a propiciar grande acumulação de capital, que por sua vez enseja
exclusão e mais desigualdade. Se a tributação justa – ou seja, que respeite
a capacidade contributiva de cada um e obedeça as balizas constitucionais – é um remédio eficaz para combater a tendência concentradora de
renda desse modelo, é preciso também estabelecer critérios para limitar
e disciplinar o uso das ferramentas que concretizam o poder fiscal do
Estado, entre as quais se destaca o Bacen-Jud. Assim como se protege a
11 Tal situação era recorrente no mundo ocidental e provocou ecos no Brasil em inícios
do século XX. É por demais conhecida a máxima de Washington Luis “a questão social
é uma questão de polícia”.
12 MASI, op. cit, p. 353.
94
Revista da AJUFERGS / 09
sociedade dos excessos do livre mercado, é preciso resguardá-la também
do exagero arrecadatório dos entes tributantes, que numa situação limite
pode implicar em supressão da própria propriedade e incentivar uma
sucessão de violências perpetradas por agentes do Estado.
3 Totalitarismo comunista: terror de Estado
Com o Manifesto do Partido Comunista de 1848, resultado da associação de Engels ao conterrâneo Karl Marx, procurou-se ensejar uma
organização revolucionária apta a realizar, por intermédio da luta de
classes (operariado x capitalistas), um modelo de sociedade que viesse
justamente a suprimi-las.
Essa organização, segundo Marx e Engels, jamais poderia ser socialista. Os socialistas eram considerados muitos gentis e pacíficos, uma vez
que apenas admitiam como via para as mudanças a persuasão da opinião
pública, e não a ruptura radical com o status quo. A grande dificuldade
prática seria a mobilização da classe trabalhadora, visto que, de acordo
com os dois pensadores, o trabalho acabava por gerar alienação, o que
impedia o engajamento político e a possibilidade de mudança.
Tal alienação assumiria vários matizes. Primeiro, o operário torna-se estranho ao próprio produto, pois, quando termina a produção
de um objeto na fábrica, esse objeto já não é seu, passando a lhe ser
indisponível. Ele produzirá para a classe dos capitalistas objetos maravilhosos; no entanto, jamais poderá possuí-los. O operário é, também,
alienado do próprio trabalho, já que é o patrão que decide tudo. Ele
não se realiza, não se desenvolve, por vezes resume-se tão só a um
apêndice da máquina.
Por fim, Marx e Engels sugerem que o trabalhador fabril também se
torna alienado de si mesmo e de sua espécie, pois o modelo capitalista cria
contraposição de um operário a outro: eles não são vistos como vítimas
comuns de um sistema de produção opressor, mas como adversários e
mesmo competidores por algo escasso, o emprego13.
13 Os crescentes ganhos tecnológicos advindos do avanço da ciência e da técnica provocam desemprego, e os trabalhadores alijados do processo produtivo acabam por formar
um exército industrial de reserva.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
95
Friederich Engels sobreviveu por doze anos à morte de Marx,
cunhando a expressão “Materialismo Histórico”, que não havia sido referida antes por seu companheiro de ideais. Pelo materialismo histórico,
entende-se que a história é movida pelas relações sociais de produção,
que são de natureza econômica. Contudo, não adiantava tão somente
descrever um modelo: seria necessário, também, transformá-lo. Era
preciso, pois, buscar a transformação prática da sociedade. Era preciso
que a classe dos trabalhadores preponderasse sobre a classe dos capitalistas14. Era necessário, finalmente, que se instaurasse uma ditadura do
proletariado, para só então se alcançar uma sociedade sem classes, na
qual reinasse a solidariedade.
Por incrível que pareça, a ditadura foi instaurada não na Alemanha,
pátria natal dos dois pensadores, nem na Inglaterra, berço da revolução
industrial que tomou conta de toda a Europa e depois do mundo, mas
na atrasada, distante e semifeudal Rússia. Pode-se dizer que, antes de
Marx e Engels, o motor revolucionário do mundo era francês; com a sua
atividade intelectual, passou a ser alemão e, finalmente, tornou-se russo.
Nesse momento, é que entra em cena a dupla Lênin e Stalin.
O irmão mais velho de Lênin foi enforcado por ter participado de
uma conspiração contra o czar, o que o impactou diretamente. Ele exerceu
forte militância na segunda internacional comunista e criou a facção bolchevique, idealizadora do método do centralismo democrático. Por esse
método, toda decisão era discutida em profundidade previamente, mas,
uma vez aprovada, deveria ser compulsoriamente observada por todos. Os bolcheviques tomaram o poder em outubro de 1917, derrubando
o governo moderado de Kerensky, que havia assumido o governo em
março, após a abdicação do czar. Lênin, líder supremo da revolução,
14 Segundo Marx e Engels, havia tão somente a facção dos burgueses e a facção dos
proletários. As duas massas constituíam duas classes objetivamente contrapostas, duas
classes em si. Para eles, os proletários deviam tornar-se classe “por si”, tomando consciência da sua própria situação objetiva e criando para si próprios uma organização
eficiente, visto que a classe burguesa já se organizava nesse sentido, secundada pelo
aparato estatal e pela religião. Conforme Marx, a classe que controla os meios de produção material controla também os meios de produção intelectual, aquilo que ele chama
de superestrutura. As classes produtoras precisavam unir-se, os proletários “nada tinham
a perder além de suas correntes”.
96
Revista da AJUFERGS / 09
viu-se com um desafio único: construir a primeira sociedade comunista
da História, criando uma organização inédita, sem nenhum molde prévio
em que se inspirar. Ao contrário da promessa das religiões, ele pretendia
criar o paraíso na própria Terra.
No entanto, para chegar à sociedade sem classes, era preciso antes
passar por uma fase de ditadura do proletariado, em que o partido dos
operários e dos camponeses exerceria um poder absoluto. “Todo o poder
aos sovietes”, bradava Lênin, procurando fortalecer os conselhos eletivos
de operários e, em um segundo momento, os soldados – provenientes dos
campos de batalha da Primeira Guerra – e os camponeses.
O excesso de trabalho atingiu sua saúde, provocando um ataque
cardíaco e sua morte, em 1924. Após uma disputa interna violenta, subiu
ao poder Stalin – líder muito mais autoritário, intransigente e cruel. Eliminou milhões de pequenos proprietários de terra para impor as fazendas
coletivas. Promoveu expurgos no exército e entre os quadros do partido
comunista, executando e deportando milhões de soviéticos.
Sob o jugo de Stalin, foram imolados todo direito humano e toda
conquista da liberdade. Cada soviético virou um dócil empregado do
Estado patrão, rectius, das elites dirigentes. Na prática, as classes não
foram abolidas, apenas modificadas.
Após 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, “uma cortina
de ferro” desceu sobre a Europa Oriental, com todos os países a leste
ingressando na órbita soviética. Em 1961, já sob o comando de Nikita
Kruschev, na URSS, foi erigido o muro de Berlim. A situação do operário
da Europa Oriental era bem melhor do que aquela em Manchester, nos
tempos da chegada de Engels, mas no Ocidente sua condição de vida
melhorara visivelmente mais. Além disso, os ganhos econômicos haviam
sido obtidos com a inicial violência revolucionária, que se renovava sem
sinal de exaustão, gerando um estado permanente de terror.
Vê-se, assim, o acerto de Montesquieu ao asseverar que a separação
dos poderes é imprescindível para a democracia e a liberdade, e como
é temerário reprimir nos seres humanos – ainda que sob a justificativa
do atingimento do bem comum e da segurança coletiva – o sentimento
de religiosidade e a necessidade de vida privada. Com o advento do stalinismo, ficou demonstrada a extrema dificuldade de consolidar-se um
modelo comunista sem recorrer à violência institucionalizada.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
97
Exportando tais conclusões para o contexto específico do estudo que
ora desenvolvo, verifico que, em uma perspectiva extrema, o uso descriterioso do Bacen-Jud equivale, mutatis mutandis, a um uso atenuado
do terror de estado: o Estado-Juiz, tão somente verificando que alguém
deve, indisponibiliza recursos de sua conta-corrente. O executado vê-se,
subitamente, privado da possibilidade de ir ao supermercado, de tomar
uma condução, de pagar a luz e a água de sua casa.
Pode-se dizer, com certeza, que o bloqueio dos recursos existentes
em conta-corrente é muito mais oneroso do que a penhora sobre outro bem
corpóreo: ao penhorar-se um imóvel ou um veículo, salvo raras exceções,
o executado fica como depositário, permanecendo na sua posse, no seu
uso e gozo, enquanto o bloqueio das contas-correntes torna desde logo
indisponível o ativo. Dessa maneira, priva-se o correntista de todos os
direitos atinentes ao domínio, acarretando-lhe encargos moratórios por
conta dos recursos que, imobilizados, não poderão mais fazer frente aos
lançamentos a débito na conta bancária.
Assim como é necessário uma terceira via no embate entre o
capitalismo e o comunismo, também é preciso uma posição intermediária que harmonize a necessidade de satisfação do crédito da
Fazenda Pública e o imperativo de manter-se o mínimo existencial
do devedor tributário.
4 Em busca de um meio termo estatal: socialismo utópico e
social-democracia
Diversas correntes do chamado socialismo utópico, representado
por Saint-Simon, Robert Owen e Louis Blanc, entre outros, também
denunciavam a exploração dos trabalhadores e lutavam “pela educação
permanente dos cidadãos nos princípios da moral social”15. Entendiam
os socialistas que a base determinante do comportamento humano
residia na esfera moral/ideológica e que o desenvolvimento das civilizações ocidentais estava a permitir uma nova era, na qual imperaria
a harmonia social.
15 MASI, op.cit., p. 430.
98
Revista da AJUFERGS / 09
Conforme acentua Masi, “o termo socialist apareceu pela primeira
vez em 1827 na Cooperative Magazine de Robert Owen para indicar
aqueles que enfatizavam o aspecto social das relações humanas mais que
os direitos dos indivíduos”16. Owen, agraciado por Masi com o título de “o
mais interessante entre os utópicos”, inovou ao defender que a eficiência
empresarial dependeria muito mais do bem-estar dos trabalhadores que
de sua exploração e que operário e capitalista deveriam – ao contrário de
adotar uma posição de beligerância permanente – assumir uma verdadeira
parceria para obter vantagens mútuas.
O autor refere que os socialistas ensinaram-nos “em primeiro lugar
o amor pela humanidade. O sentimento de ‘nós’, de sentir-se parte de
uma comunidade, de um arquipélago, jamais sentir-se ilhado ou solitário”17. Refere também o ensinamento plasmado na rejeição do luxo, do
desperdício, das injustas desigualdades, do poder e do bem-estar separado do mérito, e atesta que aqueles homens aguerridos reivindicaram
com bravura18.
as liberdades civis e os direitos sociais, a justiça e a igualdade, o sufrágio universal e o voto secreto, a igualdade entre
homem e mulher, o bem-estar e a intervenção do Estado
para corrigir as desigualdades, a prestação de serviços de
assistência social, a garantia dos serviços básicos, essenciais
para todos os cidadãos.
Friso tal passagem: “[...] intervenção do Estado para corrigir as
desigualdades”. O Estado deve, sim, intervir para corrigir as anomalias
causadas pela atuação individualista e excludente das forças de mercado,
mas respeitando o direito de propriedade, que só deve ser suprimido
em situações excepcionais, e sempre fomentando a livre iniciativa que
enseja o progresso.
É esse o mote que deve orientar a aplicação da ferramenta Bacen-Jud:
uso criterioso, respeitando a propriedade em sua expressão mais sucinta
(mínimo existencial), mas mantendo a potencialidade para atingir tam16 MASI, op.cit, p. 429.
17 MASI, op.cit, p.460.
18 MASI, op.cit., p.461.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
99
bém os devedores mais arrojados, contumazes em desenvolver técnicas
para blindar seu patrimônio e colocarem-se acima dos mecanismos de
coerção fazendários.
São justamente tais mecanismos de coerção fazendários – entre
os quais se inclui o Bacen-Jud – os responsáveis pela arrecadação dos
créditos indispensáveis para a manutenção de políticas públicas de seguridade. Um Estado Social de Direito só se mantém, na atualidade, se
firmemente ancorado em um Estado Fiscal capaz de assegurar, observados os ditames da justiça tributária, os recursos indispensáveis para o
financiamento dessas políticas.
É o que se vê, por exemplo, nos países da Escandinávia. Um
mecanismo de arrecadação tributária eficiente garantindo uma atuação estatal firme no enfrentamento de vários riscos sociais. Como
acentua Masi19: Em todos os países escandinavos, caracterizados por um
alto PIB per capita, um sistema generoso de garantias de
bem-estar social gera o efeito desejado: isto é, uma distribuição bastante igual da riqueza com uma distância bastante
tolerável entre ricos e pobres.
O estudo do Estado Fiscal Contemporâneo – no bojo do qual se
insere a ferramenta Bacen-Jud, pressuposto do Estado de Bem-Estar
Social praticado nas nações nórdicas – é melhor realizado mediante
a comparação entre as práticas atuais e os modelos sumarizados nos
tópicos antecedentes.
No estágio atual de desenvolvimento estatal, o cidadão, mais
do que simples “camarada” ou mão de obra barata para o capitalista
industrial, passou a ser muito mais proativo e cônscio de sua posição
perante o Estado. Não há mais mera relação de poder entre o Estado
e os seus residentes, com a justificação de condutas marcadas pelo
autoritarismo e pelo arbítrio no jus imperium, e sim relação jurídica
pontilhada de direitos e deveres de parte a parte. É o que abordaremos
no tópico seguinte.
19 MASI, op. cit, p. 381.
100
Revista da AJUFERGS / 09
5 Estado Fiscal contemporâneo como pressuposto de Estado
Social de Direito
Pode-se afirmar, por conseguinte, que também as relações com o
fisco vêm se desenvolvendo sob a proteção dos direitos fundamentais,
adquirindo especial significado o papel do princípio da dignidade humana20. Tal princípio possui eficácia irradiante na definição e no alcance
do mínimo existencial, entendido como detentor de uma dupla face:
proteção negativa contra a tributação em excesso e proteção positiva ao
constituir-se o ser humano como destinatário de um conjunto mínimo
de prestações no que concerne à seguridade e à educação fundamental.
Neste particular, Ricardo Lobo Torres ressalta que o conceito de
mínimo existencial está ligado ao conceito de liberdade, uma vez que
não há alternativas de escolha em condições mínimas de sobrevivência.
A preponderância do valor da dignidade da pessoa humana e da conservação do mínimo vital funda-se sobre a ideia da solidariedade social.21
O grande paradoxo é que o tributo, historicamente, sempre esteve
associado à perda dessa mesma liberdade. Na Antiguidade, povos vencidos deveriam pagar tributos aos vitoriosos, como contrapartida por não
terem sido arrasadas suas aldeias e plantações ou mesmo por não terem
sido feitos escravos pelos agressores22.
Durante a consolidação do Estado Nacional, a situação se manteve,
com a renda dos tributos direcionada basicamente para o benefício
exclusivo de determinados estamentos – o imperador, a nobreza, o alto
clero – em detrimento do interesse coletivo. Essa situação somente
veio a alterar-se a partir do século XVIII, com o influxo das ideias
iluministas.
20 Conforme expressa disposição do artigo 1º, III, da Constituição, é fundamento da
República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.
21 Nos termos do art. 3º da Constituição, é objetivo da República brasileira a construção
de uma sociedade que seja livre, justa e solidária.
22 É justamente daí que vem o termo “tributo”, cuja etimologia remete a “repartir por
tribos”, ou seja, dividir os despojos e os resultados da guerra por entre as tribos que,
conduzidas por um líder guerreiro, lograram obter o êxito militar com vistas a garantir
a expropriação de produtos agrícolas, metais preciosos e outros bens.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
101
Surgiram, então, em consequência da concretização do pensamento
iluminista, os estados liberais clássicos, cujas constituições positivavam
uma série de deveres de abstenção por parte do Estado, entendidos como
direitos de primeira geração, mas que também permitiram – como se viu
– a exploração desumana de grandes contingentes de miseráveis. A partir
do término da Primeira Guerra Mundial, todavia, passaram a figurar nos
textos constitucionais os direitos sociais – direitos à prestação na área
de saúde, previdência e assistência social – bem como os direitos trabalhistas advindos da pressão exercida pelos trabalhadores e do temor das
classes dirigentes de que pudesse ser adotado, em cada país, um modelo
político-econômico semelhante ao soviético.
O modelo social brasileiro é extremamente dispendioso, seja em
função da falta de recursos da maioria da população, seja por conta da
má administração desses mesmos recursos e dos desvios de toda a ordem.
A pressão da despesa pública – e a pouca disciplina fiscal dos três entes
tributantes – acaba por ensejar necessidades de arrecadação crescentes,
bem como a adoção de mecanismos rigorosos para a constrição de ativos
penhoráveis, com destaque para a ferramenta Bacen-Jud.
Dessa maneira, o nosso Sistema Tributário, entendido em seu sentido amplo, tem se ocupado quase que com exclusividade da questão
arrecadatória, em detrimento dos valores maiores da Justiça Fiscal e da
Segurança Jurídica.
Na obra Clash! – 8 conflitos culturais que nos influenciam23, os autores são enfáticos ao apontarem nosso país como o possuidor do menor
grau de confiança interpessoal da América do Sul. Considerando que os
sul-americanos já perfazem o povo mais desconfiado da face da Terra,
tem-se que uma atuação estatal que prime pela possibilidade do bloqueio
de valores em conta-corrente de qualquer cidadão, sem a predefinição de
requisitos mínimos consistentes, irá expandir assustadoramente esse já
alto grau de desconfiança. Qual será o grau de confiabilidade do cidadão
no Estado, que falha em lhe proporcionar os mais elementares serviços
de saúde, educação e segurança, mas não hesita em lhe indisponibilizar a
conta-corrente tão logo verifique que os tributos devidos não ingressaram
em seu caixa único?
23 CONNER, Alana; MARKUS, Hazel Rose. Clash! – 8 conflitos culturais que nos
influenciam. São Paulo: Elsevier, 2013.
102
Revista da AJUFERGS / 09
Conclusão
Da análise dos modelos de vida apresentados por Masi, viu-se
que o Estado liberal burguês do século XIX permitiu – e por vezes até
encorajou – a exploração de grandes contingentes de trabalhadores
por uma minoria, enquanto o Estado totalitário da primeira metade
do século XX restringiu –­ e em alguns casos chegou a suprimir – os
direitos humanos mais elementares em nome de uma pretensa segurança de Estado.
Esta segunda década do século XXI, por sua vez, encontra praticamente toda a parte ocidental do mundo inserida num contexto democrático até então inédito. A democracia representativa, não obstante as
dificuldades que variam conforme o horizonte cultural de cada país, é
capaz de propiciar aos cidadãos um nível de liberdade inimaginável para
nossos antepassados.
Nesse contexto, pode-se afirmar que o grande desafio da contemporaneidade é administrar a própria liberdade. O maior problema deste
início de século, não apenas no Brasil, mas em todo o Ocidente, é que
os interesses contrapostos nunca estiveram em tamanha ebulição. Na
nossa sociedade complexa, multifacetada e plural, os conflitos crescem
exponencialmente, enquanto a capacidade para resolvê-los tende a ser
linear.
Todos querem “tudo ao mesmo tempo agora”, como salientado
na parte introdutória, e esse querer extremado induz a uma cultura de
litigiosidade excessiva, que precisa ser mitigada com temperamento
de ânimos e espírito de conciliação. Em épocas de recessão, como a
que ora se avizinha, quando o dinheiro escasseia e a capacidade de
autocomposição também tende a diminuir, crescem as expectativas
sociais acerca do papel do Estado, que não deve ser nem máximo nem
mínimo, mas eficiente.
Um Estado eficiente passa necessariamente por um Judiciário mais
eficaz, que por seu turno demanda juízes mais preparados, flexíveis com
o manejo simultâneo dos mecanismos da efetividade do processo e da
segurança jurídica. Juízes que saibam situar-se “mais próximos à vida
do que do dogm”, conforme já ressaltou José Calvo Gonzalez, autor do
referido livro Direito Curvo.
Limites sociológicos ao uso intensivo do Bacen-Jud
103
A curvatura como síntese jurídica pode ser compreendida mediante
as transformações operadas nas relações entre as partes, do rigorismo do
modelo capitalista até a sociedade plúrima atual, do desprezo ao indivíduo
ínsito ao regime totalitário à afirmação dos direitos e da liberdade de
ação própria do século XXI. Tal curvatura concretiza-se não somente na
relativização do pacta sunt servanda, mas principalmente nas tendências
de privatização do direito público e de publicização do direito privado,
e representa uma boa metáfora para o impacto da pós-modernidade na
aplicação da norma positiva.
É nesse contexto multifacetado que o juiz deve aplicar a ferramenta
Bacen-Jud, atentando para as especificidades do caso concreto e tendo
como norte a realização do valor justiça, ainda que a ideia que dela
temos possa oscilar. Se o papel do magistrado hoje é fazer concretizar
os direitos expressos na Constituição e inserir no cidadão uma vontade
de apaziguamento social, deve procurar compatibilizar o tecnicismo
da profissão com uma maior humanidade, afastando a atuação estatal
daqueles modelos tendentes a restringir e limitar os direitos humanos,
vistos no decorrer deste artigo.
De nada adianta resolver a lide processual, bloqueando valores na
conta-corrente do executado para satisfazer o credor fazendário, se não
for equacionada, concomitantemente, a lide sociológica que subjaz ao
processo. Justiça, na falta de uma definição mais consensual, é o que
o Direito almeja tornar-se quanto todos nós, juízes e jurisdicionados,
possamos atingir outro patamar de civilização. Um juiz melhor é um
juiz mais humanizado. O magistrado que sabe apenas Direito sequer
compreende o Direito.
Referências bibliográficas
BIELSA, Rafael. Estudios de Derecho Publico. Buenos Aires: Depalma,
1951, vol II, p.93 apud.
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CASTRO, Celso Antônio Pinheiro. Sociologia do Direito. 7ª edição.
São Paulo: Atlas, 2001.
104
Revista da AJUFERGS / 09
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que nos influenciam. São Paulo: Elsevier, 2013.
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Princípio do Estado Constitucional Democrático de Direito. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 95, p. 184, 2004.
GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2014.
MASI, Domenico. O Futuro Chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2014.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro
e Tributário, vol. III, Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidade e
Isonomia. São Paulo: Renovar, 2000.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA:
TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO
COMPARADO
Ana Paula Martini Tremarin Wedy
Mestranda em Direito na PUC/RS, Visiting Scholar em Columbia University.
Juíza Federal Substituta no TRF da 4ª Região.
RESUMO: A presente investigação visa a analisar o panorama da responsabilidade civil objetiva no ordenamento jurídico brasileiro, perpassando
pela evolução histórica do instituto, mediante o estudo da doutrina e da
jurisprudência nacionais e estrangeiras.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade objetiva. Fundamentos. Teoria
do risco. Solidarização dos riscos. Securitização.
ABSTRACT: The present paper aims to give a global overview of objective liability in Brazilian law, going through the historical evolution
of the institute, through the study of national and international doctrine
and judiciary precedents.
KEYWORDS: Objective civil liability. Foundation. Theory of risk.
Socialize risk. Securitization.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Da responsabilidade civil baseada na culpa e
na evolução para o sistema solidarista da reparação do dano. 2. Responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico pátrio. 3. Da responsabilidade
objetiva no Direito Comparado. 3.1 Direito alemão. 3.2 Direito francês;
4. Jurisprudência no STJ. Conclusão.
Introdução
Pretende-se demonstrar que o dogma da culpa, por muito tempo o
centro gravitacional do sistema da responsabilidade civil, adotada como
fundamento pelos códigos do século XIX, inerentes à política filosófica
do Estado liberal, cede espaço aos anseios presentes, notadamente no que
se refere a conflitos e interesses próprios ao progresso social, marcado
pela inovação tecnológica e pelo direito das massas, que pugnam por
soluções mais solidaristas e cooperativas, as quais tragam em seu bojo
a socialização do risco, ou seja, soluções que permitam que os danos
sejam redistribuídos coletivamente.
106
Revista da AJUFERGS / 09
1 Da responsabilidade civil baseada na culpa e na evolução
para o sistema solidarista da reparação do dano
Nos sistemas jurídicos integrantes da família romano-germânica
(civil law), é possível distinguir dois modelos no tratamento da responsabilidade civil: o modelo liberal dos códigos civis do século XIX (entre
os quais se pode incluir o CC/1916) e o modelo solidário ou social (ou
welfarista) dos códigos civis da segunda metade do século XX (italiano,
português, brasileiro, etc.) e de diversos microssistemas legislativos,
como o consumerista.
A evolução de um sistema de responsabilidade civil baseado na
culpa, adotado nos códigos de modelo liberal, para um sistema objetivo,
baseado no risco econômico, na socialização do prejuízo, próprio dos
códigos de modelo social, revela uma opção do legislador por um modelo
jurídico completamente diverso do liberal, chamado de “Direito Social”
(próprio do Welfare State), o qual propõe um modelo socialmente funcionalizado de direito privado. Essa “socialização” das normas jurídicas
impõe novas tarefas aos institutos jurídicos, bem como aos operadores
do Direito1.
Na perspectiva evolutiva do sistema de responsabilidade civil, tem-se que, no início do Direito romano, a responsabilidade era objetiva,
dissociada da noção de culpa, porquanto era fundamentada na vingança
privada. Assim, ainda que objetiva, não considerava o risco da atividade
e, tal qual o sistema da culpa, era nitidamente individualista. Posteriormente, surgiu o período da composição voluntária, em que a vingança foi
substituída pela composição a critério da vítima, e, por fim, a composição
econômica passou a ser obrigatória.
Nesse sentido, os Códigos estabeleciam determinado valor de
acordo com a ofensa praticada. Por exemplo, pela quebra de um osso,
pagava-se uma mina de prata: Código de Ur Namnu, Código de Manu
e Lei das XII Tábuas.
1 TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no direito
privado: da culpa ao risco. Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade
Social | vol. 2 | p. 787 | Set / 2012 | DTR\2005\425.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 107
A origem do fator culpa como fundamento de reparação do dano
é atribuída à Lei Aquília2. Porém, o casuísmo que marcou a legislação
romana impediu o surgimento de um princípio geral de responsabilidade.
Apenas no século XVII, com o jusnaturalismo, veio à tona o princípio
genérico da responsabilidade civil, que depois serviu de base para o art.
1.383 do Código Civil francês, marco legislativo inspirador da legislação
de inúmeras outras nações3.
As características específicas da responsabilidade civil foram traçadas no Código Civil Francês de 1804, o qual instituiu o princípio da
atipicidade da responsabilidade civil, mediante cláusula geral de responsabilidade subjetiva, com o abandono do critério de enumeração de casos
de composição obrigatória e consagrando a culpa como fundamento à
reparação do dano.
Nesse sentido, o art. 1.382 do Código Civil francês institui a cláusula
geral de responsabilidade subjetiva nos seguintes termos: “Tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui um dommage, oblige celui par la
faute duquel il est arrivé, à le réparer”4. Ainda, o art. 1.383 do Código
Civil francês institui a culpa como pressuposto da responsabilidade civil:
“Chacun est responsible du dommage qu’il a causé non seulement par
son fait, mais encore par sa négligence ou par son imprudence”5.
2 JUNIOR, Otávio Luis Rodrigues. Responsabilidade civil no Direito Romano. p. 13. In:
Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo Venosa. São
Paulo: Atlas, 2011. A Lex Aquilia é um Plebiscito de data incerta, aproximadamente 286
ou 287 a.C., elaborada a pedido de um tribuno da plebe, de nome Aquilius, para permitir
o ressarcimento dos danos causados pelos patrícios aos plebeus.
3 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 180. In SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
4 “Todo e qualquer fato do homem, que causa um dano a outrem, obriga o culpado a
repará-lo.”
5 Cada um é responsável pelo dano que provocou não somente por sua culpa, mas ainda
por sua negligência ou por sua imprudência.” O Código Civil francês de 1804 possui
2302 artigos, dos quais 1200 artigos continuam em vigor com sua redação original. O
mais curioso é que, embora a França tenha posto em vigor mais de dez constituições ao
longo dos dois últimos séculos (sendo a Constituição de 1958, regente do funcionamento
das instituições da Quinta República, a última delas), sempre conservou o Código Civil
de 1804, pelo que é um verdadeiro monumento da cultura jurídica e política do povo
108
Revista da AJUFERGS / 09
No Brasil, as Ordenações do Reino de Portugal vigoraram mesmo
após a Independência. O Código Civil de 1867 de Portugal, inspirado
no modelo francês, não vigorou no Brasil, visto que já havíamos proclamado a Independência. Assim, as Ordenações do Reino vigoraram até o
Código Civil de 1916, sendo que, no campo da responsabilidade civil,
o Código Francês de 1804 foi suporte e modelo para o nosso estatuto
civil revogado.
Destarte, inspirados nos franceses, adotamos a culpa como pressuposto da responsabilidade, acolhida no art. 159 do CC de 1916, o qual
previa que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência
ou imprudência, violasse direito ou causasse prejuízo a outrem, ficava
obrigado a reparar o dano. Dessa maneira, nesse modelo, são requisitos
para o dever indenizatório comprovar: 1) o ato lesivo (ou ato ilícito); 2)
o dano; 3) o nexo causal entre ambos; 4) a culpa.
Não obstante, a era do maquinismo, notadamente no final do século
XIX e acentuada no último século, e o consequente agravamento dos
riscos e a multiplicação dos acidentes, decorrentes dos fenômenos da
industrialização, da urbanização e da massificação da sociedade, trouxeram consigo a ruptura do dogma do sistema da culpa6. Dificuldades
em comprovar a culpa na origem do dano e o próprio causador do dano,
principalmente nos acidentes de trabalho, permitiram o desenvolvimento de mecanismos alternativos, como a inversão do ônus da prova e a
exacerbação do dever de cuidado.
A noção de responsabilidade baseada na culpa não mais satisfez à
dinâmica da realidade social e passou a ser insuficiente para reparar os
francês, desfrutando de grande prestígio internacional por tudo que representa. O Código
de Napoleão contém três livros desiguais: I – Das pessoas (arts. 1º a 515); II – Dos bens
e das diversas modificações da propriedade (arts. 516 a 710); III – Das diferentes formas
por que se adquire a propriedade (arts. 711 a 2281). No Título IV do Livro III, que trata
das diferentes formas pelas quais se adquire a propriedade, o Capítulo II, contendo apenas cinco artigos, trata da responsabilidade extracontratual ou delitual, com a epígrafe
“dos delitos e quase-delitos”, distinção essa por nós abolida, passando a identificar a
antijuridicidade e a reprovabilidade do comportamento nos “atos ilícitos”.
6 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 177. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 109
danos causados em decorrência dessas novas atividades, dada a impossibilidade de comprovar a imprudência, a negligência, a imperícia ou o
dolo do autor do dano.
Raymond Salleilles e Louis Josserand, grandes teóricos franceses
do Direito Social do início do século XX, foram os precursores de uma
teoria da responsabilidade civil objetiva focada na perspectiva de reparação do dano.
Não se ignora que alguns doutrinadores defendem a primazia da
doutrina germânica acerca da teoria objetiva; todavia, o certo é que foram
os franceses os divulgadores dessa teoria, devendo ao seu trabalho de
sistematização a evolução da teoria7.
A propositura de critérios objetivos de imputação de responsabilidade teve como marco principal a obra de Raymond Saleilles, em 1897:
Les accidentes de travail et la responsabilité civile: essai d’une théorie
objective de la responsabililé délictuelle (Os acidentes de trabalho e a
responsabilidade civil: ensaio de uma teoria objetiva da responsabilidade
delitual). O autor defendia substituir o princípio da imputabilidade por um
princípio de simples causalidade, em que fosse prescindida a avaliação
do comportamento do causador do dano8.
Nesse passo, em 1897, Louis Josserrand publicou o texto Évolutions
et Actualittés, se refere ao século do automóvel e da mecanização universal e no qual afirma que a falta da segurança material acarreta o anseio
à segurança jurídica. Defendia a adoção do fator risco como critério de
responsabilização, com base na jurisprudência francesa, que já aplicava
a responsabilidade objetiva por guarda da coisa9. A prioridade passou a
ser a vítima, e não mais a conduta do agente, praticamente impossível
de ser comprovada para fins de reparação do dano.
7 Assim, tem-se que a legislação alemã realmente previu a responsabilidade objetiva antes
do Código Civil francês, já que o Código Civil prussiano de 1794 obrigava o proprietário
à reparação dos danos causados pelos animais sob sua guarda, mesmo que sem culpa,
assim como no Código Civil austríaco de 1811.
8 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 19.
9 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 19.
110
Revista da AJUFERGS / 09
Difundiram-se as teorias do risco. A teoria da responsabilidade
objetiva possui diferentes formas de fundamentação, a partir da noção
de que a atividade causadora do dano apresenta certo grau de risco ao
indivíduo/sociedade, e por essa razão será suficiente para fundamentar
a obrigação da reparação do dano.
Nesse sentido, de acordo com Sérgio Cavalieri: “Risco é perigo, é
probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce
uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano
dela recorrente. A doutrina do risco poder ser, então, resumida: todo
prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se
o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de
valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente
causou o dano”10.
A teoria do risco administrativo trata da responsabilidade objetiva
civil do Estado nos atos omissivos e comissivos. A responsabilidade decorre da prestação de atos típicos da administração pública e dos riscos
criados com o desempenho de suas atividades estatais11.
A teoria do risco integral surge sob o enfoque de que, para a configuração da responsabilidade civil, basta a existência de um dano. A norma
indica o responsável sem exigir um nexo de causalidade entre ele e o
dano. Não admite excludentes de responsabilidade, há dever de reparar
mesmo diante do caso fortuito, força maior, fato de terceiro ou culpa
exclusiva da vítima. Essa teoria aplica-se no caso de dano ambiental e
no caso do seguro obrigatório dos veículos automotores.
Ainda sob tal enfoque, há a teoria da responsabilidade objetiva
agravada. Essa é a denominação de Fernando Noronha, e surge quando
há obrigação de indenizar, independente de haver o nexo de causalidade
adequado entre a atividade e o dano. Exemplos práticos dessa teoria seriam a responsabilidade do estabelecimento prisional pela incolumidade
do prisioneiro (em caso de suicídio ou homicídio por outros detentos), do
10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. p. 55 5. ed. Malheiros Editores Ltda. São Paulo: 2005.
11 TARTUCE, Flavio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 137.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
111
hospital pelo paciente, do banco pelo cliente (ainda que não correntista),
do transportador pelo passageiro (ainda que não compre passagem)12.
A teoria do risco excepcional trata do risco de atividades que apresentem risco exacerbado, como ocorre com a exploração de energia
nuclear (Lei 6.453/77). As excludentes são específicas, limitando-se às
situações de conflito armado, guerra civil, hostilidades, insurreição ou
fato excepcional da natureza (art. 8º).
A teoria do risco-proveito tem por fundamento a máxima de que
aquele que aufere algum benefício com a existência do risco possui o
dever de reparar. Também chamada de risco benefício, essa teoria do
risco não se justifica se não há proveito para o agente causador do dano,
motivo de crítica, já que é difícil para a vítima comprovar o proveito.
A teoria do risco profissional sustenta igualmente esse proveito, mas
relativamente a uma atividade empresarial específica.
A teoria do risco criado, mais ampla e mais benéfica para a vítima,
considera que toda atividade que exponha outrem a risco torna aquele
que a realiza responsável, mesmo nos casos em que não haja atividade
empresarial ou atividade lucrativa propriamente dita.
Há ainda a ideia de responsabilidade objetiva desvinculada do fator
risco, a partir de um dever de garantia, o qual explica a responsabilidade
objetiva quando o autor direto do dano não for possuidor de bens ou de
renda13. É a relação que há, por exemplo, entre pais e filhos, curadores
e curatelados, tutores e tutelados e assim por diante.
O enfoque da responsabilidade civil sofreu diversas alterações ao
longo dos últimos séculos, sendo que, durante o século XIX, a culpa era a
viga mestra da responsabilização, que possuía como fundamento a pessoa
causadora do prejuízo e a consequente atribuição de responsabilidade pelo
12 TARTUCE, Flavio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 174. O autor explica que o Direito italiano diferencia a responsabilidade objetiva da agravada, porquanto a agravada admite a excludente
do caso fortuito, de modo que está relacionada a hipóteses em que a atividade ou a coisa
criam um perigo que poderia ser afastado com a adoção das cautelas adequadas. Vide
Fernando Noronha. Direito das Obrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 485-489.
