Cervantes - Novelas Exemplares

Transcrição

Cervantes - Novelas Exemplares
Miguel de Cervantes Saavedra
Novelas exemplares
1971
2ª Edição
Tradução de
Darly Nicolana Scornnaienchi
Com licença da Editôra Boa Leitura,
São Paulo, detentora do Copyright para a língua portuguêsa.
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PRÓLOGO
Quisera, se fôsse possível, leitor amigo, deixar de escrever êste prólogo,
porque não me saí tão bem no que fiz para o meu Dom Quixote a ponto de
querer um segundo prólogo.
A culpa disto cabe a um dos muitos amigos que, no decorrer de minha
vida, pude granjear, mais por minha condição do que por mérito próprio,
amigo que bem poderia, como é de costume, cinzelar-me e esculpir-me, na
primeira fôlha dêste livro, pois o famoso Dom Juan de Jáuregui dera-lhe meu
retrato: com isto, ficariam satisfeitos a minha ambição e o desejo dos que
quisessem conhecer o rosto e o porte de quem se atreve a comparecer, com
tantas intenções, em praça pública, aos olhos de tanta gente, e colocar-se-ia
debaixo do retrato: “Este, que aqui vêdes, de rosto aquilino, de cabelo castanho,
de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bem
proporcionado, de barbas de prata que, há mais de vinte anos foram de ouro, de
bigodes grandes, bôca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são
apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm
correspondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande,
nem pequeno; de côr viva, mais branca do que morena, de espáduas um tanto
largas e de pés não muito ligeiros; êste, digo, é o retrato do autor de A Galatéia
e de Dom Quixote de la Mancha e daquele que fêz Viagem do Parnaso, à
semelhança de César Caporal Perusino e outras obras que andaram perdidas
por aí, talvez até sem o nome de seu dono, que se chama Miguel de Cervantes
Saavedra. Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi
aí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de
Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça
feio, êle o considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícil
das ocasiões que os séculos passados jamais viram, nem hão de ver os séculos
vindouros, lutando sob a bandeira vencedora de Carlos V, filho do raio da
guerra, de quem se lembra com muita saudade. E se êste amigo, do qual me
queixo, não se lembrasse de dizer, a meu respeito, outras coisas além das já
mencionadas, eu acrescentaria a mim próprio duas dezenas de depoimentos e
os daria em segrêdo a fim de que engrandecesse meu nome e tornasse meu
talento digno de crédito, pois pensar que os tais elogios dizem somente a
verdade é disparate, e isso porque nem os elogios nem os vitupérios têm
fundamento, tampouco são verdadeiros.
Enfim, já que o tempo se foi e eu passei em branca nuvem, serei obrigado a
valer-me de minha lábia, que, embora gaguejante de natureza, não o será para
falar certas verdades que, embora ditas por metáforas, possam ser entendidas
claramente.
E assim, digo-te outra vez, leitor amigo, que de maneira alguma poderás
fazer confusão com as novelas que te ofereço, porque elas não têm nem pé, nem
cabeça, nem miolo ou coisa parecida; quero dizer que os galanteios amorosos,
que em algumas encontrarás, são honestos e tão orientados pela razão e pelos
preceitos cristãos, que não podem levar a um mau pensamento tanto o
descuidado como o cuidadoso que os ler.
Dei-lhes o nome de Exemplares e, se observares bem, não verás nenhuma
da qual não se possa tirar algum exemplo proveitoso e, se não fôsse prolongar
demasiadamente êste assunto, talvez eu te mostrasse o saboroso e honesto fruto
que se pode obter tanto de tôdas juntas como de cada uma em separado.
Minha intenção foi colocar, em praça pública, uma mesa de trucos, onde
cada um possa divertir-se sem prejuízo das barras (No jôgo de truque ou truco é
um aro de ferro fixo na mesa. N.T) isto é, sem prejuízo da alma ou do corpo,
porque os exercícios honestos e agradáveis oferecem mais benefícios do que
males.
Sim, porque não é só estar nos templos, ou só ocupar as tribunas, ou só
escravizar-se aos negócios, por mais necessários que sejam; há também horas de
descanso para que o irrequieto espírito possa repousar.
Para isto, fazem-se as alamêdas, procuram-se as fontes, aterram-se as
encostas e cultivam-se, de maneira curiosa, os jardins.
Uma coisa, porém, eu me atreverei a dizer-te: se, de algum modo, fizesse
eu com que a leitura destas novelas induzisse quem as lesse a algum mau
desejo ou pensamento, preferiria cortar a mão que as escreveu a publicá-las.
Minha idade não está para brincar com a outra vida.
Para isto esforçou-se o meu engenho, leva-me por aqui a minha vocação;
eu me considero - e assim o é - o primeiro a novelar em língua castelhana, pois
as inúmeras novelas que nela andam impressas são tôdas traduzidas de língua
estrangeira e estas aqui são minhas mesmo, não são imitadas, nem roubadas;
concebeu-as o meu talento, pariu-as a minha pena e vão crescendo nos braços
da imprensa. Depois delas, se a vida me permitir, eu te oferecerei os Trabalhos
de Persiles, livro que se atreverá a competir com Heliodoro, se o tiro não lhe
sair pela culatra; primeiro verás, e ràpidamente, dilatadas as fachadas de Dom
Quixote e a galhardia de Sancho Pança; logo a seguir, as Semanas do Jardim.
Estou prometendo muito para fôrças tão insignificantes como as minhas, mas
quem haverá de frear os desejos? Quero que consideres apenas isto: se eu tive a
ousadia de oferecer estas novelas ao grande Conde de Lemos, há algum
mistério secreto que as edifica. Apenas isto; de resto, que Deus te guarde e que
dê a mim paciência para considerar um bem o mal que há de falar de mim uma
meia dúzia de melindrosos e almofadinhas. Adeus.
O Amante Liberal
Ó lamentáveis ruínas da infeliz Nicósia, ainda molhadas do sangue de
vossos valorosos soldados e desafortunados defensores! Se tivésseis sentimento,
na solidão em que nos encontramos, poderíamos lamentar juntos nossas
desgraças e talvez o fato de têrmos encontrado companhia nelas aliviasse nosso
tormento; a esperança de alívio pode ter-vos abandonado, meus arruinados
torrões, pois, ainda que não fôsse para defender uma causa tão justa como
aquela pela qual vos derrubaram, poderíeis levantar-vos outra vez; mas eu pobre de mim! -, que ventura poderei esperar na miserável solidão em que me
encontro, ainda que volte ao estado em que me achava antes dêste em que me
vejo agora? É grande minha desgraça, pois na liberdade não tive ventura e na
escravidão não a tenho, nem a espero.
Estas palavras, pronunciava-as um prisioneiro cristão, olhando, de uma
encosta, as muralhas destruídas de Nicósia já perdida; falava com elas e
comparava suas misérias com as dêle, como se elas fôssem capazes de entendêlo; fatos comuns nos aflitos que, levados pela imaginação, fazem ou dizem
coisas despidas de razão ou de lógica.
Nisto, saiu de uma das quatro barracas ou tendas que havia naquela
planície um jovem turco de muito boa aparência e elegante, que, chegando-se
ao cristão, lhe disse:
- Aposto, Ricardo amigo, que são os teus pensamentos que te trazem a
êstes lugares.
- Sim - respondeu Ricardo, pois êste era o nome do prisioneiro -, mas de
nada me adianta, porque em parte alguma encontro alívio nem descanso; pelo
contrário, estas ruínas que daqui se avistam serviram apenas para aumentar
minha dor.
- As ruínas de Nicósia?
- E de quais querias que eu falasse, se não há outras perante os nossos
olhos?
- Se te entregas a estas contemplações terás de chorar muito - disse-lhe o
amigo -, pois os que vieram há dois anos para esta afamada e rica ilha de
Chipre, tranqüila e sossegada, gozando seus moradores de tudo aquilo que a
felicidade humana pode conceder aos homens; os que vieram há dois anos para
cá, pensando agora nos desterrados ou contemplando os que ficaram nela,
prisioneiros e miseráveis, como poderão deixar de chorar tal calamidade e
desventura? Mas deixemos estas coisas de lado, porque não têm remédio, e
vamos às tuas, pois quero ver se elas o têm; peço-te, pela boa vontade que te
demonstrei, pelo fato de sermos ambos da mesma pátria e nos têrmos criado
juntos na infância, que me digas a causa de tua excessiva tristeza, pois, embora
o fato de ser escravo seja bastante para entristecer o coração mais alegre do
mundo, imagino que tuas desgraças já venham de longe, porque os espíritos
generosos como o teu não costumam entregar-se às desgraças comuns, dando
mostras de extraordinária coragem, e o que mais me faz pensar nisto é saber
que podes dar quanto pedirem pelo teu resgate, já que não és pobre; também
não estás nas tôrres do mar Negro como prisioneiro incondicional que, tarde ou
nunca, poderá alcançar a liberdade desejada, e, assim, não tendo a sorte levado
a esperança de te pores livre, é natural que eu, vendo-te entregue às
manifestações de tua desventura, imagine procederem os teus males de outra
coisa além da liberdade que perdeste; suplico-te, pois, que me digas a causa de
teu sofrimento e me coloco também à tua disposição; talvez, para que te
pudesse servir, quis a sorte que eu vestisse êste hábito, que tanto me aborrece.
Já sabes, Ricardo, que meu amo é o cádi (Cádi: magistrado judicial entre os
muçulmanos. N.T) desta cidade; equivale ao bispo em tua terra; sabes também o
quanto êle é poderoso e quanto sou influente junto dêle; além disso, não ignoras
o desejo ardente que tenho de não morrer neste estado com o qual pareço
concordar, e, quando não puder mais, terei de confessar e declarar em alta voz a
fé que tenho em Jesus Cristo, de quem me separou minha pouca idade e
entendimento, embora saiba que tal confissão há de custar-me a vida; mas para
não perder a alma, pouco me importa perder a vida do corpo; por tudo isto,
espero que deduzas e consideres que te pode ser de algum proveito minha
amizade e que, para saber quais os remédios ou alívios para tua desdita, é tão
necessário que me fales dela quão necessária é ao médico a informação do
paciente, e asseguro-te que a mergulharei no mais profundo silêncio.
Ricardo escutou calado todos os argumentos do amigo e viu-se obrigado a
responder - meu amigo Mahamut, se descobrisses um remédio para meus
males da mesma forma como descobriste minha desdita, julgaria muito bem
empregada a perda de minha liberdade e não trocaria minha desgraça pela
maior ventura que se pudesse imaginar; contudo, sei que ela é tão grande que o
mundo todo poderia saber a causa de sua origem; mas não haverá nêle pessoa
alguma que se atreva a encontrar um remédio ou ao menos um alívio; todavia,
para que fiques satisfeito, tudo te contarei, com o menor número possível de
palavras; antes, porém, de entrar no confuso labirinto de meus males, quero que
me digas por que razão meu amo, o Paxá Hazan, mandou levantar nesta
planície estas tendas e barracas antes de entrar em Nicósia, para onde vem
como vice-rei ou paxá, que é como os turcos chamam os vice-reis.
- Eu te explicarei logo - respondeu Mahamut -, e assim ficarás sabendo que
entre os turcos é costume o vice-rei de alguma província não entrar na cidade
onde seu antecessor mora, até que êle saia dela e deixe o nôvo paxá fazer
livremente o balanço da administração; enquanto êle se estabelece, o antigo
permanece no campo esperando a parte que lhe cabe pelo cargo que
desempenhou, e isto se faz sem que êle possa intervir para valer-se de subornos
ou amizades, se é que já não fêz tal coisa antes de sair; feito o balanço, êle é
dado em um pergaminho fechado e selado àquele que deixa o cargo, que se
apresenta com êle à porta do grão-senhor, o que equivaleria a estar na côrte
perante o Grande Conselho; vendo o pergaminho, o vizir e os outros quatro
paxás menores - é como se disséssemos: o presidente do Conselho Real e
assistentes - ou premiam-no ou castigam-no, segundo a relação ali exposta; se é
culpado, paga o crime com dinheiro e salva-se do castigo; se não é culpado e
não o premiam, como acontece geralmente, com dádivas e presentes, consegue
o cargo que mais deseja, porque os cargos e profissões não são dados por
merecimento e sim por dinheiro; tudo se vende e tudo se compra; os
provedores dos cargos roubam aos providos e os esfolam; dêste cargo
comprado consegue-se dinheiro para comprar outro cargo que oferece mais
vantagens; tudo é como digo, todo êste império é violento, sinal de que não há
de durar muitos anos; acredito, e há de ser verdade, atiram sôbre seus ombros
nossos pecados, quero dizer, os pecados daqueles que descaradamente e a torto
e a direito ofendem a Deus, tal como eu faço; que êle tenha piedade de mim!
Pelos motivos que te expus é, pois, que teu amo, o paxá Hazan, permaneceu
nesta planície por quatro dias, e se o paxá de Nicósia ainda não saiu é por ter
passado muito mal; porém, já está melhor e sairá hoje ou amanhã, sem dúvida
alguma; há de alojar-se em uma das tendas que ficam atrás desta encosta e que
ainda não viste; teu amo entrará logo na cidade. Aí tens a resposta do que me
perguntaste.
- Então escuta - falou Ricardo -, mas não sei se poderei cumprir o que te
havia prometido antes, isto é, que em breves palavras te contaria minha
desventura, isto porque ela é tão longa e tão grande que razão alguma pode
compreendê-la; contudo, farei o que puder e o que o tempo permitir; assim
pergunto, antes de mais nada, se conheces, em Trápana, uma jovem, apontada
como a mais formosa mulher que existiu em tôda a Sicília; uma jovem que tôdas
as pessoas leigas diziam, e os mais raros entendidos confirmavam, ser a mais
perfeita formosura de todos os tempos, a quem os poetas cantavam e diziam
possuir cabelos de ouro, dois olhos que eram dois sóis resplandescentes; suas
faces, rosas purpúreas; seus dentes, pérolas; seus lábios, rubis; seu pescoço,
alabastro; e que tanto as partes se harmonizavam com o todo e o todo se
harmonizava com as partes, constituindo perfeita e maravilhosa harmonia,
espargindo por tudo uma suavidade de côres tão natural e perfeita que mesmo
uma pessoa despeitada jamais pôde encontrar nela defeito algum. Será possível,
Mahamut, que ainda não me tenhas dito quem é e como se chama? Acho que
não me ouves ou que quando estavas em Trápana não tinhas olhos para ver.
- Para dizer a verdade, Ricardo - falou Mahamut -, se esta criatura, cuja
beleza pintaste com tanta veemência, não fôr Leonisa, a filha de Rodolfo
Florêncio, não sei quem seja, pois somente ela possuía a fama de que falaste.
- É isso mesmo, ó Mahamut! É essa, amigo, a principal causa de tôda a
minha felicidade e de tôda a minha desventura; é por ela e não pela liberdade
perdida que meus olhos derramaram e derramarão lágrimas sem conta e por
quem meus suspiros inflamam o ar, perto e longe, e por quem minhas palavras
fatigam ao céu que as escuta e aos ouvidos que as ouvem; é por causa dela que
me julgaste louco ou pelo menos de pouco valor e menor coragem; Leonisa,
Leoa para mim e ovelha para outro, é quem me pôs neste estado miserável, pois
hás de saber que, desde a mais tenra idade ou pelo menos desde que pude fazer
uso da razão, não somente a amei como também a adorei e servi com tanta
solicitude como se não houvesse na terra ou no céu outra a quem servir ou
adorar. Seus parentes e seus pais sabiam de minhas intenções e jamais se
aborreceram com isso, pois sabiam que se dirigiam para um fim honesto e
virtuoso; e sei também que muitas vêzes disseram a Leonisa que me aceitasse
como espôso. Mas ela, que só tinha olhos para Cornélio, filho de Ascânio Rótulo
- tu o conheces bem -, rapaz elegante, apresentável, de mãos macias e cabelos
ondulados, de voz suave e palavras doces, todo feito de âmbar e alfenim, bem
vestido e sempre enfeitado de brocado, não quis voltar seus olhos para meu
rosto, que não é tão agradável como o de Cornélio, não quis sequer agradecer os
muitos e constantes serviços que lhe prestei, pagando minha boa vontade com
desdém e aversão; chegou a tal ponto meu amor por ela que considerava uma
felicidade o fato de ela aniquilar-me, à fôrça de desdém e ingratidão, contanto
que não fizesse favores, ainda que honestos, a Cornélio; e, como se não bastasse,
amigo, a angústia, a maior e a mais cruel para os ciúmes, causada pelo desdém
e pela aversão, minha alma viu-se agitada por dois males mortais: os pais de
Leonisa encobriam os favores que ela prestava a Cornélio, acreditando, e com
razão, que o môço, atraído por sua incomparável e peregrina formosura, a
escolhesse para espôsa, conquistando, desta maneira, um genro mais rico do
que eu; estaria tudo bem se assim fôsse, mas não conseguiram, modéstia à
parte, alguém de melhor condição que a minha, ou alguém de melhores
intenções, nem sequer de maior valor que o meu. Falando eu de minhas
pretensões, pude saber, nesse meio de tempo, que em um dia do mês de maio faz exatamente um ano, três dias e cinco horas - Leonisa, seus pais, Cornélio e
os seus iam divertir-se, com tôda sua parentela de criados, no jardim de
Ascânio, que fica perto da praia, a caminho das salinas.
- Sei onde fica - disse Mahamut. - Estive lá por mais de quatro dias, bem
mais de quatro dias. Prossegue, Ricardo.
- Soube-o - continuou Ricardo -, e no mesmo instante apoderou-se de
minha alma uma fúria, uma raiva e um mundo de ciúmes, com tanta veemência
e rigor que fiquei fora de mim, como hás de ver pelo que em seguida fiz. Fui ao
jardim, onde me disseram que estavam, e encontrei a maior parte das pessoas
divertindo-se debaixo de uma nogueira, embora um pouco distantes, vi
Cornélio e Leonisa sentados. Qual dêles desapareceu primeiro da minha vista
não sei; sei apenas dizer que a imagem de Leonisa me ofuscou de tal forma que
perdi a visão e permaneci como estátua, sem voz ou movimento algum; não
demorou, porém, que a irritação despertasse a cólera, a cólera, o sangue nas
veias, o sangue, a ira, a ira, as mãos e a língua, embora minhas mãos se
detivessem por respeito ao formoso rosto que tinha diante de mim. A língua,
porém, interrompeu o silêncio com estas palavras: “Ficarás contente, ó inimiga
mortal de meu sossêgo, mantendo, diante de teus olhos, a causa que fará meus
olhos viverem em perpétuo e doloroso pranto; aproxima-te, aproxima-te,
mulher cruel, aproxima-te um pouco mais e entrelaça tua hera neste tronco
inútil que te busca; desembaraça ou penteia os cabelos de teu nôvo Ganimedes
que te solicita mansamente, entrega-te aos verdes anos dêste jovem a quem
amas, porque eu, perdendo a esperança de possuir-te, perderei também esta
vida que me enfastia; pensas, porventura, soberba e tresloucada, que somente
contigo não se hão de executar as leis e castigos que se usam no mundo em
casos semelhantes? Pensas, quero dizer, que êste jovem, orgulhoso de sua
riqueza, convencido de sua elegância, inexperiente por sua pouca idade,
confiante em sua linhagem, há de querer ou poder ou saber manter-se fiel em
seus amôres ou estimar o inestimável, ou conhecer o que conhecem os maduros
e os experimentados anos? Não o penses, se é que pensas, porque a melhor
coisa que o mundo faz é repetir os fatos sempre da mesma forma para que
ninguém se engane, a não ser que seja por sua própria ignorância; nos poucos
anos reside a inconstância; nos ricos, a soberba; a vaidade, nos arrogantes, e nos
famosos o desdém, e naqueles que possuem tudo isto ao mesmo tempo reside a
estupidez; que é a mãe de todo mau sucesso. E tu, jovem, que pensas roubar o
prêmio que minhas intenções merecem mais do que teus desejos fúteis, por que
não te levantas dêste tapête de flôres onde estás e não vens arrancar a alma que
tanto te detesta? E me ofendes não pelo que fazes, mas porque não sabes avaliar
o bem que a ventura te concede; percebe-se claramente que não a estimas, pois
não queres mover-te ou defendê-la para correres o risco de descompor o
exagerado alinho de tua elegante roupa; se Aquiles estivesse na tranqüilidade
em que te encontras, seria difícil a Ulisses levar a cabo seu intento; olha-te e
alegra-te entre as criadas de tua mãe e cuida de teus cabelos, de tuas mãos mais
hábeis para enrolar fios de sêda que para empunhar a espada”. Apesar de tôdas
estas palavras, Cornélio não se levantou do lugar onde o encontrei sentado;
primeiro, permaneceu quieto, olhando-me como que encantado, sem mover-se;
o elevado tom de voz com que eu lhes disse as palavras que ouviste fêz chegar,
aos poucos, o pessoal que andava pelo jardim; puseram-se êles a escutar outros
impropérios que dirigi a Cornélio; êste, encorajando-se com a presença do
pessoal que para ali viera, pois todos ou quase todos os outros eram seus
parentes, criados ou conhecidos, fêz menção de querer levantar-se, mas, antes
que se pusesse de pé, tomei de minha espada e agredi não só a êle, mas também
a todos que ali estavam;
Leonisa, mal viu minha espada reluzir, desmaiou, fato que me deu mais
coragem e despeito ainda maior; não sei dizer-te se as inúmeras pessoas que me
atacavam procuravam antes de mais nada defender-se, como quem se defende
de um louco furioso, ou se foi minha boa estrêla e agilidade, ou o céu que me
queria reservar para males ainda maiores, pois feri sete ou oito dos que estavam
mais ao meu alcance. A agilidade de Cornélio lhe foi tão útil que, parecendo ter
asas nos pés, fugiu, escapou de minhas mãos; estando eu metido neste perigo,
cercado por meus inimigos, que, ofendidos, procuravam vingar-se, socorreu-me
a sorte, mas com um remédio tal que fôra melhor ter deixado ali a vida que vir a
perdê-la mil e mil vêzes a cada hora que passa; foi então que, inesperadamente,
apareceu no jardim uma enorme quantidade de turcos vindos de duas galeotas
de corsários de Viserta que haviam desembarcado por uma enseada que havia
ali por perto, sem serem vistos pelas sentinelas das tôrres da marinha, nem
descobertos pelos agentes e vigias da costa; quando meus inimigos os viram,
deixaram-me sozinho e com grande rapidez puseram-se a salvo de todos os que
estavam no jardim; os turcos puderam aprisionar apenas três pessoas e Leonisa,
que estava ainda desmaiada; os turcos surpreenderam-me com quatro feridas
horríveis como revide às quatro feridas que eu fizera em outros tantos turcos e
que deixara estendidos no solo, sem vida. Realizaram êste assalto com sua
costumeira rapidez; não muito contentes com o resultado, embarcaram e
lançaram-se ao mar e, à fôrça de vela e remo, em curto espaço de tempo
chegaram a Fabiana; revistaram a tripulação para ver quem lhes faltava e,
vendo que os mortos eram quatro soldados daqueles chamados por êles de
“levantes” e dos melhores e mais estimados que possuíam, quiseram vingar-se
em mim; assim, o capitão da galeota mandou descer a corda para me enforcar.
Leonisa, que já voltara a si, observava tudo isto; vendo-se em poder dos
corsários, derramava abundantes e formosas lágrimas e, esfregando suas
delicadas mãos, sem dizer palavra, ouvia atentamente para ver se entendia o
que os turcos diziam; um dos cristãos do remo, entretanto, disse-lhe em italiano
que o capitão mandava enforcar aquêle cristão, e apontou-me, porque tinha
matado, para defendê-la, quatro dos melhores soldados das galeotas; ouvindo
isso, Leonisa apiedou-se de mim pela primeira vez; pediu ao cativo que falasse
aos turcos para não me enforcar, pois perderiam um bom resgate; pediu ainda
que voltassem a Trápana, porque logo haviam de me resgatar; esta foi a
primeira e será a última caridade que me fêz Leonisa, tudo isso para aumentar
ainda mais os meus males. Os turcos, ouvindo o que o prisioneiro lhes dizia,
acreditaram nêle, e então a cólera cedeu lugar ao interêsse. Na manhã do outro
dia, içando a bandeira da paz, voltaram a Trápana; o que sofri naquela noite
não é difícil de imaginar, não tanto pela dor que as feridas me causavam,
quanto por imaginar o perigo que corria minha cruel inimiga nas mãos
daqueles bárbaros. Chegadas à cidade, uma das galeotas entrou no pôrto e a
outra permaneceu fora; o pôrto inteiro e a margem tôda encheram-se logo de
cristãos; o belo Cornélio, de longe, olhava o que se passava na galeota; um de
meus mordomos apresentou-se logo para tratar de meu resgate, mas disse-lhe
eu que não tratasse de maneira alguma de minha liberdade, e sim da de Leonisa
e que desse por ela tudo quanto eu tinha; ordenei-lhe ainda que voltasse e
dissesse aos pais de Leonisa que o deixassem tratar da liberdade de sua filha e
que não se preocupassem com ela. Feito isso, o capitão, que era um renegado
grego chamado Izuf, pediu por Leonisa 6.000 escudos mais 4000, acrescentando
que só venderia os dois juntos; pediu êle esta grande soma, segundo eu soube
depois, porque estava enamorado de Leonisa e não queria resgatá-la ou dá-la ao
capitão da outra galeota, com quem teria de repartir pela metade as prêsas que
se fizessem; pedindo por mim 4.000 escudos e 6.000 em dinheiro, faria 5.000 e
ficaria com Leonisa por outros 5.000, sendo êste o motivo pelo qual nos avaliou
aos dois em 10.000 escudos. Os pais de Leonisa não ofereceram nada por ela,
atendendo ao pedido que, por minha ordem, lhes fizera meu mordomo;
Cornélio também não abriu a bôca em seu favor; assim, depois de muito
conversar, meu mordomo propôs dar 5.000 escudos por Leonisa e 3.000 por
mim. Izuf aceitou a proposta, persuadido pelas palavras de seu companheiro e
pelo que diziam os seus soldados, porém, como o mordomo não tivesse tão
grande quantidade de dinheiro disponível, pediu três dias de prazo para juntálo com a intenção de vender minhas propriedades para realizar-se o resgate.
