Ze Benta e Outros Cabras – Francisco Rocha Morel
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Ze Benta e Outros Cabras – Francisco Rocha Morel
fl • éte " a WatialLà - 11111- 'Eli (4 thk Ji4, n oir, ZÉ BENTA E OUTROS CABRAS FRANCISCO ROCHA MOREL ZÉ BENTA E OUTROS CABRAS contos 1985 TRAÇO EDITORA • copyright: Espólio de Francisco Rocha Moral , editora responsável, organização e planejamento gráfico: ' Calina F. F.• de Castró , capa e ilustrações: Carlos Jacchieri Traço Editora e Distribuidor Ltda.: Rua São Joaquim, 437 :Lona: 270-3847 CEP 01508 — São Paulo -- Capital ' PREFÁCIO "Viver é lutar" G. Dias Estar ao mesmo tempo dentro da vida, mas senti-la com isenção; vivê-la como exemplo e observá-la como estudioso e, até mesmo, filósofo; enfrentá-la com digna tolerância, porque dotado sempre de sensibilidade e renovados recursos de análáe e reflexão: eis o que se pode dizer, em síntese, do Morei — autor dos contos aqui reunidos. A sua obra literária seria volumosa, se tivesse executado todos os projetos que lhe ocorriam ao espírito e que, generosamente, partilhava com os amigos, naquelas cavaqueiras sem tempo, nem espaço. Ouvi-lo era se enredar no labirinto do romance mítico da sua gente e da sua terra ou errar no mar de estórias de todo naipe, urdidas na inspiração ou na memória e transfiguradas, pela intuição de poeta, em núcleos fecundos de obras que seriam escritas qualquer dia. Algumas, felizmente, ilustram esta coletânea, que atende a uma dupla e original intenção: homenagear o Autor e per5 mitir aos leitores o prazer do seu texto. A bem da verdade, estamos apenas rematando o plano traçado pelo Morei e por isso a edição, no espírito da letra, pode ser havida como "Organizada e dirigida" por ele. Por muitos motivos e talvez por todos, assoma em primeiro plano a história das proezas de Zé Benta, figura de homem simples e de herói puro, sujeito e objeto do fabulário da Serra da Meruoca. A narrativa tem muito de um retábulo forte, na moldura áspera das quebradas da serra; os quadros são de matiz vário: do provinciano ao bucólico; do ridículo ao tocante; do postiço ao veraz. No desenho de fundo e num contraponto que é verdadeiro achado literário, "as histórias de assombração e encantamento" criam os toques sutis da atmosfera final em que se dissolve em lenda a bravura do herói; finalmene, a tonalidade é épica. Nada falta para "encantar" o leitor; desde o inicio, vem sendo aliciado por um discurso poético novo, plástico, amoldável às gradações das peripécias, por conseguinte, de ritmos variadOs e envolventes. A prosa narrativa atinge aqui também um poder encantatório; ela seduz pelo tempero agreste das suas marcas culturais, sensíveis no léxico e no andamento frásico, ou diluídas discretamente no conjunto. Sem exageros de cor local, dela renascem lembranças de uma geografia que, por artes da Arte, passou de humana à literária. Logo depois, passa igualmente o leitor para outros universos: os dos contos que completam o volume. Os seus dramas têm como cenário o mesmo espaço físicoexistencial do Autor, dividido entre o Ceará e São Paulo; como temática, o Homem na sua luta infinda de ser (o poema de Gonçalves Dias era um feliz exemplo de verade poética). Os protagonistas são protótipos dos lutadores anônimos, perseguidos pelas condições hostis, de causas aleatórias, como no drama de "Coca Cola", ou permanentes, se pensarmos na 6 situação-modelo de "O homem das mãos decepadas". Em ambos os casos a luta foi fatal; o drama evoluiu para a tragédia e a quimera da libertação durou apenas o átimo da loucura. Outros retalhos de vida, também em crise, são a matéria dos outros dois contos, embora diversa no seu grau de tensão dramática. Assim, a história do Bastião dos "Queijos" nos soa como um intermezzo, cujas notas pungentes se mesclam maliciosamente de certos tons amenos e até risonhos. Já sob o título prosaico de "Pernilongos", está um dos mais bem logrados contos do livro. No equilíbrio da estrutura e na sóbria exploração dos valores dramáticos do tema estão os índices de uma pequena obra prima. Quase que de surpresa, engolfam-se as personagens deste conto num conflito emocional que tange a ruptura. E temos de nos sentir solidários na angústia, pois são os nossos semelhantes que estão em prova.., e muito próximos de nós. O final, guardadas as proporções e intenções, lembra-nos conhecidas imagens do cinema: o herói, sem heroismos, caminha com decisão, "sem pensar para onde". Naturalmente — e aqui não podemos esquecer o Morei — deve ir para outras "lutas renhidas". Rolando Morei Pinto 7 A VOCAÇÃO POLÍTICA DE ZÉ BENTA s noticias eram alarmantes. Os que, vindos da feira subiam a pé pelos atalhos da serra, espalhavam as emboanças e os despropósitos de fim-demundo, cheios de tiroteios e mortes: A política em Sobral estava pegando fogo — ateu contra integralista — e a cidade todinha formigava de camisas-verdes (mulher, homem e menino) insultando soldados e governistas, levantando os braços com aquele dabliú em pé na manga da camisa, no cumprimento — deles — de fé na revolução de Deus, Pátria e Família: ANAITÉ! Os tropeiros de jumentos que demandavam a vila da Meruoca no topo da serra, pela estrada da Floresta, ditavam pelo caminho desgraças maiores e mais longínquas: Plínio Salgado -- o Grande Chefe do Integralismo — derrubou o Governo num discurso de seis horas e vai entrar em guerra por mar; A 11 Plínio Salgado — Comandante-em-chefe do exército integralista — a bordo de uma belonave sagrada ia invadir Por• tugal e declarar guerra ao Brasil pra acabar, com os ateus, os hereges e os comunistas, ANAUÉ! Em Sobral, desde o Junco até a Cruz-das-Almas, o mundo inteiro guerreava com discursos, tiros e pancadarias — um fordunço em cada praça e em cada esquina, na revolta. E soldados governistas armados de rifles de repetição e cacetes de borracha, abriam fogo de artilharia e baixavam o pau a torto e a direito, até em padre! Pros lados do abismo do Quebra, na Serra da Meruoca, Zé Benta caçava: O cachorro empacou na cabeça do morro. Empinou as orelhas, esticou o rabo, acocorou-se nas quatro patas até arrastar a barriga no chão. Uns dez passos atrás, Zé Benta engatilhou a espingarda, vigiando o mato, esperando caça espirrar; um tempão na mira, e nada. "Tem caça nenhuma aqui, não" — pensava baixando a arma, especulando o cachorro. O bicho continuava do mesmo jeito: empacado, espetando as orelhas e o rabo; com aquele couro liso e cinzento, parecia mais uma pedra. Zé Benta cismava "Só podia era estar lesado aquele bicho, de idade. De caduquice, capaz de estar acuando algum besouro". Ia se chegando para espantalo, quando ele se Pôs a escorregar de barriga, devagarinho (feito cobra) morro abaixo. Só no fundo do boqueirão é que se levantou e começou a acuar o tronco de uma palmeira de coco catolé. "É bicho grande!" — Zé Benta falando sozinho, considerou o empinamento dó morro: "Como é que ia descer aquele paredão lajeado? O jeito era procurar uma encosta que não fosse de laje e descer se agarrando no mato". Teve de dar uma arrodeada tão grande, chegando a perder o latido do acuo. Voltou a ouvi-lo quando já se aproximava pelo fundo da grota. O cachorro esgoelava feito um doido, dando meia volta, de longe, vigiando um oco aberto no tronco do catolé. Zé Benta engatilhou a espingarda. "É bicho grande! Se fosse 12 caça miúda já tinha era espirrado há muito tempo". Ajeitouse e atiçou o cachorro. Foi a conta: uma jaguatirica saltou do oco e já ia escapulindo quando caiu com um tiro nos quartos e depois ficou pinotando; estava vivinha ainda, mas não podia fugir com as pernas quebradas. Estrebuchava e uivava perdendo força. Al Zé Benta preparou outro tiro, porém não deu nela não, pra não estragas o couro e considerou: "Melhor esperar um pouco e dar uma sangria. De faca". Sentado, assoviou chamando o cachorro. O pobre do bicho sumira com a patada que tinha levado da onça; chegou desconfiado, mancando, o rabão comprido arrastando, enfiado nas pernas. Já ia se deitar junto ao dono, quando apanhou no ar o cheiro da caça; empinou o rabo e as orelhas, levantou os olhos, viu a onça espichada e aí pôs-se a balançar o rabo, a língua de fora, como se rindo. Jaguatirica não se come. Pode vender o couro e contar a história da caçada, fazer pabulagem, mas a carne é enfezada. Não se come. "Tinha ainda que pegar uma caça de comer, nem que fosse um preá ou bicho de pena e já estava ficando tarde, o sol quebrando, fazendo sombra no fundo da grota. Bem umas quatro horas. Carne não tem na Vila, que ainda nem cumeçou a temporada das festas; se ele não levar uma caça, o que é que o povo vai comer? Só se for pirão d'água com rapadura, que nem caboclo. "Mas quem mandou o coronel Avelino subir tão cedo este ano?" — Zé Benta considerava, assuntando; "Era bom se achasse uma paca pra levar; povinho pra gostar de paca 'stá ali! Sem caça é que não podia voltar, de jeito nenhum." O diabo é que o caminhão tinha chegado assim de repente, de madrugada, com a família toda, sem ninguém esperar, Coronel saltando na falação: "Zé Benta, tive que trazer o povo mais cedo este ano; a política está fervendo lá embaixo. Vou descer daqui a pouco: os herejes do governo encheram a cidade de soldados, atacando os cristãos Enquanto Dona Benta dá uma arrumada aqui na casa e ajeita o pessoal, você já sabe -- deu urna risada daquelas grandes, de chefe — vê se arruma uma cadilho, pra gente. Não pegue 13 nada no armazém de Zeferino (aquele governista safado, já'uviu?). Só no seu Oliveira, ou vá buscar no Massapé. Qualquer dificuldade fale com o Eduardo ou o Zé Laureano. Depois fique de guarda... — pausou — ninguém sabe se algum hereje cisma de subir a serra. ANAUÊ! "Sim senhor, pode contar, ANAUÊ!" E estava ele ali mais o cachorro, a tarde quase toda perdida com o diabo daquela onça. Zé Benta pensando: "Os meninos é que vão gostar; de ver, de ouvir a história. Mas a carne não se come". Já era assim como seis horas, quando entrou na Vila juntando gente ao redor dele por causa da onça jaguatirica; como foi, como não foi, mas ele tinha pressa e não podia se pabular agora; só mais tarde. Quando ia chegando na casa do Coronel Avelino, os meninos já tinham visto a onça e vieram encontrá-lo pulando e gritando, todos de camisinhas-verdes, com dabliú no ombro, iguais aos chefes da política integralista, seu Eduardo e seu Laureano do engenho; foi até a cozinha e pôs no chão a onça e entregou a paca pra mãe preparar. (No caminho de volta Zé Benta tinha caçado uma paca pro povo). Em volta dele os meninos gritavam e pulavam pegando na onça; ai o maior falou: "Mamãe, a senhora não acha que Zé Benta devia ser integralista? Ele é tão bonzinho!" Dona Maroca disse que achava e perguntou pra ele: "Você não quer ser integralista, Zé?" Ele respondeu que não entendia desse negócio de política, não, mas se o Coronel Avelino precisasse, podia contar com ele, ANAUÊ! Já estava noite e os meninos pediram para Zé Benta descascar cana pra fazer roletes e contar histórias de Trancoso. Zé Benta, então, descascou muitas canas, encheu uma bacia grande com os roletas e começou a contar uma história: "Era uma vez um reino muito rico, onde tinha muita fartura: os rios eram de leite e as ribanceiras de cuscuz..." Para os fins de novembro, às vésperas da festa da Virgem Conceição, a Meruoca regOrgitava de gente vinda de todas 14 as paragens: dos povoados e cafundós da serra, da Palestina, do Bom Jesus, do Amarante, da Floresta, das encostas da Palma e do Massapé. E das cidades, até de Fortaleza. De Sobral nem se fala, que é o povo mais permanente o tempo todo aqui na vila, com casas grandes de vitrolas, até o palácio do bispo D. José, cheio de padres e seminaristas. E este povaréu todo enchendo a vila e transbordando pelas quebradas, festejando a Santa. Aluás bebidos em