O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988

Transcrição

O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988
Organizadores
Adriana Nogueira V. Lima
Daniela Libório
Edésio Fernandes
Ellade Imparato
Fernanda Costa Carolina
Fernando Dantas
Jussara Maria Pordeus e Silva
Leticia Marques Osório
Nelson Saule Júnior
Paulo Romeiro
Rosane Tierno
Vanêsca Buzzolato Prestes
Organizadores
Adriana Nogueira V. Lima
Daniela Libório
Edésio Fernandes
Ellade Imparato
Fernanda Costa Carolina
Fernando Dantas
Jussara Maria Pordeus e Silva
Leticia Marques Osório
Nelson Saule Júnior
Paulo Romeiro
Rosane Tierno
Vanêsca Buzzolato Prestes
Diretoria do IBDU
Biênio 2007-2008
Biênio 2009-2010
Betânia Alfonsin
Ellade Imparato
Evangelina Pinho
Nelson Saule Júnior
Rodrigo Dantas Bastos
Ellade Imparato
Fernando Bruno
Henrique Frota
Paula Lousada Ravanelli
Rosane Tierno
Diretoria da Editora Magister
Ana Maria Paixão
Fábio Paixão
José Roberto Penz
Luiz Antonio Paixão
Rogério Rodrigues
Tuchaua Rodrigues
Porto Alegre, 2009
Copyright  2009 by Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, Nelson Saule Júnior
1ª edição: novembro de 2009
Editoração Eletrônica: Editora Magister
Revisão: Nelson Saule Júnior e Camila Gerassi
Capa: Apollo 13
Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer
meio ou processo, sem prévia autorização do autor. (Lei 9.610, de 19.02.98 – DOU 20.02.98)
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
A533
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico – Manaus
2008: O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas / [Organizado por] Nelson
Saule Júnior et al. – Porto Alegre : Magister, 2009.
16x23 cm. ; 443 p.
ISBN 978-85-85275-20-4
1. Direito. 2. Direito Urbanístico. 3. Planejamento urbano. I. Saule
Júnior, Nelson.
CDU 349.44
Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273
Alameda Coelho Neto, 20 / 3º andar
91340-340 – Porto Alegre – RS
(51) 3027.1100 – www.editoramagister.com
Apresentação
O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, é uma associação civil
de âmbito nacional dedicada a estudos e pesquisas no campo do direito urbanístico,que
tem como finalidade entre outras:
I. Promover a consolidação da disciplina do Direito Urbanístico nas faculdades
públicas e particulares;
II. Reunir especialistas em estudos urbanos de diferentes ramos disciplinares
nacionais e internacionais, voltado para as modalidades do direito urbanístico e o
desenvolvimento sustentável da cidade;
III. Desenvolver pesquisas que servirão de apoio a políticas governamentais
na área urbanística;
IV. Promover congressos, cursos, palestras, encontros, seminários multidisciplinares, bem como editar e publicar estudos e pareceres técnicos periódicos que
envolvam a área de direito urbanístico e planejamento urbano.
O IBDU surgiu a partir da realização de diversos congressos científicos, que
contaram com a participação de juristas, operadores de direito, urbanistas, pesquisadores, estudantes e demais profissionais que atuam com o tema do urbanismo e, todo
o Brasil.
Os congressos são dedicados à apresentação e discussão de trabalhos científicos
e pesquisas acadêmicas realizadas sobre direito urbanístico, que abordam temas atuais
e relevantes.
O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico realizado na cidade de
Manaus, entre os dias 16 e 19 de novembro de 2008, como mote central, discutiu os
avanços e as dificuldades para a consolidação do Direito Urbanístico brasileiro nestes
vinte anos que transcorreram desde que a promulgação da Constituição brasileira,
em outubro de 1988.
O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico promoveu um balanço sobre
a evolução do direito urbanístico brasileiro no decorrer dos 20 (vinte) anos da
Constituição Brasileira de 1988, mediante o debate e diálogos públicos com os
diferentes sujeitos que atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civil
sobre o Direito Urbanístico e a ordem jurídica urbanística brasileira.
Como é sabido, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu normas específicas, sobre a política urbana, voltadas à promoção do desenvolvimento das funções
sociais da cidade, da função social da propriedade urbana e do bem estar dos habitantes das cidades brasileiras. Estas normas foram disciplinadas infraconstitucionalmente
pelo Estatuto da Cidade, que adotou um conjunto de diretrizes, instrumentos e medidas para os objetivos da política urbana serem alcançados como o estabelecimento
da democracia participativa através da gestão democrática das cidades, dos seus habitantes terem acesso a condições dignas de vida com o desenvolvimento do direito
a cidades sustentáveis.
A realização de um balanço sobre o direito urbanístico nos 20 anos da
Constituição Brasileira teve como foco avaliar a evolução da ordem jurídica
urbanística brasileira, o estágio da sua assimilação pelas instituições e agentes
responsáveis pela promoção da política urbana, tais como autoridades e gestores
públicos, operadores do direito, considerando os paradigmas emergentes desta ordem
jurídica, fundados nas funções sociais da cidade, função social e ambiental da
propriedade urbana, direito à cidade, gestão democrática da cidade e desenvolvimento
urbano sustentável. Pretende-se, então, discutir os olhares dos diferentes sujeitos
que atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civil sobre o Direito
Urbanístico, bem como debater as interfaces do Direito Urbanístico com outros ramos
do Direito.
A escolha da cidade de Manaus para a realização deste Congresso teve como
estratégia propiciar uma avaliação sobre a aplicação do direito urbanístico nas cidades
da Amazônia que por conterem uma diversidade cultural e territorial, exigem uma
abordagem específica sobre a possibilidade da aplicação dos instrumentos e institutos
jurídicos da política urbana previstos na ordem jurídica urbanística.
Os trabalhos científicos deste Congresso foram apresentados e discutidos nas
seguintes oficinas temáticas:
1 – A Ordem Jurídica Urbanística e Regularização fundiária
2 – Ensino jurídico do Direito Urbanístico
3 – A Ordem Jurídica Urbanística e a Função Social das Terras Publicas
4 – Instrumentos para a governabilidade das Cidades / a gestão democrática
das Cidades
5 – Proteção do Direito à Cidade, a ordem urbanística e a sua judiciabilidade
6 – Proteção do Direito à Moradia nos Conflitos Fundiários Urbanos
7 – Formas e Instrumentos de regulação do mercado de terras
8 – A Revisão da Legislação do parcelamento do solo urbano – balanço e
novas perspectivas
9 – Plano Diretor participativo e instrumentos de política urbana
10 – A Aplicação da Ordem Jurídica Urbanística nas Cidades da Amazônia
A publicação dos Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico com
os trabalhos científicos sobre os temas de direito urbanístico, estimula e possibilita e
a promoção de troca de experiências para todas as pessoas que desenvolvam atividades,
estudos, pesquisas neste campo do conhecimento do direito.
A oportunidade da publicação dos trabalhos científicos do Congresso atende
os objetivos de fomentar a produção científica e propiciar um maior aprofundamento
científico sobre temas de direito urbanístico , bem como de disseminar e analisar
experiências sobre a aplicação e implementação da ordem jurídica urbanística nas
cidades brasileiras.
Nelson Saule Júnior
Presidente do IBDU
Biênio 2006-2008
Sumário
1. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O território da dicotomia urbanístico-ambiental: a favela
Raphael Bischoff dos Santos .......................................................................................... 15
Loteamentos irregulares e clandestinos: sua regularização no município de Porto
Alegre
Leila Maria Reschke, Luciano Saldanha Varela, Simone Santos Moretto ,
Simone Somensi ............................................................................................................. 29
Desafios do serviço legal em ações de usucapião coletivo no judiciário paulista:
experiências de extensão universitária na comunidade do Paraisópolis
Rodrigo Ribeiro de Souza, Ana Carolina Navarrete, Marco Aurélio Purini Belém,
Renata Gomes da Silva, Stacy Natalie Torres da Silva ..................................................43
Retomando a problemática da integração das favelas à cidade: Após 20 anos da
“Constituição Cidadã”, o Estado de Direito chegou às favelas?
Alex Ferreira Magalhães ...............................................................................................55
2. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DAS
TERRAS PÚBLICAS
Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: fundamentos jurídicourbanísticos, aplicabilidade e gestão pós-titulação, no Município de Osasco, São
Paulo
Patryck Araújo Carvalho ...............................................................................................71
Aluguel entre particulares em áreas públicas municipais: considerações sobre
conflitos enfrentados na implementação do programa paulistano de regularização
fundiária de favelas
Ana Paula Bruno, Candelaria Maria Reyes Garcia, Raphael Bischof dos Santos ....... 85
Fundamentos e instrumentos à ampliação da proteção às áreas especiais referentes
aos direitos à moradia e ao meio ambiente: notas introdutórias
Marise Costa de Souza Duarte, Maria Dulce P. Bentes Sobrinha ................................93
10
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
3. INSTRUMENTOS PARA A GOVERNABILIDADE DAS CIDADES / A
GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES
Gestão democrática das cidades: a Constituição de 1988 é efetiva?
Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Mariano Henrique
Maurício de Campos .................................................................................................... 103
Governança participativa de áreas públicas: em que avançamos da Constituição de
1988 ao Estatuto da Cidade
Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Thaís Louzada de Sousa ....... 115
A educação jurídica popular como instrumento do direito à gestão democrática da
cidade: a prática extensionista na busca por uma participação popular efetiva
Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Marco Aurélio Purini Belém, Stacy Natalie
Torres da Silva ............................................................................................................. 125
4. PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE, A ORDEM URBANÍSTICA E A
SUA JUDICIABILIDADE
A difícil implementação dos instrumentos urbanísticos quando da revisão da
legislação do uso e ocupação do solo urbano
Tatiana Monteiro Costa e Silva, Marcel Alexandre Lopes .......................................... 139
Política habitacional no Rio de Janeiro: dez anos de morar sem risco (1994 a 2004)
Roberto Jansen das Mercês .........................................................................................151
Acesso à justiça e segurança da posse da terra: obstáculos judiciais à regularização
fundiária plena
Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva, Juliana Accioly Martins .................. 163
5. PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA NOS CONFLITOS
FUNDIÁRIOS URBANOS
Conflitos fundiários urbanos: o dilema do direito à moradia em áreas de preservação
ambiental
Ana Maria Filgueira Ramalho, Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva ........179
Vila Itororó: direito à cultura como ameaça ao direito à moradia?
Aline Viotto , Bianca Tavolari, Jonnas Vasconcelos, Yasmin Pestana ......................... 187
A experiência do SAJU-USP na Vila Itororó: assistência e assessoria podem
caminhar juntas?
Caio Santiago, Paulo L. Martins, Rafaela Oliveira, Vivian Barbour ..........................201
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
11
Pluralismo jurídico e o direito à moradia em Fortaleza
Francisco Filomeno de Abreu Neto ............................................................................. 211
Direito à moradia: os planos diretores da RMBH aplicam o Estatuto da Cidade e a
Constituição Federal de 1988?
Naiane Loureiro dos Santos, Circlaine da Cruz Santos Faria, Marinella Machado
Araújo ..........................................................................................................................223
6. FORMAS E INSTRUMENTOS DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE
TERRAS
Dinâmica urbana e a legalização da produção do espaço (i)legal
Kênia de Souza Barbosa .............................................................................................. 237
7. A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO
URBANO – BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS
O direito à cidade e a revisão da lei de parcelamento do solo urbano
Nelson Saule Júnior .....................................................................................................249
Revisão da lei de parcelamento do solo e ampliação da oferta de terras para
habitação de interesse social: aprendizados de Fortaleza/CE
Antonio Jeovah de Andrade Meireles, Henrique Botelho Frota .................................. 275
8. PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E INSTRUMENTOS DE POLÍTICA
URBANA
A outorga onerosa do direito de criar solo: a experiência da cidade de Porto Alegre
Andrea Teichmann Vizzotto ..........................................................................................289
Uma proposta inovadora: operação urbana consorciada Lomba do Pinheiro – Porto
Alegre
Denise Bonat Pegoraro, Cléia B. Hauschild de Oliveira, Andréa Oberrather ...........301
Planejando o território regionalmente: planos diretores para além dos limites
municipais
Luiz Alberto Souza ....................................................................................................... 313
Outorga Onerosa do Direito de Construir: a experiência de Belém
Helena Lúcia Zagury Tourinho ....................................................................................325
12
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Estudo de Impacto de Vizinhança: a legislação do EIV em Porto Alegre
Gladis Weissheimer, Maria Tereza Fortini Albano ...................................................... 339
9. A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA NAS CIDADES
DA AMAZÔNIA
Balneabilidade na Praia da Ponta Negra, direito à cidade e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado
Danielle de Ouro Mamed, Cyntia Costa de Lima, Joelson Rodrigues Cavalcante .....353
Criação de municípios indígenas: desafios ao direito brasileiro
Caroline Barbosa Contente Nogueira, Prof.Dr. Fernando Antônio de
Carvalho Dantas .......................................................................................................... 365
Municipalização da licença ambiental em Manaus: compatibilização entre licença
ambiental e urbanística
Edson R. Saleme .......................................................................................................... 375
O licenciamento urbanístico no município de Manaus
Jussara Maria Pordeus e Silva .................................................................................... 387
Planos diretores, participação popular e a questão indígena: reflexões sobre o texto
constitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM)
Mariana Levy Piza Fontes ........................................................................................... 427
Proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes de
Manaus-AM
Miguel Angelo Feitosa Melo, Simone Minelli de Lima Texeira ...................................433
1
A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O Território da Dicotomia
Urbanístico-Ambiental: a Favela
RAPHAEL BISCHOF
DOS
SANTOS*
Advogado e Mestrando da FAUUSP.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Da realidade enfrentada pelos programas de
regularização fundiária; 2. Confusões no debate ambiental sobre a regularização
fundiária; 3. Efetividade de políticas ambientais e a rediscussão da cidade;
Conclusão; bibliografia
INTRODUÇÃO
As conquistas dos movimentos de moradia e de reforma urbana nos últimos
anos fizeram emergir uma disputa legal e institucional nos territórios urbanos, que
ficara obscurecida anteriormente.
Para a introdução de regimes diferenciados de produção de habitação destinada à população de baixa renda e para a intervenção do Estado na legalização de
assentamentos precários (assim compreendidas as favelas e loteamentos informais
ocupadas pela mesma população de baixa renda), foi necessária a revisão de marcos
legais (em especial, com o advento do Estatuto da Cidade), a regulamentação de
dispositivos constitucionais, o avanço institucional da burocracia e a construção de
sistemas nacionais de financiamento. Todos, fatores necessários para uma reforma
na maneira de ordenar os territórios urbanos.
A montagem de um sistema de habitação voltada à população de baixa renda,
sobretudo a consolidação de políticas de regularização fundiária de favelas, parece
haver se processado em descompasso com outro sistema nacionalmente estruturado,
qual seja, o Sistema Nacional de Meio Ambiente – o SISNAMA.
*
Coordenador de Gestão Patrimonial / Gerência regional do Patrimônio da União em São Paulo. E-mail:
[email protected]. Telefone: (11) 9723-5822
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Mais do que analisar e propor uma eventual sujeição de um sistema a outro, o
presente estudo buscará abordar as consequências no descompasso da aplicação de
ambos nas áreas de preservação permanente localizadas no espaço urbano.
A explicitação desse conflito tornou-se ainda mais pungente em fevereiro de
2006, quando o Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA – aprovou em
sua 46a Reunião Extraordinária o texto de uma Resolução que propugnava a regularização fundiária sustentável de assentamentos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda dentro das faixas definidas como Áreas de
Preservação Permanente – APPs.
Um mês após sua aprovação, foi publicada a Resolução n. 369/06, em 29 de
março de 2006.
Em vigor a partir de então, a aplicação da Resolução passa por seu processo
natural de consolidação (senão construção) de entendimentos e avaliação de seus
desdobramentos.
É sobre a construção de alguns desses entendimentos que se presta o presente estudo.
1. DA REALIDADE ENFRENTADA PELOS PROGRAMAS DE
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O déficit habitacional apontado pela Fundação João Pinheiro e pelo Ministério
das Cidades, a partir dos dados do Censo de 2000, representa a necessidade de
5.890.139 moradias1. Os números passam as 6 milhões quando adotados os ajustes
estatísticos propostos pelo estudo elaborado pelo Centro de Estudos da Metrópole,
contratado posteriormente pelo mesmo Ministério.
Além do déficit, os estudos apontaram as condições de inadequação
habitacional, hipótese que não chegaria a configurar déficit em virtude da possibilidade
de adequação da possibilidade de melhoramentos da moradia no próprio local.
Constituem situações caracterizadoras da inadequação a irregularidade fundiária, o
adensamento excessivo, a ausência de banheiro e a carência de infra-estrutura. Na
hipótese de inadequação habitacional, os números não se reduzem à necessidade de
moradias novas (tal como se opera na questão do déficit habitacional), haja vista a
possibilidade de sobreposição de fatores de inadequação. Apenas a título de ilustração,
o estudo da Fundação João Pinheiro define a ocorrência, nos aglomerados subnormais
(categoria em que o IBGE coloca as favelas), de 433.293 domicílios com irregularidade
1
Disponível em: http://www.cidades.qov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao/biblioteca/publicacoese-artigos/deficit-habitacional-no-brasil-2005/Deficit2005.pdf
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
17
fundiária, 300.250 apresentam adensamento excessivo, 206.489 não possuem banheiro
e 677.349 demandam algum tipo de infra-estrutura. Os casos, comumente sobrepondo
tais hipóteses, representam 1.622.323 moradias inadequadas.
A aferição desses números vem sendo continuamente objeto de discussão junto
aos órgãos formuladores de políticas habitacionais, em virtude da necessidade de
adoção de critérios limitados, sobretudo aqueles fornecidos pelos dados do IBGE
(Censo de 2000)2. Prova dos dados subestimados pelos critérios do IBGE são as
informações apuradas por Santo André, Curitiba e São Paulo, por meio do
cadastramento de favelas elaborados por suas respectivas Prefeituras.
Ainda assim, os dados constituem fonte oficial de informação para o próprio
Ministério das Cidades, na ausência de qualquer outro dado de melhor qualidade. E
são bastante ilustrativos da realidade imposta às gestões públicas.
Com efeito, somado o déficit às situações de inadequação, a atuação dos agentes
públicos acaba havendo que implementar medidas eminentemente curativas para cerca
de 7,5 milhões de moradias pelo país.
Obviamente, a essas medidas, acrescentam-se outras políticas habitacionais
voltadas à provisão de moradia originada a partir da nova demanda a ser projetada, a
qual não se confunde com a provisão de moradias para atendimento do déficit.
Nesse estudo, reforça-se o contexto atual para se proceder a uma análise das
políticas habitacionais destinadas exclusivamente a medidas curativas no ordenamento
territorial das cidades.Pretende-se, aqui, relacionar os números do déficit habitacional
com a ocorrência de favelas em áreas com restrições ambientais. A aferição do número
de famílias irregularmente ocupantes de áreas urbanas e atingidas pelas APPs não
sabido. Dessa maneira, com exceção dos dados curitibanos, utilizam-se os dados
preliminares, referentes ao número de favelas situadas nessas nas APP para melhor
ilustrar o problema.
Segundo Taschner, o cadastro de favelas da Prefeitura de São Paulo apontava
quase 60% das favelas paulistanas nas margens de vias hídricas e 30% delas em
terrenos de alta declividade. Ambas são situações caracterizadoras da restrição
ambiental (APP). Os fatores considerados podem encontrar-se sobrepostos.
2
Para os censos realizados pelo IBGE, “favela é um setor especial do aglomerado urbano formada por pelo
menos 50 domicílios, na sua maioria carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos não pertencentes aos
moradores” (TASCHNER:2003,28). E problemas surgem da estipulação de número mínimo de domicílios e,
sobretudo, da definição acerca da propriedade do terreno. Este dado, no mais das vezes, é baseado em informações
fornecidas pelo próprio morador, que comumente desconhece sua irregularidade fundiária.
18
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Também são pertinentes os dados apontados pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA –, utilizados por Ackermann, sobre a situação geográfica
das favelas nas cidades de Natal e Recife (ACKERMANN:2008):
Situação das favelas em Natal
(68 favelas no total, conforme dados de 1993 do IMPLANAT)
Dunas
33,82%
Plano
32,35%
Mangue
17,65%
Encosta
5,88%
Canal
2,94%
Irregularidade do terreno
7,36%
Tabela 1 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: IMPLANAT, 1993, p. 187
apud Ackermann, 2008.
Situação das favelas em Recife
(494 assentamentos no total, conforme dados de 1990 da
Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano)
Várzeas e mangues
48,99%
Topo do morro
4,65%
Encostas íngremes
17,81%
Outros
28,55%
Tabela 2 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: Secretaria Municipal de
desenvolvimento e Urbano e Habitação, 1990, p.188 apud Ackermann, 2008.
Em São Vicente, no estado de São Paulo, dos 46 assentamentos precários, 27
apresentam severas restrições sob a perspectiva da legislação ambiental, ainda que
comportem possibilidades de consolidação urbanística.
O Plano curitibano de Regularização Fundiária sintetiza um quadro estimativo
bastante apurado das ocupações irregulares situadas nas áreas de preservação
permanente, agrupando-as ocupações por sub-bacia hidrográfica.
Vale lembrar que foi melhor dimensionamento do total de moradias atingidas
pela restrição ambiental definida em lei entre todos os municípios considerados neste
estudo. A avaliação dessas situações, conforme discriminação do próprio Plano, foi
feita a partir do mapa do programa municipal PROLOCAR, a hidrografia do Município
e as fotos aéreas de 2002 e 2003.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
19
Localização
Tipologia da
ocupação
Nº Total
Nº em
APP
Nº estimado
de domicílios
(2005)
Nº de
domicílios
em APP
Sub-bacia do
Rio Passaúna
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Sub-Total
Assentamentos
espontâneos
Loteamentos
clandestinos
PROLOCAR
Total
9
3
1.061
279
Total de
domicílios/
domicílios
em (%) APP
26,3%
11
7
1.041
170
16,3%
6
26
96
4
14
72
89
2.191
21.503
47
496*
4.874
52,8%
22,6%
22,7%
31
20
3.339
597
18,9%
17
144
33
12
104
15
1.066
25.908
4.623
499
5.970
880
46,8%
23,0%
19,0%
5
3
581
53
9,1%
15
53
55
9
27
38
181
5.385
13.079
94
1.027
2.593
51,9%
19,1%
19,8%
28
16
1.490
171
11,5%
10
93
41
7
61
25
172
14.741
8.109
155
2.919
1.405
90,1%
19,8%
17,3%
4
3
89
29
32,6%
5
50
20
2
30
11
86
8.284
5.587
31
1.465
1.166
36,0%
17,7%
20,9%
8
4
472
93
19,7%
3
31
254
16
164
33
6.092
53.962
1.259
11.197
20,6%
20,7%
87
53
7.012
1.113
15,9%
56
397
34
252
1.627
62.576
826
13.136
50,7%
21,0%
Sub-bacia do
Rio Bariguí
Sub-bacia do
Rio Belém
Sub-bacia do
Rio Atuba
Sub-bacia do
Ribeirão dos
Padilhas
Bacia do Alto
Iguaçu
Sub-total por
tipologia
Tabela 3 – Número de domicílios em APP por sub-bacia hidrográfica (faixa de 30,00m e 50,00m)
Fonte: IPPUC / COHAB-Ct/ SMMA, Elaboração: COHAB-CT, disponível no Plano de Regularização
Fundiária das APPs.
20
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A ocorrência de moradias irregulares nas APPs varia em escala para cada
localidade do país, considerados fatores como a distribuição de renda, a geografia
local e tamanho da aglomeração urbana. Mas ainda assim, os dados curitibanos
chamam a atenção pelo número de remoções necessárias apenas para a recuperação
das APPs daquele Município. Ou seja, a produção de mais de 13.000 imóveis em
área urbana e minimamente inseridos na cidade (com infra-estrutura e transporte)
somar-se-ia a outras situações caracterizadas por constatações fáticas de risco,
necessidade de desadensamento de ocupações, além de atendimento de demanda por
novas moradias.
2. CONFUSÕES NO DEBATE AMBIENTAL SOBRE A REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA
Retomando o debate ocorrido por ocasião da deliberação do CONAMA, acerca
da resolução n. 369 (ainda sob a forma de uma proposta), a indignação de vários
conselheiros presentes à 80a Reunião Ordinária e à 46a Reunião Extraordinária refletia
o posicionamento sobre o tema da regularização. A manifestação do representante de
uma organização não-governamental demonstra a solução imaginada para o problema3:
“Nós temos que ter uma faixa mínima porque senão o que vai valer não é o interesse de
conservação do curso d’água, não é o interesse de remover a população de área de risco,
mas o interesse daquele que vai ter que desapropriar aquela faixa, que vai ter que indenizar
aquela população, que vai ter que remover aqueles moradores.”
Ou ainda:
“Eu acho que isso é um absurdo, é um desrespeito ao nosso Direito Ambiental, é um
desrespeito à população que vive nas margens desses córregos e que estão sujeitas a esses
projetos de regularização fundiária, sem que a gente possa dispor de uma faixa mínima de
segurança, de respeito ao meio ambiente, de respeito à saúde, à sadia qualidade de vida
dessa população.”
Tais observações denotam a “solução” de alguns conselheiros para o
reconhecimento do direito à moradia: a remoção, independentemente da possibilidade
técnica de manutenção das casas.
O debate também demonstrou o receio com a alegada discricionariedade dos
processos de regularização fundiária. Vislumbrada a possibilidade de redução da faixa
marginal de preservação para quinze metros ao longo de cursos d’água (e até mesmo
suprimi-las em alguns casos), conselheiros representativos de vários segmentos
tomaram a tribuna para expressar o risco de qualquer permissivo normativo nesse
3
Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
21
sentido. Mais do que isso, ao tratar da redução das faixas de preservação combinada
à apresentação de um Plano de Regularização Fundiária Sustentável, identifica-se a
desconfiança em relação aos processos de regularização fundiária em curso pelo país:
“O que a proposta que nós [do Ministério do Meio Ambiente] defendemos junto com [o
Ministério das] Cidades e outros que negociaram, visa restringir o poder discricionário e
garantir que esta decisão seja uma decisão motivada.”4
Ainda que o conceito de “ato discricionário” demande motivação, distinguindoo daquele “arbitrário”, as exigências para o Plano de Regularização Fundiária
Sustentável (previsto na Resolução, artigo 9º, inciso VI) foram pormenorizadas no
texto, por meio de 9 exigências relativas ao conteúdo mínimo dos referidos Planos.
As exigências variam desde fatores absolutamente relevantes como o impacto na
sub-bacia em que está situado o assentamento informal até a necessidade de
apontamento de aspectos culturais da comunidade a ser regularizada, de utilidade
discutível.
A posição dos conselheiros do CONAMA pouco difere de alguns argumentos
recorrentemente expostos pela sociedade em audiências públicas.
O Plano curitibano de Regularização Fundiária em APPs foi prova disso. A
contraposição do interesse coletivo (representado pelo meio ambiente) ao interesse
individual (do invasor) foram sintetizadas nas seguintes intervenções5:
“Se é área de preservação permanente, porque discutirmos a legalização de habitações?
Pode o interesse de alguns moradores dessas regiões sobrepor o interesse e a necessidade
da humanidade presente e futura de viver num mundo de equilíbrio do meio ambiente?”
Ou, ainda:
“O Plano prevê a realocação de famílias que se encontram fixadas em áreas irregulares?
Existe algum programa previsto para fiscalização dessas áreas, com a intenção de impedir
que novas famílias possam invadir essa área? Qual?”
As queixas e expectativas da população com Plano naquele Município informam
o caráter provisório como são compreendidas tais ocupações. Não há diferenciação
expressa para casos de ocupação consolidada, como a Favela do Parolim, existente
desde os anos 50, tratada anteriormente neste estudo. A análise de outras intervenções
nas mesmas audiências públicas permitem, no entanto,concluir a existência de
4
Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.
5
Disponível em: http://www.cohabct.com.br/Noticias/PlanoHabRegFundiaria/prf-Anexos/audiencia.htm
22
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
expectativas diametralmente opostas, no caso dos próprios moradores dessas áreas,
no aguardo da regularização fundiária de seus terrenos:
“Moro há mais de quinze anos em área na beira de rio, não há risco de enchentes, está para
sair a regularização do meu terreno, apenas falta rede de esgoto, eu corro o risco de ter que
sair da minha propriedade?”
O desconhecimento da incoerência legal justificado pela experiência diuturna
de cidadãos em metrópoles absolutamente consolidadas sobre APPs antropizadas
conduz a posicionamentos apressados sobre a possibilidade de efetiva recuperação
ambiental dessas áreas.
Os mesmos discursos de recuperação ambiental (e aqui não restritas apenas
aos casos de APP) e contenção de invasões também vêm ocorrendo em outras
metrópoles do país e servindo à insegurança da posse e desconhecimento de qualquer
direito de moradia.
No caso carioca, a Prefeitura local foi compelida, pela 4a Vara de Fazenda do
Rio de Janeiro, a proceder à remoção integral de 14 favelas situadas em áreas de
proteção ambiental sob o argumento de acelerados processos de adensamento e risco
da ocupação a seus próprios moradores. As alegações não comprovaram expansão
horizontal das favelas consideradas, conforme propugnado pelo autor da ação (o
Ministério Público fluminense). Tampouco foram lastreadas nos laudos geotécnicos
do órgão municipal responsável, que indicavam situações pontuais de risco. Além
disso as áreas eram objeto de programas de regularização fundiária da Prefeitura.
Apesar dessa considerações, as alegações foram acatadas pela Juíza responsável,
determinando a remoção integral das famílias, fundamentadas pelo receio de formação
um único conglomerado de favelas com a Rocinha e o Vidigal. referido receio fora
amplamente difundido nos meios de comunicação, sobretudo pela série “Ilegal, e
daí?”, veiculada pelo jornal “O Globo” (COMPANS:2007).
Na mesma linha, as reportagens da informando a expansão da Favela Chácara
do Céu, situada no Morro Dois Irmãos e próxima ao Vidigal. A Revista Veja anunciava
na edição de n. 2040 (de 26 de dezembro de 2007) a ameaça de ocupação desenfreada
do ponto turístico da zona sul carioca (o Morro Dois Irmãos) pela Favela em questão,
sob o título: “Salvem o cartão-postal”. A mesma edição conclamava os leitores a
exigir das autoridades providências para evicção daqueles moradores:
“O Morro Dois Irmãos, no Rio, está ameaçado por uma favela. É preciso derrubá-la
imediatamente.”
Dias depois, o jornalista Elio Gaspari, na edição de 6 de janeiro de 2008 da
Folha de São Paulo, noticiava a diligência de autoridades no local, acompanhados do
levantamento de fotos aéreas de 2004.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
23
Constatou-se que a expansão da Favela Chácara do Céu (com certa de 200
famílias), alertada pela Revista dias antes, assim como noticiadas nos jornais locais
reduzira-se a ampliação de uma casa, representando área impermeabilizada dentro
do Parque Penhasco Dois Irmãos de cerca de 20 metros quadrados, que foi prontamente demolida. Na mesma oportunidade, o morador da área propôs importante
indagação ao chamar a atenção à implantação de uma quadra de tênis (com área
significativamente maior que 20 metros quadrados), em condomínio de alto luxo do
bairro Alto Leblon, a cerca de 200 metros do local onde ocorria a diligência e dentro de
área com restrição ambiental. O episódio é concluído da seguinte forma pelo jornalista:
“Foram procurar a expansão da favela no andar de baixo e acharam a invasão do andar de
cima.”
Na Grande São Paulo, a confusão dos discursos ocorre com grande intensidade
com relação à questão de ocupação dos mananciais, a requerem estudo específico.
Com efeito, reduzindo-se novamente o escopo da discussão às APPs urbanas.
Adotam-se dados quantitativos de Santo André para ilustrar a questão. Apesar da
área urbana desse Município representar menos de 40% de seu território (o restante
integra Área de Proteção dos Mananciais da Região Metropolitana), essa porção de
território concentra 130 dentre o total de 150 assentamentos precários. Consideradas
as moradias prejudicadas pela irregularidade fundiária e carência de infra-estrutura,
são 29.130 residências na área urbana e 3.206 em áreas abrangidas pela proteção
legal dos mananciais.
A discussão dessas áreas urbanas deve ser necessariamente contextualizada à
ocupação de seu entorno.
3. EFETIVIDADE DE POLÍTICAS AMBIENTAIS E A REDISCUSSÃO DA
CIDADE
Cumpre destacar que a legislação ambiental adota para alguns casos os conceitos
de recuperação e restauração ambiental6. Por analogia, quando aplicadas às APPs, a
recuperação implicaria a reconstituição do ambiente natural sem degradação, ainda
que diferente da situação inicial.
Já a restauração seria a restituição de um ambiente natural à situação mais
próxima possível de sua conformação original.
A opção de qualquer um desses métodos, no entanto, equivoca-se ao definir a
linha de corte de políticas públicas de recuperação das APPs pela legalidade da
6
Lei federal n. 9.985/2000 (do Sistema Nacional de Unidades de Conservação).
24
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
ocupação. A efetividade das políticas visando à sustentabilidade ambiental das cidades
não se circunscreve à avaliação de impactos de processos de regularização fundiária.
De certa forma, é o que já vem sendo considerado pelo Grupo Técnico de Recuperação
das APPs, organizado pelo CONAMA.
Mas a análise dos efeitos da legislação ambiental, sobretudo da Resolução
CONAMA n. 369/06, aplicável aos processos de regularização fundiária, leva à
conclusão do equívoco suscitado no parágrafo anterior.
O Plano de Regularização Fundiária Sustentável, conforme proposto no texto
da Resolução, apesar de não necessariamente abranger todas as favelas de um
Município, acaba exigindo um nível de aperfeiçoamento institucional e diagnóstico
da situação hidrológica que superam a intervenção nas favelas, conforme a decisão
de indeferimento nos pedidos de autorização pleiteados pelo Município de Santo
André. De fato, as informações a serem utilizadas configuram uma necessidade de
conferir maiores poderes ao próprio planejamento urbano da cidade existente de fato,
independentemente de sua regularidade.
O modelo de gestão da cidade por bacias é ponto de intersecção das óticas
ambientalista e urbanista, não havendo razão para contraposição de interesses7. O
Plano representa também uma necessidade de organização institucional dos
Municípios ainda não verificada em boa parte das cidades brasileiras. Mas a análise
da sub-bacia no âmbito reduzido e já difícil dos programas de regularização,
obstaculiza a implementação destes. Prova disso são os dados apresentados nesse
estudo, que autorizam os poderem locais a procederem a urbanização de favelas, mas
não autorizam a o reconhecimento oficial da existência das moradias, o que significa
a sua manutenção da insegurança jurídica de suas posses.
Outro aspecto a ser considerado na perspectiva ambiental das cidades é a comum
contraposição entre do direito ao meio ambiente e o direito à moradia. O primeiro é
indiscutivelmente compreendido como um direito difuso, que não pode ser
individualizado, cuja titularidade pertenceria a toda a coletividade. O direito a moradia,
no entanto, não parece compreendido como algo coletivo.
A alteração de 2000 na Constituição brasileira para incluir o direito à moradia
no rol de direitos sociais assegurados a todos os cidadãos ainda se encontra em fase
de consolidação no ordenamento do país. E as políticas de regularização fundiária
nada mais representam formas de concretização desse direito dentro do contexto
urbano imposto.
7
Nesse sentido, o posicionamento de Maricato (MARICATO:2002,79)
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
25
Trata-se de direito de interesse igualmente público e coletivo, de acesso de
todos ao solo urbanizado, de maneira alguma correspondente ou reduzido ao direito
de propriedade.
O modelo de construção da cidades e a provisão habitacional à população de
baixa renda é matéria de interesse ambiental e urbanístico. Curiosamente, a
regularização fundiária não acompanha esse consenso.
As razões, conforme anteriormente abordadas neste estudo, parecem ser o
desconhecimento do volume da ilegalidade ambiental nas favelas e a ausência de
discussão de alternativas técnicas de manutenção das famílias nos locais de ocupação
irregular de APP (sobretudo sobre as condições geotécnicas e a mitigação de efeitos
nocivos da ocupação). Os potenciais ganhos ambientais nessas iniciativas de
consolidação de assentamentos tecnicamente viáveis parecem demonstrar maior
efetividade que a pura aplicação da restrição normativa, esvaziada de avaliação técnica.
Com efeito, colaciona-se o resultado de entrevistas apresentadas em dissertação
mestrado desenvolvido junto ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de
São Paulo, nas quais 13 profissionais especializados e reconhecidos nas áreas de
agronomia, biologia, engenharia, geografia e geologia foram consultados. As respostas
desses profissionais à indagação sobre o tratamento diferenciado às APPs urbanas
ilustram a necessidade de aprofundamento da discussão de legitimidade da lei. Sete
dos entrevistados defenderam a necessidade de tratamento diferenciado das APPs
em áreas urbanas e outros 2 defenderam tratamento diferenciado em hipóteses
específicas do espaço urbano como alta antropização (ACKERMANN:2008).
CONCLUSÃO
A contradição de políticas públicas para a gestão de problemas urbanos presente
estudo parece ser carecer de efetividade de ganhos ambientais para a coletividade. A
análise de casos, bem como a análise dos argumentos utilizados demonstram a maneira
como a disciplina normativa supera qualquer discussão de resultados. Nesses casos,
uma vez que o objeto de estudo foram os processos de regularização fundiária de
assentamentos situados sobre APPs, ressalta-se que a decisão de manter determinada
população no local da ocupação ou de removê-la afasta-se muitas vezes da avaliação
de exequibilidade dessas decisões.
A efetividade de que se trata remete àqueles objetivos gerais da população
urbana, sinteticamente reduzidos ao anseio de melhor ocupação de seu território,
com melhor qualidade de vida, a que se referiu acima. Portanto, prescindindo-se da
avaliação de resultados, foram apresentados casos e argumentações nas quais se
privilegiou a coesão do sistema jurídico, no lugar da discussão de legitimidade das
26
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
normas impostas ao meio urbano. Com efeito, o estudo não pretende propugnar pelo
desconhecimento ou rejeição ao ordenamento jurídico posto. Ao contrário, buscouse tão somente evidenciá-lo nas suas contradições internas, perceptíveis apenas quando
aplicado à realidade.
De fato, o sistema normativo construído visa adequar as exigências da legislação
ambiental a uma nova ordem jurídico-urbanística – a qual ainda é de reduzida aplicação
no país. Ou seja, sob o ponto de vista do operador do Direito, parece haver uma
coesão. Essa coesão, contudo, sucumbe a uma apurada análise da gestão pública
nesses assentamentos precários.
A presença da favela no meio urbano, após anos de admissibilidade de políticas
de urbanização e implantação de infra-estrutura vem sendo novamente questionada,
sendo forçoso perceber que o debate sobre ocupações consolidadas e existentes há
décadas é comumente confundido com novas ocupações. Trata-se da mesma maneira
situações absolutamente diversas. Emprega-se o mesmo argumento para o espaço
construído o espaço ainda natural (sujeito a novas ocupações).
Espera-se haver contribuído para a discussão da regularização fundiária de
favelas como meio de reconhecimento do estoque habitacional para a população de
baixa renda existente nas cidades e inserção dessas favelas no tecido urbano como
alternativas à tradição brasileira de remoção dos pobres para áreas periféricas e
expansão horizontal das cidades.
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Loteamentos Irregulares e Clandestinos: Sua
Regularização no Município de Porto Alegre
LEILA MARIA RESCHKE1
Procuradora.
LUCIANO SALDANHA VARELA
Engenheiro.
SIMONE SANTOS MORETTO
Assessora Jurídica.
SIMONE SOMENSI
Procuradora.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Regularização fundiária; 2.1. Dimensão urbanística;
2.2. Dimensão jurídica; 2.3. Tipos de irregularidade fundiária; 3. Gerência de
regularização de loteamentos; 3.1. Competência; 3.2. Áreas loteadas x áreas
ocupadas; 4. Formas de atuação. 4.1. Ações de prevenção; 4.1.1. Fiscalização;
4.1.2. Medidas judiciais; 4.2. Ações de repressão; 4.3. Ações de regularização;
4.3.1. Procedimento; 4.3.2. Etapas. 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A questão habitacional exige um cuidado apurado da Administração Pública.
A moradia do cidadão é direito fundamental inerente à dignidade da pessoa humana,
ou seja, ocupa lugar central no pensamento filosófico e político como valor fundamental da ordem jurídica de nossa sociedade, sustentando um dos pilares do Estado
Democrático de Direito.
1
Integrantes da Gerência de Regularização de Loteamentos da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre.
30
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Constitucionalmente previsto como direito social pelo artigo 6º da Magna Carta,
impõe aos administradores públicos intensa e constante preocupação com a forma de
seu atendimento.
Neste contexto, a regularização fundiária assume importante papel, pois é a
base para a prestação de uma série de serviços públicos. Além disso, no momento em
que se regularizam as ocupações irregulares, em qualquer uma de suas modalidades,
estamos resolvendo problemas habitacionais e acalentando a tão sonhada tranquilidade
das famílias que residem em áreas que não proporcionam segurança jurídica da posse
e propriedade, muito menos oferecem serviços públicos adequados.
Visa este trabalho, então, demonstrar como o Município de Porto Alegre trabalha
a regularização fundiária dos loteamentos implantados de forma irregular ou
clandestina, bem como delinear os entraves urbanísticos e jurídicos que dificultam
sobremaneira o processo. A problemática envolve questões jurídicas, fundiárias,
urbanísticas e avaliação do desempenho das configurações espaciais, das atribuições
do Poder Público e da capacidade de gestão.
2. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Denomina-se regularização fundiária o processo de verificação da situação da
propriedade e posse de áreas urbanas ou rurais, públicas ou privadas que se formaram
em desacordo com as normas legais que regulam a matéria. Pressupõe, portanto, uma
utilização do território em condições que trazem dúvidas sobre os direitos de
propriedade e posse do local.
Segundo Betânia Alfonsin2, é o processo de intervenção pública, sob os aspectos
jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras
de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação,
implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania
e da qualidade de vida da população beneficiária.
O que se busca com a regularização fundiária é, sem dúvida, transformar a
irregularidade na ocupação do solo em domínio e posse legítimas, a fim de cumprirem
sua função social, como preconiza a Constituição Brasileira. Neste processo, o grande
desafio dos agentes públicos é fazer este trabalho de forma a evidenciar a permanência
das populações moradores naquele espaço, evitando o reassentamento.
Nesse contexto, foram propostos novos instrumentos legislativos, jurídicos e
urbanísticos com o escopo de contribuir para a formulação de uma nova política de
2
FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coordenadores e co-autores). A Lei e a Ilegalidade na Produção
do Espaço Urbano, Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
31
uso racional e socialmente adequada do solo urbano. O envolvimento do ente
municipal nestas questões, com objetivo de minimizar os problemas decorrentes da
irregularidade fundiária certamente é uma estratégia inteligente de gestão dirigida
para disponibilizar moradia de qualidade e com infra-estrutura adequada aos
munícipes, pois ao resgatar a segurança jurídica da posse e da propriedade trará aos
cidadãos benefícios em diversos setores, iniciando pelo acesso digno às redes de
água, luz e esgotamento sanitário, passando pela presença de serviços públicos, tais
como escolas e postos de saúde, até chegar ao acesso facilitado ao transporte público.
Não é fácil trabalhar a irregularidade fundiária. Cada ocupação consolida-se
de uma forma e por isso possui características próprias. Em cada caso é necessário
verificar sua origem (assentamento autoproduzido, invasão, loteamento irregular ou
clandestino, etc.) e quais os desdobramentos urbanísticos e jurídicos ocorreram durante
e após sua formatação.
Como se vê, a regularização fundiária se dá em duas dimensões: urbanística e
jurídica. Faticamente até se poderia trabalhar somente um dos aspectos. Entretanto, a
história já nos mostrou que os resultados somente serão positivos quando as duas
dimensões são avaliadas e trabalhadas.
2.1. Dimensão urbanística
A esfera urbanística trabalha as etapas que precedem a regularização jurídica e
registraria da gleba. O objetivo desta etapa é a formatação de um programa de
urbanização que prevê a aprovação de projetos nos órgãos públicos, implementação
de infra-estrutura e prestação de serviços públicos.
Tudo começa com a realização de um levantamento topográfico-cadastral da
área demonstrando como se deu o parcelamento do solo. Após, é necessário elaborar
um estudo de viabilidade urbanística ou projeto urbanístico baseado nesse levantamento, redefinindo os usos e padrões de ocupação previstos na legislação e adequando-os à realidade atual.
É nesta etapa que se encontram as maiores dificuldades do trabalho de
regularização fundiária. Neste momento é que aparecem os condicionantes urbanísticos
e ambientais não respeitados pela ocupação, como, por exemplo, a existência de
moradia em faixas não edificáveis sobre redes de esgoto, de preservação ambiental
marginal de arroio ou nascente, incidência de diretriz de abertura viária, etc.
Neste âmbito, importante destacar os instrumentos urbanísticos alcançados
pelo Estatuto da Cidade, tais como o zoneamento urbano e ambiental, definição de
planos de regularização fundiária, parcelamento compulsório, e, principalmente, a
instituição de zonas especiais de interesse social. Sem estes instrumentos não é possível
obter a regularização.
32
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Ultrapassada esta fase, com o projeto urbanístico discutido e aprovado primeiro
pela comunidade e depois pelo Município, inicia-se a etapa jurídica.
2.2. Dimensão jurídica
Estando a ocupação devidamente inserida na cidade formal em decorrência da
aprovação do estudo de viabilidade urbanística ou do projeto urbanístico e sua
decorrente implantação, necessário adequar o título de propriedade à realidade fática,
dando início à política de legalização das áreas e dos lotes ocupados, gerando segurança
jurídica aos moradores.
Neste aspecto, o Estatuto da Cidade também auxilia sobremaneira, trazendo
inúmeros instrumentos jurídicos e principalmente traçando as diretrizes básicas de
utilização ordenada do solo urbano, cujo centro é a preocupação constante com a
função social da propriedade.
De acordo com o tipo de propriedade (pública ou privada) e a forma de ocupação do solo (assentamento autoproduzido, invasão, loteamentos irregulares ou clandestinos) é possível utilizar institutos como concessão especial para fins de moradia,
usucapião individual ou coletivo e ação de registro para transferir a titularidade do
imóvel a quem de direito.
Importante destacar que a dimensão jurídica somente estará completa quando
finalizada a etapa registrai, ou seja, quando disponibilizado ao morador o seu título
de posse ou propriedade devidamente registrado no cartório imobiliário.
2.3. Tipos de irregularidade fundiária
Como citado anteriormente, várias são as formas de irregularidade fundiária:
favelas, assentamentos autoproduzidos, loteamentos clandestinos ou irregulares. As
especificidades se referem às formas de aquisição da posse ou propriedade e aos
distintos processos de consolidação dos assentamentos. Cada caso exige um tratamento
específico.
Os habitantes irregulares, por sua vez, dividem-se em dois segmentos básicos:
um é constituído pelos núcleos e vilas irregulares e outro pelos loteamentos irregulares
e clandestinos. Para um melhor esclarecimento traçamos aqui a caracterização dos
dois segmentos irregulares:
a) núcleos e vilas irregulares: são formados por moradores em área pública ou
privada com os problemas de irregularidade fundiária e com um grau variável de
deficiência de infra-estrutura urbana e de serviços. Os núcleos e vilas irregulares são
aqueles cujos habitantes não são proprietários da terra e não têm nenhum contrato
legal que lhes assegurem permanência no local. São, na sua maioria, formados através
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
33
das ocupações (invasões). Na terminologia adotada pelo Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano Ambiental do Município de Porto Alegre (PDDUA) são os
assentamentos autoproduzidos;
b) loteamentos: é uma das formas de parcelamento do solo urbano, com
desmembramento da área em lotes e abertura de novas vias de circulação. Pela Lei
Federal n. 6.766/79, o loteador é obrigado a elaborar projeto de loteamento, aproválo perante os órgãos municipais e depois registrá-lo no cartório imobiliário, além de
ser obrigado a realizar as obras de infra-estrutura. Somente após o cumprimento destas
etapas é possível iniciar a comercialização dos lotes. A Lei Federal n. 6.766/79 define
lote como terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos
índices urbanísticos definidos pelo plano diretor. Infra-estrutura básica, por sua vez,
são os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, redes de esgoto
sanitário e abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias
de circulação.
Quando o loteamento não atende aos preceitos legais, torna-se irregular ou
clandestino:
a) irregular: é aquele que possui algum tipo de registro no Município. O responsável pode ter dado entrada com a documentação, mas não chegou a aprovar o projeto.
Também é considerado irregular o loteamento que tem projeto aprovado, mas o loteador
deixou de atender as outras etapas previstas na Lei Federal n. 6.766/79, como a realização das obras de infra-estrutura ou registro do loteamento no cartório de imóveis;
b) clandestino: é aquele realizado sem nenhum tipo de projeto ou intervenção
pública, ou seja, nenhuma norma é respeitada.
Feita a distinção, começaremos agora a tratar especificamente dos loteamentos
irregulares e clandestinos e como o Município de Porto Alegre trabalha a sua
regularização.
3. GERÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO DE LOTEAMENTOS
Colocada como premissa básica a necessidade dos programas de regularização objetivar a integração dos assentamentos informais ao conjunto da cidade, e não
apenas o reconhecimento da segurança individual da posse e propriedade para os
ocupantes, o Município de Porto Alegre montou uma equipe de trabalho multidisciplinar, formada por procuradores, arquitetos, agentes comunitários, engenheiros, topógrafos, biólogos e geólogos, criando a chamada de Gerência de Regularização de
Loteamentos.
Esta foi instituída através do Decreto Municipal n. 15.432, de 26 de dezembro
de 2006, é coordenada pela Procuradoria-Geral do Município e possui em sua estrutura
34
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
além de um núcleo jurídico, um núcleo de análise urbanística, coordenado pela
Secretaria de Planejamento Municipal, e um grupo técnico de regularização fundiária
composto por representantes de diversos órgãos, como Secretaria Municipal do Meio
Ambiente, Departamento de Esgotos Pluviais, Departamento Municipal de Água e
Esgoto, Secretaria Municipal de Obras e Viação, Secretaria Municipal de Coordenação
Política e Governança Local e Departamento Municipal de Habitação.
Este grupo técnico tem como objetivo elaborar diretrizes urbanísticas para a
regularização dos loteamentos irregulares e clandestinos, o que acarreta na agilização
do processo de regularização e procura dar um olhar diferenciado para a questão,
pois o processo se dá de maneira inversa, ou seja, parte-se de uma situação consolidada.
3.1. Competência
Entre as competências da Gerência de Regularização de Loteamentos, podemos
listar:
a) análise de expedientes administrativos cujo objeto sejam loteamentos
clandestinos e irregulares, abrangendo os procedimentos necessários à etapa da
regularização urbanística através da instituição de área especial de interesse social –
AEIS ou aplicação da Lei Complementar Municipal n. 140, de 22/07/86 (para
loteamentos implantados antes de 1979);
b) ajuizamento de ações competentes para responsabilização civil e penal dos
loteadores irregulares e clandestinos;
c) execução de levantamentos topográficos e projetos urbanísticos em situações
submetidas à análise e consideração da Gerência de Regularização de Loteamentos;
d) ajuizamento de ações de registro com base no Provimento n. 28/2004 da
Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, denominado Projeto More Legal.
Sob este enfoque, necessário registrar que a regularização dos loteamentos
pode ser dividida em administrativa, urbanística e registraria, sendo a primeira a
destinada à coleta de documentos, a segunda destinada à aprovação dos projetos
junto aos órgãos gestores de planejamento urbano e, a última, aquela que se ocupa da
retificação e ratificação da titularidade das glebas.
3.2. Áreas loteadas x áreas ocupadas
Acima demonstrou-se a distinção entre os loteamentos clandestinos ou
irregulares e assentamentos autoproduzidos. No Município de Porto Alegre diferentes
órgãos trabalham a regularização fundiária: os primeiros são tratados pela Gerência
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
35
de Regularização de Loteamentos, já os segundos são tratados pelo Departamento
Municipal de Habitação, que coordena o Programa de Regularização Fundiária – PRF.
A opção por esta formatação, embora questionável, levou em consideração a
questão da propriedade da gleba, que é fator de relevância para fins de regularização,
e as diferentes legislações aplicáveis a cada caso. Ocorre que para a regularização de
loteamentos há a necessidade de prévia aprovação de projeto urbanístico pelos órgãos municipais e, conforme artigo 14 do Decreto Municipal n. 12.715, para tal aprovação é necessário requerimento firmado pelo proprietário ou pessoa por este autorizada.
Em consequência disso, o órgão público só poderá atuar em casos onde não há litígio
acerca da propriedade. Cumpre ainda lembrar que nas ações judiciais com base no Provimento n. 28/2004 da CGJ/TJRS – Projeto More Legal – o pedido de registro dos lotes
leva em conta os contratos de compra e venda apresentados e sua devida quitação.
Em relação aos assentamentos autoproduzidos, que podem estar sobre área
pública ou privada, geralmente a regularização leva em consideração somente a posse
dos moradores, ou seja, não há uma relação jurídica formal entre os ocupantes e os
proprietários das áreas. Aliás, a possibilidade é de que existam conflitos pela ameaça
concreta de expulsão dos ocupantes com base em ações judiciais de reintegração de
posse promovidas pelos proprietários.
4. FORMAS DE ATUAÇÃO
4.1. Ações de prevenção
4.1.1. Fiscalização
Não há como trabalhar a prevenção dos loteamentos clandestinos ou irregulares
senão com a atuação da fiscalização dos órgãos municipais. A única forma de evitar
a sua implantação é através de fiscalização planejada e adequada que contemple um
diagnóstico completo dos vazios urbanos e imediato agir dos órgãos públicos tão
logo se tome conhecimento do parcelamento do solo ou de sua expansão.
O exercício do poder de polícia administrativo contempla a notificação do
responsável, a lavratura de autos de infração por danos ao parcelamento do solo e por
danos ambientais (o que ocorre na maioria das hipóteses), bem como termos de
interdição/embargo de obra e aplicação de multas. Poderá prever, também, a apreensão
de materiais utilizados na implantação do parcelamento do solo, mormente quando
houver caracterização de delito ambiental.
Além disso, é preciso conscientizar os moradores da importância deste processo,
demonstrando os prejuízos advindos da clandestinidade. Com isso, busca-se um
comprometimento da comunidade e o desenvolvimento da cidadania e senso coletivo.
36
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
4.1.2. Medidas judiciais
Caso as medidas administrativas não sejam suficientes para impedir a formação
do loteamento irregular ou clandestino, necessário o ajuizamento de ações judiciais.
Neste aspecto, o melhor instrumento à disposição da municipalidade, sem
dúvida, é a ação civil pública, regulamentada pela Lei Federal n. 7.347/85. Aliás, a
alteração legislativa ocorrida em 2001 com o advento do Estatuto da Cidade afastou
qualquer discussão a respeito do cabimento desta ação ao incluir o inciso VI no
artigo 1º, enfatizando que os danos causados à ordem urbanística são passíveis de
responsabilização e indenização através deste instrumento processual.
O desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos em lei – Lei
Federal n. 6.766/79 e aos planos diretores municipais. A coletividade tem direito de
ver observados os padrões legais de urbanismo. Por outro lado, é dever constitucional
do órgão federado – no caso os municípios – defender a ordem urbanística, bem de
uso comum do povo. Por isso não há dúvida de que a lesão à ordem urbanística
autoriza o Município a buscar judicialmente a reparação ao mesmo, nos termos do
artigo 5º c/c artigo 1º, inciso VI, da Lei Federal 7.347/85.
Assim como o direito ao meio ambiente saudável e sustentável pertence à
coletividade e não ao indivíduo isolado, a gestão ordenada do solo urbano também
representa um direito difuso, como soma e síntese de interesses individuais que merece
proteção jurídica de forma diferenciada daquelas previstas pela regras processuais
do direito clássico. Nas palavras de Fernando Gama de Miranda Netto3, “A
proliferação dos interesses coletivos revelou-se inevitável. Ora, é da própria natureza
humana que os indivíduos se aproximem uns dos outros, em razão da sua
sociabilidade. (...) Nesta linha, foram os interesses coletivos “ganhando terreno” à
medida que se tornava mais vacilante a linha fronteiriça entre o público e o privado.
A sociedade de massa, de fato, exacerbou o coletivo, diminuindo as áreas afetadas
ao particular e provocando o fenômeno da “publicização do direito”.
A legitimidade passiva resta evidenciada a partir da enunciação dos fatos. Deve
figurar como réu na ação o loteador, seja ele proprietário e/ou vendedor da área a ser
loteada, com prova da comercialização dos lotes. E, nos casos em que as vendas não
são realizadas pelo proprietário, este também será responsável pelo parcelamento na
medida em que perdura documentalmente a indivisibilidade do patrimônio imóvel e
o consequente dever de zelar pela imutabilidade da área. Ademais, qualquer
procedimento a ser adotado para fins de regularização do parcelamento dependerá da
3
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. A Ponderação de Interesses na Tutela de Urgência Irreversível, Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 129/130.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
37
regularidade registrai, por isso a importância em responsabilizar o proprietário que
consta como titular na matrícula do imóvel.
O pedido principal desta ação judicial será a condenação dos responsáveis
pela tentativa de implantação do loteamento à obrigação de não fazer, consistente na
vedação de execução de loteamento e de venda de lotes. A obtenção de liminar, nesta
hipótese, é de extrema importância, pois somente se evitará a consolidação do
loteamento se houver ordem que impeça os loteadores de efetuarem parcelamento do
solo, vendas ou construções, sob pena de multa diária em caso de descumprimento4.
Importante destacar que a tomada de providências pelo município não é opção,
mas imposição, pois a inércia do ente público o faz co-responsável, de forma solidária
ou subsidiária, como preconiza a Lei Federal n. 6.766/79, ou seja, somente desta
forma evitar-se-á a responsabilização dos gestores públicos pela proliferação da
irregularidade urbana e a obrigatoriedade em proceder a regularização.
4.2. Ações de repressão
A melhor e mais eficaz medida repreensiva que se pode tomar contra loteadores
clandestinos e irregulares é, certamente, o ajuizamento de ação penal pela prática do
delito previsto no art. 50 da Lei Federal n. 6.766/79.
Entretanto, trata-se de ação penal pública incondicionada, ou seja, o titular da
ação é o Ministério Público. Mas isso não significa que o município não possa e deva
tomar providências no âmbito penal.
No Município de Porto Alegre é prática comum o pedido de envio de ofício ao
Ministério Público quando do ajuizamento de ações de prevenção ou regularização
no âmbito civil. Além disso, sempre que se tem notícia de crimes em processos
administrativos ou vistorias objeto de loteamentos irregulares ou clandestinos, com
prova inequívoca de venda de lotes (contratos de compra e venda), elabora-se dossiês
noticiando os crimes praticados pelos loteadores ao Ministério Público. De posse da
4
Refere Rodolfo de Camargo Mancuso, citando Lúcia Valle Figueiredo, que “a antecipação dos efeitos da tutela
(CPC, art. 273, conforme Lei 8.952/94) é de ser aplicada à ação civil pública, já que esta tramita pelo
procedimento comum, sobretudo o contraditório, sendo-lhe subsidiário o Código de Processo Civil (art. 19 da
Lei 7.347/85). Para tanto, hão que estar presentes os pressupostos específicos, que comportam: a) núcleo
comum (prova inequívoca, conducente à verossimilhança da alegação – caput – e mais, a não irreversibilidade
do provimento antecipado – § 2º); b) virtuais alternativas (receio de dano irreparável ou de difícil reparação;
conduta processual reprovável, do réu – incs, I e II). (...) Deverá o magistrado, pela prova trazida aos autos, no
momento da concessão da tutela, estar convencido de que – ao que tudo indica – o autor tem razão e a
procrastinação do feito ou sua delonga normal poderia pôr em risco o bem da vida pretendido – dano irreparável
ou de difícil reparação. A irreversibilidade do dano na ação civil pública é manifesta e o “fluid recovery” não
será suficiente a elidir o dano.” In Ação Civil Pública, 6. ed., São Paulo: RT, 1999, pp. 81/82.
38
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
documentação, o parquet tem condições de ajuizar a ação penal ou, se entender
necessário, complementar as informações através de inquérito penal.
4.3. Ações de regularização
4.3.1. Procedimento
O trabalho da Gerência de Regularização de Loteamentos começa em razão de
uma denúncia de loteamento irregular ou clandestino ou devido a um pedido de
regularização por parte da comunidade. A partir de então são adotados os seguintes
procedimentos:
a) identificação da gleba: correta localização em mapa cadastral do Município;
b) busca da titularidade junto aos cartórios imobiliários da matrícula atualizada
visando identificar se a área é pública ou privada e se o proprietário foi o loteador;
c) avaliação da existência de loteamento e da época de sua implantação: este
procedimento orientará os técnicos de que maneira se efetivará a regularização, ou
seja, através da instituição de Áreas Especiais de Interesse Social (art. 76, inciso II,
do PDDUA) ou através da Lei Complementar Municipal n. 140/86.
A próxima providência é identificar o loteador. Nesse aspecto a presença da
comunidade é indispensável, pois são os compradores dos lotes que fornecem a
documentação necessária para tanto, ou seja, os contratos de compra e venda.
Identificado o proprietário da área e o loteador, esses são notificados nos termos
do art. 49 da Lei Federal n. 6.766/79 e do art. 218 da Lei Orgânica do Município de
Porto Alegre, pois a responsabilidade pela regularização, como enfaticamente referido,
é decorrente do ônus de sua atividade.
Obtido acordo para proceder a regularização é firmado termo de ajustamento
de conduta, como preconiza o § 6º do art. 5º da Lei Federal n. 7.347/85, estabelecendose prazos para cumprimento das etapas de regularização mediante cominações, que
terá eficácia de título executivo extrajudicial em caso de não cumprimento5.
Não sendo possível ajustar um procedimento junto ao loteador e/ou proprietário
para obter a regularização, o Município poderá assumir, juntamente com os moradores,
5
Sobre a importância do compromisso de ajustamento de conduta já se manifestou Fernando Reverendo Vidal
Akauoi, citando Celso António Pacheco Fiorillo: “trata-se o instituto de meio de efetivação do pleno acesso à
justiça, porquanto se mostra como instrumento de satisfação da tutela dos direitos coletivos, à medida que evita
o ingresso em juízo, repelindo os reveses que isso pode significar à efetivação do direito material.” In
Compromisso de Ajustamento de Conduta Ambiental, São Paulo: RT, 2003, p. 68.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
39
a regularização, sem prejuízo das ações punitivas cíveis e penais cabíveis contra os
loteadores, nos termos do artigo 208 da Lei Orgânica Municipal.
Nestes casos também é utilizada ação civil pública como instrumento processual
viável para obrigar os responsáveis a proceder à regularização. Entretanto, o pedido
é completamente diferente, pois o loteamento já está consolidado. Se por ventura não
for possível obter a recomposição dos danos causados à coletividade, ou seja, se o
loteamento não puder ser regularizado pelos loteadores, deverá ser convertido o pedido
em indenização, por compensação econômica, a ser fixada pelo prudente critério do
julgador.
Destaca-se, mais uma vez, a importância, relevância e conveniência do
ajuizamento da ação civil pública regularizatória, para afastar a pecha de inoperância
e omissão dos órgãos públicos.
4.3.2. Etapas
A regularização propriamente dita inicia, como referido anteriormente, após
avaliação e enquadramento da gleba nas hipóteses de regularização, com
enquadramento na Lei Complementar Municipal n. 140/86 ou no Plano Diretor, Lei
Complementar Municipal n. 434/99.
A Lei Complementar Municipal n. 140/86 é aplicada como instrumento
urbanístico para a regularização dos parcelamentos do solo implantados irregular ou
clandestinamente anteriormente à Lei Federal n. 6.766/79, independentemente da
observância dos padrões urbanísticos definidos no Plano Diretor.
Os demais casos devem atender o Plano Diretor ou, se for necessário, prever a
instituição de Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS, que é o instrumento
urbanístico previsto no art. 76 da Lei Complementar Municipal n. 434/99 (segundo
PDDUA de Porto Alegre), o qual viabiliza a produção e manutenção de habitação de
interesse social através da adoção de padrões especiais de parcelamento e uso do solo
e da permissão de normas construtivas específicas para núcleos habitacionais
consolidados e novas áreas destinadas a programas habitacionais de interesse social.
Os loteamentos clandestinos e irregulares enquadram-se no art. 76, inciso II, da Lei
Complementar Municipal n. 434/99.
As AEIS, denominadas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) no Estatuto
da Cidade, permitem que os loteamentos irregulares ou clandestinos sejam integrados
à cidade formal. Ao gravar uma área como AEIS, permitimos que esta seja regularizada
no próprio local com regras diferenciadas daquelas previstas no Plano Diretor. Tais
áreas poderão ser urbanizadas considerando, sempre que possível, a forma como o
núcleo está organizado.
40
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Na regularização de loteamentos irregulares ou clandestinos todos assumirão
suas parcelas de responsabilidade: o município, os moradores e os loteadores.
Após, necessária realização de levantamento topográfico e cadastral da área,
que demonstre a realidade do assentamento e do parcelamento do solo no local, a fim
de verificar quais medidas deverão ser realizadas para que ocorra regularização, ou
seja, fixam-se diretrizes urbanísticas6.
O próximo passo é a apresentação do projeto urbanístico e sua aprovação perante
os órgãos técnicos. Com o projeto aprovado e o loteamento inserido na cidade formal,
encerram-se os procedimentos urbanísticos e inicia a fase jurídica da regularização
do loteamento, com vistas à retificação da matrícula (se necessário) e registro do
loteamento perante o Registro de Imóveis, com abertura de matrícula dos lotes e
equipamentos públicos.
Para que isto ocorra, geralmente é necessário o ingresso de ação de registro
com base no Provimento n. 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pois na maioria dos casos não é possível
atender os requisitos previstos na Lei Federal n. 6.015/73. Este Provimento,
denominado Projeto More Legal, estabelece padrões diferenciados e flexibilização
na documentação a ser apresentada para registro do loteamento e individualização
das matrículas por lote.
Muito embora os moradores já preencherem os requisitos para ver declarado
seu domínio por usucapião, optam por ver regularizado o loteamento como um todo,
pois entendem como mais salutar e econômico, tanto do ponto de vista processual
como financeiro, o ajuizamento em conjunto, dando por encerrada a situação fundiária
na sua integralidade.
5. CONCLUSÃO
A irregularidade urbana é um dos problemas mais graves a serem enfrentados
por administradores e administrados, pois se trata de fenômeno social generalizado
que atinge níveis altíssimos.
Não é de hoje que esta realidade vem sendo enfrentada sob a ótica legislativa.
Já em 1937 houve a edição de legislação cuja finalidade era disciplinar a produção de
loteamentos e as vendas de terrenos em prestações (Decreto-Lei n. 58/37). Ainda
nesta senda, novas tentativas para solucionar estes problemas foram encaminhadas
6
Instituiu-se o Grupo Técnico de Regularização Fundiária (GTRF) para fixar estas diretrizes, incumbidos os
técnicos de avaliar a realidade sob um enfoque diferenciado que parte da situação consolidada tentando adequála ao ordenamento jurídico da melhor forma possível.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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por ocasião da promulgação da Lei Federal n. 6.766/79 e do Estatuto da Cidade, sem
que se houvesse alcançado a efetividade necessária e desejada.
Porto Alegre faz algum tempo enfrenta esta realidade de modo especial. Para
tanto, estruturou uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos cuja finalidade é
dar novo paradigma no trato da irregularidade urbana como política pública,
observando, desta forma, tanto o ordenamento jurídico nacional quanto local.
Entretanto, por sua natureza enquanto fenômeno social, a regularização
fundiária se mostra multidisciplinar e requer a intervenção de profissionais de diversas
áreas do conhecimento científico para obter resultados satisfatórios, os quais não se
vislumbram concretamente a curto prazo, ao contrário, é um processo longo que
demanda tempo, dinheiro e boa vontade, seja do ente público, do loteador ou da
população envolvida.
Trata-se de uma forma de ampliar o acesso à habitação regular para a população,
através de estratégia de gestão do solo urbano dirigida para disponibilizar moradia de
qualidade e com infra-estrutura adequada, mormente para os setores de baixa renda.
Enfim, é um meio viável para adequar a norma legal à realidade fática, uma
vez que cria condições jurídicas, financeiras, urbanísticas e administrativo-institucionais aos cidadãos, assegurando o direito à moradia e à cidade de forma articulada,
reconhecendo e assegurando direito de posse e propriedade, prevenindo, inclusive, a
formação de novos assentamentos irregulares na cidade.
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MATTOS, Liana Portilho (Organizadora). Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
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SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
Desafios do Serviço Legal em Ações de
Usucapião Coletivo no Judiciário Paulista –
Experiências de Extensão Universitária na
Comunidade do Paraisópolis
RODRIGO RIBEIRO
DE
SOUZA
Advogado e Orientador do Departamento Jurídico
“XI de Agosto” da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
ANA CAROLINA NAVARRETE, MARCO AURÉLIO
PURINI BELÉM, RENATA GOMES DA SILVA E
STACY NATALIE TORRES DA SILVA
Graduandos da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
INTRODUÇÃO
Com as inovações trazidas pela Constituição Federal em seus artigos 182 e
183, pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01) e pelo Plano Diretor
Estratégico do Município de São Paulo (Lei Municipal 13.430/02), estabeleceu-se
uma série de instrumentos para a garantia, no âmbito do município, do direito à
cidade, da defesa da função social da propriedade e da democratização da gestão
urbana. Este instrumental coloca a gestão democrática, a sustentabilidade urbanoambiental, a cooperação entre setores sociais, bem como ajusta distribuição dos
benefícios e ônus que decorrem do processo de urbanização como os principais
objetivos do pleno desenvolvimento da função social da cidade.
Temos claro, contudo, que esses objetivos, na prática, estão submetidos a
procedimentos jurídicos subordinados à tradicional preocupação de gerar segurança,
identificação e titularidade ao direito de propriedade. Dessa forma, surge um choque
entre as aspirações sociais garantidas constitucionalmente e as barreiras processuais
encontradas no Poder Judiciário, exigindo um redimensionamento do papel da
propriedade, do direito à moradia e da implementação de políticas públicas urbanas.
44
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
O presente artigo visa expor diversos aspectos da atuação do “Grupo de
Regularização Fundiária em Paraisópolis” e os obstáculos por ele enfrentados frente
ao Poder Judiciário ao lidar com demandas coletivas.
1. A EVOLUÇÃO DO GRUPO
No ano de 2003, foi assinado um convênio entre a Prefeitura Municipal de São
Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (FDUSP), a fim de realizar um projeto-piloto de regularização fundiária
em uma quadra localizada na Comunidade de Paraisópolis, periferia da zona sul do
município de São Paulo.
Assim, além do existente projeto de urbanização – obrigatório de acordo com
o Plano Diretor Estratégico – objetivou-se produzir novos conhecimentos jurídicos e
sociais com os estudantes de direito, os quais se envolveriam simultaneamente em
ações judiciais e numa aproximação da comunidade. Participam do projeto estudantes
de todos os anos da FDUSP, coordenados por um advogado cedido pelo Departamento
Jurídico XI de Agosto da FDUSP, entidade estudantil que realiza assistência jurídica
gratuita à população carente.
1.1. A ESTRUTURAÇÃO FILOSÓFICA E PRÁTICA
O grupo de Regularização Fundiária se identifica como um serviço jurídico
inovador1, que privilegia a organização popular, bem como, valoriza a apropriação
do conhecimento, por parte dos moradores da comunidade, de direitos como cidadãos.
É nesta medida que se torna possível a grande parte da população reivindicar tais
direitos e, nesse ínterim, resultar numa transformação de tais demandas em importantes
políticas públicas. Dessa forma, o grupo contribui para clarear a dimensão extralegal,
permitindo que os interessados analisem criticamente as questões políticas, econômicas
e sociais conexas com a atividade jurídica, que permanece amiúde escondida pelo
tratamento formalista e excessivamente processual dado aos casos. Não se trata,
certamente, de desprezar a estratégia legal, mas sim de utilizar esta via de maneira
politizada, de modo a desprivilegiar o tecnicismo, a racionalidade formal e a análise
estrutural formalista. Enquanto prática inovadora, o grupo ressalta a necessidade de
mecanismos mais flexíveis de defesa dos interesses em questão, a fim de que os
demandantes devidamente apreendam seus problemas como “problemas legais” e,
além disso, acentua a importância de se viabilizar a discussão dos remédios jurídicos
disponíveis – ou mesmo de novos remédios.
1
“expressão que tende a designar o conjunto de entidades voltadas para auxílio jurídico gratuito”. In: LUZ,
Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
45
Assim como outras Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), a
busca por um serviço jurídico inovador2 privilegia as experiências com práticas coletivas, não hierarquizadas, dialógicas, multidisciplinares e transformadoras. A partir
desses pressupostos, fez-se uma análise jurídica de Paraisópolis, mais especificadamente junto aos moradores da área usucapienda e, após o convênio com a prefeitura,
foram ajuizadas três ações de usucapião coletivo. E pelo comprometimento desafiador de um direito igualitário, reconhece-se através da prática uma incompatibilidade
entre as demandas da comunidade e os instrumentos exigidos pelo judiciário. Esta
tensão entre os mecanismos será analisada através das experiências acumuladas na
atuação do grupo.
2. OS MAIORES ENTRAVES À REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Abaixo estão descritos os principais desafios encontrados durante todo o
processo de regularização fundiária na Comunidade de Paraisópolis, que foi iniciado
em 2003 e que ainda se encontra em face incipiente.
2.1. O despreparo do nosso sistema jurídico em lidar com o coletivo
A dificuldade de lidar com o direito à moradia através de ações de usucapião
especial urbano coletivo surge antes mesmo do ajuizamento da ação judicial. Este
instrumento, previsto no Estatuto da Cidade em seu art. 10, foi criado para regularizar
a situação fundiária de aglomerações da população de baixa renda, em que é difícil
realizar a individualização dos imóveis. Ao mesmo tempo em que se trouxe uma
grande inovação social, com a possibilidade de inclusão de um grande número de
autores e/ou réus, verificaram-se diversas dificuldades a serem enfrentadas, porque o
direito processual brasileiro ainda é baseado em concepção liberal de partes individuais
na disputa por direitos disponíveis, a despeito da recente evolução da possibilidade
de demandas coletivas.
Na atuação judicial, encontram-se sérios obstáculos práticos como a dificuldade
no recolhimento de documentos essenciais para a proposição desse tipo especial de
ação – por exemplo, a prova documental de que os autores residem na área há mais
de 5 (cinco) anos, algo complicado devido à quantidade de pessoas geralmente
envolvidas, o que dificulta, também, os próprios atos judiciais; é perceptível, outrossim,
a dificuldade na própria mobilização comunitária de um modo geral, que é pressuposto
para a participação efetiva no âmbito processual.
2
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologia
dos serviços legais in Discutindo Assessoria Popular. Coleção Seminários, nº 15. Rio de Janeiro: FASE, 1991.
46
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A mobilidade dos moradores é outro problema, já que as frequentes mudanças
atrapalham o mapeamento dos moradores das áreas e também complicam o andamento
dos processos à medida que a alteração constante dos pólos ativos pode tumultuar o
desenvolvimento das ações judiciais, além de dificultar a comprovação de documentos
que comprovem a posse há mais de 5 (cinco) anos, requisito legal da prescrição
aquisitiva.
Diante de tal experiência, percebeu-se que ao invés de haver simplificação e
flexibilização da ação de usucapião ordinário, tendo em vista as condições diferenciadas destas populações, a ação acaba se tornando ainda mais complexa, porque
passa a aglutinar as especificidades da ação de usucapião a uma multiplicidade de autores e réus, sendo necessários os mesmos documentos, requisitos e procedimentos.
Desse modo, o processo de usucapião coletivo uma sofre grande incongruência,
já que sendo ele voltado a áreas em que a individualização é complicada, não é fácil
a obtenção de provas individuais da prescrição aquisitiva. Por exemplo, a obtenção
de uma simples correspondência com o endereço residencial pode ser dificultada em
virtude da numeração desordenada das habitações. Em virtude disso, muitas
correspondências acabam sendo centralizadas em um único “endereço”.
É, portanto, necessário destacar que, apesar das grandes inovações trazidas
pelo Estatuto da Cidade, a ação de usucapião especial urbano coletivo não tem uma
aplicação prática veemente, sendo extremamente semelhante ao usucapião ordinário
individual, diferenciando-se, mais substancialmente, em relação ao prazo para a
prescrição aquisitiva.
2.2. A questão do registro de imóveis
Na Comunidade de Paraisópolis, assim como em grande parte do Brasil, a
transmissão da propriedade se dá de maneira informal, por meio dos chamados “contratos de gaveta”, compromissos de compra e venda averbados na matrícula do imóvel ou registrados no cartório de registro civil; apesar de fazerem parte de um grande
e complexo sistema de contratos, tais instrumentos não são registrados de maneira
definitiva no registro do imóvel. Esta informalidade é causada principalmente por causa
dos altos preços cobrados pelos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo que os serviços
notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
Quer dizer que, mesmo com este aspecto público, não são previstas condições especiais
ou isenções de custas para aqueles que comprovadamente são de baixa renda.
Na tentativa de romper com essa lógica, o Estatuto da Cidade previu que a
sentença declaratória da ação de usucapião especial urbano serviria como título para
registro. Esta é uma previsão relevante, contudo, não soluciona o problema, visto
que as próximas transmissões dos imóveis não serão registradas gratuitamente.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
47
Justamente ao se considerar isto, provavelmente nem haverá novos registros, o que
inclui a área em um ciclo vicioso de constante necessidade de regularização fundiária.
Esta falta de isenções gera desvantagens para o possuidor que, apesar de ter comprado
o imóvel, não é formalmente proprietário, e para toda a coletividade, que tem um
serviço desatualizado, muito distante do plano fático.
2.3. Os encalços do Processo Civil
O Código de Processo Civil tem mais de 30 anos e, apesar das reformas
constantes, ainda traz problemas para processos complexos como o usucapião, em
especial o coletivo. Através do Estatuto da Cidade, esta forma de aquisição da
propriedade ganhou contornos mais flexíveis e mais adequados à realidade brasileira,
saindo daquela situação originada no Código Civil, que trazia muitas limitações,
para, talvez, vir a se tornar um processo de maior importância para a construção de
cidades menos desiguais.
Apesar de parecer um grande avanço, tal instrumento tem suas restrições, que
são originadas principalmente, na falta de conhecimento dos operadores do direito a
seu respeito e nas limitações do processo civil tradicional. Além de suas peculiaridades,
o usucapião especial urbano coletivo, assim como outras ações coletivas, sofre com
a estruturação liberal do processo, baseada na relação credor-devedor, com o
envolvimento de somente duas partes defendendo direitos disponíveis. A despeito
disso, o processo civil deve abarcar, atualmente, novos sujeitos que coletivamente
tentam englobar as pessoas que estejam na mesma situação, ainda que não estejam
completamente identificadas. Órgãos como o Ministério Público, as Defensorias
Públicas, Sindicatos e Associações têm tido grande importância figurando no pólo
ativo de ações na defesa de direitos difusos e coletivos e em processos que apontam
falhas ou omissões na consecução de políticas públicas.
A ilegitimidade ativa é um argumento muito utilizado na tentativa de não prover
direitos garantidos. Por conta disso, o Estatuto da Cidade foi expresso ao dispor, em
seu artigo 12, III, a legitimidade de Associação de Moradores regularmente constituída,
desde que autorizada por seus representados, para atuar como substituta processual.
Entretanto, mesmo com a existência desta previsão, sua aceitação ainda deve sofrer
com as barreiras criadas pelo Poder Judiciário, tendo em vista a problemática relação
deste poder com as ações coletivas. Esta legitimação extraordinária das associações
se justifica devido à situação peculiar destas comunidades, que contam com muitas
pessoas nas áreas usucapiendas e intensiva mobilidade residencial.
A moradia é ainda, por diversos motivos históricos, tratada como um direito
individual; não obstante, ao se considerar o elevado número de pessoas na mesma
situação em ocupações irregulares, verifica-se que ajuizar ações coletivas traz
48
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
benefícios evidentes ao Poder Judiciário, pois pode evitar a sobrecarga com demandas
semelhantes e relacionadas. Além disso, tais ações favorecerem a segurança jurídica,
criam a possibilidade maior de mobilização entre os moradores – o que os favorece
contra problemas como a forte especulação imobiliária e, além disso, trazem mais
repercussão e pressão social para a questão das deficiências das políticas públicas
urbanas, de uma maneira geral.
Outra inovação trazida pelo Estatuto da Cidade é referente à previsão do rito
sumário para as ações de usucapião especial urbano. Entretanto, por envolver
diretamente o direito de propriedade – garantia consagrada ainda em nosso
ordenamento como absoluta – seu processamento é demorado e burocrático. Seria
realmente desejável que a enorme demanda por processos deste tipo pudesse ser
resolvida mais rapidamente, mas a mera previsão legal não garante isso. Tal questão
é comumente ignorada, observando-se, na prática, o rito ordinário. Além disso, o juiz
teria a possibilidade de converter o procedimento de sumário para ordinário na
audiência, segundo o diploma processual (art. 277, § 4º do Código de Processo Civil).
Outra questão é que há uma grande dificuldade durante a fase citatória, já que
os últimos registros na matrícula dos imóveis de que tratam as ações datam de meados
da década de 1970, o que gera obstáculos para encontrar os pólos passivos das ações.
É importante, nesse sentido, tecer algumas considerações: a ação de usucapião tem
natureza declaratória devendo somente declarar um direito já existente com a prova
em juízo os requisitos necessários. No entanto, a ação acaba sofrendo de uma
burocracia exacerbada e as provas exigidas, muitas vezes, estão acima das
possibilidades dos possuidores. Isso leva a questionamentos sobre a imensa burocracia
causada pelos entraves do Direito Processual, pois mesmo um terreno abandonado
há décadas, tem que ser submetido a um dos procedimentos mais complexos do
ordenamento jurídico para a formalização de uma situação fática evidente.
2.4. A atuação dos Operadores do Direito
O problema se agrava ainda mais porque a atuação acanhada do Judiciário e a
visão conservadora em relação aos problemas sociais parece ser um sério fruto da
tradição do que de teorias embasadas cientificamente ou reflexões mais profundas,
reflexo da formação antiquada dos juristas, conforme esclarece Edésio Fernandes:
“O olhar da maioria dos juristas e dos juizes ainda é profundamente marcado pelo paradigma
civilista, que se encontra materializado nos currículos obsoletos das faculdades de direito no
Brasil e nos países latino-americanos, sendo que as decisões judiciais mais comprometidas
com outros princípios e valores tendem a ser anuladas por tribunais superiores conservadores.”3
3
FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In FERNANDES, Edésio; ALFONSIN,
Betânia. Direito urbanístico: Estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
49
O Ministério Público, nas ações em que se manifestou, demonstrou um
desconhecimento da realidade de uma comunidade de baixa renda: foram requisitadas
diversas informações já presentes no processo, além de documentos sem relação
direta coma demanda ou sequer “realizáveis” como declarações de imposto de renda,
individualização de imóveis comerciais, certidões de casamento/nascimento
atualizadas de todos os autores, demonstrativos de índices de violência na área e,
ainda, informações sobre a existência de moradores da comunidade que não estejam
na ação (sendo que a região de Paraisópolis conta com cerca de 80 mil habitantes!).
Na última ação de usucapião coletivo que foi distribuída, foi requerido, além
da declaração de propriedade dos moradores, a inspeção judicial (art. 440 a 443 do
Código de Processo Civil), um meio de prova raramente utilizado, mas que pode
realizar um exercício interessante de aproximação entre as partes e o judiciário, na
medida em que pode contribuir para o juiz entender a realidade em que está intervindo
e para os moradores se aproximarem da mítica figura do magistrado; foi requerida,
também, a tutela antecipada visando garantir, desde já, maior segurança da posse dos
autores, no entanto, os requerimentos foram ignorados.
2.5. As deficiências na assistência jurídica
O Brasil tem uma grande deficiência na assistência jurídica à população de
baixa renda. A lei que cuida deste assunto (Lei Federal 1.060/50) é da década de 50 e
parte da concepção, já ultrapassada, de assistência judiciária. A evolução do direito e
da sociedade exige que os conflitos sejam resolvidos de forma mais célere e eficiente,
surgindo daí a necessidade de outras formas de resolução de conflitos; além do mais,
a previsão de isenção de custas processuais não abrange custas extrajudiciais, que
são extremamente relevantes para a propositura de demandas, como a já mencionada
matrícula dos imóveis para o usucapião ou mesmo para a prevenção e resolução de
conflitos meramente administrativos.
Além disso, a ação de usucapião exige uma perícia realizada por engenheiro
civil ou arquiteto e, apesar de estar previsto em lei o pagamento dos honorários de
advogados e peritos (art. 3º, inc. V da lei 1.060/50), não são previstos recursos certos
e suficientes na lei federal para este pagamento, o que pode prejudicar a efetividade
deste direito caso se considere a cobrança de honorários periciais, pois não possibilitar
o acesso à perícia gratuita inviabiliza a ação de usucapião. Em decisão sobre o assunto,
o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o Estado de São Paulo deveria fornecer a
perícia através de membros do seu quadro de funcionários. Entendeu-se que, apesar
de ser previsto o pagamento em lei, não há recursos destinados e, portanto, não é
possível exigir a realização desta perícia gratuitamente. O acórdão chega inclusive a
sugerir que os peritos poderiam pedir compensações aos juízes por realizarem estas
50
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
perícias de forma gratuita – ou com pagamento tardio, apenas ao fim do processo –
com a previsão de novas perícias – desta vez pagas – em que ele seria nomeado:
“O art. 3º, V, da Lei n. 1.060/50, assegura a isenção no pagamento dos honorários do perito.
Significa, tenho eu, que apenas não constitui uma obrigação prévia da parte assistida pela
justiça gratuita o depósito da importância correspondente aos honorários e demais gastos
necessários com realização da prova técnica. Mas isso não significa que vá competir ao
Estado arcar com o valor correspondente. [...] Lembro que essa situação é muito comum na
Justiça Obreira, quando a perícia é postulada pelo empregado reclamante, e nem por isso
elas têm deixado de ser realizadas, até porque os profissionais que costumam prestar serviço
para os magistrados de 1º grau, que gozam da sua confiança, logram, em compensação,
obter ocupação contínua em processos outros, em que recebem devida e antecipadamente
pela atividade.”4
Este problema generalizado foi encontrado em nosso processo: o trabalho do
perito foi orçado em R$ 6.000,00 (seis mil reais) em uma ação e R$ 2.000,00 (dois
mil reais) em outra; por tratar-se de beneficiários da justiça gratuita, os autores não
têm condições de arcar com tal despesa, tendo sido necessário a realização de diversas
petições, com esclarecimentos ao juiz para a compreensão da situação. Ora, se são os
autores pobres na acepção jurídica do termo, portanto não dispondo de recursos para
as despesas processuais sem prejuízo de seu sustento e de sua família, como seria
possível efetuar tal pagamento?
Uma das ações ainda não teve resposta judicial. A outra solução foi uma
exceção: os honorários foram reduzidos para R$ 700,00 (setecentos reais) e a perícia
será paga pelo Estado. No entanto, a dificuldade em conseguir tal solução mostra o
quanto ela é excepcional e o quanto uma sistematização para a realização de perícias
complexas gratuitamente é necessário. Enquanto não for realizada uma revisão ou
complementação da lei de assistência judiciária a realização de processos de usucapião
para a população de baixa renda dependerá da boa vontade de magistrados e das
relações dúbias entre estes e os peritos.
4
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. PERÍCIA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. DESPESAS COM A PROVA
TÉCNICA DE ENGENHARIA. USUCAPIÃO URBANO. AUSÊNCIA DE COMPLEXIDADE OU CUSTO
ELEVADO NA REALIZAÇÃO DA PERÍCIA. POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DIRETA DO
TRABALHO PELO ESTADO, EM TAIS CIRCUNSTÂNCIAS. OBRIGAÇÃO DE CUSTEIO DE PERITO
AUTÔNOMO AFASTADA. I. A isenção prevista na Lei n. 1.060/50 não obriga o Estado a reembolsar as
despesas necessárias à realização da prova pericial requerida pela parte assistida pela Justiça gratuita. 11 .Caso,
todavia, em que dado ausência de complexidade ou onerosidade da perícia, que não demanda, na espécie, gastos
significativos com recursos humanos, materiais ou exames laboratoriais, pode o trabalho ser exercido diretamente
por repartição administrativa do próprio ente público, quando necessária mera disponibilização de infra-estrutura
já existente, em colaboração com o Poder Judiciário! 11. Recurso especial conhecido e provido em parte. (Superior
Tribunal de Justiça, Quarta Turma, Relator: Aldir Passarinho Júnior, Recurso Especial 81.901/SPJ. 07.08.2001)
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
51
2.6. A consolidação da associação de moradores
Muitos dos problemas decorrentes do processo civil e mesmo nos registros de
imóveis podem ser amenizados pela propositura da ação de usucapião por associação
de moradores, conforme previsto no Art. 12, III, do Estatuto da Cidade. Esta associação
pode agir como substituta processual, ou seja, requerendo direitos em nome de outros.
Isto facilitaria, num primeiro momento, a busca de documentos entre os moradores,
o pólo ativo da ação não precisaria ser constantemente modificado no processo judicial.
Desta maneira, o registro de imóveis seria sempre em nome da associação, mas com
a posse garantida ao morador residente e, posteriormente, as alterações do registro de
imóveis não precisariam ser realizadas constantemente.
Além disso, a articulação dos moradores permitiria uma maior participação no
processo e na própria coletividade, gerando uma maior consciência de seus direitos e
maior força oriunda da soma dos esforços individuais na busca de um objetivo comum.
Nesse sentido, a união dos moradores numa associação pode dificultar a atuação da
especulação imobiliária na obtenção dos terrenos obtidos por meio do usucapião e
articular a coletividade na pressão, junto ao poder público, pela implementação de
políticas públicas urbanas.
No entanto, o condomínio também pode gerar diversos problemas futuros.
Dificilmente, obter a fração ideal de uma propriedade satisfaz os anseios da população que busca a declaração de propriedade. A indefinição da propriedade pode gerar
diversas limitações econômicas ou mesmo jurídicas: tem-se um instrumento inovador limitado pela realidade fática, que não encara a propriedade de maneira coletiva.
É necessário, portanto, criar mecanismos para incentivar e fortalecer as Associações,
fundamentais para auxiliar na resolução de diversos problemas relacionados, principalmente, à pluralidade de autores.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, diversas conclusões podem ser depreendidas a partir da
experiência do “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” junto ao judiciário
paulista. É necessário concluir que os instrumentos introduzidos na ordem jurídicourbanística após a Constituição Federal de 1988 e, principalmente, após a edição do
Estatuto da Cidade, garantiram diversos avanços no Direito material, tentando dar
contornos mais delineados às funções socioambientais da cidade e da propriedade.
Entretanto, esses instrumentos encontram uma série de entraves no Direito Processual,
na Administração Pública e na cultura jurídica dos operadores do Direito, apoiados
por uma tradição extremamente formalista, privatista e liberal do Direito.
Dessa forma, as ações de usucapião coletivo, muitas vezes, nada mais são do
que uma multiplicidade de ações individuais. Este posicionamento esvazia de sentido
52
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
uma luta por uma prática coletivista, visto que a burocracia procedimental das ações
é multiplicada muitas vezes, variando de acordo com o número de integrantes dos
pólos passivos e ativos. Ao analisarmos essa questão sob um prisma meramente
processual, não há simplificação procedimental efetiva nesse tipo de ação coletiva.
No que se refere ao direito registrário, enquanto não se pensar em modos de
isentar de custas extrajudiciais a população de baixa renda, as transmissões continuarão
a ser informais e os processos de usucapião e adjudicação compulsória resultantes da
informalidade tendem a crescer e prejudicar mais ainda a celeridade processual e o
bom andamento do Judiciário. É necessária uma mudança na “cultura jurídica” dos
operadores do Direito, para que seja menos dogmática, formalista e liberal e mais
baseada na realidade social.
Por fim, diagnosticadas essas questões, é preciso concluir que é necessária
uma intensa reforma legislativa nos campos do Direito Processual e do Direito
Registrário, que, por sua vez, podem influenciar a mudança da cultura jurídica nas
Faculdades de Direito e, portanto, na formação dos operadores de Direito. A mudança,
entretanto, é difícil porque afeta grupos de pressão extremamente poderosos e
organizados.
Atualmente, como a ordem jurídico-urbanística está construída, as ações coletivas não se confirmaram como um incentivo ao trabalho dos serviços legais inovadores, mas sim um óbice aos mesmos. Essa dificuldade apenas prejudica a população
residente na área, que deve esperar o longo procedimento judicial, decorrente do
próprio abandono do imóvel em questão, ou seja, o ônus da insegurança jurídica
acaba recaindo sobre aqueles que buscam dar à propriedade a função social necessária após grande período de inércia dos proprietários.
Fica uma reflexão baseada nas experiências com a ação de usucapião coletivo:
Quando se constata que a maioria da população não tem acesso aos meio formais de
aquisição da propriedade, verifica-se que a lei já não traz mais segurança jurídica,
pois exclui mais do que regula. Se a grande maioria fica à margem do ordenamento,
não é hora de rever os ordenamentos e as concepções de propriedade e do direito
processual, para que as conquistas do campo constitucional não sejam apenas mera
retórica desprovida de efeitos?
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Retomando a Problemática da Integração das
Favelas à Cidade: Após 20 Anos da
“Constituição Cidadã”, o Estado de Direito
Chegou às Favelas?
ALEX FERREIRA MAGALHÃES
Mestre em Direito.
1. INTRODUÇÃO
No presente artigo, deseja-se discutir as implicações jurídicas dos negócios de
compra e venda de imóveis realizados nas favelas. Estes negócios, de um lado, revelam
a sensibilidade jurídica dos moradores da favela e, de outro, a ordem jurídicourbanística interna à favela, que vai sendo constituída por força do conjunto das
relações sociais aí configuradas. De outro lado, tais negócios podem e devem ser
examinados quanto às implicações que produzem à luz da própria ordem jurídica
oficial vigente, a fim de que se esclareçam as conexões existentes entre essas duas
ordens, bem como se registrem os direitos já adquiridos pelos moradores das favelas,
a despeito da pendência de regularização urbanística e fundiária de suas moradias.
De diversas formas, esses moradores configuram-se como sujeitos de direitos que,
ao menos em tese, são plenamente judiciáveis, embora, de fato, observemos uma
série de processos nos quais essa condição adquire peso bastante relativo no deslinde
dos conflitos que emergem nas relações cotidianas, da qual aquela ora estudada
constitui um destacado exemplo.
O debate trazido à tona no presente artigo insere-se no contexto de uma pesquisa
mais ampla, que ora realizamos, sobre o Direito à Cidade por parte dos moradores de
favelas e sobre a vigência (ou não) do Estado Democrático de Direito nas favelas
cariocas, após 20 anos da edição da Carta de 1988, que visou desconstituir e superar
o regime autoritário então existente. O debate sobre as chamadas “zonas cinzentas”,
isto é, regiões onde não vigoram, ou são relativizadas, as instituições do Estado de
Direito, é uma problemática classicamente presente nos estudos jus-políticos das
sociedades latino-americanas. Tal debate não perdeu a sua atualidade mesmo no
56
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
contexto pós-Constituição de 1988, no qual não desapareceram – e talvez até mesmo
tenham se acentuado – os processos de segregação sócio-espacial consubstanciados
nas favelas, tal como evidenciou uma série de reportagens, realizada pelo jornal carioca
O Globo em 2007, intitulada “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”.
Propomo-nos re-examinar tal problemática, basicamente a partir da análise de
conteúdo de um conjunto de entrevistas realizadas, ao longo de 2008, com moradores
de uma favela, situada na cidade do Rio de Janeiro, que passou por intervenções
públicas no sentido de promover a sua urbanização e regularização urbanística, a fim
de integrá-la à cidade. Em tais entrevistas se procurou perceber as normas que de fato
estão operando no espaço da favela, no tocante às relações de vizinhança e a
apropriação, uso e ocupação do solo, bem como qual a fonte dessa normatividade –
se estatal, “comunitária”, ou uma combinação de ambas – além, por fim, da natureza
dessas normas, forjando uma interpretação sobre o significado social da regulação
do espaço que nelas se materializa.
Os argumentos e conclusões aqui apresentados são parciais, tendo em vista a
etapa inicial em que se encontra a pesquisa e as limitações à extensão do presente
artigo, o que demandou um recorte a mais em nosso objeto de estudo.
2. A COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NO CASO ESTUDADO
2.1. O que se vende e como se paga
Conforme informaram os depoimentos, atualmente é muito escasso o acesso a
imóveis na favela estudada por meio de invasão, predominando o acesso pelos
mecanismos de mercado, notadamente a compra ou a locação. Um dos depoimentos
colhidos apontou que a aquisição da sua casa se deu mediante doação, que foi feita
visto que a entrevistada e sua família foram vítimas de incêndio que destruiu
completamente a sua casa, ficando em situação de virtual indigência. Em vista disso,
um dos moradores doou a sua própria laje para que a entrevistada reconstruísse ali a
sua casa, enquanto os demais vizinhos fizeram doações de material de construção,
móveis e roupas. Trata-se de uma situação a primeira vista incomum, verificada
normalmente entre familiares, mas que pode guardar certas analogias com outras,
que relataremos adiante.
Com relação ao processo de compra e venda de imóveis, percebe-se,
inicialmente, que são objeto dessa forma de acesso à moradia desde lotes vazios até
terrenos edificados, incluindo-se aí a venda de lajes, prática já identificada há algumas
décadas, no início do processo de verticalização das favelas. O processo de
verticalização encontra-se amplamente desenvolvido no caso estudado, no qual se
observa que 82,6% dos lotes possuem mais do que 1 pavimento, e que 35,75% possuem
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
57
3 pavimentos, sendo perceptível a tendência de que o gabarito de 4 andares ocupe
uma faixa relevante de casos, dentro de alguns anos (PREFEITURA, 2006). De outro
lado, não somente lotes edificados em alvenaria são objeto de troca, mas também
imóveis com barracos de madeira, ou, ainda, construções precárias, adquirem valor
de troca e são efetivamente vendidos, a exemplo de um dos entrevistados, que informou
que, quando adquiriu sua casa, por compra, a mesma era desprovida de teto.
Outro aspecto do processo de compra e venda diz respeito ao pagamento do
preço, no qual se verifica amplo recurso ao pagamento parcelado e sem incidência de
juros e/ou correção monetária das prestações. Em geral, verificou-se que o comprador
lança mão de verbas salariais extraordinárias a fim de realizar a compra do imóvel –
indenização rescisória, férias, 13º salário, além do próprio FGTS, instituído para essa
finalidade. No entanto, face às normas que regem a utilização do FGTS, que impedem
a sua utilização para aquisição de imóveis que não estejam devidamente matriculados
e registrados no Cartório Imobiliário, verifica-se o recurso ao “acordo de demissão”
a fim de liberar os recursos do Fundo. Em 100% dos depoimentos colhidos, o próprio
vendedor operou como concedente do crédito, a exemplo do que também ocorre na
venda de materiais de construção, uma vez que os compradores em geral não
conseguem acesso ao crédito bancário. Houve mais de um relato em que o morador
até tentou obter financiamento da Caixa Econômica Federal, porém sem êxito uma
vez que não possuía bens suficientes ou hábeis a fornecer garantia do pagamento –
por exemplo, o morador possuía imóvel de valor superior ao capital desejado, porém
o mesmo não se encontrava sequer matriculado no Cartório Imobiliário.
2.2. A interveniência da Associação de Moradores
Um aspecto de suma importância, e que se pode indagar se não integraria o
Direito Consuetudinário1 da favela estudada, consiste no fato de que a compra e
venda de imóveis deve ser intermediada pela Associação de Moradores, isto é, a
compra só seria válida e reconhecida publicamente se realizada perante o representante
da Associação, via de regra o seu próprio Presidente. Segundo os depoimentos
colhidos, tal norma vale para todo e qualquer imóvel vendido na área da favela, “até
mesmo para o mais modesto barraquinho”, e constitui um procedimento reconhecido
por todos e que oferece a segurança consistente na legitimação do adquirente em face
1
O mesmo que Direito Costumeiro. Na doutrina, define-se como o conjunto de regras que se estabeleceram pelo
costume ou pela tradição. Para que o costume seja admitido como tal, a teoria jurídica considera indispensável
que se tenha fundado em uso geral e prolongado, havendo a presunção de que o consenso geral o aprovou.
Assim, constituem requisitos para seu reconhecimento (a) consistirem em fatos repetidos, de modo uniforme,
por longo tempo; (b) a sua prática ser generalizada e pública; (c) serem fatos lícitos e não contrários à lei ou à
ordem pública. Cumpridos esses requisitos, o costume se considera fonte formal do Direito. No caso estudado,
como se trata de situação não cogitada na lei, dir-se-ia que se trata de um costume praeter legem. Cf. verbete
respectivo in SILVA (2000, p. 270).
58
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
de todos os moradores atuais e futuros daquela favela. Tratar-se-ia, pois, de um ato
que, à luz dos costumes locais, confere eficácia erga omnes à compra do imóvel.
Para esse fim, a Associação criou e utiliza um documento padrão, denominado
Termo de Transferência de Benfeitoria, do qual consta o seguinte: declaração da
venda; identificação das partes; endereço, medidas e nº de cômodos do imóvel vendido;
preço e condições de pagamento; data do negócio; assinatura das partes, seus cônjuges,
testemunhas e, aspecto indispensável, do próprio Presidente da Associação. Ou seja,
trata-se de uma compra e venda feita por instrumento particular, porém com uma
espécie de interveniência obrigatória de um terceiro, que lavra e subscreve o respectivo
instrumento. A atuação da Associação guarda analogia tanto com a função do Notário,
pois redige o contrato, quanto com a função do Registrador, uma vez que a Associação
anota essa venda no arquivo por ela mantido, com base no qual se pode saber quem,
para a Associação, é o “proprietário” de cada imóvel da favela. À luz da legislação
em vigor, tal interveniência, conquanto não seja vedada ou vista como ilícita, não
seria de forma alguma obrigatória, uma vez que a Associação não é formalmente
investida em qualquer função pública, muito embora, de fato, opere como uma espécie
de “governo da favela”, face às funções que o próprio Estado a ela delega, o que
constitui uma das múltiplas ambiguidades que marcam esses territórios. Além disso,
uma vez que o vendedor não é proprietário do imóvel, este sequer dependeria de
instrumento público para transferir os direitos que possui sobre o mesmo, tal como
ocorre na lavratura de escritura pública2. Isto somente ocorreria caso o imóvel estivesse
matriculado no Registro Imobiliário, bem como seu valor fosse igual ou superior a
30 vezes o maior salário mínimo vigente no país3, conforme dispõe o art. 108 do
Código Civil. A despeito de todas essas considerações, num caso concreto relatado
nas entrevistas, o Presidente da Associação teria afirmado categoricamente à
entrevistada que, sem a sua assinatura, o documento de compra do imóvel não teria
nenhum valor, o que, usando as categorias jurídicas, equivaleria a afirmar a nulidade
do título aquisitivo do comprador. Dessa forma, fica evidenciada a particularidade
das instituições, e da sensibilidade jurídica, desenvolvidas na favela estudada.
Abrimos aqui um pequeno parêntesis, a fim de justificar as aspas que envolvem
a palavra proprietário no parágrafo anterior, parêntesis que optamos por inserir no
2
Em virtude da ausência de propriedade, as vendas de imóveis em favelas, no rigor da técnica jurídica, constituiriam
contratos de Cessão de Posse, para os quais a lei não exige forma especial, o que significa que são válidos até
mesmo se celebrados verbalmente.
3
Segundo informações colhidas na rede mundial de computadores, o maior salário mínimo vigente no país é o do
estado do Paraná, no valor de R$ 548,00. Com base nisso pode-se afirmar que, mesmo que ocorra a regularização
fundiária, com a abertura de matrícula no RGI para todos os imóveis situados em determinada favela, a venda de
boa parte dos imóveis aí existentes poderá continuar a ser feita sem necessidade de escritura pública. Isto porque
a lei civil só a exige para imóveis vendidos a valores superiores à quantia acima especificada, que corresponderia,
atualmente, ao montante de R$ 16.440,00.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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texto, e não em notas, dada a sua relevância para nossa argumentação. Num olhar,
digamos, externo ao discurso dos envolvidos – por exemplo, à luz da legislação em
vigor – aqueles que a Associação reputa proprietários seriam, em verdade, possuidores
dos imóveis, uma vez que, no caso estudado, a propriedade cabe indiscutivelmente à
União, e dado que nenhum dos moradores adquiriu seu lote em face dela, nenhum
deles poderia transmitir um direito que não possui. No entanto, segundo esse mesmo
olhar, seria possível afirmar que os moradores agem como se proprietários fossem,
isto é, exercem posse com animus tenendi4, quiçá com animus domini5, o que, para
aquela coletividade, é suficiente para permitir que a pessoa seja reconhecida como
proprietária. Por fim, pode-se afirmar, com base nos depoimentos, que os moradores
da favela estudada têm consciência de que aquilo que eles consideram proprietário,
para sua economia interna, não é a mesma coisa que o Estado, ou aqueles que não
moram em favela, consideram como tal. Vários depoimentos registraram com clareza
a percepção de que existem critérios diferenciados para cada um dos casos, isto é, de
que há regras, instituições, procedimentos e obrigações que são vigentes apenas fora
da favela, não dentro, e vice-versa. Ou seja, é clara a percepção da segmentação, ou
ausência de integração, entre os espaços interno e externo à favela, não nos parecendo
passar despercebido aos moradores do local a existência de uma dualidade de conceitos
de propriedade.
Além daquelas analogias entre instituições oficiais do Estado e comunitárias
da favela acima indicadas, no caso estudado há mais uma analogia relevante a ser
assinalada: à semelhança dos Registradores, que devem observar o chamado princípio
da continuidade registraria, a Associação demonstra ter o idêntico cuidado de somente
aceitar e reconhecer uma venda caso seja realizada por aquela pessoa que, nos seus
registros, consta como “dono” do imóvel, isto é, aquela pessoa que tenha previamente
adquirido tal imóvel. Percebemos do depoimento do Presidente da Associação que
ele é bastante rigoroso nesse aspecto, já tendo se recusado a reconhecer tentativas de
venda em descumprimento dessa norma. Os depoimentos colhidos ainda não permitem
fornecer uma explicação segura sobre que fatores teriam determinado essa similitude
de procedimentos, que a princípio surpreende o pesquisador na medida em que não
consta que os Presidentes da Associação tenham qualquer formação em Direito
Registrário.
Uma hipótese mais rudimentar diria que tal semelhança se deve ao fato de ser
uma espécie de necessidade lógica e/ou uma necessidade operacional, isto é, seria
uma norma que decorre do bom senso na administração dos negócios imobiliários,
4
Vontade ou intenção de ter e de possuir um bem, agindo em relação a ele do mesmo modo que o legítimo dono
procederia, como se fosse o próprio dono. Também designada por affectio tenendi (SILVA, 2000).
5
Vontade ou intenção de ser dono; intenção de ter e de possuir um bem como dono (SILVA, 2000).
60
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
sem o qual esta perderia a sua racionalidade. Uma outra hipótese, que a princípio nos
parece seja mais digna de ser investigada com seriedade e aprimorada, diria que tal
fato constituiria um indicador da comunicação discreta e imperceptível, que estaria
em curso há algum tempo (isto é, não haveria nada de “novo” nisso), entre os costumes
vigentes na favela e os rituais e procedimentos legais definidos pelo Estado. Em
outras palavras, a despeito dos inegáveis processos de segregação sócio-espacial, tal
fator não é impeditivo de que haja certo intercâmbio e/ou apropriação de instituições
oficiais do Estado por parte das coletividades favelizadas. Estas, à medida que as
suas organizações internas se institucionalizam, tenderiam a começar a absorver, de
maneira parcial e fragmentária, algumas técnicas e instrumentos de administração da
vida coletiva desenvolvidos no núcleo da sociedade nacional, plenamente vigentes
em suas regiões não segregadas. O próprio nomen conferido ao documento lavrado
pela Associação – Termo de Transferência de Benfeitoria – revela algum nível de
incorporação da técnica jurídica ao se referir à benfeitoria, e não ao solo, como objeto
da venda, pois o solo não é de propriedade do vendedor, logo, este não poderia alienálo, ao contrário da construção.
Tal hipótese implica em afirmar que as favelas estariam mais integradas à vida
social do que aparentariam á primeira vista, com o que se reitera a crítica à interpretação
dualista da sociedade, critica que tem na obra de Francisco de Oliveira (OLIVEIRA,
1988) uma de suas clássicas sínteses e referência teórica obrigatória. Implica, ainda,
em afirmar uma certa via, ou estratégia (talvez não rigorosamente consciente), de
exercício da cidadania pelos segmentos sociais favelizados, que através da apropriação
fragmentária das instituições do Estado buscaria legitimar, interna e externamente,
as suas próprias instituições.
2.3. O preço da intermediação
Outro aspecto relevante, da intermediação da Associação na compra e venda
de imóveis no caso estudado, consiste no fato de que essa intermediação não é gratuita,
mas há um preço a ser suportado pelo comprador, de maneira também análoga aos
custos de lavratura de escritura e de registro, nos casos compra de imóveis matriculados
no Cartório Imobiliário. No Termo de Transferência de Benfeitoria figura uma cláusula
segundo a qual, em qualquer venda de imóvel situado na favela, o vendedor deverá
arcar com o pagamento de um percentual sobre o valor de venda, em favor da
Associação, a título de doação. Esse ônus, no entanto, é sistematicamente transferido
ao comprador, tal como ocorre com os emolumentos cartorários e tributos incidentes
sobre a venda de imóveis regularizados. Na mesma cláusula, aparece a menção de
que tal cobrança se fundamenta nos “Direitos do Costume”. Ressalte-se que tal cláusula
figura abaixo, e após, a assinatura das partes, o que seria algo inadequado segundo as
técnicas usuais de redação contratual.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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O documento padrão utilizado pela Associação sugere que o percentual cobrado
não é fixo, igual para todos os casos, mas pode variar. Isto porque, na cláusula em
questão, figura um campo em branco no contrato-modelo, que deve ser preenchido
com o percentual efetivamente cobrado em cada caso concreto, o que provavelmente
é feito pelo Presidente da Associação. Tal variação é corroborada pelas entrevistas
realizadas, que se referem a pagamentos entre 2 e 5%, feitos nos seus respectivos
casos. Pelas informações disponíveis, a variação no percentual se deve a diversas
circunstâncias, tais como valor do imóvel, metragem do mesmo (alguns entrevistados
relataram que um funcionário da Associação fez medição do imóvel antes da venda
ser efetivada) ou até mesmo o poder de barganha das partes. Esta última variável foi
claramente explicitada no seguinte depoimento, que, por sinal, permite que sejam
levantadas diversas questões, a título de exercício analítico:
“Eu acho um absurdo você pagar um preço de cartório para botar uma casa no seu nome.