Izuf regozijou-se com isso, pensando encontrar, nesse meio de tempo,
oportunidade para que o acôrdo não fôsse adiante e, voltando-se para a ilha de
Fabiana, disse que no prazo de três dias voltaria para buscar o dinheiro. A sorte
ingrata, porém, não contente com minhas desgraças, fêz com que uma sentinela
dos turcos, colocada como vigia no ponto mais alto da ilha, descobrisse, em
meio ao mar, seis veleiros latinos, e imaginou, o que aliás era verdade, que fôsse
ou a esquadra de Malta ou alguma esquadra da Sicília; desceu ràpidamente
para dar a notícia e, num abrir e fechar de olhos, todos os turcos que estavam
em terra, um preparando o que comer, outro lavando a roupa, embarcaram e,
levantando ferros, com uma rapidez jamais vista, soltaram o remo às águas, as
velas ao vento e, viradas as proas, em direção da Berbéria, em menos de duas
horas, perderam-se de vista, e assim, protegidos pela ilha e pela noite que se
aproximava, recobraram-se do susto que haviam passado. Deixo à tua
imaginação, ó Mahamut amigo, a consideração de meu estado de espírito
naquela viagem tão contrária àquilo que esperava; o dia seguinte me foi ainda
pior, pois, tendo as duas galeotas chegado à ilha de Pantanaléa, ali pelo meiodia, saltaram os turcos à terra para fazer lenha e carne, como êles dizem; vi
quando os dois capitães desceram à terra e se puseram a repartir tudo o que
haviam apreendido; a cada uma de suas divisões eu parecia morrer aos poucos;
quando foram repartir a mim e a Leonisa, Izuf deu a Fetala, o capitão da outra
galeota, seis cristãos, quatro para o remo e dois rapazes formosíssimos, da
Córsega, e eu fui incluído entre êles, para poder ficar com Leonisa; Fetala
contentou-se e eu, embora presenciasse a tudo, nunca pude entender o que
diziam, embora soubesse o que faziam, nem entenderia até hoje aquela partilha
se Fetala não se chegasse a mim e me dissesse em italiano: “Cristão, já és meu
prisioneiro, deram-te a mim por 2.000 escudos de ouro; se queres a liberdade
tens de dar 4.000 escudos; se não, morres aqui”. Perguntei-lhe se a môça
também lhe pertencia; disse-me que não, que ela ficaria com Izuf, tendo êste a
intenção de torná-la moura e casar-se com ela. E era verdade, porque um dos
prisioneiros do remo, que entendia bem a língua dos turcos, ouviu o trato feito
entre Izuf e Fetala. Pedi a meu senhor que desse um jeito de ficar com a môça e
eu lhe daria, pelo resgate dela, 10.000 escudos de ouro. Respondeu-me êle que
não era possível, mas que faria Izuf saber da grande soma que eu lhe oferecia
por ela, e Izuf, movido pelo interêsse, talvez mudasse de opinião e aceitasse.
Cumpriu a palavra e ordenou que todos os tripulantes de sua galeota
embarcassem logo, pois queria ir a Trípoli ou a Berbéria, de onde era. Izuf
decidiu ir para Veserta, apesar de tudo; embarcaram ambos com a mesma
pressa que costumavam ter quando descobriam as galeras dos que temiam ou
uma embarcação que quisessem roubar; apressaram-se porque julgaram que o
tempo estava mudando e prenunciando uma borrasca.
Leonisa ficara em terra, mas em um lugar em que eu não pude vê-la, a não
ser na hora de embarcarmos, pois chegamos juntos à costa; seu nôvo amo e
também seu mais recente namorado levava-a pela mão e, ao entrar pela escada
que ligava a terra à galeota, voltou os olhos para me ver; os meus, que não se
desviavam dela, olharam-na com tanto sentimento e dor que, sem saber como,
se antepôs a êles uma nuvem que me tirou a visão e eu caí por terra, sem
sentidos; disseram-me depois que o mesmo acontecera a Leonisa, pois viram-na
cair da escada ao mar, e que Izuf mergulhou logo atrás dela e a trouxe nos
braços; isto contaram-me dentro da galeota de meu senhor, onde me haviam
pôsto sem que eu o sentisse, mas, quando voltei de meu desmaio, vi que estava
sozinho na galeota e que a outra embarcação, tomando caminho diverso,
afastava-se de nós, levando com ela metade de minha alma ou, para melhor
dizer, tôda ela; meu coração apertou de nôvo e de nôvo eu maldisse minha
desventura e chamei a morte em altas vozes; minhas palavras eram tão sentidas
que meu amo, cansado de ouvir-me, ameaçou-me com um grande cajado,
dizendo-me que, se não me calasse, me bateria; reprimi as lágrimas, engoli os
suspiros, acreditando que a fôrça despendida nisso arrebentaria de maneira a
abrir uma porta para a alma que tanto desejava abandonar o corpo miserável; a
sorte, porém, não contente ainda por haver-me pôsto em situação tão difícil,
decidiu acabar com tudo, levando as esperanças de todo o meu alívio, e foi
então que, num instante, se desencadeou a tempestade tão temida; o vento que,
depois do meio-dia, soprava e atirava-nos à proa, pôs-se a bater com tanta fôrça
que foi necessário voltar para êle a pôpa e deixar a embarcação correr por onde
o vento queria levá-la. O capitão queria contornar a ilha e abrigar-se nela pelos
lados do norte, mas seu plano não deu certo, pois o vento soprou com tanta
fúria que tudo o que havíamos feito em dois dias foi pôsto a perder; em pouco
mais de catorze horas vimo-nos a 6 ou 7 milhas da própria ilha de onde
havíamos partido e sem dúvida nenhuma íamos bater de encontro aos
penhascos; os de nossa embarcação faziam o mesmo, ao que parece, com mais
vantagem e esfôrço que os da outra, pois cansados pelo trabalho, vencidos pela
fúria do vento e da tormenta, soltaram os remos e deixaram-se ir, perante
nossos olhos, bater nos penhascos, onde a galeota deu tão grande golpe que se
fêz tôda em pedaços; a noite começava a cair, os gritos dos que se perdiam e o
mêdo dos que, em nossa embarcação, temiam perder-se foram tais que não se
entendiam nem se cumpriam as ordens de nosso capitão; cuidava-se apenas de
não soltar os remos das mãos, achando-se que a única solução era voltar a proa
ao vento e lançar as duas âncoras ao mar para retardar a morte certa; ainda que
o mêdo de morrer fôsse geral, em mim era o contrário, porque, com a esperança
enganosa de ver no outro mundo aquela que, há tão pouco tempo, havia se
afastado dêste, cada momento em que a escuna demorava para naufragar ou
para ir de encontro aos penhascos era, para mim, um século da mais penosa
morte; as ondas revoltadas que passavam por cima do barco e de minha cabeça
faziam-me ficar atento para ver se, com elas vinha o corpo da infeliz Leonisa;
não quero parar agora, Mahamut, para te contar minuciosamente os
sobressaltos, os temores, as ânsias, os pensamentos que tive naquela noite,
longa e amarga, para não contrariar o propósito que fiz de narrar-te
ràpidamente minha desventura; meus sofrimentos foram tantos que, se a morte
viesse naquele momento, teria de lutar muito pouco para tirar-me a vida; veio o
outro dia prenunciando uma tempestade mais forte que a do dia anterior e
achamos que a embarcação tinha virado um bom pedaço, tendo-se afastado
bastante dos penhascos, aproximando-se de uma ponta da ilha; turcos e
cristãos, vendo-se na possibilidade de contorná-la, criaram nova esperança e
novas fôrças; ao fim de seis horas dobramos o cabo e encontramos o mar bem
mais sereno e sossegado, de modo a usarmos mais fàcilmente os remos;
abrigados pela ilha, os turcos puderam saltar em terra para ver se havia ficado
alguma relíquia da galeota que na noite anterior batera nos penhascos; mas não
quis o céu conceder-me ainda a graça tão esperada de ter em meus braços o
corpo de Leonisa, porque, embora morto e despedaçado, gostaria de vê-lo, para
contrariar minha estrêla que me impediu de juntar-me a êle como o mereciam
minhas boas intenções; pedi, então, a um renegado que queria desembarcar,
para procurá-lo e ver se o mar o teria atirado à praia, mas, como já disse, tudo
isto negou-me o céu, pois, no mesmo instante, tornou o vento a enraivecer-se,
de modo que a proteção da ilha de nada nos adiantou; Fetala, vendo isto, não
quis lutar contra a sorte que tanto o perseguia e, assim, mandou prender o
traquete (Traquete: vela grande do mastro da proa. N.T) ao mastro e levantar um
pouco as velas; virou, logo a seguir, a proa ao mar e a pôpa ao vento, e,
encarregando-se êle próprio do timão, deixou-se levar pelo mar imenso, certo
de que nenhum empecilho atrapalharia seu caminho; na coxia (Cochia: Espaço da
pôpa à proa no meio da coberta do navio. N. T.) os remos mantinham-se na mesma
direção; permaneciam todos sentados nos bancos e nas ameias; em tôda a
galeota, via-se apenas o comitre (Comitre: oficial que, nas galés, tinha a seu cargo
dirigir a marcação e castigar os remadores. N.T.) que, para maior segurança, fêz-se
prender fortemente à estandeiro a embarcação ia com tanta velocidade que, no
prazo de três dias e três noites, passando por Trápana, Melazo e Palermo,
entrou pelo farol de Messina, para espanto de todos que íamos dentro dela e
daqueles que, da terra, nos olhavam. Enfim, para não ser tão cansativo em
descrever a tormenta como foi em tôda a sua porfia, digo que, cansados,
famintos e fatigados por têrmos de rodear quase tôda a Sicília, chegamos a
Trípoli de Berbéria, onde meu senhor, antes de fazer o balanço dos despojos,
dar a seus camaradas o que lhes tocava e mais a quinta parte ao rei, segundo o
costume, sentiu tão grande dor nas costas que, dentro de três dias, foi parar no
inferno; o rei de Trípoli e o alcaide, mantido pelo chefe dos turcos e que, como
sabes, recebe os bens dos mortos que não possuem herdeiros, tomaram conta de
todos os seus bens, apoderaram-se ambos das propriedades de Fetala, meu
senhor, e eu passei a pertencer ao alcaide, que era então vice-rei de Trípoli; dali
a quinze dias foi êle nomeado vice-rei de Chipre; com êle vim até aqui sem
intenção alguma de me fazer resgatar; embora tenha-me êle dito muitas vêzes
para que eu o faça, pois sou homem importante, segundo lhe disseram os
soldados de Fetala, jamais o atendi; disse-lhe mesmo terem-no enganado os que
falaram da grandeza de minhas posses; se queres que eu te diga todo o meu
pensamento, Mahamut, hás de saber que não quero voltar aonde eu possa ter
consôlo e quero que, reunindo-se à vida do cativeiro, os pensamentos e
lembranças da morte de Leonisa jamais me abandonem, não me façam
alimentar gôsto algum de viver, e, se é verdade que as dores contínuas se hão
de acabar ou acabar com quem as padece, as minhas também não poderão
deixar de ser assim, porque penso não lhes dar trégua, de modo que, dentro de
poucos dias, dêem cabo da vida miserável que sustento tão contra a minha
vontade.
É esta, ó Mahamut amigo, minha triste vida; é esta a causa de meus
suspiros e de minhas lágrimas; vê e considera, se és capaz de tirá-las das
profundezas de minhas entranhas e gerá-las na aridez de meu peito aflito;
Leonisa morreu e com ela minha esperança, pois a que eu tinha, enquanto ela
viveu, manteve-se por um delicado fio de cabelo; contudo, contudo.
E neste contudo pegou-se-lhe a língua de modo a não poder falar nem
mais uma palavra nem conter as lágrimas, que, como se costuma dizer, corriamlhe pelo rosto com tanta abundância que chegaram a umedecer o solo.
Mahamut chorou também, mas, passada aquela exaltação causada pela
lembrança amarga, quis Mahamut consolar a Ricardo com as melhores palavras
que encontrou; êste, porém, interrompeu-o dizendo:
- O que deves fazer, amigo, é aconselhar-me o que fazer a fim de cair na
antipatia de meu amo e de todos aquêles que estiverem ao meu redor para que,
sendo detestado por êles, possa ser maltratado e perseguido, de modo que,
acrescentando a dor à dor e a pena à pena, possa eu alcançar brevemente meu
desejo de acabar com a vida.
- Sei agora que é verdade quando se diz que o que se sente sabe-se
também dizer, embora algumas vêzes o sentimento emudeça a língua, mas, de
qualquer maneira, Ricardo, quer as tuas palavras exprimam exatamente a tua
dor, quer elas a ultrapassem, sempre hás de encontrar em mim um verdadeiro
amigo, ou, para ajudar-te ou para aconselhar-te, pois, ainda que minha pouca
idade e o desatino que cometi ao vestir êste hábito estejam dando mostras de
que não sou digno de tua confiança, farei com que tua suspeita não se
comprove nem seja verdadeira tua opinião e, ainda que não queiras ser
aconselhado ou protegido, nem por isso deixarei de fazer o que te convier,
como costumam fazer com o enfêrmo que pede o que não lhe dão e dão-lhe o
que lhe convém; em tôda a cidade não há quem possa ou valha mais do que o
cádi, meu amo, nem mesmo o teu, que vem como vice-rei; e, assim sendo, posso
dizer que sou o mais poderoso da cidade, pois consigo com meu patrão tudo o
que desejo; digo isto porque poderia combinar com êle para que passasses a lhe
pertencer e, em minha companhia, o tempo nos dirá o que havemos de fazer
para te consolar, se queres e podes ter consôlo, e a mim, para mudar de vida ou
pelo menos encontrar um lugar onde eu possa sentir-me melhor.
- Agradeço-te, Mahamut, a amizade que me ofereces - falou Ricardo -,
embora esteja certo que por mais que te esforces não hás de realizar nada em
meu benefício; deixemos, porém, tudo isto e vamos para a tenda, porque, pelo
que vejo, sai da cidade muita gente e, sem dúvida, é o antigo vice-rei que se
dirige à planície para ceder lugar a meu amo, a fim de que êle entre na cidade e
fixe residência.
- É isso mesmo - falou Mahamut. - Vem, então, Ricardo, e verás como se
recebem mutuamente, pois sei que gostarás de vê-los.
- Já está mesmo na hora - falou Ricardo. - Talvez eu precise de ti, se por
acaso o guardião dos prisioneiros, que é um renegado corso e de má índole,
tiver dado pela minha falta.
Pararam de conversar e chegaram às tendas na hora em que o antigo paxá
se aproximava e o nôvo saía para recebê-lo à porta da tenda. Ali, pois êste era o
nome do paxá que deixava o govêrno, vinha acompanhado pelos janízaros
(janízaro: Oficial de diligências dos tribunais mouros. N.T.), mais ou menos uns
quinhentos, que geralmente permanecem de guarda em Nicósia, depois que os
turcos a conquistaram; vinham êles em duas alas ou fileiras, uns com escopetas,
outros com alfanjes; chegaram à porta do nôvo Paxá Hazan; todos o rodearam e
Ali, inclinando-se, fêz profunda reverência a Hazan; êste inclinou-se, mas
discretamente, e o saudou. Ali entrou rápidamente no pavilhão de Hazan; os
turcos colocaram-no sôbre um poderoso cavalo, ricamente ajaezado, e, levandoo à tenda redonda, por quase tôda a planície, ouviu-se que êles gritavam em sua
língua: “Viva, viva o Sultão Soliman e Hazan, seu representante!” Repetiram
estas palavras muitas vêzes, aumentando as vozes e o alarido, para depois
voltarem à tenda onde havia ficado o Paxá Ali, que se fechou a sós com o cádi e
com Hazan pelo espaço de uma hora.
Mahamut disse a Ricardo que êles se haviam fechado para tratar do que
convinha fazer na cidade com respeito às obras que Ali deixara começadas.
Logo depois, saiu o cádi à porta da tenda e falou bem alto, em turco, árabe e
grego, que todos os que quisessem entrar e pedir justiça ou fazer qualquer outra
coisa contra o Paxá Ali podiam entrar livremente, pois o Paxá Hazan, a quem o
grão-senhor enviava como vice-rei de Chipre, haveria de lhes dar razão e
justiça. Os janízaros deixaram livre a porta da tenda e permitiram entrar todos
os que quisessem. Mahamut fêz entrar com êle Ricardo; que, por ser escravo de
Hazan, pôde entrar livremente. Entraram também gregos, cristãos e alguns
turcos, mas pediam todos coisas tão insignificantes que o cádi os despachou
sem precisar de anotações à parte, de altos interrogatórios ou respostas, pois
tôdas as causas, com exceção das matrimoniais, despacham-se logo,
dependendo mais do bom senso da criatura que de alguma lei, e entre aquêles
bárbaros o cádi é o juiz competente para tôdas as causas, abreviando-as e
fazendo executá-las em um abrir e fechar de olhos, sem que haja apelação da
sentença para outro tribunal.
Neste momento entrou um chauz (chauz: Oficial inferior de justiça. N.T.),
que é mais ou menos como um aguazil, dizendo que à porta da tenda havia uns
Soldados turcos que faziam parte da guarda do sultão.
Achava-se também ali um judeu que trazia uma jovem cristã lindíssima e
queria vendê-la; o cádi ordenou que o fizesse entrar; o chauz saiu para voltar
logo em seguida com um venerável judeu, que trazia pela mão uma mulher
vestida, com roupas da Berbéria; estava ela mais enfeitada e bem vestida que a
mais rica moura de Fêz ou Marrocos, que, no enfeitar-se, supera tôdas as
africanas, até mesmo as de Argel com tôdas as suas pérolas; seu rosto estava
coberto por um tafetá carmesim; nos tornozelos, que estavam à mostra, viam-se
duas pulseiras ou carcajes, como as chamam os árabes, e que pareciam ser de
ouro puro; nos braços, que transpareciam por sob fino cendal, trazia outras
pulseiras de ouro e pérolas; para resumir, ela estava rica e elegantemente
enfeitada. Admirados, o cádi e os outros paxás, antes de falarem ou
perguntarem qualquer coisa, ordenaram ao judeu que a fizesse tirar o véu; o
judeu assim o fêz e viu-se um rosto que deslumbrou os olhos e alegrou os
corações de todos os que ali estavam; e foi como o sol, que, por entre fechadas
nuvens, depois de muita escuridão, aparece aos olhos daqueles que o desejam;
tal era a beleza, a elegância e a graça da prisioneira cristã; mas em quem a
maravilhosa luz que se havia descoberto produziu maior impressão foi no
infeliz Ricardo, porque êle, melhor do que ninguém, a conhecia, pois era sua
amada Leonisa, que tantas vêzes e com tantas lágrimas tinha sido chorada e
tida por morta. Ali, à vista inesperada da singular beleza da môça, viu-se ferido
e submisso; o mesmo aconteceu com Hazan, pois não se pôde livrar da mesma
chaga amorosa que se abrira no coração do cádi, o mais impressionado de todos
e que não podia tirar os olhos dos formosos olhos de Leonisa. E, para aumentar
as poderosas fôrças do amor, formou-se, naquele mesmo instante, no coração
dos três, o desejo de possuí-la; e assim, sem querer saber como, onde e quando
teria ela chegado ao poder do judeu, perguntaram-lhe que preço pedia por ela;
o cobiçoso judeu respondeu que seu preço era de 4.000 dobras, que vêm a ser
2.000 escudos; mal declarou êle o preço, o Paxá Ali apressou-se em aceitar e a
mandar buscar o dinheiro em sua tenda; entretanto, Hazan, que não queria
perdê-la, ainda que para isso devesse arriscar a própria vida, falou:
- Eu também dou por ela as 4.000 dobras que o judeu pede, e não as daria
nem ousaria contrariar a vontade de Ali - e êle há de concordar comigo - se esta
gentil escrava não pertencesse tão-somente ao nosso grão-senhor, e, assim, digo
que a compro em seu nome; vejamos agora quem se atreverá a tirá-la de mim.
- Eu - replicou Ali -, que por esta mesma razão quero comprá-la, e cabeme, a mim, fazer êste presente ao grão-senhor, pela facilidade que tenho de
levá-la imediatamente a Constantinopla, granjeando com isso as boas graças do
grão-senhor, pois, como bem vês, Hazan, sou um homem que acaba de ficar
sem cargo algum e preciso então, mais do que tu, arranjar um meio de
consegui-lo, pois estás seguro por três anos, já que hoje começas a governar êste
riquíssimo reino de Chipre; por estas razões e por ter sido eu o primeiro a
oferecer o preço pedido pela prisioneira, é justo, ó Hazan, que a deixes para
mim.
- O grão-senhor há de me agradecer muito mais pelo fato de procurá-la e
enviá-la - falou Hazan -, porquanto eu o faço sem ser movido por nenhum
interêsse; e, quanto à facilidade para levá-la, não há problema, porque equiparei
uma galeota somente com meus homens e meus escravos, que a levarão.
Irritou-se Ali com estas palavras e, levantando-se, empunhou o alfange,
dizendo:
- Sendo minha única intenção, ó Hazan, levar esta mulher ao grão-senhor
e tendo sido eu o primeiro comprador, é justo que a deixes para mim, e se
pensares o contrário êste alfange que empunho defenderá meus direitos e
castigará teu atrevimento.
O cádi, que estivera atento e que, não menos que os dois, receava ficar sem
a môça, imaginou como apagar o fogo que se acendera e ao mesmo tempo ficar
com a escrava sem despertar suspeita alguma de sua má intenção, e assim,
levantando-se, colocou-se entre os dois e disse:
- Sossega-te, Hazan, e tu Ali, fica quieto, que eu estou aqui e saberei
conciliar ambas as vontades de modo que consigais vossos intentos e que o
grão-senhor seja servido como desejais.
Obedeceram os dois às palavras do cádi e teriam obedecido mesmo que
êle tivesse ordenado coisa mais difícil, tal é o respeito que os componentes
daquela seita perversa devotam a seus superiores; o cádi prosseguiu dizendo:
- Tu dizes, Ali, que queres dar esta cristã ao grão-senhor, e Hazan também
diz o mesmo; tu alegas que, por seres o primeiro a oferecer o preço, ela há de
ser tua; Hazan te contradiz e, embora êle não saiba apresentar suas razões, o
motivo dêle é o mesmo que o teu, isto é, a intenção, que sem dúvida deve ter
nascido ao mesmo tempo que a tua, de querer comprar a escrava para o mesmo
fim; só que tens a vantagem de tê-lo declarado primeiro, mas isto não é motivo
para anular a boa intenção dêle; parece-me que a melhor maneira de resolver a
situação é a seguinte: a escrava pertencerá a ambos e o destino dela há de ser
decidido pela vontade do grão-senhor, para quem ela foi comprada; tu, Hazan,
pagarás 2.000 dobras, e tu, Ali, outras duas mil e a cativa ficará em meu poder,
para que, em nome de ambos, eu a envie a Constantinopla, a fim de que eu
também receba alguma recompensa pelo fato de estar presente; assim, ofereçome para levá-la, às minhas expensas, com tôdas as honras à altura da pessoa à
qual ela será enviada, escrevendo também ao grão-senhor tudo o que aqui se
passou e a boa vontade que ambos demonstraram em servi-lo.