foguetórios, cantos de igreja, a cachaça rolando nas folganças de maracatu e brinquedos de roda e de luta, canto e dança do maneiro-pau: os cacetes de jucá feito espadas retinindo na batida do ritmo, marcando os repentes: "Minha mãe me dê um tostão maneiro-pau, • maneiro-pau, Pra comprar um caminhão maneiro-pau, maneiro-pau, Pra encher de mulher feia maneiro-pau, maneiro-pau, E mandar pra Lampião • maneiro-pau, maneiro-pau." "E no rebuliço, a soldadesca — urna tropa vinda de fora a mando do governo, caminhando na rua com rifles de mira nas costas, pra cima e pra baixo, intimando com integralistas, na provocação, atirando à toa, invadindo casas pra caçar camisas verdes escondidas em baús, perseguindo. Guerra incubada cheirando a morte — que todo ano tinha na festa de Nossa Senhora da Meruoca (que nem a do santo padre Expedito, assassinado com um tiro nas costas, na hora da elevação da hóstia). Neste entretanto, a conjuração acontecia no casarão do dentista Eduardo, de calçada alta e paredes de dois tijolos, fincada no barranco do riacho, feito uma fortaleza, ladeando a Igreja, bem na metade da rua — no vale. Lá dentro, os conjurados. Integralistas: 15 Primeiro: Seu Eduardo, dentista, Monitor de Decuriões da Tropa do Sigma, na Terça da terceira Secção Provincial do Ceará, homem seco, esturricado, de pouca fala, de princípios e tutanb (de camisa verde o tempo todo, até pra dormir), que não bole com ninguém, mas impõe respeito, só na esguelhada! Segundo: Seu Zé Laureano do Engenho, Sub-Monitor de Decuriões da Tropa do Sigma, na Terça da terceira Secção Provincial do Ceará, caboclo dobrado de cachaço grõsso como de boi, cabeçudo feito mulo, coiceador: no vai-ou-racha, no mata-ou-morre. Terceiro: Padre Gerardo, vigário, Conselheiro Municipal dos Institutos Culturais e Morais, na terceira Secção do Ceará, do futuro Governo Corporativo Integralista, amornador dos fogos da política, nos panos quentes, fala mansa de reza, negociador de certezas. Todos na conspiração. — Com todo o respeito às Chefias Superiores, não adoto esta demora toda, não (seu Zé Laureano principiou, falando no seu jeito aperreado, de bicho.) O Coronel Comandante desceu pra mais de semana e até agora, nada! Adoto, não! — Mas há de vir o mensageiro secreto, prometido, com novas instruções (a fala ajeitadora do Padre Gerardo). É ter fé e paciência, aguardar sem afoitezas imprudentes. Neste entretanto, empinado e seco como espiga zarolha, seu Eduardo, dentista, passeava pela sala — sua — mãos às costas, considerando, para opinar, oficial: — O perigo maior que vejo é a indisciplina e a desmoralização das tropas integralistas. A falta de vigor, e entusiasmo na luta sagrada pelo ideal do Sigma. ANAUÊ! — ANAUÊ!! — ...a frouxidão e sumiço dos Decuriões da Terça, acovardados como galinhas-verdes (na fala dos inimigos) pelas Tropas•Governistas. 16 •— Meia dúzia de retirantes guenzos, mortafomes, matando à custa de soldo! (seu Laureano interrompendo no descontrole, escoiceando.) — ...com mais vera, com mais vera (Seu Eduardo, dentista, discursava em continuação, achando que) se tão debilitada tropa governista põe em fuga nossa decúria, que dirá quando chegar o adjutório de reforços diz-que já vindos de Fortaleza! — Mas hão de vir reforços também para nossas forças. Há de vir notícia pelo mensageiro secreto (Padre Gerardo dizendo sermão, botando água benta.) Seu Zé Laureano, porém, querendo guerra urgente, esperneava: — Tem que se brigar agora, já. Aproveitar o povaréu da Festa, derrubar os herejes, implantar o governo integralista, ANAUÉ! — ANAITE! — Proponho estado de alerta e vigília cívica por vinte e quatro horas. Antes da Festa decidimos a luta com ou sem mensageiro, com ou sem reforço. Aqui na sede (fechou com• fala de chefe seu Eduardo). Lá fora, nas ruas da vila, as vésperas festivas ganhavam a noite com as mesmas cantorias e tiroteios, alegrando devotos e assustando galinhas-verdes socados em tocas de guaxinins, em regos de canavial, até na torre da Igreja assustando corujas. Menos Zé Benta de camisa verde, tomando conta do pessoal do Coronel Avelino, no alpendre, de noite escura, contando história de assombração e encantamento, que os cafundós da serra tinham, que nem... Caipora: Seu Leocádio ressurgindo no Bom Jesus, feito ressuscitado das levas de arribação pro Amazonas, no tempo da borracha, com cavalo de sela, marchador, bota rangedeira, rifle de cano duplo e lente de mira, pra caçar. Dente de ouro luzindo no riso, feito o cão. 17 Bom caçador de veado que ele era — mesmo antes, com espingarda de escopeta, que sempre foi. Zé Benta, menino, ouvia contar (mas via também seu Leocádio chegar da caça com uma penca de veados encangados numa esteira, na ponta de uma corda); que só por sorte assim não era possível — todo mundo sabia — e diz que seu Leocádio tinha mesmo era parte com o Caipora: mascavam fumo juntos, bebiam cachaça, combinavam a caça, e pronto! Agora, depois da volta do Amazonas, nada! Fazia tudo certinho como dantes: armava a rede bem no alto de dois paus-brancos (ou de duas palmeiras), descia pra acender uma fogueira queimando fumo de corda com cachaça, a favor do vento, voltava a trepar na rede e ali ficava, bebendo e mascando fumo, a noite inteirinha na tocaia. E nada de veado. Só passava caça miúda (preá, mocó, tejo) assustando os bichos de pena o tempo todo voando curto e baixo na piadeira: téo, téo, téo — e nada de veado. Um dia resolveu e dis-que fez uma jura aos pés da Virgem da Conceição, na Igreja: romper a parte que tinha com Caipora, vez por toda, renegar de fazer todas aquelas abusões de fumo e cachaças e se embrenhar no mato com rifle e rede, se entregando inteiramente a Deus e à Virgem Maria, e dai só voltar com caça grossa. Deram com ele, légua e meia arriba da queda clágua da Itacaranha, numa mata fechada de catolé e pau d'arco, bem na ponta dum tabuleiro que cai a pique pros lados do Massapé', semimorto, esvaido na rede armada entre os topos de dois pés-de-pau — o rifle empunhado em posição de tiro — dois buracos de dentes no peito esquerdo — lá nele — a cara branca feito goma, o corpo esmorecido e os olhos vidrados como de assombro, mas ainda latejando. Com duas forquilhas compridas que fizeram, lá mesmo, arriaram a rede de seu Leocádio pelos punhos, pra não bulir com ele que de tão fraco — podia desmilinguir duma hora pra outra. Com o mesmo pau de forquilha, comprido, atravessaram a rede de punho a punho e carregaram seu Leocádio, 18 moribundo, mata-a-fora até o rancho, onde dona Docarmo tratou dele a leite de jumenta em dolherinha, durante mais de semana antes que o homem desse fé de si, tão desalentado que estava feito morto. "O Caipora!" — foi a primeira coisa que falou no reviver — e foi contando: Tinha arribado boquinha da noite naquela mata de Itacaranha, armado a rede bem alta como de lei, arrumado o rifle sobre as pernas, esperando caça. De primeiro estranhou aquele silêncio diferente: nada de • grunhido ou uivo, ou coaxar de bicho nenhum; nem zumbido de inseto tinha. Depois foi o vento parado, chega pesando, na venta, sem ar, as folhas e os galhos dos pés-de-pau empedrados como lajeado. Um encantamento? Ai veio aquele abolo triste subindo das gretas, longe, lamentoso que nem gemido de ente penado, chega dando arrupio: — Ecôo!... Ecôo!Vammm, vammm, vammm... Ebtio! Ebôol Mode espantar o medo, benzeu-se dizendo jaculatórias pra Nossa Senhora e ficou conjecturando, na razão: — onde já se viu aboio de gado na serra? Do sertão não podia ser, que ficava mais de cinco léguas serra abaixo... Então começou o estrondo compassado (assim que nem rebumbar de trovão depois da chuva), porém na terra, estremecendo o chão, se aproximando atrás do aboio, agora cantado bem pertinho: — Ecôo! ... Ebeto! ... vararam, vammm, E começou a passar veado emparelhado de quatro em quatro, em fila, feito tropa de burros (parará, parará, parará), que nem se fosse criação, e o abolo atrás, tangendo. Enfeitiçado, o dedo duro no gatilho, sem coragem de atirar (num rebanho?),• na caça farta, bem ali debaixo dos beiços, passando, passando durante um tempão, até que apareceu ele, o Caipora, empertigado e se rindo, aboiando atrás, na montaria, que era um veadão branco e galhado do tamanho de um cavalo. 19 Chegando debaixo da árvore, a manada estacou. Caipora apeou-se e foi trepando pelos troncos em direção dele, seu Leocádio, largado na rede, como estuporado no assombro, de pavor. E então o Capiroto (Caipora) encarapitou-se na rede mais ele, cosqueando no riso o corpo todo — lá nele -- com as unhas finas, caçando fumo e cachaça, que não tinha. Furioso, arreganhou os beiços e as presas brancas, bem fininhas, apareceram na cara preta, retinta. E rosnando feito o cão (de raiva), Caipora ferrou seu Leocádio bem no peito •esquerdo — dele — e chupou o sangue todo até ele ficar esvaído, assim como foi encontrado . Noite alta, já descambando pra madrugada, Caboré piou forte no sono de Zé Benta, junto com o espanto da saparia, dos grilos e morcegos; pio continuado que vinha da baixa de bananeiras assombrando feito alma. Zé Benta atiçou a lamparina, saltou da rede e já foi saindo, agachado no jeito dele de• caçador, no propósito de campear as redondezas, farejar perigo, na defesa do pessoal em sua proteção, ouvido apurado no rastro da piadeira pras bandas do bananal. — Pist... Pist... — o pio virando chamado, no sussurro: — É de paz seu Zé Benta, da parte do Coronel Avelino, de Sobral. Num rodopio ligeiro Zé Benta se botou atrás do cujo, desembainhando a faca na bucha da fala: — Apois vá logo se explicando direitinho, sem cavilação nem gagueira, que estou em serviço de guarda. — Sou Cazuza, do escritório e taqui duas mensagens, mais o relógio do Coronel que ele mandou a vosmecê, pra certeza. Uma carta é pra D. Maroca, a outra pro dentista Eduardo. AI então, com a ponta da faca catucando as costas do mensageiro — na cautela — Zé Benta tratou de cumprir os deveres da hospedagem: — Vamos se chegando pra casa, seu Cazuza, mode se acomodar. 20 E acordada dentro da madrugada, a fim de confirmar as certezas das mensagens, D. Maroca determinou seus cumprimentos: o mensageiro, seu Cazuza, ficando na guarda da casa e Zé Benta seguindo de imediato para a sede da conjuração, mode jurar o integralismo e alertar os chefes das novas de Sobral, das providências a serem tomadas nestes dois dias de vésperas da festa de Nossa Senhora da Conceição. Já madrugada abrindo, Zé Benta desassombrado — de camisa verde — sai rua afora, naquele jeitinho empombado e pequeno dele, peito aberto, trançando com assustados integralistas descamisados (galinhas verdes!) e com soldados enfezados de arma apontada sem saber (mata ou não mata?) se atira, meio abestados. E prosseguindo entre todos, caminhava Zé Benta para o encontro, até chegar no calçadão da casa de seu Eduardo, dentista, para a conspiração das mensagens. Decifradas pelos chefes integralistas as mensagens vindas de Sobral, Zé Benta — dispensado do estágio de lei por força de urgência da rebeldia — foi admitido ao juramento, nos conformes da disciplina: perfilado ante a figura, entronizada na parede por trás do consultório, de Plínio Salgado, dominando a sala com o bigodinho quadrado, os olhos pretos, de frente — na sinceridade — e seu Eduardo, dentista, porta-voz do Chefe no apostolado (Deus, Pátria, Família) mais onze camisas-verdes enfileirados atrás, em continência, de braços erguidos, celebrando a cerimônia da sagração, nos ritos combinados: — Estou sabendo que já pensaste maduramente na responsabilidade que vais assumir. E, pelas circunstâncias especiais de nossa luta na Meruoca, dispensei-te do estágio. Agora deverás, porém, repetir comigo o juramento patriótico. Ai, Zé Benta rezou — como em resposta de terço — repetindo a jura da celebração: "Juro por Deus e pela minha honra trabalhar pela Ação Integralista Brasileira, executando, sem discutir, as ordens do Chefe Nacional e dos meus superiores". 