Do valor da casa você paga 10%. Eu comprei minha casa por R$ 6 mil e falei para ele que
foi R$ 4 mil para eu poder pagar R$ 400,00. Ele (se refere a alguém da Associação, que faz
as transferências dos imóveis, possivelmente o próprio Presidente) vai lá no computador,
muda o nome do dono, põe o seu nome, você assina, o dono assina e pronto, aí você paga.
Ele falou: “tem que pagar R$ 200,00”. Eu falei que não tinha esse dinheiro, de onde que eu
vou tirar R$ 200,00? Ele perguntou “quanto você pode me dar?” Eu falei “R$ 50,00”. Ele
disse “não, então R$ 100,00”. Aí eu perguntei se não dava para passar aquele documento
lá em casa, porque só ia gastar uma folha. Ele disse que não era pela folha, mas que tinha
que constar na Prefeitura que é outra pessoa que mora. Eu falei “todas as casas têm registro
na Prefeitura?” Ele disse “todas não, mas a maioria tem; você não quer a sua casa
legalizada?”. Eu falei “quero” e ele “então?” Eu falei “eu vou ver se eu posso pagar R$
200,00. Eu falei com meu marido e ele disse para pagar os R$ 100,00 que ele não queria
confusão. Eu paguei R$ 50,00 no dia que ele passou o papel e deixei os outros R$ 50,00
para pagar no outro mês, porque nem eu nem ninguém tem condição de pagar tudo de uma
vez. Ele não assinou o papel e falou “só assino quando me pagar os outros R$ 50,00”. Ele
só assinou depois que eu paguei os outros R$ 50,00. Ele me deu o papel, mas falou que sem
a assinatura dele aquele papel não valia nada. Quando eu estava com os outros R$ 50,00 eu
fui lá, paguei e ele assinou. Meu marido falou “esse dinheiro não vai nem para a Associação,
não vai nem para ele comprar lâmpada para colocar nos postes, porque isso é serviço da
Prefeitura”. Se eles vão receber algum dinheiro não custava nada eles comprarem as
lâmpadas e falarem com o pessoal que trabalha na Associação para eles mesmos trocarem,
porque eles têm aquelas escadas e não precisam ir na Prefeitura.”
Observe-se, primeiramente, que os moradores lançam mão de diversos recursos
a fim de minimizar os custos da transação. No excerto acima, a entrevistada não
somente declara um valor de compra menor do que aquele efetivamente avençado
com o vendedor – expediente que também foi noticiado por outros entrevistados,
sendo o valor declarado, em média, 33% menor do que o real – como também força
a Associação a aceitar redução e parcelamento do preço da intermediação. Além
desses instrumentos de redução dos custos, um entrevistado declarou não ter realizado
a compra com a intermediação da Associação, realizando-a diretamente com o
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
vendedor, sem submetê-la ao processo habitual de legitimação pela Associação, na
qual seu imóvel ainda figura em nome do vendedor, conforme transcrição abaixo:
“Quando eu comprei uma casa lá na Rua 50, eu paguei R$15.000. A moça lá da Associação
queria 500 contos para passar para o meu nome, aí eu não passei, ué (os outros entrevistados
riem). Eu ainda estou com o documento do rapaz que me vendeu, eu peguei o documento e
depois eu vou lá no cartório, vou fazer um... entendeu, bonitinho lá em casa no computador
e vou levar no cartório para mim autenticar isso. Pô, pagar 500 contos...”
(Pergunto) Então você não registrou na Associação? “Está no nome do outro cara, ele
registrou.” (Pergunto) E o cara já foi embora?
“Ele ainda mora lá no morro. Está por perto. Qualquer hora eu vou chamar ele para a
gente trocar uma pedra, aí nós vamos lá e...”
(Pergunto) E não te dá problema não ter feito isso na Associação? Não traz risco?
“Até agora não deu nada.”
Os depoimentos acima deixam nítida a racionalidade do homo aeconomicus,
tal como já amplamente verificado nos estudos sobre a evasão tributária, que se vê
sobremaneira alimentada em função da situação de baixa renda, amplamente presente
no caso estudado, uma vez que 63,08% dos titulares de imóveis declararam perceber
renda mensal igual ou inferior a 3 salários mínimos, sendo que é expressivo o
percentual na faixa 0-1 SM (27%). (PREFEITURA, 2006)
De outro lado, pode-se verificar que se a legitimidade da intermediação da
Associação não é questionada em princípio, pode passar a ser em função de
circunstâncias como o seu custo, ou mesmo os serviços prestados em retorno aos
recursos arrecadados coletivamente. A relação entre os moradores da favela e a
Associação, nesse caso, assume forte analogia com o modo como os contribuintes se
relacionam com o Estado-Fisco. Com relação a esse ponto, chama atenção a maneira
como o representante da Associação justifica a cobrança da “taxa” de transferência
do imóvel. O argumento aparenta conter certa ambiguidade, podendo tanto dar a
entender que, mediante tal pagamento, a Associação se encarregará de promover a
regularização do imóvel junto à Prefeitura, como que, diversamente, constitui condição
necessária a uma futura regularização a ser feita pela Prefeitura, ou ainda que, cumprido
o procedimento da Associação a propriedade estará efetivamente regularizada. Em
qualquer dos casos, no entanto, abre-se mão de justificar a cobrança em função não
somente dos serviços, como do reconhecimento coletivo, que somente a validação
da compra junto a Associação pode oferecer. Bem ou mal, a Associação tem a oferecer
aos moradores da favela, um grau de segurança da posse que o próprio Estado é
incapaz de oferecer. Goste-se ou não, a Associação detém um poder e legitimidade
dentro da favela, que somente é contrastado pelo poder dos grupos armados nela
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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existentes, e os seus registros e seu ativo envolvimento certamente serão indispensáveis
aos trabalhos de regularização realizados pelo Poder Público. Tais fatores, em tese
suficientes a justificar a cobrança, não são acionados no exemplo acima reproduzido,
o que constitui elemento importante na reconstrução da maneira como moradores e
lideranças da favela representam a instituição Associação de Moradores e seu papel
no seio dessa coletividade.
O fato de alguns poucos moradores, segundo percebemos na pesquisa realizada
até aqui, não fazerem a venda do imóvel perante a Associação mostra como pode
haver informalidade mesmo no interior de um sistema informal. Seria o que, a grosso
modo, provisoriamente e à falta de categorias mais consistentes e satisfatórias,
podemos chamar de informalidade dentro da informalidade. No caso estudado, salvo
poucas exceções, toda a massa de transações envolvendo imóveis se desenrola sem
que se cogite submetê-las aos rituais de escritura e registro criados pelo Estado, até
porque esta última seria impossível na ausência de regularização fundiária. De fato,
vigora o processo de chancela, reconhecimento, validação ou legitimação perante a
Associação de Moradores, cuja intermediação não pode deixar de ser vista como a
formalidade instituída pelos costumes estabelecidos naquela parcela da sociedade,
válida e exigível especifica e unicamente para os imóveis situados em sua “jurisdição”.
Ora, nos depoimentos acima reproduzidos, observamos que mesmo esta formalidade,
de origem interna à favela, é evitada, driblada ou minimizada por alguns agentes que
operam nesse universo, que continuam a agir em busca de formas livres de quaisquer
intermediações, mais simples e menos onerosas, a fim de realizar os negócios de seu
interesse. Trata-se de formalidade não estabelecida pelo Estado, mas sim pelos usos
e costumes daquele próprio microcosmo, porém, mesmo essas, quando necessário,
são burladas pelos que atuam nesse microcosmo. Assim, a informalidade dentro da
informalidade constituiria um processo, de natureza socioeconômica, através do qual
os agentes desenvolveriam sucessivos meios de se furtarem aos controles burocráticos
e mecanismos de formalização estabelecidos, mesmo aqueles supostamente mais
simples, mais próximos e mais legítimos. Ela consistiria, assim, numa eterna
capacidade de se constituírem procedimentos oficiosos, subterrâneos, paralelos e
ocultos aos mecanismos institucionalizados para controlar a vida social, mesmo que
estes nada tenham a ver com o Estado. Ou seja, a informalidade não se reduz
estritamente à fuga dos controles e formalidades de origem estatal, não sendo um
processo relacionado à presença e ação da burocracia estatal, mas parece ser
relativamente indiferente a matriz dessas formalidades.
Também merece atenção um outro nuance presente no relato da discussão entre
Associação e um morador em torno do quantum da taxa de transferência do imóvel.
De um lado, a Associação teria aceitado, de imediato e sem contestação, a barganha
em torno do preço a ser cobrado por sua intermediação, assumindo tacitamente que
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
se tratava de um valor barganhável, não sujeito a critérios estritamente objetivos. De
outro, a posição conciliadora do marido da entrevistada, que “põe panos quentes” no
conflito de interesses com a Associação, assumindo que o seu recrudescimento seria
o mal maior a ser evitado, aceitando pagar uma quantia que, mesmo parecendo
excessiva, poria de imediato um fim ao caso. Os dois lados mostram-se dispostos a
fazer concessões, até certo limite, revelando um modo de administração do conflito
que se, de um lado, não cede inteiramente à vontade da outra parte, de outro, não trata
seus próprios interesses como direitos irrenunciáveis e indisponíveis. Teríamos, talvez,
uma postura com certo grau de flexibilidade e de conformismo, que possivelmente se
baseia na percepção realista da virtual inviabilidade de exigência estrita do que talvez
constituíssem seus direitos, até porque estes não seriam nítidos o suficiente para
conferir força e poder de convencimento à sua arguição. O que dá a Associação o
direito de cobrar aquele valor? O que dá ao morador o direito de contestá-lo se ele
seria cobrado de todos os que estão na mesma situação? Na medida em que a resposta
a essas questões não emerge com clareza, a esfera do direito fica embaçada, tanto que
nenhuma das partes verbaliza algo nesse sentido, sendo fatalmente remetidas ao plano
da negociação, cujo desfecho seria bastante incerto e que poderia mesmo gerar
tratamentos diferenciados a situações assemelhadas. Essa possibilidade, por sua vez,
pode comprometer a legitimidade dos procedimentos geridos pela Associação perante
o conjunto dos moradores.
2.4. A insegurança do comprador em seus direitos
As entrevistas realizadas revelaram, ainda, a ocorrência de um incidente
consistente na desistência de uma venda já concluída, por parte do vendedor, de
maneira repentina e imotivada. Tal caso foi narrado da seguinte forma pela depoente:
“Passei dois anos numa casa; depois passei para outra que a gente pretendia comprar, até
pagou a entrada e depois o moço não quis, quis desfazer o negócio. Ele falou que não
queria mais vender, nós não podíamos ficar lá. Aí eu passei para a minha atual. Ele ficou
insistindo para a gente comprar, que a casa era boa... Meu marido falou que não ia ter
dinheiro para pagar na hora e ele dizia que esperava ele ir pagando aos poucos, dava uma
entrada e podia ir morar na casa. Meu marido deu R$ 2 mil a ele, a casa era R$ 6 mil, para
ficar pagando o restante aos poucos. Quando foi em dezembro, meu marido ia pagar mais
R$ 1 mil a ele com o 13º, aí ele falou que não queria mais. A gente só tinha falado de boca,
ninguém assinou papel nem nada, aí pronto, o gato comeu... Aí a parte que a gente pagou
ele devolveu, e a gente ficou pagando aluguel.”
(Pergunto) Porque vocês acham que ele desistiu?
“Não sei. Depois a irmã dele ficou com a casa, não sei se foi porque a irmã pediu a ele a
casa, ela andava comprando casa. Na realidade ele só falou que não queria. Daí a gente
ficou morando e dali a uns 6 meses ele falou que queria a casa e que me dava 15 dias para
desocupar. Eu falei que só saía quando arrumasse uma outra casa, que não tinha 15 dias,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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não tinha 1 mês, não tinha nada, o meu aluguel está em dia, o meu mês está pago e você não
tem o direito de fazer isso. Meu marido, que não gosta de arrumar confusão com ninguém,
chegou a dizer “deixa”, e eu disse “deixa nada, o senhor nem volte daqui a 15 dias; quando
eu desocupar a casa eu levo a chave para o senhor”. E ele não voltou. Eu fiquei igual a uma
maluca procurando casa. Conheci todos os becos do Parque Royal. Uma amiga minha que
me falou dessa casa onde estou morando agora. Ficamos 3 anos e alguns meses pagando
aluguel e depois que fomos comprar.”
(Pergunto) Nessa tentativa de compra, não chegaram a pensar em fazer um contrato escrito?
“Não, porque ele já era conhecido do meu marido há muitos anos, desde 1993, e meu
marido confiou, achou que não ia acontecer nada. Ele devolveu o dinheiro, mas ficamos
muito chateados com ele. Na hora ficamos muito chateados, mas depois passou.”
Do ângulo da legislação em vigor, o casal comprador da casa não poderia ser
compelido a desfazer o negócio, salvo se essa possibilidade tivesse sido expressamente
acordada antes, uma vez que o comprador já havia iniciado o pagamento e, inclusive,
recebido o imóvel objeto da compra, ou seja, tratava-se de ato jurídico perfeito,
encontrando-se o contrato em franca etapa de cumprimento. O fato de ter sido ajustado
verbalmente em nada o prejudica, ao menos na linha de princípio, uma vez que a lei
admite, nesse e em vários outros casos, o contrato verbal.6 Ainda dessa perspectiva,
seria lícito que, além da devolução do que pagou, monetariamente corrigido, exigisse
do vendedor uma indenização a título de perdas e danos, já que tratava-se de uma
ruptura sem motivo que a lei considere justo, bem como tal ruptura trouxe ao
comprador os ônus de arcar com aluguéis, procurar outro imóvel e fazer sua mudança,
o que não ocorreria se o negócio fosse mantido. Ao invés disso, os compradores, bem
ou mal, aceitaram o desfazimento exigido pelo vendedor de maneira arbitrária. Não
lhes é vedado por lei assim agirem, uma vez que qualquer contrato bilateral entre
particulares pode ser revogado por mútuo acordo dos contratantes, pelo que o ato de
revogação, nos termos em que foi combinado, também pode ser classificado, à luz da
lei civil, como um ato válido. No entanto, o aspecto relevante a ser aqui ressaltado é
o de que, à semelhança do conflito em torno da “taxa” cobrada pela Associação – por
sinal, nos dois casos trata-se do mesmo casal – a dimensão jurídica do caso – isto é,
os direitos que porventura pudessem ter, naquela situação – não constitui o aspecto
determinante das decisões tomadas pelos interessados, pouco ou nada interferindo
na administração que fizeram do conflito de interesses. Em suma, trata-se de uma
dimensão praticamente alheia à maneira como as partes conduzem o caso.
O fato de tratar-se de um contrato verbal, a julgar pelas palavras expressas da
entrevistada, levou as partes a crer que o mesmo poderia ser desfeito a qualquer
momento. Porém, esta não nos parece ser a única variável que determinou essa
6
Por exemplo, no caso do contrato de locação, quer de bens móveis quer de imóveis, prevalece a mesma regra.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
percepção. Levando-se em consideração vários elementos dispersos no conjunto dos
depoimentos colhidos, provavelmente também contribuiu para essa percepção o fato
de tratar-se de uma compra de imóvel dentro da favela, onde, segundo vários dentre
os entrevistados, não vigoram as leis que valem fora da favela. Tal situação se veria,
ainda, agravada pelo fato de a compra ter sido feita a um conhecido de longa data dos
compradores, o que conduz a que as relações pessoais entre as partes se imiscuam na
relação de compra e venda, pondo por terra uma das máximas que exprimem a
racionalidade da economia de mercado, segundo a qual “amigos são amigos, negócios
ficam à parte”. Se estiver correta a percepção dos entrevistados que aponta para a
clivagem de regras do asfalto, ou da cidade, e da favela, o comportamento desse
casal, diante de idêntica situação, provavelmente seria diverso caso tivessem
atravessado a avenida que passa em frente à favela em que residem, a fim de adquirir
imóvel nos conjuntos habitacionais existentes no entorno da favela. Trata-se de uma
instigante hipótese, ainda a ser devidamente tratada na pesquisa que ora
desenvolvemos.
3. CONCLUSÃO
Os dados revelados por nossa pesquisa empírica parecem reforçar a tese de
que as ordens jurídicas estatal e favelar se encontram em um contínuo e conflituoso
processo de diálogo, havendo diversas formas em que uma é condicionada pela outra,
ou em que uma se constitui recorrendo à incorporação de elementos originários da
outra. Vemos nesse processo um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, próprios
de sociedades capitalistas periféricas como a brasileira, isto é, tratar dessas ordens
jurídicas constitui nada mais do que um ângulo para tratar de como se constitui a
ordem social como um todo. Não estamos, pois, diante de duas ordens estanques,
isoladas entre si, o que representaria uma perspectiva dualista a respeito do objeto
estudado, perspectiva que refutamos em nossas referências teórico-metodológicas.
O fato de recusar-se esse dualismo metodológico não se confunde com a
negativa do reconhecimento da situação de subordinação à qual as coletividades
favelizadas encontram-se submetidas, posto que a comunicação e os fluxos existentes
entre ambas essas ordens é profundamente desigual. Talvez signifique, diversamente,
o abandono da noção de exclusão como ferramenta explicativa dos processos sob
análise – o que deliberadamente ocorreu no presente trabalho – uma vez que nossa
interpretação caminha na perspectiva da integração subordinada, que nos parece
mais acertada e fértil ao trabalho analítico. Também significa que recusamos uma
perspectiva moral na abordagem das duas ordens, que promove a associação intrínseca
de virtudes positivas a uma delas e negativas a outra, ou vice-versa. O fato de falarmos
de uma ordem jurídica interna à favela não significa que ela seja necessariamente
melhor ou pior, mais ou menos democrática, do que a ordem legal oficial.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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Esse dualismo metodológico que criticamos parece comparecer nos trabalhos
acadêmicos e jornalísticos que tratam do problema da não vigência de fato do Estado
Legal, e/ou as ambiguidades do funcionamento do sistema legal, como um problema
restrito às favelas e às outras regiões definidas costumeiramente como áreas cinzentas.
Na verdade, este é um problema que diz respeito ao conjunto da cidade e ao Direito
Urbanístico de maneira geral, que tem sido histórica e recorrentemente marcado por
crônica inefetividade. Preferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral,
apresenta graduações em sua efetividade ao longo do tempo e do espaço social como
um todo, e em função de diversas circunstâncias, que não se reduzem de maneira
alguma aos chamados “territórios de exceção”.
Nossa hipótese é a de que a grande diferença que marca a ordem jurídica nos
distintos espaços sociais seja de natureza ideológica e não empírica, isto é, seria
extremamente difundida socialmente a imagem das favelas como regiões essencialmente anômicas, isto é, espaços “sem lei nem ordem”. Essa visão seria compartilhada em certa medida pelos próprios favelados, conforme demonstram as entrevistas
aludidas neste trabalho. Em que pese o fato de que os próprios moradores das favelas
fazem distinções rígidas entre as normas que valem dentro e fora da favela, o fato é
que o espaço da favela parece ser amplamente regulado, bem como se observa a
presença relevante de diversas instituições oficiais, de maneira surpreendente em
alguns casos. É o que vemos no caso exemplar da absorção, pela Associação de
Moradores, do princípio da continuidade registraria, que a nosso ver constituiria a
ponta do iceberg de um processo de socialização das instituições oficiais, que vai
discretamente introduzindo-as no senso comum e nos procedimentos mais comezinhos. Por mais que algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente duais, tal aspecto
não pode ser transportado acriticamente para o plano da teoria social, de forma a
determinar a aceitação do dualismo metodológico, o que comprometeria os resultados analíticos.
O que deve ser objeto de atenção do pesquisador é, em primeiro lugar, o fato
de que as soluções de força, em alguns casos arbitrárias, ao arrepio dos direitos que o
sistema legal oficialmente reconhece, constituem um componente presente e relevante
nas relações sociais estudadas em nosso caso. Isto é, as relações jurídicas seriam
marcadas por 3 distintas determinações: a) os usos e costumes locais, estabelecidos
em processos de negociação; b) as apropriações do sistema legal estatal; c) as
imposições e/ou soluções arbitrárias na solução de litígios, que exibem o aspecto de
violência latente, presente nas relações sociais de maneira geral.
Em segundo lugar, deve ser ressaltada a importância da análise e interpretação,
à luz do Direito oficial vigente, das relações jurídicas travadas no âmbito das favelas.
Trata-se, a nosso sentir, de um exercício estratégico, quer do ângulo teórico-jurídico,
quer do ângulo das suas implicações sociopolíticas. Tal exercício muito pode contribuir
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
para a afirmação da cidadania e da condição de sujeito de direito por parte das
coletividades objeto de segregação sócio-espacial. Julgamos que, até o presente
momento, tal exercício foi pouco realizado, aquém do que seria necessário, sendo
esse mais um dos efeitos da barreira ideológica, de natureza dualista, a qual nos
referimos anteriormente, que atira acriticamente a quase totalidade das relações e
negócios jurídicos realizados entre pobres no terreno da extralegalidade, reproduzindo
aquilo que Boaventura Santos (1980) já denominou de “ilegalidade existencial”.
Esta seria, provavelmente, uma das grandes barreiras para que se possa configurar a
almejada integração, que configuraria a vigência do Estado de Direito no espaço das
favelas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Habitação; AGRAR.
Regularização urbanística, administrativa e fundiária dos imóveis da área denominada Parque Royal –
Ilha do Governador: relatório final. Rio de Janeiro: agosto / 2006. 55 p.
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Cebrap, 1988.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO, Cláudio;
FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: textos básicos de Sociologia Jurídica. São Paulo: Pioneira,
1980. p. 109-117.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
2
A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A
FUNÇÃO SOCIAL DAS TERRAS PÚBLICAS
Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia: Fundamentos Jurídico-Urbanísticos,
Aplicabilidade e Gestão Pós-Titulação, no
Município de Osasco, São Paulo
PATRYCK ARAÚJO CARVALHO*
Arquiteto e Urbanista, Diretor de Regularização
Fundiária do Município de Osasco.
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO PARTE DA POLÍTICA DE
DESENVOLVIMENTO URBANO
O Município de Osasco, localizado na região metropolitana de São Paulo,
teve, como a maioria das grandes cidades brasileiras, um processo de expansão urbana
desigual e excludente, pautado pela precariedade e informalidade. Osasco foi um
distrito da cidade de São Paulo até 1962, quando teve sua emancipação políticoadministrativa. É um município com uma superfície de 64,93 km2, inteiramente urbano,
população de 701.120 habitantes (IBGE – posição de 2007), sendo a quinta maior
densidade populacional do Estado de São Paulo.
A cidade formou-se dentro do modelo de expansão periférica da cidade de São
Paulo, abrigando uma parcela da população que teve como alternativa habitacional a
aquisição de lotes em loteamentos populares, quase sempre à margem do mercado
formal. Esse modelo foi definido por Nabil Bonduki como “auto-empreendimento
da moradia popular, baseado no trinômio loteamento periférico, casa própria e
autoconstrução”1.
Osasco possui cerca de 170 assentamentos informais, implantados sobre áreas
públicas municipais, identificados como “áreas livres”. Nesses assentamentos residem
*
Rua Fradique Coutinho, 237 ap 09B – Pinheiros – São Paulo – SP – CEP 05416-010. Email:
[email protected]. Tel: 11 9622-3828 ou 11 9641-6506.
1
BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão
da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998.
72
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
cerca de 120 mil pessoas, quase 20% da população total da cidade. Muitos desses
assentamentos foram implantados em terrenos municipais que tinham outra destinação
que não a habitacional. Sem contar os loteamentos informais e clandestinos que
ocupam uma grande parcela da cidade. Estima-se que cerca de 60% do território
apresentam algum tipo de desconformidade fundiária, aquém dos padrões urbanísticos
mínimos ou desprovidos de regularidade jurídica.
Tendo em vista esse quadro, a partir de 2005, a administração do município de
Osasco elaborou uma Política Habitacional e de Desenvolvimento Urbano na qual a
questão habitacional não se restringiu a produzir e financiar novas habitações.
Estabeleceu a necessidade de coordenar e articular ações que melhorassem a qualidade
dos assentamentos precários existentes. Neste sentido a regularização fundiária
despontou como um dos principais programas habitacionais.
O Programa de Regularização Fundiária do Município de Osasco partiu do
pressuposto que a Regularização Fundiária é um processo de intervenção, geralmente
pública, que envolve três ações complementares:
– Físico-habitacional – melhoria das condições de habitabilidade nos
assentamentos informais através da implantação de projetos de urbanização.
– Social – garantia de participação democrática da população, buscando também
a articulação com outros programas e políticas públicas destinados à inclusão social,
cidadania, geração de emprego e renda.
– Jurídica – aplicação das leis que asseguram a permanência da população nas
áreas ocupadas, garantindo o direito constitucional à moradia.
A REGULARIZAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS OCUPADAS PARA FINS
HABITACIONAIS
O principal objetivo da regularização é aplicar os instrumentos jurídicos
previstos no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01 e na Medida Provisória 2.220/
01 para garantir, aos moradores das áreas públicas ocupadas, a segurança jurídica da
posse. Principalmente se considerarmos que as ocupações para fins de moradia em
áreas públicas municipais representam quase 20% da população do Município. Os
moradores de algumas dessas áreas públicas haviam recebido, em outros momentos,
títulos precários de moradia, como por exemplo, permissão de uso a título precário.
O Município de Osasco, compreendendo o poder-dever de regularizar as áreas
públicas ocupadas, emanado da MP 2.220/01, especialmente no seu art. 6º, adiantouse ao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou por
procedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial para
Fins de Moradia.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
73
Esse procedimento foi precedido de critérios para seleção das áreas públicas
que integrariam o que foi chamado de Fase I do Programa de Regularização. Dessa
forma, foram inicialmente selecionados assentamentos que:
– apresentassem ocupação consolidada, dotados de infra-estrutura mínima e
serviços;
– tivessem recebido algum tipo de intervenção ou urbanização pelo poder
público;
– não estivessem inseridos em áreas de proteção ambiental ou de risco;
– fossem implantados em áreas públicas de loteamentos regulares.
A metodologia de trabalho proposta está centrada em atividades que envolvem
a gestão democrática e participação das comunidades em todas as etapas do processo
de regularização fundiária, atendendo ao disposto pelo inciso II, do art. 2º do Estatuto
da Cidade. Como instância de participação, foi criado o Fórum de Regularização que
reúne cerca de 120 representantes das 33 áreas públicas inicialmente selecionadas
para o Programa.
Para orientar as atividades do Fórum de Regularização, foi elaborado material
que redundou na publicação de “Roteiro para as áreas públicas ocupadas – Programa
de Regularização da Prefeitura do Município de Osasco”. Esse material apresenta os
chamados “10 passos fundamentais” para a regularização fundiária de áreas públicas
ocupadas, a partir da aplicação dos instrumentos da Concessão de Uso Especial para
Fins de Moradia (CUEM) e da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). A formulação dos “10 passos” aconteceu nas reuniões iniciais do Fórum de Regularização.
A metodologia dos 10 passos serviu também para orientar o andamento dos
trabalhos na rotina dos técnicos envolvidos2:
– 1º passo: Identificação, mapeamento e seleção dos assentamentos informais.
– 2º passo: Garantia de participação da população nos processos de
regularização.
– 3º passo: Projeto de lei autorizando a desafetação das áreas públicas e a
aplicação dos instrumentos de regularização fundiária.
– 4º passo: Projeto de lei delimitando as áreas ocupadas como zonas especiais
de interesse social (zeis).
– 5º passo: Realização do levantamento planialtimétrico cadastral (lepac).
2
Roteiro para as Áreas Públicas Ocupadas. Programa de Regularização da Prefeitura do Município de Osasco /
Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, 2006.
74
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
– 6º passo: Realização do cadastro sócio-econômico e coleta de documentos
pessoais que comprovem o tempo de posse.
– 7º passo: Registro da área municipal nos Cartórios de Registro de Imóveis.
– 8º passo: Definição dos instrumentos a serem aplicados em cada situação,
elaboração da planta de concessão e dos memoriais dos lotes.
– 9º passo: Assinatura do termo de concessão (contrato).
– 10º passo: registro dos termos de concessão nos Cartórios de Registro de
Imóveis.
Integraram a Fase I do Programa de Regularização de Áreas Públicas, 33
assentamentos informais, totalizando cerca de 10.800 lotes. Das 33 áreas, 15 foram
incluídas em Convênios com o Ministério das Cidades, no Programa de Urbanização,
Regularização e Integração de Assentamentos Precários / Ação de Apoio à
Regularização Fundiária Sustentável de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas.
A ESPECIALIZAÇÃO E DESAFETAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS
OCUPADAS
Outro pressuposto do Programa implantado foi a emissão de instrumentos de
regularização registráveis nos Cartórios de Registro de Imóveis. Para tanto foi
necessário buscar de início a especialização das áreas públicas. Não é pouco comum
encontrar municípios nos quais o controle do patrimônio público encontra-se
desatualizado. As áreas públicas oriundas de parcelamentos do solo registrados,
raramente, possuem matrículas próprias ou quando possuem, essas são imprecisas
ou não correspondem à realidade.
A tarefa de proceder ao registro das áreas públicas junto aos Cartórios de
Registro de Imóveis obedeceu aos princípios preconizados pela Lei de Registros
Públicos, Lei Federal 6.015/73. O registro inicial deu-se conforme informações
contidas nas plantas de loteamentos já depositadas junto aos Cartórios de Registros
de Imóveis. Entretanto, invariavelmente, fez-se necessária a retificação desses registros
uma vez que as informações tabulares eram distintas das informações obtidas por
meio de levantamento topográfico.
Posteriormente ao registro em Cartório, procedeu-se à desafetação das áreas
públicas, com base em autorização feita por meio da Lei Municipal nº 4.059/2006.
Nos termos do art. 5º da MP 2.220/01, é facultado ao Poder Público assegurar
o direito à concessão especial em outro local, na hipótese de ocupação de imóvel
classificado como bem de uso comum do povo. Entretanto, essa faculdade não se
afigurava como passível de aplicação no Município de Osasco, uma vez que a quase
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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totalidade das áreas públicas ocupadas está incluída na categoria dos bens de uso
comum do povo. E, especialmente, se considerarmos que o Município quase não
dispõe de vazios urbanos significativos, nos quais essa população pudesse ser
reassentada. Ainda que houvesse disponibilidade de terras, não haveria recursos
financeiros suficientes para os reassentamentos.
A opção pela desafetação das áreas públicas visava atender, principalmente,
aos moradores dessas áreas que não preenchessem o requisito da comprovação de
cinco anos de posse ininterrupta até 30 de junho de 2001, para adquirir o direito
subjetivo à Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. Nesses casos, seria
aplicado o instrumento da Concessão de Direito Real de Uso.
Mesmo com a autorização legal para desafetação das áreas públicas municipais,
só foi possível efetuar o registro dessas desafetações a partir de 31 de janeiro de
2007.
Vale lembrar que o inciso VII da Constituição do Estado de São Paulo vedava
expressamente a mudança de destinação das áreas definidas como “áreas verdes” e
“institucionais” em planos de loteamentos. Esse era um dos principais entraves à
regularização dos assentamentos informais implantados em áreas públicas dessa
natureza. Entretanto, a Emenda Constitucional nº 23, de 31/01/2007, introduziu a
possibilidade de exceção à vedação legal nos casos em que a alteração de destinação
tivesse como finalidade a regularização fundiária de núcleos habitacionais de interesse
social, destinados à população de baixa renda e cuja situação estivesse consolidada
até dezembro de 2004.
O DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA PARA GERAÇÃO DE
PLANTAS, MEMORIAIS E TÍTULOS
Considerando os objetivos do Programa implantado e o número de lotes a
serem regularizados, foi necessário o desenvolvimento de um sistema informatizado
que possibilitasse a geração de plantas, memoriais descritivos e o controle da emissão
dos títulos de concessão para fins de moradia.
O sistema tem como objetivo automatizar o processo de modelagem e
preparação das plantas, possibilitando a extração dos dados das poligonais, gerando
assim, os memoriais descritivos e os croquis de localização de todos os lotes de
maneira automática.
A partir do tratamento das informações obtidas por meio do levantamento
planialtimétrico cadastral é feita a individualização e geocodificação dos lotes e de
todos os demais elementos que serão descritos. Após este tratamento inicial, a base é
convertida em um formato que possibilita a migração para um ambiente de dados
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
geográficos integrados, onde será realizada a extração das informações que geram os
memoriais descritivos de qualquer parcelamento.
O Cadastro Sócio-econômico também é modelado e integrado ao sistema,
permitindo dessa forma, a geração dos termos de concessão na forma de títulos
emitidos por meio do próprio Sistema.
OS PRIMEIROS RESULTADOS DO PROGRAMA
Garantidos os procedimentos de especialização e desafetação das áreas públicas,
o Município providenciou a elaboração de chamada “planta de concessão”. Essa
planta possibilita a identificação de todas as parcelas objeto de concessão. A planta
de concessão reflete o cruzamento das informações geográficas com os dados sócioeconômicos e de documentação pessoal dos moradores. As informações obtidas na
fase do cadastramento e coleta de documentos permitem que sejam definidos os
instrumentos que serão aplicados em cada situação específica. A planta de concessão
permite tanto ao Município, quanto aos Cartórios de Imóveis, o controle de
disponibilidade da “gleba”.
Com base na metodologia apresentada, foram emitidos, até julho de 2008,
cerca de 3.000 títulos de regularização, incluindo Termos Administrativos de
Concessão de Uso Especial, Termos Administrativos de Concessão de Direito Real
de Uso ou Contratos de Compra e Venda. Desse total, 1.557 já obtiveram o devido
registro junto aos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo 995 títulos de concessão
de uso.
O Município cuidou do encaminhamento aos Cartórios, das plantas de
concessão, acompanhadas dos respectivos memoriais descritivos e dos Termos
Administrativos de Concessão de Uso. O Município requereu a gratuidade dos atos a
serem praticados, tendo em vista a disposição do § 15 do art. 213 da Lei Federal nº
6.015/73: “Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentes
de regularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública”.
AS QUESTÕES COLOCADAS EM DUVIDA PERANTE O JUÍZO
CORREGEDOR
Os Termos Administrativos de Concessão de Uso foram prenotados e registrados
pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco. As áreas localizadas na Zona Norte
do Município, sob a jurisdição do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco, não
tiveram seus registros efetuados e foram objeto de suscitação de dúvida junto ao
Juízo Corregedor Permanente. De forma simplificada, destacamos as questões que
foram apontadas como impeditivas ao registro:
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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1) O registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso não se caracteriza
como registro de regularização fundiária. “A ‘Regularização Fundiária’ é uma
expressão que vem sendo utilizada costumeiramente em seu sentido sociológico.
Regularização fundiária em seu sentido jurídico é um procedimento administrativo
de legalização de parcelamentos do solo, normatizado pelos itens 152, 153, 154 e
155 do Capítulo XX das normas de Serviço da Corregedoria, cujos requisitos deverão
ser observados. O fundamento de validade destes itens está na Lei 6.766/79. O trâmite
da regularização, conforme item 154, ocorre no Juízo Corregedor Permanente, com
a manifestação necessária do douto representante do Ministério Público e do Oficial
Registrador competente, que deverão analisar todas as plantas e documentos
necessários.”3
2) Há ilegalidade da exigência de “anuência prévia e expressa” da Prefeitura
para fins de transferência das concessões.
3) Para o registro das concessões, o Município deve apresentar as informações
do cadastro de IPTU de cada “lote”.
4) Necessidade de reconhecimento de firma das assinaturas constantes dos
termos administrativos de concessão.
O feito tramita sob o nº 2.055/2007 perante a 6a Vara Cível da Comarca de
Osasco. Entretanto, mesmo que não tenha havido decisão pelo Juízo Corregedor,
acreditamos importante apresentar, de forma resumida, a linha de argumentação
adotada pela Municipalidade. Especialmente nos aspectos que defendem que a emissão
e o registro dos Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia ou de Concessão de Direito Real de Uso caracterizam-se como ações de
regularização fundiária, para efeitos de aplicação do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/73,
ou do Estatuto da Cidade.
A Regularização fundiária de assentamentos informais urbanos deve ser interpretada em seu sentido lato, visto comportar diversas espécies e, consequentemente,
legislação disciplinadora própria para cada espécie.
Neste sentido, vale destacarmos as lições do Desembargador Kiotsi Chicuta:
“Tradicionalmente, a regularização fundiária se fazia com observância da Lei 6.766/79,
mas, agora, a visão não é mais tópica e sim abrangente, o que pode ser observado pela Lei
10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as diretrizes básicas da política urbana, na
forma do artigo 182 da Constituição Federal (a política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem
estar de seus habitantes), dispondo no parágrafo 1º que “o plano diretor, aprovado pela
3
Processo nº 2.055/07 – 6ª Vara Cível da Comarca de Osasco – SP.
78
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, acrescentando
no parágrafo 2º que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Salta claro que, em todas as cidades, principalmente aquelas de grande porte como São
Paulo, inúmeras são as ocupações decorrentes de invasões ou parcelamentos clandestinos
e parte das quais em próprios municipais, fazendo com que soluções sejam adotadas para
inclusão desse segmento no mundo legal, inclusive com títulos inscritos no Registro de
Imóveis para que haja até mesmo outorga de direitos reais aos possuidores e titulares de
direitos.”4
Das linhas acima, depreende-se a elasticidade do conceito de regularização
fundiária que, como analisaremos, não mais compreende somente as formas de implantação, previstas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei Federal nº 6.766/1979.
O art. 38 e seguintes da Lei Federal nº 6.766/79 estabelecem, minuciosamente,
todos os procedimentos de regularização do parcelamento do solo pela Municipalidade,
em lugar do loteador faltoso, iniciando-se com a notificação deste para cumprir suas
obrigações legais, interrupção de recebimento de prestações dos adquirentes dos lotes,
depósito judicial destas prestações, culminando na realização das obras de infraestrutura pela Prefeitura, às expensas das prestações depositadas, ou às expensas do
loteador.
Nesses casos, a Municipalidade torna-se uma espécie de substituta do loteador,
para fins de cumprimento das obrigações legais daquele que promoveu o parcelamento,
minimizando a lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos
direitos dos adquirentes de lotes. Assim, sempre que regulariza parcelamentos do
solo que não deu causa, não o faz em nome próprio, e sim em nome de outrem.
É nessa esteira que as Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça do
Estado de São Paulo, Provimento nº 58/89, legitimam a Municipalidade para registrar
a regularização fundiária de parcelamento promovido por outrem.
Assinale-se também que, os dispositivos supra mencionados, das normas em
regência, podem também ser aplicáveis aos parcelamentos promovidos pela
Municipalidade, mesmo que excepcionalmente. São os casos em que o Município
promove o parcelamento do solo, alienando os lotes produzidos, em conformidade
com a prerrogativa prevista no Inciso IX do art. 23 da Constituição Federal.
Trata-se de produção de lotes visando à diminuição do déficit habitacional do
Município, com a contrapartida do recebimento do valor empregado para a produção
4
A função registrai e a atuação do Judiciário – Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão
real de uso. In Boletim Eletrônico IRIB/ANOREGSP 804 DE 28/03/2003.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
79
dos mesmos, pelos adquirentes (munícipes). Nesse caso, a atividade exercida pelo
Município equivale ao do loteador particular e, portanto, subsume-se a toda legislação
atinente ao parcelamento do solo urbano, especialmente, à Lei Federal nº 6.766/79.
Nas situações em que o Município efetua o parcelamento do solo antes de seu
licenciamento junto aos órgãos competentes, a única solução jurídica traduz-se na
promoção da regularização fundiária. Em se tratando do Estado de São Paulo, o
procedimento de regularização fundiária é aquele previsto nas Normas da Corregedoria
Geral de Justiça, acima aludidas.
A par das características das normas, que anteriormente expusemos, destacamos
uma em especial: o registro da regularização fundiária de parcelamentos do solo
produzidos informalmente, com a alienação de lotes, no Estado de São Paulo, só
pode ser registrado através de mandado judicial, ou seja, é defeso ao Cartório de
Registro de Imóveis proceder ao registro do parcelamento, se o título hábil ao registro
não ingressar pela via judicial.
Entretanto, existem outras espécies de regularização fundiária. É o caso que
ora analisamos, de registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso para
Fins de Moradia.
Para as áreas públicas historicamente ocupadas por população de baixa renda,
até o advento do Estatuto da Cidade, não havia previsão normativa que possibilitasse
a sua regularização fundiária. Note-se que estamos falando de áreas públicas ocupadas,
o que exclui as áreas públicas objeto de projetos habitacionais implantados pelo Poder
Público.
Com a publicação do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/01, as áreas
públicas passaram a ter a proteção legal em nível nacional por meio da Concessão de
Uso Especial para Fins de Moradia, dentre outros instrumentos legais. A Medida
Provisória nº 2.220/01, editada logo após o Estatuto da Cidade, disciplinou esse
instrumento.
A primeira característica é o reconhecimento do direito à moradia à população
de baixa renda nas áreas públicas, por meio da concessão de uso especial. Este
reconhecimento deixa de ser mero ato discricionário do Poder Público e torna-se um
poder-dever. Os requisitos estampados na Medida Provisória são: que o morador
possua como seu, até 30 de junho de 2001, ininterruptamente e sem oposição, até
250 m2 de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou
de sua família, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título,
de outro imóvel urbano ou rural.
Podemos inferir então, que a outorga da concessão de uso especial para fins de
moradia ao morador de área pública que atenda aos requisitos da Medida Provisória
80
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
2.220/01, é ato vinculado, não restando alternativa ao poder Público senão praticá-lo
em conformidade com a legislação pertinente.
Neste sentido, a doutrina também se posiciona. Segundo Nelson Saule Júnior5:
“A concessão de uso deixa de ser uma faculdade do Poder Público para efeito de promover
a regularização fundiária das ocupadas pela população de baixa renda. Esta norma
constitucional, de forma idêntica ao usucapião urbano, caracteriza a concessão de uso
como direito subjetivo, que deve ser declarado por via administrativa ou pela via judicial,
mediante provocação dos interessados, nos termos do art. 6º da MP. De acordo com este
artigo, o título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via
administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa
ou omissão deste, pela via judicial”.
Tal direito subjetivo importa em um poder-dever do Poder Público, que
materializa sua própria vinculação quanto ao ato de outorga da Concessão de Uso
Especial para Fins de Moradia àqueles moradores de área pública que preenchem os
requisitos autorizadores do reconhecimento deste direito.
Vejamos o que afirmam Carlos Aguiar e Teresa Borba6:
“A CUEM é dotada de ação e sanção. É norma jurídica, nas feições objetiva e subjetiva. É
lei que impõe direitos e deveres; regra escrita que incumbe ao ente estatal o dever de legalizar
a posse da terra.
Apesar de editada pelo Executivo na forma de medida provisória, a própria Carta Federal,
em ser art. 62 atribui a ela força de lei. Registrem-se a eficácia e vigência da medida
provisória nº 2220/01, por força do art. 2º, da emenda constitucional nº 32 de II de setembro
de 2001.
Aspecto de não menos importância é a percepção de que a CUEM concretiza um dever “ex
lege”, atribuído aos entes estatais. Impõe uma conduta, uma prestação, no caso, a realização
de uma atividade em favor daqueles que se ajustam aos seus requisitos.
Tais fatos nos levam à conclusão de que, de forma inédita no Sistema Jurídico Nacional,
tem-se uma espécie normativa que impõe um dever ao Estado de regularizar a posse da
terra, urbanizar ou colocar à disposição do concessionário uma habitação. No direito pátrio,
as disposições normativas existentes sempre trataram a legalização administrativa como
uma faculdade do Poder Público – a expressão de um ato discricionário.
Na CUEM, encontramos a expedição de um título, como expressão de um ato administrativo
vinculado, com o Poder Público sem condições de negar o direito ao concessionário.”
5
SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2004.
6
AGUIAR, Carlos e TERESA, Borba. Regularização Fundiária e Procedimentos Administrativos. In ROLNIK,
Raquel [et al.]. Regularização Fundiária Plena, Referências Conceituais. Brasília: Ministério das Cidades, 2007.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
81
A compreensão da natureza jurídica do instituto da Concessão de Uso Especial
para Fins de Moradia é fundamental para o entendimento da sua consequência no
que tange à regularização do solo.
Imaginemos a hipótese de uma área pública onde todos ou a maioria da
população atenda aos requisitos da Medida Provisória nº 2.220/01. A Administração
Municipal outorgou os respectivos títulos administrativos de Concessão de Uso
Especial para Fins de Moradia. Além disso, o Poder Público elaborou planta apta à
identificação dos terrenos objetos de outorga de Concessão de Uso Especial para
Fins de Moradia, medida que, além de vir ao encontro da política de planejamento
urbano de competência do Município, apresenta-se como indispensável ao controle
de disponibilidade da gleba objeto de outorga da CUEM.
No presente caso, a Municipalidade ao ofertar a mencionada planta e pleitear
o registro dos termos administrativos de CUEM outorgados, apenas adiantou-se ao
reconhecimento de um direito previsto constitucionalmente (art. 183, §§ 2º e 3º da
CF/88), e na Medida Provisória nº 2.220/01, não possuindo alternativa, senão agir de
modo vinculado.
Portanto, é de rigor concluir que o reconhecimento do direito à moradia
conferido aos moradores de áreas públicas nos termos da Medida Provisória nº 2.220/
01 trata-se, mesmo que por via transversa, de regularização fundiária empreendida
pelo Poder Público, para fins do § 15 do art. 213 da Lei Federal 6.015/73. Ainda que
essa regularização se dê de modo diverso daquele previsto da Lei Federal nº 6766/79
ou das Normas de Serviço acima aludidas, da lavra da Corregedoria Geral de Justiça.
Imaginemos agora a hipótese de centenas de moradores de área municipal que
pleiteiam a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia de determinada área
pública. Que estes moradores e a área pleiteada pelos mesmos possuam as
características previstas na Medida Provisória nº 2.220/01. Que diante da recusa
administrativa da administração pública, os mesmos consigam guarida judicial para
seus pleitos. Todos se dirigem ao Cartório de Registro competente para efetivar o
registro dos títulos concedidos. Decerto, a situação apresentada representará um
entrave de monta ao registrador para o controle da disponibilidade da gleba onde se
localizam os terrenos dos tais titulares do direito.
Trata-se de regularização fundiária para efeito do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/
73? Temos que não, posto que não foi ato requerido, impulsionado, ou promovido
pelo poder público. Vejamos:
“Lei de Registro Públicos, Lei Federal nº 6015/73, art. 213
§ 15. Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentes de
regularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública. (Incluído pela
Lei nº 10.931, de 2004) (g.n.)
82
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
O comando legal é claro: só goza de isenção total de emolumentos e custas o
registro dos atos de regularização fundiária promovidos pela Administração Pública.
Como então deverá proceder o Oficial para o controle da disponibilidade da
gleba pública “parcelada”? Decerto terá enormes dificuldades, visto que a maioria
delas nem conta com matrícula aberta, e nos raros casos em que há matrícula, as
mesmas são descritas de forma imperfeita, impondo a necessidade de prévia retificação
judicial. E quem poderá efetuar todo o complexo procedimento de retificação prévia
de registro, considerando que é vedado ao Oficial agir de ofício? Nem a legislação,
nem a doutrina e muito mesmos a jurisprudência podem ainda responder a estes
questionamentos.
Essa breve exposição de duas situações tem o fito de demonstrar as dificuldades
procedimentais que todos os atores envolvidos na regularização fundiária de
assentamentos informais encontrarão ao se depararem com situações similares, mas
é importante expô-las, visto que há outra forma de solucionar tais impasses.
Temos que para evitar todos os entraves procedimentais acima expostos e
crentes que a regularização fundiária de assentamentos informais é um dos atos por
excelência de inclusão social e de inserção de bairros de moradores de baixa renda na
Cidade formal, em obediência ao previsto no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257
de 2001, a Municipalidade de Osasco, como já afirmado anteriormente, adiantou-se
ao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou por
procedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial para
fins de moradia.
E mais, incluiu a regularização fundiária de áreas públicas no seu Programa de
Planejamento Urbano e Habitacional, por meio de seus diplomas municipais
norteadores do planejamento urbano da Cidade, quais sejam: Plano Diretor, Lei de
ZEIS e demais legislações complementares.
Portanto, a outorga de Termos de Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia não se trata de ação isolada da Prefeitura de Osasco, mas sim de política
pública de planejamento de seu território previsto em lei.
Além da obrigação legal imposta à Municipalidade, elencamos algumas das
vantagens do poder público se adiantar ao pleito da população de áreas públicas:
– Transparente planejamento municipal das áreas públicas ocupadas;
– Inserção das áreas públicas ocupadas no mapa oficial da Cidade;
– Cumprimento da função social da propriedade pública, prevista constitucionalmente;
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
83
– Garantia de perfeito controle da disponibilidade da gleba pública pelo Oficial
de Registro, com a elaboração de planta de concessão;
– Evita-se que centenas de pedidos de Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia cheguem ao judiciário, que já conta com inumeráveis demandas ordinárias.
Do exposto concluímos que, a ação intentada pela Municipalidade de Osasco
ao outorgar Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia, é parte integrante de seu Programa de Regularização Fundiária, na
perspectiva do planejamento urbano municipal. Contrariamente, se os pedidos de
Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia fossem pleiteados individualmente,
além de atentar ao princípio da economia processual, dificilmente poderiam ser
caracterizados como regularização fundiária, para efeitos do § 15 do art. 213 da Lei
6.015/73, ou do Estatuto da Cidade.
Aluguel Entre Particulares em Áreas Públicas
Municipais: Considerações Sobre Conflitos
Enfrentados na Implementação do Programa
Paulistano de Regularização Fundiária de
Favelas
ANA PAULA BRUNO
Arquiteta e Doutoranda da FAUUSP. Coordenadora
do Programa de Regularização Fundiária da
Prefeitura de São Paulo.
CANDELÁRIA MARIA REYES GARCIA
Advogada. Consultora Jurídica da Prefeitura de São
Paulo.
RAPHAEL BISCHOF
DOS
SANTOS
Advogado e Mestrando da FAUUSP. Coordenador
de Gestão Patrimonial da Gerência de Patrimônio
da União em São Paulo.
INTRODUÇÃO
Em 2002, o Município de São Paulo promulgou seu Plano Diretor Estratégico
(Lei n. 13.430/02), definindo a regularização fundiária de determinadas porções de
seu território (nas ZEIS, disciplinadas pelos artigos 171 e seguintes) uma das ações
estratégicas dentro da Política Habitacional do Município. Na sequência, a cidade
planejou e iniciou a implementação da 1a Fase do Programa de Regularização
Fundiária, atendendo parcela significativa de seus assentamentos precários ocupados
por população de baixa renda. O Programa – e, em especial, essa primeira fase –, foi
impulsionado pela Lei n. 13.514/03, a qual desafetou cerca de 160 áreas públicas e
previu os instrumentos de regularização da posse entre outras medidas. Na sequência,
a lei foi regulamentada pelo Decreto n. 43.474/03.
A implementação do programa, no entanto, enfrentou diversos óbices. Apesar
do vultoso e inédito volume de famílias atendidas e tituladas – cerca de 42.000 –,
86
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
seus resultados demandaram aprimoramento de algumas respostas do Poder Público
na execução da 2a Fase do Programa em 2008 – com proposta de atendimento de
23.000 famílias.
Parte das demandas foi acolhida por revisão dos instrumentos normativos, representado significativos avanços na execução do Programa. Em especial, destacamse a possibilidade de desafetação de áreas por meio de decreto e a admissibilidade de
fotos aéreas como meios com probatórios da posse para outorga da titulação requisitada.
Com efeito, tais avanços não seriam possíveis caso o Município não houvesse
posto em prática sua política de regularização fundiária a partir de 2003, tampouco
experimentado as dificuldades operacionais do Programa para a escala de irregularidade da cidade1.
As inovações normativas encontram-se consubstanciadas na Lei municipal n.
14.665/08 e no Decreto n. 49.498/08. No entanto, algumas das dificuldades encontradas na primeira fase persistiram no momento de implementação da segunda. Entre
elas, fazem-se necessárias algumas considerações acerca do aluguel nas áreas regularizadas.
A importância das leis municipais mencionadas acima reside essencialmente
na autorização que deram ao Poder Executivo de alterar a destinação de áreas objeto
de intervenção (permitindo, inclusive, a ampliação desse rol). Além disso, a Prefeitura
fora igualmente autorizada a outorgar títulos para o uso dessas áreas por terceiros, o
que simplesmente consolidava uma situação de ocupação de fato obscurecida pela
legislação até então vigente.
Faz-se relevante prever no presente estudo indagar sobre as naturezas jurídicas
dos institutos empregados para a titulação dos moradores, para em seguida, se fazerem
algumas indagações acerca do animus domini. Pertinentes, ainda, algumas
considerações acerca da observação histórica do papel da locação dentro da provisão
de moradia para a população de baixa renda, o papel das áreas de domínio público e
as limitações existentes no próprio Programa.
DAS FORMAS DE TITULAÇÃO E DE SEUS REQUISITOS
Em síntese, o Programa paulistano propõe a outorga de três tipos de títulos, a
concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso e
1
Apenas para ilustração do volume da demanda de atendimento, são quase 1.600 favelas na cidade de São Paulo,
com diferentes características e tamanhos, dentro das quais a Prefeitura calcula existirem cerca de 390.000
domicílios, conforme dados do HABISP disponível em <www.habisp.inf.br>.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
87
a autorização de uso. Além dos títulos, vinculantes dos beneficiários à área
regularizanda, há também a possibilidade da Municipalidade conferir declarações de
preenchimento dos requisitos necessários à concessão de uso especial para fins de
moradia, que o Programa aplica aos casos onde se verifica a impossibilidade de
consolidação da ocupação no local (como situações de risco ou justificados pela
necessidade de realização de obras).
A regra é a concessão de uso especial para fins de moradia, prevista na Medida
Provisória 2.220/01, aplicando-se subsidiariamente a concessão de direito real de
uso, prevista no ordenamento desde que outorgado o Decreto-Lei n. 271/67. Aos
casos de atividade não residencial (ou não predominantemente residencial) aplica-se
a autorização de uso, prevista na mencionada Medida Provisória, apenas retomando
o instituto há muito existente no Direito Administrativo.
Os institutos não transferem a titularidade plena sobre a propriedade imobiliária
do ente público (o que é vedado constitucionalmente), mas possibilitam o uso
privativamente por beneficiários. As concessões são compreendidas como atos
bilaterais entre as partes. No caso, as partes são a Prefeitura de São Paulo (como
proprietária dos imóveis onde se situam os assentamentos regularizados na 1a e 2a
fases) e as famílias beneficiárias do Programa (os concessionários).
A concessão de uso especial para fins de moradia, apesar de arrolada como
instrumento de política urbana no artigo 4º do Estatuto da Cidade, teve seu
disciplinamento constante nos artigos 15 a 20 daquele diploma vetado pela então
Presidência da República. Os efeitos do veto foram revistos, também por intervenção
do Executivo Federal, com adição da Medida Provisória n. 2.220/012, a qual,
diferentemente da disposição do Estatuto aprovada pelo Congresso, previu a exigência
de prescrição aquisitiva de direito até a data da de promulgação do Estatuto da Cidade.
Ou seja, a MP somente permitiu a regularização fundiária de posses preexistentes há
cinco anos ou mais, até a sua entrada em vigor.
Tratando-se de instrumento preferencial de regularização fundiária, a aplicação
da concessão de uso especial para fins de moradia requer a observância dos seguintes
requisitos: (i) possuir como sua área urbana de até 250m2; (ii) ter a posse da área
urbana pelo período mínimo de cinco anos, ininterruptamente e sem oposição; (iii)
utilizar a área urbana para sua moradia ou de sua família; (iv) não ser proprietário
ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (SAULE
JR.:2004, 399).
2
Ainda não convertida em lei até a presente data.
88
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Destacam-se, por ora, a primeira e a última condição, uma vez que o destaque
deste estudo corresponde à confrontação dos instrumentos de titulação com a locação
de moradias celebrada entre particulares.
Ao referir-se expressamente ao possuidor que houvesse como seu o imóvel
urbano, a Medida Provisória identifica com precisão o animus domini, intrínseco aos
requisitos a serem observados. Ademais, constitui-se a impossibilidade de outorga
de títulos no caso de propriedade ou domínio útil concomitante ao pleito da concessão
de uso especial para fins de moradia.
A exegese das condições constantes da Medida Provisória parece bastante
simples. Mas sua aplicação nas favelas regularizadas pelo Programa paulistano de
Regularização Fundiária defrontou-se, no entanto, com circunstâncias historicamente
construídas entre particulares onde a verificação de ocorrência do animus domini
não é segura.
A orientação do Município, no intuito de resolver essa incerteza, é acomodar
toda e qualquer relação jurídica entre particulares de maneira alheia à constatação da
posse pelos serviços prévios de cadastramento e selagem das moradias regularizadas3.
Vale dizer, uma vez que posse é fato (ainda que juridicamente qualificado), é a
situação de fato que prevalece, desfazendo-se o aluguel eventualmente avençado
entre as partes (particulares). Por se tratar de áreas públicas municipais, o Município
como legítimo proprietário não reconhece tais negócios jurídicos, restando à assessoria
jurídica do Programa a acomodação das negociações entre particulares por meio de
outros institutos de direito civil (notadamente, a confissão de dívida).
O Programa tenta desta maneira combinar a desconsideração dos contratos de
aluguel e eliminar o enriquecimento sem causa (comumente representado pela titulação
do “inquilino” que recebe uma casa ou outro tipo de benfeitoria sem nunca haver
concorrido com as despesas para construí-la).
A situação é extremamente controversa nas áreas regularizadas. Além disso os
casos são muito diversificados. O aluguel nas favelas localizadas em áreas públicas
municipais representa tanto benfeitorias erguidas como investimento acumulado de
uma vida inteira como casos da mais absoluta opressão entre particulares. Certo é
que verdadeiras relações jurídicas de locação formaram-se em décadas de omissão
do Município, mesmo que calcadas sobre posses qualificadas como injustas sob uma
perspectiva meramente civilista. O Município, por sua vez, para voltar a se assenhorear
3
Resumidamente, cadastramento e selagem são etapas que precedem à titulação uma vez que, respectivamente,
(i) identificam a composição das famílias beneficiárias e constatam quais são os possuidores de fato e (ii)
delimitam o perímetro da parcela do imóvel a ser conferida a cada beneficiário, por meio da atribuição de um
selo.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
89
de seu patrimônio e implementar uma política habitacional significativa no parque
habitacional para baixa renda estabelece na posse (uma situação de fato) o único
critério para restabelecimento da tutela dessas porções territoriais.
Some-se a isso o fato da diretriz ser diametralmente oposta na regularização
fundiária de loteamentos irregulares ou clandestinos. Ou seja, nessas circunstâncias
o setor competente da Prefeitura, dentro da mesma Secretaria, adota considera o
adquirente, independentemente da posse direta sobre o imóvel, como beneficiário.
DA LOCAÇÃO PARA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA
Do ponto de vista jurídico, a outorga da concessão de uso especial para fins de
moradia poderia ser preterida para aplicação da concessão de direito real de uso,
conforme previsto na legislação municipal, caso admitida a locação de imóveis sobre
área pública municipal. A diretriz do Programa, no entanto, não admite o aluguel
entre particulares apesar de propor esse questionamento.
Senão vejamos.
A locação fora alternativa habitacional relevante em São Paulo na transição
entre os Séculos XIX e XX. Ressaltem-se as observações de Raquel Rolnik sobre os
subúrbios populares, caracterizando-os como fonte de renda intimamente ligados à
sua falta de regulação urbanística:
“As casinhas ou cômodos de alugar situavam-se em lotes compridos e estreitos, de 9 metros
por 60 ou 65 metros, geralmente com uma casa na frente e um portão lateral dando acesso
para várias casas de fundo.
Famílias também sublocavam cômodos no interior de suas casas alugadas a fim de
complementar sua renda, de tal forma que uma rede complexa de senhorios e inquilinos,
constituía um mercado de alta densidade que foi gerador, ao longo do tempo, de um processo
de valorização quiçá mais rápido e intenso que as áreas de alta renda e uma ampla gama de
alternativas de aluguel, para várias faixas de renda.” (ROLNIK:1999,118)
No mesmo sentido, a descrição de Nabil Bonduki acerca da produção habitacional com finalidade rentista:
“Desde o surgimento do problema habitacional em São Paulo no final do Século XIX até a
década de 1930, surgiram várias modalidades de moradia para alojar os setores sociais de
baixa renda, todas construídas pela iniciativa privada. Entre elas, as mais difundidas foram
o cortiço-corredor, o cortiço casa de cômodos, os vários tipos de vilas e correr de casas
geminadas.
É importante ressaltar o que essas habitações possuíam em comum: quase todas eram
moradias de aluguel.” (BONDUKI:2004,43)
90
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Registre-se, por ora, que a diferença entre os regimes de direito privado e
público afastam as situações verificadas no passado por Rolnik e Bonduki daquelas
atualmente observadas nas favelas. Também distinguem-se as situações de
precariedade urbanística. Mas, de fato, nas favelas regularizadas no Século XXI
mantém-se uma intrincada gama de alternativas de aluguel para a população de baixa
renda, todas resultantes de regimes de autoconstrução. Portanto, repetindo a iniciativa
privada observada um século antes.
Nos casos enfrentados por ocasião da 2ª fase do Programa, em 2008, os
atendimentos prestados pela assessoria jurídica disponibilizada aos moradores
constatou a cobrança de alugueres em torno de R$ 200 (duzentos reais) por mês,
variando conforme a infra-estrutura instalada e o tamanho da benfeitoria. A localização
demonstrava-se bastante relativa, cabendo afirmar que alguns dos maiores valores
de alugueres foi encontrado na área denominada Guapira I (com valores em torno de
trezentos reais), a qual, dentro do universo regularizado, era uma das áreas mais
distantes do centro da cidade de São Paulo.
DA NATUREZA PÚBLICA DOS IMÓVEIS REGULARIZADOS
Voltam, contudo, as indagações referentes às possibilidades de usos de imóveis
de propriedade do Município, definidas por sua lei como zonas especiais de interesse
social. O aluguel para a população de baixa renda nessas áreas configuraria uso
especulativo ou seria alternativa de provisão habitacional (com a construção das
moradias a um público que normalmente não tem acesso a crédito pelos meios
formais)? Quais seriam as circunstâncias a diferenciarem ambas as situações? E como
proceder a qualquer avaliação dessas circunstâncias sem configurar puro arbítrio dos
agentes públicos?
O Programa de Regularização Fundiária de favelas em São Paulo, adotando o
critério da posse direta dos imóveis, afastou-se de qualquer arbítrio. Contudo, persistem
os conflitos evidenciados em todas as áreas regularizadas, diferenciando-se apenas
em maior ou menor incidência, a serem expostos a seguir.
Não menos importante, para a Prefeitura cabe o questionamento acerca de sua
presença após a titulação dos possuidores de fato. Queixas de moradores em áreas
recém tituladas, algumas vezes colacionadas nos plantões de atendimento à população
indicam a persistência de relações opressivas nas áreas, consubstanciadas nas relações
entre alegados “donos” de imóveis e “inquilinos” titulados. A pressão para
desocupação dos imóveis, antes e depois da entrada do Programa de Regularização,
é extremamente forte. Isso, na prática, representa a permanência das avenças entre
particulares.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
91
E a capacidade de resposta do Município ainda é lenta e pouco representativa
em termos da escala. Porém, é válido dizer que medidas exitosas da Coordenadoria
do Programa no sentido de resguardar os direitos de beneficiários titulados produzem
repercussão que extrapolam apenas as partes.
Além dessa resposta do Poder Público municipal pôr em risco a efetividade
dos diretos atribuídos por meio da titulação, registra-se no caso específico da concessão
de uso especial para fins de moradia a ainda incipiente discussão jurídica acerca de
sua natureza. Vale dizer, não agindo a Prefeitura em tempo para impedir uma ação
opressiva entre particulares, o próprio Poder Judiciário pouco se manifestou acerca
dos desdobramentos do instituto criado pela MP. Assim, apesar do Programa municipal
entender que seus instrumentos de titulação outorgam o domínio útil de determinada
porção territorial a um beneficiário, existem posicionamentos a considerarem a
concessão de uso especial como direito pessoal e não real entre Poder Publico e
beneficiário, o que, a princípio, não representaria a almejada segurança da posse4.
O risco à segurança da posse de moradores (originalmente “inquilinos”)
decorrente de tal entendimento ainda é desconhecido, mas fornece indicativos de que
a posse no local objeto de titulação pode ser prejudicada.
CONCLUSÃO
A locação operada entre particulares sobre área de domínio público municipal
é rechaçada pelas diretrizes do Programa de Regularização Fundiária de Favelas.
Mas suas implicações levam a questionamentos fulcrais na definição das políticas
habitacionais exequíveis. Dessa maneira, o enfrentamento dos contratos de aluguel
sobre imóveis públicos municipais implicam a necessidade de métodos que ofereçam maior segurança ao morador e menos arbitrariedade ao Poder Público. As formas interpretativas do ordenamento jurídico nesses casos, o papel da moradia alugada
dentro da provisão habitacional de interesse social, a diferenciação entre situações de
subsistência e sujeição, a especulação imobiliária em áreas públicas municipais e, até
mesmo, a efetividade para resguardar a posse de “locatários” reconhecidos como
ocupantes e assim titulados, todas consubstanciam etapas que somente a implementação de uma política de regularização fundiária ao longo do tempo poderá avaliar.
4
Nesse sentido, a sentença proferida pela MM. 10a Vara da Fazenda Pública de São Paulo, nos autos n.
053.08.111129-8. Compartilha esse entendimento também o Tabelião e Registrador Imobiliário do Ceará,
Regnoberto Marques de Melo Jr., conforme estudos divulgados em 2002, disponível no sítio JusNavigandi:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3237.
92
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
BIBLIOGRAFIA
BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e
difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. 4. ed.
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo.
São Paulo: FAPESP:Studio Nobel, 1999. 2. ed.
SÃO PAULO. HABISP. Disponível em <www.habisp.inf.br>.
SAULE JR., Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
Fundamentos e Instrumentos à Ampliação da
Proteção às Áreas Especiais Referentes aos
Direitos à Moradia e ao Meio Ambiente:
Notas Introdutórias1
MARISE COSTA DE SOUZA DUARTE2
Doutoranda em Urbanismo, Mestre em Direito
Público e Especialista em Serviço Social, todos pela
UFRN.
MARIA DULCE P. BENTES SOBRINHA3
Procuradora do Município de Natal/RN.
RESUMO: O trabalho busca introduzir ideias quanto à criação de mecanismos
de proteção das áreas de interesse social e ambiental no Município de Natal. A
partir da experiência de revisão do Plano Diretor de Natal (período 2004-2007),
constatou-se a elevada vulnerabilidade a que essas áreas especiais (já protegidas
legalmente desde o Plano Diretor de 1994) estavam sujeitas. Identificou-se que
as pressões econômicas e políticas, principalmente no âmbito do Legislativo,
representavam bem mais um campo de “ameaças” às conquistas sociais efetivadas
do que de consolidação e ampliação da proteção desses espaços. Diante desse
quadro e considerando o patamar de proteção jurídica conquistada a partir das
lutas sociais, com marco na Constituição Federal de 1998, pontuamos alguns
fundamentos e instrumentos na linha de ampliação da proteção dessas áreas,
pela função social e ambiental que exercem.
1
As ideias contidas neste artigo fazem parte da tese de doutorado “Ampliação dos instrumentos de proteção das
áreas especiais estabelecidas no Plano Diretor de Natal de 2007 a partir dos direitos à moradia e ao meio
ambiente” em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
2
Professora do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Universidade
Potiguar – UNP e do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Gestão Urbana do Departamento em Geografia
da UFRN.
3
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas – FAUUSP. Docente do Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/PPGAU/UFRN.
94
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
INTRODUÇÃO
As cidades brasileiras, notadamente aquelas situadas em regiões litorâneas,
vivem um momento de grande expansão do turismo imobiliário, verificando-se
intensas pressões sobre áreas especiais protegidas4, notadamente aquelas que abrigam
os recursos ambientais e as áreas de moradia de interesse social. Isso significa ameaças
à proteção de direitos hoje considerados fundamentais em nosso ordenamento. Não é
por acaso que isso ocorre já que a produção do espaço urbano não se dá de forma
neutra, mas é resultante de um processo histórico no qual se expressam as forças de
poder existentes em um espaço e tempo determinados, em especial, o modo de
produção que se encontra na base econômica da sociedade5. No atual estágio do
capitalismo globalizado o desenvolvimento imobiliário urbano se torna motor central
da expansão econômica das cidades, o solo urbano, meio privilegiado para valorização
do capital privado6, e as áreas frágeis, como as destinadas a resguardar recursos
ambientais e os interesses das camadas de baixa renda, ficam cada vez mais
vulneráveis.
Inserida nessa dinâmica, a cidade de Natal apresenta um crescimento urbano
expressivo a partir da década de 1990, quando ocorre a implementação do Projeto
Parque das Dunas/Via Costeira, considerado um marco nos conflitos entre proteção
ambiental, direitos sociais de moradia e grandes empreendimentos de infra-estrutura
urbana ligados ao desenvolvimento do turismo em Natal. A partir de 2000, as ações
do Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste – PRODETUR contribuíram
para a expansão do capital turístico imobiliário, com ampliação e redefinição das
pressões sobre o ambiente e as áreas de vulnerabilidade social. Num contexto em que
a cidade de Natal conta com reduzidas áreas na faixa litorânea em porte adequado
para a implantação de grandes empreendimentos imobiliários, a revisão do Plano
Diretor de Natal (2004-2007) foi marcada pela forte pressão sobre as áreas protegidas,
em processos que buscaram a desconstrução das leis que amparam as áreas especiais
de interesse social e ambiental no Plano Diretor de Natal, pelo menos desde 1994.
Embora a revisão do Plano Diretor (Lei Complementar nº 82/2007) tenha se
pautado pela participação social, abrangendo diversos formatos de discussão pública
(grupos temáticos, conferência, conselhos, audiências públicas), foi no processo
4
Como as áreas especiais de interesse social, as áreas de proteção ambiental, as áreas de controle de gabarito e de
interesse paisagístico, dentre outras.
5
Baseada no pensamento de Harvey (2004), compreendemos que a lógica de acumulação capitalista se assenta
em uma contradição e incompatibilidade fundamental entre as necessidades de acumulação intrinsecamente
inerentes ao capital e as demandas sociais derivadas dos direitos conquistados pela população (tendo em vista a
equidade social).
6
Mattos, (2004).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
95
legislativo onde se verificaram as mais sérias ameaças às conquistas sociais e
ambientais já efetivadas.
A partir dessa experiência, constatou-se a necessidade de estudos sobre as
possibilidades de aprofundamento dos instrumentos de proteção às áreas de interesse
social e ambiental, que neste trabalho coloca-se de forma introdutória, pontuando
alguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação e proteção dessas
importantes áreas.
FUNDAMENTOS E INSTRUMENTOS EM DIREÇÃO À AMPLIAÇÃO DOS
ESPAÇOS URBANOS PROTEGIDOS EM FAVOR DO DIREITO DE
MORADIA E AO MEIO AMBIENTE SADIO
Partindo da Carta Magna de 1988, constata-se que a dignidade da pessoa
humana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se constitui
um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III). Em seu artigo
3º a Constituição define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
dentre os quais inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluída
qualquer forma de discriminação.
No Capítulo da Política Urbana (Capítulo II do Título VII), artigo 182, a Constituição Federal trata das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar dos
habitantes como objetivos da política de desenvolvimento urbano; além de considerar expressamente a função social da propriedade urbana. Importante destacar esse
capítulo constitucional foi fruto de uma intensa luta do Movimento Nacional pela
Reforma Urbana7 cujos ideários se manifestam tanto nos embates sociais e políticos
no território concreto da cidade como na construção de direitos formalmente reconhecidos; enfrentando, portanto, reações tanto no âmbito de interesses patrimoniais
contrariados quanto no contexto de posições ideológicas conservadoras. Ainda importa considerar que, inicialmente com foco na Justiça Social, a Reforma Urbana a
partir dos anos 90 passou também a focalizar com mais ênfase a Justiça Ambiental,
que parte da compreensão de que o modelo de desenvolvimento no Brasil tem como
característica a apropriação elitista do território e dos recursos naturais, a concentração dos benefícios usufruídos do meio ambiente, a destruição dos ecossistemas e a
7
Nos termos postos por Maricato (1994), a luta pela “reforma urbana” se origina a partir da evidência do fosso
que, nas cidades brasileiras, divide os espaços reservados aos ricos e aos pobres, tendo no seu ideário a busca
pela construção de direitos formalmente reconhecidos, dentre os quais o direito de moradia e à qualidade de
vida.
96
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento, indicando a necessidade de trabalhar a questão do “ambiente” não apenas em
termos de preservação mas também de distribuição de justiça8, aproximando as lutas
populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida com a
sustentabilidade ambiental9.
Tratando, pela primeira vez, do meio ambiente, em seu Capítulo VI do Título
VIII, a Carta Maior prescreve, em seu artigo 225, que:
todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Essa norma10 se constitui um marco na proteção e de defesa do meio ambiente
no Brasil já que insere um novo direito (meio ambiente ecologicamente equilibrado)
no ordenamento jurídico, além de tratar do meio ambiente como bem e impor à
coletividade, juntamente, com o poder público, o dever de proteção e defesa desse
direito. Vale ressaltar que, além do referido artigo 225, vários outros artigos
constitucionais11 se referem à matéria ambiental, inaugurando uma nova etapa no
tratamento do meio ambiente no Brasil.
Por outro lado, os direitos sociais à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho
e ao lazer, dentre outros direitos fundamentais à pessoa humana, também encontram
suas bases da Constituição Federal (art. 6º).
O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), norma regulamentadora
dos artigos 182 e 183 da Carta Magna, segue a orientação dos preceitos constitucionais
referidos, estabelecendo que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, apoiandose em diversas diretrizes gerais, dentre as quais: a garantia do direito a cidades
sustentáveis, compreendido como “direito à terra urbana, moradia, saneamento
8
O Movimento por Justiça Ambiental surgiu no Brasil, a partir de 2001, com objetivo de ampliar o diálogo e a
articulação entre sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas e pesquisadores, no sentido de estimular o
fortalecimento da luta ambiental articulada à luta pela democracia e pelo bem comum, integrando as dimensões
ambiental, social e ética, vez que parte da compreensão que a proteção do meio ambiente depende do combate
à desigualdade social, não se podendo enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça social. Atualmente é
objeto de coordenação por parte da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, tendo como seu principal articulador
Henri Acselrad.
9
Conforme Acserald, H.; Herculano, S.; Pádua, J. A. (2004).
10
Que se decompõe em sete incisos e seis parágrafos, com importantes disposições normativas.
11
Como os artigos 5º, LXXIII; 23, III, IV, VI, VII, IX, XI; 24, VI, VII, VIII; 129, III; 170; 174; 200 e 216; dentre
outros.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
97
ambiental, infra-estrutura urbana, transportes e serviços públicos, trabalho e lazer,
para presentes e futuras gerações” (artigo 2º e inciso I).
Conforme mandamento constitucional (artigo 182) e o disposto no Estatuto da
Cidade, o Plano Diretor se constitui em um instrumento de planejamento “básico
para a política de desenvolvimento e de expansão urbana” no qual se estabelecem as
exigências fundamentais para que a propriedade cumpra sua função social. Assim, é
através do Plano Diretor e suas leis regulamentadoras, que devem ser estabelecidas
normas que venham efetivar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente,
tendo especial importância o estabelecimento de áreas especiais de proteção ambiental
e de interesse social, que ganham um status de proteção diferenciado exatamente em
razão dos frágeis12 interesses que vem resguardar.
Na linha de análise aqui desenvolvida, emerge o princípio da função social da
propriedade13 e, mais recentemente, o princípio da função sócio-ambiental da
propriedade, tratado por diversos doutrinadores de Direito Ambiental14, que configurase a partir da interpretação sistemática das normas constitucionais referentes ao uso
da propriedade urbana e rural e das normas relativas à proteção ao meio ambiente.
Ainda que não expressamente inscrito na legislação15 o princípio da função sócioambiental da propriedade é compreendido como o ônus que é atribuído ao proprietário,
que consiste em um conjunto de deveres e responsabilidades que permeia toda a
relação de propriedade (e não apenas limita o seu exercício), de modo com que,
mesmo sem dar destinação produtiva aos recursos ambientais16, o proprietário está
obrigado a utilizá-los realizando finalidades sociais (vinculando-se a uma ética de
responsabilidade solidária) e o dever da coletividade (art. 225 da Constituição Federal
de 1988). Desse modo, a propriedade protegida em nosso sistema jurídico é aquela
na qual se desenvolve uma relação individualizada sustentável social e
ambientalmente; devendo ser reprimidas as práticas que atentam contra essa ideia,
como a supressão de espaços ambientais e sociais.
Seguindo na busca pela ampliação da proteção aos espaços especialmente
protegidos em favor do direito de moradia e ao meio ambiente, encontramos o princípio
da vedação ao retrocesso social. Desenvolvido pela jurisprudência europeia, tal
princípio é visto como uma “cláusula geral” de proteção dos direitos fundamentais,
12
Do ponto de vista da dinâmica territorial urbana atual, onde o uso do solo passa ser uma importante fonte de
ganhos financeiros.
13
Introduzido em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1934.
14
Edis Milaré (2005), Rodrigues (2005), Mirra (1996), dentre outros.
15
Importa destacar que o princípio da função social se encontra inscrito expressamente na Constituição Federal
nos artigos 5º, XXIII, 182, § 2º (referente à propriedade urbana) e 186, caput (propriedade rural).
16
Art. 2º da Lei Federal 6.938/81.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
98
especializados pela legislação infraconstitucional, e que assume uma função de defesa
para o cidadão contra as ingerências do Estado. Buscando uma maior interferência
na efetiva estabilidade constitucional em face dos direitos sociais, tal princípio tem
como escopo essencial evitar que a ordem jurídica sofra a insegurança reformista, se
constituindo mola mestra na condução da estabilidade dos direitos fundamentais que
asseguram a dignidade da pessoa humana como um todo e, por consequência, a
efetividade da segurança jurídica no Estado de Direito17. Pensamos que, diante das
ameaças colocadas às áreas de interesse social e ambiental, de grande valia será a
utilização desse poderoso instrumento.
Por fim, não se pode deixar de considerar que o aperfeiçoamento do sistema
de proteção internacional aos direitos de moradia e ao meio ambiente, dentre outros
direitos sociais, se coloca como importante instrumento em favor da ampliação da
proteção aqui defendida. Materializado em algumas ações concretas, esse sistema de
proteção tem na Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais (Plataforma DHESCA Brasil) um dos principais espaços de
articulação nacional de movimentos e organizações da sociedade civil para o
desenvolvimento de ações para a promoção, defesa e reparação dos direitos humanos
econômicos, sociais, culturais e ambientais, visando ao fortalecimento da cidadania
e à radicalização da democracia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, é necessário considerar que as ideias aqui colocadas se constituem
na introdução de uma pesquisa em desenvolvimento e que requerem um amplo
aprofundamento teórico e prático, com foco nas novas ideias e saberes que na
atualidade se colocam na linha da garantia aos direitos humanos fundamentais (como
os direitos à moradia e ao meio ambiente) tão arduamente conquistados, pelo menos
a nível formal e normativo, pela sociedade.
Ainda que estejamos na condução do trabalho de revisão bibliográfica sobre o
tema estudado, seu fio condutor não se afasta da ideia central de garantir aos espaços
de interesse social e ambiental inseridos no Plano Diretor de Natal um grau de consolidação
capaz de resistir às sérias ameaças que se colocam em face da pressão política associada
à, cada vez mais, intensa pressão imobiliária urbana, com evidente influência nos fóruns
onde se discutem e constroem as normas de uso e ocupação do solo.
Não olvidando a importância da participação social em todo o processo de
construção das normas urbanas e nas ações e discussões sobre as (tão desejadas)
17
Brasil, (2007).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
99
cidades justas, inclusivas e sustentáveis, em especial no processo de revisão do Plano
Diretor de Natal 2007, pensamos que o aprofundamento do debate sobre o tema no
campo acadêmico se constitui uma exigência necessária, possível e um dos grandes
desafios para todos os que se preocupam com a efetivação da justiça social e da
qualidade de vida nas cidades.
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3
INSTRUMENTOS PARA A
GOVERNABILIDADE DAS CIDADES /
A GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES
Gestão Democrática das Cidades: a
Constituição de 1988 é Efetiva?1
MARINELLA MACHADO ARAÚJO
Professora Doutora do Programa de PósGraduação e Graduação em Direito da PUC Minas.
Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas.
GABRIELA MANSUR SOARES
Mestranda em Direito Público pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito pela PUC Minas.
Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas/OPUR (NUJUP).
MARIANO HENRIQUE MAURÍCIO
DE
CAMPOS
Mestrando em Direito Público do Programa de PósGraduação da PUC Minas. Bolsista da Fundação
de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).
Pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas/OPUR (NUJUP).
RESUMO: Ao expressamente atribuir aos Municípios brasileiros a competência
para elaborar planos diretores, a Constituição de 1988 expressamente determinou
a aplicação do princípio federativo da subsidiariedade ao planejamento urbano.
Em 2001, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, ao regular
o capítulo de política urbana da Constituição de 1988, artigos 182 e 183,
institucionalizou o modelo dialógico do planejamento urbano participativo. Vinte
anos depois, apesar dos avanços, a gestão democrática das cidades ainda continua
sendo um desafio para a Administração Pública brasileira. A tradição liberal de
1
Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica do
Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas,
coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam ainda
reflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidos
no Programa de Pós-graduação da PUC Minas.
104
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
gestão de interesse público, fundada na universalização desmotivada da aplicação
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, reflete um abismo
que ainda separa a construção coletiva, participativa, do planejamento urbano,
do arbítrio imposto pela ausência de controle da discricionariedade administrativa.
Contudo, se a previsão legal dessa gestão em nível federal criou condições para
a aplicação da gestão urbana democrática participativa proposta pela Constituição
de 1988 e regulada pelo Estatuto da Cidade, a sua regulação pelos planos diretores
ainda não é efetiva. É o que demonstra a análise das leis que instruíram planos
diretores das cidades históricas mineiras. Esse artigo analisa, a partir do princípio
do discurso de Habermas e da democracia contestatória de Pettit, em que medida
avançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidades
brasileiras após 20 anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988.
PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Subsidiariedade; Federalismo de Cooperação;
Estatuto da Cidade; Planos Diretores; Gestão Urbana Participativa.
1. A QUESTÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
O Brasil, desde a sua descoberta, sempre recebeu influência europeia quando
se trata de cultura política e jurídica. Neste sentido, foram diversas as leis portuguesas
que por aqui vigoraram antes da Declaração da Independência em 1822 e da
Proclamação da República em 1891. Como exemplo, podemos falar das Ordenações
Afonsinas (de 1446 ou 1447 até 1511), Ordenações Manuelinas (editadas em 1521) e
Ordenações Filipinas (1613), as quais vigoraram até a edição das primeiras leis
brasileiras como o Código Criminal do Império de 1830 e o Código de Processo
Criminal de 1832 (DI PIETRO, 2006a).
A Constituição Republicana de 1891 recebeu forte inspiração Francesa com os
ideais da Revolução de 1789 e é considerada Liberal, uma vez que antes da
promulgação da Constituição já havia um movimento político no sentido de derrubar
o Regime Imperial, como por exemplo o Manifesto Republicano de 1870, sendo que
a insatisfação maior era em relação ao Poder Moderador, que foi extinto com a Primeira
Constituição Republicana (BONAVIDES e ANDRADE, 1991).
Já a Constituição de 1934 recebeu influência do chamado Estado Social, através
da inclusão no bojo constitucional de diversos direitos sociais, como a garantia de
saúde, educação, salário-mínimo, limitação da jornada de trabalho, entre outros,
recepcionados e melhor desenvolvidos nos artigos 5º e 7º da Constituição de 1988.
Com isso, notamos que as noções paradigmáticas tanto do Estado Liberal como
do Estado Social se fizeram presentes em nossos textos constitucionais desde a
Proclamação da República. Todavia, destacamos que a simples previsão legal de
determinas garantias ou a proteção de direitos individuais não os efetivam de plano.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
105
É preciso mais. É imperioso que além da previsão no ordenamento jurídico se tenha
vontade política para implementação de uma série de direitos fundamentais.
A concentração de renda no Brasil não é uma novidade. Sempre haverá um
jornal ou uma pesquisa que demonstre o fosso social que se criou entre uma minoria
bem provida de recursos e a grande maioria da população que vive com dificuldade,
com recursos escassos e serviços públicos muito aquém do necessário. Acreditamos
que isso é consequência de uma cultura oligárquica que domina a estrutura política
do país e que faz a nossa realidade tão distante daquilo posto em nossos textos
constitucionais.
A Constituição Federal promulgada em 1988 inovou em diversos aspectos e
um deles é justamente a previsão de políticas urbanas, como já mencionado no início.
Mais importante do que isso é a forma com que essas políticas vão acontecer.
Mantendo-se um regime democrático estabelecido pela vontade da maioria certamente
as forças oligárquicas que todos sabemos presentes em nosso país, com certeza farão
do texto constitucional apenas um legado histórico, mas não um instrumento de
mudança.
HABERMAS (2007), embora partindo de uma realidade diferente da que
vivenciamos aqui, ressalta de maneira peculiar as diferenças que modelos
democráticos, seja de orientação liberal ou de orientação republicana podem fazer
surgir no bojo social. Na concepção liberal, a política congrega e impõe interesses
sociais em particulares. Na concepção republicana, a política possibilita o surgimento
da solidariedade como fonte de integração social. A opinião pública política e sociedade
civil sustentam a concepção republicana.
O citado autor sustenta ainda um modelo de democracia que visa um
distanciamento da força que o poder econômico exerce nas sociedades atuais. As
economias de mercado tendem ao afastamento da política, considerando que esta
engessa a mobilidade do capital. Mas a política levada ao extremo pode resultar o
estabelecimento de uma ditadura.
A democracia para Habermas gira em torno da ideia de igualdade, liberdade e
da autonomia do povo. Determinemos, pois, que para a coesão do discurso
habermasiano a igualdade não pode ser entendida como formal, garantida apenas
pelo texto legal e que privilegia determinado grupo de pessoas baseando essa exclusão
em fundamentos ligados a argumentos não jurídicos, e que por vezes, tornam-se, por
exemplo, a igualdade do Estado Liberal em que assegurava-se o direito ao voto à
universalidade desde que a universalidade comportasse os parâmetros burgueses
ditados.
A liberdade também não pode ser mera formalidade deve ser entendida como
liberdade material.
106
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
E autonomia do povo? Entendida no melhor sentido de autolegislação deve
ser uma autonomia caracterizada pela vontade do povo que é capaz de enxergar-se
como autor e destinatários das leis estatais. Tal vontade popular representa na
Democracia o agir coletivo e a supressão das vontades individuais em prol da
sociedade.
A formação de opinião e vontade pública só é possível através de um processo
que é o meio da efetividade da soberania popular. E esse processo de construção da
opinião e vontade popular se evidencia desde que a sociedade civil organize-se, por
meio de associações livremente agrupadas, e sejam abertas ao discurso com o Estado,
dentro do ‘espaço público’.
Do ‘poder’ comunicativo do povo surge a legitimação da tomada de decisão,
com base na maioria, tomada pelo Estado.
O modelo de Democracia de Habermas baseia-se nas condições de comunicação
sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais,
justamente por cumprir-se de modo deliberativo. Pelo modelo discursivo do autor, o
procedimento democrático cria uma coesão interna na tomada de decisão por baseála em discursos que visam as negociações e o auto-entendimento entre a sociedade
civil e o Estado.
Numa outra linha, a construção da democracia para PETTIT (2003) faz-se a
partir do poder contestatório do povo. Mas o que seria poder contestatório? Para o
autor é ele a forma como o povo se expressa contra o poder arbitrário expresso nas
decisões executivas e legislativas que levam em conta apenas interesses particulares,
sejam eles individuais ou de determinado grupo.
O consentimento para PETTIT (2003) contrário à ideia habermasiana está
associado ao abuso de poder e à imposição de vontade seja ela do Estado ou de um
grupo social dominante. A democracia para Pettit é, assim como em Habermas,
propiciada pelos movimentos sociais e pelo associativismo, mas ao contrário de
Habermas que busca uma tomada de decisão baseada no consenso entre os atores
sociais nos canais deliberativos, Pettit acredita que por esses canais as associações
civis devem exercer seu poder contestatório na construção de uma decisão que espelhe
seus interesses (decisões políticas contestatórias).
A forma de contestação é balizada por um processo discursivo, assim como
em Habermas, em que se colocam meios que apóiem as deliberações baseadas na
contestação das decisões tomadas unicamente pelo Estado.
Outro ponto chave na construção da Democracia Participativa a determinação
do que vem a ser interesse público. Para ÁVILA (2001) no Estado Democrático de
Direito, interesse público não significa interesse do Estado. O autor defende ainda
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
107
que a supremacia desse sobre o interesse privado defendido pelos liberais, não mais
se sustenta.
Neste sentido, sua noção de democracia é baseada na equiparação entre o
interesse público e o privado principalmente porque o direito público, e com isso o
interesse público, no Estado Democrático comporta elementos privados (necessidades
das comunidades políticas), já que até mesmo a Constituição da República elege
como estruturante do interesse público caracteres privados (ÁVILA, 2001)
A construção da democracia para ÁVILA (2001) é baseada na concepção e
definição de interesse público, que deve ser aquele que conjuga reciprocidade e
unidade com o interesse privado. Elemento esse que identificamos em Habermas
quando ele trata da equiprimordialidade do interesse público sobre o privado.
De qualquer forma, a Administração Pública deve privilegiar a participação
popular no planejamento e gestão do interesse público como forma de garantia da
legitimidade das políticas públicas e consequentemente da concretização de direitos
fundamentais sociais.
Um instrumento importante de participação da sociedade civil são os conselhos gestores, formados por diversos segmentos sociais. No entanto, a doutrina administrativista sequer trata da participação democrática na gestão da Administração
Pública e não existe classificação acerca desses órgãos de cunho popular como componentes da estrutura administrativa. Esses órgãos forma introduzidos na legislação
que regula políticas públicas como Sistemas de Habitação de Interesse Popular, Gestão de Recursos Hídricos, Estatuto da Cidade, mas são esquecidos pelos tradicionais
manuais de direito administrativo, enraizados na tendência do Liberalismo político
do século XIX.
2. RAZÕES PARA QUE O ESTATUTO DA CIDADE DETERMINASSE
PLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS
O Estatuto da cidade é um instrumento de diretrizes do planejamento urbano
que foi pensado para regulamentar os preceitos constitucionais que dizem respeito à
política urbana (artigos 182 e 183 da CF/88) e que se pretende legítimo por associar
às decisões estatais, no âmbito de planejamento da cidade, a participação popular
seja por instrumentos diretos como o plebiscito ou referendo seja através das
associações civis, conselhos, fóruns ou outros instrumentos que privilegiem a gestão
democrática com a participação da comunidade.
O Estatuto ainda prevê como instrumento para consecução de política urbana
os Planos Diretores que visam o planejamento urbano municipal, esses planos devem
ser elaborados pelo município. A competência dos municípios em elaborar os planos
108
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
diretores advém do modelo de federalismo adotado pela Constituição Federal de
1988, o Federalismo de Cooperação, art. 23.
Pelo Federalismo de Cooperação temos repartição de competências comuns
entre os entes federados, possibilitando a integração entre Estados-membros e a União
para implementar as políticas públicas, quando da redação de normas para consecução
dessas políticas. Percebemos, pois, a busca por uma maior autonomia municipal, já que
no momento em que há delegação do processo decisório para o ente local, principalmente no que se refere à política urbana, já que as necessidades e as demandas nessa área
surgem do local para o global, já que os municípios estão mais pertos do cidadão.
Tal autonomia mostra a constante perseguição pela descentralização do poder
entre os entes, o que permite a colaboração de entidades civis para a realização dos
objetivos públicos. Mas essa descentralização e distribuição de competências só têm
sentido graças ao princípio da subsidiariedade. Por esse princípio pressupõe-se que a
sociedade tem condições de resolver ela própria por seus membros e por organizações
não políticas, um número enorme de problemas sociais de forma eficiente, deixando
a resolução por parte do Estado só quando a iniciativa privada não for suficiente.
A subsidiariedade estabelece ainda, que todas as demandas que puderem ser atendidas por um poder político local, como o município, não deve ser atendido pelas entidades políticas superiores, o Estado. Dessa forma no federalismo de cooperação as
proposições do princípio da subsidiariedade implicam o fortalecimento do município,
vemos pela junção desses dois princípios um papel de maior destaque do cidadão, que é
o núcleo deste ente político, o que propicia uma participação mais ampla e fiscalização
efetiva das políticas públicas. Essa preleção do município atende não só aos princípios
em tela como concretiza o Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição de 1988.
Os Planos Diretores são essenciais às políticas urbanas que pretendem se
adequar ao disposto nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Estão previstos
no artigo 40 do Estatuto das Cidades e são essencialmente participativos na sua
execução, conforme interpretação sistemática dos artigos 39 até 43 da Lei Federal
10.257/01 (Estatuto das Cidades), além das diretrizes de gestão democrática também
previstas na citada Lei.
No entanto, não é uma novidade no Brasil que existe uma distância real entre
a Lei e sua aplicação efetiva. O Estatuto das Cidades previa originalmente no artigo
50 o prazo de 05 anos para que os Municípios se adequassem. Ocorre que por várias
razões, seja de cunho político ou incapacidade administrativa, o prazo não foi cumprido
e a Lei 11.673/2008 prorrogou o prazo para 30 de junho de 2008, retroagindo seus
efeitos ao ano de 2006. Este fato mostra que existe uma profunda distância a Lei e
sua aplicação, uma vez que o monitoramento de Planos Diretores não é respeitado e
os prazos não são observados.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
109
Percebemos também que o não cumprimento dos prazos de elaboração dos
Planos Diretores revela o baixo nível de comprometimento administrativo dos
municípios e seus gestores. A importância da gestão participativa é inegável no
contexto do Estado Democrático. Neste sentido, as propostas feitas por HABERMAS
(2007) e PETTIT (2003) são importantes porque refletem a necessidade da criação
de mecanismos de participação popular no processo de tomada de decisões por parte
da Administração Pública. A gestão democrática é importante ainda sob o ponto de
vista do controle social que é exercido sobre os gestores públicos, pois se esta cultura
participativa estivesse enraizada na sociedade brasileira, certamente o descumprimento
do prazo do Estatuto das Cidades não chegaria ao ponto que chegou.
Por tais razões, acreditamos que a Gestão Democrática das Cidades é um ponto
de relevância a ser considerado pela doutrina administrativista. Com a edição do
Estatuto das Cidades ficou impossível desconsiderar os instrumentos de participação
popular no governo dos Municípios Brasileiros. Seja com a participação da sociedade
civil e o procedimento racional-discursivo proposto por HABERMAS ou através dos
mecanismos de contestação das decisões públicas conforme pretendido por PETTIT,
certo é que a evolução do modelo representativo de democracia para o modelo
participativo tornou-se uma necessidade premente.
E para cumprirmos o objetivo do trabalho, qual seja: analisar em que medida
avançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidades brasileiras após
20 anos de vigência da Constituição de 1988, resta-nos a análise das leis que instituíram
planos diretores das cidades históricas mineiras. Desta forma, selecionamos as nove cidades
que compõem a “Estrada Real”, sendo elas: Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Santa
Bárbara, São João Del Rei, Serro, Nova Lima, Ouro Preto e Ponte Nova.
A partir dos dados obtidos junto ao Núcleo Jurídico de Políticas Públicas
(NUJUP/OPUR) – PUC Minas – desenvolvemos três gráficos que retraíam a análise
dos Planos Diretores destes Municípios destacados. O primeiro trata da quantidade
de instrumentos de gestão democrática previstos, o segundo trata da existência desses
instrumentos nos respectivos Planos Diretores e o terceiro gráfico demonstra a
composição dos Conselhos das Cidades ou órgão equivalente de cada um dos
Municípios pesquisados.
No primeiro gráfico2 constatamos que dos 09 Municípios pesquisados, 04
prevêem a existência de Conselho das Cidades ou equivalente; 03 prevêem o
orçamento participativo e as consultas públicas; 06 prevêem as Conferências das
Cidades e Audiências Públicas e 07 prevêem os Conselhos Gestores.
2
Os dados reproduzidos nos gráficos 1, 2 e 3 representam a análise das informações junto ao Núcleo Jurídico de
Políticas Públicas (NUJUP/OPUR) da PUC Minas.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
110
Gráfico 1
Instrumentos de Gestão Democrática – Municípios pesquisados
Quantidade de
Municípios com
previsão dos
instrumentos
Municípios pesquisados: 09
8
6
4
2
0
Conselho das Orçamento
Cidades ou Participativo
equivalente
Consultas
Públicas
Conferências Audiências
das Cidades
Públicas
Conselhos
Gestores
Tipos de Instrumentos de Gestão
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
No segundo gráfico constatamos que o Conselho das Cidades ou equivalente
está previsto para as cidades de Brumadinho, Congonhas, Diamantina e Santa
Bárbara. O orçamento participativo e as Consultas Públicas são previstos para
Brumadinho, Nova Lima e Santa Bárbara. As Conferências das Cidades estão previstas
para Brumadinho, Diamantina, Serro, Nova Lima, Ponte Nova e Santa Bárbara. As
Audiências Públicas estão previstas para Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Serro,
Nova Lima e Santa Bárbara. Já os Conselhos Gestores estão previstos para Brumadinho,
Congonhas, Diamantina, Serro, Ouro Preto, Ponte Nova e Santa Bárbara.
Sim
SANTA
BÁRBARA
OURO PRETO
SERRO
DIAMANTINA
Não
BRUMADINHO
Existência de instrumento de
participação
Gráfico 2
Instrumentos de Gestão Participativa
Municípios pesquisados
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
Conselho das Cidades ou
equivalente
Orçamento Participativo
Consultas Públicas
Conferência das Cidades
Audiências Públicas
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
111
O terceiro gráfico revela a composição dos Conselhos das Cidades, sendo que
os únicos Municípios que contêm previsão desta composição são Brumadinho,
Diamantina e Santa Bárbara. Em Brumadinho, das vagas destinadas ao Conselho
das Cidades, o Poder Público Federal tem 19,72%, Poder Público Estadual 8,45%,
Poder Público Municipal 14,08%, Movimentos Populares 26,76%, ONG’s 4,23%,
Entidades de Trabalhadores 9,86%, Profissionais e Acadêmicos 7,04% e Entidades
Empresariais 9,86%. Em Diamantina, das vagas destinadas ao Conselho das Cidades,
o Poder Público Federal e Estadual têm 11,11% das vagas cada, o Poder Público
Municipal e os Movimentos Populares têm 33,33% das vagas cada e as entidades
empresariais têm 11,11% das vagas, ONG’s, Entidades de Trabalhadores, Profissionais
e Acadêmicos não têm destinação de vagas expressamente. Em Santa Bárbara, o
Poder Público Municipal tem 40% das vagas, Movimentos Populares, ONG’s e
Entidades Empresariais têm 20% cada.
Gráfico 3
Composição do Conselho das Cidades
CONGONHAS
45%
40%
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
DIAMANTINA
SANTA BÁRBARA
Segmentos Representados
Entidades
Empresariais
Profissionais
e Acadêmicos
Entidades de
Trabalhadores
ONG’s
Movimentos
Populares
Poder Público
Municipal
Poder Público
Estadual
SÃO JOÃO DEL REI
Poder Público
Federal
Porcentagem da Participação
BRUMADINHO
SERRO
NOVA LIMA
OURO PRETO
PONTE NOVA
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
CONCLUSÃO
Diante das considerações feitas durante o trabalho, concluímos que embora
exista a previsão constitucional, no âmbito Federal, relativa à gestão participativa e
que o Estatuto da Cidade foi responsável pela regulamentação dos artigos 182 e 183
da Constituição Federal de 1988, a gestão democrática e participativa dos centros
urbanos não é efetiva nos planos diretores analisados.
112
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Apenas 02 das 09 cidades analisadas (Brumadinho e Santa Bárbara) possuem
a previsão nos seus planos diretores de todos os instrumentos de gestão participativa3.
Ademais, São João Del Rei não possui qualquer menção aos instrumentos de gestão.
É claro que nesses 20 anos de vigência da Constituição de 1988 avançamos
muito em relação aos regimes constitucionais anteriores, principalmente em termos
de direitos e garantias fundamentais. Não obstante, é preciso que avancemos na gestão
participativa das políticas públicas porque somente com o modelo dialógico de
Administração Pública é que a concretização dos direitos fundamentais poderá tornarse mais efetiva, consequentemente melhorando a qualidade de vida dos brasileiros.
As teorias de Habermas e Pettit demonstram a necessidade de criação de
procedimentos e mecanismos de participação e controle da gestão pública por parte
da sociedade civil. Conforme nos diz Ávila, não há que se falar em universalização
da supremacia do interesse público sobre o privado, mas podemos falar na
convergência e na reciprocidade de interesses entre o público e o privado, tal como
Habermas coloca a equiprimordialidade e co-originalidade entre a autonomia pública
e privada.
Acreditamos numa “Administração Pública Dialógica”, modelo que deve ser
considerado como a evolução daquele tradicional descrito pela maioria da doutrina
clássica do Direito Administrativo. Devemos evoluir para que a escolha racional de
prioridades segundo interesses reconhecidos pelo direito seja feita a partir dos
mecanismos de participação da sociedade civil em interação com o Poder Público. A
Constituição de 1988 em seus aspectos de participação popular ainda não é totalmente
efetiva, mas estamos evoluindo bem e alguns planos diretores, apesar de poucos,
evidenciam este fato. A própria evolução do Direito Urbanístico no país passa pela
efetivação da gestão democrática nas cidades e esperamos comemorar este fato em
breve, tal como comemoramos nos 20 anos da Constituição as conquistas democráticas
de 1988.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”.
Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização. Jurídica, v. I, nº 7, outubro, 2001.
Disponível em:<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18. ed. rev., ampl. e atual. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 500 anos de Direito Administrativo Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, Instituto de
3
De acordo com o Gráfico 02.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
113
Direito Público da Bahia, nº 05, Janeiro/Fevereiro/Março, 2006. Disponível em: <http://
www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008.
FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. 5. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004.
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
HABERMAS, Júrgen A inclusão do outro: Estudos de teoria política. Trad. George Sperbe e Paulo
Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno: de acordo com a EC 19/98. 3. ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 23 ed. rev. e atual. até a Emenda
Constitucional São Paulo: Malheiros, 2007.
PETTIT, Philip. Democracia e Contestabilidade IN: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.
Governança Participativa de Áreas Públicas:
em que Avançamos da Constituição de 1988
ao Estatuto da Cidade1
MARINELLA MACHADO ARAÚJO
Professora Doutora do Programa de PósGraduação e Graduação em Direito da PUC Minas.
Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas.
GABRIELA MANSUR SOARES
Mestranda em Direito Público pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito pela PUC Minas.
Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas
Públicas/OPUR (NUJUP).
THAÍS LOUZADA
DE
SOUSA
Graduanda em Direito pela PUC Minas.
Pesquisadora Bolsista pelo PROBIC – Programa de
bolsa de iniciação científica com o trabalho
desenvolvido juntamente com o Graduando em
Direito pela PUC Minas Luiz Márcio Siqueira
Júnior, ambos vinculados ao NUJUP– Núcleo
Jurídico de Políticas Públicas.
RESUMO: Ao comemorar 20 anos de vigência, o texto constitucional de 1988
atinge a maturidade necessária para a crítica de sua efetividade. Se avançamos
no que se refere à tutela jurídico-legal de direitos fundamentais sociais, a sua
concretização ainda permanece um desafio como sustentam Konrad Hesse e
1
Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica do
Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas,
coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam ainda
reflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidos
no Programa de Pós-Graduação da PUC Minas.
116
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Fridrich Müller. Nesse contexto, o princípio do discurso de Habermas apresentase como fundamento para a defesa da “governança participativa”, sustentada
pelo Estatuto da Cidade, como um modelo de gestão administrativa fundado na
institucionalização do diálogo, na articulação política entre poder público e
sociedade civil e accountability. Nesse contexto, o texto sustenta ser a
universalização da participação da sociedade, por meio de associações civis,
representa uma forma eficiente de inclusão de grupos historicamente
marginalizados e de formação de sujeitos de direito co-responsáveis pela
formulação e implementação de políticas públicas. E, ao fazê-lo, apresenta o
plano de coleta de lixo seletiva realizada pela Prefeitura do Município de Belo
Horizonte como um modelo efetivo e eficiente de Administração Pública
dialógica. E, ao fazê-lo, demonstra como a concretização de dois direitos
fundamentais, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade
sustentável, pode ser realizada pela gestão democrática de espaços urbanos.
PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública Dialógica, Associativismo,
Políticas Públicas.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é comprovar que a universalização da participação
da sociedade, por meio de associações civis, representa uma forma eficiente de gestão
local, tornando os cidadãos co-responsáveis pela formulação e implementação de
políticas públicas.
O estudo dessa participação é feito à luz da teoria do discurso de Habermas e
da teoria concretista de Müller, sendo a primeira utilizada para constatar o canal de
comunicação entre a iniciativa privada e o Poder Público e, a segunda, utilizada para
legitimar as normas administrativas.
Evidenciamos tal abertura para a ‘governança participativa’ na Administração
Pública desde a Constituição quando essa elenca o poder estatal como emanação do
povo, no parágrafo único do artigo 1º, até o instrumento mais recente da administração
das cidades, o Estatuto da Cidade quando esse propõe que o desenvolvimento
sustentável de uma cidade será promovido com a participação do povo, através das
associações civis, que participando das decisões administrativas serão co-responsáveis
pela gestão democrática das cidades.
Arrimado em uma abordagem ilustrativa o texto, parte de uma análise indutiva,
que nasce da parceria entre a Prefeitura de Belo Horizonte – Minas Gerais e a
Associação Civil dos catadores de lixo que criaram uma instituição destinada à coleta
seletiva do lixo, denominada Asmare. Tal projeto intenta conscientizar e a valorizar
as ações populares que fortificam as leis e o sistema da Administração Pública.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
117
Pretendemos demonstrar como a concretização de dois direitos fundamentais
– ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável – pode ser
realizada pela gestão democrática de espaços urbanos.
2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE
CIVIL NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA
Iniciemos a proposição analisando o que é República. República é uma forma
de governo que nasce como uma contraposição à Monarquia e possui um sentido
muito próximo ao da Democracia, uma vez que prevê a participação social no governo.
Ela surge no final do século XVIII com as seguintes características: Eletividade – o
governante é eleito pelo povo; Temporalidade – o governante recebe um mandato
por período certo e Responsabilidade – o governante é politicamente responsável e
deve prestar contas ao povo.
Nesse sentido se apresenta a República adotada pelo texto constitucional, uma
República Democrática, na qual o poder soberano do povo é exercido não só
diretamente através do voto direto, secreto e universal, bem como através de canais
decisórios junto a administração pública que propiciam o diálogo entre o Estado e o
povo, esse que é um meio, a nosso ver, eficaz de concretização da prescrição normativa,
posta pela Constituição, no que diz respeito às normas que instituem direitos
fundamentais.
É a partir do exercício de cidadania que o indivíduo contribuirá para a formação
do Estado Democrático de Direito. O ideal de liberdade política que extingue o
absolutismo e surge com o republicanismo intenta a soberania popular, a limitação
de faculdades dos governantes e da garantia de direitos individuais. A consolidação
da soberania popular depende da transição do sistema de governo democrático
representativo para o participativo, de tal maneira que seja resguardado a liberdade
e a legitimidade do povo.
Com o intuito de construir o conceito de cidadania moderna Cristina Seixas
Vilani (2002) faz uma explanação cronológica dos sistemas políticos. A explicação
se inicia com um conceito de cidadania nascido na Antiguidade que se resume àquele
que pertence a uma comunidade cívica, perpassa por uma disposição Moderna que
ressalta o processo de criação e ampliação de direitos até adquirir uma dimensão
universal. A estudiosa decorre por uma visão republicana – socialista que define o
cidadão como um homem que pensa em liberdade como autodeterminação do povo;
que possui um ideal de bem-estar coletivo. Finalmente estabelece o conceito de cidadão
liberal como aquele que luta intensamente pela tutela dos direitos individuais.
Vilani tece que o cidadão moderno advém desse desenvolvimento histórico
dos direitos civis aos políticos; dos direitos de primeira a terceira geração também
118
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
chamado de metaindividuais. É quanto à classificação desses últimos direitos que a
autora ressalta a evolução desse conceito, uma vez que o indivíduo passa a se preocupar
com a humanidade e apesar de se agrupar em categorias específicas (idosos, estudantes,
religiosos etc.) ele percebe a necessidade do engajamento global. A proteção de direitos
difusos é fundamental na legitimação do Estado Democrático de Direito; o
fortalecimento do sistema jurídico é derivado da execução do pluralismo, da
valorização das diferenças, da igualdade de oportunidades e da prática cívica.
A participação social é o que oferece o dinamismo à norma. A própria
Constituição ao estabelecer no parágrafo único do art. 1º que “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição” (grifo nosso) dá margem a uma interpretação no que tange ao
efetivo exercício da soberania popular, precisamente, por meio da participação
democrática.
O povo é o único detentor legítimo do Poder, e isso se justifica no sentido de
que a Constituição é oriunda do Poder Constituinte Originário, promulgada por uma
Assembleia Nacional Constituinte, fundamento esse que justifica o sistema
democrático participativo para, além de outras coisas, se adequar ao paradigma de
Estado Democrático de Direito. Percebemos a priorização desse sistema democrático
participativo, na recente reforma administrativa realizada no País, reforma esta que
priorizou, dentre outros fatores, uma participação acentuada do particular na discussão,
gestão e execução do serviço público para o fortalecimento do Estado Democrático
de Direito e consequentemente da legitimação da Administração Pública Dialógica.