Não souberam, não puderam, nem quiseram contradizê-lo os dois turcos
enamorados, e, embora vissem que daquela maneira não realizariam seus
desejos, concordaram com o parecer do cádi, acalentando cada um a esperança,
ainda que duvidosa, de poder levar ao fim seus ardentes desejos. Hazan, que
ficaria como vice-rei de Chipre, pensava em oferecer tantos presentes ao cádi
que êle, vencido e obrigado, haveria de lhe dar a prisioneira. Ali imaginou fazer
alguma coisa que lhe assegurasse conseguir o que desejava, e cada um,
acreditando realizar sua intenção, aceitou fàcilmente o que o cádi propôs, e,
com o consentimento e a vontade de ambos, entregaram-na logo e apressaramse em pagar ao judeu 2.000 dobras cada um; o judeu acrescentou ainda que não
haveria de dá-la com as roupas que ela vestia, pois valiam elas outras 2.000
dobras, e assim era na verdade, porque nos cabelos, meio soltos, caindo pelas
espáduas, e meio presos, unidos com laços, viam-se algumas fileiras de pérolas,
que, extremamente graciosas, a êles se misturavam; os anéis dos pés e das mãos
possuíam também enormes pérolas; vestia-lhe o corpo uma almalafa (Almalafa:
Traje mouro que cobre o corpo, desde o ombro até os pés. N.T) de cetim verde, tôda
bordada e cheia de fios de ouro; todos acharam que o judeu pedira pouco pelo
vestuário, e o cádi, para não se mostrar menos liberal que os dois paxás, disse
que êle queria pagar para que a jovem se apresentasse ao grão-senhor daquele
mesmo jeito; os dois contendores acharam que assim estava bom, cada um
acreditando que tudo haveria de cair em seu poder.
Não esqueçamos, porém, de dizer o que sentiu Ricardo ao ver que faziam
leilão de sua alma, os pensamentos que teve, os temores que o sobressaltaram,
pois encontrara sua bem-amada para vê-la ainda mais perdida: não sabia êle se
estava dormindo ou acordado, não acreditava que estivesse tão
inesperadamente diante dêles aquela a quem julgara morta; nisto chegou
Mahamut, seu amigo.
- Não a conheces? - perguntou.
- Não a conheço - respondeu Mahamut.
- Pois sabe que é Leonisa.
- Que dizes, Ricardo?
- O que acabaste de ouvir.
- Cala-te e não a identifiques, que a sorte está de teu lado, pois Leonisa
está em poder de meu amo.
- Achas - perguntou Ricardo - que eu deva ficar onde possa ser visto?
- Não, para que não sobressaltes nem a ela nem a ti e não venhas a
demonstrar que a conheces e que a viste, o que poderia prejudicar meus planos.
- Seguirei teu conselho - falou Ricardo. E assim o fêz, pois evitou que seus
olhos se encontrassem com os de Leonisa, que, enquanto isto, mantinha os seus
cravados no solo, derramando algumas lágrimas. O cádi aproximou-se dela e,
tomando-a pela mão, entregou-a a Mahamut, ordenando-lhe que a levasse à
cidade e a entregasse à Halima, dizendo que a tratasse como escrava do grãosenhor; Mahamut obedeceu, deixando sozinho a Ricardo, que foi seguindo com
os olhos a sua estrêla até que ela fôsse encoberta pela nuvem dos muros de
Nicósia.
Depois, chegando-se ao judeu, perguntou-lhe onde a tinha comprado ou
como teria vindo parar em suas mãos aquela cativa cristã. Respondeu-lhe o
judeu que a comprara de alguns turcos que haviam naufragado na ilha de
Pantanaléa; parecia querer contar alguma coisa mais, porém não pôde, pois
vieram chamá-lo, por ordem dos paxás, que queriam perguntar-lhe o que
Ricardo desejava saber, e por isto foi obrigado a despedir-se dêle.
A caminho da cidade, Mahamut teve oportunidade de perguntar em
italiano a Leonisa de que lugar ela era. Esta respondeu ser de Trápana;
Mahamut prosseguiu perguntando se ela conhecia, naquela cidade, um
cavalheiro rico e nobre, chamado Ricardo. Leonisa, ouvindo isto, deu um
profundo suspiro e falou:
- Conheço, infelizmente.
- Por que infelizmente?
- Porque êle também me conheceu, para sua desventura.
- E por acaso conhecestes também na mesma cidade a outro cavalheiro
elegante, filho de pais muito ricos, muito liberal, muito discreto, que se
chamava Cornélio?
- Conheço-o também - respondeu Leonisa -, e posso dizer que para minha
maior infelicidade. Mas, quem sois vós, senhor, que os conheceis e por êles me
perguntais?
- Sou natural de Palermo e por vários motivos estou com êste traje, vestido
desta maneira, e conheço-os porque, não há muitos dias, estiveram ambos em
meu poder, pois Cornélio foi prêso por uns mouros de Trípoli da Berbéria e
vendido a um turco que o trouxe a esta ilha, para onde veio com mercadorias,
porque é mercador de Rodes e confiava a Cornélio tôda a sua riqueza.
- Saberá guardá-la - falou Leonisa -, porque sabe guardar muito bem a sua;
mas dizei-me, senhor, como e com quem veio Ricardo a esta ilha?
- Veio com um corsário que o aprisionou em um jardim à beira-mar, em
Trápana, e disse que com êle haviam aprisionado uma jovem cujo nome não
quis revelar; permaneceu aqui alguns dias com seu amo, que ia visitar o
sepulcro de Maomé na cidade de Medina; por ocasião da partida, Ricardo caiu
enfêrmo e tão indisposto que seu amo o deixou comigo, por sermos da mesma
terra, para que eu cuidasse de sua saúde e tomasse conta dêle até sua volta ou,
se para aqui não voltasse, que eu o enviasse a Constantinopla, pois êle me
avisaria quando lá estivesse; os céus, entretanto, dispuseram os fatos de outra
maneira, porque o desventurado Ricardo, sem sofrer acidente algum, perdeu a
vida em poucos dias, sempre chamando a uma tal Leonisa, a quem êle me
dissera querer mais que a própria vida e a própria alma; disse-me êle que esta
Leonisa se havia afogado em um naufrágio na ilha de Pantanaléa, e sua morte,
êle a chorava e pranteava sempre, até que perdeu a vida, pois eu não percebi
enfermidade alguma em seu corpo, e sim amostras de dor em sua alma.
- Dizei-me, senhor - falou Leonisa -, o outro môço de quem falais, nas
inúmeras conversas que teve convosco, falou-vos alguma vez desta Leonisa e
da maneira pela qual ela e Ricardo foram aprisionados?
- Sim, falou. Perguntou-me também se havia chegado a esta ilha uma
jovem cristã com êste nome, a quem gostaria de encontrar para resgatá-la, pois
seu amo já devia saber que ela não era tão abastada quanto julgara e talvez
pedisse por ela um preço menos elevado, pois já a possuíra; que, se o preço não
fôsse além de 300 ou 400 escudos, êle os daria de muito boa vontade, porque, há
algum tempo, tivera por ela alguma afeição.
- Devia ser bem insignificante esta afeição, pois não passava de 400
escudos; Ricardo era mais liberal, valente e arrojado;
Deus me perdoe, porque fui eu a causa de sua morte e sou eu a infeliz que
êle considerou morta; só Deus sabe quanto me alegraria se êle estivesse vivo,
para pagar-lhe com afeto o preço de sua desgraça e o desgôsto que provou ao
me ver também desgraçada; eu, senhor, como já vos disse, sou a criatura
menosprezada por Cornélio e a bem-amada de Ricardo; depois de vários
incidentes, fui reduzida a êste estado miserável e, embora me fôsse perigoso,
pude conservar, com o auxílio do céu, a integridade de minha honra, o que
ainda me faz contente, apesar de tôda a minha miséria; agora nem sei onde
estou nem quem é meu dono, nem aonde hão de me levar os fados adversos,
pelo que vos rogo, senhor, pelo sangue cristão que tendes, que me ajudeis em
minhas misérias, que por serem muitas serviram para me advertir, e meus
desgostos são tantos e tais que não sei como hei de me haver com êles.
Mahamut respondeu que faria o que pudesse para servi-la, aconselhandoa, ajudando-a com sua capacidade e com tôdas as suas fôrças; lembrou-lhe o
desentendimento que os dois paxás tiveram por sua causa e que estava em
poder do cádi, seu amo, para, com ela, presentear o grande Sultão Selim, em
Constantinopla, mas que, antes de tal coisa ser levada a efeito, nutria
esperanças de que o verdadeiro Deus, no qual acreditava, embora não fôsse um
verdadeiro cristão, haveria de dispor os fatos de outra maneira, e aconselhava-a
a tratar bem Halima, a mulher do cádi, seu amo, em cujo poder haveria de estar
até que a enviassem a Constantinopla; foi dizendo estas e outras coisas em seu
benefício até que a deixou em sua nova casa e em poder de Halima, a quem
transmitiu o recado de seu amo.
Halima, vendo-a tão bem enfeitada e tão formosa, recebeu-a muito bem.
Mahamut voltou à tenda para contar a Ricardo o que se havia passado
entre êle e Leonisa; encontrando-o, contou-lhe tudo tintim por tintim e, quando
se referiu ao sentimento que Leonisa provara ao falar-lhe que êle havia morrido,
as lágrimas quase lhe vieram aos olhos; disse-lhe também que inventara uma
história a respeito de Cornélio, para ver o que ela dizia; falou-lhe do pouco caso
e da malícia da qual usara referindo-se a Cornélio; tudo isto serviu apenas para
aumentar ainda mais o sofrimento de Ricardo, que disse a Mahamut:
- Lembro-me, Mahamut, de uma história contada por meu pai, que, como
já sabes, foi muito dedicado e recebeu grandes honrarias do Imperador Carlos
V, a quem sempre serviu em nobres cargos na guerra. Contou-me êle que,
quando o imperador ocupou Túnis à fôrça, trouxeram para o seu acampamento
uma jovem moura, de uma beleza singular, para com ela presenteá-lo; quando a
jovem entrou, alguns raios de sol que se infiltravam pela tenda bateram em seus
cabelos, que disputavam o doirado ao sol, fato extraordinário em se tratando
dos mouros que, em geral, têm os cabelos negros. Contava que naquela ocasião
se encontravam na tenda, entre muitos outros, dois cavalheiros espanhóis; um
era andaluz e outro catalão, ambos distintos e ambos poetas; vendo-a, o
andaluz, admirado, começou a fazer uns versos, que êles costumavam chamar
de coplas; encontrando certa dificuldade para dar aos versos harmonia perfeita,
pois escolhera palavras de rimas difíceis, deteve-se no quinto verso e não
chegou a terminar a copla nem seu pensamento, mas o outro cavalheiro, que
estava a seu lado e tinha ouvido os versos, vendo-o parado, como se tirasse as
palavras da bôca do companheiro, prosseguiu, utilizando-se da mesma rima.
Tudo isto veio-me à memória quando vi Leonisa entrar na tenda do paxá, capaz
não somente de ofuscar os raios do sol se êles a tocassem, mas também a todo
céu com suas estrêlas.
- Basta, não digas mais nada; chega, Ricardo, pois a cada momento que
passa receio que de tanto endeusares tua bela Leonisa deixes de ser cristão para
te tornares um idólatra; dize-me, se queres, êsses versos ou coplas, e depois
falaremos de outras coisas que sejam mais alegres e também, talvez, de maior
proveito.
- Está bem - disse Ricardo -, mas volto a te advertir que cinco versos foram
ditos por um e os outros cinco por outro, todos de improviso:
Tal qual o sol que assoma
atrás de baixa montanha,
que de repente aparece
e que ao chegar escurece
nossa vista e a ofusca,
tal qual o belo rubi
que não abriga o carcoma,
o teu lindo rosto, Aja,
é a dura lança de um deus
que fere minhas entranhas.
- Soam-me bem ao ouvido - falou Mahamut -, e soam-me ainda melhor
porque são ditas por ti, Ricardo, pois fazer versos ou dizê-los exige um ânimo
desapaixonado.
- Costuma-se também - respondeu Ricardo -, chorar endechas (Endecha:
Canção triste, de tom lamentoso e sentimental. N.T.), cantar hinos, e tudo significa
dizer versos; mas, deixando isto de lado, dize-me: como pensas resolver nosso
caso? Pois, embora não tenha entendido o que os paxás disseram na tenda, um
renegado veneziano pertencente a meu amo, que se achava presente e que
entende bem tua língua, enquanto levavas Leonisa, contou-me tudo, e antes de
mais nada é preciso dar um jeito para que Leonisa não vá parar nas mãos do
grão-senhor.
- A primeira coisa é fazer com que venhas ao poder de meu amo; feito isto,
depois veremos o que mais nos convém.
Neste momento chegou o guardião dos prisioneiros cristãos de Hazan e
levou Ricardo com êle; o cádi voltou à cidade com Hazan, que, em poucos dias,
fêz o atestado de antecedentes de Ali, dando-o fechado e selado para que
pudesse êle ir a Constantinopla; Ali partiu logo, recomendando muito ao cádi
que enviasse brevemente a prisioneira, escrevendo ao grão-senhor para que a
utilizasse como quisesse. O cádi prometeu, mas de nada valiam suas palavras,
pois, por causa da prisioneira, voltaria fàcilmente atrás; Ali partiu cheio de
esperanças e Hazan ficou também cheio delas; Mahamut fêz com que Ricardo
viesse para o poder de seu amo; iam-se os dias e o desejo de ver Leonisa era
tanto que Ricardo não tinha sossêgo; passou a chamar-se Mário para que seu
nome não chegasse aos ouvidos de Leonisa, antes que ela o visse - e vê-la era
muito difícil, porque os mouros são extremamente ciumentos: escondem de
todos os homens os rostos de suas mulheres, embora não se importem que os
cristãos as vejam, pois, talvez por serem êles escravos, não os considerem
homens. Aconteceu então que Halima viu, um dia, seu escravo Mário e olhou-o
tanto que êle ficou gravado em seu coração e em sua memória; e, certamente,
pouco satisfeita com os abraços frouxos de seu velho marido, teve logo um mau
pensamento, do qual imediatamente falou a Leonisa, a quem já se afeiçoara por
sua agradável companhia, maneiras discretas, tratando-a com muito respeito,
por pertencer ao grão-senhor; disse-lhe que o cádi tinha trazido para casa um
escravo tão garboso e elegante que, a seu ver, jamais conhecera homem tão
bonito em tôda a sua vida, e todos diziam que êle era um chilili, que quer dizer
cavalheiro, e era da mesma terra de Mahamut, e que não sabia como dar-lhe a
entender seu desejo sem que o cristão a menosprezasse por tê-lo declarado;
Leonisa perguntou-lhe como se chamava o escravo; disse-lhe Halima que seu
nome era Mário.
- Se êle fôsse um cavalheiro e do lugar que dizem, eu o conheceria; com o
nome de Mário não conheço ninguém em Trápana; mas faze, senhora, com que
eu o veja e lhe fale, que te direi quem é e o que se pode esperar dêle.
- Assim o faremos, porque sexta-feira, quando o cádi estiver fazendo suas
orações na mesquita, farei Mário entrar aqui dentro, onde poderás falar-lhe a
sós e, se quiseres, dá-lhe a entender os meus desejos, e o farás da melhor
maneira que puderes.
Isto foi o que disse Halima a Leonisa; e não haviam passado duas horas
quando o cádi chamou Mahamut e Mário; com o mesmo ardor com que Halima
havia aberto o coração a Leonisa, o velho enamorado abriu também o seu aos
dois escravos, pedindo-lhes que o ajudassem a achar um meio de possuir a
jovem cristã e ao mesmo tempo não faltar com a palavra ao grão-senhor, a
quem ela pertencia, dizendo-lhes que preferia mil vêzes morrer a entregá-la ao
grande chefe. Com estas palavras, o devotado mouro falava de sua paixão,
confiando-a aos corações de seus dois escravos, que pensavam justamente o
contrário do que êle estava pensando. Ficou combinado entre êles que Mário,
por ser de sua terra natal, embora tivesse dito que não a conhecia, ficaria
incumbido de falar-lhe de suas intenções, e se por êste modo êle nada obtivesse,
usar-se-ia da fôrça, pois ela estava em seu poder; feito isto, dizendo que ela
morrera, preservar-se-iam de mandá-la a Constantinopla. O cádi ficou
contentíssimo com o plano de seus escravos e, com infinita alegria, ofereceu, na
mesma hora, liberdade a Mahamut e a metade de seus bens quando morresse;
prometeu ainda a Mário dar-lhe a liberdade e dinheiro para que voltasse à sua
terra, rico, honrado e feliz, caso êle levasse o plano a bom têrmo; se o cádi foi
generoso em prometer, seus escravos foram pródigos em oferecer até mesmo a
lua do céu, quanto mais a Leonisa, se êle desse liberdade de vê-la e falar com
ela.
- Darei a Mário a liberdade que êle quiser - falou o cádi -, pois farei com
que Halima vá, por alguns dias, para a casa de seus pais, que são gregos
cristãos; estando ela fora, ordenarei ao porteiro que deixe Mário entrar dentro
de casa tôdas as vêzes que êle quiser e direi a Leonisa que poderá falar com o
seu patrício quando tiver vontade.
Assim, começou a voltar o vento da ventura de Ricardo, soprando em seu
favor, sem que seus próprios amos soubessem o que faziam. Tomando, pois, os
três esta decisão, quem primeiro a pôs em prática foi Halima, que, como tôdas
as mulheres, era por natureza precipitada e resoluta para conseguir o que
desejava. Naquele mesmo dia, o cádi disse a Halima que ela podia, quando
quisesse, ir para a casa dos pais e passar com êles o tempo que desejasse, mas,
estando ela entusiasmada com as esperanças que Leonisa lhe dera, não queria ir
para a casa dos pais e não iria nem mesmo ao paraíso de Maomé, se êle
existisse; por isso, respondeu ao cádi que, por enquanto, não tinha vontade de
viajar e que quando ela quisesse lhe diria; porém, fazia questão de levar com ela
a escrava cristã.
- Isso não - replicou o cádi - não fica bem que a dádiva do grão-senhor seja
vista por alguém e ainda deixá-la conversar com um cristão, pois, sabeis que,
chegando ao poder do grão-senhor, hão de encerrá-la no harém e fazer dela sua
mulher, quer ela queira, quer não.
- Andando ela comigo, não importa que esteja em casa de meus pais nem
que se comunique com êles, pois eu também falo com êles e nem por isso deixo
de ser boa mulher, e além disso penso ficar lá apenas quatro ou cinco dias,
porque o amor que vos dedico não me permitirá ficar ausente por tanto tempo e
sem ver-vos.
O cádi não quis discutir com ela para não despertar nenhuma suspeita. Na
sexta-feira, êle foi para a mesquita, de onde não podia sair em menos de quatro
horas; Halima, mal o viu longe dos umbrais da casa, mandou chamar Mário;
um cristão corso, que servia como porteiro à porta do pátio, não o teria deixado
entrar se Halima não tivesse ordenado que o deixassem passar, e foi assim que
Ricardo entrou, confuso e tremendo, como se fôsse lutar com um exército de
inimigos.
Leonisa estava do mesmo jeito e com o mesmo vestuário de quando
entrou na tenda do paxá, sentada ao pé de uma escada grande, de mármore,
que ia dar nos corredores; tinha a cabeça encostada na palma da mão direita e o
braço sôbre os joelhos, os olhos voltados para o lado contrário da porta por
onde entrou Mário, de modo que, embora êle fôsse para o lado dela, ela não o
via. Ricardo, entrando, correu os olhos por tôda a casa e nela viu apenas um
mudo e profundo silêncio, até que fixou a vista onde Leonisa estava; num
instante vieram à sua mente de namorado tantos pensamentos que o detiveram
e alegraram, considerando-se a vinte passos, ou pouco mais, distanciado de sua
felicidade e alegria; considerava-se cativo por estar sua bem-aventurança em
poder alheio; pensando tôdas estas coisas, movia-se lentamente com temor e
inquietação, alegre e triste, temeroso e encorajado; ia-se aproximando do lugar
onde estava sua alegria, quando Leonisa se voltou de repente e pôs seus olhos
nos de Mário, que a olhava atentamente; e, quando os olhares dos dois se
encontraram, de maneira diferente deram mostras do que suas almas tinham
sentido. Ricardo parou e não pôde dar mais um passo à frente. Leonisa, que,
pelas informações de Mahamut, considerava Ricardo morto, encheu-se de
temor e de espanto, vendo-o ali inesperadamente, vivo; sem tirar os olhos de
cima dêle nem voltar-lhe as costas, subiu quatro ou cinco degraus e, tirando
uma pequena cruz do seio, beijou-a muitas vêzes e persignou-se infinitamente,
como se algum fantasma ou alma do outro mundo estivesse olhando-a.
Ricardo, voltando de seu êxtase e percebendo a verdadeira causa do temor
de Leonisa, disse-lhe:
- Sinto muito, formosa Leonisa, que as notícias de minha morte, dadas por
Mahamut, não sejam verdadeiras, pois com ela evitaria os tepores que me
invadem, pensando se ainda continua, com a mesma intensidade, a aspereza
que sempre usaste para comigo. Sossega-te e desce e, se és capaz de fazer o que
nunca fizeste, chega-te a mim, chega e verás que não sou um fantasma; sou
Ricardo, Leonisa, Ricardo, cuja felicidade ainda depende de ti.
Leonisa fêz sinal para que êle se calasse ou falasse mais baixo; animandose um pouco, Ricardo foi-se aproximando dela até que pudesse ouvir suas
palavras.
- Fala baixo, Mário. É assim que te chamas agora, não?
Ouve apenas o que te vou falar e lembra-te de que as palavras que disseste
há momentos poderiam ser motivo para que nunca nos tornássemos a ver; creio
que Halima, nossa ama, e que me disse adorar-te, está a nos escutar; pediu-me
que eu te falasse a respeito de suas intenções; se quiseres corresponder, estarás
beneficiando mais ao teu corpo do que à tua alma, porém, mesmo que não
queiras, é necessário que finjas querer, primeiro, porque eu te peço, depois
porque o merecem os desejos da mulher que ousou declará-los.
- Jamais pensei nem pude imaginar, formosa Leonisa, que havia de
considerar impossível deixar de fazer alguma coisa que me pedisses, mas o que
me pedes agora decepcionou-me.
Será que a vontade é tão insignificante que se possa levá-la de um lugar.
para outro? Ficaria bem ao homem honrado e verdadeiro fingir em alguma
coisa assim tão importante? Se te parece que tal coisa se deve ou se pode fazer,
faze o que bem quiseres, pois és senhora de minha vontade, mas também nisto
te enganas, pois jamais a conheceste e não sabes o que fazer dela. entretanto,
para não dizeres que fôste desobedecida na primeira ordem que me deste,
esquecerei quem sou, satisfarei o teu desejo e o de Halima, se é que com isso hei
de conseguir a felicidade de te ver; inventa as respostas que quiseres, que eu,
embora esteja mentindo, as confirmarei; em troca do que faço por ti, que, aliás, é
o máximo que poderia fazer, embora possa dar-te novamente a alma que tantas
vêzes te dei, peço-te que me digas, com breves palavras, como escapaste das
mãos dos corsários e como vieste às mãos do judeu que te vendeu.
- Pedes o resumo de minhas desgraças, mas, como quero satisfazer-te em
alguma coisa, eu as contarei. Depois de um dia que nos separamos, a
embarcação de Izuf, por causa de vento forte, voltou à ilha de Pantanaléa, onde
vimos também a tua galeota, mas a nossa, sem que nada se pudesse fazer, foi
atirada aos rochedos; meu amo, vendo que estávamos perdidos, esvaziou
ràpidamente dois barris que estavam cheios de água, fechou-os muito bem e
prendeu-os com cordas; colocou-me entre êles, despiu-se e, pegando o outro
barril entre os braços, prendeu-o ao corpo com um cordel; com êste mesmo
cordel prendeu os meus barris e com grande coragem atirou-se ao mar,
levando-me atrás dêle; eu não tive coragem para me atirar, mas alguém da
embarcação empurrou-me e eu caí sem sentidos, atrás de Izuf; só voltei a mim
quando me achei em terra, nos braços de dois turcos, que, mantendo-me de
bruços, faziam com que eu vomitasse a grande quantidade de água que tinha
bebido; abri os olhos atônita e vi Izuf junto a mim, com a cabeça em pedaços;
segundo soube depois, ao chegar à terra bateu com ela nos penhascos,
perdendo assim a vida; disseram-me os turcos que me tiraram da corda quase
afogada; somente oito pessoas escaparam da galeota; ficamos na ilha oito dias e
os turcos respeitaram-me como se eu fôsse irmã dêles ou mais; talvez; ficamos
escondidos em uma caverna, pois temiam êles que um grupo de cristãos da ilha
os aprisionasse; alimentaram-se com o biscoito molhado que levavam na
galeota e que o mar atirou à praia, saindo para pegá-lo durante a noite; quis o
destino, para minha maior infelicidade, que o destacamento estivesse sem
capitão, pois morrera êle poucos dias atrás e o destacamento contava com vinte
soldados apenas; soubemos isto de um rapaz do próprio destacamento que os
turcos aprisionaram quando fôra apanhar conchas na praia; depois de oito dias
chegou àquela costa uma embarcação de mouros, chamada por êles de
caramuçal; os turcos viram-na, saíram de onde estavam, fazendo tantos sinais à
embarcação que estava perto da terra que os outros puderam ver que eram os
turcos que os chamavam; contaram-lhes suas desgraças e os mouros os
receberam em sua embarcação, na qual vinha um judeu, mercador riquíssimo;
quase tôda ou a maior parte da mercadoria do barco era constituída de
barreganas (Barreganas: Fazendas de lã forte e impermeável. N.T.), alguicéis
(Alguicéis: Mantos mouriscos em forma de capa, brancos e de lã. N.T.) e outras coisas
que se levam da Berbéria ao Levante.