13 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 181. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
112
Revista da AJUFERGS / 09
evento. Numa segunda fase, tem-se que o foco da responsabilidade passa
a ser a reparação do dano; nesse período, despontam as concepções do
risco criado e do risco-proveito, de modo que a descoberta do responsável
pelo dano ainda é fundamental para a fixação da responsabilização. Em
um terceiro momento, ainda convivem elementos das fases anteriores, mas
não mais são suficientes para a concretização da Justiça, mormente nos
casos de danos de massa (centenas de vítimas e prejuízos de grande monta).
Atualmente, o foco é a reparação do dano, a indenização das vítimas, ainda que para isso tenhamos que socializar o prejuízo, mediante
mecanismos como a securitização, seja ela obrigatória ou contratual. É
o modelo de responsabilidade coletiva fundada na solidariedade14.
Denota-se que a criação ou a majoração do risco como noção jurídica
empregada por cláusulas gerais de responsabilização continua a ter eficiência; no entanto, não é mais fundamento exclusivo, na medida em que
surgiram outras hipóteses de incidência da responsabilidade objetiva em
que não se pode invocar o risco como fator de vinculação entre o dever
de indenizar e o agente. Nesses casos, percebe-se a verdadeira essência
da responsabilidade objetiva na contemporaneidade, que é a de uma responsabilidade independente de culpa ou qualquer outro fator subjetivo,
marcada pela necessidade de garantir a reparação dos danos que não
devem ser exclusivamente suportados pela vítima, mas solidarizados15.
Esse modelo transcende o indivíduo e socializa as perdas. Assim,
não haveria uma única pessoa a indenizar o dano, mas toda a sociedade,
ou um setor dela, passa a ter responsabilidade em ressarcir o prejuízo16.
14 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 181-182. In:
SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006. De acordo com o autor, alguns doutrinadores, como Jean Guyenot e
René Savatier, defendem que a tendência é a socialização da responsabilidade e dos riscos
individuais, que garantam à vítima uma certeza da indenização. Nesse sistema, o Estado
absorverá todos os riscos e distribuirá por todo o corpo social, através de um imposto.
15 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão
dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 29-30.
16 Facchini, no artigo Da Responsabilidade Civil no novo Código, traz que, no direito
comparado, esse modelo já foi implantado de forma ousada, como na Suécia e na Nova
Zelândia, onde tais programas são mantidos por fundos instituídos por uma imposição
tributária generalizada. p. 182.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
113
2 Responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico pátrio
A responsabilidade objetiva ingressou no ordenamento jurídico
brasileiro por meio de legislação especial, anterior ao Código Civil
de 1916, a exemplo da Lei das Estradas de Ferro (Decreto 2.681/12),
do Decreto 24.687/34 (Lei de Acidentes do Trabalho), que fixou
a responsabilidade objetiva do empregador pelo dano causado ao
trabalhador que resultasse em morte ou ferimento (esse encargo foi
agravado pelo Dec.-lei 7.036/44, que confirmou a responsabilidade
mesmo no caso de culpa da vítima), e da Lei 6.457/77, relativa às
atividades nucleares.
A Constituição Federal de 1988 prevê hipóteses específicas de
responsabilidade objetiva quando se refere ao seguro em acidentes de
trabalho (art. 7º, inc. XXVIII), aos danos nucleares (art. 21, inc. XXIII,
alínea c), às pessoas jurídicas de direito público e privado prestadoras
de serviço público (art. 37, § 6º) e aos danos ambientais (art. 225, §
3º)17. Percebe-se que o constituinte elegeu uma nova tábua axiológica
para a responsabilização objetiva, a qual enfatiza a solidariedade social
como fundamento à responsabilização objetiva.
Nessa linha, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)
também prevê a responsabilidade objetiva do fabricante, do produtor,
do construtor, nacional ou estrangeiro, e do importador pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de
projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
17 Ainda no que tange à responsabilidade por danos ambientais, a legislação expressa
também é enfática ao prever a teoria da responsabilidade objetiva integral. Assim ocorre nas disposições da Lei 6.938/1981, no art. 14, § 1°: “Sem prejuízo das penalidades
definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas
necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: [...] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente
da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a
terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá
legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados
ao meio ambiente”.
114
Revista da AJUFERGS / 09
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e seus
riscos (art. 12)18.
O Código Civil de 1916 foi inspirado no Código Civil francês de
1804, ao menos no que tange à responsabilidade civil. Assim, o Código
Civil dispunha, no art. 159, que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violasse direito ou causasse prejuízo
a outrem, ficava obrigado a reparar o dano. Havia, portanto, a previsão
da cláusula geral da responsabilidade subjetiva, mas era admitida a responsabilidade objetiva, ao menos no art. 1.529, na hipótese de queda ou
lançamento de objetos de edifícios.
O Código Civil de 2002 igualmente prevê cláusula geral da responsabilidade subjetiva ao estabelecer a culpa como requisito para a
responsabilização civil, no art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
De outra banda, também prevê cláusula geral de responsabilidade
objetiva por atividades de risco no art. 927, parágrafo único, ao estabelecer a obrigação de indenizar, independentemente de culpa, quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar riscos
para outrem19.
O legislador inspirou-se no art. 2.050 do Código Civil da Itália de
1942, que diz: “Qualquer um que causa dano a outros no desenvolvimento
de uma atividade perigosa, por sua natureza ou pela natureza dos meios
empregados, é obrigado ao ressarcimento se não provar haver adotado
18 Ainda, o art. 14 do CDC prevê: “O fornecedor de serviços responde, independentemente
da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua fruição e riscos”. No que tange à responsabilidade subsidiária do comerciante,
dispõe: “São aqueles casos contemplados nos incs. I a III, do art. 13, em que: 1) o fabricante,
o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados (inc. I); 2) o produto
for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador
(inc. II) e 3) não forem adequadamente conservados produtos perecíveis (inc. III)”.
19 “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
115
todas as medidas idôneas para evitar o dano”. O dispositivo em questão inverte o ônus da prova no caso de atividade perigosa e institui um
parâmetro de comportamento mais elevado que o do homem médio, ao
exigir prova de todas as medidas idôneas para evitar o dano20.
A redação original do projeto do Código Civil previa atividades de
“grande risco para os direitos de outrem”, enquanto as legislações italiana e
portuguesa, ao tratarem do assunto, tratam apenas de “atividade perigosa”.
Não obstante, o legislador excluiu a expressão “grande risco”, que
estava no projeto, sinalizando que qualquer atividade normalmente
desenvolvida que, por sua natureza, implicar risco aos direitos de outrem, obrigará o autor a reparar o dano, independentemente do grau de
periculosidade, da atividade de risco organizar-se ou não sob a forma
empresarial ou, ainda, de ter ou não revertido em proveito de qualquer
espécie para o responsável pelo dano21.
Em conformidade com Facchini, referindo-se à jurisprudência
italiana, a lição do direito comparado é que compete ao juiz identificar
a periculosidade da atividade mediante análise tópica. Não se trata
de “decisionismo” judicial, em que cada juiz possa desenvolver um
critério próprio: “O magistrado deve ser sensível às noções correntes
na comunidade, sobre o que se entende por periculosidade, bem como
deve estar atento a entendimentos jurisprudenciais consolidados ou
tendenciais”. Conclui afirmando que o juiz pode se inspirar na legisla-
20 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 21-22. Outros
códigos civis também adotam essa cláusula geral como o faz o mexicano ao impor ao
agente responsabilidade pela utilização de “mecanismos, instrumentos, aparelhos ou
substâncias perigosas por si mesmas, pela velocidade que desenvolvem, por sua natureza
explosiva ou inflamável, pela energia de corrente elétrica que conduzem ou outras causas
análogas”, mesmo “que não obre ilicitament”, admitindo apenas a demonstração de que
o prejuízo foi causado por culpa da vítima (art. 1.013). O Código Civil de Portugal de
1966, no art. 493, também assim o prevê.
21 Nesse sentido, o Enunciado 38, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida
pelo Conselho da Justiça Federal, assim estabelece: “A responsabilidade fundada no
risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do CC,
configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar
a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.
116
Revista da AJUFERGS / 09
ção trabalhista e previdenciária no que tange a determinadas atividades
classificadas como perigosas para efeitos de percepção do adicional
de periculosidade22.
O Código Civil traz outra cláusula geral de responsabilidade objetiva
nos casos de abuso do direito ao prever, no art. 187, o seguinte: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O artigo não exige a intenção de
prejudicar, contentando-se com o excesso objetivamente identificável.
Denota-se que o legislador partiu da premissa de que os direitos
subjetivos não são concedidos aos indivíduos em uma perspectiva meramente individual, pois possuem uma destinação econômica e social,
já que o exercício desses direitos repercute na esfera jurídica de outras
pessoas. Por tal motivo, quando o titular de um desses direitos o exerce
de maneira abusiva, desviando-se dos parâmetros de convivência social,
vindo a causar dano a outrem, será obrigado a repará-lo, independentemente de haver agido com culpa.
Por fim, outra cláusula geral prevista no Código Civil está no art.
931 e trata da responsabilidade civil objetiva do empresário pelo fato do
produto. Esse artigo abrange situações mais amplas que as previstas no
art. 12 do CDC, porquanto o CDC menciona “produtos com defeito”, e o
CC responsabiliza os empresários “pelos danos causados pelos produtos
postos em circulação”. Ampliou o conceito de fato do produto e, como
não há referência à época em que o produto foi colocado em circulação,
contempla também os riscos do desenvolvimento23.
22 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 187. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
23 “Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos
produtos postos em circulação.” Nesse sentido, enunciados 42 e 43 do CJF, respectivamente: “Art. 931: O art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12
do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos
empresários individuais vinculados à circulação dos produtos” e “Art. 931: A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também
inclui os riscos do desenvolvimento”.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
117
O Código Civil prevê outras hipóteses de responsabilidade objetiva:
artigo 928 (responsabilidade equitativa e subsidiária dos incapazes);
artigos 932 e 933 (responsabilidade dos pais em relação aos filhos, do
tutor e do curador em relação aos pupilos e curatelados, do empregador
ou comitente quanto aos empregados e prepostos24, dos donos de hotéis
pelos hóspedes e dos que gratuitamente houverem participado nos produtos de crime); artigo 936 (pelo fato dos animais, dono ou detentor do
animal ressarcirá o dano por ele causado, se não provar culpa da vítima
ou força maior); artigos 937 e 938 (responsabilidade civil pelo fato das
coisas); artigos 441 a 446 (responsabilidade por vício redibitório); artigos
447 a 457 (responsabilidade objetiva por evicção); artigos 734 e 735
(responsabilidade do transportador de pessoas é objetiva); artigos 884 a
886 (hipóteses de enriquecimento sem causa) e artigos 939 e 940 (concernentes ao credor que demanda o devedor antes de vencida a dívida,
bem como ao que o faz por dívida já paga).
3 Da responsabilidade objetiva no Direito Comparado
3.1 Direito alemão
O Código Civil Alemão é de 1896, no original Bürgerliches Gesetzbuch ou simplesmente BGB. Possui cinco livros: I – Parte Geral;
II – Obrigações e Contratos; III – Coisas; IV – Família; V – Sucessões.
No livro II, há um capítulo que trata “Dos atos ilícitos” (Unerlaubte
Handlungen), que elenca os princípios gerais da responsabilidade civil,
distribuídos em 30 artigos25.
24 Na vigência do Código Civil de 1916, dispunha a Súmula 341 do STF: “É presumida a
culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”. Inicialmente,
tal presunção foi tida como relativa, mas passou, com o tempo, a ser considerada absoluta.
25 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 140-141. Nesse aspecto, o Código Civil revogado e o atual adotam
a classificação germânica da divisão de matérias. A opinião majoritária na doutrina
comparatista é a de que a influência alemã no Código Civil Brasileiro estaria restrita à
sistemática adotada e não abrangeria o conteúdo. O sistema escolhido pelo legislador
brasileiro, com uma parte geral e uma parte especial, teria, então, sua origem na ciência
jurídica alemã da época.
118
Revista da AJUFERGS / 09
O Direito germânico está perfilado ao sistema romano-germânico.
Assim, a disciplina legal referente à responsabilidade civil está sistematicamente prevista em estatutos legais, no BGB ou na legislação esparsa.
A principal diferença entre o BGB e o Código Civil Francês de 1804
é que o alemão não apresenta a cláusula geral de responsabilidade por ato
ilícito, de modo que os legisladores optaram por um modelo casuístico,
em que os direitos passíveis de indenização estão enumerados na lei.
O BGB adotou a responsabilidade subjetiva como regra, exige culpa
como requisito para a responsabilidade e limitação da possibilidade de
ressarcimento de danos àqueles interesses legalmente protegidos. Desse
modo, para que se configure a obrigação à reparação, a lesão deve ser
contra um bem jurídico determinado, chamado pela doutrina de “bem
jurídico absoluto” (absolute Rechtsgüter)26.
Nesse passo, os bens protegidos no § 823, I, do BGB são a propriedade, a integridade física, a liberdade pessoal e demais bens jurídicos
(sonstige Rechte). A interpretação jurisprudencial que se dá ao conceito
indeterminado dos “demais bens jurídicos” é restrita, de forma que serão
considerados lesões a direitos da personalidade. Outrossim, considerando que não está abrangido o patrimônio como bem jurídico tutelado no
regime de responsabilidade extracontratual, não se indenizam danos de
caráter exclusivamente patrimonial27.
26 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional
no Direito comparado. p. 733. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio
de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011.
27 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional no
Direito comparado. p. 733. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; ROCHA,
Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo
Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. O autor cita dois casos da jurisprudência alemã para ilustrar
o significado de dano à propriedade e dano ao patrimônio. No primeiro caso, durante obras de
construção em uma rua, um cabo elétrico foi danificado e uma fábrica confinante ficou sem
energia elétrica por várias horas, experimentando com isso prejuízos econômicos. A questão
versava sobre a responsabilidade do construtor de indenizar a fábrica por lucros cessantes, e
a jurisprudência foi contrária à pretensão, sob o fundamento de que não houve violação de
um dos bens tutelados no § 823, I, do BGB, pois o prejuízo era exclusivamente patrimonial.
No segundo caso, em razão de dano em cabo elétrico, um armazém frigorífico deixou de
funcionar e estragaram as mercadorias nele armazenadas. Nesse caso, o proprietário obteve
direito à indenização, visto que houve violação de bem jurídico tutelado, a propriedade.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO
119
No que concerne à responsabilização por atos de terceiro, o § 831, I, do
BGB exige a comprovação da culpa in vigilando ou da culpa in eligendo,
de maneira que o empregador não responde de automaticamente perante
a vítima. Para suprir esses déficits da responsabilidade extracontratual e
garantir a tutela efetiva dos bens jurídicos, houve significativa evolução
na área do direito dos contratos na Alemanha, marcada pela necessidade
de encontrar “maquinismos contratuais” para fazer valer tal proteção.
O BGB trata da responsabilidade objetiva apenas quando se refere
ao detentor de animais, no § 83328. Todavia, a responsabilidade objetiva
já era prevista na legislação esparsa desde o Direito germânico, em 1838,
quando a Prússia regulamentou a responsabilidade das ferrovias.
A responsabilidade objetiva no Direito tedesco tem dois traços marcantes: o entendimento de que deve ser excepcional e motivada por uma
perspectiva social e a concepção de que deve ser restrita às hipóteses
positivadas, como o BGB faz também na responsabilidade subjetiva29.
Nesse rumo, a responsabilidade objetiva é positivada por leis esparsas, a exemplo das seguintes legislações: Ato de Tráfego Aéreo de
1922, Ato de Tráfego em Estradas de 1952, Ato Federal de Caça de 1952,
Ato da Responsabilidade Objetiva (estradas de ferro) de 1978, Ato da
Responsabilidade Objetiva (operação de energia e acidentes causados
por eletricidade, gás, vapor ou outro líquido utilizado), Ato Federal de
Mineração de 1980, Ato de Energia Nuclear de 1985, Ato de Recursos
Hídricos de 1986, Proteção ao Consumidor de 1989, Ato sobre a Engenharia Genética de 1990, Ato da Responsabilidade Ambiental de 1990 e
Ato dos Produtos Farmacêuticos de 1976 (revisado em 1994).
28 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 146. A responsabilidade é objetiva quando o dano ocorrer em
decorrência da natureza do animal, e não apenas por haver um animal envolvido na
ocorrência do dano. O autor ilustra o dispositivo com a jurisprudência alemã: no primeiro, o dono de um cachorro é condenado a indenizar a vítima da mordida do cão;
no segundo, a vítima, um ciclista, é ferida ao colidir à noite com o cadáver de um cão,
situação em que o dono do cão somente será condenado a indenizar caso seja provada
a sua culpa no evento.
29 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo:
Atlas, 2011. p. 143.
120
Revista da AJUFERGS / 09
Assim, no Direito alemão a regra é a subsunção da responsabilidade
objetiva à lei, sendo quase nulo o espaço para a jurisprudência alargar
hipóteses de incidência. A crítica que se faz a esse modelo é que, devido à
inoperância da lei para acompanhar as inovações tecnológicas e, portanto,
os novos riscos que surgem no cotidiano da vida moderna, a legislação
acaba por tutelar tardiamente os bens jurídicos lesados.
Denota-se que os avanços na legislação da responsabilidade objetiva
são posteriores à ocorrência de tragédias, de modo que não são decorrentes
do avanço da tecnologia, ou das demandas judiciais em grande volume,
ou das dificuldades de as vítimas comprovarem o dano ou a sua autoria.
Assim precede a história do ato de responsabilidade ambiental, que
foi editado após um desastre ambiental ocorrido em 1986, quando a água
utilizada para apagar um incêndio em uma indústria química na Suíça
desaguou no rio Reno substâncias altamente tóxicas, causando desastre
ambiental na Suíça e na Holanda. Diante do desastre ecológico, o governo
alemão manifestou-se no sentido de que deveria ser criada lei aplicando
a responsabilidade objetiva em tais situações, pelo que foi editado o ato
de responsabilidade ambiental30.
Apesar do caráter excepcional da responsabilidade objetiva, a previsão na legislação extracódigo acaba por criar sistema paralelo ao BGB,
o que dificulta a harmonização do sistema e assume feição de confronto
entre o individualismo, característico do BGB ao exigir o elemento culpa,
e o socialismo, inspirador da responsabilidade objetiva.
3.2 Direito francês
O Código Civil francês de 1804 inovou com a cláusula geral de responsabilidade por culpa (artigos 1.382 e 1.383), rompendo com o modelo
estabelecido no Direito romano de responsabilidade fixada em hipóteses
preestabelecidas de ações, mantido no âmbito da Common Law31.
30 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo:
Atlas, 2011. p. 150. Também o Ato de Tráfego Aéreo foi editado à luz do desastre com
o dirigível Zeppelin, em 1908, e do Ato dos Produtos Farmacêuticos, o qual decorreu
do incidente com o medicamento Contergan (talidomida).
31 A cláusula geral foi adotada por países de culturas diferentes, a exemplo das codificações italianas de 1865 e 1942, do Código suíço de 1911, do Código grego de 1940, do
Código português de 1966 e dos Códigos brasileiros de 1916 e 2002.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 121
O Código de Napoleão é principiológico ou conceitualista, pois foi
alicerçado sobre o princípio ou o conceito de faute, mas associado à culpa
em seu sentido moral. No entanto, o código não define o que é a faute,
nem condiciona a responsabilidade civil à violação de direitos subjetivos
ou de interesse jurídico tutelado, tal qual ocorre no Direito tedesco. No
modelo francês, compete à jurisprudência construir os pressupostos da
responsabilidade civil, por meio da identificação da faute e da densificação dos requisitos específicos para a indenização32.
A construção da responsabilidade objetiva pela jurisprudência a
partir da releitura do artigo 1.384 do Código Civil, que trata da responsabilidade pelo fato das coisas, é exemplo da contribuição da jurisprudência
para o Direito francês33.
A primeira decisão da Cour de Cassation (Corte de Cassação) é
de 16 de junho de 1886 e restou conhecida como Caso Arrêt Teffaine.
A Corte considerou o proprietário de uma máquina a vapor responsável pela morte do trabalhador, decorrente da explosão de tal máquina,
ocorrida em razão de defeito em seu maquinismo. O fundamento foi
o de que o proprietário da máquina era o seu guardião, não obstante
os argumentos de que não conhecia e de que nem poderia conhecer
o defeito que motivou a explosão. Essa decisão foi o início, pela via
jurisprudencial, da instituição do risco social como fundamento à responsabilização objetiva.
Nessa evolução, em 1914, a Cour de Cassation estabelece a força
maior, a culpa da vítima e o ato de terceiro como únicas excludentes da
responsabilidade do art. 1.384 do Código Civil.
32 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional
no Direito comparado. p. 750. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio
de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011.
33 No original: “Article 1384. On est responsable non seulement du dommage que l’on
cause par son propre fait, mais encore de celui qui est causé par le fait des personnes
dont on doit répondre, ou des choses que l’on a sous sa garde”.
122
Revista da AJUFERGS / 09
Nesse rumo, a partir de uma decisão paradigmática da Corte, em
1930, resta fixado o princípio geral da responsabilidade pelo fato da coisa.
Trata-se do caso Jand’heur v. Lés Galéries belfortaises: uma senhora foi
atropelada ao atravessar a rua por um furgão que entregava mercadorias
para a ré. A ré foi condenada a indenizar por ser a guardiã do veículo. A
Corte, para afastar a ideia de que se trata de culpa presumida, desde 1950
utiliza a expressão responsabilidade de pleno direito (responsabilité de
plein droit), afastando a perspectiva da culpa34.
A jurisprudência também construiu a responsabilidade objetiva na
matéria denominada pelos franceses de problemas de vizinhança (troubles du voisinage). A questão era tratada no âmbito da responsabilidade
subjetiva, nos termos do art. 1.382 do código; no entanto, com os anos
adveio o entendimento de que a ninguém é permitido desenvolver em
sua propriedade uma atividade que traga incômodo anormal para seus
vizinhos.
Ainda, no intuito de atender às Diretivas da União Europeia, de 1985,
em 1998 foram acrescentados ao art. 1.386 dezoito parágrafos, referentes
à responsabilidade objetiva por produtos defeituosos35.
No que tange à socialização dos riscos, a França possui um Fundo
de Seguros Obrigatórios, destinado a indenizar vítimas de catástrofes
tecnológicas, após a explosão da usina de Grande Paroisse (AZF), em
setembro de 2001, na cidade de Toulose, que custou milhares de vidas e
milhões de euros. Foi o pior acidente industrial já ocorrido, motivando a
edição da Lei 2003-699, de 2003, lei de prevenção de riscos tecnológicos.
Devido a essa norma, sociedades empresárias de seguro têm o dever de
indenizar os danos e há previsão de um fundo de seguros. Assim, a re-
34 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo:
Atlas, 2011. p. 182.
35 Ainda, legislação esparsa prevendo a responsabilidade objetiva: 1810, exploração
do minério; 1917, estabelecimentos perigosos, incômodos ou insalubres; 1921, estabelecimentos que trabalham para a Defesa Nacional por danos causados a terceiros; 1924,
Código de Aviação Civil,; 1941, operadores de teleféricos; 1968, usinas nucleares;
1978, vícios em construções de prédios; 1985, veículos automotores (tráfego); 1988,
experimentos médicos em humanos; 1993, transfusão de sangue.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 123
paração do dano ocorre por securitização, afastando-se dos instrumentos
tradicionais de responsabilização.
Por fim, insta sinalar que tramita no Legislativo francês projeto de
reforma do Código Civil, apresentado ao Ministro da Justiça em 2005,
conhecido por Avant-projet Catala, em homenagem ao presidente da
comissão, professor Pierre Catala. Esse projeto pretende modernizar o
código de 1804, para que haja possibilidade de ser uma referência em
eventual futura unificação da legislação privada no âmbito da Comunidade Europeia.
No projeto, há previsão de aditar ao código artigo prevendo responsabilidade objetiva pela prática da atividade “anormalmente perigosa”,
mesmo lícita, sendo tal atividade que cria um risco de danos graves,
podendo afetar um grande número de pessoas simultaneamente. Nesse
caso, a única excludente admissível será a culpa da vítima; não se admitirão fato de terceiro e caso fortuito como excludentes.
4 Jurisprudência no STJ
No intuito de demonstrar como a jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça vem reconhecendo as hipóteses de incidência da responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico brasileiro, serão trazidos à tona
alguns julgamentos paradigmáticos sobre o tema.
O primeiro julgamento que se destaca refere-se ao acidente radioativo ocorrido em Goiânia, em 1987, conhecido como Caso Césio
137. Nesse julgamento, o STJ manteve acórdão do TRF da 1ª Região.
O Estado foi condenado com base na responsabilidade objetiva a indenizar as vítimas do acidente. Entretanto, os particulares, proprietários
do Instituto Goiano de Radiologia – IGR, e o físico responsável pela
Bomba de Césio 137 foram condenados em razão da negligência e
da imprudência, respondendo, solidariamente, pelos danos pessoais
causados aos autores.
Nada obstante, defende-se que a todos os réus poder-se-ia ter imputado a responsabilidade civil objetiva alicerçando-se na Lei nº 6.453/77 (Lei
de Acidentes Nucleares), com base na teoria do risco excepcional, a qual
124
Revista da AJUFERGS / 09
prevê que a responsabilidade por dano nuclear é a objetiva, admitindo
apenas a exclusão nos casos conflito armado, guerra civil, hostilidades,
insurreição ou fato excepcional da natureza36.
De outra banda, a jurisprudência é bastante evoluída em relação à
responsabilidade das instituições financeiras, o que pode ser visualizado
na Súmula 479 do STJ: “Conforme entendimento sufragado por esta
Corte em recursos especiais representativos de controvérsia, submetidos ao rito do art. 543-C do CPC, as instituições financeiras respondem
objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados
por terceiros, pois tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno (REsp 1.199.782/PR e
REsp 1.197.929/PR)”.
A Súmula 479 do STJ ainda dispõe: “As instituições financeiras
respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações
bancárias”.
No tocante ao caso fortuito interno e externo, é válida a conceituação
de Sérgio Cavalieri:
Cremos que a distinção entre fortuito interno e externo é
totalmente pertinente no que respeita aos acidentes de consumo.
O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível e, por
isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto
ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do
fornecedor porque faz parte de sua atividade, liga-se aos riscos
36 Nesse sentido, o STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 1.180.888 – GO (2010/00307203), manteve julgamento do TRF no que tange à responsabilidade objetiva da União e
dos Estados pelo acidente radioativo ocorrido em Goiânia em 1987, Bomba de Césio
137. No entanto, o acórdão do TRF da 1ª Região (AC 38194 GO 2003.01.00.038194-4)
condenou as pessoas físicas com base na subjetiva: “Os Réus... proprietários do Instituto
Goiano de Radiologia – IGR, que, juntamente com o físico responsável pela Bomba
de Césio 137, ao abandonarem o equipamento na antiga sede da referida clínica, bem
como Fulano ao mandar ‘demolir’ o prédio para retirar o material de construção nele
empregado e do qual se julgava dono, devem ser considerados responsáveis pelo maior
acidente radiológico do mundo, ocorrido na cidade de Goiânia/GO, em setembro de
1987, em razão da negligência e imprudência, respondendo, solidariamente, pelos danos
pessoais causados aos Autores”.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 125
do empreendimento, submetendo-se a noção geral de defeito de
concepção do produto ou de formulação do serviço. Vale dizer,
se o defeito ocorreu antes da introdução do produto no mercado
de consumo ou durante a prestação do serviço, não importa saber
o motivo que determinou o defeito; o fornecedor é sempre responsável pelas suas consequências, ainda que decorrente de fato
imprevisível e inevitável. O mesmo já não ocorre com o fortuito
externo, assim entendido aquele fato que não guarda nenhuma
relação com a atividade do fornecedor, absolutamente estranho ao
produto ou serviço, via de regra, ocorrido em momento posterior
ao da sua fabricação ou formulação. Em caso tal, nem se pode
falar em defeito do produto ou do serviço, o que, a rigor, já estaria
abrangido pela primeira excludente examinada – inexistência de
defeito (art. 14, § 3º, I).37
Por fim, merece destaque a jurisprudência do STJ acerca da construção da teoria do risco integral nos casos de dano ambiental, ao estabelecer
que o nexo de causalidade é o fator aglutinante que permite que o risco se
integre à unidade do ato, não admitindo excludentes de responsabilidade
civil para afastar a obrigação de indenizar. Segundo o STJ, aquele que
explora a atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da
preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão
sempre vinculados a ela; por isso, descabe a invocação, pelo responsável
pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil38.
37 Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
p. 256-257.
38 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE
DEFESA. VALOR DA CONDENAÇÃO EM DANOS MATERIAIS. SÚMULA N. 7/STJ.
HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. PETROBRÁS.
ROMPIMENTO DO POLIDUTO “OLAPA” E VAZAMENTO DE ÓLEO COMBUSTÍVEL. DANO AMBIENTAL. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. RESPONSABILIDADE
OBJETIVA. PRECEDENTE DA SEGUNDA SEÇÃO, EM SEDE DE RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. TERMO INICIAL. JUROS MORATÓRIOS. SÚMULA N.
54/STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. O Tribunal de origem afastou a alegação de cerceamento
de defesa por entender comprovada a ocorrência e a extensão do dano ambiental, bem
como a legitimidade do autor da ação. Alterar esse entendimento demandaria o reexame
das provas produzidas nos autos, o que é vedado em recurso especial, a teor da Súmula n.
126
Revista da AJUFERGS / 09
Conclusão
Os textos constitucionais e a codificação civil do século XX trazem
lógica da justiça social distributiva, da dignidade da pessoa humana, em
que não mais se aceita que os danos pessoais sejam ignorados ou individualmente suportados, sob a falsa justificativa de que necessários ao
crescimento social, econômico e tecnológico de uma civilização. Nessa
lógica solidarista, os prejuízos são transferidos, sempre que possível, à
comunidade, subordinando-se o conceito de responsabilidade à efetiva
reparação dos danos (injustos) sofridos pela vítima, independentemente
da identificação de um culpado, ressaltando-se a relação de solidariedade
entre a coletividade (na qual se inclui o autor do dano) e a vítima39.
A responsabilidade civil contemporânea tem por escopo indenizar a
vítima. Tem por contorno a ampliação da esfera de proteção dos interesses
e a solidarização da reparação dos danos. O desenvolvimento dos seguros
de responsabilidade civil adveio do propósito de desestimular as condutas
culposas e assegurar a reparação integral à vítima, o que não rara vezes
é inviável, ante o grande número de pessoas atingidas e o elevado valor
da reparação do dano (a exemplo do que ocorre em desastres ambientais
e catástrofes industriais).
Nesse passo, o legislador ampliou as hipóteses de responsabilidade
solidária em que são distribuídos na sociedade, ou em setor da sociedade,
os custos da administração dos riscos.
7/STJ. 2. O exame da pretensão recursal no tocante à diminuição do valor da condenação a
título de danos materiais exigiria o reexame da extensão do prejuízo sofrido pelo recorrido,
o que é inviável em recurso especial, ante o óbice da mesma súmula. 3. Aplica-se perfeitamente à espécie a tese contemplada no julgamento do REsp n. 1.114.398/PR (Relator
Ministro SIDNEI BENETI, julgado em 8/2/2012, DJe 16/2/2012), sob o rito do art. 543-C
do CPC, no tocante à teoria do risco integral e da responsabilidade objetiva ínsita ao dano
ambiental (arts. 225, § 3º, da CF e 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981). É irrelevante, portanto, o
questionamento sobre a diferença entre as excludentes de responsabilidade civil suscitadas
na defesa de cada caso. Precedentes. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp
273058 / PR. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
2012/0268197-9, DJe 17/04/2013).
39 TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no direito
privado: da culpa ao risco. Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade
Social | vol. 2 | p. 787 | Set / 2012 | DTR\2005\425.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO 127
Denota-se que a tendência é a adoção de sistemas de securitização
do risco, a imposição de seguros obrigatórios e de fundos ressarcitórios,
que permitam a substituição de uma responsabilidade individual por uma
responsabilidade social, em que cada um assuma o ônus correspondente
ao seu real potencial lesivo, transformando o problema dos danos em um
problema de toda a sociedade40.
A securitização como solução não está imune a riscos, como a inviabilidade da generalização do seguro, o possível desaparecimento do
efeito intimidatório do pagamento da indenização ou ainda a necessidade
da limitação da indenização, como ocorre no Direito tedesco.
Enfim, o que se vê não é a transformação de um sistema de
responsabilidade em um sistema de solidariedade, mas uma modificação interna da estrutura da responsabilidade civil, a qual substitui
a responsabilidade individual pela social. Esse modelo ultrapassa a
responsabilidade objetiva, já que ela permanece vinculada a parâmetros individuais, enquanto a responsabilidade socializada transcende o
indivíduo e socializa as perdas. O modelo de responsabilidade socializada está previsto no ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo,
a exemplo do acidente por trabalho ou de veículos automotores. No
entanto, o que se percebe é um movimento expansionista sem volta
dessa nova tendência da responsabilidade civil.
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São Paulo: Atlas, 2011.
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CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed.
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40 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 256.
128
Revista da AJUFERGS / 09
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São
Paulo: Atlas, 2008. p. 256-257.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. Revista atualizada de acordo com o Código Civil de 2002 e aumentada por Rui Berford
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TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do
risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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Civil Francês). Revista dos Tribunais | vol. 831 | p. 11 | Jan / 2005.
WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Responsabilidade civil: responsabilidade objetiva. In: Revista da Ajufe, ano 23, número 87, 1º trimestre/2007.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
SOLIDARIEDADE
“E que o seu legado tenha sido um mundo melhor do que aquele que encontrou.” Og Mandino
Ana Cristina Monteiro de Andrade Silva
Juíza Federal da Vara Federal de Joaçaba, Santa Catarina
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Mestre em Direito Público pela PUC/RS
Professora da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina
Professora do Curso de Pós-Graduação da UNOESC de Joaçaba
Resumo: Princípio constitucional da solidariedade. Significado. Fundamento Constitucional. Fundamento do Código de Ética da Magistratura
Nacional. Perspectiva previdenciária do princípio. Perspectiva ambiental
do princípio. Solidariedade intergeracional.
Palavras-chave: Princípio constitucional da solidariedade. Fundamento. Direito Previdenciário. Direito Ambiental.
Sumário: Introdução. 1 Significado. 2 Fundamento. 2.1 Fundamento
constitucional. 2.2 Fundamento do Código de Ética da Magistratura
Federal. 3 O princípio constitucional da solidariedade iluminando os
demais ramos do Direito. 3.1 O princípio constitucional da solidariedade
na perspectiva do Direito Previdenciário. 3.2 O princípio constitucional
da solidariedade na perspectiva do Direito Ambiental. Conclusões.
Introdução
Este trabalho foi elaborado em resposta à exigência da Escola da
Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, como conclusão
do Módulo V – Direito Constitucional, o qual teve seu ciclo de palestras
realizado no segundo semestre do ano de 2012, nas cidades de Porto
Alegre, Florianópolis e Curitiba.
O tema foi escolhido com base na aspiração de construir um mundo
mais justo e solidário. Tal aspiração não é somente nossa, individualmente, mas traduz um valor constitucional que foi expresso na Constituição
130
Revista da AJUFERGS / 09
de 1988, no seu artigo 3º, inciso I. Assim, buscaremos verificar até que
ponto esse princípio tem força cogente capaz de obrigar ao seu acatamento
e quais as consequências disso.
Iremos em busca, primeiramente, do significado da solidariedade, valor que embasa o princípio ora estudado. Nessa procura, não
ficaremos adstritos ao Direito, mas teremos o apoio da Filosofia e da
Antropologia.
Investigaremos esse princípio sob o prisma constitucional, do
ponto de vista do Código de Ética da Magistratura Nacional e também
sob as perspectivas do Direito Previdenciário e do Direito Ambiental.
Estamos cientes da multidisciplinaridade do Princípio da Solidariedade
e sabemos que seu alcance não se esgota nos ramos do Direito aqui
mencionados. Todavia, escolhemos propositalmente o Direito Previdenciário e o Direito Ambiental porque envolvem a competência da Justiça
Federal. Desse modo, poderemos aprimorar nossa jurisdição por meio
deste estudo. Buscaremos saber como o Princípio Constitucional da
Solidariedade ilumina o Direito Previdenciário e o Direito Ambiental
e quais são os direitos e as obrigações que resultam daí.
1 Significado
De acordo com o Dicionário Aurélio1, assim pode ser definida solidariedade:
1. Qualidade de solidário. 2. Laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes. 3. Adesão ou apoio a causa, empresa,
princípio, etc. de outrem. 4. Sentido moral que vincula o indivíduo
à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social,
duma nação ou da própria humanidade. 5. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira
que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar
o(s) outro(s). 6. Sentimento de quem é solidário. 7. Dependência
recíproca. 8. Jur. Vínculo jurídico entre os credores (ou entre os
1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da
língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1879.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
131
devedores) duma mesma obrigação, cada um deles com direito (ou
compromisso) ao total da dívida, de sorte que cada credor pode exigir (ou cada devedor é obrigado a pagar) integralmente a prestação
objeto daquela obrigação.