A Administração Pública Dialógica é uma forma de gestão muito pouca
difundida entre a população apesar de sua previsão ter nascido juntamente com a
Constituição de 1988 ao prever a existência das Ações Civis Públicas e as Ações
Populares. O conceito desse tipo de Administração Popular é tão pouco divulgado e
aplicado que visualiza-se escassez de jurisprudência nesse sentido. Não há entre as
decisões jurídicas na explicito quanto à importância da participação popular nas
decisões administrativas.
3. A LIMPEZA URBANA
3.1. Uma função da Administração Pública
A Administração Pública como determina o tópico anterior surge da concessão
do poder do povo aos representantes que deverão dar prioridade aos direitos difusos
em todas as suas decisões políticas. Esta concessão é feita principalmente pela Carta
Magna que norteia claramente a vontade da Administração. Uma dessas funções é
objeto de estudo da presente pesquisa e está disposta a seguir:
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
119
A Constituição da República no Título VII – DA ORDEM ECONÔMICA E
FINANCEIRA dispõe no seguinte art. 182 do Capítulo II – Da política urbana:
A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (grifo nosso)
Há também a seguinte previsão no art. 225 do Capítulo VI – DO MEIO
AMBIENTE:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (grifo nosso)
O texto constitucional incumbe a Administração Pública como a detentora do
bem estar social, consequentemente a que possui competência no âmbito municipal
de legislar sobre saneamento básico e meio ambiente. Nesse mesmo sentido dispõe o
Estatuto da Cidade:
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas
dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no
processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo
a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente.
A Lei Orgânica de Belo Horizonte prevê no art. 150 e 151 Capítulo III – Do
Saneamento Básico:
Art. 150 – Compete ao Poder Público formular e executar a política e os planos plurianuais
de saneamento básico, assegurando:
II – a coleta e a disposição dos esgotos sanitários e dos resíduos sólidos e a drenagem das
águas pluviais, de forma a preservar o equilíbrio ecológico e prevenir as ações danosas à
saúde; (grifo nosso)
120
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Art. 151 – O Município manterá sistema de limpeza urbana, coleta, tratamento e destinação
final do lixo, observado o seguinte. (grifo nosso)
Após a leitura da legislação percebe-se que a vontade da Administração Pública
é submissa à lei e que a previsão normativa não é suficiente para que o governo
atenda as necessidades sociais. Logo que vivemos em uma realidade totalmente carente
de iniciativas estatais principalmente quanto à limpeza urbana e todo o complexo
que a envolve; como os funcionários que trabalham na coleta de lixo e a destinação
desses resíduos.
Konrad Hesse (1991) dispõe de forma mais clara o que era previsto por Kant.
Ao examinar e ponderar a tese de Ferdinad Lassalle sobre o dever da Constituição
representar questões políticas, ele destaca que a simples formalidade da lei não garante
a proteção dos direitos do homem, pois as relações de poder têm que ser aplicadas na
realidade. Contudo, o afastamento total da previsão escrita gera insegurança e
incerteza, não menosprezando, portanto, o valor do texto na evolução do Direito.
Hesse concebe que o texto somente se transforma em realidade com a atuação
do intérprete, o texto não é imutável, mas não poderá ser estático.
Aqui se enquadra a concepção de norma jurídica de Muller, o autor analisa a
própria concepção da norma metódica estruturante a partir dos métodos de interpretação. De acordo com Muller, ao contrário do que dispõe as teorias positivistas (as
normas e os institutos como um ato de vontade do Estado e que precisam ser obedecidas independentemente dos dados históricos e da própria sociedade), a norma concretiza-se a partir da aplicação da prescrição normativa ao fato real, o teor legal
representará o limite dessas soluções, deve-se procurar no caso real o elemento normativo que não pode ser eliminado sem que a situação sofra substancial transformação.
A norma para Müller é, portanto, a junção do âmbito da norma (prescrição
legal) e sua aplicação. Sem a aplicação das normas analisadas acima não há que se
falar em norma jurídica e, portanto, em concretização de normas que dizem respeito
à política urbana.
Esta colocação confirma-se a partir do exposto acima; a Constituição da
República, o Estatuto da Cidade e a Lei Orgânica determinam que são funções do
Estado preservar o meio ambiente e buscar uma finalidade certa ao lixo produzido
nas cidades; todavia, o que observamos, em Belo Horizonte especificamente, é uma
enorme quantidade de resíduos descartados no espaço público.
Percebemos, ainda, não haver por parte do Estado uma conscientização eficiente
da população como determina a lei. Grande parte do lixo recolhido é remetida a um
aterro sem que haja a reciclagem, como expõe a legislação. A destinação do lixo é
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
121
uma realidade muito problemática não só para Belo Horizonte como para todo o
país, para se ter uma ideia da gravidade do problema, segundo o Manual do Instrutor
(2006) do total de lixo coletado 55% é jogado em áreas alagadas e lixões a céu
aberto; 35% são enterrados em aterros adequados e apenas 10% vai para usinas de
reciclagem e compostagem.
Nesse sentido é essencial a contribuição das associações civis nas soluções
desses problemas, pois além de representarem um poder fiscalizador local estes grupos
passam a ser a própria gestão administrativa do lugar.
Um dos instrumentos da gestão administrativa é o corporativismo surge2 com
a precípua função de amenizar a realidade presenciada por indivíduos que não possuem
amparo estatal, e, portanto, são incapazes de viver dignamente. O movimento
aconteceu no Brasil data de 1847 quando foi fundada a primeira cooperativa no Paraná
denominada Colônia Tereza Cristina.
Em Belo Horizonte. Fatigados os moradores de rua e catadores de lixo, fatigados
do cenário de exclusão em que viviam, e possuindo apenas, como meio de
sobrevivência a coleta de lixo resolveram se associar para serem reconhecidos como
uma categoria. Esta seria a única de solucionar seus problemas. A ASMARE –
Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo
Horizonte é uma associação organizada por estes cidadãos marginalizados que até o
presente momento tem bom êxito.
Hoje os integrantes da ASMARE adquiriram novamente respeito social e são
vistos como cidadãos, principalmente por estarem contribuindo para a formação do
Direito. A iniciativa da ASMARE inseriu esses indivíduos em um sistema claro de
Administração Dialógica, pois esse grupo pode participar de uma decisão resolutiva
para um problema que os afetava diretamente.
Nesse ponto é que verificamos a aplicação do disposto pela Teoria Discursiva
de Habermas (2004) e que propõe a abertura de canais deliberativos aos vários atores
sociais frente ao Estado. O autor fundamenta o valor da participação popular e do
diálogo sociedade – Estado para a legitimação normativa. Habermas entende que
deve existir em um Estado Democrático de Direito o agir comunicativo, ou seja, o
entendimento entre falantes e ouvintes decorrente de um consenso sobre algo em
comum no universo que os envolve.
Ainda Ressalta Habermas que o corpo político se constitui de pessoas que se
identificam mutuamente como portadoras de direito recíprocos, o reconhecimento
2
Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável. Cartilha. Belo Horizonte: Minas Gerais,
2004.
122
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
de todos esses direitos pelos cidadãos fundam-se em leis, estas para serem legítimas
têm de garantir o acesso de todos aos mesmos níveis de liberdade, inclusive os de
participação e resolução dos problemas sociais por eles enfrentados. O referido autor
prossegue afirmando que a soberania do povo, somente tem espaço no processo
democrático. Dessa forma, atinge a consolidação jurídica de seus pressupostos
comunicacionais, se esta soberania popular tiver por fim precípuo a validação do
poder criado através da comunicação.
A democracia participativa, analisada sob o viés da teoria do discurso, assentase na garantia de acesso a qualquer indivíduo em pleno gozo de seus direitos políticos.
Direito esse de exercer, em todos os graus, a liberdade de participação nas discussões
e resoluções de problemas atinentes à sociedade no qual esses indivíduos estão
inseridos. Com efeito, a democracia participativa demanda para a sua efetiva
concretude, a ação da soberania popular pelo instrumento dialógico.
A manifestação de diversificadas ideias num ambiente público propício à
discussão das questões sociais favorece, inicialmente, a canalização das opiniões
para um ponto comum. O consenso entre os debatedores resulta, dessa forma, em
soluções racionais plausíveis para os problemas sociais enfrentados.
A Democracia Participativa representa a concretização da soberania popular
ao conferir ao cidadão o direito de participação nos canais deliberação onde expondo
suas ideias e ouvindo a de outros é capaz de construir um consenso na tomada de
decisões.
A parceria da Prefeitura de Belo Horizonte e da ASMARE é um modelo eficaz
de Administração Pública Dialógica, pois redes solidárias, como esta, são construídas
em um contexto de muitos embates, principalmente com o poder público, mas o
resultado desse processo de organização é sem dúvida altamente benéfica a vários
ramos da sociedade.
Percebe-se que a criação da ASMARE, a partir de um canal de comunicação
sociedade-Estado, proporcionou empregos de qualidade a milhares de brasileiros
ociosos e muitas vezes marginalizados. Ademais a reciclagem do lixo feita por esse
grupo atribui renda a um produto que não possuía o menor valor de mercado direto
de gestão por parte do indivíduo e proporciona a este autonomia na solução de
problemas por ele vivenciado como a questão do desenvolvimento da sociedade
sustentável, além disso, a ASMARE representa um meio que antes não era aproveitável
hoje produz capital que é investido na própria sociedade.
Felizmente os cidadãos parecem se conscientizar da importância da criação
dessas associações e cooperativas na concretização do Estado Democrático de Direito, pois a iniciativa dessa junção torna esses cidadãos mais poderosos frente ao
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
123
Estado. O agrupamento em busca de uma meta comum implica em debate e contestação meios fundamentais para a verificação da validade e concretização de uma
norma.
4. CONCLUSÃO
A partir da identificação do funcionamento local de um canal de comunicação
entre Estado-sociedade, especificamente a ASMARE, o presente artigo buscou
demonstrar a possibilidade da criação de uma relação dialógica entre o Poder Público
e a iniciativa privada realmente eficaz, e como a efetivação da soberania popular
posta constitucionalmente avançou pelos instrumentos concebidos pelo Estatuto da
Cidade.
O estudo embasado na análise da concretização de dois direitos fundamentais,
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável, evidenciou a
realização da gestão democrática de espaços urbanos.
Foi possível identificar um grau satisfatório de concretização do princípio da
eficiência da Administração Pública. A partir da análise das políticas públicas de
limpeza urbana implementadas pela prefeitura de Belo Horizonte e pela ASMARE.
Concluímos que as teorias concretista de Muller, e discursiva de Habermas contribuem
para a fundamentação teórica desse movimento de efetivação da democracia
participativa.
Da mesma forma, constatou-se a importância da proposição de ações ou projetos
que visem à difusão do desempenho da Administração Pública. A necessidade da
descentralização gestora, e de repasse aos grupos sociais organizados da gestão dos
programas sociais. Ao passo que à Administração Pública caberia apenas a fiscalização
dessas atividades. Essa situação acarreta, certamente, a concretização das funções e
das normas que regem o Poder Público.
Em que pese a abertura para o canal de comunicação público-privado, é
necessário que a iniciativa deva partir tanto do Estado quanto da sociedade, havendo
uma reciprocidade de interesses entre as partes envolvidas na deliberação das questões
sociais. O Estado precisa estimular os cidadãos a se agruparem ou associarem para
facilitar a organização da entidade civil, ao passo que os cidadãos cientes do exercício
pleno da cidadania, precisam participar das deliberações públicas.
Portanto, uma das soluções apontadas para a edificação de um novo paradigma
de Administração Pública eficiente e eficaz, é sem dúvida instituir mecanismos capazes
de fortalecer a democracia participativa em que o povo seja o verdadeiro detentor do
poder, o que nada mais representa do que a ‘governança participativa’.
124
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
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A Educação Jurídica Popular Como
Instrumento do Direito à Gestão
Democrática da Cidade: a Prática
Extensionista na Busca por uma Participação
Popular Efetiva
LÍVIA GIMENES DIAS
DA
FONSECA
Graduada na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco da Universidade de São Paulo. Assessora
Técnica da Comissão de Anistia/Ministério da
Justiça.
MARCO AURÉLIO PURINI BELÉM E
STACY NATALIE TORRES DA SILVA
Graduandos da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco da Universidade de São Paulo. Membros
do Grupo de Regularização Fundiária em
Paraisópolis. Projeto Aprender com Cultura e
Extensão da USP.
RESUMO: Neste artigo, o Grupo de Regularização Fundiária em Paraisópolis
compartilha as dificuldades enfrentadas na efetivação da participação popular
em diversas instâncias (Conselho Gestor da ZEIS e Associação Projeto Moradia)
do processo de urbanização e regularização fundiária nessa comunidade; bem
como, reflete acerca das possibilidades e limites da Educação Jurídica Popular
como instrumento de capacitação para exercício do direito à gestão democrática
da cidade. O presente trabalho avalia em que medida o uso da educação de
caráter emancipatório conjugada com a litigância em ações coletivas de
“usucapião” pode contribuir para que a população participe de maneira efetiva e
não simplesmente legitime um modelo de planejamento desigual e acabe por
implementar políticas que reproduzam a segregação e a exclusão nas cidades. A
experiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constitui dentro
das fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centro e
periferia, em que os que compõem os estratos mais baixos são considerados
inferiores. Esse contexto de opressão gera um modelo de produção do território
e do conhecimento que tem no homem e na mulher da periferia a descrença, a
subestimação de sua capacidade de assumir o papel de sujeito, tudo isso fomenta
nesses indivíduos uma postura paciente e dócil, enquanto o ato de conhecer e
126
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
participar do planejamento urbano deveria supor uma postura exatamente oposta.
Em tal acepção, as atividades de extensão possuem um papel na diminuição
dessa opressão ao aproximar o conhecimento produzido nas Universidades com
o conhecimento popular de maneira não hierarquizada, empoderando a população
para que exerça seus direitos enquanto legítimos sujeitos políticos.
INTRODUÇÃO AOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO DEMOCRÁTICA
DAS CIDADES
Uma nova ordem jurídico-urbanística foi inaugurada em nosso país com a
Constituição Federal de 1988. A criação de um Capítulo denominado “Da Política
Urbana”, em seus artigos 182 e 183, marcou a constitucionalização do Direito
Urbanístico, dando um claro alcance de Direito Público para normas que regulam o
uso, a ocupação, o parcelamento e a gestão do solo urbano, antes tratadas unicamente
pelo viés civilista.
Esses capítulos só foram regulamentados anos mais tarde, com a edição do
Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01. É importante frisar que tanto o Capítulo
da Constituição quanto sua lei regulamentadora só foram normatizados devido à
pressão e articulação, principalmente, de movimentos sociais e ONGs junto ao Fórum
Nacional de Reforma Urbana (FNRU).
Por ser fruto de um processo de construção com atores comumente negligenciados dos processos de elaboração de políticas urbanas, o Estatuto da Cidade foi
explícito e enfático na necessidade de construção da política urbana por meios de
processos públicos e participativos – e não meramente estatais, transformando esta questão em um dos princípios mais caros ao Direito Urbanístico, o da “Gestão Democrática
das Cidades”, expresso no artigo 2º, II da Lei Federal 10.257/01 quando da “formulação,
execução e implementação de planos, programas projetos de desenvolvimento urbano.”
Dessa forma, o Plano Diretor, que é “o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana”, obrigatório para municípios com mais de
vinte mil habitantes (Constituição Federal, art. 182, § 1º), foi, com a edição do Estatuto
da Cidade, transformado, necessariamente, em Plano Diretor Participativo, pois é
obrigatória a realização de audiências públicas quando da elaboração da lei municipal,
conforme dispõe, expressamente o art. 40, § 4º, III, do Estatuto da Cidade.
O Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo – Lei Municipal
13.430/02 – também foi construído a partir dos mesmos princípios do Estatuto da
Cidade, inclusive o da “gestão democrática”. Prova disso é seu art. 7º, XII, que define,
entre os seus princípios, a “participação da população nos processos de decisão,
planejamento e gestão”.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
127
A Lei Municipal definiu também as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS),
“porções do território destinadas, prioritariamente, à recuperação urbanística, à regularização fundiária e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP”, (art. 171, caput, da Lei Municipal). Continua a Lei Municipal,
em seu art. 175, VI, esclarecendo que cada ZEIS deverá estabelecer um Plano de
Urbanização, por Decreto Municipal, que deverá prever formas “de participação da
população na implementação e gestão das intervenções previstas” e continua, no §
1º: “Deverão ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores compostos por
representantes dos atuais ou futuros moradores do Executivo, que deverão participar
de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de sua implementação”.
1. O GRUPO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE PARAISÓPOLIS
A partir destes pressupostos foi firmado em 2003 um convênio entre a Prefeitura
Municipal de São Paulo e o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP,
dando origem ao “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” – um projetopiloto de extensão universitária com o objetivo de promover regularização fundiária
em uma área (quadra) da Comunidade de Paraisópolis, localizada na zona Sul do
município de São Paulo.
Devido aos princípios do direito urbanístico, as normas municipais e federais
sobre o assunto e convicções políticas dos membros do grupo foi decidido realizar a
regularização fundiária na comunidade a partir de ações de Usucapião Coletivo –
instrumento previsto no Art. 10 do Estatuto da Cidade. Decidiu-se também, juntamente
com os moradores, fundar uma associação de moradores com os autores das ações –
a Associação Projeto Moradia – que atuaria como substituta processual nas ações de
usucapião coletivo. A partir da Associação Projeto Moradia e das ações de usucapião
coletivo fazemos reuniões mensais com os moradores e as moradoras de Paraisópolis,
discutindo os problemas da área e sua possível solução, num processo de incentivo à
gestão coletiva do espaço. Além disso, incentivamos a participação dos associados e
associadas nas reuniões do Conselho Gestor de Paraisópolis, por ser um espaço de
discussão da urbanização de toda a coletividade residente naquela área e de
participação do poder público, sendo, portanto, um espaço de pressão da comunidade
para a efetiva implementação de políticas públicas urbanas.
2. RECONHECENDO AS DESIGUALDADES E OPRESSÕES NA
PRODUÇÃO DA CIDADE
A experiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constitui
dentro das fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centro
e periferia composta pela própria geografia, em que os que compõem os estratos
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
128
mais baixos da sociedade são considerados inferiores. Esse contexto de opressão em
que essas pessoas se encontram se reflete num modelo de produção de conhecimento
e de produção da cidade. No homem e na mulher da periferia há a descrença, a
subestimação da sua capacidade de refletir, de sua capacidade de assumir o papel de
sujeito de procura do saber, o que faz com que seja exigida destes indivíduos, por
muitas vezes, uma postura paciente e dócil, quando o ato de conhecer supõe uma
postura exatamente oposta.
Desta maneira, a produção de conhecimento na sociedade moderna adota um
modelo da “não-existência”, ou de outra forma, da “monocultura do saber” em que,
nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, há a “transformação da ciência moderna
e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente
(...) Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente”1. Nesta
direção, há uma separação absoluta entre conhecimento cientifico e outras formas de
conhecimento do senso comum ou estudos humanísticos2, tendo na ciência catedrática
a única forma de produção de conhecimento considerado válido.
Em contraposição a este modelo, Boaventura propõe o exercício de uma
sociologia das ausências que implique na identificação das experiências produzidas
como ausentes de forma que se tornem presentes como “alternativas as experiências
hegemônicas”, que possam ter a sua credibilidade discutida e argumentada e possam
ser objeto de disputa política3.
Nesta mesma direção, se propõe também a substituição da “monocultura” pela
“ecologia de saberes” em que se considera que “toda a ignorância é ignorante de um
certo saber e todo o saber é a superação de uma ignorância particular”4, que não há
epistemologias neutras e que estas devem ser produzidas no exercício prático do
conhecimento observando seus impactos em outras práticas socais5.
3. A EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA
As atividades de educação jurídica popular (extensão universitária) possuem
um papel essencial no rompimento com a forma hegemônica de produção do
1
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez
Editora, 2006, p. 102-103.
2
Idem, p. 25.
3
Idem, p. 104
4
Idem, p. 106.
5
Idem, p. 154.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
129
conhecimento científico ao colocar em contato o conhecimento produzido nos bancos
das Universidades com o conhecimento popular.
Desse modo, os dados da realidade fática, que a extensão emancipatória
realizada nas Faculdades de Direito proporciona conhecer quando estimula nos(as)
universitários(as) a busca de soluções aos problemas e conflitos sociais postos,
alimenta a investigação sobre os possíveis significados e representações da realidade
dentro de um campo teórico e os produtos dessa investigação são aproveitados para
a transmissão de um conhecimento dinâmico que se atualiza e, em lugar de permanecer
apegado aos seus roteiros conhecidos, abre-se para novas formas de interpelar e
conhecer seu objeto de estudo6.
No aprendizado do Direito em questão, trata-se da quebra de uma visão
hegemônica normativista sobre o direito e sobre a sociedade que serve para ocultar a
realidade humana contraditória, conflitiva e injusta que acaba por impedir a percepção
do direito como instrumento de superação de uma realidade injusta e de exclusão
social.
Dessa forma, a concepção da educação como atividade supostamente neutra
instrumentalizada para a reiteração de um ideal de Direito em forma de lei e
desprendido da construção social e das implicações históricas transforma as pessoas
em objetos despolitizados das decisões do Estado. A construção de um saber jurídico
emancipatório só pode ser feita de forma coerente com uma educação que também
esteja a serviço da emancipação de homens e mulheres.
Assim, a experiência do projeto de “Regularização Fundiária” da comunidade
de Paraisópolis, apesar da preocupação inicial do grupo ser a viabilização litigiosa da
regularização das moradias do bairro, na relação com os(as) moradores(as) da região,
percebeu-se que direitos fundamentais, tais como o direito à moradia, tratados através
de uma ação judicial coletiva, comportam estratégias que devem superar a mera
litigância judicial.
Isto em razão do fato de que aqueles e aquelas que vivem em habitações
consideradas “irregulares” sentem-se como indivíduos “ilegais”, ou seja, como relata
Boaventura, vêem como perigoso trazer a situação ilegal da comunidade à atenção
dos serviços do Estado, pois isto poderia levá-lo a lhes “jogar na cadeia”. O autor
demonstra que pessoas que vivem nessas condições não buscam a polícia e/ou Poder
Judiciário para a resolução de seus conflitos internos o que acarreta na criação de
6
A Constituição Federal de 1988 legitima o status da extensão como “indispensável” para o processo de
aprendizagem e produção científica nas Universidades quando concede à extensão um caráter indissociável do
ensino e da pesquisa: “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
130
uma situação de pluralismo jurídico7. Nesta direção, o mero tratamento litigioso da
questão, distanciado dos(as) moradores(as) da quadra, poderia levar a dar um uso ao
Direito que reduziria os indivíduos à condição de “coisas”, roubando-lhes o direito
de serem sujeitos de seu próprio discurso e destino.
Assim, o projeto passou a compor em sua atuação junto à comunidade oficinas
de Educação Jurídica Popular. Entretanto, uma grande dificuldade em realizar uma
verdadeira “práxis” é encontrada por muitos(as) estudantes na sua prática educativa.
Para Lyra Filho, “o grau de conscientização, a sua própria coerência e persistência
dependem sempre do nosso engajamento numa práxis, numa participação ativa
consequente”8. A ação educativa para uma visão crítica do direito deve sempre estar
aliada aos estudos das possibilidades dos seus discursos e de sua própria prática para
que essa seja repensada constantemente.
Uma educação para os Direitos Humanos, na perspectiva da justiça, deve se
pretender “dialógica”, ou seja, deve buscar na relação dos indivíduos com o mundo a
sua existência à comunicação, o que é a essência do “ser da consciência”9 (a
intencionalidade), e serve à sua libertação da condição de “seres para o outro” que
passa a ser a condição de “seres para si” significando a sua “autonomização”10 e
empoderamento na perspectiva de se descobrirem dotados de um saber próprio
indispensável para a transformação de uma normativa a que eles se encontram
submetidos enquanto cidadãos, mas que não reflete as suas realidades. Nessa direção,
os direitos formulados através da ação comunicativa da participação democrática
devem deixar a critério dos sujeitos jurídicos se querem e como querem fazer uso de
tais direitos11.
Desse modo, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) surgem
como uma reação à redução do direito como norma e a uma forma de reflexão acerca
da “problemática da democracia, da cidadania e do papel das instituições (em especial
o Estado) em relação ao poder”12, tendo, assim, como concepção de que o Direito
deva ser formulado através de uma prática dialógica, o que “pressupõe a recriação da
7
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, In: Sociologia e Direito.
São Paulo: Pioneira, 1999, p. 03.
8
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2005 (col. Primeiros passos; 62) 12. reimpr.
da 17. ed., 1995, p. 22.
9
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 77.
10
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997, p.39.
11
Idem, p. 94.
12
AGUIRRE, Claudia Freitas. Senso comum teórico dos juristas e saber crítico: uma leitura do pensamento de
Luis Alberto Warat. Dissertação (Monografia), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006, p. 49.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
131
noção de Justiça e a ampliação do conceito de Direito, que não se reduzem à ordem
estabelecida, mas apontam para a indisponibilidade do direito popular de autoexercício de participação como sujeito determinante, ativo e soberano, da direção de
seu próprio destino”13.
Portanto, a experiência da Regularização Fundiária de Paraisópolis é na verdade
uma “experiência de conhecimento” que busca nos conflitos e diálogos diferentes
formas de saber. A tradução dessas diferentes formas de conhecimento, postas em
contato através do diálogo, “visa transformar a incomensurabilidade em diferença”14
e servem para a verificação da inadequação ou incompletude dos conceitos teóricos
do Direito que devem estar a serviço da emancipação social.
A partir desses pressupostos pretende-se contribuir com uma preocupação
metodológica para trabalhar as questões de desigualdade e desmistificação da técnica,
a fim de conferir uma verdadeira legitimidade popular à prática urbanística.
4. A ANÁLISE DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM PARAISÓPOLIS
Analisando especificamente a experiência de participação popular no processo
de urbanização e regularização fundiária no Paraisópolis, nota-se uma mera
formalidade na gestão democrática, pelo espaço extremamente limitado de participação
nas decisões.
Nossa ponderação tem início com a investigação da participação dos moradores
no processo de elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de São Paulo.
Sendo o Plano Diretor peça chave da regulação urbanística das cidades, a ausência
de representantes dessa comunidade no seu processo de elaboração já macula as
bases que serviram para tomada de decisão em torno dos objetivos e prioridades do
Plano em relação a essa comunidade. A leitura da realidade através do olhar dos
moradores é fundamental para seleção de temas e objetivos a serem trabalhados pelo
Plano. A ótica da cidade pelo olhar da população não dispensa, contudo, a necessidade
de que uma visão técnica e das leis seja apresentada a esses cidadãos, de modo que
possam participar verdadeiramente, sendo essencial o conhecimento dos instrumentos
urbanísticos para que os objetivos do Plano possam ser cumpridos.
Pelo caráter permanente de participação que caracteriza a gestão democrática,
exige-se uma distribuição democrática do poder, uma liberdade ativa, um espaço
público de palavra e de ação para o controle das atividades do poder público por
parte dos indivíduos.
13
SOUSA Jr. José Geraldo (org.). Introdução crítica ao direito. Direito achado na rua, edição 4, vol. 1, p. 130.
14
SANTOS, Boaventura de Sousa, ob. Cit, 2006, p. 104.
132
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Em Paraisópolis não houve uma construção do que iria ou não entrar na Lei do
Plano Diretor, nem na fase inicial da elaboração do projeto de lei, nem na de deliberação
do texto final, embora fosse necessária a discussão pública e participativa. Para isto,
seria necessário uma qualificação para a discussão, a capacitação desse grupo para o
debate avançado em torno do texto e das prioridades a constarem no projeto.
Sendo essa comunidade uma Zona Especial de Interesse Social, deveria ser
estabelecido um Plano de Urbanização, que previsse formas “de participação da
população na implementação e gestão das intervenções previstas” e que deveriam
ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores. De acordo com a lei esses
devem ser compostos “por representantes dos atuais ou futuros moradores, (...), que
deverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de
sua implementação”. A qualificação/capacitação dos moradores, não foi priorizada
nessa fase de elaboração do Plano de Urbanização e de Composição do Conselho
Gestor da ZEIS. Deste modo, a hipossuficiência técnica dos moradores foi legitimadora
de um Plano de Urbanização excludente, fruto de um planejamento tradicional, que
não permitiu que os moradores e moradoras participassem das decisões ou interviessem
na promoção da integração da comunidade com o bairro que a circunda – é importante
ressaltar que Paraisópolis é uma favela localizada no centro de um bairro de altíssima
renda em São Paulo. Além disso, o Plano de Urbanização não levou em conta as
desigualdades de género, os direitos dos idosos, perdendo uma excelente oportunidade
de melhorar a condição de vida dos oprimidos da comunidade, ao não promover uma
política urbana afirmativa.
Para exemplificarmos o que poderia ser uma política que diminuísse a opressão
sobre as mulheres destacamos a previsão de equipamentos sociais de apoio às tarefas
domésticas, como lavanderias e restaurantes comunitários e espaços para creches. E
quanto aos idosos, seria, por exemplo, a previsão de construção de moradias com
adaptações as dificuldades cotidianas. Assim, estaríamos avançando na democratização
da cidade, na medida em que seria contemplado um olhar atento as dificuldades reais
dos excluídos. O que aconteceu foi que a participação dos moradores nesse processo
legitimou um modelo de planejamento desigual e acabou por implementar políticas
que reproduziram a segregação e exclusão. Foram aprovadas no Conselho remoções
sem o devido atendimento habitacional, à revelia de um direito já conquistado por
aqueles(as) que já ocupam a região à tempo e com requisitos suficientes para usucapir
a área. Sem a devida instrução sobre seus direitos, muitos saíram do Paraisópolis sem
o devido atendimento habitacional.
Na composição do Conselho Gestor da ZEISs temos uma peculiaridade
perversa. Conforme dito anteriormente, Paraisópolis tem em seu entorno um bairro
rico, o que faz com que interesses imobiliários e do poder econômico ditem as regras
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
133
da composição do Conselho. Isso ocorreu de tal forma que metade dos conselheiros
é do Poder Público, e metade é da sociedade civil, porém a sociedade civil possui 30
representantes, divididos da seguinte maneira: 3 são de ONGs, 2 proprietários de
terrenos, 2 moradores do bairro de alta renda (Morumbi) e 23 moradores da favela.
Tal configuração tem feito com que ao longo dos últimos anos (nos quais a Prefeitura
defendeu uma política pró-proprietários) os moradores não tenham conseguido vencer
votações contra o interesse dos moradores do Morumbi. Os moradores acabam
dependendo da gestão que está no governo nos momentos em que seus interesses
ficam contrapostos aos interesses dos moradores do Morumbi.
Para exemplificar, algumas dessas derrotas, em meio a um momento conturbado
de remoções e de início de grandes obras na comunidade, os moradores atingidos
começaram a se fazer presentes nas reuniões do Conselho; e as Secretarias (que
raramente estão presentes) apareceram em peso para aprovar duas resoluções: ouvintes
só terão direito a 1 minuto de fala e diminuiu para a metade da periodicidade das
reuniões do Conselho, o que aumentou a pauta e a complexidade da reunião. Ambas
as resoluções tiveram rejeição plena pelos moradores da comunidade, mas foram
aprovadas pelas ONGs, pelos proprietários e pelo poder público.
Defende-se neste trabalho que os Conselhos Gestores de ZEIS são espaços
para audição e defesa dos interesses daqueles que vão ser atingidos pelas intervenções
urbanísticas e que por servirem de instrumento no avanço da democratização das
cidades, de maneira coerente com seu ideal, deveriam atentar em sua composição e
funcionamento para questões de acessibilidade de localização e de horários; levar em
consideração a paridade de gênero; garantir o apoio às mães (com lugares para os
filhos brincarem enquanto elas participam), além da necessária capacitação e tempo
suficiente para expressão dos moradores. No entanto, parece demasiado distante essa
realidade, na medida em que estamos lutando ainda pela não subordinação dos
indivíduos, e por um sim ao diálogo15.
CONCLUSÃO
O trabalho dos estudantes do grupo de regularização fundiária de Paraisópolis
privilegia a experiência coletiva, numa prática não hierarquizada, dialógica e
multidisciplinar; se baseia em um projeto pedagógico ético de luta por humanização
num contexto de diálogo e troca e na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão. Por estarem comprometidos com o desafio de um direito igualitário, que
garanta direitos e não simplesmente se contente com a proclamação desses,
15
ARENDT, Hannah. The recovery of the Public World. New York: St. Martin Press, 1979, pp. 186.
134
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
reconhecem através de sua prática que os direitos positivado quanto à governabilidade
democrática das Cidades não são exercidos pelos excluídos. Na prática, no município
de São Paulo, não há ainda um espaço público ensejador de participação na coisa
pública, com um diálogo plural que permite a palavra viva e a ação vivida, numa
unidade criativa e criadora16. Por fim, se pretendemos fazer cidades mais justas e
igualitárias, precisamos empoderar a população para que exerçam seus direitos
enquanto legítimos sujeitos políticos, para que esses possam formular políticas que
colaborem para diminuir essa correlação desigual de conhecimento, de gênero, de
poder. Dentre os marcos institucionais que constituem a nova ordem jus-urbanística,
a participação popular é o principal instrumento capaz de verdadeiramente avançar
na democratização da cidade. A luta pela implementação da gestão democrática, com
uma efetiva participação popular, é essencial para impedir que esse instrumento tão
fundamental para concatenação do objetivo de um ambiente urbano mais justo e
sustentável, se torne mera liberalidade, ou letra morta no nosso ordenamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIRRE, Claudia Freitas. Senso comum teórico dos juristas e saber crítico: uma leitura do pensamento de Luis Alberto Warat. Dissertação (Monografia), Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006.
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cidade. Recife: SOS CORPO – Instituto Feminista para a democracia, 2008.
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Cortez Editora, 2006.
16
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______. The life of the mind, vol II. New York: Harcourt, Brace, Janovich, 1978. pp. 199-200.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
135
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SAULE Jr., Nelson. A relevância do direito à cidade na construção de cidades justas, democráticas e
sustentáveis. In: SAULE Jr., Nelson (org.). Direito urbanístico: vias jurídicas das políticas urbanas. 1.
ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2007.
SOUSA Jr. José Geraldo (org.). Introdução crítica ao direito. Direito achado na rua, edição 4, vol. 1.
4
PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE,
A ORDEM URBANÍSTICA E A SUA
JUDICIABILIDADE
A Difícil Implementação dos Instrumentos
Urbanísticos quando da Revisão da
Legislação do Uso e Ocupação do Solo
Urbano
TATIANA MONTEIRO COSTA E SILVA1
Mestre pela Universidade Estadual do Amazonas –
UEA.
MAREEI ALEXANDRE LOPES2
Advogado.
RESUMO: Com a introdução da Lei Federal n. 10.257 de 2001 fez com que
grande parte dos municípios brasileiros se adequasse aos novos parâmetros
estabelecidos na referida norma, na revisão e/ou elaboração por meio dos planos
diretores. Dos vários instrumentos contemplados, ainda existe alguns limites a
serem ultrapassados quando da implementação destes pelos municípios: primeiro
pela falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamento urbano e
os órgãos de planejamento, segundo pela dificuldade em delimitar os lotes urbanos
onde se incidirão determinados instrumentos, com a própria questão do
zoneamento. A delimitação físico-espacial do lote urbano por meio de legislação
específica na prática é de difícil implementação, seja pela ausência de alguns
instrumentos fundamentais: o levantamento aerofotogrométrico do município,
o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicos
da cidade. O presente artigo pretende demonstrar a importância de instrumentos
prévios para complementar o estudo e análise de outros instrumentos quando da
revisão da lei de uso e ocupação do solo: zoneamento, o direito de preempção e
do IPTU progressivo no tempo, etc.
PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor, Delimitação, Legislação Específica,
Aerofotogrometria, SIG, Perfil Socioeconômico.
1
Professora do UNIVAG – Centro Universitário, Professora do Centro Universitário – UNIRONDON, Diretora
de Plano Diretor do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá.
2
Pós-Graduado em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso, Coordenador
do Núcleo de Prática Jurídicas do UNIVAG – Centro Universitário.
140
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo mostrar a dificuldade de implementação
dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade, norma federal que
determina que toda propriedade urbana deve cumprir com sua função social,
especialmente por força de seu caráter sancionatório.
Contudo é sabido que a ausência de planejamento nos centros urbanos ocasiona
o colapso da qualidade de vida. Os instrumentos urbanísticos, quando implementados,
objetivam proporcionar aos cidadãos o direito de ir e vir, a acessibilidade, a mobilidade,
a moradia, o lazer e a cultura, enfim, o planejar a cidade para o amanhã.
Grande parte dos municípios brasileiros está passando por um processo de
implementação dos planos diretores, que devem compatibilizar com as normas de
uso e ocupação do solo. Eis a grande dificuldade encontrada pelos técnicos e gestores
municipais, dada a falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamento
urbano e os órgãos de planejamento, como também pela ausência de alguns
instrumentos fundamentais prévios: o levantamento aerofotogramétrico do município,
o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicos da
cidade.
Daí a necessidade de observância das diretrizes destinadas a regular o
planejamento urbano, mesmo que referidas regras não se mostrem populares ou de
fácil aplicabilidade, por não atenderem interesses particulares.
1. ESTATUTO DA CIDADE E PLANO DIRETOR
A política urbana, para alguns doutrinadores, pode ser definida como ramo do
conhecimento que discute e avalia, dentre outros temas, propostas de crescimento e
desenvolvimento das cidades, políticas de regularização fundiária, políticas habitacionais, desenvolvimento sustentável, especialmente para o poder público municipal,
objetivando compreender as relações entre direito, política e desenvolvimento urbano.
O carro chefe de toda a política urbana idealizada pelo Ministério das Cidades
está voltada para o Plano Diretor Participativo, que deve contemplar as várias
realidades e vocações de cada município brasileiro, no âmbito do território municipal,
não mais apenas no urbano. Com isso o Plano Diretor se revela um instrumento
preventivo da política urbana, tendo como atribuição prever a ocupação adequada da
propriedade urbana, garantindo assim o cumprimento de sua função social.
Esse processo democrático é um componente essencial para o pleno
desenvolvimento dos centros urbanos, notadamente para aqueles com mais de 20.000
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
141
habitantes, já que implica também articulação de diversos sujeitos e interesses, fazendo
com que a participação tenha reflexos na melhoria da qualidade de vida e no bem
estar dos cidadãos, conforme estabelece a Lei Federal nº 10.257, de 2001 – Estatuto
da Cidade.
Conforme Fiorillo, o plano diretor obedece a dois pressupostos constitucionais:
“1) tem que ser aprovado pela câmara municipal, e 2) é obrigatório para cidades com
mais de 20.000 habitantes.”3
O Plano Diretor propicia o combate às desigualdades e à exclusão social,
promovendo a qualidade de vida e do ambiente. Pensar e planejar as cidades que
compõem a região metropolitana como um todo, para aproximar a urbanidade,
valorizar a riqueza, a diversidade cultural e ambiental, dando continuidade funcional
e espacial a essas cidades.
Para potencializar os planos diretores participativos, impõe-se mais do que
nunca, a articulação entre o setor privado e o público, para encontrar o nível de
concentração econômica e solidariedade social, promovendo desta feita, a sustentabilidade urbana ambiental.
A prioridade visa a atender as necessidades essenciais da população
marginalizada e excluída, que também possui um papel importante nesse processo
democrático-participativo.
Durante o processo de revisão e elaboração de alguns planos diretores, a falta
de articulação e comunicação entre os órgãos de gerenciamento urbano com os de
planejamento, prejudicou e muito o resultado final, dada a ausência de informações
técnicas e operacionais de demandas específicas do setor, quanto a alguns
posicionamentos: quais são as áreas mais adensadas da cidade? Ou, quais são as
áreas estratégicas para cidade do ponto de vista do setor imobiliário? Ou, ainda,
quais as dificuldades encontradas quando da aprovação dos projetos urbanísticos
(potencial construtivo, gabarito) etc.
A falta de articulação fez com que alguns municípios, simplesmente instituíssem
as mesmas diretrizes já contempladas no Estatuto da Cidade em seus planos diretores,
não inovando, ou adotando procedimentos específicos para implementação dos
instrumentos urbanísticos, notadamente aqueles que exigem a delimitação das áreas
por meio de legislação específica.
A leitura técnica arquitetada aliada à leitura popular solucionaria dilemas enfrentados pelos Municípios, principalmente os de ordem operacional e regulamentador.
3
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da Cidade comentado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005.
142
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
De qualquer forma, o Plano Diretor deve contextualizar a leitura popular e a
leitura técnica, fixando premissas a serem executadas pelo Poder Público, visando a
ordenar o pleno desenvolvimento das cidades, objetivando a segurança, o bem-estar
e o equilíbrio ambiental, conforme diretrizes do Estatuto da Cidade.
1.1. Função social da propriedade urbana
A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, de modo a evitar a utilização inadequada
dos imóveis; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento
do solo, edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura
urbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como
pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retenção
especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização, a
deterioração das áreas urbanizadas, e por fim a poluição e a degradação ambiental.
A função social da cidade tem como meta evitar a utilização inadequada, que
afeta toda a coletividade, por isso o Poder Público municipal deve redirecionar os
recursos e a riqueza de forma mais justa, solidária e equitativa, combatendo as
desigualdades e a exclusão social.
A função social da propriedade urbana veio consagrada nos artigos 182 e 183
do Texto Constitucional de 1988, tendo como ente principal ou realizador dessa política
de inclusão o Poder Público municipal.
O direito urbanístico, e consequentemente a função social da propriedade,
sujeita-se aos mandamentos constitucionais, como assegura Figueiredo:
A disciplina urbanística da propriedade há de se sujeitar inteiramente aos princípios
constitucionais consagradores da propriedade individual com suas limitações, no que tange
ao interesse social e à função social da propriedade.4
Assim sendo, alguns instrumentos de planejamento urbanístico surgiram
justamente para corrigir o descompasso da má utilização do solo urbano, é o exemplo
do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo,
a desapropriação com pagamento em títulos, direito de preempção etc.
Tais instrumentos devem compatibilizar-se com as normas de uso e ocupação
do solo. No caso de afronta devem se adequar aos parâmetros e diretrizes estabelecidos
no Estatuto da Cidade.
4
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
143
2. INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO URBANÍSTICO QUE
PRECISAM DE DELIMITAÇÃO PARA A SUA INCIDÊNCIA
Para a incidência de alguns instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade,
há a necessidade de sua delimitação, baseada no plano diretor, bem como fixação de
prazos de vigência, prazos para implementação da obrigação, condições etc., o que
revela a dificuldade inicial, já que demanda informação e conhecimento.
A essa dificuldade inicial associa-se o insuficiente aparato institucional, como
bem observa Negreiros e Santos:
As dificuldades de aplicabilidade estão associados ao insuficiente aparato institucional de
gestão urbana. De modo geral, o poder público local conta com uma incipiente organização
técnica para efetivar as regras urbanísticas estabelecidas, o que resulta na dificuldade de
entendimento dos objetivos do conjunto das normas urbanísticas, na dificuldade de
monitoramento do crescimento urbano de acordo com essas normas e na debilidade em
fiscalizar sua aplicação. Essa conjuntura de fatores, a outros mais perversos, provoca a
existência de uma cidade irregular ou ilegal, tornando a norma urbanística inócua a despeito
de sua função de orientar a organização dos espaços urbanos.5
Eis o grande desafio do planejamento e da implementação dos instrumentos
instituídos no artigo 4º do Estatuto da Cidade, qual seja, a dificuldade de entendimento
dos objetivos do conjunto das normas urbanísticas existentes, aliado a ausência de
informações das reais demandas e necessidades da cidade, o que dificulta a organização
técnica de definir as regras urbanísticas para o presente e futuro.
Desse modo, o primeiro instrumento a ser destacado é o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, previsto no art. 5º da Lei nº 10.257 de 2001, na
qual lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o
parcelamento, edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação.
O Poder Público Municipal não pode simplesmente instituir o instrumento,
precisa especificar sua incidência (lote, lotes, áreas, vias etc.). Sobre o assunto assegura
Fiorillo:
O proprietário que não atender ao regramento do meio ambiente artificial em face de seu
território é notificado pelo Poder Executivo municipal, na forma e prazos definidos pelos §
2º, 3º e 4º do art. 5º da Lei 10.257/2001, visando cumprir a obrigação, sob pena de sofrer
aplicação do imposto sobre sua propriedade na forma do art. 7º do Estatuto da Cidade (IPTU
progressivo no tempo) e, num segundo momento, conforme observa o art. 8º da lei que
comentamos, ser legitimado passivo em decorrência da desapropriação.
5
NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In: Direito
urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132.
144
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Caso haja o descumprimento do parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios, a sanção é o “IPTU progressivo no tempo”, outro instrumento previsto
no Estatuto.
Como se vê, a efetividade da norma demanda de outros fatores, e assim como
ficam os municípios que elaboraram seus planos diretores, mas não especificaram as
áreas de incidência do instrumento do parcelamento, ou então que as incluíram, mas
deixaram de prever o IPTU progressivo?
O segundo instrumento é justamente o IPTU progressivo no tempo.
Conforme a CF, o IPTU é o imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana, de competência privativa dos Municípios e do Distrito Federal (Constituição,
art. 156, I, c/c. art. 147, in fine), excepcionalmente utilizado pela União, quanto aos
imóveis situados em Território Federal não dividido em Municípios.
As hipóteses de incidências são definidas pelo Código Tributário Nacional,
que condiciona a possibilidade de sua cobrança à existência de no mínimo dois
melhoramentos urbanos como meio-fio ou calçamento com canalização de águas
pluviais; abastecimento de água; sistema de esgoto sanitário; rede de iluminação
pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ou
posto de saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado.
Nas palavras de Fiorillo, trata-se de um tributo ambiental, “destinado à
viabilização real das funções sociais da cidade em consonância com as necessidades
vitais que asseguram a dignidade da pessoa humana (...), e não, pura e simplesmente,
ao Estado.”6
Para Carrazza, seu caráter é nitidamente sancionatório, sendo um “mecanismo
que a Constituição colocou à disposição dos Municípios, para que imponham aos
munícipes a observância de regras urbanísticas, contidas nas leis locais.”7
O uso de referida ferramenta é uma faculdade conferida aos municípios, que a
adotarão ou não, em função de seus interesses e conveniência, mediante legislação
própria, em áreas específicas definidas no plano diretor.
Mais uma vez vem a dúvida: se o município não especificou, no momento da
elaboração do Plano Diretor, a área específica conforme exige o Estatuto, outra lei
6
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/2001: Lei do Meio Ambiente
Artificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77.
7
Elizabeth Nazer Carrazza, apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/
2001: Lei do Meio Ambiente Artificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2005. p. 78.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
145
poderia fazê-lo? Em tal situação, a norma federal que estabeleceu as regras gerais
(Estatuto da Cidade) não estaria sendo afrontada.
Outro instrumento a ser analisado é o direito de preempção.
Também necessita da delimitação das áreas em que irá incidir, e em linhas
gerais é o direito do Poder Público municipal adquirir com preferência imóvel urbano
objeto de alienação onerosa entre particulares.
O instrumento refere-se apenas à alienação onerosa, abrangendo, assim, tão
somente as transferências dominiais ajustadas por meio de contratos de compra e
venda. Negócios como a dação em pagamento, a permuta, a doação, herança e legado
restaram excluídos da incidência do direito.
Nos termos do artigo 26 do Estatuto da Cidade, não resta dúvida que a finalidade do direito de preempção é social, econômico, ambiental e cultural e será exercido sempre que o município necessitar de áreas urbanas para: regularização fundiária;
execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de
reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantação
de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e
áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de
interesse ambiental; proteção de áreas de interesse histórico, cultural e paisagístico.
Neste caso, como fica o Município que não procedeu ao levantamento das
propriedades quando da elaboração do Plano Diretor?
A outorga onerosa do direito de construir é outro instrumento a ser analisado,
que também exige delimitação das áreas de incidência, via do Plano Diretor. Em
síntese, significa que o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente
de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida do beneficiário.
O Plano Diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para
toda a zona urbana, ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana,
definindo limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento.
Nestes casos o que se questiona é como ficam os Municípios que elaboraram
seus planos diretores, mas não definiram os critérios legais de incidência da outorga
onerosa do direito de construir?
Por fim, resta a análise das operações urbanas consorciadas, baseada no Plano
Diretor.
Fiorillo por meio das palavras da urbanística Raquel Rolink, nos ensina sobre
o referido instituto:
146
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
são definições específicas para uma certa área da cidade que se quer transformar, que prevêem
um uso e uma ocupação distintos das regras gerais que incidem sobre a cidade e que podem
ser implantadas com a participação dos proprietários, moradores, usuários e investidores
privados. O Estatuto da Cidade admite a possibilidade de que estas operações ocorram;
entretanto, exige que cada lei municipal que aprovar uma operação como esta deva ser
incluído obrigatoriamente o programa e projetos bascos para a área, programa de atendimento
econômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impacto
de vizinhança.”8
É instrumento pouco utilizado pelos municípios, já que estes se preocupam de
modo imediatista com áreas urbanas já consolidadas, com o intuito de reverter a
cidade informal para a cidade formal.
Assim, o grande questionamento refere-se às alusões feitas ao plano diretor,
no sentido do dever de delimitar as áreas, ou simplesmente por meio de diretrizes e
princípios indicar quais são os critérios de incidência dos referidos instrumentos.
Algumas cidades brasileiras já revisaram ou elaboraram os seus planos diretores,
mas em momento algum, dispuserem sobre as delimitações de tais áreas para a
incidência dos instrumentos, sobra a esperança da lei específica para dirimir esses
conflitos, com base nas diretrizes estabelecidas no Plano Diretor.
Além desses questionamentos, neste momento vários municípios passam por
um processo de revisão ou adequação de suas normas de uso e ocupação do solo.
Como conciliar a legislação específica com as leis de uso e ocupação do solo, sem
afrontar o Estatuto da Cidade?
Experiências e vivências de municípios que já legislaram e aplicaram os
instrumentos urbanísticos são fundamentais para a correta e precisa aplicação da lei
de uso e ocupação do solo e do próprio Plano Diretor, evitando, desta forma, a incorreta
utilização da norma.
De qualquer forma, de todos os instrumentos levantados que precisam ser
delimitados para a sua incidência, convêm analisar a real necessidade do instrumento
para a cidade, dada a inviabilidade espacial e temporal.
Para auxiliar e dar suporte a essa árdua tarefa aos municípios existem os
instrumentos prévios a elaboração do plano diretor e outras normas específicas, tais
como: o levantamento aerofotogramétrico, o sistema integrado de informação e o
perfil socioeconômico do município.
8
FIORILLO, Celso Antônio. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, apud
ROLINK, Raquel.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
147
3. INSTRUMENTOS PRÉVIOS: LEVANTAMENTO
AEROFOTOGROMÉTRICO, SISTEMA INTEGRADO DE INFORMAÇÃO
E PERFIL SOCIOECONÔMICO DO MUNICÍPIO
Em todos os casos tratados anteriormente, o poder público precisa delimitar
via do Plano Diretor, as áreas em que referidos instrumentos devem incidir.
Para tanto, é necessário a realização de procedimentos técnicos e administrativos
prévios, que objetivam a correta e eficaz escolha dos locais de incidência.
O primeiro destes procedimentos é a criação e manutenção do Sistema Integrado
de Informação Municipal, composto por um conjunto de dados, métodos e usuários
integrados, possibilitando o desenvolvimento de uma aplicação precisa e capaz de
coletar, armazenar e processar todas as informações relativas das diversas esferas e
secretarias existentes na municipalidade.
Assim, como base de dados única, permanente, multifinalitária, deve ser
alimentada com informações culturais, sociais, econômicas, financeiras, tributárias,
judiciais, educacionais, imobiliárias, patrimoniais, administrativas, geográficas,
cartográficas, ambientais e outras de relevante interesse para o município, inclusive
sobre planos, programas e projetos.
Só com base nesses dados o município é capaz de identificar, com efetividade,
as áreas que demandam intervenção. A municipalidade que não detêm essa importante
ferramenta está em prejuízo, já que não detém dados imprescindíveis para o
levantamento do plano diretor e sua efetiva implementação.
Além do mais, a informação também deve ser disponibilizada à sociedade de
modo geral, já que é um dos “elementos essenciais no rumo a uma democracia
participativa efetiva,” como bem assegura Prestes.
Continua a autora: “os municípios, sendo o ente federado que interage com a
população, na medida em que o povo vive e se relaciona nos mesmos, têm maiores
condições de fazer deste princípio práxis.”9
Outro instrumento prévio fundamental é o perfil socioeconômico da
municipalidade, dada a sua natureza informativa sobre dados relevantes do perfil da
sociedade que integra o território do município.
Serve como instrumento de pesquisa, planejamento e para a elaboração de
planos, programas e projetos a serem realizados, tanto na esfera privada ou pública.
9
PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental.
In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236.
148
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Os dados do perfil socioeconômico compreendem aspectos históricos,
caracterização do território, aspectos demográficos, aspectos econômicos, aspectos
urbanos, aspectos sociais, infra-estrutura e serviços, administradores municipais etc.
Informações que garantem a identificação das regiões que mais crescem na
cidade e demandam maior cautela em termos de planejamento, bem como dados
relativos a expedição de habite-se, alvarás, e outras situações.
Com esses dados, e com base na infra-estrutura existente da localidade, o
município pode analisar o aumento de potencial e melhor delimitar as áreas de
incidência dos instrumentos sancionatórios.
Por fim, o levantamento aerofotogramétrico, ferramenta recente e precisa que
mapeia a cidade por meio de fotos em alta escala e com a digitalização dos dados
levantados. Consiste no mapeamento da cidade, com base em fotografias áreas do
território do município.
É uma ferramenta que torna eficaz o processo de gestão do município, incluindo a área urbana e rural. Atualiza também o cadastro multifinalitário e o geoprocessamento, fazendo o reconhecimento do monitoramento e controle territorial,
permitindo o avanço em todas as áreas do município, principalmente para o planejamento urbano. Por meio do levantamento, podem ser “identificados os mananciais,
as áreas de preservação da mata atlântica, planejar a elaboração de novas linhas de
ônibus, ampliação de escolas, recolhimento de lixo, e afins.”10
CONCLUSÃO
O Plano Diretor não é uma regra que simplesmente pode ser copiada, já que
demanda certas particularidades, para quais nem todos os Municípios brasileiros estão
preparados.
A informação, com se vê, é elemento essencial, e deve ser obtida pelos
nominados instrumentos prévios, atividade que demanda não apenas tempo e recursos.
Sem profissionais devidamente preparados, com visão abrangente da real
necessidade e utilidade de cada um dos instrumentos contemplados no Estatuto da
Cidade, o Plano Diretor pode acabar se transformando em uma verdadeira arapuca,
capaz de comprometer o desenvolvimento e a qualidade de vida de determinada
população.
Os dados técnicos e as demandas reais do município é que colocarão as diretrizes
dos instrumentos urbanísticos auxiliados pelas ferramentas prévias, determinando as
10
http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
149
áreas de incidência dos instrumentos tratados, sem afrontar as diretrizes do Estatuto
das Cidades, compatibilizando-as com as da lei de uso e ocupação do solo.
A constante revisão das normas urbanísticas são imprescindíveis para a gestão
das cidades e o pleno ordenamento do solo urbano, dada a dinâmica e peculiaridade
de cada Município.
REFERÊNCIAS
CARRAZA, Elizabeth Nazer apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei
10.257/2001: Lei do Meio Ambiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005. p. 78.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado : Lei 10.257/2001: Lei do Meio
Ambiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.
NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In:
Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132.
PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria
ambiental. In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236.
http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508.
Política Habitacional no Rio de Janeiro:
Dez Anos de Morar Sem Risco
(1994 a 2004)
ROBERTO JANSEN
DAS
MERCÊS
O artigo trata especificamente de um momento na história da política habitacional no município do Rio de Janeiro, o Programa Morar Sem Risco desenvolvido no
período de 1994 a 2004 – desde sua criação até o referido ano; sendo extinto em 2006
– pela Secretaria Municipal de Habitação (atual Secretaria do Habitat a partir de
2006), órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. É importante ressaltar que o
Programa, inserido dentro da política municipal de moradia, volta-se para a população de baixa renda, cujo alcance da remuneração mensal, em sua maioria, não ultrapassa aos três salários mínimos. Podemos aqui observar a única preocupação de maior
importância dentro deste universo que a cidade conheceu durante o período assinalado.
Inicialmente as manifestações da crise da moradia são percebidas nas primeiras
décadas do século XIX – habitação popular assunto atual e problema muito antigo –
na paisagem das cidades brasileiras, mais do que do déficit habitacional e a
inadequação de domicílios, dão evidência que expressam a permanência da questão,
mesmo com o esforço da prefeitura aquém da efetiva dimensão do problema. A questão
habitacional atinge de forma aguda as camadas de baixa renda e é ainda incipiente
em enfrentar a base de sua explicação de natureza profundamente injusta, a
desigualdade da formação social brasileira, a mais conhecida e reconhecida é a da
renda, que mantém um contingente da população excluída, além de padrões mínimos
de cidadania e com pouco alcance no resgate social.
A cidade tem graves problemas para enfrentar no campo da habitação e da
infra-estrutura urbana, a partir da ocupação pela população pobre das áreas ainda
disponíveis, encostas, margens de rios, em cima de túneis, embaixo de pontes e
viadutos, estabelecendo-se desde o início, relações de interdependência econômica,
política e social. Nos dez anos do período de estudo do presente artigo, a administração
municipal enfrentou o desafio de reverter o quadro de degradação dos espaços públicos
152
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
da cidade. No que diz respeito às questões de moradia e habitação, o problema já
vinha sendo observado mais detalhadamente desde a década de vinte, quando o Plano
Agache foi desenvolvido, apesar das realizações não terem sido tão eficientes na
solução do problema.
A questão da habitação, no contexto social brasileiro, vem apresentando uma
série de políticas setorizadas, com a finalidade de “sanar” essa problemática. As
primeiras tentativas de resolução iniciaram-se no governo populista de Vargas e
tiveram prosseguimento, mas sem êxito. Em, 1964, durante a ditadura militar, surge
o Banco Nacional de Habitação – BNH – “criado com a competência de orientar,
disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitação e promover a construção e
a aquisição da casa própria, especialmente pelas classes de menor renda” (COVRE,
1995:48). Esse propósito não foi efetivamente consolidado durante a sua execução,
mas é considerado um marco histórico na trajetória das políticas habitacionais
brasileiras.
Outro problema relacionado ao “morar”, foi o surgimento e desenvolvimento
de áreas favelizadas ocasionadas pelo êxodo rural e gerando um inchaço urbano (a
partir da década de 30) como um problema social. E, no Rio de Janeiro, houve a
criação de uma série de programas destinados a modificar esse quadro social; foram
criados os parques proletários, conjuntos habitacionais e órgãos como a Cehab, a
Companhia de Desenvolvimento de Comunidade – o Codesco –, o Chisam, além de
programas como Promorar, Cada família um lote, entre outros.
Inicialmente foram articuladas políticas de remoção das favelas (a partir da
década de 60), mas como essa atuação gerou animosidades, conflitos e reivindicações
dos próprios moradores, o poder público reformulou seu objetivo e adotou então a
política de urbanização das favelas (a partir da metade da década de setenta até nossos
dias), cujo destaque refere-se ao Programa Favela-Bairro. O quadro habitacional
também possui outra nuance: a partir de meados de noventa, com a consolidação das
políticas neoliberais, a ausência de políticas públicas e o corte nos gastos sociais,
observa-se um contexto de acirramento da pobreza e conseqüente agudização do
quadro de exclusão social, que atinge as grandes metrópoles.
Logo, verifica-se que “dentre a população de mais baixa renda do município,
inclui-se uma parcela que (sobre) vive em condições de extrema pobreza, para a qual
até mesmo o morar autoconstruído, do mercado informal, se torna inacessível. Restam
então as calçadas, praças e viadutos, espaços da rua que vão sendo cada vez mais
ocupados por aqueles que não têm onde morar” (RELATÓRIO IPLANRIO, 1988).
Essa é a população-alvo do programa Morar Sem Risco, além daqueles que se encontra
em favelas situadas em área de risco, sendo a proposta principal a melhoria da
qualidade de vida.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
153
INTEGRAÇÃO URBANA
As várias ações governamentais, no Rio de Janeiro, voltadas para a melhoria
de vida das populações de baixa renda como ponto de partida mais recente o final dos
anos setenta. A partir desta década, inúmeras famílias em processo acelerado de
pauperização começaram a ocupar as encostas dos morros da cidade fugindo dos
altos aluguéis e em busca de novas modalidades de moradia. Nos anos seguintes, a
especulação imobiliária chega às favelas impedindo a muitos esta alternativa, levandoas a moradias em áreas altamente degradadas e de risco como viadutos, beiras de
rios, encostas com risco iminente de desabamento e logradouros públicos. Ainda
hoje, existem no município milhares de famílias ocupando estas áreas.
As ocupações em áreas de risco caracterizam-se por condições de vida abaixo
dos padrões mínimos. Fatores sócio-econômicos e culturais empurram as populações
pobres para espaços totalmente degradados, sem qualquer infra-estrutura, onde a
precariedade das moradias e a agressão ao meio ambiente formam um quadro
dramático de miséria absoluta. Fruto de vários fatores, mas principalmente do
acirramento da pobreza, o número de favelas saltou de 372, em 1983, para 623, uma
década depois, num crescimento seis vezes maior que o da população do município
do Rio de Janeiro. Foi neste contingente, que o número de famílias em áreas de risco,
foi estimado em sete mil, sobrevivendo em 324 áreas em situação de risco, incluindo
dezesseis viadutos. Diante da inviabilidade de soluções cabíveis para a permanência
das moradias nos locais citados acima e a falta de recursos próprios da população
envolvida, criou-se o Programa Morar Sem Risco que visa atender a estas populações,
reassentando-as em locais seguros, preferencialmente próximos aos já ocupados, a
partir de uma ação conjunta entre prefeitura e moradores.
Vale lembrar como amadureceu este processo de oferecer a população
alternativa para a solução de seu problema habitacional em função da situação de
risco em que se encontra, proporcionando condições mais seguras de habitação,
buscando assim a melhoria da qualidade de vida.
DESENVOLVIMENTO SOCIAL
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) foi criada, em
1979, com o objetivo de atuar na promoção do bem-estar social “com vistas a eliminar
ou reduzir os desequilíbrios sociais existentes” (Lei Municipal nº 110, de 23/08/
1979). Para operacionalização de suas atividades, a SMDS foi dotada de uma estrutura
interna formada por órgãos de direção superior, órgãos de apoio administrativo e três
coordenações – Desenvolvimento Comunitário, Bem-Estar Social – que deram origem
ao Programa de Educação Comunitária e ao Projeto Mutirão Remunerado,
respectivamente – e Regiões Administrativas.
154
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A criação da SMDS ocorreu numa época em que tomava impulso o processo
de redemocratização da sociedade brasileira. Diversos setores sociais, particularmente
nas grandes cidades como o Rio de Janeiro, voltaram a se organizar e reivindicar
maior participação nos frutos do desenvolvimento econômico. Pode-se concluir que
a criação daquela secretária surge do processo de redemocratização e da necessidade
do poder público carioca de fazer face ao crescimento das reivindicações dos setores
mais desfavorecidos da sociedade. Também durante este período, o acumulo dos
mais variados programas e projetos em áreas distintas – educação, saúde, saneamento
básico, geração de renda, reflorestamento, entre outras – gerou críticas feitas às ações
da secretaria. Ela estaria servindo para consolidar uma situação de injustiça social, na
medida em que implicavam um tratamento discriminado às populações de baixa renda.
Esta crítica quanto à qualidade dos serviços que presta e ao seu papel na administração
pública municipal. Era tida como uma Secretaria dos Pobres que incorporava várias
minissecretarias para atender a população desfavorecida naquelas diversas áreas. A
crítica faz sentido quando se leva em consideração que o modelo econômico adotado
no Brasil foi altamente concentrador de rendas e que a prestação de serviços públicos
em geral atingiu apenas parcelas reduzidas da população.
Apesar deste quadro ela representou um primeiro esforço no sentido de levar
os serviços públicos a essa parte da população, o que por si só já representava uma
mudança na orientação da administração pública. Caso houvesse a opção de não
criar um órgão como a SMDS, muito provavelmente a carência de serviços públicos
por parte das comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro teria se agravado, e não
teria ocorrido a inegável melhora que se verificou. E sem dúvida este tipo de trabalho
continuará sendo necessário enquanto perdurarem as enormes disparidades sociais
econômicas que se verificam no país. A maior prova disto foi à iniciativa desta
Secretaria gerar o desdobramento de duas outras Secretarias: a do Meio Ambiente e
a da Habitação. A que era uma virou três. Estas iniciativas ganharam impulso com o
Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, de 1992, instrumento básico da política
de desenvolvimento e de expansão urbana e que estabeleceu parâmetro que
fundamentam a ação do Poder Público.
BASES DA POLÍTICA HABITACIONAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
A política habitacional do município do Rio de Janeiro se estrutura na
compreensão que a moradia é um direito do cidadão; a habitação não é só a casa, mas
integração à estrutura urbana. Compatibilizar o direito individual com as possibilidades
coletiva, na construção de uma cidade melhor. O Plano Diretor Decenal da Cidade do
Rio de Janeiro, cuja elaboração é fruto de um amplo debate que extrapola os órgãos
da administração municipal, mobilizando diversos setores da sociedade, torna-se a
partir de 1992, ano de sua promulgação. A recomendação central é o reconhecimento
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
155
da favela e a busca de integração desses aglomerados aos bairros cariocas, com a
participação de seus moradores no processo de urbanização. A política habitacional
tem seus objetivos estabelecidos no Plano Diretor Decenal da Cidade (cap. II – art.
138):
I. utilização racional do espaço através do controle institucional do solo urbano,
reprimindo a ação especulativa sobre a terra e simplificando as exigências urbanísticas
para garantir à população o acesso à moradia com infra-estrutura sanitária, transporte
e equipamento de educação, saúde e lazer;
II. relocalização prioritária das populações assentadas em áreas de risco, com
sua recuperação e utilização imediata e adequada;
III. urbanização/regularização fundiária:favelas/loteamentos de baixa renda;
IV. implantação de lotes urbanizados e moradias populares;
V. geração de recursos para o financiamento dos programas definidos no artigo
146, dirigidos à redução do déficit habitacional em melhorias da infra-estrutura urbana,
com prioridades para a população de baixa renda.
Para alcançar esses objetivos, serão observados alguns procedimentos básicos
tais como: os investimentos públicos devem direcionar-se àquelas ações próprias da
coletividade (infra-estrutura e ambiência urbana); bem como em unidade habitacionais
devem se dar quando necessários à melhora da ambiência urbana e para enfrentar
situações de risco; e oferecimento de condições para construir em terra infraestruturada.
Como a questão habitacional, no Rio de Janeiro, é de expressão metropolitana,
sugere políticas municipais coordenadas. A implementação foi da seguinte forma
através dos programas abaixo relacionados:
– Regularização Fundiária: regularização e saneamento
– Favela Bairro: urbanização e integração
– Novas Alternativas: vazios, fraldas e recomposição do tecido
– Morar Carioca: legislação e estimulo
– Morar Sem Risco: recompor e reassentar
MORAR SEM RISCO
A eleição de Cesar Maia para a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em
1993, pelo Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democráticos – DEM), marcou
uma inflexão em um longo período de domínio da centroesquerda e da esquerda na
156
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
cidade e no Estado. A marca da passagem de Brizola pelo Rio de Janeiro é tão forte
que os principais políticos em ação no estado e na cidade são egressos do seu partido
(Cesar Maia também é das fileiras do PDT), como os ex-governadores Marcelo
Alencar, hoje no PSDB, e Anthony Garotinho, hoje, no PMDB. O prefeito Cesar
Maia se elegeu com um discurso que acionava elementos do “lacerdismo”, com fortes
ecos nas camadas médias da cidade. No seu programa de governo, ele enfatiza o
discurso sobre a ordem urbana. Cabe lembrar que o prefeito conseguiu eleger o seu
sucessor, o ex-secretário de Urbanismo, arquiteto Luiz Paulo Conde. O prefeito Conde
manteve, em linhas gerais, a mesma política elaborada pelo seu antecessor, dando
continuidade às suas iniciativas. Depois em disputa entre os dois, Cesar Maia como
oposição é vitorioso para o segundo mandato, totalizando o período que é objeto do
presente estudo.
Para desenvolver e pôr em prática as medidas sugeridas pelo Plano Diretor foi
criado, em 1993, o Grupo Executivo de Assentamentos Populares – GEAP, composto
por titulares dos órgãos municipais envolvidos de algum modo com a questão da
moradia. O Grupo concebeu os vários programas que estruturam a política habitacional
aprovada pelo prefeito em dezembro de 1993. Em março de 1994, foi criada a
Secretaria Extraordinária de Habitação e, em dezembro de 1994, a Secretaria Municipal
de Habitação (SMH). O quadro técnico foi composto por funcionários e técnicos da
SMDS, que lidavam com favelas, por uma parte dos quadros da Secretaria de
Urbanismo (SMU) – ligados com loteamento –, da Rio Urbe, entre outros técnicos. O
novo governo soube aproveitar-se da capacidade técnica e administrativa acumulada
em anos de intervenção sobre as favelas e sobre os loteamentos populares, aumentando
as possibilidades de maior efetividade das ações.
A partir daí, a prefeitura definiu um plano de ação em tudo diverso da timidez
com que o Poder Público, até então, tratara os problemas habitacionais da Cidade nas
décadas anteriores. Realizaram, simultaneamente, vários programas abrangentes
voltados para diferentes aspectos da questão habitacional. Como linhas de atuação
foram criados os programas Favela-Bairro (que acrescentaria Bairrinho e Grandes
Favelas), Morar Carioca, Regularização de Loteamentos, Novas Alternativas e Morar
Sem Risco (eliminar o risco de desabamento e/ou inundações; reassentar as populações
que moram em áreas de risco, isso quando não for economicamente viável a eliminação
dos riscos; recuperação de espaços públicos comprometidos com ocupações irregulares
(viadutos, calçadas), reassentando também os ocupantes destas áreas, através de uma
política de reassentamento).
Para o reassentamento das famílias, a Prefeitura como opção, na maioria dos
casos, utiliza as chamadas casas “evolutivas” – que dão condições de espaço para
que os moradores, com o tempo possam ampliá-las, acrescentando mais um quarto
ou uma área aberta. Outras possibilidades são o oferecimento de “kit material de
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
157
construção” ou o “lote infra-estruturado mais kit” (opções em vias de revisão de
atuação) e, em alguns casos, o auxílio habitacional – uma ajuda de custo para a
aquisição de uma nova moradia em outro local – e as famílias que aguardam o
reassentamento, o auxílio aluguel.
Os reassentamentos são feitos preferencialmente em locais já dotados de água,
luz e rede de esgoto, pertencentes, em sua maior parte, à própria Prefeitura, ou em
terrenos resultantes de desapropriação. Estes locais são, geralmente, próximos das
antigas residências, para que, desse modo, seja atenuado o impacto inerente às
mudanças no cotidiano das famílias. Com o mesmo intuito, a distribuição das novas
casas mantém as antigas relações de vizinhança. O envolvimento da população é
fundamental em todas as etapas do trabalho, pois é ela que ajuda a encontrar as
soluções que minimizam os inevitáveis conflitos que surgem com a transferência das
moradias.
IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA
A primeira intervenção do Programa nasceu de uma parceria entre as Secretarias
Municipais de Habitação e de Governo (SMG). Foi à conjugação de necessidade das
duas Secretarias, em atuar nas áreas de risco, localizadas por toda cidade; e por parte
da SMG superar impasse quanto a situações de risco e insalubridade de diversas
favelas situadas na Área de Planejamento 1 (AP1), principalmente na 1a Região
Administrativa, assim como trabalhar no sentido de intensificar e promover o uso
residencial do bairro do Caju, nessa Área de Planejamento, catalisando o processo de
reestruturação urbana.
A favela localizada naquela Região Administrativa, chamada de Parque Conquista, se encontrava espremida entre um vazadouro de entulho (área de propriedade
da Companhia de Limpeza Urbana – COMLURB), os muros do terreno da Viação
1001, um canal e alguns containeres. Esta comunidade que em 1985 contava com
setenta barracos de madeira, sofreu intensa expansão e em 1993 apresentava o dobro
de moradias. Inicialmente ocupando uma área de quatro mil quadrados, espraiava-se por mais do que o dobro da ocupação inicial, subindo pelo monte de entulho, e ocupando parte da pista por onde um dia circularam os caminhões que ali
derramavam os entulhos. Foi constatado que a Comlurb detinha uma extensa
área no bairro do Caju que por motivos diversos não atendia aos objetivos da
Companhia.
A disponibilidade desta área veio de encontro às necessidades dos dois
programas do poder municipal. Para a Companhia foi apresentada uma proposta que
contemplava assentamentos, que atenderia às famílias da favela Parque Conquista,
além das populações de favelas instaladas em todos os viadutos situados na AP1,
158
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Francisco Bicalho e Praça da Bandeira, e os moradores da Rede de Linhas Férrea
Federal, ramal de Arará no Caju.
Ante esta primeira implementação, o Programa tem como função principal
recompor as áreas consideradas de risco – vias públicas (praças e viadutos); encostas
com problemas geológicos; margens de rios, canais e lagoas; áreas de proteção
ambiental e florestal; emboque de túneis; faixas de proteção de via férrea e de linha
de transmissão de energia – e reassentar famílias, liberando o espaço comprometido
pela ocupação irregular. Atua ainda numa interface com a Defesa Civil – COSIDEC
– e a Fundação Instituto GEO-RIO, sempre precedido de um levantamento sócioeconômico – cadastramento – das famílias ocupantes de área de risco.
Enfim, visa atender uma população que sobrevive em condições de estabilidade
duvidosa, cuja perda do seu referencial social, econômico e cultural, do qual precisa
recuperar a sua cidadania para que consiga se administrar e, conseqüentemente,
administrar sua habitação. É necessário, então, trabalho de promoção humana e social,
buscando a integração destas famílias na sociedade. O programa Morar Sem Risco
objetiva parceiros para esta função junto à Sociedade Civil, Entidades Filantrópicas,
Igreja, Organizações Não Governamentais e Comitês contra a Fome, entre outras.
ATUAÇÕES DO PROGRAMA EM VIAS PÚBLICAS, TÚNEIS E VIADUTOS
A retirada de mais 1.634 famílias, que viviam sob dez grandes viadutos da
cidade e seu reassentamento, é uma marca expressiva da ação do Programa Morar
Sem Risco. Os viadutos Figueira de Melo, em São Cristóvão, Ana Nery, em Triagem,
Noel Rosa, em Vila Isabel, Viaduto de Bonsucesso (Vila Verde), e Santo Cristo, foram
desocupados em 1996. As famílias foram reassentadas. Viaduto de Coelho Neto e
local conhecido como Viaduto Malvinas – ocupação sob a linha do metrô e calçada
de via pública – (Maria da Graça/Jacarezinho), em que as famílias também viviam
em situação de risco, foram desocupados em setembro de 1995 e no seguinte ano,
sendo reassentados nos Empreendimentos Habitacionais.
As famílias que moravam sob os viadutos Francisco Bicalho, na Praça da
Bandeira e da via férrea (ramal ferroviário de Arará), foram transferidas para os
empreendimentos Parque Conquista e Parque Boa Esperança, respectivamente, ambos
no bairro do Caju. O emboque do túnel Rebouças que foi ocupado por construções
irregulares, o programa fez a desocupação da área, em agosto de 1995, reassentando
as duzentas e cinqüenta famílias também no Empreendimento Habitacional Portus.
Na saída do túnel Zuzu Angel (na época Dois Irmãos), em direção ao bairro da Rocinha,
junção com São Conrado, foram retiradas famílias que viviam sobre aquele túnel.
Elas receberam auxílio habitacional para a compra de casa.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
159
QUESTÃO FUNDIÁRIA: ÁREAS DE ESPECIAL INTERESSE SOCIAL
Conforme a elaboração dos projetos nos empreendimentos habitacionais nas
áreas de especial interesse social dos reassentamentos incluídos no programa Morar
sem Risco, onde a titularidade da terra é municipal, foi considerada a necessidade de
se estabelecer procedimentos específicos para a simplificação da aprovação e
legalização dos projetos de parcelamento do solo e habite-se das unidades habitacionais
em áreas declaradas em lei como área de especial interesse social (AEIS).
Com a implementação do programa de Regularização e Titulação da SMH,
instituído pelo Decreto nº 20.312, de 31 de julho de 2001, e com a atuação da
administração municipal na urbanização e regularização urbanística e fundiária dos
reassentamentos populares do Rio de Janeiro. A Coordenação de Regularização
Fundiária trata da averbação das certidões e respectivos memoriais descritivos aos
cartórios de registros de imóveis. As normas de uso e ocupação do solo cabem a
Coordenadoria de Programação, bem como a elaboração, apresentação, análise e
atendimento as exigências técnicas de projeto solicitadas pelo setor de aprovação.
Obtém ainda a licença de obra de urbanização e/ou edificações na unidade da Secretaria
Municipal de Urbanismo (SMU) que atende a área onde está localizado o projeto.
Com base neste procedimento o município pretende imprimir um ritmo de
regularização fundiária que dê atenção às demandas da população de baixa renda.
Entretanto diversos motivos são apresentados na questão fundiária – assunto complexo –, onde aproveitamos para discorrer sobre o tema através de análise da arquiteta urbanista Clarissa Moreira para os terrenos no bairro do Centro da cidade do Rio
de Janeiro, relativo ao programa Novas Alternativas, cujos rumos são bastante pertinentes ao Morar sem Risco.
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O redirecionamento do desenvolvimento das cidades brasileiras para a busca
de modos de proporcionar melhor uso da estrutura urbana construída ao longo dos
anos, através da reabilitação urbana, é uma alternativa possível e desejável.
Principalmente, frente à incessante e desregulada expansão e construção nova nos
moldes cada vez menos qualificados da construção civil brasileira, em termos de
qualidade de espaço urbano e arquitetônico. No entanto, esta nova forma de
desenvolvimento urbano implica rever instrumentos de regulamentação urbanística,
fundiária, de formas de financiamento, de procedimentos administrativos e mesmo,
de atuação dos governos e da sociedade civil. Trata-se de uma grande transformação
no modo de fazer e de gerir a cidade. O processo de reabilitação urbana implica dotar
a cidade de condições favoráveis à realização e ao desenvolvimento de usos e
atividades, e ainda, estimular sua implantação. Uma das condições fundamentais,
160
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
neste contexto, é a solução de pendências em relação à propriedade do parque
imobiliário consolidado, através da regularização fundiária. E é ela um dos principais
impedimentos ao processo de retomada das áreas – aqui se pode abrir um paralelo –
ao Programa Morar Sem Risco quanto à implantação de novos usos e, sobretudo, do
uso habitacional, uma vez que irregularidades de propriedade e pendências jurídicas
dificultam, senão impossibilitam transações imobiliárias.
Estas pendências geram obstáculos, uma vez que as exigências para
financiamento e outros tipos de transação financeira normalmente compreendem a
total regularidade do imóvel, ou seja, a propriedade deve estar registrada, livre de
dívidas, hipotecas ou quaisquer pendências sejam em nome do proprietário ou do
imóvel. Numa breve análise da questão fundiária como impedimento à realização de
empreendimentos habitacionais no Rio de Janeiro foi verificado no contexto da
promoção de empreendimentos habitacionais no Centro da cidade, a partir da
reabilitação de imóveis. Os seguintes exemplos de impedimentos fundiários estão
entre os mais comuns:
– Imóveis sem registro. Diversas ordens religiosas ou mesmo órgãos públicos,
ao lado de proprietários privados, não registraram seus imóveis ou as pesquisas
fundiárias não os localizaram, o que demanda uma organização específica neste
sentido, do ponto de vista cartorial; Estes tipos de impedimentos legais normalmente
só podem ser solucionados através de desapropriação. Seria aconselhável rever a lei
em função do Novo Código Civil Brasileiro, que determina a apropriação ao
patrimônio municipal de imóveis com dívidas de IPTU, em estado de abandono.
– A especulação imobiliária embora não seja uma questão de regularidade
fundiária, diz respeito a um dos maiores obstáculos à disponibilidade de imóveis
para empreendimentos.
Neste sentido, a questão da especulação imobiliária e da dimensão “intocável”
da propriedade privada precisa ser abordada pela legislação urbana, considerando a
questão da função social da propriedade, prevista pelo Estatuto da Cidade. Prioridade
junto à gestão de patrimônio imobiliário público (compreendendo órgão federais,
municipais e estaduais) para projetos habitacionais para baixa renda e média baixa,
sobretudo em áreas centrais ou circunvizinhas. Utilização de medidas como IPTU
progressivo e outras (taxação da valorização imobiliária, etc.), a fim de desencorajar
a especulação imobiliária. O objetivo da presente análise não é sintetizar o tema da
regularização fundiária em áreas centrais, mas reiterar a necessidade de realização de
um diagnóstico aprofundado da questão fundiária e dos temas diretamente
relacionados, a fim de possibilitar a construção de uma política adequada para a
implementação de operações de reabilitação urbana. O enfrentamento da questão
fundiária e dos aspectos a ela relacionados, como os citados anteriormente, é uma
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
161
pré-condição para uma política de reabilitação urbana na escala necessária à
constituição de uma ação com a amplitude capaz de possibilitar a melhoria da qualidade
de vida da população e o melhor aproveitamento do patrimônio urbano construído.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
O atual desafio para os gestores públicos é estruturar programas com o objetivo
de minimizarem os efeitos do processo da desigualdade social, que gera uma massa
crescente de pessoas destituídas dos direitos humanos básicos, como o direito à saúde,
educação, trabalho, segurança, moradia, etc. Sempre lembrando que a habitação é
um direito básico da cidadania.
O respaldo está no debate internacional, desde a Declaração Universal de
Direitos Humanos, de 1948, até a declaração de Istambul sobre Assentamentos
Humanos, de 1996, que reafirmou o compromisso dos governos nacionais com a
“completa e progressiva realização do direito à moradia adequada” e estabeleceu
como um objetivo universal que se assegure abrigo adequado para todos e que se
façam os assentamentos humanos mais seguros, mais saudáveis e mais agradáveis,
eqüitativos, sustentáveis e produtivos”. Este processo deve ser reduzido a partir da
constituição de dispositivos de inclusão social, onde a assistência não seja sinônimo
de assistencialismo, mas sim possibilidade de emancipação social.
Neste contexto, investir em programas de moradias é um passo fundamental
para o resgate dos direito sociais subtraídos, assim como para a reconstrução de um
novo lugar para o indivíduo no mundo. O novo lugar é compreendido como a
possibilidade de afirmação da singularidade deste contingente de pessoas “sem voz”,
“sem direitos”, a partir da ruptura com as relações de tutela (com as instituições, com
o Estado, com o mundo) a reconstrução da autonomia e das redes de suporte social.
É importante também, ao pensarmos na moradia, definir este conceito. Pensar a questão
do morar implica em redefinir sobre a relação que os indivíduos estabelecem com o
espaço em que vivem, que sentidos atribuem a ele e de que forma dele se apropriam.
Entendemos existir diferenças entre estar em espaços de moradia e habitá-los. Esse
processo que caracteriza a experiência do morar.
E apesar das tendências – intervenções de urbanização e regularização fundiária
nas favelas – terem sido ampliados, na medida em que se tornaram mais escassos os
recursos financeiros disponíveis para aplicação em projetos habitacionais destinados
às famílias de baixa renda, ficando mais restritas as condições operacionais e
institucionais dos tradicionais agentes promotores habitacionais. Mesmo sendo
legítima e necessária a permanência dessa linha programática, que promove a
urbanização e a regularização, não devem ser excluídas alternativas de ação na
promoção de moradia. E estas alternativas e programas como Morar sem Risco, assim
162
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
como em todos os países que conseguiram, ao longo dos anos, combater a falta de
moradias para a população de baixa renda, o fizeram através da concessão explícita
de subsídios à aquisição das unidades. Inclusive em países mais desenvolvidos, cujas
populações têm maior capacidade de pagamento, há a destinação de recursos a fundos
perdidos para modelos com o mesmo objetivo.
Por fim, o município do Rio de Janeiro só se beneficiará em termos de ganhos
ambientais, sociais e urbanos, através de uma implementação efetiva do Plano Diretor
e o Estatuto da Cidade, com sua missão de encontrar saídas no tocante à concepção e
à forma de implantação de empreendimentos habitacionais, principalmente, voltados
tanto para as comunidades de baixa renda como para os demais segmentos sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARDOSO, Adauto Lúcio. Programa Favela-Bairro – Uma Avaliação. p. 37-50. In: Anais Seminário
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FARIAS, Joyce Guedes de. Reassentamento de 41 famílias no bairro de Bangu. 2002. 51 f. Trabalho de
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áreas centrais. Rio de Janeiro, 2003.
OLIVEIRA, Maria Cristina Bley da S. Política de habitação popular no Brasil: passado e presente.
2000. 300 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Uso do Solo Urbano) – IPPUR. UFRJ, Rio de
Janeiro, 2000.
Acesso à Justiça e Segurança da Posse da
Terra: Obstáculos Judiciais à Regularização
Fundiária Plena
VERA LÚCIA
DE
ORANGE LINS DA FONSECA
E
SILVA1
Advogada do CENDHEC; Pós-Graduanda em
Política e Gestão Ambiental.
JULIANA ACCIOLY MARTINS
Advogada do CENDHEC.
DO ACESSO À JUSTIÇA
Kazuo Watanabe afirma que a garantia do acesso à justiça se traduz em “acesso
à ordem jurídica justa”.
Nesse sentido, ordem jurídica justa é aquela onde todos os titulares de um
direito possam ter prestada a tutela jurisdicional de forma eficaz.
Tal entendimento já era defendido pelo Movimento de Acesso à Justiça,
encabeçado por Mauro Cappelletti, onde se prega, em resumo, a efetivação dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
Em 1978, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, seguindo a tendência mundial de
adequar o procedimento à realidade, propõe ao mundo jurídico, ao publicarem a obra
Access to Justice: The Worldwide Movement to Make Rights Effective2, uma nova
concepção de fazer justiça: a Justiça de Resultados.
Tratava-se de uma evolução proposta pelo conceito de acesso a justiça, admitindo como tarefa básica dos modernos juristas a busca do acesso real e efetivo à
1
CO-AUTORES: Mercia Alves (Assistente Social e Coordenadora do Programa Direito à Cidade); Flávia Gomes
(Assistente Social); Keila Ferreira (Assistente Social); Adriana Mendonça (Arquiteta e Urbanista); Alexandre
Pacheco (Estagiário de Direito); Flora Pimentel (Estagiária de Serviço Social), Mônica Néri (Estagiária de
Arquitetura e Urbanismo).
2
No Brasil, a obra foi traduzida com o título Acesso à Justiça pela Sérgio Antônio Fabris Editor.
164
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
prestação jurisdicional, ligando o conceito de acesso à justiça ao binômio possibilidade e viabilidade de acessar o sistema jurídico em igualdade de condições.
A obra de Cappeletti e Garth elenca soluções práticas para o problema do
acesso à justiça, classificando-as como ondas. São, na verdade, formas de suprimir
os obstáculos existentes que impedem a prestação jurisdicional plenamente justa.
Conforme estes autores3, o movimento do acesso à justiça centra sua atenção
no “conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimento utilizados
para processar e mesmo prevenir disputas na sociedade moderna”. Assim, essa
“demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou uma
nova meditação sobre o sistema de suprimento: o sistema judiciário”.
Em conformidade com o movimento preconizado por Cappelletti e Garth, o
Poder Constituinte, ao promulgar a Constituição da República Federativa do Brasil,
restabelecendo o Estado Democrático de Direito, reflete a preocupação em garantir o
acesso à justiça em vários dispositivos da Carta Magna.4
Cappelletti5 analisa a dimensão social do processo, revolucionando a concepção
de acesso à justiça para uma visão tridimensional do direito. Explica o autor que o
direito deve ser visto do ponto de vista do jurisdicionado, e não dos seus produdores.
São os usuários dos serviços processuais que passam a ter importância fundamental
no conceito de acesso à justiça.
Sob esta visão, a partir do jurisdicionado, o jurista fica obrigado a pensar na
necessidade de resposta jurídica, ou seja, da prestação jurisdicional, e do impacto
que esta exerce sobre aquele.
O movimento de Acesso a Justiça, tendo como foco de reflexão o sistema
judiciário brasileiro da atualidade, possibilita a identificação da responsabilidade do
Poder Judiciário na criação e manutenção das desigualdades sociais, bem como sua
função de agente modificador da realidade.
Seguindo o clamor social para a concretização de direitos fundamentais, a
Constituição Federal de 1988 estabeleceu como princípio fundamental a Dignidade
da Pessoa Humana. Esse princípio visa garantir ao indivíduo uma existência plena,
com a devida efetivação de seus direitos e garantias fundamentais.
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à moradia e
a função social da propriedade urbana e da cidade – princípios formadores do Estatuto
3
Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 70.
4
A Constituição Federal de 1988 contém dispositivos que revelam a preocupação do Poder Constituinte em
garantir o acesso à justiça. Dentre eles, podemos citar os artigos 3º, I; 5º e 98, incisos I e II.
5
Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 90.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
165
da Cidade – de forma a garantir o acesso ao solo urbano e à moradia digna. Todavia,
percebe-se um grande distanciamento entre a garantia formal e à realidade.
DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO
O Direito a Moradia é um dos direitos sociais assegurado constitucionalmente
no art. 6º, no entanto, contraditoriamente temos hoje no Brasil cerca de 6,5 milhões
de brasileiros sem acesso a moradia digna. Esta realidade de exclusão social e
segregação territorial da maioria da população se deu, por conta do modelo de
urbanização desordenada que tivemos longo dos anos, que privilegiou a população
que tinha condições de atender aos critérios do mercado imobiliário privando assim,
a população de menor renda ao Direito à Cidade.
Diante deste quadro, onde mais de 80% da população das cidades são urbanas, e dessas mais de 40,5% auferem renda a baixo de 5 (cinco) salários mínimos,
segundo o censo demográfico, são raros os municípios que não tem grande parte de
sua população vivendo em assentamentos precários sem a mínima condições de
habitabilidade necessitando portanto, de investimentos públicos para melhorias urbanas e segurança da posse. Para que se consiga minimizar o problema seria necessário hoje a construção de 6 (seis) milhões de novas moradias e introduzir melhorias
urbanísticas e habitacionais em pelo menos 10,2 milhões de domicílios.
Observa-se portanto que, no Brasil os investimentos públicos em habitação
sempre foram escasso e atendia, na verdade apenas, aqueles que tinham condições
de se enquadra aos critérios do mercado imobiliário. O Sistema Financeiro de
Habitação (SFH) é um bom exemplo disto, pois ajudou o avanço da construção civil
nos anos 70, gerando a edificações de grande números de habitações, porém apenas
para as classes médias e alta, ficando de fora os que ganhavam até 5 (cinco) salários
mínimos.
Salienta-se o fato de que, a Constituição do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pela prevalência dos direitos humanos, como encontra-se disposto no
art. 4º, II, também prevê o direito social à moradia no seu art. 6º, o que significa dizer
que, o Estado tem a obrigação de executar políticas públicas que de fato promova e
proteja o direito à moradia adequada sob pena de responsabilização pela não
cumprimento das obrigações pactuadas. Portanto, impedir programas e ações de
exclusão de parcela da população com menor renda do acesso à Moradia Adequada,
adotar políticas públicas de habitação que de fato assegurem a efetivação do direito à
moradia, enfrentar os problemas urbanos com políticas integradas que possa de fato
contribuir com a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a justiça
social é dever do Estado.
166
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Com este entendimento, de que é necessário criar políticas que promovam e
protejam a efetivação deste direito, é que ficou evidenciado a necessidade de construção
de uma política urbana que garanta a inclusão à cidade da população de baixa renda.
Neste espírito a Constituição Federal dedicou os artigos 182 e 183, com o
objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade, e 10 (dez) anos depois o Estatuto da Cidade chega para regulamentar e
consolidar os princípios e diretrizes que deve orientar o desenvolvimento e a ocupação
urbana, munindo principalmente, os municípios de instrumentos capaz de enfrentar
as desigualdesdes socioterritorial nas cidades.
O ESTATUTO DA CIDADE E O AVANÇO DO ACESSO AO SOLO
URBANO NO BRASIL
A construção do Estado brasileiro sempre foi marcado por grandes distorções.
A história noticia a adoção de políticas públicas segregadoras e distantes da realidade
da população. Diante desse contexto histórico, o crescimento das cidades brasileiras
refletiu a desigualdade existente entre os indivíduos.
Após a década de 30, a industrialização e o crescimento das grandes cidades
fez com que esses espaços passassem a ser refúgio daqueles que necessitavam de
trabalho e não o encontravam em áreas distantes dos pólos industriais. Como
consequência da ausência de espaço destinado à moradia, e a grande demanda
populacional, tem-se o alto preço das áreas urbanizadas, inacessível para a maioria
da população, que precisa encontrar alternativas de moradia em ocupações urbanas
ilegais, irregulares e clandestinas.
Assim áreas desprovidas de infaestrutura básica necessária , tornam-se locais
de moradia para a população de baixa renda, afirmando a segregação socioespacial.
A partir dessa realidade, na tentativa de minimizar os efeitos da desigualdade
na ocupação do solo urbano, várias normas urbanísticas, ambientais e fundiárias foram
editadas ao longo dos anos, tendo como marco histórico o Estatuto da Cidade, que
vem a regular a política urbana prevista na Constituição Federal.
Ocorre que, conforme Edesio Fernandes6, a Regularização Fundiária não deve
ser entendida apenas como forma de legalização da posse da terra consolidada, a fim
de garantir a segurança da posse da terra.
6
Fernandes, Edesio. Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade.
In CARVALHO, Celso Santos (coord). Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores e
regularização fundiária plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008. 366 p.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
167
Na verdade, a regularização fundiária compreende uma série de ações que
promovam, além da regularização jurídica, a regularização urbanística, ambiental e
social, com a integração socioespacial dessas áreas.
Nesse contexto, a segurança da posse abarca uma série de conceitos que vão
além da proteção contra despejos forçados: ações de acesso a crédito formal, produção
de assentamentos sustentáveis, reconhecimento de direito de cidadania, fortalecimento
de organizações sociais, reconhecimento dos direitos das mulheres, etc.7
Com a promulgação do Estatuto da Cidade, busca-se garantir o desenvolvimento
sustentável das cidades e seus habitantes, ampliando o conceito de função social da
propriedade para função social da cidade, através da utilização de vários instrumentos
urbanísticos, jurídicos e de gestão participativa.
No entanto, após 20 anos da promulgação da Carta Magna e mais de 10 anos
do Estatuto da Cidade, ainda não se conseguiu efetivar essas garantias para os
moradores de baixa renda de assentamentos espontâneos.
DA EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: O CENDHEC E A
SEGURANÇA DA POSSE DA TERRA
O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, CENDHEC é uma
entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos fundada em 2 de novembro de 1989.
O CENDHEC define como missão defender e promover os Direitos Humanos,
especialmente de crianças e adolescentes, moradores e moradoras de assentamentos
populares e grupos socialmente excluídos, contribuindo para a transformação social,
rumo a uma sociedade democrática, equitativa e sem violência.
O CENDHEC, enquanto entidade inserida nas relações sociais, volta sua ação
para a prestação de serviços sociais visando garantir direitos a grupos sociais cujas
causas específicas são concernentes a crianças e adolescentes que tiveram ou têm
seus direitos violados, além de moradoras e moradores de comunidades em situação
de vulnerabilidade social na cidade do Recife.
A instituição conta, em suas origens, com as ações sociais desenvolvidas pela
Arquidiocese de Olinda e Recife tendo a frente Dom Helder Câmara, até então
arcebispo daquela comarca. D. Helder Câmara, maior representante da ala progressista
da Igreja Católica, destaca-se por suas iniciativas de denuncia as torturas cometidas
pelo Estado contra ativistas políticos e quaisquer indivíduos contrários ao regime
Militar vigente no Brasil sendo, por isso, reconhecido como um fiel defensor dos
7
Ibid.
168
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
direitos humanos. Ele estimulou a organização popular, abriu os espaços da igreja
para defesa dos direitos humanos e para formação política dos populares criando
assim a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife. Tinha uma
profunda consciência dos problemas da humanidade, sempre na perspectiva da ação
de Deus entre os homens e suas intermediações.
Devido a sua marcante atuação política e sua forte influência nos grupos
populares D. Helder Câmara foi fortemente perseguido pelas forças militares e o seu
afastamento (supostamente, por aposentadoria) do cargo institucional causou impactos
nas ações desenvolvidas pela Igreja o que leva a desintegração do grupo que compunha
setor jurídico da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, que
defendia famílias moradoras de assentamentos de baixa renda. Tal fato responde ao
surgimento do Centro D. Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC.
A atuação do CENDHEC se dá, prioritariamente, em âmbito local (na cidade
do Recife) e sua região metropolitana, alcançando dimensões a níveis estadual e
nacional a partir de sua articulação política com outras Organizações da sociedade e
movimentos em Redes com repercussão extra local a fim de contribuir e fortalecer
no controle social das políticas públicas. Daí, decorre sua articulação com os
movimentos sociais, com a Associação brasileira de ONG – ABONG, Movimento
Nacional de Direitos Humanos – MNDH, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos de
Crianças e Adolescentes de Pernambuco; Fórum Estadual de Reforma Urbana, Rede
Estadual de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes,
Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil, Fórum de PREZEIS, Conselho
Municipal de Desenvolvimento Urbano, Fórum Nacional de Participação Popular,
dentre outros.
No tocante ao Programa Direito à Cidade, o Cendhec atua na defesa da
legalização da posse da terra em nome dos seus reais moradores como um instrumento
de garantia do direito à terra e à moradia para a população pobre moradora das Zonas
Especiais de Interesse Social – Zeis do Recife.
O Cendhec, através deste Programa, vem contribuindo efetivamente com a
defesa da posse da terra impedindo, concretamente, a expulsão de centenas de famílias
de suas moradias por especuladores de terra urbana e pelo mercado imobiliário,
sobretudo, junto as comunidades da Mustardinha, Mangueira, Entra Apulso, Sitio
Grande, Torrões, Campo do Vila, Três Carneiros, onde são desenvolvidas ações no
âmbito da Defesa da Segurança da Posse da Terra.
Por conseguinte atua no campo da: Promoção de ações de usucapião individual
e coletiva e defesa de moradores(as) em ações de reintegração de posse; Mobilização
das comunidades em torno do direito à moradia; Participação nos espaços institucionais
de formulação e controle das políticas públicas, e de articulação da sociedade civil,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
169
referentes ao tema da reforma urbana e democratização do acesso ao solo; Elaboração
de subsídios teóricos metodológicos; Ações de publicização da temática; Formação
na temática da cidadania e política urbana.
Dessa forma, o Programa Direito à Cidade tem por objetivo contribuir com a
garantia da segurança da posse da terra dos(as) moradores(as) das Zeis para que
tenham assegurada uma moradia digna e qualidade de vida, estando em condições de
produzir soluções para seus problemas como cidadãos e cidadãs participantes da
vida pública na comunidade.
Esse objetivo é orientador para as ações desenvolvidas no âmbito dos projetos
da Promoção, Defesa, Formação e Controle Social do Programa Direito à Cidade, no
qual buscam consolidar os princípios e diretrizes que norteiam a luta no campo da
Reforma Urbana, tendo como marco o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/2001.
O CENDHEC, portanto, atua na defesa da segurança da posse da terra através,
primordialmente, de ação judiciais, com o objetivo de garantir aos reais ocupantes o
acesso à terra.
Ocorre que a concretização desse direito não é alcançada tendo em vista os
obstáculos encontrados na estrutura institucional do Poder Judiciário e órgãos essências
à justiça.
DO PODER JUDICIÁRIO: EMPECILHOS E PROPOSTAS À
EFETIVAÇÃO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA
Dentro da perspectiva do trabalho realizado pelo CENDHEC, pretende-se
analisar os obstáculos resultantes da atuação do Poder Judiciário na regularização
fundiária de áreas Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) da cidade do Recife,
bem como formas de minimizar os efeitos desses problemas de efetivação de direitos
fundamentais da pessoa humana.
Apesar da legislação brasileira consagrar como princípio fundamental o direito
à moradia e a função social da propriedade, o Poder Judiciário, no exercício de sua
função hermenêutica e concretizadora de direitos fundamentais, não aplica, na prática,
esses princípios basilares.
Tal postura resulta, primordialmente, da utilização do paradigma individualista
do Código Civil de 1916,8 onde se afirma o direito à propriedade privada absoluta.
8
FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do
direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de
10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.
170
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Dessa forma, apesar da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidadã
garantirem, em termos abstratos, o acesso à moradia digna e a função social da
propriedade, o Poder Judiciário, através de seus juízes, não acompanham essa mudança
de paradigma legal, e reafirmam, em suas decisões, os princípios que regiam o Código
Civil de 1916, com resistência à nova concepção trazida pela Constituição Federal e
o Estatuto da Cidade.
Assim, percebe-se um distanciamento entre a realidade das comunidades e o
Poder Judiciário, que não faz uma avaliação acerca do seu papel na criação e
manutenção da segregação socioespacial do espaço urbano.
Contudo, qual a dificuldade que existe para essa necessária mudança de
paradigma, de forma a garantir a aplicação do princípio da função social da propriedade
e da cidade através dos órgãos legitimados para tanto, como o Poder Judiciário?
Há no Poder Judiciário Brasileiro um descaso acerca do tema do direito à
moradia digna, que se reflete no desconhecimento por parte dos operadores do direito
acerca dos instrumentos legais de direito urbanístico e ambiental que garante a inclusão
socioespacial dos habitantes de assentamentos espontâneos, isto pode ser percebido
no número de ações acompanhadas pelo CENDHEC em tramite na Justiça Estadual
a mais de 10(dez) anos, e que muitas vezes esperam anos por um despacho, e quando
há, é para fazer exigências descabidas, como é o caso, da comprovação através de
certidão dos cartórios de imóveis de que o autor da ação de usucapião urbano não é
proprietário de outro imóvel.
A formação desses operadores, notadamente exegética, denota uma procedimento apegado à formas, sem incluir no processo judicial a expressão teleológica
defendida pelo movimento do Acesso à Justiça.
No campo dos direitos humanos, especialmente o direito à moradia de
comunidades de baixa renda, o processo judicial tem a função de apaziguar a
desigualdade reinante e servir como instrumento de transformação social.
Ainda acerca das instituições do Estado, o Ministério Público, órgão cuja
competência constitucional inclui a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, é ausente no controle da ocupação
do solo urbano, bem como na defesa das garantias constitucionais das comunidades
que ocupam determinadas áreas, desprovidas de qualquer infra-estrutura e impróprias
à habitação humana.
Ademais, tendo em vista as consequências que as ocupações irregulares, ilegais
e clandestinas representam no crescimento da cidade e nos seus habitantes, é necessário
que o Ministério Público intervenha de forma mais planejada e eficiente.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
171
Em Pernambuco, O Ministério Público conta com a Promotoria de Habitação,
composta por uma promotora, cujo objetivo é de promover ações públicas para fins
de garantir, com atuação limitada à habitação.
A despeito da promotoria especializada, os promotores, que atuam nas ações
judiciais para fins de regularização fundiária nas varas cíveis, estão distantes da
realidade social dos moradores das comunidades de baixa renda e não utilizam a
ferramenta processual para fins de minimizar a segregação socioespacial. Isso porque,
interpretam a legislação urbanística de forma exegética, sem atribuir a função social
que a ela foi destinada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade.
Dessa forma, faz-se urgente que se crie um Promotoria especializada na
Regularização Fundiária Plena, com condições de atuar na promoção da cidadania
dos moradores das comunidades de baixa renda.
No que tange à defesa dos moradores de áreas Zeis da cidade do Recife, temse a total insuficiência da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para lidar
com as questões do acesso ao solo urbano e o direito à moradia. Seja pelo
desconhecimento do tema, seja pela demanda de atendimentos e o limitado número
de defensores públicos.
Diante desse contexto, a Defensoria Pública se torna incapaz de atuar na defesa
da cidade e na garantia do direito à moradia dos cidadãos, enquanto sujeitos coletivos
de direitos.
Assim, faz-se necessário seja implementado o Núcleo Especializado em
Regularização Fundiária Plena e Prevenção de Despejos Forçados na Defensoria
Pública, com atuação integrada às políticas públicas destinadas à efetivação do direito
à moradia adequada.
Outro grande desafio à efetivação do direito a moradia são as recorrentes
dificuldades nos Cartórios de Registro Imobiliário. Entre elas, podemos elencar os
altos custos do registro; a quantidade de documentos exigidos para fins de
requerimento de certidões; a ausência de procedimentos uniformes para todos os
cartórios; bem como a ausência de comunicação entre os cartórios e o poder público,
dificultando a obtenção de informações ou criando contradições nas bases de dados
de cada órgão.9
Ainda acerca do Direito Registrai, tem-se que os Cartórios de Registro
Imobiliários também desconhecem os instrumentos trazidos pela nova ordem
constitucional e urbanística e vigor e afirmam, cotidianamente, o paradigma do Código
9
AFONSIM, Betânia; FERNANDES, Edesio. Regularização Fundiária: princípios e conceitos básicos.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
172
Civil de 1916, a propriedade individual absoluta, resistindo à concepção da função
social da propriedade do solo urbano.
Ademais, os Cartórios de Registro Imobiliário não se enxergam enquanto
parceiros na Regularização Fundiária Plena para a população de baixa renda e estão
ausentes dos espaços de discussão de políticas públicas relacionadas ao tema.10
Necessário que haja, portanto, uma comunicação entre o Direito Urbanístico e
o Direito Registrai, de forma a incorporar ao segundo os princípios de direito público
que regem à propriedade, atribuindo função social aos registros imobiliários, de forma
a adequar o Direito Registral aos novos parâmetros definidos pela Constituição Federal
e o Estatuto da Cidade.11
Em conclusão, é evidente que o Poder Judiciário e seus órgãos essenciais têm
fundamental papel na efetivação da Regularização Fundiária dos assentamentos de
baixa renda.
Todavia, para sua efetivação, necessário que as novas diretrizes traçadas pela
Constituição Federal e o Estatuto da Cidade sejam incorporadas no cotidiano dos
Juízes, de forma que os mesmos percebam a sua responsabilidade na criação e
manutenção da segregação socioespacial, bem como parte integrante de um modelo
individualista que está sendo perpetuado através de decisões judiciais.
É preciso, ainda, que o direito à propriedade individual absoluta, primado do
Código Civil de 1916 não mais sirva como instrumento de resistência para a
concretização da função social da propriedade urbana e da cidade.
Como já esclareceu o professor e jurista Edesio Fernandes12, o Poder Judiciário
deve refletir, de forma crítica, sobre o processo de produção da ilegalidade e
irregularidade urbana, avaliando a criação das leis urbanísticas, as condições e os
obstáculos ao cumprimento das referidas leis, estabelecendo uma relação com a sua
responsabilidade na produção e manutenção dessa ilegalidade urbana.
A CAMPANHA DO CENDHEC PELO ACESSO À JUSTIÇA
A partir do entendimento de que o Poder Judiciário precisa se perceber enquanto
agente transformador da realidade social vigente e diante do total descaso e
10
Ibid.
11
Ibid.
12
FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do
direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de
10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
173
desconhecimento dos intrumentos de regularização fundiária por parte dos operadores
do direito, o CENDHEC identificou a necessidade de promover uma série de ações
visando a conscientização da população em geral acerca do tema do acesso à justiça
enquanto efetivação de direitos fundamentais do indivíduo.
Dentro desse contexto, ao longo da atuação do CENDHEC nesses 19(dezenove)
anos de existência, diversas ações foram executadas com o intuito de sensibilizar os
gestores públicos e operadores do direito acerca da importância da concretização do
direito à moradia digna. Dessa forma, o CENDHEC promoveu vários círculos de
debates com agentes de diversos seguimentos públicos, denunciou às omissões e
cobrou a execução de políticas públicas destinadas a defesa de direitos humanos,
entre eles o direito à moradia.
O CENDHEC percebeu a necessidade de iniciar uma discussão mais
abrangentes, englobando todas as parcelas da sociedade população, sociedade civil,
administração pública e poder judiciário para tratar do acesso à justiça enquanto
direito humano e enfrentar a questão do desconhecimento acerca dos instrumentos
concretizadores dos direitos fundamentais, notadamente os direitos da criança e do
adolescente e dos moradores dos assentamentos informais.
Todavia, percebeu-se a insuficiência dessas ações na efetivação do acesso à
justiça, posto que a sociedade, de uma forma geral, estava afastada das discussões
acerca dos empecilhos decorrentes da atuação dos poderes públicos, notadamente o
Poder Judiciário.
Assim, em julho de 2008, o CENDHEC iniciou uma campanha pelo acesso à
justiça, através do lançamento de uma publicação intitulada Acesso à Justiça é um
Direito Humano,13 que foi encartado através de jornal impresso de grande circulação
do Estado de Pernambuco.
O objetivo da campanha é o de ampliar a discussão acerca do acesso à justiça
para a coletividade, de forma a incluir a sociedade pernambucana no debate sobre a
necessidade de encontrar soluções para a efetivação dos direitos da pessoa humana,
em especial os das crianças e dos adolescentes e dos moradores dos assentamentos
informais.
Essa publicação é o início de uma campanha que pretende, a princípio,
sensibilizar a população para que ela exija do Poder Público a concretização desses
direitos.
Como etapa complementar, com relação à efetivação do direito à moradia
adequada, pretende-se promover um ciclo de debates e seminários com o Poder
13
JORNAL DO COMMERCIO, 11 de julho de 2008.
174
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Judiciário, de forma a incluir os operadores de direito, notadamente os juízes, membros
do ministério público e defensores públicos, na discussão acerca da regularização
fundiária plena, enfatizando as consequências da segregação socioespacial no
desenvolvimento das cidades e o seu papel na transformação dessa realidade.
Ainda, pensando na luta pela inclusão social e pela efetivação destes direitos,
os movimentos de reforma urbana devem fazer uma agenda que incorporem ações de
sensibilização dos operadores do direito (Magistrados, promotores, defensores
públicos, notoriais, etc.), com vista a conseguir a implementação da regularização
fundiária plena, bem como, refletir e investir na formação desses operadores, na
academia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A informalidade dos assentamentos urbanos é um problema que acarreta
diversas consequências para a cidade e seus habitantes que tem origem na segregação
socioespacial dos espaços urbanos e nas políticas públicas.