Os turcos partiram para Trípoli nesta mesma embarcação; no caminho
venderam-me ao judeu, que pagou por mim 2.000 dobras, preço muito alto, mas
o amor que o judeu me devotava fêz com que êle se tornasse generoso; a
embarcação, deixando os turcos em Trípoli, tornou a seguir viagem e o judeu
passou a dirigir-se a mim descaradamente; desprezei-o, como, aliás, mereciam
seus torpes desejos; vendo-se êle sem esperanças de alcançar o que queria,
determinou desfazer-se de mim na primeira ocasião que se apresentasse; ao
saber que os dois paxás, Ali e Hazan, estavam nesta ilha, e que aqui podia
vender sua mercadoria tão bem quanto em Xio, onde pensava vendê-la, veio até
aqui com intenção de vender-me a algum dos paxás; por isso, vestiu-me da
maneira que ainda me vês, para despertar-lhes o desejo de me comprar; soube,
depois, que o cádi me comprou para enviar-me como presente ao grande chefe,
o que, aliás, me faz bastante inquieta; soube também, aqui, de tua falsa morte e,
para dizer a verdade, se é que queres acreditar, senti profundamente e tive mais
inveja que pena de ti, não porque te queira mal, pois, embora eu seja
desamorosa, não sou ingrata nem mal agradecida, mas porque tinhas pôsto fim
à tragédia de tua vida.
- Falaste bem, senhora, se a morte não me impedisse de tornar a ver-te;
alegro-me muito mais com êste momento de glória em que sou feliz por poder
olhar-te do que com a ventura da vida eterna, pois, tanto na vida como na
morte, êste seria sempre o meu desejo; o sentimento que Halima tem por mim é
o mesmo que meu amo, o cádi, em cujo poder vim parar por incidentes
semelhantes aos teus, tem por ti; pediu-me êle que me fizesse portador de seus
desejos; aceitei a incumbência, não porque me agradasse, mas porque assim
teria maior facilidade para falar contigo; vê, Leonisa, a que ponto nossas
desgraças nos trouxeram: tu me pedes algo impossível de fazer e eu tenho de
pedir-te coisa que jamais imaginei, e daria a vida, que agora prezo tanto por terme concedido a ventura de ver-te, para não ver realizado aquilo que te peço.
- Não sei que dizer, Ricardo, nem qual seria a saída do labirinto onde,
como dizes, nossa má sorte nos colocou; só sei dizer que é necessário usarmos
de subterfúgios que não seriam de se esperar de nosso caráter, ou seja, de
fingimento e falsidade; assim, direi a Halima algumas palavras que não lhe
tirem a esperança e que a entretenham; tu poderás dizer ao cádi o que melhor
convier para minha segurança e para mantê-lo também entretido; coloco, pois,
minha honra em tuas mãos, e podes acreditar que ela ainda está intata, embora
os caminhos pelos quais andei e os embates que sofri pudessem pôr em dúvida
minhas palavras; conversarmos será fácil e eu terei com isso muito prazer, com
a condição de jamais me falares de teus sentimentos, pois na hora em que o
fizeres deixarei de te ver, porque não quero que penses ser eu de tão pouco
mérito que hei de conceder, no cativeiro, aquilo que na liberdade não pude
conceder; com a ajuda do céu, devo ser como o ouro, que, quanto mais se
acrisola, mais puro e limpo se faz; contenta-te com o haver dito que tua
presença não me aborrece como antes acontecia, pois quero que saibas, Ricardo,
que sempre te considerei mau, arrogante e presunçoso; confesso, também, que
me enganava e pode ser que, se fizesse agora uma experiência, a verdade viria
fàcilmente aos meus olhos e, conhecendo eu esta verdade, pudesse, ao mesmo
tempo, ser honesta e mais humana; vai com Deus, pois receio que Halima nos
tenha escutado, porque ela entende um pouco da língua cristã, ou pelo menos,
daquela mistura de línguas que se usa e pela qual todos nós nos entendemos.
- Tens razão, e agradeço-te infinitamente o fato de me teres logo
desiludido, o que estimo tanto quanto o favor que fazes em deixar-me ver-te, e,
como dizes, talvez a experiência te faça compreender quão sincera e humilde é
minha intenção, principalmente para adorar-te; e, sem que estabelecesses
limites, fizesses observações ou condições, seria tão honesto para contigo que
não poderias desejar algo melhor; quanto ao cádi, não te preocupes, eu saberei
entretê-lo; faze o mesmo com Halima e sabe que, depois de ver-te, nasceu em
mim tal esperança que me faz pensar em alcançarmos logo a liberdade
desejada; fica com Deus e da outra vez falar-te-ei dos caminhos pelos quais a
fortuna me trouxe a êste estado, depois que de ti me separei, ou melhor, que de
ti me separaram.
Com isto, despediram-se: Leonisa ficou satisfeita com a retidão de Ricardo
e êle ficou contentíssimo por não ter ouvido uma palavra áspera da bôca de
Leonisa.
Halima permanecera fechada em seus aposentos, pedindo a Maomé que
Leonisa voltasse com boas notícias; o cádi estava na mesquita, retribuindo os
desejos de sua mulher com os seus, permanecendo ansioso e prêso à resposta
que esperava ouvir do escravo a quem incumbira de falar com Leonisa,
contando para isso com o auxílio de Mahamut, que lhe ofereceria tôdas as
facilidades, mesmo com a presença de Halima na casa. Leonisa intensificou em
Halima o desejo e o amor, alimentando-lhe muitas esperanças de que Mário
faria tudo o que pudesse, tudo o que ela quisesse, mas que deveria deixar
passar primeiro duas luas antes de realizar-se o que êle desejava muito mais
que ela própria, e pedia êste prazo porque desejava orar e pedir a Deus que lhe
concedesse a liberdade. Halima satisfez-se com a resposta e com a proposta de
Mário, a quem ela concederia liberdade mesmo antes de terminado o prazo,
porque êle consentira em atender aos seus desejos; assim, pediu a Leonisa que
dissesse a Mário para deixar de lado o tempo e não se demorar mais, pois ela
ofereceria por êle quanto o cádi pedisse para seu resgate. Por outro lado,
Ricardo, antes de dar uma resposta a seu amo, falou com Mahamut;
combinaram os dois que desiludiriam o senhor e o aconselhariam a levar
Leonisa para Constantinopla o mais depressa possível e que, no caminho, ou
por bem ou por mal, alcançaria êle seu intento; para não faltar com a devoção
ao grão-senhor, seria bom comprar outra escrava e, na viagem, fingir ou fazer
com que Leonisa ficasse enfêrma; durante a noite, atirariam ao mar a outra
escrava, dizendo que Leonisa, a escrava do grão-senhor, morrera; e isto havia
de ser feito de modo que a verdade jamais fôsse descoberta e êle não faltasse
com a palavra ao grão-senhor; depois, para que seus desejos fôssem realizados,
haveriam de estabelecer um plano conveniente e proveitoso.
Estava tão cego o mísero e velho cádi que, se outros disparates
semelhantes lhe fôssem ditos, acreditaria em todos, desde que apresentassem
uma solução para a realização de suas esperanças; assim, acreditou nas palavras
de seus escravos, pois pareceu-lhe que elas o levariam ao caminho certo e a um
fim mais certo ainda, e assim de fato o seria se a intenção de seus dois
conselheiros não fôsse apoderar-se de sua embarcação e presenteá-lo com a
morte em trôco de seus loucos pensamentos. Apresentou-se, porém, ao cádi
outra dificuldade; segundo êle, a maior que naquele caso se lhe podia
apresentar, ou seja, a dificuldade de poder ir a Constantinopla sem Halima,
porque era certo que ela não o deixaria ir só; haveria de querer ir também;
entretanto, arranjou logo um meio de facilitar as coisas, dizendo que, em vez de
comprarem uma escrava para substituir Leonisa, usariam Halima, de quem
desejava livrar-se mais do que da própria morte. A mesma facilidade que teve o
cádi em fazer tal pensamento tiveram, também, Mahamut e Ricardo em
concordar com êle e, não havendo mais nada a discutir, o cádi, naquele mesmo
dia, tratou de falar com Halima sôbre a viagem que pretendia fazer a
Constantinopla a fim de levar a jovem cristã ao grão-senhor, cuja liberdade o
faria, por certo, grão-cádi do Cairo ou de Constantinopla. Halima concordou
plenamente com sua decisão, acreditando que Ricardo não fôsse, mas, quando o
cádi a informou de que o levaria, bem como a Mahamut, mudou de opinião e
tratou de anular os conselhos que lhe dera anteriormente. Por fim disse que se
não a levasse não o deixaria ir de maneira alguma. O cádi regozijou-se em
obedecê-la desta vez, porque pensava em livrar-se, o mais depressa possível, de
carga tão pesada.
Enquanto isso, o Paxá Hazan não se cansava de pedir ao cádi que lhe
entregasse a escrava, oferecendo-lhe muito ouro, tendo chegado a presenteá-lo
com Ricardo, cujo resgate avaliava em 2.000 escudos, e planejava o modo de ela
ser-lhe entregue com a mesma facilidade com que o cádi imaginara dar a notícia
da morte da escrava quando o grão-senhor mandasse buscá-la. Todos os
presentes e promessas serviram apenas para aguçar no cádi o desejo de
apressar a partida e, assim, impelido pelas suas intenções, pelas impertinências
de Hazan e ainda pelas de Halima, que também fabricava castelos no ar,
equipou, no prazo de vinte dias, um bergantim com quinze bancos, um bom
número de bóias, com mouros e com alguns gregos cristãos; colocou nêle tôda a
sua riqueza; Halima levou tudo o que pôde e pediu ao marido que a deixasse
levar os pais até Constantinopla; sua intenção era a mesma do cádi: fazer com
que Mahamut e Ricardo, no caminho, fugissem com o bergantim, mas não quis
revelar-lhes seu pensamento até embarcar, tendo a intenção de voltar a viver no
meio dos cristãos, tornar a ser o que fôra anteriormente e casar-se com Ricardo,
pois era de se acreditar que, levando ela consigo riquezas e tornando a ser
cristã, êle haveria de tomá-la por espôsa. Nesse meio de tempo, Ricardo
conversou novamente com Leonisa e contou-lhe todos os seus planos; Leonisa,
por sua vez, falou das intenções de Halima, que com ela se havia comunicado;
ambos pediram mútuamente segrêdo e, confiando em Deus, esperavam o dia
da partida. Esse dia chegou finalmente; Hazan, com todos os seus soldados,
acompanhou-os até o mar, não os deixando até que levantassem velas, nem
tirou os olhos do bergantim até perdê-lo de vista, e parece que os suspiros
exalados pelo enamorado mouro impeliam com maior fôrça as velas que se
afastavam e levavam sua alma; porém, o amor que sentia não o deixava
sossegado há muito tempo, e, assim, pensando no que havia de fazer para não
morrer sufocado pelos seus desejos, pôs imediatamente mãos à obra que
planejara, decidida e inteligentemente; assim, em uma embarcação de dezessete
bancos, que armara em outro pôrto, pôs cinqüenta soldados, todos amigos e
conhecidos, atraindo-os com muitos presentes e promessas, e ordenou-lhes que
se pusessem a caminho e tomassem o barco do cádi com tôdas as riquezas,
passando a fio de espada todos os que nêle iam, com exceção da escrava
Leonisa, pois somente a ela queria, dentre os muitos haveres que o bergantim
levava; ordenou-lhes também que afundassem de modo que nada ficasse para
indicar o lugar onde afundaram. A cobiça pôs-lhes asas nos pés e ânimo no
coração, embora vissem que haveriam de encontrar pouca resistência no
bergantim, pois êles estavam desarmados e sem suspeitar de que tal coisa
pudesse acontecer.
Fazia já dois dias que o bergantim caminhava, mas ao cádi pareceram dois
séculos, porque logo no primeiro queria pôr seus planos em ação; seus escravos,
porém, aconselharam-no a simular antes uma doença em Leonisa, para que as
circunstâncias de sua morte se fizessem verídicas, e que convinha, portanto,
fingir alguns dias de enfermidade; êle preferia dizer que ela morrera de repente,
acabar logo com tudo, despachar sua mulher e acalmar o fogo que ia, aos
poucos, devorando suas entranhas, mas teve de aceitar o parecer dos dois.
A estas alturas Halima já havia revelado seus planos a Mahamut e a
Ricardo, e êles prometeram executá-los quando passassem os limites de
Alexandria ou quando entrassem nos castelos de Natólia; o cádi, porém,
apressou tanto que se dispuseram a agir na primeira oportunidade que se
apresentasse; ao fim de seis dias de viagem, o cádi achou que se devia pôr um
ponto final na falsa enfermidade de Leonisa; ordenou aos escravos que no outro
dia dessem cabo de Halima e a atirassem ao mar amortalhada, dizendo ser a
escrava do grão-senhor. Na manhã do outro dia em que Mahamut e Ricardo
deviam realizar suas intenções, arriscando para isso a própria vida,
descobriram uma embarcação que vinha atrás dêles com tôda a fôrça das velas e
dos remos; recearam que fôssem corsários cristãos dos quais nem uns nem
outros poderiam esperar nada de bom; os mouros os temiam porque poderiam
ser presos como escravos, os cristãos porque, embora recuperassem a liberdade,
seriam roubados; Mahamut e Ricardo, entretanto, contentavam-se com a
liberdade de ambos e com a de Leonisa; apesar disto, temiam o atrevimento ,
dos corsários, pois os que se dedicam à rapinagem, qualquer que seja sua lei ou
nação, jamais deixam de ser cruéis e insolentes. Todos prepararam-se para a
defesa, sem deixar dos remos e dar tôda a fôrça que pudessem; não demorou
muito, entretanto, para que os outros se aproximassem e em menos de duas
horas disparassem tiros de canhão; vendo isto, largaram todos os remos,
apanharam as armas e esperaram, embora o cádi lhes dissesse que o barco era
turco e que não lhes causaria mal algum; enquanto isso, mandou içar logo a
bandeira branca da paz nas velas de pôpa, para que a vissem os cegos e
cobiçosos que investiam com grande fúria contra o desprotegido bergantim.
Nisto, Mahamut voltou a cabeça e viu que do lado do poente vinha uma galeota
que êle julgou ter uns vinte bancos mais ou menos; apressou-se em dizê-lo ao
cádi e alguns cristãos que estavam no remo disseram que a embarcação era de
cristãos; tudo isto serviu para aumentar-lhes a confusão e o mêdo; ficaram
parados, sem saber o que fazer, temendo e esperando o destino que Deus lhes
queria dar. Parece-me que a confusão interior do cádi era muito grande, pois
dirigira-se para aquêles lados pensando encontrar exitosa a realização de tôdas
as suas esperanças e desejos, esperanças que logo se desvaneceram pela
presença da primeira embarcação que se aproximava e que, sem respeitar a
bandeira de paz e a própria religião, investiu contra o barco do cádi com tanta
fúria que pouco faltou para pô-lo a pique; o cádi conheceu logo os que o
atacavam, viu que eram soldados de Nicósia, adivinhou o que poderia ser e
considerou-se perdido e morto; se os soldados não se pusessem mais a roubar
que a matar, ninguém teria ficado com vida; encontravam-se êles no melhor da
luta e atentos ao roubo quando um turco, em altas vozes, disse: “As armas,
soldados, que uma embarcação de cristãos se aproxima”. E era verdade, porque
o barco avistado pelo bergantim do cádi apresentava insígnias e bandeiras
cristãs e dirigia-se com tôda a fúria contra o barco de Hazan; antes de chegar,
porém, alguém da proa perguntou, em turco, de quem era aquêle barco.
Responderam-lhe que era do Paxá Hazan, vice-rei de Chipre. “Mas como ousais
atacar e roubar o barco onde vai o cádi de Nicósia, se sois também
muçulmanos?” Responderam-lhe que só sabiam ter recebido ordens de
capturar o barco e que êles e todos os soldados nada mais fizeram do que
obedecer. O capitão dêste segundo barco, que parecia cristão, tendo sabido o
que queria, deixou de atacar o barco de Hazan e voltou-se para o do cádi; à
primeira investida matou mais de dez turcos e abordou a embarcação com
grande coragem e rapidez, mas, mal pusera os pés dentro do barco, o cádi viu
que quem o atacava não era cristão, e sim o enamorado Ali, que, tendo a mesma
intenção de Hazan, estivera esperando a sua vinda e, para não ser reconhecido,
fizera seus soldados vestirem-se como cristãos, utilizando-se assim de um
disfarce que encobrisse o seu roubo.
O cádi, que sabia das intenções dos dois enamorados e traidores, começou
a proclamar-lhes a maldade, dizendo:
- Que é isso, traidor? Como é que, sendo muçulmano, me assaltas como
cristão? E vós, traidores soldados de Hazan, que demônio vos levou a cometer
tão grande insulto? Para cumprir os apetites de quem vos envia, ousais atacar
vosso verdadeiro senhor?
A estas palavras todos suspenderam as armas, entreolharam-se e se
reconheceram, pois todos tinham sido soldados de um mesmo capitão e lutado
sob a mesma bandeira; e, ficando meio confusos com as palavras do cádi, com o
malefício que causariam a êles próprios, embainharam os sabres e arrefeceram
os ânimos; somente Ali fechou os olhos, os ouvidos, e, atirando-se ao cádi, deulhe tamanho golpe na cabeça que, se não fôsse o enorme turbante que a cobria,
sem dúvida alguma teria sido partida ao meio; apesar disso não pôde evitar a
queda entre os bancos do barco e, ao cair, disse:
- Ó cruel renegado, inimigo do divino profeta! É possível que não haja
alguém que castigue tua crueldade e tua insolência?
Como, maldito, ousaste levantar as mãos e as armas contra teu cádi e um
ministro de Maomé?
Estas palavras emprestaram maior fôrça às primeiras ouvidas pelos
soldados de Hazan, que, movidos pelo temor de que 4 soldados de Ali lhes
tirassem a prêsa que já consideravam sua, resolveram jogar com a sorte:
atiraram-se aos soldados de Ali com tanta rapidez, rancor e coragem que, em
pouco tempo, os reduziram a um número pequeno, embora fôssem de início
mais numerosos; êstes que ficaram, porém, voltando a si, vingaram os
companheiros, deixando apenas quatro soldados de Hazan com vida e êstes
ainda muito feridos. Ricardo e Mahamut de vez em quando botavam a cabeça
para fora, pelo escotilhão dos aposentos de pôpa, para verem no que dava
aquela barulheira; Ricardo, vendo que os turcos estavam quase todos mortos, os
sobreviventes muito feridos e que poderia fàcilmente dar cabo de todos êles,
chamou a Mahamut e a dois sobrinhos de Halima que ela levara consigo para
ajudarem o barco a levantar ferros; êle, os dois rapazes e o pai, tomando os
alfanjes dos mortos, saltaram as coxias, gritando: “Liberdade, liberdade)”;
ajudados pelas bóias e pelos cristãos gregos, degolaram a todos com facilidade,
sem receberem ferimento algum.
Depois, passaram à galeota de Ali, que estava sem proteção, subjugaramna e apoderaram-se de tudo o que com ela vinha. Entre os primeiros que
morreram neste segundo encontro, encontrava-se Ali, pois um dos turcos, para
vingar o cádi, matou-o a facadas; por ordem de Ricardo, apressaram-se todos a
carregar todos os objetos de valor do barco de Hazan para a galeota de Ali, que
era maior e mais ajeitada para qualquer carga ou viagem e por serem cristãos os
seus remadores, que, contentes por alcançarem a liberdade e por receberem
inúmeras coisas que Ricardo distribuíra a todos, ofereceram-se para levá-lo a
Trápana ou ao fim do mundo, se êle quisesse; Mahamut e Ricardo,
satisfeitíssimos com o resultado, dirigiram-se a Halima e disseram-lhe que, se
ela quisesse voltar a Chipre, colocariam bóias em sua embarcação e lhe dariam a
metade das riquezas que trouxeram, mas ela, que, apesar de tanta desgraça, não
esquecera o carinho e o amor que dedicava a Ricardo, disse que desejava ir com
êles para o meio dos cristãos, fato que alegrou muitíssimo a seus pais.
O cádi voltou a si do desmaio e os outros cuidaram dêle como puderam,
dizendo-lhe depois que escolhesse entre deixar-se levar para a terra e voltar a
Nicósia em seu próprio barco. Respondeu êle que, uma vez que a fortuna o
havia traído e levado a tal ponto, agradecia a liberdade que lhe davam e
preferia ir a Constantinopla para queixar-se ao grão-senhor do agravo que
sofrera por parte de Hazan e Ali; porém, quando soube que Halima o deixava
para tornar a ser cristã, estêve a ponto de perder o juízo.
Enfim, equiparam seu barco e providenciaram tôdas as coisas necessárias
para sua viagem e deram-lhe mesmo alguns cequins que, aliás, já tinham sido
seus, e, decidido a voltar para Nicósia, despediu-se de todos, mas, antes que se
levantassem as velas, pediu que Leonisa o abraçasse, pois seria um grande
favor, suficiente para fazê-lo esquecer tôda a sua desventura. Pediram todos a
Leonisa que fizesse aquêle favor a quem tanto a queria, pois não ia nisso
atentado algum ao seu decôro e à sua honestidade; Leonisa fêz o que lhe
pediram e o cádi pediu-lhe ainda que lhe pusesse as mãos sôbre a cabeça para
que êle levasse a esperança de curar sua ferida; Leonisa fêz tudo o que êle
pediu.
Um vento fresco impulsionou o barco de Hazan e pareceu convidar as
velas para a partida. Os tripulantes, percebendo isso, resolveram partir; em
poucas horas perderam de vista o barco do cádi, que, com lágrimas nos olhos,
via os ventos levarem seus bens, sua alegria, sua mulher e sua alma.
Os pensamentos de Ricardo e de Mahamut eram outros; não queriam
tocar em terra alguma; por isso, passaram por Alexandria, fora da barra, sem
reduzir a velocidade, e, sem precisarem utilizar os remos, chegaram à fértil ilha
de Corfu, onde se abasteceram de água, e a seguir, sem parar, passaram pelos
infames penhascos acroceráunios e no segundo dia, de longe, avistaram
Paquina, promontório da fertilíssima Tinácria; passaram por ela e pela célebre
ilha de Malta voando, tal era a velocidade do ditoso lenho; por fim, passada a
ilha, avistaram Lampadosa, depois de quatro dias, e, a seguir, a ilha onde se
perderam; Leonisa estremeceu ao vê-la, pois veio-lhe à memória o perigo por
que passara; no outro dia, tiveram diante dos olhos a desejada e amada pátria; a
alegria renasceu em seus corações, alvoroçaram-se os espíritos com a boa nova,
porque uma das maiores alegrias que se pode ter na vida é chegar, depois de
longo cativeiro, são e salvo, à pátria; a ela iguala-se apenas a alegria da vitória
alcançada sôbre os inimigos. Encontrou-se na galeota uma caixa bem cheia de
bandeirolas e flâmulas de sêda de diversas cores; Ricardo mandou enfeitar com
elas a galeota; pouco depois de amanhecer acharam-se a menos de uma légua
da cidade, navegando ràpidamente e dando gritos alegres, aproximando-se do
pôrto, onde, num instante, apareceu um grande número de gente do povo, que,
tendo visto chegar à terra aquela embarcação tão enfeitada, fêz questão de
deixar a cidade para dirigir-se à beira-mar.
Enquanto isso, Ricardo pediu a Leonisa que se vestisse e se enfeitasse da
mesma forma que quando entrou na tenda dos paxás, pois queria fazer uma
brincadeira com seus pais. Ela atendeu-o e, acrescentando graça à graça, pérolas
às pérolas e beleza à beleza, às quais se aliou ainda a alegria, vestiu-se
novamente de maneira a causar admiração e espanto; Ricardo vestiu-se à moda
dos turcos, Mahamut e todos os cristãos do remo fizeram o mesmo, pois as
roupas dos turcos mortos foram suficientes para todos; chegaram ao pôrto lá
pelas 8 da manhã, que era clara e serena e que parecia estar atenta àquela alegre
chegada. Antes de chegar ao pôrto, Ricardo fêz disparar as peças de artilharia
da galeota, que consistiam em um canhão de coxia e dois falconetes; a cidade
respondeu-lhe com igual número de disparos. O pessoal todo estava confuso,
esperando a chegada do majestoso barco; porém quando viram de perto que era
turco, por causa dos turbantes, que se pareciam com os turbantes dos mouros,
temerosos e suspeitando de alguma cilada, tomaram as armas e todos os que
eram soldados na cidade dirigiram-se ao pôrto e muita gente a cavalo estendeuse por tôda a costa; os que se aproximavam pouco a pouco do pôrto alegraramse com isto; tendo chegado a um ponto mais raso, lançaram a prancha à terra e
largaram os remos ao mesmo tempo; todos, um a um, como em uma procissão,
saltaram à terra, que, com lágrimas de alegria, beijaram inúmeras vêzes;
fazendo assim, deram a entender aos que se achavam na terra serem êles
cristãos; atrás dêles saíram o pai, a mãe de Halima e seus dois sobrinhos, todos,
como já se disse, vestidos com roupas turcas; por último, com o rosto coberto
pelo tafetá carmesim e ladeada por Ricardo e Mahamut, saiu a formosa Leonisa,
que atraiu para si os olhares de tôda a multidão. Êstes fizeram o mesmo que os
outros: chegando à terra, prostraram-se e beijaram-na.