21 Celebrando continuado, seu Eduardo, dentista, discursou a todos os presentes conjurados: "Integralistas! Mais um brasileiro entrou para as fileiras dos camisas-verdes. Em nome do Chefe Nacional o recebo na qualidade de Decurião da Terça da Meruoca e convido os presentes a saudá-lo segundo o nosso rito. Três ANAUÊS ao nosso novo companheiro." — ANAUÊ ! — ANAUÊ ! — ANAUÊ ! — Brasileiros! De quem é o Brasil? — É nosso! — Integralistas! — Pronto! — Quem poderá deter a marcha do exército verde? — Ninguém! E foi então que principiou aquela zoada, lá fora, o mundo todo se desentocando e invadindo a rua num ronco de enchente, — de todo esquecidos e desassombrados da intimação da tropa de soldados que arruaçava com tiroteios para o alto, rua acima, rua abaixo, na ronda — e no borborinho das falas a noticia da chegada dos chefes integralistas — que já tinham quebrado a curva do lobisomem — numa baratinha V-8, se aproximando da Vila pela entrada do Quebra. E ai chegaram. De Fortaleza, Padre Eudes Catunda — Chefe Supremo do Ceará — pequenininho que nem Plínio Salgado, porém valente feito uma fera, padre-homem, colhudo. De Sobral, Professor Abdias da Ponte — inspirado na fé — o maior orador integralista de todo o sertão, mais Coronel Avelino — vozeirão de comando — Chefe respeitado, o dono. E ali estavam de braços empinados no calçadão do dentista Eduardo: Padre Gerardo, os doze camisas-verdes perfilados, mais Zé Benta — de juramento novo — quando encostou a baratinha cercada e como tangida pela gritaria dos devotos, 22 • pra ver novidade e briga, descendo dela os Grandes Chefes para a solenidade do encontro integralista: — ANAUÊ ! — ANAUÊ ! • A rua cada vez mais se enchia de povo se acochando junto •à calçada querendo ver e ouvir a ingresia. E então se ouviu primeiro Coronel Avelino abrindo comício: — Patriotas da Meruoca! Ninguém segura a marcha vitoriosa das milícias integralistas na defesa de Deus, da Pátria - e da Família... Voltando da marcha de ronda, lá no fim da rua, a soldadesca viu aquele arranjo oficial de solenidade, parou de dar • tiros, no respeitado, e foi se chegando desconfiada pra perto do calçadão, se embarafustando por um boeiro aberto pelo •povo, dando passagem e, chegando lá, estatelou abastada, olhando no espanto: Padre Eudes Catunda começou a desabotoar a batina, como se despindo diante deles, escandalizando. Por baixo do • pretume da batina arreganhada para os lados, por ele, estava a camisa verde com o Sigma no ombro. E com o braço levan• tado reto para cima, bem na frente da tropa dos soldados, gritou: — A Igreja de Deus está conosco. Viva Nossa Senhora da •Conceição! Anauê pela paz do Brasil! ANAUÊ! • — ANAUÊt — os soldados responderam em saudação de continência, erguendo os braços e baixando os rifles. Ai foi o reboliço do revertério da política: Na Vila da Meruoca intierinha, o dia todo cheio de anauês e vivas — a Deus, a Nossa Senhora da Conceição, à Pátria e à Família — e morras — aos ateus, aos liberais e aos comunistas — tudinho no meio do desenterro das camisas verdes encafuadas nas grutas e baús, agora revestidas para a festa da Santa da Meruoca, anauêl e o foguetário comendo de esmola. 23 De tardezinha já amansava o fuzuê, com os soldados aquartelados aguardando reforço de Fortaleza — e o povaréu acompanhando em festa, até a curva do quebra, a viagem de volta da baratinha com os Grandes Chefes retornando: Professor Abdias da Ponte para Sobral; Padre Eudes Catunda para Fortaleza, deixando nas vozes do Comício e no rastro do carro o entusiasmo dos integralistas — à moda de periquitos na areia quente — todos de camisas verdes na gritaria da vitória. Menos Zé Benta, já de volta a seu posto no alpendre da casa de Coronel Avelino — boquinha da noite — descascando cana, guardando a familia e contando histórias pros meninos, de encantamentos da Serra, que nem: Da Cidade Encantada: Que se esconde num socavão espraiado entre a Meruoca e a Serra Grande de Ibiapaba, por detrás das quebradas do Amarante, num ermo sem caminhos dirigido para os confins de mundo do Parazinho, quase no Piauí. Ele mesmo — Zé Benta — esteve lá em pessoa, do jeito que estava ali contando a história para quem ouvisse e quisesse acreditar: bodegas, lojas, mercado, tudinho de pedras coloridas, nas ruas cheias de casas socadas nas encostas como grutas, num serpenteio. E, trançando no meio, um povo vistoso, entre alegre e sizudo, bem vestido, de roupas bufantes de babados, como gente de . circo ou festa de Igreja. Tinha chegado lá — ele mais o cachorro — depois de perseguir o caminho do rastro da lua cheia, três noites e três dias, do jeito que tinha aprendido quando era menino: Primeiro, na cumieira do babaçu-gigante, encravado na laje do Quebra, à meia-noite, espiando para o norte até enxergar a estrada branca de luz, aberta no espraiado, que vinha subindo até ele. Daí caminhou por ela todo o resto da• noite, morro abaixo, e o dia seguinte morro acima, sem perder o rumo, esbarrando, já noite, no pico do Parazinho, onde empacou, acuando o segundo sinal da lua cheia a pino. 24 E apareceu, igualzinho, a segunda estrada de luz. Por ela meteu-se de novo, vigiando o prumo, até a meia-noite do terceiro dia, quando desembocou no alto da Ibiapaba, já no meio das pedras faiscantes da cidade, encravada assim meio de lado, pensa, como que estando a ponto de despencar abismo abaixo, nas brechas. E estavam eles ali — Zé Benta mais o cachorro, no meio do serpenteio das ruas cheias de carruagens brilhantes, de rodas de pedra, da multidão daquele povo enfeitado, falando também bonito, que nem diácurso, sermão ou reza, no meio da zoada dos sinos de pedra e das carroças puxadas por millas brancas e peludas, enfeitadas feito andores e pálios de procissão. Caminhavam feito matutos — que eram — meio abestados com tanta beleza, ele e o cachorro. Eles, porém — os encantados — não davam fé; passavam como quem não via, cabeça empinada em pose de cego. De repente o cachorro começou a se arrupiar feito gato, ganindo fino, com o rabo entre as pernas, se achegando, pedindo colo, lesado. Foi quando apareceu. No topo de uma laje amarela, achatada, um deles, rodeado de uma matilha de grandes cachorros avermelhados, com listras pretas como sendo de onça: guaraçus domesticados, que iam saltando e lambendo as mãos do cujo, os focinhos afilados pedindo caça. Ai foram atiçados e vieram sobre eles — Zé Benta e o cachorro, que escafederam barranco abaixo, rebolados, até darem noutra gruta, parecendo igreja iluminada por lampiões compridos e grandes, pendentes do teto e ali ficaram ouvindo os tropéis e latidos lá em cima e do lado, até quando chegou noite alta e o facho da estrada de luz voltou a aparecer pela boca da toca e seguindo o descampado sem fim. E pegaram o caminho de volta — pelo feixe de luz do espraiado — noite a dentro, até que ele — Zé Benta — deu 25 por si deitado no alto do Catolé que nasce na laje do Quebra, e o cachorro latindo como doido, pulando em pé, batendo com as patas no tronco da palmeira. Na casa de seu Eduardo, dentista, a Conspiração fiscalizava a madrugada da festa da Virgem da Conceição da Meruoca, na continuidade dos planos da revolução, organizando os pelotões de luta e as espertezas e armadilhas da rebeldia: Para as três bocas de entrada da Vila — a de Sobral, no Quebra, a de Massapé pelo Atalho, a da Palma por Bom Jesus — foram despachados como sentinelas, seis decuriões afeitos ao oficio de entocaiar caça grossa: Dois a dois, um de cada lado, ficavam de rede armada no olho dos pés-de-pau, pastorando a chegada dos soldados herejes, vindos de Fortaleza — para o fim de deixar que entrassem, sem estorvo na Meruoca e lá ficassem acuados, sem saída pelas entradas vigiadas. O aviso da chegada deles -- soldados — era pra ser em mensagem secreta, à moda de pios de téo-téo: um pio para cada soldado de reforço, repetido pelas sentinelas até chegar na casa de seu Eduardo, dentista, quartel de chefia. Seu Zé Laureano, comandante do pelotão de ataque, •camuflando sua tropa de decuriões no mister de roçar e cortar cana e temperar mel no engenho de rapadura. Coronel Avelino mais Zé Benta tinham que se misturar com mulheres, crianças e romeiros, organizando a formação da fila da Irmandade Integralista para os rituais da procissão, em fila dupla, na retaguarda das outras confrarias. Todos de fitas verdes penduradas no pescoço, com medalhas de duas faces: Nossa Senhora da Conceição de um lado, o Sigma de outro. Padre Gerardo lavando as mãos, no arriê (sendo homem de religião, não podia participar de uma luta fraticida, que continuava adepto das doutrinas integralistas, Anauê, 26 porém que se mudasse o Governo por meios pacíficos — na pregação; que achava uma heresia e não podia benzer medalha do Sigma junto com a da Virgem...) saiu para rezar missa e organizar a procissão. Distribuídas as tarefas militares garantidoras da vitória da Ação Integralista, seu Eduardo, dentista, carecia de ficar em vigília de guarda na sede da Chefia Regional para o fim de assumir, mais seus lugares tenentes — no término da luta — o comando do Governo Setorial Provisório da Terça da Meruoca, executando os atos de poder e mando, necessários: Confinar as tropas inimigas (do Governo) na Cadeia, rendidas. Negociar com o Bispo D. José, o apoio da Igreja ao novo Governo Provisório. Depois, (seu Eduardo, dentista, comandava a si mesmo passeando no consultório e decidindo) era descer a serra para fazer alastrar-se a marcha Integralista pelo sertão afora, a partir de Sobral sob o comando do Professor Abdias da Ponte, rumo a Fortaleza e voltando a correr, pelo Brasil como força incontrolável, incorporando pelo caminho todos os patriotas que ainda amam a nossa Pátria querida, iluminada por Deus e tendo por base a honra da Família. A madrugada do dia da festa da Virgem rompeu com o repicar da primeira chamada dos sinos da Igreja soando, mais a luz na serra inteirinha, esbarrando em todas as paragens: Seu Zé Laureano, de camisa verde, tangendo boi de moenda, no disfarce (muito mal ajeitado naquele serviço de fingimento, pois que era mais afeito às afrontas de sinceridade, de disputa corpo-a-corpo, no vamos ver). Na voz do toque do sino já foi logo se afobando a cabroeira, mode formar o pelotão da Decúria para subir rumo à Igreja no toque da terceira chamada. 27 Nas redes de tocaia, os decuriões-caçadores, na voz clareada do chamado do sino, reacenderam o alerta na mira dos • rifles, pastorando salda dos dezesseis soldados entrados pela madrugada e já anunciados (por eles vigias, mediante o combinado) com dezesseis pios de téo-téo. Agora era só serviço de• paciência de caça: olho na estrada, mão no rifle. Soldado aparecido era soldado morto. Os dezesseis soldados da tropa de reforço arriavam o enfado de subir a serra, rebolados em pencas pelo chão da cadeia, quando foram assustados pelo sino e chamados à ordem unida por um sargento-comandante, Jasafat Camerino, porta:. voz representante do Governo para combater e sufocar a rebelião dos galinhas-verdes da Meruoca: a ordem era pra não sair atacando a torto e a direito; tinham mais era que descer para o largo da Igreja, em formação militar — impondo temor de força — na voz do toque da terceira chamada do sino. Em casa do Coronel Avelino, ninguém esperou .toque de• sino nenhum para deixar tudo nos combinados de véspera: quando deu a primeira chamada da missa, Dona Maroca mais os meninos (patrulhados por Zé Benta) já corriam a lacochila das casas das comadres, engrossando em cada uma, as filas da Irmandade Integraltsta, naquele aperreio de finalizar os ajustes das paramentas de camisas, fitas e medalhas, com o bruxuleio das lamparinas. Na retaguarda, Coronel Avelino arranjava e dava ordens a seus próprios cabras, que desengonçados nas vestimentas paramentais — com fita e tudo — saiam para engrossar as filas dos irmãos de opa da Irmandade Integralista. No toque da terceira chamada do sino, todo mundo tinha que estar formado no adro. Seu Eduardo, dentista, inquietava o passo, caminhando em pose de comando, medindo a casa, no aperreio da espera da terceira chamada de missa, quando precisava (era o pactuado) disparar o foguete de alerta. 