Dessa forma, é preciso que os juristas se atentem para a dimensão jurídicosocial do processo de desenvolvimento urbano, de forma a garantir o direito coletivo
ao planejamento e a gestão participativa das cidades. Isso porque o processo judicial,
enquanto acepção teleológica, possibilita a inclusão social pelo direito, minimizando
as desigualdades sociais e incluindo setores sociais abandonados pelo Estado.
O Direito à Moradia é reconhecido como Direito Humano em diversas
declarações e tratados internacionais da qual o Brasil é signatário, além de ser um
direito social reconhecido constitucionalmente, o que vale dizer que o Estado necessita
de ações positivas, por meio da execução de políticas públicas assegurem a efetividade
deste direito, O estado brasileiro tem a obrigação de adotar políticas públicas de
inclusão social e territorial da população tendo como meta integrar os assentamentos
informais a malha urbana da cidade dotando-as de infra-estrutura básica, urbanização
e regularização fundiária.
BIBLIOGRAFIA
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Belo Horizonte: PUC [www.virtual.pucminas.br]
ALVES, Mércia. Direito humano à moradia adequada: cenários controversos da realidade brasileira. In
Daniel Rech e outros (coord). Direitos Humanos no Brasil 2: diagnóstico e perspectivas. Coletânea
Ceris, ano 2, n.2. Rio de Janeiro: CERIS/Mauad X, 2007. 585 p.
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SAULE JR. Nelson; OSÓRIO, Letícia Marques. Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana. In LIMA JR., Jaime Bevenuto (coord). Relatório brasileiro sobre direitos humanos e econômicos,
sociais e culturais: meio ambiente, saúde, moradia adequada e à terra urbana, educação, trabalho,
alimentação, água e terra rural. Recife: GAJOP, 2003. 476 p.
5
PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA
NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS
Conflitos Fundiários Urbanos: o Dilema do
Direito à Moradia em Áreas de Preservação
Ambiental
ANA MARIA FILGUEIRA RAMALHO
Arquiteta e Urbanista. Doutoranda em
Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal
de Pernambuco.
VERA LÚCIA DE ORANGE LINS DA FONSECA
E
SILVA
Advogada do Centro Dom Helder Câmara e PósGraduanda em Gestão Ambiental.
INTRODUÇÃO
Este trabalho busca fazer uma reflexão sobre a regularização fundiária de
assentamentos urbanos em Áreas de Preservação Permanente – APPs, considerado
aqui, como um tipo de conflito fundiário. Toma-se como referência, a cidade do
Recife, por apresentar um alto índice de assentamentos consolidados em APPs. Pois,
com poucas áreas urbanas disponíveis e de solo urbano escasso e caro, os
assentamentos espontâneos existentes foram se expandindo em áreas de mata, mangue
e nas margens dos rios. O que era para ser preservado, ao longo dos anos foi se
transformando em locais de moradia, de uma população excluída socialmente, que
encontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerando dessa forma o conflito
entre o direito à moradia e o direito a um ambiente saudável. Direitos esses, garantidos
pela Constituição de 1988. Sendo assim, esse trabalho busca fazer uma reflexão sobre
as seguintes questões: Quais os critérios que devem ser utilizados para ações de
regularização fundiária em APPs? É possível fazer regularização fundiária sustentável
em APPs? A experiência de regularização fundiária sustentável do Recife em APPs
tem sido bem sucedida? Este trabalho foi estruturado em quatro partes: a primeira
parte apresenta as características urbanas e ambientais da cidade do Recife; na segunda
parte, mostra como ocorreu o processo de reconhecimento dos assentamentos
consolidados nas Áreas de Preservação Ambiental; na terceira parte, faz uma discussão
sobre os desafios da Regularização Fundiária Sustentável em Áreas de Preservação
Permanente; e na quarta e última parte, apresenta as considerações finais.
180
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
1. A CIDADE DO RECIFE: CARACTERÍSTICAS URBANAS E AMBIENTAIS
A cidade do Recife ocupa uma área de 220 Km2, distribuída em 6 (seis) Regiões
Político-administrativas. Tem como características físico-ambientais o espaço
distribuído em 66, 83% de pequena elevação, 23,56% de planície aluvionar e 9,61%
de ambiente aquático. Rica em beleza natural, de reconhecido patrimônio artístico e
histórico, de grande potencial de turismo e de serviços, é marcada por profundos
contrastes físicos-sociais que vem se acumulando ao longo de décadas. Recife possui
uma população urbana de aproximadamente 1,5 milhões de habitantes, de acordo
com o Censo Demográfico de 2000 (IBGE), dos quais 50% dessa população vivem
aproximadamente em 500 assentamentos informais, de forma precária e sem condições
de habitabilidade. A cidade é marcada por acentuadas desigualdades sociais,
consequência de altos níveis de pobreza e de uma profunda concentração de renda,
resultado de longos anos de ausência de uma política pública de interesse social nas
diversas esferas de governo. Como consequência, a cidade se dualiza entre uma
população com maior poder aquisitivo e que pode adquirir o solo urbano em áreas
planas e de fácil urbanização e aquela população que ocupa o solo de forma
desordenada em áreas de complexas soluções urbanísticas e de regularização fundiária.
Segundo dados da Prefeitura do Recife, durante o ano 2000, moravam cerca
de 550 mil pessoas ao longo dos rios que cruzam a cidade e aproximadamente 50 mil
famílias nas margens dos diversos canais, e cerca de 144 assentamentos informais
em áreas de morros. O que representa que, em uma região com poucas áreas urbanas
disponíveis e de solo urbano escasso e caro, o adensamento populacional cresce em
direção às Áreas de Preservação Permanente – APPs, isto é, aos poucos, os
assentamentos espontâneos existentes vão se expandindo nas áreas da mata e
principalmente nas margens dos rios. O que era pra ser preservado vai se transformando
em locais de moradia, mesmo que em parte inapropriadas, por uma população excluída
socialmente, mas que encontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerando
dessa forma o conflito entre o direito a moradia e o direito a um ambiente saudável.
Para responder as demandas dos movimentos populares em busca de uma cidade
socialmente mais justa e equilibrada, foi criado na década de 80, no contexto da
redemocratização, o Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social
– PREZEIS, constituindo-se como um marco na renovação nos moldes de gestão de
políticas urbanas no Recife, e que serviu posteriormente como referência nacional na
implantação de políticas públicas em assentamentos espontâneos no Brasil. A partir
do reconhecimento desses assentamentos como “Zonas Especiais” da cidade, o passo
seguinte foi a viabilização do Poder Público Municipal em promover ações de
urbanização e de regularização fundiária. Porém, nesse momento não foi aprofundado
a viabilidade da regularização fundiária naqueles assentamentos espontâneos
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
181
localizados em APPs, mesmo quando transformados em ZEIS. O contexto sóciopolítico em que a cidade vivia, marcada por um período de tensão muito forte em
relação à posse da terra e a garantia do direito a moradia, especificamente nas áreas
de propriedade particular e naquelas de maior interesse especulativo da cidade,
terminou em não priorizar essa discussão, o que não impediu, ao longo dos anos, a
ocupação das APPs por aqueles que tinham a necessidade de moradia.
Com uma atuação frágil do Pode Público Municipal no exercício do controle
urbano, as ocupações nas margens dos rios, mangues e morros foram aos poucos
acontecendo, se expandindo e se consolidando, caracterizando-se assim, como um
novo tipo de conflito fundiário urbano, na medida em que, evidenciou-se a dificuldade
de adquirir a posse da terra, e retirar as famílias que ali residem da condição de
ilegalidade e da situação de constante insegurança. Porém, a discussão, bem como,
as alternativas para intervenção de regularização fundiária em áreas ambientais foram
postergadas para décadas seguintes.
2. O RECONHECIMENTO DOS ASSENTAMENTOS CONSOLIDADOS NAS
ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE NA CIDADE DO RECIFE
Em 2002, a partir de uma determinação do Ministério Público do Estado de
Pernambuco quanto a aplicação do Código Florestal na cidade do Recife, começa-se
a discussão sobre o destino das APPs em áreas urbanas. O cerne da questão referia-se
a exigência do Ministério Público para que o município pusesse em prática a
determinação dos limites das APPs previstos no Código Florestal, ao invés, de como
vinha sendo feito, da utilização dos limites de preservação bem inferior, previsto na
Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano da cidade. Como já dito, Recife é uma cidade
cortada por uma grande quantidade de rios, lagos e mangues e essa medida afetaria
diretamente a utilização do solo urbano.
A gestão municipal criou um grupo de estudo para compatibilizar essa questão
fundamental para o desenvolvimento da cidade, e como consequência, gerou uma
normatização específica, a Lei nº 16.930/2003, construída pela Prefeitura do Recife
com a participação do Conselho Municipal de Meio Ambiente, altera alguns dos
artigos do Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico do Recife (1996) e
define os critérios para estabelecimento das APPs. Nesta nova lei foram consideradas de
preservação permanente todas as formas de vegetação existentes ao longo dos corpos e
cursos d’água, das áreas de manguezais, do topo de colinas e suas encostas, ao redor de
nascentes, olhos d’água, lagos e lagoas, reservatórios de água naturais ou artificiais, alterando os parâmetros antes previstos no Código Florestal para a supressão total ou parcial
da vegetação, tornando-as assim, mais compatíveis com a realidade da cidade.
Contudo, o grande avanço que se pode obter com essa nova lei foi viabilizar a
execução de projetos de “utilidade pública” ou “interesse social”, possibilitando assim,
182
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
a regularização fundiária em APPs quando destinadas à habitação de interesse social,
desde que haja a prévia anuência dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente e de
Desenvolvimento Urbano. O que indicou a preocupação do legislador em integrar as
políticas urbanas e ambientais.
Paralelamente, em âmbito nacional, essa discussão também foi iniciada no
Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, que gerou a Resolução 369 de
2006 onde possibilita a regularização fundiária de área urbana nas APPs. No entanto,
essa resolução trouxe muita discussão e divergências de opiniões entre ambientalistas
e urbanistas. Para os ambientalistas o Código Florestal era muito restritivo, pois, a
nova resolução torna a questão de “utilidade pública” e de “interesse social”
interpretações muito abrangentes. Enquanto que urbanistas, viram nessa resolução, a
possibilidade de resolver os conflitos fundiários urbanos.
3. OS DESAFIOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SUSTENTÁVEL
EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL
Segundo Mukai (2002), o urbanismo não se ocupa apenas de arranjos físicos
territoriais das cidades, mais abrange o meio urbano e o rural, e considera que é por
isso que esta disciplina tem que cuidar também dos aspectos do meio ambiente. Com
isso, o autor, utiliza da afirmação do jurista Louis Jacquignon que o direito urbanístico
como disciplina visa também à proteção do meio ambiente:
O direito urbanístico é a arte de arranjar as cidades sobre o aspecto demográfico, econômicos,
estéticos e culturais, tendo em vista o bem do ser humano e a proteção do meio ambiente
(Mukai apud Jacquignon, 2002).
Sendo assim, o direito urbanístico e o direito ambiental não podem estar
dissociados, visto que fazem parte do ramo do direito público e tem o mesmo marco
conceituai que é a Constituição Federal de 1988. Porém, quando se trata do direito à
moradia adequada, muitas questões ainda são postas em debate. Especialmente quando
se trata da regularização fundiária em APPs, que ainda é tema pouco discutido e
enfrentado pelas gestões municipais.
Se por um lado é possível afirmar que não há mais um conflito do ponto de
vista das legislações ambientais e urbanas, por outro lado, criam-se incertezas da
forma como os novos parâmetros devem ser aplicados nas cidades, e como, deve ser
conciliado o direito dos ocupantes e a preservação ambiental.
De acordo com Pádua (2006) ao se flexibilizar os parâmetros em APPs fica
afrouxada em todo o Brasil, a prioridade de proteção aos mangues, nascentes, encostas,
margens de rio, dunas, restingas, escarpas, brejos, topos de morro e outras áreas
consideradas estratégicas para a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas e dos
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
183
serviços ambientais essenciais para a sociedade. A autora, apesar de opinar que o
Código Florestal de 1965 era extremamente restritivo e que o Brasil da época era
outro país, na sua opinião, no momento em que cada Município adaptar a lei à sua
realidade, as APPs perderão valor, e teme por essa “adaptação”, pois ficará vulnerável
de acordo com a vontade do gestor, principalmente quando se trata de municípios
que ainda não dispõem de Planos Diretores. Assim, crítica dizendo: “Foi uma enorme
infelicidade. O Conama ficou com medo de enfrentar outras áreas, cedeu a muitos
interesses e violentou as APPs”.
Para Fernandes (2007) o problema dos assentamentos espontâneos em APPs é
uma expressão de um velho conflito entre os defensores da chamada “agenda verde”
do meio ambiente e os defensores da chamada “agenda marrom” das cidades. Ou
seja, não existe um conflito entre preservação ambiental e moradia. Pois, ambos são
valores e direitos sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz
conceituai, qual seja o princípio da função socioambiental da propriedade. E o desafio
é compatibilizar esses valores e direitos.
(...) é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dos
assentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo
socioambiental criado ao longo de décadas no país. Para tanto, é preciso que se adote um
conceito antropocêntrico de natureza, bem como, que se tomem todas as medidas necessárias
para a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal
forma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto
de vista socioambiental. (FERNANDES, 2007).
Diante desse contexto, o debate deverá responder a questão do como fazer
ações de regularização fundiária em APPs. Portanto, quais os critérios que devem ser
utilizados para ações de regularização fundiária em APPs? É possível fazer
regularização fundiária sustentável em nessas áreas? A experiência de regularização
fundiária sustentável do Recife em APPs tem sido bem sucedida?
Para a regularização fundiária em APPs será necessário levar em consideração
a consolidação dos assentamentos espontâneos, predominantemente residenciais e o
grau de interação sócio-cultural dos moradores com o local em que estão instalados,
ou seja, a relação de pertencimento destes com o local de moradia, considerando que
esse local proporcionará condições de habitabilidade e salubridade. No entanto, nos
casos em que essas condições não estejam efetivadas, será necessária a relocação da
população para um local próximo, prevalecendo o direito à moradia.
A Regularização Fundiária Sustentável em APPs compreende as dimensões
jurídica, através da titulação da posse da terra; urbanística, dotando a área de infraestrutura e equipamentos urbanos; socioambiental, através de programas de educação
ambiental e mobilização da comunidade para um melhor convívio com o meio
184
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
ambiente; e a econômica, através da geração de emprego e renda. Necessita para a
sua efetivação, um plano de regularização fundiária, além da autorização do Poder
Público e da anuência do órgão ambiental responsável. Pensar em Regularização
Fundiária Sustentável é pensar em regularização que incorpore essas dimensões, sob
pena de não se cumprir a diretriz do Estatuto da Cidade que é “garantir o direito a
cidade sustentável, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e serviços urbanos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações”, como dispõe o Art. 2º, inciso I. Portanto,
do ponto de vista normativo podemos dizer que é possível fazer regularização fundiária
sustentável em APPs. Porém, a capacidade dos municípios em conduzir políticas
públicas integradas tem sido um dos principais entraves para a solução desse conflito.
No caso do Recife, a experiência da regularização fundiária sustentável em
APPs não tem sido exitosa, apesar da Lei 16.930/2003, que torna possível a
regularização dos assentamentos espontâneos consolidados nessas áreas. Um dos
fatores que contribui para isso é a falta de articulação entre os diversos setores da
esfera governamental envolvidos na temática urbana e ambiental, o que confirma a
dificuldade de conciliação dessas agendas. Cabe ressaltar, que a referida Lei determina
que projetos ou programas que tenham como meta a regularização fundiária em APPs,
devem ser discutidos entre os Conselhos de Meio Ambiente e de Desenvolvimento
Urbano, o que poderia facilitar o diálogo entre essas duas temáticas.
Em consulta feita a Prefeitura do Recife foi constatado que não existem dados
mais aprofundados que informem quais são e quantos são os assentamentos
consolidados em APPs. Também não se sabe ao certo, qual a população estimada que
demanda a regularização no local e qual a população que deverá sofrer remoções.
Como também, não se tem diretrizes específicas para a regularização fundiária nessas
áreas. Além do que, na sua maioria as ações de regularização fundiária são executadas
de forma fragmentada, ou seja, não conseguem contemplar todas as dimensões
necessárias. A exemplo do PREZEIS, que visa promover a regularização jurídica e
urbanística das ZEIS, mostra dificuldades de promover uma regularização sustentável,
o que se observa é que este programa tem contemplado ações pontuais, ou de titulação
do imóvel ou de urbanização, em detrimento de um planejamento urbano integrado,
o que dificulta a inserção das ZEIS à cidade formal. Nesse sentido, pode-se afirmar
que não existe uma experiência bem sucedida de regularização fundiária sustentável
no Recife, apesar de dispor de um arcabouço legal favorável a tal procedimento.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de avanços do ponto de vista das legislações existentes, ainda falta nos
programas de regularização fundiária em APPs, dialogar com as políticas públicas,
principalmente, as de natureza urbanas e ambientais.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
185
Observa-se também, que o programa de regularização fundiária do Recife não
tem contemplado todas as dimensões necessárias a sua sustentabilidade.
Principalmente, ao que se refere às ações de caráter ambiental, quando existem,
apresenta uma função secundária, o que tornam os programas vulneráveis quanto à
preservação ambiental.
No entanto, também se faz necessário políticas preventivas de controle urbano,
com o objetivo de coibir novas ocupações em APPs sob pena de comprometermos o
também garantido direito constitucional, das presentes e futuras gerações a um
ambiente ecologicamente equilibrado.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Estatuto da Cidade. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos.
Brasília, 2001.
FERNANDES, Edésio. Regularização Fundiária de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas. 2007.
Disponível em: http://www.pucminas.br/virtual/2009 01/eursos/curso.php.curso. Acessado em 10 de
setembro de 2008.
MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.
PÁDUA, Maria Tereza. Áreas de Preservação Permanente. 2006. Disponível em: http://www.oeco.com.br/
index.php/busca/MARIA%20TEREZA%20PADUA.searchphras. Acessado em 10 de setembro de 2008.
RECIFE. Lei Nº 16.930, de 13 de setembro de 2006. Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico do Recife.
Vila Itororó: Direito à Cultura Como Ameaça
ao Direito à Moradia?
ALINE VIOTTO, BIANCA TAVOLARI,
JONNAS VASCONCELOS E YASMIN PESTANA1
Graduandos em Direito.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Contextualização do Problema; 3 O Projeto de
Revitalização da Vila Itororó; 4 Aspectos Econômicos e Urbanísticos do Projeto;
5 A Realidade dos Moradores da Vila Itororó; 6 Outras Perspectivas; 7 Conclusão.
RESUMO: Este artigo busca analisar a possibilidade de coexistência entre
moradia e cultura na Vila Itororó, tendo como referência o trabalho de educação
jurídica popular do SAJU-USP2 em conjunto com os moradores locais. Partindo
de uma breve exposição sobre a comunidade da Vila Itororó no contexto histórico
da cidade de São Paulo e sobre o projeto de revitalização do espaço pela Prefeitura
Municipal, identificamos uma tensão entre direito à cultura e direito à moradia,
uma vez que a iniciativa elaborada pelo poder público visa à desapropriação da
área em questão e ao despejo dos moradores, a fim de construir um pólo cultural
com bares e restaurantes. A partir deste estudo busca-se contribuir com o debate
acerca da atual ação de desapropriação proposta pela Prefeitura, levantando
questões sobre concepções de cultura, à luz de outras experiências semelhantes
à da Vila.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Cultura, Educação Jurídica Popular,
Vila Itororó, SAJU-USP.
1. INTRODUÇÃO
De início, contextualizamos a história e a importância da Vila Itororó. Seus
moradores convivem atualmente com a ameaça de despejo motivada pela formulação
1
Os autores são estudantes do segundo ano da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
e membros do SAJU-USP, grupo de extensão sob orientação do Professor Doutor Celso Fernandes Campilongo,
do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.
2
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
188
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
de um projeto de revitalização, realizado pela Prefeitura de São Paulo. O projeto de
recuperação da Vila visa à construção de um centro cultural e, por esse motivo,
apresentamos criticamente o paradigma de reforma urbanística adotado pela Prefeitura.
Em seguida, buscamos expor os processos de revitalização e de desapropriação
do espaço da Vila Itororó dentro de um contexto de transformações econômicas e
urbanísticas que superam a esfera da localidade. Partimos então à análise de diferentes
conceitos de cultura que permeiam, de um lado, o projeto proposto e, de outro, a
realidade dos moradores da Vila. Finalmente afirmamos a possibilidade de convivência
entre cultura e moradia no mesmo espaço, a partir de exemplos já realizados em
outros lugares semelhantes à Vila na cidade de São Paulo.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA
A Vila Itororó está localizada num dos bairros mais centrais da cidade de São
Paulo, a Bela Vista, sendo caracterizada por vezes como a primeira vila urbana da
cidade3. As edificações foram construídas entre 1916 e 1922 pelo mestre de obras
português Francisco de Castro e seu nome – Vila Itororó – deve-se à proximidade da
nascente do riacho do vale do Itororó. A Vila apresenta estilo arquitetônico único,
materializado pela técnica de colagem: peças do antigo Teatro São José foram
incorporadas na estrutura das casas e do palacete.
Em meados da década de 50, com a morte do seu fundador, a Vila foi leiloada.
Posteriormente, a propriedade do imóvel foi doada à Instituição Beneficente Augusto
Oliveira de Camargo. Esta fundação possui um hospital filantrópico em Indaiatuba,
que, por muito tempo, teve seus gastos custeados pela arrecadação dos aluguéis das
casas locadas na Vila Itororó4. A partir de 1997, a instituição abandonou o local,
deixando de cobrar os aluguéis e de prover serviços como os de manutenção elétrica
e sanitária. A região continua ocupada por cerca de 70 famílias, que há mais de 10
anos zelam sozinhas pelo espaço, apesar das dificuldades inerentes à condição de
baixa renda e do descaso do Poder Público em efetivar políticas públicas voltadas à
moradia no local.
Em razão da degradação da região central, contemporânea ao movimento
histórico da saída da elite paulistana para áreas mais ao sul da cidade, foram
desenvolvidos projetos de “revitalização” desses espaços, como acontece com a Vila.
De forma simplificada, essas reformas consistem em retirar a população de baixa
renda do centro, reformar e restaurar os imóveis históricos e, por fim, viabilizar a
3
Disponível em: http://www.prefeitura, sp.gov. br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=7275, acesso em 15 Set.
2008.
4
Disponível em: http://www.haoc.org.br/m_fundacao.html, acesso em 15 Set. 2008
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
189
oferta de lazer e de serviços. A autorização da Prefeitura do processo de desapropriação
contra a Fundação proprietária da Vila5 se insere nesse contexto.
Em contrapartida, nós, do SAJU-USP, juntamente com os moradores da Vila,
participamos da elaboração de pedido declaratório da Usucapião Especial Plúrimo6
Pelo periculum in mora evidente, em razão da ação de desapropriação, pedimos tutela
antecipada, que foi negada. Recorremos com um Agravo de Instrumento no Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo7, que ainda aguarda julgamento.
A aproximação do SAJU com os moradores da Vila teve início através de
contatos no Fórum Centro Vivo, uma organização que congrega movimentos sociais
e também outros setores da sociedade que discutem as políticas públicas para o Centro
de São Paulo. Desde então, o SAJU realiza atividades de educação popular com a
comunidade da Vila Itororó.
Por reconhecermos o papel pedagógico – logo, político8 – que desempenhamos, o grupo almeja, através de suas práticas, não atuar pelos moradores, mas com
eles. Com isso, dentro dos pressupostos de uma Pedagogia do Oprimido, vemos os
moradores como sujeitos e não como objetos nesse processo de luta por justiça. Enfrentamos inúmeras dificuldades, acentuadas em razão de, ainda que inconscientemente, reproduzirmos práticas opressoras. Tendo isso em vista, repensamos sempre
nossas ações e realizamos oficinas e debates com os moradores de forma horizontal,
que possa permitir uma verdadeira troca de saberes. Nestes encontros, discutimos
muitos temas, como a eficácia dos instrumentos processuais e os mecanismos político-jurídicos necessários para a efetivação dos direitos sociais, como também as atuações em coletivo para a manutenção do espaço da Vila.
Através desse trabalho de educação, pretendemos afastar a visão de que os
moradores seriam meros ocupantes a serem despejados. Neste aspecto, o trabalho
pedagógico pelo despertar da consciência coletiva dos moradores é essencial para o
fortalecimento da luta pela moradia. A intenção maior é incluir os moradores como
sujeitos nas discussões sobre a reforma urbana, e não expectadores à espera passiva
do despejo para a periferia da capital.
5
Nº 583.53.2007.134155-9, distribuída na 1ª Vara da Fazenda Pública.
6
Nº 583.00.2008.136490-1, distribuída na 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital SP.
7
Nº 2008.708530-7(05)
8
O pedagogo Paulo Freire, em toda a sua vida e obra, sustentou coerentemente a necessidade de reconhecer o
caráter político da educação, para que se possibilite uma prática crítica e emancipadora. Como ele revela, “O
mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo e a torná-lo
como um que fazer puro, em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é o
ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática
astuta e outra crítica.” (FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam.
São Paulo: Cortez, 2006. p. 23).
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
190
Os moradores possuem grande interesse em continuar residindo naquele espaço.
Além grande disponibilidade de transportes públicos e da intensa zona de comércio e
de serviços localizados no Centro, os moradores ainda contam com, por exemplo,
quatro escolas públicas, três hospitais, um hospital infantil, três creches comunitárias,
o Centro Cultural Vergueiro, a sede do PROCON, o Poupatempo, a Defensoria Pública
e outros serviços públicos nas redondezas. Motivos mais fortes para permanecer no
local são os laços pessoais construídos ao longo de anos de convivência e relação
com o bairro e com outros moradores da Bela Vista.
Há, ainda, no Centro de São Paulo, um grande déficit habitacional, causado
tanto pela pouca quantidade de imóveis destinados à moradia, como também pela
subutilização e inutilização de prédios habitacionais e de casas na região. A proposta
de uso da Vila Itororó pra outro fim que não o da moradia vem aumentar esse déficit,
além de reafirmar um paradigma adotado pela Prefeitura de São Paulo em relação à
questão da moradia.
3. O PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA VILA ITORORÓ
Como define Souza Filho,
o patrimônio ambiental, natural e cultural, assim, é elemento fundamental da civilização e
da cultura dos povos, e a ameaça de seu desaparecimento é assustadora, porque ameaça de
desaparecimento a própria sociedade.9
Esta, portanto, passou a perceber, ao longo dos anos, a importância da preservação do seu patrimônio. Para tanto, o Direito se torna instrumento imprescindível,
ao estabelecer as normas e ações reguladoras e protetoras do patrimônio.
A Constituição de 1988 interpreta como bem cultural “aquele bem jurídico
que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser representativo, evocativo ou
identificador de uma expressão cultural relevante”10. Isto significa que todos os bens
culturais possuem um interesse público especial, que altera sua essência. A autoridade
competente deve reconhecer o valor do bem e realizar a sua proteção por meio de ato
administrativo denominado tombamento, o qual proíbe a sua mutilação, destruição
e/ou demolição, mas permite obras de restauração, reparação e pintura.
Ao longo da história da humanidade, nunca se estabeleceram critérios comuns
e permanentes na classificação do que deveria ser protegido. A preservação tinha
9
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. Curitiba: Juruá, 2008,
p. 16
10
Idem. p. 36.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
191
como objeto apenas o que parecia ser “importante”, ou seja, daquilo que estaria ligado
às elites.
Em geral, guardaram-se os objetos e as construções ricas da classe poderosa. Guardaram-se
os artefatos de exceção e perderam-se para todo o sempre os bens culturais e corriqueiros do
povo. Esses bens diferenciados preservados sempre podem levar a uma visão distorcida da
memória coletiva, pois justamente por serem excepcionais não têm representatividade.11
O caso da Vila Itororó ilustra bem a descrição acima. O conjunto residencial
da Vila foi construído por um português pertencente à elite paulistana e manteve sua
preservação ao longo do tempo por ser uma construção de grande valor arquitetônico
e histórico. Essa preservação ocorreu através de seu tombamento, realizado pelo
CONPRESP12 e pelo CONDEPHAAT13, o qual visava criar condições para a
preservação dessa área em face às modificações de caráter imobiliário que vinham
crescendo nesse período no Bairro da Bela Vista.
O “Projeto de Recuperação Urbana da Vila Itororó”14 foi elaborado em 1976
pela Prefeitura. Posteriormente, em 2006, o prefeito José Serra sancionou o Decreto
nº 46.926, que declara de utilidade pública os imóveis particulares situados na Vila,
os quais deverão ser desapropriados para a execução desse plano de urbanização.
Para a concretização desse projeto, a Prefeitura prevê a implantação e a operação
de obras e serviços de “recuperação”, realizadas pelos órgãos públicos a fim de que,
posteriormente, iniciativas privadas interessadas em explorar economicamente o local
possam se estabelecer. Os objetivos previstos são, além de recuperar e valorizar o
conjunto arquitetônico urbanístico, valorizar a micro-região da Bela Vista e tornar o
projeto auto-sustentável a partir do desenvolvimento de atividades culturais, artísticas,
educacionais, comunitárias e turísticas. Para isso, estão previstos espaços para oficinas,
teatros, cinemas, livrarias, galerias de arte, restaurantes, bares, estacionamentos e
instalações hoteleiras.
O seguinte conceito de lazer foi utilizado no projeto:
[lazer] é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade,
seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver
sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre
capacidade criadora.15
11
LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 22.
12
Resoluções 01/93 e 22/02.
13
Resolução SC 09/05.
14
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.
2008.
15
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 34, apud Projeto de
Recuperação Urbana da Vila Itororó.
192
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A prefeitura diz ainda respeitar, no projeto, os princípios consagrados
internacionalmente na Carta de Veneza, da qual o Brasil é signatário. O trecho do
tratado citado no próprio projeto diz:
A noção de monumento compreende não só criação arquitetônica isolada, como também o
ambiente no qual ela se insere. O monumento é inseparável do meio no qual ela se situa e da
história do qual é o testemunho. Reconhece-se então tanto o valor monumental dos grandes
conjuntos arquitetônicos, quanto o de das obras modestas que com o tempo adquiriram uma
significação cultural e humana.16
No entanto, se analisarmos com maior atenção essa proposta, podemos levantar
uma série de questões quanto à sua elaboração e função. Conforme a própria Carta de
Veneza estabelece, o monumento histórico não pode ser separado do ambiente no
qual ele está inserido, mas tal distinção ocorre nesse projeto. Em nenhum momento a
prefeitura prevê a interação dos moradores da Vila Itororó com o desenvolvimento
do pólo cultural nessa região. Desse modo, além de não propor um projeto em relação
à moradia, a Prefeitura acredita que a questão cultural e a questão da moradia são
incompatíveis no caso da Vila Itororó.
A ideia de cultura inserida nesse projeto é a de uma cultura voltada exclusivamente para uma lógica mercadológica, que se torna evidente quando o projeto estabelece como um dos seus objetivos a auto-sustentabilidade e, até mais, que ele seja
rentável economicamente. Isso significa que a cultura produzida nesse espaço deverá atender aos interesses do mercado, pois só assim ela será consumida e trará lucros
aos seus investidores. Essa concepção de cultura enquanto “produto trocável por
dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer coisa”17 pode ser
denominada “cultura de massas”, cujas origens históricas remontam à Revolução
Industrial e o surgimento de uma economia de mercado.
O Poder Público, dessa forma, impõe à comunidade da Vila Itororó uma
específica ideia de cultura, que não se relaciona com os moradores. É a “afirmação
de um padrão cultural único e tido como o melhor para todos os membros da
sociedade”18. Assim, os moradores locais são duplamente privados pela Prefeitura: o
direito à sua própria cultura lhes é, pois se perderá com a desapropriação. Também
lhes é negado o acesso a essa cultura “de consumo”, já que os moradores dificilmente
poderão pagar quantias elevadas para usufruírem das atividades desenvolvidas nesse
pólo cultural. Assim, notamos como a ideia inicialmente proposta do “indivíduo poder
16
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.
2008.
17
COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 11.
18
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007. p. 50.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
193
se entregar de livre vontade” ao lazer nesse local é restrita e não contempla as próprias
pessoas residentes na Vila Itororó. A Vila, porém, não é um caso isolado: está
relacionada a uma lógica econômica e urbanística mais ampla.
4. ASPECTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO PROJETO
O projeto de revitalização da Vila Itororó, proposto pela Prefeitura de São
Paulo, revela não só um conceito de cultura adotado, mas também um modelo
urbanístico. Na apresentação do projeto, a seguinte passagem se mostra relevante a
fim de compreender o enfoque estatal:
A iniciativa da Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Cultura, com a participação
integrada das Secretarias de Planejamento e da Habitação e Desenvolvimento Urbano, e da
EMURB – Empresa Municipal de Urbanização, prevê, a implantação e operação das obras
e serviços de recuperação com participação da iniciativa privada. Ou seja, não se cogita
para a Vila a criação de um novo Centro Cultural ou de um Museu ao ar livre, mas sim um
conjunto dinâmico de atividades que incorporem e ultrapassem esses programas e apresentem
condições de auto-sustentabilidade após as intervenções que necessariamente deverão ser
feitas pela Prefeitura.19 (grifo nosso)
Essa caracterização é representativa do projeto como um todo e faz-se necessário avaliar alguns de seus pontos. A Prefeitura é bastante clara ao dizer que a “recuperação” da Vila Itororó se dará por meio de participação da iniciativa privada, após
intervenções feitas pelos órgãos públicos citados. O modelo aqui pretendido, portanto, é essencialmente privado: precisa apresentar condições de auto-sustentabilidade,
que, em outras palavras, quer dizer autonomia econômica traduzida na forma de
lucro. Ou seja, os bares, restaurantes, galerias e até uma rede hoteleira terão as condições necessárias a desenvolverem suas atividades comerciais.
A lógica aqui apresentada insere-se no contexto de reestruturação global do
sistema econômico, evidenciada no Brasil a partir da década de 1990, através de
medidas de flexibilização do mercado de trabalho e ajustes estruturais que limitaram
os gastos públicos. Essas mudanças
transformaram a geografia da pobreza urbana e da vulnerabilidade social, com impactos
profundos na dinâmica de agregação societária do território popular e nas relações reais ou
simbólicas que este estabelece com o restante da cidade.”20
Ainda sobre as transformações econômicas, a urbanista Mariana Fix analisa
brevemente:
19
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.
2008.
20
ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.
194
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A liberalização e a desregulamentação financeira inseriram novamente o Brasil nos fluxos
internacionais de capital, interrompidos com a crise da dívida e a derrocada do
desenvolvimentismo, no contexto da crise da ordem de Bretton Woods. Contudo, ao contrário
do ciclo desenvolvimentista, a liberalização foi responsável por atrair montantes elevados
de capital, financeiro especulativo, os mesmos que invadiram as periferias asiática e latinoamericana, em um contexto de aumento da mobilidade do capital e de busca por rentabilidade
também fora dos países centrais.21
Assim, essas transformações deram início à consolidação de um modelo
urbanístico concentrador e excludente, estruturando as cidades brasileiras:
O território popular se densificou, sobre uma base urbanística frágil e tosca, fruto de
intervenções fragmentadas, desconectadas e descontínuas, definidas e executadas na
temporalidade “da política”.
A Vila Itororó é representativa dessa forma de urbanização, que hoje, no caso
específico do qual tratamos, é objeto de iniciativas de reforma e de “revitalização”.
Para “revitalizar” pressupõe-se que não haja mais vida e é exatamente essa a
visão da Prefeitura: os moradores e suas histórias não são em momento algum citados
no plano de reforma, apenas menciona-se que alguns dos espaços serão desapropriados.
“Revitalizar”, do modo proposto (ou imposto, uma vez que não houve participação
dos moradores e de demais cidadãos na elaboração do planejamento), e “o chamado
planejamento estratégico, as operações urbanas e as parcerias público-privadas”23
compõem o núcleo em torno do qual se forma o “pensamento único das cidades”24.
Tal pensamento substitui a ideia de desenvolvimentismo por um modelo de cidades
competitivas, atraentes e funcionais. Assim, a ideia de alcançar um padrão de vida
dos países ricos por meio da industrialização e desenvolvimento internos foi
abandonada. Tal mito foi substituído pelo das “cidades globais” (global cities), cidades
que são competitivas internacionalmente, cidades que têm “vocação para dar certo”.
O próprio projeto da Prefeitura descreve a Vila com um grande potencial:
A Vila Itororó apresenta uma configuração espacial especialíssima, com grande potencial
cenográfico, que a torna única para a possibilidade de acomodar atividades de caráter cultural,
educacional e de lazer, com repercussão no campo do turismo, que ultrapassa de muito o
21
FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 166.
22
ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.
23
FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 163.
24
ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do Pensamento Único. São Paulo: Vozes, 2000.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
195
âmbito local, possibilitando uma referência de caráter metropolitano e estadual, pelo menos.
É esta referência que orientou também a definição do vulto das atividades previstas para
instalação na Vila.25 (grifo nosso).
Torna-se, portanto, muito clara a intenção de repercussão da reforma e dos
efeitos atrativos para além do bairro, além da Bela Vista e até da própria cidade de
São Paulo. Reformas como as propostas têm reconhecida visibilidade internacional e
turística, como nos casos do Pelourinho em Salvador e de Puerto Madero, em Buenos
Aires. Ambos os lugares são exemplos de espaços ditos degradados, em parte
abandonados, que foram revitalizados e são hoje centros de comércio e visitação.
Aqui, no caso da Vila Itororó, instrumentaliza-se o conceito de cultura a fim de
criar esses espaços atraentes, que tornam a cidade mais bonita, com mais visibilidade
e mais excludente. Reformar, por si só, não é uma ação necessariamente negativa. A
questão aqui gira em torno de uma lógica privatista, que visa à expulsão de moradores
de suas casas a fim de criar mais um espaço de consumo na cidade de São Paulo. Se
a cidade é um espaço de interação, de encontros, de construção e de consolidação de
relacionamentos, a efetivação do projeto da Prefeitura seleciona somente algumas
pessoas que possam dele participar. A limitação é essencialmente econômica, uma
vez os atuais moradores da Vila Itororó, por exemplo, não teriam recursos financeiros
e nem disponibilidade de tempo para aproveitar restaurantes, bares e galerias, muito
menos hotéis.
A iniciativa da Prefeitura, se concretizada, cria mais um lugar de anti-cidade
em São Paulo, por impossibilitar a interação espontânea entre pessoas, por
impossibilitar a sensação narrada por Júlio Cortázar, em um de seus contos:
Cuando abra la puerta y me asome a la escalera, sabre que abajo empieza la calle; no el
molde ya aceptado, no Ias casas ya sabidas, no el hotel de enfrente; la calle, la viva floresta
donde cada instante puede arrojarse sobre mi como una magnolia, donde Ias caras van a
nacer cuando Ias mire, cuando avance un poço más(...)26
Cabe, nesse momento, expor e analisar a perspectiva dos moradores.
5. A REALIDADE DOS MORADORES DA VILA ITORORÓ
Realizamos, em conjunto com os moradores, uma dinâmica sobre os vários
conceitos de cultura, no primeiro semestre de 2008. Organizamo-nos em três grupos
e foi pedido a cada pessoa que trouxesse de sua casa um objeto que representasse o
25
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.
2008.
26
CORTÁZAR, Mio. Cuentos Completos 1. Madri: Alfaguara, 2007, p. 406.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
196
que ela entendia por cultura. Dessa forma, moradores e moradoras voltaram às casas
e trouxeram pro pátio da Vila toda sorte de objetos: figuras de santos, crucifixos, CDs
com músicas de sua terra, quadros, fotos, ornamentos, peças de vestuário. Cada um
teve sua vez de explicar o porquê do objeto escolhido e sua significação.
Uma moradora levou uma flor. Explicou que a flor representava pra ela a
necessidade de preservação, tanto do meio ambiente quanto das pessoas e que isso
simbolizava o que ela entende por cultura. Um outro morador, que materializou sua
concepção de cultura num crucifixo, ressaltou a importância de respeitar a religião e
a crença dos outros, assim como as culturas diferentes, como foi apontado por alguns
moradores, migrantes do nordeste do país. Um menino, filho de uma moradora e
também ele morador da Vila, sintetizou as opiniões levantadas: “As pessoas só vêem
o lado de fora da Vila. Esquecem que a aqui tem gente. Esses objetos representam
isso, sem eles, sem cultura, a gente fica seco por dentro.”27.
Entendemos que a construção cultural se dá nas relações do homem com seu
espaço e as produções culturais não necessitam estar em lugares ditos qualificados
para que tenham valor, como galerias e museus. Assim,
a cultura, no amplo conceito antropológico, é o elemento identificador das sociedades humanas
e engloba tanto a língua na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus poemas,
como a forma como prepara seus alimentos, o modo como se veste e as edificações que lhe
servem de teto, como suas crenças, sua religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito.28
Por esses motivos, não entendemos que possa haver uma hierarquia entre
culturas, uma cultura melhor ou superior que as demais. A Vila Itororó, dessa forma,
já é um pólo cultural. Seu espaço contém histórias de vida, revela como os moradores
convivem e se relacionam, produz lembrança e memória, sem as quais resta apenas
um “grupo [de pessoas] sem norte, sem capacidade de escrever sua própria história e,
portanto, sem condições de traçar o rumo de seu destino.”29
A partir dessa linha de pensamento, cultura e moradia não são excludentes.
Elas podem conviver no mesmo espaço e isso é claramente demonstrado no projeto
habitacional realizado pelo grupo EMAU-Mosaico30. Essa proposta de extensão
universitária “objetiva-se a atender as demandas sociais organizadas que se encontram
à margem da produção do mercado imobiliário e, muitas vezes, das ações do poder
27
Relato anotado e representado de forma livre, porém sem mudança de conteúdo.
28
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 15
29
Idem. p. 16.
30
Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
197
público, com trabalhos essencialmente participativos.”31 Assim, em trabalho conjunto
com os moradores e moradoras, foi construído um estudo sobre a área, visando à
constituição do direito de morar no centro da cidade.
O projeto prevê três praças de uso comum, sendo uma delas destinada às crianças
da Vila, bem como a existência de 70 unidades habitacionais que abarquem as famílias
que hoje lá vivem. A reforma dos prédios e casas é um pressuposto, porém a função
de moradia pode ser mantida, como exemplificado:
Dessa maneira, foi contemplada a perspectiva do palacete passar a ser de uso público – e
aqui entende-se uso público como o relativo a serviços de acesso universal e não restaurantes
e cafés, por exemplo – podendo ser oferecido a alguma Secretaria Municipal ou Estadual,
com atendimento à população, ou mesmo ao Serviço Social do Comércio, considerando-se
o trabalho social desenvolvido pelos SESCs e a possibilidade de recuperação da primeira
piscina coletiva para um uso efetivo da população. As demais edificações da Vila poderiam
ser recuperadas para seu uso original – o de habitação – compondo estratégias de importantes
programas públicos de apoio à moradia em área central.32
Analisamos, a seguir, experiências na cidade de São Paulo que conjugam a
moradia e a cultura.
6. OUTRAS PERSPECTIVAS
Defendemos, portanto, que cultura e moradia podem conviver em um mesmo
espaço, assim como o posposto pelo projeto do grupo EMAU-Mosaico, em que as
áreas de cultura e lazer construídos não excluem os moradores, que podem permanecer
na Vila contribuindo para formação cultural do espaço. Avaliamos que a cultura pode
ser mais do que entretenimento, pode contribuir para história do local, para o
fortalecimento da comunidade e o desenvolvimento dos que lá vivem.
O Projeto de Recuperação da Vila Itororó apresentado pela Prefeitura, já
anteriormente citado, não observa que a sobrevivência da Vila Itororó se deve à
presença resistente dos moradores, que se mantiveram no local como mantenedores
e preservadores do patrimônio histórico da Vila. Deslocar os moradores e moradoras
da Vila, portanto, seria afastá-los do próprio núcleo cultural que eles próprios
construíram. É não permitir o reencontro dessa população com a sua própria história.
Isso seria o mesmo que contar a história do Bairro da Bela Vista sem mencionar seus
próprios personagens.
31
Disponível em: http://www.mosaicomakenzie.org/index.html, acesso em 10 Out. 2008.
32
Projeto habitacional para a Vila Itororó 2008. Mosaico/Vida Associada – FAU Mackenzie, p. 3.
198
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Dentro desse contexto, surge a questão: seria possível preservar moradia,
patrimônio histórico e cultura? Utilizamos o caso da Vila Operária Maria Zélia, situada
no bairro de Belenzinho, Zona Leste de São Paulo, para demonstrar a possibilidade
de uma relação integrada e sustentável desses três vértices presentes tanto na discussão
da Vila Itororó, como na Vila Maria Zélia.
A Vila Operária Maria Zélia, construída em 1917, abriga aproximadamente
180 casas e 600 famílias que formam a Sociedade Amigos da Vila Maria Zélia, fundada
no dia 10 de julho de 1981. A Vila Maria Zélia foi tombada pelo CONDEPHAAT33
em 1992, e os próprios moradores estão organizados para promover a revitalização
dos prédios históricos, que pertencem ao INSS34. A Sociedade dos Amigos busca
efetivar melhorias nos prédios e armazéns, que se encontram em condições precárias.
Na Vila Maria Zélia, a peça A residência do Grupo XIX35 de teatro trouxe uma forma
de revitalização que procura trabalhar com os espaços, atendendo às necessidades
dos moradores.
O projeto do Grupo XIX foi contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro para
a cidade de São Paulo, em janeiro de 2004, momento em que teve início o “trabalho
sócio-cultural de residência” nessa vila. Agora, o grupo retorna à Maria Zélia com o
projeto Casa Aberta, motivado por outra Lei de Fomento, dando continuidade para a
residência artística. O projeto do grupo procura trabalhar sem hierarquias, em um
processo colaborativo de criação, em que dramaturgo, diretor de arte, diretor, atores
e atrizes e o próprio público participam da construção artística da peça. Ressalta-se a
iniciativa do grupo teatral de afirmar o vínculo do teatro com a cidade, a aproximação
e a apropriação da arquitetura e dos valores sociais e antropológicos guardados nas
edificações e nos patrimônios históricos.
Na construção das peças, o grupo realiza uma pesquisa temática pautada na
história do Brasil em conjunto com um processo investigativo, que busca a construção
da realidade social de determinada época a partir da história oral, de registros em
periódicos e outros meios que aproximem do cotidiano a ser interpretado. Nesse
sentido, a residência artística, buscando um contato com a antropologia do local,
pode ser um meio de (re)viver a história por parte do moradores, que podem contribuir
com relatos, documentos históricos, fotografias e cartas.
Por outro lado, o projeto do Grupo XIX, incentiva a integração dos habitantes
de outras áreas de São Paulo com a história da Vila Maria Zélia, não com um olhar de
33
Processo: 24268/85 – Tomb.: Res. SC 43 de 18/12/92 – D.O.: 19/12/92. Livro do Tombo Histórico: Inscrição nº
305, p. 77, 28/5/1983.
34
Disponível em: http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html, acesso em 5 Out. 2008.
35
O Grupo XIX teve início no Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
199
um museu estático, mais em uma perspectiva que possibilita interação do teatro, dos
prédios históricos e o cotidiano dinâmico dos moradores que lá residem. É a
possibilidade de somar a cultura preocupada com sua função social e aspectos vivos
da formação histórica da cidade.
Embora não se trate especificamente de moradia, a manutenção de valores
antropológicos e de uma cultura dinâmica também é exemplificada por um terreiro
de candomblé de nação Ketu, localizado na Vila Facchini, em São Paulo. O Axé Ilê
Obá36 também foi tombado pelo CONDEPHAAT. Com a morte do proprietário do
espaço, esse seria dividido entre os herdeiros, mas a sobrevivência do terreiro dependia
das instalações já construídas e assim, o tombamento foi a saída vislumbrada. Muitos
especialistas hesitaram em considerar o Axé Ilê Obá como patrimônio cultural,
alegando “não ter tradição”. O argumento, porém, foi superado, uma vez que o
entendimento do conceito de patrimônio cultural deixou de se orientar por uma “cultura
em conserva” de uma tradição estática, fria e repetitiva.
Os dois exemplos mostram a preservação de uma cultura em constante
construção e não desmembrada do círculo social em que vive, é nesse sentido que
pensamos a Vila Itororó. Para esta, que já foi palco de uma Festa Junina em 200737
organizada pelos moradores, desejamos que seja palco de outras intervenções culturais
realizada pela comunidade e que possa desfrutar de outras produções de cultura que
sejam construídas na Vila.
7. CONCLUSÃO
Buscamos, com esse artigo, contribuir com o debate sobre projetos de
desapropriação em áreas tombadas, sempre tendo como ponto de partida o papel dos
moradores enquanto sujeitos, que, organizados, conseguem mostrar a possibilidade
de convivência da moradia e da cultura.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2000.
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2007.
COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004.
36
Disponível em: http://www.aguaforte.com/antropologia/osurbanitas/revista/tombasp.htm, acesso em 11 Out. 2008.
37
Disponível em: http://vilaitororo.blosspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html, acesso em
05 out. 2008
200
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
CORTÁZAR, Júlio. Cuentos Completos 1. Madri: Alfaguara, 2007.
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007.
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2006.
______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004.
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http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html
http://vilaitororo.blogspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html
A Experiência do SAJU-USP na Vila Itororó:
Assistência e Assessoria Podem Caminhar
Juntas?
CAIO SANTIAGO, PAULO L. MARTINS,
RAFAELA OLIVEIRA E VIVIAN BARBOUR1
Graduandos em Direito.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Marcos Teóricos; 3. Experiências Brasileiras – A
formação das AJUPs e da Renaju; 4. O Modelo de Atuação do SAJU-USP na
Vila Itororó; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende promover uma releitura dos conceitos de Assistência
e Assessoria no atual contexto de luta pelo direito à moradia, para então responder à
pergunta principal deste trabalho: de que forma deve se dar a intervenção das
Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) nos conflitos fundiários
urbanos a fim de contribuir para a garantia do direito à moradia de comunidades de
baixa renda?
Para isso, iniciaremos com uma abordagem dos referenciais teóricos dos
serviços legais inovadores. Posteriormente, enfocaremos as primeiras experiências
destes na década de 1980 e as atuais práticas de assessoria jurídica universitária, a
partir do modelo predominante na Rede Nacional de Assessorias Jurídicas
Universitárias (RENAJU). Por fim, apresentaremos um contraponto a esse modelo,
com base na atuação do SAJU-USP na comunidade da Vila do Itororó, no centro de
São Paulo.
1
Os autores são estudantes de graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membros do
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da USP (SAJU-USP), grupo de extensão sob orientação do Professor
Associado Celso Fernandes Campilongo, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.
202
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
2. MARCOS TEÓRICOS
No período das décadas de 1980 e 1990, no contexto da retomada das
mobilizações populares na América Latina e do processo de redemocratização política,
formaram-se novas correntes críticas na teoria do Direito. Em conjunto com o
Pluralismo Jurídico e com o Direito Alternativo, surgem novas práticas jurídicas em
diversos países da região, ligadas ao pensamento marxista, que visavam romper com
a tradicional lógica formalista e tecnicista do direito.
Diretamente ligadas às lutas sociais do período, essas novas práticas de atuação
jurídica colocaram-se ao lado dos nascentes movimentos sociais, contribuindo para
sua organização e prestando apoio jurídico. Nesse sentido, traziam a luta dos
movimentos para o mundo jurídico, dentro das possibilidades criadas pelos novos
marcos legislativos da época, conquistados pelas mobilizações populares, como, por
exemplo, a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu garantias para diversos
direitos sociais e previu novos instrumentos processuais para atender às demandas
coletivas.
Essa nova linha de atuação teve seu primeiro estudo empírico específico com
Fernando Rojas2, em 1988. A partir de uma análise em quatro países da América
Latina (Chile, Colômbia, Equador e Peru), o autor buscou características identificadoras do que chamou de “serviços legais alternativos”, quais sejam:
a) Ideia de mudança social a partir de uma visão de igualdade que transcende
seu aspecto formal e de um valor de justiça baseado na solidariedade;
b) Crítica e combate ao sistema capitalista, com a ideia de que os serviços
legais alternativos atuam como metas transitórias na concretização de avanços sociais; e
c) Ações de organização comunitária e de conquista do poder político pelas
minorias excluídas.
Esses serviços pesquisados, segundo Rojas, não só se formaram fora do âmbito
do Estado, na forma de organizações não-governamentais, como também eram, muitas
vezes, críticos a este. Sua atuação se dava justamente aliada aos novos movimentos
sociais em expansão, ligados aos grupos sociais oprimidos, como trabalhadores rurais,
mulheres e índios, assim como à população pobre das cidades. Além disso, Rojas
observou que, por serem oriundos de escolas de referência social, os militantes desses
serviços possuíam alta formação técnica.
2
ROJAS, Fernando. Comparación entre las tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa y América
Latina (primera e segunda parte) – El otro decrecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988.
3
Para um estudo sobre a obra de Rojas, conferir LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no
Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 48-59.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
203
No Brasil, o principal marco teórico sobre esses novos serviços legais é o
estudo realizado por Celso Fernandes Campilongo4, no início da década de 1990.
Nele, o autor elaborou, a partir da literatura então existente sobre o tema, como o
trabalho de Rojas, uma tipologia ideal da dicotomia entre os serviços legais
tradicionais, de um lado, e os serviços legais inovadores, de outro. Em um segundo
momento, o autor realizou, utilizando como instrumento de análise essa construção
teórica, uma pesquisa empírica sobre os serviços legais em São Bernardo do Campo.
O trabalho apresentou como critérios basilares dessa dicotomia, o interesse
tutelado, o vínculo ético, a natureza do serviço, a relação cliente/advogado, o
conhecimento e o acesso à justiça. Nessa linha, os serviços legais inovadores tratariam
de demandas coletivas, fundados numa macroética com vistas à conscientização do
grupo atendido sobre seus direitos e à necessária organização para a concretização
destes. Esse modelo concebe o acesso à justiça para além do Poder Judiciário, numa
relação horizontal entre os clientes e advogados, com base na desmistificação do
conhecimento jurídico.
Os serviços legais inovadores, no Brasil, são comumente denominados de
assessorias jurídicas, enquanto que os serviços tradicionais, de assistência. Embora
não seja nossa intenção promover uma discussão conceituai, uma análise mais apurada
das ideias deduzidas por Campilongo revela que houve uma assimilação equivocada
dos conceitos forjados em seu trabalho – a contraposição entre tradicional e inovador
não corresponde necessariamente ao par assistência-assessoria5. Conforme veremos,
essa diferenciação entre assessoria e assistência marcou profundamente o surgimento
de grupos universitários e da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária.
3. EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS – A FORMAÇÃO DAS AJUPS E DA
RENAJU
As experiências brasileiras dos serviços legais inovadores, conforme seu campo
de atuação, podem ser distinguidas em Advocacia Militante e Assessoria Universitária,
segundo Vladimir de Carvalho Luz6 Para o autor, a primeira consiste na atuação de
entidades não-governamentais, sem vínculos acadêmicos e universitários, enquanto
4
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São Bernardo
do Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 15-52.
5
Campilongo baseou sua tipologia de serviços legais em diferentes modelos de assistência jurídica, diferenciandoos entre tradicionais e inovadores, não em assistência e assessoria. De fato, todos os modelos analisados pelo
autor realizavam trabalho de assistência jurídica, diferenciando-se quanto ao modelo utilizado.
6
LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e
Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 124-154.
204
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
a segunda é realizada por estudantes de direito, em ambiente de universidades, com
uma organização autônoma em relação à administração destas.
Enquanto paradigmas de grupos de Assessoria Universitária, objeto deste artigo,
cabe destacar os Serviços de Apoio Jurídico (SAJU’s) das Universidades Federais da
Bahia e do Rio Grande do Sul.
O autor afirma que, apesar de formadas em épocas e ambientes distintos, tais
grupos estudantis possuíam as seguintes características comuns:
a) Diferenciação entre os conceitos e as práticas de assistência jurídica,
entendida como apoio jurídico individual, e de assessoria jurídica, entendida como
apoio jurídico coletivo;
b) Autonomia decisória em relação à administração das universidades, sendo
formadas e geridas por iniciativa exclusiva dos estudantes;
c) Desenvolvimento de projetos de extensão e/ou pesquisa, em atividades
permanentes ou sazonais;
d) Ampliação das práticas jurídicas para além do âmbito forense; e
e) Interação institucional com a universidade a partir da ocupação de seus
espaços públicos, ao tempo que promovem atividades de caráter social.
O SAJU-UFRGS foi fundado em 1950, sendo que, até a década de 1980, a
entidade seguiu um modelo de atuação jurídica marcadamente assistencialista,
limitando-se ao aspecto processual das demandas, em geral de caráter individual,
dentro do paradigma de serviço legal tradicional. Posteriormente, com a formação de
grupos temáticos sobre regularização fundiária e gênero, aproximou-se de um modelo
mais inovador, passando a atender também demandas de caráter coletivo de grupos
sociais oprimidos. Em 1990 e 91, a entidade consolidou-se enquanto prestadora de
assessoria jurídica na região metropolitana de Porto Alegre.
Apesar de enfrentar algumas dificuldades em relação a conflitos internos, à
continuidade dos programas e à formação teórica de seus membros, o SAJU-UFRGS
realizou importantes atividades de impacto na sua região, como o ajuizamento de
ações coletivas, promoção de projetos de pesquisa e elaboração de cartilhas, jornais
e revistas próprias. Estas constituem importante material de pesquisa sobre o grupo,
essencial para o registro de suas atividades e de seu pioneirismo enquanto assessoria
jurídica.
Em semelhança à entidade gaúcha, o SAJU/UFBA iniciou, na década de 1960,
um modelo de atuação jurídica essencialmente assistencialista, sendo uma espécie de
laboratório de prática forense do curso de Direito. Apenas em 1996, o grupo, a partir
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
205
de um contato com o modelo de assessoria jurídica, passou também a atender demandas
coletivas, dentro de um padrão mais próximo da assessoria.
Na década de noventa, surge a Rede Nacional de Assessorias Jurídicas
Universitárias (Renaju), como forma de aglutinar os projetos que se difundiram entre
as faculdades de direito de todo o país. Hoje, a Rede conta com vinte e três projetos
de todas as regiões, sendo mais presente no Sul e no Nordeste brasileiros. Entre esses
projetos, são poucos os que compreendem a assessoria como uma prática que envolva
a atuação judicial. Com poucas exceções, a Rede tem adotado o entendimento de que
a assessoria jurídica universitária prescinde da prática judicial (assistência).
Nesse sentido, a maioria dos projetos ligados à rede possuem práticas de educação popular que exploram interfaces do direito com outras áreas do conhecimento,
como a pedagogia, a comunicação e a economia, mas abrem mão das vias judiciais como
forma possível de solução de conflitos. Essa ideia extrajudicial de atuação tem como
fundamentação a construção de um novo direito, mais próximo dos anseios e necessidades das classes oprimidas, considerando o direito como um ideal ético de justiça.
4. O MODELO DE ATUAÇÃO DO SAJU-USP NA VILA ITORORÓ
A fim de contribuir com a presente discussão, apresentaremos, a seguir, o
modelo de atuação que o SAJU-USP desenvolveu na comunidade da Vila Itororó.
Não queremos com isso propor um modelo abstraio e aplicável em qualquer localidade,
sob quaisquer condições, mas demonstrar a possibilidade de conciliação entre dois
modelos de atuação jurídica supostamente excludentes, assistência e assessoria.
A concepção que o SAJU-USP desenvolveu sobre o que seria o modelo ideal
de uma assessoria jurídica universitária sempre contemplou, em primeiro plano, o
trabalho de educação jurídica popular, muitas vezes confundido, aliás, com a própria
ideia de assessoria. De fato, nunca fomos contrários a uma prática que envolvesse a
assistência jurídica, até porque um de nossos mais antigos Grupos de Trabalho, desde
sua fundação, sempre atuou com a judicialização de conflitos fundiários urbanos7.
Por outro lado, fortemente influenciados pelos escritos de Paulo Freire, acreditávamos
na possibilidade de uma atuação extensionista que se restringisse à área da educação
e da comunicação.
Nossa inserção na comunidade da Vila Itororó, no entanto, nos fez rever alguns
conceitos já cristalizados pela prática. Tivemos um primeiro contato com o caso por
meio das reuniões do Fórum Centro Vivo, articulação entre movimentos sociais,
7
O atual Grupo de Regularização Fundiária da Paraisópolis constituiu-se dentro do SAJU-USP em 2003, a partir
de um convênio com a Procuradoria Geral do Município de São Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto, com
o objetivo de promover a regularização fundiária em uma quadra da favela de Paraisópolis.
206
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
entidades da sociedade civil e grupos universitários que possuem algum tipo de atuação
no centro da cidade de São Paulo.
A comunidade, localizada no centro da cidade de São Paulo, sempre chamou a
atenção do Poder Público por sua composição arquitetônica. Dessa peculiaridade
resultou, aliás, o tombamento do conjunto pelos órgãos de defesa do patrimônio
histórico e cultural do município e do estado de São Paulo, Conpresp e Condephaat,
respectivamente. A Prefeitura de São Paulo possui projetos antigos de “revitalização”
da área, que incluem a transformação da Vila em um pólo cultural dotado de
restaurantes, teatros, bares e livrarias8. Em 2006, a Vila foi declarada como área de
utilidade pública, sendo, atualmente, objeto de ação de desapropriação.
Desde este primeiro momento, portanto, ficou claro para nós que a judicialização
do conflito por que passava a Vila era a possibilidade mais plausível para solucionar
a situação de instabilidade jurídica que se instaurara na comunidade desde 2006.
O primeiro contato que tivemos com a comunidade, intermediado pelo Centro
Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que cuidava do caso até então, foi marcado por
um forte apelo assistencialista, em que assumíamos um papel passivo de estagiários
de direito. Apesar de insatisfeitos com nossa atuação, nos submetemos temporariamente a ela por considerarmos importante preparar, em pouco tempo, a petição inicial do processo de usucapião que buscaria defender os interesses dos moradores.
Como a comunidade não possuía histórico anterior de mobilizações, os
primeiros meses de trabalho foram marcados por dificuldades de comunicação e pelos
baixos quóruns das reuniões. Além disso, os requisitos formais de instrução da peça
inicial comprometiam quase que a totalidade do tempo de nossos encontros com a
coleta de documentos e conversas individuais sobre a situação de cada morador. Tal
processo, apesar de burocrático, possibilitou um contato mais próximo entre nós,
grupo de assessoria jurídica, e a comunidade, atraindo a atenção de moradores que,
inicialmente, se demonstravam apáticos e desinteressados.
Ajuizada no início de 2008, a Ação de Usucapião Especial Urbana em litisconsórcio ativo facultativo possui fundamentos na Lei 10.257/2001, o Estatuto da
Cidade. Inicialmente, aderiram à ação quarenta das setenta famílias que ocupam os
imóveis da Vila Itororó. Além desta ação, também assessoramos a comunidade na
Ação de Desapropriação movida pela Fazenda Pública do Estado contra o proprietário
de direito da Vila Itororó – a Fundação Leonor de Barros Camargo.
Com a situação mais tranquila, nos organizamos para iniciar um projeto de
educação jurídica popular que complementaria o trabalho de assistência jurídica como
8
Conferir TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. São
Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
207
fator politizante de nossa atuação. Durante um ano, aperfeiçoamos nosso modelo,
fortemente influenciados pelos interesses e ansiedades da comunidade. Desde já, é
oportuno ressaltar que, em todo o processo de educação popular que desenvolvemos
na Vila Itororó, o pano de fundo fundamental que possibilitou a aglutinação da
comunidade em torno de uma pauta de interesse comum tem sido, certamente, a
garantia do Direito à Moradia, cumprindo papel fundamental a judicialização da
referida Ação de Usucapião.
Detalhamos, a seguir, as etapas de desenvolvimento do nosso projeto de
educação popular, levantando os principais pontos de convergência entre os modelos
de serviço legal discutidos neste artigo.
– A leitura da realidade
A formulação de um projeto de educação que contemple as questões que
permeiam o dia-a-dia da comunidade deve, por óbvio, ser capaz de compreender
quais são tais questões. Assim, a primeira e fundamental etapa é o levantamento
temático. Inicialmente, as questões levantadas pela comunidade parecem desconexas
e pouco inovadoras. De fato, esta fase inicia-se quase que espontaneamente nos
primeiros contatos, individuais ou coletivos, que se fazem com a comunidade.
Questões muito frequentemente levantadas são aquelas relacionadas com a
convivência entre vizinhos – lixo, barulho, cachorros etc. Desacostumados com uma
dinâmica participativa e horizontal, não é raro que os moradores levantem tais questões
por meio de discussões pouco dialógicas, na forma de reclamações, numa “lavação
de roupa suja” coletiva.
Havendo vários métodos viáveis para o levantamento temático (entrevistas
individuais, questionários etc.), acreditamos que o mais eficaz é sua realização em
um encontro com todos os moradores interessados. Este método, ao possibilitar aos
moradores que enxerguem no outro os mesmos problemas que os afligem
pessoalmente, inicia um processo de construção ou fortalecimento de uma identidade
comunitária.
Nessa etapa, a clareza na definição do pano de fundo sobre o qual se erguerá o
projeto de educação é fundamental para não dispersar o espaço coletivo em construção
e para apontar focos de discussão. Assim, a garantia do Direito à Moradia por meio
da judicialização do conflito fundiário em que se insere a comunidade pode representar
um interessante ponto de partida para a aglutinação dos moradores em torno de uma
pauta comum.
– A problematização da realidade
Depois de levantados os temas pela comunidade, segue-se a etapa de problematização. O principal objetivo desta fase é tentar identificar limites, possibilidades,
208
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
insuficiências e até ingenuidades inerentes às questões sugeridas para discussão, possibilitando novas abordagens para temas recorrentes. Além disso, deve-se atentar
para a aglutinação de temas que possuam aspectos comuns.
Nesta fase, cada um dos temas levantados pelos moradores será debatido
profundamente pelo grupo de assessoria jurídica antes de levado novamente para a
comunidade, com uma nova roupagem. Deve-se atentar para o estudo das
possibilidades, judiciais ou extrajudiciais, de solução da questão em debate. Cada
tema será, em seguida, debatido pelos moradores que, depois de o problematizarem,
apontarão a solução mais adequada para o problema.
– A modificação da realidade
É importante que haja uma ação prática para cada tema debatido. Esse apego
à prática é de grande importância para que a comunidade sinta, em curto prazo, os
reflexos de sua própria organização e trabalho conjunto. Isso porque, apesar da
importante simbologia da ação judicializada, a demora típica da Justiça tende a pesar
negativamente, provocando desânimo na comunidade e uma consequente
desagregação do espaço coletivo construído.
Assim, depois de cada discussão, são debatidas propostas de intervenção na
realidade. Nessa fase, são ideias recorrentes, por exemplo, a organização de mutirões
(limpeza da comunidade, reformas pontuais em espaços comuns etc.), ou a busca de
instituições do direito formal para indicar alternativas para o problema (orientações
jurídicas, fundação de associação de moradores etc.).
Também aqui é de grande importância uma composição entre a educação e a
assistência jurídica. Da comunidade, podem surgir demandas de intervenção que
passem necessariamente pela judicialização de conflitos internos, ou pelo acionamento
de mecanismos administrativos do Poder Executivo em favor da comunidade.
5. CONCLUSÃO
Como procuramos demonstrar, o apelo jurídico da assistência (instrumentos
processuais) tem muito a contribuir para a construção de um espaço coletivo e,
consequentemente, para criar ou fortalecer uma identidade comunitária. Os anseios
da comunidade por uma segurança formal que garantirá o respeito aos seus direitos
são consolidados na judicialização do conflito fundiário que a aflige. Assim, a
representação simbólica do processo judicial é capaz de aglutinar os moradores em
torno de uma pauta comum, neste caso, a garantia do Direito à Moradia.
Apesar do disseminado sentimento de descrédito direcionado ao Sistema de
Justiça Brasileiro, a aura de formalidade e de poder que reveste o Judiciário atrai
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
209
determinantemente a atenção dos moradores quando são confrontados com conflitos
frente aos quais se sentem impotentes. Ao entenderem que os problemas que os aflige
pessoalmente são comuns a todo um universo de pessoas que constituem a comunidade
em que se inserem, os moradores tendem a buscar alternativas coletivas para solução
de tais problemas. A possibilidade de judicialização de uma ação de natureza coletiva
contribui, nesse sentido, para a aglutinação comunitária.
Esta aglutinação é fundamental para dar foco à atuação dos moradores na defesa
de seus direitos. A partir dela, originada de um apelo supostamente assistencialista, é
completamente viável que se estabeleça um processo de politização e emancipação.
Deve-se, por outro lado, cuidar para que a judicialização do conflito não pareça a
solução para os conflitos que se apresentam na comunidade, contribuindo para
dissolver o espaço coletivo ainda em construção, mas que, pelo contrário, represente
parte da possível solução.
Além disso, se a judicialização do conflito favorece a organização e mobilização
dos moradores, esta contribui, num movimento inverso, para o melhor andamento
daquela. Ou seja, a construção de um espaço que reúna e articule os sujeitos envolvidos
no processo, de caráter coletivo, possibilita a melhor evolução do mesmo, em virtude
de suas numerosas e complexas exigências em seu decorrer, como a documentação
de todos os moradores, descrição histórica do local, desenho da divisão e arranjo das
casas, entre outras.
Assim, a assistência jurídica possui um papel fundamental na intervenção da
Assessoria Jurídica Universitária Popular nos conflitos fundiários urbanos atuais, a
fim de garantir o direito à moradia da população de baixa renda. Isso porque não só
atua judicialmente dentro das possibilidades criadas pelos novos marcos legislativos,
como também contribui para avanços na organização dos moradores e para sua
identidade comunitária.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São
Bernardo do Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.
LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica
e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
ROJAS, Fernando. Comparación entre Ias tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa y
América Latina (primera e segunda parte) – El otro derecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988.
TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.
Pluralismo Jurídico e o Direito à Moradia em
Fortaleza
FRANCISCO FILOMENO
DE
ABREU NETO
Mestrando em Desenvolvimento Urbano na
Universidade Federal de Pernambuco.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho faz parte de uma dissertação apresentada no Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco.
A pesquisa abordou alguns aspectos da relação entre o pluralismo jurídico e a
informalidade urbana.
Neste trabalho entende-se por informalidade urbana o fenômeno resultante do
desenvolvimento desordenado das cidades, regrado pelo mercado imobiliário
excludente, provocando o surgimento de assentamentos informais como favelas,
loteamentos irregulares e clandestinos, cortiços e conjuntos habitacionais irregulares.
O pluralismo jurídico é, por sua vez, concebido como a existência de diferentes formas
de Direito, de um Direito que não se origina do Estado, mas sim de necessidades
humanas não atendidas, não providas, pela máquina estatal.
Buscou-se neste trabalho abordar o direito à moradia dentro de diferentes
escalas, desde a escala internacional até a local, considerando na escala local
assentamentos urbanos que vivem atualmente tanto processos de regularização
fundiária como de conflitos fundiários. Faz-se uma análise do arcabouço institucional
relacionado ao direito à moradia e a práxis local dentro dos assentamentos irregulares.
1. O PLURALISMO JURÍDICO E A CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DO
DIREITO
Ao se falar de pluralismo jurídico temos que tratar do Estado como produto
das relações sociais. Os diferentes segmentos da sociedade vivem se relacionando,
muitas vezes em relações de opressão de uns sobre os outros. As diferentes relações
sociais, as diferentes relações de poder determinam a configuração das instituições
estatais.
212
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Como o Estado é produto de uma relação, ele não pode ser visto simplesmente
como instrumento de uma classe, como marionetes da classe burguesa, pois nem
mesmo existe uma unidade na classe burguesa. O Estado, sua política, sua forma,
suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe dominante não de modo
mecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressão
condensada da luta de classes em desenvolvimento (POULANTZAS, 1980).
Os diferentes atores da sociedade convivem dentro do Estado em contradição,
em relação de força. Muitas vezes cada estrutura, cada camada do Estado, é ocupada
por uma classe ou fração de classe. No entanto, da mesma maneira que o Estado não
é o simples instrumento de uma classe, ele também não é simplesmente um produto
desconexo das relações. O Estado tem uma unidade que se traduz por sua política
global e maciça em favor da classe ou fração hegemónica.
Assim como o Estado, o Direito vai incorporar as lutas de classes. Como afirma
Arruda Jr. (1992, p. 96), “o Direito é um fenômeno histórico, que expressa o avanço
ou não de uma luta política entre classes sociais. Assim como o Estado expressa a
condensação de forças sociais (mesmo que assimetricamente), também o direito
acompanha o desenvolvimento de relações concretas (das relações de produção, das
forças produtivas), embora reconheçamos que o sistema jurídico, enquanto arcabouço
técnico, não se subordina, de forma imediata e mecânica, aos movimentos de infraestrutura, não estando, contudo, imune ao mesmo.”
Acrescentando, Wolkmer (2003, p. 155) coloca que “toda estrutura jurídica
reproduz o jogo de forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais
de uma dada organização social”. Como os autores colocam, o Direito é uma instituição
que está sendo moldada pelas lutas de classes, pelas relações de forças. Dentro do
Estado, vários segmentos lutam pelos seus direitos e influenciam nas instituições
formadas, cada segmento influencia na lei criada, assim, o direito estatal vai ser fruto
das relações das forças capitalistas, incorporando as reivindicações que tiverem mais
força para se firmar. O Direito Estatal não é neutro como alguns juristas insistem em
afirmar. O Direito é um reflexo das relações de força, as leis tendem a cristalizar
concepções e ideologias.
As necessidades humanas são uns dos fatores que levam as pessoas a se
organizar e reivindicar por direitos. Muitas vezes a organização popular em torno das
necessidades humanas não consegue força suficiente para se transformar em direitos
e, mesmo se transformado em direitos, estes não são efetivados. O não atendimento
das necessidades humanas provoca o surgimento de formas paralelas de direito, surge
o pluralismo jurídico.
Joaquim Falcão Neto (1984, p. 80-81) coloca que existem duas concepções de
direito: uma monista, para quem só existe o direito positivo estatal, e outra dualista,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
213
que admite a existência de vários direitos, “quer quando se comparam sociedades
diversas, quer mesmo no âmbito interno de uma única sociedade”.
O cerne do pluralismo jurídico está na negação do Estado como centro único
do poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do direito. O Estado incorpora
em suas instituições vários direitos oriundos de vários segmentos da sociedade, porém,
esta incorporação, oriunda das relações de força, limitam-se ao mínimo necessário
para que os conflitos sejam dispersados. O Direito, ou a necessidade, não incorporado
no âmbito das correlações de força, torna-se um Direito marginal, alheio ao Estado e
por ele não reconhecido. Na verdade, como Wolkmer coloca, temos no pluralismo
jurídico uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que estabelece a
supremacia de elemento ético-político-sociológicos sobre critérios tecnoformais
positivistas.
Daniela Madruga (2004, p. 186) coloca o Pluralismo Jurídico como “fruto da
coexistência de várias ordens jurídicas no mesmo espaço geopolítico e surgiu da
necessidade de uma abordagem crítica, inovadora, em relação a um direito que não
atende mais, como deveria, a uma tão complexa demanda social, é um novo referencial
teórico que busca, através de práticas plurais, atender às necessidades sociais”.
Wolkmer (2001) na mesma obra designa pluralismo jurídico como a
multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político,
integrados por conflitos e consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo razão de ser
nas necessidades existenciais, materiais e culturais.
Na perspectiva urbana temos a necessidade de moradia não atendida que leva
a população a buscar outras formas de moradia. Os assentamentos irregulares surgem
como uma forma plúrima de direito que aos poucos está sendo admitida no direito
estatal.
Ao debate do pluralismo jurídico, Boaventura de Sousa Santos (2005) acresce
o uso da cartografia como ferramenta de análise, definindo um paralelo com a geografia
e estabelecendo uma relação entre a cartografia e o direito. O autor coloca que os
mapas são representações imperfeitas da realidade. Estas distorções da realidade
trazidas pelos mapas são controladas por aquele que quer representar o espaço, o
autor disciplina que há uma similaridade desta técnica com a do direito, quando este
representa a realidade. Segundo ele “as relações das diferentes juridicidades com a
realidade social são muito semelhantes às que existem entre os mapas e a realidade
espacial” (SANTOS, 2005, p. 199). A este procedimento o autor denominou
‘Cartografia Simbólica do Direito’.
Dentro da Cartografia Simbólica do Direito é trabalhada a questão da escala. A
escala é o principal instrumento da cartografia. Seria a “relação entre a distância no
214
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
mapa e a correspondente distância no terreno”. Temos as grandes escalas, que
representam um espaço menor, e as pequenas escalas, que representam um espaço
maior. A escolha da escala é relacionada com o fenômeno que se quer retratar ou
potencializar.
Na grande escala identificamos a representação como característica mais forte,
sendo “rica em detalhes, descreve pormenorizada e vivamente os comportamentos e
atitudes, contextualiza-os no meio envolvente e sensível às distinções e relações
complexas entre familiar e estranho, superior e inferior, justo e injusto”. A pequena
escala privilegia a orientação, ela é “pobre em detalhes e reduz os comportamentos e
as atitudes a tipos gerais e abstratos de ação”. (SANTOS, 2005, p. 210)
As diferenças entre pequena e grande escala são claras em duas pesquisas
realizadas pelo autor: “Quando, em 1970, estudei o direito interno e não oficial das
favelas do Rio de Janeiro, tive ocasião de observar que este direito local, um direito
de grande escala, representava adequadamente a realidade sócio-jurídica da
marginalidade urbana e contribuía significativamente para manter o status quo das
posições dos habitantes das favelas enquanto moradores precários de barracas e casas
em terrenos invadidos (SANTOS, 1977). Quando, dez anos mais tarde, estudei as
lutas sociais e jurídicas dos moradores das favelas do Recife com o objetivo de
legalizarem a ocupação das terras por meio de expropriação, compra ou arrendamento,
verifiquei que a forma de direito a que recorriam privilegiadamente era o direito
oficial, estatal, um direito de menor escala, que só muito seletiva e abstratamente
representava a posição sócio-jurídica dos moradores, mas definia muito claramente a
relatividade das suas posições face ao Estado e aos proprietários fundiários urbanos,
um direito que, nas condições sociais e políticas da época, oferecia o atalho mais
curto para o movimento de uma situação precária para uma posição segura (SANTOS,
1982b; 1983)” (SANTOS, 2005, p. 210).
O presente estudo se utiliza da cartografia simbólica do direito de Boaventura
para análise da relação entre o nosso ordenamento jurídico brasileiro e a informalidade
urbana, traçando a existência do pluralismo jurídico. Nos próximos itens serão
trabalhados quatro espaços jurídicos, quatro escalas. Serão utilizadas as três escalas
que Boaventura disciplinou (internacional, nacional e local) e se acrescerá uma escala,
a Municipal. No Brasil o pacto federativo e o modo em que se dispõe a legislação
urbana torna imperativo a consideração de um âmbito municipal descolado do
nacional, pois as normas federais poderão ser ou não regulamentadas no municipal,
de acordo com as relações de força em cada Município.
As diferentes escalas têm diferentes direitos que se formam das diferentes
relações sociais entre os diferentes atores. O nível de conscientização de conhecimento
dos diferentes atores vai influenciar nas relações de poder e nas institucionalidades
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
215
formadas. Notamos aí o fenômeno do pluralismo jurídico, onde diversas formas de
direito se manifestam nos diferentes espaços jurídicos, nas diferentes escalas.
O direito à moradia vai ter um nível de efetividade diferente em cada escala,
de acordo com as relações de força. O direito à moradia é trazido por diversas
normatizações, mas o atores que as formam não são os atores diretos envolvidos nos
conflitos fundiários oriundos da falta de moradia. A garantia da segurança jurídica da
posse está nas normas internacionais e nas federais, mas a sua efetividade foi contida
ao se delegar ao plano diretor a competência para se traçar a função social da
propriedade, o conflito fundiário é dispersado para o âmbito municipal. No Município
podemos ter um plano diretor que encampe os princípios do Estatuto da Cidade e
realmente operacionalize a função social da propriedade ou somente ter um plano de
fachada que traga os princípios, mas não os aplique. Já no campo social local muitas
vezes nenhuma das legislações dos outros campos irão despontar, sendo ineficazes
diante dos conflitos concretos de propriedade.
2. O DIREITO À MORADIA NAS ESCALAS INTERNACIONAL E NACIONAL
O direito à moradia foi retratado nas diferentes escalas. Neste artigo serão
trabalhados superficialmente às escalas internacional e nacional, amplamente
trabalhadas pela doutrina, e será dada maior atenção às escalas municipal e local.
No âmbito internacional temos várias normas internacionais que retraíam o
direito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu art.
XXV que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, direito a segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora do seu controle.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais detalhou
vários dos direitos trazidos pelo art. XXV da Declaração Universal. Apesar das
convenções e pactos internacionais trazerem o direito à moradia, as normas não
detalhavam os contornos deste direito. Em 1991, o Comitê dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais produziu o Comentário Geral nº 4 sobre o Direito à moradia
adequada, trazido pelo art. 11, do Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. O Comentário Geral traz como elementos do direito à moradia a
segurança jurídica da posse, a habitabilidade, a capacidade de suportar os custos
ligados à moradia, a disponibilidade de infra-estrutura e serviços básicos, a boa
localização e o próprio acesso à moradia, além da adequação cultural desta moradia.
Outro Comentário que merece ser ressaltado é o Comentário Geral nº 7 sobre
o Direito à Moradia Adequada que trata dos despejos forçados. A segurança na posse
216
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
deve ser garantida de maneira a impedir os despejos forçados que desrespeitam vários
direitos humanos. Neste sentido, o Comentário Geral busca trazer a proteção dos
direitos humanos àqueles que estão ameaçados ou foram despejados, explicitando a
necessidade remédios legais para a sua proteção.
Na escala nacional temos o direito à moradia retratado expressamente no art.
6º da Constituição Federal. Além deste dispositivo, vários são os momentos em que
a Constituição traz o direito à moradia, como quando trata da usucapião, do salário
mínimo, das competências, dentre outros.
Apesar de não se tratar diretamente de direito à moradia, as normas jurídicas
nacionais que tratam do planejamento urbano são essenciais no que se refere ao direito
à moradia. A Constituição Federal traz que a propriedade deverá cumprir a sua função
social e o plano diretor como o instrumento básico que irá regular a política urbana,
sendo o plano diretor a lei que irá definir quando a propriedade urbana está ou não
respeitando a função social da propriedade.
A lei federal 10.257/01, o Estatuto da Cidade, traz vários princípios e instrumentos jurídicos que irão auxiliar no planejamento urbano, sendo regulamentados e
aplicados dentro do plano diretor.
Pode-se dizer que tanto a legislação internacional como a nacional avançam
muito no que tange ao direito à moradia e ao desenvolvimento urbano, mas estas
terão sua aplicabilidade condicionada aos planos diretores que serão elaborados nos
diferentes municípios no país.
Quanto aos assentamentos irregulares, temos uma avançada regulamentação
no que tange a situações consolidadas, através da usucapião e concessões, mas temos
uma regulamentação insuficiente no que se refere à assentamentos em conflito
fundiário.
3. ESCALA MUNICIPAL E LOCAL
Quanto à habitação temos disciplinado na Lei Orgânica do Município – LOM
de Fortaleza que a política habitacional do Município deverá priorizar programas
destinados à população de baixa renda e se constituirá primordialmente de urbanização
e regularização fundiária de assentamentos irregulares, sem exclusão dos projetos de
provisão habitacional, atividades contínuas e permanentes a integrar o planejamento
urbano do Município.
Ainda traz a LOM que o Poder Público só construirá conjuntos habitacionais
para abrigar a população carente ocupante de assentamentos irregulares, quando por
questões técnicas ou de estratégia de uso do solo não for possível a urbanização dos
eventos.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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Outra lei municipal que traz normas referentes à moradia é o Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano Ambiental, lei nº 7.061 de 16 de janeiro de 1992,
principalmente no tratamento dos assentamentos espontâneos, regulamentados na
seção de uso e ocupação diferenciados, nos arts. 73, 74 e 75. O artigo 73 considera
assentamentos espontâneos, podendo ser objeto de regularização fundiária, as áreas
ocupadas por população de baixa renda, favela ou assentamentos assemelhados,
destituídos da legitimidade do domínio dos terrenos, cuja forma se dá em alta densidade
e em desacordo com os padrões urbanísticos regularmente instituídos.
Apesar de reconhecer a existência dos assentamentos irregulares em Fortaleza,
não temos a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social ou instrumento similar
que proporcione ações como de flexibilização das normas de uso e ocupação do solo
e proteção das comunidades contra o avanço da “expulsão branca”. Não há também
normas referentes aos conflitos fundiários e o papel do Poder Público.
Passamos à análise da escala local como campo onde incide o pluralismo
jurídico. A primeira questão a colocar é a da existência da própria informalidade
urbana, só em Fortaleza, por exemplo, existem mais de 600 favelas. A informalidade
urbana existe em tamanha proporção que a política pública de regularização fundiária
se mostra tímida frente a quantidade de assentamentos informais.
Mostramos aqui dois tipos de assentamentos, uns que estão sendo atendidos
pela política pública de regularização fundiária, seja pelo Município, seja pela sociedade civil organizada, e aqueles que estão à margem de uma política e estão sendo
palco de conflitos que podem resultar a qualquer momento em um despejo violento.
Temos como assentamentos que não têm conflito fundiário nem ação judicial
os antigos conjuntos habitacionais construídos em regime de mutirão pelo Município
de Fortaleza. Como assentamentos que tem conflito fundiário, mas não tem ação
judicial o Pirambu. Temos como assentamento que não tem conflito fundiário, mas
tem ação judicial a Terra Prometida. E por último, temos como assentamentos que
tem ação judicial e conflito fundiário o Morada da Paz, o Bom Sucesso e o Parque
Santana.
A primeira demonstração de que existe pluralismo jurídico é que, com exceção
do Pirambu, estes assentamentos surgiram depois da Constituição Federal de 1988.
Apesar de termos um grande avanço legal não temos uma imediata incorporação
destas medidas nas diferentes legislações municipais.
Todas estas famílias ocupantes destes imóveis, com exceção dos conjuntos
habitacionais, foram em busca de um imóvel para utilizar para suas moradias, famílias
que necessitavam de uma terra para morar, a grande massa de excluídos que formou
o Pirambu, os moradores da Terra Prometida movidos pela necessidade e pela fé
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
ocupam um terreno vazio, os moradores de rua do centro da cidade procuram abrigo
no prédio abandonado no centro, os moradores do Bom Sucesso, depois de ludibriados
por uma liderança clientelista, ocupam um terreno que seria destinado à moradia, por
fim as pessoas sem teto ocupam terreno não utilizado no Parque Santana.
A necessidade por moradia faz com que as famílias busquem, através de meios
não legais, um espaço na cidade para constituir a suas moradias. Temos sim aqui
pluralismo jurídico, temos o acesso à terra urbana, acesso à moradia, não pelo mercado,
nem por políticas habitacionais, mas através da ocupação urbana organizada.
Mesmo com o avanço da legislação ainda temos este modo de aquisição de
moradia muito presente em Fortaleza, vê-se que mesmo com todo o avanço
institucional não temos ainda um acesso amplo à terra urbanizada por parte da
população de baixa renda.
Quanto aos casos estudados temos a demonstração de alguns casos de, mesmo
com a legislação, não houve o pleno acesso à moradia; e temos outros que mesmo
com a legislação contra os moradores, o acesso a moradia se mostra como uma
possibilidade no futuro.
Temos inicialmente encontrado em alguns casos que, mesmo com o avanço da
legislação, verificamos o impedimento ao acesso à moradia. Temos como primeiro
caso o da Terra Prometida onde temos a usucapião amplamente regulamentada no
âmbito nacional, mas uma discordância doutrinária faz com que o direito não seja
reconhecido pelo judiciário. O Estatuto da Cidade regulamenta que não é possível a
transferência inter vivos no caso da usucapião individual e o Código Civil diz que é
possível. Esta discordância é levantada pelo Ministério Público e faz com que ele se
oponha à usucapião dos moradores da Terra Prometida, negando-lhes o acesso à
segurança na posse e por decorrência à moradia.
Outro caso é a falta de documentação por parte dos ocupantes das terras públicas.
Tanto os beneficiários do Pirambu como os dos Conjuntos Habitacionais não tem os
seus RGs e CPFs o que inviabiliza a emissão de títulos de Concessão de Direito Real
de Uso e inviabiliza a Regularização Fundiária. A falta de uma formalidade que é o
documento, acaba inviabilizando uma outra formalidade que é o título do imóvel no
nome dos respectivos beneficiários.
Outra questão que chama a atenção é a falta de regulamentação das Zonas
Especiais de Interesse Social e a discordância entre as secretarias municipais. Tanto
no caso do Pirambu como no caso dos Conjuntos Habitacionais temos a inviabilidade
do registro dos imóveis devido à irregularidade no parcelamento do solo. E mesmo
que tivesse as ZEIS, ou mesmo que o parcelamento estivesse regulamentar, a falta de
cooperação e estrutura entre a Secretaria de Infra-estrutura e a Fundação de
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR inviabiliza o trâmite
dos imóveis que estão de acordo com a lei de ordenamento do solo urbano.
Mesmo com o reconhecimento do direito à moradia a nível internacional, do
reconhecimento do direito à moradia daqueles que moram em assentamentos informais
a nível nacional, mesmo com a flexibilização das normas para habitação de interesse
social feita pela Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano, mesmo com o Estatuto
da Cidade, as normas municipais não permitem a regularização de ocupações
espontâneas como o Pirambu e de assentamentos produzidos pelo próprio Poder
Público Municipal. Mesmo com todo o avanço legal, as diferentes escalas de direito
tem avanços diferentes quanto à efetividade do direito à moradia, enquanto a escala
local também não tiver este avanço, podemos falar que nestes casos temos formas de
direito paralelas ao direito oficial, temos um pluralismo jurídico.
Com relação a estes três primeiros casos (Pirambu, Conjuntos Habitacionais e
Terra Prometida) faz-se interessante colocar que a necessidade pela segurança jurídica
da posse, de um título jurídico que possa servir de garantia para aqueles moradores,
não foi sempre uma necessidade ou desejo dos moradores destes locais. Por um lado
este interesse veio do Poder Público, tanto como na hora de promover a regularização
fundiária, no caso dos conjuntos habitacionais, ou como ameaça, no caso do Projeto
Costa-oeste para o Pirambu e Terra Prometida. Apesar de termos avanços legais nas
escalas nacional e internacional quanto à moradia e à titularidade jurídica, não podemos
dizer que existia um empoderamento deste discurso no âmbito local. Podemos perceber
aqui um pluralismo jurídico, pois aqueles que promoveram o debate e as lutas a nível
nacional não são os mesmos que lutam a nível local, o nível diferente de consciência
das necessidades faz com que o direito nas diferentes escalas seja diferente, seja
efetivado a nível nacional, e não seja nem percebido como necessidade a nível local.
Quanto aos casos que tem conflito fundiário e ação judicial temos alguns fatores que se tornam comuns nos três casos. A primeira questão é que mesmo não havendo posse por parte dos proprietários em nenhum dos casos a ação judicial, que foi utilizada nos três casos, foi a reintegração de posse. Apesar de o instrumento cabível ser a ação
reinvidicatória, que discute a propriedade, resolveram entrar com uma ação que discute a
posse, mesmo sem ela existir. Sendo, inclusive, um dos argumentos que os ocupantes
usam para se legitimar a questão que os imóveis estavam vazios e sendo usados para o
cometimento de ilícitos e eles pegaram o imóvel e deram uma função social, a moradia.
As ações de reintegração foram impetradas, aproximadamente, na mesma época
e tiveram três fins diferentes: uma foi extinta por se reconhecer que não há posse,
outra foi dada uma liminar de reintegração de posse e até hoje está sendo prorrogada
sem nenhuma solução na Vara Cível e a outra, também, vem sendo adiada, mas foi
para a Vara da Fazenda Pública.
220
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Todos os três casos tiveram como argumento da defesa a questão de que o
conflito fundiário não é meramente uma causa particular, uma causa cível, mas sim
uma questão social, uma questão de falta de moradia. Este argumento passou
desapercebido pelo Juiz do caso Morada da Paz. No Parque Santana, ainda, temos
um mandado de liminar de reintegração de posse em voga, mas o juiz, por motivos
cristãos, não executa este mandado, despacho este que foi criticado em agravo por
não se fundamentar em causas jurídicas, no direito formal.
No caso do Bom Sucesso foi o único em que se percebeu a real conotação
social dos conflitos e da necessidade de uma intervenção mais ampla dos executivos
dos Poderes Públicos para a busca de uma solução. Então, temos que o reconhecimento
da ocupação como necessidade por moradia só se deu em um caso dos três em que
houve conflito e ação judicial, mas mesmo neste caso a ação ainda continua correndo
na 26ª Vara Cível e este argumento não é utilizado para de dar o fim da ação com
julgamento do mérito.
Outro fato que chama a atenção é a da chamada do Poder Público para a solução
dos conflitos em voga. O Juiz que julga o caso do Morada da Paz entende que neste
caso não é pertinente a chamada do Poder Público, por uma questão de formalidade
coloca que o interesse do Poder Público só pode ser averiguado por uma Vara da
Fazenda Pública, sendo que dessa maneira uma ação de reintegração de posse nunca
chegaria à Vara da Fazenda e nunca se teria a intervenção do Poder Público.
No caso do Parque Santana, na esfera cível a HABITAFOR demonstra interesse
na causa, o que faz com que o processo seja enviado para a vara da Fazenda Pública.
A intervenção da HABITAFOR não tem por fim, até aí, solucionar o conflito, mas
sim ganhar tempo, conseguindo a prorrogação por dois anos.
Já no caso do Bom Sucesso, o Juiz entende que o caso deve sim ser alvo da
chamada dos entes públicos que devem fazer parte da solução do problema. Passa-se
aqui a defender a existência de uma vara especial para conflitos fundiários e esta deve
trabalhar conjuntamente com a União, Estado e Município para a solução dos conflitos.
Percebemos que o envolvimento ou não do Poder Público nos conflitos em
questão, também, transparece a percepção de que o conflito fundiário não é uma
questão de simples lide pela propriedade, mas sim uma demanda social que vem da
necessidade humana por moradia.
Quanto às soluções para os conflitos fundiários em questão, podemos notar
que não há uma solução conclusiva para nenhum deles. Na verdade os conflitos até
agora tem sido dispersados através dos anos de discussão judicial, mesmo no caso do
Parque Santana que tem uma liminar de reintegração de posse ativa, não verificamos
medidas efetivas para o seu cumprimento.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
221
No caso do Parque Santana temos a utilização do direito oficial de forma
desvirtuada e de maneira a possibilitar o reconhecimento da moradia de maneira
diferente. No caso do Parque Santana nem se nega o direito à moradia das famílias lá
residentes nem se nega o direito de propriedade dos autores da ação, através de
negociação com a HABITAFOR buscou-se uma outra alternativa que foge ao direito
oficial. O proprietário doará as terras ocupadas como áreas verdes, institucional e
fundo de terras para o poder público de maneira que este faça a regularização fundiária
das terras que serão públicas, as terras restantes ocupadas serão desapropriadas.
No Morada da Paz temos uma decisão extinguindo a ação de reintegração da
posse por motivos técnico-formais, não sendo verificada a posse destes. Com o fim
da ação de reintegração da posse surgem uma ação reinvidicatória e uma ação de
usucapião. Mas a solução do conflito pode vir por uma dispersão deste por meio da
violência. A Prefeitura Municipal de Fortaleza, que no caso do Parque Santana
proporcionou o acesso à moradia, nesse caso o nega, promovendo uma ação
demolitória do prédio que é utilizado para moradia destas famílias. Em resposta a
essa ação da Prefeitura, os próprios moradores estão demolindo e reformando o prédio
em questão para que desapareça o novo argumento utilizado pelos proprietários.
No caso do Bom Sucesso temos uma real dispersão do conflito, pois este
permanece sem solução. O judiciário se pronunciou informalmente que eles não
sairiam de lá, mas a ação ainda corre normalmente, temos aqui um caso em que nem
se nega a propriedade nem se garante o direito à moradia destas famílias.
Temos nos casos encontrado resultados que:
– O direito à moradia é reconhecido e a ocupação urbana como resultado da
necessidade por moradia;
– O direito à propriedade é garantido, não sendo repudiado em nenhum
momento;
– Que o judiciário não decidiu em nenhum momento nem a favor do direito à
propriedade nem a favor do direito à moradia.
Podemos notar que, com relação ao diálogo entre as quatro escalas, não temos
aqui uma real inter-relação entre estas. Temos o direito à moradia amplamente
regulamentado na escala internacional, temos na escala nacional a informalidade
urbana reconhecida e o desenvolvimento urbano regulamentado. Quando chegamos
na escala municipal não vamos ter os direitos das escalas internacional e nacional
suficientemente regulamentados.
Colocamos que o judiciário e a política pública de regularização são os dois
espaços em que as diferentes escalas se tocam. Quanto à primeira, temos que o direito
de propriedade e o direito à moradia são ao mesmo tempo reconhecidos e negados,
222
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
não havendo um pronunciamento definitivo. O Judiciário aceita o direito de
propriedade trazido pelo âmbito nacional, mas ao mesmo tempo legitima a ocupação
urbana, como uma forma de direito a não promover de logo as reintegrações de posse.
Nas políticas de regularização fundiária temos o reconhecimento da legislação
nacional de que o direito à moradia deve ser efetivado e deve ser garantida a segurança
na posse, mas esta esbarra na legislação municipal que não regulamenta as ZEIS e na
questão local da falta de documentação dos pretensos beneficiários da regularização
fundiária.
É claro aqui que temos práticas jurídicas diferentes nos quatro espaços:
internacional, nacional, municipal e local. Que nestas práticas verificamos consensos
(solução no Parque Santana) e conflitos (no caso Morada da Paz), sendo as soluções,
quando existentes, dadas aos casos com base em direitos oficiais (reconhecimento da
propriedade) ou não oficiais (ocupação urbana como modo de acesso à moradia),
mas temos que em todos a razão de ser, a necessidade existencial, material e cultural
por moradia.
Concluímos que mesmo com o avanço da legislação no reconhecimento do
direito à moradia, ainda podemos falar na existência de pluralismo jurídico na
informalidade urbana, originado pela necessidade por moradia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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In: ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Lições de Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica,
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In FALCÃO, Joaquim de Arruda. Conflito de direito de propriedade: invasões urbanas. Rio de Janeiro:
Forense, 1984.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência. São
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Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
______. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.
______. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3. ed. São Paulo: Editora
Alfa-Omega, 2001.
Direito à Moradia: os Planos Diretores da
RMBH Aplicam o Estatuto da Cidade e a
Constituição Federal de 1988?1
NAIANE LOUREIRO
DOS
SANTOS2
Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas.
CIRCLAINE
DA
CRUZ SANTOS FARIA3
Assistente Social.
MARINELLA MACHADO ARAÚJO4
Doutora em Direito.
RESUMO: Esse artigo objetiva (i) discutir se os planos diretores da Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) aplicam os instrumentos de política
urbana, regulados pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade,
Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. E, em caso afirmativo, (i.a) se essa previsão
pode ser considerada legítima segundo os fundamentos da democracia
contestatória de Philip Pettit, a soberania popular como procedimento de Júrgen
Habermas e o modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro, (ii) Objetiva
ainda divulgar os resultados da pesquisa intitulada Direito à moradia:
Mapeamento das políticas públicas e das experiências alternativas de habitação
popular da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), financiada em
2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUC Minas. A partir dos instrumentos
de política urbana que concretizam direito à moradia, essa pesquisa apresenta
1
Este artigo resulta da pesquisa trabalhos realizados pelo Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP)
do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, em parceria com o Observatório de Políticas Urbanas/
PROEX – PUC Minas, ambos integrantes da Rede Nacional Observatório das Metrópoles.
2
Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a Rede
Nacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.
3
Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a Rede
Nacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.
4
Professora do Programa de Pós-graduação em Direito e da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.
Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP). Pesquisadora da Rede Nacional Observatório
das Metrópoles/IPPUR.
224
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
análise crítica da gestão da política habitacional nos 34 municípios que integram
a RMBH. Os resultados apontam os avanços detectados e as tendências das
políticas públicas habitacionais nesses municípios. Considerado direito
fundamental social somente a partir da publicação da Emenda Constitucional n.
26, de 2000, a concretização do direito à moradia ainda permanece um desafio
para o Poder Público municipal. Nesse contexto, a análise enfatiza o processo
democrático participativo de formulação das políticas habitacionais locais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Plano Diretor Participativo,
Democracia Participativa, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
1. A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO,
INSTRUMENTOS DE POLÍTICAS URBANA E PLANO DIRETOR
As políticas públicas são ações que o Estado promove no exercício de sua
função executiva para alcançar os interesses públicos que concretizam os direitos
garantidos pela ordem constitucional. No Brasil, a Constituição de 1988, ao regular a
política de desenvolvimento urbano, determinou tratar-se de competência concorrente
entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios5. Contudo, adotou o
princípio federativo da subsidiariedade6 ao atribuir aos municípios função normativa
principal. Assim, de acordo com o artigo 182 da Constituição de 1988, cabe aos
municípios a elaboração de planos diretores, leis municipais que funcionam como
instrumentos básicos da política de desenvolvimento urbano (§ 1º), pois estabelecem
as diretrizes gerais (i) de ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade e (ii) da garantia do bem-estar dos habitantes da cidade
(caput).
Apesar de assumirem diversos objetivos, diferentes características e formatos
institucionais, as políticas públicas apresentam características gerais. Azevedo (2003)
identifica duas características gerais das políticas públicas: (i) a busca do consenso
em torno do que se pretende fazer e deixar de fazer e (ii) a definição de normas e o
processamento de conflitos. Assim, (i) quanto maior o consenso, melhores condições
de aprovação e implementação das políticas propostas. Por outro lado, (ii) as políticas
públicas, tanto podem estabelecer normas de ação, definidoras de diretrizes e
5
Esse entendimento é resultado da interpretação dos artigos 24 e 30 do texto constitucional e já reconhecido pelo
Supremo Tribunal Federal.
6
Por esse princípio, unidades políticas de uma federação devem atuar de forma subsidiária dentro de suas
competências constitucionais. Assim, as unidades federativas mais próximas do interesse público têm prioridade
na solução dos conflitos de interesse, sendo que, apenas na ausência das condições necessárias para a sua
resolução, atuariam as unidades de competência mais abrangente (União e Estados-membros).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
225
instrumentos para a atuação do Estado, como os instrumentos de política urbana,
previstos no Estatuto da Cidade, quanto normas-sanção para a resolução dos eventuais
conflitos entre os diversos indivíduos e agentes sociais, como a tipificação de condutas
criminais e a incidência de multas administrativas.
Em democracias participativas, como a instituída pela Constituição de 1988,
espera-se que os processos políticos de tomada de decisões governamentais e
participativas possam ser objeto de controle social. O modelo representativo que
caracteriza o Estado liberal tem se mostrado insuficiente para garantir pluralidade de
direitos e respeito a diferenças como sustenta Habermas em a Inclusão do Outro
(2004). A existência de leis cujo descumprimento sujeita seus infratores a alguma
espécie de punição por órgãos institucionalizados pelo Estado, como proposto por
Kelsen em Teoria Geral do Direito e do Estado (1996), tende a tornar-se mais efetiva
e eficiente se a elaboração e a execução das leis que regulam direitos e deveres é
realizada de forma participativa. Habermas (2006) demonstra que a participação
popular reforça a legitimidade do processo legislativo e, assim, torna mais efetiva a
sua aplicação. Esse é o princípio democrático (participativo) que fundamenta a
obrigatoriedade do planejamento e gestão urbanos participativos, que prevê o Estatuto
da Cidade (arts. 39, § 4º, e 43 a 45).
Pettit (2007) sustenta que um Estado de direito, democrático e republicano,
fundado na liberdade, deve conter em seu ordenamento jurídico instrumentos de
controle discursivo7 das funções públicas, ou seja, meios colocados à disposição do
cidadão para que possa questionar as decisões tomadas no âmbito de atuação dos três
Poderes do Estado que visam efetivar o interesse comum8. Não basta que possamos
eleger nossos representantes (dimensão autoral da democracia). É preciso que
possamos controlá-los. Esse modelo democrático Pettit (2007) denomina democracia
contestatória. Dois fatores devem ser considerados para que as pessoas desfrutem da
liberdade como controle discursivo: (i) capacidade raciocinativa para participar, e
(ii) capacidade relacional.
2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARTICIPATIVAS E A PROPOSTA DE
PLANEJAMENTO URBANO DO ESTATUTO DA CIDADE
Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, o debate sobre a questão
democrática no Brasil voltou-se, em grande parte, para a discussão sobre a aplicação
dos instrumentos democráticos instituídos pela Constituição de 1988. Parte dessa
discussão estabeleceu-se entorno dos mecanismos institucionais de participação
7
Pettit indica três formas de contestação ou de controle discursivo: o procedimental, o consultivo e o recursal.
8
Pettit considera interesse comum todo interesse que possa ser sustentado publicamente.
226
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
popular na definição e no controle de políticas públicas por meio de canais de
participação do tipo: conselhos municipais, orçamento participativo, elaboração do
plano diretor participativo, consórcios públicos. Contudo, a cultura política brasileira
e a falta de maturidade democrática do povo brasileiro têm representado obstáculos à
efetividade do planejamento e gestão participativos regulados pelo Estatuto da Cidade.
Legitimidade da ação participativa envolve mais do que a existência de canais
institucionalizados de participação. Envolve também o enfretamento de questões
como: (i) assimetria de conhecimento entre atores sociais, (ii) paridade entre a cultura
política vigente no poder público e a vigente na sociedade civil, (iii) educação,
capacitação e sensibilização de atores sociais.
Nesse sentido, muitos são os desafios decorrentes das práticas que envolvem a
formulação e a execução de políticas públicas participativas. Talvez o maior deles
seja justamente como garantir a apropriação legítima do poder político de participação
tanto pela sociedade civil, como pelo poder público. O enfrentamento dessa questão
implica, por um lado, (i) na autocrítica da forma como o poder público e sociedade
civil concebem o interesse público e, por outro, (ii) no fortalecimento dos canais de
participação por parte da sociedade. A experiência tem demonstrado que os canais de
participação popular, que envolvem planejamento e gestão de políticas públicas, são
na prática ainda pouco deliberativos no que ser refere à participação da sociedade9. O
processo de implantação da democracia participativa é lento. E o exercício da
democracia é um processo contínuo e dialógico, como sustenta Habermas (2006).
Se por um lado, a democracia brasileira avançou na medida em que produziu
leis, como o Estatuto da Cidade, que reconhecem o direito à participação e
institucionalizam canais de interlocução entre sociedade civil e poder público com o
9
O OPUR em parceria com o NUJUP e outras organizações não governamentais promove anualmente o Programa
Interdisciplinar de Políticas Públicas e Gestão Local: curso de capacitação para conselheiros municipais e
agentes sociais, com intuito de instrumentalizar os atores sociais, fornecendo um conjunto de conceitos, teorias,
métodos e técnicas que reforçam a qualificação em esferas públicas de participação popular. A partir dessa
experiência, que já possui 5 edições no âmbito da Região Metropolitana de Belo Horizonte, foram identificados
obstáculos à participação a partir do relato da atuação desses atores nos processos de tomadas de decisão de
conselhos municipais, movimentos sociais, fóruns, ONGs, associações comunitárias dos quais participam. Muitos
desses relatos demonstram que a realidade da gestão participativa não é uniforme: ora acontece de forma
consultiva, ora deliberativa, independentemente da natureza da deliberação. Esses atores sociais chegam para o
curso com muitas dúvidas, vontade política e também com muitas experiências de lutas. Exemplos não faltam
para mostrar como os processos de decisão, em suas instituições de atuação como atores sociais, são difíceis e
conflituosos, sobretudo, entre poder público e sociedade civil.
O mesmo foi observado na pesquisa Perfil dos Conselhos e Conselheiros Municipais da RMBH, em 2002,
atualizada parcialmente em 2005, pelo OPUR – PROEX/PUC Minas em parceria com a Rede Nacional
Observatório das Metrópoles. De acordo com os dados coletados, vários conselhos mencionaram em suas
experiências a seleção dos conteúdos que deveriam ser decididos ou votados por todos os membros do conselho
e os que deveriam ser apenas consultados à sociedade civil. Para a maioria dos entrevistados não existe um
equilíbrio de forças no interior dos conselhos.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
227
objetivo de viabilizar o exercício cooperado das funções do Estado. Por outro, a
legitimidade da atuação desses canais de participação, que é diretamente proporcional
à sua apropriação pela sociedade civil, ainda representa um desafio.
2.1. A garantia do direito à moradia como principal função social da
cidade
Desde a teoria funcionalista de Le Corbusier consagrada pela Carta de Atenas
de 1933, a habitação figura entre as funções-chave da cidade. Em que pese as teorias
sobre planejamento urbano adotado variável social, no sentido de reconhecer a importância do habitante da cidade para a eficiência do planejamento urbano, a habitação ainda é uma das funções-chave da cidade. Tanto assim que, ao regular a política
de desenvolvimento urbano, a Constituição de 1988 estabelece que a propriedade
urbana cumpre sua função social quando atende as diretrizes fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182, § 2º). Igualmente, toda a concepção das diretrizes gerais e dos instrumentos da política de desenvolvimento urbano
regulada pelo Estatuto da Cidade foi concebida tendo por referência o direito de
acesso à terra urbanizada. Isso é observado tanto pela natureza das diretrizes previstas no artigo 2º, como pelos fins atribuídos aos instrumentos de política urbana.
O direito à moradia somente foi alçado à condição de direito fundamental
social pela Emenda Constitucional n. 26, de 2000. E, desde então, sua garantia
paulatinamente vem sendo incorporada à jurisprudência da Corte Constitucional
brasileira. Nesse sentido é a proferida na ADIn 2990/04 em que o STF reconheceu a
constitucionalidade da lei do Distrito Federal que previa possibilidade de alienação
de imóveis, localizados em área de proteção ambiental, após a realização de programa
de regularização fundiária sem licitação de imóveis.
3. PLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS DA RMBH
Ao final do ano de 2006, o Ministério das Cidades10 em parceria com CONFEA
(Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), como desdobramento
da Campanha Nacional Cidade para Todos11, realizou pesquisa como o objetivo de
10
O Ministério das Cidades foi criado em 2003 com o objetivo de atuar na universalização do acesso aos direitos
fundamentais vinculados à política de desenvolvimento urbano por meio do fomento a ações democráticas
descentralizadas e participativas de ordenação do espaço urbano. Nesse sentido, busca-se refletir os limites que
perpassam a discussão sobre políticas públicas participativas, detendo-se, principalmente, a legitimidade da
participação popular.