Nisto, o governador da cidade, percebendo que êles eram os chefes do
grupo que desembarcara, para êles se dirigiu; chegando-se mais perto e
reconhecendo imediatamente Ricardo, correu para abraçá-lo, com os braços
abertos e com mostras de enorme alegria. Com êle, chegaram também Cornélio
e seu pai, os pais de Leonisa e todos os seus parentes, os pais de Ricardo, todos
êles pessoas importantes da cidade; Ricardo abraçou o governador e agradeceu
a todos as boas-vindas que lhe davam, apertou a mão de Cornélio (que, assim
que o reconheceu e se viu abordado por êle, perdeu a côr e quase começou a
tremer de mêdo) e, segurando também a mão de Leonisa, disse:
- Peço-vos por favor, senhores, que, antes de entrarmos na cidade e no
templo para agradecer ao Senhor a graça que nos concedeu, escuteis as palavras
que vos quero dizer.
O governador disse-lhe para falar o que quisesse, pois todos o escutariam
com prazer e em silêncio. As pessoas mais importantes rodearam-no logo e êle,
levantando um pouco a voz, assim falou:
- Deveis estar lembrados muito bem, senhores, da desgraça que há alguns
meses atrás me aconteceu no jardim das salinas com a perda de Leonisa; deveis
também ter na memória o esfôrço que fiz para conseguir sua liberdade, pois,
esquecendo-me de mim próprio, ofereci todos os meus bens para seu resgate
(embora isto, que lhes pareceu liberalidade, não possa nem deva redundar em
elogio, pois, para resgatá-la, daria minha própria alma); para contar o que
depois disto nos aconteceu é necessário mais tempo, outra ocasião e
circunstância e outra língua que não esteja tão perturbada quanto a minha; por
agora basta dizer-vos que, depois de vários e estranhos acontecimentos e depois
de perdidas mil esperanças de encontrar alívio para nossas desditas, o piedoso
céu, mesmo sem nenhum merecimento de nossa parte, devolveunos à querida
pátria, cheios de alegria e cumulados de riquezas; a imensa alegria que sinto
não nasce, porém, das riquezas nem da liberdade alcançada, mas sim da alegria
que proporcionei a esta que é minha doce inimiga, em paz e em guerra, alegria
por ver-se livre e por conhecer agora sua própria alma; alegro-me, ainda, com a
felicidade de todos os que foram meus companheiros de infortúnio e, embora as
desventuras e os acontecimentos tristes costumem mudar os fatos e aniquilar os
espíritos mais valorosos, o mesmo não se deu com o verdugo de minhas
esperanças, porque, com valor e coragem fora do comum, sofreu suas desditas e
as impertinências de minhas ardentes quanto honestas intenções, por isto
verifica-se que muda o céu, mas não muda a maneira de proceder das criaturas.
Para resumir, quero dizer que ofereci, pelo seu resgate, todos os meus bens e
pus a alma em minhas intenções; planejei sua liberdade e, esquecendo-me de
mim, arrisquei por ela a própria vida, e tôdas estas obrigações, que em outro
homem podiam ser momentâneas, em mim não o são e não desejo que o sejam;
quero apenas que me agradeças êste momento que agora te proporciono.
Dizendo isto, levantou a mão comedidamente, tirou o véu do rosto de
Leonisa e foi como se tirasse a nuvem que às vêzes cobre a formosa claridade
do sol.
Entrego-te, Cornélio, a jóia que deves estimar, acima de tôdas as coisas no
mundo; e vês, formosa Leonisa, ofereço-te àquele que sempre estêve em tua
memória; isto sim, quero eu que seja considerado liberalidade e não o fato de
ter eu dado meus bens, minha vida, que, comparado a êste, nada são; recebe-a,
meu felizardo, recebe-a, se és capaz de conhecer seu imenso valor, considera-te
o homem mais venturoso da terra; dar-te-ei com ela também a parte que me
toca de tudo quanto o céu nos deu e creio que serão mais de 30.000 escudos;
podes desfrutar de tudo à vontade, como quiseres, com liberdade, sossêgo e
descanso; pede aos céus que tudo seja por longos e felizes anos; não me importo
de ficar pobre, pois, faltando-me Leonisa, a vida já não me interessará mais.
Depois calou-se, como se a língua estivesse prêsa, mas, logo a seguir, antes
que alguém dissesse uma palavra, exclamou:
- Valha-me Deus! Como os trabalhos árduos perturbam a razão! Eu,
senhores, com a intenção de fazer o bem, não me dei conta de minhas palavras,
porque não é possível que alguém possa mostrar-se liberal com o que não lhe
pertence. Que direitos tenho eu sôbre Leonisa para oferecê-la a outro? Como
posso oferecer o que não me pertence? Leonisa é tão senhora de si que se os
seus pais, que Deus os conserve, chegassem a faltar, ela saberia cuidar-se muito
bem; e se ela, em sua sensatez, pensar que me deve alguma coisa, desde já
quero dizer que tais obrigações não me importam e as dou por esquecidas;
assim, dou também o dito por não dito e não dou nada a Cornélio, pois nada
tenho para dar; confirmo, entretanto, a doação de todos os meus bens a Leonisa,
querendo apenas, como recompensa, que acredite serem verdadeiros meus
sentimentos e que êles jamais deixaram de fazer jus a sua incomparável
honestidade, seu grande valor e sua infinita formosura.
Dizendo isto, Ricardo calou-se e então Leonisa lhe respondeu:
- Se imaginas que concedi algum favor a Cornélio, Ricardo, no tempo em
que andavas enamorado e tinhas ciúmes de mim, foi obedecendo à vontade e
ordem de meus pais, que, desejosos de que êle se tornasse meu espôso,
permitiam que eu lhe fizesse tais favores; se ficas satisfeito com isto, ficarás
também satisfeito sabendo de minha honestidade e recato, que, aliás, já tiveste
ocasião de observar nas muitas experiências pelas quais passei; digo isto,
Ricardo, para fazer-te saber que nunca obedeci a ninguém, a não ser aos meus
pais, aos quais peço agora humildemente, como é natural, que me dêem
permissão e liberdade para dispor da vida que tua valentia e liberdade me
concederam.
Seus pais responderam afirmativamente, dizendo que confiavam em sua
sensatez e porque sabiam que ela usaria de sua discrição de modo a resultar
sempre em favor de sua honra e benefício.
- Sendo assim - prosseguiu Leonisa -, quero que não levem a mal o meu
desembaraço nem pensem que eu queira ser mal, agradecida: Minha vontade,
meu valente Ricardo, até aqui recatada, irresoluta e indecisa, declara-se, agora,
em teu favor, para que os homens saibam também que nem tôdas as mulheres
são ingratas; sou tua, Ricardo, e tua serei até a morte, se é que outra decisão não
te leva a negar a mão de espôso que te peço.
Estas palavras deixaram Ricardo atordoado e o que soube fazer foi apenas
cair de joelhos ante Leonisa e beijar-lhe as mãos, que apertou inúmeras vêzes,
banhando-as com ternas e amorosas lágrimas; Cornélio também as derramou,
mas de pesar; de alegria foram as lágrimas dos pais de Leonisa, de admiração e
contentamento as de todos os circunstantes; achavam-se presentes o bispo ou
arcebispo da cidade, que, com sua bênção, os levou ao templo e, sem mais
esperar, casou-os no mesmo instante. A alegria espalhou-se por tôda a cidade e
dela foram provas a intensa iluminação daquela noite, os inúmeros jogos e
comemorações, que nos dias seguintes foram promovidos pelos parentes de
Ricardo e Leonisa. Mahamut e Halima, que, vendo a impossibilidade de tornarse espôsa de Ricardo, se contentou em casar com Mahamut, reconciliaram-se
com a Igreja. Do quinhão que recebera, Ricardo, em sua liberdade, deu aos pais
e aos sobrinhos de Halima uma quantia suficiente para viverem. Todos, enfim,
ficaram contentes, livres e satisfeitos. A fama de Ricardo atravessou os limites
da Sicília, estendeu-se por tôda a Itália e por muitos outros lugares, com o nome
de Amante Liberal, nome que permanece até hoje na bôca dos inúmeros filhos
que teve de Leonisa, que foi exemplo raro de discrição, honestidade, recato e
formosura.
A Força do Sangue
Numa dessas noites calorosas de verão, em Toledo, voltavam do rio, onde
tinham ido divertir-se, um velho fidalgo, sua mulher, um filho pequeno, uma
filha de dezesseis anos e uma criada. A noite estava clara; eram 11 horas; o
caminho estava deserto e êles caminhavam devagar a fim de não pagarem com
cansaço o prazer ocasionado pelos folguedos que se fazem no rio ou em suas
margens, em Toledo. Vinha o bom fidalgo e sua honrada família com a
segurança que oferecem a justiça e a boa gente daquela cidade, longe de pensar
que algum desastre pudesse acontecer-lhes, mas, como a maior parte das
desgraças que acontecem são inesperadas, aconteceu-lhes, sem que esperassem,
sofrer uma dessas desgraças que lhes levou a alegria e os fêz chorar por muitos
anos. Havia naquela cidade um cavalheiro de uns 22 anos, a quem a riqueza, o
sangue ilustre, a impudência, a liberdade excessiva e as más companhias
levavam a certas coisas e atrevimento que não condiziam com sua posição e lhe
davam o renome de atrevido.
Este cavalheiro, pois - que agora, por respeito, escondendo seu nome,
chamaremos de Rodolfo -, com quatro amigos, todos moços, todos alegres e
todos insolentes, desciam pela mesma encosta que o fidalgo subia.
Encontraram-se os dois grupos, o das ovelhas e o dos lôbos e, com indecorosa
desenvoltura, Rodolfo e seus camaradas, com os rostos cobertos, olharam os
rostos da mãe, da filha e da criada. O velho inquietou-se e reprovou-lhes o
atrevimento; os rapazes responderam-lhe com caretas e zombarias, porém, sem
atreverem-se a mais, foram embora. Entretanto, a grande formosura do rosto de
Leocádia, pois dizem que assim se chamava a filha do fidalgo, visto por
Rodolfo, começou de tal maneira a perturbar-lhe a mente que sua vontade o fêz
parar um momento e lhe despertou o desejo de possuí-la, apesar de tudo que
lhe pudesse acontecer; num instante externou seu pensamento aos camaradas,
que decidiram voltar para roubá-la e fazer a vontade de Rodolfo, pois os ricos
que dão para ser libertinos acham sempre quem aprove seus desaforos e
considere bons os seus maus gostos; assim, nascer a má intenção, comunicá-la,
aprová-la e decidirem-se a roubar Leocádia foi questão de segundos.
Puseram lenços no rosto e, desembainhadas as espadas, voltaram; com
poucos passos alcançaram aquêles que não haviam acabado de dar graças a
Deus por tê-los livrado das mãos daqueles atrevidos. Rodolfo lançou-se contra
Leocádia e, levantando-a em seus braços, fugiu com a môça, que não teve fôrças
para defender-se; o susto tirou-lhe a voz e também a luz dos olhos, pois,
desmaiada e sem sentidos, não viu quem a levava nem para onde a levavam.
Seu pai falou em altas vozes, sua mãe gritou, seu irmãozinho chorou, a criada
arranhou-se, mas nem as vozes foram ouvidas, nem os gritos escutados, nem o
pranto moveu a compaixão, nem os arranhões trouxeram proveito algum,
porque a solidão do lugar, o calado silêncio da noite e as cruéis entranhas dos
malfeitores tudo encobriam.
Finalmente, uns foram-se alegres e os outros ficaram tristes.
Rodolfo chegou à sua casa sem impedimento algum e os pais de Leocádia
chegaram à dêles, agravados, aflitos e desesperados; cegos, sem os olhos da
filha, que eram a luz de seus olhos; sozinhos, porque Leocádia era doce e
agradável companhia; confusos, sem saber se seria conveniente informar a
Justiça de sua desgraça, temerosos de serem êles o primeiro instrumento a
publicar sua desonra. Como fidalgos pobres, viam-se necessitados de favor; não
sabiam de quem fazer queixa, a não ser de sua pouca ventura. Rodolfo,
enquanto isso, sagaz e astuto, tinha já, em sua casa e em seu aposento, a
Leocádia, cujos olhos, embora percebendo que ela desmaiara quando a levava,
cobrira com um lenço para que não visse as ruas pelas quais passava, nem a
casa, nem o aposento onde se encontrava; aí, sem ser visto por ninguém, porque
possuía um quarto separado em casa de seu pai, que ainda vivia, e tinha as
chaves da mansão e as do quarto - descuido comum aos pais que querem ter os
filhos em casa -, antes que Leocádia voltasse do desmaio, Rodolfo havia
realizado seu desejo, pois os ímpetos incastos da mocidade poucas ou nenhuma
vez pensam em conveniências e requisitos que mais os estimulem e enobreçam.
Cego à luz do entendimento, às escuras, roubou a melhor prenda de Leocádia e,
como os pecados da sensualidade, em sua maior parte, não vão além de sua
própria consecução, quisera Rodolfo que Leocádia logo desaparecesse dali e
teve a idéia de colocá-la na rua desmaiada como estava; pondo-se a executar o
que imaginara, percebeu que ela voltava a si, dizendo:
- Onde estou, infeliz de mim? Que escuridão é essa, que trevas me
rodeiam? Estou no limbo de minha inocência ou no inferno de minhas culpas?
Jesus! Quem me toca? Eu, em um leito, desonrada? Mãe, escutas-me? Ouvesme, querido pai? Pobre de mim! Bem sei que meus pais não me escutam e que
meus inimigos me tocam; seria bem feliz se esta escuridão durasse para sempre,
sem que meus olhos voltassem a ver a luz do mundo e que êste lugar, onde
agora estou, qualquer que ele seja, servisse de sepultura para minha honra, pois
é melhor a desonra que se ignora que a honra exposta à opinião dos outros.
Agora me lembro - antes nunca me lembrasse! - de que há pouco vinha em
companhia de meus pais; lembro-me agora de que me raptaram; já imagino e
vejo não ser conveniente que outras pessoas me vejam. Ó tu, quem quer sejas,
que estás aqui comigo - assim dizendo, tomou as mãos de Rodolfo -, se é que
tua alma admite qualquer espécie de súplica, suplico-te, já que dispuseste de
minha reputação, dispõe também de minha vida; mata-me logo, pois não
convém viver àquela que não tem mais honra; olha que o rigor da crueldade
que usaste comigo ao ofender-me se suavizará com a piedade que usares ao
matar-me, e assim, ao mesmo tempo, virás a ser cruel e piedoso!
As palavras de Leocádia deixaram Rodolfo confuso e, como rapaz pouco
experimentado, não sabia o que dizer nem o que fazer; seu silêncio surpreendia
mais a Leocádia, que, com as mãos, procurava saber se quem estava com ela
seria fantasma ou sombra, mas, como sentisse tocar um corpo e se lembrasse da
fôrça que fizera quando fôra tirada aos pais, dava-se conta de sua desgraça; com
este pensamento, tornou a apresentar os argumentos que os inúmeros soluços e
suspiros haviam interrompido, dizendo:
- Atrevido mancebo, tuas ações fazem-me julgar-te de pouca idade; eu te
perdôo a ofensa que me fizeste, contanto que me prometas e jures que assim
como a cobriste com esta escuridão, hás de cobri-la com perpétuo silêncio, sem
contá-la a ninguém; pequena recompensa te peço para tão grave ofensa, mas,
para mim, será a maior que saberei pedir-te e tu quererás conceder-me; lembrate de que nunca vi teu rosto nem quero vê-lo, porque, embora me lembre do
desagravo, não quero lembrar-me de meu ofensor, nem guardar na memória a
imagem do causador de minha infelicidade; minhas queixas passarão de mim
para o céu, sem querer que as ouça o mundo, que não julga as coisas pelos fatos
e sim como melhor lhe parece; não sei como te digo estas verdades, que se
costuma adquirir com a experiência de muitos casos e no decorrer de muitos
anos, e os meus não chegam a dezessete; por isso, chego à conclusão de que a
dor ata e desata, da mesma forma, a língua do aflito, algumas vêzes exagerando
seu mal para que nêle creiam, outras vêzes não o dizendo para que se o
remedeiem; de qualquer maneira, quer eu me cale quer eu fale, creio que hei de
levar-te a me acreditares ou a me socorreres, pois não me crer será ignorância, e
socorrer-me, impossível de me trazer algum alívio; não quero desesperar-me,
porque te custará pouco dar-me tal alívio; escuta, não esperes nem acredites
que o correr do tempo amenize a justa raiva que tenho de ti, nem queiras
aumentar os agravos; quanto menos me possuíres, e sei que já me possuíste,
menos brotarão teus maus desejos; faze de conta que me ofendeste por acaso,
sem dar motivo a que te repreendam; eu farei como se não tivesse vindo ao
mundo ou que, se nasci, foi para ser infeliz; põe-me logo na rua, pelo menos
junto à igreja matriz, porque dali saberei voltar para casa; mas também haverás
de jurar não me seguir, nem saber onde moro, nem perguntar-me o nome de
meus pais, nem o meu, nem o de meus parentes, para que, sendo tão ricos
quanto nobres, não sejam infelizes por minha causa; responde-me e, se temes
que te possa conhecer pela voz, faço-te saber que, além de meu pai e meu
confessor, nunca falei com homem algum em minha vida e a poucos ouvi falar
de maneira a poder distingui-los pelo som de sua voz.
A resposta que Rodolfo deu às discretas palavras da infeliz Leocádia foi
abraçá-la, dando-lhe mostras de querer voltar a confirmar, nêle, o gôsto e, nela,
a desonra. Leocádia, vendo isto, com mais fôrças do que sua tenra idade parecia
ter, defendeu-se com os pés, com as mãos, com os dentes e com a língua,
dizendo-lhe:
- Olha bem, traidor e desalmado homem, quem quer que sejas, que os
despojos que de mim levaste são os que pudeste roubar de um tronco ou uma
coluna sem sentidos; tua vitória e triunfo hão de redundar em infâmia e
menosprêzo; mas o que agora pretendes só haverás de alcançar com minha
morte; desmaiada, pisaste-me e aniquilaste-me; agora, porém, que tenho fôrças,
poderás antes matar-me que me venceres, pois se agora, desperta, acedesse,
sem resistência, a tão abominável desejo, poderias imaginar que meu desmaio
foi fingido quando te atreveste a destruir-me.
Enfim, Leocádia resistiu tão galharda e tenazmente que as fôrças e os
desejos de Rodolfo se enfraqueceram; como a insolência que usara para com
Leocádia não nasceu senão de um ímpeto lascivo, do qual nunca nasce o
verdadeiro amor, que permanece, em lugar do ímpeto, êste, quando passa,
deixa, se não o arrependimento, pelo menos uma frouxa vontade de se repetir.
Arrefecido e cansado, Rodolfo, sem dizer uma palavra, deixou Leocádia em seu
leito, em sua casa, e, fechando o aposento, foi procurar seus camaradas para
aconselhar-se com êles e ver o que devia fazer. Leocádia percebeu que ficava só
e encerrada; levantando-se do leito, andou por todo o aposento, tateando as
paredes com as mãos para ver se havia uma porta por onde sair ou uma janela
por onde atirar-se; porta encontrou, mas bem fechada, e deu com uma janela
que pôde abrir e pela qual entrou a claridade da Lua, tão intensa que Leocádia
pôde distinguir as côres de uns tecidos adamascados que adornavam o
aposento; viu que a cama era dourada e tão ricamente composta que mais
parecia um leito de príncipe que de algum simples cavalheiro; contou as
cadeiras e as escrivaninhas; observou a parte onde estava a porta e, embora
visse, pendentes das paredes, alguns quadros, não pôde ver as pinturas que
continham; a janela era grande, guarnecida e protegida por uma grossa grade; a
vista dava para um jardim que também terminava em altas paredes; as
dificuldades que se opuseram à intenção que tinha de atirar-se à rua, tudo o que
viu e observou, a qualidade e ricos adornos daquela mansão, deram-lhe a
entender que o dono dela havia de ser homem importante, rico e muito rico; em
uma escrivaninha que estava junto à janela viu um pequeno crucifixo, todo de
prata, que tomou e colocou na manga da roupa, não por devoção, nem por
furto, e sim levada por um discreto desígnio seu; feito isso, fechou a janela
como estava antes e voltou para o leito, esperando para ver que fim teria o mau
início de tais acontecimentos.
Não teria passado, assim pensou, meia hora quando percebeu que a porta
do aposento se abriu, e que uma pessoa chegou-se a ela e, sem dizer uma
palavra, vendou-lhe os olhos com um lenço e, tomando-lhe o braço, levou-a
para fora da mansão; percebeu também que a pessoa voltava para fechar a
porta. Esta pessoa era Rodolfo, que, embora tivesse ido procurar seus
camaradas, não quis encontrá-los, por parecer-lhe que não lhe convinha
confessar o que se havia passado com aquela jovem; resolveu dizer-lhes que,
arrependido da má ação e movido pelas suas lágrimas, a havia deixado na
metade do caminho. Assim pensando, voltou bem depressa para levar Leocádia
junto à igreja matriz, como a jovem lhe havia pedido, antes que amanhecesse e
o dia o impedisse de levá-la, forçando-o a mantê-la em seu aposento até a noite
seguinte; neste espaço de tempo não queria voltar a usar de suas fôrças nem dar
oportunidade para que fôsse reconhecido. Levou-a, pois, até a praça que
chamam de Ayuntamiento e ali, mudando a voz, disse-lhe, meio em português,
meio em castelhano, que podia ir tranqüilamente para casa porque ninguém a
seguiria e, antes que ela tivesse tempo de tirar o lenço, êle já se havia colocado
em lugar onde não pudesse ser visto. Leocádia ficou só, tirou a venda,
reconheceu o lugar onde a deixaram. Olhou para todos os lados, não viu
ninguém, mas, suspeitando que alguém, de longe, a seguisse, detinha-se a cada
passo, caminhando em direção de sua casa, que ficava não muito distante dali;
para disfarçar, se por acaso a seguissem, entrou em uma casa que encontrou
aberta e dali a pouco foi para casa, onde encontrou seus pais ainda atônitos e
vestidos, sem pensarem em descansar. Quando a viram, correram para ela de
braços abertos e a receberam com lágrimas nos olhos.
Leocádia, cheia de sobressalto e alvorôço, fêz os pais retirarem-se com ela
de parte e, assim que o fizeram, contou-lhes, em breves palavras, os desastrosos
acontecimentos, com todos os pormenores, da pouca notícia que trazia do
salteador e usurpador de sua honra; disse-lhes o que havia visto no teatro, onde
se representou a tragédia de sua desventura: a janela, o jardim, a grade, as
escrivaninhas, a cama, os tecidos e, por último, mostrou-lhes o crucifixo, que
trouxera; perante a imagem renovaram-se as lágrimas, fizeram-se súplicas,
pediram-se vinganças e desejaram-se milagrosos castigos; disse também que,
embora não desejasse vir a conhecer seu ofensor, se os pais achavam
conveniente conhecê-lo, podiam, por meio daquela imagem, fazer com que
muitos sacristãos dissessem nos púlpitos de tôdas as paróquias da cidade, que
quem houvesse perdido tal imagem a encontraria em poder do religioso que
êles escolhessem; e assim, conhecendo-se o dono da imagem, haveriam de
conhecer a casa e também a pessoa de seu inimigo. Ao que o pai lhe respondeu:
- Terias dito muito bem, filha, se a malícia das pessoas não se opusesse a
tuas sábias palavras, pois é claro que hoje, neste dia, darão pela falta desta
imagem no aposento ao qual te referiste; o dono dela há de estar certo de que a
pessoa que estêve com êle a levou e, tomando conhecimento de que está em
poder de algum religioso, há de servir antes para identificar quem a deu do que
para indicar o dono que a perdeu, pois pode fazer vir atrás dela outra pessoa a
quem o dono tenha feito a descrição e, sendo assim, ficaremos antes confusos
que informados, embora possamos usar do mesmo artifício que imaginamos,
dando-a ao religioso por intermédio de uma terceira pessoa; o que hás de fazer,
filha, é guardá-la e recomendar-te a ela, pois ela foi testemunha de tua desgraça
e permitirá que haja um juiz que olhe em teu favor; e lembra-te, filha, que mais
ofende um grama de desonra pública do que uma arrôba de infâmia secreta;
podes, pois, biìblicamente, viver honrada com Deus; não sofras por te saberes
desonrada, em segrêdo; a verdadeira desonra está no pecado e a verdadeira
honra na virtude; com a palavra, com o desejo e com a ação ofende-se a Deus e
como tu, ou em palavra, ou em pensamento, ou em ações, não o ofendeste,
considera-te honrada, que eu assim te considerarei e nunca hei de te olhar senão
como teu verdadeiro pai.