A solidariedade passa pela empatia, mas nela não se encerra. Ao
contrário, vai além dela. Enquanto a empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, a solidariedade consiste na preocupação com
a situação alheia e na tomada de ações para minimizar o sofrimento do
próximo. Frans de Waal2 assim explicita tal distinção: “A solidariedade
difere da empatia pelo fato de ser proativa. A empatia é o processo pelo
qual nos damos conta da situação de outra pessoa. A solidariedade, em
contraste, reflete nossa preocupação com o outro e um desejo de fazer
com que a situação melhore”.
Mas o que exatamente significaria uma sociedade solidária? Wolgran Junqueira Ferreira3 responde que consiste na coparticipação das
comunidades. Deverão, assim, os membros dessa sociedade ter maior
participação nas responsabilidades e nas decisões. E, com razão, acrescenta que é aí que encontramos a razão da existência do regime democrático, deixando ao ser humano um campo mais vasto, que vai além de
proporcionar a possibilidade de informar-se e exprimir-se, levando-o a
comprometer-se numa responsabilidade comum.
Indagamos se essa responsabilidade pela guarda de nossos irmãos
de algum modo atrapalharia nossos propósitos na Terra (de produzir e
consumir, segundo os economistas, ou de sobreviver e nos reproduzir, de
acordo com os biólogos). Wall lembra que Adam Smith sabia que a luta
pelos nossos interesses pessoais deve ser temperada pelo sentimento de
solidariedade, referindo que Smith4 teria assim começado seu primeiro
livro:
2 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130.
3 FERREIRA, Wolgran Junqueira. Comentários à Constituição de 1988: volume 1.
Campinas: Julex Livros, 1989, p. 92 e 93.
4 SMITH, A. A theory of moral sentiments. Nova York, Modern Library, 1937 (1759)
apud WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11 e 12.
132
Revista da AJUFERGS / 09
Por mais egoísta que se possa admitir que seja o homem, é
evidente que existem certos princípios em sua natureza que o levam
a interessar-se pela sorte dos outros e fazem com que a felicidade
destes lhe seja necessária, embora disso ele nada obtenha que não
o prazer de a testemunhar.
A fraternidade foi invocada pelos revolucionários da Revolução
Francesa. Lincoln falava sobre os laços que unem as pessoas, e Roosevelt
afirmava que a solidariedade era o “fator mais importante na produção
de uma vida política e social saudável”. Embora esses sentimentos
tenham sido muitas vezes ridicularizados, Frans de Wall5 sustenta que
a empatia é algo natural em nossa espécie, que nossa tendência natural
dirige-se para a solidariedade, e não para a competição desenfreada e
para a agressão, como quiseram supor alguns seguidores da teoria evolucionista de Darwin, os quais, diga-se de passagem, foram muito além
do que Darwin quis expressar em sua teoria. Aqueles que dão ênfase à
liberdade individual normalmente consideram os interesses coletivos
como uma ideia romântica, preferindo a lógica do “cada um por si”.
No dizer de Frans de Wall6:
É muito diferente ver a natureza humana como “rubra nos
dentes e garras” ou considerar que a solidariedade e a cooperação
fazem parte de nossos antecedentes [...]. O próprio Darwin se sentia
desconfortável com as lições sobre o “direito do mais forte” que
outros pensadores como Spencer tentaram extrair de sua teoria.
Tem razão Frans de Wall7 quando sustenta que a grande questão
de nossos tempos é o bem comum e reside em saber de que modo
podemos combinar uma economia próspera com uma sociedade
humanitária.
5 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13 e 17.
6 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 50.
7 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 14.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
133
Ayres Britto8, fazendo referência à dignidade da pessoa humana,
sustentáculo dessa sociedade humanitária, nos ensina:
A humanidade que mora em cada um de nós é em si mesma o
fundamento lógico ou o título de legitimação de tal dignidade. Não
cabendo a ele, Direito, outro papel que não seja o de declará-la. Não
propriamente o de constituí-la, porque a constitutividade em si já está
no humano em nós. Em palavras outras, a circunstância do humano
em nós é que nos confere uma dignidade primaz. Dignidade que o
Direito reconhece com fator legitimante dele próprio e fundamento
do Estado e da sociedade.
Embora o ser humano conserve seu lado individualista, o sentimento
egoísta, por si só, não basta. Frans de Wall9 refere que há algo como
um “autointeresse esclarecido”, que nos leva a trabalhar em prol de
uma sociedade que sirva aos nossos melhores interesses. Tanto os ricos
como os pobres dependem do mesmo sistema de esgotos, das mesmas
autoestradas e do mesmo sistema de leis. De fato, ao crescermos em sociedade, somos introduzidos nesse contrato e reagimos com indignação
quando ele é violado.
Assistindo os outros servimos também, muitas vezes, ao nosso
interesse, como é o caso da ajuda a parentes ou amigos próximos que
possivelmente retribuirão o favor. Entretanto, humanos e animais, conforme a observação de Wall, não se ajudam mutuamente somente por
razões egoístas. Exemplifica o autor10:
Um homem que salta sobre os trilhos do trem para salvar um
estranho, um cachorro que pula à frente de uma criança para protegê-la de uma cascavel ou os golfinhos que formam círculo protetor
ao redor de pessoas nadando em águas infestadas de tubarões não
estão procurando recompensas futuras.
8 BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte:
Fórum, 2010, p. 25- 26.
9 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 59.
10 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 67 e 68.
134
Revista da AJUFERGS / 09
A verdade é que estamos interligados com nossos semelhantes tanto
do ponto de vista corporal como pelo aspecto emocional. O Homo sapiens é impelido na mesma direção de seus companheiros em diversas
ocasiões: correndo quando outros correm, rindo quando outros riem e
bocejando quando outros bocejam11. Do mesmo modo, reagimos a catástrofes ambientais a milhas distantes devido às imagens que chegam a
nós. Assim, “nossa caridade é produto da identificação emocional, mais
do que uma escolha racional”12.
Estamos de acordo com Wall13 no sentido de que uma sociedade baseada no interesse egoísta e nas forças de mercado, ainda que seja capaz
de produzir riquezas, não é capaz de alcançar a união e a confiança que
fazem a vida valer a pena. Tanto é assim que pesquisas recentes concluem
que altos índices de felicidade não têm seus coeficientes mais expressivos
nos países ricos, mas, ao contrário, têm seus níveis mais elevados nos
países onde há maior confiança entre os cidadãos.
O certo é que a ganância como única força propulsora da sociedade
acabará corroendo o tecido social, pois não alcançaremos um funcionamento harmonioso da sociedade sem que haja um forte senso de comunidade14. Enfim, não podemos ser indiferentes aos outros se quisermos
construir a sociedade justa e solidária de que fala nossa Constituição.
2 Fundamento
2.1 Fundamento constitucional
O princípio constitucional da solidariedade é princípio expresso nos
termos do artigo 3º, inciso I, da Constituição, o qual preceitua o que segue:
11 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 75.
12 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 168.
13 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 312.
14 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais
gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 312.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
135
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Tais objetivos são ações que devem ser almejadas e efetivadas pelos
entes da Federação para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que seja capaz de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a
pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais,
promovendo o bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza.
Estamos de acordo com o juiz federal Narciso Leandro Xavier Baez15,
visto que esses objetivos são normas constitucionais de eficácia plena,
tendo força vinculativa desde a promulgação da Carta, não dependendo de qualquer norma infraconstitucional para sua aplicação. De fato,
não por acaso o princípio da solidariedade restou situado no título dos
princípios fundamentais, formando a base axiológica do ordenamento
jurídico, com a finalidade de nortear os atos perpetrados pelo Estado desde
a promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim sendo, qualquer
ato que esteja em desacordo com esses objetivos fundamentais viola o
artigo terceiro da Lei Fundamental. A força vinculativa dessa norma é
desde a promulgação da Carta Magna.
Como ensina Konrad Hesse16, o Direito Constitucional precisa dar o
máximo de eficácia na interpretação do texto constitucional, como meio
de despertar e preservar a vontade da Constituição:
15 BAEZ, Narciso Leandro Xavier. Princípios fundamentais do Estado brasileiro. In:
Janczeski, Célio Armando (Coord.). Constituição Federal Comentada. Curitiba:
Juruá, 2010, p. 27 e 28.
16 Hesse, Konras. A força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991, p. 27.
136
Revista da AJUFERGS / 09
Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as
condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir
a maior eficácia possível, propiciando assim o desenvolvimento
da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete
ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade
da Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubitavelmente,
torna imperiosa a assunção de uma nova visão crítica pelo Direito
Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o
surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida
do Estado.
Comentando o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, José
Francisco Cunha Ferraz Filho17 afirma que a solidariedade “é o princípio
que norteia a amizade política no espaço público, a aproximação e a cooperação sociais entre pessoas e povos. Há que notar que solidariedade
não é coercitiva, pois, ao contrário, tem como pressuposto necessário a
liberdade”. Salienta ainda que “a cooperação na sociedade deve partir de
seus membros, não podendo ser imposta pela estrutura política”.
O Ministro Eros Grau18, ao comentar o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, ensina que sociedade solidária é aquela que não inimiza
os homens entre si:
Sociedade livre é sociedade sob o primado da liberdade, em
todas as suas manifestações e não apenas enquanto liberdade
formal, mas, sobretudo, como liberdade real. Liberdade da qual
neste sentido, consignado no artigo 3º, I, é titular – ou co-titular, ao
menos paralelamente o indivíduo – a sociedade. Sociedade justa é
aquela, na direção do que aponta o texto constitucional, que realiza
justiça social, sobre cujo significado adiante me deterei. Solidária
a sociedade que não inimiza os homens entre si, que se realiza no
retorno, tanto quanto historicamente viável, à Geselchaft – a energia
que vem da densidade populacional fraternizando e não afastando
os homens uns dos outros.
17 FERRAZ FILHO, José Francisco Cunha. Dos princípios fundamentais. In: MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (Org.). Constituição Federal Interpretada. 3. ed. Barueri,
SP: Manole, 2012, p. 7 e 8.
18 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 215.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
137
Canotilho19 também ressalta a importância de o hermeneuta constitucional estar atento aos problemas de seu tempo, entre eles a solidariedade
intergeracional, destacando que:
Por último não deve esquecer-se que a constituição não é apenas
um ‘texto jurídico’, mas também uma expressão do desenvolvimento
cultural do povo. Precisamente por isso, a reserva de constituição
deve estar aberta aos temas do futuro, como o problema da responsabilidade e solidariedade intergeracional (ambiente, dívida
pública, segurança social), o problema da sociedade de informação,
o problema do emprego, o problema da ciência e técnica e das suas
refrações na pessoa humana (biotecnologia, tecnologias genéticas), o
problema das empresas multinacionais e do seu incontrolado poder
político, o problema da droga e do seu potencial existencialmente
aniquilador, o problema da queda demográfica nuns casos e da
explosão demográfica noutros.
Desse modo, entendemos que a melhor hermenêutica constitucional
recomenda que seja atribuída eficácia plena ao princípio da solidariedade,
inscrito em nossa Carta Magna no artigo 3º, inciso I. Entretanto, em outros
momentos, a Constituição faz referência ao princípio da solidariedade,
como é o caso do artigo 40, que assegura regime de previdência de caráter
contributivo e solidário aos servidores titulares de cargos efetivos das
pessoas jurídicas de direito público. Também no artigo 225 da Constituição resta implícito o princípio da solidariedade intergeracional, a que
faz menção Canotilho, quando assevera que incumbe à coletividade o
ônus de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e as futuras gerações.
Portanto, a solidariedade social corresponde a um princípio estrutural
presente em todas as constituições dos Estados Sociais formados a partir
das crises resultantes das grandes guerras que pautaram a primeira metade
do século XX, marcadas pelo reconhecimento constitucional de direitos
sociais, especialmente aqueles relacionados à regulação do trabalho e à
Seguridade Social. Todavia, esse princípio atualmente está presente em
todos os modelos de Estado chamados Estados Democráticos de Direito20.
19 CANOTILHO, JOSÉ Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição.
7. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 1141 e 1142.
20 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. O sistema de seguridade social e o princípio da solidariedade: reflexões sobre o financiamento dos benefícios. Revista de Doutrina TRF4,
Porto Alegre, ed. 25, p. 4 e 5, ago. 2008.
138
Revista da AJUFERGS / 09
2.2 Fundamento do Código de Ética da Magistratura Nacional
A ética judicial compreende critérios normativos que devem orientar
o exercício da função do juiz. Tais critérios se expressam em princípios
e regras que incidem sobre a conduta do homem ao qual é atribuída a
função de julgar.
O Código de Ética da Magistratura Nacional (Resolução nº 60, de
19/09/08, do CNJ) enuncia diversos desses princípios. Para Lourival
Serejo21, o Código de Ética da Magistratura Nacional constitui-se, desse
modo, num “repositório de valoração de condutas e serve de inspiração
para os magistrados elegerem a melhor opção de agir”.
A força normativa desse Código encontra-se na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, da qual é uma extensão (art. 35 da LOMAN), e
na Constituição Federal, abrigo de deveres e princípios que servem de
catecismo para todo cidadão. O princípio da solidariedade está entre
aqueles previstos no Código de Ética da Magistratura e é orientador
da conduta jurisdicional do magistrado. Nesse sentido, o artigo 3º do
Código de Ética da Magistratura preceitua: “Art. 3º A atividade judicial
deve desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa
humana, objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na
relação entre as pessoas”.
O capítulo I desse Código contém a síntese de tudo aquilo que se
almeja de um juiz atual, desde sua formação pessoal até sua postura institucional, política e crítica. Essa preocupação com a formação e a conduta
do juiz vem expressa na Constituição Federal (arts. 101, 104, parágrafo
único e 119, inciso II) ao exigir dos magistrados que terão acesso aos
tribunais superiores os critérios do saber jurídico e da reputação ilibada.
Nessa condição –reputação ilibada –, centra-se toda a preocupação ética
com a pessoa que será investida em tão elevado cargo do Poder Judiciário.
Em conformidade com o Código de Ética e com a melhor interpretação, o juiz, consciente de sua responsabilidade e da função em
que foi investido, necessariamente deve ser independente, imparcial,
capaz, cortês, prudente, diligente, íntegro e digno. Toda aplicação da
21 EREJO, Lourival. Comentários ao código de ética da magistratura nacional. Brasília,
DF: ENFAM, 2011, p. 17.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
139
lei, atualmente, deve submeter-se à perspectiva constitucional. Assim,
à magistratura é reconhecida hoje importante função na efetivação do
Estado Democrático de Direito, assegurando as promessas da democracia
aos cidadãos e a transparência do jogo democrático.
A Constituição Federal, além de iluminar e dirigir todos os demais ramos
do Direito, orienta também a atividade do juiz, como pudemos observar pelo
mandamento do artigo 3º do Código de Ética da Magistratura Nacional. A
Constituição da República é o documento que abriga as garantias e os direitos
individuais, as regras de funcionamento do governo e traça todo o arcabouço
do Estado, notadamente se ela foi elaborada por uma assembleia constituinte
legitimamente constituída pela vontade soberana do povo.
Urge que o juiz esteja sempre voltado para a aplicação dos princípios constitucionais, entre eles o princípio da solidariedade, como fonte
motivadora de suas decisões, além de demonstrar o espírito público que
deve orientar sua postura. Por inspiração constitucional é que se forma
o juiz republicano, preocupado com o bem comum, com a coisa pública, com a eficiência das políticas públicas e com a efetivação da justiça
social. A busca da justiça em suas decisões é garantia de paz, equidade e
razoabilidade. Não se admite mais o juiz que decide somente pela letra
da lei, ressuscitando o velho brocardo dura lex sed lex para justificar
decisões injustas e alheias às peculiaridades do caso concreto.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, insculpiu os seguintes
princípios básicos do nosso Estado Democrático de Direito: a soberania; a
cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa; o pluralismo político. Logo adiante (art. 3º), a Constituição
elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre
os quais se destaca o de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Concordamos com Lourival Serejo22 ao afirmar que “a promoção da solidariedade e da justiça entre as pessoas tem sua base na ética da convivência,
da cristandade, da tolerância, do respeito e do olhar atento”.
Sobre a solidariedade, Leonardo Boff23, dando-lhe uma dimensão
ética maior, faz uma séria advertência: “A solidariedade política ou será o
22 SEREJO, Lourival. Comentários ao código de ética da magistratura nacional. Brasília, DF: ENFAM, 2011, p. 25.
23 BOFF, Leonardo. Ética e moral. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 54.
140
Revista da AJUFERGS / 09
eixo articulador da geossociedade mundial ou não haverá, a longo prazo,
futuro para ninguém, solidariedade a ser construída a partir de baixo, das
vítimas dos processos sociais e dos sofredores”.
Nesse sentido, também não vemos futuro para a sociedade atual sem
obediência e vivência do princípio da solidariedade. Para que possamos
bem obedecê-lo, esse princípio constitucional deve permear nossas
atitudes como cidadãos e como magistrados que somos. A Constituição
Federal e o Código de Ética da Magistratura Nacional não permitem
outra atitude jurisdicional que não seja permeada pelo princípio da solidariedade. Assim sendo, o princípio da solidariedade, dada sua categoria
constitucional, iluminará não somente a atividade do magistrado, como
também todos os demais ramos do Direito.
3 O princípio constitucional da solidariedade iluminando os
demais ramos do Direito
3.1 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva
do Direito Previdenciário
O significado da solidariedade com relação à Seguridade Social está
fortemente ligado à ideia de bem comum ao entendermos que todos são
responsáveis por todos. De fato, a solidariedade é o elemento central
desencadeador das políticas públicas que tenham por finalidade propiciar
o bem-estar aos cidadãos24.
Estamos de acordo com Patrícia Sanfelice no sentido de que o Estado do Bem-Estar Social foi a maior experiência de solidariedade que
já existiu. A sociedade assume o destino das pessoas, de maneira que
ninguém é abandonado. O Estado, então, é utilizado para disciplinar e
democratizar a distribuição de renda. Essas políticas sociais têm caráter
contrário ao individualismo do Estado Liberal. Resulta desse modo a
Seguridade Social como um fruto do direito de solidariedade, trazendo
uma nova ordem de concepções jurídicas, em resposta ao declínio das
24 SANFELICE, Patrícia de Mello. O Princípio da Solidariedade, características e
aplicação na seguridade social. Revista de Direito Social, Porto Alegre, ano 2, n. 7,
p. 11, jul./set. 2002.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
141
concepções do individualismo, para regular os problemas sociais. Rui
Barbosa apud Farias25, percebendo o crescimento da solidariedade frente
ao individualismo, referiu:
Já não se vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição
de unidades individuais acastelas cada qual no seu direito intratável,
mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade.
O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo
à solidariedade humana.
No intervalo entre a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque,
em 1929, e o período imediatamente posterior à Segunda Guerra
Mundial, o intervencionismo estatal, com a finalidade de sanar as
desigualdades, toma traços definitivos. É justamente nessa época
que surgem as teorias econômicas aliadas a políticas estatais (como
o New Deal norte-americano), que servirão de inspiração a profundas mudanças no modelo estatal contemporâneo. Justamente nesse
lapso temporal que será cunhada a expressão Estado do Bem-Estar
Social (Welfare State).
A proteção social passa a ser dever de toda a sociedade, possuindo o
caráter de solidariedade que conhecemos até os dias atuais. De fato, sem
esse conceito de que todos contribuem para que os necessitados possam
receber, não é possível falarmos em previdência social26.
Há, portanto, uma íntima relação entre o princípio da solidariedade
e a Seguridade Social, considerando que a Seguridade vem à tona justamente para satisfazer às necessidades do homem que devem ser providas
pelo Estado. Assim, o ordenamento pátrio eleva à categoria de princípio
a solidariedade, restando esta com o objetivo da República Federativa
do Brasil, com estreito vínculo com os ideais democráticos27.
25 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do Direito de Solidariedade. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, p. 192.
26 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; Lazzari, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 44.
27 SANFELICE, Patrícia de Mello. O Princípio da Solidariedade, características e
aplicação na seguridade social. Revista de Direito Social, Porto Alegre, ano 2, n. 7,
p. 14, jul./set. 2002.
142
Revista da AJUFERGS / 09
Conforme o ensinamento de Martins28:
Ocorre solidariedade na Seguridade Social quando várias pessoas economizam em conjunto para assegurar benefícios quando as
pessoas do grupo necessitarem. As contingências são distribuídas
igualmente a todas as pessoas do grupo. Quando uma pessoa é
atingida pela contingência, todas as outras continuam contribuindo
para a cobertura do benefício necessitado.
A Seguridade Social tem por escopo prevenir, assistir e proteger
os membros da sociedade diante das contingências sociais. Se por um
lado é um dever jurídico do Estado, por outro é um direito subjetivo
das pessoas que necessitam dessa prevenção, assistência ou proteção.
Constitui-se, assim, como dever e direito. Todavia, não tem só a função
de atender às necessidades imediatas decorrentes da ocorrência de eventos nele prescritos. O papel do Estado vai além, cabendo a ele cumprir
com os objetivos dos sistemas nos quais se insere, os da ordem social
e, ao fim, os da República Federativa do Brasil. Por isso, de fato, a Seguridade Social cumpre importante papel socioeconômico por meio da
redistribuição de renda29.
Desse modo, a Seguridade Social contemporânea não é mais um
serviço público de amparo social mantido pelos tributos sem vinculação às prestações estatais predefinidas para exercer o novel papel de
distribuição de rendas. Trata-se de um mecanismo de transferência das
responsabilidades pelos efeitos dos riscos sociais dos que foram atingidos
pelas contingências sociais para os integrantes de grupos economicamente
mais fortes, e destes para as pessoas mais aptas a suportá-las, isto é, toda
a sociedade30.
28 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 11. ed. São Paulo: Atlas,
1999, p. 67 e 68.
29 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 63.
30 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista
(Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 63.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
143
A Seguridade Social tem um importante papel na redistribuição de
rendas. Tanto é assim que, na França, havia um imposto sobre a riqueza,
sobre a propriedade e sobre grandes fortunas. Tal tributo foi extinto, sendo
criado no seu lugar o imposto da solidariedade social. Seu objetivo não
é de atender aos gastos gerais do orçamento, mas de gerar recursos que
possam auxiliar a eliminar o desequilíbrio de rendas existente no país,
tirando dos ricos para aplicar a favor dos mais pobres, de modo a tentar
nivelar o grau de bem-estar no país31.
No Brasil, é relevante o papel da Previdência Social na redução das
desigualdades sociais e econômicas, mediante uma política de redistribuição de rendas. Urge que se retirem maiores contribuições das parcelas
mais favorecidas da sociedade e, assim, que se concedam benefícios a
populações de mais baixa renda. Historicamente, foram as consequências da vida laborativa moderna, posterior à Revolução Industrial, que
levaram à criação dos primeiros modelos de Seguro Social como meio
de amparar o trabalhador quando incapacitado e, após, à instituição das
políticas de Seguridade Social, visando à melhor redistribuição de renda
e a melhores condições sociais32.
Ademais, a solidariedade exerce também a função de mantenedora da
ordem social, considerando que ela contém a liberdade nos seus limites,
evitando desse modo o uso abusivo da liberdade de um em detrimento
da liberdade de outro. Por isso, considerando seu papel distribuidor de
renda, a solidariedade serve como instrumento para a repartição equilibrada das coisas, efetivando o mandamento da justiça, ou seja, dando a
cada um o que é seu33.
31 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 64.
32 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 55 e 56.
33 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 64.
144
Revista da AJUFERGS / 09
Há quem alegue que o trabalhador deva ser responsável por sua
subsistência futura quando deixar de ser capaz para o trabalho, fazendo uma poupança para tanto. Todavia, há casos em que o trabalhador
sofre acidente no início de sua atividade produtiva, sendo a partir disso
incapaz para o trabalho. Isso revela que, por mais precavido que possa
ser o indivíduo, ele estará sujeito a múltiplos infortúnios em todos os
momentos de sua vida, e não somente na sua velhice. Destarte, assume
especial relevância o princípio da solidariedade, pois, se a finalidade
da Previdência Social é a proteção à dignidade da pessoa, somente se
alcança tal proteção pela cotização coletiva a favor daqueles que, no
futuro, ou mesmo no presente, necessitem de prestações retiradas desse
fundo comum34.
Nosso Sistema de Seguridade Social, assim, do modo como posto
pela Constituição Federal de 1988, pauta-se na ideia de solidariedade, que
é pressuposto do Estado Providência e da social-democracia. Tal ideia
de solidariedade, ao contrário do que poderia parecer ao senso comum,
fundamenta-se no reconhecimento da desigualdade entre os homens, na
medida em que propugna que alguns privilegiados têm o dever jurídico,
e não puramente moral, de repartir os frutos de seu trabalho com os demais. Esse dever é político, econômico e social, e como decorrência desse
princípio o indivíduo tem a obrigação de concorrer para a subsistência do
Estado pelo simples fato de ser membro da comunidade, independente
de contraprestação ou benefício35.
O princípio constitucional da solidariedade, em termos de Direito
Previdenciário, serve como meio de realização da dignidade da pessoa
humana, de modo a atender aos fins da justiça social. No que tange ao
conteúdo normativo do princípio da solidariedade, há variação quanto aos
seus limites e suas possibilidades. Ocorre que a proteção social deverá
ser ministrada até debelar a necessidade resultante de uma contingência
34 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 54.
35 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. O sistema de seguridade social e o princípio da solidariedade: reflexões sobre o financiamento dos benefícios. Revista de Doutrina TRF4,
Porto Alegre, ed. 25, p. 4 e 5, ago. 2008.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
145
social, sendo que o dever do Estado e o direito do indivíduo não abrangem
todas as carências nem sua completa extensão36.
No âmbito da saúde, a solidariedade consiste na contribuição de
todos para a fruição por todos. Os recursos que financiam a saúde são suportados por toda a sociedade, sem vinculação a nenhum beneficiário em
específico, e têm por objetivo atender a toda a sociedade. Por intermédio
dos impostos, das contribuições e de outras receitas, todos pagam para
financiar a prestação de serviços a todos. Assim, em termos de saúde, a
solidariedade social está limitada pelos princípios da universalidade e
da uniformidade, preceituados no artigo 196 da Constituição Federal, os
quais “não permitem que o legislador ordinário e o aplicador do Direito
façam escolhas ou instituam privilégios: dá aos serviços médicos a quantos, no território nacional, deles tenham necessidade contra a doença”.
Por outro lado, “esses serviços são devidos em dose igual, seja qual for
seu destinatário, bastando que seja carecedor deles”37.
Já em termos de assistência social, são atendidos aqueles que não
são filiados à Previdência Social, que não verteram sequer uma contribuição. Todavia, para que possam fazer jus à contraprestação, urge que
não tenham outro modo de prover o próprio sustento. Só se justifica o
custeio por toda a sociedade se realmente houver a carência38.
Em termos de assistência social e de Previdência, vige o princípio
da supletividade, ou seja, o Estado substitui a atividade do particular
e apenas intervém quando de fato o indivíduo não pode suportar os
efeitos das contingências sociais. Na assistência, todos pagam, mas
36 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 66.
37 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 66 e 67.
38 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 67.
146
Revista da AJUFERGS / 09
apenas alguns gozam das prestações. Aplica-se, então, a regra do “todos por alguns”. Essa limitação só ocorre porque seria inviável uma
seguridade plena, a qual importaria uma carga difícil de ser suportada
pela coletividade39.
No que concerne à Assistência Social, a responsabilidade do Estado
é subsidiária à da família. Somente se de fato a família não tiver condições de atender aos seus idosos, aos seus deficientes e às suas crianças
é que o Estado irá arcar com o pagamento da prestação assistencial. Tal
caráter subsidiário acaba por limitar a aplicação normativa da solidariedade social, sendo possível de se cogitar em uma ação regressiva contra
a família caso possua condições de prestar a assistência requerida. De
acordo com a juíza Leda Pinho, “o princípio da solidariedade na Assistência Social pode então ser designado do princípio da solidariedade
seletiva ou restrita”40.
A Previdência Social não tem por objetivo a indenização, mas acudir
a necessidade social. Por isso, não há correspondência exata entre o que
o trabalhador paga e o que ele recebe se ocorrido o evento acobertado. A
solidariedade financeira é um dos pressupostos da solidariedade social, já
que os recursos precisam vir antes dos encargos financeiros. Em termos
de previdência, tais recursos são carreados por alguns segurados em
benefício de alguns segurados e seus dependentes. Vale, então, no que
toca à Previdência Social, a regra do “alguns por alguns”41.
No dizer da juíza Leda Pinho: “A contributividade e a filiação, portanto, integram e limitam o conteúdo do princípio da solidariedade na
39 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 67 e 68.
40 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 68.
41 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João
Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito,
2007, p. 69.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
147
Previdência Social, o qual se pode designar de princípio da solidariedade
interpessoal, contributiva ou recíproca”42.
3.2 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva
do Direito Ambiental
O princípio da solidariedade traduz-se no novo marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito Contemporâneo.
Esse princípio surge como uma “tentativa histórica de realizar na integralidade o projeto da modernidade, concluindo o ciclo dos três princípios
revolucionários: liberdade, igualdade, fraternidade”43.
De fato, há que se aprofundar o ideário da Modernidade, sobretudo
em sociedades como a nossa, nas quais se enfrentam carências já solucionadas nos países desenvolvidos. Devemos insistir na luta pela implementação dos grandes valores do iluminismo da liberdade, da igualdade, da
democracia e da solidariedade. E considerando a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais, incluídos aí os direitos sociais, recupera-se a noção
de solidariedade, revestindo-a de juridicidade. Desse modo, confere-se aos
poderes econômicos privados não apenas o dever moral de garantir certas
prestações sociais para as pessoas carentes com quem se relacionam, mas
acarretam, em certos casos, a obrigação jurídica de fazê-lo.
Nossa Constituição de 1988, como já comentamos anteriormente,
é um marco para a dignidade da pessoa humana, trazendo a “primazia
das situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial”44.
42 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no
sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista
(Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 69.
43 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 151, jan./mar. 2008.
44 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura Civil-Constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109 apud FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade
como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do
Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre,
n. 2, p. 132-157, jan./mar. 2008.
148
Revista da AJUFERGS / 09
Estabelece-se, então, o princípio da solidariedade como um princípio e
um valor constitucional.
Conforme Fensterseifer: “A solidariedade expressa a necessidade
fundamental de coexistência do ser humano em um corpo social, formatando a teia de relações intersubjetivas e sociais que se traçam no espaço
da comunidade estatal”45. Ocorre que aqui se vai além de uma obrigação
simplesmente moral, porquanto o princípio da solidariedade assumiu hierarquia constitucional, levando consigo toda a carga jurídico-normativa.
O princípio da solidariedade não opera isoladamente no sistema normativo, atuando juntamente com outros princípios como a justiça social,
a igualdade substancial e a dignidade humana. A justiça social e a justiça
distributiva passam pelo fortalecimento da solidariedade. Se os direitos
sociais dependem dos vínculos de fraternidade, o mesmo vale para os
direitos de terceira dimensão, como é o caso dos direitos ecológicos, os
quais também encontram seu fundamento na ideia de justiça ambiental46.
Ainda segundo Fensterseifer:
O princípio da solidariedade, juntamente com o princípio da
igualdade, é instrumento e resultado da atuação da dignidade social
do cidadão, a qual confere a cada um o direito ao respeito inerente
à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado
em condições idôneas de exercer as próprias aptidões pessoais,
assumindo a posição a estas correspondentes.
Ademais, a ideia de justiça distributiva está inserida no princípio
da solidariedade, já que esse princípio trata da relação entre sociedade e
Estado, de modo a deslocar para os particulares parte da responsabilidade
e dos encargos pertinentes à concretização dos direitos fundamentais e
à dignidade da pessoa humana.
45 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 151, jan./mar. 2008.
46 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 152, jan./mar. 2008.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
149
O princípio 3 da Declaração do Rio preceitua: “Princípio 3. O
direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que
sejam atendidas, equitativamente, as necessidades de desenvolvimento
e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”. A solidariedade,
assim, encontra-se ligada ao conceito de direito sustentável. Pela própria
natureza difusa do bem ambiental, seu direito deve ser usufruído tendo
em vista o direito de toda a coletividade, de modo a se afastar de uma
perspectiva individualista e, indo além, de modo a garantir o direito
das futuras gerações. Esse direito intergeracional também é expresso
no artigo 225, caput, da Constituição Federal, a fim de determinar que
encargos e responsabilidades sejam partilhados entre Estado e sociedade,
conferindo “ao Poder Público e à coletividade o dever” de defender e
proteger o ambiente para as presentes e as futuras gerações. É interessante
observar que, atualmente, segundo o preceito constitucional, o dever de
solidariedade é atribuído também aos particulares. Trata-se de um “dever fundamental”, que é “um dos aspectos normativos mais importantes
trazidos pela nova dogmática dos direitos fundamentais, vinculando-se
diretamente com o princípio da solidariedade”47.
Entende-se que há solidariedade também entre cidadãos de diferentes
Estados nacionais, para conformar e limitar as práticas sociais predatórias
do ambiente, de modo a alcançar um desenvolvimento sustentável mundial. Ocorre que, tendo em vista a crise ambiental pela qual passa nosso
planeta, o conceito clássico de soberania restou relativizado. Destarte,
em relação ao meio ambiente, a soberania não é mais justificativa para o
abuso desenfreado dos recursos naturais. Embora soberano, o Estado deve
respeitar o meio ambiente. Nesse sentido, estamos todos conectados pelo
fato de habitarmos o mesmo planeta. Nossas ações, mesmo que realizadas nos limites de nosso Estado, trarão consequências para além disso.
O princípio constitucional da solidariedade incide entre todos os
grupos humanos, de todas as nações da mesma geração, mas também
entre a geração atual e a futura, como bem assinala Comparato48:
47 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 153, jan./mar. 2008.
48 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 422.
150
Revista da AJUFERGS / 09
Trata-se de aplicar, na esfera planetária, o princípio da solidariedade, tanto na dimensão presente como na futura, isto é,
solidariedade entre todas as nações, povos e grupos humanos da
mesma geração, bem como solidariedade entre a geração atual e as
futuras. É evidente que a geração presente tem o dever fundamental
de garantir às futuras gerações uma qualidade de vida pelo menos
igual à que ela desfruta atualmente. Mas não é menos evidente que
esse dever para com as gerações pôsteres seria despido de sentido
se não se cuidasse de superar, desde agora, as atuais condições de
degradação ambiental em todo o planeta, degradação essa que acaba
por prejudicar mais intensamente as massas miseráveis dos países
subdesenvolvidos.
O artigo 225 da Constituição Federal é expresso ao mencionar que
é dever de todos preservar o meio ambiente para as presentes e as futuras gerações. Isso tem como objetivo garantir patamares de vida com
dignidade para ambas, implicando uma série de responsabilidades das
gerações presentes para com as futuras.
É inegável a responsabilidade de todos, a ser compartilhada, em
termos de meio ambiente, considerando a condição de ser natural de
que é dotado o ser humano, sendo inadmissíveis todas as ações que degradem ou prejudiquem o meio ambiente, bem como todas as omissões
que não impeçam tais ações destrutivas. Como lembra, acertadamente,
Juarez Freitas49:
O ciclo de vida dos produtos e serviços é responsabilidade a
ser compartilhada tempestivamente. A crueldade contra a fauna é
violência inadmissível. A alimentação não pode permanecer contaminada e cancerígena. Os gases de efeito-estufa não podem ser
emitidos perigosamente e sem critério. A economia de baixo carbono
é meta inegociável. As florestas não podem deixar de cumprir as
suas funções sistêmicas. O ser humano não pode, enfim, permanecer
esquecido de sua condição de ser eminentemente natural, embora
dotado de características singularizantes, que apenas deveriam
fazê-lo mais responsável sistemicamente e capaz de negociar com
diferentes pontos temporais.
49 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012, p. 65.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
151
De acordo com Sampaio50:
[...] as presentes gerações não podem deixar para as futuras gerações uma herança de déficits ambientais ou do estoque de recursos
e benefícios inferiores aos que receberam das gerações passadas.
Esse é um princípio de justiça ou equidade que nos obriga a simular
um diálogo com nossos filhos e netos na hora de tomar uma decisão
que lhes possa prejudicar seriamente.
Há quem, como Fensterseifer51, mencione inclusive a existência de
um princípio de proibição de retrocesso em termos de qualidade ambiental, na medida em que é um direito das futuras gerações não receberem
a terra ou os recursos naturais em condições ambientais piores que as
recebidas pelas gerações anteriores.