28 E estava tudinho neste pé: devotos, beatos, romeiros (em cantos de paz) e todos os revoltosos dos dois lados (em tocaias de guerra), se juntando no largo, da Igreja, debaixo das bati• das da terceira chamada do sino, quando, de repente, papocou aquele foguete de seu Eduardo, dentista, feito um tiro de arma e provocou o desatino do rebuliço da emboariça, já sem , • lei e nem comando, no desenfreio: Os soldados que desciam em filas cavilosas, intimidando •com as armas, no som do estouro de tiro do foguete se bota• ram a correr assustados, em bateria cerrada de combate, indo. • dar justinho de frente ao grupo de seu Zé Laureano, que subia • para o largo pelo lado contrário. • Aí foi a guerra de verdade da Revolução Integralista da Meruoca: seu Zé Laureano sendo baleado pelo tal SargentoComandante Camerino, bem no meio do peito. O povo todo desembestado pra todo lado na gritaria, menos a Irmandade Integralista, Anauê; e as tropas governistas se botando à toda ,carreira pra cima da Irmandade Integralista, enfileirada no adro da Igreja. E foi então que se deu: • Zé Benta escapuliu da fila com uma faca na mão e um cacete de jucá na Outra, peitando a tropa toda, saltando e • gritando feito um capiroto (Na Irmandade Integralista ninguém bole); e assim como foi visto no meio deles — governis•tas — riscando faca e batendo cacete, deixando no rastro, • bem juntinho do adro da Igreja, sete soldados herejes esfaqueados e mortos, assim mesmo Zé Benta sumiu — num piscar de olho — nos cafundós da Serra da Meruoca, para nunca .mais. Diz que encantou e de vez em quando é visto pelas ma, drugadas, montando uma grande mula branca e peluda, cercado de guaraçus. As noticias eram alarmantes. 29 Os que, vindos da feira subiam a pé pelos atalhos da serra, espalhavam as emboanças e os despropósitos de fim-de-mundo, cheios de tiroteios e morte. Os tropeiros de jumentos que demandavam a Vila da Meruoca no topo da serra, pela estrada da Floresta, ditavam pelo caminho desgraças maiores e mais longínquas: Luiz Carlos Prestes — o grande chefe dos comunistas — invadiu o Senado montado em seu cavalo branco, rodeado dos revoltosos e vai implantar no Brasil o comunismo maçon e ateu! 30 '•1776-àr gra/ ere~ monr.fty,70;s7 dilik t "dip rr À yr, rt , ‘nneár. ilelin A," ' ( kt • liViTAIIII i I ‘'• Nr...... k34114‘ in , --------~"--;ç4\\,\\W 0 \1,,: /4 \\,'II- "rim • ~*.""Nx-nci( ce( ntakWt~CLIPEra; r tP »41 ,11/4W Ittifitrall% ‘• 4 wird i i QUEIJOS S ebastião sentou do lado da janela; o trem saiu e ele espiou o mundo lá fora, se afastando. O queijo estava despachado e o conhecimento ali no bolso de dentro, bem guardado, junto com o papel de encomendas da Ercilia. Tudo em ordem. Aconchegou-se no banco de palhinha trançada, amolecendo o corpo despreocupado, olhando com interesse novo a paisagem conhecida. O rio — uma risca lustrosa — corria do lado, pegando parelha com o trem, deixando a cidade para trás, confundida nas manchas verdes do morro, meio encoberta pela fumaceira branca dos hotéis. Grupos de veranistas, surgindo de vez em quando nas veredas laterais, nas curvas da estrada de rodagem, faziam gestos barulhentos de cima dos cavalos que galopavam, sem sair do lugar, levantando poeira amarela. Sebastião sentiu uma alegria quase infantil, contagiada de sol. Buscou comunicação no riso oferecido: — Bonito dia, né? Bom pra viajar. 33 — É. Está agradável, sim. O senhor vai até onde? — Cruzeiro, né? Aquele "né" caipira repetido na pronúncia cantada deulhe vergonha, de repente. O homem gordo notara, com certeza! Era um sujeito de traquejo, estava se vendo pelo terno bem assentado, pela fala compassada na pronuncia bonita. — Mora lá ou vai a negócio? Sebastião animou-se, caprichando no sotaque para sustentar conversa: — Negócio... quer dizer, de vez em quando vou por lá vender uns queijinhos... — Ah, sei, sei. Mas queijo em Cruzeiro dá bom preço? — Quer dizer.., dá mais ou menos, né? Falou embatucando na resposta embarsran, mas a conversa continuou por algum tempo e ele ouvia com satisfação a própria voz conversar sobre negócios, sobre politica, com o homem gordo e limpo, de terno azul e fala mansa. A cabeça encostada no banco, sentia o embalo gostoso dos solavancos. De quando em vez falava alto, precisando de auditório, desejando que o povo do Brejo o visse naquele momento importante, considerado. E a Ercilia. Queria ver depois ela achar -lo assim daquele jeito, com casca e que ele era mole, tratá tudo: — tôt Bastião, tu não estás vendo que o frangão preto não deixa as bichinhas comer, homem de Deus? Deixa de ser mole, criatura! Vive ai matutando que nem bobo, sem ver as coisas... Que raiva que dava dele mesmo! Capionga, obedecendo sem ter o que falar, tangendo o franga°. Mas o que é que havia de fazer? As galinhas precisavam de comer e a mulher, coitada, não podia dar conta de tudo sozinha. Era isto mesmo! Só que não carecia daquele enfezamento todo, né? Aquilo 34 •também era uma raiva só de boca, ele sabia. Mulher boa e trabalhadeira está ali. Se afoba toda no trabalho, esgoelando sozinha, sem esperar briga. Resmunga de passagem, xingando os bichos, ralhando com o menino choraming'áo... daqui a pouco está de cócoras lá em baixo, no boqueirão, batendo rou• pa numa cantoria danada, que espanta os passarinhos. É jeitoSebastião arrumou-se no banco e ouviu, subindo das rodas do trem, a cantiga velha trazendo o tempo de menino: CAFÉ COM PÃO • BOLACHA, NÃO • CAFÉ COM PÃO BOLACHA, NÃO... A barriguinha estufando, redonda acima do cós da calça de algodão, ele corria para abrir a porteira, quando cavalos • de veranistas se aproximavam do brejo. — Moço, me dá um tostão... Ercilia, o choro do menino, roupas batendo no silêncio do morro, tudo se diluía ,esgarçando-se na velocidade. Se importava lá que o frangão preto comesse a mandioca das galinhas!... Sorriu amarelo para o homem gordo e olhou do lado donde vinha o cheiro forte e bom: uma mulher descascava mexirica, que a mocinha, enjoada, não queria chupar. — Devia de dar a casca que é melhor — Sebastião pensou alto. O homem gordo pegou a deixa reatando conversa, querendo saber sobre os queijos: — Umm? Falou comigo? — Não, senhor. Estava dizendo aqui com meus botões que casca de mexirica é bom para enjôo. — Ah, sei... 35 — Pois é, né? — Mas o senhor sabe, eu estive pensando; sem querer me intrometer, acho que o senhor devia vender seu queijo era em São Paulo. Sebastião esboçou uma canta, coçando a nuca com desânimo. — Muito difícil... — falou por falar. — Como difícil? O senhor conhece São Paulo, não conhece? — Não senhor. O homem gordo sorriu penalizado e compreensivo, e continuou a falar com segurança, decidido a resolver a questão: — O senhor me desculpe, mas não tem nada de difícil. É tudo ali na Cantareira e na Paula Souza, pertinho da Estação, muito fácil. É pegar o melhor preço e vender o queijo. Sebastião, meio abatido, olhou para o homem com desconfiança e respeito. Parecia vê-lo ativo e familiar na cidade enorme. Aquela conversa começava a intimidá-lo. Melhor confessar logo que não tinha queijo nenhum pra vender, acabar com aquela pabulagem de preço e de comércio... Mas pra que? Ninguém estava lhe perguntando nada. Tinha que ficar era calado, fugindo da conversa: "sim", "não", "6" e está acabado. Tranquilizou-se, sorriu para dentro e procurou imaginar-se metido no movimento de São Paulo, procurando preço na Cantareira e na Paula Souza. Sentiu um medo presente misturado no alvoroço bom que o atraía desde menino. Aquilo sim era vida! Um homem viajado, vendendo queijo em São Paulo, voltando cheio de pacotes e de assuntos, desembaraçado, alegre, respeitado: — Quando é que você vai a São Paulo, Bastião? — Qualquer dia. — Pode me fazer um favor? 36 Fazia. Ou então morava logo de urna vez em São Paulo. Vinha a São Lourenço só a passeio; veranista! Mas como é que podia fazer alguma coisa agora, com a Ercilia mais o menino? Muita responsabilidade. Devia era ter fugido quando rapaz, sem ligar para as brigas de casa, isto sim. Não tinha fugido naquele tempo, né?... O velho morreu, a irmã casou e arribou para Belo Horizonte e quem ficou enterrado lá no Brejo foi ele. Criando galinha, dando comida pra porco, arrastando-se com preguiça pelo terreiro, de olho comprido nos "horários" e nos tiopéis dos veranistas, sem se incomodar mais nem com os gritos da Eterna, nem com o apelido calejado: — Bom dia, seu "Paulistinha", como vai tudo ai? — Vai-se vivendo, seu Raimundo. Acostumou-se. De primeiro ficava fulo, brigava com todo mundo. Uma vez quebrou um taco de bilhar na cabeça do Zeca Charreteiro. Lembrava como se fosse hoje: estava lá, fazendo pontaria numa bola arriscada, quando o moleque entrou falando muito e chamou ele de "paulistinha". Do jeito que estava, só fez virar e baixar o taco na cabeça. Quase matou o negrinho. Ainda hoje tem lá a marca. Também, naquele dia quase fica doido e resolveu ir-se embora, desse no que desse. Devia ter fugido mesmo, mas amoleceu e foi falar com o pai, que não podia mais ficar ali, que ia arribar para São Paulo, como toda vida teve vontade. O velho sentado no terreiro a pipinar mandioca pras galinhas, resmungou cuspindo de lado e sugando a mecha de fumo melado, que lhe enchia a bochecha: — Conversa besta, menino... • • A Ercilia, naquele tempo era uma mulata novinha e bonita que andava atrás dele e compreendia tudo. Escapuliu com ela para o boqueirão de baixo, e lá, no escurinho dos bambus, deitados numa moita verde, planejaram uma porção de coisas, desabafando, sozinhos, no chiado do mato. Ercilia 37 estava deitada na moita verde, bem corada, com os olhos muito grandes e o bafo cheiroso. Um apito fino puxava o trem das quatro pela curva do morro e a Ercilia agarrava-se a ele, pegando fogo, revirando os olhos, fungando rápido, com aquele bafo muito cheiroso. Falava quase gemendo, querendo ir pra onde ele quisesse... Sebastião sentiu a mão esquentando no joelho e olhou assustado para dentro do vagão, como se tivesse feito alguma besteira. Assustara-se à toa. Estava tudo em ordem, ninguém reparava nele. A mulher em frente tentava dar mexirica à me- • nina enjoada e o homem gordo do lado, dormia, amontoado, perdendo o compostura. Arrumou-se, achando graça na coisa. Ele também precisava era tirar urna soneca, pois não tinha dormido a noite toda: o moleque agarrou a choramingar, não se sabe por que, a &cilia enfezou-se, ralhou, até bateu nele, mas não teve jeito. O menino parecia um bezerro desmamado. E de madrugada foi o diabo daquele fumaceiro fedorento de pau verde, sufocando a casa inteira. Acordou tossindo. Bem que estava cansado de falar pra mulher não botar graveto verde no fogo, mas qual!? Cabeça dura está ali. Só sabe é ralhar quando é ele quem esquece de alguma coisa; lá isto sabe! E às vezes ele nem esqueceu coisa nenhuma. Aquilo já é costume. É todo dia a mesma coisa. De manhãzinha ainda, ela pega o menino e desce para o boqueirão, pra bater roupa. Daqui a pouco está gritando: — Õ Bastião! Chama estas bichas pra comer, homem! Ninguém pode trabalhar com este aperreio. Ele levanta se espreguiçando, vai ao caritó da cozinha, pega nina mandioca crua e o facão que era do velho. — Já vou. Volta pro caixão do terreiro, escora o espinhaço na parede, bate com o facão na lata e começa a pipinar mandioca. As galinhas correm para o terreiro num alvoroço, bicando as • migalhas. E ele tem que vigiar o frango.