Com estas previdentes palavras, o pai de Leocádia consolou-a e sua mãe,
abraçando-a de nôvo, procurou também consolá-la; a môça gemeu e chorou
novamente e decidiu cobrir a cabeça, como se diz, e viver recolhidamente sob a
proteção dos pais, vestida tão recatada quanto pobremente.
Enquanto isso, Rodolfo, tendo voltado à casa, deu pela falta da imagem do
crucifixo e imaginou quem poderia tê-la levado; não se importou, porém, e,
como fôsse rico, não fêz caso do fato, nem seus pais a pediram quando, dali a
três dias, partiu êle para a Itália e entregou aos cuidados de uma camareira de
sua mãe tudo o que deixava no aposento. Fazia já muitos dias que Rodolfo
havia decidido ir para a Itália e seu pai, que ali estivera, animava-o, dizendo-lhe
que não eram cavalheiros os que o eram somente em sua pátria, que era
necessário sê-lo também em terras estranhas. Por essas e por outras razões,
dispôs-se a vontade de Rodolfo a cumprir a vontade do pai, que lhe creditou
muito dinheiro para Barcelona, Gênova, Roma, Nápoles, e êle, com dois de seus
camaradas, partiu logo, pensando gulosamente no que ouvira de alguns
soldados sôbre a abundância das hospedarias da Itália e França e da liberdade
que gozavam os espanhóis nos alojamentos. Soava-lhe bem aquêle Eco li buoni
polastri, picioni, pdesuto et salcicie (A expressão é dialetal e significa: Eis os bons
franguinhos, pombos, presunto e salsichas.) e outros nomes assim, dos quais os
soldados se lembram quando vêm daqueles lados para cá e passam pelo apêrto
e falta de comodidade das estalagens e hospedarias da Espanha. Enfim, êle se
foi, pouco se lembrando do que se passara com Leocádia, como se nada tivesse
acontecido.
Ela, enquanto isso, passava a vida em casa dos pais, no maior
recolhimento possível, sem se deixar ver por pessoa alguma, temerosa de que
houvessem de ler sua desgraça no rosto. Mas, em poucos meses, viu-se
obrigada a fazer o que até ali fazia de bom grado; viu que lhe convinha viver
retirada e escondida, porque se sentiu grávida, motivo pelo qual as lágrimas,
esquecidas por algum tempo, voltaram a seus olhos, e os suspiros e lamentos
começaram a ferir novamente os ventos, sem que as palavras de sua mãe a
deixassem de consolar.
O tempo voou, chegou a hora do parto e tudo se fêz tão secretamente que
nem mesmo se ousou confiar em uma parteira; estas funções, exerceu-as a mãe,
e a môça deu à luz um menino, dos mais formosos que se possa imaginar.
Em meio ao mesmo recato e segrêdo em que havia nascido, levaram-no a
uma aldeia, onde passou quatro anos, ao fim dos quais o avô o levou como
sobrinho à casa, onde se criava, senão muito rica, pelo menos virtuosamente.
Era o menino - ao qual deram o nome de Luís, por assim chamar-se o avô - de
rosto formoso, de boa índole, de inteligência aguda e em tôdas as ações, que em
sua pouca idade podia fazer, dava mostras de ter sido gerado por um pai de
origem nobre; sua graça, beleza e discrição tornaram seus avós de tal maneira
enamorados que êles chegaram a considerar felicidade a infelicidade da filha,
por ter-lhes dado tal neto. Quando ia pela rua, choviam sôbre êle mil bênçãos;
uns bendiziam sua formosura; outros, a mãe de quem havia nascido; êstes, o pai
que o gerou; aquêles, a quem tão bem o havia criado. Com a admiração dos que
o conheciam e dos que não o conheciam, chegou o menino à idade de sete anos
e já sabia ler latim e em língua romance e escrever com muito boa letra, porque
a intenção de seus avós era fazê-lo virtuoso e sábio, já que não podiam fazê-lo
rico, como se a sabedoria e a virtude não fôssem as riquezas sôbre as quais nem
o ladrão nem aquela a quem chamam fortuna podem exercer sua jurisdição.
Aconteceu, pois, que, um dia, em que o menino foi, com um recado de sua
avó, à casa de uma parenta, passou por uma rua onde havia uma corrida de
cavaleiros; pôs-se a olhar e, para arranjar um lugar melhor, passou de um lado
para outro, mas, não tendo tempo de fugir, foi atropelado por um cavalo, cujo
dono não pôde deter na fúria de sua carreira; passou por cima do menino e
deixou-o como se estivesse morto, estendido no chão e perdendo muito sangue
pela cabeça. Mal isto acontecera e um cavalheiro ancião, que estava observando
a corrida, com rapidez jamais vista, desceu de seu cavalo e foi para onde estava
o menino; tirando-o dos braços de uma pessoa que já o levantara, sem prestar
atenção às suas cãs e à sua autoridade, que era grande, dirigiu-se a passos
largos para sua casa, ordenando aos criados que o deixassem e fôssem buscar
um cirurgião para tratar do menino. Muitos cavaleiros seguiram-no, lastimando
a desgraça do tão formoso menino, pois logo se soube que o atropelado era
Luisinho, sobrinho de tal cavalheiro, e aí diziam o nome de seu avô. A notícia
correu de bôca em bôca até chegar aos ouvidos de seus avós e de sua mãe, que,
certificando-se bem do caso, saíram como que desatinados e loucos em busca de
seu querido menino; por ser muito conhecido e importante o cavalheiro que o
havia levado, muitas das pessoas que encontraram indicaram-lhes a casa, à qual
chegaram quando o menino estava já nas mãos de um cirurgião. O cavalheiro e
sua mulher, donos da casa, pediram aos que julgaram ser seus pais que não
chorassem nem levantassem a voz para se queixarem, porque não seria bom
para o menino. O cirurgião, que era famoso, tendo-o medicado com grande
firmeza e mestria, disse que a ferida não era mortal, como receara de início. Na
metade do curativo, Luís, que até então estivera sem sentidos, voltou a si e
alegrou-se por ver os tios, que lhe perguntaram, chorando, como se sentia.
Respondeu-lhes que estava bem, mas que lhe doía muito o corpo e a
cabeça. O médico ordenou que não falassem com êle e que o deixassem
repousar; assim se fêz, e o avô começou a agradecer ao dono da casa a grande
caridade de que usara para com seu sobrinho. O cavalheiro respondeu que
nada havia para agradecer, pois, quando viu o menino caído e atropelado,
pareceu-lhe ver o rosto de um filho seu a quem amava ternamente, que isto o
fêz tomar a criança nos braços e trazê-la para sua casa, onde ficaria até que se
curasse, e que teria ali tôdas as regalias possíveis e necessárias. Sua mulher, que
era nobre senhora, disse a mesma coisa e fêz ainda melhores promessas. Os
avós ficaram admirados com tanta bondade, mas a mãe ficou ainda mais
admirada, porque, com as notícias dadas pelo cirurgião, sossegara um pouco
seu espírito aflito. Olhou atentamente o aposento onde o filho estava e, por
muitos motivos, viu claramente que era aquêle o lugar onde perdera a honra e
encontrara a desventura e, embora não estivesse enfeitado com os adamascados
que então possuíra, conheceu a disposição dos objetos, viu a janela de grades,
que dava para o jardim, e, estando ela fechada por causa do menino, perguntou
se aquela janela dava para algum jardim. Responderam-lhe afirmativamente;
porém o que mais reconheceu foi aquêle mesmo leito que considerava sua
sepultura e o reconheceu mais que a própria escrivaninha sôbre a qual estava a
imagem que havia tirado.
Finalmente, os degraus, que ela havia contado quando a tiraram do
aposento com os olhos vendados, trouxeram à luz a confirmação de tôdas as
suas suspeitas, isto é, os degraus que havia dali até a rua, que ela contara com
discreta atenção; quando voltou à casa achou justo o número dêles; conferindo
uns sinais com os outros certificou-se de que suas suspeitas eram bem fundadas
e as expôs detalhadamente à mãe, que discretamente procurou saber se o
cavalheiro com quem estava seu neto teria tido ou tinha algum filho; soube que
o rapaz ao qual chamamos Rodolfo era filho dêle e que estava na Itália;
calculando o tempo que lhe disseram ter êle saído da Espanha, viu que eram os
mesmos sete anos que tinha o neto. Comunicou tudo isto ao marido e os dois
combinaram com a filha esperar para ver o que Deus faria do menino, que
dentro de quinze dias ficou fora de perigo e depois de trinta dias levantou-se;
durante todo êste tempo foi êle visitado pela mãe, pela avó e tratado pelos
donos da casa como se fôsse o próprio filho; algumas vêzes, falando com
Leocádia, Dona Estefânia, que assim se chamava a mulher do cavalheiro, dizialhe que aquêle menino se parecia tanto com um filho seu que estava na Itália e
não havia uma só vez que o olhasse que não parecesse ver o filho diante dos
olhos. Em uma dessas vêzes em que assim falava, Leocádia, achando-se a sós
com ela, teve oportunidade de dizer-lhe algumas palavras que, de acôrdo com
os pais, havia decidido dizer-lhe, e que foram estas ou mais ou menos estas:
- No dia, senhora, em que meus pais ouviram dizer que seu sobrinho
sofrera o desastre, acreditaram e pensaram que o céu se lhes havia fechado e
que todo o mundo viera abaixo; imaginaram que, faltando-lhes êste sobrinho, a
quem êles querem com tanto amor que excede, de muito, o amor de muitos pais
por seus filhos, faltava-lhes a luz dos olhos e o consôlo de sua velhice; mas,
como se costuma dizer, quando Deus dá a ferida dá também o remédio; o
menino encontrou-o nesta casa e eu encontrei nela a lembrança de alguns
acontecimentos que nunca poderei esquecer enquanto a vida me dure; eu,
senhora, sou nobre, porque meus pais o são e o hão sido todos os meus
antepassados, que, com modestos bens da fortuna, mantiveram, felizmente, sua
honra onde quer que viveram.
Dona Estefânia, admirada e surpreendida, estivera escutando as palavras
de Leocádia e não podia acreditar, embora estivesse vendo, que pudesse haver
tanta ponderação em tão pouca idade, pois, a seu parecer, julgava que a môça
deveria ter vinte anos mais ou menos; sem falar-lhe ou responder-lhe qualquer
palavra, ouviu tôdas as palavras que a môça quis dizer-lhe e que foram
suficientes para contar-lhe a malandragem do filho, sua desonra, o rapto, o
cobrir-lhe os olhos, o trazê-la para aquêle aposento, os sinais que a fizeram
reconhecer o que suspeitava; para confirmar suas palavras, tirou do peito o
crucifixo que havia levado e disse:
- Tu, Senhor, que fôste testemunha da violência, sê juiz do reparo que me
deve ser feito; levei-te de cima daquela escrivaninha com o propósito de te
lembrar sempre a ofensa feita, não para pedir-te vingança, que não a quero, mas
para pedir-te que me desses algum consôlo para eu levar com paciência minha
desgraça. Êste menino, senhora, pelo qual haveis demonstrado o extremo de
vossa caridade, é vosso verdadeiro neto; quis o céu que êle fôsse atropelado
para que, trazendo-o a vossa casa, pudesse eu encontrar nela, como espero
encontrar, senão o remédio que melhor me convenha para minha desventura,
pelo menos um meio para que eu possa relevá-la.
Dizendo isto, abraçada ao crucifixo, caiu desmaiada nos braços de
Estefânia, que, enfim, como mulher e como nobre, em quem a compaixão e a
misericórdia costuma ser tão natural como a crueldade o é no homem, mal viu o
desmaio de Leocádia, juntou seu rosto ao dela, derramando sôbre êle tantas
lágrimas que não foi preciso espargir outra água em Leocádia para que ela
voltasse a si.
Estando as duas desta maneira, o cavalheiro, marido de Estefânia, entrou,
trazendo Luisinho pela mão e, vendo êle o pranto de Estefânia e o desmaio de
Leocádia, pediu pressuroso para lhe dizerem o porquê da situação. O menino
abraçava a mãe, que julgava sua prima, a sua avó, que julgava sua benfeitora, e
perguntava também por que choravam.
- Tenho importantes coisas a vos dizer, senhor - disse Estefânia a seu
marido -, mas, para resumir, devo dizer-vos que esta môça é vossa filha e êste
menino vosso neto. O que vos digo me foi revelado por essa menina e o rosto
dêste menino, no qual ambos vimos o rosto de nosso filho, confirma suas
palavras.
- Se não vos explicardes, senhora, não vos entenderei - falou o cavalheiro.
Nisto, Leocádia voltou a si e, abraçada ao crucifixo, parecia estar
transformada em um mar de pranto. Os fatos haviam colocado o cavalheiro em
grande confusão e dela só saiu quando sua mulher lhe contou tudo o que
Leocádia lhe havia dito; êle, pela divina permissão do céu, em tudo acreditou,
como se o houvessem provado com muitas e verdadeiras testemunhas.
Consolou e abraçou Leocádia, beijou o neto e naquele mesmo dia mandou um
mensageiro a Nápoles avisar ao filho para vir logo, porque lhe tinham
arranjado casamento com uma jovem excepcionalmente bela e que muito lhe
convinha. Não deixaram que Leocádia nem seu filho voltassem mais à casa de
seus pais, que, contentíssimos com o bom sucesso da filha, davam sem cessar
infinitas graças a Deus. O mensageiro chegou a Nápoles e Rodolfo, desejoso de
possuir a tão formosa mulher descrita pelo pai, depois de dois dias que recebeu
a carta, tendo-se-lhe oferecido oportunidade, embarcou com seus dois
camaradas, que ainda não o haviam deixado, em quatro galeras que estavam
prestes a vir para Espanha, e sem nenhum empecilho chegou, dentro de doze
dias, a Barcelona e dali, pela posta, a cavalo, em outros sete chegou a Toledo e
entrou em casa de seu pai, tão elegante e tão garboso que tôda a elegância e
galhardia do mundo pareciam estar nêle reunidas.
Os pais alegraram-se em ver a saúde e a feliz chegada do filho. Leocádia,
que o observava de um lugar escondido, permaneceu quieta a fim de não trair
os planos e a ordem que Dona Estefânia lhe havia dado. Os companheiros de
Rodolfo quiseram ir logo para suas casas, mas Estefânia não o permitiu, por
necessitar dêles para seus desígnios. Rodolfo chegou quando a noite se
aproximava e, enquanto se preparava o jantar, Estefânia, acreditando, sem
dúvida alguma, que êles deveriam ser dois dos três camaradas que Leocádia
dissera estarem com Rodolfo na noite em que a raptaram, chamou os dois
companheiros do filho e pediu-lhes insistentemente para dizerem se se
lembravam de que o filho havia raptado uma mulher, em tal noite e há tantos
anos atrás, pois de saber a verdade a êsse respeito dependia a honra e o sossêgo
de todos os seus parentes; assim, com tantos e tais empenhos soube falar-lhes e
de tal maneira assegurar-lhes que o esclarecimento do rapto não lhes traria
dano algum, que êles acharam melhor confessar ser verdade que, em uma noite
de verão, indo êles dois e outro amigo com Rodolfo, raptaram uma jovem, na
mesma noite a que ela se referia; que Rodolfo a tinha trazido, enquanto êles
detinham as pessoas de sua família; que estas, gritando, procuravam defendêla, e no outro dia Rodolfo lhes havia dito que a tinha levado para sua casa e era
somente isto o que podiam responder à sua pergunta.
A confissão feita pelos dois pôs fim às dúvidas que em tal caso poderiam
aparecer e, assim, decidiu ela levar a cabo seu bom pensamento, que foi o
seguinte: pouco antes de sentarem-se para jantar, a mãe de Rodolfo entrou a sós
com êle em um aposento e, colocando-lhe um retrato nas mãos, disse-lhe:
- Rodolfo, meu filho, quero dar-te um grande prazer, mostrando-te a tua
espôsa; êste é seu retrato; quero-te, porém, advertir que o que lhe falta em
beleza lhe sobra em virtude; ela é nobre e discreta e medianamente rica e, como
teu pai e eu a escolhemos para ti, asseguro-te que é ela quem te convém.
Rodolfo olhou atentamente o retrato e disse:
- Se os pintores, que geralmente costumam ser pródigos na formosura do
rosto que retratam, o foram também com êste, acredito, sem dúvida, que o
original deve ter a mesma feiúra; para dizer a verdade, senhora minha mãe, é
justo e bom que os filhos obedeçam ao que os pais mandarem, mas também é
conveniente e melhor que os pais dêem aos filhos o que êles mais gostarem; e
como o matrimônio é nó que se desata apenas com a morte, será bom que os
laços sejam iguais e fabricados com os mesmos fios: a virtude, a nobreza, a
discrição e os bens da fortuna podem muito bem alegrar a alma daquele a quem
a sorte lhe deu tal espôsa, mas que a feiúra dela alegre os olhos do espôso
parece-me impossível; sou môço, mas parece-me ser compatível com o
sacramento do matrimônio o justo e devido prazer que os casados desfrutam, e,
se êle falta, o matrimônio fraqueja e nega sua segunda finalidade; pensar, pois,
que um rosto feio, que se há de ter a tôda hora diante dos olhos, na sala, na
mesa e no leito, possa deleitar, digo-vos outra vez, parece-me quase impossível;
por vossa vida, minha mãe, dai-me uma companheira que me alegre e que não
me enfade para que, sem nos desviarmos por uma ou outra parte, ambos os
dois levemos igualmente e pelo reto caminho o jugo que o céu nos impuser; se
esta senhora é nobre, discreta e rica como vossa mercê diz, não lhe faltará um
espôso que tenha um modo de pensar diferente do meu; uns há que buscam
nobreza; outros, discrição; outros, dinheiro e outros, formosura; eu sou dêstes
últimos, porque nobreza, graças ao céu, aos meus antepassados e a meus pais,
eu a tenho por herança; recato, não sendo a mulher néscia ou tonta, basta-lhe
que não se revele muito desembaraçada nem muito bôba para não aproveitar;
quanto às riquezas, também as de meus pais fazem-me não temer que eu venha
a ser pobre; busco a formosura, quero a beleza aliada ao dote de honestidade e
bons costumes; se minha espôsa trouxer isto, servirei a Deus com gôsto e darei
uma velhice sossegada a meus pais.
A mãe de Rodolfo ficou contentíssima com suas palavras porque elas a
faziam conhecer que tudo ia correndo de acôrdo com seus planos; respondeulhe que procuraria casá-lo conforme êle quisesse, que não se preocupasse, pois
era fácil desmanchar o acôrdo que haviam feito para casá-lo com aquela
senhora.
Rodolfo agradeceu-lhe e, como chegasse a hora do jantar, foram para a
mesa; estando já sentados o pai e a mãe, Rodolfo e seus camaradas, Dona
Estefânia disse descuidadamente:
- Como sou distraída e como trato minha hóspede! Andai - disse ela a um
criado -, dizei à Senhora Leocádia que deixe de lado sua modéstia e nos venha
honrar esta mesa, pois todos os que nela estão são meus filhos e seus servidores.
Tudo isto fazia parte de seu plano e tudo o que havia de fazer já o sabia
Leocádia. Pouco demorou para que Leocádia saísse e desse de si a mais
imprevista e bela mostra que a formosura natural e composta jamais pôde dar.
Por ser inverno, estava vestida com uma saia tôda de veludo negro, salpicada
com botões de ouro e pérolas; o cinto e a gola, de diamantes; seus próprios
cabelos, que eram longos e não excessivamente loiros, serviam-lhe de adôrno e
touca; os laços, os ondeados e os reflexos de diamantes, que com êles se
misturavam, ofuscavam a luz dos olhos que os olhavam. Leocádia estava bem
disposta e elegante; trazia o filho pela mão e diante dela vinham duas donzelas
iluminando-a com duas velas de cêra, em dois candelabros de prata.
Levantaram-se todos para reverenciá-la, como se ela fôsse alguma criatura
do céu que milagrosamente houvesse aparecido ali.
Nenhum dos que estavam olhando-a embevecidos, parece que por
estarem atordoados, pôde dirigir-lhe a palavra. Leocádia, com graça airosa e
discreta polidez, cumprimentou a todos, e Estefânia, tomando-a pela mão, fê-la
sentar-se a seu lado, defronte de Rodolfo. Colocaram o menino junto ao avô.
Rodolfo, que de mais perto olhava a incomparável beleza de Leocádia, dizia
consigo: “Se aquela que minha mãe escolheu para minha espôsa tivesse a
metade desta beleza, eu me consideraria o mais feliz homem do mundo. Valhame Deus! O que vejo! Estou eu olhando, porventura, algum anjo humano?” E
com isto ia-se-lhe entrando pelos olhos, para tomar conta de sua alma, a
formosa imagem de Leocádia, que, enquanto o jantar não vinha, vendo também
tão perto de si aquêle que já queria mais que a luz dos próprios olhos, com os
quais o olhava de vez em quando, furtivamente, começou a revolver em sua
imaginação o que havia passado com Rodolfo; começaram a enfraquecer em
sua alma as esperanças que a mãe de Rodolfo lhe havia dado de êle tornar-se
seu espôso; considerava quanto estava perto de ser feliz ou infeliz para sempre;
a consideração foi tão intensa e os pensamentos tão contraditórios que lhe
apertaram o coração de tal forma que começou a suar e a perder a côr a ponto
de, sobrevindo-lhe um desmaio, ver-se obrigada a reclinar a cabeça nos braços
de Estefânia, que, vendo-a assim, nêles a recebeu muito perturbada.
Sobressaltaram-se todos e, deixando a mesa, correram para acudi-la. Porém
quem mais demonstrou senti-lo foi Rodolfo, que, para chegar mais rápidamente
a ela, tropeçou e caiu duas vêzes. Nem desabotoando-lhe a roupa, nem
atirando-lhe água ao rosto ela voltava a si; pelo contrário, o peito e o pulso, que
não lhe achavam, iam dando sinais precisos de sua morte; as criadas e os
criados da casa, sem pensar, falaram em alta voz e a consideraram morta. Estas
novas amargas chegaram aos ouvidos dos pais de Leocádia, que Dona Estefânia
havia reservado para mais agradável ocasião.
Eles, com o cura da paróquia, que com êles estava, desobedecendo às
ordens de Dona Estefânia, vieram à sala.
O cura chegou logo para ver se Leocádia, mesmo por sinais, dava mostras
de arrepender-se de seus pecados para absolvê-la e, onde pensava encontrar
apenas um desmaio, encontrou dois, porque Rodolfo estava com o rosto
pendido sôbre o peito de Leocádia. A mãe deixou-o aproximar-se dela como de
algo que havia de lhe pertencer; quando porém, viu que êle também estava sem
sentidos, estêve a ponto de perder o seu e o perderia, se não visse que Rodolfo
tornava a si, como voltou, envergonhado de o terem visto chegar ao extremo
dos extremos; mas sua mãe, quase adivinhando o que o filho sentia, disse-lhe:
- Não te envergonhes, filho, do extremo a que chegaste; envergonha-te,
isto sim, daqueles aos quais não chegaste quando souberes o que não te quero
mais esconder, embora eu pensasse revelá-lo em mais alegre ocasião; deves
saber, filho de minh’alma, que esta jovem, que tenho desmaiada em meus
braços, é tua verdadeira espôsa; digo verdadeira porque eu e teu pai a
havíamos escolhido para ti, pois a do retrato é falsa.
Rodolfo, quando ouviu isto, levado por seu amoroso e ardente desejo e,
tirando-lhe o nome de espôso todos os inconvenientes que a honestidade e a
decência do lugar podiam-lhe impor, inclinou-se ràpidamente ao rosto de
Leocádia e, unindo seus lábios aos dela, parecia esperar que a alma dela saísse,
para que a sua lhe desse acolhida. Porém, quando as lágrimas de todos cresciam
ainda mais pelo desgôsto, os gritos aumentavam pela dor, a mãe de Leocádia
arrancava os cabelos e seu pai a barba, os gritos de seu filho alcançavam os
céus, Leocádia voltou a si e, com sua volta, retornou a alegria e o contentamento
que se haviam ausentado dos corações de todos os circunstantes. Leocádia viuse nos braços de Rodolfo e com fôrça considerável procurava livrar-se dêles;
porém êle lhe disse:
- Não, senhora, não há de ser assim; não fica bem que luteis para livrar-vos
dos braços daquele que vos tem na alma.
Neste momento, Leocádia acabou de recobrar completamente seus
sentidos e Dona Estefânia acabou por não levar mais adiante sua primeira
determinação, dizendo ao cura que casasse logo seu filho com Leocádia; o
padre assim o fêz, pois êste caso passou-se no tempo em que o matrimônio era
realizado com a vontade dos nubentes apenas, sem os cuidados e prevenções
justas e santas, que, agora existem; nada houve que impedisse o casamento. E,
realizado, deixe-se que outra pena e outro talento mais delicado que o meu
narre a alegria geral de todos os que nêle se acharam; os abraços que os pais de
Leocádia deram em Rodolfo; as graças que seus pais deram ao céu; os
oferecimentos de tôdas as partes; a admiração dos camaradas de Rodolfo, que
tão inesperadamente viram, na mesma noite de sua chegada, tão formoso
casamento, e mais ainda quando souberam, por ter Dona Estefânia contado
diante de todos, que Leocádia era a jovem que seu filho havia raptado em sua
companhia; Rodolfo não ficou menos admirado e, para-certificar-se, pediu a
Leocádia para indicar-lhe alguma coisa que identificasse perfeitamente aquilo
de que não duvidava, por parecer-lhe que seus pais o teriam averiguado bem.