Essa solidariedade projeta-se ainda entre todos os seres vivos, havendo
uma comunidade entre a terra, as plantas, os animais e os seres humanos,
considerando que a ameaça ecológica afeta a todos, já que o planeta é a
casa comum de todos nós. Isso faz com que o ser humano se reconheça integrante dessa comunidade natural “frente à qual uma relação de solidariedade e respeito mútuo apresenta-se como pressuposto para a permanência
existencial das espécies naturais (incluída entre eles a espécie humana)”52.
Uma atitude ética sustentável, ao mesmo tempo em que alcança
bem-estar íntimo, proporciona bem-estar social, estando nós cientes de
que, como já referido anteriormente, o progresso material, por si só, não
se converte, necessariamente, em garantia de bem-estar. Tanto é assim
50 SAMPAIO, José Adérito Leite. Constituição e meio ambiente na perspectiva do direito
constitucional comparado. In: SAMPAIO, José Adérito Leite; WOLD, Chrise; NARDY,
Afrânio. Princípios de Direito Ambiental na dimensão internacional e comparada. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 53.
51 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 155, jan./mar. 2008.
52 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 156, jan./mar. 2008.
152
Revista da AJUFERGS / 09
que os ricos não se percebem mais felizes. Juarez Freitas sugere que os
recursos públicos sejam
redirecionados à universalização do bem-estar, em vez de
devorados pelo submundo de falsas prioridades das oligarquias
autocentradas. O próprio Estado Constitucional, bem observado, só
encontra sentido a serviço dos fins éticos fundamentais, diretamente
relacionados à sustentabilidade do bem-estar.
Em se tratando de políticas públicas, está sempre em jogo a opção
de nossos governantes em investir nesse ou naquele setor. Há, por certo,
uma margem constitucional de liberdade. Contudo, o que não se permite
e o que viola diretamente a Constituição é que a administração pública
seja governada com fins egoísticos – sem obediência ao princípio da
solidariedade –, o que no mais das vezes acaba se convertendo em
corrupção, que é eticamente reprovável, não universalizável em longo
prazo e insustentável. Conforme a preciosa lição de Juarez Freitas53: “A
honestidade de propósitos evolutivos é, sim, ingrediente de qualquer
filosofia consistente de sustentabilidade, nas relações públicas e privadas,
acompanhada da capacidade de antever impactos sistêmicos”.
De fato, a proteção ambiental é, atualmente, uma das bases éticas
fundamentais da sociedade. Desse modo, para que haja o convívio harmonioso entre todos os integrantes da comunidade humana, concordamos
com Fersterseifer54 no sentido de que urge que seja firmado um pacto
socioambiental no que tange à proteção da Terra, para que todos assumam seus papéis rumo a uma sociedade saudável em termos ambientais.
Caso o meio ambiente, como um todo, prossiga acidentado, tóxico
e contaminado, chegaremos rapidamente à temida insustentabilidade.
Juarez Freitas55, sabiamente, argumenta com base em solução que passa
pela melhoria da educação em nosso país:
53 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012, p. 62.
54 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça:
revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS,
Porto Alegre, n. 2, p. 156, jan./mar. 2008.
55 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012, p. 59.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
153
As escolas, por sua vez, precisam, ao mesmo tempo, educar
para competências e habilidades e para o “capital social” produtivo,
em vez do desfile de métodos aborrecidos, inúteis e subavaliados.
Entretanto, para que cumpram esse papel, inadiável a tomada de
providências estruturais, com o qualificado aumento dos investimentos naquilo que comprovadamente funciona, dado que as escolas
não podem continuar a ser depósitos de alunos, perdidos no atraso
escolar, na repetência e no abandono.
Assim, para nós, a sustentabilidade é um desdobramento do princípio
constitucional da solidariedade. Estamos em sintonia com o festejado
jurista Juarez Freitas56, quando afirma que a sustentabilidade é
(a) princípio constitucional imediata e diretamente vinculante
(CF, artigos 225, 3º, 170, VI, entre outros), que (b) determina, sem
prejuízo das disposições internacionais, a eficácia dos direitos
fundamentais de todas as dimensões (não somente os de terceira
dimensão) e que (c) faz desproporcional e antijurídica, precisamente
em função do seu caráter normativo, toda e qualquer omissão causadora de injustos danos intrageracionais e intergeracionais.
Conclusões
a) É possível combinar uma economia próspera com uma sociedade humanitária, desde que fortaleçamos nossa empatia, sendo
capazes de nos colocar no lugar do outro e que possamos agir de
forma solidária.
b) O agir solidário não se resume a um ato caridoso, mas trata
de obedecer fielmente o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal,
já que o princípio da solidariedade foi erigido à hierarquia constitucional de maneira expressa.
c) O princípio constitucional da solidariedade é princípio cogente e possui eficácia plena desde a promulgação da Constituição,
não necessitando de qualquer norma infraconstitucional para sua
aplicação.
56 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012, p. 71.
154
Revista da AJUFERGS / 09
d) O princípio constitucional da solidariedade serviu de suporte
axiológico também para o Código de Ética da Magistratura, restando
expresso no artigo 3º do mencionado código que a atividade judicial deve “promover a solidariedade e a justiça na relação entre as
pessoas”. Tal dispositivo maximiza a força normativa do princípio
constitucional da solidariedade, obrigando o Magistrado a que sua
atividade jurisdicional seja permeada pelo princípio da solidariedade
sob pena de infringir, além do dispositivo constitucional, também
o artigo 3º do Código de Ética da Magistratura.
e) O princípio constitucional da solidariedade ilumina o Direito
Previdenciário, pois a Previdência, a Assistência Social e a Saúde
baseiam-se na solidariedade entre os membros da sociedade para
acudir uma necessidade social. Embora com limites e estruturas
de custeio diferenciados, o certo é que, se não fosse o princípio
da solidariedade, Assistência, Previdência e Saúde não poderiam
estruturar-se. É a responsabilidade social institucionalizada, reflexo
da aplicação do princípio da solidariedade, que permite ao Estado
atender aos reclamos daqueles que invocam o Direito Previdenciário.
f) Na perspectiva do Direito Ambiental, do mesmo modo, o
princípio constitucional da solidariedade ilumina esse ramo do
Direito. Assim sendo, o artigo 225 da Constituição Federal tem
aplicação imediata e força vinculante, determinando a eficácia dos
direitos fundamentais de todas as dimensões, e não somente os de
terceira dimensão. Em termos de Direito Ambiental, opera-se a
solidariedade intergeracional e intrageracional, ou seja, deve ser
superada a posição antropocêntrica exagerada, no sentido de que os
recursos naturais devem servir ao homem à sua exaustão, para que
o ser humano coloque-se como ser natural, de modo a coabitar o
planeta de forma harmoniosa com todas as outras espécies de vida.
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Direito fundamental à boa
administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
Eduardo Kahler Ribeiro
Juiz Federal Substituto da 1ª Vara Federal de Bento Gonçalves/RS
Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: A redefinição dos limites da atividade administrativa e da
própria legalidade implica um direito fundamental à boa administração
pública. Isso amplifica o controle da atividade administrativa, problematizando a caracterização de condutas que afrontam o dever de bem
administrar. Visualizada a moralidade administrativa como princípio,
irradiando efeitos positivos e negativos destinados a pautar a conduta do
administrador, a improbidade administrativa exige um enquadramento
de situações-limite, não corriqueiras, que passam pela testagem da imoralidade. Na tentativa de se densificar tais situações, o primeiro passo é
a utilização da proporcionalidade, que possibilita a análise entre meio
e fim do agir administrativo, com ênfase no exame de adequação deste,
seguida pela necessária aferição do aspecto subjetivo, conexo à gravidade
da ação ou à omissão culposa ou dolosa do administrador.
Sumário: Introdução. 1. O direito fundamental à boa administração
pública e a ampliação do controle da administração pública. 2. Moralidade e improbidade administrativas. 3. Pressupostos para a improbidade
administrativa: exame de proporcionalidade e gravidade da conduta.
Conclusões. Bibliografia.
Palavras-chave: Direito fundamental à boa administração.
Legalidade. Moralidade administrativa. Improbidade administrativa.
Proporcionalidade. Adequação. Gravidade.
Introdução
É conhecido o adágio segundo o qual ao homem público, assim
como à mulher de César1, não basta ser honesto sem parecê-lo. À retidão
1 “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. A origem da expressão
advém de episódio histórico no qual Júlio César se separou de Pompéia após suspeita de
adultério dela com Clódio Pulcro. Sem fazer qualquer acusação moral contra Clódio, César
foi perguntado por que se separou de Pompéia, ao que replicou: “Porque minha esposa deve
ficar acima de qualquer suspeita” (DURANT, Will. Heróis da História – uma breve história
da civilização da antiguidade ao alvorecer da era moderna. Porto Alegre: L&PM, 2012).
158
Revista da AJUFERGS / 09
das condutas dos agentes públicos, portanto, deve se seguir a concreta
demonstração da ausência de vícios do agir. Tal aparente dever de transparência, contudo, problematiza-se na medida em que a administração
pública vê redefinidos seus limites e seu objeto, distanciando-se da mera
execução de leis e passando a orientar condutas, promover fins diversos,
mediar problemas, qualificar soluções. Não há mais espaço para uma
administração meramente burocrática, dedicada apenas à atividade
subsuntiva das leis aos fatos. A atuação da administração pública, hoje,
se orienta para a consecução de um direito fundamental do administrado
à boa administração, a que se contrapõe um – complexo – dever fundamental de bem administrar.
Um novo horizonte, novos desafios. Como consequência da redefinição do objeto e da atividade administrativa, o controle dos atos administrativos também tem redesenhado seus limites. Se antes era vedada a
incursão pelo elemento anímico do administrador-aplicador da lei, o que
implicava descontrole, hoje se assiste a um problema inverso. Com tantos
parâmetros de controle, como separar o agente público de má-fé, que se
locupleta indevidamente e causa prejuízos ao erário, daquele inábil, pouco
criterioso? Quais os limites exatos da má gestão e da responsabilização
do agente? O direito fundamental à boa administração subjetiva o direito
do cidadão à melhor escolha administrativa? Até que ponto a má escolha
pode implicar a responsabilização do agente público?
Essas questões surgem no influxo das novas margens de controle da
atividade administrativa e do aprimoramento institucional que consagra
várias instâncias, externas e internas, de fiscalização. Nessa nova dinâmica, merece realce o papel da improbidade administrativa (tipificada
na Lei nº 8.492/92) – instância punitiva última do direito administrativo
sancionador, apta a sancionar os limites extremos da má gestão. A improbidade, tida como uma imoralidade qualificada, exige a prática de
condutas suficientemente graves, distintas da mera ilegalidade.
Partindo do exame da moralidade administrativa como princípio
destinado a estabelecer cânones hermenêuticos para a qualificação da
conduta do administrador, irradiando efeitos positivos e negativos, o
presente trabalho propõe-se a adentrar em uma significação mais concreta dos deveres atinentes à improbidade administrativa. Para tanto, a
partir dos novos limites da atividade administrativa e do sujeito admi-
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
159
nistração pública, no âmbito do direito fundamental à boa administração
pública, desenha-se o espaço normativo do princípio da moralidade, o
qual, em seu aspecto subjetivo e positivo, suscita o dever de probidade
do administrador.
Na tentativa de se densificar as condutas enquadráveis na improbidade administrativa, ganha campo a proporcionalidade, como postulado
normativo destinado a testar os meios utilizados pelo administrador ao
fim que lhe é vinculado (interesse público). Nesse exame, é importante
perscrutar-se a adequação das condutas administrativas, sobretudo em
face da separação de poderes e do espaço legítimo de escolhas, mais ou
menos vinculadas, do administrador.
O exame de proporcionalidade, contudo, fornece apenas standards
mínimos de atuação, identificando condutas que, reprovadas no teste
meio-fim, sinalizam a possível ocorrência de improbidade. Para tanto,
um elemento adicional faz-se necessário, correlacionado à gravidade
da conduta do administrador faltoso, seja por dolo ou por culpa grave.
A densificação da improbidade a partir da moralidade administrativa como princípio e da primeira testagem da proporcionalidade
permite evidenciar que o âmbito de incidência daquela é bem reduzido,
comparativamente à mera ilegalidade ou imoralidade hábil a invalidar
o ato administrativo. Isso se faz necessário para que a improbidade administrativa tenha resguardada sua vocação constitucional como última
instância do direito administrativo sancionador.
1 O direito fundamental à boa administração pública e a ampliação do controle da administração pública
As relações entre a administração pública e as pessoas a ela subordinadas modificam-se, atualmente, como decorrência de um fenômeno
de redefinição publicística da própria relação liberdade/autoridade2
e da superação do corte epistemológico entre sociedade e Estado3.
Visualizada a relação de administração como aquela que se estrutura
2 DROMI, Roberto. El trânsito al derecho publico de la posmodernidad, p. 32.
3 FREITAS, Juarez. Repensando a natureza da relação jurídico-administrativa e os limites
principiológicos à anulação dos atos administrativos, p. 17.
160
Revista da AJUFERGS / 09
sob o influxo de uma finalidade cogente, que é a promoção de uma
utilidade pública4, não mais cabe a clássica visão da administração
pública weberiana, despersonalizada, como mera executora da lei e
integrante secundária de um Poder Executivo. A abstrata função de
apenas sustentar a lei se subjetivou, transformando-se em um sujeito
singular, dotado de múltiplas atividades tendentes à consecução de um
fim público5.
Da caracterização da administração pública como sujeito, entretanto, depende a prévia definição da atividade desempenhada por esse
ente singular6. Nesse contexto, a partir da década de 30 do século XX, a
administração foi assumindo novos papéis à medida que aumentavam as
funções do Estado, com a flexibilização da tripartição estanque de poderes. Criaram-se novos entes, dotados de personalidade jurídica própria,
para atuar em setores específicos. A administração descentralizou-se,
fragmentou-se: da imagem da pirâmide em cada ministério passou-se
à imagem de uma rede de pirâmides, em relações jurídicas complexas
e multipolares orientadas pela proteção aos direitos fundamentais, que
têm no consenso seu centro gravitacional. Ampliaram-se, também, as
atividades: a burocracia guardiã tornou-se burocracia prestacional, que
deve agir rumo à concretização do direito fundamental à boa administração pública, atendendo às justas expectativas dos administrados7. Tal
direito, nas palavras de Juarez Freitas,
trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com
transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena
responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas8.
4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo, p. 23-25.
5 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Revolución francesa y administración contemporanea, p. 75.
6 CIRNE LIMA, Ruy. op. cit. p. 138.
7 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução, p. 127.
8 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014, p. 21.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
161
Fala-se, hoje, que o direito administrativo passou de uma rigidez
autoritária à flexibilidade democrática, permutando a puissance publique
pela finalidade pública, não descoberta a priori, como seu centro sistêmico9. Como consequência, o direito administrativo respira a absorção de
valores e princípios consagrados na Constituição, a assimilação de uma
nova relação Estado-Sociedade, com a abertura para o cenário político-econômico em que atua e para conexões científicas interdisciplinares10.
É previsível o choque desse cenário de renovação com o princípio da
legalidade, tradicional estandarte da atividade administrativa aplicadora
da lei. Como decorrência da complexidade das relações que rege, assiste-se hoje a uma progressiva indeterminação e abertura densificadora da
normatividade a favor da administração pública, superando-se a ideia de
uma genérica natureza heterovinculativa da legalidade em face do Poder
Executivo11. A legalidade, nessa perspectiva, deixa de ser pauta de limite
do administrador e torna-se parâmetro para a atuação da administração
pública como sujeito de deveres-poderes12. Diz-se que esse princípio,
hoje, não mais se densifica na estrita relação lei/ato administrativo, e
sim no contexto ordenamento jurídico/Administração13.
Como subproduto da redefinição do princípio da legalidade e da
consagração do direito fundamental à boa administração, ampliou-se a
margem de controle dos atos administrativos. Parâmetros como discricionariedade administrativa, interesse público preponderante, ato político,
etc. saíram de infensos a qualquer tipo de controle para integrantes de um
rol de prerrogativas da administração pública válidos apenas enquanto
direcionados de acordo com premissas constitucionais. A finalidade
9 MOREIRA, João Batista. Direito Administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade
democrática, p. 15-19.
10 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. p. 267.
11 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, p. 162 e 894.
12 GRAU, Eros Roberto. Algumas notas para a reconstrução do princípio da legalidade,
p. 162.
13 MEDAUAR, Odete. op. cit. p. 147-148; ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção
pós-positivista do princípio da legalidade, p. 62; COUTO E SILVA, Almiro do. Poder
Discricionário no Direito administrativo brasileiro, p. 53; MOREIRA, João Batista, op.
cit,. p. 406.
162
Revista da AJUFERGS / 09
pública a ser atingida não o é a qualquer custo, mas tão somente quando
contextualizada em regular motivação e adequação dos fins perseguidos
aos meios eleitos pelo administrador.
A dilargada amplitude do controle sobre os atos da Administração,
consectário que é da redefinição dos limites da própria atividade administrativa e da submissão à lei, traz consigo a complexa questão metodológica
atinente aos parâmetros de tal controle, sobretudo no âmbito do direito administrativo sancionador. Se a história do direito administrativo é a história
da luta contra as imunidades de poder, como afirma García de Enterría14,
um passo essencial para a consolidação das modificações por que passa o
direito administrativo reside na delimitação do âmbito de responsabilização
dos agentes que, de algum modo, praticam ações ou omissões incompatíveis com o direito fundamental à boa administração pública.
Sucede que, na multifacetada atividade administrativa, o espectro
de condutas passíveis de serem enquadradas como ofensivas aos deveres
inerentes a tal direito fundamental (eficiência, transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade, moralidade, participação
social, responsabilidade) é muito amplo, demandando do intérprete uma
contínua e difícil atividade depuradora. Afinal, entre a corrupção15 – tida
como a violação mais grave à reta conduta do administrador – e o erro
escusável no direcionamento de alguma atividade, subsistem várias ações
ou omissões que podem invocar, em qualquer medida, responsabilização.
Como punir, por exemplo, o agente público que obtém resultado economicamente eficiente em sua gestão, porém se valendo de nepotismo?
E a situação do agente que é absolutamente ineficiente, mas não pratica
qualquer imoralidade? Até que ponto práticas imorais, porém não absolutamente desconformes à leitura estrita da lei, merecem sancionamento?
Como premissa para a resposta a tais questões, faz-se necessário
se situar adequadamente a moralidade administrativa no âmbito da im14 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lucha contra las inmunidades del poder
em el derecho administrativo (poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes
normativos).
15 LEAL, Rogério Gesta. Fundamentos filosófico-políticos do fenômeno da corrupção:
considerações preliminares. Cadernos de Pós-Graduação em Direito da UFRGS, v. VII,
n. 1, ano 2012.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
163
probidade administrativa, conferindo àquela uma significação concreta
para fins de adequação de eventuais condutas ímprobas, em tema a ser
enfrentado no próximo subitem.
2 Moralidade e improbidade administrativas
A noção de administração pública, em lição clássica de Ruy Cirne
Lima, é antagônica à de propriedade16. O administrador público, por isso,
tem o ônus de gerir a coisa alheia de modo cuidadoso, diligente e atento,
concorrendo para a realização da boa administração. Essa concepção
finalística da atividade administrativa indica a aparente necessidade de
se objetivar o resultado da atuação do administrador, desvinculando-o
da intenção de produzi-lo. Salienta Diogo Figueiredo Moreira Neto:
Assim, se a atividade do administrador se dirigiu, honestamente, a obter o máximo de ganhos para a Administração, mas não se
voltou ao atingimento de objetivos finalisticamente adequados,
sua intenção pode ter sido moralmente boa, mas seu resultado foi
moral-administrativamente mau.
Da mesma forma, se a intenção do agente foi moralmente viciada ao atuar administrativamente, mas, não obstante, seus objetivos
satisfazem a finalidade pública, o vício porventura existente em
sua intenção não inquinará a ação administrativa cujo resultado foi
moral-administrativamente bom.17
Não obstante, pretender-se o exame da atuação administrativa
apenas sob o enfoque do resultado concreto atingido, abstraindo-se
aspectos anímicos, não é tarefa fácil. É comum, afinal, o atingimento
de fins ilícitos sob a roupagem de lícitos, valendo-se o agente de meios
aparentemente regulares. Uma licitação que sagra vencedor aquele que
obteve vantagem competitiva indevida (por exemplo, com informações
confidenciais ou mediante a inserção de cláusula no edital que lhe favorecia propositalmente), em que pese abstratamente regular, carece de
manifesto vício de origem.
16 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo, p. 37.
17 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à
efetivação. Revista de direito administrativo, v. 190, out./dez. 1992, p. 7.
164
Revista da AJUFERGS / 09
Dessa dificuldade originou-se a ideia de moralidade administrativa
enquanto cânone hermenêutico para o controle da atividade administrativa.
Vendo que o exame raso da legalidade dos atos administrativos não permitia
investigar aqueles praticados com meios lícitos para atingir a finalidades
metajurídicas irregulares, o Conselho de Estado francês, sobretudo nos
atos discricionários, construiu a teoria do desvio de poder. Sob inspiração
de Maurice Hauriou, estabeleceu-se, via recurso de excesso de poder, a
sindicabilidade dos motivos do ato, das intenções subjetivas do agente18.
Portanto, sob o prisma da moralidade, construída sobre os alicerces da teoria do desvio do poder, a mera satisfação dos requisitos da
legalidade do ato não é suficiente. O ônus de bem administrar implica a
observância de parâmetros de atuação que vão além da mera observância
formal de um imediato antecedente normativo19, devendo o agente público garantir o respeito a uma pauta de moralidade própria, demonstrando
zelo pela coisa pública. Verbi gratia, um concurso público destinado
ao provimento de uma vaga, que tenha como desfecho a aprovação em
primeiro lugar do candidato mais bem preparado após conchavo com
algum integrante da banca examinadora, é, nessa ótica, um procedimento
viciado por manifesta imoralidade, em que pese ter havido, aparentemente, a melhor solução para a administração pública.
Isso indica que a moralidade administrativa assume o papel de
verdadeira otimizadora de padrões de conduta administrativa, como
cânone hermenêutico que vinculará a concreção de conceitos fluídos
eventualmente constantes nas leis20. A despeito da absorção da moralida18 A respeito, GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé
da administração pública – o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2013. No livro, o autor demonstra que o fenômeno jurídico do
controle de atos discricionários da administração por finalidade outra que não o interesse
público, a que se quis chamar de “controle de moralidade administrativa”, recebeu o
nome de “controle do desvio de poder”, p. 90.
19 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à
efetivação. Revista de direito administrativo, v. 190, out./dez. de 1992, p. 7.
20 MARTINS-COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade administrativa
– o controle da moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal de Contas
do Estado do Rio Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146. 20 MARTINS-COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade administrativa – o controle da
moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio
Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
165
de administrativa pela noção de legalidade substancial (ou juridicidade)
– tornando interna ao exame da legalidade a inquirição dos aspectos
subjetivos que o cercam, no controle dos motivos e objetos do ato21 –, é
certo que, vista como norma finalística, que encerra a promoção de um
estado ideal de coisas a ser contraposto à conduta havida como necessária
à sua promoção, a moralidade administrativa possui contornos de nítido
princípio jurídico22, orientando um padrão de condutas conducentes ao
dever de bem administrar.
Extraem-se do princípio da moralidade administrativa funções
positivas e negativas. Se positivamente a moralidade atua como cânone
hermenêutico e como mandamento de otimização da atividade administrativa, direcionada ao dever de bem administrar, a função negativa de
tal princípio o situa como limite entre a discricionariedade e o arbítrio,
permitindo o controle efetivo do desvio de finalidade23. Celso Antonio
Bandeira de Mello assim sintetiza os modos como pode se manifestar
tal desvio:
a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público. Isto sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar
um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo;
b) quando o agente busca uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia à categoria do ato que utilizou. Deveras,
consoante advertiu o preclaro Seabra Fagundes: “Nada importa
que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente
lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir
da orientação legal.24
O mesmo autor também é didático ao referir exemplos das duas
formas de manifestação do desvio de finalidade:
21 Também demonstrada por GIACOMUZZI, José Guilherme, op. cit., p. 115-125.
22 Na definição de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação
dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 70.
23 Classificação de MARTINS-COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade
administrativa – o controle da moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal
de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146.
24 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, 17. ed.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 373.
166
Revista da AJUFERGS / 09
Exemplo da primeira hipótese tem-se no caso de um superior
que remove um funcionário para local afastado sem nenhum fundamento de fato que requeresse o ato, mas apenas para prejudicá-lo
em razão de sua inimizade com ele.
Exemplo da segunda hipótese ocorre quando o agente remove
um funcionário – que merecia uma punição – a fim de castigá-lo.
Ora, a remoção não é ato de categoria punitiva.25
O exame subjetivo da ação do administrador à luz da moralidade
administrativa, que positivamente inaugura um feixe de condutas admissíveis e negativamente lhe coloca obstáculos à atuação a partir do desvio de
finalidade, tem como pauta-limite um dever que é anexo a referido princípio, o dever de probidade. Segundo José Guilherme Giacomuzzi, “o dever
de probidade é a função subjetiva e positiva do princípio da moralidade
administrativa insculpido no art. 37 da Constituição Federal de 1988”26.
Sucede que, se a função positiva do princípio da moralidade possibilita maior controle sobre os atos administrativos, a imediata transposição
da necessária otimização da atividade administrativa para o dever de
probidade mostra-se mais problemática. Isso porque nem todo desvio
de finalidade, sob o prisma da moralidade, é ímprobo. A improbidade,
não por outra razão conhecida como imoralidade qualificada, exige
atos inequivocamente desonestos ou desleais com o poder público27,
suficientemente graves para invocar sanções de caráter quase-penal
(perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento
de multa civil, proibição de contratar com o poder público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios), em ultima ratio do direito
administrativo sancionador28.
Assim sendo, nem todo ato administrativo ofensivo ao direito fundamental à boa administração pública, em que pese plenamente sindi-
25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. op. cit., p. 373.
26 GIACOMUZZI, José Guilherme, op. cit., p. 187-188.
27 FREITAS, Juarez. O princípio jurídico da moralidade e a lei de improbidade administrativa. Fórum Administrativo – Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 48, fev. 2005, p. 9.
28 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa – má gestão pública,
corrupção, ineficiência. 3. edição. São Paulo: RT, 2013, p. 149.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
167
cável, implica improbidade. A má gestão que autoriza o enquadramento
normativo nas sanções da Lei nº 8.492/92 é aquela que, sobre violar a
moralidade, é suficientemente grave por contaminada pela afronta à honra
institucional, à ética republicana29 que deve presidir a prática do administrador. Como exemplo, situe-se o agente político que nomeia, como cargo
comissionado, pessoa sem qualquer familiaridade com a atividade a ser
desempenhada. Não havendo provas da existência de qualquer prejuízo
ao erário, tal prática pode ser questionada – mesmo judicialmente; não
permite, contudo, a caracterização da improbidade administrativa. A
exigência de conhecimento da atividade pelo agente público nomeado é
imposta por deveres correlatos à eficiência administrativa (corolário do
direito fundamental à boa administração pública), mas não está inscrita
como requisito expresso da nomeação de comissionados, de modo que,
não havendo tentativa de burlar outras normas expressas ou implícitas
(v.g., nepotismo, transferência informal de vencimento do comissionado
ao nomeante, etc.), improbidade administrativa não haverá.
A dificuldade na densificação de práticas que se enquadram como
ímprobas acentua-se em razão do mencionado engolfamento30 da moralidade pelo instituto do desvio de poder e sua alocação no plano interno
da legalidade. Se toda prática imoral e ímproba pode ser tida como ilegal
lato senso, fica patente a perigosa aproximação da fronteira da improbidade à da mera ilegalidade31. Levando-se tal identificação ao extremo,
toda vez que o Poder Judiciário concedesse uma ordem em mandado
29 “República” vem do latim res publica – literalmente, o bem público, invocando em
sua etimologia, assim, a atenção para a coisa pública. Segundo Celso Lafer, compõem a
virtude republicana o consensus juris (o consenso do direito, respeito à lei) e a communis
utilitatis (a comum utilidade, ideia de um bem comum). LAFER, Celso. O significado
de república. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.
30 Expressão de que se vale GIACOMUZZI, José Guilherme. op. cit., p. 118-119.
31 Em se tratando de improbidade administrativa, é firme a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça no sentido de que “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada
pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ
considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente
seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92,
ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10” (STJ, AIA 30/AM, Rel. Ministro
Teori Zavascki, Corte especial, DJe de 28/09/2011). Em igual sentido: STJ, REsp 1.420.979/
CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 10/10/2014; STJ, REsp
1.273.583/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 02/09/2014).
168
Revista da AJUFERGS / 09
de segurança (remédio jurídico contra práticas manifestamente ilegais
por parte de agentes públicos), deveria imediatamente remeter os autos
ao Ministério Público para acionamento do agente em ação cível de
improbidade32. Fácil ver que tal assimilação desconsidera o espaço da
improbidade no sistema administrativo sancionador.
Situada, pois, a moralidade administrativa como autêntico princípio
jurídico que recomenda condutas passíveis de serem praticadas pelo administrador, e visto que a improbidade administrativa exige um enquadramento de situações-limite – e não corriqueiras – que passam pela testagem
da imoralidade, é necessário adentrar-se na complementação mais densa
de tais situações33. A segurança jurídica é incompatível com a eterna imprecisão entre a caracterização de uma ilegalidade (que enseja a revisão
do ato administrativo) e uma improbidade (que leva o agente sancionador
a responder na esfera de maior gravidade no âmbito do direito administrativo). A improbidade, afinal, deve punir o administrador desonesto e que
viola de modo inescusável o dever jurídico de bem gerir, e não o agente
meramente inábil, ineficiente ou que comete mera ilegalidade.
Segundo nossa proposta, essa densificação de deveres não é apriorística, exigindo caracterização caso a caso, iluminada pela necessária
atuação do postulado normativo da proporcionalidade.
3 Pressupostos para a improbidade administrativa: exame de
proporcionalidade e gravidade da conduta
Otto Mayer, já na virada do século XIX para o XX, acentuava que
“a condição de proporcionalidade, inerente a todas as manifestações do
poder de polícia, deve produzir seu efeito também quando se tratar do
zelo pela boa ordem da coisa pública”34. Além de regular as intervenções
32 Para acentuar a insuficiência da mera ilegalidade para configuração da improbidade
administrativa, o exemplo é utilizado por CAMMAROSANO, Márcio. Princípio da
moralidade e improbidade administrativa, p. 159.
33 Proposta também de OSÓRIO, Fábio Medina. op. cit., p. 107.
34 MAYER, Otto. Le Droit administratif alemand, v. II, p. 60 apud FREITAS, Juarez.
Direito fundamental à boa administração pública, op. cit., p. 89.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
169
do poder público no âmbito do poder de polícia, a proporcionalidade há
muito é, portanto, uma condição de regularidade de toda e qualquer ação
administrativa, seja ela mais ou menos discricionária.
No âmbito da improbidade administrativa, a proporcionalidade
comumente é invocada por ocasião da dosimetria das sanções a serem
aplicadas ao administrador ímprobo, juntamente com a razoabilidade35.
Não obstante, tem-se que tal postulado normativo36 tem maiores potencialidades, notadamente na prévia caracterização da ação ou omissão administrativa como ímproba. Ao não prescrever imediatamente
comportamentos, mas estruturar a aplicação de normas que o fazem37,
a proporcionalidade possibilita a visualização casuística de condutas
convergentes à moralidade administrativa, identificando, por exclusão,
padrões opostos, entre os quais apenas aqueles de maior gravidade merecem a chancela da improbidade.
O grande desafio na tentativa de reduzir a fluidez na aplicação prática
de tais conceitos (moralidade, improbidade, gravidade do ato) é, partindo
do exame interno da proporcionalidade – com seus vetores adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – identificar standards
mínimos de conduta que devam ser seguidos pelo administrador para a
não prática de atos ímprobos – os quais, como visto, não se confundem
com os padrões exigidos para a prática de atos não ilegais ou não imorais.
Por isso, para caracterização da improbidade, à reprovação do teste da
proporcionalidade na atuação administrativa (que basta à ilegalidade)
deve se seguir um elemento adicional, conexo à gravidade do agir do
administrador à luz do elemento subjetivo da conduta.
Entre os elementos da proporcionalidade cujo cotejo é necessário
para a obtenção dos standards mínimos de atuação, merece destaque o
exame da adequação da conduta do administrador aos fins dele exigí35 Nesse sentido: “Este Superior Tribunal firmou a compreensão de que não há impedimento à aplicação cumulativa das sanções previstas no art. 12 da LIA, bastando que a
dosimetria respeite os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade.”
(STJ, REsp 1091420/SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em
23/10/2014, DJe 05/11/2014).
36 Na dicção de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 104-110.
37 ÁVILA, Humberto. op. cit. p. 81/82.
170
Revista da AJUFERGS / 09
veis. Não se pode desconhecer, nesse particular, que a finalidade apta a
presidir a atividade administrativa é o interesse público, concretamente
delineado a partir da convergência entre o agir do agente público responsável e o bem maior da comunidade. E esse bem, observadas premissas
fundamentais, é definido a partir de escolhas com maior ou menor grau
de discricionariedade38.
No exame de adequação da conduta administrativa (inerente à proporcionalidade), deve-se ter presente certo grau de deferência39, porque
isso é exigência da separação de poderes e do princípio democrático.
Esse espaço mínimo de atuação, consagrado ao administrador e especialmente a agentes políticos, dá ensejo a um modelo fraco de controle
da intensidade das decisões adotadas pela administração – que não se
confunde com autorização de arbítrio –, a admitir a anulação destas
apenas em caso de manifesta e inequívoca adequação dos meios aos fins
almejados40. Assevera Fábio Medina Osório:
Os conteúdos da ‘boa administração’ costumam ser mais políticos, culturais e econômicos que propriamente jurídicos, já que
dificilmente o Poder Judiciário logra obter a imposição de eficiência
administrativa pela via de sentenças ou acórdãos.41
38 A título de exemplo, imagine-se um cenário hipotético, em que perfeitamente identificada a disponibilidade apenas do valor x nos cofres públicos e a possibilidade de
investimento de tal valor apenas em escolas ou presídios. A decisão de, com o valor x,
construir apenas escolas, apenas presídios ou escolas e presídios passa, necessariamente,
pela avaliação da maior ou menor necessidade de uns e outros. Não havendo um ditame
legal expresso determinando a preponderância de escolas por presídios, ou fixando um
número mínimo de escolas e presídios a serem construídos, o administrador deve possuir
uma base flexível para a escolha pública. E essa escolha apenas deve ser anulada em caso
de manifesta inadequação ao fim a que vinculativamente se destina (interesse público).
Seguindo-se no exemplo, a incompatibilidade entre meio e fim seria manifesta, v.g., se
houvesse a decisão de construção de escolas em área já densa de instituições da espécie,
com vagas sobrando, e com clara insuficiência de presídios, forçando os apenados a
cumprir pena em locais sem condições mínimas ou demasiadamente distantes.
39 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, p. 36.
40 É a posição de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 112 e OSÓRIO, Fábio
Medina. op. cit., p. 277.
41 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa – má gestão, corrupção, ineficiência, p. 45.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
171
Daí deriva que a existência de um direito fundamental à boa administração pública não se confunde com o direito fundamental à melhor
administração pública42. A não adoção, por parte do agente público, da
melhor escolha (abstraída a complexidade e a indefinição ínsita a tal
conceito), mas apenas de escolhas não manifestamente equivocadas, não
implica a prática de atos viciados, sendo inábil, portanto, para a anulação
do ato e, a fortiori, para a caracterização de improbidade. Atingido o
interesse público específico de modo minimamente satisfatório, o ato
questionado passa pelo teste primeiro de adequação e de probidade,
ressalvando-se que tal esfera legítima de decisão apenas compreende
o campo dentro do qual ninguém poderá dizer, com total objetividade,
qual é a providência ótima43.
Ocorre que, como visto, o exame de proporcionalidade é apenas um
primeiro passo para a verificação da conduta administrativa e confere
apenas standards mínimos de ação no que tange à caracterização da
legalidade. Para que se ingresse na seara da imoralidade reprovável – e,
em última instância, na improbidade –, elementos adicionais, conexos à
esfera subjetiva do agente, devem ficar caracterizados44.
As condutas proscritas a partir da concretização do princípio da
moralidade administrativa convergem para o chamado desvio de finalidade (ou de poder), quando o agente se serve de um ato para satisfazer
finalidade que é alheia ao interesse público específico. Retoma-se assim,
de algum modo, a própria gênese de tal princípio, criado para possibilitar
a identificação dos motivos subjacentes a determinados atos aparentemente legais.