° preto. Qualquer dia mata aquele bicho. 38 O trem agitou todo mundo com o solavanco. Sebastião assustou-se, pôs a mão no bolso, apalpando o papel das encomendas da Ercília e o conhecimento dos queijos do Coronel. O homem gordo acordou se arrumando e sorriram com falta de assunto. Um apito anunciou Cruzeiro. Sebastião mexeu-se sem animação, espiando desconfiado para o homem gordo, com vergonha da pabulice: "vou a negócio, né?" "vender uns queijinhos de vez em quando" "em São Paulo o queijo dá mais lucro ..." Conversas! Ele ia Mesmo era entregar os queijos para o seu Zé Xavier, que o Coronel mandou. Era entregar à conhecimento, receber o dinheiro, comprar umas bugigangas para a Ercilia e tomar o horário noturno, de volta. Bem que já tinha pedido ao Coronel um dinheirinho emprestado para negociar, mas ele dava? Uma ova! Só fazia era prometer no. tempo das eleições. Desceu meio tonto e caminhou para a venda do seu Zé Xavier. Encostou-se no balcão, tirou o chapéu e deu uma coçada na cabeça: — Como vai, seu Zé? - Ci Bastão, como vai tudo por lá? — Vai-se vivendo, né? — Trouxe o conhecimento? — Taqui. Seu Zé entrou com o papel e voltou com uma garrafa e um copo: — Toma uma pinguinha pra rebater a poeira? — Pois sim, aceito... Sebastião recebeu o dinheiro e ficou por ali bebendo umas talagadazInhas de pinga e conversando sobre a viagem, fazendo tempo. Falou do homem importante que sentara com ele, conversando de política e de negócios, do comércio de São 39 Paulo, da Cantareira, da Paula Souza, aquela coisa t,oda. Seu Zé conhecia, muito: , .. — Um colosso! Movimentação! Juntou uma rodinha em volta e Sebastião tomou mais: umas cachaças fazendo plano em voz alta. Quando saiu, esta- , va leve, flanando, e tentava pisar forte para prender-se ao. • chão movediço. Andava muito depressa, decidido a "torrar", toda a bicharada quando chegasse e ir pra São Paulo, vender.. .. queijos na Paula Souza..., Subiu os degraus da Estação meio em falso, quando deu,.. fé nas mãos vazias. Voltou correndo e foi comprar as encomendas da Ercilia. 40 daki 7 ia IMAI02111111Tliiiin Lkilg COCA-COLA cheiro ruim fez Arnaldo voltar à realidade. Os olhos pesados abriram-se com preguiça e leram pedaços da quadrinha rabiscada na parede suja: "Dedo não é pincel" O Os pés, meio esquecidos, descansavam no chão molhado e brilhante — porcaria! Do lado de lá da porta, a mesma zoada sem fim, misturada na música estridente. Arnaldo começou a chorar abafado, pequenininho, achando que era uma absurda ruindade deixarem-no ali escorado na parede porca, •muito zonzo, o cuspe grudado na boca inchada e insensível, sufocado com a catinga que aumentava sempre. E aqueles •jornais velhos encrespados, amarfanhando notícias sujas... Por que diabo havia de ficar estatelado naquela nojeira? Pre•cisava sair, curar o porre lá fora. Teve um arrepio de raiva sufocada e cambaleou decidido, abrindo a porta com um tranco que o pôs, de chofre, aos trambolhões, na confusão do forró. 43 Escorado no balcão do bar, gritou pedindo cachaça, pra desmanchar o cuspe grosso, que parecia grude. No segundo copo o cuspe afinou. Remexeu os bolsos, inquieto, sem saber direito o que procurava, enquanto uma quentura gostosa começou a lhe subir à cabeça, trazendo lembranças. O cigarro apareceu, amassado no bolso da calça. Arrancou um, equilibrando-o no beiço relaxado, dando palmadinhas no corpo, à cata de fósforos. Não tinha: — o seu menino! Traz aí um fósforo e dá mais uma cachaça. Lenira estava no Recife e ele precisava avisar a mãe, coitada, tirá-la daquela preocupação medonha — um caso sério. A pobre vivia chorando sem parar, desde o sumiço da menina e, ainda por cima, tinha a bebedeira do velho, desempregado, aporrinhando em casa, discutindo, pondo culpa num e noutro pra aumentar o aperreio da velha. Já estavam ate dizendo que aquilo é coisa de espiritismo. Seu Donato da• bodega é que tinha vindo com aquela história, falando todo jeitoso: — Olhe, Arnaldo, aqui muito pra nós e que ninguém nos ouça, eu acho que o seu Cosme está é com o espirito do finado Damião no corpo. Você é porque não se lembra, mas é mesminho que estar vendo o pobre do irmão, quando pegou a beber, coitado. Não leve a mal não, meu fillho, que eu falo por bem querer. Se eu fosse você levava ele numa sessão. Acreditava lá nestas conversas! Seu Donato pode ser muito sabichão, mas este negócio de espirito é lorota, desculpa amarela. Pra que botar papas na língua! Falta de vergonha, de responsabilidade, é que era! Um dia destes, ainda ia pegar o velho de jeito, falar português com ele: — Olhe aqui, papai, vamos acabar com esta gritaria em casa, que é melhor! O senhor precisa é tratar de arranjar um emprego seja lá do que for e — quer saber de uma coisa? — é melhor também parar com esta bebedeira o tempo todo, 44 •está ouvindo? Aqui em casa ninguém tem culpa de nada. Al• guém mandou a menina fugir? Ela fugiu porque bem quis, não foi? Pois está acabado] Falava, ora se não falava! Também não era homem? Tinha que tomar providências, coitada da velha! Nem sabia o ' paradeiro da menina. Ele precisava dizer pra ela que Lenira escreveu do Recife, muito mansinha, inocenterinha, dando só notícias muito boas, uma santinha... — que não se incomodassem, não, que ela estava muito satisfeita, morava numa pensão s6 pra moças e mandaVa um dinheirinho para ajudar em casa... — Puta! — gritou em voz alta, dando um tabefe no copo. E o grito acomodou-se familiar, na bagunça no forró. Pediu outra cachaça, fungando muito de raiva. Pensavam .que ele era algum burro? Casa de pensão só pra moça é chat6. E a Estelinha também devia estar noutro. Vaca! A bandinha do forró arrastava, fanhosa, um maxixe buliçoso e todo mundo pinotava desenfreado no chão inseguro, à frente de Arnaldo. Os gringos em fardlies marron desbotado, bebiam, gritavam com a fala engrolada, dançavam desengonçados, balançando os quartos grandes, vermelhos como o diabo, quebrando coisas, comprando tudo. As mulheres, vendidas, se avacalhavam oferecidas e decompostas. Mulheres de fora — pensou num abatimento. Vinham de Natal e do Recife, fugidas dos noivos, dos irmãos, da família. E as daqui vão pra lá, como a Lenira, como a Estelinha. Uma •esculhambação! — sorveu a bebida de um só trago e sentiu o fogo a se espalhar em ondas pelo corpo — Tudo culpa dele, está ouvindo? Ninguém tem culpa, uma oval Estava ali, pra quem quisesse ouvir. O culpado era muito ele. Então não foi se meter com os gringos, feito besta, naquele negócio de ser intérprete? Bem feito. A velha dizia sempre, muito jeitosa, com medo que ele se zangasse, coitadinha: 45 — Meu coração não está pedindo este negócio, não, meu filho. Eu sei que você não ganha muito bem e que se preocupa em melhorar, pra gente mesmo. Mas a gente não vai vivendo com a graça de Deus? — Sabedoria. Muita sabedoria está ali naquele jeitinho humilde. Pressentimento também. Este negócio de pressentimento de mãe é coisa muito séria, muito séria mesmo. E ele ouviu os conselhos da mãe? Coisa nenhuma! Não ficou não foi gritando com a pobre da velha, -que sabia muito bem o que estava fazendo, que não era nenhuma criança e que ela não se metesse nos negócios dele? Bem feito.., agora, aguentasse. — Bem feito — resmungou desconsolado e o garçom, de passagem, serviu-lhe mais uma cachaça. As meninas não tinham culpa, de jeito nenhum. Lenira era uma santa, tão magrinha de cabelo espichado, todo mundo sabia disso. Filha-de-Maria na Igreja de São Gerardo, aspirante de fita-cor-de-rosa. Quem é que ia se botar a besta com ela? Pois é. Ninguém ia bulir com a bichinha, comungando todo o dia feito uma santa, se ele não tivesse se encasquetado com aquela leseira de ser intérprete, enchendo a casa de gringos; ia? As meninas não tinham culpa, não. Os jipes rolavam disparados, pra cima e pra baixo, chiando no asfalto, gritando nas curvas, enchendo a cidade de capotas amarelas, fardas amarelas, caras encarnadas, levantando a poeira do Barro Vermelho, derramando nas ruas, nos caminhos, a música sacudida dos rádios; risaclinhas gasguitas das namoradas corajosas, visões de bandeirinhas e de cabelos ao vento. Muita alegria! Nos filmes coloridos, -todo dia, em todos os cinemas, também era assim e eles eram mocinhos heróis, coitadinhos, formidáveis. Namoravam as meninas da terra, beijavam as meninas da terra. Formidável. Eram amigos de todo mundo, curvavam-se todos, simpáticos, engrolando amabilidades, entrando na casa adentro: — Mister Dos Saentos, Missers Dos Saentos, Miss Dos Saentos... 46 t it •Fii dumas éguas! • 9 preddy O'Hara, aquele baitola todo pintadinho, cara a de lua cheia e cabelo de milho, parecia o Van Johnson, tocava -violão 'e fazia beicinho quando cantava o Star Dust com aquela gasguita de marreco brabo. A Estelinha se agalinhava de •olho comprido e ficava se apurando: Como eu sou louca pelo Star Dust! • Mike; encarnado, bonitão, ria sem parar mostrando os dentes muito brancos, falando inanso: • •— Miss Dos Saentos is very beatifull • Lenira morria de achar graça, avermelhando, acanhada, • sonsinha. Mas depois se danavam o tempo inteiro naquela brincadeira besta de aprender português, de faz biquinho, de Pronuncia bonitinho, de carinha assim, carinha assado: — Diga: Le-ni-ra . Lê-nil-rra , Que bonitinho, qui,qui,qui... •• Uma galinhagem danada! 1 • -Mas a bichinha tinha culpa, por acaso? Tinha lá o que! Não foi ele que lhe botou os marmanjos de casa a dentro? Pois . tal. E depois, teve pelo menos coragem de tomar providências, ...toes/ os bichos pra fora? Coisa nenhuma! Só ficava era es• piando tudo naquela lerdeza danada, feito égua: — Tem nada não, minha gente! — Amorna daqui, amorna dali, espalhaque a menina era coca-cola; que andava pra cima e pra baixo com os americanos, não sei que mais lá — tal o que ele queria! Foi expulsa da Congregação, deixou de ir à Igreja, gritando com a mãe, com todo mundo, pintando o cabelo de • amarelo... Sem vergonha! Arnaldo sentiu a boca amargando, pegajosa. Zonzo com aquela barulheira dos quintos dos infernos, de gritarias, tinir .• 47 de copos e garrafas, a musiquinha fanhosa, baticum dos pandeiros e dos pés na dança esculhambada. Precisou tomar uma cachaça, consertar a atrapalhação das idéias. Bateu o fundo do copo no balcão: — Bota uma aqui! Enquanto lhe escorregava o líquido, queimando pela goela abaixo, pelejava para reter as lembranças, que chegavam e se afastavam, misturadas e imprecisas. Não se lembrava direito das coisas. Não sabia nem que diabo de lugar era aquele. — Ei chefe! Que troço é este aqui? O homem, atarefado no balcão, não queria conversa. — Pombas! — bateu com os punhos, enfurecido — vão ou não vão me dizer o nome desta porcaria? — Hollywood — veio a resposta seca. Arnaldo começou a rir, uma risadinha fina e espremida que não parava. Achou que só podia era estar muito bêbado mesmo e caiu na gargalhada. — O "Hollywood" — perdia o fôlego na risada boba — Imaginem ele perguntando onde era o "hollywood", forró dos gringos! Tinha até graça. Suas risadas se misturaram noutras gargalhadas sem sentido, em conversas incompreensíveis que vinham da sala muito grande, cheia de fumaça e da escuridão triste das luzinhas vermelhas. Cadê a música? Assustou-se querendo saber o que estava fazendo ali, bêbado uma hora daquelas, com a pobre velha lá, sozinha naquele casarão, mais o pai espiritado, sofrendo sem saber de nada. Precisava levar-lhe as notícias da filha. Mas como? Ia falar pra ela que a Lenira tinha virado rapariga da zona do Recife? Pobrezinha da Lenha, tão magrinha, tão bonitinha, do bordado pra Igreja, da Igreja pro bordado — Santinha do pau oco, do cabelo espichado! — Deixa de sê besta, menino! Mamãe olhe aqui o Arnaldo mexendo com a gente... — Como é que ela foi fazer uma coisa. 