11
A campanha Cidades para Todos teve por objetivo sensibilizar e capacitar os atores sociais do poder público e
da sociedade civil para a elaboração dos Planos Diretores Participativos e foi realizada no período de 2005/
2006.
228
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
identificar, naquele momento, qual era o estágio do processo de elaboração dos planos
diretores participativos nos municípios que se encontravam dentro dos critérios de
obrigatoriedade estabelecidos pelo Estatuto da Cidade: cidades com mais de 20 mil
habitantes e inseridas em regiões metropolitanas, nos termos da Resolução n. 25, de
18 de março de 2005, do CONCIDADES (Conselho das Cidades). A pesquisa foi
realizada em âmbito nacional e contou com a participação dos CREAs (Conselho
Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) para a sua operacionalização. No
caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, a pesquisa foi
realizada por meio da parceria entre o Observatório de Políticas Urbanas/PROEXPUC Minas e o CREA-MG.
Os instrumentos de coleta de dados utilizados na pesquisa basearam-se em
três tipos de questionários para serem aplicados: (a) ao coordenador político do Plano
Diretor Participativo no município; (b) ao coordenador técnico e (c) ao representante
da sociedade civil gerando, assim, três tipos de banco de dados12, com os quais se
trabalhou na pesquisa Direito à moradia: Mapeamento das políticas públicas e das
experiências alternativas de habitação popular da Região Metropolitana de Belo
Horizonte (RMBH), financiada em 2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUC
Minas.
A pesquisa mostrou que num universo de 31 municípios válidos, em 26 houve
respostas do coordenador político (83,87%), em 18 do coordenador técnico (58,06%)
e em 19 houve respostas do representante da sociedade civil (61,29%). Com base
nesses resultados, considerou-se que o coordenador político teve uma maior
participação no processo de elaboração dos planos diretores participativos seguido
da sociedade civil e o coordenador técnico.
No que se refere aos instrumentos urbanísticos adotados pelos municípios em
seus planos diretores, estiveram mais presentes: a Zona de Especial Interesse Social
(ZEIS), a Transferência do Direito de Construir, a Outorga Onerosa do Direito de
Construir, o IPTU Progressivo no Tempo, Operação Urbana Consorciada, Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e Contribuição de Melhoria. Chamou
atenção o fato de que apesar de alguns municípios terem informado a previsão de
ZEIS em seus planos diretores, nenhum dos atores pesquisados considerou a existência da Regularização Fundiária como instrumento de política urbana.
De um modo geral, a pesquisa mostrou que em mais de 50% dos municípios
da RMBH houve participação da sociedade civil no processo de elaboração dos planos
12
Cabe ressaltar que: as informações obtidas são percepções dos entrevistados e que não houve análise documental.
Assim, pode-se observar a existência de algumas divergências entre as respostas dos entrevistados e dos 34
(trinta e quatro) municípios pesquisados, sendo que 03 (três) não constam nos bancos de dados, 02 (dois) porque
não enviaram suas respostas e 01 (um) porque foi invalidado.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
229
diretores participativos. Entre os instrumentos de gestão democrática, previstos pelo
Estatuto da Cidade no artigo 45, os mais utilizados foram os conselhos gestores, as
comissões e as audiências públicas, e os menos utilizados foram os fóruns, as oficinas
e palestras.
Entretanto, ao analisar as respostas sobre a utilização ou não dos instrumentos
urbanísticos regulados pelo Estatuto da Cidade nos planos direitos, observou-se existir
divergência entre o informado pelo coordenador político, o informado pelo
representante técnico e o informado pelo representante da sociedade civil. Essa
divergência levou à formulação da seguinte hipótese: A participação popular informada
não teria sido efetiva em razão da ausência de informação e de transparência no
processo de elaboração dos planos diretores desses municípios.
4. DIREITO À MORADIA: MAPEAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E
DAS EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS DE HABITAÇÃO POPULAR DA
REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE (RMBH)
Essa pesquisa teve por objetivo traçar o panorama geral da situação da política
habitacional de interesse social nos municípios da Região Metropolitana de Belo
Horizonte, no que diz respeito à execução desta política e a efetivação da participação
popular nos processos participativos de tomada de decisão dos municípios. Pretendeu
também, realizar uma análise comparativa mediante dados de uma pesquisa13 realizada
em 2002 sobre a mesma temática.
Nesses quatro anos foram identificados alguns avanços. O número de
instrumentos urbanísticos aumentou em todos os municípios, segundo a informação
fornecida pelos responsáveis da área. A tabela a seguir ilustra esta percepção.
Nota-se que de um modo geral a evolução quanto ao alcance dos instrumentos
urbanísticos na RMBH foi positiva, uma vez que a maioria dos instrumentos aqui
listados se difundiram consideravelmente dentro da região citada no período
apresentado. Os instrumentos que apresentaram queda quanto a seu uso foram poucos
de 2002 a 2006. São eles: Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação
o que denota o pouco interesse dos municípios em relação a estes instrumentos. No
ano de 2006 nenhum coordenador técnico alegou a existência dos instrumentos
13
Realizou-se em 2002, financiada pelo FINEP, denominada Rede de Avaliação e Disseminação de Experiências
Alternativas em Habitação Popular, sob coordenação nacional do Observatório das Metrópoles sediado no
IPPUR/UFRJ.
Para a realização desta campanha foram criados Núcleos Mobilizadores Estaduais que congregavam várias
instituições do poder público e sociedade civil. O OPUR/PROEX e o CREA-MG faziam parte do Núcleo
Mobilizador de Minas Gerais.
230
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Tabela 1 – Instrumentos Urbanísticos
Instrumentos
Urbanísticos
Consórcio imobiliário
Usucapião urbano
Desapropriação
Concessão especial
de uso para fins de
moradia
Concessão de direito
real de uso
Estudo prévio de
impacto ambiental
(EIA)
Contribuição de
melhoria
Direito de superfície
IPTU progressivo no
tempo
Outorga onerosa do
direito de construir
Transferência do
direito de construir
ZEIS/AEIS
Parcelamento,
edificação ou
utilização
compulsórios
Operação
consorciada
Direito de preempção
2002
0 0,00%
1 3,23%
5 16,13%
Atores do Plano Diretor (2006)
Sociedade Civil
Coordenador Técnico Coordenador
Total
Sim
(%)
Total Sim
(%)
Total
Sim
19
2
10,53%
18
0
0,00%
26
0
19
2
10,53%
18
0
0,00%
26
0
19
2
10,53%
18
0
0,00%
26
0
Político
(%)
0,00%
0,00%
0,00%
2
6,45%
19
2
10,53%
18
1
5,56%
26
1
3,85%
2
6,45%
19
5
26,32%
18
2
11,11%
26
6
23,08%
5 16,13%
19
3
15,79%
18
4
22,22%
26
1
3,85%
4 12,90%
19
10
52,63%
18
10
55,56%
26
22
84,62%
1
3,23%
19
15
78,95%
18
11
61,11%
26
20
76,92%
0
0,00%
19
14
73,68%
18
13
72,22%
26
23
88,46%
3
9,68%
19
12
63,16%
18
14
77,78%
26
21
80,77%
3
9,68%
19
11
57,89%
18
14
77,78%
26
17
65,38%
6 19,35%
19
15
78,95%
18
15
83,33%
26
24
92,31%
1
3,23%
19
14
73,68%
18
15
83,33%
26
22
84,62%
3
9,68%
19
13
68,42%
18
16
88,89%
26
20
76,92%
5 16,13%
19
16
84,21%
18
16
88,89%
26
21
80,77%
Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais – PROEX/PUCMINAS –Fase (2002)
e Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais PROEX/PUCMINAS – Plano Diretor
(2006)
Nota: Os municípios de Baldim e Matozinhos não devolveram os questionários da pesquisa sobre o
Plano Diretor (2006). Nova União foi desconsiderada na pesquisa uma vez que os questionários retornados foram considerados inválidos, graças a tais fatos os três anteriores não entraram na composição da
tabela.
urbanísticos citados anteriormente. Essa informação foi conflitante com os
representantes da sociedade civil consultados sobre a mesma questão, 10,53% destes
alegaram a existência do Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação,
ratificando a divergência. O instrumento Estudo Prévio de Impacto ambiental (EIA)
decresceu sua participação no universo dos municípios consultados, passou de 5, em
2002, para 4, em 2006, os municípios que assumem tal instrumento. Do ponto de
vista ambiental isso pode significar uma deterioração quanto à qualidade do ambiente.
Todos os demais instrumentos apresentaram forte crescimento quanto à sua
adoção por parte dos municípios da RMBH. Destacam-se: IPTU Progressivo no
Tempo, Direito de Superfície e Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
231
que em 2002 eram os menos adotados e em 2006 aparecem entre aqueles mais
mencionados. O instrumento Direito de Superfície, dentre os 31 municípios, aparecia
em apenas 3,23%. Em 2006, dos 31 municípios apenas 19 tiveram os questionários
validados para coordenador técnico, destes 61,11% afirmaram possuir o instrumento.
O mesmo aconteceu com o Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios. Já
o IPTU Progressivo no Tempo teve ampliação ainda maior no que se refere à sua
difusão dentro da RMBH. Em 2002, era nula sua adoção. Em 2006, dos 18
questionários validados para esse recorte espacial, esteve presente em 72,22% dos
municípios, segundo os coordenadores técnicos do Plano Diretor. Os dados de
representantes da sociedade civil e também dos coordenadores políticos reforçam
essa informação.
Outorga Onerosa do Direito de Construir, Transferência do Direito de Construir
e Operação Consorciada, representavam 3,23% do total de municípios no ano de
2002. Em 2006, a Construir e Operação Consorciada constava em 51,61 municípios,
enquanto a Transferência do Direito de Construir em 45,16%
No ano de 2006 a grande maioria dos instrumentos os atores convergem para
uma direção na maioria dos casos. Em apenas três casos, Consórcio imobiliário,
Usucapião Urbano e Desapropriação, houve divergência significativa entre os atores
do Plano Diretor.
A pesquisa tinha também o objetivo de analisar a natureza das políticas públicas
municipais em matéria de habitação executadas na Região Metropolitana de Belo
Horizonte – RMBH; e identificar as experiências alternativas de habitação popular
existentes na RMBH a fim de avaliar a natureza deliberativa dessas políticas, bem
como a efetividade do direito fundamental à moradia previsto no artigo 6º da
Constituição Republicana de 1988. Em razão da grande recusa, por parte dos
entrevistados, em responder o questionário formulado incorporando esse análise, o
segundo objetivo não foi cumprido. Esse obstáculo ocasionou uma mudança de
trajetória no objeto da pesquisa que, então, passou a avaliar a efetividade dos processos
participativos de tomada de decisão.
5. CONCLUSÃO
(i) Apesar de considerados participativos, o grau de divergência entre os atores
pesquisados sobre a existência nos planos diretores de seus municípios de instrumentos
de política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, demonstra que a compreensão
desses instrumentos não para parece ter sido apreendida, tanto pelo poder público,
quanto pela sociedade civil local. Várias razões podem justificar esse resultado, entre
elas, a ausência do que Pettit (2007) denomina de capacidade raciocinativa de
participar e que Habermas (2006) denomina condições ideais de fala. Em outras
232
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
palavras, os atores não compreenderam o significado desses instrumentos no processo
de elaboração dos planos diretores. O que poderá comprometer a efetividade e a
eficiência de seus resultados. Em síntese, a utilização dos instrumentos de política
urbana, se existente, parece ter sido apenas nominal.
(ii) Nesse sentido, a legitimidade dos planos diretores elaborados por esses
municípios parece ter sido apenas formal, uma vez que seus atores não foram capazes
de sustentá-la de forma coerente. Por outro lado, se consideramos, a democracia
como processo, como sustenta Habermas (2006), um grande passo foi dado em direção
à concretização do planejamento urbano participativo.
(iii) Por fim, no que se refere ao direito à moradia, pode-se dizer que evoluímos
em direção à concretização do direito à cidade sustentável. Ao menos, sob o aspecto
quantitativo, uma vez que boa parte dos planos diretores incorporaram instrumentos
de política urbana diretamente vinculados ao direito de propriedade.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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In: Santos Júnior, Orlando Alves dos...[et alli], (organizadores). Políticas Públicas e Gestão Local: Programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. 11. ed. atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006.
CIVIL. Código (2002) Código Civil. 12. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
GODINHO, Maria Helena de Lacerda & MENDONÇA, Jupira Gomes de (Orgs). (2003) População,
Espaço e Gestão ma Metrópole: Novas Configurações, Velhas Desigualdades. Belo Horizonte: PUC
MINAS, 2003.
GODINHO, Maria Helena de Lacerda & NAVARRO, Renato Godinho.(2002) Movimentos Sociais (Populares), Conselho Municipal e Órgão Gestor na Definição e Implementação da Política Habitacional
em Belo Horizonte – Década de 1990. IN: Cadernos Metrópole: Desigualdade e Governança. São Paulo: EDUC/Pronex/CNPq, Nº 7.
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Democracia. Rio de Janeiro: Renavan, 2005.
HABERMAS, Júrgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber, Paulo
Astor Soethe, e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.
HESSE. Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1991.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
233
PETTIT, Philip. Teoria da Liberdade. Tradução de Renato Sérgio Pubo Maciel. Coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
RIBEIRO, Luís César de Queiroz. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira, (org) Reforma
urbana e gestão democrática. Rio de Janeiro: ed. Revan, 2003.
SOUZA, Celina. Federalismo e Intermediação de Interesses Regionais nas Políticas Públicas Brasileiras. Trabalho Apresentado no Seminário Internacional sobre Reestruturação e Reforma do Estado: Brasil e América Latina no Processo de Globalização. São Paulo, 18 a 21 de maio de 1998.
6
FORMAS E INSTRUMENTOS DE
REGULAÇÃO DO MERCADO DE TERRAS
Dinâmica Urbana e a Legalização da
Produção do Espaço (I)Legal
KÊNIA
DE
SOUZA BARBOSA
Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de
Minas Gerais e Mestranda do Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade e da
legalidade do espaço urbano e o impacto dos programas governamentais de
regularização de (i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal.
Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedade do
solo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e,
mais intensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular e
implantar políticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, como
é o caso das favelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas e
reconhecer os direitos dos moradores.
1. INTRODUÇÃO
O rápido processo de urbanização das cidades brasileiras, associado ao
surgimento de graves problemas urbanos, torna muito complexa a prática do
planejamento e da gestão do solo. O padrão de urbanização brasileiro criou cidades
segregadas, onde de um lado tem-se a cidade formal, que concentra os investimentos
públicos e de outro lado a cidade informal, que cresce exponencialmente na ilegalidade
urbana, sem atributos de urbanidade, exacerbando as diferenças socioambientais.
Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade1 e da legalidade
do espaço urbano e o impacto dos programas governamentais de regularização de
(i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal.
1
Como considerar ilegalidade a situação de uma grande parcela das famílias moradoras dos territórios urbanos
brasileiros, que mora em favelas em áreas públicas, favelas em áreas privadas, cortiços, loteamentos clandestinos
e irregulares, conjuntos habitacionais ocupados e sob ameaça de despejo e casas sem habite-se? Que legalidade
é essa, se grande parte da cidade é ilegal? Por isso, estou utilizando o “i” entre parênteses.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
238
Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedade
do solo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e, mais
intensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular e implantar
políticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, como é o caso das
favelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas e reconhecer os direitos
dos moradores.
2. LEGALIDADES E (I)LEGALIDADES DO ESPAÇO URBANO
O crescimento das cidades brasileiras intensificou-se a partir da década de 30,
do século XX. Em 1950 o índice de urbanização do país era de 36%; em 1970, 56%;
em 1990, mais de 77%; atualmente o índice supera os 80%. Ou seja, dos mais de 176
milhões de habitantes, mais de 140 milhões habitam as cidades brasileiras.
180.000.000
160.000.000
População
140.000.000
120.000.000
100.000.000
Total
Urbana
80.000.000
60.000.000
40.000.000
20.000.000
0
1940
1950
1960
1970
1980
1991
2000
Anos
Gráfico 1 – Brasil, População Total e População Urbana de 1940 a 2000.
Fonte: Santos. M. A Urbanização Brasileira, ed. Hucitec 1994 e IBGE, 2002.
90
Percentual de urbanização
80
70
60
50
Índice de urbanização
40
30
20
10
0
1940
1950
1960
1970
1980
1991
2000
Anos
Gráfico 2 – Brasil – Índice de Urbanização de 1940 a 2000.
Fonte: Santos, M. A urbanização brasileira, ed. Hucitec, 1994 e IBGE, 2002.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
239
O intenso crescimento urbano nas grandes cidades brasileiras foi acompanhado
da deterioração das condições de vida da maior parte da população. Uma parcela
significativa da população é excluída do acesso à terra urbana e da moradia. O déficit
habitacional estimado em 2005 foi de 7.902.699 moradias no país, o que significa
14,9% do total do estoque de domicílios. Em números absolutos, o déficit habitacional
está predominantemente concentrado nas áreas urbanas (6.414.143 domicílios), dos
quais 34,7%, ou 2.226.730, nas regiões metropolitanas.2
As ocupações irregulares de terrenos urbanos para moradia da população de
baixa renda se repetem na maioria das cidades. Associado às ocupações irregulares,
há ainda a inadequação das moradias existentes, em virtude da precariedade, da
insalubridade, da ilegalidade e da falta de infra-estrutura urbana. O acesso (i)legal/
informal e inadequado ao solo e à moradia acaba se tornando mais regra do que
exceção.
A grande maioria das cidades brasileiras convive, cotidianamente, com
limitações e dificuldades institucionais no controle do solo urbano. Essas limitações
vão desde o reduzido número de fiscais, com pouca qualificação e baixa remuneração,
escassez no quadro técnico efetivo, cadastro imobiliário desatualizado/subutilizado,
passando pelo desconhecimento por parte do cidadão das legislações urbanísticas,
uma arraigada relação de clientelismo entre o poder público e os cidadãos, até chegar
a um grande número de situações de ilegalidades urbanas (obras sem alvará, ocupação
irregular dos passeios, invasões e ocupações de áreas públicas e privadas e loteamentos
irregulares, públicos e privados).
Predominam nas cidades as construções fora das exigências legais. De acordo
com MARICATO (2000):
“(...) a maior parte das nossas cidades se constitui de imóveis ilegais, tanto quanto ao uso
ilegal do solo e a ilegalidade das edificações, se observado a Lei do Parcelamento do Solo,
o Código de Obras e a Lei do Zoneamento” e “mesmo em relação à cidade formal, as
administrações municipais são ineficazes em virtude da fragmentação de competências”.
As normas de edificações procuram estabelecer parâmetros detalhados sobre
todos os aspectos das construções, incluindo tanto a relação da edificação com seu
entorno (recuos, número de pavimentos, altura máxima) quanto a sua configuração
interior (insolação, ventilação, dimensão de cômodos). A virtual impossibilidade de
dar conta do excessivo nível de detalhe acaba por jogar na (i)legalidade a maior parte
das edificações.
2
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2006.
240
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A persistência da informalidade, conforme mencionado por BIDERMAM
(2008), em cidades da América Latina não pode ser totalmente explicada pelas taxas
de pobreza, e pelo insuficiente investimento público em habitação social, infra-estrutura urbana e serviços. Há uma maior conscientização de que o mercado de terra
urbana e as normas e regulamentos são também fatores contribuintes para a informalidade. Assim, inadequados regulamentos de uso do solo e códigos de obras reforçam
outros fatores que já contribuem para a informal e irregular ocupação dos solos urbanos.
Conforme explicitado por MARICATO (2000), “esta gigantesca ilegalidade
não é fruto da ação de lideranças subversivas que querem confrontar a lei. Ela é
resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui”. A (i)legalidade em
relação à posse da terra, além de fator de exclusão social da população de menor
renda, é o principal agente do padrão de segregação espacial que caracteriza as cidades
brasileiras.
Esta dinâmica de urbanização e ocupação do território valoriza significativamente os terrenos situados nas áreas nobres, o que, ao mesmo tempo, exclui a população carente de acesso à terra e moradia através do mercado formal.
3. REGULARIZAÇÃO DE (I)LEGALIDADES
Diante do caos urbano das nossas cidades, que refletem a situação subumana
vivenciada por milhares de pessoas, não é surpreendente que os movimentos populares
vêm reivindicando ações dos governos.
“Foi somente nas últimas décadas que, com as mudanças no quadro político maior do país
– causadas inicialmente, dentre outros fatores, pelo fortalecimento dos movimentos populares –, algumas administrações locais começaram a reconhecer os direitos dos favelados
de terem acesso ao solo urbano e à moradia. Vários programas de regularização de favelas
já foram formulados com vistas a promover tanto a urbanização quanto à legalização das
favelas existentes.”3.
Nesse sentido, tornou-se necessária uma legislação que avançasse nas questões
do direito à cidade para todos e também do direito à moradia digna.
Neste contexto, dois arcabouços legais são importantes: a inserção na Carta
Magna, em seu artigo 6º, do direito à moradia; e a criação do “Estatuto da Cidade”4.
Em decorrência, principalmente, das obrigações assumidas perante a comunidade
3
SAULE JÚNIOR (1999).
4
Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
241
internacional, o Brasil inseriu no texto legal, através da Emenda Constitucional nº
26/2000, o direito à moradia como um direito fundamental dos cidadãos brasileiros.
O texto legal assim descreve:
“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.”
Já o Estatuto da Cidade, desde sua aprovação pelo Congresso Federal, em
julho de 2001, tem sido celebrado como um marco decisivo na legislação urbana,
oportunizando a possibilidade da prática do planejamento e da defesa e preservação
do ambiente urbano.
Em 2003 criou-se no Brasil um órgão governamental superior dedicado
exclusivamente às questões urbanas – o Ministério das Cidades –, através do qual
vem sendo propostas ações e programas, visando a regularização fundiária de
assentamentos (i)legais, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo os
direitos dos moradores.
Dentre as ações e programas federais executados nos últimos anos, conforme
dados do Ministério das Cidades, destacam-se:
1) Apoio à Melhoria das Condições de Habitabilidade de Assentamentos Precários – programa voltado principalmente ao apoio a estados, Distrito Federal e
municípios para melhorar as condições de habitabilidade de populações residentes
em assentamentos humanos precários, reduzir riscos mediante sua urbanização, integrando-os ao tecido urbano da cidade;
2) Programa Habitar Brasil BID – HBB – programa que destina recursos para
o fortalecimento institucional dos municípios e para a execução de obras e serviços
de infra-estrutura urbana e de ações de intervenção social e ambiental, por meio,
respectivamente, do Subprograma de Desenvolvimento Institucional (DI) e do
Subprograma de Urbanização de Assentamentos Subnormais (UAS).
A promoção de regularização fundiária é hoje vista por instituições financeiras
internacionais (incluindo o Banco Mundial) como sendo a condição essencial para
ampliação do mercado nas cidades e para a reativação da economia urbana. De fato,
o Banco Mundial tem imposto a outorga de títulos de propriedade como condição
para liberação de recursos, inclusive em vários países da América Latina, com base
no argumento de que, entre outros efeitos, a segurança da posse e consequente acesso
ao crédito formal farão com que os moradores invistam em seus lotes e casas, assim
reativando a economia urbana como um todo.5
5
FERNANDES (2001).
242
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Compartilho com FERNANDES (2006) do receio em relação à justificativa
econômica para a regularização da titulação nesses assentamentos (i)legais,
principalmente na modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena,
ao invés de recorrer aos tradicionais argumentos humanitários, religiosos e sóciopolíticos.
Diante desse contexto, o cenário pode representar um retrocesso para as políticas
públicas de regularização, conforme acrescentou FERNANDES:
“(...) a mera atribuição de títulos individuais de propriedade pode até garantir a segurança
individual da posse, mas com frequência acaba fazendo com que os moradores vendam
suas novas propriedades e sejam “expulsos” para as periferias precárias, em muitos casos
invadindo novas áreas – onde o mesmo processo de ilegalidade começa novamente.”
Nessa perspectiva, conforme dito por FERNANDES (2006), “não são os grupos
pobres, mas sim os (velhos e novos) grupos econômicos privados ligados ao
desenvolvimento da terra urbana que mais uma vez se beneficiariam do investimento
público na urbanização dessas áreas, geralmente bem localizadas e atraentes”.
4. NOVOS IMÓVEIS PARA O MERCADO DO SOLO FORMAL
O processo de regularização fundiária desses assentamentos, ao promover a
urbanização das áreas e atribuir títulos de propriedade, acaba incorporando esses
locais ao mercado do solo formal das cidades. Se considerarmos os estudos e
constatações abaixo, sobre a renda da terra urbana, urbanização e mercado informal,
veremos que esse “novo” produto do mercado imobiliário já é em si contraditório,
reflexo do processo de produção do espaço urbano capitalista, do mercado imobiliário
e da atuação do Estado. Algumas constatações que seguem demonstram exatamente
a complexidade desse “novo” produto que surge ao mercado formal.
1. “(...) A terra e um bem não produzido que, portanto, não tem valor, mas adquire preço.
Ora, um bem não produzido não pode ter seu preço regulado pela lei da oferta, pois não há
lei regulando a sua oferta. É a procura que suscita o preço da terra e não o encontro do
mercado de produtores e compradores de solo.”6
2. “A produção de espaço urbano se dá, em geral, pela incorporação à cidade de glebas que
antes tinham uso agrícola.”7
Os “novos” imóveis provenientes do processo de regulação fundiária e que
são incorporados ao mercado formal não surgiram pela procura dos consumidores e
6
RIBEIRO (1997).
7
SINGER (1979).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
243
também não eram glebas rurais. No entanto, os “novos” imóveis se tornarão um novo
produto do mercado imobiliário.
3. “A propriedade privada da terra urbana coloca-se como obstáculo ao investimento no
setor (habitacional). (...) a cada processo produtivo o capital encontra diante de si o proprietário
fundiário que exige dela uma renda para permitir o uso do solo.”8
4. “(...) Cada processo produtivo é necessário um novo solo. Isto faz com que a propriedade
privada da terra urbana se apresente como um obstáculo maior para o capital investido neste
ramo (produção de moradias)...”9
É necessário avaliar se os processos de regularização fundiária, principalmente
na modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena, não estariam
contribuindo para dificultar o acesso à moradia as famílias de baixa renda.
5. “(...) A utilidade da moradia enquanto unidade central de consumo não é apenas definida
pelas suas características internas enquanto ambiente construído. Seu valor de uso é também
determinado pela sua articulação com o sistema espacial de objetos imobiliários que compõem
o valor de uso complexo representado pelo espaço urbano.”10
6. “O gradiente de preços do mercado fundiário e imobiliário informal nas favelas não
acompanha o gradiente de preços dos bairros legalizados contíguos as favelas. Esse resultado
empírico é de grande importância, pois tanto o senso comum, como os modelos da economia
urbana neoclássica atribuem a formação de preços nas áreas de favela um caráter reflexo do
mercado formal. Isto é, os preços nas favelas seriam determinados pelos preços dos bairros
onde elas se localizam com uma taxa de desconto em função de algumas características
internas, tais como grau de violência e estágio da urbanização. O resultado empírico da
nossa pesquisa sobre a cidade do Rio de Janeiro permite concluir que há uma lógica interna
aos mercados informais que determinam os seus preços; uma lógica endógena na formação
dos preços e que deve ser identificada a partir de variáveis e características do território
da(s) favela(s).”11
A dinâmica urbana, em especial a questão imobiliária e a produção da
(i)legalidade do espaço urbano, que poderá surgir com a implantação dessa política
de regularização fundiária nacional merece reflexões e estudos. Esses novos imóveis, ao entrarem no mercado formal, poderão acabar elevando o preço da moradia,
se consideramos, por exemplo, que esses imóveis tornariam os “piores” imóveis formais e assim teriam os preços dos “piores” imóveis antes deles entrarem no mercado
formal. Nesse caminho, os grupos econômicos privados – sobretudo, ligados ao de-
8
RIBEIRO (1979).
9
RIBEIRO (1997).
10
RIBEIRO (1997).
11
ABRAMO (2005).
244
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
senvolvimento da terra urbana – é que mais uma vez se beneficiariam do investimento público na urbanização dessas áreas. Dessa forma, numa visão muito pessimista, a
regularização fundiária estaria consolidando a dinâmica da máquina de produzir favelas e as políticas públicas correndo sempre atrás do prejuízo.
Outra possibilidade é surgir um novo mercado imobiliário que não seguirá os
mecanismo do mercado formal e nem do mercado informal, se considerarmos, por
exemplo, que esses “novos” imóveis não foram produzidos em função da incorporação
à cidade de glebas que antes tinham uso agrícola e que também não foram regulados
pela “lei” da procura da terra.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os assentamentos informais em áreas urbanas decorrem, principalmente, da
carência de políticas adequadas de moradia – inacessíveis e insuficientes, ressalta-se –,
mercados especulativos formais e informais, sistemas políticos clientelistas, legislação e planejamento urbano elitistas e tecnocráticos. Vários são os impactos e implicações causados pela produção desse espaço (i)legal. Na questão social, geram a
exclusão e marginalidade; na questão jurídica, a falta de segurança da posse. Na
prática política, produz a vulnerabilidade e o clientelismo. Na questão econômica,
reproduz cidades caras para os pobres. Na questão ambiental, geram as ocupações de
áreas de preservação, áreas de risco e diversas outras formas de poluição.
É visível, na atualidade, a flexibilização da legislação brasileira na promoção
do acesso à moradia, através do incremento de normas mais brandas, quer seja pela
criação de novos institutos (posse-trabalho, usucapião coletiva) ou pela revitalização
de instrumentos existentes (usucapião ordinária, direito de uso), além de haver uma
contínua legalização de situações (i)legais, visando assim facilitar o acesso à moradia
e a melhoria das condições das moradias nas favelas, assentamentos e ocupações
ilegais ou irregulares em condições subumanas. O Estado vem legalizando
assentamentos e ocupações (i)legais, bem como, urbanizando-os, dotando-os de
melhor infraestrutura com instalação de escolas, praças, áreas de lazer, saneamento
básico, luz e água.
É importante que todo esse esforço nessas políticas públicas consiga ao mesmo
tempo legalizar o (i)legal, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo os
direitos dos moradores, e, principalmente, assegurar a permanência das comunidades
nas áreas onde têm vivido. É importante que as políticas de regularização fundiária
busquem assegurar a regularização jurídica, urbanística, espacial e social. Só a
regularização jurídica não basta. São necessários instrumentos e ações que garantam
a permanência da população beneficiada e que dificultam as ações pervessas do
mercado imobiliário.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
245
É fundamental evitar o surgimento de novos assentamentos irregulares em
outras áreas da cidade pelo deslocamento de famílias previamente atendidas por
programas de regularização fundiária e urbanização. É imprescindível que todas essas
ações não se traduzam no desperdício do dinheiro público e na necessidade de novos
empenhos para essa (mesma) população excluída.
Por fim, as políticas de regularização só serão efetivas se aplicadas em conjunto
com outras políticas que evitem a ilegalidade urbana, pois, do contrário essas políticas
de regularização de terras serão funcionais à enorme indústria de produção urbana
(i)legal e legal.
6. REFERÊNCIAS
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grandes metrópoles: notas para delimitar um objeto de estudo para a América Latina. IPPUR, Rio de
Janeiro. 2005. (paper)
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______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da
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moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 352 p.
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produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega Ltda,
1979. p. 21-36.
7
A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO
PARCELAMENTO DO SOLO URBANO –
BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS
O Direito à Cidade e a Revisão da Lei de
Parcelamento do Solo Urbano
NELSON SAULE JÚNIOR
A lei federal do parcelamento do solo urbano esta sendo objeto de revisão no
Congresso Nacional através do projeto de lei 3057-2000. O presente trabalho visa
analisar as proposições referentes aos requisitos urbanísticos e ambientais para os
novos parcelamentos do solo urbano, o tratamento dos condomínios urbanísticos e
loteamentos fechados, e o tratamento sobre a regularização fundiária de interesse
social e de interesse específico.
O objetivo do trabalho é promover uma análise crítica a apresentar propostas
sobre estes tópicos de modo que a revisão desta lei seja voltada a assegurar o
desenvolvimento do direito á cidade nos termos do Estatuto da Cidade.
1. A EVOLUÇÃO DAS LEGISLAÇÃO DE PARCELAMENTO DO SOLO
URBANO
1.1 A finalidade da Lei de Parcelamento do Solo Urbano
As periferias dos grandes centros urbanos são ilustrativas do processo de
implantação de loteamentos urbanos sem infra-estrutura urbana ou sem autorização
do Poder Público, o que resultou numa ocupação sem padrões mínimos de qualidade
ambiental de grande parte do território destas cidades.
Na cidade de São Paulo, por exemplo na década de 20 do século XX, a Lei
Municipal nº 2.611/23 definiu regras para a abertura de loteamentos, o que significava
a associação da atividade de arruar com o uso e ocupação do lote. Esta lei municipal
determinou-se à apresentação de um plano de loteamento após a obtenção de diretrizes.
O plano deveria ser apresentado com curvas de nível de metro em metro, definindo o
arruamento e os espaços livres, o nivelamento das vias e o sistema de escoamento
das águas pluviais. Exigia-se a doação de áreas para o Poder Público: 20% para as
vias e 5,7% ou 10% para espaços livres. O lote mínimo deveria ser de 300 metros
quadrados, com frente mínima de 10 metros.
250
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Esta lei estabelecia que se o armador não observasse os critérios para abertura
de rua, com a colocação da parte que lhe competia em infra-estrutura, poderiam ser
abertas ruas particulares, que não seriam consideradas, no entanto, como ruas oficiais.
Logradouros particulares foram se multiplicando na cidade, sobretudo na periferia,
sem nenhum critério de articulação com as vias já existentes; sem nenhum cuidado
especial quanto à declividade (na maioria das vezes muito acentuada) e sem nenhuma
preocupação com os espaços públicos.
No final da década de 30 do Século XX o parcelamento do solo urbano passou
a ser disciplinado por meio de legislação federal. O Decreto Lei nº 58, de 10 de
dezembro de 1937 e o Decreto nº 3.079, de 15 de setembro de 1938, passaram a
exigir dos loteadores obrigações referente a infra-estrutura e projeto de parcelamento
do solo, dispor de regras contratuais sobre a compra de terrenos mediante pagamentos
em prestações – não tiveram eficácia para conter a proliferação de loteamentos
populares sem condições de habitação adequadas. A proibição de construção de
habitações coletivas para população de baixa renda na região central da cidade de
São Paulo por exemplo, foi determinante para a proliferação de loteamentos populares
na periferia sem autorização do Poder Público e sem atender as exigências da legislação
de parcelamento do solo.1
Com o objetivo de reverter esta situação de deterioração das áreas urbanas, foi
instituída a Lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano contendo
como normas gerais normas gerais definições sobre Modalidades de Parcelamento –
Loteamento ou Desmembramento, Lote e Infra-estrutura básica de Parcelamento,
Áreas passíveis de Parcelamento para Fins Urbanos.
A Lei de Parcelamento do Solo Urbano disciplina as seguinte matérias:
a) Modalidades de parcelamento: A lei define Loteamento como a subdivisão
de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação,
de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias
1
Sobre os efeitos da legislação urbanística na proliferação dos loteamentos irregulares na cidade de São Paulo,
Marta Dora Grostein, em sua tese sobre “A cidade clandestina: os ritos e mitos”, ilustra com muita clareza esta
situação: “No decorrer das quatro primeiras décadas, foram criadas as condições para que a clandestinidade e a
irregularidade se estabelecessem como prática de parcelamento do solo para fins urbanos. A sua reprodução até
a década de 50 deve-se, entre outras causas, aos aspectos relacionados com os instrumentos normativos e
administrativos. Quanto aos normativos, podemos destacar que as ‘ruas particulares’ eram permitidas por lei;
era possível construir-se com planta aprovada (isto é, com o reconhecimento oficial) mesmo nas ruas particulares
do município (que, como vimos, confundem-se com as clandestinas); era possível incorporar à cidade oficialmente
constituída os arruamentos e loteamentos abertos e executados em desacordo com a lei; a legislação contemplava
um único tipo de loteamento urbano, independente das classes sociais a que se destinassem e, finalmente, não
havia apoio legal para punir o loteador clandestino, uma vez que prevalecia uma posição ambígua do Estado, na
qual a intervenção na propriedade privada era vista como indevida, ainda que interferindo nos aspectos coletivos
da vida urbana. (GROSTEIN, Marta Dora, A cidade clandestina: os ritos e os mitos, Tese de Doutoramento,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP, São Paulo, 1987, p. 541.)
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
251
existentes. A lei define como desmembramento é a subdivisão de gleba em lotes
destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que
não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento,
modificação ou ampliação dos já existentes. A lei define parcelamentos de interesse
público como aqueles vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativa
das Prefeituras, ou entidades públicas, bem como os destinados a regularização de
parcelamento de assentamentos.
b) Requisitos Urbanísticos para Loteamento: a lei define como lote o terreno
servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos
definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situa. A infraestrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de
escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário,
abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de
circulação. Nos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei de
interesse social a iluminação pública, energia elétrica pública e pavimentação deixam
de ser parte da infra-estrutura básica.
A lei determina que o parcelamento do solo urbano é admitido nas zonas
urbanas, de expansão urbana ou de urbanização especifica assim definidas no plano
diretor ou aprovadas por lei municipal. A lei não contém uma definição sobre o que
são zonas urbanas ou de expansão urbana. A lei define as áreas que não podem ter
parcelamento do solo urbano tais como terrenos alagadiços e sujeitos a inundações,
terrenos em que tenham sido aterrados com material nocivo a saúde pública, áreas de
preservação ecológica.
A lei estabelece como requisitos urbanísticos para loteamento a necessidade
de áreas destinadas a sistemas de circulação, implantação de equipamento urbano e
comunitário, espaços livres de uso público (praças). Os lotes devem ter área mínima
de 125 m2 e frente mínima de 5 metros. Quando se tratar de loteamento em áreas de
urbanização específica ou para edificação de conjuntos de habitação de interesse
social o lote poderá ser menor através de legislação estadual ou municipal.
c) Responsabilidades do Loteador e do Poder Público;
d) Elementos do Projeto do Loteamento e Desmembramento;
e) Aprovação e Registro do Parcelamento do Solo;
f) Define as competências do Município e do Estado para o parcelamento do
solo urbano. Cabe ao Estado disciplinar por decreto a aprovação pelos Municípios
de loteamentos e desmembramentos localizados em áreas de proteção especial como
de mananciais, patrimônio cultural ou histórico,em mais de um Município,em regiões
metropolitanas quando abranger área superior a 1 milhão de m2.
252
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
g) Relações Contratuais – Loteador e Adquirentes de Lotes. A lei disciplina as
relações contratuais entre loteadores e compradores de lotes urbanos definindo quais
são os componentes dos compromissos de compra e venda, cessões e promessas de
cessão que valem como título para o registro da propriedade do lote adquirido. A lei
admite nos parcelamentos populares a cessão de posse em que estiverem
provisoriamente imitidas a União, Estados e Municípios, que tem caráter de escritura
pública. A lei estabelece medidas de proteção ao adquirente de lote urbano. No caso
de loteamento que não foi registrado ou regularmente executado de acordo com o
projeto aprovado na Prefeitura, o adquirente do lote pode suspender o pagamento das
prestações restantes e notificar o loteador a cumprir com as suas obrigações.
h) O Papel do Poder Público na Regularização de Parcelamento Irregular;
i) Critérios Específicos para a Regularização de Parcelamentos de Interesse
Social promovidos pelo Poder Público. A lei estabelece a competência para a
Prefeitura Municipal regularizar loteamento ou desmembramento implantado de
forma irregular pelo loteador.
Esta competência não exclui a responsabilidade do loteador pela implantação
de loteamento irregular.
j) Infrações e Crimes de Parcelamento do Solo. Alei tipifica os crimes contra a
Administração Pública referente ao parcelamento do solo urbano. Exemplo são crimes
dar início ou efetuar loteamento sem autorização da Prefeitura, ou sem cumprir com
as exigências do Poder Público determinadas na licença que aprovou a implantação
do loteamento.
k) Requisitos para a modificação de área rural para área urbana para fins de
implantação de parcelamento urbano. Esta alteração depende de prévia anuência do
INCRA, do órgão metropolitano se houver, onde se localiza o Município, e da
aprovação da Prefeitura Municipal.
A lei de parcelamento do solo estabelece os padrões urbanísticos mínimos
para implantação de loteamento urbano, tais como, sistema viário, equipamentos
urbanos e comunitários, áreas públicas; bem como as responsabilidades dos agentes
privados (proprietários, loteadores, empreendedores) e do Poder Público; e tipifica
os crimes urbanísticos.
A Lei nº 6.766 substituiu o Decreto-lei nº 58/37 para o parcelamento do solo
urbano. O Decreto-lei, que vigeu até 19 de dezembro de 1979, teve mais a intenção
de proteger os compradores de lotes, por meio de pagamento parcelado do preço
total, do que uma preocupação urbanística. Desta forma, previamente, o parcelador
deveria basicamente apresentar o plano de loteamento firmado pelo profissional
habilitado e o modelo de contrato irretratável de compromisso de venda e compra
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
253
perante o Cartório de Registro de Imóveis competente e fazer registrar o primeiro. A
partir do registro, poderia comercializar os lotes. A planta do parcelamento registrado
deveria ser previamente aprovada pela Prefeitura Municipal, apenas para os
parcelamentos urbanos (art. 1º, § 1º). Todavia, não eram dados critérios urbanísticos
para esta aprovação.
A Lei nº 6.766/79 fixa os índices urbanísticos para a aprovação de parcelamentos
urbanos em todo o território nacional. O parcelador deverá primeiramente aprovar a
planta de parcelamento na Prefeitura Municipal (arts. 12/17) para posteriormente
registrá-lo (arts. 18/24). O depósito do modelo de contrato, no Cartório de Registro
de Imóveis, continuou obrigatório (arts. 25/36). A venda de lotes de parcelamento
não registrado restou proibida (art. 37) e a conduta criminalizada (arts. 50/51). Vale
observar que, na hipótese de parcelamento de solo dentro de área metropolitana,
região de mananciais, ou se a gleba a ser parcelada perfizer mais de 10 milhões de
metros quadrados, antes do registro, o loteamento deverá ser aprovado pela instância
designada em lei estadual (art. 13).
O grande benefício trazido pela lei do parcelamento do solo urbano, foi
reconhecer a competência dos Municípios para regularizarem os parcelamentos feitos
ilegalmente dentro de seus territórios (arts. 40/41). E, ainda, trouxe a possibilidade
de parcelamentos especiais para a população de baixa renda (art. 4º, II, in fine).
A admissão de tamanhos de lotes diferenciados para loteamentos de interesse
social aprovados, mesmo não tendo alterado o regime jurídico para a produção de
moradias de interesse social, representou um avanço, na medida em que possibilitou
a regularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentos
informais.
1.2. A competência do Município na Lei do Parcelamento do Solo Urbano
A irregularidade do loteamento ocorre quando o loteador obtém a aprovação
do projeto de loteamento pelos órgãos competentes do Município, efetua o registro
do loteamento no Cartório de Registro de Imóveis, porém, não executa as obras de
infra-estrutura necessárias que constam do projeto de loteamento aprovado. Outra
situação que caracteriza o loteamento irregular ocorre quando o loteador apresentou
o projeto de loteamento para a aprovação do órgão público municipal competente,
sem atender às outras etapas necessárias para a sua implantação, nos termos da lei
6.766/79, como a execução das vias de circulação do loteamento, ou a demarcação
dos logradouros públicos.
O loteamento é irregular em razão das irregularidades físicas ou urbanísticas,
quais sejam, as que tocam à questão de ausência de infra-estrutura e de áreas públicas,
e as irregularidades jurídicas, concernentes aos obstáculos existentes para o registro
254
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
do loteamento, consistentes, principalmente, na incorreção do título de propriedade
da gleba.
Os loteamentos irregulares são parcelamentos do solo urbano que obtiveram
aprovação do Poder Público municipal, mas que não foram executados conforme o
ato administrativo da aprovação. Os loteamentos clandestinos são aqueles que não
obtiveram nenhuma aprovação por parte do Poder Público municipal e surgem diante
da inércia da Administração Pública em fiscalizá-los.
Uma situação de irregularidade muito comum ocorre quando as ocupações de
áreas, que foram objeto de parcelamento do solo com a aprovação do projeto de
loteamento no Poder Público, não atendem o traçado oficial do loteamento.
Geralmente, são ocupadas as áreas destinadas para as vias de circulação, áreas verdes
e equipamentos comunitários. Muitas vezes, as casas são construídas em desacordo
com a divisão dos lotes.
Os conjuntos habitacionais promovidos por órgãos e instituições do Poder
Público responsáveis pela execução de programas habitacionais, muitas vezes são
construídos sem atender às exigências da lei de parcelamento do solo e da legislação
municipal de uso e ocupação do solo. Situação comum é a falta de infra-estrutura ou do
registro público do empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis competente.
O estabelecimento de normas e procedimentos para o parcelamento do solo
urbano é de competência do Município. Segundo a Constituição Federal, nos termos
dos incisos I e VIM do artigo 30, é competência do Município legislar sobre assuntos
de interesse local; e promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano.
Se o Município tem a atribuição constitucional para condicionar o exercício
do direito da propriedade urbana aos objetivos, diretrizes e metas da política urbana
municipal decorrente desta atribuição, cabe ao Município, no próprio Plano Diretor
em que este for obrigatório, por exemplo, dispor dos critérios, instrumentos e
procedimentos para efetuar a regularização dos loteamentos irregulares existentes
em seu território.
Neste sentido, Paulo José Villela Lomar, Toshio Mukai e Alaor Caffé Alves
têm o mesmo entendimento sobre a competência do Município para dispor sobre a
aprovação do parcelamento do solo urbano:
“Apesar de fixar normas urbanísticas genéricas, padrões mínimos válidos para todo o território
nacional, o ato de aprovação do parcelamento do solo urbano continua sendo de exclusiva
competência do município (ou do Distrito Federal), em atenção ao peculiar interesse local
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
255
na matéria (art. 15,11, da CF), salvo nas hipóteses exaradas no art.13, em que esse ato de
aprovação implicará, na sua formação, a anuência prévia do Estado.”2
A competência exclusiva do Município não se refere apenas à edição de normas
para aprovação do loteamento urbano, mas também às regras para regularizá-lo, porque
se trata de um assunto de predominante interesse local.
A aprovação, a disciplina e a regularização do parcelamento do solo urbano
são de competência municipal, sendo inválida qualquer exigência feita por parte de
outros entes políticos, inclusive com relação às regras condicionadoras do registro
imobiliário, criadas pelos órgãos do judiciário, responsáveis pelas corregedorias dos
cartórios; os quais devem promover o necessário para que as normas que editam, a
respeito da regularização de loteamentos, não interfiram na autonomia do Município.
Os Municípios, por meio do Plano Diretor ou lei municipal específica (se o
Plano Diretor não for obrigatório), devem estabelecer a política de regularização de
loteamentos irregulares, que pode incluir as seguintes medidas3:
– Delimitação das áreas com grande concentração de loteamentos irregulares,
ou de loteamento irregular com elevada densidade populacional, como as Zonas
Especiais de Interesse Social – ZEIS.
– Exigir do Poder Público, para os loteamentos irregulares delimitados como
Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, um plano de urbanização contendo normas
especiais de parcelamento, uso e ocupação do solo e de edificações compatíveis com
a realidade da ocupação existente, como principal instrumento de regularização do
loteamento irregular.
A delimitação dos loteamentos irregulares como Zonas Especiais de Interesse
Social – ZEIS – no Plano Diretor, para o estabelecimento de um plano de urbanização
com normas de urbanização específicas, atende à exigência do artigo 3º da lei nº
6.766, pelo qual somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos, em
zonas urbanas de expansão urbana, ou de urbanização específica, assim definidas
pelo Plano Diretor ou aprovadas por lei municipal.
A delimitação das Zonas Especiais de Interesse Social em áreas com grande
concentração de loteamentos irregulares, ou com loteamentos populares com elevada
densidade populacional, caracteriza uma zona urbana de urbanização específica,
possibilitando o estabelecimento de normas de parcelamento, uso e ocupação do solo
2
MUKAI, Toshio; ALVES, Alaôr Caffé e LOMAR, Paulo José Villela, Loteamentos e Desmembramentos Urbanos.
Sugestões Literárias, São Paulo, 1980, p. 59.
3
Sobre as possibilidades legais de regularização dos loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, ver o
Manual: Regularização da Terra e Moradia – O Que é e Como Implementar, p 50-67.
256
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
e de edificação específicas, no plano de urbanização, para fins de regularização de
loteamentos irregulares. A atribuição preponderante do Município, na regularização
de loteamentos e conjuntos habitacionais, não significa reduzir a importância das
demais instituições públicas. No Poder Judiciário, a Corregedoria Geral do Tribunal
de Justiça tem um papel relevante para a instituição de provimento, simplificando os
procedimentos de registro de loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares. As
Varas Especializadas de Registros Públicos, também, mediante portarias internas,
podem simplificar os critérios e procedimentos administrativos e judiciais para fins
de regularização fundiária4.
1.3. As possibilidades de regularização fundiária na Lei de
Parcelamento do Solo com base nas modificações da Lei nº 9.785 de
29/01/1999
Através da Lei nº 9.785 de 29 de janeiro de 1999, as alterações feitas na Lei nº
6.766/79, atenderam o objetivo de constituir instrumentos voltados à proteção do
direito à moradia, mediante a proteção da segurança da posse da população moradora
de assentamentos urbanos informais (conjuntos habitacionais e loteamentos populares
destinados à população de baixa renda).5
Cacilda Lopes, em sua dissertação sobre as legislações de parcelamento do
solo urbano, tem o seguinte entendimento sobre as modificações feitas na Lei nº
6.766/79 pela Lei nº 9.785/99;
“...Constatamos que as alterações introduzidas pela Lei n. 9.785/99 na Lei n. 6.766/79, no
tocante à flexibilização das normas quando o Estado promover empreendimentos imobiliários,
tiveram como intuito minimizar a ausência, por longos anos, de investimentos em programas
habitacionais. Isso em um quadro de profundas mudanças econômicas, que ocasiona o
aumento de pessoas que não conseguem obter, mesmo com o trabalho, a garantia de habitação
digna. O Estado, ao perceber que o modelo de acesso à terra no Brasil privilegia apenas
4
No Estado do Rio Grande do Sul, o Provimento nº 77/99 – CGJ da Corregedoria Geral da Justiça instituiu o
Projeto “More Legal II” que dispõe sobre os critérios e procedimentos para a regularização e registro de
loteamento, desmembramento ou fracionamento de imóveis urbanos ou urbanizados. Por meio deste provimento,
é valorizado o papel do município como o ente responsável pela regularização. Por exemplo, o parágrafo 5 do
artigo 2 estabelece o seguinte: Nas regularizações coletivas, poderá ser determinada apresentação de memorial
descritivo elaborado pela Prefeitura Municipal, ou por ela aprovado abrangendo a divisão da totalidade da área
ou a subdivisão de apenas uma ou mais quadras. No Estado do Rio de Janeiro, o Provimento nº 108/85 da
Corregedoria Geral de Justiça, simplifica o procedimento de depósito das prestações, aceitando simples recibos
para a realização dos depósitos.
5
Sobre a legislação de parcelamento do solo urbano recomendamos a seguintes leituras: Ministério Público do
Estado de São Paulo/CAOHURB e Procuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico – co-edição,
São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1999. Ministério Público do Estado de São Paulo/CAOHURB e
Procuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico 3 – co-edição, São Paulo, Imprensa Oficial do
Estado, 2001.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
257
determinadas classes sociais, o que não conseguiu atender a uma classe numerosa de
miseráveis, promove alterações na legislação, instituindo um modelo dual de acesso a lotes:
um para os pobres e outro para a classe média, já reproduzido em outros momentos da
História. Uma legislação de parcelamento do solo que exclui determinadas classes sociais
do acesso legal à terra causa grande impacto na produção dos espaços urbanos. A parcela da
sociedade que não consegue obter habitação pelo modo tradicional de aquisição de lotes
fica sujeita a outras formas de apropriação do espaço urbano. Dessa forma, são criados os
espaços das favelas, dos cortiços, dos loteamentos clandestinos e irregulares e espaços mais
privilegiados, como os loteamentos regulares, sem falar daqueles que não têm acesso a
nenhuma dessas formas de moradia, vivendo em ruas, praças, marquises e viadutos.”6
Além da lei nº 6.766/79, também foram alteradas a lei de registros públicos e a
lei sobre desapropriações de interesse público.
Um dos principais benefícios trazido pelas alterações feitas a lei de parcelamento
do solo urbano foi respeitar a competência constitucional atribuída aos Municípios
para regularizarem os parcelamentos do solo feitos ilegalmente dentro de seus
territórios. E, ainda, trouxe a possibilidade de parcelamentos especiais para a população
de baixa renda. Esta alteração na lei de parcelamento de parcelamento do solo urbano
representa um avanço, na medida em que não estabelece restrições e impedimentos à
regularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentos
informais.
De acordo com as modificações feitas a regularização somente será permitida
para parcelamentos em zona urbana ou de expansão urbana, ressalvados os índices
urbanísticos estabelecidos pela legislação municipal para a zona. Portanto, a
localização do parcelamento em zona urbana ou de expansão urbana deve ser entendida
como um primeiro critério para a aprovação de novo loteamento ou para a
regularização daqueles implantados irregularmente.
Na alteração feita pelo artigo 3º, acrescenta o § 6º no artigo 2º, institui as
Zonas Habitacionais de Interesse Social (ZHIS) como instrumento de regularização
fundiária. Estas zonas devem ser declaradas por lei municipal. Outro instrumento
estabelecido é a zona de urbanização específica para fins de parcelamento do solo
urbano. Esta zona deve ser definida pelo Plano Diretor ou por lei municipal. AS
ZHIS ou as zonas de urbanização específicas podem ser instituídas também como
Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS.
Outra medida importante é o reconhecimento das regularizações de
parcelamento e de assentamentos como de interesse público. De acordo com o artigo
53, são considerados de interesse público os parcelamentos vinculados a planos e
6
LOPES, Cacilda, As Influências das Legislações de Parcelamento do Solo na Produção dos Espaços Urbanos.
Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001, p. 94-95.
258
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal,
ou de entidades autorizadas por lei; em especial as regularizações de parcelamentos
e de assentamentos.
Por meio desta norma, os conjuntos habitacionais executados pelo Poder Público
que apresentem irregularidades com relação ao parcelamento, uso e ocupação do
solo são considerados passíveis de regularização fundiária, tanto no aspecto
urbanístico, como no aspecto jurídico; englobando a regularização do empreendimento
no Cartório de Registro de Imóveis. Para as ações e intervenções destinadas à
regularização dos loteamentos, não será exigível documentação que não seja a mínima
necessária e indispensável aos registros nos cartórios competentes, vedadas as
exigências e as sanções pertinentes aos particulares; especialmente, aquelas que visem
a garantir a realização de obras e serviço, ou que visem a prevenir questões de domínio
de glebas, que se presumirão asseguradas pelo Poder público responsável nos termos
do parágrafo único do artigo 53-A.
De maneira alguma, esta norma isenta o Poder público de implantar a infraestrutura e os equipamentos urbanos no conjunto habitacional. Esta obrigação tem
fundamento tanto no direito da população beneficiária como consumidores, em função
do contrato celebrado com o Poder Público, como no respeito ao direito à moradia.
Esses fundamentos devem ser observados nos processos de regularização, de modo
que a população atendida tenha uma moradia adequada; uma vez que a urbanização,
visando à melhoria das condições habitacionais, é um dos componentes da
regularização fundiária.
2. ESTATUTO DA CIDADE E O DIREITO À CIDADE – PRECEITOS
NORTEADORES DA REVISÃO DA LEI DO PARCELAMENTO DO SOLO
O Estatuto da Cidade é a lei federal de desenvolvimento urbano que dispõe
sobre os princípios e as diretrizes fundamentais da política de desenvolvimento urbano
com base na competência concorrente da União em legislar sobre direito urbanístico,
as diretrizes previstas no artigo 2º do Estatuto da Cidade se configuram como as
normas gerais de direito urbanístico. Considerando que as normas de parcelamento
do solo urbano fazem parte das normas do regime do direito urbanístico, estas normas
devem observar as diretrizes da política de desenvolvimento urbano prevista no
Estatuto da Cidade.
Neste sentido a revisão da lei do parcelamento do solo deve ser promovida em
consonância com os princípios e diretrizes da política de desenvolvimento urbano
nos termos das normas constitucionais da política urbana (em especial o artigo 182 e
183 da Constituição Federal) e das normas previstas no Estatuto da Cidade.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
259
A lei de parcelamento do solo urbana deve conter normas de ordem pública e
interesse social que direcionem o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, de
modo que sejam respeitados os princípios das função social da propriedade e das
funções sociais da cidade.
Para o atendimento do princípio das funções sociais da cidade a lei do
parcelamento do solo deve conter normas que sejam voltadas ao pleno
desenvolvimento do direito à cidades sustentáveis nos termos previstos no Estatuto
da Cidade.
Com o Estatuto da Cidade ocorre um profundo impacto no direito à cidade,
que deixa de ser um direito reconhecido somente no campo da política e passa a ser
um direito reconhecido no campo jurídico. O direito à cidade adotado pelo direito
brasileiro o coloca no mesmo patamar dos demais direitos de defesa dos interesses
coletivos e difusos, como por exemplo, o direito do consumidor, do meio ambiente,
do patrimônio histórico e cultural, da criança e do adolescente, da economia popular.
O Estatuto da Cidade define o direito à cidades sustentáveis, como o direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras
gerações, e a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Esta definição jurídica do direito à cidade, contém uma característica semelhante
a do direito ao meio ambiente, por estabelecer que os seus componentes como à
moradia devem ser assegurados para as presentes e futuras gerações. Esta definição
retraía que o direito à cidade é um direito coletivo ou difuso dos habitantes da cidade.
Por exemplo uma comunidade tradicional existente numa cidade que esteja ameaçada
de perder sua memória ou identidade, qualquer habitante desta cidade poderá demandar
a proteção dos direitos desta comunidade com base no direito à cidade definido no
Estatuto da Cidade. Devido a esta definição jurídica são sujeitos que tem proteção
jurídica com base no direito à cidade por exemplo:
– os grupos de habitantes e as comunidades que tenham formado a identidade
e memória histórica e cultural da cidade,
– os grupos sociais e comunidades que vivem em assentamentos urbanos
informais consolidados que podem demandar do Poder Público, ações e projetos de
urbanização e regularização fundiária de interesse social.
O direito à cidade é o paradigma para a observância das funções sociais da
cidade, que estarão sendo respeitadas quando as políticas públicas forem voltadas
260
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
para assegurar, às pessoas que vivem nas cidades, o acesso à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações.
As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da política
urbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do artigo 182 de
forma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes Com esta vinculação
dos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamente
desenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer
grupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãos
pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente
da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade.
O desenvolvimento das funções sociais da cidade, por ser interesse de todos os
habitantes da cidade, se enquadra na categoria dos interesses difusos, pois todos os
habitantes são afetados pelas atividades e funções desempenhadas nas cidades:
proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes e migrantes têm como
contingência habitar e usar um mesmo espaço territorial. Logo, a relação que se
estabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem de vida difuso.
O reconhecimento institucional e jurídico do direito à cidade como preceito
que deve balizar a política urbana à luz do desenvolvimento sustentável aponta para
a construção de uma nova ética urbana, em que os valores da paz, da justiça social, da
solidariedade, da cidadania, dos direitos humanos predominem no desempenho das
atividades e funções da cidade, de modo que estas sejam destinadas à construção de
uma cidade mais justa e humana.
O respeito ao direito à cidade é o principal indicador para verificar o estágio
das cidades brasileiras estarem desenvolvendo as suas funções sociais. Quanto maior
for o estágio de igualdade, de justiça social, de paz, de democracia, de harmonia com
o meio ambiente, de solidariedade entre os habitantes das cidades, maior será o grau
de proteção e implementação do direito à cidade.
Com relação ao princípio da função social da propriedade, devem ser
consideradas como diretrizes da lei de parcelamento do solo urbano as seguintes
diretrizes da política de desenvolvimento urbano previstas nos seguintes incisos do
artigo 2º do Estatuto da Cidade:
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no
processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo
a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente;
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
261
V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados
aos interesses e necessidades da população e às características locais;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à
infra-estrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos
geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;
e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não
utilização;
f) a deterioração das áreas urbanizadas;
g) a poluição e a degradação ambiental;
VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o
desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana
compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município
e do território sob sua área de influência;
IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos
públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos
geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;
XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização
de imóveis urbanos;
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do
patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de
implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre
o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa
renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do
solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas
ambientais;
XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas
edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades
habitacionais;
262
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de
empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse
social.
A revisão da lei de parcelamento do solo deve incorporar estas diretrizes como
normas gerais de parcelamento do solo urbano de modo que esta lei seja adequada a
nova ordem jurídica urbana.
2.1 Matérias da revisão da Lei de Parcelamento do Solo Urbano
No ano de 2007 o Projeto de Lei 3.057/2000 que altera a lei de parcelamento
do solo urbano, foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados cujo
relator foi o Deputado Renato Amary (PSDB-SP), e necessita ser aprovado no plenário
da Câmara dos Deputados. Este projeto de lei ainda precisa ser apreciado pelo Senado
Federal.
O Projeto de Lei 3.057/2000 tem como objetivo estabelecer as normas gerais
disciplinadoras de parcelamento do solo urbano e de regularização fundiária
sustentável de áreas urbanas lei e visa ter como denominação lei de responsabilidade
territorial.
O Projeto de Lei 3.057/2000 inicialmente trata das definições jurídicas dos
seguintes temas:
– área urbana e área urbana consolidada;
– das modalidades de parcelamento do solo urbano: loteamento,
desmembramento, condomínio urbanístico;
– infra-estrutura básica e complementar;
– licença urbanística e ambiental integrada;
– gestão plena do Município em parcelamento do solo;
– zonas especiais de interesse social e assentamentos informais;
– empreendedor de parcelamento do solo urbano;
– regularização fundiária sustentável em área urbana;
– regularização fundiária de interesse social;
– regularização fundiária de interesse específico;
– demarcação urbanística e legitimação de posse.
O Projeto de Lei disciplina as seguintes matérias sobre o parcelamento do solo
urbano:
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
263
– os requisitos urbanísticos e ambientais do parcelamento do solo urbano;
– as responsabilidades do empreendedor e do Poder Público na implantação e
manutenção do parcelamento do solo;
– os requisitos e critérios sobre o conteúdo e para fins de aprovação do projeto
do parcelamento do solo;
– as competências do Município e do Estado sobre licenciamento para
parcelamento do solo as exigências para a adoção da licença urbanística e ambiental
integrada, bem como para a entrega das obras e da licença final integrada;
– critérios para o registro do parcelamentos do solo;
– regras para os contratos, relações de consumo e direito do consumidor em
parcelamento do solo;
– regularização fundiária sustentável em área urbana, regularização fundiária
de interesse social e de interesse específico, demarcação urbanística e legitimação de
posse, registro da regularização fundiária de interesse social;
– infrações penais, administrativas e civis sobre parcelamento do solo;
– requisitos e critérios para implantação e regularização do loteamento com
controle de acesso;
– critérios sobre o custo do registro dos títulos inerentes ao parcelamento e
regularização fundiária de interesse social.
3. TEMAS ESTRATÉGICOS DO DIREITO À CIDADE E DA REFORMA
URBANA NO PROJETO DE LEI Nº 3.057/2000 – REVISÃO DA LEI DE
PARCELAMENTO DO SOLO
3.1. Adoção dos princípios e diretrizes da Política de Desenvolvimento
Urbano
Conforme aludido acima as normas de parcelamento do solo urbano devem
estar subordinadas aos princípios e as diretrizes da política urbana estabelecidas na
Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Neste sentido a lei do parcelamento do
solo deve adotar em especial os princípios da função social da propriedade urbana e
da cidade; a garantia do direito à cidades sustentáveis e do direito à moradia e em
especial as seguintes diretrizes:
– prevalência do interesse público sobre o interesse privado;
– ocupação prioritária dos vazios urbanos, respeitados os espaços territoriais
especialmente protegidos;
264
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
– oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos
adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;
– adoção de padrões de expansão urbana compatíveis com os limites da
sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua
área de influência;
– justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
– recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a
valorização de imóveis urbanos;
– regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de
baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e
ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população
e as normas ambientais.
3.2. Infra-estrutura básica adequada ao direito à moradia e o direito à
cidade
Nos termos do art. 2º, inciso XVIII do Projeto de Lei a infra-estrutura básica é
definida como: os equipamentos de abastecimento de água potável, disposição
adequada de esgoto sanitário, distribuição de energia elétrica e sistema de manejo
de águas pluviais.
Para atender o direito à moradia e o direito à cidade é necessário ser incluída
na infra-estrutura básica a iluminação pública e a pavimentação. A pavimentação
entendida de forma genérica visando garantir a acessibilidade e mobilidade das pessoas
nos loteamentos e conjuntos habitacionais.
3.3 Obrigatoriedade de percentual de reserva de terra para HIS nos
parcelamentos de solo e/ou empreendimentos
A criação de percentuais de obrigatoriedade de reserva do território para
Habitação de Interesse Social é outro instrumento importante que deve ser utilizado
para garantir a oferta de terra para HIS nos municípios brasileiros. Para tanto, é
extremamente importante que este tema seja incluído como obrigatoriedade na revisão
da lei de parcelamento de solo. Atualmente a lei brasileira de parcelamento do solo
6766/79 determina que 20% da gleba seja destinada ao sistema viário, 10% para uso
institucional e 5% para áreas verdes, sendo omissa para o tema da terra para habitação.
Caso seja adotado no Brasil, o percentual deveria ser determinado pelo plano municipal
de acordo com as necessidades do município.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
265
Como contrapartida aos benefícios individuais que serão gerados ao proprietário e
empreendedor do parcelamento do solo urbano devido a atividade econômica do
empreendimento imobiliário, cabe ao Poder Público exigir do proprietário e o empreendedor
uma contrapartida que resulte um benefício social para toda a coletividade .A destinação
de um percentual da área objeto do parcelamento do solo, visa atender as necessidades de
moradia social nas cidades brasileiras, que é um dos componentes essenciais dos princípios
norteadores da política urbana que são os princípios da função social da propriedade urbana
e das funções sociais da cidade.
Contribuições urbanísticas obrigatórias são também adotadas na Espanha,
Holanda, Canadá e diversos países europeus.
Assim, através destes instrumentos de percentuais de obrigatoriedades, todos
empreendimentos destinados à alta e média renda devem obrigatoriamente destinar
um percentual da gleba para a produção de Habitação de Interesse Social.
De acordo com o art. 10. do projeto de lei sem prejuízo de outras obrigações
previstas nesta Lei, a legislação municipal pode exigir do empreendedor:
I – (...)
II – doação de área para implantação de programas habitacionais de interesse social ou de
recursos para fundo municipal de habitação.
Esta proposta vai ter pouco impacto para a produção do HIS. Necessário
defender a seguinte emenda no artigo 10:
§ 4º Os parcelamentos do solo para fins urbanos deverão ter no mínimo 10 % da área
parcelada destinadas a parcelamentos de interesse social.
§ 5º Fica facultado ao empreendedor destinar as áreas para implantação de parcelamento
de interesse social em áreas demarcadas pelo Município como zonas especiais de interesse
social para a produção de habitação de interesse social.
3.4 Inclusão da modalidade de parcelamento de interesse social
Esta modalidade não esta prevista sendo importante a sua inclusão para um
tratamento diferenciado com relação a financiamentos, prestação dos serviços de
fornecimentos de água, energia elétrica, responsabilidades de manutenção da infraestutura. O projeto de lei admite uma modalidade mais branda de parcelamento, que
é o de pequeno porte, mas não regulamenta a produção de parcelamentos para fins de
HIS. No aspecto dos assentamentos informais de baixa renda, o PL só regulamenta as
ações curativas de regularização fundiária, deixando a descoberto as atividades
vinculadas à produção de lotes e unidades habitacionais de interesse social.
266
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Propostas de emenda no artigo 2º:
Novo inciso – Parcelamento de Interesse Social: são parcelamentos do solo
executados por meio de empreendimentos habitacionais de interesse social com base
em planos e programas habitacionais vinculados a política habitacional de interesse
social estabelecida pelo Município pelo plano diretor ou lei municipal específica.
Proposta de emenda no artigo 3º:
– Admite-se o parcelamento do solo de interesse social nas modalidades
loteamento, desmembramento, conjuntos habitacionais unifamiliares e multifamiliares
ou condomínio urbanístico localizados preferencialmente em ZEIS, bem como por
suas variantes definidas nesta Lei.
3.5. Plano de expansão urbana como condição de extensão do
perímetro urbano
Deve constar da revisão da Lei federal 6766/79 que os planos de expansão
tornem-se obrigatórios na abertura de qualquer novo loteamento que se encontre em
uma zona de expansão urbana. Sendo que neste planos de expansão deve-se determinar,
ainda uma obrigatoriedade de percentual de doação de terra para implementação de HIS.
Necessidade de definição de zona de expansão urbana no PL e da inclusão da
obrigatoriedade do plano de expansão urbana no artigo 7º.
O marco regulatório do parcelamento do solo – nacional como local – com sua
visão privatista (gleba a gleba) e rentista (percentuais fixos, sem relação com os
diferentes sítios urbanos e situações municipais quanto à necessidades de infraestrutura e equipamentos) tem incidido de forma negativa, tanto no processo de
expansão das cidades de forma adequada, quanto na disponibilização de terras para
moradia.
Na experiência internacional do planejamento urbano, raros são os países
desenvolvidos que prescindem de um planejamento da expansão urbana, predefinido,
aonde já se definem os sistemas viários e de mobilidade básicos, assim como o
dimensionamento e localização de equipamentos, áreas verdes e áreas de lazer.
3.6. Integração entre a legislação ambiental e urbanística
A revisão da Lei 6.766/1979 precisa considerar a integração entre as legislações
ambientais e urbanísticas nos aspectos que dizem respeito a produção de novos
parcelamentos e regularização de parcelamentos existentes, integrando, inclusive os
licenciamentos de forma a agilizar os processos de aprovação das habitações que
atualmente são muito complicados e demorados.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
267
Outro elemento com grande impacto na relação entre a produção habitacional
e o desenvolvimento urbano, de forma mais geral, é a fragmentação da regulação do
território em dimensões que não dialogam, é o caso da gestão ambiental versus gestão
urbanística. As gestões ambientais e urbanísticas que incidem sobre os mesmos
territórios, numa superposição de fatores, muitas vezes são contraditórios. Há também
regras que não dialogam, agravadas pela existência de esferas de controle e fiscalização
verticalizadas, correspondentes a cada um destes setores. Tais esferas de controle e
verticalização exercem, por meio de suas gerências e superintendências regionais,
poderes e propriedades sobre o espaço urbano muitas vezes conflitantes.
A ausência de instrumentos modernos de gestão urbana que incorporem a
dimensão ambiental em sentido amplo é sentida largamente no território. A inexistência
de um marco regulatório único, que trate a questão ambiental e a questão urbana de
forma integrada, e a fragmentação da regulação do território em dimensões que não
dialogam, acaba provocando ações perversas para o desenvolvimento urbano e a
preservação ambiental Em grande parte do território brasileiro verifica-se a
incapacidade de romper os ciclos de expansão periférica e de ocupação das áreas
ambientalmente frágeis. Uma das características do mercado formal de habitação do
Brasil é sua pouca abrangência. A maior parte da população de baixa renda não
consegue ter acesso a esta produção de mercado. Consequentemente, a maior parte
da produção habitacional do país se faz à margem da lei nas áreas rejeitadas pelo
mercado imobiliário privado.
Mas a reflexão sobre a legislação ambiental, que persiste até os dias atuais,
ainda é muito pontual e fragmentada. São leis com visões setorialistas, que visam
apenas a conservação – marcada por um viés anti-urbano – e não refletem sobre a
necessidade de construção de um modelo de cidade ambientalmente sustentável. Com
a legislação existente, não é possível conciliar no ambiente urbano a reflexão sobre
exclusão social e necessidade de saneamento com a discussão da preservação
ambiental. É preciso pensar em um novo marco regulatório urbanístico e ambiental
único que trabalhe com toda a diversidade do território brasileiro, e reflita sobre
modelos de ocupação urbana do território que dialoguem com esta diversidade.
3.7. Dos condomínios urbanísticos e loteamentos com controle de acesso
É necessário impor limites de tamanho para esta modalidade de parcelamento.
Deve ser incluído o seguinte inciso no Art. 2º:
XII – condomínio urbanístico: a divisão de imóvel com área total não superior a 50.000 m2
em unidades autônomas destinadas à edificação, às quais correspondem frações ideais das
áreas de uso comum dos condôminos, sendo admitida a abertura de vias de domínio privado
e vedada a de logradouros públicos internamente ao perímetro do condomínio;
268
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
XV – condomínio urbanístico integrado à edificação: a modalidade de condomínio em imóvel
com área total não superior a 50.000 m2 em que a construção das edificações é feita pelo
empreendedor, concomitantemente à implantação das obras de urbanização;
Com relação ao Loteamento com Controle de Acesso (Loteamento Fechado),
pelo artigo 124 do projeto de lei está prevista a modalidade do loteamento, bem
como dos loteamentos fechados existente serem regularizados sem nenhuma
compensação.Deve ser previsto para os loteamentos fechados existentes que a
regularização seja condicionada a compensações urbanas tais como:produção de HIS,
regularização fundiária de HIS, implantação de infra-estrutura, equipamentos públicos,
ciclovias, implantação de áreas verdes, praças e parques. Sobre novos loteamentos
fechados a lei não deve admitir esta modalidade.
3.8. A competência preponderante do Município para legislar sobre
regularização fundiária
O projeto de lei deve dispor de forma clara que a competência para o
estabelecimento das normas de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano e
edificação para fins de regularização fundiária é do Município, que deverão ser
respeitadas pelos agentes e órgãos públicos dos demais entes federativos .
O Município é o principal ente federativo para tratar da política urbana de
acordo com o pacto federativo estabelecido na Constituição Federal (Artigos 30,
VIII, e 182). O Estatuto da Cidade atribui ao plano diretor que é uma lei municipal
tratar da política e dos instrumentos de regularização fundiária, com base nas diretrizes
estabelecidas nos incisos XIV e XV do artigo 2º. A atual lei do parcelamento do solo
através do artigo 40 atribui a Prefeitura Municipal ou Distrito Federal, a competência
para regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem
atender as determinações do licenciamento do Poder Público.
3.9. Tratamento diferenciado para novos parcelamentos e
regularização fundiária
A lei precisa conter um tratamento diferenciado entre as normas que tratam
dos critérios, exigências, do processo e procedimento, dos instrumentos para a
promoção de novos parcelamentos do solo urbano e as normas que tratam da
regularização fundiária de interesse social de assentamentos urbanos que se
caracterizam como parcelamentos informais, irregulares ou clandestinos.
A lei para ter eficácia não pode estabelecer os mesmos critérios e exigências
para a implantação de um novo parcelamento do solo, e para a regularização fundiária
de interesse social de parcelamentos do solo consolidados, como por exemplo exigir
o mesmo tamanho de lote mínimo, o mesmo percentual de área destinadas a uso
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
269
público ou de uso comum como os equipamentos públicos e comunitários, o mesmo
percentual para as vias públicas.
3.10. Adoção de Regimes Especiais de Zoneamento de
Assentamentos Urbanos de Interesse Social
A lei deve adotar como diretriz da regularização fundiária de interesse social a
constituição pelos Municípios de regimes normativos especiais de zoneamento de
assentamentos urbanos de interesse social, através da aplicação do instrumento da
zona especial de interesse social, para as situações no qual a localização e característica
do assentamento urbano de interesse social objeto da regularização fundiária, apresente
sobreposições ou conflitos entre legislações urbanas, ou entre a legislação urbana e a
legislação ambiental.
A lei federal de parcelamento do solo urbano deve prever que as normas
urbanísticas e ambientais, estabelecidas nestes regimes especiais de zoneamento de
interesse social, devem prevalecer sobre as demais legislações urbanas e ambientais
como forma de eliminar os entraves e obstáculos existentes, em especial para o
licenciamento urbanístico e ambiental integrado para fins da regularização fundiária
dos assentamentos urbanos de interesse social.
Através destes regimes especiais de zoneamento que podem ser formalizados
pelos Municípios, com a instituição legal do instrumento das zonas especiais de
interesse social e quando for o caso dos planos de regularização fundiária de interesse
social, serão estabelecidas normas especiais urbanísticas e ambientais de parcelamento,
uso e ocupação do solo urbano compatíveis com o assentamento urbano consolidado
que viabilizem a regularização necessária para o reconhecimento do direito à cidade
e da moradia do grupo social que vive neste assentamento.
A lei federal de parcelamento do solo deve estabelecer os conteúdos básicos
destes regimes especiais de zoneamentos de assentamentos urbanos de interesse social,
que devem ser observados para o licenciamento urbanístico e ambiental em especial:
– os parâmetros urbanísticos e ambientais específicos para fins de regularização
do parcelamento;
– os padrões de habitação e edificação;
– os percentuais e critérios específicos para a regularização das vias de
circulação, das áreas destinadas a uso público ou de uso comum, e dos equipamentos
urbanos e comunitários.
Esta medida é necessária para eliminar um dos principais obstáculos e entraves
dos processos de regularização fundiária de interesse social que é a existência de
270
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
diversas legislações urbanas e ambientais da União, do Estado e do Município que
estabelecem normas de uso e ocupação do solo contraditórias e conflituosas para
uma mesma área urbana onde esteja localizado um assentamento urbano de interesse
social. Estas legislações ou normas conflituosas, praticamente impedem o
licenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos para fins de regularização
fundiária. O caso mais comum é o conflito existente entre a legislação ambiental que
considerada áreas urbanas consolidadas ocupadas por favelas, ou outros tipos de
assentamentos de população de baixa renda ou tradicional, como área de preservação
permanente.
Em alguns casos os Municípios reconhecem na legislação urbana como por
exemplo através do plano diretor que estas áreas se consolidaram como um assento
urbano de interesse social, mediante a demarcação destas áreas como áreas ou zonas
de interesse social, ou áreas ou zonas especiais de urbanização ou regularização
específica.
Considerando que a lei federal de parcelamento do solo deve dispor de normas
gerais de parcelamento do solo é fundamental que seja prevista como norma geral a
prevalência das normas urbanísticas e ambientais de parcelamento uso, ocupação, e
edificação, constituídas pelos regimes especiais de zoneamento de assentamentos
urbanos de interesse social instituídos pelos Municípios, para solucionar as
sobreposições e conflitos existentes nas legislações urbanas e ambientais, em especial
para viabilizar o licenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos.
3.11. Da obrigação da iniciativa do Poder Público promover a
regularização fundiária de interesse social
A lei deve prever as situações no qual o Poder Público tem a obrigação de ter
a iniciativa de promover a regularização fundiária de assentamentos urbanos de
interesse social. Esta obrigatoriedade deve ser estabelecida para os parcelamentos
relacionados a planos ou programas habitacionais de iniciativa de órgãos da
Administração Direta ou Indireta vinculados aos Municípios, Estados, Distrito Federal
e União, que se caracterizem como irregulares, tais como conjuntos habitacionais,
loteamentos populares.
A obrigatoriedade de iniciativa deve ser estabelecida para a regularização
fundiária de assentamentos urbanos de interesse social, localizados em áreas públicas
de domínio da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, considerados como
consolidados, que tenham direitos reais constituídos, como por exemplo o direito a
concessão de uso especial para fins de moradia, ou definidas como zonas especiais
de interesse social pelo plano diretor ou lei municipal para fins de regularização
fundiária de interesse social.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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No caso da regularização fundiária de assentamento urbano de interesse social
localizado em áreas particulares como as favelas, nas quais os posseiros tenham direitos
reais constituídos através do usucapião urbano ou ordinário, a lei deve prever que o
Poder Público tem a obrigação de prestar ou viabilizar, os serviços de assistência
técnica e jurídica e social para a população de baixa renda.
Existe um elevado número de conjuntos habitacionais e de loteamentos
populares promovidos por órgãos, instituições e empresas habitacionais vinculados a
Municípios, Estados e União que foram implantados de forma irregular sem atender
a atual lei do parcelamento do solo urbano.
A atual lei do parcelamento do solo com base nesta realidade considerou como
de interesse público os parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionais
de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal, ou entidades autorizadas
por lei, em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos nos termos
do artigo 53-A. Através deste artigo é previsto um tratamento especial para viabilizar
o registro do assentamento objeto da regularização.
Para reverter este quadro de irregularidade de um elevado número de
empreendimentos habitacionais de interesse social promovidos pelo Poder Público
nas cidades brasileiras, a lei do parcelamento do solo deve prever a obrigação do
Poder Público promover a regularização fundiária dos assentamentos urbanos que
estejam nesta situação.
Esta obrigação deve ser estendida para as áreas públicas ocupadas por população
de baixa renda ou tradicionais, que tenham constituído direitos reais de posse ou
moradia para os possuidores destas áreas por provisão constitucional ou legal, como
o direito a concessão de uso especial para fins de moradia.
Esta medida é necessária para assegurar o cumprimento da função social da
propriedade urbana pública, e do direito fundamental à moradia estabelecido na
Constituição federal, bem como do direito à cidade previsto no Estatuto da Cidade.
3.12. Da iniciativa de entidades civis para promovera regularização
fundiária de interesse social
A lei deve prever o direito de iniciativa de solicitar, exigir ou quando for o caso
de promover a regularização fundiária de interesse social as pessoas ou suas
organizações criadas legalmente que tenham direitos reais constituídos nos
assentamentos urbanos de interesse social, seja em razão de atenderem os requisitos
legais de posse de área urbana, para fins de reconhecimento do direito à moradia ou
da propriedade (no caso de área urbana particular), ou por terem adquirido lotes
urbanos ou unidades habitacionais.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A lei dever prever o direito de iniciativa para os beneficiários da regularização
fundiária de forma individual ou coletiva.Este direito deve ser reconhecido as
associações de moradores da comunidade ou de cooperativas habitacionais,
regularmente constituídas, com personalidade jurídica,com autorização expressa de
seus representados, bem como para associações civis sem fins lucrativos que tenham
como atribuição estatutária prestar serviços e promover medidas administrativas,
jurídicas e judiciais para fins de regularização fundiária de assentamentos urbanos de
interesse social.
A Constituição Federal através dos incisos XVII e XVIII do artigo 5º, assegura
que é plena a liberdade de associação para fins lícitos, bem como que a criação de
associações e na forma da lei a de cooperativas independem de autorização.
Esta medida é voltada ao fortalecimento da cidadania da população de baixa
renda ou tradicional que vivem em assentamentos urbanos de terem o direito de
reivindicar a proteção e o reconhecimento de seus direitos constituídos legalmente
de posse, propriedade ou moradia através da promoção da regularização fundiária
destes assentamentos perante o Poder Público (poder executivo, legislativo, judiciário).
3.13. Das contrapartidas da regularização fundiária de assentamentos
urbanos de média e alta renda
A lei do parcelamento do solo urbano deve tratar da regularização fundiária de
assentamentos urbanos de média e alta renda como por exemplo os loteamentos
fechados, condomínios civis verticais e horizontais, clubes de campo e chácaras
transformadas em loteamentos urbanos.
Como diretriz para a regularização fundiária destes assentamentos urbanos,
deve ser estabelecida a obrigatoriedade desta regularização ser onerosa. A
regularização fundiária onerosa pode ocorrer através de contrapartidas urbanas.
O Estatuto da Cidade estabelece como diretrizes da política urbana nos termos
dos inciso IX e XI do artigo 4º respectivamente: a justa distribuição dos benefícios e
ônus decorrentes do processo de urbanização; a recuperação dos investimentos do
Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos.
A lei do parcelamento do solo deve determinar que a regularização fundiária
de assentamentos urbanos de média e alta renda deve ser feita de forma onerosa aos
beneficiários da regularização, de modo a atender estas diretrizes da política urbana,
bem como o princípio da igualdade mediante um tratamento diferenciado entre as
populações de baixa renda e alta renda nesta matéria.
O Estatuto da Cidade já prevê o instituto da outorga onerosa de alteração de
uso do solo urbano, que pode ser aplicado para a regularização dos loteamentos urbanos
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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implantados em zonas de expansão urbana ou mesmo em zonas rurais, como uma
das formas de contrapartida proporcional aos impactos que estes empreendimentos
geram no sistema viário, trânsito e na demanda de infra-estrutura, equipamentos e
serviços públicos da cidade.
O estabelecimento de contrapartidas urbanas para fins de regularização fundiária
de assentamentos urbanos de interesse social, ou para a produção de habitação de
interesse social é plenamente justificável para atender o princípio das funções sociais
da cidade de modo a contribuir com a política urbana e habitacional do Município.
A legislação federal que versa sobre os imóveis da União dispõe que os instituto
do aforamento, da concessão de direito real de uso, ou da cessão de imóveis objeto de
regularização fundiária de assentamentos de média e alta renda localizados em imóveis
da União deverão ser outorgados de forma onerosa para os beneficiários da
regularização (ver a lei federal nº 9.636/98 e a lei federal nº 11.481/2007).
Além de prever a aplicação da outorga onerosa de alteração do uso do solo
prevista no Estatuto da Cidade para fins de regularização fundiária destes
assentamentos, a lei deve prever como contrapartidas urbanas:
– a destinação de recursos financeiros para a regularização fundiária de
assentamentos urbanos de interesse social;
– a destinação de áreas urbanas para projetos de habitação de interesse social
com base no plano diretor do Municípios;
– a promoção de projetos de habitação de interesse social.
3.14. Da simplificação do registro da regularização fundiária
A lei do parcelamento do solo deve estabelecer normas voltadas a simplificar
as exigências e os procedimentos para o registro público de imóveis públicos ou
privados objeto de processos de regularização fundiária de assentamentos urbanos
de interesse social. A adoção dos institutos da demarcação urbanística prevista na legislação federal, que versa sobre a regularização fundiária de imóveis da União (Artigo 6º
da lei federal nº 11.481/2007) e da legitimação de posse atendem este objetivo.
A lei deve eliminar os entraves para a abertura da matrícula da área urbana
objeto da regularização, como por exemplo aceitar fotos aéreas para a identificação
da situação fática da forma de ocupação da área urbana, de reduzir e simplificar a
documentação exigida para instruir o processo do registro do imóvel, A lei também
deve simplificar o registro dos títulos jurídicos objeto da regularização fundiária em
especial da sentença judicial do usucapião urbano individual ou coletiva, dos termos
administrativos de concessão de direito real de uso, e da concessão de uso especial
274
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
para fins de moradia individual ou coletiva, bem como do contrato do direito de
superfície.
Com relação ao custo do registro dos imóveis objeto da regularização fundiária
de interesse social, o pagamento de taxas e emolumentos tem sido o principal entrave
para viabilizar, o registro dos direitos reais constituídos legalmente em favor das
populações de baixa renda ou tradicional.
Neste sentido a lei deve assegurar a gratuidade dos registros de regularização
fundiária de interesse social, assim como da lavratura da escritura pública e do primeiro
registro de direito real constituído em favor do beneficiário da regularização fundiária
de interesse social.
O Estatuto da Cidade estabelece como uma das diretrizes da política urbana no
termos do inciso XV do artigo 2º, a simplificação da legislação de parcelamento, uso
e ocupação do solo e das normas edilícias com vistas a permitir a redução dos custos
e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais. Esta diretriz deve ser aplicada
no tratamento da regularização fundiária de interesse social, de modo a reduzir os
custos dos processos desta modalidade de regularização fundiária, bem como para
viabilizar a regularização plena com o registro dos parcelamentos do solo e dos títulos
dos direitos reais nos Cartórios de Registros de Imóveis.
A gratuidade do registro da regularização fundiária já esta prevista na lei federal nº 10.932 de 3 de agosto de 2004, bem como no artigo 12 da lei federal sobre a
regularização fundiária dos imóveis da União (lei federal nº 11.481/2007), que alterou o
artigo 290-A, da lei de registros públicos (Lei federal nº 6.015/73) nos seguintes termos:
Devem ser realizados independentemente do recolhimento de custas e emolumentos:
I – o primeiro registro de direito real constituído em favor de beneficiário de regularização
fundiária de interesse social em áreas urbanas e em áreas rurais de agricultura familiar;
II – a primeira averbação de construção residencial de até 70 m2 (setenta metros quadrados)
de edificação em áreas urbanas objeto de regularização fundiária de interesse social.
§ 1º O registro e a averbação de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo independem
da comprovação do pagamento de quaisquer tributos, inclusive previdenciários.
§ 2º Considera-se regularização fundiária de interesse social para os efeitos deste artigo
aquela destinada a atender famílias com renda mensal de até 5 (cinco) salários mínimos,
promovida no âmbito de programas de interesse social sob gestão de órgãos ou entidades
da administração pública, em área urbana ou rural.
O PL está retirando a gratuidade através do artigo 136 e dos incisos II e III do
artigo 138.
Proposta de Emenda: Suprimir o artigo 136 e os incisos II e III do artigo 138.
Revisão da Lei de Parcelamento do Solo e
Ampliação da Oferta de Terras para
Habitação de Interesse Social: Aprendizados
de Fortaleza/CE
ANTÔNIO JEOVAH DE ANDRADE MEIRELES
HENRIQUE BOTELHO FROTA
INTRODUÇÃO
Com o avanço, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 3.057/2000, que
visa à revisão da legislação de parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79), muitos
debates têm sido fomentados pelo movimento social, organizações nãogovernamentais e administração pública nas diversas esferas (federal, estadual e
municipal).
Dentre as críticas e proposições do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU)
ao PL 3.057/2000, encontra-se a tentativa de ampliar o acesso à terra urbanizada para
a implantação de habitação de interesse social. Nesse sentido, o FNRU propõe que o
art. 10 do PL seja alterado para exigir que 10% (dez por cento) da área dos
parcelamentos urbanos sejam obrigatoriamente destinados a esse tipo de habitação
(FÓRUM NACIONAL DA REFORMA URBANA, 2008).
O presente artigo tem por escopo contribuir com o debate a partir da análise do
caso do Município de Fortaleza, cuja Lei Municipal nº 6.541/89 institui um Fundo de
Terras destinado à implantação de programas habitacionais de interesse social. Um
dos componentes do mencionado fundo é o percentual de 5% (cinco por cento) de
área exigido quando da aprovação de projetos de parcelamento do solo.
Como aporte para a análise, propõe-se a utilização do paradigma da Justiça
Ambiental, ainda pouco difundido entre os pesquisadores. Ao final, o que se espera é
demonstrar que esse conceito pode ser um importante aliado na superação da dicotomia
entre moradia e meio ambiente.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
1 A JUSTIÇA AMBIENTAL NO CONTEXTO DO MARCO JURÍDICOURBANÍSTICO BRASILEIRO
O conceito de Justiça Ambiental surgiu a partir de lutas pelo reconhecimento e
ampliação de direitos civis articuladas com reivindicações acerca da qualidade
ambiental de comunidades negras dos Estados Unidos da América. Embora tenha
havido, desde o final da década de 1960, tentativas de conjugação entre o movimento
negro ou de trabalhadores com as questões ambientais, o marco amplamente apontado
como o início do movimento pela Justiça Ambiental é o ano de 1982. No referido
ano, a comunidade de Afton, no condado de Warren, estado americano da Carolina
do Norte, foi palco de inúmeros protestos que levaram a mais de 500 prisões. O foco
das reivindicações foi a resistência da comunidade, em sua maioria, formada por
população afro-americana, à implantação de um aterro químico destinado a depositar
bifenil policlorado.
Em 1983, por força da grande repercussão que ganhou o caso de Afton, o U.S.
General Accounting Office realizou um estudo intitulado Siting of Hazardous Waste
Landfills and Their Correlataion with Racial and Economic Status of Surrounding
Communities. Surpreendentemente, os estudos revelaram que, apesar das comunidades negras da Região 4 (que compreende oito estados do sudeste dos EUA) corresponderem a apenas 20% (vinte por cento) da população total da área, grande parte dos
aterros comerciais de resíduos perigosos estavam instalados nas suas imediações.
Segundo Acselrad (2004), foi a partir das lutas de base similares àquela
enfrentada em Afton que a Justiça Ambiental passou a ser considerada como uma
problemática central nas lutas do movimento por direitos civis nos EUA. Essa
efervescência em torno dos protestos contra as iniquidades ambientais fez com que a
United Church of Christ, por meio de sua Comissão de Justiça Racial, em 1987,
divulgasse um estudo contendo importantes constatações sobre as relações entre
deposição de rejeitos tóxicos e comunidades negras nos EUA. A pesquisa revelou
que as localizações de depósitos de resíduos perigosos naquele país apresentavam
um padrão cujo principal fator influenciador era a composição racial das comunidades
afetadas. Embora, existisse também uma forte relação com o fator renda, em muitos
casos, comunidades pobres compostas majoritariamente por pessoas brancas não eram
afetadas pelo problema, o que demonstrou que a cor da pele possuía mais peso do
que a renda no momento da escolha sobre a localização dos aterros. Essa constatação
fez com que o reverendo Benjamin Chavez cunhasse a expressão “racismo ambiental”
para designar “a imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos
às comunidades de cor” (PINDERHUGHES apud ACSELRAD, 2004, p. 26).
Em 1991, como resultado da I Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas
de Povos de Cor, realizada em Washington, foi lançado o documento “17 princípios
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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da Justiça Ambiental”. Durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, o documento
foi amplamente divulgado de forma que o movimento ganhou eco em diversas partes
do mundo.
Para Acselad, Herculano e Pádua (2004), no Brasil, a Justiça Ambiental tem
ganhado novas interpretações, indo muito além do debate acerca da contaminação
química e da questão racial.
As gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e naturalizam um conjunto de situações
caracterizadas pela desigual distribuição de poder sobre a base material da vida social e do
desenvolvimento. A injustiça e a discriminação, portanto, aparecem na apropriação elitista
do território e dos recursos naturais, na concentração dos benefícios usufruídos do meio
ambiente e na exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do
desenvolvimento (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 10).
A partir de 2001, como resultado do I Colóquio Internacional sobre Justiça
Ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado no campus da Universidade Federal Fluminense em Niterói, foi criada a Rede Brasileira da Justiça Ambiental (RBJA). De
acordo com essa rede, constituída por pesquisadores, sindicatos, movimentos ambientalistas, organizações não-governamentais e movimentos populares, compreendese por Justiça Ambiental:
O conjunto de princípios e práticas que:
a – asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma
parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas,
de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência
ou omissão de tais políticas;
b – asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;
c – asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais
e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos
democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que
lhes dizem respeito;
d – favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e
organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de
desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a
sustentabilidade do seu uso. (REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL, 2001)
Depreende-se que a justiça ambiental está calcada em quatro pilares básicos,
que podem ser assim resumidos: 1) distribuição igualitária das consequências ambientais negativas decorrentes das atividades humanas; 2) equidade no acesso aos recursos naturais; 3) democracia participativa e direito à informação; 4) sustentabilidade.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Cabe salientar, por oportuno, que tais valores não estão restritos exclusivamente
ao âmbito das mobilizações sociais, encontrando paralelos importantes no
ordenamento jurídico pátrio. Por todo o texto constitucional percebe-se uma sucessão
de princípios e garantias que dão suporte jurídico a um novo paradigma socioambiental
que deve informar as políticas públicas e as ações dos particulares. O princípio da
isonomia, consagrado no caput do art. 5º é um exemplo concreto disso.
Ainda tratando do art. 5º, dentre tantos direitos e garantias fundamentais,
destaca-se a liberdade de associação (XVII), a função social da propriedade (XXIII),
o direito de informação (XXXIII), o direito de petição (XXXIV, “a”) e a Ação Popular
(LXXIII) como instrumentos que contribuem para o exercício da cidadania.
Saltando para o capítulo relativo ao meio ambiente, o art. 225 da Carta Magna
estabelece que a ele todos têm direito, reconhecendo-o como essencial para a sadia
qualidade vida das presentes e futuras gerações. Ao consagrar a solidariedade intergeracional, a Constituição não apenas impõe que sejam respeitados os direitos daqueles que ainda não nasceram, mas também solidifica o princípio da
não-discriminação entre a atual geração. Isso porque, seria impossível defender o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para uma parcela da população, uma vez que tal direito apresenta-se como difuso e indivisível. Cabe salientar
que a concepção de meio ambiente não fica restrita à “natureza intocada”, mas incorpora o patrimônio histórico-cultural, o meio ambiente do trabalho e o meio ambiente
construído.
Especificamente no que concerne à proteção ambiental nas cidades é relevante
destacar que a Constituição de 1988, influenciada pelas reivindicações do Movimento
Nacional de Reforma Urbana, inaugurou novos paradigmas jurídico-urbanísticos no
tratamento da propriedade urbana no país. Calcado fundamentalmente no princípio
da função social da propriedade, o ordenamento jurídico brasileiro rompeu com a
clássica e ultrapassada concepção individualista de propriedade privada, que justificava
poderes absolutos aos proprietários. Nos dizeres de Silva (2006),
[...] a função social manifesta-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade,
pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de
aquisição, gozo e utilização dos bens. Por isso é que se conclui que o direito de propriedade
não mais pode ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social,
sem impedir a existência da instituição, modifica sua natureza.
Há, portanto, uma consciente opção do legislador constituinte em limitar os
poderes inerentes à propriedade, condicionando-os ao benefício da coletividade. No
caso, de acordo com o art. 182, § 2º, da Constituição de 1988, compete ao Plano
Diretor Municipal estabelecer as condições que determinam o cumprimento da função
social da propriedade. Apesar da liberdade conferida ao legislador municipal para
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
279
que estabeleça o conteúdo da função social da propriedade urbana no Plano Diretor,
é evidente que a interpretação do dispositivo constitucional não se pode dar
isoladamente, mas sim de forma sistemática, tomando-se como elementares os demais
princípios estabelecidos na própria Constituição e na legislação infraconstitucional
em vigor.
Com a promulgação, em 2001, da Lei Federal nº 10.257, conhecida como
Estatuto da Cidade, o Capítulo da Política Urbana da Constituição Federal foi
regulamentado e a função social da propriedade urbana ganhou delineamento mais
preciso, conforme artigo 2º da referida Lei:
Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas
dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano;
(...)
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo
a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente;
(...)
IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
Nota-se que o Estatuto da Cidade positivou valores que submetem a propriedade
urbana não apenas a uma função social, mas a uma função socioambiental.
Sobre a cidade sustentável, Carrera (2005, p. 33-34) compreende que ela “nada
mais é do que uma cidade onde se pratica, efetivamente o desenvolvimento sustentável,
com o objetivo constitucional e primordial de se garantir o sustento das gerações
presentes e futuras”.
Para alguns setores ambientalistas, um dos mais perigosos vilões contra o
desenvolvimento sustentável nas cidades é a população ocupante de áreas
ambientalmente frágeis que ali estabelece seu local de moradia. Contudo, tratando da
integração do que chama de agendas verde e marrom, Fernandes (2006) questiona
se, de fato, há um conflito entre direito à moradia e meio ambiente nas cidades
brasileiras. Para o autor, “trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceituai, qual seja, o
princípio da função socioambiental da propriedade” (FERNANDES, 2006, p. 357).
A criminalização das áreas de risco deveria, portanto, reverter-se em uma análise
mais crítica sobre a possibilidade de acesso à terra urbana e a efetivação do direito à
moradia pela população mais pobre.
Ajusta distribuição dos benefícios e ônus oriundos da urbanização, em geral, é
entendida como sendo a possibilidade de recuperação dos investimentos do poder
público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos. Entretanto, sem
abandonar essa concepção, é necessário interpretar esse princípio com um outro sentido
complementar ao primeiro. A justa distribuição dos benefícios e ônus da urbanização
impõe não apenas que toda a coletividade seja responsável pelo custeio das obras
públicas e que colha de forma igualitária a valorização econômica decorrente dessas
obras. Nem todos os benefícios revertem-se em valorização dos imóveis privados,
havendo também ganhos para a qualidade de vida em função da preservação ambiental.
É importante, assim, que toda a população possa ter acesso a áreas saudáveis e dotadas
de infra-estrutura para estabelecer seu local de moradia, realizar seu lazer ou
desenvolver suas atividades de trabalho.
A Justiça Ambiental, como movimento e princípio, insere-se, diante do exposto
também na realidade jurídica brasileira, em especial no que tange à problemática
urbana. Em função disso, o planejamento urbano e a apropriação do solo nas cidades
pode ser analisada com base nos eixos centrais que compõem o conceito de Justiça
Ambiental, demonstrando que não deve existir dissociação entre o direito à moradia
digna e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
2 ACESSO A TERRA URBANA E O PARCELAMENTO DO SOLO EM
FORTALEZA/CE
Fortaleza teve, ao longo de sua história, um forte processo de exclusão
socioterritorial, cujos reflexos são hoje inegáveis. De um lado, a cidade possui bairros
integralmente dotados de infra-estrutura e serviços urbanos, mas, de outro, milhares
de habitantes convivem com a falta de serviços e com a precariedade da moradia.
Segundo Rodrigues (2003), um elemento de destaque que conduz à cisão das
cidades é o fato serem socialmente produzidas, mas a renda do solo é individualmente
apropriada. Nesse sentido, os investimentos públicos valorizam o solo urbano,
contribuindo para o aumento de seu preço e beneficiando, por conseguinte, os
proprietários.
O preço da terra varia em função da apropriação privada (escassez), da procura,
da localização e da infra-estrutura existente. Quanto maior for a procura por imóveis
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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em dada região, ou quanto melhor forem as condições de vida naquela área, ou ainda
quanto maiores forem os benefícios decorrentes da localização do imóvel, maior será
seu preço. Como o acesso à terra se dá, em geral, por meio de compra e venda, “os
que mais precisam usufruir de uma ‘cidade com serviços e equipamentos públicos’ –
aqueles que têm baixos salários – compram lotes/casas em áreas distantes, onde o
preço é mais baixo” (RODRIGUES, 2003, p. 22).
Impedida de ter acesso a bons imóveis pelas vias do mercado, uma parcela
considerável da população busca alternativas na irregularidade através de ocupações
de terra, compra de lotes em parcelamentos clandestinos e autoconstrução de suas
moradias sem observância das normas de uso, ocupação e edificação do solo. Nesse
sentido, diversas áreas de preservação permanente ao longo de rios, riachos, lagos e
lagoas, em dunas e manguezais sofrem processos de ocupação inadequada, dando
origem às chamadas áreas de risco. Hoje, Fortaleza possui 103 áreas de risco e 632
favelas. Para se ter uma ideia da dimensão econômica da exclusão socioambiental, o
Senso 2000 do IBGE indica que o município possui 54.690 domicílios sem banheiro,
dos quais 84,29% concentram-se na faixa de renda familiar de até 3 salários mínimos.
Fortaleza conta com um déficit habitacional de 77.615 moradias e a Região
Metropolitana apresenta uma carência de 122.988 habitações (IBGE, 2000). Essa
carência por moradia possui uma forte marca no que diz respeito à renda, atingindo
intensamente os mais pobres. Sabe-se que mais de 80% do déficit habitacional está
concentrado no grupo de famílias que possuem uma renda mensal de 0 a 3 salários
mínimos. Considerando uma faixa de renda de 0 a 5 salários mínimos esse percentual
chega a 90% do total.
Um dos aspectos cruciais na política pública de moradia é o debate sobre o
papel do poder público e da iniciativa privada na produção de habitação de interesse
social. Historicamente, o mercado imobiliário esteve preocupado em construir
habitações para as classes mais abastadas, só voltando sua atenção para a habitação
popular quando contratado pelo poder público para tal. Como consequência, um grande
contingente excluído dos mecanismos formais de acesso à moradia busca alternativas
nas ocupações irregulares, favelas e loteamentos clandestinos. Diante da baixa
qualidade de vida dessa população, o poder público é pressionado a construir
habitações de interesse social para suprir a falta de oferta do mercado imobiliário
para os níveis de renda mais baixos. O desafio imposto aos governos municipais,
portanto, é ter a capacidade de desenvolver uma política de acesso democrático à
terra urbana, possibilitando que a população de baixa renda possa morar em áreas
dotadas de boas condições de infra-estrutura, serviços urbanos e qualidade ambiental.
Visando à ampliação da oferta de áreas para habitação de interesse social, a
Lei Orgânica do Município de Fortaleza, em seu art. 152, institui o Fundo de Terras.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Conforme a Lei Municipal nº 6.541/89, o Fundo é composto por: 1) terras do
patrimônio municipal, ressalvados os terrenos institucionais; 2) áreas objeto de
transferência de domínio do patrimônio da União ou Estado para o município; 3)
áreas decorrentes de permuta do Poder Público Municipal, dos direitos de construção,
para as zonas dotadas de infra-estrutura urbana e equipamentos sociais; 4) áreas objeto
de doações ou transferências para fins de implantação de programas habitacionais de
interesse social; 5) áreas desapropriadas pelo Poder Público Municipal para integrarem
programas habitacionais; 6) o percentual de área exigido quando da aprovação de
projetos de parcelamento (a Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo 3º, III, determina
a necessidade de destinação de no mínimo 5% da área total objeto do parcelamento
do solo, para implantação de programas habitacionais de interesse social). Os imóveis
que integram o Fundo de Terras devem ser destinados à implantação de programas
habitacionais de interesse social.
A determinação do percentual obrigatório de 5% (cinco por cento) do total da
área de cada loteamento estabelecido pela Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo
3º, inciso III, é fundamental para se ter uma política urbana mais justa, ampliando a
atuação do poder público no enfrentamento das demandas por moradia popular, e
efetivando a função socioambiental da propriedade, sem encargos para o erário e
sem demandas judiciais.
A legislação municipal permite a opção de oferta de outra área estranha aos
loteamentos em geral, em qualquer outra zona da cidade, desde que ocorra a prévia
aprovação do Poder Público e seja mantida a equivalência dos seus preços de mercado.
No entanto, o controle e a gestão dessa permuta deveriam, segundo a Lei Orgânica
do Município de Fortaleza, ser fiscalizado e gestionado pelo Conselho Municipal de
Habitação Popular (CONHAP) e, portanto, somente aceito mediante deliberação desse
Conselho. Percebe-se um avanço importante no sentido de estabelecer um controle
social do Fundo de Terras municipal garantindo participação popular em seu
planejamento e gerenciamento.
Considerando a proposta de inclusão, no PL 3.057/2000, de mecanismo
semelhante ao já aplicado em Fortaleza há quase dez anos, qual seja, um percentual
dos parcelamentos que deve ser destinado a habitação de interesse social, é importante
avaliar quais os aprendizados que a experiência municipal tem a oferecer.
Um primeiro problema na execução da política municipal de parcelamento do
solo diz respeito ao controle social e à participação popular. O Conselho de Habitação
Popular, criado por meio da Lei Municipal nº 8.214/98, encontrava-se totalmente
desarticulado e inoperante até o ano de 2007. A referida lei nomeou expressamente
quais as entidades que deveriam integrar o CONHAP, não havendo nenhuma previsão
de processo democrático para escolha desses representantes. Em razão disso, passados
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
283
quase dez anos após sua criação, algumas das entidades da sociedade civil indicadas
na lei já não mais existiam. Da mesma forma, diversas secretarias municipais foram
extintas e outras surgiram, não havendo previsão de sua participação. Para se ter uma
ideia, a Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR),
entidade de administração indireta responsável pela política habitacional do município,
criada em dezembro de 2003, não tinha assento no Conselho. Tal situação fez com
que o CONHAP se transformasse em uma estrutura defasada e sem capacidade de
exercer suas atribuições.
Com a inoperância do Conselho, o parcelamento do solo urbano em Fortaleza
passa a ser conduzido exclusivamente pelo corpo técnico sem nenhum tipo de controle
social. Assim, as permutas de imóveis previstas na lei municipal para suprir a exigência
de destinação de 5% dos parcelamentos para habitação de interesse social passaram
a ser objeto de deliberação da Secretaria de Infra-Estrutura sem a participação do
CONHAP.
No ano de 2005, inicio de uma nova gestão municipal, a HABITAFOR ganha
mais destaque graças ao preocupante déficit habitacional. Há, assim, mais
investimentos na área habitacional e Fortaleza começa a desenvolver uma política
mais consistente. Nesse contexto, ao se planejar a construção de novos conjuntos
habitacionais, os imóveis constantes do Fundo de Terras tomaria um papel estratégico.
Contudo, a ausência de controle social no parcelamento do solo, fez com que inúmeras
permutas de imóveis fossem aprovadas, transformando o que deveria ser excepcional
em regra. Boa parte das terras provenientes de doação dos loteadores não integravam
seus loteamentos, localizando-se, em geral, em áreas distantes, com dificuldade de
acesso, infra-estrutura precária e condições ambientais impróprias.
O gerenciamento das permutas por parte do corpo técnico do município não
foi capaz fiscalizar adequadamente os imóveis doados. Não apenas pela quase
inexistência de fiscais na prefeitura, mas também em virtude de uma visão de
urbanização segregadora, as gestões municipais anteriores haviam colaborado
fortemente para a cisão da cidade.
Não havia e ainda não há, em Fortaleza, um plano municipal de habitação, o
que dificulta a execução articulada das diversas ações nessa área. Da mesma forma,
o crescimento da cidade não é planejado por meio de um plano de expansão urbana,
ficando a critério do mercado definir onde e quando deverão ocorrer os novos
parcelamentos.
A previsão de destinação obrigatória de 5% da área dos loteamentos para
habitação de interesse social, embora represente uma medida considerada avançada,
não proporcionou mudanças na configuração excludente do crescimento urbano de
Fortaleza. A maior parte da população continua residindo em condições de
284
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
irregularidade, pois não consegue ter acesso à terra pelas vias formais do mercado. A
ação direta do município na construção de habitações também não se revela capaz de
integrar a população mais pobre à cidade formal, já que as terras que dispõe estão
localizadas nas bordas da cidade ou em regiões com infra-estrutura precária.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ACESSO A TERRA E (IN)JUSTIÇA AMBIENTAL
Em razão da segregação sócio-espacial verificada nas cidades, e com mais
veemência nas grandes metrópoles, a população mais pobre fica desprovida não
somente dos serviços básicos de infra-estrutura e equipamento urbanos. Sofre também
com a ausência de condições dignas de moradia, encontrando, em muitas situações,
uma única alternativa: ocupar irregularmente áreas insalubres. Tais áreas são associadas
à vulnerabilidade da população às condições ambientais, posto que, em geral, são
localizadas em margens de rios e lagoas, encostas de morros, áreas de mangue ou
formações de dunas.