42 Mesma posição defendida por MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Moralidade
administrativa: do conceito à efetivação, op. cit., p. 16, em sentido contrário ao entendimento de FERRAZ, Sérgio. Instrumentos de defesa dos administrados. Curso de direito
administrativo, São Paulo: RT, 1986, p. 167.
43 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 400.
44 Nesse sentido, já decidiu o STJ que “[...] eventual ilegalidade na formalização do ato
questionado é insuficiente a configurar improbidade administrativa, porquanto a situação
delineada no acórdão recorrido afasta a existência de imoralidade, desídia, desvio ético
ou desonestidade na conduta do recorrido” (STJ, Resp nº 1129277/RS, Segunda Turma,
relator Ministro Herman Benjamin, julg.04/05/2010).
172
Revista da AJUFERGS / 09
As formas de manifestação do desvio de finalidade – quando o
agente busca finalidade alheia ao interesse público ou apenas à categoria do ato que utilizou – permitem uma densificação maior do princípio
da moralidade administrativa, a partir do exame da motivação do ato.
Entre todas as formas de desvio de finalidade, contudo, são passíveis de
enquadramento no arquétipo da improbidade administrativa apenas as
condutas inequivocamente contaminadas por finalidade alheia ao próprio
interesse público e, adicionalmente, qualificadas por suficiente gravidade por importar enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação
manifesta aos demais princípios da atividade administrativa (artigos 9,
10 e 11 da Lei nº 8.429/92).
Ao exame do desvio do interesse público – reprovada a ação/
omissão, pois, sob a ótica da proporcionalidade –, deve-se somar um
elemento subjetivo (dolo ou culpa grave), hábil a acentuar a gravidade
da conduta do agente público, contaminada por manifesta deslealdade
institucional. Nas palavras de Juarez Freitas, a improbidade exige, para
sua caracterização, “grave violação ao senso médio superior de moralidade e inequívoca intenção manifesta”45.
O âmbito de condutas sancionadas pela improbidade, dessa forma, é
bem reduzido comparativamente às condutas acoimadas de ilegais em seu
sentido estrito e imorais. Se toda conduta ímproba é imoral, a recíproca
nem sempre é verdadeira. Um agente público, ao remover servidor que
lhe é subordinado hierarquicamente fora dos requisitos legais, comete
manifesta ilegalidade, a qual pode ser apenas imoral, se for motivada
com fins punitivos, porém dentro do interesse público que deve presidir
o ato, ou imoral e ímproba, caso justificada por fins punitivos, mas fora
do interesse público e qualificada por enriquecimento ilícito, prejuízo ao
erário e violação clara a princípios da administração pública (por exemplo,
mediante corrupção do agente, assédio moral ao servidor removido, etc.).
Do mesmo modo, v.g., um procedimento licitatório viciado por manifesta
inabilidade do agente responsável, mas sem provas claras de má-fé deste
e prejuízo ao erário – tendo sido devidamente prestado o serviço que deu
ensejo ao certame –, não caracteriza, em princípio, improbidade46.
45 FREITAS, Juarez. O princípio jurídico da moralidade e a lei de improbidade administrativa, op. cit., p. 8/9.
46 STJ, Primeira Turma, Resp nº 1.159.746/RS, relator Ministro Luiz Fux, julg. 1º/06/2010.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
173
A redução do espectro de incidência da improbidade administrativa, em comparação à ilegalidade e à imoralidade, fica clara na caracterização da improbidade culposa, que gera prejuízo ao erário (art. 10
da Lei 8.429/92). A fim de se manter coerência com o sistema, apenas
condutas que denotem culpa grave, não confundida com inabilidade ou
erro profissional, merecem a chancela da improbidade, sendo afastada,
de todo modo, a possibilidade de objetivação da responsabilidade47. A
reprovabilidade da culpa, aqui, deve ser manifestada por “inequívoca e
intolerável incompetência do agente público”48, a desvelar descaso com
a coisa pública do administrador faltoso49.
É a gravidade da conduta praticada à luz da moralidade administrativa, desvelada sempre em seu aspecto subjetivo e após ultrapassado o
necessário exame da proporcionalidade do ato – hábil a afastar, de antemão, o direito subjetivo à melhor escolha administrativa –, que permite
a caracterização da improbidade administrativa, respeitada sua posição
de última instância no sistema punitivo administrativo.
Conclusões
1. A modificação das relações jusadministrativistas traz consigo uma
redefinição das atividades típicas da administração pública e da própria
sujeição à legalidade. Esta deixou de ser pauta de limite do administrador,
tornando-se parâmetro para a atuação da administração pública como
sujeito de deveres-poderes, vinculados ao direito fundamental à boa
administração pública, que exige do administrador a obediência a uma
série de deveres correlatos (eficiência, transparência, sustentabilidade,
motivação proporcional, imparcialidade, moralidade, participação social,
responsabilidade).
47 STJ, AIA 30/AM, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 28.09.2011; STJ, REsp. 1.103.633/
MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 03.08.2010; STJ, EDcl no REsp. 1.322.353/PR, Rel. Min.
Benedito Gonçalves, DJe 11.12.2012.
48 OSÓRIO, Fábio Medina, op. cit., p. 247.
49 O Tribunal Regional Federal da 4ª Região considerou presente culpa grave, a autorizar punição por improbidade, de encarregada pelo setor de medicamentos que atuou
negligentemente na sua guarda e destinação (TRF4, AC 5001375-07.2012.404.7105,
Terceira Turma, relator p/ acórdão Desembargador Federal Fernando Quadros da Silva,
juntado aos autos em 29/10/2014).
174
Revista da AJUFERGS / 09
2. Como subproduto da redefinição do princípio da legalidade e
da consagração do direito fundamental à boa administração pública,
ampliou-se a margem de controle dos atos administrativos. Isso invoca a
complexa questão metodológica atinente aos parâmetros de tal controle,
sobretudo no âmbito do direito administrativo sancionador. O espectro de
condutas passíveis de serem enquadradas como ofensivas aos deveres inerentes ao direito fundamental à boa administração pública é muito amplo,
demandando do intérprete uma contínua e difícil atividade depuradora.
3. Na necessária tentativa de densificar os deveres ínsitos ao administrador, ganha relevo o papel da moralidade administrativa, como
princípio jurídico que encerra a promoção de um estado ideal de coisas,
do qual se extraem funções positivas e negativas. Positivamente, a
moralidade atua como cânone hermenêutico e como mandamento de
otimização da atividade administrativa, direcionada ao dever de bem
administrar; negativamente, tal princípio estabelece um limite entre a
discricionariedade e o arbítrio, permitindo o controle efetivo do desvio
de finalidade. No âmbito positivo e subjetivo, o princípio da moralidade
administrativa suscita o dever de probidade administrativa.
4. A imediata transposição dos deveres conexos à densificação do
princípio da moralidade administrativa para o dever de probidade é incorreta, porque nem todo desvio de finalidade, sob o prisma da moralidade,
é ímprobo. A improbidade exige atos inequivocamente desonestos ou
desleais com o poder público, suficientemente graves para invocar sanções que se aproximam das de caráter penal, em ultima ratio do direito
administrativo sancionador. Visto que a improbidade administrativa
exige um enquadramento de situações-limite – e não corriqueiras – que
passam pela testagem da imoralidade, faz-se necessário adentrar a complementação mais densa de tais situações.
5. Tal tarefa não prescinde, como um primeiro passo, da análise da
proporcionalidade da ação/omissão do administrador ao fim a que se
propõe, permitindoidentificar standards mínimos de conduta que devam
ser seguidos pelo administrador para a não prática de atos ímprobos.
Para caracterização da improbidade, contudo, à reprovação do teste da
proporcionalidade na atuação administrativa (que basta à ilegalidade),
deve se seguir um elemento adicional, conexo à gravidade do agir do
administrador.
Direito fundamental à boa administração pública, moralidade e
improbidade administrativas
175
6. Entre os elementos da proporcionalidade, cujo cotejo é necessário para a obtenção dos standards mínimos de atuação, merece destaque o exame da adequação da conduta do administrador aos fins dele
exigíveis. No exame de adequação da conduta administrativa (inerente
à proporcionalidade), deve-se ter presente certo grau de deferência,
porquanto isso é exigência da separação de poderes e do princípio
democrático, dando ensejo à reprovação no teste de adequação apenas
das condutas manifesta e inequivocamente inadequadas. Daí deriva que
a existência de um direito fundamental à boa administração pública
não se confunde com o direito fundamental à melhor administração
pública, sobretudo para fins de incidência das sanções pertinentes à
improbidade administrativa.
7. Ultrapassado o exame da proporcionalidade, para que se ingresse
na seara da imoralidade reprovável – e, em última instância, na improbidade –, elementos adicionais, conexos à esfera subjetiva do agente,
devem ficar caracterizados. A improbidade exige condutas inequivocamente contaminadas por finalidade alheia ao próprio interesse público
e, adicionalmente, qualificadas por suficiente gravidade por importar
enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação manifesta aos
demais princípios da atividade administrativa (artigos 9, 10 e 11 da Lei
nº 8.429/92).
8. O âmbito de condutas sancionadas pela improbidade, dessa
maneira, é bem reduzido comparativamente às condutas acoimadas
de ilegais em seu sentido estrito e imorais. É a gravidade da conduta
praticada à luz da moralidade administrativa, desvelada sempre em
seu aspecto subjetivo e após ultrapassado o necessário exame da proporcionalidade do ato, que permite a caracterização da improbidade
administrativa, respeitada sua posição de última instância no sistema
punitivo administrativo.
176
Revista da AJUFERGS / 09
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QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
Alexandre Gonçalves Lippel
Juiz Federal
Mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER)
Especialista em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo: O presente trabalho, após um retrospecto histórico, apresenta
em linhas gerais os fundamentos e a estrutura dos principais diplomas
normativos contemporâneos dedicados aos direitos dos índios, no intuito
de demonstrar a evolução do tema e enfatizar a mudança de paradigma
envolvendo o tratamento dispensado a eles.
Abstract: This paper, after a historical retrospective, provides na
overview of the Fundamentals and structure of the main contemporary
regulatory instruments dedicated to indian rights in order to demonstrate
the evolution of the theme and emphasize the paradigm shift involving
their treatment.
Sumário: 1. Introdução. 2. A formação do Estado moderno. 3.
Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 4.
Constituição Federal de 1988. 5. Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas. 6. Conclusão.
1 Introdução
O presente artigo pretende traçar um panorama dos principais documentos jurídicos que versam sobre direitos indígenas, a saber: Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, Constituição
Federal de 1988 e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas.
Na exposição do sistema normativo indigenista, adotou-se um critério
cronológico de apresentação, tendo por referência o advento dos sucessivos
arcabouços normativos, com o intuito de permitir um melhor entendimento
da evolução do tema ao longo do tempo. Essa é a razão pela qual o exame
da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho antecede o
da Constituição Federal, muito embora a Convenção tenha sido incorporada
ao ordenamento jurídico brasileiro após a entrada em vigor da Constituição.
A narrativa não se resumirá a elencar os diplomas legais que se sucederam
com o passar dos anos, pois dará ênfase aos fatores teleológicos de con-
180
Revista da AJUFERGS / 09
formação do sistema, o que ensejará uma melhor compreensão da quebra
de paradigma representada pelo seu advento.
2 A formação do Estado moderno
A soberania em seu sentido clássico e o etnocentrismo marcaram
a formação dos impérios coloniais na América Latina e projetaram sua
influência nos Estados surgidos com a emancipação política das colônias.
A noção de Estado moderno e o conceito de soberania foram construídos ao longo do tempo, durante o processo de transformação política
ocorrido na Europa durante a passagem da Idade Média para a Idade
Moderna. Nesse processo, afirmou-se uma nova formatação do poder
e desenvolveu-se um discurso político e jurídico adequado a essa nova
realidade1.
O processo de formação do Estado Moderno, desencadeado a partir
do final da Idade Média, caracterizou-se pelo declínio da autoridade
temporal da Igreja Católica e do feudalismo, com a centralização do
poder político na figura do monarca absoluto.
A titularidade da soberania e os modos de exercício do poder
transformaram-se ao longo do tempo, mas a noção de soberania como
atributo essencial do Estado permanece até hoje.
A formação histórica da América Latina é tributária do triunfo do
modelo de Estado Nacional Absolutista. Espanha e Portugal, os primeiros estados europeus consolidados a lançarem-se na aventura dos
descobrimentos, trouxeram para as Américas o modo de organização
política que moldou a sua própria estruturação. O colonialismo deixou
como herança sociedades organizadas em forma de Estados com poder
político altamente especializado e central, que considera a gênese do
Direito na lei do Estado, e não nos costumes do grupo social que tutela,
com jurisdição sobre um território indiviso e determinado2.
1 KRITSCH, Raquel. Soberania – A construção de um conceito. São Paulo: Humanitas
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo –
USP. 2002.
2 BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e terras indígenas no Brasil. São
Paulo: Plêiade; FAPESP, 2001.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
181
A outra característica da colonização na América Latina foi o etnocentrismo3, a ideia de que o desenvolvimento empreendido pelo conquistador deveria ser unilinearmente seguido pelo conquistado. Nesse
processo de homogeneização, empregou-se a violência física e cultural
nas colônias, seja por intermédio de uma postura assimilacionista, seja
mediante a simples exclusão ou eliminação. O uso da violência era admitido como um mal necessário, e os índios eram duplamente culpados
por sua “inferioridade” e por recusarem o modo “civilizado” de vida ou
a “salvação”, enquanto os europeus eram “inocentes”, pois tudo o que
fizeram foi visando atingir o melhor4.
O vezo do conquistador de considerar o seu grupo étnico ou sua
cultura num plano mais importante que as culturas e as sociedades
conquistadas gerou, em relação aos povos indígenas no Brasil, posturas de eliminação e assimilação, a ideia da infantilidade dos índios, o
integracionismo, o mito do “bom selvagem” e a institucionalização do
poder tutelar5.
O dilema para o conquistador não consistiu em definir se os povos
autóctones deveriam ou não ser incorporados à civilização europeia,
mas sim a forma da incorporação, como evidencia o hoje célebre embate de Valladolid entre Juan Gines de Sepúlveda e Bartolomé de Las
Casas. Sepúlveda alegou o primitivismo e a inferioridade dos índios
como justificativas para a dominação, visto que o perfeito deve preponderar sobre o imperfeito. A conquista seria um ato emancipatório,
pois permitiria ao bárbaro sair de sua barbárie, ainda que para isso
3 O etnocentrismo significa tornar minha identidade e meus valores o centro de tudo. A
própria etnia é tomada como referência absoluta de humanidade. A etnia do outro, quando
não perseguida, é inferiorizada por meio de estigmas, segregações e genocídio, o qual
pode ser físico ou cultural, este conhecido por etnocídio (BRITO, Antonio José Guimarães. Etnicidade, Alteridade e Tolerância. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 50).
4 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais
de hoje: O discurso da “inferioridade” latino-americana. In: WOLKMER, Antonio Carlos.
Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. p. 271-316.
5 BECKHAUSEN, Marcelo. Etnocidadania, Direitos Originários e a Inconstitucionalidade do Poder Tutelar. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel
(Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
p. 525-558.
182
Revista da AJUFERGS / 09
fosse necessário o uso de extrema violência6. Enquanto Sepúlveda
professava a via da eliminação, o jesuíta Las Casas defendia uma
postura assimilacionista, em que a anexação seria feita por padres, e
não por soldados. Não via justificativa para uma guerra com o fito de
subjugar os índios com vista à sua evangelização e reconhecia o índio
como sujeito na medida em que exigia sua compreensão e aceitação
racional, e não apenas submissão7.
Centralização da autoridade política e etnocentrismo geraram uma
postura dúbia do Estado em relação aos povos indígenas desde os primórdios da colonização portuguesa8. O elemento indígena foi delineado
com preocupações variadas: extermínio, exploração e integração são
modelos políticos utilizados nos diferentes períodos da história brasileira,
todos eles comprometidos com uma visão discriminatória e autoritária de
como o Estado e a sociedade não indígena deveriam se relacionar com
as populações autóctones9.
Ao longo do período colonial e do império brasileiro, o tratamento
dispensado pelo conquistador aos povos autóctones e, posteriormente,
pela sociedade majoritária à minoria indígena oscilou da eliminação
com o uso de violência física e moral, caso se entendesse necessário,
para uma postura assimilacionista de incorporação à “comunidade
nacional”.
A visão etnocêntrica predominante, já no período republicano, era
a de que os índios encontravam-se em um estágio inferior de desenvolvimento, e os direitos que lhes eram reconhecidos visavam à preserva6 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais
de hoje: O discurso da “inferioridade” latino-americana. In: WOLKMER, Antonio Carlos.
Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. p. 287.
7 Ibidem, p. 289.
8 A rigor, considerando-se o Tratado de Tordesilhas, firmado em 07 de junho de 1494 e
aprovado por bula papal de 24 de janeiro de 1504, pelo qual as coroas portuguesa e espanhola dividiram entre si o domínio sobre terras descobertas e a descobrir fora da Europa,
o etnocentrismo europeu manifestou-se antes mesmo da chegada portuguesa ao Brasil.
9 BECKHAUSEN, Marcelo. Etnocidadania, Direitos Originários e a Inconstitucionalidade do Poder Tutelar. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO,
Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 526.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
183
ção dos grupos indígenas durante sua transição do primitivismo para
a civilização, tendo em mira sua integração e absorção pela sociedade
majoritária10.
O panorama somente viria a mudar com o advento da Convenção
nº 169 da OIT e a partir da vigência da Constituição Federal de 1988.
3 Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT)
Embora a Convenção nº 169 tenha sido internalizada no ordenamento jurídico nacional mediante ratificação em 2002 – portanto após
a promulgação da Constituição Federal de 1988 –, os debates que antecederam sua criação ocorreram antes do advento da carta constitucional
vigente e sua adoção na 76ª Conferência Internacional do Trabalho de
1989. A Convenção e a Carta Magna vigente são contemporâneas, e os
princípios que inspiraram a Convenção nº 169 influenciaram o conteúdo
do texto constitucional reservado aos direitos dos índios, o que justifica,
no âmbito desse trabalho, que seu estudo anteceda o da Constituição.
Apesar de constituir um novo paradigma no trato dos direitos indígenas,
não foi a primeira Convenção dedicada ao tema.
Deveras, desde a sua criação, em 1919, a Organização Internacional
do Trabalho (OIT) tem considerado entre suas principais preocupações a
situação das chamadas “populações indígenas”, que representavam parte
da força de trabalho nos domínios coloniais.
Em 1921, a OIT deu início a uma série de estudos sobre as condições de trabalho dessas populações e, em 1926, instituiu uma Comissão
de Peritos em Trabalho Indígena para dar continuidade aos trabalhos já
iniciados e emitir recomendações com vistas à adoção de normas internacionais sobre a matéria.
Desses estudos resultaram diversas Convenções, entre as quais
se destaca a de n° 29, sobre Trabalho Forçado, celebrada em 1930.
10 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve Balanço dos Direitos das Comunidades
Indígenas: Alguns Avanços e Obstáculos Desde a Constituição de 1988. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte
Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 569-604.
184
Revista da AJUFERGS / 09
A Segunda Guerra Mundial e o ambiente conturbado que a precedeu
interromperam tais esforços, que só foram retomados após o conflito
e deram origem à Convenção n° 107, de 195711. O documento tratava
especificamente de populações indígenas e tribais, sobretudo de seus
direitos à terra e de suas condições de trabalho, saúde e educação.
Quando de sua criação, imperava a visão integracionista, vigente
entre os anos 1940 e 197012. Seu marco inicial foi o Primeiro Congresso
Indigenista Interamericano sediado no México, em 1940, com reflexo em
âmbito mundial na criação da Convenção nº 107 de 1957, da Organização
Internacional do Trabalho13.
Propugnava dois enfoques para os povos indígenas: o culturalista e o
estruturalista. Pela mirada culturalista, haveria hierarquia entre culturas,
com a cultura indígena em posição de inferioridade em relação à cultura
nacional dominante. Logo, a homogeneização cultural resultante da execução de políticas assimilatórias seria vantajosa para os índios. A visão
estruturalista enxergava o tema indígena pelo viés socioeconômico, e não
pelo aspecto cultural. A integração deveria ocorrer pela via econômica.
Tanto em um quanto no outro enfoque, a finalidade era a assimilação
por meio da integração dos povos indígenas a partir de um paradigma
11 No Brasil, a Convenção nº 107 da OIT foi ratificada por intermédio do Decreto nº
58.824, de 14 de julho de 1966.
12 A visão assimilacionista não era aplicada exclusivamente aos povos indígenas.
Kymlicka registra que, até a década de 1960, países de língua inglesa adotavam um
modelo de imigração designado por “angloconformidade”: esperava-se que os imigrantes
assimilassem as normas culturais existentes e, com o tempo, não pudessem ser distinguidos dos cidadãos naturais por sua fala, suas vestimentas, suas atividades de lazer,
sua culinária, o número de integrantes da família e assim por diante. Era uma política
fortemente assimilatória, considerada necessária para que os imigrantes se tornassem
membros leais e produtivos da sociedade e justificada por um etnocentrismo que denegria outras culturas. Recusava-se a entrada no país a determinados grupos considerados
inassimiláveis. O autor cita como exemplos as restrições impostas à imigração chinesa
no Canadá e nos Estados Unidos e a política de uma imigração “somente para brancos” seguida na Austrália (KYMLICKA, Will. La política vernácula: Nacionalismo,
multiculturalismo y ciudadanía. Tradução de Tomás Fernández Aúz y Beatriz Eguibar.
Barcelona: Ediciones Paidós, 2001).
13 IKAWA, Daniela. Direitos dos Povos Indígenas. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN,
Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 497-524.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
185
tido pela sociedade dominante como o mais adequado à ideia de nação
e de desenvolvimento14.
Embora a Convenção espelhasse preocupação pelo reconhecimento
de direitos aos indígenas, ainda pressupunha certa inferioridade da minoria indígena e atribuía ao Estado o papel decisório sobre as políticas
a serem aplicadas aos indígenas.
A partir dos anos 1960, ganhou força um movimento etnodesenvolvimentista, pugnando pela superação da ideia de que a cultura indígena
seria um obstáculo ao desenvolvimento cultural e econômico. A cultura
indígena mereceria ser preservada e fortalecida em benefício do fortalecimento das culturas nacionais, dos direitos humanos e da democracia.
A crítica à orientação integracionista que informou a Convenção nº
107 ensejou sua revisão, culminando na elaboração da Convenção nº 169
da OIT, celebrada em 1989 à luz do questionamento ao quinto centenário
da penetração europeia nas Américas por um movimento indígena emergente. Seu advento deu-se em uma época de reformas constitucionais na
América Latina que ocorreram paralelamente aos processos nacionais de
ratificação da Convenção nº 169. As reformas constitucionais abrangeram,
de um lado, programas de reforma e ajuste estruturais dos Estados e, de
outro, um conjunto de demandas democratizantes dos novos movimentos
sociais e indígenas e o discurso do multiculturalismo15.
14 Os primeiros artigos da Convenção nº 107 espelham sua inspiração assimilatória:
“Art. 1º 1. A presente Convenção se aplica aos membros das populações tribais ou semi-tribais em países independentes, cujas condições sociais e econômicas correspondem a
um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidade nacional
e que seja regidas, total ou parcialmente, por costumes e tradições que lhes sejam peculiares por uma legislação especial.
Art. 2º 1. Competirá principalmente aos governos pôr em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração
progressiva na vida dos respectivos países.” (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
Planalto, Brasília, DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.
htm>. Acesso em 02 de abril de 2013).
O ainda vigente Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973) foi inspirado
pela Convenção nº 107 da OIT.
15 YRIGOYEN Fajardo, Raquel. Aos 20 anos da Convenção 169 da OIT: balanços e
desafios da implementação dos direitos dos povos indígenas na América Latina. In:
VERDUM, Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na
América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009. p. 09-62.
186
Revista da AJUFERGS / 09
A Convenção nº 169 da OIT constitui até agora o mais completo
acordo internacional relativo à preservação dos povos indígenas, e o fato
de a Convenção nº 169 não ser oriunda da Assembleia Geral da ONU
não lhe retira o caráter de instrumento protetivo de direitos humanos.
Nesse aspecto, cumpre referir que a criação, em 1919, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), juntamente com a fundação da
Cruz Vermelha, na Convenção de Genebra de 1864, e a luta contra a
escravatura, corresponde à primeira fase de internacionalização dos direitos humanos, com início na segunda metade do século XIX e término
com o fim da Segunda Guerra Mundial16. A Organização Internacional
do Trabalho é mais antiga que a Organização das Nações Unidas, evidenciando que a regulação dos direitos do trabalhador assalariado foi
um dos primeiros temas a merecer uma ação concertada dos Estados
no plano internacional. Até o início da Segunda Guerra Mundial, a OIT
havia aprovado 67 convenções internacionais, das quais apenas três não
contaram com nenhuma ratificação17.
A OIT atualmente integra o sistema das Nações Unidas, criado em
1945, em substituição à Sociedade das Nações18. É um dos organismos
especializados da ONU.
16 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. ed.
São Paulo: Saraiva, 2010.
17 Ibidem, p. 68.
18 “A OIT foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Fundou-se sobre a convicção primordial de que a paz universal
e permanente somente pode estar baseada na justiça social. É a única das agências do
Sistema das Nações Unidas com uma estrutura tripartite, composta de representantes de
governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores. A OIT é responsável pela
formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações). As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam
a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores
da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião.
No final da guerra, nasce a Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de
manter a paz através do diálogo entre as nações. A OIT, em 1946, se transforma em sua
primeira agência especializada.
No Brasil, a OIT tem mantido representação desde a década de 1950, com programas e
atividades que refletem os objetivos da Organização ao longo de sua história. Além da
promoção permanente das Normas Internacionais do Trabalho, do emprego, da melhoria
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
187
O preâmbulo da Convenção nº 169 revela a identidade de propósito e a sinergia entre a ONU e a OIT, ao observar que suas disposições
foram estabelecidas com a colaboração das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) e que existe o
propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a
aplicação de suas disposições. Ademais, alude aos termos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a
prevenção da discriminação19.
A Convenção nº 169 representa um avanço em relação à sua precedente, a Convenção nº 107, pois introduziu tanto alterações conceituais
quanto a tentativa de evolução das obrigações dos Estados signatários
perante os povos indígenas. Relegou ao passado o paradigma da incorporação pelo aculturamento, substituindo-o por um princípio de respeito
a esses grupos populacionais e suas culturas20.
das condições de trabalho e da ampliação da proteção social, a atuação da OIT no Brasil
tem se caracterizado, no período recente, pelo apoio ao esforço nacional de promoção
do trabalho decente em áreas tão importantes como o combate ao trabalho forçado, ao
trabalho infantil e ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e comercial, à
promoção da igualdade de oportunidades e tratamento de gênero e raça no trabalho e
à promoção de trabalho decente para os jovens, entre outras.” (Fonte: www.oit.com.br
acesso 14 de setembro de 2012).
19 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Planalto,
Brasília, DF, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em 06 fev. 2012.
20 A mudança de enfoque no tratamento dos índios e nos seus direitos manifesta-se já
no preâmbulo da Convenção:
“A Conferência Geral da Organização do Trabalho.
Convocada em Genebra pelo Conselho da Repartição Internacional do Trabalho e tendo
ali se reunido a 7 de junho de 1989, em sua septuagésima primeira sessão;
Observando as normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação
sobre populações indígenas e tribais, 1957;
Lembrando os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação;
188
Revista da AJUFERGS / 09
A Convenção nº 169 proscreve as políticas de assimilação ou integração forçada que alienavam os povos indígenas da capacidade de
tomar decisões sobre o seu destino. Reconhece as aspirações dos povos
indígenas a assumirem o controle de suas próprias instituições,formas de
vida e do seu desenvolvimento econômico e a manterem e fortalecerem
suas identidades, línguas e religiões, dentro dos Estados em que vivem.
Garante também o direito dos povos indígenas de definirem suas prioridades de desenvolvimento, de onde se extrai a necessidade de processos de
consulta prévia e de participação em todas as políticas ou em programas
que os venham a afetar. Reconhece direitos a terra e território e o acesso
aos recursos naturais, bem como o direito consuetudinário dos indígenas
e direitos relativos a trabalho, saúde e comunicações, o desenvolvimento
das próprias línguas e educação bilíngue intercultural.
Uma leitura da Convenção nº 169 da OIT é suficiente para constatar-se que o instrumento estabelece, em favor dos povos e dos indivíduos
Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem
com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de
se eliminar a orientação para a assimilação, das normas anteriores;
Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas
entidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;
Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos
humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão frequentemente;
Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade cultural, à
harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e compreensão internacionais;
Observando que as disposições a seguir foram estabelecidas com a colaboração das
Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação,
da Organização das Nações Unidas, Saúde, bem como o Instituto Indigenista Interamericano, nos níveis apropriados e nas suas respectivas esferas, e que existe o propósito de
continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a aplicação destas disposições;
Após ter decidido adotar diversas propostas sobre a revisão parcial da Convenção
sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957 (nº 107), o assunto que constitui o quarto
item da agenda da sessão, e
Após ter decidido que essas propostas deveriam tomar a forma de uma Convenção
Internacional que revisse a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957,
adota, neste vigésimo sétimo dia de junho de mil novecentos e oitenta e nove, a seguinte
Convenção, que será denominada Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989:”
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
189
indígenas, direitos sociais (art. 2º), liberdades fundamentais (art. 3º),
direito ao meio ambiente (art. 4º), direitos gerais de cidadania (art. 4º),
direito de petição (art. 12), direitos de propriedade e posse sobre as terras
que tradicionalmente ocupam (art. 14)21, direito de consulta prévia (arts.
6º e 17), direito à não discriminação (art. 20), direito à seguridade social
(art. 24), direito à saúde (art. 25) e direito à educação (art. 26). Outrossim,
em diversas passagens da Convenção, identifica-se o objetivo de proteção
à identidade cultural dos povos indígenas (arts. 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10, 13,
27, 28 e 30). Pelo seu alcance e escopo, a Convenção indubitavelmente
constitui um diploma internacional de direitos humanos.
Importante referir que, para a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), a Convenção nº 169 da OIT é o instrumento internacional de direitos humanos específico mais relevante para os povos
indígenas, por sua pertinência direta para a interpretação do alcance dos
direitos dos povos indígenas, das tribos e seus membros, em particular
sob a Declaração Americana de Direitos Humanos. A Convenção tem sido
uma referência normativa importante para os processos de reforma constitucional, legislativa e institucional em países membros da Organização
21 Para os fins deste estudo, importante transcrever os artigos da Convenção nº 169 da
OIT que versam a respeito dos direitos dos índios sobre suas terras e territórios, visto
que este constitui o problema de pesquisa que se enfrenta.
“Art. 13
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a
importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui
a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam
ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.
2. A utilização do termo ‘terras’ nos arts. 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios,
o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou
utilizam de alguma outra forma.
Art. 15
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras
deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos
a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.
2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a
consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos
seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer
programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos
interessados deverão receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer
como resultado dessas atividades.
190
Revista da AJUFERGS / 09
dos Estados Americanos (OEA). A Convenção também tem auxiliado
os próprios povos indígenas na fundamentação de seus pleitos e na luta
por mudanças legislativas consistentes com as obrigações internacionais
dos Estados em matéria de direitos indígenas. A CIDH considera que as
disposições da Convenção nº 169 da OIT são um fator relevante para a
interpretação das normas interamericanas de direitos humanos no tocante
a queixas apresentadas contra todos os Estados integrantes da OEA22.
A Convenção nº 169 da OIT, como único tratado em matéria de
povos indígenas, segue constituindo o “núcleo duro” dos direitos indígenas, graças à sua exigibilidade para os países que o ratificaram. Serviu
Art. 16
1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente artigo, os povos interessados não deverão ser trasladados das terras que ocupam.
2. Quando, excepcionalmente, o traslado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido
livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu
consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão
de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes
públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade
de estar efetivamente representados.
3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras
tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e
reassentamento.
4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber,
em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico
sejam pelo menos iguais àqueles das terras que ocupavam anteriormente, em que lhes
permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando os
povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.
5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por
qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.”
6 ORGANIZAÇÂO DOS ESTADOS AMERICANOS. 2010. Derechos de los pueblos
indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: Normas y jurisprudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Comissión Interamericana
de Derechos Humanos. 2010.
22 ORGANIZAÇÂO DOS ESTADOS AMERICANOS. 2010. Derechos de los pueblos
indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: Normas y jurisprudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Comissión Interamericana
de Derechos Humanos. 2010.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
191
de fundamento para reformas institucionais e legais internas, políticas
públicas e desenvolvimento jurisprudencial.
Firmada a premissa de que a Convenção nº 169 da OIT constitui
um tratado internacional de direitos humanos, sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional enseja o debate acerca da sua posição na
hierarquia normativa brasileira. Apesar de existirem várias correntes
sobre o tema da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos no
ordenamento jurídico pátrio, todas calcadas em respeitáveis argumentos23, nesse artigo sustenta-se a hierarquia constitucional dos tratados de
direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna.
Tal entendimento decorre, em primeiro lugar, de uma interpretação
sistemática e finalística do texto constitucional, tendo como referencial
o princípio da dignidade humana. A Constituição de 1988, a partir da
preeminência que atribuiu ao princípio da dignidade humana24, consagrou
a ideia da abertura material do catálogo constitucional dos direitos e
23 Há quatro diferentes correntes sobre o tema da posição hierárquica dos tratados de
direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, sustentando: a) hierarquia supraconstitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos; b) hierarquia constitucional;
c) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; d) paridade hierárquica entre tratado e
lei federal. No Supremo Tribunal Federal, o entendimento tradicional é o da equiparação
de todos os tratados internacionais celebrados pelo Brasil e integrados ao ordenamento
jurídico nacional, inclusive tratados de direitos humanos, à lei federal ordinária. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 72.131- RJ. Relator Ministro Marco
Aurélio, julgado em 23 de novembro de 1995). No Recurso Extraordinário nº 466.343,
o Ministro Gilmar Mendes sustentou a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal,
dos tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico pátrio antes da
entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004 (BRASIL, Supremo Tribunal
Federal. Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 03 de dezembro de 2008). No Habeas
Corpus nº 87.585 – TO, o Ministro Celso de Mello sustentou a qualificação constitucional
dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, ressalvada a Supremacia da
Constituição sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado brasileiro,
inclusive os que versarem os direitos humanos, desde que estes mostrem-se mais gravosos
ou restritivos do que o texto constitucional (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator
Ministro Marco Aurélio, julgado em 03 de dezembro de 2008).
24 O art. 1º, caput e inciso III, da Constituição Federal, estabelece que a República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e adota como um de
seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana.
192
Revista da AJUFERGS / 09
das garantias fundamentais. Além de direitos e garantias expressamente
reconhecidos na Constituição, em razão do disposto no § 2º do seu art.
5º25, a Constituição também dá guarida a direitos fundamentais implícitos
e integra ao sistema constitucional os direitos positivados nos tratados
internacionais em matéria de direitos humanos26.
A preeminência conferida pela Constituição Federal em vigor aos
tratados de direitos humanos também pode ser extraída do contraste
entre o tratamento a eles atribuído e o conferido aos demais tratados internacionais. Com efeito, enquanto a vigência de tratados internacionais
na ordem jurídica nacional depende, em regra, de decreto legislativo
editado pelo Congresso, no caso dos tratados de proteção internacional
de direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos neles garantidos
têm aplicação imediata, por força do previsto no art. 5º, §§ 1º e 2º, da
Constituição Federal, integrando o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do
ordenamento jurídico interno27. Ademais, no tocante aos tratados internacionais comuns, a Constituição, em seu art. 102, III, ‘b’, estabelece
o cabimento de recurso extraordinário contra a decisão que declarar
sua inconstitucionalidade, o que não é previsto em relação aos direitos
enunciados em tratados internacionais de direitos humanos, dada a sua
hierarquia de norma constitucional.
O relevo constitucional dos tratados de direitos humanos abrange inclusive os incorporados ao ordenamento jurídico nacional anteriormente
ao advento da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004,
a qual acrescentou ao art. 5º da Constituição Federal o § 3º, estabelecendo
que “os tratados e [as] convenções sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
25 “Os direitos e as garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.”
26 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo (Coord.).
Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011. p. 37-73.
27 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. v. 1. 640 p.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
193
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas à Constituição”28, pois os tratados aprovados anteriormente à
vigência desse dispositivo seguiram o trâmite vigente à época de sua
aprovação29. Ou seja, não é o quórum ou o procedimento de votação que
qualificam um tratado internacional de direitos humanos como norma
constitucional, e sim o seu conteúdo material30.
4 Constituição Federal de 1988
No plano jurídico interno, a ruptura do quadro normativo constitucional e infraconstitucional, de índole integracionista, ensejador de
mudanças nas relações entre Estado, sociedade e populações indígenas,
ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1988.