48 'destas? Contraiu-se com o choque tremido que lhe subiu do •estômago e os olhos inchados encheram-se de água fervendo. • Ele é que devia ter ouvido os conselhos da mãe, filho ingrato! A cabeça pesada pendeu devagarinho, apoiando-se, com o 'cp.-tabu), no buraco da base do pescoço. O corpo inteiro tremia, prendendo choro. A música pipocou de novo, enchendo a casa. Arnaldo em• pertigo.u-se de repelão, se equilibrando, os olhos muito abertos, atirados no espaço, cheio de imagens volúveis. "• Um bestalhão é o que ele era. Coca-cola, empregado dos gringos, ganhando uma fortuna, falando inglês com os gringos; aiTumando mulher pra eles — rangeu, com raiva, os dentes desbotados — bestalhão! Mas ele não quis? Pois tai. E não foi falta de quem lhe avisasse, não. A velha, coitada, falava o tempo todo, seu Donato da bodega, todo mundo. Seu Donato da bodega era um homem experiente, falava manso, o gogozão passeando no pescoço fino: — Arnaldo, mais vale uma pomba na mão do que duas voando. Pra gente minha, mesmo, eu não queria este negócio, não. É não trocar o certo pelo duvidoso, meu filho. Mas a Estelinha, toda assanhada, botava fogo nele. Rapariga sem vergonha! Que era um emprego de posição, que dois contos e quinhentos eram uma fortuna, que estavam era com inveja dele, que podiam até casar, que era uma beleza, não sei que mais lá... Filha de uma égua! Pois agora devia estar caçando marinheiro no cais do Recife, pra não ser besta. • Também, o que é que queriam que ele fizesse? Ficar a vida toda naquele emprego de merda, trabalhando de dia e de noite como um jumento, tomando conta de tudo, seu Arnaldo •faça urna carta pro Banco, seu Arnaldo o fiscal vem amanhã, olhe os livros, hein?, seu Arnaldo qual é o preço disso, qual é •o preço daquilo, seu Arnaldo faça uma carta pra Conchinchi•ma ... Se matando todo pra que? Ganhando oitocentos mil •réis por mês e a mãe com a irmã se acabando de trabalhar na 49 cozinha, ficando corcundas nos bastidores de bordado e o velho desempregado, bebendo cachaça e discutindo guerra na• bodega do seu Donato... também não precisava de dinheiro, não precisava se casar? Aquilo era vida? — Uma ova! Gritos espasmódicos anunciaram o "Balanceio" no salão do forró. Arnaldo arregalou os olhos, mas não conseguia fixar as coisas pastosas, que bambeavam, diluídas na fumaceira escura. A cabeça pesada embaralhava, com teimosia, pensamentos pegajosos. O preto Nathaniel, banhado de suor, lustrava, gemendo no pistão, o pescoço muito grosso fazendo dobra na nuca. That's good, Nat boy 1 Gente muito boa nos bailes da Base Aérea, coisa formidável. Uma bebedeira danada de rum com coca-cola. MISTER ARNALDO DOS SANTOS E EXMA. FAMÍLIA CONVITE ESPECIAL Mike, muito meloso, de braço com a pobre da velha, encabulada no vestido novo, rindo amarelo. Lenira e Estelinha davam gargalhadas, amassadas pelos gringos no salão... — Dá mais uma, ai, seu menino! Vou já acabar com essa • sacanagem. Virou a cachaça de um trago, e levantou avançando pelo salão, tonto como o diabo. Atravessou, sem direção, conversas em voz alta, risadas insultantes, perdido na cantoria doida que balançava todo mundo: EU VOU ATÉ DE MANHA. SÓ NESTE BALANCEAR! Orra, diabo! Estão esfaqueando mais gringo por ai do que boi de curral do açougue. Bem feito! Estão pensando que isto aqui é casa de Mãe Chica? Por mim, eu digo, buliu com filha minha engole ferro. 50 Arnaldo girava, boiando na sala barulhenta, entre gringos imensos, encarnados, que balanceavam inseguros, numa algazarra incompreensível. Ele era intérprete e não entendia nada. Mulheres pequenas e decompostas passavam arrastadas, se rebolando. • Mexeu com mulher minha engole feno! Buliram na irmã dele, na noiva dele — aquela galinha! e ele ali bebendo cachaça. Não estava direito. Tinha que dar um jeito nisto, uma esculhambação. OI BALANCÉ, BALANÇA BALANÇA PRA LÁ E PRA CA O gringo deu uma risada endinheirada, agressiva e agarrou a mulherzinha miúda. Mike, com o riso muito branco falava bonitinho "mama" pra cá, "mama" pra lá. Lenira magrinha, de cabelo amarelo, expulsa das Pilhas de Maria, engulhava muito, gemendo, fazendo a velha chorar. Na rua xingavam a bichinha de coca-cola e ela fugiu para uma casa de raparigas, no Recife. Gargalhadas canalhas esculhambavam o ambiente, casa de Mãe Chica. Mike passou se balançando. Mike rindo branco, simpático, mete a mão em todo mundo. Era preciso acabar com isto de uma vez por todas, dar uma lição nos dumas éguas. Então, que diabo é que estavam pensando que era isto aqui? Ia já mostrar pra eles, agora mesmo. Arnaldo suspendeu uma cadeira no ar e ficou bamboleando com ela, aos tombos, no meio do fordunço. — Cadê os gringos valentes daqui, hein? Atirou, no meio do reboliço, a cadeira pesada. A música acabou, abafada pela gritaria histérica, enquanto outras cadeiras e uma porção de garrafas passavam, a voar, na confusão. A mulherzinha, esganiçada, berrou se es, fregando no americano. 51 Estelinha arribou agarrada com um gringo, aquela sirigaita vagabunda. Arnaldo tombou com o empurrão de repente, caindo escorado sobre a mesa, esparramando garrafas, com a mão no saca-rolhas. Viu o Mike muito encarnado e os dentes brancos, gritando, na algazarra, se debatendo, em toda parte. Um gringo aproximou-se bufando, abrindo caminho e deu um safanão na mulherzinha guenza, que caiu gemendo. Buliu com mulher minha engole ferro! Arnaldo apertou a mão no saca-rolhas — ia acabar já, já com esta esculhambação! — girou com dificuldade e enterrou o ferro, até o cabo, na barriga do gringo, vendo o sangue espirrar. Uma cadeira vinha rodando no ar, muito perto, e escureceu tudo. A policie, bateu no forró do Benfica. O rapaz com a cabeça• rachada tinha no bolso do paletó uma carta, em cujo envelope ensebado estava escrito: Ilmo. Sr. ARNALDO DOS SANTOS Intérprete da Base Aérea do Cocorote FORTALEZA — Ceará 52 E IU Lur fjj(ffiit I INV MENNIII; r EIE VVVVIIII1lIIIIVIVII1111111101i1V111 . Vil — PERNILONGOS homem exerce seu bico noturno, sem pressa e sem enfado. O tronco ligeiramente inclinado sobre a mesa, apóia-se nos braços magros de mangas arregaçadas, numa postura permanente. Apenas a mão direita se move em vai-evem miúdo e descansado, trabalhando, enchendo de pequenos números a multidão de• quadrinhos, na grande ficha escolar. Em tomo, muita luz, muito silêncio. Um silêncio sonolento que vem das salas de aula e encomprida-se pelos corredores abandonados, abate-se sobre o salão da secretaria, onde o relógio caminha mudo, sem tique-taque. A espaços, alguma longínqua conclusão magistral reboa solene pelos desvãos: — Portanto! ... E o silêncio cresce em pasmaceira, tomando corpo na brancura azulada da luz fluorescente. Os quadrinhos da grande ficha embaralham-se por um istante — brancos ou pretos? — mas logo se recompõem, recebendo números. 55 O guincho estridente e fanhoso da campainha elétrica surge de inopino, desmontando o silêncio, movimentando gente e barulho pelas escadas. Endireita-se aliviado, porém sem nenhum entusiasmo. Confere o relógio: dez e trinta e cinco, e põe-se a ordenar alguns papéis que espalhara sobre a mesa, aguardando a cessação da tropelada dos alunos, que estouram pelos corredores. Em seguida fecha as gavetas, retira o paletó do encosto da cadeira, diz boa noite e sai, muito calmo, dirigindo-se à escada velha que dá acesso à rua. O caminho é o mesmo e com um polico, sem se aperceber, encontra-se no restaurante expresso atrás do abrigo da praça João Mendes. Come dois pedaços de pizza napolitana, bebe uma água tônica e fica por ali à espera do bonde. O vício. leva-o à banca de jornais e ele compra a "Folha da Noite". Como um avarento, poupa as notícias, vislumbrando primeiro os clichês, depois as combinações coloridas, gozando inclusive o cheiro de tinta e o contato esponjoso do papel. Então, os olhos correm pelas manchetes, como os de quem confere bilhete de loteria, carregados de vagos anseios, cheios de um alvoroço ingênuo. Nada! Resignado, lê os títulos menores, algumas notícias internas. Uma atriz seminua chama-lhe a atenção, mas não chega a despertar desejo. Lá na esquina, as negras circulam, sempre, falando imoralidades em voz alta, dando risadas escancaradas. Faz muito calor. As pernas, cansadas da demora do bonde, fazem-no encostar na coluna do abrigo. Lê, de passagem, o noticiário do treino do São Paulo, enquanto pensa irritado: — Pra que esse treinamento todo agora, se o campeonato está perdido? Levanta a vista e dá com o homem de todo dia a caminhar pra cá, na ponta da calçada. Pode até adivinhar, com precisão, os pontos em que o sujeito executa as meias-voltas. E é o que se põe a fazer, sem nenhiun propósito, matando o tempo. O vulto enorme e cinzento da Catedral é a paisagem de fundo. Muito triste. 56 • • • • • O bonde chega e o povo sobe calado e sem pressa, acomodando-se para dormir uma preliminar, nos bancos de palhinha; o homem também sobe. Aparência calma e sonolenta, jornal dobrado debaixo do braço. Gemendo nas ladeiras anônimas, o bonde chacoalha os corpos mudos, quase inertes? felizmente cansados para o sono. Entretanto, o homem pensa muitas coisas em confusão. O Banco, a Secretaria da Escola (faz algumas contas), o filho, a mulher, a mocinha do decote afoito que vive lhe pedindo nota, jornais sem notícias: se explodisse uma guerra ou uma revolução, ou se pelo menos morresse o Presidente, haveria animação no bonde. Estas mesmas pessoas ensimesmadas e dorminhocas conversariam em voz alta, fariam comentários apaixonados com excitação nos olhos brilhantes e iriam dormir, depois, cheias da expectativa feliz das novidades. Quando passou o vulto do Trianon, tocou o sinal de parada. As cabeças pendentes equilibraram-se assustadas, perscrutando por um momento a escuridão circundante, mas logo voltaram à sua calma sonolência. O bonde parou, ele desceu, atravessando a Av. Paulista. Assobiou distraído pelos ermos da Rua Frei Caneca e, com um pouco, achou-se à porta da pensão silenciosa e escura. Seguiu pela guta. lateral até o quarto do fundo e abriu-o sem ruído. Ainda assim a mulher mexeu-se de mansinho: — É você? — falou. — Sou — disse o 'homem em voz sumida. Tudo bem por aqui? Como vai o menino? — Está dormindo direitinho: • Foi até a mesa, pegou sabão e toalha, tirou a camisa, jogou-a na cadeira vazia e saiu para lavar-se na pia do corredor. Deitado, só de cuecas sobre a coberta — era o principio do verão — o homein estirava-se todo, espreguiçava-se entre pequeninos gemidos de prazer, gozando o contato fresco dos 57 panos. O cansaço, localizado, pernas, braços e costas, começava a se espalhar devagarinho pelo corpo inteiro, anestesiando-lhe os músculos, imobilizando-lhe os membros esquecidos, trazendo um sono cansado, confuso, uma ausência gostosa... A mulher, meio desperta, falou num bocejo: — Como é que foi o dia? — Tudo bem — respondeu com preguiça, quase roncando. Era como se tivesse dito "tudo mal", como se não dissesse nada. O silêncio instalou-se, incômodo, afastando o sono. Co mo é que foi o dia? O homem pensava encasquetando com a pergunta impertinente, esmiuçando-a, o espirito alertado, fazendo o corpo vibrar sob pequenas ondas de irritação. Ora, como é que foi o dia. Que dia? Hoje não é como se fosse ontem ou amanhã? E veio o cortejo. Filas, jornais sem noticias, comidas indistintas, conversas por conversar, o trabalho chato do Banco, o trabalho chato da escola. Fichas. Fichas do Banco, fichas da Escola. Nenhuma novidade. O abrigo da praça João Mendes, gente com sono, as pretas falando imoralidades e o homem caminhando pra lá e pra cá na ponta da calçada... No curso do pensamento vinha a resignação cansada, trazendo sono. A mulher, coitada, não queria perturbá-lo, tentava apenas procurar assunto... — Encontrei D. Vara hoje, na avenida — era a mulher insistindo. • O homem queria muito que o sono voltasse. Tentou seguir a conversa como um etbalo, ronronando: — Ah, é? — Foi. — Que é que ela disse? — Nada... falou que qualquer dia aparece... 