Ela respondeu:
- Quando despertei e voltei a mim do desmaio, encontrei-me, senhor, em
vossos braços, sem honra; porém, eu o dou por bem empregado, pois, ao voltar
do desmaio que agora tive, encontrei-me também naqueles braços de então,
mas honrada. Se esta prova não basta, bastará a da imagem de um crucifixo que
ninguém, senão eu, vos pôde furtar; se deste pela falta dela e se é a mesma que
está em poder de minha senhora..
- Pertenceis à minh’alma e pertencereis pelos anos que Deus o ordenar,
minha querida.
E, abraçando-a de nôvo, de nôvo voltaram as bênçãos e os parabéns que
lhes deram.
Veio o jantar e vieram os músicos, que já estavam prevenidos.
Rodolfo viu-se a si próprio no espelho do rosto de seu filho; seus quatro
avós choraram de alegria; não houve um só canto, em tôda a casa, que não fôsse
visitado pelo júbilo, pelo contentamento e pela alegria; e, embora a noite Voasse
com suas ligeiras e negras asas, parecia a Rodolfo que ia e caminhava não com
asas, mas com muletas, tão grande era o desejo de ver-se a sós com sua querida
espôsa. Chegou, enfim, a hora desejada, porque nada há que não tenha fim.
Retiraram-se todos, tôda a casa mergulhou.
Em silêncio, no qual não ficará a verdade dêsse conto, pois não o
consentirão os inúmeros filhos e a ilustre descendência que deixaram em
Toledo êstes dois felizes esposos, que, durante muitos e felizes anos,
desfrutaram da alegria de se possuírem, de terem muitos filhos e netos, tudo
isso permitido pelo céu e pela fôrça do sangue, que o valoroso, ilustre e cristão
avô de Luisinho viu derramado no solo.
O Ciumento
Não faz muitos anos, partiu de uma aldeia de Estremadura um fidalgo,
filho de pais nobres, que andou gastando como um pródigo os anos e os bens,
por diferentes partes da Espanha, Itália e Flandres; ao fim de muitas
peregrinações; mortos já seus pais e dissipados os seus bens, foi parar na grande
cidade de Sevilha, onde não lhe faltaram ocasiões para consumir o pouco que
lhe restava. Vendo-se, pois, em grande penúria e com poucos amigos, decidiuse por um recurso, comum, naquela cidade, aos que se encontram em igual
situação: partiu para as Índias (Com o têrmo “Índias” indicava-se, na época de
Cervantes, também a América.), refúgio e amparo dos desesperados de Espanha,
abrigo dos falidos, salvo-conduto dos homicidas, apoio e proteção dos
jogadores chamados “certos” pelos peritos na arte, chamariz de mulheres
perdidas, engano comum de muitos e remédio particular de poucos. Partindo,
nessa ocasião, uma frota para Terra firme, entendeu-se êle com o almirante,
preparou a matalotagem, a esteira de esparto e, embarcando em Cádiz, deu a
bênção à Espanha, enquanto a frota levantava ferros; com geral alegria deramse as velas ao vento, que soprava branda e favoràvelménte e que, em poucas
horas, os fêz perder de vista a terra e enxergar as largas e espaçosas planícies do
grande pai das águas, o mar Oceano. O nosso passageiro ia pensativo,
revolvendo na memória os grandes e variados perigos pelos quais passara em
suas peregrinações e o mau rumo que até ali seguira no caminho da existência;
dessa recapitulação surgia-lhe na alma o firme propósito de mudar de vida,
procurando um jeito de conservar os bens que Deus fôsse servido dar-lhe e
procedendo com as mulheres mais recatadamente do que até então fizera.
Encontrava-se a frota em plena calmaria enquanto Filipe de Carrizales assim se chamava o homem que nos deu assunto para nossa novela - era
agitado pela tempestade interior de seus pensamentos. Tornou a soprar o vento,
impelindo os navios com tanta fôrça que ninguém pôde ficar em seus lugares;
Filipe de Carrizales teve que desistir de suas cogitações e entregar-se aos
cuidados que a viagem lhe impunha; mas a viagem foi tão próspera que os
navios chegaram sem contratempo ao pôrto de Cartagena. Resumindo, e para
não perder tempo com fatos alheios à nossa novela, direi que Filipe tinha uns 48
anos quando embarcou para as índias e que, em vinte que ali passou,
conseguiu, graças à sua habilidade e ao seu esfôrço, ganhar mais de 150.000
pesos bem contados.
Vendo-se, pois, rico e em plena prosperidade, veio-lhe o desejo natural e
que todos têm de voltar à pátria; desprezados os grandes interêsses que se lhe
ofereciam, deixou o Peru, onde adquirira tanta riqueza, e, convertendo todos os
seus bens em barras de ouro e prata, registrou-as, para evitar complicações, e
voltou à Espanha. Desembarcou em Sanlúcar; chegou a Sevilha, tão carregado
de anos como de riquezas; levantou sua fortuna sem dificuldade; procurou seus
amigos: todos tinham morrido; quis então ir à sua terra natal, apesar de saber
que a morte não lhe deixava parente algum. Se, quando partiu para as índias,
pobre e necessitado, inúmeros pensamentos o assaltaram e não o deixavam
sossegar um só instante, agora, no sossêgo da terra, assaltavam-no do mesmo
modo, embora o motivo fôsse outro; se antes não dormia por ser pobre, agora
não podia estar tranqüilo por ser rico, que a riqueza é fardo tão pesado para
quem não está acostumado nem sabe utilizá-la como é a pobreza para aquêle
que a tem por companheira constante. O ouro nos dá cuidados, a falta dêle
também; mas os que não o têm contentam-se ao conseguir uma pequena
quantia, e os que o têm vêem aumentados os seus tormentos quanto mais
dinheiro possuem.
Carrizales contemplava suas barras de ouro e prata não por ser avarento,
pois aprendera a ser liberal durante seu tempo de soldado, mas por não saber o
que havia de fazer com elas; assim como estavam nada lhe rendiam; tendo-as
em casa serviriam de isca para os cobiçosos e atrairiam os ladrões. Morrera-lhe
o desejo de voltar à vida inquieta dos negócios e parecia-lhe que, tendo a idade
que tinha, possuía riquezas de sobra para passar a vida e queria passá-la em sua
terra, pôr aí sua riqueza para obter rendimentos, passar nela os anos de sua
velhice em tranqüilidade e sossêgo, dando a Deus o que podia, pois já dera ao
mundo mais do que devia. Por outro lado, considerava que sua terra era muito
pequena e que havia muita gente pobre, de modo que, estabelecendo-se aí,
tornar-se-ia alvo de tôdas as importunações que os pobres costumam infligir a
um vizinho rico, principalmente quando não há outro na terra que lhes possa
acudir em suas misérias. Desejava ter a quem, por sua morte, deixar os grandes
bens que possuía, e considerava as fôrças que lhe restavam, parecendo-lhe que
poderia ainda arcar com o pêso do matrimônio, mas, vindo-lhe êste
pensamento, sobressaltava-o tão grande mêdo que tais planos logo se
desvaneciam como névoa dispersada pelo vento; era, por temperamento, a
criatura mais ciumenta do mundo e, mesmo antes do casamento e só com a
idéia de vir a casar-se, o ciúme espicaçava-o de tal modo, que, aos poucos,
decidiu não se casar.
Tendo assim resolvido, mas não sabendo ainda o que havia de fazer de
sua vida, quis o destino que, passando um dia por uma rua, levantasse os olhos
e visse, à janela, uma jovem que parecia ter uns treze ou catorze anos e dotada
de tal formosura e fisionomia tão agradável, que, sem poder defender-se, o bom
velho Carrizales viu a fraqueza de seus muitos anos vencida pelos poucos de
Leonora, que assim se chamava a formosa jovem. E logo, sem conseguir
dominar-se, começou a fazer grande quantidade de discursos; falando consigo
mesmo, dizia:
“Esta môça é muito bonita e, pelo aspecto da casa, não deve ser rica; ela é
muito jovem; seus poucos anos são garantia contra minhas suspeitas. Casar-meei com ela; encerrá-la-ei e saberei modelá-la a meu gôsto; assim, conhecerá do
mundo apenas o que eu lhe mostrar. Não sou tão velho a ponto de perder
esperanças de ser pai e ter herdeiros para os meus bens. Que tenha dote ou não,
é indiferente, pois quis o céu dar-me o suficiente para uma vida sem
preocupações, e os ricos não devem buscar no matrimônio um negócio, mas sim
o prazer, porque o prazer prolonga a vida e os desgostos entre casados só
servem para abreviá-la. A sorte está lançada; esta é a sorte que o céu me
reservou”.
E assim, terminado êste solilóquio, repetido uma centena de vêzes, no fim
de alguns dias foi falar com os pais de Leonora e soube, então, que êles, embora
pobres, eram de nobre origem; comunicando-lhes Carrizales as suas intenções,
falando-lhes de sua posição e riqueza, pediu-lhes a mão de sua filha. Quiseram
algum tempo a fim de se informarem sôbre o que dizia, enquanto êle,
Carrizales, poderia fazer indagações sôbre sua nobreza. Despediram-se; ambos
colheram informações e, como fôssem elas satisfatórias, Leonora tornou-se,
enfim, espôsa de Carrizales, que lhe deu como primeiro dote 20.000 ducados,
tão abrasado estava o coração do velho ciumento. Mas, apenas pronunciou êle o
sim de espôso, foi assaltado por um tropel de endemoninhados ciúmes e, sem
motivo algum, começou a tremer e a ter cuidados que jamais tivera. A primeira
manifestação de seu ciúme foi não permitir que alfaiate algum tomasse medidas
à sua mulher para fazer os muitos vestidos que desejava oferecer-lhe, e, assim,
andou procurando outra mulher que tivesse mais ou menos corpo de Leonora e
a quem tirassem as medidas; encontrou uma rapariga pobre que serviu para
êste fim e, quando Leonora provvou um vestido e achou que lhe ficava bem,
serviu êste de medida para todos os outros, que foram tantos e tão lindos que os
pais da desposada consideraram-se mais que felizes por terem encontrado tão
bom genro, para sua alegria e para alegria dá filha. A menina estava
assombrada, vendo tantas galas, pois as que ela até então usara não passavam
de uma saia de fazenda grosseira e corpo de tafetá.
A segunda manifestação do ciúme de Filipe foi não querer juntar-se com a
espôsa antes de lhe dar casa separada, o que arranjou do seguinte modo:
comprou, por 12.000 ducados, uma casa em um dos mais importantes bairros
da cidade, que tinha água de nascente e jardim com muitas laranjeiras; fechou
tôdas as janelas que davam para a rua, deixando-lhes apenas vista para o céu, e
fêz o mesmo com tôdas as outras da casa. Na sala d entrada, que, em Sevilha,
chamam vestíbulo, fêz estrebaria para uma mula e, por cima, um palheiro e um
cubículo onde devia dormir o tratador, que era um velho prêto eunuco;
levantou de tal maneira as paredes dos terraços que os que entravam na casa
tinham de olhar para o céu em linha reta, sem poder ver outra coisa; mandou
colocar uma roda, como as da portaria dos conventos, entre o vestíbulo e o
pátio. Comprou um rico mobiliário para enfeitar a casa, de modo que esta, pelas
tapeçarias, pelos estrados e pelos ricos dosséis, dava mostras de pertencer a um
grande senhor; comprou também quatro escravas brancas e marcou-as no rosto,
e mais duas negras, recém-chegadas de seu país. Combinou com um
despenseiro que comprasse e lhe trouxesse à casa o que comer, mas com a
condição de não dormir em sua casa e nunca ir além da roda, pela qual passaria
o que trouxesse. Feito isto, arrendou parte de seus bens, depositou outra parte
no banco e ficou com algum dinheiro para o que fôssi preciso. Mandou também
fazer uma chave mestra que abria tôdas as portas da casa e pôs dentro destas
tudo o que pôde comprar por atacado e nas estações próprias, a fim de possuir
provisões para o ano todo; tendo tudo preparado desta maneira, foi à casa dos
sogros pedir sua mulher, que êles entregaram com bastante lágrimas, pois
pareceu-lhes que a levavam para a sepultura.
A terna Leonora não sabia ainda o que o destino lhe reservara e, chorando
com os pais, pediu-lhes a bênção, despediu-se dêles e, rodeada de suas escravas
e criadas, dando a mão ao marido, foi para sua casa, onde Carrizales fêz a tôdas
um sermão encarregando-as de guardarem Leonora e de não deixarem
ninguém entrar da segunda porta para dentro, nem que fôsse o eunuco negro.
A quem êle mais especialmente entregou a guarda e o bem-estar de Leonora foi
a uma dama idosa de muita prudência e gravidade, que tomara como aia de
Leonora e também para que fôsse superintendente de tudo o que se fizesse em
casa, para governar as escravas e as duas criadas da idade de Leonora que, para
a distraírem e entreterem, tomara também em sua casa.
Prometeu-lhes que as trataria e as presentearia de maneira que não
sentissem o isolamento e que todos os dias santos e domingos, sem faltar um só,
iriam à missa, mas tão de manhãzinha que mal pudessem vê-las à luz do dia.
Prometeram-lhe as criadas e escravas fazer tudo o que lhes mandava, sem
tristeza, com boa vontade e ânimo; a jovem espôsa, encolhendo os ombros e
baixando a cabeça, disse que não tinha outra vontade que não fôsse a de seu
espôso e senhor, a quem sempre obedeceria.
Feita esta prevenção, fechou-se em casa o nosso bom estremenho e
começou a gozar como pôde os frutos do matrimônio, que, para Leonora, como
não conhecera outros, não foram saborosos nem insípidos; e assim foi vivendo
com sua aia, criadas e escravas. E tôdas, para melhor passarem o tempo,
fizeram-se gulosas e poucos dias decorriam sem que preparassem muitos
manjares, que o mel e o açúcar tornam saborosos. Tinham para isso, com
grande abundância, tudo de que precisavam, e ao seu amo não faltava também
a vontade de lhes dar, convencido de que, estando elas assim distraídas e
ocupadas, não teriam tempo de pensar em seu isolamento. Leonora tratava as
criadas de igual para igual, entretinha-se com o que elas se entretinham,
chegando, em sua ingenuidade, a fazer bonecas e outras criancices semelhantes,
que mostravam a simplicidade de sua natureza e o verdor dos seus anos; tudo
isso proporcionava grandíssima satisfação ao ciumento marido, parecendo-lhe
que acertara na escolha da melhor vida que soubera imaginar e que de modo
algum a habilidade ou a malícia humana jamais poderia perturbar seu sossêgo;
assim, só se desvelava em trazer presentes à espôsa e em conceder-lhe que
pedisse todos os que lhe viessem ao pensamento, pois teria todos os que
quisesse.
Nos dias em que ela ia à missa, o que, como já se disse, verificava-se bem
de manhãzinha, vinham seus pais e, na igreja, falavam à filha na presença do
marido; êste oferecia-lhes tantos presentes que, embora tivessem pena da filha
pela Clausura em que vivia, sentiam atenuado seu pesar com as inúmeras
dádivas que Carrizales, em sua liberalidade, lhes dava.
Levantava-se Carrizales bem cedinho e esperava a chegada do
despenseiro, a quem, na noite anterior, por meio de um bilhete que punham na
roda, avisavam do que devia trazer no dia seguinte; e, depois de vir o
despenseiro, saía de casa, a maioria das vêzes a pé, deixando fechadas as duas
portas; a da rua e a do meio: entre as duas ficava o negro. Ia então tratar de seus
negócios, que eram poucos, e logo voltava, fechando-se em casa, onde se
entretinha dando presentes à espôsa e agradando às criadas; tôdas lhe queriam
bem, por ser de natureza franca e agradável e, sobretudo, por mostrar-se tão
liberal. Desta maneira passaram um ano de noviciado e professaram naquela
vida, determinando-se a levá-la assim até o fim de seus dias; e assim, seria, sem
dúvida, se o astuto perturbador do gênero humano não o estorvasse, como
agora o vereis.
Diga-me aquêle que se tenha em conta de mais sagaz e recatado que mais
preocupações haveria de tomar para a sua segurança o velho Filipe, pois nem
sequer consentia que em sua casa houvesse animal algum de sexo masculino.
Nunca um gato perseguiu ali os ratos, nem naquela casa ouviu-se ladrar um
cão: todos eram do sexo feminino. De dia pensava e de noite não dormia; era êle
a ronda e sentinela de seu lar e o Argos daquilo que tanto estimava; jamais
entrou um homem além da porta do pátio. Com seus amigos negociava na rua.
As figuras das tapeçarias e quadros que ornamentavam as salas eram tôdas
fêmeas, flôres e florestas. A casa inteira reacendia honestidade, recolhimento e
recato; até as histórias contadas pelas criadas junto da lareira durante os longos
serões de inverno, por estar êle presente, não tinham qualquer sombra de
lascívia. As cãs, que prateavam a cabeça do velho, pareciam a Leonora de ouro
puro, porque o primeiro amor das donzelas imprime-se em sua alma como o
sêlo imprime-se na cêra. Sua vigilância excessiva parecia-lhe prudente recato;
pensava e acreditava que o que lhe sucedia, sucedia a tôdas as recém-casadas.
Não se atreviam os seus pensamentos a transpor as paredes da casa, nem sua
vontade desejava outra coisa que não fôsse a vontade do marido; só nos dias em
que ia à missa via as ruas, e isto era tão cedo, que apenas ao voltar havia
claridade suficiente para enxergá-las. Nunca se viu convento mais fechado, nem
freiras mais guardadas, nem maçãs de ouro tão defendidas; mas com tudo isto,
não pôde Carrizales prevenir nem evitar a desgraça de cair no que temia ou,
pelo menos, de pensar que nela caíra.
Há em Sevilha certa gente ociosa e mandriona, a quem se costuma chamar
gente de bairro; são os filhos dos privilegiados e dos mais ricos, gente vadia,
janota e amaneirada; é gente da qual, de seu trajar e maneira de viver, de sua
condição, das leis que observam entre si, haveria muito o que dizer, mas, por
muitos motivos, nos calaremos. Um dêstes janotas, que, entre êles, chamam-se
peralvilhos, môço solteiro - pois aos recém-casados dão o nome de espadachins
-, olhou por acaso a morada do recatado Carrizales e, vendo-a sempre fechada,
teve desejos de saber quem vivia lá dentro; empenhou-se com tanto afinco e
curiosidade em descobri-lo, que veio a saber tudo o que queria.
Soube do gênio do velho, da formosura de sua espôsa e de que maneira a
guardava; tudo isto lhe despertou o desejo de tentar, por fôrça ou habilidade, a
conquista da fortaleza tão bem guardada; falou do caso a dois peralvilhos e a
um espadachim, seus amigos, que logo foram de opinião que se pusessem mãos
à obra, pois para tais empreendimentos nunca faltam conselheiros e ajudantes.
Decidiram o modo de empreender tão difícil façanha e, como já tinham
entrado muitas vêzes em tais brincadeiras, acabaram por combinar o seguinte:
Loaysa, tal era o nome do peralvilho, devia fingir que ia passar alguns dias fora
da cidade e não aparecer mais aos amigos, e assim fêz. Feito isto, vestiu calças
de linho fino e limpo e uma camisa também limpa; por cima, pôs uma roupa tão
rôta e remendada, que mendigo algum da cidade parecia mais andrajoso;
cortou um pouco a barba que usava, tapou um ôlho com um pedaço de pano,
pôs uma atadura muito apertada numa das pernas e, apoiando-se em duas
muletas, transformou-se em um pobre paralítico, de tal modo que não o
igualava o maior estropiado.
Com êsse disfarce ia tôdas as noites à porta da casa de Carrizales, que já
estava fechada, permanecendo o negro, que se chamava Luís, encerrado entre
as duas portas. Colocado ali, Loaysa pegava de uma guitarra um tanto sebenta
e sem algumas cordas e, como fôsse um pouco músico, começava a tocar
algumas modinhas alegres, mudando a voz para não ser reconhecido.
Entoava, sem perda de tempo, cantigas de mouros e mouras como doido,
com tanta graça, que as pessoas que passavam pela rua ficavam a escutá-lo e,
enquanto cantava, estava sempre rodeado de rapazes; o negro Luís, aplicando o
ouvido às portas, permanecia prêso à música do peralvilho e daria um braço
para poder abrir a porta e escutá-lo mais à vontade: tal é a inclinação que os
negros têm para a música. E quando Loaysa queria que seus ouvintes o
deixassem, calava-se, guardava a guitarra e, pegando as muletas, ia-se embora.
Quatro ou cinco vêzes êle havia tocado para o negro - que só para êle o
fazia -, pois achava que o desmoronamento daquele edifício deveria começar
por ali; não lhe saiu errado tal pensamento, porque, chegando, como de
costume, uma noite à porta, começou a afinar a guitarra e percebeu que o negro
estava já atento; aproximando-se aos gonzos da porta, disse-lhe:
- Seria possível, Luís, dar-me um pouco de água, pois estou morto de sêde
e não posso cantar?
- Não - disse o negro -, porque não tenho a chave desta porta e não há
abertura por onde possa passar a água.
- E quem tem a chave? - perguntou Loaysa.
- Meu amo - respondeu o negro -, que é o homem mais ciumento do
mundo. Se êle soubesse que estou agora falando aqui com alguém, não sei o que
seria de minha vida. Mas, quem sois vós que me pedis água?
- Eu - respondeu Loaysa - sou um pobre aleijado de uma perna, que ganho
a vida pedindo esmolas pelo amor de Deus; ensino também a tocar guitarra a
alguns “morenos” e outras pessoas pobres e já tenho três negros, escravos de
três presidentes da Câmara Municipal, a quem ensinei de tal modo que podem
cantar e tocar em qualquer baile ou em qualquer taverna e por isso me pagaram
muitíssimo bem.
- Muito melhor vos pagaria eu - disse Luís - se pudesse tomar umas lições,
mas não é possível por causa de meu amo, que saindo pela manhã, fecha a
porta da rua e quando volta faz o mesmo, deixando-me prêso entre as duas
portas.
- Por Deus, Luís - replicou Loaysa, que já sabia o nome do negro -, se
descobrísseis a maneira de eu poder entrar algumas noites para vos dar lições,
em menos de quinze dias eu vos tornaria tão hábil tocador de guitarra, que
poderíeis tocá-la sem vergonha alguma, em qualquer esquina; porque deveis
saber que tenho muito jeito para ensinar e, além disso, já ouvi dizer que sois
dotado de muita habilidade; e eu, a julgar pelo vosso timbre de voz, creio que
deveis cantar muito bem.
- Não canto mal - respondeu o negro -, mas de que me serve se não sei
cantiga alguma, a não ser aquela da estrêla Vênus, ou esta:
Por um verde prado, e a que está em moda e diz assim:
Aos ferros de uma grade a mão trêmula agarrada?
- Tudo isso não vale um tostão, comparado com o que eu vos poderia
ensinar - disse Loaysa -, porque sei tôdas as cantigas do mouro Abindarraz e as
de sua dama Jarifa e tôdas as que contam a história do grande sofi (Sofi: Antigo
título dos soberanos da Pérsia.) Tomunibeyo e as da sarabanda do divino; são tão
boas que até fazem pasmar os portugueses; ensino isto de tal maneira e com
tanta facilidade, que, ainda que não tivésseis pressa de aprender, mal teríeis
comido três ou quatro pitadas de sal e já vos veríeis músico de mão cheia em
qualquer espécie de guitarra.
O negro suspirou e disse:
- Que adianta tudo isso se não sei como posso meter-vos em casa?
- Isso não é problema - disse Loaysa. - Procurai tirar as chaves ao vosso
amo e eu vos darei um pedaço de cêra, onde as imprimireis de forma a ficarem
bem marcadas; pelo muito afeto que vos tomei, conseguirei com que um
serralheiro, meu amigo, faça as chaves e assim poderei entrar de noite e ensinarvos melhor que o preste (Preste: Sacerdote que celebra a missa cantada.) João das
índias; pois acho grande pena perder-se uma voz como a vossa, faltando-lhe o
arrimo da guitarra; deveis saber, irmão Luís, que a melhor voz do mundo perde
seu quilate quando não é acompanhada por instrumento, seja guitarra, cravo,
órgão ou harpa; mas o que mais convém à vossa voz é a guitarra, por ser o mais
manejável e menos dispendioso de todos os instrumentos.
- Parece-me tudo muito bem - replicou o negro -, mas não pode ser, pois as
chaves nunca vêm à minha mão nem meu amo as larga das suas; dormem, noite
e dia, debaixo de seu travesseiro.
- Fazei então outra coisa, Luís - disse Loaysa -, se é que tendes vontade de
ser um grande músico, pois se não a tendes não vejo por que hei de me cansar
aconselhando-vos.