À luz do texto constitucional31, pode-se afirmar que o direito indigenista brasileiro rege-se por alguns princípios, quais sejam: a) princípio
do reconhecimento e proteção do Estado à organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no território nacional; b) princípio do reconhecimento dos direitos originários
dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e proteção
28 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 45.
ed. São Paulo: Saraiva. 2011.
29 RAMOS, André de Carvalho. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional
dos Direitos Humanos. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo (Coord.). Direitos
Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011. p. 3-35.
30 PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos:
Jurisprudência do STF. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel;
BINEMBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 459-477.
31 Na história constitucional brasileira, a Carta Magna vigente foi a que mais se ocupou
dos temas relativos aos índios e aos seus direitos: a) manteve as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios sob o domínio da União (art. 20, XI), bem como sua competência
para legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV); b) atribuiu ao Congresso Nacional
competência exclusiva para autorizar a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos
e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas (art. 49, XVI); c) definiu a
competência da Justiça Federal para processar e julgar disputas sobre direitos indígenas
(art. 109, XI); d) conferiu ao Ministério Público a função de defender judicialmente os
direitos e os interesses das populações indígenas (art. 129, V); e) subordinou a pesquisa
194
Revista da AJUFERGS / 09
de sua posse permanente em usufruto exclusivo para os índios; c) princípio da igualdade de direitos e da igual proteção legal; d) princípio da
proteção da identidade32.
Os princípios da igualdade formal de direitos e de igual proteção
legal significam que os índios estão sob o pálio de todos os princípios e
direitos constitucionais comuns aos demais brasileiros.
Ao princípio da proteção identitária corresponde o direito à alteridade, ou o direito à diferença. A Constituição Federal estimula o respeito à
diversidade cultural brasileira, assegurando aos índios o direito a serem
e permanecerem diferentes e de não sofrerem qualquer forma de discriminação por suas escolhas. Por força desse princípio, não se admite
qualquer exegese jurídica que acarrete a afirmação direta ou indireta de
superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos
indígenas.
O princípio da proteção da identidade articula-se com o princípio
do reconhecimento e proteção do Estado à organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no território
nacional. Com efeito, o último decorre do primeiro, pois consubstancia
e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica
à observância de condições específicas legalmente previstas quando tais atividades
se desenvolverem em terras indígenas (art. 176, § 1º); f) assegurou às comunidades
indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem,
inclusive no ensino fundamental regular (art. 210, § 2º); g) determinou que o Estado
protegerá as manifestações culturais indígenas (art. 215, § 1º); h) consagrou a organização
social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições indígenas (art. 231, caput); i)
reconheceu aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, caput); j) incumbiu a União de proteger e fazer respeitar os índios, seus
bens e suas terras (art. 231, caput); j) conceituou as terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios e conformou seu regime jurídico (art. 231, §§ 1º a 7º); k) atribuiu à União
a competência para demarcação das terras indígenas, fixando o prazo máximo de cinco
anos para demarcá-las (art. arts. 231, caput, e 67 do ADCT); l) outorgou legitimidade às
comunidades indígenas e organizações indígenas para ingressarem em juízo na defesa
de seus direitos e interesses, impondo a intervenção do Ministério Público em todos os
atos do processo (art. 232).
32 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve Balanço dos Direitos das Comunidades
Indígenas: Alguns Avanços e Obstáculos Desde a Constituição de 1988. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte
Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 569-604.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
195
o dever do Estado de respeitar, proteger e valorizar o estilo de vida dos
índios, o exercício dos seus direitos culturais e as manifestações de sua
cultura.
Por sua vez, o reconhecimento e proteção da cultura indígena amparam o reconhecimento dos seus direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam e a proteção estatal de sua osse permanente em
usufruto exclusivo para os índios, a partir da constatação da essencialidade do vínculo dos povos indígenas com suas terras para a manutenção
de sua identidade cultural.
Ao articular esses princípios, a Constituição Federal reconhece a
correlação e a interdependência entre organização social, costumes,
línguas e tradições indígenas e as terras por eles ocupadas33. Os direitos
conferidos aos índios no sistema constitucional em vigor explicitam-se em três dimensões: os territoriais, os de organização social e os de
cultura, vinculados de tal maneira que, em regra, a violação a uma das
dimensões viola as demais34.
No âmbito cultural, os arts. 210, 215, 216 e 23135 da Constituição
vigente reconhecem o valor da contribuição indígena à cultura brasileira e a necessidade do respeito à diferença. Correspondem a direitos
poliétnicos, ou de diversidade cultural. Sua finalidade é a redução da
situação vulnerável dos grupos minoritários, possibilitando o respeito e
a valorização dos traços culturais distintos. Objetivam oportunizar aos
33 Ibidem, p. 574.
34 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Direito de ser Povo. In: IKAWA,
Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e
Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2010. p. 475-496.
35 “Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais
e regionais.
§ 1º. [...]
§ 2º. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada
às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem.”
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
196
Revista da AJUFERGS / 09
grupos étnicos exprimirem suas particularidades e seu orgulho cultural
e fomentar a integração da sociedade em conjunto.
A organização social indígena refere-se à estrutura de suas sociedades, suas instituições e suas formas de relacionamento entre seus
membros, o que envolve questões de natureza moral, ética, familiar,
econômica, religiosa e política.
Os direitos territoriais correspondem ao regime jurídico próprio das
terras indígenas, estruturado a partir do reconhecimento de sua importância para a preservação da organização social e da cultura indígenas.
O prestígio conferido pela Constituição à cultura indígena envolve o
reconhecimento de sua organização social, fundada em usos, costumes
e tradições próprios. E, no caso dos índios, cultura e organização social
relacionam-se também com as terras que tradicionalmente ocupam36.
A Constituição vigente rompe o paradigma da assimilação, da inclusão ou da provisoriedade da condição de indígena, assim como das
terras por eles ocupadas. Permanece a possibilidade de integração se o
indivíduo assim o desejar, mas o Estado nacional reconhece o direito
individual e coletivo, grupal, de permanecer índio.
Com o advento da Carta Política de 1988, superou-se a visão integracionista com finalidade assimilatória em prol de uma nova perspectiva
§ 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para
os diferentes segmentos étnicos nacionais.”
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, [...].”
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições [...].” (BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2011).
36 O regime jurídico das terras indígenas recebeu tratamento diferenciado do constituinte
de 1988. O art. 231, §§ 1º a 6º, da Constituição em vigor, disciplinou o regime jurídico
das terras indígenas a partir dos requisitos da originariedade, tradicionalidade e ocupação permanente, de cujo reconhecimento decorrem os direitos à posse permanente, ao
usufruto exclusivo e a vedação à remoção, bem como os atributos de inalienabilidade,
indisponibilidade e imprescritibilidade das terras indígenas.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
197
quanto ao reconhecimento do valor de sua cultura e de seus direitos
territoriais. As normas constitucionais relativas aos direitos dos povos
indígenas inseridas na Constituição de 1988 são resultado dessa nova
visão.
5 Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas foi gestionada por mais de duas décadas. Em 1982, o Conselho Econômico e Social autorizou a construção do Grupo de Trabalho
sobre Populações Indígenas dentro da subcomissão para a Prevenção
da Discriminação e a Proteção de Minorias. A partir de 1985, esse
Grupo foi encarregado de redigir um rascunho da Declaração, tarefa
que contou com a participação de organizações de povos indígenas.
A Declaração foi aprovada primeiramente pelo Conselho de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas em 29 de junho de 2006.
E, em 13 de setembro de 2007, após algumas alterações, foi adotada
pela Assembleia Geral da ONU com 143 votos a favor, 4 contra e 11
abstenções37.
Por seu conteúdo, a Declaração estabelece um novo patamar internacional no tocante aos direitos dos povos indígenas. Constitui um
ponto de chegada, pois consolida e sintetiza os avanços realizados no
direito internacional dos direitos dos povos indígenas, aprofundando
e ampliando direitos que estão na Convenção nº 169 da OIT, e incorpora demandas indígenas. Mas é também um ponto de partida, pois
sua efetividade depende do compromisso dos estados e do sistema das
Nações Unidas.
Ainda que a Declaração não estabeleça novos direitos em relação
a anteriores instrumentos de direitos humanos da ONU, é manifesta
quanto à vinculação de tais direitos às condições específicas dos povos
37 YRIGOYEN Fajardo, Raquel. Aos 20 anos da Convenção 169 da OIT: balanços e
desafios da implementação dos direitos dos povos indígenas na América Latina. In:
VERDUM, Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na
América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009. p. 09-62.
198
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indígenas38. Já em seu Preâmbulo, a Declaração reconhece a essencialidade do vínculo dos índios com suas terras e seus territórios. Afirma
a necessidade de respeito e promoção dos direitos dos povos indígenas
que derivam de suas estruturas políticas, econômicas e sociais, bem
como de suas culturas, tradições espirituais, história e concepção de
vida. Expressa a convicção de que o controle, pelos povos indígenas,
dos acontecimentos que os afetam e das suas terras e seus territórios e
recursos lhes permitirá manter e reforçar suas instituições, culturas e tradições e promover seu desenvolvimento de acordo com suas aspirações e
necessidades. Proclama o direito à autodeterminação, a ser exercido em
conformidade com o direito internacional, em virtude do qual os povos
indígenas podem determinar livremente sua condição política e buscar
seu desenvolvimento econômico, social e cultural39.
A partir dessas premissas, a Declaração estabelece o direito dos
povos indígenas à autodeterminação, expressado no direito à autonomia
ou ao autogoverno nas questões referentes a seus assuntos internos e
locais40. Portanto, a Declaração representa uma nova etapa para o reconhecimento, a promoção e a defesa dos direitos dos povos indígenas e
propõe às próprias minorias indígenas, ao restante das sociedades e aos
Estados o desafio de redefinirem os termos de suas relações.
As origens da Declaração vinculam-se por um lado à emergência dos
movimentos sociais e políticos dos povos indígenas na segunda metade
do século XX e, de outra banda, ao crescente debate na comunidade
internacional sobre direitos civis, sociais, políticos e culturais. De seu
texto, extraem-se duas perspectivas: a reparadora e a protetiva.
38 STAVENHAGEN, Rodolfo. Los Pueblos Indígenas Como Nuevos Ciudadanos del
Mundo. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva; GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos Indígenas:
Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 19-36.
39 UNESCO, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas:
perguntas e respostas. Rio de Janeiro: UNIC, 2009.
40 Artigo 3. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito,
determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural.
Artigo 4. Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm
direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos
e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
199
Pela ótica da reparação, afirma-se que a Declaração existe devido ao
desejo de se reparar os efeitos até hoje percebidos da prática de violações
massivas de direitos humanos. O propósito da Declaração é eliminar
desigualdades que não deveriam existir. Seu objetivo final é algum dia
tornar-se irrelevante41 (ANAYA, 2009, p. 37).
A Declaração não define o que são povos indígenas; porém, evidencia a pauta comum de afronta a direitos humanos. Ao aludir a essa
trajetória de violações, a Declaração revela seu caráter de instrumento
reparador42. Não privilegia os povos indígenas com uma série de direitos
exclusivos, mas afirma que tais povos são titulares dos mesmos direitos
desfrutados por outros povos, ainda que compreendidos dentro do contexto das características particulares comuns aos grupos compreendidos
como povos indígenas43.
Pelo aspecto protetivo, destaca-se que a Declaração visa a promover
a aplicação de princípios universais de direitos humanos no sentido de
valorizar não somente a humanidade das pessoas indígenas, mas também
os laços que os índios constituem com as comunidades a que pertencem.
A Declaração contextualiza os direitos humanos com atenção particular
aos padrões de identidade44 e pertencimento dos grupos indígenas que
os constituem como povos45.
41 ANAYA, James. Por qué no debería existir una Declaración sobre Derechos de Los
Pueblos Indígenas. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva;
GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos
Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 37-50.
42 Nesse aspecto, o Preâmbulo da Declaração afirma a inquietude com o fato de os povos
indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado da colonização e da subtração de
suas terras, territórios e recursos, o que lhes têm impedido de exercer seu direito ao desenvolvimento em conformidade com suas necessidades e seus interesses (UNESCO, 2009, p. 8).
43 Ibidem, p. 41.
44 O Preâmbulo da Declaração define que os povos indígenas são iguais a todos os demais
povos; porém, ao mesmo tempo possuem o direito comum a todos os povos de serem diferentes, considerarem-se diferentes e a serem respeitados como tais (UNESCO, Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Rio de
Janeiro: UNIC, 2009).
45 ANAYA, James. Por qué no debería existir una Declaración sobre Derechos de Los
Pueblos Indígenas. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva;
GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos
Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 37-50.
200
Revista da AJUFERGS / 09
Esse fundamento repousa na consideração de que os povos indígenas
constituem formas de cultura inteiramente diversas, arraigadas em um
modo de vida que deve ser protegido. A base para a proteção internacional
dos povos indígenas não residiria tanto nas considerações de práticas
pretéritas de maus tratos cujos efeitos estruturais permanecem até hoje,
mas nas dimensões de diferença cultural46.
O art. 1º da Declaração deixa claro que o documento constitui um
instrumento internacional de proteção dos direitos humanos ao dispor
que os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno
desfrute de todos os direitos humanos e todas as liberdades fundamentais.
As especificidades da cultura e da organização social indígenas levaram ao reconhecimento de direitos humanos no âmbito coletivo, rompendo
um modelo clássico de direito internacional e de relações internacionais
que compreende os direitos humanos apenas no plano individual.. A Declaração é considerada o principal instrumento internacional que afirma
e articula os direitos coletivos de entidades que não constituem Estados.
A Declaração não constitui um tratado e, em consequência, tampouco
se trata de espécie legislativa de direito interno. Não é um instrumento
jurídico vinculante e obrigatório. No entanto, espelha o desenvolvimento
dinâmico de normas legais internacionais e reflete o comprometimento
dos Estados a adotarem certas diretrizes no tocante aos direitos indígenas,
a partir de princípios nela reconhecidos.
Nesse sentido, constitui um instrumento de soft Law, ou seja, sem
a vinculatividade própria de um tratado, o que não o despe de qualquer
caráter jurídico, pois reflete o estado de desenvolvimento de normas
consuetudinárias e poderá servir de base para tratados futuros, bem
como, por sua própria natureza, gerar expectativas de comportamento47.
46 KYMLICKA, Will. La política vernácula: Nacionalismo, multiculturalismo y ciudadanía. Tradução de Tomás Fernández Aúz y Beatriz Eguibar. Barcelona: Ediciones
Paidós, 2001.
47 HUERTA, Mauricio Iván del Toro. El Fenómeno del soft law y las nuevas perspectivas
del Derecho Internacional. In: Anuario Mexicano de Derecho Internacional. México D.F:
Instituto de Investigaciones Jurídicas de La UNAM. v. VI. 2006. p. 513-549. Disponível
em <http://biblio.juridicas.unam.mx/revista/pdf/DerechoInternacional/6/art/art12.pdf>.
Acesso em 15 mar. 2013.
QUADRO NORMATIVO INDIGENISTA
201
É com essa compreensão que deve ser entendido o art. 42 da Declaração, que exorta as Nações Unidas e os Estados a promoverem o respeito
e a plena aplicação das suas disposições e a zelar por sua eficácia48.
Apesar de não ser um instrumento jurídico vinculante, a Declaração serve para estabelecer diretrizes para as políticas e as legislações
nacionais concernentes aos índios, servindo de referência para projetos
de leis, políticas públicas e decisões judiciais sobre assuntos indígenas.
Deve ser entendida como um instrumento de interpretação dos direitos
humanos no contexto cultural, social e histórico dos povos indígenas49.
Por seu importante valor hermenêutico, a Declaração constitui um
paradigma na configuração das relações entre as comunidades indígenas,
o Estado e a sociedade envolvente.
6 Conclusão
A Constituição em vigor representou a quebra do paradigma assimilatório em prol de uma nova perspectiva quanto ao reconhecimento
do valor da cultura e da organização social indígenas. Sua promulgação
insere-se em um ciclo de reformas constitucionais em matéria indígena
caracterizado pelo reconhecimento do direito individual e coletivo à
identidade cultural, além da previsão de direitos indígenas específicos
nos textos constitucionais. A Constituição brasileira de 1988 antecede em
um ano a adoção do Convênio nº 169 da OIT sobre direitos indígenas,
mas já adota algumas das suas concepções.
A Convenção nº 169, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro
com hierarquia de norma constitucional – em razão de sua natureza de
tratado internacional de direitos humanos –, proscreve as políticas de
assimilação ou integração forçada que alienavam os povos indígenas da
48 “Artigo 42. As Nações Unidas, seus órgãos, incluindo o Fórum Permanente sobre Questões Indígenas, e organismos especializados, particularmente em nível local, bem como os
Estados, promoverão o respeito e a plena aplicação das disposições da presente Declaração
e zelarão pela eficácia da presente Declaração.” (UNESCO, Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Rio de Janeiro: UNIC, 2009).
49 RODRIGUEZ-PIÑERO, Luis. La Implementación de La Declaración: Las Implicaciones Del Artículo 42. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva;
GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos
Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 65-106.
202
Revista da AJUFERGS / 09
capacidade de tomar decisões sobre o seu destino. Ademais, reconhece as
aspirações dos povos indígenas a assumirem o controle de suas próprias
instituições, de suas formas de vida e do seu desenvolvimento econômico e a manterem e fortalecerem suas identidades, línguas e religiões
dentro dos Estados em que vivem. Garante também o direito dos povos
indígenas de definirem suas prioridades de desenvolvimento, de onde se
extrai a necessidade de processos de consulta prévia e de participação em
todas as políticas ou em programas que possam afetá-los, reconhecendo
direitos a terra e território e o acesso a recursos naturais.
O quadro normativo indigenista é completado pela Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Apesar de carecer de força vinculativa por tratar-se de um documento de soft Law, a
Declaração possui força principiológica e relevo hermenêutico. Fundamenta o estabelecimento de diretrizes para as políticas e as legislações
nacionais concernentes aos índios, servindo de referência para projetos
de leis, políticas públicas e decisões judiciais sobre assuntos indígenas.
Esses três diplomas – Convenção nº 169 da OIT, Constituição Federal
de 1988 e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas – constituem o quadro normativo indigenista. O conhecimento
e a interpretação do alcance e da eficácia de seus dispositivos são indispensáveis para a resolução de conflitos de interesse entre a minoria
indígena e a sociedade envolvente.
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O legado dos votos vencidos nas
decisões da Suprema Corte dos
Estados Unidos da América
Gabriel Wedy
Juiz Federal. Visiting Scholar na Columbia Law School. Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS.
Professor de Direito Ambiental na Escola da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(AJURIS), na Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul (ESMAFE/RS) e Professor
Visitante no Curso de Pós-Graduação de Direito Ambiental da UNISINOS.
Ex-Presidente da AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e da AJUFERGS/ESMAFE
(Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul/Escola da Magistratura Federal do Rio
Grande do Sul).
Juarez Freitas
Professor das Faculdades de Direito da PUCRS e da UFRGS.
Presidente do Instituto Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público.
Pós-Doutorado pela Universidade Estatal de Milão.
Autor de diversos livros e artigos jurídicos. Advogado.
Resumo: O artigo aborda tema pouco versado na doutrina constitucional brasileira até o momento: o legado dos votos vencidos na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. É esquadrinhada,
em tom crítico, a influência de tais votos no fomento do debate público
e, ainda, no embasamento para alteração da jurisprudência daquela Corte
em casos futuros. Nessa perspectiva, alguns dos mais prestigiados leading cases da história norte-americana são avaliados com o foco não na
posição firmada pela maioria dos Justices, mas no conteúdo externado
pelos votos vencidos.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Votos vencidos. Precedentes. Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
Sumário: Introdução. 1. Os dissensos no direito norte-americano. 2.
Exame de dissensos na Suprema Corte norte-americana. 3. Casos célebres
e recentes com dissensos que serão avaliados pelas futuras gerações.
Conclusão. Referências.
Introdução
Os precedentes judiciais ostentam notável prestígio argumentativo,
em especial nos países da Common Law, marcados pelo sistema do
stare decisis. Não é exagero afirmar que o direito desses países, em boa
medida, é construído com base nos precedentes e que estes balizam a
206
Revista da AJUFERGS / 09
estrutura jurídico-institucional. Ali, a segurança jurídica é alcançada
mercê da observância, em larga escala, de precedentes sólidos, ao menos tidos como aceitáveis culturalmente. Graças a isso, a Constituição
norte-americana logrou adaptar-se às novas realidades, sem deixar de se
preservar formalmente, mantendo-se quase intacta desde a versão dos
Founding Fathers1, em 1787.
Os leading cases da Suprema Corte americana tornam-se, assim,
regras a serem acatadas pelo Executivo, pelo Judiciário e pelo Legislativo, de maneira que os votos que formam a posição majoritária
das opiniões dos Justices são festejados ou lamentados, pois entram
na história de modo positivo ou negativo, com certa tendência à duração por largo período. Talvez por isso, quando se estuda o direito
constitucional americano, costuma-se, em geral, esquecer o outro lado
da moeda: os votos vencidos. Tende-se a diminuir a importância dos
votos perdedores, negligenciá-los ou simplesmente esquecê-los. Não
obstante, ao longo da história, foram justamente alguns dos votos vencidos que veicularam as melhores razões e mantiveram aceso o debate
público, não apenas na academia. Tornaram-se contribuições seminais
para alterar o entendimento norteador de futuras decisões da Suprema
Corte norte-americana.
É, pois, justamente sobre o legado dos votos vencidos, em célebres
leading cases, que se debruça o artigo, analisando, inicialmente, decisões
com suficiente distanciamento histórico. Ato contínuo, serão mencionados votos dissidentes em casos recentes, que não receberam ainda o
temperado julgamento da história e cujos efeitos não foram sopesados
com maior segurança no tocante aos seus efeitos. Neste último caso, o
que se almeja realizar são projeções, com argumentos contrafactuais,
sobre o possível legado na construção do direito norte-americano, o
qual, goste-se ou não, irradia critérios e influências para Tribunais e
doutrinadores de boa parcela do mundo.
1 Sobre a elaboração da Constituição americana e os seus “pais”, ver: McCLANAHAN,
Brion. The Founding Fathers. Washington: Regnery Publishing, 2012. Para aprofundamento sobre a base, a consolidação e a origem do direito constitucional norte-americano,
ver: HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. The Federalist Papers.
China: Sweetwater Press, 2010.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
207
1 Os dissensos no direito norte-americano
O constitucionalismo norte-americano, desde a Declaração de Virgínia (1776), passando pela Constituição de 1787 (vigente até hoje) e pelas
emendas que emanaram do Bill of Rights2, confere expressivo significado
aos precedentes judiciais. No sistema da Common Law e do stare decisis,
o direito constitucional é construído a partir da determinação interpretativa do conteúdo ligado à vaga vontade popular e de seus representantes
e, com pronunciado destaque, por meio de precedentes judiciais.
A doutrina norte-americana, notadamente a professada por Bruce
Ackerman, classifica o constitucionalismo americano em três etapas
inovadoras, quais sejam: a fundação, a reconstrução e o New Deal. Para
Ackerman, é equívoco estabelecer ordem decrescente dos três períodos
mais relevantes do constitucionalismo, levando em consideração o
aspecto criativo, como se apenas a fundação e a reconstrução configurassem fontes de novas soluções constitucionais para hard cases. Diversamente, Ackerman propõe solução narrativa na qual os republicanos da
Reconstrução e os democratas do New Deal aparecem como iguais em
importância aos The Framers, na geração de processos legislativos e de
soluções substantivas em nome do povo norte-americano3.
Com acerto, pois a fonte do direito constitucional norte-americano
certamente tem que ser levada a sério nesses três ricos períodos de interpretação e criação. Negligenciar a Corte do New Deal implica não emprestar o devido valor a um momento crucial, seja no atinente à regulação
das liberdades, seja no que concerne à consolidação dos direitos civis.
2 Sobre The Bill of Rights, é obra referencial: AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights.
New Haven: ale University Press, 1998.
3 Como refere Ackerman, “[...] The professional wisdom arrays these periods in descending order of constitutional creativity: the Founding was creative both in process
and substance; Reconstruction was creative only substantively; The New Deal was not
creative at all. To fix ideas, call this a two-solution narrative, since it recognizes only the
Founding and Reconstruction as sources of new constitutional solutions. In contrast, I
shall be proposing a three-solution narrative- in which both Reconstruction Republicans
and New Deal Democrats appear as the equals of the Fonding Federalists in creating
new higuer lawmaking processes and substantive solutions in the name of We the People
of The United States.” (ACKERMAN. We the people. Foundations, Cambridge: Harvard
University Press, 1993, p. 58).
208
Revista da AJUFERGS / 09
Nesse pano de fundo, não apenas as posições defendidas pelas maiorias da Suprema Corte devem ser escrutinadas. Claramente, as decisões
majoritárias não têm sido a causa única de impactos e mudanças sociais,
tampouco podem ser consideradas como fontes isoladas. Uma decisão
tomada, por maioria, pode ser – frequentemente é – iníqua, arbitrária,
percebida como teratológica, às vezes até no tempo em que foi ultimada.
Tal decisão pode ser injusta, embora apoiada por ampla maioria da sociedade contemporânea. Pode, é claro, ocorrer que a decisão permaneça
respeitável ao longo do tempo, recebida como justa inclusive pelas gerações posteriores a ela. Apenas nesse último caso, o dissenso pode não
ter maior peso para o direito constitucional, isto é, não passar de registro
nas atas da Suprema Corte como mera divergência.
Naturalmente, a última circunstância não é a que causa inquietação,
porém as primeiras: as decisões da Suprema Corte majoritárias, apoiadas ou não pela sociedade de seu tempo e que, no futuro, são reputadas
injustas ou capturadas por fatores extrajurídicos inaceitáveis. Nesse
contexto, avultam os votos dissidentes, muitas vezes incompreendidos,
ridicularizados e esmagados pela maioria da Corte. No entanto, à luz do
Tribunal da História, podem encarnar vitórias morais.
Sem dúvida, o escrutínio intertemporal das decisões da Suprema
Corte, que jamais se confunde com desacato, autoriza afirmar que determinado voto dissidente é que era o melhor, merecendo servir como
inspiração para mudança de opinião, a par de alento para movimentos
em defesa dos direitos civis, novas posturas ambientais e abordagens
morais civilizatórias.
Não são inusuais os casos em que a maioria da Corte entendeu de
acordo com tendências epocais e tomou rumos interpretativos que conflitam com os anseios das gerações futuras. Em contrapartida, alguns votos
dissidentes deixaram transparecer que foram prolatados com visão de
longo prazo, amparados em perspectiva que faltou à maioria.
A propósito, em boa hora, Mark Tushnet empreendeu minuciosa
análise de célebres votos dissidentes da Suprema Corte norte-americana4
4 Ver: TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme
Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
209
em casos como: Dred Scott v. Sanford5 (1857), com base no voto do
Justice Benjamin R. Curtis; The Civil Rights Cases (1883), com base no
voto do Justice John Marshall Harlan; Plessy v. Ferguson6 (1896), com
base, novamente, no voto do Justice John Marshall Harlan; Lochner v.
New York7 (1905), com base no voto do Justice John Marshall Harlan,
um dos mais conhecidos dissenters da Suprema Corte, e de outro famoso
prolator de votos vencidos, o Justice Oliver Wendell Holmes; Whitney
v. California8 (1927), com base no voto do Justice Louis D. Brandeis;
National Labor Relations Board v. Jones & Laughlin Steel Corp. (1937),
com base no voto do Justice James McReynolds; Korematsu v. United
5 No caso, que até hoje é considerado a maior mácula moral da Suprema Corte norte-americana, a decisão foi a de que os indivíduos da raça negra não seriam considerados
cidadãos no sentido constitucional. Nesses termos: “Rule of Law – Individuals of the Negro
race are not to be considered citizens in the constitutional sense” (STONE, SEIDMAN,
SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using.
Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 52).
6 A decisão, no caso, foi a de que a segregação dos negros seria razoável, se baseada
em usos, costumes e tradições do povo no Estado. Assim: “Rule of Law-Segregation of
the races is reasonable if based upon the established custom, usage, and traditions of
the people in the state” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s.
Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer,
2010, p. 53).
7 A decisão para o caso foi de que, para ser justo, razoável e apropriado o uso do poder
de polícia pelo Estado, o ato deve ter relação direta, entre meios e fins, para que possa
alcançar um apropriado e legítimo objetivo estatal. Nesse sentido: “Rule of Law – To
be a fair, reasonable, and appropriate use of a state’s police power, an act must have a
direct relation, as a means to an end, to an appropriate and legitimate state objective”
(STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s. Constitutional Law: Keyed
to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76).
8 No caso, restou definido que o Estado pode, no exercício do poder de polícia, punir
abusos na liberdade de discurso quando tais declarações são hostis ao bem-estar público
como tendendo a incitar o crime, o distúrbio da paz ou colocar em perigo o governo
organizado através de subversão violenta. Nesse sentido: Rule of Law: “A state may, in
the exercise of its police Power, punish abuses of freedom of speech where such utterances are inimical to the public welfare as tending to incite crime, disturb the peace,
or endanger organized government through threats of violent overthrow” (STONE,
SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET AND KARLANS]. Constitutional Law: Keyed to
Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 114).
210
Revista da AJUFERGS / 09
States9 (1944), com base no voto dos Justices Frank Murphy e Robert H.
Jackson; Goesart v. Clearly (1948), com base no voto do Justice Wiley
Rutledge; Brown v. Board of Education10 (1954), com base no voto do
Justice Robert H. Jakson; Baker v. Carr11 (1962), com base nos votos
dos Justices Felix Frankfurter e John Marshall Harlan; Abington School
District v. Schempp (1963), com base no voto do Justice Potter Stewart;
9 No caso, a decisão foi a de que o receio pelas autoridades militares competentes de
grave e iminente perigo para a segurança pública, em tempos de guerra, pode justificar a
redução dos direitos civis de um único grupo racial. Nesse sentido: Rule of Law – Apprehension by the proper military authorities of the gravest imminent danger to the public
safety can justify the curtailment of the civil rights of a single racial group (STONE,
SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to
Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 58).
10 Nesse caso, ficou definido que a doutrina do “separate but equal” não tinha aplicação
no campo da educação, e a segregação de crianças em escolas públicas, baseada apenas
na raça, violava a cláusula constitucional da igual proteção (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt
Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 54). Pouco se fala na doutrina brasileira, em
matéria de direito constitucional comparado, no desdobramento do caso Brown v. Board
of Education of Topeka (349 U.S. 294), também chamado na doutrina norte-americana
de Brown II, que foi decidido posteriormente, em 1955, no sentido da implementação
do decidido no caso Brown v. Board of Education of Topeka (Brown I), no ano de 1954,
portanto, um ano antes. No Brown II, foi determinado que os processos na Suprema Corte
em matéria de segregação fossem devolvidos para que as Cortes inferiores determinassem, em suas decisões, ordens consistentes com princípios equitativos de flexibilidade e
exigissem que os réus iniciassem uma total integração racial nas escolas públicas. Nesse
sentido: “Rule of Law – The ‘separate but equal doctrine’ has no application in the field
of education and the segregation of children in public schools based solely on their race
violates the Equal Protection Clause” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET,
and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York:
Wolters Kluwer, 2010, p. 55).
11 A decisão, no caso em tela, foi de que questões sobre proporcionalidade na composição dos Legislativos nos Estados poderiam ser apreciadas pelo Poder Judiciário sem
invasão de competência constitucional dos demais Poderes. O caso envolvia o estatuto
do Estado do Tennesse, que foi impugnado judicialmente como obsoleto, após 60 anos
de vigência, por distribuir desproporcionalmente as vagas de membros da assembleia
ocupadas por representantes dos municípios. De fato: Rule of Law – Reapportionment
issues present justiciable questions (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and
KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York:
Wolters Kluwer, 2010, p. 11).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
211
Griswold v. Connecticut12 (1965), com base nos votos dos Justices Hugo
L. Black e Potter Stewart; Morrison v. Olson13 (1988), com base no voto
do Justice Antonin Scalia e Lawrence v. Texas14 (2003), com base no voto,
outra vez, do Justice Antonin Scalia, caracterizado pelo originalismo15,
o qual, ao que tudo indica, não será consagrado pela história.
Tushnet chega a analisar como dissensos, ainda que impróprios, o
voto do Pennsylvania Supreme Court Justice, John Bannister Gibson, em
Eakin v. Raub (1825), que critica o poder das Cortes de invalidar legislações como reconhecido em Marbury v. Madison16 (1803). Como dissenso
12 A decisão foi de que o direito à privacidade, embora não explicitamente declarado
no Bill of Rights, é uma penumbra formada por outras garantias explícitas. Como tal,
ela é protegida contra a regulação do Estado quando esta é desnecessariamente ampla.
Nesse sentido: “Rule of Law: The right to privacy, although not explicitly stated in the
Bill of Rights, is a penumbra, formed by certain other explicit guarantees. As such, it
is protected against state regulation that sweeps unnecessarily broad” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s. Constitutional Law: Keyed to Courses
Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 87).
13 A decisão foi de que o Conselho Independente de Ética no Governo era órgão administrativo admitido pela Constituição e não violava a independência dos Poderes. O
caso foi discutido após ser alegado por Olson, advogado da Environmental Protection
Agency (EPA), que estava com a sua conduta sob investigação do referido Conselho. A
questão ficou delimitada pela Suprema Corte, nos seguintes termos: “Rule of Law – The
independent counsel provisions of the Ethics in Government Act are constitutional”
(STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law:
Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 47).
14 A decisão desse leading case foi no sentido de que a legislação que criminaliza a
sodomia entre adultos do mesmo sexo dentro de sua própria residência viola a causa do
devido processo. A Suprema Corte fixou: “Rule of Law – Legislation that makes consensual sodomy between adults in their own dwelling criminal, violates due process”
(STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law:
Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 93).
15 Sobre o originalismo, ver: SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. New Jersey:
Princeton University Press, 1997.
16 A decisão do caso foi de que a Suprema Corte tem o poder implícito, previsto no artigo
6º, § 2º, da Constituição, para revisar atos do Congresso e, se eles forem entendidos como
contrários à Constituição, para declará-los nulos. De fato: “Rule of Law – The Supreme
Court has the Power, implied from Article VI, § 2º of the Constitution, to review acts of
Congress and if they are found repugnant to the Constitution, to declare them avoid”
(STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law:
Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 2).
212
Revista da AJUFERGS / 09
impróprio, também entende o veto do Presidente Andrew Jackson [1832]
à legislação embasada no caso MacCulloch v. Mariland17 (1819).
Interessa notar que, no embate jurídico, os Justices tiveram acesso
aos mesmos documentos e às alegações das partes, mas tomaram decisões
diametralmente opostas ou, ao menos, pronunciadamente distintas, não
raro com toques de extremismo. A partir daí, procuraram convencer os
seus colegas, com as armas da retórica, de que suas posições seriam as
corretas, invocando o texto da Constituição, a teleologia ou os precedentes, sem deixar de incorrer, às vezes, na chamada “avareza cognitiva”18.
É certo que a decisão tomada pela maioria produz efeito direto sobre
as Cortes Federais e Estaduais. A publicação do voto dissidente, entretanto,
provavelmente leva a que cidadãos, que venham a compartilhar da posição
derrotada, justifiquem individualmente as suas crenças, as quais persistirão
objeto de debate, senão mais jurídico em sentido estrito, político e cultural.
Quando um Justice publica o dissenso, para que este fique consignado para a “história”, ele o faz com a presumida expectativa de que,
algum dia, os atores do processo político modificarão o entendimento
dominante e, assim, os Justices, em composições futuras, compartilharão
sua leitura constitucional19.
Claro, os votos dissidentes guardam vinculação (longe de inelutável)
com o contexto em que os Justices foram nomeados para a Suprema Corte, seja por um Presidente Democrata, seja por um Republicano. Mais:
17 A decisão do caso foi de que certos poderes federais que dão ao Congresso a discricionariedade e o poder para escolher e aprovar os meios para desempenhar deveres
impostos sobre ele são decorrentes da cláusula necessária e adequada. A Constituição
Federal e as leis feitas de acordo com ela são supremas e controlam as Constituições e as
leis dos Estados. De fato: “Rule of Law – [1] Certain federal powers giving Congress the
discretion and power to choose and enact the means to perform the duties imposed upon
it are to implied from the Necessary and Proper Clause. [2] The federal Constitution and
the laws made pursuant to it are supreme and control the constitutions and the laws of the
states” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional
Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 5).
18 Vide, sobre “cognitive miser”, Susan Fiske e Shelley Taylor in Social Cognition.
2. ed., New York: McGraw-Hill, 1991.