Diante dessa constatação, Guerra e Cunha (2005, p. 27) concluem que “os
problemas ambientais (ecológicos e sociais) não atingem igualmente todo o espaço
urbano. Atingem muito mais os espaços físicos de ocupação das classes sociais menos
favorecidas do que os das classes mais elevadas”. No caso de Fortaleza, as 103 áreas
de risco evidenciam tal realidade.
Resgatando os quatro eixos que integram o conceito de Justiça Ambiental,
percebe-se que o crescimento urbano no caso em estudo conduz a uma cidade injusta
que submete uma parcela da população a condições ambientais degradantes de maneira
desproporcional. Com efeito, de forma alguma há equidade no acesso da população
aos recursos ambientais, às áreas de lazer, aos espaços públicos ou à terra urbanizada.
No que diz respeito à democracia participativa e ao acesso à informação, a
experiência do CONHAP demonstra que as gestões municipais não apresentavam
nenhum esforço em manter o controle social. Recentemente, o Conselho foi
reestruturado, Conferências da Cidade foram realizadas em consonância com as
Conferências Nacionais e tem havido uma maior abertura para o diálogo com os
movimentos sociais. Os avanços, contudo, são recentes se comparados aos anos em
que a cidade foi esteve desprovida de um planejamento democrático. Seus efeitos
são ainda tímidos no que diz respeito à ampliação da oferta de terra urbana para as
camadas de mais baixa renda da população.
Por fim, a sustentabilidade urbana, considerada pelo Estatuto da Cidade como
sendo o acesso “à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes
e futuras gerações”, está longe de ser alcançada.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
285
O intento do presente artigo foi trazer contribuições para o debate da revisão
da legislação federal de parcelamento do solo, especificamente no que diz respeito à
exigência de destinação de percentual obrigatório dos parcelamentos para habitação
de interesse social. A visão aqui apresentada não deve ser compreendida como uma
crítica a tal mecanismo, mas um alerta sobre como os municípios devem implementar
essa medida. A participação popular é, assim, um componente central que deve ser
fortalecido para que haja democratização do acesso à terra.
Uma segunda contribuição foi a tentativa integrar a concepção de Justiça
Ambiental na análise do crescimento urbano. O intuito é de demonstrar que as agendas
da moradia e do meio ambiente não são conflitantes, mas complementares.
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SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
8
PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E
INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA
A Outorga Onerosa do Direito de Criar Solo:
a Experiência da Cidade de Porto Alegre
ANDREA TEICHMANN VIZZOTTO1
Procuradora do Município de Porto Alegre.
1. NOÇÕES PRELIMINARES
A acelerada ocupação desordenada do solo urbano com o desequilíbrio à infraestrutura urbana foi um dos fatores responsáveis pelo surgimento na Europa, na década
de 70, do denominado “solo criado” como instrumento de planejamento e gestão
urbanística, oriundo da ideia da separação do direito de construir do direito de
propriedade (GRAU, 1976; ALOCCHIO, 2005; SILVA 2006). O pressuposto era o
de que o direito de construir pertenceria à coletividade, não podendo ser
individualizado, senão por meio de ato administrativo de concessão ou autorização
do Poder Público (GRAU, 1976; COLLADO, 1979). Para o interessado em construir
acima do limite único de construção fixado seria prevista a possibilidade, mediante
uma contraprestação ao poder público, de assim o fazer. Essa contraprestação visava
a compensar os efeitos do adensamento decorrentes da construção acima do coeficiente
único de aproveitamento previsto nos planos diretores. A proposta teórica pretendia,
também, solucionar os problemas decorrentes da supervalorização de determinadas
áreas da cidade em razão das possibilidades de construção e adensamento. Construir
além do limite legal mediante contrapartida significava ir além do coeficiente único
de aproveitamento. Significava o pagamento pela criação do solo novo: o “solo criado”,
ou melhor dizendo, a outorga onerosa de criar solo2.
1
Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Especialista em Direito
Municipal pela Escola Superior de Direito Municipal e Faculdade Ritter dos Reis. Especialista em Revitalização
de Patrimônio Histórico em Centros Urbanos pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Professora de Direito
Administrativo da Faculdade de Direito de Osório – FACOS. Co-Autora das obras: Temas de Direito UrbanoAmbiental e Direito Municipal em Debate.
2
Ver a respeito da diferenciação entre o direito de construir e o direito de criar solo a preciosa lição do Ministro
Eros Roberto Grau na relatoria do recurso extraordinário nº 387047-5, de 02-5-2008, do Supremo Tribunal
Federal. In www.stf.gov.br. Acesso em 05-5-2008.
290
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Seria possível, então, o controle do uso e ocupação do solo, como medida
restritiva ou incentivadora do desenvolvimento de áreas da cidade. Ademais, o “solo
criado” visava também a corrigir distorções quanto à apropriação desigual do solo
urbano, assim como a incidir sobre a distribuição dos benefícios gerados pela ação
da administração pública, bem como sobre a repartição dos encargos gerados pelo
uso do solo e a classificação uniforme dos efeitos decorrentes da valorização dos
imóveis (GRAU, 1977, p. 32).
Além de ser classificado como mecanismo de planejamento e gestão, pela
incidência mais rápida e mais direta sobre o território da cidade, “o solo criado” é
classificado, também, como um instrumento jurídico. Isso porque regula o exercício
do direito de propriedade, autorizando a compra de solo do poder público acima do
limite básico previsto em lei.
Em um rapidíssimo relato histórico, nos limites deste trabalho, no mês de
dezembro de 1976 foi editada a “Carta do Embu” que, inspirada na legislação francesa,
introduziu o “solo criado” no Brasil, adotando a tese de estar o direito de construir
inserido no de propriedade, no limite do coeficiente único de aproveitamento3. A
partir daí, o solo excedente deveria ser adquirido do Poder Público, como titular do
direito de edificar. Além disso, nos termos das bases teóricas a exploração e a
valorização da propriedade dependeria da infra-estrutura pública oriunda dos recursos
advindos de toda a coletividade, sem a qual a atividade aplicada à propriedade
individual não poderia se perfectibilizar. A rentabilidade do solo urbano não decorreria
de ação exclusiva do proprietário, mas de um conjunto de ações do setor público e
privado.
Dever se considerado também que, se por um lado os investimentos públicos e
privados incrementam o uso individual da propriedade, também é verdade que há um
valor econômico inerente à propriedade em si. Assim, partia-se da premissa de haver
um padrão correspondente a esse valor econômico, impedindo que alguns proprietários
se privilegiassem em detrimento de outros (GRAU, 1976, p. 25). A tradução desse
padrão, em termos urbanísticos, seria o coeficiente de aproveitamento, logicamente
único. Nada mais justo, então, que o proprietário interessado em criar solo acima do
permitido compensasse o Poder Público pelo acréscimo de demanda de infra-estrutura
e serviços urbanos. Necessário, assim, que o Poder Público assegurasse a proporção
entre solos públicos e privados, com uma equação equilibrada entre atividades privadas
e as áreas de circulação e de equipamentos públicos e comunitários. Portanto, a outorga
3
Diferentemente da ideia inicial de coeficiente único para todo o território urbano, o artigo 28 da Lei Federal nº
10.257, de 20-7-01, Estatuto da Cidade, prevê a possibilidade de índices diferenciados para as diversas áreas da
cidade. A experiência de Porto Alegre na utilização do solo criado com índices diferenciados ilustra os efeitos da
aplicação dessa política destoante das ideias teóricas do instrumento jurídico-urbanístico.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
291
onerosa de criação de solo é pautada pela equidade no exercício do direito de
propriedade, garantido o coeficiente único de aproveitamento a todos os proprietários
de terrenos. Além disso, parte-se do princípio de que, havendo construção acima
desse limite, necessário compensar, mediante contrapartida, a outorga deferida. Os
recursos arrecadados com a outorga do direito de criar solo devem estar diretamente
vinculados à execução de obras e serviços que redundem em melhoria das condições
de vida urbana, na questão da infra-estrutura e na da habitação popular. Essa necessária
vinculação dos recursos justifica-se como medida de compensação pelo adensamento
do solo e da infra-estrutura da cidade.
2. A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO E A
LEGISLAÇÃO DA CIDADE DE PORTO ALEGRE
Em Porto Alegre, o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, instituído
pela Lei Complementar nº 43, de 21-7-79, já previa, ainda que de forma tímida, a
alienação ou permuta de “índices de aproveitamento”, denominados “índices
construtivos”, que correspondiam à mobilidade da capacidade de construir4-5, utilizados
como instrumento de gestão e controle da ocupação e do uso do solo urbano6.
A Lei Municipal nº 159, de 22-7-877 instituiu o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, de “natureza contábil especial, cujos recursos se destinam a apoiar
4
Artigo 170 – As áreas vinculadas a recuos viários projetados, aberturas de vias constantes do esquema viário
estabelecido pelo traçado do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e a instalação de equipamentos
urbanos, referidos no parágrafo único, inciso II do artigo 139, constituem a reserva de índice construtivo da
respectiva Unidade Territorial, destinada à aquisição, parcial ou total, pelo Município, dos imóveis atingidos
por essa vinculação, nos termos seguintes: I – permuta pela faculdade de construir, em qualquer gleba ou lote
localizado na mesma Unidade Territorial de Planejamento, ressalvado o parágrafo único deste artigo, área
correspondente ao índice de aproveitamento incidente na mesma Unidade Territorial, acrescido de área que o
proprietário poderia construir em seu imóvel na parte atingida pela vinculação da qual se trata; (...)
Parágrafo único – Quando se tratar da preservação de prédio identificado de interesse sócio-cultural na forma
da Lei, fica ressalvada a hipótese de aplicação da reserva de índice construtivo em outras Unidades Territoriais,
além daquela a que se refere o inciso I deste artigo, a critério do Sistema Municipal de Planejamento e
Coordenação do Desenvolvimento Urbano, tendo por base:
I – a identificação das Unidades Territoriais, cuja densidade esteja saturada e daquelas passíveis de acréscimo
em seu adensamento, de acordo com os padrões do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano;
II – a manutenção de um equilíbrio entre os valores do terreno permutado e do terreno no qual seja aplicada a
reserva de índice construtivo, de acordo com avaliação dos órgãos técnicos municipais competentes.
5
A reserva de índices construtivos era utilizada para a permuta de área pelo direito de construir em áreas vinculadas
a recuos viários projetados, aberturas de ruas e instalação de equipamentos. Essa hipótese correspondia ao que
atualmente a Lei Complementar nº 434 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, no artigo 51
e seguintes, denomina de Transferência de Potencial Construtivo.
6
Como em outras cidades brasileiras, Porto Alegre adotou o solo criado como instrumento jurídico urbanístico,
bem antes da sua adoção pela Lei Federal nº 10.257, de 10-7-2001, Estatuto da Cidade.
7
Essa lei foi regulamentada pelo Decreto Municipal nº 9.001, de 08-10-87, alterado pelo Decreto nº 9581, de 1º12-89. Esse foi alterado pelo Decreto nº 10.749, de 28-9-93 e 11.098, de 16-9-94.
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
292
em caráter supletivo os programas e projetos relacionados com o desenvolvimento
urbano, implantados ou coordenados pela Secretaria de Planejamento Municipal”8,
formado por receitas provindas de dotações orçamentárias específicas do Município
e, entre outras, das receitas resultantes da alienação de reserva de índices construtivos, vinculados diretamente à implantação do traçado do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e à melhoria da infra-estrutura urbana já existente.
Logo após, no ano de 1988, surgiu a Constituição Federal como um marco
importante, ao dedicar capítulo específico à política urbana, atribuindo aos municípios
a competência para a ordenação territorial.9
A seguir, no ano de 1989, foi editada a Lei Orgânica do Município de Porto
Alegre como a lei de maior hierarquia no sistema jurídico municipal. Isso significa
dizer que as diretrizes e normas gerais para o Município de Porto Alegre foram
delineadas pela Lei Orgânica10.
Nessa cronologia legislativa, em janeiro de 1994, foi editada a Lei Complementar nº 315, que regulamentou o artigo 21311 da Lei Orgânica de Porto Alegre,
constituindo-se em marco significativo na adoção do solo criado na cidade de Porto
Alegre. Pelo artigo 1º da Lei Complementar o solo criado foi caracterizado como
instrumento urbanístico com os objetivos de incentivar a construção civil, através da
utilização plena da capacidade construtiva, permitindo uma densificação populacional em regiões da cidade melhor atendidas com redes de serviço, saneamento e equipamentos públicos; evitar o adensamento populacional em regiões com estrutura
urbana precária, através do aumento do potencial construtivo das regiões passíveis
de densificação populacional; obter, pelos recursos auferidos, o retorno dos investimentos públicos, buscando o desenvolvimento harmônico da cidade, particularmente através da compra de áreas urbanas incorporadas ao Banco da Terra, visando a
políticas habitacionais para a população de baixa renda e regularização fundiária;
8
Artigo 1 º da Lei Complementar nº 159.
9
Artigo 30, II e VIII e artigo 182 e seguintes.
10
Art. 202 – São instrumentos do desenvolvimento urbano, a serem definidos em lei: (...)
VII – o solo criado;
(...)
Art. 204 – Para os fins previstos no artigo anterior o Município usará, entre outros, os seguintes instrumentos:
(...)
II – jurídicos:
(...)
I) solo criado;
11
Art. 213 – Incorpora-se à legislação urbanística municipal o conceito de solo criado, entendido como excedente
do índice de aproveitamento dos terrenos urbanos com relação a um nível preestabelecido em lei.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
293
propiciar, por meio dos recursos auferidos, investimentos em urbanização e equipamentos públicos nas regiões carentes da cidade e a complementação da infra-estrutura urbana das regiões melhor estruturadas, bem como a implantação do traçado do
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, favorecendo, assim, o pleno aproveitamento do potencial construtivo destas regiões e auxiliar e incentivar supletivamente,
por meio dos recursos auferidos, outras políticas públicas, preferencialmente, nas
áreas de proteção ao menor, à cultura e ao patrimônio histórico.
Por meio da outorga onerosa todo o proprietário teria o direito de construir até
o coeficiente de aproveitamento correspondente a uma vez a área do terreno. Isso
significava que até o coeficiente de aproveitamento 1,0, o proprietário do imóvel
necessitaria apenas do projeto arquitetônico aprovado e licenciado pelo poder público
para edificar. Além desse limite, o interessado deveria obter, mediante outorga, os
índices de aproveitamento correspondentes à metragem de criação de solo.12
A Lei, no artigo 2º, criou uma exceção a esse coeficiente de aproveitamento
básico, garantindo a manutenção dos critérios de definição da capacidade de construir
dos terrenos estabelecida pelo anterior Plano Diretor, sem o ônus do “solo criado”.
Com isso, somente os incrementos propostos para além dos coeficientes de
aproveitamento já existentes na matriz apresentada pelo Plano Diretor da época
corresponderiam ao “solo criado”13.
Não obstante essa exceção de manutenção dos coeficientes de aproveitamento
diferenciados previstos pela legislação anterior, fator determinante ao afastamento
da legislação da capital gaúcha das linhas conceituais teóricas da “Carta do Embu”,
foi mantida a ideia de criação de solo em contraposição à compensação decorrente
do adensamento. Também foram agregadas outras formas de utilização dos recursos
advindos da venda de solo criado, citando-se, por exemplo, o auxílio e incentivo, de
forma a suplementar outras políticas públicas.14 Verifica-se então que, além do
12
Sobre a diferenciação desses dois tipos distintos de atos administrativos ver capítulo anterior a respeito da
natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir.
13
Artigo 2º [...]
§ 1º – Ficam isentadas do ônus do Solo Criado:
I – as edificações já existentes, cuja capacidade construtiva esteja em conformidade com a legislação urbanística
vigorante na época da construção;
II – a capacidade construtiva dos terrenos expressa nos atuais índices do PDDU.
§ 2º – Não haverá ônus de Solo Criado para as edificações que vierem a ser construídas dentro dos limites
impostos pelos índices 1,0 ou da capacidade construtiva permitida pelos atuais índices do PDDU.
§ 3º – Qualquer aumento do potencial construtivo da cidade, seja por incorporação de novas áreas à área
urbana de Ocupação Intensiva ou por aumento da capacidade de edificação nas atuais UTPs, ou em outras
áreas adensáveis do PDDU, dar-se-á na forma de Solo Criado, observado o disposto no “caput” deste artigo
e em seu § 1º, nos termos desta Lei Complementar.
14
Artigo 1º, inciso V da Lei Complementar nº 315.
294
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
alargamento das hipóteses de utilização dos recursos do Fundo Municipal de
Desenvolvimento Urbano, a exceção passou a regra geral. O pagamento em dinheiro
pela criação de solo passou a ser a regra.
Se no Plano Diretor de 1979, ainda sob a influência da “Carta do Embu”, os
fins da operação de venda de solo eram atinentes à compensação da infra-estrutura
urbana, mediante monitoramento específico, tais propósitos foram bastante alargados.
A vinculação das receitas arrecadadas visava a uma finalidade específica, com o uso
exclusivo na compensação decorrente do adensamento específico ou no custeio de
política habitacional. Tanto em uma como em outra hipótese haveria a compensação
originada pela criação de solo.15 Inegável que o gasto dos recursos vinculados ao
Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano em políticas públicas de proteção da
cultura e do menor, por exemplo, não obstante a sua importância, enfraqueceram a
natureza eminentemente urbanística do instituto do solo criado.16
A Lei Complementar nº 315 foi regulamentada pela Lei Municipal nº 7.592,
de 12-01-95, que instituiu o Fundo Municipal de Desenvolvimento, como fundo
contábil especial para financiar a política habitacional do Município de Porto Alegre.
Note-se que a regulamentação da Lei Complementar nº 315 tratou da política
habitacional do Município de Porto Alegre, inserido o uso do “solo criado”. Ou seja,
a regulamentação não se ateve aos objetivos previstos, mas regulou aspectos de política
habitacional, em um alargamento juridicamente impróprio, quer do ponto de vista
formal-legislativo, quer do ponto de vista material.
Se por um lado houve o incremento de recursos arrecadados pelo Fundo de
Desenvolvimento, formado a partir do disposto no artigo 2º da Lei Municipal nº
7.59217, por outro lado houve uma pulverização de finalidades públicas. A própria
15
O gasto dos recursos com o financiamento de outras políticas públicas deu azo a entendimentos doutrinários
relativos à natureza arrecadatória da outorga onerosa (ALOCCHIO, 2006, p. 57).
16
A natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir foi examinada em recente decisão do Supremo
Tribunal Federal, cuja relatoria coube ao eminente Ministro Eros Roberto Grau, já anteriormente referida.
17
Os recursos do FMD provirão:
I – da taxa de licenciamento de construção, calculada com fundamento no custo unitário básico da construção
ou em outro índice que venha a substituí-lo;
II – dos recursos auferidos com a aplicação do instituto do solo criado e da alienação da reserva de índices;
III – de recursos orçamentários do Município;
IV – de contribuições, transferências, subvenções, auxílios ou doações dos setores público e privado, bem como
de organismos nacionais ou internacionais;
V – dos recursos auferidos com as contribuições mensais obrigatórias decorrentes da aplicação das Leis
Complementares 242/90 e 251/91.
VI – de recursos provenientes de Fundos Estaduais ou Nacionais;
VII – de recursos auferidos com a aplicação do previsto no parágrafo único da Lei Complementar nº 312/93;
VIII – de rendas provenientes da aplicação de seus recursos, bem como de outras receitas que lhe vierem a ser
destinadas.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
295
origem das receitas integrantes do Fundo de Desenvolvimento ratifica a ideia de ser
política urbano-habitacional muito mais ampla do que a mera operação matemática
decorrente da compensação da infra-estrutura em razão do adensamento, como
dispunha o comando da Lei Complementar nº 315. Com a combinação do disposto
pelo inciso II do artigo 1º com o artigo 4º da Lei Municipal nº 7.592 os recursos da
venda de solo criado passaram a ser utilizados na remoção de moradias em área de
risco e reassentamento, despesas cartorárias e registrarias decorrentes dos processos
de regularização e de desapropriação. Além disso, os recursos passaram a financiar a
construção de albergues para crianças e adolescentes para fins de enfrentamento de
situações decorrentes de problemas habitacionais, programas de recuperação de
cortiços, em especial daqueles cuja arquitetura fosse significativa para o patrimônio
histórico e cultural da cidade. Nas hipóteses elencadas não há uma sequer que refira
a utilização dos valores arrecadados para compensação direta e específica à infraestrutura em decorrência da venda de solo e adensamento.
Portanto, o alargamento das hipóteses de utilização dos recursos advindos do
Fundo a situações relativas à política sócio-habitacional, desvirtuaram a ideia original
de aplicação do mecanismo urbanístico do solo criado na cidade de Porto Alegre.
Pode-se afirmar, assim, ter havido uma priorização à manutenção da situação
urbanística anterior. Embora uma das diretrizes do novo Plano tenha sido a da
articulação do novo ao pré-existente, o espaço privado ao público, bem como as
interfaces críticas da cidade (MARASQUIN, 1998, p. 45), pode-se deduzir também
ter havido a perpetuação do modelo pré-existente como justificador das novas regras.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre, Lei
Complementar nº 434, de 10-12-99, buscou alterar a política de planejamento da
cidade. A natureza reguladora da ocupação e do uso do solo urbano dos planos
anteriores deu lugar a um plano de cunho estratégico, estruturado por meio de
princípios, objetivos e metas.
A venda de solo foi prevista pelo atual Plano Diretor18, sempre orientada pelas
estratégias e pela interpretação sistemática, permanecendo em vigor a Lei
Complementar nº 315 e suas respectivas regulamentações.
18
Artigo 53. O Solo Criado é a permissão onerosa do Poder Público ao empreendedor para fins de edificação em
Área de Ocupação Intensiva, utilizando-se de estoques construtivos públicos, e rege-se pelo disposto na Lei
Complementam” 315, de 6 de janeiro de 1994.
§ 1º As vendas de estoques construtivos serão imediatamente suspensas mediante decreto do Poder Executivo,
em caso de se constatar impacto negativo na infra-estrutura decorrente da aplicação do Solo Criado, ou mesmo
quando se verifique a inviabilidade de sua aplicação em face dos limites estabelecidos para as Unidades de
Estruturação Urbana ou quarteirão, nos termos do art. 67. [...]
Artigo 110 – O Solo Criado e a Transferência de Potencial Construtivo serão aplicados em toda a Área de
Ocupação Intensiva, devendo atender aos limites máximos previstos no Anexo 6, considerando nesses limites o
296
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
O Plano Diretor de 1999 previu o monitoramento da densificação, por meio de
patamares máximos de densidade por Unidades de Estruturação Urbana. Esse
monitoramento permanente pretendia a observação da evolução da densidade urbana,
com a avaliação permanente da capacidade dos equipamentos urbanos e comunitários,
segundo parâmetros e critérios de qualidade quanto ao dimensionamento, carências
e tipologias.19Aliado nesse processo de planejamento e gestão, o monitoramento
constante e permanente funciona como peça-chave na ordenação da cidade, no controle
da ocupação e do uso do solo urbano e na medida concretização do modelo especial
traçado pelo Plano Diretor. A gestão dinâmica, contínua e flexível conjugada com o
sistema de informações previsto pelo artigo 46 e seguintes do Plano Diretor são
imprescindíveis ao monitoramento constante das condições da ocupação e do uso do
solo urbano.
No caso específico da outorga onerosa, o monitoramento subsidia as
informações sobre o adensamento de determinada área da cidade, permitindo que se
mantenha o equilíbrio com a infra-estrutura existente. Além disso, o monitoramento
da densificação permite a identificação dos eixos e padrões de crescimento da cidade
a fim de que sejam mantidas ou revisadas as metas e estratégias para determinadas
áreas, conforme o resultado desse acompanhamento constante.
Em Porto Alegre, há também, o controle numérico da metragem do estoque de
criação de solo posto à disposição de uma determinada Macrozona20-21. Esses controles
somatório dos índices privados e públicos. Artigo 111-O Solo Criado, estoques construtivos públicos alienáveis,
é constituído por:
I – índices alienáveis adensáveis;
II – áreas construídas não-adensáveis;
III – índices de ajuste.
§ 1º Índices alienáveis adensáveis correspondem às áreas de construção computáveis e às áreas construídas
não-adensáveis, nos termos do § 1º do art. 107.
§ 2º Áreas construídas não-adensáveis são as áreas definidas no art. 107, nos termos do § 4º do mesmo artigo.
§ 3º Índices de ajuste correspondem à aplicação de Solo Criado para ajuste de projeto, desde que não ultrapasse
a 10% (dez por cento) do índice de Aproveitamento do terreno, até o máximo de 100m2 (cem metros quadrados);
ou acima destes limites, a critério do SMGP (Sistema Municipal de Gestão do Planejamento), desde que
comprovadamente não resulte em densificação. (NR)
§ 4º O Solo Criado constituído de áreas construídas não-adensáveis e de índices de ajuste terão estoques
ilimitados.
19
Artigo 71 do PDDUA.
20
A Macrozona constitui unidade de divisão territorial da cidade prevista pelo artigo 29 da Lei Complementar nº
434.
21
Em Porto Alegre o outorgado terá o prazo de cinco anos a contar da outorga para o uso dos índices de
aproveitamento adquiridos. Ultrapassado o prazo legal sem o uso, os índices de aproveitamento correspondentes
ao solo não criado retornam aos estoques públicos disponíveis, procedimento inerente à gestão.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
297
são imprescindíveis à gestão da ocupação e do uso do solo da cidade. Afora isso, há
o controle contábil dos recursos advindos das operações de outorga onerosa e o controle
documental pela formalização jurídica adequada das operações de outorga onerosa.
Esses controles também se traduzem em monitoramento não apenas para manter a
dinâmica do processo de gestão, mas para dar transparência e clareza aos atos
urbanísticos praticados.
3. AS OPERAÇÕES DE OUTORGA ONEROSA EM PORTO ALEGRE: O
CASO DO BAIRRO MENINO DEUS
A rápida transformação de certas áreas da cidade, aliada à expectativa de perda
de qualidade de vida e bem estar dos moradores, geraram a mobilização das
comunidades por meio de grupos organizados22 que imputaram à verticalização a
causa principal desse fenômeno de crescimento. Há também a questão do impacto
visual causado pelas construções em altura. Esse impacto se traduz na dimensão das
recentes edificações em relação às demais construções do bairro caracterizado pelo
predomínio de residências de 1 ou 2 pavimentos, alterando a paisagem e ambiência
do bairro.
A construção em altura não possui relação direta com o aumento de densidade,
na medida em que, se mantida a infra-estrutura adequada densificação não haverá.
Todavia, a acelerada transformação de partes da cidade, como a do bairro Menino
Deus, demandou investigação do papel do “solo criado” nesse processo.
No ano de 2003 o setor imobiliário realizou pesquisa em que foi constatado
ser o bairro Menino Deus um dos mais atrativos no que se refere à oferta de imóveis.23
Ainda, os dados coletados pela Secretaria de Planejamento de Porto Alegre, no ano
de 2004, que mostraram ser o bairro um dos quatro mais adensados e verticalizados
da cidade.
Examinadas, por amostragem, edificações construídas após o ano 2000, o que
se constatou foi que a peculiaridade da legislação da cidade marcou o modelo espacial
de forma indelével.
A conclusão primeira foi a de que os coeficientes de aproveitamento
diferenciados são elevados o suficiente para atender a demanda imobiliária, na medida
em que duplicaram ou até triplicaram a capacidade construtiva dos imóveis.
22
Na cidade de Porto Alegre podem ser citados os movimentos “Petrópolis Vive”, “Moinhos Vive” e “Menino
Deus Vive”. Todos esses movimentos comunitários têm por objetivo principal manter as características dos
bairros, evitando a verticalização acelerada ocorrida nos últimos cinco anos.
23
Disponível em: <www.urbansystems.com>. Acessado em: 20-7-07.
298
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Outra conclusão foi a da alta concentração de índices de aproveitamento em
poucas edificações, acarretando não apenas a verticalização, mas o exercício
diferenciado do direito de propriedade dos demais proprietários de imóveis nesses
locais. Não obstante os coeficientes previstos, se analisada a densidade, tanto
populacional como habitacional, não haveria qualquer outra possibilidade de
edificação, prejudicando os demais proprietários que desejassem construir em altura
nesses quarteirões. Ou seja, aquele proprietário que ainda possui coeficiente de
aproveitamento para ser utilizado não poderia sequer exercer o seu direito de
propriedade, haja vista os patamares máximos de densificação encontrarem-se
esgotados.
Por fim convém referir que não se encontrou em quaisquer das edificações
examinadas qualquer operação efetuada na forma de permuta por área. As operações
realizadas foram, na totalidade, “compensadas” em espécie. Essa forma de contrapartida, prevista em lei, inicialmente como modo excepcional de contrapartida ao
adensamento, tornou-se prática cotidiana. O pagamento em dinheiro, não obstante a
previsão legal, com vinculação dos recursos ao Fundo Municipal, é outro fator que dificulta o controle do equilíbrio da densidade e infra-estrutura. Afora o fato de ter sido
constatado que os recursos ingressam no caixa-comum, a permuta por área seria uma
forma mais direta e eficaz de controle, justamente em razão da natureza dessa transação.
4. CONCLUSÕES
As exceções previstas na legislação de Porto Alegre desvirtuaram, por completo,
a aplicação do instrumento urbanístico na cidade de Porto Alegre de modo que o
coeficiente único de aproveitamento correspondente a 1,0 nunca foi aplicado. Isso
porque foram mantidos os critérios de capacidade de construir dos terrenos fixada
pelas legislações anteriores.
O afastamento das ideias conceituais contidos na “Carta do Embu” só se
justificou como forma de privilégio a outros interesses, que não urbanísticos, nem
jurídicos e nem coletivos. Esse afastamento, representado pela manutenção dos
critérios de definição da capacidade construtiva dos imóveis, tal como previstos na
legislação anterior prejudicou, pela impressão indelével, a aplicação do solo criado
em Porto Alegre. Ao serem mantidos os coeficientes de aproveitamento diferenciados,
sob a equivocada escusa de evitar uma hipotética discussão sobre direito adquirido,
incabível em sede de normatização jurídico-urbanística, ocorreu a priorização dos
interesses da construção civil em detrimento do uso dos instrumentos urbanísticos,
entre eles o solo criado.
O novo modelo de cidade e de desenvolvimento urbano trazido pelo Plano
Diretor de 1999, não obstante a visão estratégica distinta do enfoque normativo
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
299
anterior, foi inevitavelmente marcado pela matriz preexistente de coeficientes de
aproveitamento diferenciados. Ou seja, a opção de concepção do legislador de 1994,
nos termos da Lei Complementar nº 315 e alterações posteriores, configurou-se como
um “caminho sem volta”, já que a base conceituai da normatização do solo criado na
cidade de Porto Alegre partiu de premissas diversas que, por evidência, geraram
impactos também diversos no território da cidade.
Ocorre que, também nesse aspecto o Plano Diretor atual, firmado por meio de
estratégias como forma de mudar o planejamento e a gestão da cidade, imprimindo
novas características ao modelo espacial da cidade, por exemplo, não saiu da esfera
teórica. Quanto ao uso dos instrumentos urbanísticos, no planejamento e gestão da
cidade, o descompasso entre a legislação e a realidade encontrada, tal como
demonstraram os resultados obtidos no caso empírico, tornou o Plano Diretor atual
muito semelhante ao anterior, tecnocrático, discricionário e defensor dos interesses
privados, não dos coletivos.
Por fim, de ratificar que, o “solo criado”, na forma como foi previsto pela
legislação municipal, não se prestou ao fim primeiro de incentivo ou contenção do
desenvolvimento de áreas da cidade, prejudicado que foi pelos coeficientes de
aproveitamento diferenciados. Nesse contexto serviu apenas como complementação
ou ajuste na capacidade produtiva, relegado a um lugar sem qualquer destaque no
planejamento e gestão do solo urbano. O que era uma expectativa acabou tendo um
papel secundário, servindo apenas como moeda de troca em caso de ajuste ou
adensamento disfarçado.
O instrumento da outorga de criação de solo é excelente instrumento de
planejamento e gestão do solo urbano, desde que observados os requisitos teóricos
básicos entre os quais a relação direta entre infra-estrutura e densidade urbana, atendido
o coeficiente único de aproveitamento.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALOCCHIO, Luiz Henrique. Do Solo Criado. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005.
ASPECTOS JURÍDICOS DO SOLO CRIADO, Embu/São Paulo. Anais. São Paulo: Fundação Prefeito
Faria Lima, dez. 1976.
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Brasília, DF, 05 de outubro de 1988.
______. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da CF. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 de julho de 2001.
COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana: encuadramiento y regimen. Madrid:
Montecorvo, 1979.
300
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DALLARI, Adilson; FERRAZ, Sérgio (Orgs.). Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006.
GRAU, Eros Roberto. Aspectos Jurídicos da Noção de Solo Criado. São Paulo: Cepam, 1976.
______. Direito Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
GUIMARAENS, Maria Etelvina. Das normas de Porto Alegre e o Estatuto da Cidade. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 16, 2002.
PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 158, de 22 de jul. de 1987. Altera LC 43/1979 (1º PDDU) no
que se refere a índices de aproveitamento, taxas de ocupação, padrões de recuos para ajardinamento.
Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, Porto Alegre, RS, 31 de jul. 1987. p.
15 e ss.
______. Lei Complementar nº 159, de 31 de jul. 1987. Institui o Fundo Municipal para o Desenvolvimento Urbano de Porto Alegre. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, Porto
Alegre, RS, 31 de jul. 1987. p. 32 e ss.
______. Lei Complementar nº 43, de 21 de jul. 1979. Dispõe sobre o Desenvolvimento Urbano no
Município de Porto Alegre e Institui o 1º PDDU. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Porto
Alegre, RS, 30 de jul. 1979.
______. Lei Complementar nº 315, de 06 de jan. 1994. Dispõe sobre o instituto do Solo Criado, regulamentando o Art. 212 da Lei Orgânica do Município – Cria o Fundo Municipal de Desenvolvimento.
Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, Porto Alegre, RS, 30 de jan. 1994.
______. Lei Complementar nº 434, de 1º de dez. 1999. Dispõe sobre o Desenvolvimento Urbano no
Município de Porto Alegre. Institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto
Alegre e dá outras providências. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 24
dez. 1999. p. 1-120.
______. Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, 03 de abr. 1990. Poder Legislativo. Diário Oficial
[do] Município de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 04 de abr. 1990. p. 23 e ss.
SOLO CRIADO/CARTA DO EMBU, São Sebastião e Embu/São Paulo. Anais. São Paulo: Fundação
Prefeito Faria Lima, 25-29 jun. 1976.
UZON, Néia. Entrevista, out. 2007.
Sites consultados:
www.stf.gov.br
www.urbansystems.com
Uma Proposta Inovadora: Operação Urbana
Consorciada Lomba do Pinheiro – Porto
Alegre
DENISE BONAT PEGORARO*
CLÉIA B. HAUSCHILD DE OLIVEIRA*
ANDRÉA OBERRATHER***
Arquitetas.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de Porto
Alegre, L.C. 434/99, aprovado em 1999, depois de um amplo processo de discussão
envolvendo os paradigmas da elaboração da Constituição de 1988, aponta novos
conceitos que estão indicados através de um conjunto de princípios, estratégias,
diretrizes e normas, capazes de propiciar um planejamento flexível com capacidade
de adaptar o modelo de cidade desejada, à dinâmica de suas partes, não só nos aspectos
físicos, mas sociais e econômicos.
O Projeto Especial é um instrumento do PDDUA que tem como intenção
principal fortalecer o papel do Poder Público municipal enquanto gestor do
desenvolvimento urbano. Além de sua tradicional atribuição de produzir, aplicar e
controlar a legislação urbanística, ganha a possibilidade de ser um agente social ativo,
propositivo na tarefa de alcançar metas, propostas alternativas para solucionar
problemas e buscar a melhoria das condições de ocupação de determinados espaços
urbanos.
*
Arquiteta pela Universidade Federal de Pelotas (UPEL), mestranda no PROPUR da FAU/UFRGS, Técnica da
Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1995, coordenadora
do Projeto Lomba do Pinheiro a partir de 2007 até a presente data.
**
Arquiteta pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAU/UFRGS), Especialização em Planejamento
Urbano pelo Programa de Pós Graduação em Urbanismo – PROPUR da FAU/UFRGS, Especialização em
Desenvolvimento Sustentável pelo Fórum Latino Americano de Ciências Ambientais – FLACAN, Argentina.
Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1979,
gerente do Programa Porto do Futuro e primeira coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 1998 a 2004.
*** Arquiteta pela FAU/UFRGS, Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal
de Porto Alegre desde 2000, segunda coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 2004 a 2007, coordenadora
do Plano Estratégico da Zona Sul.
302
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
BASE LEGAL
O PDDUA, através da aplicação do disposto no Art. 21, referente à Estratégia
de Produção da Cidade, propicia que o Poder Público seja o agente promotor do
desenvolvimento, como se verifica no seu enunciado, ou seja:
“Estratégia de Produção da Cidade que tem como objetivo a capacitação do Município
para a promoção do seu desenvolvimento através de um conjunto de ações políticas e
instrumentos de gerenciamento do solo urbano, que envolvem a diversidade dos agentes
produtores da cidade e incorporam as oportunidades empresariais aos interesses do
desenvolvimento urbano como um todo.”
O parágrafo único do mesmo artigo destaca que a Estratégia de Produção da
Cidade efetivar-se-á através de:
I – da promoção, por parte do Município, de oportunidades empresariais para o
desenvolvimento urbano;
II – do estímulo e gerenciamento de propostas negociadas com vistas à consolidação do
desenvolvimento urbano;
III – da implementação de uma política de habitação social que integre e regule as forças
econômicas informais de acesso à terra e capacite o Município para a produção pública de
Habitação de Interesse Social (HIS)
IV – da implementação de uma política habitacional para as populações de baixa e média
renda, com incentivos e estímulos à produção de habitação.
Já o artigo 23 estabelece os programas que compõem esta estratégia:
I – Programa de Projetos Especiais, que busca promover intervenções que, pela
multiplicidade de agentes envolvidos no seu processo de produção ou por suas especificidades
ou localização, necessitam critérios especiais e passam por acordos programáticos
estabelecidos com o Poder Público, tendo como referência os padrões definidos no Plano
Regulador;
II – Programa de Habitação de Interesse Social, que propõe a implementação de ações,
projetos e procedimentos que incidam no processo de ocupação informal do solo
urbano,através da regulamentação, da manutenção e da produção da Habitação de Interesse Social, viabilizando o acesso dos setores sociais de baixa renda ao solo legalizado,
adequadamente localizado, considerando, entre outros aspectos, áreas de risco, compatibilização com o meio ambiente, posição relativa aos locais estruturados da cidade, em especial
os locais de trabalho, e dotado dos serviços essenciais;
III – Programa de Gerenciamento dos Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano, que
busca gerenciar os instrumentos de planejamento, monitorando o desenvolvimento urbano,
potencializar a aplicação dos instrumentos captadores e redistributivos da renda urbana,
bem como sistematizar procedimentos para a elaboração de projetos que viabilizem a
captação de recursos;
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
303
IV – Programa de Incentivos à Habitação para baixa e média renda que, através de parcerias
entre o poder público e a iniciativa privada, com a adoção de incentivos fiscais,
financiamentos especiais e oferta de Solo Criado, dentre outros, busque a criação de
procedimentos simplificados no exame e aprovação de projetos de edificação e parcelamento
do solo direcionados à população de baixa e média renda.
Dentro deste contexto está inserido o Projeto Integrado da Lomba do Pinheiro
a partir do momento em que, através de uma experiência piloto, busca o
desenvolvimento de uma metodologia de trabalho projetual, como instrumento de
promoção de um planejamento mais gerencial e participativo, dentro de uma visão
mais estratégica e menos normativa.
Propomos novos parâmetros de gestão e desenvolvimento na lei que
denominamos de “Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro”, sendo a
região da Lomba do Pinheiro uma das constantes no gráfico indicativo para
desenvolver Projeto Especial que faz parte da Estratégia de Produção da Cidade,
definida no Capítulo VI (PDDUA, figura 7, p 29).
Também no Plano Diretor de Porto Alegre – L.C.434/99 verificamos que nos
artigos 55 a 65 estão estabelecidas as regras a serem aplicadas nas áreas objeto de
Projetos Especiais. No parágrafo 2º do artigo 55 está o conceito de Operação
Concertada, que apresenta estreita relação com o conceito de Operação Urbana
Consorciada, como podemos observar a seguir:
“Operação Concertada é o processo pelo qual se estabelecem as condições e compromissos
necessários, firmados em Termos de Ajustamento, para a implementação de empreendimento
compreendendo edificação e parcelamento do solo com características especiais, ou para o
desenvolvimento de áreas da cidade, que necessitem acordos programáticos adequados às
diretrizes gerais e estratégias definidas pelo plano diretor.”
Ao observar o enunciado do artigo 62 da L.C. 434/99, parte reproduzido abaixo,
verificamos uma estreita relação entre o que estabelece a estratégia da Cidade,
constante do PDDUA e o processo de planejamento implementado na região nos
últimos anos, o que possibilitou não somente conhecer as peculiaridades do local,
mas especialmente, tomar decisões compatíveis com aquela realidade, envolvendo
os agentes, ou seja:
“entende-se por Empreendimento de Impacto Urbano de Segundo Nível o Projeto Especial
para setor da cidade que, no seu processo de produção, e pelas suas peculiaridades,
envolve múltiplos agentes, com possibilidade de representar novas formas de ocupação
do solo.”
O projeto de lei em questão propõe um conjunto de regras que tem como base,
não só o Plano Diretor de Porto Alegre, mas também o Estatuto da Cidade, Lei Federal
304
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
nº 10.257, de 2001. Nesta lei, encontra-se o conceito de Operação Urbana Consorciada,
na Seção X, art. 32 § 1º, que transcrevemos a seguir:
“Considera-se Operação Urbana Consorciada o conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários,
moradores, usuários permanentes e investidores privados, com objetivo de alcançar em
uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização
ambiental”.
Também no Art. 33 do Estatuto da Cidade encontramos respaldo legal, pois o
mesmo determina que o Poder Público coordene intervenções e medidas a serem
implementadas na área delimitada pela Operação Urbana e remete à lei municipal
específica, baseada no Plano Diretor, a delimitação da área e a definição de um plano
de operação urbana consorciada. Este deve conter, entre outras exigências:
1. Programa básico de ocupação;
2. Programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada
pela operação;
3. Estudo prévio de impacto de vizinhança;
4. Contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores
privados em função da utilização das medidas decorrentes das modificações das normas
edilícias e urbanísticas ou da regularização de imóveis;
5. Representação da sociedade civil no controle compartilhado da operação.
Assim, a proposta de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro
tem um amplo amparo jurídico no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
Ambiental e no Estatuto da Cidade, os quais foram resultado de longos anos de
discussão e amadurecimento de novos paradigmas de como aliar a produção urbana
com justiça social.
PROJETO INTEGRADO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA
LOMBA DO PINHEIRO
Com base neste suporte legal e com o objetivo de aplicar novos conceitos de
planejamento urbano, a partir de 1998, foi realizada uma capacitação interna na
Prefeitura de Porto Alegre para desenvolver em três áreas distintas da cidade, os
chamados “Projetos Integrados”, na perspectiva de capacitar o Município na
viabilização de soluções diferenciadas para cada região que, por suas peculiaridades,
exigem uma análise aprofundada e propostas compatibilizadas.
O Projeto Integrado denominado “Desenvolvimento Sustentável da Lomba do
Pinheiro” abrange toda a Macrozona 6 definida no Plano Diretor ora vigente e parte
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
305
da Macrozona 8, região caracterizada pela sua localização na periferia, com
significativa concentração de bens naturais e ocupações espontâneas e irregulares de
baixa e média renda.
O Projeto teve como objetivo geral identificar oportunidades de desenvolvimento que resolvessem os conflitos de urbanização, compatibilizando-os com a preservação dos bens naturais, além de garantir o atendimento da demanda habitacional
reprimida e a criação de postos de trabalho e de programas de geração de renda.
Um amplo caminho foi percorrido, podendo ser dividido em três fases:
1) Trabalho interno de capacitação técnica e conhecimento da região, realização
de várias reuniões com os atores locais na área de estudo, para a construção dos
objetivos a serem desenvolvidos pelo projeto.
2) Elaboração do diagnóstico do meio natural e construído envolvendo
Universidade Federal, órgãos estaduais e municipais, além de forte participação dos
moradores na elaboração do Diagnóstico Rápido Participativo através da criação do
Grupo de Planejamento Local.
3) Elaboração da lei de Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro.
Paralelamente foram realizadas ações que contribuíram para alimentar o
diagnóstico do meio construído, tais como: estudos de criação do Parque Linear Arroio
Taquara, desenvolvimento do EVU – Estudo de Viabilidade Urbanística – na Vila
Recreio da Divisa (Experiência Habitacional) com definição de AEIS I em 2002,
programas para o desenvolvimento econômico local da Lomba do Pinheiro e a
instituição do Grupo de Planejamento Local (GPL). Este grupo criado em 2002, foi
composto por representantes da comunidade, da saúde, de escolas, da igreja, do
Orçamento Participativo (OP), da Região de Gestão do Planejamento 7 (RGP 7),
bem como por representantes de departamentos e secretarias municipais, assim como
da METROPLAN e EMATER, representando o Governo Estadual. Por meio deste
grupo, foi possível elaborar o Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) da região
com a intenção de conhecer sua realidade, através de uma leitura não só quantitativa,
mas principalmente qualitativa. Este grupo teve um papel fundamental na construção
desta lei, pois não só apresentou um olhar bastante particular do território, como
complementou a análise técnica, além de acompanhar todo o Diagnóstico Integrado,
incorporando nesta avaliação as necessidades em relação às melhorias físicas, sociais
e econômicas a serem implementadas no futuro.
O estudo aprofundado permitiu a identificação de áreas aptas e não aptas para
a ocupação. Encontrou-se no instrumento da Operação Urbana Consorciada,
disponibilizada pelo Estatuto da Cidade (LF 10.257/01), a forma de atender ao
desenvolvimento da Lomba do Pinheiro de forma equilibrada.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA LOMBA DO PINHEIRO
Os eixos de transformação urbana foram definidos, por um lado, através de
estímulos à ocupação e uso do solo de acordo com um zoneamento que resultou do
Diagnóstico Integrado, inclusive definindo setores prioritários de atuação, descritos
no corpo da lei. Foram identificadas Áreas Aptas à Ocupação e para cada uma delas
foi avaliado o grau de adensamento máximo, tendo em vista projetar a população
futura e os respectivos equipamentos urbanos e comunitários.
Porém a ideia não é simplesmente mudar o Regime Urbanístico possibilitando
maior potencial construtivo nas áreas aptas. A partir do estudo de experiências em
diversas cidades do mundo, verificou-se a possibilidade de proceder esta alteração
de regime através de uma Operação Urbana, ou seja, uma lei que autorize a mudança
de Regime Urbanístico, desde que sejam realizadas melhorias urbanas como forma
de contrapartidas, calculadas em função de parte da recuperação obtida a partir da
valorização decorrente desta mudança no uso do solo, e seja dada prioridade para
viabilizar projetos de Interesse Social.
O estudo realizado possibilitou uma referência, para que se estabeleçam metas
de transformações urbanísticas necessárias a serem obtidas no tempo, no que tange a
suprir as carências quanto ao traçado viário estruturador, composto por vias arteriais
e coletoras, assim como prover os atuais e futuros moradores de equipamentos urbanos
e comunitários bem como efetuar a regularização urbanística e fundiária e a produção
de novos lotes a serem oferecidos às faixas de renda mais necessitadas, porém, com
baixo custo. A partir do Diagnóstico Integrado da Lomba do Pinheiro, foram elaborados
parâmetros que propiciem as transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais
e a valorização ambiental. Este diagnóstico indica as áreas mais carentes de
equipamentos urbanos e comunitários e propõe incentivos para ocupação das áreas
aptas, que recebem Regime Urbanístico adequado às condições de uso e ocupação
do solo, bem como os equipamentos necessários para a densificação proposta.
Trata, portanto de um conjunto de regras que serão implementadas na região,
alterando em especial a divisão territorial, o zoneamento de uso do solo, os códigos e
padrões de edificação e parcelamento do solo. Estas novas regras foram aplicadas na
região em estudo, a qual foi divida em 4 partes, sendo estas áreas compostas
predominantemente por residências, sobre as quais está previsto um sistema de Áreas
Especiais – de Interesse Social, Institucional e Natural – bem como, as Centralidades
e áreas incentivadas para produção primária, chamadas de Produtivas I e II.
Para o cumprimento dos objetivos desta lei, estão propostos dois regimes
urbanísticos diferenciados, que correspondem ao Regime Urbanístico Básico, sendo
este mais de acordo com a situação existente, e o Regime Urbanístico Máximo, que
considera o adensamento proposto e projeta as melhorias urbanas necessárias para o
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
307
desenvolvimento da região. O Regime Urbanístico Máximo só poderá ser utilizado
mediante a prestação de contrapartidas, por parte dos empreendedores, que serão
calculadas de acordo com a valorização imobiliária, decorrente da oferta deste regime
urbanístico. Após a aprovação do empreendimento ou atividade será assinado um
Termo de Compromisso que expressará o ato administrativo decorrente da adesão a
Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro.
O projeto de lei de Operação Urbana Consorciada, não se restringe às normas
de Uso e Ocupação do Solo (Regime Urbanístico), mas também define o Plano de
Melhorias Urbanas, estabelece um Termo de Compromisso que regrará as obrigações
do empreendedor e cria o Comitê de Desenvolvimento1 da Lomba do Pinheiro, com
a finalidade de acompanhar sua implementação, bem como a utilização simultânea
de outros instrumentos complementares, como por exemplo, planos setoriais,
programas, recursos disponíveis no Município, tais como, Fundo Municipal de
Desenvolvimento Urbano, através de sua capacidade de financiar a política
habitacional nos termos do Capítulo IV, Título V da Lei Orgânica do Município de
Porto Alegre, o Banco de Terras, quando este destina terras para atender os programas
e projetos habitacionais e de equipamentos de caráter social, e outros, como Concessão
do Direito Real de Uso, IPTU, Reserva de índice Construtivo e Solo Criado.
Cabe aqui salientar que a proposta de instituir uma Operação Urbana
Consorciada na Lomba do Pinheiro é justamente para fortalecer o papel do poder
público na gestão das diversas iniciativas de desenvolvimento urbano, na promoção
das parcerias público-privadas, além de prover a região de um Plano de Melhorias
Urbanas. Estas representam as contrapartidas sugeridas aos investidores, visando
minimizar as carências de infra-estrutura e equipamentos urbanos e comunitários,
bem como, recuperar o ambiente bastante degradado e ameaçado constantemente de
extinção, em especial os ecossistemas naturais de importância não só para a região,
mas para a cidade como um todo, incluindo a promoção da geração de renda cujos
benefícios deverão estar voltados à região da Lomba do Pinheiro.
Trata-se assim, de uma legislação atual, capaz de não só estabelecer novas
regras, mas de promover as ações necessárias para alavancar o desenvolvimento da
região e implementar progressivamente seus princípios e finalidades, abaixo
relacionadas:
I – A promoção da sustentabilidade urbano-ambiental na região da Lomba do
Pinheiro e na cidade de Porto Alegre;
1
Proposto com formação paritária entre governo municipal, sociedade civil e moradores locais.
308
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
II – Produção de Habitação de Interesse Social (HIS), para atendimento da
demanda habitacional reprimida;
III – A promoção da justa distribuição de ônus e benefícios do processo de
urbanização;
IV – A recuperação da valorização imobiliária decorrente dos investimentos
públicos e das alterações da normativa urbanística;
V – A supremacia do interesse coletivo sobre os interesses particulares;
VI – O estímulo a uso do solo miscigenado e a democratização do acesso a
terra na região da Lomba do Pinheiro;
VII – A regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população
de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de uso, parcelamento
do solo, edificação, com gravame de AEIS I ou II;
VIII – A parceria público – privada na promoção de empreendimentos e na
urbanização da região, desde que atendido o interesse público;
IX – Incentivo ao desenvolvimento econômico local da região;
X – A participação da população moradora, dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados no processo de discussão, aprovação e implementação
da Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro;
PLANO DE MELHORIAS URBANAS
Este plano está em fase de detalhamento e corresponde a todas as propostas de
obras de infraestrutura urbana, de equipamentos comunitários identificados no
Diagnóstico Integrado necessários para a região. Para tanto, estão sendo dimensionadas
as redes de infra-estrutura e as vagas destinadas à educação, a melhoria do atendimento
à saúde e todas as iniciativas de geração de renda.
Para tentar minimizar as carências da região foi estabelecido um conjunto de
intervenções físico-ambientais e socioeconômicas que comporão as contrapartidas,
cujo detalhamento será objeto de estudo e deverá ser aprovado pelo Comitê de
Desenvolvimento.
O programa de atendimento físico-ambiental compreende obras de saneamento,
de implantação de vias arteriais e coletoras, de implantação equipamentos destinados
ao lazer, à cultura, à educação e à saúde, à recuperação de arroios, à arborização de
ruas dentre outros. O programa de atendimento sócio-econômico visa a implantação
de loteamentos de Interesse Social, através do gravame de AEIS III com a promoção
de lotes regulares, à regularização urbanística e fundiária, à promoção de
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
309
reassentamento de famílias localizadas em áreas de inadequadas à ocupação, além de
incentivo à agricultura urbana dentre outros.
Para a aplicação dos programas propostos, serão utilizados os instrumentos de
regulação do solo, no qual se destaca as normas de uso e ocupação do solo, tributação
e incentivos, Projetos Especiais, monitoramento da densificação e Áreas Especiais
como as de Interesse Social identificadas em áreas ocupadas e vazias, as Áreas
Especiais de Interesse Ambiental, que correspondem a Proteção do Ambiente Natural
e Interesse Cultural, que deverão ser identificadas nos regimes urbanísticos da
Operação, de acordo com sua função existente e proposta.
Pretende-se, também, a estruturação viária da região através de um sistema de
vias, projetado ou existente, de forma hierarquizada com funções e perfis definidos.
Este sistema foi estudado e projetado para atender as necessidades atuais e o
crescimento urbano futuro.
CONTRAPARTIDAS
Quando for utilizado o Regime Urbanístico Máximo serão definidas contrapartidas, que são calculadas sobre a diferença entre os Regimes Máximo e Básico.
Parte desta diferença será revertida em melhorias urbanas para a região e a outra
parte ficará com o empreendedor. As contrapartidas serão aplicadas exclusivamente
na área da Operação Urbana Consorciada e poderão ser financeiras, quando o valor
for pequeno e não der para efetivar uma melhoria urbana, mas preferencialmente,
deverão ser em melhorias urbanas como segue abaixo:
I – Em obras públicas vinculadas às Finalidades e aos Programas da Operação
Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro;
II – Em Habitação de Interesse Social (HIS) e oferta de lotes de preço compatível
com a renda da Demanda Habitacional Prioritária.
III – Gleba e lotes urbanizados para reassentar famílias em áreas de risco ou
áreas inadequadas à ocupação;
IV – Em bens imóveis situados dentro da Operação Urbana Consorciada Lomba
do Pinheiro;
V – Financeira, integrada à conta vinculada à Operação Urbana Consorciada
da Lomba do Pinheiro.
ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA
A proposta de empreendimento vinculada a Operação Urbana Consorciada
Lomba do Pinheiro será analisada, mediante Projeto Especial de Empreendimento
310
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Pontual2 ou de Primeiro Nível3, cuja avaliação dos impactos positivos e negativos
será discriminada em Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), considerando os
seguintes conteúdos:
I – Estrutura e paisagem urbana quanto à:
a) Estruturação e mobilidade urbana, no que se refere à configuração dos
quarteirões, às condições de acessibilidade e segurança, à geração de tráfego e demanda
por transportes;
b) Equipamentos públicos comunitários, no que diz respeito à demanda gerada
pelo incremento populacional;
c) Uso e ocupação do solo considerando a relação com o entorno preexistente
ou a renovar, níveis de polarização e soluções de caráter urbanístico;
d) Patrimônio natural e cultural, no que se refere à sua manutenção e valorização.
II – Infra-estrutura urbana, quanto a equipamentos e redes de água, esgoto,
drenagem, energia, entre outras.
III – Estrutura sócio-econômica, quanto à produção, ao consumo e a renda da
população;
IV – Valorização imobiliária.
O Projeto Especial proveniente desta Operação Urbana será analisado através
de Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU, o qual irá determinar o Termo de
Referência para a elaboração dos estudos necessários que irão subsidiar a definição
de diretrizes para o empreendimento, através dos estudos de caso a caso.
A elaboração do EIV não substitui a elaboração e aprovação do Estudo de
Impacto Ambiental quando este se fizer necessário, de acordo com análise do órgão
ambiental competente, uma vez que a Lomba do Pinheiro, por possuir uma parte de
seu território ainda com grandes áreas de preservação natural, precisará de estudos
prévios de impacto visando avaliar precisamente as intervenções futuras.
FORMA DE CONTROLE
A lei cria o Comitê de Desenvolvimento da Operação Urbana Consorciada da
Lomba do Pinheiro, coordenado pela Secretaria do Planejamento Municipal contando
2
Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigos 57 e 58.
3
Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigo 61.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
311
com a participação de órgãos municipais, proprietários, moradores, usuários
permanentes e sociedade civil organizada. Caberá a ele o controle geral da Operação
Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro, bem como formular e acompanhar os planos
e projetos urbanísticos que venham a se beneficiar desta lei, aplicar o Plano de
Melhorias Urbanas, propor a revisão da presente lei no prazo de cinco anos a partir
de sua vigência, além de outras competências.
A composição será de forma paritária e tripartite, com a participação de órgãos
municipais, entidades da região e moradores locais, estes dois últimos eleitos na
comunidade. Sempre que houver a necessidade da participação de qualquer outro
representante da PMPA para subsidiar o caso específico, este será convidado pelo
Comitê. A intenção é de praticar um modelo de gestão propositivo e articulador diante
da realidade de necessidades da região, dando ênfase à atuação integrada dos diversos
atores da construção deste ambiente urbano regional.
O Comitê Gestor da Lomba do Pinheiro tem como finalidade o controle
compartilhado da Operação para acompanhar a implementação da lei, bem como a
utilização simultânea de vários instrumentos complementares como planos setoriais,
programas, recursos disponíveis no Município.
CONCLUSÃO
Com a elaboração e aprovação do PDDUA, que contempla estratégias e os
Projetos Especiais, criou-se um ambiente favorável para o desenvolvimento projetual,
que prospecta soluções locais aliadas ao amadurecimento do processo de gestão
democrática em que se consolidam acordos entre os diferentes.
A mudança de paradigma conceituai proposto pelo Estatuto da Cidade foi o
balizador para o projeto de lei de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro,
o qual é uma das alternativas encontradas para amenizar as carências da região, através
de recuperação da valorização imobiliária obtida pela oferta de Regime Urbanístico.
Com isto pretende-se obter avanços no processo de desenvolvimento urbano, através
do qual os interesses individuais dos proprietários de imóveis co-existam com os
interesses sociais, culturais e ambientais da cidade.
A cidade tem um grande espectro de temas a enfrentar e em especial a região
da Lomba do Pinheiro que tem muito ainda por fazer e está em processo de construção
de sua urbanidade, onde se impõe mais do que nunca a articulação entre o setor
privado e o público.
A síntese aqui apresentada resgata os eixos jurídicos contemplados no Plano
Diretor e no Estatuto da Cidade, que deram a base legal para uma ação política na
Lomba do Pinheiro, de iniciativa do Poder Público. A Operação Urbana Consorciada
312
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
é uma nova alternativa que permite avançar em termos de planejamento urbano, no
sentido de se obter respostas concretas às carências da cidade com a redistribuição da
renda urbana. A aplicação deste importante instrumento, através de uma atuação
integrada e propositiva, impulsiona o desenvolvimento local, na busca da qualidade
de vida e garantindo a função social da cidade e da propriedade urbana.
A lei de Operação Urbana Consorciada é resultado de um amplo debate em
torno dos conflitos existentes, seja de caráter físico, social ou econômico, e busca
soluções compatibilizadas com os diversos interesses, estabelecendo os acordos
programáticos, firmados em “Termo de Compromisso”. Este procedimento, nada
mais é do que estabelecer as condições de uso e ocupação do solo possível, desde que
atendida as necessidades urbanísticas, sociais e econômicas para qual finalidade a
área se destinar. Nestes casos, ficam definidas as características de excepcionalidade,
que serão analisadas caso a caso através de Projeto Especial, de acordo com
regulamentação específica.
Esta proposta de lei, a primeira desta natureza em Porto Alegre, representa no
seu conjunto, a definição de um território para atuação diferenciada, onde o poder
público toma iniciativa e viabiliza em parceria as transformações urbanísticas
necessárias para impulsionar o desenvolvimento urbano e ambiental.
Planejando o Território Regionalmente:
Planos Diretores para Além dos Limites
Municipais
LUIZ ALBERTO SOUZA
Professor da Universidade Regional de Blumenau –
FURB. Doutor em Planejamento Urbano e Regional –
IPPUR/UFRJ. Arquiteto da Associação dos
Municípios do Médio Vale do Itajaí – AMMVI.
RESUMO: O recente processo de elaboração de Planos Diretores em diversos
municípios brasileiros reacendeu interessante debate em torno de um velho dilema
relacionado à práxis do planejamento urbano: como planejar suas ações para
além dos limites administrativos do município? O presente trabalho procura
tecer algumas considerações sobre essa questão utilizando-se do texto da Nova
Carta de Atenas e, ao mesmo tempo, questionar o processo de planejamento que
se limita institucionalmente a expressar uma visão restrita do território municipal
de forma a rever velhas práticas institucionalizadas e permitir novos referenciais
para a construção de um urbanismo mais pragmático e socialmente inclusivo.
PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor; Planejamento Urbano; Planejamento
Regional.
INTRODUÇÃO
A Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) abriu novas perspectivas
na gestão do espaço urbano das cidades brasileiras cujos resultados ainda devem
demorar aparecer. Por outro lado, uma das fragilidades do Estatuto da Cidade está na
ausência da abordagem das questões relativas ao planejamento regional de cidades e
na questão metropolitana. O ressurgimento da figura do Plano Urbano como elemento
articulador e legitimador das ações públicas no município, reacende uma nova e
desafiadora possibilidade para o urbanismo. Como enfrentar o desafio do planejamento
regional de cidades tendo como desenho institucional o Plano Diretor Regional com
314
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
a dimensão explícita de operacionalizar as possíveis transformações do espaço urbanoregional.
A criação do Ministério das Cidades (2003) impulsionou o processo de
elaboração de Planos Diretores Participativos nos municípios com mais de vinte mil
habitantes e àqueles pertencentes a Regiões Metropolitanas exigindo ações em diversos
níveis e esferas governamentais. Para se ter noção de números, segundo dados do
Ministério das Cidades (2007), de um total de 1678 municípios brasileiros estavam
obrigados a elaborar seus Planos Diretores para atender às exigências do Estatuo da
Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), 86 % deles, de uma forma ou outra, cumpriram
com essa exigência legal. Vale ressaltar que a grande maioria dos municípios brasileiros
é composta por municípios de pequeno porte (Tabela 1) não obrigados por lei, a
elaborar seus planos diretores.
Tabela 1 – Quadro Populacional dos Municípios Brasileiros
Nº de municípios
População (nº de habitantes)
4.074
Menores de 20.000
964
20.001 até 50.000
301
50.001 até 100.00
194
100.001 até 500.000
31
Acima de 500.000
Fonte: IBGE (2000).
Cerca de 30% da população brasileira, o que significa mais de 51 milhões de
pessoas, morando em apenas nove das maiores regiões metropolitanas do Brasil.
Esse fato representa um dos grandes desafios que deve ser enfrentado pelo
planejamento na escala regional. Passado mais de duas décadas da promulgação da
Constituição Brasileira de 1988 e no alvorecer do século XXI, a retomada na discussão
sobre a importância do planejamento urbano e, de novas formas de gestão do espaço
urbano, se configura num debate que com certeza, deverá permear os meios políticos
e acadêmicos cada vez mais intensamente.
Os atuais e tradicionais instrumentos utilizados no planejamento urbano, como
por exemplo, o zoneamento e os planos meramente normativos, não têm encontrado
respostas e muito menos se mostrado eficazes como ferramentas na organização do
espaço urbano e na garantia do desenvolvimento das chamadas funções sociais de
nossas cidades. Por outro lado, a simples existência de um conjunto de códigos e
normas jurídicas que convencionalmente compõe os atuais Planos Diretores são, na
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
315
maioria das vezes, incapazes de articular as relações sociais entre os diversos
produtores do espaço urbano, projetando apenas um imaginário de cidade muito aquém
das reais necessidades da população.
O senso comum nos leva a acreditar que a lei pode e deve ser um instrumento
para o aperfeiçoamento na gestão das cidades, imprescindível para a conservação do
meio ambiente e fundamental na contribuição da melhoria no nível de qualidade de
vida de seus habitantes. Porém, para que isso aconteça faz-se necessário uma revisão
teórica e conceituai para mudanças na concepção dos atuais “modelos” de políticas
urbanas. As políticas de desenvolvimento urbano atualmente em prática, priorizam a
questão do crescimento econômico em detrimento das demais funções sociais da
cidade, e que é em particular, muito mais perversa para os países em desenvolvimento
onde se deveria prever até que ponto a implementação dessas políticas podem perdurar
sem um desequilíbrio sócio-ambiental mais grave e de consequências incontroláveis
para sua população.
A CONTINUIDADE DE UM PENSAMENTO HEGEMÔNICO ATRAVÉS DA
NOVA CARTA DE ATENAS
As propostas contidas na denominada “Nova Carta de Atenas” possui ainda
pouca penetração em nosso meio científico e acadêmico, mas tem sido motivo de
novas e acirradas controversas entre as mais variadas correntes do urbanismo europeu.
Através do presente artigo propomos debater o processo brasileiro de elaboração
massiva de Planos Diretores, a partir do novo marco jurídico criado pelo Estatuto da
Cidade e pela criação do Ministério das Cidades e, da análise de experiências realizadas
em diversas esferas governamentais. Num segundo momento, trataremos de apresentar
uma visão do conteúdo da Nova Carta de Atenas, abordando seus princípios e
conceitos, de forma a produzir uma breve interpretação dessa “nova” proposta
urbanística que se intitula como sendo “A Visão do Conselho Europeu de Urbanistas
sobre as Cidades do Século XXI”.
Seu texto, pretensiosamente propõe uma correção histórica de rumo em sua
visão de urbanismo. A partir de agora, defende textualmente que suas propostas estão
voltadas diretamente para os “sujeitos” da cidade e, adaptadas as necessidades geradas
pelas constantes mudanças ocorridas na sociedade no último século e, não mais
centradas em seu próprio objeto, como a Carta de Atenas de 1933, produzida durante
o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Apesar de afirmar
explicitamente não se tratar de uma “nova utopia”, a Nova Carta sustenta a tese da
necessidade da construção das denominadas “cidades coerentes” que, longe do
idealismo anterior vivido na década de 1930, as cidades do futuro precisam estar
preparadas para os novos desafios e ao realismo inerente ao Século XXI, em função
316
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
das mudanças sociais e tecnológicas (KANASHIRO, 2003). É fato que, ao analisarmos
a trajetória do urbanismo contemporâneo, podemos constatar que ele conseguiu
produzir nesses últimos cem anos, efeitos e resultados contraditórios na produção do
espaço material das cidades. Desde a publicação da Carta de Atenas de 1933, o mundo
ocidental vivenciou diversas experiências urbanísticas, quase todas sustentadas pelo
mesmo discurso: a busca incessante por um “modelo” universal de urbanismo capaz
de produzir a “cidade ideal”.
Decorridos mais de setenta anos dos ideais urbanísticos divulgados pela “antiga”
Carta de Atenas, o Conselho Europeu de Urbanistas – CEU reacendeu o debate sobre
a necessidade de se (re)pensar as cidades para o Século XXI, segundo eles, através de
“um novo enfoque teórico e instrumental do planejamento urbano”. Uma das ideias
chaves da “Nova Carta de Atenas” é promover a “integração plena através de uma
ampla e contínua rede de cidades”. Entre as condições necessárias para sua
implementação, afirma textualmente que as cidades do Século XXI devem contar
com os “necessários compromissos dos urbanistas para porem prática esta visão”.
O documento foi elaborado entre os anos de 1995 e 1998 por uma delegação de
arquitetos e urbanistas das Associações Nacionais e dos Institutos de Urbanistas de
onze países da União Europeia (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, França,
Irlanda, Itália, Holanda, Espanha, Portugal e Grã-Bretanha).
Ao mesmo tempo, a edição da Nova Carta de Atenas aponta para a desafiadora
questão da sustentabilidade urbana onde enaltece essa figura recente nas agendas das
cidades:
“[...] planejamento estratégico do território e o urbanismo são indispensáveis para garantir
um desenvolvimento sustentável, hoje entendido como a gestão prudente do espaço comum,
que é um recurso crítico, de oferta limitada e com procura crescente nos locais onde se
concentra a civilização”.
Neste pequeno ensaio, pretendemos utilizar esse referencial teórico como
contraponto à recente experiência brasileira de elaboração de Planos Diretores
Participativos, em atendimento às exigências do Estatuto da Cidade. Ainda como
forma de contribuir para esse debate no âmbito das cidades brasileiras apresentamos
ao longo do texto, algumas reflexões sobre essa “práxis” que julgamos ter tido pouco
espaço de tempo para um efetivo exercício crítico mais reflexivo. Dessa forma, a
Nova Carta de Atenas possui o mérito de reacender a polêmica da discussão sobre a
construção de um novo paradigma urbanístico, através da revisão da nossa usual
práxis do planejamento urbano.
Dentre as teses preconizadas pela Nova Carta estão que as cidades devem ser
concebidas e planejadas de forma a produzir a sua: “coerência social, a coerência
econômica, coerência no tempo e a coerência ambiental”, que aparecem como
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
317
princípios imprescindíveis às cidades do século XXI. Os diversos instrumentos
utilizados pelos urbanistas em seus planos foi justamente o mecanismo do zoneamento
que demonstrou ser o mais “eficaz”, onde alguns autores (VILLAÇA, 1999; NERY
JR., 2002) alertam que, tanto para o bem quanto para o mal. No Brasil, podemos
afirmar que pela experiência verificada pelas grandes cidades e principalmente nas
metrópoles, o zoneamento foi, e continua sendo o mais forte mecanismo de regulação
e de ordenamento do território dessas cidades. Dirigida e pensada particularmente a
partir da realidade das cidades europeias, a Nova Carta de Atenas defende a plena
integração da comunidade europeia no decorrer do século XXI, onde essa grande
rede urbana de cidades deve seguir as seguintes diretrizes:
– Conservar a sua riqueza cultural e a sua diversidade, resultantes da sua longa história;
– Ficar ligadas entre si por uma multitude de redes, plenas de conteúdos e de funções úteis;
– Permanecer criativas e competitivas, mas procurarão simultaneamente a complementaridade
e a cooperação;
– Contribuir de maneira decisiva para o bem-estar dos seus habitantes e, num sentido mais
lato, de todos os que as utilizam.
O CEU defende ainda na sua parte introdutória a adoção de novas práticas
urbanas necessárias para atingir os objetivos ali propostos, entre eles, o fortalecimento
da conectividade entre as cidades. A Nova Carta de Atenas dirige-se, sobretudo aos
urbanistas profissionais que trabalham na Europa e a todos os que se interessam por
este tipo de trabalho, a fim de orientá-los nas suas ações, de modo a assegurar maior
coerência na construção de uma rede de cidades com pleno significado e a transformar
as cidades europeias em cidades coerentes, em todos os níveis e em todos os domínios.
Mais adiante a Nova Carta de Atenas defende abertamente a utilização do
planejamento estratégico do território e do urbanismo como sendo instrumentos
“indispensáveis para garantir um desenvolvimento sustentável”. A tese sustentada
pelos urbanistas europeus se baseia na necessidade da gestão do espaço comum, em
face de escassez dos recursos naturais e da crescente migração interna em direção às
grandes cidades europeias.
Apesar de se proclamar que não se trata de uma “nova utopia”, o documento
sustenta a tese da necessidade da construção de uma “cidade coerente” que, longe
do idealismo anteriormente proposto pelo IV CIAM em 1933, as cidades do século
XXI precisam estar preparadas para os novos desafios que se apresentam. A Nova
Carta defende que:
Esta visão centra-se na Cidade Coerente. É essencialmente um instantâneo sobre aquilo que
gostaríamos que as nossas cidades fossem agora e para o futuro. Esta visão é a expressão do
318
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
objetivo para o qual os urbanistas europeus se comprometem a trabalhar e procuram contribuir,
aplicando o melhor das suas capacidades profissionais – um objetivo que pode muito bem
ser atingido se essa visão vier a ser o objetivo de todos os atores responsáveis pelos processos
de desenvolvimento e gestão sustentáveis do território.
A cidade coerente integra um conjunto variado de mecanismos de coerência e
de interligação que atuam a diferentes escalas; incluem tanto elementos de coerência
visual e material das construções, como os mecanismos de coerência entre as diversas
funções urbanas, as redes de infra-estruturas e a utilização das novas tecnologias de
informação e de comunicação.
“O conceito de cidade coerente decorre da necessidade de se reconstruir a coesão social
nos espaços urbanos, superando-se problemas de exclusão social, racismo e conflitos civis. Para se construí-la, é preciso que o planejamento urbano e, por consequência, o direito
urbanístico, como seu instrumento, considerem as diferenças e as desvantagens de certos
grupos sociais em relação a outros dentro de cada cidade. O planejamento deve transformar a cidade em um espaço igualitário para seus habitantes e em um ambiente apto a
integrar, social e culturalmente, novos cidadãos – uma cidade para todos” (MARRARA,
2007).
Dentre os requisitos estabelecidos a Nova Carta apresenta quatro conceitos
ditos fundamentais: “coerência no tempo, coerência social, coerência econômica e
coerência ambiental”. A conquista dessas dimensões aparece como imprescindível
às cidades europeias do século XXI. Ainda segundo o CEU, essas cidades devem se
distinguir dos demais aglomerados urbanos de grande parte do mundo, face às
particularidades dos processos históricos e sociais que se desenvolveram ao longo do
tempo. Em contrapartida, as transformações sociais, econômicas e políticas dos últimos
anos, tornaram as cidades europeias cada vez mais específicas e ao mesmo tempo,
semelhantes, num processo de “globalização” cultural, social e econômico avassalador.
Um novo fenômeno surge a partir da formação de uma grande rede de cidades que
começa a se formar em inúmeras regiões da Europa, onde em muitos casos, não mais
se distingue o espaço urbano, do espaço rural.
Processo semelhante também começa a ocorrer em território brasileiro. A
conturbação contínua começa a surgir ao longo dos quatrocentos quilômetros do
eixo da Via Dutra entre a cidade do Rio de Janeiro e São Paulo. Na Região do ABCD
Paulista (KLINK, 2001) a expansão urbana é vertiginosa, não respeitando em nada
os limites administrativos municipais. Outro eixo de urbanização começa a surgir na
região sul do Brasil, ao longo da BR-101, mas precisamente entre o norte do Estado
de Santa Catarina, a partir de Joinville, até o extremo sul do Estado, na cidade de
Criciúma, numa extensão de mais de 300 quilômetros de uma urbanização quase que
contínua. Sobre o crescimento dessas novas redes de cidades o texto da Nova Carta
de Atenas assim se expressa:
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
319
Lenta, mas inexoravelmente, novas redes complexas ligam pequenas e grandes cidades entre
si, criando contínuos urbanos já perceptíveis em inúmeras partes da Europa, onde as cidades
clássicas se transformam em simples componentes de novas redes informais. Os efeitos
prejudiciais dessa tal tendência devem ser inevitavelmente abordados numa visão de futuro
para as cidades.
A suposta ausência de “coerência” das cidades ainda segundo o CEU, não
consiste somente em termos materiais, mas e principalmente, pela falta de “coerência”
na continuidade da sua evolução no tempo, que passa a afetar as “estruturas sociais
e as diferenças culturais”. De certa forma, a crítica dos urbanistas europeus está
baseada na perda crescente da própria identidade cultural das populações submetidas
a esse processo. No que se refere à “coerência social”, a proposta da nova Carta de
Atenas se preocupa em propor que as cidades estabeleçam condições para um chamado
equilíbrio social, através da redução progressiva das desigualdades econômicas, sociais
e culturais. Trata-se de importante objetivo para a cidade, que, na sua essência, necessita
respeitar os interesses da sociedade como um todo, tendo em conta a necessidade de
conciliar os direitos e os deveres dos diversos atores sociais sem, contudo ferir os
interesses individualmente dos cidadãos. Alguns dos mais recorrentes “problemas”
comuns aos brasileiros como, o desemprego, a pobreza, exclusão social, criminalidade
e violência, emergem como questões emblemáticas a serem enfrentadas pelas cidades
do século XXI.
A Nova Carta de Atenas alerta para o perigo da “ruptura do tecido econômico
e social” caso as cidades do século XXI não sejam capazes de apontar soluções para
esses “problemas” principalmente no plano social e político. Ainda que estes nobres
objetivos ultrapassem a esfera do mandato do urbanista, a cidade coerente do séc.
XXI deverá procurar também a maior diversidade de oportunidades, de escolhas
econômicas e de emprego para todos os que nela habitam e trabalham, e deverá
assegurar um melhor acesso à educação, à saúde e ao maior número de equipamentos
possível. Enfim, novas formas de estruturas sociais e econômicas virão corrigir as
grandes disparidades sociais, causas da exclusão, da pobreza, do desemprego e
criminalidade e proporcionar o novo quadro de vida necessário à correção daqueles
desequilíbrios. No plano econômico, como não poderia deixar de ser, a preocupação
dos urbanistas europeus se concentram na necessidade de uma maior e melhor
distribuição da riqueza entre as cidades.
A coesão econômica deve ser buscada a partir da diversidade produtiva e da
exploração das “vantagens competitivas” de cada cidade. A cidade como uma possível
mercadoria passível de ser vendida para investidores, aparece como uma das
preocupações centrais aos governantes em balizar seus planos de governo. Nesse
sentido, alguns autores vêm alertando para o perigo da difusão dessa ideologia no
âmbito das cidades brasileiras (VAINER, 1996; SANCHES, 2003).
320
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Segundo o CEU as cidades europeias do séc. XXI tendem a continuar a ser
fortemente interdependentes do nível de atividade econômica. Com isso, elas devem
procurar pertencer a “redes econômicas densas e de malha fina, conjugando eficácia
e produtividade, mantendo altos níveis de emprego e procurando assegurar uma
margem de desenvolvimento competitivo no quadro da economia global, adaptandose continuamente às mudanças internas e externas”.
Como não poderia deixar de ser, a “coerência ambiental” assume posição
relevante na Nova Carta de Atenas. Publicada para ser politicamente correta, ela
enfatiza a necessidade da preservação do meio ambiente como sendo uma condição
“sine qua non”, onde as preocupações com a conservação do solo, do ar e da água,
devam assumir de agora em diante, um caráter prioritário no planejamento urbano.
As cidades do novo milênio irão gerir permanentemente o balanço “input-output” dos
recursos consumidos, com prudência e economia, adaptando-o às necessidades reais,
utilizando tecnologias inovadoras, minimizando o seu consumo pela reutilização e reciclagem
a níveis tão altos quanto possíveis.
Percebe-se que as diretrizes estabelecidas pelo CEU no âmbito do contexto
urbano europeu reconhecem que a busca pelo desenvolvimento sustentável, deve vir
acompanhado de medidas e ações concretas que tornem as cidades mais justas e
democráticas. Esse é, sem dúvida nenhuma, o grande desafio. A valorização do planejamento urbano e do urbanismo como ferramentas indispensáveis na construção
desses objetivos, ressurgem ante a deterioração crescente das condições físicas de
nossas cidades:
O planejamento do território e o urbanismo continuarão a ser as ferramentas eficazes para
conseguir a proteção destes elementos do patrimônio natural e cultural, bem como o veículo
para a criação de novos espaços livres que darão coerência aos tecidos urbanos.
De forma análoga à anterior, a Nova Carta de Atenas também apresenta
recomendações para o desenho urbano, mantendo a antiga crença que através do
mesmo, as cidades podem propiciar uma melhor qualidade de vida para seus habitantes.
Concordamos parcialmente com essa questão. A nova receita do CEU enfatiza os
seguintes princípios como elementos necessários:
1. O relançamento do desenho urbano e da composição urbana para proteger e melhorar as
ruas, as praças, os caminhos de pedestres e outros percursos, como instrumentos da coesão
social e de continuidade do tecido urbano;
2. Reabilitação das formas urbanas não humanizadas e degradadas;
3. Medidas necessárias para facilitar os contatos entre as pessoas e para multiplicar os locais
de descanso e de lazer;
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
321
4. Medidas para melhorar o sentimento individual e coletivo de segurança, que é um elemento
essencial da liberdade e bem-estar individuais;
5. Esforços para criar ambientes urbanos simbólicos provenientes do espírito próprio de
cada lugar, valorizando assim a diversidade de caráter de cada cidade;
6. Manutenção e exigência de um alto nível de excelência estética em todos os locais da
cidade;
7. Proteção sistemática dos elementos do patrimônio natural e cultural, assim como a proteção
e extensão das redes de espaços abertos urbanos.
Compreender ou mesmo aceitar cada um desses objetivos, só é possível considerando-se a inserção e o contexto da rede urbana europeia. O respeito às suas particularidades e aos processos históricos de formação das suas cidades pode explicar,
até certo ponto, o conteúdo formal da Nova Carta, mas, acreditamos que não o bastante para produzir ou desencadear mudanças efetivas na forma de planejamento e de
gestão das cidades nesse novo milênio.
Diversos e novos desafios se multiplicam a cada dia, o que torna complexo
aceitar novamente um receituário para a salvação das cidades. Um dos grandes dilemas
ainda não pacífico na práxis urbana brasileira trata da questão do direito de propriedade
e do polêmico debate em torno de sua função social, tema que há muito tempo encontrase plenamente resolvido na grande maioria dos países europeus, por exemplo.
Algumas exceções situadas principalmente em países do leste europeu ainda
se ressentem da instituição de um marco regulatório que vise disciplinar essa questão,
retardados pelo modelo político adotado durante os anos que viveram sob a égide de
regimes totalitários e que de certa forma ainda vivem momentos de incerteza em
relação à segurança jurídica da terra.
A construção da sustentabilidade possível (nas dimensões econômica, social,
espacial, cultural e ecológica) das cidades (SACHS, 1993), é sem dúvida nenhuma,
um dos maiores desafio de alcance mundial neste Século XXI. No caso brasileiro, a
luta travada pela aprovação e pela implementação dos instrumentos jurídicos e
urbanísticos previstos na Lei Federal nº 10.257/2001 (FERNANDES, 2001) se reveste
desta ambiciosa tarefa social. Ao mesmo tempo, se têm a compreensão de que o
Estatuto da Cidade não pode ser um instrumento suficiente per si, capaz de provocar
mudanças paradigmáticas desse nível.
Em diversas passagens deste trabalho, apontamos às limitações que esse
instrumento se apresenta no contexto do planejamento urbano brasileiro, em especial,
por não abordar concretamente questões referentes a processos de inclusão social e
também, questões relativas aos “problemas” que afetam diretamente as regiões
322
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
metropolitanas brasileiras e que dependem da criação de uma “esfera de decisão”
neste nível (RIBEIRO & CARDOSO, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar e planejar nossas cidades para além de seus limites administrativos
pressupõe a necessidade de uma nova práxis de atuação dos planejadores. O universo
do território e seu alcance regional devem ser à base de futuros planos articulados
entre a escala urbana e a escala da região de influência da cidade pólo. A intenção dos
urbanistas europeus na busca da consolidação do paradigma da sustentabilidade para
as cidades europeias do século XXI demonstra que ainda se encontra ativa a proposta
ideológica de um possível planejamento urbano “universalizado”. Trata-se, como
vimos de um debate ainda incipiente no âmbito científico brasileiro, sobretudo pelo
momento vivido em grande parte das cidades brasileiras. Julgamos oportuno lembrar
que essa nova avalanche de Planos Diretores produzidos sem um maior controle
social do seu conteúdo, ainda não produziu seus efeitos: tanto para bem como para o
mal. De certa forma percebemos que muitos municípios têm procurado inovar seus
processos de planejamento, através da prática do planejamento participativo e da
adoção de mecanismos e instrumentos jurídicos e urbanísticos que podem a médio e,
em longo prazo, melhorar parcialmente a qualidade de vida e o urbanismo nessas
cidades.
O fato é que algo precisa ser feito para romper com a inércia política que ainda
contamina grande parte do meio técnico responsável pela formulação das políticas
de planejamento em nosso país e que se encontram enraizadas em diversos níveis
tanto da esfera pública, como no setor privado. Os dilemas e impasses que vivenciamos
no âmbito da nossa práxis urbana encontram-se permanentemente em processo de
transmutação. A conclusão mais óbvia que podemos apurar dessa situação é que não
existe uma única resposta para a mesma. Poderíamos falar inclusive, que vivemos
historicamente numa espécie constante de metamorfose do urbanismo, movimento
este que reproduz dialeticamente a mesma coisa, mas com um discurso que busca na
diferença, se apresentar como o novo. Nesse sentido, a Nova Carta de Atenas apenas
cumpre com sua função instrumental de reproduzir o papel central do urbanismo
como elemento histórico de suporte físico para a sustentabilidade das cidades,
definindo a cidade como “[...] o estabelecimento humano com certo grau de coerência
e coesão. Não se considera somente a cidade convencional e compacta, mas também
as cidades região e as redes de cidades”.
Para Villaça (1999), a exteriorização formal dessa “crise” urbana necessita
permanentemente de processos sociais que possam de certa forma, manter acesso o
debate sobre as relações entre o espaço, sociedade e o meio ambiente. Nesse sentido,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
323
as cidades devem ser vistas cada vez mais como espaços de fluxos e não mais como
espaço de lugar (LIMONADI, 2007). Ainda segundo Villaça (1999), a ideologia do
planejamento urbano se apoiou historicamente em conceitos e práticas que somente
contribuíram para manter o “status quo” social e econômico. Por fim, verificamos a
emergência de novas práticas urbanísticas sendo difundidas como soluções
“alternativas” para o planejamento urbano de nossas cidades. Também o planejamento
estratégico de cidades (BORJA & FORN, 1996) com larga aceitação desde a proposta
levada a efeito pela cidade de Barcelona para os Jogos Olímpicos de 1992, bem
como na tese do urbanismo realizado através da implantação de grandes projetos
urbanos (INGALLINA, 2001), que avança silenciosamente com a promessa de cura
a todos os problemas atuais e futuros existentes em nossas cidades, tendo Bilbao e
seu Museu Guggenheim como exemplo paradigmático.
Outras propostas ainda surgem como estratégias de mudar a visão do
planejamento como, por exemplo, a implantação do urbanismo de resultados
(ASCHER, 2001), que visa administrar pontualmente os problemas urbanos e que
privilegia as funções de comunicação, mediação e negociação a partir do planejamento
urbano, sem falar no planejamento estratégico. Acreditamos que esse debate, que
chega de certa forma tardio, pode colaborar para ampliar os limites e possibilidades
da adoção de uma nova prática urbanística para as cidades brasileiras. Essa questão
deve ser amplamente debatida pela academia e também no âmbito do poder público,
principalmente nesse momento onde “novos” Planos Diretores surgem no cenário de
grande parte dos municípios brasileiros forjados única e exclusivamente por uma
exigência legal e não pela vontade ou reconhecimento da necessidade do instrumento
do planejamento de nossas cidades.
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Outorga Onerosa do Direito de Construir: a
Experiência de Belém
HELENA LÚCIA ZAGURY TOURINHO1
Arquiteta e Urbanista
RESUMO: O artigo faz uma análise da aplicação do conceito da Outorga Onerosa
do Direito de Construir (OODC) em Belém, este que foi um dos instrumentos de
política urbana regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/
2001). O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breve
revisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiência
de aplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008. Conclui
sugerindo que as dificuldades e distorções ocorridas na aplicação do conceito da
OODC em Belém, no período analisado, resultaram da luta entre interesses,
vencida por grupos do capital imobiliário e dos proprietários fundiários, que
têm demonstrado ser a força política dominante no Legislativo Municipal.
PALAVRAS-CHAVE: Política Urbana, Estatuto da Cidade, Outorga Onerosa
do Direito de Construir, Planejamento Urbano em Belém
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicação do conceito da Outorga
Onerosa do Direito de Construir (OODC) na legislação urbana de Belém, a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 e da sua regulamentação pelo Estatuto
da Cidade. O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breve
revisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiência de
aplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008.
1
M. Sc. em Planejamento do Desenvolvimento, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
da Amazônia – UNAMA e Doutoranda em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco
– UFPE/MDU. E-mail: [email protected].
326
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
1. A OODC COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA URBANA: BREVE
HISTÓRICO
A OODC é um instrumento de política urbana que consiste na concessão do
direito de edificar acima do coeficiente de aproveitamento básico2 estabelecido por
lei, mediante uma contrapartida do beneficiado ao poder público. Tal contrapartida
justifica-se por diversas razões, dentre as quais estão as necessidades de: 1) equalização
do direito de construir a todos os proprietários do solo, igualdade essa que é quebrada
no processo de planejamento urbano quando, com fins de racionalizar o uso das
infra-estruturas mediante o adensamento de alguns espaços urbanos, são estabelecidos
índices de aproveitamento máximo diferenciados entre as partes da cidade; 2)
recuperação, pelo poder público, da valorização fundiária provocada pelo
estabelecimento de índices de aproveitamento diferenciados nas leis de uso e ocupação
do solo; 3) distribuição de forma equânime dos benefícios e custos dos investimentos
públicos na cidade; 4) geração de recursos para financiar, compensatoriamente,
programas de habitação e urbanização de áreas populares3.
Inicialmente, o instituto da OODC foi denominado de “solo criado” e
fundamentado na possibilidade da criação de área construída artificial além da área
do terreno sob ou sobre o solo natural. Depois, a concepção do “solo criado” foi
vinculada à ideia da construção praticada acima de um coeficiente único, válido para
todos os terrenos localizados em um município, região ou país (GRAU, 1983).
Originada em Roma, quando especialistas concluíram pela necessidade de
separar o direito de construir do direito de propriedade, a OODC foi aplicada na
França desde 1975, na Itália desde 1977 e no Brasil vem sendo discutida desde a
década de 1970. Em 1976, na carta de Embu, urbanistas e juristas brasileiros
defenderam sua inserção na legislação municipal com a denominação de “solo criado”.
A partir daí, alguns municípios brasileiros passaram a instituí-la em suas legislações
(DORNELAS, 2007).
A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo II, estabeleceu que a política
urbana tem o objetivo ordenar o desenvolvimento da função social da cidade e remeteu
aos planos diretores urbanos a definição desta função. Além disso, separou o direito
de superfície do direito de construir e enunciou alguns instrumentos como o
2
Conforme § 1º do Art. 28 do Estatuto da Cidade, coeficiente de aproveitamento é “a relação entre a área edificável
e a área do terreno” (BRASIL, 2001). O índice ou coeficiente de aproveitamento básico determina quantas
vezes a área do terreno pode ser construída, sem que seja necessário o beneficiário pagar ao poder público pela
outorga do direito de construir.
3
De acordo com a avaliação da aplicação da OODC em doze cidades brasileiras, realizada por Furtado et al.
(2006), esta foi a justificativa predominante para o uso desse instrumento.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
327
parcelamento e a edificação compulsórios, o IPTU progressivo do tempo e a usucapião.
Não obstante, a Carta Magna não fez qualquer referência à OODC, no que foi seguida
pela Constituição Estadual do Pará.
A inserção da OODC no ordenamento jurídico nacional só veio a ser efetivada
treze após a aprovação da Constituição Federal, através da Lei Federal 10.257/2001,
conhecida pela denominação de Estatuto da Cidade. O Estatuto da Cidade
regulamentou o Capítulo da Política Urbana da Constituição Brasileira e os
instrumentos de política urbana, e dentre esses, a OODC, prevista como instrumento
jurídico, tanto com o fim de ampliar o direito de construir, como para alterar o uso do
solo. A partir da aprovação do Estatuto da cidade, coube ao Plano Diretor, conforme
os Artigos 28 e 29 (BRASIL, 2001):
a) fixar o coeficiente básico de aproveitamento e determinar as áreas nas quais
o direito de construir poderá ser exercido acima dele, mediante contrapartida a ser
prestada pelo beneficiário. O coeficiente básico poderá ser único para toda a zona
urbana ou diferenciado por áreas.
b) estabelecer os limites máximos possíveis a serem atingidos pelos coeficientes
de aproveitamento em cada área da cidade, considerando a proporcionalidade entre a
infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área;
c) definir as áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo,
mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário; e,
d) estabelecer as condições a serem observadas para a OODC e de alteração de
uso, determinando a fórmula de cálculo para a cobrança, os casos passíveis de isenção
do pagamento da outorga e a contrapartida do beneficiário.
Vale ressaltar que o Estatuto da Cidade, ao instituir a possibilidade de uso de
coeficientes básicos diferenciados, já se afastou da ideia original do solo criado,
flexibilizando o princípio da equidade do direito de construir e criando a possibilidade
de reprodução das desigualdades e da especulação fundiária em áreas periféricas.
O Estatuto da Cidade, no Artigo 31, previu ainda que os recursos auferidos
pela OODC e de alteração de uso deverão ser utilizados para as finalidades previstas
nos incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto, que são: regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva
fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implementação de
equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas
verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas verdes;
criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse
ambiental; e, proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico
(BRASIL, 2001).
328
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
2. A EXPERIÊNCIA DE BELÉM
No caso de Belém, a OODC apareceu, pela primeira vez em 1990, no Art. 118
do Capítulo de Política Urbana, da Lei Orgânica do Município (BELÉM, 1990).
Com a denominação de “solo criado”, referido instituto foi citado como um dos
instrumentos tributários e financeiros destinado a assegurar as funções sociais da
cidade e da propriedade. A Lei Orgânica, contudo, não estabeleceu as condições para
aplicação dessa taxação, o que só viria a acontecer após a aprovação do Plano Diretor
em 1993. Desde então, a OODC, foi regulamentada por três grandes legislações
urbanísticas: O Plano Diretor Municipal de 1993, a Lei Complementar de Controle
Urbanístico de 1999 e o Plano Diretor de 2008.
2.1. O Plano Diretor Municipal de Belém de 1993
A decisão de elaboração do Plano Diretor Urbano do Município de Belém, o
primeiro após Constituição Federal de 1988, partiu de uma pressão no Poder Legislativo Municipal, através do requerimento de um vereador que cobrou do Prefeito a
sua realização, fundamentado no Art. 250 da Lei Orgânica do Município de Belém.
Construído em um momento de transição – entre a promulgação das Constituições
Federal e Estadual e a Regulamentação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/
2001) – o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 7.603, de 13 de janeiro de
1993) não pode contar com a regulamentação federal da OODC. Neste Plano Diretor, esse instituto apareceu: no Artigo 31, como instrumento destinado a “perseguir a
justa distribuição dos ônus decorrentes das obras e serviços públicos implantados,
com a recuperação, pela coletividade, da valorização imobiliária decorrente da ação
do poder público”; no Artigo 34 como um dos instrumentos voltados para “regular o
mercado imobiliário”; no Art. 137 como um dos instrumentos tributários e financeiros destinados à execução da política de desenvolvimento municipal; e, no Art. 155
como um dos instrumentos de atuação urbanística (BELÉM, 1993).
O plano previu, no seu Art. 37, a instituição de dois zoneamentos para fins de
outorga onerosa: um para estabelecer o estoque de potencial construtivo a ser outorgado
onerosamente; e outro que destinado a estabelecer o próprio estoque. No Artigo 162
as zonas foram classificadas em zonas de adensamento até o coeficiente básico (ZACB)
e zonas adensáveis acima do coeficiente básico potencial (ZAOO). A classificação
das áreas da cidade em uma ou outra zona era vista como transitória e mutável,
podendo se alterar desde que houvesse saturação da capacidade de infra-estrutura ou
a ampliação da mesma (Artigo 164).
O dimensionamento da oferta do potencial construtivo, para fins de OODC,
deveria ser em função da capacidade infra-estrutural, sobretudo daquela referente ao
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
329
sistema de circulação4, este composto pelos sistemas viário básico e de transportes
(Art. 37). No que concerne ao cálculo do valor pago pelo direito de construir, o plano
estabeleceu pelo metro quadrado outorgado o mesmo valor do metro quadro constante
na planta de valores do município, mais um acréscimo correspondente à correção
monetária referente ao período compreendido entre a data de definição do valor venal
e a data de pagamento da outorga onerosa ao poder público (Artigo 185). Para isso,
previu a correção anual da planta de valores e a revisão quadrienal do valor de mercado
dos imóveis e instituiu o prazo para o pagamento de até cinco meses, contados a
partir da aprovação do projeto (Artigo 190).
A destinação do valor recebido da outorga deveria ser: o Fundo de
Desenvolvimento Urbano, no caso das áreas em que houvesse infra-estrutura já
instalada; e a própria zona onde foi outorgado o direito de construir, quando nela
houvesse carência de infra-estrutura para absorver a ampliação da área construída
outorgada onerosamente (Artigo 185). O executivo municipal foi autorizado a receber
imóveis para pagamento da OODC e, também, a conceder para a iniciativa privada e
os demais agentes promotores a redução total ou parcial do pagamento pelo direito
de construir acima do coeficiente básico, no caso de projetos de habitação de interesse
social, desde que o plano fosse aprovado em Lei Municipal e que houvesse parecer
favorável do Conselho de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Artigo 185).
No caso das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) o pagamento da OODC
poderia ser reduzido até zero, dependendo da capacidade da infra-estrutura existente,
do custo das moradias e do poder aquisitivo dos usuários finais do espaço urbanizado
(Artigo 167). Nessas zonas o plano previu, também, a possibilidade de alteração no
cálculo da outorga onerosa, desde que justificada por estudos específicos (Artigo
182).
O coeficiente de aproveitamento básico para todos os lotes urbanos contidos
no município foi estabelecido em 1,4 (um vírgula quatro), excetuados aqueles
localizados em zonas especiais (Artigo 182). Os coeficientes máximos de
aproveitamento das zonas, por seu turno, ficaram para ser instituídos em uma posterior
Lei de Controle Urbanístico (Artigo 186), que deveria fazê-lo de forma diferenciada
por uso (residencial e não-residencial), e conforme a capacidade de suporte infraestrutural já referenciada anteriormente (Artigo 187). Vale ressaltar que o
4
No Artigo 163, Parágrafo 1º, o Plano estabeleceu que os cálculos dos potenciais construtivos deveriam ser
realizados através de procedimentos técnicos utilizando metodologia apropriada e explicitada para o conhecimento
público. No caso do sistema de circulação, instituiu o uso de metodologia baseada em modelos de simulação
entre uso do solo e transportes, a partir de pesquisa de origem e destino, o que tornava dispendiosa e complexa
sua realização (BELÉM, 1993).
330
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
dimensionamento do estoque edificável consideraria a zona como um todo e não o
lote individual (Artigo 188).
Enquanto a Lei Complementar de Controle Urbanístico não fosse aprovada, a
outorga onerosa deveria ser aplicada considerando o coeficiente máximo estabelecido
na legislação urbanística em vigor. Contudo, não foi isso o que ocorreu na prática. A
atualização da Lei de Controle Urbanístico não foi providenciada de imediato e vários
problemas foram evocados para evitar a cobrança da outorga onerosa, tais como a
ausência de planta de valores e de cadastro técnico atualizados, a não-implementação
do Fundo de Desenvolvimento Urbano, as indefinições quanto ao estoque construtivo,
a ausência de mecanismos de gestão dos estoques edificáveis, etc.
Tão logo começaram as tentativas de cobrança da OODC esse instrumento
começou a ser enfraquecido pelo legislativo municipal. Através da Lei 7.683 de 11
de janeiro de 1994, a Câmara de Vereadores autorizou o Prefeito a aplicar um redutor
de 75% no valor da OODC e aumentou para 1,8 o coeficiente básico aplicado a lotes
com área inferior a 150 m2 A vigência dessa Lei foi prorrogada até 31 de dezembro de
1995 pela Lei 7.744 de 28 de dezembro de 1994 e, até 31 de dezembro de 1996 pela
Lei 7.782 de 27 de dezembro de 1995.
Mais tarde, a Lei 7.877, de 6 de abril de 1998, alterou os Artigos 182 e 340,
bem como acrescentou parágrafos aos artigos 190 e 191 da Lei do Plano Diretor. As
principais mudanças foram:
a) a alteração do coeficiente básico de 1,4 para 4,0 aplicada a todos os lotes
urbanos do município, mantendo a exceção aos lotes das zonas espaciais (Art. 182);
b) o estabelecimento do coeficiente máximo igual a 6,0 (Art. 340);
c) a isenção do pagamento da outorga onerosa nos casos de habitação popular
desde que comprovado o baixo poder aquisitivo dos usuários finais e o padrão da
moradia a ser produzido (acréscimo no Art. 190); e,
d) o parcelamento em 12 prestações do pagamento da outorga onerosa (Art.
190).
É evidente que essas mudanças na legislação resultaram de pressões
empreendidas por segmentos do setor imobiliário sobre os seus representantes na
Câmara de Vereadores. Como consequência, foi praticamente inviabilizada a aplicação
do instrumento da OODC, até porque, como referenciou Rodrigues (2005 in BELÉM,
2005), na época, não interessava para o mercado imobiliário atingir índices maiores
do que o novo índice básico (igual a 4,0). Segundo Belém (2001), antes da aprovação
da Lei Complementar de Controle Urbanístico, a cobrança da OODC foi feita com
muitas concessões e dificuldades operacionais.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
331
2.2. A Lei Complementar de Controle Urbanístico de 1999
Entre a aprovação do Plano Diretor de 1993 e a aprovação da Lei Complementar
de Controle Urbanístico (LCCU) transcorreram seis anos. O Projeto da LCCU foi
elaborado por dois técnicos da Prefeitura Municipal a partir de discussões com agentes
do mercado imobiliário e dos movimentos sociais, sobretudo com os primeiros, foi
instituído pela Lei Complementar 02 em 19 de julho de 1999. É, portanto, anterior ao
Estatuto da Cidade.
A LCCU tratou dos espaços continentais do município de Belém. Em seu Art.
64, classificou a parte continental em Zonas Adensáveis até o Coeficiente de
Aproveitamento Básico (ZACB) e em Zonas Adensáveis Acima do Coeficiente Básico
(ZAOO).
É de se destacar que, na LCCU, o conceito do instituto da OODC foi totalmente alterado. O coeficiente básico deixou de ser idêntico para toda a cidade. Na
ZACB o coeficiente de aproveitamento foi estabelecido em 2,0 (dois), e na ZAOO,
os coeficientes variaram conforme os modelos urbanísticos. A outorga onerosa em
vez de incidir sobre o diferencial entre as áreas construídas resultantes dos coeficientes de aproveitamento máximo e básico passou a ser aplicada sobre a área construída que excedia o cálculo do coeficiente máximo estabelecido nos quadros de
modelos urbanísticos aplicados a cada zona. Como determinava o Art. 73 (BELÉM,
1999):
Art. 73. A outorga onerosa do direito de construir, definida nos artigos 189 a 191 da Lei nº
7.603, de 13 de janeiro de 1993, será aplicada nas ZAOO conforme a seguir:
I – nas ZUM 4, ZUM 5 e ZUM 6 – até 10% (dez por cento) acima do coeficiente de
aproveitamento do modelo utilizado;
II – nas ZH 4, ZH 5, ZUM 7 e ZUM 8 – até 20% (vinte por cento) acima do coeficiente de
aproveitamento do modelo utilizado.
Dito de outra forma, a LCCU, nas áreas sujeitas à cobrança da outorga onerosa
igualou conceitualmente “coeficiente básico de aproveitamento” com o que antes era
o “coeficiente de aproveitamento máximo de cada zona” e passou a fazer incidir a
OODC apenas sobre o que excedia ao coeficiente de aproveitamento de cada lote,
que era definido conforme o zoneamento ordinário do uso pretendido e as dimensões
do lote. Essa estratégia de igualar o coeficiente básico ao coeficiente de aproveitamento
máximo, usada em outras cidades brasileiras (Curitiba, Porto Alegre, Salvador, por
exemplo), “admite que o município vá arcar com a infra-estrutura necessária para
adequar a cidade ao máximo permitido pelo zoneamento anterior e só irá recuperar
os investimentos ou financiar o que for dali excedente” (FURTADO et al., 2006). No
332
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
caso de Belém, contudo, tal estratégia se deu associada ao estabelecimento de índices
urbanísticos, sem que os mesmos tenham sido fundamentados em estudos técnicos
consistentes de avaliação da capacidade de suporte infra-estrutural.
Além de restringir a concessão da outorga onerosa a lotes cujas testadas fossem
superiores a determinadas dimensões (15 metros no caso do modelo M4; 12 metros
no caso dos M10, M12 e M14) a LCCU, também reduziu, sobremaneira, as áreas
computáveis para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento máximo.
Art. 70. Consideram-se não computáveis para fins de cálculo do coeficiente de
aproveitamento, as seguintes áreas:
I – nas edificações destinadas à habitação unifamiliar:
a) jardins abertos ou não;
b) sacadas e terraços, desde que abertos;
c) varandas, dentro do limite de 5 % (cinco por cento) da área da edificação;
d) estacionamento ou garagem.
II – nas edificações destinadas à habitação coletiva:
a) as destinadas aos serviços gerais, tais como:
1. máquinas e elevadores;
2. bombas d’água;
3. transformadores;
4. centrais de ar condicionado;
5. aquecimento de água;
6. instalação de gás;
7. contadores e medidores;
8. instalações para coleta e depósito de resíduos sólidos;
b) as que constituem dependências de uso comum:
1. vestíbulos;
2. circulação horizontal e vertical;
3. recreação e jardins abertos ou não;
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
333
4. salões de recepções;
5. guarita;
c) sacadas e terraços, desde que abertos, ainda que constituam dependências de utilização
exclusiva da unidade autônoma;
d) varandas, desde que não ultrapassem a 5% (cinco por cento) da área de utilização exclusiva
da unidade autônoma de até 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados) de área, ou 10%
(dez por cento) da área de utilização exclusiva da unidade autônoma por habitação com área
superior a 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados), e de até 180 m2 (cento e oitenta
metros quadrados) ou 15% (quinze por cento) da área de utilização exclusiva da unidade
autônoma por habitação com área superior a 180,00 m2 (cento e oitenta metros quadrados);
e) estacionamento ou garagem;
f) residência de zelador, quando igual ou inferior a 50,00 m2 (cinquenta metros
quadrados);
g) pavimento em pilotis quando livre e sem qualquer vedação, excluídas as áreas previstas
nos incisos anteriores.
III – nas edificações destinadas a atividades não residenciais:
a) aquelas discriminadas no inciso II, alínea “a”, deste artigo;
b) as destinadas à circulação horizontal e vertical, de uso comum;
c) as destinadas à guarita;
d) as referidas no inciso II, alíneas “c”, “e” e “f, deste artigo.
Como se pode constatar sobrou muito pouca área construída para a aplicação
da outorga onerosa, e a que sobrou ainda teve sua forma de pagamento facilitada pelo
Artigo 74 (50% do valor no licenciamento da obra e o restante em cinco parcelas
mensais, iguais e sucessivas corrigidas monetariamente).
A definição das zonas com estoques de potencial construtivo para outorga
onerosa deveria, segundo a LCCU ser feita com base na capacidade de infra-estrutura, das vias de circulação e das conveniências de qualificação ambiental. O estoque
deveria ser dividido em estoque para fins residenciais e estoque para fins não-residenciais (Artigo 87), cabendo ao poder executivo divulgar as quantidades desses
estoques e suas localizações. Ainda segundo o Artigo 162, o estoque de área edificável disponível deveria ser calculado pelo Poder Executivo Municipal e encaminhado
à Câmara Municipal de Belém no prazo máximo de um ano, a partir de 19 de julho
de 1999. De acordo com Belém (2005) tais estoques não chegaram a ser dimensionados.
334
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
2.3. O Plano Diretor do Município de Belém de 2008
A revisão do Plano Diretor de Belém foi feita sob a égide do Estatuto da Cidade,
num processo compartilhado entre governo e sociedade, conforme estabelecido pelo
Art. 40 do Estatuto da Cidade, sendo formulado em duas etapas básicas. A primeira
consistiu na elaboração de estudos e diagnósticos e foi procedida através da contratação
de trabalhos técnicos de consultores e do levantamento e sistematização de informações
junto aos órgãos da administração municipal realizada pelos membros da equipe
técnica coordenada pela SEGEP. A segunda etapa consistiu no processo de discussão
com diversos segmentos sociais, por meio de seminários e audiências públicas, de
onde saíram contribuições para o texto final.
A Lei que institui o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 8.655 de 30 de
julho de 2008) situa a OODC dentre os instrumentos jurídicos e urbanísticos. Seu
Art. 131 restabeleceu os conceitos de coeficientes de aproveitamento: básico (a ser
adotado nos processos de aprovação de projetos que não contemplem a outorga onerosa
ou a transferência de direito de construir); mínimo (a ser usado como parâmetro de
medição da subutilização do lote e, portanto, da condição de aplicação do
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, do IPTU progressivo no tempo,
e da desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública); e, máximo (a ser
usado nos processos de aprovação de projetos, que contemplem a outorga onerosa ou
a transferência do direito de construir).
A OODC voltou a incidir sobre a área resultante da subtração entre as áreas
obtidas através da aplicação dos coeficientes de aproveitamento máximo e básico.
As áreas sujeitas a OODC foram novamente ampliadas, sendo compostas, de acordo
com o Art. 158, pelo Setor I da ZAU 3, pela ZAU 6 e pelo Setor II da ZAU 7.
Embora a Lei do Plano Diretor tenha estabelecido os coeficientes de
aproveitamento mínimos (variando de 0,05 a 0,15), remeteu a regulamentação da
definição do coeficiente básico e das condições de aplicação para uma posterior Lei
da Outorga Onerosa do Direito de Construir.