58 Nova pausa, a mulher desistiu. Tornou a bocejar, virando para o lado, disposto a dormir. Encerrou a conversa: — O leite do menino acaba amanhã. Você precisa trazer rnais. O homem começava a dormir um sono pesado de pálpebras de chumbo e ainda o pensamento, muito lerdo, emaranhado na dormência da cabeça obscurecida, passava e repassava dentro do sono, lembranças desconexas: era preciso ver os vales, tinha de conferi-los, fazer o controle.., as fichas avolumavam-se sobre a mesa, na escuridão, fichas espalhadas e em montinhos, azuis, brancas, verdes, amarelas... DEVE... HAVER... CAIXA... VALE... importância por extenso no corpo (hum mil cruzeiros) ... uma criança aumenta muito as despesas de caixa... falada com o Diretoria... — Seu Geraldo veja as minhas notas, por favor. Ele crescia atrás do balcão, fala firme, olhar dominador: — Já lhe disse que não dou notas. .0s olhinhos safados brilhavam aduladores e os peitinhos . saltavam do decote, derrubando o vestido, descobrindo o corpinho nu, tremendo, suplicante. — Por favor, seu Geraldo. Mexeu-se inquieto a ouvir a barulheira infernal dos intervalos. Gritos, risos rachados, assobios... • Ai o homem sofreu o primeiro ataque: um zumbido de alerta, muito fino, bem junto a orelha, depois a picada agudissima e o sobressalto. Abriu os olhos na penumbra densa do quarto, o coração batendo e um temor difuso a lhe agitar os músculos, sacudindo o torpor dos membros cansados, afastados do sono. Correu a vista pelos móveis e pelos cantos familiares: os pernilongos viraram caixinhas de música triste a boiar no espaço invisível, inofensivos; a mulher ressonava 59 de mansinho e a criança era vulto, do berço. Agora, inteiramente desperto, o homem inquietava-se, suando, invadido por um vago temor de desgraça iminente. Medo de que? Senhor! Não tinha medo por algum tempo, sentado sobre a cama, abraçando as pernas, apreensivo. Nada aconteceu no silêncio sonoro da peça familiar. O medo abandonou-o pouco a pouco e ele deitou-se novamente, pondo-se a pensar, aborrecido, na obrigação de levantar às seis, uma grande preguiça de amanhã. Os pernilongos já aventuravam vôos rasos de reconhecimento, zumbindo... zumbindo... — Diabo de bichos chatos! — falou descontrolado, dando rabanadas no ar, ridiculamente. Os zumbidos cresciam, enchendo o quarto. Desesperado, meteu-se sob o lençol, puxando-o em forma de tenda, cobrindo o corpo inteiro, cabeça, tudo, e deixou-se ficar imóvel, aliviado, à espera do sono. Lá pelos ares, os pernilongos continuavam a zumbir o seu balé de ritual complicado, violinos longínquos, delicados e harmônicos, aproximando-se aos poucos, num crescendo valseado; débeis coros vocais a gemer, muito sentidos, cantigas infindáveis e, de repente, o solo finíssimo, imprevisto, agudo... O homem suava na escuridão sufocante da coberta. — Diabo! — gritou, atirando o lençol para longe, libertando-se do calor e dos zumbidos infernais. Sentou-se de novo sobre a cama, abraçando as pernas, desesperado com o sono que fugira. Imóvel, a mulher falou de dentro do sono: — Não se mexa tanto, bem; você vai acordar o menino. — Diabo de menino! Quero lá saber do diabo do menino! — o homem explodiu num falatório sem fim, gaguejando na falta de palavras. Queria contar todo o seu sofrimento, gritar a angústia que sentia naquele escuro, cheiro de suor e a música macabra. Sentia-se insultado pelo sono calmo da mulher, por sua serenidade ante aquela desgraça de fichas, vales, 60 • quarto de pensão. Tinha que comunicar a ela o pavor que o •rondava, fazê-la sentir os pernilongos... e gaguejava, e fa•lava, sem nexo, palavras simples de diário corriqueiro: — Eu não trabalho o dia inteiro, me matando, pra não faltar nada em casa, não trabalho? Lhe falta alguma coisa, falta? Diga! Agora a gente não pode dormir, morto de cansado, com o diabo destes mosqUitos do inferno, não é? Não pode mexer, pra não acordar o menino! ... Mas ele bem que •está dormindo ali, muito quietinho! Você está dormindo aí, muito quietinha, também. A mulher ouvia os despropósitos, assustada e temerosa. Pensou em intervir, mas o susto inesperado mantinha-a im• pnsxível. O menino começou a choramingar no meio do discurso, virando-se no berço. De repente, a mulher esqueceu-se de seus temores e do bom propósito de acalmar o marido. Com uin gesto brusco acendeu o abajur de cabeceira, falando num rompante de raiva sentida: • — Se você queria era me acordar, era acordar a criança, já acordou! Já está chorando! Agora pode parar, não precisa •mais fazer barulho. Parece um doido! — e começou a chorar. O homem emudeceu, surpreendido pelo ataque da mulher, pelo jato de luz que encheu o quarto de móveis conhecidos, dignamente postados em seus lugares, envergonhando-o, parecendo interrogá-lo com sisudez serena: • — "O que é que está havendo por aqui?" A criança aumentou o choro, esgoelando. A mulher levantou-se a chorar e pegou-a no colo, tentando acalmá-la, passeando pelo quarto. Um arrependimento profundo apossou-se do homem, em forma de raiva, ' dando vontade de esbravejar, gritando a todo pulmão, e sair correndo. Pôs as pernas para fora e começou a enfiar as meias, em movimentos rápidos e desordenados. Vestia-se ostensivamente, procurando chamar a atenção. Do lado oposto, a mulher e o menino soluçavam indiferentes. 61 Agora, estava o homem indeciso, sentado na borda da cama, estranhamente vestido e calçado, plena madrugada, a olhar, como um estranho, a família que chorava. Então fez um esforço e pisou forte rumo à porta, abriu-a com estardalhaço, saiu e bateu-a atrás de si, com violência. Ainda ficou algum tempo, tolamente postado do lado de fora do quarto, esperando uma reação da mulher, uma pergunta curiosa que o obrigasse a voltar. Nada. Apenas o choramingo da criança, agora mais abafado, perturbava o silêncio geral da casa. Feito um herói, o homem caminhou pela área lateral, em direção à rua, meio curvado, as mãos afundadas nos bolsos da calça e o olhar preso no ladrilho — estranhamente claro. Ergueu a vista e quase se assustou com a lua muito grande e meio avermelhada que se erguia sobre os telhados das casas em frente, parecendo soprar o vento forte e bom que passava ' refrescando a terra. Apressou o passo sem sentir e caminhou com decisão, cabeça erguida, sem pensar para onde. Por toda a parte, árvores enormes agitavam os galhos, alvoroçadas, espojando-se no ar... e árvores pequeninas estiravam-se com ansiedade, adivinhando a fresca gostosa que passava por sobre os =TOL 62 O HOMEM DAS MÃOS • DECEPADAS - médico retirou-lhe as ataduras, deixando à mostra os O dois tocos mal cicatrizados, no lugar de onde lhe decepa- min ,as mãos, bem na altura dos punhos. - — Ótimo, sr. Raimundo! Notável a regeneração dos tecidos; •cicatrização perfeita! — o médico exclamou, dando apalpadelas profissionais nos entumescimentos pontiagudos , — Perfeito ... Perfeito.., agora é deixar a natureza trabalhar •' por, si mesma, an?... Não force muito, vá se readaptando com Calma e pode ir em paz, viu seu Raimundo. Não precisa mais . voltar aqui. Passe bem. ,Ia lhe estendendo a mão, mas consertou-se em tempo -de 'dar-lhe uma palmadinha amistosa nas costas: /— Passe bem, sr. Raimundo. Se doer 'muito tome um ..- analgésico, an? 1 Raimundo, sem falar o tempo inteiro, não desprendia os olhos dos tocos descarnados. Era a primeira vez que os via '65 assim, detidamente, sem ataduras. Em tantos aleijões que conhecia, nunca Unha reparado em coisa igual: parecia gente nua, partes feias do corpo, e latejavam como dois sapos — uma coisa indecente. E agora, tirando as ataduras tinha que achar um jeito de esconder as chagas. Paletó de manga bem comprida, lenço amarrado... não havia era de sair por ai mostrando aquilo ao povo, sem precisão. Ia mostrar direitinho, mas era na fábrica, disto fazia questão, pois todo mundo lá precisava ver o trabalho. E o velho Mezzacapa? Este havia de espiar bem de pertinho, e depois cheirar!... Quando o médico abriu a porta, Raimundo escondeu os tocos nos bolsos de fora do paletó, sentindo um arrepio de gastura no contato com os panos, e saiu para o salão cheio de mutilados. Como das outras vezes, Das Dores veio ao seu encontro para ampará-lo. Pegou-lhe no braço, levou um safanão e falou assustada: — Que é que houve, Doca? O médico disse alguma' coisa? — Que não carece mais voltar, já fiquei bom. • — Pois então! Que é que tu querias mais, criatura? Dos males o menor. É dar graças a Deus, que pior poderia ser... Caminhavam no rumo da saída. Raimundo aparentava muita calma, andando com cautela, sem falar. Junto à soleira da porta, Das Dores novamente tentou segurar-lhe o braço. Levou outro safanão e falou: — Que brutalidade é esta, homem? — Já fiquei bom. Carece mais de guia, não. Pode ir s'embora. — Deixa de ser besta, Doca. Tu logo não estás vendo que eu não vou te deixar andando sem mão por este mundo? Inda agorinha mesmo não temos de passar nos Institutos, ver o negócio da indenização, criatura? 66 — E eu já não fiquei bom? Tenho agora de andar mais um guia, feito cego? Pararam do lado de fora do ambulatório. Raimundo encostou-se na parede, os braços sempre enfiados nos bolsos do paletó. O rosto congestionara-se-lhe, parecendo de bêbado e os brancos-dos-olhos agitados, avermelharam-se, com uma infinidade de estrias sanguíneas. Quando voltou a falar, a voz era meio trêmula, mas aguda e cheia de uma estranha segu•rança. Quase gritava: -- Inda não fiquei cego, não, já'uviu? Não sou mudo, •nem moco! Nem também nasci encangado! Quero rabicho nenhum comigo, não. Pode ir s'embora! • Ai, a mulher assustou-se, sem coragem de retrucar. Ficou por ali ainda um pouco, sem saber o que estava acontecendo com Raimundo. Mesmo depois do acidente ele nunca tinha ficado assim esquisito. Dava até medo que aquela desgraça de ferimento tivesse sovertido o entendimento do homem, e ele ficasse meio maluco. Parecia. Deus queira que não fosse nada. De todo o jeito, o melhor era não discuitr. Queria ficar sozinho? Pois ficasse. • Antes de sair, porém, ainda falou: — Você passa nas Institutos? — Não s'incomode. — Pois 'ta bom. Vou-m'embora e lhe espero em casa. Tome tento nos carros, viu? Das Dores afastou-se e Raimundo, como estava, permaneceu; encostado na parede, os tocos enfiados nos bolsos e o olhar perdido no movimento. Muitas pessoas passavam apressadas pela calçada e atravessavam a rua, misturadas com a corrente de trânsito. As mãos penduradas, balançando, carregavam os corpos, estendendo-se e retraindo-se em gestos de proteção e equilíbrio. O movimento era grande e foi aumen67 tando, aumentando, até que ele sentiu um arrepio forte e a vista baralhou. Escorou as costas com mais força e, mesmo assim, continuou meio zonzo com o movimento desenfreado à sua frente. Suava frio. Fechou os olhos e procurou pensar outras coisas, tirar a atenção do povo, afastar a gastura. De olhos fechados, começou a divagar: tinha conhecido muita gente aleijada. O Zeca da Rita... mas teve que abrir os olhos, que a zonzeira fazia era crescer. O melhor — considerou — era arranjar um canto pra sentar. Então, foi se arrastando pela parede, até descobrir uma porta fingida nas proximidades. Caminhou cuidadoso e meio penso, como bicho sem asa. Chegando lá, sentou-se. Agora sim! Sem gastura nem zonzice, as pernas espichadas, podia pensar com mais sossego. Não tinha pressa, queria ficar ali o dia inteirinho, até boquinha da noite... E os Institutos? Que vãs pra caixa prego todos eles, que ele não tem mão nenhuma pra vender! Tapeação, senhor! Faz bem um século que a Das Dores vive correndo aquelas porcarias com ele, pra conversar fiado. Que carência, nem meia carência! Tapeação! Não