19 Para Tushnet, “[...] if you wrote your dissent for history, your assumption is that someday
the players will change — that is, that there will be new Justices on the Supreme Court
who might share your constitutional vision” (TUSHNET. Mark. I dissent. Great Opposing
Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. XVII).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
213
uma depressão econômica (como o Crash de 1929 ou a crise de 2008)20,
uma guerra popular ou impopular, intensas migrações demográficas ou
fatores dessa ordem costumam influenciar politicamente as decisões.
Exemplo de enraizamento político nas decisões da Suprema Corte
foi a plataforma do Partido Republicano que, já em 1860, tratava a escravatura como heresia política, em face da vergonhosa decisão no caso
Dred Scott. Outro exemplo foi a campanha de Richard Nixon para a
presidência da República, com o jargão Law and Order, cujas prometidas
nomeações de Justices para a Suprema Corte teriam objetivo de reverter
os precedentes criados pela Court Warren, que acolhiam normas liberais
e garantistas em matéria criminal.
Por sua vez, os democratas, nos anos 90, tentaram ostensivamente
atrair os votos dos eleitores afirmando que, se os candidatos republicanos
fossem eleitos, seriam nomeados para a Suprema Corte Justices que
substituiriam o decidido, no caso Roe v. Wade21.
Em outras palavras, a muitas vezes negada relação entre a política
e as decisões da Suprema Corte revela-se insofismável. Nessa medida,
como é induvidoso que o dissenso é importante para o aperfeiçoamento do
jogo político e para a diminuição de riscos e vieses associados à tomada
das decisões, no âmbito da Suprema Corte não se verifica exceção. A
Suprema Corte, na chamada Corte Roberts, encontra-se dividida, com
cinco juízes conservadores (nomeados por Presidentes Republicanos) e
quatro juízes liberais (nomeados por Presidentes Democratas). Constata-se viés conservador nas decisões da Corte; todavia, isso não significa
que haja completa previsibilidade dos julgados22.
20 Sobre a comparação entre a grande depressão e a crise de 2008, ver necessariamente:
KRUGMAN, Paul. The return of depression economics. London: Penguin Books, 2008.
No mesmo sentido, na defesa de uma regulamentação racional do mercado para que se
evitem as falhas do capitalismo, ver: POESNER, Richard. A failure of capitalism. The
Crisis of 08 and the Descent into Depression. Cambridge: Harvard University Press,
2009. E, também, mais recentemente: POESNER, Richard. The crisis of capitalism
democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
21 Ver: TUSHNET. Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme
Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. XVII-XVIII.
22 Sobre a divisão atual da Suprema Corte, Corte Roberts, e sua tendência conservadora,
ver: TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York:
W.W. Norton & Company, 2013.
214
Revista da AJUFERGS / 09
Sem dúvida, o dissenso pode causar imprevisibilidade, conquanto tenha
o mérito inegável de mitigar a polarização. Uma das razões para a assertiva
é que juízes que pensam de igual modo apresentam a tendência de tomar
decisões extremadas em órgãos colegiados23. Como refere Sunstein, o sólido
debate entre juízes é crucial para assegurar que os argumentos sistemáticos
(textuais e consequenciais) encontrem contra-argumentos razoáveis. Os
juízes, onde o dissenso é aceito, tendem a levar em conta não apenas a
visão dos seus colegas, mas a da sociedade como um todo. É que a voz da
sociedade ecoa no voto descoincidente, algo que pode trazer informações
relevantes para os juízes que inevitavelmente preocupam-se com sua própria
reputação24. A possibilidade do dissenso enseja, portanto, novas angulações
do enquadramento25 e garante vitalidade democrática aos Tribunais.
De fato, está demonstrado estatisticamente que a possibilidade de dissenso tende a produzir decisões mais ponderadas nos órgãos colegiados do
Poder Judiciário americano. Nas Cortes Federais, por exemplo, compostas de
três membros por painel de julgamento, tal fenômeno pode ser comprovado.
Quando as decisões são tomadas por painéis compostos apenas por democratas ou só por republicanos, existe boa chance de decisões extremadas no
sentido de posições ora liberais, ora conservadoras, muito mais radicais do
que seriam se os juízes decidissem a causa sozinhos. É que três magistrados,
ao pensarem em uníssono (liberais ou conservadores), sofrem a propensão
de radicalizar se não receberem o contraponto de visão divergente.
Nessa lógica, em painéis compostos por juízes republicanos, há forte
inclinação para que sejam adotadas decisões mais extremadas26 no sentido
23 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University
Press, 2005, p. 212.
24 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University
Press, 2005, p. 168.
25 Vide Amos Tversky e Daniel Kahneman in “The Framing of decisions and the psychology of choice”. Science, v. 211, p. 453-458, 1981.
26 Como refere Sunstein, “a tendência ideológica dos juízes tende a ser amplificada
se uma juíza compõe um painel com outros juízes do mesmo partido político. Por
exemplo, um juiz Republicano deveria ser mais tendente a votar num estilo estereótipo
mais conservador se acompanhado por dois republicanos”. Nesse sentido: “A judge’s
ideological tendency is likely to be amplified if she is sitting with two judges from the
same political party. For example, a Republican Judge should be more likely to vote in a
stereotypically conservative fashion is accompanied by two Republicans” (SUNSTEIN,
Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 168).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
215
da vedação de ações afirmativas, da negação de pleitos que envolvam discriminação sexual, menor regulação sobre a poluição ambiental, desregulamentação dos mercados e proibição do aborto. Contudo, se o painel for
apenas de democratas, a tendência será de que a posição sobre tais matérias
seja invertida e assuma posições extremadas no sentido oposto. Ou seja,
havendo painéis que mesclem juízes republicanos e democratas, as decisões
tendem a ser mais ponderadas em virtude do tempero das cosmovisões
distintas sobre o direito e a sociedade27, salvo se a técnica do confronto
erístico, em vez do argumento persuasivo, acirrar ainda mais os ânimos.
Logo, ao menos à primeira vista, no atual estágio, os dissensos são
mecanismos valiosos para evitar polarizações e efeitos cascata negativos,
os quais, por ausência de contraste dialético, levam às decisões equivocadas28, desmedidas e unilaterais. Com acerto, refere Sunstein que as
sociedades funcionam melhor se tomarem medidas para desencorajar o
conformismo e promover o dissenso, via proteção dos direitos daqueles
que expõem posição divergente29.
Mais: é manifesta a ligação entre a confiança excessiva e o extremismo. Pessoas confiantes em excesso são mais predispostas às polarizações
de opinião30. Os juízes não fogem a essa regra quando deliberam em
órgão colegiado avesso ao dissenso.
A Suprema Corte, influenciada por inevitáveis biases, aplica o direito
levando em conta o texto da Constituição, princípios, valores, razões
históricas, contextos econômicos, sociais e sensivelmente políticos, haja
vista a sua origem. Negar esse fato seria escamotear evidências históricas
e debilitaria uma reflexão crítica acerca da hermenêutica constitucional,
que não se resume a dogmas e cânones impotentes para superar assuntos
difíceis que desafiam os olhares ortodoxos.
27 Ver sobre o tema: SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard
University Press, 2005, p. 168. E, também, POESNER, Richard A. How judges think.
Cambridge: Harvard University Press, 2010.
28 Nesse sentido, ver: SUNSTEIN, Cass. Going to Extremes. How Like Minds Unite
and Divide. New York: Oxford University Press, 2009.
29 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press,
2005, p. 213.
30 Como refere Sunstein, “[...] because of the link between confidence and extremism,
the confidence of particular members also plays an important role; confident people are
more prone to polarization” (SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge:
Harvard University Press, 2005, p. 129).
216
Revista da AJUFERGS / 09
2 Exame de dissensos na Suprema Corte norte-americana
Determinados votos vencidos na Suprema Corte já podem ser avaliados com relativa segurança pela doutrina e pela sociedade não apenas
americana, mas de todo o mundo. Nesses casos, ao que tudo indica, existe
distanciamento histórico suficiente que permita apreciação razoavelmente
precisa da motivação e dos efeitos diretos e indiretos da decisão tomada.
Nessa linha, a escolha recairá sobre rumorosos votos vencidos nos
casos Dred Scott v. Sanford, Plessy v. Ferguson e Lochner v. New York,
muito embora dezenas de outros dissensos, em casos relevantes, fossem
dignos de reflexão, em face do contributo à formação plural do constitucionalismo norte-americano.
2.1 Dred Scott v. Sanford (1857)31
Dred Scott considerava-se um homem livre, pois o seu antigo “proprietário”, John Emerson, cirurgião militar, o havia levado do Estado do
Missouri, localidade em que a escravatura era permitida, para o Illinois,
onde a escravidão era vedada. Passados alguns anos, Dred Scott, após
passar por vários Estados onde a escravatura havia sido banida, retornou
ao Missouri e requereu sua liberdade perante a justiça local em processo
ajuizado contra a viúva de John Emerson. Venceu a demanda, no primeiro
grau, em 1850.
Todavia, a Corte do Estado do Missouri substituiu a decisão, em
grau de recurso, alegando que Dred Scott havia retornado voluntariamente para o Estado. Após novo casamento da então viúva de Emerson,
a “propriedade” de Scott passou ao irmão dela, John Sanford, que residia
em Nova York.
Dred Scott, desta vez, processou Sanford, requerendo a sua liberdade
em Corte Federal, em virtude da diversidade de jurisdição (o autor e o
réu eram de diferentes Estados), tendo sido o caso decidido, em 1854,
contra a pretensão de Scott. Compreensivelmente inconformado, Scott
levou a questão à Suprema Corte, que conheceu o recurso e o julgou. A
lamentável maioria dos membros da Corte entendeu que o fato de Scott
31 Scott v. Sandford, 60 U.S. [19 How] 393 [1857].
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
217
ter vivido em Estado no qual não se admitia a escravatura não o tornava
um homem livre e, sendo negro, não teria sequer o direito de propor uma
ação judicial. A Corte acolheu o argumento da defesa de que o proprietário
de escravos não poderia ser privado de sua propriedade, “o escravo”,
sem o devido processo legal. Os votos da maioria foram capitaneados
pelo voto condutor do Justice James Wayne, que considerou não ter o
Congresso o poder de proibir a escravatura nos territórios e de privar
os donos dos escravos da propriedade sobre eles quando mudassem de
Estado, sem o devido processo legal32.
Justice Curtis dissentiu suscitando o debate sobre questões como
raça, igualdade, federalismo, o papel do Judiciário e, em especial, características básicas da política americana. O voto de Curtis pode ser
criticado no ponto em que sustenta a autoridade dos Estados para qualificar quem são os seus cidadãos, mas é correto quando insiste que a
visão da sociedade americana era fundamentalmente igualitária. Nesse
aspecto, bem referiu que a raça não era uma qualificação de cidadania,
segundo a Constituição.
Em resposta ao Justice Taney (pró-escravatura), que entendia que
os negros não podiam votar porque não teriam a qualificação de eleitores em alguns Estados, Curtis fez constar no voto dissidente a sua
irresignação com essa posição supostamente “intencionalista” e, com
base em evidências históricas, observou que, quando da promulgação
da Constituição, em 1787, cinco das treze Colônias já reconheciam os
negros como cidadãos. Os negros desses Estados, de fato, ratificaram a
Constituição como cidadãos e, desse modo, restava rechaçado o frágil
argumento de que seriam incapazes de autodeterminação.
Ainda em resposta à afirmação do Justice Taney, no sentido da ausência de cidadania pela incapacidade de votar dos negros em determinados
Estados, Justice Curtis referiu que o conceito de cidadania era mais amplo
32 Segundo Mark Tushnet, o caso Dred Scott v. Sanford é usualmente citado como a
primeira decisão que utilizou a cláusula do devido processo como justificativa para negar
os poderes do governo para regular a propriedade e a liberdade. Nesse sentido, o devido
processo substantivo floresceu no início do século 1920 como uma proteção ao direito
de propriedade, mas esteve desacreditado até o final de tal século, quando ele retornou
como um veículo para a proteção da privacidade e a autonomia individual (TUSHNET,
Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston:
Beacon Press, 2008, p. 42).
218
Revista da AJUFERGS / 09
do que o simples exercício do voto e, mais ainda, a ausência desse direito
não seria determinante para a definição do cidadão. Outra nota significativa
do dissenso do Justice Curtis foi o reconhecimento da competência do
Judiciário Federal para reforçar e reconhecer direitos civis.
No centro do debate, estava uma das grandes causas da Guerra
Civil33, sobre a qual Justice Curtis manifestou-se se opondo à posição
do Justice Taney, no sentido de que o Congresso não teria poderes para
banir a escravatura dos territórios e o direito de propriedade sobre os
escravos. O voto dissidente reconheceu a prevalência dos poderes da
legislatura nacional sobre as estaduais.
A visão exposta no voto dissidente estava impregnada da mistura
entre a discrição legislativa com o escrutínio judicial mínimo. No entanto,
o voto foi relevante e, por certo, auxiliou o fomento da luta antiescravagista. Apesar disso, não enfrentou de maneira frontal questões nevrálgicas
que poderiam ser ventiladas com maior robustez, tais como os direitos
de igualdade e liberdade de todos os seres humanos, sem distinção.
A tentativa de convencer a posição majoritária, exposta no voto dissidente, é marcada por evidentes subterfúgios e não foi clara em defender
a autodeterminação e a isonomia características da liberdade. Como
atenuante, teve o mérito de se levantar contra a engrenagem social da
época, tendo presente que vários dos Framers, incluindo abolicionistas,
eram proprietários de escravos, como Thomas Jefferson34. Como quer
que seja, uma afronta mais dura aos argumentos majoritários dos Justices
poderia ter ocorrido, embora com escassa chance de convencimento à
vista da maioria obscurantista que dominava a Corte.
No Tribunal da História, a decisão da maioria foi extremamente
criticada e tornou-se um dos principais alvos de Abraham Lincoln, em
sua campanha presidencial, no discurso da Casa Dividida, em 185835.
Posteriormente à guerra civil entre norte e o sul, o Congresso aprovou a
33 Para a consulta de uma das melhores obras recentes sobre a história da Guerra Civil Americana, ver: MCCULLOUGH, David. 1776. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2005.
34 Sobre a vida de Thomas Jefferson, ver MEACHAN, Jon. Thomas Jefferson: the art
of power. New York: The Randon House Publishing Group, 2012.
35 LINCOLN, Abraham. House Divided Address. Chicago: Illinois State Historical
Society, 1957. Ver também: LINCOLN. Abraham. Collected Works of Abraham Lincoln.
v. 1. New Brunswick: Rutgers University Press, 1953.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
219
13ª Emenda, que aboliu a escravatura, no ano de 1865, e a 14ª Emenda,
que outorgou cidadania aos antigos escravos, no ano de 1868.
Eis exemplo de decisão majoritária infame, que envergonha a maioria
do povo americano e mancha a história da Suprema Corte. Poderia ter
sido evitada, como prova o voto vencido, que afasta a tese dos fatalistas
retrospectivos. A decisão foi o resultado do viés do status quo iníquo e
lesivo à Rule of Law, revelando o fracasso do estrito construcionismo, eis
que o seu “fundamento” alicerçou-se numa pretensa intenção dos Framers.
É instigante a reflexão de Tushnet quando, ao mesmo tempo em que
admite a pouca relevância do caso no cotejo com os efeitos da Guerra
Civil e das 13ª e 14ª Emendas, suscita o questionamento contrafactual
sobre se a Guerra Civil, trágica como todas as guerras, teria ocorrido se
a posição dissidente do Justice Curtis tivesse prevalecido36.
Impossível saber a resposta exata. Entretanto, é viável imaginar que
a Guerra poderia ter sido evitada se outra fosse a decisão da Suprema
Corte, embora seja certo que a irresignação diante da maioria dos juízes
auxiliou Lincoln na sua defesa do abolicionismo, nos célebres debates
contra Stephen Douglas na corrida presidencial.
Ainda que se possam fazer críticas pontuais à timidez do Justice
Curtis, é inegável que esse julgador entrou positivamente para história por
ter tido a coragem e a lucidez de dissentir e não se deixar contagiar pela
maioria racista, arbitrária e insensível que optou pela escravatura, chaga
até hoje não cicatrizada na sociedade norte-americana (e não só nela).
2.2 Plessy v. Ferguson (1896)37
Mesmo após a abolição da escravatura nos Estados Unidos, com a 13ª
Emenda e com a 14ª Emenda, que outorgou cidadania aos ex-escravos,
36 Afirmou Tushnet que “the effects of the Civil War and the Thirteenth and Fourteenth
Amendments made the Dred Scott case seem irrelevant for many years, and the decisions remains the one Supreme Court decision that only a handful of scholars attempt
to defend. In one sense, then, the most interesting question about the decision is this:
would the Civil War have occurred – when it did, earlier, later – had Justice Curtis’s
position prevailed?” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark
Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 42).
37 Plessy v. Ferguson 163 U.S. 537 [1896].
220
Revista da AJUFERGS / 09
os direitos humanos dos negros continuaram violados, com complacência
jurisprudencial, em face da interpretação conferida à cláusula da equal
protection, à vista da bárbara segregação dos negros prevista em leis
de diversos Estados. No ano de 1890, o Poder Legislativo da Louisiana
aprovou lei determinando que brancos e negros ocupassem vagões separados, mas iguais, nos trens.
Essa medida desagradou os proprietários dos trens pelo aumento do
custo na operação e, claro, os afro-americanos de Louisiana. Um grupo,
em New Orleans, resolveu impugnar a constitucionalidade do Estatuto
em juízo. Como autor o escolhido foi Plessy, que era 7/8 caucasiano
(bisneto de um negro) e possuía a cor da pele branca. Ainda assim, pela
tez amorenada, tinha sido impedido de sentar em um assento de vagão
reservado apenas para brancos e preso por resistência à ordem de sair do
trem. Plessy foi condenado, pois a cláusula da equal protection permitiria,
segundo interpretação esdrúxula da Corte Estadual, a segregação racial.
Plessy foi representado em juízo pelo famoso advogado, escritor e
diplomata, Albion Tourgee38. Este alegou que a segregação estigmatizava
“pessoas de cor” e as colocava sob o prisma da inferioridade. Também
invocou a violação das 13ª e 14ª emendas da Constituição. A Suprema
Corte, apesar desses argumentos irrespondíveis, entendeu que Plessy
não tinha razão e que a lei estadual previa razoável poder de polícia do
Estado baseado nos costumes locais.
Justice Brown, autor do voto condutor, alegou que a segregação era
razoável desde que baseada “em costumes, usos e tradições das pessoas
dos Estados, com uma visão de manutenção do seu conforto e serviria
para preservar a ordem e a paz pública”39. Assinalou – de modo bizarro,
segundo o Tribunal da História – que aquela lei não seria derivativao da
escravatura e que as Emendas 13ª e 14ª não haviam sido violadas. Referiu
que a separação das raças não seria característica da inferioridade e da
servidão dos negros, como referido por Plessy, nas suas alegações pe38 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court
Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 69.
39 “In determining the question of reasonable-ness, [the legislature] is at liberty to act
with reference to the promotion of their comfort, and the preservation of the public peace
and good order” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th
ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 671).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
221
rante a Suprema Corte40. Para o referido Justice, o objeto da 14ª Emenda
foi o de reconhecer a absoluta igualdade de raças perante a lei, mas, de
acordo com a “natureza das coisas”, não poderia ter sido a intenção do
Congresso abolir as distinções baseadas na cor.
A maioria da Suprema Corte, nessa toada irracionalista, entendeu
que a 14ª Emenda protegia apenas direitos civis, e não “direitos sociais”.
Os “direitos civis” incluíam os direitos de o proprietário formalizar
contratos, e, por outro lado, os “direitos sociais” seriam reconhecidos
apenas como direitos de associação. Nessa perspectiva enviesada, e hoje
tida como grotesca, a Lei de Louisiana não impediria o direito de Plessy
formalizar contrato com a empresa de trem para comprar um ticket de
passagem; contudo, os vagões, iguais, deveriam ser separados entre as
raças (equal but separate) para ocupação e uso.
A infame posição majoritária defendeu que uma legislação não
poderia erradicar o preconceito nem poderia anular instintos humanos.
Ou seja, a maioria firmou o entendimento anticientífico e conservador
de que se “uma raça é inferior a outra socialmente, a Constituição dos
Estados Unidos não pode colocá-las no mesmo plano”41.
No entanto, Justice Harlan dissentiu. Ponderou que a lei estadual
segregacionista interferia, sim, como era evidente, com na liberdade dos
indivíduos de se associarem livremente. Para o prolator do voto dissidente, todos os cidadãos deveriam ser tratados igualmente. Como cidadãos,
os negros deveriam ter todas as prerrogativas e todos os direitos previstos
na Constituição, e a segregação seria inadmissível opressão sobre tais
prerrogativas e liberdades42. Para Justice Harlan, com senso correto dos
deveres de universalização, nos Estados Unidos “não existe uma classe
dominante ou de cidadãos superiores. Não existem castas aqui. Nossa
40 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 673.
41 “Laws are powerless to eradicate racial instincts... If one race be inferior to the other
socially, the constitution of the United States cannot put them upon the same plane”
(Plessy v. Ferguson – 1896).
42 Ver: STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional
Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 53.
222
Revista da AJUFERGS / 09
Constituição é cega em relação à cor, e nem conhece ou tolera classes
entre cidadãos”43.
Enfatizou corretamente que os destinos estão indissociavelmente ligados e os interesses de todos, brancos e negros, exigem governo comum,
que não deve permitir que o ódio racial seja alimentado pela sanção de uma
lei (no caso a lei segregacionista)44. Para Justice Harlan, a condenação de
Plessy deveria ser revertida e a lei do Estado da Louisiana anulada.
Harlan foi profético, durante o julgamento, ao alertar para as externalidades nocivas daquela decisão majoritária. De fato, após a teratológica
decisão, várias leis locais permitiram a segregação dos negros, com amparo na doutrina sofística e falaciosa do equal but separate, em escolas,
restaurantes, banheiros, transportes públicos e hotéis. Insistente no erro,
a Suprema Corte continuou permitindo a segregação nos casos Berea
College v. Kentucky (1908), Corrigan v. Buccley (1926) e Gong Lum v.
Rice (1927)45. Tushnet observa, com propriedade, que a decisão da Corte,
em Plessy, incentivou várias legislações e medidas segregacionistas no
sul, notadamente em relação às escolas46.
Paradoxalmente, a declaração do Justice Harlan de que “a Constituição é cega quanto à cor” tem sido utilizada, nos Estados Unidos,
para alegar a inconstitucionalidade de leis que estabelecem programas
de ações afirmativas com base na raça. Trata-se de distorção, uma vez
que a pretensão do Justice Harlan era bem outra: defender a igualação.
Ora, nada impede que uma ação afirmativa desempenhe papel iguala43 “But in view of the Constitution, in the eye of the law, there is in this country no
superior, dominant, ruling class of citizens. There is no caste here. Our Constitution
is color-blind, and neither knows nor tolerates classes among citizens” (GUNTHER,
Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation
Press, 1997, p. 671).
44 “The destinies of the two races [are] indissolubly linked together, and the intests
of both require that common government of all shall not permit the seeds of race hate
to be planted under the sanction of law” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen.
Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 673).
45 WEDY, Gabriel. Tinga e a intolerância globalizada. Jornal Zero Hora, Porto Alegre,
p. 15, 09 abr. 2014.
46 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court
Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 78.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
223
dor, ainda que transitória. Quer dizer, Justice Harlan estava preocupado
com leis que considerassem uma raça dominante sobre as outras ou que
reconhecessem uma raça como inferior47.
Conforme adverte Tushnet, “como todas as grandes opiniões, a do
Justice Harlan está aberta a interpretações e o seu significado depende do
que os seus últimos leitores querem fazer com ela”48. Esse, porém, foi um
voto vencido de legado superavitário. Nada obstante, embora para o Justice
Harlan a Constituição fosse cega para as cores (color-blind), ele dificilmente o seria para outros preconceitos de sua época. Com efeito, no seu voto,
manifestou preocupação com o fato de que os “chineses” residentes nos
Estados Unidos pudessem entrar nos carros reservados para os brancos,
enquanto afro-americanos, que eram cidadãos dos Estados Unidos, estavam
proibidos. No sentido do asseverado por Tushnet, não é difícil notar traços
de segregacionismo no fato de que o próprio Justice Harlan esperava que
a raça branca permanecesse dominante no país, embora não legalmente49.
Hoje, a visão dos direitos civis é mais robusta: a Rule of Law tem
de garantir aos direitos civis exercício e pleno gozo, como uma condição
fundamental. Não há dúvida de que o voto dissidente do Justice Harlan, em
que pesem fragilidades pontuais, foi de grande importância para fomentar
o debate público sobre a perversa segregação que privou os negros de
compartilharem locais públicos e privados com os brancos em menoscabo
à igualdade e à dignidade. O voto anteviu e serviu de esteio para o célebre julgamento de Brown v. Board of Education, que, em 1954, reputou
inconstitucional a segregação nas escolas públicas nos Estados Unidos.
47 Para Tushnet: “There is no caste here, and other phrases in the opinion suggest that
Justice Harlan was concerned about laws that made one race dominant over others or that
assumed that one race was inferior and degraded – characterizations that can be applied
only with some difficulty to affirmative action’s programs” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great
Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 79).
48 Segundo Tushnet: “Like all great opinions, Justice Harlan’s is open to interpretation,
its meaning depending on what later readers want to make of it” (TUSHNET, Mark. I
dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon
Press, 2008, p. 79).
49 Refere Tushnet que “it is not hard to feel some racism in that concern. And Justice
Harlan expected “the white race” to remain dominant in the country — socially, but not
legally” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme
Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 79-80).
224
Revista da AJUFERGS / 09
Aliás, quando o caso Brown foi julgado, a situação era irreversível
para a Suprema Corte norte-americana, uma vez que os julgamentos nos
casos McCabe v. Atchison, Topeka & Santa Fe Railway (1914), Gaines
v. Canada (1938), Sweat v. Painter (1950) e MacLaurin v. Oklahoma
State Regents, decidido no mesmo dia do caso Sweat, já haviam minado
a interpretação do equal but separate.
No caso McCabe, a Corte entendeu inconstitucional a lei do Estado
de Oklahoma que desobrigava as empresas exploradoras das vias férreas
de oferecerem instalações como cabines de dormir, sala de jantar e cadeiras individuais para os vagões dos negros, ainda que oferecessem tais
vantagens para os brancos. O argumento do Estado de Oklahoma foi de
que havia pouca demanda dos negros para viagens de trem50.
Em Gaines, após a NAACP (National Association for Advancement
of Colored People) ter iniciado uma campanha contra as leis segregacionistas (Jim Crown Laws), a Suprema Corte decidiu ser inconstitucional
lei do Estado do Missouri que permitia ao Estado matricular os negros,
com o fornecimento de voucher, em Universidades de Estados vizinhos
e não segregadas. Esse julgamento ocorreu pelo fato de ter sido negada, a
um afro-americano, a admissão na Faculdade de Direito da Universidade
do Missouri, destinada apenas para brancos, isso porque a Universidade
destinada aos negros no Estado, a Lincoln University, não tinha faculdade de Direito para os afro-americanos. A Suprema Corte entendeu que
referida lei violava a cláusula do equal but separate51.
50 Segundo Strauss: “In MacCabe v. Athinson, Topeka & Santa Fe Railway, decided
in 1914, the Court dealt whit an Oklahoma law requiring separate-but-equal railroad
facilities. This law, however, said, that a railroad could have sleeping, dining, and chair
cars for whites even if it did not have those kinds of cars for blacks. The state defended
the law by arguing that there was essentially no demand from blacks for those facilities.
The Court rejected the state’s argument and struck down the law” (STRAUSS, David A.
The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 86).
51 Como refere Strauss: “In Missouri ex rel. Gaines v. Canada, an African-American
student was denied admission to the all-white University of Missouri Law School. Missouri operated an all-black state university, Lincoln University, that did not have a law
school. Instead, Missouri law authorized state officials to arrange for blacks to attend
law school in neighboring states and to pay their tuition. The Court rule that this voucher
scheme not satisfy separate but equal” (STRAUSS, David A. The Living Constitution.
New York: Oxford University Press, 2010, p. 87).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
225
No caso Sweatt, a Suprema Corte decidiu que a Faculdade de Direito
que o Estado do Texas tinha disponibilizado para os negros não era igual
a Texas Law School, frequentada apenas por brancos52.
O caso McLaurin talvez tenha sido o mais emblemático e decisivo
para o fim do equal but separate, porquanto foi decidido que essa regra,
emanada de Plessy e criticada pelo Justice Harlan, não bastava. George
McLaurin foi admitido em uma Universidade apenas para brancos; todavia, tinha um lugar especial na sala de aula, deveria sentar-se sozinho na
cafeteria e tinha uma mesa especial na biblioteca. A Corte entendeu que
tais condições eram “prejudiciais à capacidade de estudo de McLaurin e
no seu engajamento nos debates e troca de visões com outros estudantes
e, em geral, para a sua formação profissional”53.
Esses casos foram minando as leis segregacionistas que, no início,
tiveram a enfrentá-las voz dissidente – e quase solitária – do Justice Harlan. Contudo, mesmo após a decisão do caso Brown, vários Estados do
sul dos Estados Unidos continuaram a desafiar a decisão até a aprovação
do Civil Rights Act of 196454, que foi uma referência no plano legislativo
em defesa dos direitos civis, por haver declarado de modo expresso a
ilegalidade de qualquer discriminação baseada em raça, cor, religião,
sexo ou origem nacional.
Como bem observado por Ackerman na recente obra que completa
sua trilogia, We the People, inicialmente, com o Civil Rights Act of 1964, os
americanos começaram a resolver uma década de debates provocados por
Brown para dar a ele apoio sustentado por uma legislação de referência que
repetidamente reafirmou os princípios de Warren. E, nesse exemplo-chave, o
esforço para redefinir o rumo interpretativo constitucional e incluir estatutos
de referência teve a paradoxal consequência de exigir que os advogados/
52 Segundo Strauss: “In Sweatt v. Painter, the Court held that a law school that Texas
had established for African Americans was not equal to the University of Texas Law
School... The newly established school could not possibly match the University of Texas
in those respects” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford
University Press, 2010, p. 89).
53 Assinala Strauss: “The Court explained that these conditions harmed McLaurin’s
ability to study, to engage in discussions and exchange views with other students, and,
in general, to learn his profession” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New
York: Oxford University Press, 2010, p. 89-90).
54 Pub.L. 88-352, 78 Stat. 241, enacted July 2, 1964.
226
Revista da AJUFERGS / 09
operadores do Direito levassem a Suprema Corte mais a sério e tratassem o
caso Brown pelo que ele foi: a maior decisão judicial do século XX55.
É de reiterar que o Justice Harlan teve importante papel nesse processo de consolidação da defesa dos direitos civis, a despeito das críticas
que se possam fazer à mencionada timidez dos argumentos utilizados
naquele momento histórico.
2.3 Lochner v. New York (1905)56
Posteriormente à Guerra da Secessão, os efeitos da revolução industrial
atingiram os Estados Unidos de modo intenso. Espalharam-se pelo país
grandes e pequenas indústrias e negócios privados de todo o tipo, gerando
crescimento econômico e aumentando as populações nas grandes cidades.
Incrementaram-se as relações contratuais entre empregadores e empregados, baseadas na lei da oferta e procura, seguindo a teoria econômica
do laissez-passer e do laissez-faire vigente na época. Os trabalhadores
passaram a se sindicalizar para aumentar o seu poder de barganha em
favor de melhores salários e condições laborais, inclusive limitação na
jornada de trabalho.
Nesse cenário, o Estado de Nova York aprovou lei limitando a jornada dos padeiros em dez horas por dia e sessenta horas por semana com
a finalidade de proteger a saúde dos empregados. As grandes padarias
não foram tão atingidas com a lei das dez horas; todavia, as pequenas
padarias, sem muitos recursos, sentiram-se afetadas.
Joseph Lochner, proprietário de pequena padaria em Utica, Nova
York, descumpriu a lei “das dez horas” e sofreu multa de U$ 50,00, prevista na legislação do Estado. Irresignado, contratou, ironicamente, um
55 Para Ackerman: “Beginning with the Civil Rights Act of 1964, Americans began to
resolve the decade of debated provoked by Brown by giving their sustained support to
landmark legislation that repeatedly reaffirmed Warren’s principles. In this key instance,
the effort to redefine the constitutional canon to include landmark statutes has the paradoxical consequence of requiring lawyers to take the Supreme Court more seriously
and treat Brown for with it was: the greatest judicial opinion to the twentieth century”
(ACKERMAN, Bruce. We the People. The Civil Rights Revolution. v. 3. Cambridge:
The Belknap Press of Harvard University, 2014, p. 317).
56 Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
227
ex-líder sindical dos padeiros, Henry Weissmann, que, nessas alturas,
possuía a sua própria padaria, para impugnar em juízo a legislação.
A Suprema Corte dos Estados Unidos acolheu por cinco a quatro o
pedido de Lochner. Segundo o Justice Rufus Peckham, prolator do voto
condutor, não seria justo e razoável o exercício do poder de polícia do
Estado. E, ao contrário, referiu que seria interferência desnecessária na
liberdade do indivíduo para avençar contratos de trabalho que possam
ser apropriados para o sustento seu e de suas famílias57.
A Corte afastou a alegação de que uma jornada com mais de dez
horas pudesse ter alguma conexão e causar prejuízos à vida e à saúde dos
trabalhadores. A maioria dos Justices rejeitou o argumento de que as longas
jornadas de trabalho, superiores a dez horas, colocariam em risco a higiene
e a qualidade dos pães e, por extensão, a segurança dos consumidores. O
Justice Peckham afirmou “que os empregados não eram mais explorados
que outros trabalhadores, nem eram os padeiros uma classe desigual em
inteligência e capacidade do que os homens dos outros comércios”. Os
padeiros “poderiam reivindicar os seus direitos e zelar, eles próprios, por
estes na barganha com os seus empregadores”58, sem a necessidade de
regulação estatal. O direito de contratar restou garantido como parte da
liberdade do indivíduo tutelada pela 14ª Emenda, e o direito de comprar
ou vender a força de trabalho foi reconhecido como parte da liberdade protegida pela referida emenda59. Referiu o Justice, ainda, que a 14ª Emenda
limitava o poder de polícia dos Estados60.
57 Ver TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme
Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.
58 Para o Justice Peckham: “Bakery employees were no more exploited than any other
workers, nor were bakers as a class [un] equal in intelligence and capacity to men in
other trades. They could assert their rights and care for themselves in their bargaining
with their employers”. Ver: TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in
Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.
59 Como afirmado pelo Justice Peckham: “The general fight to make a contract in relations
to one’s business is part of the liberty of the individual protected by the Fourteenth Amendment. The right to purchase or sell labor is part of the liberty protected by this amendment”
(STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law:
Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76).
60 Ver: STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional
Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76.
228
Revista da AJUFERGS / 09
A inclemente posição majoritária foi no sentido de que não existia
relação direta entre a limitação da jornada de trabalho e a saúde dos
empregados que pudesse justificar uma regulação do Estado de Nova
York por via legislativa. A crítica à lei formulada pela maioria foi de
que seu real objetivo e seu propósito era regular as horas de trabalho
entre empregadores e empregados, em negócio privado, não perigoso
para a moral ou para a saúde dos empregados. Em tais circunstâncias, a
liberdade de empregador e empregado ajustarem a relação de emprego
não poderia sofrer intervenção sem violar a Constituição61.
Em boa hora, os Justices Harlan, White e Day dissentiram no sentido
de que a liberdade de contratar não poderia ser violada, mas estaria, sim,
sujeita a uma política de regulação razoável. A intenção da lei aprovada,
para os dissidentes, foi a de proteger o bem-estar daqueles que trabalham
nas padarias62. Citaram o festejado tratado do Professor Hirt, intitulado
Doenças dos Trabalhadores, que descrevia os efeitos nefastos do trabalho
dos padeiros sobre a saúde, dado que realizavam grande esforço físico,
em locais superaquecidos, por longas horas e labutando grande parte do
tempo durante a noite para atender à demanda do público63. Constou nos
votos dos Justices, embasados em referências médicas, que a continuada
inalação de poeira causava inflamação nos pulmões e nos brônquios,
afetando também os olhos dos padeiros. Tal trabalho extenuante causava
reumatismo, câimbras e fraqueza nas pernas. Os padeiros ficavam com
o rosto pálido, a saúde debilitada – decorrente de seu modo irregular e
pouco natural de vida – e privados do sono reparador. A média da expectativa de vida dos padeiros era menor que a dos demais trabalhadores,
61 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 463.
62 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 463.