Enquanto a Lei da OODC e a Lei de Uso do Solo não forem formuladas e
aprovadas, o Plano previu, em suas disposições transitórias, algumas alterações na
LCCU/1999, tais como, mudanças nos limites do zoneamento e no quadro de modelos urbanísticos. Permaneceu, contudo, a sistemática de incidência da OODC apenas
na área construída que excede aquela calculada com base nos coeficientes máximos
permitidos no quadro de modelos, este sim alterado. Manteve, também, o art. 70 da
LCCU, citado anteriormente, que isenta uma grande variedade de espaços do cômputo total da área construída para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
335
Foram revogadas, dentre outras, a Lei 7.603/1993, que instituiu o primeiro Plano
Diretor de Belém pós-Constituição Federal de 1988, e a Lei 7.877/1998, que estabeleceu o coeficiente básico e o coeficiente máximo iguais a, respectivamente, quatro
e seis.
3. CONCLUSÕES
A análise da legislação mostrou a imprescindibilidade e o papel fundamental
do Plano Diretor e da legislação municipal no estabelecimento de coeficiente(s)
básico(s) e máximos de aproveitamento e das condições de aplicação da OODC. Ao
atribuir ao município o estabelecimento do coeficiente básico e a definição das
condições de aplicação do instituto da OODC, o Estatuto da Cidade deslocou, para
essa esfera, o debate e o embate político sobre tais condições.
Considerando-se que o Estado é um campo de forças, no qual agentes com
interesses diferenciados, lutam pela apropriação dos benefícios da urbanização, somente em situações de equilíbrio de forças políticas pode haver a possibilidade de
implementações progressistas e democráticas dos instrumentos urbanísticos. Caso
contrário, a tendência é de que ou o instrumento não seja instituído, ou que seja
capturado/deturpado para atender interesses de grupos dominantes, como o que
ocorreu em Belém ao se instituir a aplicação da OODC acima do coeficiente
máximo de aproveitamento e ao se desvirtuar o próprio conceito de índice de
aproveitamento, excluindo do seu cálculo uma quantidade enorme de ambientes
construídos.
No caso da OODC, dentre os grupos desinteressados na aplicação desse
instrumento estão os proprietários fundiários e o capital imobiliário, pois estes deixarão
de apropriar, de forma privada, benefícios socialmente criados. Num quadro de
mercado operando com os valores máximos possíveis de comercialização, tais
segmentos poderão ter dificuldades de realização de suas margens de lucro/renda
fundiária.
O adiamento das decisões referentes à OODC no Plano Diretor do Município
de Belém aprovado em 2008 evidencia a dificuldade histórica de pactuar esse instrumento com os setores compostos pelos proprietários fundiários e do capital
imobiliário. Por outro lado, as dificuldades de gerenciamento técnico do instrumento e de monitoramento da dinâmica imobiliária e os baixos valores
arrecadados são alguns dos fatores que ajudam a entender o pouco interesse que
o instrumento desperta no executivo municipal. A julgar pelo que tem ocorrido
até o presente, é grande o risco de se tornar a OODC um instrumento sem eficácia e credibilidade.
336
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
REFERÊNCIAS
BELÉM. Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão – SEGEP. Diagnóstico
institucional para apoiar a elaboração do Plano Estratégico para Assentamentos Subnormais – PEMAS. Belém: PMB, 2001.
______. Lei nº 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém e
dá outras Providências. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 16 nov. 1993.
______. Lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém e dá
outras Providências. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 31 jul. 2008.
______. Lei Complementar de Controle Urbanístico Lei nº 2, de 19 de julho de 1999. Dispõe sobre o
parcelamento, ocupação e uso do solo urbano do Município de Belém e dá outras providências. Diário
Oficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 13 set.1999.
______. Lei nº 7.683, de 11 de janeiro de 1994. Estabelece medidas aplicáveis à legislação do Plano
Diretor Urbano de Belém, de que trata a Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do]
Município de Belém. Belém, PA, 1994.
______. Lei 7.744, de 28 de dezembro de 1994. Prorroga a vigência da Lei 7.683, de 11 de janeiro
de 1994, que estabelece medidas aplicáveis à legislação do Plano Diretor Urbano de Belém, instituído pela Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém,
PA, 1994.
______. Lei 7.782, de 27 de dezembro de 1995. Prorroga a vigência da Lei 7.683, de 11 de janeiro
de 1994, que estabelece medidas aplicáveis à legislação do Plano Diretor Urbano de Belém, instituído pela Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém,
PA, 1995.
______. Lei 7.877, de 06 de abril de 1998. Altera os artigos 182 e 340 e acresce parágrafos aos Arts. 190
e 191 da Lei 7.603 de 13/11/1993, e dá outras providências. Diário Oficial [do] Município de Belém.
Belém, PA, 1998.
______. Prefeitura Municipal; SEGEP. Relatório de revisão do Plano Diretor de Belém (Lei 7.603/93).
Belém, 2005.
______. Lei Orgânica do Município de Belém, de 30 de março de 1990. Diário Oficial [do] Município
de Belém. Belém, PA,1990.
BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul. 2001.
DORNELAS, Henrique Lopes. A abordagem do instituto jurídico da outorga onerosa do direito de
construir (solo criado). In: PAULA, Alexandre Sturion de (Org.). Estatuto da cidade e o plano diretor
municipal: teoria e modelos de legislação urbanística. São Paulo: Lemos Cruz, 2007, p. 127-192.
FURTADO, Fernanda et ai. Outorga onerosa do direito de construir: panorama e avaliação de experiências municipais. In. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, XII, 2007, Belém.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.
PLANO Diretor de Transportes da Região Metropolitana de Belém – PDTU. Belém: JICA, 2001.
337
Estudo de Impacto de Vizinhança: a
Legislação do EIV em Porto Alegre
GLADIS WEISSHEIMER1
MARIA TEREZA FORTINI ALBANO2
Arquitetas e Urbanistas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A discussão realizada em Porto Alegre sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV tem seu marco na 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA, Lei Complementar 434/99 realizada em 2003, quando ficou estabelecido como pauta a necessidade de compatibilização deste instrumento com o Estatuto da Cidade – EC.
Nesta ocasião se evidenciou de maneira bastante forte a insatisfação de parcelas
da população com os resultados espaciais decorrentes das propostas do plano. O
tema da paisagem urbana que durante o processo de elaboração do PDDUA desde
meados dos anos 90 tinha sido aspecto de pouca relevância, passar a ser, durante e
após a 1ª Conferência de Avaliação, questão essencial, voltada principalmente para a
temática das alturas das edificações e das Áreas Especiais de Interesse Cultural da
cidade, com ênfase na delimitação e definição de regimes urbanísticos para uma
adequada valorização do patrimônio cultural.
Assim se iniciou uma ampla mobilização para que o EIV fosse exigido para
um número bastante grande de situações envolvendo até mesmo projetos de prédios
com mais de 500m2 que estivessem em processo de aprovação junto ao setor
competente da Secretaria de Obras do Município.
É possível afirmar que a discussão do EIV em Porto Alegre se confundiu muitas
vezes com a da revisão do plano diretor. Através desta discussão a população
1
Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1989. Técnica da SPM da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Coordenadora da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre.
2
Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1976. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR
– UFRGS 2000. Técnica SPM desde 1979. Integra grupo da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre, Coordenou
em 2003 o tema Projetos Especiais de Impacto Urbano e EIV na revisão do PDDUA.
340
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
vislumbrou neste instrumento uma oportunidade de resolver situações de conflito
geradas pelos regimes urbanísticos propostos pela legislação de 1999, que em
desacordo com a realidade da cidade preexistente nos bairros, passou a propor usos e
volumetrias bastante superiores das identificadas nos diversos locais. Através de um
estímulo de renovação em quase todos os bairros da cidade passaram a surgir espigões
isolados, em zonas com predominância de residências unifamiliares ou de prédios
com um número reduzido de pavimentos.
Se por um lado, setores da comunidade consideraram o EIV como um instrumento capaz de propiciar uma luta pela manutenção das ambiências dos bairros tradicionais da cidade, por outro lado, representantes do setor imobiliário o perceberam
apenas como mais um ato burocrático e fator de aumento de despesas no desenvolvimento dos projetos com necessidade de aprovação pela Prefeitura Municipal.
Desde então se estabeleceu um debate sobre os limites de abrangência do EIV
bem como sobre as possibilidades e os desafios para a construção de uma proposta
de consenso para a cidade de Porto Alegre. O que se buscava era um acordo possível
que fosse capaz de garantir as condições de implementação do instrumento, atendendo
às expectativas dos diferentes atores sociais quer como produtores da cidade,
moradores dos diversos bairros, usuários do comércio e serviços, gestores públicos e
todos aqueles que de alguma maneira são responsáveis pelo funcionamento do sistema
urbano.
Na sua essência, desde o início das discussões o EIV vem sendo tratado como
um instrumento de gestão democrática, materializado em um documento que reúne
as informações necessárias para subsidiar a avaliação prévia dos impactos sobre o
ambiente sempre que a magnitude do empreendimento ou atividade assim o exigir e
sempre que a ênfase predominante for de caráter urbanístico.
De maneira mais e menos intensa estes e outros aspectos já foram abordados
em outros dois trabalhos enviados ao III e IV Congressos do IBDU.
Neste sentido, no presente momento, se pretende trazer para o V Congresso os
resultados do processo vivido desde 2003 que culmina na elaboração de um projeto
de lei e na realização de um seminário público com o objetivo subsidiar a tomada de
decisão dos conselheiros do CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento
Urbano Ambiental com relação à proposta de lei elaborada.
Portanto, a minuta de projeto de lei ainda em discussão junto ao CMDUA, tem
por objetivo atender ao disposto nos artigos 36, 37 e 38 da Lei Federal 10.257 de 10
de julho de 2001 e adequar a utilização de outros instrumentos de avaliação de impacto
já utilizados desde longa data em Porto Alegre aos conteúdos do Estatuto da Cidade
sobre o EIV.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
341
A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DO EIV: REFERENCIAIS GERAIS
A análise de impactos não é uma novidade em Porto Alegre. Desta forma o
caminho para a definição de empreendimentos e atividades passíveis de EIV bem
como dos demais aspectos relacionados pelo EC passa pelo reconhecimento de que:
– todos os empreendimentos e atividades são causadores de impacto;
– os impactos podem ser controlados por normas, critérios, estudos ou por
avaliações pós-ocupação;
– as avaliações de impacto pós-ocupação só são objeto de EIV quando um
determinado empreendimento ou atividade deseja expandir-se de forma significativa3.
Da mesma forma, há de se reconhecer que na contemporaneidade a sociedade
passa a se preocupar com novas pautas até então inexistentes. Considerando apenas
aspectos da questão ambiental, a escassez e o esgotamento dos recursos naturais,
temáticas fundamentais da atualidade que remetem à preocupação com o direito das
futuras gerações4.
Não é por acaso que os planos diretores estritamente normativos, mais
especificamente desde os anos 70 do século XX, vem recebendo um enorme número
de críticas.
Neste contexto de críticas surgem novas abordagens e as avaliações de impacto
introduzem uma perspectiva de adoção de um modelo “previne-corrige” como uma
alternativa ou um complemento para o modelo modernista do “comando-controle”.
E os planos diretores tradicionalmente concebidos como instrumentos de
regulação que se reduziam a um conjunto de definições de regimes urbanísticos como
representações físico-territoriais expressas através de padrões quantitativos passam a
incorporar ideias de flexibilização que devem expressar os princípios de uma política
de desenvolvimento urbano-ambiental pensada como um projeto global das cidades.
Na nova lógica não se propõe o abandono dos regimes urbanísticos, mas um
destaque a possibilidade de consideração de outros aspectos que podem ser
responsáveis pela definição da configuração sócio-espacial de setores urbanos.
Portanto o regime urbanístico é um dos elementos, e não o único, que comparece
na definição do que é qualidade de vida para uma cidade ou uma população. A partir
do conceito de função social da propriedade, tão bem expresso no novo marco legal
3
Foi rejeitada proposição de considerar como passíveis de EIV as análises das repercussões pós-ocupação de
empreendimentos e atividades, pois no próprio Estatuto da Cidade o EIV é um estudo prévio de impacto.
4
Ideias apresentadas por Vanesca B. Prestes no Seminário Estudo de Impacto de Vizinhança – A legislação do
EIV em Porto Alegre, realizado em 28 e 29 de agosto de 2008 em Porto Alegre.
342
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
pós Constituição Federal de 1988, o regime urbanístico passa a ser uma referência
indicativa de como poderá se dar a ocupação do solo, mas sua utilização plena não é
garantida nem obrigatória, devendo entrar em consideração as demais avaliações
que demonstrem concretamente a real adequação de uma determinada proposição a
um determinado ambiente.
Nesta nova ótica, que consolida as avaliações de impactos como instrumentos
do planejamento das cidades, se pretende buscar a qualidade de vida através de
procedimentos objetivos, transparentes e menos abstratos do que o utilizado pelo
planejamento mais tradicional.
ESTRUTURA DO PROJETO DE LEI
A opção por uma lei independente do plano diretor se estrutura a partir dos
seguintes conteúdos básicos que integram o texto legal: instituição do instrumento;
conceituação; definição de responsabilidade sobre a coordenação; instituição da Taxa
de aprovação do EVU; objetivos do instrumento; estrutura básica; conteúdo mínimo;
lista de atividades e empreendimentos passíveis de EIV; situações de dispensa;
questões relacionadas ao Termo de Referência; aprovação de EVU e Termos de
Compromisso; responsabilidade sobre despesas e custos; aspectos da gestão
democrática e prazos.
A forma final construída pela assessoria jurídica é fruto de muitas idas e vindas
de um debate que se deu a partir da 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor,
mas que se consubstancia num trabalho técnico dentro da PMPA, onde estiveram
presentes a Secretaria do Planejamento Municipal – SPM como coordenadora do
processo, a de Meio Ambiente – SMAM, a de Mobilidade Urbana – SMU, a de
Cultura – SMC e a Procuradoria Geral do Município – PGM.
UM EVENTO EXCLUSIVO PARA DISCUTIR O EIV
Enviado ao CMDUA para discussão em março de 2008 o trabalho recebeu
considerações antagônicas, ora voltados para a rejeição pura e simples do tema, ora
aprofundando questionamentos sobre muitos outros aspectos, entre os quais
provavelmente o mais relevante é o da forma de discussão com a sociedade.
Considerando um histórico recente da cidade de Porto Alegre de encaminhar
ao Ministério Público pendências não resolvidas entre as partes interessadas ainda
no processo de discussão que antecede o encaminhamento de matérias legais ao Poder
Legislativo, por orientação do secretário do Planejamento Municipal se realizou um
seminário público de discussões com vistas a subsidiar a decisão do CMDUA.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
343
Numa organização compartilhada entre representantes do CMDUA, Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul e Prefeitura Municipal, coordenada pela
equipe da SPM, o evento contou com inúmeros palestrantes representantes de
diferentes visões sobre o tema5 e se estruturou ainda com a colaboração da Escola
Superior de Direito Municipal para discutir em diversos painéis os seguintes temas
básicos: histórico que envolve a formulação do instrumento, conteúdos propostos
por Porto Alegre para a legislação do EIV, análise de legislações sobre o EIV,
apresentação de experiências de cidades brasileiras com estudos de impacto; desafios
para a gestão democrática do instrumento, visão empresarial sobre os estudos de
impacto e EVUs e aspectos conceituais e metodológicos.
DISCUSSÃO SOBRE OS PRINCIPAIS CONTEÚDOS
O MÉRITO DO INSTRUMENTO
A tradição da cidade em temas relativos à avaliação de impacto urbanístico e a
gestão democrática são elementos fundamentais para afirmar que o que está em
discussão em Porto Alegre não é o mérito do instrumento EIV, mas sua implementação
e regulamentação.
A inclusão do instrumento EIV no EC representa o reconhecimento de situações
de conflito que têm ocorrido, especialmente em centros urbanos ou metrópoles, que
necessitam receber soluções urbanísticas mais adequadas, visando a melhoria da
qualidade de vida dos moradores das cidades e adotando os aspectos urbanísticos
como fio condutor transversal das análises dos diversos temas.
Em Porto Alegre a implementação deste instrumento foi encarada como uma
oportunidade de promover a qualificação e o aprimoramento das análises de impacto
urbanístico já experimentadas por outros instrumentos, adotando o aspecto urbanístico
como fio condutor transversal das análises dos diversos temas e consolidando o
gerenciamento destas avaliações através de métodos preestabelecidos, estudos
tecnicamente reconhecidos, transparência e participação dos envolvidos, sob a
coordenação da Secretária de Planejamento Municipal.
É preciso registrar que ao longo do processo de discussão da proposta, existiram
posições antagônicas, de grupos que são absolutamente favoráveis ao mérito do
instrumento e de grupos bastante resistentes ao mesmo, neste caso, sempre associadas
a questões burocráticas ou a custos para o empreendedor. Tais questões foram
5
Antônio Cláudio Moreira Lima e Moreira, Benny Schasberg, Cibele Rumei, Gladis Weissheimer, Luciano Joel
Fedozzi, Magda Cobalchini, Magda Satt Arioli, Maria Tereza Fortini Albano, Miguel Satler Rogério Rocco e
Vanesca Buselato Prestes.
344
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
consideradas legítimas devendo ser equacionadas, não devendo constituir empecilho
à implementação do EIV.
É importante salientar o que foi considerado uma das principais premissas
deste trabalho: o EIV é instrumento de avaliação para o permitido pela norma – quer
seja rígida ou dotada de flexibilização com análise mediante Projeto Especial. Da
mesma forma que demais instrumentos de avaliação de impacto, não é empecilho
para a implementação de empreendimentos na cidade, também não é instrumento
aplicável ao proibido em lei, estes casos devem ser precedidos de alteração da
legislação através do legislativo. O regime urbanístico definido em lei, ou seja,
permitido, não exclui a necessidade de demonstração de solução de impacto através
de instrumento de avaliação, caso contrário, o instrumento não seria aplicável em
nenhum caso da lista.
O CONCEITO DE IMPACTO URBANO
Da mesma forma que o EC, o conceito de impacto urbano não foi explicitado
na proposta de lei, evitando polêmicas desnecessárias entorno do assunto e optandose por enfatizar seus objetivos.
Para a estruturação da proposta foram considerados conceitos constantes em
documentos que nortearam a proposição do Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos
– SADUR6 no PDDUA e outros autores reconhecidos por suas pesquisas sobre o
tema, em consonância com as disposições do Estatuto da Cidade.
Conteúdos do Estatuto da Cidade sobre impacto:
... contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à
qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades incluindo a análise,
no mínimo, das seguintes questões...
Rômulo Krafta em texto para do SADUR:
Assim, presume-se que os diversos elementos que compõem a cidade território, objetos,
espaços e atividades estão interligados de maneira tal que, no limite, qualquer mudança,
por menor que seja, em qualquer destes elementos provoca alterações gerais em todos os
demais elementos, bem como nas relações que mantém entre si.
Antônio Cláudio Lima Moreira Lima em texto para disciplina Políticas públicas
de proteção do ambiente urbano:
6
Proposta de acompanhamento sistemático da realidade para subsidiar tomada de decisão de políticas urbanas,
avaliações de impacto e monitorar o desenvolvimento urbano.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
345
O que caracteriza o impacto ambiental não é qualquer alteração nas propriedades do
ambiente, mas as alterações que provoquem o desequilíbrio das relações constitutivas do
ambiente tais como as alterações que excedam a capacidade de absorção do ambiente
considerado.
A concepção adotada para a legislação de Porto Alegre passa pelo reconhecimento de que qualquer empreendimento gera impactos na cidade pré-existente e que
a forma de avaliação e de definição de soluções sobre estes impactos pode ser dada
através de um conjunto de opções de instrumentos, incluindo os já existentes, a serem aplicados de acordo com a complexidade da situação, como o Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU, o Relatório de Impacto Ambiental – RIA e o Estudo de
Impacto Ambiental – EIA, aos quais vem se adicionar o EIV.
O CONCEITO DE VIZINHANÇA
Para dar suporte à proposta, foram pesquisados conteúdos oriundos do Código
Civil – Direito de Vizinhança, das propostas urbanísticas de Unidades de Vizinhança
e da Área de Influência prevista pelos estudos ambientais. Avaliou-se que os objetivos
do instrumento estão estreitamente relacionados com o que atualmente é utilizado
nestes últimos, abstraindo-se a associação com a bacia hidrográfica, que em meios
urbanos apresenta-se muitas vezes descaracterizada por diversas intervenções. Com
base nestas informações, a proposta considerou como vizinhança o território sobre o
qual incidem as repercussões positivas ou negativas de um determinado
empreendimento considerando cidadãos, moradores permanentes, empregados,
pessoas que transitam ou utilizam permanentemente este território, definido caso a
caso, conforme a pré-existência e a complexidade dos principais impactos a serem
considerados.
A COMPATIBILIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS EXISTENTES
A lógica adotada foi a de não desprezar reconhecidas conquistas já alcançadas
nas avaliações de impacto realizadas na cidade de Porto Alegre.
O trabalho estabeleceu como pressuposto que instrumentos tradicionais como
a norma geral, que propicia aprovar projetos diretamente junto à Secretaria de Obras,
e instrumentos ambientais mais complexos já existentes como o RIA/DS ou EIA/
RIMA, devem ter sua utilização valorizada e ratificada em seus respectivos campos
de atuação.
Um dos principais desafios reside justamente neste quesito, ou seja, em definir
as escalas e campos de atuação de cada instrumento. Nesse sentido é que o foco de
atuação do EIV deve estar em situações de maior impacto urbanístico, privilegiando
346
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
análises ainda não contempladas plenamente nos estudos ambientais, mas essenciais
do ponto de vista urbanístico de uma cidade, como o adensamento populacional, a
valorização imobiliária e a paisagem urbana.
Uma das questões cruciais do debate realizado é a compreensão sobre a distinção
entre o instrumento preexistente, o EVU, e o EIV.
Em Porto Alegre o instrumento denominado EVU é, essencialmente, um
procedimento administrativo de aprovação de projetos, através do qual os interessados
submetem suas proposições para análise pelo Poder Público. Conforme o grau de
impacto das proposições, o EVU deverá receber o aporte de estudos específicos sobre
áreas setoriais do conhecimento, como os de ambiente natural ou de tráfego, para
citar exemplos mais recorrentes, ou estudos mais complexos como EIV, RIA ou EIA/
RIMA.
O EIV é, antes de tudo, o documento que reúne os estudos e as informações
sistematizadas de um determinado projeto, de natureza ou porte predefinidos em lei,
propiciando a avaliação prévia dos impactos urbanísticos sobre a área de influência
de um empreendimento proposto por um EVU.
O CONTEÚDO E LIMITAÇÕES DE UMA LISTA
A existência de listas fechadas definindo o que deve ser passível de EIV levanta
uma situação que foi sempre muito questionada nos zoneamentos dos planos diretores,
uma vez que a realidade é sempre muito mais dinâmica do que a capacidade de
prever o que poderá surgir no futuro da vida de uma cidade.
Apesar de tais limitações, reconheceu-se que esta opção além de atender às
determinações do próprio Estatuto da Cidade, proporciona a segurança jurídica
reivindicada pelos envolvidos, tanto aos empreendedores quanto a sociedade, que
estarão previamente informados sobre exigências que incidem sobre as intenções de
um projeto.
O ENQUADRAMENTO DE CASOS NÃO PREVISTOS
Como forma de contemplar situações imprevisíveis, sem abrir mão de uma
lista objetiva dos empreendimentos e atividades passíveis de EIV, foi discutida a
necessidade de inclusão de enquadramentos de situações que devido às suas
características promovam impactos significativos ou o agravamento de situações
preexistentes. Foram previstos os seguintes casos:
– similaridade às situações previstas no que se refere aos possíveis impactos
gerados
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
347
– solicitação de aumento de porte para atividades ou empreendimentos préexistentes na cidade.
O primeiro caso refere-se a atividades novas que constantemente surgem no
cotidiano das cidades e o segundo refere-se a, por exemplo, um shopping center que
solicita ampliação da sua capacidade de operação, estando naturalmente contribuindo
para uma situação de agravamento de impacto, quer seja pelo aumento da polarização
de veículos quer seja na densificação da quantidade de edificação em lugares já bastante
edificados.
PREOCUPAÇÃO COM A BANALIZAÇÃO DO INSTRUMENTO
A exigência de EIV para um número muito grande de situações foi considerada
desnecessária e indesejável em Porto Alegre, resultando possivelmente na banalização
do instrumento.
A proposta baseia-se na hierarquização de níveis de impactos, definindo como
passíveis de EIV as situações que não podem ter seus impactos identificados e
equacionados através de soluções propostas pela norma geral ou pela elaboração de
análises setoriais específicas proporcionadas pelo EVU.
Considerou-se imprescindível direcionar a aplicação do EIV para o
aprimoramento de propostas de maior impacto no ambiente urbano, abrangendo
situações de maior complexidade, com repercussões em áreas de influência maiores
e causadores de maiores transformações urbanas.
É importante salientar, no entanto, que o EIV não é um instrumento para
controlar as inadequações do plano diretor, ou seja, se há incongruências ou
inconformidades de determinados segmentos sociais quanto às proposições do plano,
há de se promover um processo mais permanente de revisão de seu conteúdo, de
forma a alterar o regime urbanístico de forma homogênea e não no caso a caso através
da aplicação de um EIV.
GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Esta é uma das questões mais recorrentes neste debate. O Estatuto da Cidade
gerou uma polêmica desnecessária por ter sido um tanto tímido no Parágrafo único
de seu artigo 37, referindo-se apenas a “dar-se-á publicidade aos documentos constantes do EIV”. Entretanto, cabe salientar que esta questão é pressuposto de atuação
definido no Capítulo I – Diretrizes Gerais e no Capítulo IV – Da Gestão Democrática da Cidade, como uma regra a ser seguida pelos capítulos anteriores.
348
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Cabe então, inicialmente um destaque à forma como a cidade de Porto Alegre
organizou a proposta de gestão da participação social, aspecto previsto no PDDUA
em sua Parte II, Sistema Municipal de Gestão do Planejamento – SMGP.7 Com vistas
a propiciar a referida participação, a cidade foi dividida em oito Regiões de Gestão
do Planejamento, cada uma delas com seu representante no CMDUA que é apoiado
por um Fórum Regional de Planejamento – organismo que subsidia a atuação do
conselheiro.
A participação da população e a socialização das informações são viabilizadas
na proposta de Porto Alegre através da realização de audiências públicas,
reconhecendo, portanto, reivindicações históricas e a tradição do município em opinar
em processos de consolidação de propostas de impactos significativos na configuração
sócio-espacial de setores urbanos.
A discussão no CMDUA recebeu considerações polarizadas, pendendo tanto
para omissão como para excessos, com proposições tanto ao momento em que se dá
a participação e quanto à forma de garantir seu acesso.
Representantes do setor da construção civil questionaram a realização de
audiências públicas, sugerindo restringir-se ao proposto pelo artigo 37 do EC, com a
mera publicação de uma lista após a realização do EIV. O representante da
Universidade Federal sugeriu a participação no momento da solicitação do
instrumento, através de consulta direta aos moradores vizinhos. Já representantes de
regiões de Planejamento reivindicaram viabilizar a participação antes mesmo da
realização do EIV, além de considerar a audiência pública um formato ainda muito
precário para garantir a participação, baseando-se em casos pregressos bastante
desastrosos8.
Relatos referidos por Rogério Rocco, com base em experiências de outras
cidades, recomendaram que a realização de audiências possa ser opcional. A proposta
foi ajustada permitindo a realização de consultas ou audiências públicas, possibilitando
a simplificação em casos menos complexos e garantindo a legitimidade ao processo,
a fim de evitar questionamentos futuros. Também foram incorporadas outras sugestões,
como disponibilizar as informações via internet, enviar correspondência às associações
de bairro integrantes da área de influência do empreendimento e instalar placa no
endereço do empreendimento em local de fácil visualização.
7
A participação social no PDDUA está prevista através do disposto nos artigos 33 a 41 e prevista para acontecer
em três níveis: global, regional e local.
8
Em 2007, a audiência pública promovida para a Revisão do PDDUA foi questionada juridicamente devido à
presença maciça de trabalhadores da construção civil que se deixavam manipular pelos dirigentes sindicais e
reprimiram a participação de outros setores da sociedade, especialmente as associações de moradores.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
349
PRAZOS JUSTOS E PROCEDIMENTOS
Este item foi abordado baseado na experiência de implementação dos estudos
ambientais em Porto Alegre, numa trajetória de quase duas décadas, avaliando os
prós e os contras para os prazos que foram adotados. Considerou-se razoável
estabelecer seis meses para o prazo de sua realização, já que para estudos ambientais
o prazo é de um ano.
Então, a proposta sugeriu que os EIVs sejam apresentados ao Poder Público
Municipal no prazo máximo de seis meses após a expedição de seu Termo de
Referência. Deve-se sempre ressaltar que os prazos são máximos, possibilitando que
o empreendedor apresente o estudo em tempos menores, tendo em vista que a previsão
de prazos máximos está diretamente vinculada à complexidade do estudo e à celeridade
de sua apresentação.
Houve críticas aos prazos propostos, sugerindo a redução do período destinado
à elaboração e análise, e ampliação do prazo previsto para a apropriação do tema pela
população. A proposta foi incorporada, passando para 4 meses para sua elaboração e
para 30 dias o período em que deve estar disponível para consulta.
RESPONSABILIDADE TÉCNICA
Neste quesito a principal questão discutida é se a responsabilidade técnica
pela elaboração do estudo deve se dar através da exigência de uma equipe
multidisciplinar ou se é suficiente apenas um único responsável técnico. Além disso,
foi sugerida a consulta a cadastros prévios a exemplo do que é realizado nos estudos
ambientais.
A opção apresentada é a do responsável único, que aciona equipes técnicas
dependendo do tema e da complexidade da análise, sem necessitar de cadastros prévios
já que esta exigência demonstrou-se ineficiente e concorrente com a competência
das entidades de classe, portanto, desnecessária. A área do conhecimento que coordena
o estudo também foi motivo de questionamentos, tendo sido reivindicada pelos
arquitetos, especialmente os arquitetos urbanistas. Foi considerado desnecessário
especificar a proposição na lei, entendendo-se que cada tema poderá exigir
profissionais de campos distintos, devendo ser fiscalizado por entidades de classe.
PRINCIPAIS DESAFIOS
Considerando a abordagem até aqui realizada, passa-se a ressaltar alguns dos
principais pontos que devem caracterizar a continuidade deste debate com vistas à
implementação do instrumento, que envolvem aspectos tais como:
350
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
– Qualificação da gestão urbano-ambiental, através do aprimoramento de
metodologias de avaliação de impacto integradas e monitoramento;
– Aporte e capacitação de recursos humanos e tecnológicos, oferecendo suporte
às demandas oriundas da implementação do instrumento;
Nesse sentido considera-se que o EIV, ao longo de sua implementação, deve
conquistar a robustez necessária para se consolidar como o instrumento mais
abrangente e adequado para tratar das questões urbanas em diferentes escalas, dentro
do quadro desejável de sustentabilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBANO, Maria Tereza Fortini; MANN, Elisabeth Maria; WEISSHEIMER, Gladis; BORGES, Synthia Ervis Kras. Desafios para implementação do Estudo de Impacto de Vizinhança em Porto Alegre:
questões pendentes x controvérsias. Porto Alegre. 2006. Texto apresentado no IV Congresso Brasileiro
de Direito Urbanístico, realizado em São Paulo.dezembro de 2006.
BRASIL. Lei 10.257: Estatuto da Cidade, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os art. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário
Oficial da União: Brasília, edição de 11 de julho de 2001. Disponível em: Senado Federal – Publicações,
acesso em janeiro de 2007.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais
para o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. Resolução n. 001, de 23 de janeiro de 1986. Diário
Oficial da União: Brasília, edição de 17 de fevereiro de 1986.
LOLLO, J. A.; ROHM, S.A. Aspectos Negligenciados em Estudos de Impacto de Vizinhança. Revista
Estudos Geográficos. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/igce/grad/geografia/revista/
Sumario0302.htm, Ano 3, Número 2 – 2005, acesso em dezembro de 2006.
PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal.PDDUA: Lei Complementar 434/99. Porto Alegre: Prefeitura
Municipal, Secretaria do Planejamento Municipal, 2000.
PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Lei 8267. Regulamenta o licenciamento ambiental no Município de Porto Alegre, cria a Taxa de Licenciamento Ambiental. Secretaria do Municipal de Meio ambiente, 30 de dezembro de 1998.
PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Manual do Licenciamento Ambiental de Porto Alegre. Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 2004.
PRESTES, Vanêsca Buselato (Org.). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
KRAFTA, Rômulo. Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos: Termo de Referencia. 1997.
MOREIRA, A C Lima Moreira. Conceitos de Ambiente e de Impacto Ambiental Aplicáveis ao Meio
Urbano. Material didático da disciplina de pós-graduação AUP 5861 – Políticas públicas de proteção do
ambiente urbano. São Paulo: 1999.
CÓDIGO CIVIL – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Parte Especial – Livro III Do Direito das
Coisas – Título III Da Propriedade Capítulo V – Dos Direitos de Vizinhança.
Resolução CONAMA 001/86 art. 5º inc III.
9
A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA
URBANÍSTICA NAS CIDADES DA
AMAZÔNIA
Balneabilidade na Praia da Ponta Negra,
Direito à Cidade e ao Meio Ambiente
Ecologicamente Equilibrado
DANIELLE DE OURO MAMED,
CYNTIA COSTA DE LIMA E
JOELSON RODRIGUES CAVALCANTE1
Graduandos em Direito.
1. INTRODUÇÃO
O tratamento da ciência do Direito em relação a seus objetos tem sofrido intensas
modificações. A ciência tradicionalmente vinculada ao positivismo2 e à autonomia
em relação às demais concede, paulatinamente, lugar a uma análise das demandas
sociais de maneira mais aprofundada e completa, já que se permite uma maior
integração aos outros “saberes”. Este fato representa uma considerável evolução,
não apenas para a ciência do Direito, mas também para a sociedade, que se vê
beneficiada por um tratamento jurídico mais voltado às suas necessidades.
O processo de urbanização é definido por Ferrari (1979)3 como concentração
de população em cidades e a consequente mudança sócio-cultural dessas populações
além de que pode ser entendido também pelo aumento da população urbana em
detrimento da rural.
Fato é que o modelo de desenvolvimento consolidado pelo avanço da sociedade
industrial é o principal causador deste fenômeno, já que o mesmo preconiza a
necessidade de mão-de-obra trabalhando nas cidades. A Revolução Industrial Inglesa
é considerada a desencadeadora dessa tendência já que previu a retirada massiva dos
trabalhadores do campo para as grandes cidades em busca de trabalho nas indústrias
e melhores condições de vida. Entretanto, é sabido que esse processo gerou inúmeros
problemas, graças à falta de estrutura para absorver toda a população proveniente do
1
Discentes do curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, cursando o 9º período.
2
Nesse sentido, consultar: AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora
Alfa-Ômega, 1999.
3
FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, p. 631.
354
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
campo, o que desencadeou problemas sociais de diversas ordens (desemprego,
violência, falta de saneamento básico, problemas de saúde, dentre outros).
Como fator que influencia tantos elementos, o processo de urbanização não
pode ficar alheio ao Direito. As mudanças sócio-culturais dele advindas devem ser
tuteladas juridicamente visando a garantia de princípios de ordem constitucional,
como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à sadia qualidade de
vida, à dignidade e ao lazer.
A cidade de Manaus, especificamente, sofreu um processo de urbanização
acelerada e, de forma análoga a muitas cidades do Brasil, sem condições estruturais
para tanto. Este processo se deu de maneira mais pungente a partir da constituição da
Zona Franca de Manaus, que atraiu um parque industrial de grande proporção para a
capital, causando um inchaço populacional. Diante disso, houve-se a necessidade de
solucionar, ou ao menos amenizar, as situações de desacordo das cidades com o ideal
criado pela lei.
O objetivo deste trabalho é relacionar a tão almejada qualidade de vida,
objetivada através da observância do direito à cidade e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado no contexto da utilização da Praia da Ponta Negra
(Manaus) como balneário pela população local, que necessita, além de infra-estrutura
básica, de espaços onde possa se desenvolver integralmente, contando com o acesso
a uma sadia qualidade de vida, incluindo-se o lazer.
2. METODOLOGIA
Para execução do presente trabalho, foi realizado levantamento bibliográfico
básico sobre os direitos envolvidos na temática (lazer e meio ambiente ecologicamente
equilibrado); aplicação de questionários por amostragem e análise dos dados coletados.
Cumpre esclarecer que, para a aplicação do questionário, utilizou-se o método
por amostragem no percentual de 25,31% em relação ao universo.
Foram questionados 20 (vinte) banhistas, maiores de 15 anos, que se
encontravam na praia no dia da saída a campo (08/06/07), sendo que no local havia
um total de 79 banhistas, incluindo-se as crianças.
3. RESULTADOS
3.1. A Constituição Federal de 1988 e o meio ambiente
A Constituição de 1988 trouxe de forma inédita para o Brasil dispositivos
constitucionais que se referem à proteção ambiental. A referida regulação encontra-
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
355
se consubstanciada no título VIII (Da Ordem Social), capítulo VI, no artigo 225.
Nela, é possível observar o estabelecimento de um norte voltado à realidade do século
XXI, voltado para as sociedades de consumo, caracterizadas por um crescimento por
vezes desordenado e acelerado desenvolvimento tecnológico. Diante desse diagnóstico
a Carta Política de 1988, adere a uma nova concepção de direitos, os chamados direitos
difusos que, de acordo com Mancuso (2004)4 seriam aqueles cuja titularidade não se
pode definir com exatidão.
Pode-se afirmar que o referido artigo possui além da preocupação ambiental
em si, um viés de natureza antropocêntrica cujo objeto é preservar a vida e a dignidade
humana, ameaçadas diante das incontestáveis consequências negativas geradas pelo
trato inadequado com o meio ambiente. O equilíbrio a que faz menção o artigo
constitucional não deve significar a inalterabilidade da natureza e está concernida
numa harmonia e proporcionalidade entre aqueles que formam a natureza e devem
ser alcançadas na soma de forças entre Poder Público e coletividade.
A previsão constitucional que assegura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem por fim a garantia da sadia qualidade de vida, direito que
sugere a ideia de meio ambiente não-poluído ou próprio para manutenção de uma
vida digna. Ao dispor sobre qualidade de vida, o poder constituinte determina que
compete ao Poder Público a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente que para serem efetivados necessitam de normas e políticas públicas, e para garantir esse direito, a Constituição dispõe sobre o dever que tanto a coletividade quanto o
Poder Público possuem para tal.
Cabe destacar que a atual Carta Magna avançou consideravelmente no sentido
de incluir no próprio artigo 225, a noção de desenvolvimento sustentável ao
estabelecer:
“Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
A importância de tal dispositivo deve-se à tendência internacional de preservação ambiental construída de maneira mais significativa a partir de 1987 com a
publicação do Informe Brundtland, documento que plasmou a noção de desenvolvimento sustentável, preconizando o aproveitamento dos recursos naturais para as gerações presentes, sem comprometer o mesmo direito das gerações futuras.
4
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004.
356
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Cumpre-nos observar que a Carta Política de 1988 alçou a consideração do
meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado como direito fundamental,
ainda que não esteja expressamente instituído no rol dos direitos elencados no artigo
5º da Constituição. Como bem coloca José Afonso da Silva5:
“O ambientalismo passou a ser tema de elevada importância nas Constituições mais recentes.
Entre nelas deliberadamente como direito fundamental da pessoa humana, não como simples
aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituições
mais antigas”.
Segundo Freitas6, o aspecto mais importante quando se refere ao meio ambiente
é a proteção à vida, lembrando que a expressão meio ambiente inclui ainda a relação
entre os seres vivos, bem como o urbanismo, aspectos históricos, paisagísticos e
outros tantos essenciais à sobrevivência sadia do homem na Terra. Assim, fica
respaldada a visão de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é pressuposto
para salvaguarda do direito à vida em sua plenitude.
Nota-se que é necessário o envolvimento de cada indivíduo na luta por um
ambiente saudável, assim será possível o envolvimento e mudança de postura de
toda sociedade neste aspecto.
3.2. Direito ao lazer como forma de efetivação do Direito à Cidade
O direito à cidade vem se consolidando na doutrina internacional a partir da
construção da chamada “Carta Mundial do Direito à Cidade” que teve como pontapé
inicial a discussão decorrente do Fórum Social Mundial de 2001. As entidades da
sociedade civil que compunham o Fórum constataram a necessidade do
estabelecimento de um modelo sustentável de sociedade e vida urbana baseados na
sustentabilidade.
Um dos objetivos da Carta, conforme se pode observar no próprio preâmbulo,
consiste no reconhecimento do direito à cidade como passível de proteção dentro do
sistema internacional dos direitos humanos, já que é pressuposto para a existência de
um padrão adequado de vida. Tal objetivo decorre do próprio conceito de direito à
cidade, trazido no documento através do artigo I, parte 2, segundo o qual:
“O direito à cidade se define como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios
da sustentabilidade e da justiça social. Entendido como o direito coletivo dos habitantes das
cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade
5
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
6
FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2002. p. 17.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
357
de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno
exercício do direito a um padrão de vida adequado”.
Além de definir a extensão do direito à cidade, a carta dispõe em seu artigo I
que todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero,
idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando a memória e a identidade
cultural, direitos, inequivocamente, inerentes ao ser humano.
De acordo com Saule7 (2005), consistiu uma grande inovação ao tema o
tratamento dado pela Carta ao direito à cidade como um direito coletivo, já que,
tradicionalmente, nos sistemas legais, buscou-se a proteção de um direito à cidade no
âmbito individual, garantindo-se desta maneira um tratamento mais adequado à
extensão da problemática, que seguramente, transpassa a esfera individual.
Um outro documento que deve ser citado é o Tratado sobre Questão Urbana,
que se desenvolveu durante a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro (ECO-92). Este Tratado determinou
como princípio fundamental o direito à cidadania, que seria compreendido como a
participação dos habitantes das cidades e povoados na construção de seus destinos.
Isso incluiria, dentre outros direitos, o direito à terra, aos meios de subsistência, à
moradia, à informação e ao lazer.
Para a abordagem do presente trabalho, considerou-se o direito ao lazer como
de primordial importância no que tange ao alcance de uma sadia qualidade de vida e
ao desenvolvimento integral da pessoa humana. Devendo-se destacar que na Carta
Magna brasileira esse direito encontra fulcro no artigo 6º, caput, que o define como
direito social, dada a sua importância.
Os habitantes das cidades devem encontrar condições de satisfação de tal direito
no equipamento urbano que constitui seu meio. Nesse sentido há que se considerar
que os objetivos da Carta incluem o comprometimento de seus signatários com a
efetivação de seus princípios, não se podendo desconsiderar a necessidade de atender
às demandas dos habitantes das áreas urbanas nessa matéria.
Na cidade de Manaus o balneário da Praia da Ponta Negra, como veremos
adiante, é um dos principais espaços na cidade destinados ao lazer da população e um
dos mais buscados graças à facilidade de acesso e aos custos reduzidos para utilização,
legitimando-se uma necessária preocupação quanto à sua utilização.
7
SAULE, Nelson Júnior. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Disponível
em: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 de Nov. 2008.
358
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
3.3. Legislação Municipal e Direito Urbanístico – Praia da Ponta Negra
O direito urbanístico possui como objeto de estudo o urbanismo, que segundo
Guimarães8, além de um fato social constitui técnica de criação, desenvolvimento e
reforma das cidades.
Além das disposições constitucionais em relação ao direito ao lazer e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, pode-se encontrar na legislação do Município
de Manaus textos que também visam garanti-los. A lei municipal de número 6059 de
2001 (Código Ambiental de Manaus), em seu artigo 1º, dispõe que tal lei, procura
atender ao interesse local em favor da preservação, conservação, entre outras ações
que visam à recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Ex vi do artigo:
Art. 1º – Este Código, fundamentado no interesse local, regula a ação do Poder Público
Municipal e sua relação com os cidadãos e instituições públicas e privadas, na preservação,
conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de natureza difusa e essencial à sadia qualidade de vida.
O referido diploma legal também dispõe de princípios que norteiam a atuação
do município de Manaus no que tange à aplicação da Política Municipal de Meio
Ambiente. Tal afirmação infere-se do conteúdo do art. 2º da lei:
Art. 2º – A Política Municipal de Meio Ambiente é orientada pelos seguintes princípios
gerais:
I – o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a obrigação de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações;
II – a otimização e garantia da continuidade de utilização dos recursos naturais, qualitativa
e quantitativamente, como pressuposto para o desenvolvimento sustentável;
III – a promoção do desenvolvimento integral do ser humano;
A cidade de Manaus (Amazonas), não diferente de outras de seu porte, apresenta
problemas urbanísticos de distintas naturezas. Neste trabalho, analisou-se um espaço
da cidade bastante visado tanto do ponto de vista imobiliário pela parcela da população
mais favorecida economicamente, quanto por sua vocação natural de fornecer à
população em geral um espaço de lazer.
8
GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em: <http://
www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008 14:25:56.
9
MANAUS, Lei nº 605 de 2001. Câmara Legislativa de Manaus.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
359
A praia da Ponta Negra é comumente utilizada pelos frequentadores como
balneário, ainda que suas condições de balneabilidade sejam questionadas pelo senso
comum. O referido espaço deve ser visto como um instrumento de efetivação do
direito ao lazer10, além de ter necessidade de proteção especial, já que constitui uma
área de preservação permanente, sendo esta conceituada ainda na Lei 605, de 24 de
julho de 2001:
Art. 32 – São áreas de preservação permanente aquelas que abriguem:
I. as florestas e demais formas de vegetação natural, definidas como de preservação
permanente pela legislação em vigor;
II. a cobertura vegetal que contribui para a estabilidade das encostas sujeitas a erosão e ao
deslizamento;
III. as nascentes, as matas ciliares e as faixas marginais de proteção das águas superficiais;
IV. exemplares raros, ameaçados de extinção ou insuficientemente conhecidos da flora e
da fauna, bem como aquelas que servem de pouso, abrigo ou reprodução de espécies
migratórias;
V. outros espaços declarados por lei.
Além disso, podemos ainda encontrar na Lei Orgânica do Município de Manaus
a classificação da Ponta Negra como área de interesse ecológico:
Art. 296 – Está facultado ao Município criar, por critério próprio, reservas ecológicas ou
declarará áreas de relevante interesse ecológico.
Parágrafo único – Além do dispositivo no artigo 231, da Constituição do Estado, são
consideradas áreas de interesse ecológico da Ponta Negra, o Tarumã, a Ponte da Bolívia, a
Praia do Tupé e a praia do Amarelinho, na orla do bairro do Educandos, e os igarapés
localizados no Município de Manaus.
Por constituir-se um espaço de notável beleza cênica e que dispõe de uma
estrutura que disponibiliza aos usuários entretenimento gratuito, possui grande
importância dentro do contexto da cidade de Manaus. Assim, analisar-se-á a relação
entre os frequentadores da praia, sua balneabilidade e o direito a disfrutar do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Periodicamente a Prefeitura Municipal de Manaus, realiza a análise da
balneabilidade dos cursos de água da cidade como forma de informar à sociedade os
10
Art. 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição”.
360
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
locais próprios, ou não, para utilização como meio de lazer. Segundo a Fundação do
Meio Ambiente de Santa Catarina11, balneabilidade pode ser definida como a avaliação
da qualidade da água para fins de recreação através de critérios objetivos. Tais critérios
devem estar baseados em indicadores a serem monitorados e seus valores confrontados
com padrões pré-estabelecidos, e para que se possa identificar as condições de
balneabilidade em um determinado local; pode-se definir, inclusive, classes de
balneabilidade para melhor orientação dos usuários.
A Área de Proteção Ambiental (APA) do Tarumã-Ponta Negra, foi criada em
1995 como categoria prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC), devido a sua importância ambiental. O artigo 15 da lei nº 9.985/2000 que
versa sobre o SNUC, conceitua tal área da seguinte maneira:
“uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos
abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de
vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a
diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do
uso dos recursos naturais”.
Além deste dispositivo, a lei estabelece normas em relação às atividades de
visita, e de pesquisa científica nas áreas, o que denota uma preocupação do Poder
Público com o controle a ser exercido. Entretanto, analisando-se esta área em
específico, observa-se que tais exigências possuem aplicabilidade questionável, já
que a área de proteção ambiental Tarumã – Ponta Negra, com limites estabelecidos
pela Prefeitura Municipal de Manaus, corresponde às áreas nos bairros Compensa,
Nova Esperança, Lírio do Vale, Redenção, Santo Agostinho, Ponta Negra, Tarumã,
Campos Sales, Parque São Pedro, Nova Vitória e Ismael Aziz. Frisando-se que tais
bairros possuem acentuado desenvolvimento urbanístico, tanto para fins residenciais
como para fins comerciais.
A Praia da Ponta Negra, em si, é um dos principais cartões postais da cidade de
Manaus, fazendo jus a seu enquadramento em tal categoria. Sua estrutura é
especialmente voltada para o lazer da população visto que dispõe de calçadão para
caminhadas, ciclovia, quiosques, anfiteatro para realização de apresentações artísticas
além da praia, utilizada como balneário.
Segundo o portal de informação da Prefeitura de Manaus, a balneabilidade da
Praia da Ponta Negra, está estritamente associada ao regime do Rio Negro, que
determina a concentração de poluição nos pontos utilizados pelos banhistas. Segundo
11
FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em <http://www.fatma.sc.gov.br>.
Acesso em: 23 set. 2008.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
361
a secretária de Meio Ambiente, Luciana Valente12, a explicação para a questão é que
“os resultados das análises não são definitivos, pois estão sujeitos à sazonalidade, ou
seja, das circunstâncias climáticas de determinada época do ano como vazante e
cheia”, o que justifica a assertiva.
Em relação à Ponta Negra, este fato beneficia os poucos banhistas que
frequentam o lugar na época das cheias, tendo em vista que em tal período, a faixa de
praia restringe-se a um pequeno espaço, localizado no final da praia, antes do Hotel
Tropical. Assim, pôde-se perceber que os banhistas utilizam esta pequena faixa e as
escadarias para banhar-se. Já no período de vazante, a procura pela praia é bem maior,
posto que a faixa de praia aumenta consideravelmente. Estando a maior concentração
de banhistas durante o período da vazante, pode-se concluir que é neste período que
os banhistas ficam mais vulneráveis às consequências da utilização de uma praia não
balneável, já que neste período a poluição acaba concentrada.
Durante a aplicação dos questionários, pôde-se perceber que os frequentadores
da praia são atraídos ao lugar por dois motivos principais:
1. Afinidade com o local;
2. Fácil acesso.
A justificativa do primeiro motivo, na maioria dos casos, constituiu-se no
costume de visitar-se a praia, bem como na apreciação do lugar no tocante às suas
belezas naturais. Já para justificar o segundo motivo, alegou-se que os demais
balneários da cidade possuem difícil acessibilidade, pois localizam-se em ramais nas
estradas que cortam o município (AM-010 ou BR-174) ou, ainda, balneários com
acesso via fluvial, o que elevaria os custos do dia de lazer. Já a Ponte Negra localizase ainda no perímetro urbano, contando com serviços suficientes de transporte coletivo.
Com o intuito de relacionar a balneabilidade da praia à percepção de seus
frequentadores, foi indagado aos entrevistados se estes tinham conhecimento de que
há estudos periódicos da Prefeitura Municipal de Manaus atestando a balneabilidade
da praia. Do total dos 20 (vinte) entrevistados, 13 alegaram não ter conhecimento de
tais estudos. Tal fato aponta para a falta de êxito das autoridades locais em informar
dados tão relevantes à população. A informação, neste sentido, traria uma noção mais
próxima da realidade aos usuários da praia, quanto ao seu ambiente de lazer.
Um fato curioso, também observado, é que, das 13 (treze) pessoas que alegaram
desconhecer os estudos de balneabilidade feitos na área, 10 (dez) reconheceram que
12
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Disponível em: <http://www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidadeda-agua>. Acesso em 22 set. 2008.
362
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
não deixariam de frequentá-la caso soubessem de sua impropriedade para banho.
Demonstra-se, dessa forma, que os banhistas preferem assumir o risco de problemas
de saúde pela contaminação por coliformes fecais a deixarem de exercer seu direito
ao lazer naquela área, posto que o costume e as facilidades em fazê-lo, lhes fornecem
subsídios para um dia agradável de lazer.
A título de curiosidade, foi perguntado, também, se os banhistas consideravam
que a conservação despendida à praia por parte da Prefeitura Municipal de Manaus,
se dá de forma satisfatória. 12 (doze) pessoas responderam que a conservação vem
sendo bem realizada, enquanto que 8 (oito) responderam que não. As 12 respostas
positivas levaram em consideração a diminuição visível da quantidade de lixo na
praia, tendo em vista o aumento de lixeiros espalhados pelo complexo, ressaltandose, também, a conscientização crescente dos usuários.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, ao desenvolvimento do presente trabalho, foi possível verificar a necessidade de que o poder público deve fazer-se responsável pela efetivação de medidas que garantam à população de Manaus, e mais especificamente, aos frequentadores
da praia da Ponta Negra, o livre usufruto desta área pública, respeitando-se os direitos ao lazer e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como maneira de efetivar-se o direito à vida em toda sua plenitude (entenda-se, com qualidade de vida). A
praia objeto do estudo deve ser vista como de extrema importância urbanística dentro do município de Manaus e fator fundamental para o desenvolvimento humano da
população que o desfruta.
O Direito à cidade traz à abordagem o destaque de uma de suas facetas: o
direito ao lazer, intimamente relacionado à vida e ao desenvolvimento integral do ser
humano. Este direito, na cidade de Manaus, encontra na Praia da Ponta Negra um dos
mais relevantes espaços de efetivação, sendo, portanto, de acentuado interesse público
a viabilização do direito ao lazer e também à informação sobre as condições ambientais
da área, visando à saúde da população usuária, haja visto que a maioria dos
entrevistados desconhecia a existência de períodos impróprios para utilização da praia
como balneário.
Outro aspecto a considerar-se é que de nada vale o estabelecimento de áreas de
proteção ambiental, se não há o compromisso de fiscalização e efetivação do que diz
a lei em relação à gestão de tais áreas. Deste modo, há que se ter em mente a criação
de institutos que visem à salvaguarda dos dispositivos legais em relação às áreas
dessa natureza.
A Carta Magna que atualmente norteia o ordenamento jurídico pátrio possui
papel fundamental ao estabelecer direitos de cunho ambiental de maneira genérica,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
363
entretanto, para que se consiga realmente atingir as finalidades que propõe, há que
haver um esforço conjunto tanto dos diversos âmbitos legislativos (entenda-se aqueles
da União, os estaduais e os municipais) quanto dos órgãos gestores do meio ambiente
brasileiro.
Pôde-se perceber, ainda, que as leis que têm por objetivo regular as relações
do homem com o meio ambiente urbano, devem respeitar outros direitos, sendo um
esforço praticamente inválido aquele que estiver pautado em tratar o território urbano
valendo-se apenas de conhecimentos jurídicos. Por este motivo o chamado direito à
cidade possui elevada abrangência, tendo em vista a diversidade de direitos
relacionados, como a dignidade da pessoa humana, sustentabilidade, informação,
justiça social, habitabilidade, meio ambiente ecologicamente equilibrado e lazer.
Assim, buscou-se demonstrar com o presente trabalho as questões do direito à
cidade, equilíbrio do meio ambiente e direito à informação e ao lazer na relação entre
a praia da Ponta Negra e aqueles que a utilizam como balneário.
Importante ressaltar que as consequências advindas de uma má gestão desse
território transpassam o contexto do Direito, envolvendo também profundos
conhecimentos sociológicos, geográficos e históricos, por exemplo. Desta forma,
poder-se-á construir um direito urbanístico pautado na observância de princípios
básicos estabelecidos em 1988 na Constituição Federal, de forma democrática e
atendendo aos interesses sociais.
5. REFERÊNCIAS
AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional, 1988.
CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE. Disponível em <http://www.conferencia.cidades.
pr.gov.br>. Acesso em: 02 nov. 2008.
FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979. p. 631.
FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.
GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em:
<http://www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008.
Manaus, Lei Orgânica do Município de Manaus. Manaus: Câmara Municipal, 1990. 158 p.
MANAUS, Lei nº 605 de 24 de julho de 2001, Institui o Código Ambiental no Município de Manaus e
dá outras providências. In: Diário Oficial do Município de Manaus, Manaus, v I, n. 318, 24 de julho de
2001.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
364
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
SAULE Jr., Nelson. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Polis,
2008. Disponível em: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 nov. 2008.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Notícias PMM. Disponível em: <http://
www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidade-da-agua>. Acesso em 22 set. 2008.
FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em: <http://
www.fatma.sc.gov.br>. Acesso em: 23 set. 2008.
Criação de Municípios Indígenas: Desafios
ao Direito Brasileiro
CAROLINE BARBOSA CONTENTE NOGUEIRA1
Graduanda em Direito
FERNANDO ANTÔNIO
DE
CARVALHO DANTAS2
Doutor.
RESUMO: O trabalho proposto é resultado da Pesquisa de Iniciação Científica
(PAIC/UEA/FAPEAM)3, no qual objetivamos analisar a possibilidade da criação
municípios indígenas ou instâncias políticas específicas e diferenciadas no Brasil,
buscando diálogo entre as legislações constitucionais dos países-membros do
Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) que tratem sobre estas instâncias
políticas peculiares, correlacionando-os as legislações brasileiras e a autonomia
dos Indígenas Amazônicos, abrangendo seus contextos jurídicos, políticos e
sociais. Trabalharemos este assunto a partir da garantia constitucional dada pelo
texto do art. 231 e art. 232 da Constituição Federal Brasileira de 1988, que
tratam do reconhecimento dos costumes, cultura e forma de organização social
dos povos indígenas, correlato ao seu art. 1º, que traz a cláusula pétrea do Pacto
Federativo, e ao art. 18, § 4º, que discorre sobre a criação de municípios.
Observamos ainda o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, com interessante
aspecto sobre sua forma de gestão administrativa equilibrando a organização
territorial, a gestão e o uso das terras indígenas, possibilitando aos seus índios a
administração de seu espaço, conforme sua cultura. Buscamos por dispositivos
legais dos países membros do TCA e encontramos nas Constituições do Peru,
Equador, Bolívia e Colômbia dispositivos que outorgam autonomia política,
administrativa e jurídica aos seus indígenas, dentro de seus limites legais,
possibilitando a organização e gestão suas terras conforme seus valores.
Finalizando, afirmando que temos um grande desafio ao nosso Direito na
1
Bolsista do PAIC/FAPEAM/UEA. Graduanda em Direito pela Escola Superior de Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Amazonas;
2
Orientador do bolsista PAIC/FAPEAM/UEA. Professor Coordenador do Programa de Pós-graduação Mestrado
em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.
3
Programa de Apoio à Iniciação Científica financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonas
com convênio com a Universidade do Estado do Amazonas.
366
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
caminhada para efetivação dos direitos dos povos indígenas, desde a outorga
deste há 20 anos, quando da promulgação da CF/88, e para isso, é necessário
que haja relativização dos dogmas jurídicos, pluralizando o Direito Brasileiro,
com o respeito às diferenças étnicas, sociais e culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito; Índio; Constituição; Município; Autodeterminação.
INTRODUÇÃO
Traremos ao debate acadêmico a problemática da criação de municípios
indígenas ou entidades políticas diferenciadas, buscando, através dos dados
bibliográficos colhidos nas legislações brasileira e dos países-membros do Tratado
de Cooperação Amazônica, mostrar a possibilidade de implementação desta figura
política, bem como sua configuração política e administrativa.
Discutiremos esta necessidade/possibilidade de criação de município indígena
no território amazônico ou entidade política semelhante, fundamentando-nos no texto
constitucional do art. 231 da Carta Magna Brasileira de 1988, refletindo as garantias
de reconhecimento da cultura, costumes, valores e organização social dos índios
concomitantemente às redações dos arts. 1º e 18º, § 4º também da Lei Maior, que
relacionam a cláusula pétrea do Pacto Federativo Brasileiro e a criação de municípios,
correlacionando-os às propostas legais existentes nos países membros do Tratado de
Cooperação Amazônica.
No ensejo desta reflexão discutiremos as questões jurídicas, sociais e políticas
da consolidação do texto constitucional e efetivação das garantias dadas aos povos
indígenas brasileiros, observando as possibilidades legais da criação deste ente diverso
dos previstos no sistema federativo brasileiro a fim de atender a realidade Amazônia
Brasileira.
Partindo do multiculturalismo, do pluralismo jurídico e da interdisciplinaridade
faremos a leitura das necessidades abordadas pelos teóricos sobre implementação de
políticas públicas adequadas às populações indígenas amazônicas, em especial as
dos aglomerados populacionais que estudaremos localizados na região do Alto Rio
Negro, formando verdadeiras cidades com ausência de planejamento urbano que
atendam suas necessidades fundamentais de qualidade de vida.
1. UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA
POPULAÇÃO INDÍGENA DO ALTO RIO NEGRO E UAUPÉS
Historicamente temos um povo massacrado e subjugado pelos interesses
mercantilistas de acúmulo de capital, quanto maior o contato das populações indígenas
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
367
com a cultura trazida pelo colonizador europeu, maiores os desastres, os genocídios
e a destruição dos territórios para transformá-lo em lucro.
Traremos aqui, discussões apontadas por Andrello4, que tratam da leitura
histórica da região do Alto Rio Negro e Uaupés, falando desde as primeiras explorações
de Portugal até o início do século XX, e o objetivo presente em todas as épocas foi o
de expandir ou consolidar as fronteiras e fixar os índios em núcleos de colonização,
utilizando como recurso econômico a mão-de-obra destes, com enfoque para as “tropas
de resgate”, muito utilizadas na colonização para conquista de escravos indígenas,
citando passagens sobre clérigos carmelitas que fundaram os primeiros núcleos de
povoamento a fim de atrair indígenas para catequizarem.
É de relevância citarmos tanto Diretório Pombalino quanto o período posterior,
com suas medidas drásticas para com os índios, utilizando a política de descimentos,
proibindo o uso da língua dos nativos, promovendo a integração destes com brancos
através da miscigenação, entre outras atrocidades do império. Entre estas constatações
históricas, temos outras como os conflitos entre brancos e índios, epidemias de doenças
trazidas pelos europeus, o emprego da mão-de-obra indígena escrava, as políticas
que tiraram estes povos de suas terras e trouxeram-nos aos aldeamentos para centralizar
o controle dos mesmos, contribuíram por massacrar e diminuir substancialmente o
número demográfico-populacional desta região amazônica.
Com a criação da Província do Amazonas, institucionaliza-se o programa de
“civilização e catequese”, para atrair os chamados gentios às margens dos rios, afim
de que fossem facilmente transferidos e engajados nos programas de serviço público
da província. Porém, a nova Diretoria dos índios muda o percurso de transferência,
em vez de estabelecerem-se ao longo do curso dos rios, iriam para as cabeceiras dos
principais, Rio Uaupés e Içana.
Um exemplo das transformações nos dados populacionais das etnias é citado
pelo referido autor, que nos mensiona listas de escravos feitos pelos descimentos,
dentre eles os mais vistos, e os que abrangeriam um quarto do total eram os Boapé,
Macu, Baniwa e Ariquema. Há listas de estudiosos da época que apresentavam os
povos das regiões dos rios Negro e Uaupés, no primeiro foram citadas 33 etnias:
Manao, Paraviana, Uaranacocena, Carahiahi, Baré, Passe, Cocuana, Aroaqui, Tacu,
Cubeuana, Coeuana, Duanáis, Jurí, Japíuna, Jaruna, Juma, Mendó, Maquiritare,
Puiteno, Pexuna, Termairarí, Yurimarí, Uauuana, Xamá e Xapuena, algumas décadas
mais tarde só se encontrariam 22 destas 33 etnias citadas, em vista de descimentos de
aldeamentos, seja pela extinção ou assimilação dos remanescentes de uma na outra.
4
ANDRELLO, Geraldo. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauretê. São Paulo: UNESP: ISA; Rio
de Janeiro: NUTI, 2006.
368
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Atualmente são cinco empregadas ao longo do rio Negro e seus afluentes: Baré,
Baniwa, Maku, Warekena e Cubeo(Ana). A configuração do Uaupés foi diferente,
para o qual apontavam 25 etnônimos e hoje temos: Tariano, Tukano, Arapasso,
Dessana, Pira-Tapuia, Wanao, Tuyuka, Miriti-Tapuia, Carapanã, Cubeo, Maku,
Sussuarana, Tatu-Mira, Jurupari-Mira, Arara e Arara-Tapuia.
Andrello, ao longo de sua pesquisa histórica, aponta a hipótese sobre o
surgimento de aldeamentos ao longo do alto Rio Negro e no baixo Uaupés, para
estabelecer o diálogo entre a história vivida por estas populações e a atual configuração
geográfica em que se encontram, e assim mostrar-nos que a realidade na qual vivem
hoje os indígenas desta região vem sendo construída desde as primeiras políticas
colonizadoras, e que estes povos passam até então pelas dificuldades acerca de
condições urbanísticas dos adeamentos.
2. COMENTÁRIOS SOBRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E DIREITO
INDÍGENA
Após longo período de disputas e guerras que extinguiram muitos destes povos,
temos o período de negação, onde os indígenas eram excluídos do Estado e
desconsiderados como pessoas de direito. Mais tarde, tentando reverter a exclusão,
tenta-se a política integracionista, que diz respeitar os povos indígenas, mas os deixa
em sua coletividade, apenas para oportunizá-los a serem indivíduos e cidadãos da
sociedade tutelada pelo Estado.
Durante séculos, aos índios foi negado o seu reconhecimento como povo
diferenciado, principalmente no que diz respeito à vida civil brasileira, pois as leis
civilistas não continham nenhum instituto que pudesse comungar com as necessidades
indígenas. O Estatuto do índio (Lei 6.001/73) nasce em meio à ditadura militar, e nos
traz uma forma regulamentar da tutela já prevista no Código Civil vigente, não
acrescentando grandes contribuições à realidade dos povos indígenas, visto que apenas
ratificou a lei civil que coloca os assuntos citados sob tutela do direito público. Outro
ponto negativo deste estatuto foi sobre a questão das terras indígenas, pois ao
reformular a emancipação do índio de sua cultura, também possibilita a devolução de
suas terras à União5.
Com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, os direitos do índio
foram consolidados e positivados e seus territórios foram reconhecidos. Segundo
5
SOUZA FILHO, Carlos F. Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Editora, 2006.
p. 103.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
369
Souza Filho6, a Constituição “reconheceu aos índios o direito de ser índio e de manterse como índio”, extraindo do art. 231 a garantia de organizar-se socialmente, de
manter seus costumes, línguas, crenças, tradições e o direito originário a terra.
Já nas décadas seguinte o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 34/93, que
sancionou o texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
–agência da Organização das Nações Unidas (ONU) – sobre os povos indígenas e
tribais em países independentes, foi aprovado em 19/06/2002, e estabeleceu em nosso
país as diretrizes do primeiro documento internacional que tratou de temas relevantes
às populações tradicionais. Entre estes direitos temos o direito dos povos indígenas à
terra e aos recursos naturais, à não-discriminação e a viverem e se desenvolverem de
maneira diferenciada, segundo seus costumes.
3. A REALIDADE NAS CIDADES DE ÍNDIOS
É encontrada uma grande barreira na falta de políticas públicas que
estruturassem o crescimento de suas populações, criando verdadeira cidades de índios
na região Amazônica, sem projetos estruturais urbanos de infraestrurura, saneamento
básico, água, saúde e educação em condições satisfatórias para o bom desenvolvimento
destes povos, gerando insegurança aos seus direitos outrora afirmados pela Carta
Magna.
Nestas terras indígenas os números populacionais chegam a quatro mil
habitantes, como os povos Tikuna, dois mil habitantes como na região do Alto Rio
Negro, com população multiétnica, e mais duas cidades crescem em Raposa Serra do
Sol, em Roraima, na fronteira com Venezuela e Guianas.
A urbanização atinge-os com grandes problemas estruturais já citados, e, apesar
disto, ainda vivem de forma tradicional, em coletividade e com poucos bens de
consumo. Sem perspectivas imediatas de que a legislação brasileira trata soluções
como forma de administração e organização destas cidades que nascem à margem da
sociedade Estatal. Temos exemplo na América Latina de reconhecimento dos direitos
indígenas mais como direito de povos, como a Bolívia, que trouxe em sua Constituição
de 1995, a garantia de que as autoridades étnicas de suas comunidades possam gerir
e aplicar suas próprias normas junto ao seu povo7.
6
SOUZA FILHO, Carlos F Marés. op. cit. p. 107.
7
SOUZA FILHO, Carlos F Marés. Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, Boaventura de S. Reconhecer
para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
p. 102.
370
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
4. ANALISANDO AS CONSTITUIÇÕES DOS PAÍSES-MEMBROS DO
TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA E A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
Retomando objetivo inicial de nosso trabalho, no qual nos propusemos a identificar nas Constituições dos Países do Tratado de Cooperação Amazônica a previsão de Municípios Indígenas, correlacionando-os à autonomia das culturas
indígenas amazônicas e as normas constitucionais, nos contextos jurídicos, políticos e sociais, traremos ao debate a análise de parte das legislações e da bibliografia referente ao assunto. Assim vemos nas citações das Constituições Políticas
a seguir relacionadas, que tratam seus povos indígenas de forma diferenciada,
dando possibilidades de se organizarem conforme as necessidades de gerir suas
terras:
Constitución Política de República del Bolívia, 1995:
Articulo 1º. Clase de Estado y Forma de Gobierno
I. Bolívia, libre, independiente, soberana, multiétnica y pluricultural, constituída em República
unitária, adopta para su gobierno la forma democrática representativa, fundada en la unión y
la solidaridad de todos los bolivianos.
Articulo 171º. Reconocimiento de derechos de pueblos indígenas
II. El Estado reconoce la personalidad jurídica de Ias comunidades indígenas y campesinas
y de Ias asociaciones y sindicatos campesinos.
III. Las autoridades naturales de las comunidades indígenas y campesinas podrán ejercer
funciones de administración y aplicación de normas propias como solución alternativa de
conflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos, siempre que no sean contrarias
a esta Constitución y las leyes. La ley compatibilizará estas funciones con las atribuciones
de los Poderes del Estado.
Constitución Política del Colômbia
Articulo 246. Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones
jurisdiccionales dentro de su âmbito territorial, de conformidad con sus propias normas y
procedimientos, siempre que no sean contrários a la Constitución y leyes de la República.
La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el sistema
judicial nacional.
Articulo 286. Son entidades territoriales los departamentos, los distritos, los municípios y
los territórios indígenas.
Articulo 287. Las entidades territoriales gozan de autonomia para la gestión de sus intereses,
y dentro de los limites de la Constitución y la ley. En tal virtud tendrán los siguientes derechos:
Gobernarse por autoridades propias. Ejercerlas competencias que les correspondan.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
371
Administrar los recursos y establecer los tributos necesarios para el cumplimiento de sus
funciones.
Participar en las rentas nacionales.
Constitución Política del Ecuador, 1998
Articulo 83. Los pueblos indígenas, que se autodefinen como nacionalidades de raíces
ancestrales, y los pueblos negros o afroecuatorianos, forman parte del Estado ecuatoriano,
único e indivisible.
De los gobiernos seccionales autônomos
Art. 228. Los gobiernos seccionales autónomos serán ejercidos por los consejos provinciales,
los concejos municipales, las juntas parroquiales y los organismos que determine la ley para
la administración de las circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas.
Art. 241. La organización, competencias y facultades de los órganos de administración de
las circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas, serán reguladas por la ley.
Constitución Política del Peru
Artículo 48º. Son idiomas oficiales el castellano y, en las zonas donde predominen, también
lo son el quechua, el aimara y las demás lenguas aborígenes, según la ley.
Artículo 89º. Las Comunidades Campesinas y las Nativas tienen existência legal y son
personas jurídicas.
Son autónomas en su organización, en el trabajo comunal y en el uso y la libre disposición
de sus tierras, así como en lo económico y administrativo, dentro dei marco que la ley
establece. La propiedad de sus tierras es imprescriptible, salvo en el caso de abandono previsto
en el artículo anterior.
El Estado respeta la identidad cultural de las Comunidades Campesinas y Nativas.
Artículo 149º. Las autoridades de las Comunidades Campesinas y Nativas, con el apoyo de
las Rondas Campesinas, pueden ejercer las funciones jurisdiccionales dentro de su âmbito
territorial de conformidad con el derecho consuetudinario, siempre que no violen los derechos
fundamentales de la persona. La ley establece las formas de coordinación de dicha jurisdicción
especial con los Juzgados de Paz y con las demás instancias del Poder Judicial.
Artículo 191º. Los gobiernos regionales tienen autonomia política, económica y administrativa
en los asuntos de su competência. Coordinan con las municipalidades sin interferir sus
funciones y atribuciones.
La ley establece porcentajes mínimos para hacer accesible la representación de género,
comunidades nativas y pueblos originários en los Consejos Regionales. Igual tratamiento se
aplica para los Concejos Municipales.
Nas constituições citadas acima, encontramos questões sobre soberania, territórios indígenas, municipalidades, descentralização, e preservação do pluralismo
372
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
cultural e a diversidade étnica de cada região, dando importância aos povos indígenas e reconhecendo suas formas de organização e administração territorial, bem como
suas autoridades e respectivas funções nas comunidades.
Da análise da Constituição Política Brasileira de 1988, citamos o seguinte artigo:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta
Constituição.
§ 4º. A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por
lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão
de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após
divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da
lei.
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos.
Observamos assim que falta-nos no Brasil legislação que possa suprir estas
lacunas do Estado perante seus povos diferenciados, por isso a necessidade de iniciar
esta discussão, a fim de elencar e analisar os mecanismos legais utilizados pelos
países membros do Tratado de Cooperação Amazônica, no tratamento dado aos seus
povos indígenas, no que diz respeito ao reconhecimento de auto-organização e autogestão destes em seus territórios, e assim trabalharmos analiticamente as propostas
de criação de município, ou ente político diferenciado, ou políticas públicas
diferenciadas, que possam respeitar os valores étnicos indígenas.
Sabemos também que há pensamentos fortemente conservadores nesta questão no Brasil, pois levanta-se a bandeira da segurança jurídica da soberania nacional,
em detrimento da consolidação dos direitos dos índios. Contudo, essa insegurança jurídica é falsa, pois não é o objetivo das populações nativas tornarem-se um Estado independente, e sim ver materializar-se o respeito e o reconhecimento de sua terra, sua cultura,
seu conhecimento, enfim todos os seus direitos abraçados pela Constituição de 1988.
5. DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS, ENTES POLÍTICOS DIFERENCIADOS
OU POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS ÀS CIDADES INDÍGENAS
Iniciando uma reflexão acerca da solução para o problema abordado, temos
algumas opções que trataremos neste trabalho, dentre elas a criação de um município,
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
373
com população indígena e que se adequasse às realidades destes povos em relação à
gestão, administração e funções políticas e jurídicas, ou um ente político diferenciado,
trazendo em sua essência peculiaridades que atendam à complexidade social que
são os povos tradicionais, ou ainda políticas públicas dentro dos contextos políticos
em que já se encontram estas cidades de índios já citadas, porém modificando os
pontos necessários para conformidade com as reais necessidades observadas nestes
locais.
Em relação à criação de Municípios temos, portanto, no art. 18, § 4º, os requisitos para a criação de deste ente federativo. Porém, neste ponto há mais uma questão
em debate, a lacuna perante a regulamentação legal para o dispositivo previsto no
parágrafo 4º do referido artigo, visto que, após 20 anos da promulgação da Carta
Magna, não há ainda a Lei Complementar Federal estipulando o período para elaboração de Lei Estadual que traga em seu escopo a criação de um novo município e
ainda os Estudos de Viabilidade Municipal não possuem os parâmetros definidos.
Contudo, há na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei Complementar que trata da
regularização do referido artigo, o PLP 293/2008, iniciado em maio de 2008, e enviado para apreciação no Senado Federal.
Quanto à entes políticos diferenciados, temos uma barreira maior que se trata
do Princípio Federativo previsto no artigo 1º da Carta Magna, e portanto devendo ter
maiores estudos acerca deste ente a fim de não ferir tal princípio tido como Cláusula
Pétrea do Estado Brasileiro.
Em relação às políticas públicas diferenciadas temos uma possibilidade maior
de consolidarmos alguns dos temas abordados neste artigo. Como exemplo de políticas
públicas urbanísticas que já estão em execução, temos o Plano Diretor de São Gabriel
da Cachoeira, do qual citaremos o terceiro dispositivo:
Art. 3º. São princípios do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira:
I. Respeito aos direitos culturais e territoriais das comunidades indígenas e tradicionais;
II. Cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade;
III. Democratização do planejamento e gestão territorial.
Parágrafo 1º. Os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e tradicionais que
vivem em São Gabriel da Cachoeira devem ser respeitados em virtude da importância da
diversidade dos grupos étnicos que formam a sociedade local, cada qual com seus próprios
valores culturais, relações socioambientais, territorialidades e formas de organização coletiva.
Vemos neste ponto, a forma diferenciada de análise de gestão territorial,
administrativa e política de um município, possibilitando a realização de políticas
específicas e o atendimento das realidades vividas por estes conglomerados indígenas.
374
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Porém, há necessidade de que a Constituição Brasileira traga maiores
especificações e aprofundamento, no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos
dos índios, de seus costumes, valores sociais, identidade cultural, etc., como foi visto
nas Constituições dos Paises-membros do Tratado de Cooperação Amazônica
estudados neste trabalho, o reconhecimento e respeito das culturas tradicionais
indígenas, inclusive de suas formas de gestão e lideranças políticas e jurídicas.
CONCLUSÃO
Temos um grande desafio ao Direito Brasileiro na caminhada de efetivação
dos direitos dos povos indígenas. Já passamos por longo período de negação até o
real reconhecimento na Constituição de 1988, hoje precisamos trazer ao cenário
acadêmico as reflexões elencadas neste artigo, bem como as demais considerações
feitas por teóricos, para assim ratificarmos e efetivarmos os direitos reconhecidos
aos índios na Lei Maior. Com a relativização dos dogmas jurídicos, encontraremos o
pluralismo em nosso Direito, respeitando as diferenças e minorias, nos educando a
conviver com as diversidades étnicas e culturais.
REFERÊNCIAS
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ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.
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Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
SOUZA FILHO, Carlos F Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Editora, 2006.
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura do Direito. São
Paulo: Alfa Omega, 1994.
Municipalização da Licença Ambiental
em Manaus: Compatibilização Entre Licença
Ambiental e Urbanística
EDSON R. SALEME1
Doutor em Direito do Estado pela USP.
1. INTRODUÇÃO
Estatuído no 15º Princípio da CNUMAD (ECO/92), o princípio da precaução
refere-se à necessidade da tomada de cuidados específicos por parte das autoridades
licenciadoras, em face de situações que não exista segurança quanto à extensão dos
danos que possa causar determinada atividade ou empreendimento. Os danos
ambientais e urbanísticos podem ser irreversíveis ou mesmo irreparáveis causando
impacto local além daqueles previamente imaginados.
Os princípios ambientais evitam não somente riscos ambientais que possam
ser calculáveis, mas antecipar aqueles que se mostram mais prováveis de ocorrer. O
caput do art. 225 é incisivo ao referir-se à necessidade de proteção e preservação do
meio ambiente, pelos mecanismos criados para tal finalidade. Isso sem contar com a
existência de normas que prevêem a compensação ambiental assim como aquelas
que prevêem a necessidade de licença ambiental para determinados empreendimentos
causadores de impacto ambiental.
Contudo, o que se discute neste trabalho é a questão da emissão de licença
ambiental pelos municípios, a conveniência ou não dessa possibilidade. Certamente
será também abordada a possível aprovação do Projeto de Lei 3057/2000, do Dep.
Fernando Chucre, que trata de nova regulamentação acerca do parcelamento do solo,
regularização fundiária e lei de responsabilidade territorial urbana. Projeto polêmico
que vem causando acirradas discussões, mormente pelo fato de cometer aos municípios
procedimentos ambientais que antes eram desempenhados pelos estados de sua
circunscrição. Seria tal medida adequada ou não?
1
Professor do Curso de Mestrado em direito ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e da UNISANTOS.
376
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Já existem municípios no País, a exemplo de Porto Alegre, que obtiveram, do
Estado respectivo, poderes suficientes para emitir licença ambiental em seus territórios.
Entretanto, são municípios dotados de equipe técnica especializada, capazes de formar
uma opinião consistente em termos de impacto ambiental. Entretanto, essa não é a
situação de grande parte das municipalidades deste País. As equipes de servidores
municipais não contam com profissionais que possam pontuar danos eventualmente
causados pelas atividades
Os diversos atos normativos expedidos pelo CONAMA ou mesmo pelo
CONCIDADES com vistas à regulamentação de normas ambientais buscam evitar
atividades causadoras de poluição ambiental ou mesmo de impacto local. Previamente
ao licenciamento, é necessária manifestação de técnicos especializados para apreciar
os projetos de empreendimentos ou atividades por meio de relatórios técnicos
pormenorizados . Ademais, há de ajustar-se o plano regional e local a fim de se lograr
uma composição para todos os aspectos ali envolvidos. A sustentabilidade, como
princípio máximo do direito ambiental, indica a necessidade de estudos técnicos
aprofundados em prol da necessária manutenção de um meio ambiente adequado.
Se por um lado existem dispositivos consagrando normas protetivas, relatórios
de impacto local e de vizinhança, apreciação dos técnicos, audiências públicas,
consultas populares; por outro, existem empresários ansiosos em desenvolver e ampliar
seus negócios, deste lado também estão as autoridades locais preocupadas em manterse no poder e contentar a população local com maior numero de vagas e
desenvolvimento das atividades na municipalidade; contudo, ambas as partes, por
vezes, desconhecem o alcance, a médio e longo prazo, dos danos que a atividade
pode causar. Nesse sentido, não somente pareceres técnicos devem embasar as
decisões, mas também consultas populares com a participação de entidades que
possam, de fato, auxiliar nessa pesquisa de impacto.
Atualmente, o Município de Manaus possui trâmite bem equacionado nos
empreendimentos potencialmente poluidores ou que possam causar impacto ambiental,
por meio das leis locais. Qualquer atividade potencialmente poluidora que desejar ali
se instalar deve buscar a zona industrial adequada, obter as licenças das autoridades
estaduais a partir do EIA-RIMA, a fim de obter a licença de instalação. Caso haja
impacto regional ou mesmo que possa ensejar a intervenção do IBAMA, este também
deverá manifestar-se a partir desses e outros elementos que considerar relevantes.
Caso sua pretensão dependa de manifestação das autoridades municipais para obtenção
das licenças urbanísticas, essa somente será expedida após a emissão da licença
ambiental. Esse é o procedimento, aliás, de grande parte das municipalidades de
grande porte, a exemplo das grandes capitais.
Desta forma, o trabalho se desenvolverá, em um primeiro momento, abordando
a questão da licença ambiental e suas peculiaridades e a atuação dos órgãos do
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
377
SISNAMA em sua emissão. A gestão dos estados na edição de licenças e como se
realiza presentemente o licenciamento em termos de órgãos públicos. No
desenvolvimento, será abordado o papel dos municípios e se, de fato, contam com
aparato suficiente para atuarem como árbitro e juiz de um processo de licenciamento
de interesse que ultrapassa seu território e interesse local. E, ao final, a conveniência
ou não da aprovação do projeto 3.057/2000.
2. ATIVIDADE LICENCIADORA
O art. 3º, III, da Lei implementadora da Política Nacional do Meio Ambiente
determina ser obrigatória a licença ambiental para as atividades que venham a degradar, poluir ou promover alterações adversas ao meio ambiente. Caso haja duvidas
quanto ao nível de poluição e sua inserção ou não na restrição referida, deve-se consultar a Resolução 237 do CONAMA, em seu anexo I, que consigna considerável rol
de atividades e empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental. O tratamento
é genérico e permite identificação facilitada da atividade. Mesmo não se encontrando nesse rol a atividade, deve-se consultar a autoridade licenciadora acerca da necessidade ou não de se proceder o estudo de impacto da atividade. Esta deverá,
discricionariamente, observar se há ou não problemas ambientais naquela atividade.
As licenças ambientais estão prescritas no Decreto 99274/90, o qual indicou
rol exaustivo desses atos: licença prévia – LP; licença de instalação – LI e licença de
operação – LO. A primeira apenas atesta a viabilidade do início do empreendimento e
prescreve requisitos básicos a serem respeitados, a fim de se conceder as licenças posteriores necessárias à realização da atividade. A LI permite que o projeto seja implantado e
a LO é outorgada quando todos os requisitos prescritos nas licenças anteriores foram
devidamente observados e atendidos e isso não dispensa novas avaliações e requisições.
O tramite procedimental das licenças obedecem a seguinte sequência: o primeiro
passo é o pedido do empreendedor junto ao órgão competente, que deve emitir um
termo de referência. Como segundo passo, o empreendedor deve iniciar os estudos a
fim de se elaborar o estudo de impacto ambiental (EIA-RIMA); e o ato que conduz
ao rumo final é a realização de audiências públicas, a fim de se obter a opinião popular
acerca do empreendimento. Somente após a verificação de todos esses procedimentos
é que o órgão licenciador lavra um parecer técnico submetendo-o ao Conselho do
Meio Ambiente; a partir de então será deliberada a concessão ou não da Licença
Prévia. Observe-se, outrossim, que a LP apenas atesta a viabilidade do projeto não a
sua efetiva realização.
O EIA, o qual deve embasar a decisão da autoridade ambiental, é essencial
para o licenciamento de atividades efetivamente poluidoras. Referido estudo contempla
todos os elementos indispensáveis para o desenvolvimento da atividade com o mínimo
378
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
impacto, seja por meio de alternativas tecnológicas e de implantação; na fase
operacional observa a área geográfica a ser atingida além de seu enquadramento
entre os planos e programas governamentais e outros zoneamentos que possam
contemplar a inserção da atividade na região. O RIMA (Relatório de Impacto
Ambiental) é o resumo do EIA. Deve ser elaborado da forma mais coloquial possível
de maneira a viabilizar um entendimento do seu conteúdo a quem quer que seja. O
RIMA, portanto, observa os pontos de maior relevância no EIA e informa a população
acerca dos riscos que a atividade pode gerar em termos ambientais.
A obrigatoriedade da avaliação de impacto ambiental foi também prevista no
texto constitucional vigente. Com efeito, estabelece o inciso IV do parágrafo primeiro
do artigo 225 que, no âmbito das atribuições estatais e no caminho para a construção
de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Poder Público deve
exigir, na forma da lei, o estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra
ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.
Instrumento esse a que se dará publicidade tendo em vista a possibilidade de
realização de audiências públicas que objetivam expor aos interessados o conteúdo
dos projetos apresentados ao Poder Público2.
É neste sentido, que afirma Edis Milaré ser o “mecanismo que dá vida a dois
princípios fundamentais de Direto Ambiental: o da publicidade e o da participação
pública.”3
Sua função, ressalta Paulo Affonso Leme Machado4 ao citar Chambault, não é
a de influenciar as decisões administrativas a favor das considerações ambientais em
detrimento das vantagens econômicas e sociais suscetíveis de advirem de um projeto.
O objetivo é o de fornecer suporte à Administração Pública de modo que seja possível
sopesar os interesses em jogo no processo de tomada de decisão5.
3. LICENCIAMENTO MUNICIPAL
A competência para editar normas gerais da União, no que se refere à competência concorrente, tem sido alvo de diversas discussões em sede jurisdicional. O
exemplo típico foi a Lei 8.666/93 (Estatuto das Licitações e Contratos Administrati2
Resolução CONAMA n. 009/87.
3
Edis Milaré. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco, p. 358.
4
Direito ambiental brasileiro, p. 221.
5
Tomada de decisão inclusive com relação às atividades desenvolvidas pelo próprio Poder Público. A exemplo,
o artigo 3º da Lei n. 8.666/93 (Lei das Licitações) prescreve que a licitação destina-se a garantir a observância
do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Por seu
turno, o artigo 12 descreve que nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços serão considerados
dentre outros requisitos o impacto ambiental (inciso VII).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
379
vos), cujo conteúdo foi considerado inconstitucional, pelo simples fato de exorbitar
o que se considerava “geral”. Contudo, o STF fez suas considerações e referida norma mantém-se sem alterações. Em matéria ambiental, o entendimento tem sido o de
que quanto maior a proteção ao meio ambiente mais apropriada será a norma. Não
devem existir mecanismos flexibilizadores nas demais unidades federativas. Estados
e Municípios podem sim complementar as normas, exigindo e determinando a observância de fatores considerados relevantes, de acordo com suas peculiaridades, nos
termos da legislação concorrente, do art. 24, I, VI, VII e VIII e os municípios com
base no inciso II e VIII do artigo 30 da CF.
A estrutura federativa do Estado brasileiro oferece o denominado federalismo
de terceiro grau. Isso quer dizer que os municípios nacionais possuem autonomia
política e administrativa; possuem órgãos legislativos e um considerável aparato
administrativo. Os que possuem grande número de habitantes necessitam de grande
agilidade, sobretudo no que se refere aos empreendedores que nele queiram
desenvolver suas atividades. A estrutura atual permite que a esses entes o oferecimento
de determinadas vantagens às empresas que nele querem se instalar. Certamente os
municípios compreendidos em zonas industriais ou mesmo regiões demarcadas dentre
de uma região metropolitana possuem maiores vantagens a oferecer. O Estado, por
vezes, ingressa na proposta a fim de proporcionar um ambiente atrativo às empresas
que aí queiram desenvolver suas atividades.
A agilidade em se emitir licenças e outros atos capazes de proporcionar
segurança ao empreendedor passou a ser considerado item relevante nas propostas
recebidas pelos empresários. Por outro lado, como já referido, olvidam-se do aspecto
ambiental. Os que se preocupam com esse aspecto, por vezes, utilizam-se de
mecanismos legais ou mesmo subterfúgios para não atingirem espaços ambientalmente
protegidos em centros urbanos.
O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) proporciona meios viáveis para referida
proteção: o solo criado e a transferência do direito de construir. Assim, atualmente há
uma tendência, mormente nos grandes centros urbanos, em se vincular a licença
urbanística ao cumprimento de normas ambientais, como é o caso da Municipalidade
de Manaus. Essa tendência está plenamente de acordo com as competências
constitucionais, ou seja, aquela insculpida no artigo 30, VIII da CF, além da orientação
que deflui das decisões do STF, de que as municipalidades não podem diminuir as
exigências propostas pelos demais entes federativos. Podem, de outra forma, aumentálas de forma a proteger a municipalidade no aspecto ambiental ou outros que o Plano
Diretor tenha se inclinado.
Diversos são os instrumentos de intervenção urbanística previstos no Estatuto
da Cidade. Destaca-se, por exemplo, a exigência que decorre do texto constitucional
para que as cidades com mais de 20 mil habitantes elaborem seus planos diretores.
380
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Como o planejamento urbano é um instrumento de transformação da realidade
local, os planos diretores tornam-se instrumental básico para a política de
desenvolvimento e expansão urbana (CF, art. 182, § 1º), pois “realizam uma
radiografia do município no seu atual estado e identificam quais são os problemas
que o município enfrenta e as suas necessidades para um futuro estimado em dez
anos, possibilitando que os Prefeitos, Vereadores, comerciantes, industriários,
investidores e munícipes de forma geral possam impedir o agravamento dos atuais
problemas e planejar o desenvolvimento e crescimento do município”.6
Assim, não há como desvincular qualquer ato de licença da observância das
normas federais e estaduais vigentes. Se algum município confere licença urbanística
em discordância com tais legislações pode ser por fazer “vistas grossas” a determinados
empreendimentos ou mesmo edificações em áreas protegidas. Como referido, a dúvida
pela possível inserção de atividade como potencialmente poluidora está nas mãos da
autoridade administrativa. Esta, de acordo com os princípios ambientais, deveria
sempre tornar o projeto mais detalhado de maneira a assegurar a plena defesa ao
ambiente. Isso também ocorre em decorrência de comumente se separar o urbanístico
do ambiental, seja por parte dos juristas como das autoridades públicas em geral.
Tanto o licenciamento (processo administrativo) como a licença ambiental (ato
administrativo) estão contemplados no art. 1º da Resolução 237/97 do CONAMA. O
primeiro é procedimento administrativo tendente a viabilizar a instalação de
empreendimento determinado. Sua natureza jurídica é discutida na doutrina; LEME
MACHADO (2000) indica ser ato administrativo discricionário; MILARÉ (2001)
afirma ser licença administrativa com características próprias. A posição mais certeira
é aquela que aponta uma natureza mista. Discricionária quanto à emissão da licença
e vinculado após a primeira manifestação da autoridade, com traços característicos
de autoridade administrativa capaz de romper o prazo da licença na hipótese de
descumprimento das condições impostas ao empresário; além disso, há um prazo
para cada licença, cujo término determina a busca por uma prorrogação que contempla
novos mecanismos fiscalizadores. Enfim, sua característica jurídica impõe uma
natureza mista, capaz de fornecer à autoridade administrativa poderes suficientes
para determinar sua cassação ou não prorrogação. Esses atos devem cumprir com o
princípio da finalidade, o qual determina seja o ato administrativo emitido de acordo
com o interesse coletivo.
A tendência a uma agilidade administrativa capaz de pôr em risco a atividade
licenciadora, a ser observada em sede constitucional após a inserção do principio da
eficiência no caput do art. 37 não deve macular o interesse público em preserva o
meio ambiente. Destarte, a descentralização em matéria ambiental vem de maneira a
6
Alexandre Sturion de Paula. Estatuto da Cidade e o Plano Diretor Municipal, p. 17.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
381
integrar o município nessa gestão, pois é nessa esfera federativa que os indivíduos
possuem maior integração e proximidade e as políticas públicas devem estar voltadas
ao atendimento da comunidade local, sempre considerando o desenvolvimento
sustentável.
Ao cogitar-se da possibilidade da emissão das licenças por parte da importância
de adequação das administrações municipais às necessidades dos munícipes, sobretudo
diante das restrições ao uso da propriedade e as disposições constantes no Plano
Diretor, fez com que se criassem mecanismos capazes de compatibilizar a licença
ambiental e urbanística.
No Município de Manaus essa possibilidade está sendo cogitada, sobretudo
diante da construção da Ponte Manaus-Iranduba, que irá modificar o entorno da Região
Metropolitana local, criada há pouco tempo. A sistemática de licença integrada foi
satisfatoriamente efetivada no Município de Porto Alegre; considerável parcela de
urbanistas opinam como sendo uma medida salutar, desde que o município tenha
condições de aferir os requisitos legais a fim de se emitir a respectiva licença prévia,
monitorando as atividades de forma mais próxima, principalmente com o intuito da
renovação da mesma. Essa posição foi reiterada também pelos dos ministros que já
ocuparam a pasta do Ministério das Cidades em sessões presenciadas por este
acadêmico.
A atividade urbanística, em sua atuação mais concreta e eficaz é exercida no
plano Municipal. Os planos de desenvolvimento urbanos desenvolveram-se em forma
de planos diretores que estabelecem regras para um desenvolvimento físico das
cidades, ordenando a expansão dos núcleos urbanos do Município.
A concepção de planejamento urbano deixou de concentrar-se apenas no entorno
das cidades e evoluiu ainda em outro sentido, passou a contemplar o interior das
cidades; destarte “passou a abranger todo o território municipal – cidade, campo,
área rural, como elementos indissociáveis e integrativos da unidade constitucional
primária que é o Município7”.
Os Municípios com considerável número de habitantes sempre tiveram
competência para elaborar planos urbanísticos; porém, poucos estabeleceram um
processo de planejamento que atingisse de forma sustentável e permanente a
localidade. Não somente a falta de recursos técnicos, mas também recursos financeiros
para sustentá-los, até mesmo recursos humanos e o pior deles seja “o temor do Prefeito
e da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de atuação
política e de comando administrativo”8.
7
Hely Lopes Meirelles. Direito de Construir. Malheiros: São Paulo, 1976, p. 115.
8
José Afonso da Silva. Direito Urbanístico Brasileiro. Malheiros: São Paulo, p. 101.
382
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Outro fator que se observa na dificuldade de implementação de grande parte
dos institutos urbanísticos é o temor do prefeito e da Câmara desagradar munícipes
influentes e que se autodenominam “benfeitores” da localidade. Isso certamente traz
grandes problemas para o bioma local que recebe o impacto com vistas a receber de
bom grado investimentos para a municipalidade.
A questão do planejamento integrado é algo recentemente implantado. Algumas
tentativas exitosas já foram realizadas em municípios com equipe técnica
especializada. Essas equipes buscam integrar o aspecto ambiental ao e urbano, com o
fito de efetivar uma gestão urbana ágil e adequada aos padrões atuais.
O aspecto econômico nos municípios é visto como elemento deficitário. Talvez
a melhor articulação no âmbito territorial seria se o aspecto econômico fosse articulado
pelos órgãos federais ou mesmo estaduais e o aspecto físico-territorial levado em
consideração apenas no nível local. O planejamento urbanístico deveria ser mais
bem articulado no aspecto nacional levando-se em consideração os aspectos
econômicos e sociais; no município existiria apenas a distribuição desses elementos
em ambiente físico-territorial. Isso não contrasta com a autonomia; ao contrario, acata
a determinação da União elaborar os planos nacionais; os regionais, cometidos aos
estados; os municípios, a partir dos estudos técnicos realizados pelas demais unidades
federativas, poderia opinar no momento da elaboração genérica. Sua atuação, contudo,
deveria ser ulterior às fases já mencionadas e importaria na distribuição do econômico
e social já relevado nos planos anteriores. A sequência segue o plano constitucional e
a estrutura federativa brasileira.
É dessa forma que se pode afirma ser o planejamento urbanístico no Brasil
ainda em fase de desenvolvimento; a articulação entre unidades federativas é
incipiente; há longas discussões e normas a serem elaboradas com o intuito de se
efetivar uma ação coordenada e propícia ao desenvolvimento de acordo com as
características regionais. Sequer as funções urbanísticas essenciais contempladas na
Carta de Atenas (habitar, trabalhar, recrear e circular) não se logra atingir; o intuito é
alcançar o que preceitua o artigo 182 da Constituição Federal, ou seja, buscar o real
sentido da “função social da cidade” e assim atingir a tão almejada função social da
propriedade urbana e rural.
4. O PROJETO DE LEI 3.057/2000 E A CONVENIÊNCIA OU NÃO EM
SUA APROVAÇÃO
Este Projeto de Lei, que trata dos parcelamentos do solo e das regularizações
fundiárias em área urbana, faz alterações substanciais em duas das mais importantes
legislações ambientais brasileiras: a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e o
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
383
Código Florestal. Referido projeto deveria ser objeto de exaustivos debates no
Congresso Nacional, por meio de das comissões temáticas e da sociedade civil.
Referido projeto refere-se aos parcelamentos do solo revogando a lei nº 6.766/
79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano. Trata também de regularizações
fundiárias em área urbana, buscando a regularização de propriedades em situação
irregular e em áreas de proteção ambiental. No que tange o Código Florestal, traz um
equacionamento das áreas de Preservação Permanente – APPs, em zona urbana, pois
permite utilização de APPs como áreas de lazer em parcelamentos e condomínios; há
determinados dispositivos que permitem parcelamentos em locais atualmente
protegidos pelo Código Florestal.
Talvez o pior do projeto seja a proposta por uma municipalização do
licenciamento ambiental, o que, como visto, traz riscos incomensuráveis ao meio
ambiente como um todo, pois confere às prefeituras amplo espaço decisivo. Sublinhese que a maior parte delas, conforme já afirmado por parte das mais importantes
ONGs brasileiras, estão desprovidas de recursos financeiros e humanos capazes de
emitir opiniões acerca de matéria ambiental.
A pior critica gira em torno da dispensa de licenciamento estadual para
empreendimentos menores que 100 hectares e, aliado a esse aspecto, estimula a
aprovação de projetos em etapas. Exclui a incidência do Código de Defesa do
Consumidor nos loteamentos, causando riscos aos que adquirirem lotes. Empresários
mal intencionados poderão lotear sem as atuais restrições legais. O licenciamento
único gera ambiente mais propício para a desvinculação do loteamento em seus
aspectos preservacionistas.
5. CONCLUSÕES
É bastante comum nos municípios brasileiros que o urbano e o ambiental sejam
tratados separadamente. Atualmente, o licenciamento fica a cargo dos Estados, que
emitem a palavra final em termos decisivos acerca da conveniência ou não da
empreitada e o seu respectivo aspecto ambiental. Quando há uma repercussão de
maior amplitude regional, o IBAMA se manifesta para proteger o ambiente, de forma
complementar. Não exclui ainda a possibilidade do município opinar em termos
ambientais por intermédio de sua secretaria de meio ambiente. No Município de
Manaus a licença urbanística segue essa tendência e só é emitida após a comprovação
da licença ambiental.
Os municípios com grande número de habitantes e considerável número de
atividades desenvolvidas em seus territórios condicionam a expedição da licença
urbanística à licença ambiental. Esta deve ser objeto de análise por meio dos estudos
384
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
de impacto ambiental e exteriorizadas por meio de um relatório, este deve ser veiculado
amplamente à população local com o objetivo de se discutir ou não a conveniência
do desenvolvimento daquela atividade. Em que pese a necessidade de discussão
popular, sua opinião ainda pode ser desconsiderada, se a municipalidade justificar
interesse local na aprovação.
Ainda que existam polêmicas acerca dos limites das normas gerais estabelecidas
nos parágrafos do artigo 24, é majoritário o entendimento, inclusive com parecer do
STF, no sentido de que as normas federais têm aplicabilidade abrangente e não podem
ser objeto de flexibilização por parte dos estados e municípios. Estas unidades
federativas devem complementá-las com maiores exigências, sempre com o fito de
atender os princípios da precaução e da prevenção. Eventual conflito deve ser decidido
com base na norma que tutele de forma mais abrangente o bem ambiental. Assim, o
preenchimento dos requisitos necessários para a emissão da licença urbanística deve
incluir a observância da legislação federal e estadual, sobretudo quando se tratar de
áreas protegidas pelo Código Florestal.
A propriedade urbana tem no direito de construir sua expressão econômica, o
qual não é atribuído pelo Código Civil, mas sim pelo Plano Diretor, o qual contempla
a lei de zoneamento, uso e ocupação do solo. O denominado direito subjetivo está
plenamente condicionado ao atendimento dos requisitos impostos por referidos
instrumentos. Ademais, esse direito deve submeter-se aos regramentos ambientais
vigentes, que podem seriamente restringir o uso da propriedade, sobretudo com a
designação de áreas de proteção permanente e outros institutos capazes de inviabilizar
o uso da propriedade de maneira plena.
O Projeto de Lei 3.057/2000 fragiliza o sistema de licenciamento ambiental. A
prática atual empregada por alguns municípios brasileiros, mormente os de maior
porte, de utilizar técnicas urbanísticas para proteger espaços ambientalmente
protegidos nos centros urbanos, de acordo com o próprio plano diretor, além de se
condicionar a emissão de licença urbanística à ambiental, atende plenamente as
necessidades de desenvolvimento sustentável. O projeto é inconsequente. Comete às
municipalidades a tarefa de licenciar projetos ambientais, sendo que a maciça maioria
das prefeituras, mesmo com número considerável de habitantes, não tem condições
de praticar tais avaliações ambientais. Além disso, outros interesses poderão concorrer
afrontando o princípio do desenvolvimento sustentável e outros de cardeal importância
previstos implicitamente na Constituição Federal.
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MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
PAULA, Alexandre Sturion de. Estatuto da cidade e o plano diretor municipal: teoria e modelos de
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SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1995.
______. Direito urbanístico brasileiro. 5 ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
O Licenciamento Urbanístico no Município
de Manaus
JUSSARA MARIA PORDEUS
E
SILVA1
Mestre em Direito Ambiental.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Limitações Urbanísticas. 2.1. Licenças
Urbanísticas. 3. O Plano Diretor do Município de Manaus. 4. O Código de Obras
e Edificações do Município de Manaus. 5. Revisão e Extinção das Licenças. 6.
Taxa de Licenciamento. 7. Transmissibilidade da Licença. 8. Infrações e
Legalidade Urbanística. 9. Controle e Sanções das Infrações Urbanísticas no
Município de Manaus. 10 A Omissão do Poder Público Municipal e as
consequências para a cidade e seus habitantes. 11. A Responsabilidade do
Município e do Agente Público pela Omissão no Controle Urbanístico. 12. O
Papel do Ministério Público e da Sociedade Organizada na defesa da Ordem
Urbanística. 13. Conclusões. Referências bibliográficas.
RESUMO: Este trabalho aborda o Licenciamento Urbanístico no Município de
Manaus, partindo da análise de todo o procedimento de obtenção da licença
para construir, desde o pedido, pressupostos para obtenção, inclusive das
hipóteses de revisão que podem ensejar revogação, extinção e cassação, taxa de
1
Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas, Mestre em Direito Ambiental pela
Universidade do Estado do Amazonas. Doutoranda da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Núcleo de
Direito à Cidade do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas,
Professora de Direito Administrativo da Graduação da Universidade do Estado do Amazonas, Professora do
Módulo Sistema de Controle Urbanístico do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico da
Faculdade Martha Falcão, Coordenadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico na Região Norte.
Coordenadora da pesquisa qualitativa dos Planos Diretores nos municípios do Amazonas para a UFRJ/IPPUR.
2
Cf. Leonardo Valles Bento, Sociedade Civil é um conceito que já foi objeto de inúmeras interpretações, as quais
contribuíram para que a expressão lograsse um potencial inesgotável de ressiginificação. O conceito surge
com as doutrinas do jusnaturalismo contratualista, ou melhor, essas doutrinas inauguram a tradição teórica do
conceito de sociedade civil, que chegou aos dias atuais. A sociedade civil é vista como instrumento de
disseminação da ideologia socialista, cuja conquista é necessária a fim de se conquistar o Estado e transformar
a ordem econômica. Em contraponto, expõe, ainda o referido autor o pensamento de Gramei que enxerga a
sociedade civil muito mais como um obstáculo a ser enfrentado (de fato, ele define a sociedade civil burguesa
como um conjunto de trincheiras e casamatas para a defesa do capitalismo), do que um espaço neutro
ideologicamente onde a política e a liberdade encontram seu pleno sentido e realização (BENTO, 2003, p. 207216).
388
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
licenciamento, transmissibilidade, até as infrações urbanísticas e o correspondente
direito urbanístico sancionador. Inclui, ainda, a omissão do Poder Público e suas
consequências para a cidade e seus habitantes, a responsabilidade do Município
e de seus agentes por omissão no controle urbanístico e o papel do Ministério
Público e da Sociedade Civil2 Organizada na defesa da ordem urbanística.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de Propriedade; Função Social; Direito de
Construir; Limitações Urbanísticas; Licenciamento Urbanístico; Infrações
Urbanísticas; Direito Urbanístico Sancionador; Omissão do Poder Público;
Responsabilidade do Município e de seus agentes; Defesa do Ordem Urbanística;
Papel do Ministério Público e da Sociedade Civil Organizada.
1. INTRODUÇÃO
À luz da Constituição Federal de 1988 – que condiciona o direito de propriedade
ao cumprimento da função social, em seus arts. 5º, XXIII e 170, III – assim como do
Estatuto da Cidade – que concebe a ordem urbanística como bem difuso3 a ser
protegido – infere-se a necessidade de uma releitura do Direito de Construir, uma vez
que a este direito se deu nova concepção, na medida que ficou subordinado, além das
restrições relativas ao mau uso da propriedade de ordem privada, também às
imposições legais de direito público, que visam o bem-estar social, advindas do Plano
Diretor e das leis dele decorrentes.
A socialização do domínio particular e a evolução da propriedade-direito para
a propriedade-função passaram a ser matérias pertinentes tanto ao Direito de Construir
quanto ao Direito de Propriedade, através da dicotomia imposta pelo interesse social
sobre o particular. Como bem refere Di Pietro (1999, p. 24-25) essa concepção já é
encontrada nas teorias de São Tomás de Aquino4 e na doutrina social da Igreja5.
A liberdade de construir passa a ser limitada, não apenas pelo princípio da
normalidade6 de seu exercício (que condena a concepção de mau uso, de abuso ou
excesso na fruição) – que hipoteticamente prejudica a segurança, o sossego e a saúde
dos que habitam nas vizinhanças – mas, também pela teoria da relatividade dos
3
Bem difuso, para efeito deste trabalho, significa bem de titularidade difusa.
4
“O proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora
pertençam a um só” (São Tomás de Aquino, In: Ferreira Filho, 1975, p. 66).
5
Essa doutrina social da Igreja foi exposta na Ecíclica Mater et Magistra, do Papa João Paulo XXIII, de 1961, e
na Populurum Progressio, do Papa João Paulo II, nas quais se associa a propriedade à ideia de uma função
social, ou seja, à função de servir para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade.
6
Segundo Meirelles (2000, p. 30), a teoria da normalidade foi sistematizada por Georges Ripert, em famosa tese
apresentada em 1902, em Paris: De 1’Exercice du Droit de Propriété dans ses Rapports avec les Propriétés de
Voisines.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
389
direitos7, universalmente aceita, e por leis e regulamentos que criam as denominadas
limitações administrativas, que, por sua vez, buscam o bem-estar no convívio da
coletividade nas urbes.
Há, assim, íntimas relações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico,
pois o primeiro, que era anteriormente integrado ao Direito de Propriedade, portanto,
restrito ao direito privado, em sua atual concepção encontra-se submetido às limitações
administrativas, imposições de ordem pública, revestidas de poder de imperium,
clausuladas de imprescritibilidade, irrenunciabilidade e intransacionalidade8 Portanto,
o Direito de Construir passa a ser regido por regime misto, limitado por normas de
direito público e privado, razão por que alguns de seus preceitos chegam a se
interpenetrarem, o que ocorre também em relação ao Direito de Vizinhança, de ordem
exclusivamente privada.
As limitações urbanísticas9, segundo Toshio Mukai (1988, p. 75), compõem
um largo campo de instrumentalização do Direito Urbanístico brasileiro por
repousarem sobre a base filosófica da solidariedade entre os componentes do grupo
social, onde todos estão sujeitos a suportar um sacrifício razoável e não indenizável,
em favor da coletividade.
Por essa razão, as características dessas limitações se fundam nos princípios
da generalidade e da razoabilidade, pois, se o sacrifício não é geral, e, sim, particular,
geraria direito à indenização para recompor o patrimônio lesado em face de sacrifício
desigual de cargas públicas, o que estaria ferindo o princípio da igualdade.