ia a Instituto nenhum e estava acabado. Queria era pensar sem aperreio, sem ninguém pra aporrinhar. Tinha conhecido muita gente sem mão. Sem uma e sem as duas: o Chico Piranha, o homem do circo... O Zeca da Rita era a perna, que um cavalo do Coronel Tinoco tinha .torado... cabra macho o Zeca da Rita! Não quis saber de cuidado nem proteção, só esperando a ferida sarar. Depois foi passar fogo no bicho e ganhar o olho do mundo. O que é direito é direito, o que é errado é errado! Até hoje não deixou rastro. Aqui em São Paulo ainda não tinha visto ninguém bicó, pois que tinha chegado há pouquinho tempo. Só de ouvir falar. Porém, só depois que a máquina do velho Mezzacapa tinha mordido as mãos dele, já tinham lhe contado assim bem uns cinqüenta casos de sujeitos sem mão... a mesminha máquina do Mezzacapa diz que já tinha torado bem uns dez... uma fera! ... e o diabo da bichicha — só vendo — é assim uma bostinhazinha de nada, uma maquininha à toa, de fazer 68 prato de papelão, que ele é capaz de espatifar até com uns murros, ora se não é! E não foi por isso mesmo que ele foi perder as duas mãos? Quando a bicha lhe deu a mordida na mão esquerda, ficou com tanta raiva que deu um grito danado e quis arrancar com a outra... Só depois é que o filho duma égua do velho Mezzacapa foi se lembrar de desligar o negócio, com a cara mais lambida e fala engrolada de gringo safado... mas ele vai se arrepender... Chico Piranha, não. Aquilo foi só um nadinha à toa, inda tendo até o resto da mão; as piranhas comeram só os dedos. Agora, ficava doidinho era quando chamavam pelo apelido dele — uma coisa horrorosa; uma vez foi numa procissão: — Chico Piranha! — o grito subiu de dentro do povaréu e foi só a conta: o homem agarrou uma pedra e rebolou que foi bem na cara do Santo. Vixe! Que rebuliço! Teve gente até •que desmaiou. Do chão da calçada subia um mormaço dormente, pesando nos olhos, dando sono... O homem do circo, este sim, não tinha nem braço, nem nada: era mocho, mocho, parecendo uma forquilha de cabeça pra baixo; mas também só sendo de nascença, pois o diabo do homem fazia tudo com os pés: coava café, costurava, acendia cigarro, o diabo a quatro. Uma quietude tão boa, ali escondido naquele vãozinho quente, sem a Das Dores aperreando. Podia ficar o tempo todo matutando, sem pressa, tirando até um cochilo... ela que fosse pensando que ele estava nos Institutos, pois sim! — Raimundo sorriu, fechou os olhos e o escuro foi espantando mais para longe os barulhos da rua — Ora, se ele mesmo ia acreditar mais naquelas besteiras, logo não está vendo que é conversa fiada? As mãos valiam ou não valiam os quarenta contos? Querem, mas é fazer os outros de bestas. Não viu no negócio dos exames? Estavam vendo lá as mãos cortadas e mandaram ele ficar nu, mode bulir em tudo quanto é parte! Teve que falar: 69 — 'To capado, não, Doutor! Cortei foi as mãos... — e por que não falar positivo: paga, não paga? Vir com tapeação de direito e de carência... então que negócio é este? Podem tapear a Das Dores que aquilo é mulher besta pra encasquetar com as coisas e ficar falando, falando, fazendo plano até de voltar lá pra Passagem... fazer o que lá? Na verdade, o que é que ele ia fazer na Passagem? Se arribaram de lá, quando ele ainda era inteiro, porque não tinha serviço que desse; que dirá agora, assim bicó... só se fosse cantar em feira pedindo esmola, feito cego, o povo todo mangando. Ia lá o que! Serviço que ele conhecia era de lavoura, quando era inverno. Chegado que fosse o verão ou uma seca, já sabe: ficava no olho do mundo, de deo em deo, como judeu errante, nos descampados... um servicinho aqui, um servicinho acolá, na Canafistula, na Boa Vista, nas Arueiras — fazendâo paidégua! — aquilo chega parecia fartura de inverno, com seca e tudo. Um servicinho sempre tem: plantação de vazante, bichos no trato, campeação de gado na catinga. o poeirão subindo cinzento chega brilhando no sol quente, faiscando nos olhos; uma sede danisca ardendo na goela, queimando nas ventas, galopando nas veredas de oiticica, cheirando a fresca deitado nas sombras, espiando a galharia verde que pendia pra dentro do rio seco, cobrindo as cacimbas, esfriando a água... o folharal abanando a quentura e ele dormindo na sombra. Acordou boquinha da noite, já querendo escurecer, o movimento diminuindo. Levantou-se assustado e com pressa, pondo-se logo a caminhar, vexado e sem equilíbrio, bambeando. A zonzeira agora tinha passado, mas estava com muita sede. Caminhando sempre, muito apressado, começou a falar baixinho com ele mesmo que não ia poder beber água, pois não tinha mão pra segurar o copo. Se tivesse um rio ou uma cacimba, bebia era que nem gado, caindo de boca. Já era quase noite, mas ele não sabia a hora e precisava muito saber por causa da fábrica e do velho Mezzacapa. Seriam seis horas, seis e meia? E se já fosse assim bem umas dez horas? Aperreou-se 70 e perguntou para o primeiro que passava. O homem olhou com desconfiança para as mãos de Raimundo enfiadas nos bolsos, guardou distância, consultou o relógio com o rabo do olho alerta: — Seis e meia — falou, e depressa afastou-se. Raimundo sorriu satisfeito. O camarada teve um medo danado e ele ainda contava com muito tempo, podia procurar um lugar pra beber água. No primeiro bar do trajeto, Raimundo entrou com o mesmo gesto de armas no bolso e o olhar injetado. Três fregueses assustados guardaram distância e o homem do bar consultou-o de longe. — Me dê um copo dágua pra beber — Raimundo falou com jeito de quem pede esmola. — Mineral? — perguntou o homem do bar. — Do pote mesmo, quer dizer, da torneira — respondeu Raimundo com tranquilidade. Os três fregueses continuavam alertas, os gestos suspensos. O homem do bar serviu a água com modos desconfiados. Raimundo olhou o copo sobre o balcão, olhou para o dono do bar, olhou para os três fregueses espantados e de repente gritou retirando e alçando os tocos: — Nunca viram nenhum aleijado, não? Ninguém falou nada. Raimundo, então, foi abraçando a copo com jeito, prendeu-o entre as duas garras, alçou-o devagarinho, bebeu, retirou-se. Agora, caminhando com mais decisão, fazia as contas do tempo. Estava cada vez mais perto da fábrica e queria chegar depois que o velho Mezzacapa baixasse a porta de aço. O velho sempre arriava a porta às sete horas e depois ainda ficava um, tempão lá dentro. Queria apanhá-lo sozinho, dar uma boa lição no gringo safado, mostrar pra ele que era macho do naipe do Zeca da Rita. Aquilo sim é que é: não queria saber '71 se o cavalo era sangue árabe, nem meio árabe, se era do Coronel Fulaninho ou Sicraninho. Mordeu a perna dele? Chumbo no bicho! O Coronel tomou as dores? Chumbo nele! Pra não soltar pelo mundo bicho fera mordendo os outros... 'tá certo! Assim é que é! Apressou o passo, quase correndo, aperreado pela alegria de chegar logo, a raiva subindo: arrebentava aquela porqueira de máquina nem que fosse para se danar todo; fazia um trabalho de macho! E o velho lá que se metesse pra ver uma coisa! Cambada de fii dumas éguas; estão pensando, agora, que é só cortarem as mãos dum homem e mandar ele ficar nu nos Institutos? Pois sim! Rilhou os dentes e machucou os tocos de tanto apertá-los contra os bolsos... Dobrou a esquina com cuidado, amansando o passo. As portas de aço todas corridas na rua deserta. Espiou para os lados, atravessou a rua mesmo em cima da fábrica e tornou a parar. Então, forçou o pé por baixo da porta e foi levantando sem barulho. Quando conseguiu folga suficiente, deitou-se de bruços e rastejou para dentro. Ergueu-se e, pisando com raiva no beiço da porta de aço, baixou-a com estrondo. Lá em cima, o velho levantou-se assustado e correu para a escada. Raimundo sorriu e escondeu-se entre duas pilhas de rolos de pápelão, esperando. O velho tinha um revólver na mão e olhava assustado para os lados. Viu a porta totalmente descida e correu para o telefone. Raimundo escorregou do esconderijo, e muito de mansinho, acercou-se do velho pelas costas, falando bem no ouvido dele: — Não sou ladrão, não, seu Mezzacapa. Pode soltar o telefone. Num mesmo gesto de susto, o velho desligou o telefone, deixou cair o revólver e levantou as mãos — O velho frouxo! — pensou Raimundo com um sorriso e tornou a falar: — Sou eu, seu Mezzacapa, o Raimundão Paraíba. Se vire pra gente conversar. 72 Raimundo tinha raiva, mas não tinha pressa. Queria falar manso e se rir da frouxidão do gringo: — Se vire, seu Mezzacapa... O velho voltou-se e viu os tocos dos braços de Raimundo erguidos como troféus, quase a lhe tocarem o rosto. Desviou os olhos, espantado, sem falar. Os ganchos arroxeados moviam-se e se esfregavam à sua frente, como cobras lustrosas, enquanto Raimundo falava grosso e baixo, sem parar: •— Agora já fiquei bom, seu Mezzacapa. Carece mais ficar assustado, não. — O senhor já foi no Instituto, seu Raimundo? — o velho então falou depressa, para aproveitar o fio de voz que lhe voltara de repente. — Já sim senhor — Raimundo respondeu. — Acertou tudo? — perguntou o velho com ansiedade. •— Mandaram eu ficar nu e disseram que eu não tinha carência. Raimundo olhava firme para o gringo, sorrindo e exibindo as garras. O velho era encarnado, mas estava branco e o •gogó muito grande fazia tentativas aflitivas para engolir. Ai começou a chorar. Raimundo parou de rir e gritou enfurecido: — Velho frouxo! Gringo safado! 'tá pensando que é só engabelar um homem com essa marmota de indenização e de carência? Vim quebrar esta porqueira, já'uviu? O velho que já chorava e tremia, agora começou a falar da mulher e dos filhos, com o sotaque muito piorado. Raimundo voltou a falar manso: — Ande, seu Mezzacapa, vamos buscar umas ferramentas. '73 Os dois moveram-se e foram para os fundos. Voltaram em seguida com um martelo e uma chave inglesa e se postaram junto à máquina de fazer pratos de papelão. Raimundo, então, comandou risonho e manso: — Desaparafuse a bichinha, seu Mezzacapa. Com mãos trêmulas, o velho começou a trabalhar. Logo, porém, suspendeu a tarefa, implorando: — Por Deus, Raimundo, mas isto é uma loucura! — Desaparafuse, seu Mezzacapa! O velho voltou ao trabalho e com um pouco estava a pequena máquina livre sobre o cavalete. — Agora se afaste! — ordenou Raimundo — Fique ai do lado, espie, mas não se meta, não, viu seu Mezzacapa? Mãos à cabeça, choramingando, o velho obedecia com relutância, acompanhando, como num pesadelo, os movimentos de Raimundão Paraíba em direção à máquina desprotegida. — Mas isto é uma loucura... — murmurava num débil refrão — mas isto é uma loucura... Raimundo firmou os pés no cavalete, encostou o corpo e os cotovelos e começou a forçar ;a máquina cedeu e foi tombando. — Alarma mia! — o velho rugiu de repente, como um possesso, atirando-se sobre Raimundo, em desespero. Aí os dois rolaram pelo .chão da fábrica durante muito tempo, lutando como podiam: um sem mãos, outro sem forças. Quando pararam, Raimundo estava sentado sobre a barriga do velho Mezzacapa, tendo-o à sua mercê, prendendo-lhe os braços com os joelhos, falando: — Eu não disse pra não se meter, seu gringo safado? Hein? Agora tome! — e em seguida, brandindo os tocos comi lanças, estrangulou-o. 74 Imobilizado o velho Mezzacapa,, Raimundo voltou ao seu 'trabalho: firmou• os pés no cavalete, encostou o corpo e os cotovelos e começou a forçar. A máquina cedeu e foi tombando; espatifou-se no chão com um estrondo. .;,Depois houve silêncio na fábrica e na rua. Raimundo, então, ,saiu e foi dormir numa porta fingida. - Imobilizado o velho Mezzacapa, «Raimundo voltou ao seu trabalho: firmou os Pés no cavalete, encostou o corpo e os cotovelos e começou a forçar. A máquina cedeu e foi tombando; espatifou-se no chão com um estrondo. Depois houve silêncio na fábrica e na rua. Raimundo, entãO, saiu e foi dormir numa porta fingida: 75