63 Segundo os Justices Harlan, White e Day, “Professor Hirt in his treatise on the ‘Diseases of the Workers’ has said: The Labor of the bakers is among the hardest and most
laborious imaginable, because it has to be performed under conditions injurious to the
health of those engaged in it. It is hard, very hard work, not only because it requires a
great deal of physical exertion in an overheated workshop and during unreasonably long
hours, but more so because of the erratic demands of the public, compelling the Baker
to perform the greater part of his work at night” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN,
Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
229
não atingindo eles, em sua maioria, os cinquenta anos de idade64. Para
os três dissidentes, a decisão deveria levar em consideração o poder
inerente dos Estados para zelar pela vida, pela saúde e pelo bem-estar
dos seus cidadãos65.
Justice Holmes foi o quarto a dissentir, só que por outros fundamentos. Referiu que o caso estava sendo decidido pela maioria com base em
teoria econômica (laissez-faire, laissez-passer), que grande parte do país
não aprovava. Aduziu que a Suprema Corte já havia reconhecido, como
constitucional, a regulação, em vários casos, como na lei de usura, na lei
dos domingos, na proibição de loterias, na lei de vacinação obrigatória no
Estado do Massachusetts e na decisão que limitou a oito horas a jornada
de trabalho nas minas66.
Como referem Gunter e Sullivan, desde a decisão de Lochner,
de 1905 até meados dos anos 1930, a Suprema Corte invalidou várias
leis com base no substantive due process. Como no caso Lochner, as
invalidações pela Corte de leis regulatórias provocaram dissensos, mais
frequentemente capitaneados pelo Justice Holmes e, mais tarde, pelos
Justices Brandeis, Stone e Cardoso. Durante a Era Lochner, cerca de
duzentas leis regulatórias foram anuladas67.
Os votos dissidentes tiveram papel de notável peso nos debates
públicos que se seguiram e, em especial, o voto dissidente do Justice
Holmes, na decisão de Williamson v. Lee Optical Co.68, que praticamente
sepultou a Era Lochner. O uso do (in)devido processo legal, utilizado
para justificar a autonomia da vontade privada, foi afastado. Passou-se,
finalmente, a exigir do legislador uma adequação entre os meios e os
fins, atendendo ao princípio da razoabilidade.
64 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 464.
65 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 464.
66 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court
Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 88.
67 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York:
The Foundation Press, 1997, p. 466.
68 Williamson v. Lee Optical Co. 348 U.S. 483, 75 S.Ct. 461, 99 L. Ed. 563 (1955).
230
Revista da AJUFERGS / 09
No mencionado caso, o Estado de Oklahoma regulou, via legislativa,
a obrigatoriedade da prescrição médica de oftalmologista ou optometrista
para a substituição, duplicação e instalação de lentes em novas armações.
Os oculistas (não médicos) alegaram que a legislação violava o princípio
do devido processo legal, pois o procedimento era mecânico. A Suprema Corte entendeu que caberia ao Poder Legislativo, e não ao Poder
Judiciário, ponderar as vantagens e as desvantagens da nova exigência.
A Corte considerou que, em alguns casos, as orientações contidas nas
prescrições médicas eram essenciais para que os óculos fossem regulados
para corrigir problemas de visão e aliviar as condições oftalmológicas
de modo a corrigir os defeitos particulares de visão.
Constou no voto da maioria que o legislador pode ter concluído
que exames oftalmológicos eram tão importantes não apenas para a
correção da visão, mas também para a detecção de males ou doenças
latentes. Assim, cada mudança de armações e cada duplicação de lentes
deveriam ser acompanhadas pela prescrição de especialista médico. O
voto foi claro no sentido de que “[...] é passada a época em que esta
Corte usava a cláusula do devido processo legal para anular leis estaduais, reguladoras de condições comerciais e industriais, porque elas
eram consideradas insensatas, inoportunas ou contrárias a uma particular
escola de pensamento”69.
Não existe dúvida de que os votos dissidentes contribuíram para a
mudança de jurisprudência da Suprema Corte, isto é, para que fosse admitida a regulação estatal sobre atividades econômicas. Evidentemente,
as regulações devem ocorrer com proporcionalidade a ponto de atender ao
interesse público genuíno, respeitadas as vedações do excesso e da inoperância. Razoabilidade, sim, manifestada pela permissão de regulação
pelos Estados das relações laborais entre empregados e empregadores.
Esse, talvez, seja o grande legado do dissenso do caso Lochner, deixando
expressa a defesa de regulação razoável, não inoperante e, tampouco,
excessiva ou prejudicial ao dinamismo econômico.
69 Ver também: GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th
ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 481-482.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
231
3 Casos célebres e recentes com dissensos que serão avaliados
pelas futuras gerações
Nos últimos anos, tivemos casos polêmicos julgados pela Suprema
Corte norte-americana, caracterizada por uma tênue maioria conservadora. Os casos julgados podem ser avaliados mediante prognósticos
de impactos das decisões e, também, dos dissensos manifestados. As
escolhas dos casos Bush v. Gore, do financiamento público de campanha
e do não menos polêmico Obamacare não foram realizadas por acaso,
senão em virtude da repercussão pública, não apenas dentro dos Estados
Unidos, com argumentos contraditórios esgrimidos, de modo retoricamente contundente, pelos Justices. Os três casos foram decididos por
apenas um voto, deixando estampada a divisão da Suprema Corte entre
conservadores e liberais, ainda que com fronteiras incertas70.
3.1 Bush v. Gore71
A eleição entre Bush e Gore estava muito apertada naquele 08 de
novembro de 2000, e o candidato que ganhasse as eleições, no voto
popular e direto, no Estado da Flórida, estaria eleito. A Lei Eleitoral
da Flórida, após os resultados divulgados, exigia que se realizasse uma
recontagem de votos, a menos que o candidato derrotado a dispensasse.
Gore, logicamente, não aceitou a vitória de Bush e requereu a recontagem
de votos na justiça local. A diferença pró-Bush, posterior à recontagem,
encolheu de 1.782 para 327 votos. Somado a esse fato, as cédulas dos
eleitores que votavam no exterior ainda não haviam sido contadas72.
O tema chegou ao Tribunal Estadual da Flórida, que: (i) ordenou
que os resultados da recontagem de Palm Beach, juntamente com os
resultados parciais da recontagem interrompida de Miami-Dade, fossem
somados às totalizações dos candidatos, uma providência que diminuiu
a vantagem de Bush em mais 200 votos; (ii) ordenou que todos os votos
70 TRIBE, Laurence; MATZ, Joshua. Uncertain Justice. New York: Henry Holt and
Company, 2014.
71 Bush v. Gore. 531 U.S. 98 [2000].
72 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 251-273.
232
Revista da AJUFERGS / 09
em branco, cerca de 60.000, fossem recontados à mão, inclusive o saldo
dos votos em Miami-Dade; (iii) ordenou que a recontagem fosse feita por
técnicos judiciários no Estado, em lugar de juntas eleitorais dos condados
ou, ainda, por representantes eleitorais oficiais do Estado; (iv) recusou-se
a estabelecer critérios, para a recuperação de votos de cédulas danificadas,
mais específicos que a intenção do eleitor; e (v) recusou-se a autorizar
uma recontagem de cédulas com excesso de votos, isto é, cédulas que
continham votos ou marcações interpretáveis como votos para mais de um
candidato para o mesmo cargo. Havia cerca de 110.000 votos em excesso
no Estado da Flórida73.
Bush recorreu à Suprema Corte, que suspendeu a decisão do Tribunal
da Flórida, no dia 12 de dezembro, com os votos dos Justices Rehinquist, O’Conor, Scalia, Kennedy e Thomas, formando a maioria. Para a
Suprema Corte, a recontagem de votos seria uma negação da proteção
igualitária das leis. A decisão entendeu que as determinações (i), (ii), (iv)
e (v) criavam diferenças no tratamento das cédulas de eleitores diferentes.
Os Justices Souter74 e Breyer75 concordaram que a ordem de recontagem levantava problemas de proteção igualitária (algo que exigia reparo),
mas entenderam que o melhor seria enviar o assunto de volta para o Tribunal
da Flórida determinar uma recontagem apropriada dos votos. Os Justices
Stevens76 e Ginsburg77 dissentiram da maioria, porque entenderam que a
ordem de recontagem não violava qualquer disposição legal78.
73 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 255.
74 De acordo com o Justice Souter: “The case should be remanded to the Florida Courts
with instructions to establish uniform standards in any further recounting”.
75 Consta no voto do Justice Breyer: “This Court should resist the temptation to resolve
tangential legal disputes, where doing so threatens to determine the outcome of the election”.
76 Segundo o Justice Stevens: “While the use of differing substandards for determining
voter intent counties employing similar voting systems may raise serious concerns, those
concerns are alleviated by the fact that a single impartial magistrate will ultimately
adjudicate all objections arising from the recount process. The loser in this Presidential
election is the Nation’s confidence in the judge as an impartial guardian of the rule of law”.
77 Para a Justice Guinsburg: “The Court contradicts the basic principle that a State
may organize itself as it fit Article II does not call for the scrutiny taken by this Courts”.
78 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 256.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
233
Para Posner, a decisão da maioria da Corte foi acertada, visto que
uma recontagem poderia ter levado à eleição de Gore e gerado uma crise
institucional no país. Até a nomeação de Gore estaria ameaçada, pois,
dependendo do modo como a Lei Eleitoral fosse interpretada, o Congresso
poderia ter de decidir a questão. Houve quem sugerisse o risco de caos79.
De fato, é difícil saber o que aconteceria se a Suprema Corte
devolvesse a questão para o Tribunal da Flórida, este determinasse a
recontagem de votos e Gore fosse o eleito. Teria ocorrido o atentado
de 11 de setembro no caso da eleição de Gore? Como ele teria reagido
a esse fato80? Será que a dita guerra preventiva “contra o terror” teria
sido declarada e o Iraque e o Afeganistão invadidos? A postura de Gore
teria sido mais positiva que a de Bush para enfrentar essas questões?
São respostas realmente difíceis, mas parece inegável que a maioria
se pautou por um consequencialismo enviesado do tipo conservador.
Em temas como o aquecimento global, Gore provavelmente teria
assinado o pacto de Kyoto e promoveria uma regulação mais incisiva
sobre os gases de efeito estufa nos Estados Unidos. Tratando-se de um
democrata, se reeleito (partindo do pressuposto de sua eleição em 2000),
possivelmente providenciaria uma regulação mais ativa do mercado, com
chances de ter evitado a crise de 2008, ao menos nas proporções que tomou.
Muitos acreditavam que as credenciais e as qualificações de Gore eram
muito superiores às de George W. Bush, apesar de haver vozes céticas81.
Embora a decisão da Suprema Corte a favor de Bush tenha sido atacada pelos democratas, curiosamente não levou a um abalo considerável da
imagem da Corte. Pelo contrário, em junho de 2000 (antes das eleições),
47% dos americanos tinham uma boa confiança na Corte. Um ano mais
tarde, seis meses após o julgamento de Bush v. Gore, esse número tinha
se elevado para 50%. A Suprema Corte foi mais bem avaliada do que a
Presidência da República (47%) e Congresso (26%)82.
79 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 258.
80 Para Poesner, vários eleitores de Gore ficaram aliviados depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 pelo fato de que Bush, em vez de Gore, era o Presidente (POESNER, Richard.
Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 261).
81 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 261.
82 Gallup Organization, Confidence in Institutions, June 8-10, 2001.
234
Revista da AJUFERGS / 09
Seja como for, não por acaso, a Corte mereceu duras críticas de Dworkin,
para quem “no infame caso de 2000, Bush v. Gore, cinco juízes conservadores votaram em conjunto para legitimar a eleição de George W. Bush,
apresentando apenas argumentos frágeis. Eles chegaram a declarar que aquela
decisão não poderia ser considerada como precedente em casos futuros”83.
Em suma, por ora, o que parece incontestável é que a Suprema Corte
adotou visão eminentemente voluntarista em sua decisão majoritária,
sopesando consequências a seu talante e deixando de lado os deveres
mínimos de fundamentação jurídica consistente. Nesse caso, os dissidentes parecem ter a razão. O Tribunal da História dirá.
3.2 National Federation of Independent Business v. Sebelius,
576 U.S. (Obamacare)
A Suprema Corte decidiu, pela escassa margem de cinco votos contra
quatro, pela constitucionalidade, quase que total, do Affordable Care Act
do Presidente Obama. Juristas como Dworkin comemoraram a decisão:
“os Estados Unidos finalmente satisfizeram um requisito fundamental de
decência política que toda e qualquer democracia madura já encontrou há
muito tempo, e que uma sequência de presidentes democratas, desde Franklin
D. Roosevelt até Bill Clinton, tentaram e falharam em assegurar para nós.
Finalmente temos um regime de provisões nacionais para assistência médica
(health care) destinado a proteger todo o cidadão que deseje ser protegido”84.
Tradicionalmente, os americanos utilizam o seguro-saúde privado
para custear os tratamentos médicos, circunstância que não foi alterada
pelo Obamacare. Essa concepção de seguridade social, como referido
por Dworkin, tem sido a lógica de democracias sociais da Europa e do
Canadá, e a tributação tem sido o meio tradicional – quiçá o único efetivo
– de agregar tais riscos. A seguridade tem sido a lógica, nos Estados Unidos, de todos os grandes programas de bem-estar (welfare): seguridade
social, Medicare, Medicaid, socorro federal para desastres, entre muitos
83 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of
Books, v. 59, n. 13 [2012].
84 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of
Books, v. 59, n. 13 [2012].
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
235
outros. O Affordable Care Act é diferente, mas apenas na superfície. Ele
usa seguros privados, em vez de públicos, e evita o rótulo de imposto85.
Debateram-se no leading case dois pontos fulcrais: o individual
mandate, que impõe o pagamento de multas para aqueles que não contratarem seguro-saúde, público e privado, e a constitucionalidade da
cláusula de comércio.
Entre os votos vencidos, chama atenção o voto do Justice Clarence
Thomas, rejeitando a Cláusula do Comércio que, na prática, poderia
levar a uma completa desregulamentação da atividade econômica no
país. Como bem apontado por Dworkin, “teria sido uma catástrofe se o
voto de Thomas tivesse prevalecido: teríamos sido enviados de volta ao
modelo de economia não regulada da Era pré New Deal”86.
A impugnação à Cláusula de Comércio foi acompanhada pelos
Justices dissidentes Kennedy, Scalia, Thomas e Alito, que assinalaram:
“Se o Congresso pode alcançar e comandar mesmo aqueles que estão
afastados de um comércio interestatal a participar no mercado, a cláusula
de comércio se tornou uma fonte de poder ilimitado ou, nas palavras
de Alexander Hamilton, o monstro horrível cujas mandíbulas devoradoras não poupam nem sexo ou idade, nem altos ou baixos, nem sacro
ou profano”87. É de se notar que os Justices vencidos manifestaram-se
contra a ampliação do Medicaid e o repasse de recursos federais para os
Estados, no caso de não aceitarem a ampliação do Medicaid, conforme
reconhecido no voto vencedor do Chief Justice Roberts. Para Dworkin,
se a posição dos Justices vencidos tivesse prevalecido, o Ato teria sido
esvaziado88 e a saúde dos americanos estaria a descoberto, contrariando
a principal proposta de campanha do Presidente Obama.
85 Tradução publicada em Interesse Público, v. 76, 2012. Originalmente publicado como:
A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].
Traduzido para o português por Anderson Vichinkeski Teixeira.
86 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of
Books, v. 59, n. 13 [2012].
87 Tradução publicada em Interesse Público, v. 76, 2012. Originalmente publicado como:
A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].
Traduzido para o português por Anderson Vichinkeski Teixeira.
88 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of
Books, v. 59, n. 13 [2012].
236
Revista da AJUFERGS / 09
Embora o Chief Justice Roberts tenha afastado a Cláusula de Comércio interestatal, reconheceu o Ato como válido exercício do poder
do Congresso de impor tributos e argumentou que a única sanção que
o Ato estabelece para aqueles que se recusem a comprar seguros é um
ônus imposto nas declarações de imposto de renda. Para o Chief Justice
Roberts, a ordem de compra do seguro que emanou do Affordable Care
Act opera como tributo, sendo, por isso, constitucional89.
Em suma, a opinião central do Chief Justice Roberts, bem apanhada
por Tushnet, foi a de que o Congresso não tinha poderes para exigir que
as pessoas comprassem o seguro-saúde. Também sustentou, entretanto,
que o Congresso poderia impor tributos sobre as pessoas que não comprassem o seguro-saúde, e isso seria suficiente para fazer o Affordable
Care Act (Obama Care) uma lei90 de acordo com a Constituição.
Na prática, os americanos, em sua maioria, salvo os que estão abaixo
da linha de pobreza, se não adquirirem planos de seguro-saúde, terão de
pagar multas. Para quem se recusar a adquirir cobertura médica, a multa
mínima é de US$ 285 por família, ou 1% da renda familiar, o que for
maior, a partir de 2014. Em 2016, a multa deverá chegar a US$ 2.085
por família, ou 2,5% da renda familiar, o que for maior.
É quase certo que, se o Obamacare tivesse sido julgado inconstitucional ou esvaziado pela Suprema Corte, o Presidente Obama não teria
sido reeleito e um candidato republicano estaria hoje na Presidência dos
Estados Unidos. Quanto à eficiência e os custos do Obamacare, somente
os anos poderão conferir resposta segura, seja positiva ou negativa; todavia, à primeira vista, estima-se que, na hipótese em tela, não haverá legado
consistente, em termos de fundamentação jurídica, da minoria vencida,
eis que insiste em descurar os mais comezinhos direitos fundamentais.
89 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of
Books, v. 59, n. 13 [2012].
90 De fato, para Tushnet, “As correctly reported, the central opinion, written by John
Roberts, said that Congress didn’t have the power to require people to buy health care
insurance. But it also said that Congress could impose a tax on people who didn’t buy
health care insurance, and that was enough to make the Affordable Care Act the law of
the land” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court.
New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 1).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
237
No caso Lochner v. New York, por exemplo, é de perceber que a
Suprema Corte vivia sob a influência social e política do laissez-passer
e do laissez-faire, em quadro de liberalismo econômico agudo, levando
a graus máximos o respeito aos contratos e à propriedade privada. Preponderava a desregulamentação, quadro que foi modificado pela Corte
na Era do New Deal. Nos anos 1980, na Era Reagan, os Estados Unidos
voltaram a dar maior preferência às regras de mercado livre e à diminuição da intervenção estatal na economia, com resultados sabidamente
ruinosos. Como quer que seja, a cláusula do comércio, impugnada pelo
Justice Clarence Thomas, por permitir a regulação por parte do Estado,
pode não ser aceita hoje em maior extensão, mas não é inimaginável
que seja aceita no futuro, se a doutrina liberal retornar com força total a
ponto de provocar sistólica desregulamentação de determinados setores
da economia e, no caso, do plano de seguro-saúde colocado à disposição
do povo americano.
Compreensivelmente, o sistema de saúde do povo americano é
motivo das principais críticas da população que observam países como
Canadá, Inglaterra e, em especial, países nórdicos, aproximarem-se
de um nível de excelência em políticas de saúde pública, educação e
previdência. Tivesse prevalecido a posição minoritária, certamente essa
tentativa de levar ao povo americano um patamar superior de saúde
estaria sepultada. Naturalmente, a eficiência do Affordable Care Act e a
sua aceitação ou rejeição pela sociedade serão avaliadas com o passar
dos anos; porém, os votos vencidos muito provavelmente servirão, nesse
caso, como provas eloquentes de posições negativas que padeceram do
conhecido viés da confirmação91, ou seja, viram apenas o que queriam
ver para confirmar as suas crenças de partida. Assim, ao que tudo indica,
entrarão para a história como votos de quatro republicanos conservadores
que se opuseram às políticas públicas necessárias para aperfeiçoar os
índices do desenvolvimento humano. Aqui, o legado dos votos vencidos,
se houver, tende a ser negativo.
91 Vide, sobre viés de confirmação, NICKERSON, Raymond in “Confirmation Bias: A
Ubiquitous Phenomenon” in Many Guises, Review of General Psychology (Educational
Publishing Foundation) v. 2, n. 2, p. 175-220, 1998.
238
Revista da AJUFERGS / 09
3.3 Citizen United v. Federal Election Commission (130 S. Ct.
876 [2010], at 887, 909)
A Suprema Corte dos Estados Unidos, no Citizens United v. Federal
Election Commission Case, decidiu, pela maioria de cinco votos contra
quatro, no sentido de afastar o teto (limite de doações) para o financiamento de campanhas eleitorais por parte de empresas, associações e
sindicatos.
É relevante destacar que o Congresso legislou sobre a matéria, em
1970, ao aprovar o The Federal Election Campaign Finance Act, a fim
de regular as contribuições e os gastos de campanhas eleitorais como
resposta às revelações escandalosas que surgiram durante o caso Watergate, em especial de como o Presidente Nixon arrecadou recursos para
a sua campanha92.
Boa parte da sociedade americana temia – e teme – que o uso ilimitado de recursos financeiros e doações nas campanhas eleitorais possa
tornar desiguais os pleitos e favorecer bandeiras plutocráticas apoiadas
por grandes grupos econômicos e, em especial, pelo partido republicano,
defensor do ideário conservador, mais ao gosto de setores financeiramente
poderosos. Outro ponto colocado pelos defensores da limitação de doações nas campanhas eleitorais é a de que o excesso de recursos doados
pode levar à corrupção do sistema eleitoral e à consequente diminuição
de credibilidade da democracia representativa. Ademais, os defensores
da limitação dos gastos nas campanhas eleitorais eram e são, na maioria,
democratas que, tradicionalmente, observam o seu partido receber menos
recursos de grandes corporações que o partido republicano nas eleições.
A maioria da Corte, ao apreciar a causa em sede recursal, ajuizada
por organização conservadora, a United Citizens, entendeu por aplicar
a Primeira Emenda da Constituição, que protege o direito ao discurso.
No entendimento da maioria, o discurso não pode ser impedido pela regulação estatal ao limitar as doações para as campanhas eleitorais, pois
seria o mesmo que tolher a liberdade de expressão nos pleitos próprios
do jogo democrático.
92 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York:
W.W. Norton & Company, 2013, p. 250.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
239
De acordo com a maioria da Suprema Corte, dizer que a Primeira
Emenda tem influência sobre se o uso do dinheiro nas campanhas eleitorais pode ser regulado não é o mesmo que dizer que todas as regulações
seriam inconstitucionais. Entretanto, significaria que deve haver boas
razões para implementar uma regulação que tenha o potencial de limitar
o discurso político. E, segundo essa maioria, as justificações do governo
para restringir os gastos de campanha terão que ser melhores que as
justificações para restringir as contribuições, sob o argumento de que as
contribuições poderiam levar à corrupção93.
Outro ponto foi a discussão sobre o direito ao discurso dos sindicatos
ou das corporações (potenciais doadores) e se eles estariam protegidos
pela Primeira Emenda. Afirmou o Justice Kennedy, fortalecendo a posição majoritária, que a Primeira Emenda protege o discurso, o orador
e as ideias que fluem de cada qual. Para Tushnet, tal entendimento tem
como consequência que as regulações, as quais limitam o discurso baseadas em quem é o orador – pessoa física ou corporação – têm que ter
justificativas muito fortes94.
A maioria da Suprema Corte, desde o início da regulação do moderno
financiamento de campanha, tem entendido que as regulações não podem
ser justificadas por interesse em tornar a competição eleitoral mais igual95.
Restou afastado, pois, o argumento da teoria da proteção dos acionistas,
93 Como referido por Tushnet sobre a posição da maioria da Suprema Corte: “To say that
the First Amendment has some bearing on whether money in politics can be regulated
isn’t to say that all such regulations are unconstitutional, only that government has to
have pretty good reasons for regulations that have the potential of limiting political
speech addressed to the general public. And, according to the Supreme Court, the
government’s justifications for restricting campaign spending – a form speech because
money is speech – have to be better than its justifications for restricting contributions,
because contributions might lead do corruption” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law
and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 251).
94 Segundo o Justice Kennedy: “[...] the First Amendment protects speech and speaker,
and the ideas that flow from each”. O que implica, segundo Tushnet, “that regulations
which limited speech based on who the speaker was – a natural person or a corporation – had to have quite a strong justification” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law
and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 270).
95 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York:
W.W. Norton & Company, 2013, p. 257.
240
Revista da AJUFERGS / 09
segundo o qual os acionistas não dão o consentimento para que os recursos da empresa sejam endereçados a determinado partido ou candidato.
Dissentiram do voto da maioria os Justices Stevens, Ginsburg,
Breyer e Sottomayor. A divisão da Corte restou clara com os Justices
conservadores, nomeados por Presidentes republicanos, votando a favor da não limitação das doações para campanhas eleitorais e os juízes
democratas votando pela imposição de limites às doações.
O dissenso do Justice Stevens veiculou argumentos significativos e
frases duras sobre como “a democracia não pode funcionar efetivamente
quando os membros que a constituem acreditam que as leis estão sendo
compradas e vendidas”96. Stevens argumentou que a posição da maioria
contra a regulamentação não deu ênfase suficiente à necessidade de impedir a corrupção nas eleições. Asseverou que, como já reconhecido no
caso Bucley, reafirmado no caso Belloti, é crucial preservar a confiança
pública na democracia.
Enfatizou, com propriedade, que a maioria ignorou os perigos
que representam as corporações como doadoras, porquanto estas não
possuem cidadania, tendo, além disso, enormes somas de dinheiro, costumeiramente sem propósitos outros além de obter lucro. Relembrando
o caso Austin, o Justice Stevens ponderou que as corporações possuem
influência injusta no processo eleitoral ao doar vastas somas e que isso
distorce o debate público.
Em relação à Primeira Emenda, Stevens, ao contrário da maioria,
entendeu que ela protege a liberdade de imprensa de modo diverso
da liberdade de discurso e de expressão das corporações. A posição
vencedora entendeu que a liberdade de imprensa é direito aplicável a
todos os cidadãos ou grupos de cidadãos que buscam publicizar as suas
visões, como fez Citizens United em relação ao documentário crítico
à Senadora Hillary Clinton, chamado de Hillary: The movie (que deu
azo ao Citizens United v. FEC). Para Stevens, a posição da maioria não
conferiu a apropriada deferência ao Poder Legislativo e restringiu o
legislador dos Estados no emprego de diferentes métodos para diminuir a corrupção eleitoral. No voto dissidente, Stevens foi categórico
96 Como referido pelo Justice Stevens em seu voto: “A democracy cannot function
effectively when its constituent members believe laws are being bought and sold”.
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
241
ao referir que a opinião da maioria ignorou o direito dos acionistas
das corporações doadoras, pois eles não podem ser compelidos a doar
recursos para discurso ao qual se opõem97.
Como diagnosticado por Sunstein, em recente resenha do livro
lançado por Stevens aos 94 anos, concordando em parte com o dissenso
em Citizens United, o objetivo do financiamento público de campanha não é o de proteger o pensamento da maioria, mas assegurar que
as desigualdades econômicas não transformem os políticos. Numa
sociedade que tolera disparidades acentuadas de riqueza, a regulação
não é apenas objetivo digno, e sim essencial. Como tais disparidades
continuam e até aumentam, existe sério risco de que as pessoas ricas
tenham condições não apenas de comprar os seus bens e serviços
preferidos, mas a política de sua predileção98. As sociedades admitem
a desigualdade de renda; todavia, não podem admitir a desigualdade
política sob pena de cada vez mais marginalizar os cidadãos e alijá-los
da definição de uma vida boa.
A votação sobre o financiamento público de campanha revelou a
divisão entre os Justices conservadores e liberais com nitidez. Os Justices
conservadores votaram contra a limitação das doações para as campanhas
eleitorais realizadas pelas corporações, pelas associações e pelos sindicatos, e os Justices liberais votaram a favor da regulação pelos motivos
expostos no voto vencido do Justice Stevens. A Justice Kagan, liberal,
pode, futuramente, assumir protagonismo maior na Suprema Corte, assim que o Presidente Obama nomear outro Justice liberal. Isso tem sido
demonstrado pela firmeza com que se tem contraposto aos argumentos
conservadores, inclusive os do Chief Justice Roberts. E se poderia, sob
certo aspecto, começar a falar sobre a Corte Kagan em vez da Corte
Roberts99. Fora disso, as expectativas de modificação, por nova decisão
da Suprema Corte, ou por Emenda Constitucional, são remotas, cenário
agravado pela recentíssima decisão que libera os limites de doação para
97 Citizen United v. Federal Election Commission [130 S. Ct. 876 (2010), at 887, 909].
98 SUNSTEIN, Cass. The Refounding Father. In: The New York Review of Books. 05,
p. 22-26, jun. 2014.
99 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York:
W.W. Norton & Company, 2013, p. 280.
242
Revista da AJUFERGS / 09
campanhas eleitorais pelas pessoas físicas100, a qual complementa e
aprofunda o erro anterior da maioria.
O voto dissidente do Justice Stevens pode, sem dúvida alguma,
entrar para a história como legado positivo, eis que parece indiscutível
que o abuso do poder econômico contamina o debate político e faz com
que as pessoas deixem de acreditar na democracia e enxergar o Estado
como promotor e garantidor equitativo e inclusivo do bem-estar social.
O dinheiro acaba por substituir o espaço da participação desinteressada
na esfera pública, indispensável para o aperfeiçoamento da Rule of Law.
É indisfarçável que a suspeita de corrupção ou de patrocínio é
deletéria para a democracia representativa. Os interesses econômicos e
das grandes corporações acabam por interagir de modo pernicioso com
a formulação de políticas públicas. A Primeira Emenda da Constituição
americana visa a garantir a liberdade de expressão, mas isso não significa que não possam existir limites impostos pelo Estado às doações
para campanhas eleitorais, que impedem a livre expressão política sem
manipulação do dinheiro. Com isso, não se pretende (de modo utópico)
tornar iguais aqueles que são desiguais economicamente, porém impedir
que a desigualdade econômica acabe por gerar uma desigualdade política
100 A Suprema Corte dos Estados, ao apreciar McCutcheon v. Federal Election Commission, decidiu, por cinco votos a quatro, no dia 02.04.2014, acabar com o limite do valor
total dos recursos que uma pessoa física pode destinar para as campanhas dos candidatos
em nível federal. O prolator do voto condutor, Chief Justice Roberts, fez consignar em
seu voto que “o teto infringe direitos de liberdade de expressão e não se justifica pelo
interesse público no combate à corrupção”. Referiu que “não existe direito mais básico
na democracia do que o direito de participar na eleição dos nossos líderes políticos” e
que “o Congresso não deve regular as contribuições simplesmente para reduzir a quantidade de dinheiro na política e nivelar o campo de disputa entre forças mais ricas e as
de menos recursos”. No voto dissidente, o Justice Stephen Breyer, acompanhado pelas
Justices Ginsburg, Sotomayor e Kagan, referiu que as decisões que acabam com as leis
regulatórias do financiamento de campanha deixam “um remanescente incapaz de lidar
com os graves problemas de legitimidade democrática que a legislação pretendia resolver” e que “a decisão cria uma brecha que vai permitir a uma pessoa física contribuir
com milhões de dólares para um partido político ou para a campanha de um candidato”.
A ação analisada pela Corte foi ajuizada originalmente pelo empresário republicano do
Estado do Alabama, Shaun McCutcheon, que queria fazer doações para mais candidatos, mas restou impedido por lei eleitoral regulatória (McCutcheon v. Federal Election
Commission, 572 U.S.).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
243
que redunde no acirramento da desigualdade social, que seria nefasta e
trágica para a consolidação do Estado de Direito justo e solidário.
Parece, portanto, muito provável que o voto dissidente do Justice
Stevens, que já fomenta o debate na sociedade norte-americana (e além
dela), acabe por servir de fundamento para futura decisão da Suprema
Corte no sentido de substituir o atual e equivocado entendimento.
Conclusão
O direito constitucional norte-americano está embasado na Declaração de Virgínia de 1776, na Constituição de 1787, nas emendas do
Bill of Rights, posteriores emendas à Constituição e, principalmente,
nos precedentes da Suprema Corte. Ao longo da história, contudo,
votos dissidentes tiveram enorme peso, para o bem ou para o mal, na
construção do direito constitucional americano. Com legado positivo,
a título de exemplo, os votos externados pelo Justice Benjamin R.
Curtis, em Dred Scott v. Sanford e pelo Justice John Marshall Harlan,
em Plessy v. Ferguson, foram úteis e generosas contribuições para
a vitória antiescravagista e antissegregacionista e para mudança do
entendimento da Suprema Corte em matéria de reconhecimento dos
direitos civis dos afro-americanos.
Hoje se pode afirmar, ainda, que os votos vencidos dos Justices
John Marshall Harlan e Oliver Wendell Holmes101 foram fundamentais,
em Lochner v. New York, para manter aceso, na sociedade e no mundo
acadêmico, o reconhecimento dos direitos sociais e da necessidade de
regulação dos contratos que culminou, tempos depois, na alteração de
posição da Corte na época do New Deal, rompendo com a quase cristalizada lógica do laissez-passer e do laissez-faire.
101 Como refere Sunstein, o Justice Oliver Wendel Holmes, conhecido como The Great
Dissenter, fez com que juízes seguissem os seus grandes dissensos especialmente em áreas
como a liberdade de discurso e do judicial restraint. Os dissensos de Holmes tornaram-se
lei (influenciando inúmeras decisões da Suprema Corte) após a sua morte. Nesse sentido:
“In the context of judicial opinions, Justice Oliver Wendell Holmes, known as the Great
Dissenter, did just that; eventually judges followed his great dissents, especially in the areas
of free speech and judicial restraint, and his views became law after his death”. SUNSTEIN,
Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 66.
244
Revista da AJUFERGS / 09
Para evocar caso mais recente, no caso da regulação do financiamento público de campanha, o voto vencido do Justice Stevens, em Citizen
United v. Federal Election Commission, poderá servir de base, pelos
seus fundamentos, para derrubar a posição desastrada da Suprema Corte.
A desigualdade de recursos econômicos não pode gerar a desigualdade
política que provoca a erosão de confiança na democracia e no Estado
de Direito.
Resta demonstrado, acima de tudo, que o dissenso nos tribunais
pode não ser garantia de legado positivo, embora frequentemente o seja.
Certo, o voto vencido pode ser tão enviesado como o voto vencedor,
mas, não raro, contribui para a redução da pressão de conformidade. Ou
seja, o dissenso, ao menos quando resulta de boas e consistentes razões,
contribui, no plano deliberativo judicial, para minimizar o risco de polarizações e cascatas que costumam levar ao extremismo e às decisões
repletas de externalidades nocivas. O apreço exagerado pelo consenso
e por decisões unânimes pode conduzir ao tolo excesso de confiança
dos julgadores e ao otimismo exacerbado que se mostra pernicioso para
a busca colaborativa de decisões justas. É sabido que o silêncio de um
magistrado muitas vezes é fruto de preocupações estratégicas de não
causar tensões internas no colegiado102 ou para não afetar a sua reputação
com a pecha de votar vencido constantemente. No entanto, é indispensável assimilar que, sem cultivo da disputa erística, o dissenso tende a
ser ingrediente de decisões mais ponderadas, uma vez que contribui ao
pluralismo cooperativo e dialético. Não se deve, é claro, edulcorá-lo e
sucumbir ao mito, destituído de qualquer comprovação empírica, de que
o dissenso, por si só, seria sempre benéfico.
Muitos outros célebres votos dissidentes, para além dos abordados
neste estudo, poderiam ser colacionados. O mais relevante, entretanto,
é reconhecer a valia do balanço científico sobre o legado, positivo ou
negativo, dos votos vencidos como campo promissor de pesquisa para o
direito constitucional. Essa linha de investigação, se desenvolvida entre
nós, poderá ser muito rica de nuanças e cientificamente reveladora.
102 Sobre os juízes, Sunstein refere que “[...] they might silence themselves simply
because they do not want to cause internal tension” (SUNSTEIN, Cass. Why Societies
Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 124).
O legado dos votos vencidos nas decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América
245
The Legacy of Dissents in the United States Supreme Court
Abstract: This paper brings to debate a subjetc which is the strange
to the Brazilian constitutional Law so far: the legacy of dissents in the
leading cases of the United States Supreme Court. The influence of dissents in the promotion of public debate in society is analyzed, as well
as in the foundation for changing the Court’s jurisprudence in future
cases. Some of the most prestigious leading cases in the history of the
United States are analyzed by the authors, aiming not at the decisions of
the majority of Justices, but at the externalized content of the dissents.
Key words: Constitutional Law. Dissents. Supreme Court of the United
States. Leading cases.
Referências
ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: Harvard
University Press, 1993.
ACKERMAN, Bruce. We the People. The Civil Rights Revolution. v. 3.
Cambridge: The Belknap Press of Harvard University, 2014.
DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New
York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012]. Publicada também em Interesse Público, v. 76, 2012. Traduzido para o português por Anderson
Vichinkeski Teixeira.
GALLUP ORGANIZATION. Confidence in Institutions, June 8-10, 2001.
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