Portanto, as limitações urbanísticas objetivam regular o uso do solo urbano,
suas construções e ainda o desenvolvimento de ações visando melhorar as condições
de vida dos habitantes das áreas compreendidas nos espaços habitáveis, impondo
normas de conforto, salubridade, estética, segurança e funcionalidade, normatizando
7
Meirelles (2000, p. 30) explica que Georges Ripert, para elaboração da teoria da normalidade, partiu da teoria
da relatividade dos direitos As premissas fundamentais da teoria da relatividade repousam na concepção de
aplicação dos postulados físicos à experiência jurídica, o que não significa a adoção de fórmulas matemáticas na
resolução dos conflitos sociais. As concepções absolutistas se tornaram insustentáveis com o advento da teoria
da relatividade. (Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto508>. Acesso
em: 30 ago. 2004). Esta teoria permite, por exemplo, a flexibilização de direitos individuais em benefício de
direitos coletivos e do bem-estar social.
8
Intransacionalidade, nesse ponto, significa dizer que tais disposições legais – limitações administrativas – não
podem ser negociadas ou deixar de ser exigidas pelo órgão fiscalizador da Municipalidade. Todavia é sabido ser
comum, a partir da edição da Lei da Ação Civil Pública. Termos de Ajustamento de Conduta intermediados pelo
Ministério Público e acordos homologados em juízo, nos quais a parte infratora se submete a obrigações de
fazer, como por exemplo, dar outra área para uso comum do povo em troca, em face da teoria do “fato consumado”
ou irreversibilidade ao status quo ante (ex.: construção em área non edificandi).
9
Limitações urbanísticas são ônus pessoais (positivos ou negativos) impostos por lei ao proprietário, de forma
geral e, geralmente, inidenizáveis, visando ordenar o espaço urbano. (Vide item 5.1, do capítulo V).
390
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
o trabalho urbano, as obras públicas e particulares, com a única finalidade de facilitar
a vida de seus ocupantes.
Celso Antônio Bandeira de Melo (1969, RDP nº 9, p. 57), ao referir-se ao
assunto, acentuou: “a propriedade, assim como a liberdade, necessita ajustar-se aos
interesses coletivos, e a atividade estatal condicionante desses fins é designada ‘poder
de polícia’”10.
Entretanto, observa-se claramente a existência de construções desenfreadas,
sem qualquer planejamento urbanístico e ambiental, não obstante a maioria dos
municípios brasileiros contar com Planos Diretores em consonância com o disposto
no Estatuto da Cidade, leis de Parcelamento do Solo federal e local, leis de Zoneamento
Urbano e Código de Obras e Edificações, o que faz a incoincidência entre a cidade
legal e a cidade real11. E a gigantesca ocupação ilegal do solo urbano representa para
alguns autores, a exemplo de Maricatto (2002, p. 122), a exclusão urbanística12.
Para Rizzardo (1998, p. 204), a expansão desordenada dos povoamentos,
carentes de condições mínimas de infraestrutura, notadamente quanto ao sistema de
água, esgoto, vias públicas e áreas verdes, transformou as cidades em problema crônico
para as municipalidades. Assim, o Poder Municipal, ao implantar os requisitos legais
urbanísticos, sobretudo quanto às exigências sanitárias mínimas, passou a se ver
obrigado a suportar pesados ônus, por conta da impune irresponsabilidade dos
loteadores.
E da feita que a maioria da população brasileira concentra-se na área urbana, a
exemplo de Manaus (onde cerca de 70% dos habitantes do Estado do Amazonas vive
nesta capital 13), um meio ambiente ecologicamente equilibrado depende do
planejamento urbanístico das grandes cidades. A impunidade no descumprimento
10
Ao mesmo tempo que a CF e as leis concedem direitos, os condicionam ao bem-estar da coletividade, assim o
poder que o Estado tem de limitar o uso, gozo, fruição e destruição de bens, direitos e atividades, em prol da
coletividade e do bem estar social, se chama poder de polícia.
11
Rolnik (2003, p. 13) aborda o tema em relação à cidade de São Paulo, na sua obra A Cidade e A Lei: “[...] isto é
poderosamente verdadeiro para a cidade de São Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latinoamericanas, ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto – cidade – não
é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que esta estabelece com as formas
concretas de produção imobiliária da cidade. Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba por
definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania
limitada [...] quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como é o caso de nossas
cidades de maiorias clandestinas, é aí onde ela é mais poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais
com sistemas hierárquicos.”
12
A autora tece uma crítica ao urbanismo brasileiro – entendido como planejamento e regulação urbanística – no
sentido de não ter comprometimento com a respectiva realidade, na medida em que abrange apenas uma parte
da cidade.
13
Dados do IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 15 out. 2008.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
391
das normas urbanísticas e ambientais, portanto, deve ser combatida, buscando-se
uma maior eficiência no seu controle, em vista dos ecossistemas e, consequentemente,
da própria subsistência humana14, ainda que o sucesso desse controle não se dê por
obediência espontânea das normas, mas através de imposição de terceiros, como do
Poder Judiciário.
No município de Manaus, não são raros os loteamentos que sequer atendam as
exigências da lei federal do Parcelamento do Solo, legislação municipal e Código de
Obras e Edificações, no que se refere à metragem dos lotes, aos espaços verdes, à
área de circulação, de lazer e equipamentos sanitários, necessários ao atendimento
das condições mínimas de saúde pública da população15. E como já foi anteriormente
mencionado, como 70% (setenta por cento) da população de todo o Estado do
Amazonas concentra-se na área urbana de sua capital, é de fundamental importância
a intervenção da Administração Pública para regular o uso do solo, propiciando um
desenvolvimento harmônico na cidade, através do planejamento urbano e de
instrumentos como o licenciamento urbanístico.
Não obstante todas as exigências legais, que são previstas em relação aos
loteamentos urbanos, torna-se comum, após aprovação do projeto pelo órgão
fiscalizador municipal, a existência de alterações posteriores por parte das construtoras,
com o intuito de efetuar o máximo de ocupação do solo, visando lucro desmesurado,
em detrimento das exigências urbanísticas e ambientais. Também não se pode descartar
a omissão do órgão municipal fiscalizador com essas irregularidades, por ocasião da
concessão da licença prévia e da definitiva (do “habite-se”)16.
Desse modo, o planejamento e a legislação tornam-se ineficazes, se não houver
meios efetivos de proteção da legalidade urbanística, ou seja, de fiscalização do
cumprimento dessas normas. Em Manaus, observa-se, concretamente, abundante
legislação e suficientes instrumentos de controle para se fazer cumprir as normas
norteadoras dos loteamentos e edificações, todavia, a municipalidade carece de infraestrutura e de um ordenamento de ações. E, mesmo os meios de controle repressivos
existentes e possíveis de serem utilizados pela própria Administração, como por
14
A Constituição Federal estabelece no art. 225 a preservação ambiental como forma de garantir a subsistência
das presentes e futuras gerações.
15
Essa realidade está presente em Manaus não apenas em bairros habitados por pessoas de baixa renda – a exemplo
da Nova Cidade, onde foi totalmente devastada a área verde – mas, também, em condomínios de classe média,
nos quais os construtores, em busca de lucro desmensurado, desrespeitam a legislação urbanística, edificando
além do permitido, suprimindo áreas públicas obrigatórias, como no Conjunto D. Pedro, onde a área verde foi
negociada pela associação de moradores e hoje é ocupada por um estabelecimento de ensino. Outros casos serão
apontados no corpo deste trabalho.
16
No empreendimento Manaus Parque, no bairro do Vieiralves, foi substituída a área destinada à circulação por
garagens adicionais a serem negociadas pelas construtoras com os proprietários das unidades, além de terem
sido construídos mais andares nos edifícios do que os aprovados no projeto aprovado.
392
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
exemplo, a revisão de licenças, mediante anulação, revogação, cassação e declaração
de caducidade, em sua maioria provocada através de denúncia de titularidade popular,
raramente são usados.
Ao se considerar, de um lado, a importância da cidade de Manaus, não apenas
para a Amazônia ocidental, mas num contexto universal, e que essa realidade vem se
contrapor, não apenas às questões urbanísticas estéticas e arquitetônicas, mas,
sobretudo, frente à forte tendência mundial – a de conservar a personalidade histórica
e cultural das cidades, assim como seu meio ambiente, por razões sociais, econômicas
e até mesmo de sobrevivência humana – vê-se a necessidade da sistematização de
um modelo jurídico que torne eficiente o controle urbanístico e seja capaz de conter
o urbanismo político17 que “atropela” as leis.
Na realidade, a ocupação desordenada dos espaços urbanos, gerada pela explosão demográfica e a ação predatória do homem, traz grandes problemas urbanísticos e ambientais para a cidade, como a poluição, a formação de bairros periféricos,
sem infra-estrutura, a desordem urbana com a prática de funções sociais numa área
em desacordo com o zoneamento, assim como aos princípios urbanísticos e dispositivos como, por exemplo, o art. 182 da Constituição Federal de 1988.
Este trabalho propõe medidas e ações específicas a serem implementadas, no
sentido de que a legislação urbanística de Manaus seja cumprida efetivamente pelas
construtoras, especificamente em relação às limitações administrativas existentes na
legislação pertinente – normas urbanísticas, normas ambientais, códigos de obras e
de posturas – na medida em que “[...] as normas urbanísticas devem ser formuladas
objetivando resguardar os interesses e direitos coletivos, evitando que a implantação
do empreendimento traga impacto indesejável para a cidade como um todo” (SILVA,
1999, p. 27).
Em Manaus, como é público e notório, a maioria dos bairros periféricos foi
formada através de invasões. Historicamente, portanto, a atuação do urbanismo foi a
de criar uma infra-estrutura após ocupações desordenadas18. Manaus pode ser
considerada um exemplo da prática, também histórica, de infrações urbanísticas, assim
como também de agressões aos Recursos Naturais, haja vista de um lado, o costume
dos menos favorecidos de se instalarem às margens dos igarapés com a complacência
do Poder Público19 e, de outro, a dragagem e a poluição dos límpidos igarapés de
17
Urbanismo político é aquele advindo de interesses políticos, sem qualquer embasamento técnico.
18
Zumbi, Novo Israel, Coroado, São José etc. são bairros formados através de invasões, que já foram urbanizados.
19
Em algumas situações verifica-se que, apesar do Poder Público Municipal haver sido conivente com a ocupação
das margens dos igarapés e, inclusive ter cobrado IPTU dos respectivos moradores, quando havia necessidade
da desocupação do local em face de obra pública, alegava a Municipalidade que os moradores não tinham
qualquer direito porque estavam ocupando área non edificandi.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
393
águas doces existentes outrora em Manaus, o que descaracterizou profundamente a
cidade.
Nesse contexto, configurou-se o seguinte problema: ante o visível desordenamento urbano da cidade de Manaus, que ações podem ser implementadas frente à
falta de efetividade20 das formas e instrumentos de controle do licenciamento urbanístico?
A partir dessa indagação, estabeleceu-se, como objetivo geral deste trabalho,
sistematizar a doutrina, a legislação urbanística e as ações de controle, especificamente
aplicáveis ao licenciamento urbanístico.
2. AS LIMITAÇÕES URBANÍSTICAS
Sendo uma das sete formas de intervenção do Estado na propriedade21, a
limitação administrativa22 é ônus geral, advindo de lei, em regra gratuito, imposto ao
proprietário de modo positivo, negativo ou permissivo, que vem a limitar o uso, gozo
e fruição de seu imóvel, visando sempre o bem-estar coletivo (GASPARINI, 2003,
p. 616).
Classificam-se as limitações administrativas em três espécies: as urbanísticas,
as de higiene e de segurança, e as militares. O objeto de analise do presente estudo,
entretanto, limita-se às limitações urbanísticas.
As limitações urbanísticas, segundo Meirelles (2000, p. 103-104),
são todas as imposições do Poder Público, destinadas a organizar os espaços habitáveis, de
modo a propiciar ao homem as melhores condições de vida na comunidade. Entenda-se por
espaços habitáveis toda área em que o homem exerce coletivamente qualquer das seguintes
funções sociais: habitação, trabalho, circulação, recreação.
20
De acordo com Ferraz Júnior, “[...] a efetividade [...] tem antes o sentido de sucesso normativo, o qual pode ou
não exigir obediência. Exigindo obediência, devem-se distinguir, presentes os requisitos fáticos, entre a
observância espontânea e observância por imposição de terceiros [...]. Uma norma é, assim, socialmente ineficaz
de modo pleno se não for observada nem de um modo nem de outro”.
21
As formas de intervenção na propriedade, segundo Gasparini (2003, p. 619), são: limitação administrativa,
servidão administrativa, tombamento, ocupação temporária, requisição, desapropriação e parcelamento e
edificação compulsórios.
22
Ressalta-se que Silva (2000, 386-387) sustenta posicionamento diferente tanto de MEIRELLES (2000, p. 8489) quanto de GASPARINI (2003, p. 629-621), denominado esse instituto de “restrição” administrativa, o que
define como limitações impostas às faculdades de fruição, de modificação e de alienação da propriedade no
interesse da ordenação do território, entendendo, ainda, que limita o caráter absoluto da propriedade e atinge a
faculdade dominial.
394
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Essas limitações de ordenação do espaço urbano advêm do poder de polícia,
ou seja, da “faculdade de que dispõe a Administração pública para condicionar e
restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da
coletividade ou do próprio Estado” (MEIRELLES, 2000, p. 104) e são preceitos de
ordem pública. São ônus pessoais e genéricos, oriundos, em regra, de leis, atingindo
todas as propriedades que se encontrem naquela determinada situação e, portanto,
recaindo no ônus geral da sociedade. Em outras palavras, pode-se dizer que são
inegociáveis e inidenizáveis, assim como recaem sobre o proprietário e não sobre o
imóvel, atingindo a todos, indistintamente.
Sua finalidade é sempre o bem-estar social e se distinguem em três espécies:
positiva (gera uma obrigação de fazer ao proprietário); negativa (induz uma obrigação
de não fazer ao proprietário) e a permissiva (impõe ao proprietário uma obrigação de
permitir ou suportar, ou seja, deixar fazer determinada ação do Poder Público em sua
propriedade).
Os superiores interesses da comunidade justificam as limitações urbanísticas de toda ordem,
notadamente as imposições sobre área edificável, altura e estilo dos edifícios, volume e
estrutura das construções; em nome do interesse público a Administração exige alinhamento,
nivelamento, afastamento, áreas livres e espaços verdes; impõe determinados tipos de material
de construção; fixa mínimos de insolação, iluminação, aeração e cubagem; estabelece
zoneamento; prescreve sobre loteamento, arruamento, habitações coletivas e formação de
novas povoações; regula o sistema viário e os serviços públicos e de utilidade pública;
ordena, enfim, a cidade e todas as atividades das quais depende o bem-estar da coletividade
(MEIRELLES, 2003, p. 498).
Quanto ao poder de polícia, em matéria urbanística, trata-se de uma questão
bastante discutida pela doutrina. Para Gordillo (1975, T2/XII-1 e XII-2), esse poder
é apenas uma parte das funções do poder estatal, que é uno:
Por de pronto, es de recordar que el aditamento de “poder” es equivocado por cuanto el
poder estatal es uno solo, y ya se vio que la Ilamada división de três “poderes” consiste, por
um lado, em uma división de “funciones” (funciones legislativa, administrativa, jurisdicional),
y por el outro em uma separación de órganos (órganos legislativo, administrativo y
jurisdiccional).
Em tal sentido el “poder de policia” no seria em absoluto um órgano del Estado, sino em
cambio uma espécie de facultad o más bien uma parte de alguna de Ias funciones mencionadas.
Bandeira de Mello (1947, RDA 9:55) comunga, em parte, com esse posicionamento, todavia, vislumbra utilidade prática na noção de polícia, pois admite a distinção da chamada atividade de polícia em outras atividades, assim como, alerta, que
não se deve confundir propriedade com direito de propriedade, na medida em que
esta última expressão só é admitida em dado sistema jurídico, em face do contorno
legal que lhe tenha sido dado.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
395
Manifestação bastante reverenciada a esse respeito é a de Renato Alessi23,
através da qual, infere-se de que se excluem da definição de poder polícia as atividades
proibidas de modo absoluto na norma, ou seja, aquelas em relação às quais não sobram
nenhuma discricionariedade ou “faculdade de mérito” à Administração. Todavia,
incluem-se as situações que, embora a lei proíba genericamente a atividade, deixa ao
alvedrio do Poder Público derrogar a proibição, conforme a análise de cada caso
concreto, a exemplo do que se dá com as autorizações (SANTOS, 2001, p. 77).
Entretanto, não se pode excluir do conceito do poder fiscalizador e regulador
da ordem urbanística as atividades vedadas de modo absoluto pela norma, ou seja, as
infrações urbanísticas, justamente porque cabe a esse poder de polícia, não apenas
envidar medidas preventivas de verificação da conformidade ou não com a lei, mas a
aplicação das respectivas medidas de polícia repressivas, dentre elas, as penalidades,
como, por exemplo, as que seriam cabíveis nas hipóteses de construções em áreas
verdes ou em área non edificandi à beira de igarapés, fatos corriqueiros na cidade de
Manaus.
Sem olvidar do controle concomitante, que será abordado no decorrer desse
estudo, é preciso que reste clarividente que todos são momentos de controle da
legalidade urbanística, através do poder de polícia, com aplicação de medidas próprias
a cada um deles.
Bem a propósito, Di Pietro (1999, p. 31-34) classifica as medidas de polícia
em: preventivas e repressivas. Dentre as preventivas, a autora insere a autorização, a
licença, a aprovação e os atos de fiscalização em geral. Como repressivas cita a autora
a anulação e a cassação de alvará, o embargo de obra, a demolição da obra ou sua
interdição compulsória, além de sanções, como a multa. Dentro da competência
urbanística, a autora destaca as medidas de polícia que dizem relação ao uso de bens
de uso comum do povo, incumbindo ao Poder Público zelar para que não sejam
outorgadas autorizações ou permissões contrárias ao interesse público ou que
comprometam a sua principal destinação que é a circulação.
Di Pietro (1999, p. 32), entende que, embora a aprovação das medidas
preventivas seja um ato vinculado, como o é a licença, mesmo se o projeto não satisfizer
a plenitude das exigências legais, não pode lhe ser negado o direito de adequação ou
correção, o que passa a lhe ser conferido. Quanto a esse aspecto, não se vê divergência,
como será verá mais à frente, quando se tratar do procedimento para aprovação de
projeto no Município de Manaus (§ 1º do art. 25 do Código de Obras e Edificações).
23
Esse posicionamento de Renato Alessi é citado por Celso Antônio Bandeira de Melo, Lúcia Valle Figueiredo e
Márcia Walquíria Batista dos Santos em suas obras consultadas.
396
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Após a aprovação do projeto, tem-se um outro ato vinculado, que é a expedição
do “alvará de licença”, considerando-se que o direito de construir, embora regido por
regime misto, não deixou ser decorrente do direito de propriedade. Como exemplo,
cita-se o artigo 1299 do novo Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, que mantém a
mesma redação do art. 572 do Código Civil de 1916 (Idem, ibidem): “O proprietário
pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos
vizinhos e os regulamentos administrativos”.
2.1 As licenças urbanísticas
O direito de edificar no próprio solo é um direito reconhecido abstratamente.
Contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico,
que permite classificar a propriedade como de estatutária, na medida em que os
proprietários se vêem obrigadas à obtenção de prévia licença.
Um dos princípios tradicionais de Direito Urbanístico é a subsunção de que
toda a atividade, que implique controle prévio do uso artificial do solo, tem a finalidade
de assegurar a conformidade desses princípios às normas aplicáveis em cada caso.
A licença urbanística é, pois, um instrumento de controle prévio da atividade
edilícia, verificando se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenação
urbanística aplicável, permitindo que seu objeto básico obedeça ao conteúdo da própria
licença, normalmente definido no projeto técnico apresentado.
Esse meio de fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estado
na propriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estão
sendo contrariados os interesses gerais. Concede-se o direito ao proprietário de usar
e desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitações
estabelecidas em lei.
Assim, as licenças urbanísticas não são consideradas como desenvolvimento
de atividades de planejamento, mas de exteriorização da atuação de regulação
urbanística, exercendo uma função de instrumento de polícia urbanística. E, se de um
lado, as licenças de edificações são autênticos atos de execução dos preceitos da lei e
dos planos urbanísticos, de outro lado, configuram-se em instrumento de controle de
legalidade urbanística.
Já superada a estéril polêmica que dividia a doutrina sobre a natureza jurídica
das licenças urbanísticas – há os que sustentavam que fosse um ato declaratório de
direito, a exemplo de Tomás-Ramon Fernández (2004, p. 208), em seu clássico Manual
de Direito Urbanístico e os que defendem ser um ato constitutivo de direito, a exemplo
de Estévez Goytre (2002, p. 457-458), em obra de título idêntico – pode-se afirmar
que a licença, desde o momento que se limita a comprovar que o pedido está conforme
o planejamento aplicável, é um ato meramente declarativo de direito.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
397
Isso parece claro ao se partir da premissa de que as licenças urbanísticas são
atos administrativos de poder e autoridade pública, cujo objetivo é o de controlar
previamente a atuação do administrado, determinando o conteúdo do direito
urbanístico aplicável ao caso concreto, declarando e de nenhum modo constituindo,
o direito de propriedade, submetido ao princípio da legalidade urbanística, outorgando,
conforme as previsões da legislação de ordenamento do solo e do planejamento
urbanístico, uma garantia de sua observância pelo proprietário, como assevera Lemus
(1999, p. 203): “[...] en definitiva, la licencia municipal constituye um acto de control
preventivo, meramente declarativo de um derecho preexistente dei solicitante,
atribuído por el ordenamiento civil y urbanístico”.
Entretanto, para Di Pietro (1999, p. 32), essa licença não pode ser revogada
sem que o proprietário seja devidamente indenizado, pois implica reconhecimento
do direito de construir. Parte da jurisprudência pátria tem reconhecido esse direito
como um direito subjetivo, todavia, somente a partir do momento em que o proprietário
dê início à construção24.
A licença urbanística, de maneira geral, está condicionada ao cumprimento
efetivo de todas as obrigações e cargas que se impõem ao proprietário, dentro dos
prazos previstos na legislação.
A doutrina brasileira, por sua vez, quando trata da natureza jurídica da licença
se atém à questão de ser ato discricionário ou vinculado, não analisando o aspecto de
ser ato declaratório ou constitutivo como o direito espanhol25. Quanto a esse ponto,
não existe divergência, pois há unanimidade em se afirmar ser um ato vinculado ou
regrado, pois só se outorga essa licença sobre as previsões da lei e dos planos
urbanísticos aplicáveis. Cabe à Administração limitar-se a avaliar as circunstâncias
objetivas do caso concreto, ou seja, se estão ou não compatíveis com a legislação que
ordena o solo urbano, como refere Santos (2001, p. 109).
Se as solicitações da Administração forem atendidas e tudo estiver em ordem e de acordo
com a legislação edilícia, a licença deverá ser outorgada. Por esta razão é que a licença tem
caráter vinculado, não podendo ser refutada, por exemplo, se existir decreto considerando o
imóvel de utilidade pública para fins de desapropriação. Somente esta consumada autorizaria
o Poder Público a indeferir o requerimento do interessado.
Meirelles (2000, p. 187) também classifica como ilegal a recusa de aprovação
de projeto de construção ou mesmo de plano de loteamento, pelo fato de haver sido
24
Jurisprudência: STF, 2ª Turma, RE nº 85.002-SP, Rei. Min. Moreira Alves, j. 03.12.1976, DJU 11.03.1977.
25
Apenas Oswaldo Aranha Bandeira de Mello apud Renata Peixoto (Disponível em: <www.direito.ufba.net/
mensagem/renatapeixoto/da-licencaparaconstruir.doc>. Acesso em: 25 jul. 2004) classificava as licenças para
edificar como ato administrativo constitutivo-formal, uma vez que entendia consistir em declaração recognitiva
de direito, de asseguramento da situação jurídica e que ensejava o desfrute de situações preexistentes.
398
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
editado decreto expropriatório da área, ou mesmo plano de obras públicas, que
abranjam o terreno, pois, qualquer circunstância de futuro, não concretizada, não tem
o condão de impedir a construção particular, sem que o proprietário seja indenizado.
Quanto à extensão do dever de se obter prévia licença, em regra, alcança todos
os atos de edificação e uso do solo, que signifiquem uma transformação material.
Sua enumeração será tratada em tópico próprio, observando-se a legislação do
município de Manaus.
2.1.1. Espécies de licenças urbanísticas
São em número de quatro, as espécies de licença urbanística, na classificação
adotada por Silva (2000, p. 421), ao considerar o seu objeto: (a) as licenças para
edificar ou para construir; (b) as licenças para reformar; (c) as licenças para
reconstrução; (d) e as licenças para demolições. O autor dá destaque para as licenças
de edificação e demolição, por se constituírem como instrumentos de controle de
aplicabilidade das normas de ordenação urbana. O levantamento estatístico das licenças
expedidas no Município de Manaus, classificadas por casa espécie, encontra-se nos
Anexos VI (ano de 2000), VII (ano de 2001), VIII (ano de 2002), IX (ano de 2003) e
X (até maio de 2004).
Para o autor supramencionado, a licença para edificar vai além da simples
noção de “remoção de limites”, tão arraigada na doutrina estrangeira, principalmente
na espanhola26, que a considera uma autorização de regime especial, questão já
superada com a separação do direito de construir do direito de propriedade. E explica:
A licença para edificar constitui mais que simples remoção de obstáculos; constitui técnica
de intervenção nas faculdades de edificar, reconhecida pelas normas edilícias e urbanísticas,
com o objetivo de controlar e condicionar o exercício daquelas faculdades ao cumprimento
das determinações das mencionadas normas edilícias e urbanísticas, incluindo as
determinações dos planos urbanísticos. Ela é, como nota G. Spadaccini, “um ato que não se
exaure com a remoção de um limite, mas que constitui, além disso, novos limites para aquela
atividade privada que deve ser exercida pelo sujeito”. Seu escopo – segundo esse mesmo
Autor – é consentir que a concreta atividade construtiva (edificatória) do particular opere
com pleno respeito das normas gerais postas pelos planos reguladores e pelos regulamentos
edilícios comunais (grifo nosso). (SILVA, 2000, p. 422-423).
Outra classificação, utilizada pela doutrina espanhola, diz respeito ao momento
e efeitos das licenças. São as referentes às obras provisórias, às licenças condicionadas
26
La licencia urbanística es un acto administrativo de autorización por cuya virtud se lleva a cabo un control
prévio de la actuación proyectada por el administrado verificando si se ajusta o no a las exigências del interes
público tal como han quedado plasmadas en la ordenación vigente: si es esta la que determina el contenido del
derecho há de ejercitarse ‘dentro de los limites y con cumplimiento de los deberes’establecidos por el ordenamiento
urbanístico (ESTÉVEZ GOYTRE, 2002, p. 456).
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
399
e às definitivas (GONZÁLEZ, 2003, 215-219). No Brasil, para as obras provisórias
ou precárias, como a instalação de alojamento de pessoal ou depósito de material, o
alvará não será de licença e sim de autorização.
Na Espanha, apesar da natureza das licenças urbanísticas ser de igual modo
vinculada, tem-se admitido a possibilidade, no ato da concessão, de introduzir cláusulas que evitem sua denegação. Assim, pode-se estabelecer uma condição suspensiva para o início da edificação ou para sua finalização frente a um acontecimento
futuro, contudo, em todo caso, o condicionamento não pode estender-se além do
termo contratual (GOZÁLEZ, 2003, p. 226). Já no Brasil, a praxe é a concessão de
prazo no procedimento para correção ou adequação, caso o projeto não atenda a
todas as exigências, segundo Di Petro (1999, p. 32). Ressalta-se que a denegação do
plano, sem que se dê oportunidade ao requerente de corrigir, complementar ou esclarecer dúvidas, é considerada por alguns autores, como Meirelles (2000, p. 187), uma
ilegalidade.
Aprovado o projeto, com o preenchimento de todos os requisitos pelo requerente
legitimado, expede-se o alvará de licença.
2.1.2 Pressupostos para obtenção da licença para edificação
A parte legítima para efetuar o pedido de licença para edificação, denominada
de sujeito passivo, é o legítimo possuidor da terra, o proprietário, ou seja, é a pessoa
física ou jurídica, privada ou pública, que precisa exercer o direito de edificar e,
consequentemente, se submeter à outorga do Poder Público. Já o sujeito ativo é a
entidade ou órgão emissor da licença (Prefeitura, Empresa de Urbanização etc.). Em
Manaus, o órgão competente para expedir o alvará de licença para construir é o Instituto
Municipal de Planejamento – IMPLURB, autarquia que teve sua criação por meio de
lei específica (art. 133 do Plano Diretor).
Os documentos a serem apresentados, em regra, são os seguintes: título de
propriedade ou compromisso de compra e venda; memorial descritivo da obra; peças
gráficas de acordo com o modelo adotado pelo respectivo órgão competente;
levantamento topográfico para que sejam verificadas as dimensões, área e localização
do imóvel. Entretanto, para cada tipo de construção (edificação, instalações,
reconstruções, reformas, demolições, construção de muros e gradis no alinhamento
da via pública etc.) a documentação requerida vai variar.
A documentação exigida para licenciamento urbanístico no Município de
Manaus está discriminada no Código de Obras e Edificações do Município de Manaus,
Lei nº 673, de 4 de novembro de 2002, posteriormente alterada pelas Lei nº 715, de
11 de dezembro de 2003 e Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004.
400
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
2.1.3. Procedimento para obtenção da licença para edificação e
normas aplicáveis em Manaus
No caso específico de Manaus, o Código de Obras e Edificações foi instituído
pela Lei Municipal nº 673, de 4 de novembro de 2002, com as alterações através da
Lei nº 715, de 11 de dezembro de 2003 e da Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004 e suas
disposições aplicáveis a obras novas, reformas, ampliações, acréscimos, reconstruções
e demolições.
O procedimento para obtenção da licença para construir está previsto a partir
do art. 5º ao 32º do Código de Obras e Edificações. E os projetos somente serão
aceitos se estiverem assinados e sob a direção de profissionais registrados no Conselho
Regional de Engenharia e Arquitetura do Amazonas-CREA-AM.
Serão intervenientes no processo: o Corpo de Bombeiros em relação à segurança
contra incêndio; os órgãos federais e estaduais responsáveis pela proteção ao meio
ambiente e patrimônio histórico-artístico estadual, assim como os competentes para
implantação de projetos industriais; os concessionários de serviços públicos
(abastecimento de água, esgotamento sanitário, fornecimento de energia elétrica e
telefonia); as empresas fornecedoras de gás para abastecimento domiciliar ou industrial
e o órgão responsável pela fiscalização do exercício profissional, no âmbito das
matérias constantes do Código.
Com caracteres bem visíveis, deve ser afixada, na obra, placa de modelo oficial,
de no mínimo 1,20m X 0,60m em obras com testada de até 20m e de 2,00m X 1,00m
em obras de testada igual ou superior a 20m, que deverá conter, além do número do
alvará de construção, a indicação do nome, número de registro profissional e endereço
dos profissionais responsáveis tanto pela elaboração dos projetos, como pela a
execução das obras.
Além do Código de Obras, é aplicável ao procedimento do licenciamento
urbanístico a Lei de Uso e Ocupação do Solo, nº 672/2002, alterada pela Lei nº 752/
2004, uma vez que estabelecem a taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento,
recuo e gabaritos de acordo com cada unidade de estruturação urbana e corredores
urbanos de Manaus.
Como exemplo, cita-se a orla da Ponta Negra (Manaus), onde a taxa de ocupação
máxima é de 60%; o coeficiente de aproveitamento do solo máximo é de 1,2; o
gabarito máximo de edificação é 3 e os afastamentos mínimos são, 5,00m frontal e de
fundos e 2,50m laterais.
Quanto à construção à beira dos cursos d água, todavia, deve ser observado o
disposto no Código Florestal aplicável no Município de Manaus quanto à área non
edificandi, de preservação permanente, em face do § 1º do art. 25 da Lei de Uso e
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
401
Parcelamento do Solo local (Lei nº 672/2002), que prevê a aplicação daquele diploma
nacional. Ademais, o art. 108 da Lei nº 672/2002 prevê expressamente que, para os
cursos d água localizados na área urbana e área de transição27, será adotada a faixa de
proteção mínima de 30 metros, contados de cada margem de maior enchente.
Assim, esses procedimentos podem ser resumidos em três fases, como segue:
2.1.3.1. Primeira Fase – do pedido
O interessado deverá encaminhar requerimento, acompanhado dos documentos
exigidos pelo mesmo diploma legal, devendo contar do pedido: o nome do titular da
propriedade, da posse ou do domínio útil do imóvel, comprovado por documento
hábil; a natureza e o destino da obra; o endereço da obra e Certidão de Informações
Técnicas e/ou Certidão de Diretrizes de Projeto de Edificação.
O art. 20, do Código Edilício de Manaus, prevê que os projetos deverão ser
apresentados em três vias, assinados pelo proprietário e pelos responsáveis pelo projeto
e pelo executor da obra. O parágrafo único exige a procuração passada ao promitentecomprador quando a área foi adquirida a prazo. Os documentos que devem acompanhar
os projetos para outorga da licença, também descritos no Código de Obras e edificações
são elencados no artigo 21.
2.1.3.2. Segunda Fase – da instrução
Dispõe o art. 25 do Código de Obras e Edificações do Município de Manaus
que o a Municipalidade terá trinta dias úteis para se pronunciar sobre os processos
referentes à aprovação de projetos. Caso os projetos não estejam em conformidade
com a legislação vigente, o parágrafo 1º do dispositivo citado concede o direito ao
requerente de corrigi-los e reapresentá-los (no prazo de até trinta dias – parágrafo 2º),
sob pena de arquivamento, fixando-se um novo prazo de tramitação não superior a
trinta dias úteis. Essa oportunidade só poderá ocorrer por mais duas vezes, de acordo
com o parágrafo Terceiro.
2.1.3.3. Terceira Fase – da decisão
Prevê o Código de Obras do Município de Manaus, no seu art. 27, que, em
sendo aprovado o projeto, o órgão municipal competente (IMPLURB) poderá emitir
o alvará de licença para a obra nesse mesmo ato ou, em até cento e oitenta dias, a
pedido do interessado. E, em consonância com o parágrafo 1º, será entregue ao
27
O art. 46 do Plano Diretor de Manaus, Lei nº 671/12002, as áreas urbana e de transição são delimitadas pela Lei
Municipal de Perímetro Urbano, Lei nº 644/2002. A divisão da área urbana em Unidades de Estruturação UrbanaUES, por sua vez, é fixada a partir do art. 4º da Lei nº 672/2002, Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município
de Manaus, alterada pelo Anexo II da Lei nº 752/2004.
402
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
requerente duas cópias do projeto aprovado, sendo que uma terceira via e o arquivo
digital da planta de situação e locação, ficam arquivadas no IMPLURB.
O parágrafo 2º do art. 27, com a alteração da Lei nº 751/2004, dispõe que o
alvará de licença de construção conterá número de ordem, data, prazo de vigência,
natureza da obra, nome do proprietário, do construtor e do responsável técnico e o
visto do Poder Público Municipal, deixando ainda em aberto a qualquer outra
informação que seja reputada como essencial.
Em caso de haver modificações nas normas de edificação ou nas regras de
ordenamento (uso e ocupação) ou parcelamento do solo urbano, que venham a incidir
nos projetos já aprovados antes de iniciadas as obras, o art. 28 dá um prazo ao
proprietário para realizá-las no máximo em doze meses. Findo esse prazo, o projeto
deverá se adaptar à nova legislação de acordo com o parágrafo único desse mesmo
dispositivo. Ressalte-se que início da obra, de acordo com o artigo 29, é qualquer
serviço que modifique as condições da situação preexistente no imóvel.
Em relação à alteração no projeto, depois de aprovado e expedido o alvará, o art.
30 estabelece que o interessado deverá requerer a modificação, acompanhado da documentação exigida pelo IMPLURB. Todavia, será dispensado novo alvará se as alterações
não implicarem em modificações contempladas na legislação aplicável ou então não
importem em acréscimo da área construída (§ 1º). Caso contrário, será expedido novo
alvará de construção, mediante o pagamento das taxas concernentes à alteração (§ 2º).
Mas o alvará de licença pode perder a validade de aprovação, nos molde do
art. 31, se: (a) a obra não for iniciada no prazo de dois anos e não houver sido renovado;
(b) os serviços de construção não forem concluídos no prazo de dois anos e não
houver sido renovado.
Essa renovação do alvará de licença deve ser requerida antes de vencido o
prazo de validade, pagando novos emolumentos (§ 1º). Porém, quando houver
interrupção nos serviços de construção, com licença aprovada, essa paralisação deve
ser comunicada ao Poder Público para que o interessado possa ser beneficiado com o
prazo restante no concedido para sua execução (§ 2º).
A seguir, prevê o Código de Obras e Edificações de Manaus, no art. 32, a
hipótese de revogação do alvará de licença, por ato do Prefeito Municipal, a qualquer
tempo, com fundamento no poder de polícia, e motivado por razões de interesse
público ou de segurança justificáveis.
3. O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE MANAUS
O Plano Diretor do Município de Manaus, especificamente em relação ao
Licenciamento Urbano, dispõe ser atribuição da Municipalidade licenciar, autorizar
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
403
e fiscalizar o uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, instituindo, como
instrumentos complementares, os estudos Prévios de Impacto de Vizinhança e
Ambiental (art. 71 e parágrafo único).
O art. 72, do Plano Diretor de Manaus, determina ser necessário contemplar
efeitos positivos e negativos de um empreendimento ou atividade sobre a qualidade
de vida da população residente na área e em suas proximidades. Assim, o Poder
executivo Municipal poderá exigir o prévio Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).
Por sua vez, o art. 73 remete às leis de parcelamento e de uso e ocupação do solo
urbano definir quais empreendimentos e atividades que estariam sujeitas ao EIV para
a aprovação do projeto, obtenção de licença ou autorização, seja de natureza pública
ou privada.
A competência para elaborar o EIV está prevista no parágrafo único do art. 73,
que legitima o próprio empreendedor, seja público ou privado, sendo que esse resultado
será objeto de análise e parecer pelo órgão de planejamento urbano.
No art. 74 são delineados alguns objetivos que justificariam a feitura do EIV,
dentre eles, assegurar o controle social da intervenção; analisar a capacidade de
adensamento da área objeto da intervenção; fixar a demanda gerada com a intervenção
por equipamentos urbanos e comunitários; prever a valorização imobiliária advinda
de qualquer tipo de concessão; dimensionar a geração de tráfego e a demanda por
transporte público; garantira a qualidade da ventilação e circulação e preservar a
paisagem urbana e os patrimônios natural e cultural.
O art. 75 deixa claro que o EIV não substitui a elaboração e aprovação do
Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EPIA, nos termos da legislação ambiental,
assim como não isenta de avaliação urbanística especial, quando lei local assim o
prever.
4. O CÓDIGO DE OBRAS E EDIFICAÇÕES DO MUNICÍPIO DE
MANAUS
O uso e ocupação do solo, que deve ser autorizado pelo Poder Público
Municipal, deve ser formalizado através do documento denominado de Habite-se.
Assim, terminada a obra, deve o proprietário requerer que seja realizada uma vistoria,
anexando-se os documentos necessários. A lei de igual modo discrimina os documentos
necessários à obtenção do Habite-se por obras que se prestem a outros usos.
O Código de Obras também já estabelece que requisitos devem ser verificados
como satisfeitos por ocasião da vistoria para que o Habite-se seja expedido, advertindo
que nenhuma construção pode ser habitada sem que tenha havido autorização por
parte do Poder Público Municipal.
404
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Todavia, há previsão expressa de concessão de habite-se parcial, quando a
edificação tiver partes independentes, por exemplo, com parte para uso comercial e
parte para uso residencial, desde que possam ser utilizadas separadamente, ou, ainda,
quando existir mais de uma construção dentro do mesmo terreno.
5. REVISÃO E EXTINÇÃO DAS LICENÇAS
Existem quatro formas de revisão das licenças, que são concedidas por meio
de: anulação, revogação , cassação e declaração de caducidade, gerando efeitos
diversos (José Afonso da Silva, 2000, p. 429-433; Márcia Walquíria Batista dos
Santos, 2001, p. 126; Patrícia Ulson Pizarro Werner, 1998, p. 318-319; Renata Peixoto
(Disponível em: <www.direito.ufba.net/ mensagem/renatapeixoto/dalicencaparaconstruir.doc>.
Acesso em: 25 jul. 2004).
A revisão por meio da anulação se dá quando se apresente ilegalidade no
procedimento de licenciamento urbanístico, que tem caráter vinculado aos requisitos
impostos pela legislação aplicável. Assim, viciado o processo por infringência às
exigências normativas, que caracterizem vício de ilegalidade insanável, torna-se
inválido o procedimento de outorga. Esse reconhecimento pode se dar de ofício ou
por iniciativa de qualquer interessado, administrativa ou judicialmente.
A revisão mediante revogação ocorre quando sobrevêm o interesse público e
não se torna mais conveniente ou oportuno para a Administração Pública aquela
edificação para a qual já foi expedida licença de construir. Aqui se trata de controle
de mérito.
Ressalta-se que existe uma previsão, expressa no art. 28 e seu parágrafo único
do Código de Obras de Manaus, no sentido de que se houver mudança na legislação
antes de iniciadas as obras, o interessado terá ainda um prazo de 1 ano para iniciar a
obra segundo o projeto original, todavia, após este prazo o projeto deverá se adequar
à nova legislação. Portanto, no município de Manaus, essa situação só será motivo de
revogação da outorga, após um ano de inércia do proprietário, sem dar início à obra.
A revisão em face de cassação se impõe quando a ilegalidade surge na execução
da obra, em desobediência ao próprio projeto, à lei ou regulamento, que norteiam a
execução da obra ou, ainda, em desobediência às próprias exigências constantes do
alvará.
Assim, as licenças podem ser extintas através das formas de revisão analisadas,
a saber: anulação ou invalidação, revogação, cassação, caducidade e, ainda, em face
de seu esgotamento.
Os efeitos de cada uma das modalidades de revisão são diferentes.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
405
No caso de anulação, como se trata de ilegalidade, ainda que o proprietário
não tenha contribuído para a prática do vício, seu efeito é ex tunc, não gera direitos,
portanto, não é indenizável mesmo que tenha havido prejuízo. Há jurisprudência no
sentido de que essa anulação se dá mesmo que já tenha sido registrada a incorporação
de edifício em cartório de imóveis28.
A cassação da licença de construir está prevista no inciso IV do art. 39 do
Código de Obras de Manaus, como modalidade de sanção ao proprietário-infrator
que infringe as disposições desse estatuto de edificações, tendo o interessado o direto
ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Quanto à caducidade, esta advém do transcurso in albis de perempção. Seu
efeito é automático, não precisa a Administração Pública baixar ato declaratório.
No caso de Manaus, ocorre a caducidade da licença quando o proprietário não
constrói no prazo de dois anos ou quando, após este prazo, não providencia a renovação
da licença (art. 31, do Código de Obras).
6. TAXA DE LICENCIAMENTO
A taxa, não obstante ser espécie de género tributário, diferencia-se dos demais
por exigir uma contrapartida da Administração Pública diretamente ao contribuinte,
seja através da prestação de um serviço público, seja através do poder de polícia.
In casu, a taxa de licenciamento urbano é um tipo de taxa instituída pelo
exercício do poder de polícia, embasada sempre em uma atuação de fiscalização do
Poder Público. Nesse sentido, já se manifestou o Colendo Supremo Tribunal Federal,
ao entender como ilegal a cobrança de taxa de licença de localização e funcionamento,
sem que tenha havido o efetivo exercício do poder de polícia29. Entretanto, o pagamento
da taxa é condição sine qua non para a obtenção da licença de edificação. Em Manaus,
por exemplo, essa taxa foi instituída pelo art. 49, inciso IV do Código Tributário
Local (Lei 1.697, de 20 de dezembro de 1983).
O art. 54 e seu parágrafo único estabelecem o cancelamento da licença se a
obra não for iniciada no prazo concedido no alvará. Entretanto, esse prazo pode ser
prorrogada a pedido do contribuinte, se o tempo concedido for insuficiente para a
execução do projeto.
O art. 57 estabelece o momento de lançamento das taxas como sendo logo
após a expedição dos atos que constituem seus atos imponíveis e, no art. 58, que elas
serão lançadas de ofício.
28
Jurisprudência: STF, RE nº 86214, Rel. Min. Leitão de Abreu.
29
Jurisprudência: STF, RE nº 69.957-ES, RTJ 59/799.
406
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A Taxa para obtenção do Alvará de Edificação está fixada atualmente no
Município de Manaus, através do Decreto nº 6.435, de 26 de setembro de 2002 (Anexo
II). Ressalte, ainda, que, em Manaus, há previsão legal de que o Poder Público
Municipal poderá isentar dessas taxas e, ainda fornecer projeto, a pessoas de baixa
renda e com área não superior a 50m2.30
7. TRANSMISSIBILIDADE DA LICENÇA
A questão da transmissibilidade da licença é um tema pacífico tanto na doutrina
estrangeira quanto nacional (GOYTRE, 2002, p. 488).
Transmite-se automaticamente aos sucessores a alienação do imóvel, não sendo
lícito ao órgão municipal opor-se à expedição ou à transferência do alvará ao novo
proprietário ou compromissário comprador, segundo o entendimento de Meirelles
(2000, p. 190-191).
8. INFRAÇÕES E LEGALIDADE URBANÍSTICA
Constitui infração urbanística, em sentido amplo, qualquer vulneração da
legalidade urbanística. Essa transgressão, por sua vez, constitui o pressuposto da
eficácia sancionadora da norma e, qualquer que seja a modalidade da sanção, pode
revestir-se de nulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriação
forçosa, multa pecuniária etc.
A legislação urbanística seleciona, segundo uma técnica similar à da tipificação
penal, determinadas condutas especialmente contrárias aos fins da ordenação e da
ação urbanística dos entes públicos, conferindo à Administração Pública, responsável
pelo controle e gestão do urbanismo, o poder de aplicação de sanções, dentre elas, a
pecuniária.
A interpretação da conduta pela Administração Pública, subsumindo-a ao tipo
de ilícito urbanístico previsto na lei, assim como a aplicação da respectiva sanção,
guardado o princípio da proporcionalidade, são questões que a lei pode deixar uma
margem maior ou menor de discricionariedade ao agente competente, para efetivar o
controle.
Assim, num sentido mais restrito, são infrações urbanísticas as ações ou omissões que vulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico,
tipificadas e sancionadas expressamente.
30
Art. 11 da Lei Municipal nº 673/2002.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
407
8.1. Classificação das infrações urbanísticas
Quanto à qualidade e importância, classificam-se as infrações urbanísticas em
graves e leves. Outorga-se a qualificação de graves, às infrações que constituam
descumprimento das normas de parcelamento, uso do solo, altura, volume e situação
das edificações e ocupação permitida na superfície das parcelas, ou seja, todas aquelas
que incidam sobre os elementos determinantes do aproveitamento urbanístico dos
terrenos. Em qualquer caso qualifica-se de graves o parcelamento urbanístico do
solo não urbanizável e a realização de obras de urbanização sem a prévia aprovação
do Plano e Projeto de Urbanização exigido.
Atribui-se a qualificação de leves às infrações urbanísticas que infrinjam condições higiênico-sanitárias e estéticas ou coloquem em risco a normalidade do uso.
8.2. Infrações em matéria de uso do solo e de edificação
Em matéria de Edificação, as infrações ocorrem quando são encontradas
incompatibilidades com o regime urbanístico do direito de construir. Nesse caso, as
infrações podem ser graves ou leves, pois no direito de construir estão incluídos, não
apenas os regramentos padrões de construção, como altura, recuo etc., mas, também,
a parte higiênico-sanitária e estética.
Em Manaus, conforme entrevista com o Engenheiro Carlos Alexandre Rocha
Lima as infrações urbanísticas mais comuns quanto a edificação e uso do solo
ocorrem em relação ao afastamento e às construções de empreendimentos sem
estacionamento.
31
8.3. Infrações em matéria de parcelamento
No Município de Manaus, através de entrevista com a Engenheira Eloísa Alves
Serrão da Silva32, foi possível detectar que as infrações urbanísticas mais frequentes,
em matéria de parcelamento do solo, recaem sobre a comercialização dos lotes, antes
de conclusão do processo de concessão da licença, da disponibilização da necessária
infra-estrutura, que por vezes é até iniciada e não concluída ou, ainda, antes do registro
imobiliário.
8.4. Infrações em matéria de planejamento
Em Manaus, essas infrações são recorrentes, já que não existe meios efetivos
de prevenir as invasões de espaços urbanos por parte daqueles que chegam à cidade
31
Responsável pela Seção de Uso do Solo – SUSOL, do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus– IMPLURB.
32
Responsável pela Divisão de Parcelamento-DPS do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus – IMPLURB.
408
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
em busca de uma vida mais próspera, como não há política eficiente que dê condições de sobrevivência digna a essas pessoas no seu município de origem, ensejando
um crescimento desordenado da capital do Amazonas33. Nos assentamentos desses
imigrantes, a maioria das ocupações e das obras é irregular, além de não contar com
infra-estrutura mínima. A mais, seus proprietários se furtam – nisso não se diferenciando das classes mais favorecidas –, até por falta de condições, a sua regularização
perante o Poder Público.
9. CONTROLE E SANÇÕES DAS INFRAÇÕES URBANÍSTICAS NO
MUNICÍPIO DE MANAUS
O Código de Obras e Edificações do Município de Manaus destina os arts. 37
a 46 para o controle, sanções e procedimento de defesa das infrações urbanísticas.
Inicialmente dispõe sobre um controle preventivo, ou seja, de orientação aos
interessados sobre as normas urbanísticas e edilícias, se antecipando, desse modo, às
transgressões.
Depois, reconhece a legitimidade a qualquer pessoa para oferecer denúncias
quanto a infrações urbanísticas, assim como para mover ações que visem à proteção
do ordenamento urbanístico e edilício vigente.
A seguir, prescreve as sanções aplicáveis aos que infrinjam as regras
estabelecidas no Código de Obras e Edificações, dentre elas: o embargo (paralisação
imediata), a multa, a apreensão de equipamentos e ferramentas, a cassação do alvará
de licença, a interdição (proibição de uso de parte ou de toda a edificação) e a demolição
administrativa (destruição de parte ou de toda a edificação).
As sanções, sempre precedidas de notificação ao infrator, são pessoais, dirigidas
ao proprietário, possuidor ou detentor do domínio útil do imóvel.
A sanção de embargo da obra é aplicável: quando se tratar de edificação sem
projeto e sem licença; quando ocorrer discrepância com o projeto aprovado e que, ao
mesmo tempo, infrinja as regras contidas no Código de Obras; e, finalmente, quando
impuser risco à segurança de pessoas, bens, instalações ou equipamentos.
Já a apreensão de ferramentas ou equipamentos tem cabimento quando o
proprietário ou o executor da obra se insurge contra o embargo da mesma:
A cassação do alvará de edificação, por sua vez, é cabível quando a execução
da obra não se der em harmonia com o ordenamento urbanístico e edilício.
33
Resultado de entrevistas com os arquitetos Claudemir José Andrade e Paulo Fiúza, responsáveis pela Divisão de
Planejamento Urbano Integrado do Instituto de Planejamento urbano de Manaus-IMPLURB.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
409
A interdição já se aplica na hipótese da obra estar sendo utilizada sem o devido
Habite-se, quando a obra colocar em risco a segurança de pessoas, bens instalações
ou equipamentos e, finalmente, quando a obra for uma ameaça à saúde pública:
Estão previstos, ainda: (a) a possibilidade de aplicação de mais de uma pena
para o mesmo fato, na medida em que, adverte o Código de Obras, que a aplicação de
uma pena não exclui a de qualquer outra; (b) as sanções de embargo e de interdição,
que deverão ser devidamente comunicadas ao interessado, fixando-se prazo para
enquadramento às exigências que, se satisfeitas, ensejará a revogação daquelas; (c)
no caso de irreversibilidade das infrações, as medidas sancionadoras de embargo e
interdição poderão culminar com o cancelamento do alvará de licença e, ainda, com
a demolição parcial ou total da obra.
Em relação à despesa com a demolição total e parcial, consigna o Estatuto de
Obras de Manaus que correrá por conta dos responsáveis pela construção quando a
obra for incompatível e insanável frente à legislação ou quando colocar em risco a
segurança pública, caso em que essas medidas ocorrerão de imediato. O interessado
será notificado no mínimo vinte e quatro horas antes da demolição administrativa; e
a ação demolitória só será executada se for sem riscos à segurança pública, assim
como ao funcionamento dos serviços públicos.
Quanto à sanção administrativa pecuniária, esta será fixada independentemente das responsabilidades civis e criminais, sendo corrigida pelo índice oficial do
Município, em vigor na ocasião do pagamento. Será imputada nas seguintes hipóteses:
de haver sido apresentada documentação com indicação de falsidade; do início ou execução de obra sem licença autorizadora; da execução de obra em desacordo com o projeto aprovado; de infrações às disposições do Código de Obras e Edificações e de ocupação
de área sem o devido Habite-se. Em caso de reincidência, as multas terão um acréscimo
de 20% (vinte por cento) do valor original. Todavia, o pagamento da multa não implica
impossibilidade de aplicação de outras sanções, previstas no Código de Obras.
O Código de Obras e Edificações de Manaus trata, ainda, dos arts. 43 a 46, do
processo administrativo instaurado contra o infrator e seu direito de defesa, que será
instrumentalizado por meio de petição, no prazo de sete dias a partir da notificação.
A multa terá uma redução de 20% caso haja renúncia à defesa ou ao recurso
pelo infrator ou, ainda, seja a mesma satisfeita no prazo do recurso. O recurso
tempestivo da decisão de primeira instância, porém, tem o condão de suspender a
exigibilidade da multa. Transcorrido o tempo para defesa, os autos serão encaminhados
de imediato à autoridade competente para julgamento.
Antes de julgar, em restando questão duvidosa, poderá a autoridade condutora
do feito determinar a realização de diligência complementar e requerer parecer da
Procuradoria Geral do Município.
410
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Da decisão de primeira instância será dada ciência ao interessado através do
Diário Oficial do Município de Manaus.
10. A OMISSÃO DO PODER PÚBLICO MUNICIPAL E AS
CONSEQUÊNCIAS PARA A CIDADE E SEUS HABITANTES
Uma reflexão que se impõe, antes de se analisar a questão específica da omissão
do poder público no Município de Manaus, é a colocada por Osório (2002, p. 77),
quando trata das Diretrizes Gerais da Lei nº 10.257/2001, acerca da não coincidência
entre a cidade legal e a cidade real, questão também abordada por Rolnik (2003, p.
13), porém, em relação especificamente à cidade de São Paulo. Assim, Osório expressa
claramente que:
No contexto brasileiro de direitos não universais e de cidadania restrita, o abismo entre
conteúdo da lei e sua aplicação é imenso. Nas cidades, o reflexo deste distanciamento teve
um efeito devastador: nas áreas de ocupação ilegal, não amparadas pela legislação, há cada
vez menos financiamentos; não há controle urbanístico ou investimentos públicos. Na cidade
legal, consolidada e bem servida de infra-estrutura e serviços, concentram-se cada vez mais
os investimentos imobiliários e públicos, sob um zoneamento restrito, elitista, excludente
(OZÓRIO, 2002, p. 77).
Essa realidade não é diversa no Município de Manaus. Entretanto, observa-se,
de maneira geral, que os instrumentos de controle urbanístico do Poder Público
Municipal não estão sendo efetivados satisfatoriamente e no momento oportuno, pois
é comum defrontar-se com obras sendo construídas ou habitadas, sem a devida licença,
independentemente do fato de serem construídas em áreas consideradas nobres (ou
habitadas pela classe de maior poder aquisitivo) ou periféricas (áreas habitadas pela
população de baixo poder aquisitivo), como se poderá constatar no decorrer deste
trabalho.
Assim, apesar de a legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visível
e notória é a falta de estrutura do Poder Público Municipal de Manaus para fiscalizar
o crescimento desordenado da cidade, do que se pode concluir pela falta de efetividade
do controle urbanístico prévio, via licenciamento urbano ou mesmo via Habite-se, já
que também é comumente o manauara começar a usar e ocupar o solo construído
sem antes obter a licença de uso e ocupação do solo.
Verifica-se assim – ante a quantidade de loteamentos clandestinos34 e invasões
apuradas, assim como a quantidade de empreendimentos iniciados sem dar início ao
34
Loteamentos clandestinos são aqueles oriundos das invasões, portanto de posse ilegal; enquanto que os loteamentos
irregulares são aqueles advindos de domínio ou posse legal, mas que não atendem às exigências da legislação
urbanística.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
411
devido processo legal do licenciamento – haver uma certa liberdade de se construir
em Manaus. Infere-se, por conseguinte, que o Município não conta com uma infraestrutura ou aparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticas
ilegais.
Desse modo, uma maior eficiência funcional-administrativa, com o aumento e
treinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização, aliada a uma simplificação
do conjunto de regras legais que norteiam o procedimento, além de um controle
interno mais rigoroso com sanções rígidas aos servidores que fossem omissos ou
negligentes, levariam a expedição regular das licenças dentro do prazo estipulado.
Considerando-se, então, que a proteção do meio ambiente, dentre eles o artificial
ou construído35, não é exclusiva do Poder Público36. Como bem de uso comum do
povo (art. 225 da CF/88), incide em toda a coletividade, e, na hipótese de restar
evidenciada a falta de vontade política por parte do administrador municipal em
resolver a questão na esfera política-administrativa, uma das vias possível seria a
movimentação da maquina judiciária através da Ação Civil Pública para defesa da
ordem urbanística.
Esse instrumento processual teria o condão de obrigar o Poder Público
Municipal a melhor se estruturar e se aparelhar para cumprir seu papel de controle da
ordem urbanística, sob pena de gerar responsabilidade civil e improbidade
administrativa para aqueles que estão sendo negligentes e omissos no seu papel
fiscalizador. Portanto, em face da legitimidade de representação coletiva desse
instrumento, defende-se a sua utilização pelas associações, sindicatos, partidos
políticos e pelo Ministério Público.
Nesse aspecto, destaca-se, como importante, o posicionamento de Clarice
Duarte37 (no prelo), quando afirma que o grande desafio do Estado Social é o de
conter os abusos causados pela inércia estatal no cumprimento do dever de realizar
prestações positivas, de cumprir os objetivos e programas de ação governamental,
constitucionalmente delineados.
Noutro prisma, alerta Silva (2003, p. 128-130) não competir ao Poder Judiciário
a formulação de políticas públicas, mas, deixa evidente que, por meio de ações
35
Para SILVA (2002, p. 21), meio ambiente artificial é o constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado
no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes,
espaços livres em geral: espaço urbano aberto) enquanto que o meio ambiente natural é o constituído pelo solo,
a água, o ar atmosférico, a flora; enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação
recíproca entre as espécies e as relações destas com o ambiente físico que ocupam.
36
“A Carta Magna não atribui com exclusividade ao Estado o dever de defender e de preservar o meio ambiente
para as presentes e futuras gerações, mas impõe-no também à coletividade” (GOMES, 2003, p. 213).
37
A ser publicado na Revista São Paulo em perspectiva, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados –
SEADE.
412
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
judiciais, ele pode determinar aos governos que adotem medidas de preservação do
meio ambiente. Adverte, outrossim, competir ao Judiciário determinar ao executivo
que execute políticas públicas já contempladas na legislação, seja na Carta Política,
seja em leis já editadas pelo próprio governo.
11. A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO E DO AGENTE PÚBLICO
PELA OMISSÃO NO CONTROLE URBANÍSTICO
A omissão do Poder Público no exercício do poder de polícia tem como
consequências, conforme Di Pietro (1999, p. 38), a responsabilidade civil da pessoa
jurídica (art. 37, § 6º da CF/88) e ainda pode acarretar responsabilidade civil,
administrativa e, eventualmente, até criminal, do agente público que deixou de adotar
a medida cabível. A autora justifica essa assertiva em face do poder de polícia
caracterizar-se um poder-dever irrenunciável pela autoridade, que é obrigada a exercêlo no interesse público. A autora ainda tipifica como ato de improbidade administrativa
“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (inciso II, do art. 11
da Lei nº 8.429/92).
Não é diferente o posicionamento de Freitas (2002, p. 345)38, quando afirma
que o poder de polícia autoriza a aplicação de sanções como embargo de edificações
não licenciadas e sua demolição, deixando bem evidente, outrossim, que a hipótese
de eventual inércia da Administração Pública pode gerar tanto sua responsabilização
em ação civil pública por omissão, quanto do agente ou servidor público por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92, art. 11, II) e crime de prevaricação. Faz lembrar, ainda, o autor, que o servidor omisso poderá responder também
administrativamente em face de sua inércia.
Entretanto, o poder-dever de agir no controle urbanístico pelo agente público
competente advém de outros princípios maiores, disciplinadores da ação estatal, que
geram a ilegalidade da omissão e consequente responsabilidade, quais sejam, a
indisponibilidade do bem ambiental difuso que é a cidade e a obrigatoriedade de
intervenção estatal na ordem urbanística.
No que concerne à responsabilização penal, Oliveira (2000, p. 299-310)39
discorre acerca da responsabilidade dos agentes da Administração Pública em Delitos
Urbanísticos, desenvolvendo tese no sentido de inclusão dos funcionários públicos
responsáveis pela fiscalização e administração da ordenação do solo, como autores
38
Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo de São
Paulo-CAOHURB.
39
Promotor de Justiça Criminal de São Paulo.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
413
dos delitos urbanísticos e ambientais, a exemplo de crime praticado contra área verde,
em face de delito em comissão por omissão (art. 13, § 2º do Código Penal) porque
garante os bens jurídicos colocados sob sua guarda e proteção.
12. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA SOCIEDADE
ORGANIZADA NA DEFESA DA ORDEM URBANÍSTICA
Como já se referiu anteriormente, as infrações urbanísticas acontecem amiúde
na cidade de Manaus, independentemente da vasta legislação que regula a matéria.
Na capital amazonense, o comum é se construir para depois se tentar regularizar,
situação encontrada não apenas em pequenos investimentos, uma vez que os grandes
investidores também procuram fugir das taxas de licenciamento e de registro
imobiliário. Inúmeros seriam, por exemplo, os casos de construções em áreas de
preservação permanente, ou seja, a menos de 30m da maior enchente da margem dos
cursos d água no Município de Manaus40 (art. 25, combinado com o art. 108, ambos
da Lei nº 672/2000).
Verificada também a carência de infra-estrutura estatal para exercer um controle
efetivo das construções no município de Manaus, indaga-se: qual seria o papel do
Ministério Público, na qualidade de fiscal da lei e defensor dos interesses da sociedade
e qual a parcela de responsabilidade da sociedade organizada na luta pela efetividade
da legislação urbanística?
A omissão administrativa ilícita, violadora de interesses difusos e coletivos da
sociedade, por transgredir a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente,
além de caracterizar-se ato de improbidade administrativa, deve ser combatida pelo
Ministério Público41 através de instrumentos extraprocessuais, como o inquérito civil
público, a recomendação e o termo de ajustamento de conduta, como, também, caso
restem insuficientes esses meios, através de instrumentos processuais como a ação
civil pública, arrolada pelo Estatuto da Cidade.
Sua legitimidade para agir nesse caso é patente ante seu papel de fiscal da lei e
defensor dos direitos da sociedade, devendo zelar, in casu, pela ordem urbanística
como bem difuso reconhecido pelo Estatuto da Cidade a ser tutelado via Ação Civil
Pública.
40
Apenas para ilustrar esse exemplo, citam-se três grandes empreendimentos, todos implementados na cidade de
Manaus: o Condomínio House Ville onde reside a autora deste trabalho, construído pela Engeco; o
empreendimento Millenium, da construtora Unipar, que modificou o curso do Igarapé do Mindú para enquadrálo nos parâmetros legais; o Fiat Tropical, construído praticamente no leito do rio Negro, na Ponta Negra.
41
Art. 129, III, da Constituição Federal de 1988.
414
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Destaque-se que, em Manaus, foram criadas, desde 2001, duas Promotorias de
Justiça Especializadas na Proteção e Defesa da Ordem urbanística do Ministério
Público do Estado do Amazonas42, às quais compete, dentre outras atribuições, zelar
pela observância dos Planos Diretores, Código de Obras e edificações do Município
de Manaus, normas de gabarito e as demais normas edilícias de zoneamento urbanístico
de posturas, assim como pelo Estatuto da Cidade, lei federal nº 10.257 e demais
normas de uso do solo para fins urbanos, promovendo medidas judiciais, extrajudiciais
e/ou administrativas cabíveis.
Assim, essas atribuições, antes divididas entre a Promotoria de Justiça
especializada junto à Vara de Fazenda Municipal, Registros Públicos e a Promotoria
de Defesa de Consumidor, ganharam dois órgãos próprios e específicos para cuidar
da matéria, a exemplo do que já existia em outros Estados, não apenas para os
inquéritos civis e procedimentos investigatórios da área civil, mas, inclusive, com
atribuição criminal para promover as devidas ações penais por crimes praticados
contra a ordem urbanística.
Antes de abordar a questão do papel da sociedade civil organizada no controle
urbanístico da cidade, ante a comprovada omissão do Poder Público Municipal e
consequente responsabilidade de seus agentes, impõe-se tratar primeiramente do
género da qual é espécie, qual seja, a gestão democrática da cidade.
Visando consolidar o Estado Democrático de Direito e assegurar a participação
da comunidade na elaboração e implantação de plano de uso e ocupação do solo e
transporte, assim como na gestão dos serviços públicos, a Emenda Popular de Reforma
Urbana43 previa uma gestão democrática da cidade, ao criar instrumentos de
participação popular.
A Constituição incorporou vários instrumentos defendidos nessa emenda, a
saber: as audiências públicas, a constituição de Conselhos, plebiscito, o referendo
popular, a iniciativa popular e o veto popular.
Ressalta-se, nesse aspecto, que o art. 29, inciso XII, determina como obrigatória
a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”, como
requisito constitucional de sua validade.
Observa Saule Júnior (2001, p. 29) que, primeiramente, a iniciativa popular
foi prevista para leis de âmbito municipal, mediante subscrição de 0,5% do eleitorado.
42
Instaladas, aos 28 de dezembro de 2001, na cidade de Manaus, através do Ato PGJ nº 166/2002 da lavra de
S.Exa. o Sr. Procurador-Geral de Justiça, Dr. Mauro Luiz Campbell Marques.
43
Proposta apresentada à assembleia constituinte, oriunda de entidades, associações de classe, organizações nãogovernamentais, associações civis, movimentos e grupos sociais, que apresentou um conjunto de princípios,
regras e instrumentos sobre variados temas, como: direitos urbanos, propriedade imobiliária urbana, política
habitacional, transporte e serviços públicos, assim como as diretrizes para uma gestão democrática da cidade.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
415
Quanto ao veto popular, este instrumento teria o objetivo de suspender a execução de
lei através de 5% do eleitorado municipal, devendo ser submetida, automaticamente,
a referendo popular. Em segundo lugar, lembra o autor, que na falta de lei, foi defendida
a tese do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão,
referente à questão urbana, com o objetivo de dar eficácia às normas constitucionais,
sendo que, ao Ministério Público ou qualquer interessado, caberia o intuito de ser
determinada a aplicação direta da norma ou se fosse o caso, a sua regulamentação
pelo Poder Legislativo. A decisão favorável do Judiciário, nesses casos, teria força de
coisa julgada a partir de sua publicação. Todavia, sabe-se que esses instrumentos são
praticamente letra morta no ordenamento jurídico brasileiro.
No entender de alguns autores, a exemplo de Malaquias (2002, p. 316), como
o constituinte não adotou numerus clausus para designar as formas de democracia
participativa, podem ser estabelecidas outras formas de participação popular,
compatíveis com o princípio constitucional da democracia participativa, como fez os
art.s 43 e 45 do Estatuto da Cidade, não obstante tenha sido lamentavelmente vetado
o inciso V de seu art. 43, que previa a realização de referendo popular e plebiscito.
Segundo Matos (2002, p. 306), a técnica legislativa é inteligente, quando se
refere aos instrumentos para a gestão democrática das cidades, previstos pelo Estatuto
da Cidade, no seu art. 43, porque permite a participação popular através de outros
canais, que não os institucionalizados, como, por exemplo, o Movimento dos Sem
Terra – MST:
A redação dada pelo legislador ao caput desse artigo é de técnica conhecida, no jargão
hermenêutico, de numerus apertus, o que equivale a dizer que os instrumentos de gestão
democrática arrolados nos incisos são meramente exemplificativos, permanecendo a
possibilidade, pelos gestores públicos e pela sociedade civil, de outros instrumentos visando
ao mesmo objetivo – a gestão democrática da cidade. A técnica legislativa adotada é
inteligente, pois vai ao encontro das potencialidades criativas que se têm verificado no esforço
de reconstrução democrática das cidades brasileiras, sobretudo no aspecto específico da
ampliação participativa direta da população no exercício do poder político por outros canais
que não os institucionalizados [...] Um exemplo de repercussão em todo o país é o do
Movimento dos Sem Terra (MST), de inegáveis força social, capacidade de mobilização e
organização, e que pode ser apontado como grande responsável pela ampliação da discussão
da reforma agrária no Brasil”.
Muito embora o princípio participativo, na concepção Silva (2000, p. 145146) “caracterize-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos
atos de governo”, esse impasse participativo pode ser amenizado na medida em que
o Ministério Público possa assegurar a participação popular, pelo menos de forma
indireta, através da realização de audiências públicas, mas sempre com atenção e
cuidado a respeito da manipulação e do direcionamento de massas.
416
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Todavia, concernente ao papel da sociedade civil organizada, cabe aqui ressaltar,
ainda, a questão da governança44, ou seja, segundo Diniz (1996, p. 12), é a maneira
de como os cidadãos poderiam colaborar com “a capacidade da ação estatal na
implementação de políticas e na consecução de metas coletivas”. Bento (2003, p.
249), sobre o mesmo tema, assevera:
Para que iniciativas de participação popular e de controle social na administração pública
possam traduzir-se em democratização é mister que os cidadãos sejam chamados a participar
como tais, isto é, como cidadãos e não como clientes ou como representantes de interesses
corporativos.
Na visão de Bento (apud Santos, 1997, p. 12) essa participação “no conjunto
de mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da
sociedade [...] implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de
administração do jogo de interesses”, todavia, não deve ser apenas consultiva, a
exemplo de pesquisa de mercado, nem tampouco centrada em questões técnicas ou
de gerenciamento, mas deve discutir e, mais ainda, deliberar, sobre questões políticas.
Assim, conclui o autor, a participação deve atingir todos os níveis, que vão
desde a formulação de estratégias mais globais até as setoriais e locais de
implementação. In verbis:
Nesse sentido, a participação deve se desenvolver em todos os níveis, desde a formulação
das estratégias mais gerais de atuação do estado – compreendidas num projeto reflexivo de
relações Estado-sociedade e de desenvolvimento econômico, social e humano – até as políticas
setoriais e locais encarregadas de sua implementação (BENTO, 2003, p. 250).
Aplicando-se essa participação da sociedade civil organizada ao caso concreto
do licenciamento urbanístico, como forma de controle das construções, ela partiria
desde a formulação das políticas de planejamento e desenvolvimento urbano, até a
execução do controle urbanístico, através do próprio procedimento formal da licença
urbanística em si.
A partir desses resultados, onde foram delineados os principais aspectos do
licenciamento urbanístico da cidade de Manaus, proceder-se-á, sequencialmente, às
conclusões deste trabalho.
44
Para Bento (2003, p. 85) Governança diz respeito aos pré-requisitos institucionais para a otimização do
desempenho administrativo, isto é, é o conjunto dos instrumentos técnicos de gestão que assegure a eficiência e
a democratização das políticas públicas. Já para Santos, Maria Helena de Castro (1997, p. 341), “trata-se, com
efeito, do modus operandi das políticas governamentais, tendo em vista o contexto de complexidade e de
pluralidade em que irão incidir, e de como torná-lo eficiente e efetivo”.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
417
13. CONCLUSÕES
Com a sociabilização do direito de propriedade, a qual foi atribuída uma função
social, o Direito de Construir se dissociou do direito privado, passando a ser regido
pelo Direito Público, submetendo-se então às limitações administrativas com o fito
de se alcançar o bem-estar social, em face da prevalência do interesse público e
social sobre o domínio particular e a evolução da propriedade-direito para a
propriedade-função.
Assim, a liberdade de construir passou a ser limitada, não apenas pelo princípio
da normalidade de seu exercício, que condena a concepção de mau uso, de abuso ou
excesso na fruição – hipótese em que prejudica a segurança, o sossego e a saúde dos
que habitam nas vizinhanças –, mas, concomitantemente, por leis e regulamentos
que criam as denominadas limitações administrativas, que buscam o bem-estar no
convívio da coletividade nas urbes. Não se pode olvidar, desse modo, as íntimas
relações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico, submetido, como são,
as limitações urbanísticas.
O princípio da Função Social da Propriedade caracteriza-se justamente por
impor freio e contrapeso ao direito individual, determinando, por conseguinte, o dever
de condicionar a necessidade de requerimento da licença urbanística, nas edificações,
para o alcance do bem-estar coletivo. Este princípio se traduz no equilíbrio entre o
interesse público e o privado, pois depende do uso que se faz de cada propriedade.
Em outras palavras, o princípio da Função Social da Propriedade preconiza a realização
plena do urbanismo e do equilíbrio das relações da cidade, que significa a supremacia
do interesse público sobre o particular, inerente a qualquer sociedade e condição de
sua existência.
Desse modo, as restrições ao pleno e exclusivo gozo da propriedade não podem
ser entendidas como agressões ao poder de dominus, pois a preservação do meio
ambiente é considerada como um bem necessário à subsistência de toda a humanidade.
O Licenciamento Urbanístico, como procedimento preventivo de controle da
atividade urbanística, é norteado pelo princípio da legalidade, só podendo ser favorável
ao requerente quando preenchidos todos os requisitos impostos pelo texto legal.
Considerado como instrumento fiscalizador do ordenamento urbano, tem um papel
primordial na ordenação das cidades.
Um dos princípios tradicionais de Direito urbanístico é a subsunção de que
toda atividade, que implique uso artificial do solo, deve ser submetida a um controle
prévio, com a finalidade de assegurar a conformidade com as normas aplicáveis ao
caso. Essa fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estado na
propriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estão sendo
418
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
contrariados os interesses gerais. Portanto, concede-se o direito ao proprietário de
usar e desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitações
estabelecidas em lei.
As Licenças Urbanísticas, portanto, são instrumentos de controle prévio
urbanístico, assim como técnica de intervenção do Estado na propriedade. São atos
administrativos vinculados, estando submetidos ao regime jurídico de Direito Público.
Impõem deveres e os condicionam. Todavia, não podem ser denegadas quando
preenchidos todos os requisitos legais.
O direito de edificar no próprio solo é direito reconhecido abstratamente,
contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico,
que permite classificar a propriedade de estatutária, na medida em que os proprietários
se vêem obrigados à obtenção de prévia licença.
E, como instrumento de controle prévio da atividade edilícia, essa licença
verifica se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenação urbanística
aplicável, permitindo que seu objeto básico – a implantação da atividade de construção
de uma obra – permaneça conforme o conteúdo da própria licença, normalmente
definido no projeto técnico apresentado, ou seja, constata se a construção da obra se
ajusta às exigências de interesse público, como preconiza o ordenamento urbanístico
vigente.
As licenças, todavia, não são consideradas atividades de planejamento, mas
exteriorização da regulação urbanística, exercendo uma função de instrumento de
polícia urbanística. De um lado, são autênticos atos de execução de preceitos da lei e
dos planos urbanísticos; de outro, configuram-se como instrumentos de controle da
legalidade urbanística.
Nesse contexto, as Infrações Urbanísticas configuram-se como a vulneração
ou a ofensa da legalidade urbanística, constituindo-se como pressupostos da eficácia
sancionadora da norma, podendo revestir-se, qualquer que seja sua modalidade, em
nulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriação forçosa, multa
pecuniária etc.
Essas infrações podem ocorrer nas três áreas do ordenamento urbano: na fase
do planejamento, na do parcelamento do solo (loteamentos e desmembramentos) e
na de uso e ocupação do solo (atividade edilícia controlada via licenciamento
urbanístico).
Quanto às infrações urbanísticas que ferem o licenciamento urbanístico
(praticadas em face do uso e ocupação do solo), podem ocorrer em três momentos:
nas construções iniciadas sem a devida licença; nas modificações irregulares durante
a execução da obra, quando já expedida a licença provisória; e na habitação sem a
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
419
licença definitiva (Habite-se). Ressalta-se que no Município de Manaus são detectadas
largamente essas três modalidades de infrações urbanísticas.
Guardando técnica similar à da tipificação penal, essas ações ou omissões que
vulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico, subsumemse ao tipo de ilícito urbanístico previsto em lei, assim como à aplicação da respectiva
sanção, guardado o princípio da proporcionalidade, podendo a lei deixar margem de
discricionariedade ao agente competente para análise subjetiva da adequação da sanção
ao caso concreto.
Em Manaus, foram constatadas várias ocorrências de infrações: em matéria de
planejamento, principalmente por falta de controle migratório e pelas construções
desordenadas e incompatíveis com os planos urbanísticos; em matéria de parcelamento
do solo, pela comercialização de lotes antes da conclusão do processo de concessão
de licença, antes da disponibilização de infra-estrutura e antes de providenciar o
registro imobiliário; de uso e ocupação do solo (edificação), onde as irregularidades
mais comuns ocorrem em relação ao afastamento, como também em empreendimentos
sem estacionamento.
Nesse campo, a omissão do órgão fiscalizador pode ocorrer: por falta de
legislação; por falta de infra-estrutura para o controle (elemento estático); por falta
de infra-estrutura para efetivação do controle (elemento dinâmico); ou, ainda, por
inércia desidiosa do agente competente, trazendo sérias e graves consequências para
a cidade e seus habitantes.
Em Manaus, o costumeiro é construir-se primeiro para depois tentar regularizar,
mesmo em relação a grandes empreendimentos, onde os responsáveis tentam se furtar
ao pagamento de taxas do licenciamento e do registro imobiliário.
Apesar da legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visível e notória
é a falta de estrutura do Poder Público Municipal para fiscalizar o crescimento
desordenado da cidade. Infere-se, portanto, que a ineficiência do controle urbanístico
manauara ocorre através do fato de o Município não contar com infra-estrutura ou
aparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticas ilegais.
Assim, ao ser constatada a omissão do Poder Público Municipal de Manaus,
recomenda-se o aumento e treinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização,
aliada a uma simplificação do conjunto de regras legais que norteiam o procedimento,
além de um controle interno mais rigoroso, com sanções rígidas aos servidores que
não tenham sido ou não estejam sendo eficientes, buscando-se, com isso, a maior
cobertura legal das construções na cidade de Manaus, com a expedição regular de
licenças, dentro do prazo legal estipulado.
Sustenta-se, portanto, que a responsabilidade do órgão e dos agentes responsáveis pela omissão administrativa ilícita está plenamente configurada, pois transgride
420
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente a inação ou ação insuficiente à demanda, além de caracterizar-se como improbidade administrativa, devendo ser combatida tanto pelo Ministério Público quanto pela sociedade.
Essa responsabilidade pela inércia administrativa se dá tanto na esfera civil
quanto na esfera criminal, na medida que o meio ambiente construído é um bem
tutelado pela ordenação jurídica constitucional e legal brasileira.
A delimitação da responsabilidade em matéria de fiscalização e controle da
ocupação dos espaços urbanos é de fundamental importância para as cidades, porque
os delitos urbanísticos, além de infringirem a lei, comprometem o bem-estar social,
por vezes causando erosão, desmoronamentos, alagamentos e danos ambientais
irreversíveis.
Assim, tipificada a responsabilidade do Município e dos agentes competentes
pela ausência de eficiência no controle urbanístico na cidade de Manaus, recomendase que sejam apuradas as responsabilidades pela omissão e desrespeito à ordem
urbanística, independentemente da falta de infra-estrutura estática (conjunto de
elementos necessários à implementação do controle, como a quantidade de servidores
e sua qualificação) e dinâmica (elementos necessários ao exercício da efetiva
fiscalização no caso concreto), assim como da ausência de uma sistematização de
ordenamento e de ações.
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Planos Diretores, Participação Popular e a
Questão Indígena: Reflexões sobre o Texto
Constitucional e o Município de São Gabriel
da Cachoeira (AM)
MARIANA LEVY PIZA FONTES1
Advogada.
Após 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, o presente artigo
pretende estabelecer reflexões sobre uma questão específica, ainda não evidente
quando da realização da Assembleia Nacional Constituinte: as conexões e desafios
de se promover a participação popular na elaboração de planos diretores em
Municípios, cuja maioria da população é indígena.
A regulamentação do art. 182, a promulgação do Estatuto da Cidade e o
estabelecimento de prazos e requisitos de participação popular pelo Estatuto da Cidade
(art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 da Lei 10.251/2001) conjugado ao recente incremento
da urbanização na região amazônica observada na última década estabelecem novos
desafios para a gestão democrática das cidades no Brasil.
PLANEJAMENTO URBANO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O planejamento urbano no Brasil sofre mudanças significativas a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/
01). Este marco jurídico-urbanístico incorpora a crítica formulada ao modelo de
planejamento urbano no Brasil, especialmente àquele implementado durante o regime
militar.
O planejamento urbano brasileiro alimentou-se da matriz modernista/funcionalista implementada ao longo do século XX, cujas raízes iluministas e positivistas
1
Mestranda em Direito Urbanístico Ambiental pela PUC/SP. Cientista social formada pela Universidade de São
Paulo. Foi assessora técnica da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e atualmente
é Coordenadora Geral de Estudos e Pesquisas da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
428
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
baseavam-se na crença absoluta na ciência, técnica, racionalidade e neutralidade do
planejamento.
É durante o regime militar que essa concepção de planejamento urbano adquire
força e importância. São criados dois órgãos federais de planejamento (SERFHAU e
SAREM), uma quantidade inédita de Planos Diretores é produzida, órgãos municipais
de planejamento e escolas de arquitetura proliferam-se. O planejamento é tomado
como solução para o grande caos urbano. Tudo se resumiria a uma questão de eficiência
e competência técnica.
Paradoxalmente, é durante esse mesmo período que as cidades brasileiras mais
crescem “fora da lei”, com aumento expressivo de favelas, cortiços, loteamentos
irregulares e clandestinos em todo o país.
Essas diretrizes e sistemas de planejamento vigoraram até a década de 80.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte, esta concepção de planejamento
urbano burocrática e tecnocrática é colocada em cheque pela Emenda Popular da
Reforma Urbana, apresentada por uma série de movimentos sociais urbanos,
associações não governamentais (ONGs), entidades de classes, etc.2, e subscrita por
130.000 eleitores. A iniciativa popular propôs uma série de instrumentos para o
cumprimento da função social da propriedade urbana, bem como uma proposta de
gestão democrática das cidades, rejeitando a ideia de um plano-discurso, a ser
elaborado unicamente pelo Estado. O texto original da emenda popular da reforma
urbana não previa expressamente a expressão “plano diretor”, que acabou por ser
incorporado na própria definição da função social da propriedade urbana.
Conforme a explicação da urbanista Ermínia Maricato, indicada pelas entidades
signatárias da emenda para defende-la no Plenário Constituinte: “A rejeição ao plano
diretor significou a rejeição de seu caráter ideológico e dissimulador dos conflitos
sociais urbanos. Além de ignorar a proposta de plano diretor, a iniciativa popular
destacou a gestão democrática das cidades, revelando o desejo de ver ações que fosse
além dos planos”3.
2
Dentre elas a Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento de Defesa do Favelado (MDF),
Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), Coordenação Nacional
dos Mutuários e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) (Nelson Saule Júnior, Novas perspectivas do direito
urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor, p.
25.
3
Ermínia Maricato, As ideias fora o lugar e o lugar fora das ideias:planejamento urbano no Brasil. In Otília
Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2000, p.
175, apud, José Roberto Bassul, ob.cit., p. 82.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
429
Do embate constituinte, porém, nasce o capítulo “Da Política Urbana”, que
consagra o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento
urbano, obrigatório aos Municípios com mais de 20.000 habitantes (art. 182, § 1º,
CF).
Mais do que isso, o Plano Diretor passa a definir o conteúdo concreto do
princípio da função social da propriedade urbana (art. 182, § 2º, CF). Ressalte-se que
o texto constitucional, pela primeira vez, vincula a definição da função social da
propriedade ao processo de planejamento territorial municipal.
De um lado, o planejamento territorial não é mais considerado como intervenção
do Estado no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio restrito do
direito de propriedade, a respeito do qual a ordem constitucional permite a interferência
imperativa do Poder Público por meio da atuação da atividade urbanística.4
Consequentemente, por tratar-se de dispositivo ligado diretamente à delimitação
do próprio direito de propriedade5, não se aplicaria o art. 174 da Constituição Federal,
que determina que o planejamento será meramente “indicativo para o setor privado”.
O Plano Diretor é totalmente determinante para os proprietários privados, que a eles
são obrigados a ajustar seus comportamentos6.
De outro lado, o texto constitucional e, posteriormente, o Estatuto da Cidade
acabam por substituir a concepção do planejamento urbano municipal como processo
puramente técnico e neutro. A participação popular no processo de planejamento
municipal e, especialmente na elaboração dos Planos Diretores, passa a ser exigida
como condição obrigatória, sob pena de improbidade administrativa (art. 29, XII, CF
c/c art. 40 e 53 do Estatuto da Cidade).
Parte-se de um reconhecimento constitucional, de que embora tenha conteúdo
técnico, o planejamento é um processo político. Não existe, pois, planejamento neutro.
As ações de planejamento estão sempre voltadas para o futuro, voltadas para a
transformação social. E essa transformação social se dá tanto ao longo do tempo
como no espaço.7
4
José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 93.
5
Convém lembrar que a função social não deve ser confundida com limitação do direito de propriedade. Isto
porque as limitações administrativas dizem respeito ao exercício do direito pelo proprietário. De maneira distinta,
a função social interfere na estrutura do direito mesmo (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro,
p. 75)
6
Carlos Ari Sundfeld, O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.),
O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 50.
7
Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988,
p. 31.
430
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Trata-se, portanto, de visão que incorpora o processo político ao planejamento
urbano, garantindo a participação daqueles tradicionalmente excluídos da construção
das cidades. O processo de elaboração do Plano Diretor visa garantir uma esfera
política, democrática, capaz de construir consenso entre os mais diversos atores sobre
o futuro das cidades.
Este reconhecimento jurídico da necessidade de um processo político de
planejamento urbano nas cidades brasileiras adquire uma nova em complexa amplitude
no caso de Planos Diretores elaborados em Municípios situados na Amazônia,
especialmente naqueles situados em terras indígenas – sejam elas demarcadas ou
não.
OS ÍNDIOS E O PROCESSO PARTICIPATIVO
Dentre aqueles tradicionalmente excluídos do planejamento estatal no Brasil,
está a população indígena. O constituinte de 88 houve por bem considerar os índios
como sujeito de direitos, reconhecendo “ sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.” (art. 231, CF).
Com efeito, o texto constitucional menciona também as populações indígenas
(art. 22, inciso XIV) e a comunidade indígena (art. 232). Trata-se, pois do
reconhecimento de um sujeito de direitos sui generís. De um lado, os direitos indígenas
dizem respeito a uma comunidade cultural específica, ligada à raça (fator biológico)
e a valores (crenças, costumes, língua, tradições). Nesse sentido, há uma proteção
constitucional a cada uma das características peculiares das etnias presentes no
território brasileiro. Por outro lado, cada índio em particular é considerado brasileiro
e é dotado dos benefícios da nacionalidade e cidadania (arts. 1º, parágrafo único e
art. 5º da Lei 6.001/73).8
O aumento dos processos de urbanização na região amazônica impõe a juristas
e urbanista uma leitura conjunta desses direitos indígenas e do capítulo da Política
Urbana. Com efeito, a presença de uma enorme diversidade étnica em um mesmo
território e a necessidade de se garantir processos efetivamente democráticos na
aprovação de Planos Diretores colocam novas questões para o Direito Urbanístico
brasileiro. É o que se verá a partir da análise do Município de São Gabriel da Cachoeira.
8
Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito Constitucional. Liberdade defumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos
e outros Temas, p. 503.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
431
O MUNICÍPIO DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA9
O Município de São Gabriel da Cachoeira localiza-se no noroeste do Estado
do Amazonas em plena floresta amazônica, na fronteira entre Brasil, Venezuela e
Colômbia. Sua extensão é de 109.108 km2. Trata-se de um dos maiores municípios
brasileiros.
Além disso, sua população é predominantemente indígena – 81,66% do
território do Município de São Gabriel da Cachoeira são terras indígenas demarcadas10.
O território municipal congrega mais de 23 povos indígenas distintos. São etnias
residentes do Município de São Gabriel da Cachoeira: Arapaso, Baniwa, Barasana,
Baré, Desana, Hupda, Karapauã, Kubeo, Kunipako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob,
Piratabuya, Potigua, Guiano, Taiwano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana, Werekena,
Yanomami.
A diversidade étnica se expressa também na quantidade de línguas faladas por
essas comunidades: são mais de 20 línguas distintas, provenientes de troncos
linguísticos específicos, tais como o Tupi, o Tukano Oriental, o Maku, o Aruak e
Yanomami. O Município de São Gabriel da Cachoeira co-oficializou, inclusive, as
línguas Nhengatu, Tukano e Baniwa (Lei municipal nº 145/2002) ao lado do português,
idioma brasileiro oficial (art. 13 da Constituição Federal).
Nesse contexto étnico-cultural, São Gabriel da Cachoeira elaborou recentemente
seu Plano Diretor, que foi aprovado pela Lei municipal nº 209/06. Não obstante o
enorme leque de questões jurídicas importantes trazidas pelo Plano Diretor de São
Gabriel da Cachoeira – conflitos fundiários, as terras indígenas e a questão federativa,
o urbano e o rural na Amazônia11, sobreposição de unidades de conservação e terras
indígenas, entre outros – a construção de um processo democrático em um imenso
território com a presença de diferentes etnias já é, em si, um desafio.
A elaboração de Planos Diretores participativos é condicionada a uma série de
requisitos, tais como a coordenação compartilhada entre governo e sociedade civil12;
a publicidade (art. 4º da Resolução 25 e art. 40, § 4º, II do Estatuto da Cidade), e a
9
A análise do processo de elaboração do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira foi elaborada com base nos
relatórios elaborados pelo Instituto Polis (Instituto de Assessoria, Pesquisa e Formação em Políticas Públicas) e
pelo ISA (Instituto Socioambiental).
10
Este número pode chegar a 90% com a conclusão dos processos de demarcação das terras do Balaio e Marabitana
Cué Cué.
11
Sobre uma leitura jurídica mais ampla sobre o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, vide Nelson Saule
Júnior e outros, Plano Diretor no Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos Relevantes da Leitura
Jurídica. In Direito Urbanístico Brasileiro: vias jurídicas da Política Urbana, pp. 235 a 284.
12
(art. 3º, § 1º da Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades).
432
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
diversidade do processo participativo, através da realização de debates por segmentos,
por temas e por divisões territoriais (art. 5º, inciso I, da Resolução 25).
Ora, como garantir um processo participativo em um território cujas etnias
falam línguas distintas? Como se compartilhar um processo de elaboração de Planos
Diretores quando a distância a ser percorrida entre a sede do Município, pode durar
dias e com altos custos? Como se estabelecer divisões territoriais para os debates
quando cada pedaço de terra possui um altíssimo valor simbólico, cultural, mítico?
São questões que surgem a partir da realidade amazônica concreta e das recentes
transformações no processo de urbanização brasileiro. O texto constitucional e o
novo marco jurídico urbanístico brasileiro precisam, pois, ser analisados a partir desses
novos desafios, articulando o planejamento territorial e os direitos indígenas,
articulando não só capítulos do texto constitucional, mas o próprio Estatuto das Cidades
e Estatuto do índio, de modo a garantir a construção de cidades mais justas e a
preservação de culturas tão distintas.
BIBLIOGRAFIA
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Subsecretária de Edições Técnicas, 2005.
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Fabris, 2007. SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro, 4 edição, São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006.
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Ferraz (coord.), O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 2. ed., São Paulo,
Malheiros Editores Ltda., 2006.
Proposta de Compensação Fiscal para
Assentamento de Populações Carentes de
Manaus/AM
MIGUEL ANGELO FEITOSA MELO,
SIMONE MINELLI DE LIMA TEXEIRA
Alunos do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA).
RESUMO: É dever-poder dos Municípios promoverem políticas de
desenvolvimento urbano, destinadas à realização das funções sociais da cidade
e ao bem-estar de seus habitantes (art. 182, caput, CF). Entende-se ser a tributação,
com finalidades extra fiscais, um dos instrumentos idôneos para a consecução
desses objetivos. O exercício de atividades produtivas, no meio urbano, embora
benéfico do ponto de vista estritamente econômico, gera externalidades negativas,
como a formação de favelas, a ocorrência de invasões de áreas de proteção
ambiental, trânsito congestionado etc. Não obstante, os detentores dos meios de
produção não socializam seus ganhos econômicos, que, para serem auferidos,
tiveram a colaboração da comunidade. Assim sendo, faz-se oportuna a intervenção
do Ente Público Municipal para, servindo-se das competências tributárias que
lhe são conferidas pela Constituição Federal, buscar induzir (indução positiva)
os grandes agentes produtivos, segundo o modelo de gestão redistributiva, a
promoverem projetos de cunho social que ensejem melhoria na qualidade de
vida dos habitantes da cidade, oferecendo, como contrapartida a essas ações,
isenções ou reduções de impostos, taxas e contribuições de melhoria municipais.
Respeitados os princípios constitucionais tributários, reputa-se viável a
instrumentalização de tributos para a efetivação de políticas de desenvolvimento
urbano. Ademais, dar-se-ia aplicabilidade aos princípios jurídicos ambientais
da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimento
sustentável, dentre outros. Sob esta visão, é que se propõe, para o Município de
Manaus-AM, detentor de inúmeros problemas de ordem urbanística, a
instrumentação dos seus tributos para que a iniciativa privada seja incitada a
viabilizar projetos de assentamento de populações carentes residentes em favelas
e áreas de proteção ambiental, localizadas na Cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Municípios; Ocupações Irregulares; Política Urbana;
Tributação Extra-Fiscal; Assentamentos; Princípios Ambientais e Tributários.
434
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
SUMÁRIO: Introdução. 1. O crescimento urbano e a formação de favelas e
ocupações irregulares; 2. O capítulo II (arts. 182 e 183), do Título VII, da
Constituição Federal/88 e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001); 3. A tributação
extra-fiscal como instrumento de política urbana; 4. As “invasões” e demais
ocupações irregulares na Cidade de Manaus-AM; 5. Proposta de compensação
fiscal para assentamento de populações carentes de Manaus-AM. Conclusão.
Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca avaliar a possibilidade jurídica de se implementar
políticas de crescimento urbano, utilizando-se de instrumentos tributários.
Após se defender a viabilidade jurídica de programas dessa ordem, sendo
expostas, ao mesmo tempo, as condições para a sua efetivação, tendo em vista,
principalmente, as limitações constitucionais ao poder de tributar, representadas pelos
princípios constitucionais tributários, aborda-se no texto o problema das favelas,
invasões e demais ocupações irregulares na área urbana do Município de Manaus,
para o que é suscitada e defendida proposta de compensação fiscal para assentamento
de populações carentes de Manaus-AM.
1. O CRESCIMENTO URBANO E A FORMAÇÃO DE FAVELAS E
OCUPAÇÕES IRREGULARES
Sabe-se que, hodiernamente, são os centros urbanos o local em que se
desenvolve a maior parte das atividades produtivas no Brasil. Essa realidade veio se
construindo nos últimos quarenta anos e modificou a distribuição populacional
brasileira, que, até a década de 1960, era fortemente concentrada no meio rural,
conforme tabela abaixo:
1960
2000
População urbana
45%
80%
População rural
55%
30%
Fonte: IBGE, 2000.
Tal metamorfose que ensejou a concentração da população no meio urbano foi
decorrente do crescimento dos setores secundário e terciário da economia brasileira,
sentido a partir do início da década de 1970.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
435
Efetivamente, na medida em que as indústrias e o comércio brasileiros passaram
a ter capacidade de produção expressiva, a oferta de mão de obra nos grandes centros
foi majorada, o que fez com que grandes contingentes de pessoas que viviam nas
zonas rurais se deslocassem para as Cidades grandes, em busca do emprego com
carteira assinada, de melhores condições educação e saúde para a família, da
previdência etc.
Foi nesse contexto, portanto, que se formaram os principais centros urbanos
brasileiros: pessoas da zona rural que emigraram para as Cidades, cuja indústria e
serviços precisavam de mão-de-obra para se desenvolver.
Ocorre que ao grande contingente populacional que se concentrou nas Cidades
não foram oferecidas, ao longo do tempo, condições adequadas de infra-estrutura
urbana, de acesso à terra urbana, à moradia (art. 6º, da Constituição Federal/88 – CF/
88), ao transporte e a outras necessidades básicas.
Ao invés disso, o operariado desses centros viu campear a poluição do ar, a
degradação dos rios, o congestionamento do trânsito, a diminuição dos espaços de
lazer, o aumento da criminalidade e a impossibilidade de acesso a um terreno urbano
onde pudesse construir sua moradia, rodeada de serviços urbanos essenciais à
qualidade de vida de sua família.
Tal massa de trabalhadores, alijada das condições referidas, em especial do
acesso à terra urbana, supervalorizada e especulada nas “áreas legais” da Cidade,
estabeleceu-se muitas vezes em “invasões”, como áreas de proteção ambiental, onde
cresceram favelas cujas condições, sob o ponto de vista urbanístico, é despiciendo
delinear.
2. O CAPÍTULO II (ARTS. 182 E 183), DO TÍTULO VII, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL/88 E O ESTATUTO DA CIDADE (LEI 10.257/2001)
Atento a essa situação, o legislador constituinte reservou o capítulo II (arts.
182 e 183), do Título VII, da CF/88, à política urbana brasileira, prevendo, logo no
caput do art. 182, caber aos Municípios promoverem políticas de desenvolvimento
urbano, destinadas à realização das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus
habitantes. Destarte, o Município é identificado como o ente federativo responsável
pela promoção da política urbana, a qual deve ser estabelecida de forma a ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, a garantir o bem estar de seus
habitantes e a assegurar à propriedade urbana o cumprimento de sua função social.
A legislação que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal é o
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), que representa um importante passo para a
concreção das citadas normas constitucionais, na busca de cidades comprometidas
436
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
com a inclusão social, na medida em que reforça a supremacia do interesse coletivo
sobre o individual.
Com vistas ao cumprimento dos objetivos de desenvolvimento urbano (art.
182 da CF), o mencionado Estatuto prevê vários instrumentos de política urbana:
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o direito de superfície e o direito
de preempção; e a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, bem
como a transferência de potencial construtivo, concessão de uso especial para fins de
moradia, concessão de uso especial coletiva para fins de moradia, usucapião urbana
(individual ou coletiva).
Além desses meios, o Estatuto da Cidade previu expressamente, em seu art. 4º,
IV, a utilização de instrumentos tributários para a consecução de políticas de
desenvolvimento urbano qualitativo. É exatamente acerca de tais instrumentos que o
presente trabalho busca discorrer, de maneira a expor que são meios idôneos e
legítimos, social e juridicamente, para se implementar políticas de melhoria do espaço
urbano.
3. A TRIBUTAÇÃO EXTRA-FISCAL COMO INSTRUMENTO DE
POLÍTICA URBANA
Consoante descrito acima, a grande população dos principais centros urbanos
e as consequências daí decorrentes, como favelas, poluição, grandes congestionamentos no trânsito de veículos, têm sua origem nas atividades das indústrias e demais empreendimentos situados na Cidade que demandam grandemente a mão-de-obra
de operários.
Em virtude do trabalho desses operários, a atividade econômica, de um modo
geral, cresceu nas últimas décadas, gerando, para os agentes produtivos detentores
do capital, grandes lucros e novos investimentos na escala de produção, ensejando
riquezas que se majoraram geometricamente.
Não obstante, os trabalhadores que, com seu labor, participam desse processo
não tiveram e não têm acesso a esses ganhos econômicos, tampouco usufruíram de
melhorias sociais, no que diz respeito a sua qualidade de vida, tendo em vista que
passaram a viver em favelas, regiões, em regra, de alta criminalidade, de ocupação
irregular e desprovida das mínimas condições de infra-estrutura urbana.
Percebe-se, portanto, que os ganhos usufruídos pelos detentores do capital são
privatizados, e não socializados, embora esses ganhos sejam obtidos de forma
socializada, e não individualizada, na medida em que concorrem para ele não somente
o capital investido, mas também o suor do referido operariado.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
437
Os multicitados efeitos da atividade econômica sobre o meio urbano e as
populações de baixa renda (as classes média e alta são menos atingidas) são
externalidades negativas1 do processo produtivo, as quais, todavia, não são absolvidas
pelos detentores do capital, que deixam para a coletividade os efeitos nefastos de sua
produção, cuja lucratividade é de todo privatizada.
Assim sendo, faz-se necessária a intervenção do Estado no domínio econômico,
com o objetivo de as referidas externalidades ser compensadas pelos que as geram e
delas extraem riquezas.
Nesta senda, a tributação com finalidades extra-fiscais mostra-se como meio
eficiente para o Estado intervir na economia, incitando a prática de ações
ambientalmente elogiáveis, no que se denomina de indução positiva2, e inibindo os
modos de produção que, embora lícitos, são nefastos ao meio ambiente, ensejando
uma indução negativa.
A indução positiva, para ser alcançada, deve haver, por parte do Estado, um
incentivo fiscal, sob a forma de isenção, redução de alíquota ou de base de cálculo,
anistia, remissão etc. Efetivamente, se o ente tributante oferta ao agente produtor
incentivos dessa ordem, em troca de ações em prol do meio-ambiente (no presente
caso, urbano), decerto, atingirá a sua finalidade, tendo em vista o alto custo
representado pelos tributos no orçamento da empresa, além do marketing que essa
empresa poderá promover em virtude uma ação de interesse coletivo.
Por outro lado, a indução negativa opera-se com a exasperação (aumento da
alíquota ou da base de cálculo) da carga tributária sobre processos produtivos que
não sejam recomendáveis do ponto de vista ambiental, embora não sejam considerados
ilegais.
Nessa hipótese, percebendo o produtor o aumento no custo de produção, no
preço final do produto e, quiçá, uma diminuição das vendas, será compelido a
abandonar os meios de produção indesejáveis para o bem da coletividade.
Não é por outra razão que a agenda 21, na seção IV – Meios de Implementação
(Capítulo 33 – recursos e mecanismos de financiamento) recomenda, dentre outros,
o uso de incentivos e mecanismos econômicos e fiscais (item 33.16, letra “b”) como
forma de promoção do desenvolvimento sustentável e de melhoria da qualidade de
vida dos assentamentos urbanos.
Também nesta vereda, o Estatuto da Cidade, ao regulamentar os arts. 182 e
183 da CF/88, no tocante à política de desenvolvimento urbano, não só conferiu aos
1
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
2
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
438
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Municípios autonomia para definir a função social da propriedade urbana, como
ressaltou a utilização de outros instrumentos legais motivadores do cumprimento
dessa função social, dentre os quais os de natureza tributária (art. 4º, IV, da Lei 10.257/
2001).
Toshio Mukai3, em sua obra Direito Urbano-Ambiental brasileiro, enaltece o
papel dos tributos extra-fiscais como regulatórios das atividades individuais dentro
da sociedade, por meio do estímulo ou desestímulo de certas condutas, no interesse
da coletividade, “[...] através das figuras das isenções tributárias, das reduções, das
suspensões, ou mesmo, da tributação progressiva”.
Nesse sentido, faz-se mister enaltecer os mecanismos previstos no Estatuto da
Cidade, com vistas à tributação extra-fiscal:
a) o art. 2, X, prevê “a adequação dos instrumentos de política, econômica e financeira [...]
aos objetivos do desenvolvimento urbano”;
b) o art. 4º preconiza a utilização do IPTU para a promoção do desenvolvimento urbano em
benefício do interesse coletivo, indicando para tanto, no seu inciso IV, “instrumentos
tributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana –
IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros”.
c) o art. T prevê a aplicação da progressividade do IPTU, no caso de descumprimento dos
prazos fixados para edificação e utilização dos imóveis;
d) o art. 47 estabelece que “os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas
a serviços públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social”;
Resta evidente, portanto, a possibilidade de utilização, pelos Municípios, de
seus tributos para a promoção de políticas de desenvolvimento urbano. Prova disso é
que o Supremo Tribunal Federal (STF)4 tem destacado o caráter extra-fiscal dos tributos
para o cumprimento da função social da propriedade.
Ressalte-se que o objetivo arrecadatório continuará a existir, mas ao tributo
poderá ser adicionado o viés social direcionado a melhorias da qualidade de vida nas
Cidades. Eis, portanto, a nobre finalidade extra-fiscal a que os tributos dos Municípios
podem se prestar.
3
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002, p. 82.
4
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPTU. PROGRESSIVIDADE
EXTRAFISCAL. ARTIGO 182, § 4º, II, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A cobrança do IPTU progressivo
para fins extrafiscais, hipótese prevista no artigo 182, § 4º, inciso II, da CB/88, somente se tornou possível a
partir da edição da Lei n. 10.257/01 [Estatuto da Cidade]. Agravo regimental a que se nega provimento. REAgR 338589-ES, Min. EROS GRAU, Julgamento: 24/06/2008, Órgão Julgador: Segunda Turma.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
439
Expostos, de forma breve, os fundamentos da tributação com vistas à promoção
de políticas de desenvolvimento urbano, traz-se à baila o problema de acesso à terra
urbana e à moradia digna na Cidade de Manaus-AM.
4. AS “INVASÕES” E DEMAIS OCUPAÇÕES IRREGULARES NA
CIDADE DE MANAUS-AM: NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL DE MORADIA (ART. 6º, DA CF/88)
Esta urbe, por ser o principal centro industrial da Região Norte do país, atraiu
para si pessoas provenientes de diversos Municípios da Amazônia, ou de outras regiões
do Brasil, com expectativa de ter acesso ao trabalho e a outras condições que um
centro econômico pode oferecer. Como resultado desse processo, Manaus, que, em
1970, possuía 300 mil habitantes, passou a ter, no ano de 2000, população de 1,5
milhões de pessoas5.
Sucede que o Poder Público Municipal, embora tenha participado e incrementado apoio político para a criação (Decreto nº 288/1967) e a prorrogação (art. 40 da
CF/88) da Zona Franca de Manaus, não preparou a Cidade com condições ideais
para servir de palco para um relevante parque industrial e para uma grande massa de
operários atraídos por oportunidades de trabalho oferecidas direta ou indiretamente
pelo Pólo Industrial de Manaus-AM.
Assim sendo, o que se viu em Manaus foi o surgimento de habitações precárias
e irregulares em diversas partes da Cidade, o que ensejou seu atual déficit habitacional
de 67%, segundo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Estado do
Amazonas (CREA-AM). Ou seja, de cada 100 manauaras, 67 não possuem moradia
ou a possuem sem condições adequadas de habitabilidade.
Muitas dessas moradias irregulares estão concentradas em terras do patrimônio
público federal, estadual ou municipal, em áreas de proteção ambiental, como os
igarapés que cortam a Cidade, formando as várias invasões que existem na capital
Amazonense.
As invasões, é cediço, não oferecem aos seus ocupantes as mínimas condições
de saneamento básico, segurança, educação, lazer, que o espaço público deve ofertar
a sua população. São locais de ocupação irregular, áreas “fora da lei”, onde o Poder
Público é ate mesmo impedido, por restrições legais, de promover investimentos em
infra-estrutura urbana.
Resta, portanto, aos Municípios realizar e executar projetos de assentamento
de famílias de baixa renda, residentes nas citadas áreas. Tais famílias necessitam que
5
Fonte: Censo IBGE 1970/2000.
440
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
o Poder Público e, em especial, o Município, desincumba-se do seu dever
constitucional, e lhes efetive o direito à moradia (art. 6º da CF/88).
Todavia, esse direito, de caráter fundamental, não se exaure na obtenção de
uma construção com chão e teto, mas requer uma residência com cômodos adequados
e todas as demais condições de habitabilidade, somadas à disponibilização de serviços
e equipamentos urbanos, como escolas, unidades públicas de saúde, transportes, área
de lazer, ensejando para o munícipe dignas condições de moradia e oportunidades de
inclusão social.
Ocorre que esses projetos, muitas vezes não são implementados com a devida
eficiência pelos Municípios, não sendo raro o registro de desvio de dinheiro público
e de obras de habitação popular inacabadas.
5. PROPOSTA DE COMPENSAÇÃO FISCAL PARA ASSENTAMENTO
DE POPULAÇÕES CARENTES DE MANAUS-AM
Nesse diapasão, mostra-se interessante a indução (positiva), por parte do
Município, por meio dos instrumentos tributários, num modelo de gestão
redistributiva, para que a iniciativa privada custeie e execute empreendimentos sociais
dessa natureza, com o escopo de obter tratamento tributário privilegiado.
Os impostos (IPTU, ISS e ITBI), as taxas e as contribuições de melhoria da
competência tributária dos Municípios podem ser instrumentalizados para a
consecução da proposta ora sugerida.
Os impostos, pela ausência de retributividade e pelo alto custo que representa
para o setor produtivo, são a espécie tributária mais apropriada para a tributação
ambiental-urbana, podendo ser utilizado para gerar a já citada indução positiva, por
meio da concessão de isenções ou reduções de alíquotas ou bases de cálculo.
As isenções ou reduções nos valores das taxas e contribuições de melhoria
também têm aptidão para induzir positivamente os detentores do capital à realização
dos citados projetos de cunho social.
Ademais, cabe notar que proposta dessa natureza, além de encontrar respaldo
nos Estatutos jurídicos já referidos, fundamenta-se também na aplicabilidade dos
princípios jurídicos ambientais da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da
cooperação, do desenvolvimento sustentável, dentre outros.
Não obstante, é necessário alertar que o estabelecimento de política urbana
com tributação extra-fiscal deverá se submeter aos princípios constitucionais
tributários, previstos no Título VI da CF/88, sob o título da tributação e do orçamento.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
441
Nesse sentido, a concessão de incentivos fiscais, conforme acima tratado, deve
necessariamente se submeter ao princípio da legalidade (art. 150, I, § 6º, da CF,
combinado com o art. 97, VI, do Código Tributário Nacional – CTN).
Além disso, a Lei que concede o benefício fiscal, sob qualquer de suas formas,
necessariamente terá que ser específica, ou seja, deverá regular exclusivamente o
incentivo fiscal concedido ou o correspondente tributo que esteja sendo objeto da
concessão do privilégio tributário, nos termos do § 6º, do art. 150, da CF, in verbis:
§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de c

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