- Se tenho vontade? - replicou Luís. - E tanta, que a tudo me sujeitarei, seja
o que fôr, para chegar a ser músico.
- Já que é assim - disse o peralvilho -, eu vos darei, por debaixo da porta,
tirando vós alguma terra da soleira para fazer um vão, eu vos darei uma
torquês e um martelo com que podereis, de noite, tirar os pregos da fechadura
com muita facilidade, e tornaremos a pôr a chapa de tal modo que ninguém
poderá perceber que foi despregada; e, estando eu dentro, fechado convosco no
palheiro, ou onde dormis, apressar-me-ei tanto no que tenho de fazer, que
vereis mais do que vos disse, para proveito de minha pessoa e aumento de
vossa sabedoria.
E do que havemos de comer não tenhais cuidado, pois levarei provisões
para nós dois e para mais de oito dias, pois tenho discípulos e amigos que não
me deixarão passar mal.
- Quanto à comida - replicou o negro -, nada haverá que recear: com a
ração que me dá meu amo e com os restos que me dão as escravas, sobraria
comida, ainda que Fôssemos mais dois.
Que venha êsse martelo e a torquês, que eu farei na soleira, por debaixo da
porta, lugar onde caibam e tornarei a tapar, cobrir com barro e, ainda que dê
algumas marteladas para tirar a chapa, meu amo dorme tão longe desta porta,
que será milagre ou grande desgraça nossa se as ouvir.
- Então, com a graça de Deus - disse Loaysa -, daqui a dois dias, Luís,
tereis tudo o que é necessário para pôr em execução o vosso virtuoso propósito;
tomai cuidado para não comer coisas ardidas, porque não dão proveito algum e
só causam dano à voz.
- Nada me enrouquece tanto - respondeu o negro - como o vinho, mas não
me privarei dêle nem por tôdas as vozes do mundo.
- Não é preciso chegar a tanto - disse Loaysa -, nem Deus permita tal coisa;
bebei, filho, bebei e bom proveito. Que vinho que se bebe com moderação
jamais fêz mal a ninguém.
- Bebo com moderação - replicou o negro -, tenho aqui uma caneca que
leva uma medida bem contada; são as escravas que a enchem para mim sem
que meu amo o saiba; e o despenseiro traz-me, às escondidas, uma botija de
duas medidas que serve para as faltas da caneca.
- Pois eu vos digo - tornou Loaysa -, isto me parece muito bom; enxuta, a
garganta não grunhe nem canta.
- Ide com Deus - disse o negro -, mas não deixeis de vir cantar tôdas as
noites, enquanto não trouxerdes o que ficou combinado, que já me coçam os
dedos, tal é o desejo que tenho de vê-los postos na guitarra.
- E não hei de vir? - replicou Loaysa. - E com modinhas novas.
- É isso mesmo que peço - disse Luís. - E agora, canta-me alguma coisa
para que eu possa deitar-me satisfeito; quanto ao pagamento, ficai sabendo,
senhor pobre, que vos hei de pagar melhor que um rico.
- Deixemos isso para depois - disse Loaysa -, pagar-me-eis segundo as
lições que vos der; escutai por enquanto esta modinha; quando eu estiver aí
dentro, será muito melhor ainda.
- Em boa hora havereis de prová-lo - respondeu o negro.
Terminado êste longo colóquio, Loaysa cantou uma cantiga muito
engraçada, que deixou o negro contente e satisfeito, não vendo a hora de abrir a
porta ao músico.
Com mais ligeireza que as muletas poderiam deixar prever, Loaysa, mal
afastou-se da porta, foi encontrar-se com os amigos, dando-lhes conta do bom
andamento da emprêsa, que lhes prometia fim ainda melhor. Encontrou-os e
contou-lhes o que combinara com o negro; no dia seguinte arranjaram
ferramentas para quebrar qualquer prego, como se fôsse de pau.
Não se esqueceu o peralvilho de voltar a tocar para o negro e êste também
não se esqueceu de cavar na soleira da porta o buraco por onde coubesse o que
seu mestre haveria de lhe trazer, disfarçando-o de maneira que só quem para ali
olhasse com malícia e suspeita poderia descobri-lo. Na segunda noite, Loaysa
passou-lhe a ferramenta e Luís deu mostras de sua fôrça, pois, quase sem
esfôrço, viu os pregos quebrados e a chapa da fechadura nas mãos; abriu a
porta, recolheu o seu orfeu e mestre; quando o viu com as duas muletas e tão
andrajoso, com a perna tão embrulhada em ataduras, ficou admirado. Loaysa
não estava com o pano no ôlho por não ser necessário e, nem bem entrou,
abraçou o seu bom discípulo, beijou-o na face e logo lhe pôs nas mãos um odre
de vinho, uma caixa de conservas e outras coisas boas, que levava em uns
alforjes bem providos. Largando as muletas, como se não sofresse de mal
algum, começou a dar cabriolas; o negro admirou-se ainda mais e Loaysa lhe
disse:
- Sabereis, irmão Luís, que aminha entrevação não provém de
enfermidade, mas do meu engenho para ganhar o pão de cada dia pedindo
esmola pelo amor de Deus e, servindo-me dela e da minha música, para levar a
melhor vida do mundo, onde todos aquêles que não forem engenhosos e
inventivos morrerão de fome; vereis isto, no decorrer de nossa amizade.
- Assim será - disse o prêto. - Mas vamos agora pôr outra vez esta chapa
em seu lugar, de modo que não se dê pela sua mudança.
- Então vamos lá - disse Loaysa.
E, tirando alguns pregos de seus alforjes, assentaram a fechadura
exatamente como dantes; com isto o negro ficou contentíssimo; subindo Loaysa
para o aposento que Luís tinha no palheiro, acomodou-se aí o melhor que pôde.
O prêto acendeu então um rôlo de cêra e, sem mais demoras, Loaysa pegou a
guitarra e, tocando-a baixinho e suavemente, arrebatou de tal maneira o pobre
discípulo que o pôs fora de si. Tendo tocado um pouco, foi buscar as provisões
e Luís bebeu do odre com tanto gôsto que ficou mais fora de si ainda. Ordenoulhe Loaysa, em seguida, que tomasse sua lição e, como o pobre negro tinha
quatro dedos de vinho na cabeça, não acertava um só ponto; apesar disso,
Loaysa convenceu-o de que já sabia pelo menos duas modinhas; e o melhor era
que o negro acreditava e tôda noite não fêz outra coisa senão tocar a guitarra
desafinada e à qual faltavam algumas cordas.
Dormiram ambos as poucas horas que lhes restavam da noite, e, por volta
das 6 horas da manhã, Carrizales desceu e abriu a porta do meio e também a da
rua; estêve esperando o despenseiro, que veio dali a pouco, deu a comida pela
roda e foi-se embora. Carrizales chamou então o negro, a fim de que viesse
pegar a cevada para a mula e sua própria comida; depois, foi-se o velho,
deixando bem fechadas ambas as portas, sem dar pelo que se fizera na da rua, o
que muito alegrou ao mestre e ao discípulo.
Apenas o amo saiu de casa, o negro pegou a guitarra e começou a tocar de
tal maneira que tôdas as criadas o ouviram e, pela roda, perguntaram-lhe:
- Que é isto, Luís? Desde quando tens guitarra e quem te deu?
- Quem deu? - respondeu Luís. - O melhor músico que há no mundo e o
que há de me ensinar, em menos de seis dias, mais de 6.000 modas.
- E onde está êsse músico? - perguntou a aia.
- Não está muito longe daqui - respondeu o negro. - E, se não fôsse por
vergonha e pelo mêdo que tenho de meu senhor, talvez eu vos pudesse mostrálo e, por minha fé, folgaríeis em vê-lo.
- E onde pode êle estar e como poderemos vê-lo - replicou a aia -, se nesta
casa jamais entrou outro homem que não fôsse nosso amo?
- Pois bem - disse o negro -, não vos quero dizer mais nada até que vos
prove o que sei e o que êle me vai ensinar.
- Por certo - disse a aia -, que, se não é algum demônio, não sei quem possa
fazer-te músico em tão pouco tempo.
- Vamos - tornou o negro -, que ouvireis e vereis algum dia o que vos digo.
- Isto não pode ser - disse uma das criadas -, porque não temos janelas
para a rua e não nos é possível ver nem ouvir ninguém.
- Está certo - disse o negro -, mas para tudo há remédio, a não ser para a
morte; sobretudo, se souberdes ou quiserdes guardar segrêdo.
- E não havíamos de nos calar, irmão Luís? - falou uma das escravas. Calaremos mais do que se fôssemos mudas, pois juro, amigo, que sou doida
para ouvir uma boa voz; porque, desde que aqui nos emparedaram, não temos
ouvido nem mesmo o canto dos pássaros.
Loaysa escutava esta conversa com enorme satisfação, parecendo-lhe que
tôdas as coisas se encaminhavam para a realização de seus desejos e que a boa
sorte se havia encarregado de guiá-las segundo sua vontade. As criadas
despediram-se, prometendo-lhes o negro que, quando menos pensassem,
haveria de chamá-las para ouvir uma linda voz; e, com mêdo de que o amo
voltasse e o encontrasse conversando com elas, deixou-as e recolheu-se ao seu
quarto. Queria tomar lição, mas não se atreveu a tocar de dia, temendo que o
amo o ouvisse; êste voltou daí a pouco e, fechando as portas segundo o seu
costume, trancou-se em casa. Quando, naquele dia, uma negra veio à roda
trazer a comida de Luís, disse-lhe ele que, à noite, depois que o amo dormisse,
descessem tôdas ali, a fim de ouvirem a voz da qual lhes falara. A verdade é
que, antes de dizer isso, pedira insistentemente ao mestre que fizesse o favor de
cantar e tocar, naquela noite, ao pé da roda, a fim de que ele pudesse cumprir a
promessa que fizera às criadas de fazê-las ouvir uma belíssima voz,
assegurando-lhe que seria muito presenteado por tôdas elas.
Loaysa fez-se um pouco de rogado para fazer o que tanto desejava; mas,
por fim, disse que faria o que seu bom discípulo estava a lhe pedir, só para lhe
dar prazer e sem ter qualquer outro interêsse. O negro abraçou-o e deu-lhe um
beijo na bochecha, em sinal da alegria que lhe havia causado o favor prometido,
e, naquele dia, Loaysa comeu tão bem como se estivesse em sua própria casa, e
talvez melhor.
Chegou a noite e na metade dela, ou talvez pouco antes, ouviu-se
cochichar perto do tôrno; Luís entendeu logo que eram as mulheres que tinham
chegado e, chamando seu mestre, desceram ambos do palheiro com a guitarra
encordoada de nôvo e muito bem afinada. Luís perguntou então quem e
quantas eram as que escutavam. Responderam-lhe que eram tôdas, menos a
senhora, que dormia ao lado do marido, o que contrariou Loaysa; mas, apesar
disso, quis dar início à sua empresa e contentar o discípulo; tocando
suavemente a guitarra, tirou tais sons que deixou o negro admirado e
arrebatado o grupo de mulheres que o escutava. Mas que direi eu do que elas
sentiram quando o ouviram tocar o Pésame de Ello e acabar com o endiabrado
som de uma sarabanda, completamente nova, naquela época, na Espanha? Não
ficou uma velha sem bailar, nem houve môça que não se desconjurasse, tudo
em meio de um estranho silêncio e sempre com espião e sentinelas para
espreitar se o velho acordava. Loaysa também cantou umas coplas da Seguida,
levando ao máximo o prazer do auditório, que pediu encarecidamente ao negro
para dizer-lhe o nome de tão milagroso músico. Disse-lhe o negro que era um
pobre mendigo, o mais desembaraçado e gentil homem que havia em tôda a
pobreza de Sevilha. Pediram-lhe então que descobrisse maneira de elas
poderem vê-lo e que não o deixassem partir, pelo menos durante quinze dias,
pois o presenteariam muito e lhe dariam tudo o que precisasse. Perguntaramlhe como conseguira metê-lo em casa. Luís nada lhes respondeu; quanto ao
resto, disse-lhes que, para poder vê-lo, deveriam fazer um pequeno buraco na
roda, que depois o tapariam com cêra, e, a respeito de segurá-lo em casa,
prometeu que tudo faria.
Loaysa falou-lhes também, oferecendo-lhes seus préstimos com tão lindas
palavras, que logo perceberam não virem elas do talento de um simples
mendigo. Pediram-lhe que voltasse na noite seguinte, porque tratariam de
convencer sua senhora a vir escutá-lo, apesar do sono do amo, leve não pelos
seus muitos anos e sim pela fôrça do ciúme. Loaysa respondeu que, se elas
gostassem de ouvi-lo sem aquêle sobressalto, lhes daria uns pós para deitarem
no vinho do velho e que o fariam dormir um sono pesado e mais longo que de
costume.
- Valha-me Deus! - exclamou uma das donzelas. - Se isso fôsse verdade,
que grande ventura nos teria entrado pela porta adentro, sem darmos por isso e
sem o merecermos! Não seriam êsses pós de sono para êle, e sim de vida para
tôdas nós e para minha pobre senhora Leonora, sua mulher, pois não a larga
nem ao sol nem à sombra, nem a perde de vista um só momento. Ai, meu rico
senhor! Traga êsses pós e Deus lhe dê em troca todo o bem que deseja! Vá e não
demore; traga-os, meu senhor, que eu me ofereço para misturá-los no vinho e
servi-lo; e tomara Deus que o velho dormisse três dias e três noites, que outros
tantos teríamos nós de glória!
- Pois eu os trarei - disse Loaysa. - E são de tal espécie que não fazem mal a
quem os toma e seu único efeito é provocar um sono pesadíssimo.
Pediram-lhe tôdas que trouxesse os pós quanto antes e, combinando fazer
para a noite seguinte um buraco na roda com uma verruma e trazer sua senhora
para que o visse e ouvisse, despediram-se; o negro, embora fôsse quase de
madrugada, quis tomar lição, que Loaysa lhe deu de boa vontade, e deu-lhe a
entender que não havia encontrado melhor ouvido que o seu entre todos os
discípulos que tinha; e não sabia o pobre negro, nem jamais o soube, entoar um
só compasso de música!
Os amigos de Loaysa tinham o cuidado de vir à noite escutar por entre as
portas da rua, a ver se o amigo lhes dizia algo ou precisava de alguma coisa;
naquela noite, fazendo um sinal que tinham combinado, percebeu Loaysa que
estavam à porta e pelo buraco da fechadura deu-lhes conta do bom andamento
do negócio, pedindo-lhes encarecidamente que buscassem alguma droga para
provocar sono, a fim de dá-la a Carrizales, pois ouvira dizer que existia certo pó
que produzia tal efeito. Disseram-lhe que tinham um médico que poderia darlhes o melhor remédio que conhecesse, se é que tal remédio existia; animando-o
a prosseguir na emprêsa e prometendo-lhe voltar na noite seguinte, em breve se
despediram.
Chegou a noite e o bando das pombas acudiu ao chamado da guitarra.
Com elas veio a ingênua Leonora, temerosa e receando que o marido acordasse;
subjugada pelo temor, não queria vir, mas as criadas, sobretudo a aia, disseramlhe da suavidade da música e do grande talento do cantor mendigo, que,
embora não o tivessem visto, exaltavam mais do que a Absalão e Orfeu, e a
pobre senhora, convencida e persuadida pelo que elas diziam, viu-se arrastada
a fazer o que não tinha nem nunca tivera vontade. O primeiro cuidado das
mulheres foi abrir um furo na roda com a verruma, por onde pudessem ver o
músico, que não se encontrava mais em trajes de mendigo e sim com amplos
calções de fina sêda avermelhada, à marinheira, um gibão do mesmo tom com
enfeites de ouro em trançado, gorro de cetim da mesma côr e gola engomada
com grandes pontas e rendas, que tudo isso trouxera nos alforjes, imaginando
que se havia de ver em ocasião que lhe conviesse mudar de roupa.
Era jovem de gentil aspecto e bem parecido e, como havia tanto tempo que
tôdas aquelas mulheres estavam acostumadas a ver diante de si o velho amo e
senhor, ao verem Loaysa, pareceu-lhes ter diante de si um anjo. Espreitava uma
pelo buraco feito na roda, e logo outra; e, para que o pudessem ver melhor, o
negro levantava e abaixava em volta dêle o rôlo de cêra aceso.
E, depois que tôdas o viram bem, até as escravas negras, Loaysa pegou a
guitarra, tocou e cantou naquela noite tão bem que acabou deixando-as
suspensas e atônitas, tanto as velhas como as môças, e tôdas pediram a Luís
para achar um jeito de o senhor seu mestre entrar na casa, a fim de que
pudessem ouvi-lo e vê-lo de mais perto e não de qualquer maneira como pelo
buraco, nem com o sobressalto em que estavam ao encontrarem-se tão longe do
lugar onde o amo dormia e sujeitas a serem apanhadas em flagrante, o que não
poderia acontecer se tivessem o músico escondido dentro de casa.
Leonora opôs-se a isto com ardor, dizendo que não se fizesse tal coisa,
porque lhe pesaria na alma, e que assim estava bem, pois dali podia ver e ouvir
sossegadamente e sem perigo para sua honra.
- Que honra? - disse a velha. - Isso de honra é lá com o rei! Fique Vossa
Mercê fechada com seu Matusalém, mas deixe-nos folgar como pudermos.
Tanto mais que êste senhor parece tão honrado que certamente nada quererá de
nós além do que quisermos.
- Eu, minhas senhoras - acudiu Loaysa -, vim aqui trazido apenas pelo
desejo de servir a Vossas Mercês, com tôda minha alma e vida, condoído de
vossa clausura e do tempo que perdeis nesta espécie de vida. Sou, juro pela
vida de meu pai, homem tão simples, tão manso, de tão bom gênio e tão
obediente que nada farei senão o que mandardes. E se qualquer de Vossas
Mercês disser: “Mestre, sentai-vos aqui; mestre, passai para ali, chegai-vos cá,
ide para acolá”, assim farei, como o cão mais manso e bem ensinado que salta
pelo rei da França.
- Se fôr assim - disse a inocente Leonora -, que meio haveremos de arranjar
para que o senhor mestre entre em casa?
- Bom - disse Loaysa -, Vossas Mercês procurarão um jeito de tirar em cêra
o molde da chave desta porta do meio e eu me encarregarei de arranjar as
coisas, de modo que, amanhã à noite, tenhamos outra chave que nos possa
servir.
- Quem tiver essa chave - disse uma criada -, tem as da casa tôda, porque é
chave-mestra.
- Não vejo nisso nenhum inconveniente - replicou Loaysa - De certo - disse
Leonora -, mas êste senhor há de jurar primeiro que, depois de estar aqui
dentro, nada fará senão cantar e tocar quando lhe pedirem, e que há de se
manter fechado quietinho onde o pusermos.
- Sim, juro - disse Loaysa.
- Nada vale êsse juramento - respondeu Leonora. - Há de jurar pela vida
de seu pai, há de jurar pela cruz e beijá-la de modo que tôdas possamos ver.
- Juro pela vida de meu pai - disse Loaysa -, e por êste sinal-da-cruz que
beijo com minha bôca impura.
E, fazendo uma cruz com os dedos, beijou-a três vêzes.
Feito isso, disse outra das criadas:
- Olhe, senhor, não se esqueça dos pós, que são o mais importante de tudo.
Assim terminou a conversa daquela noite, ficando todos muito contentes
com estas combinações. E o destino, que ia encaminhando os negócios de
Loaysa cada vez melhor, trouxe àquelas horas, que já eram 2 da madrugada, os
amigos, que fizeram o sinal de costume: um toque de trompa de Paris; Loaysa
falou-lhes, prestando-lhes conta do que se passara, e perguntou-lhes se traziam
os pós, ou coisa semelhante, como havia pedido, para adormecer Carrizales;
contou-lhes também o caso da chave-mestra.
Responderam-lhe que, na noite seguinte, trariam um ungüento de tal
virtude que, untando-se com êle os pulsos e a fronte de qualquer pessoa, logo
provocava um sono tão profundo que não se podia despertar antes de dois dias,
a não ser que se lavasse, com vinagre, as partes untadas; que lhes desse o molde
da chave, pois também a mandariam fazer com facilidade. Com isto,
despediram-se; Loaysa e seu discípulo dormiram o pouco tempo que lhes
restava da noite, esperando Loaysa ansiosamente pela noite seguinte, desejoso
de saber se as mulheres cumpririam o que, a respeito da chave, tinham-lhe
prometido. E, embora o tempo pareça lento e preguiçoso aos que esperam,
corre, na verdade, junto ao próprio pensamento, e depressa chega ao término,
porque não pára nem descansa.
Chegou, pois, a noite e a hora costumeira da reunião na roda, onde
acudiram tôdas as criadas da casa, grandes e pequenas, negras e brancas,
porque estavam tôdas desejosas de ver, dentro de seu serralho, o senhor
músico; mas Leonora não apareceu e, perguntando Loaysa por ela,
responderam-lhe que estava deitada com sua sentinela, que fechava a porta do
quarto a chave e, depois de a ter fechado, colocava debaixo do travesseiro, e que
a senhora lhes havia dito que, adormecido o velho, procuraria tirar-lhe a chavemestra para fazer-lhe o molde, que já tinha a cêra preparada e que dali a pouco
haviam de ir buscá-la na gateira da porta.
Loaysa ficou admirado com as precauções do velho; mas nem por isso
desistiu de seu propósito e, estando as coisas neste pé, ouviu a trompa de Paris.
Correu à porta e, pela abertura da soleira, deram-lhe os amigos um frasquinho
do tal ungüento de que lhe haviam falado; Loaysa pegou-o e disse-lhes para
esperarem um pouco, que lhes daria o molde da chave; voltou para a roda e
disse à aia, que era a que se mostrava mais empenhada em fazê-lo entrar em
casa, que levasse aquêle frasco à Senhora Leonora, explicando-lhe a
propriedade do ungüento, e que procurasse untar o marido com tal jeito que êle
não o sentisse, que veria aí maravilhas. A aia assim fêz e, chegando-se à gateira,
encontrou Leonora estendida no chão e com o rosto na abertura.
Estendendo-se a aia, da mesma maneira, do lado de fora, chegou a bôca ao
ouvido de sua senhora e disse-lhe baixinho que trazia o ungüento, explicandolhe como deveria servir-se dêle.
Ela pegou o frasco e respondeu que não pudera, demaneira alguma, tirar a
chave do marido, porque êle não a guardara debaixo do travesseiro, como de
costume, e sim entre os colchões, quase debaixo de seu corpo; mas dissesse
porém ao mestre que, se o ungüento tinha a virtude que êle atribuía, tiraria,
com facilidade, a chave tôdas as vêzes que quisessem e, assim, não seria
necessário moldá-la na cêra. Recomendou-lhe que, sem demora, fôsse dar êste
recado e voltasse para ver o efeito que o ungüento produzia, porque pensava
untar, no mesmo instante, o marido.
A aia desceu e deu o recado a Loaysa; êle despediu os amigos que
esperavam pela chave. Trêmula, hesitante e quase sem se atrever a respirar,
Leonora untou os pulsos do marido e também as narinas; quando as tocou,
pareceu-lhe que êle estremecia e ela ficou meio morta de mêdo, pensando que
êle ia surpreendê-la em flagrante. Por fim, acabou lá, do melhor modo que
pôde, de untar tôdas as partes que lhe tinham dito ser necessário, e foi o mesmo
que se o tivesse embalsamado para a sepultura.
Pouco tardou o afamado ungüento em dar claros sinais de sua eficácia,
porque o velho começou logo a soltar roncos tão fortes que podiam ser ouvidos
da rua; mas êste profundo ressonar, aos ouvidos da espôsa, era como se fôsse
música mais afinada que a do mestre de seu escravo negro; e, ainda mal
convencida do que via, chegou-se a êle, sacudindo-o um pouco, e depois com
mais fôrça, para ver se o despertava; atreveu-se a tanto que chegou a virá-lo na
cama completamente, sem que o velho despertasse. Assim que verificou isto, foi
à gateira da porta e, em voz baixa, chamou a aia que ali a estava esperando,
dizendo-lhe:
- Podes felicitar-me, irmã, que Carrizales dorme melhor que um morto.
- Pois o que esperais para lhe tirar a chave, senhora? perguntou a aia. Lembrai-vos de que o músico espera há mais de uma hora.
- Espera, irmã, que já vou buscá-la - respondeu Leonora E, voltando para
junto da cama, meteu a mão por entre os colchões e tirou a chave sem que o
velho percebesse; tomando-a nas mãos, começou a saltar de alegria e, sem mais
esperar, abriu a porta e deu a chave à aia, que a recebeu com a maior alegria do
mundo. Leonora ordenou-lhe que abrisse a porta ao músico e o trouxesse para
os corredores, pois ela não ousava sair dali receando pelo que pudesse
acontecer; mas que, antes de mais nada, obrigasse o músico a ratificar seu
juramento de fazer apenas o que elas lhe ordenassem e, se êle não o quisesse
confirmar fazendo-o de nôvo, que não lhe abrisse a porta de maneira alguma.
- Assim será - disse a aia -, e por minha fé que não há de entrar se não jurar
e não tornar a jurar e beijar a cruz seis vêzes.
- Não lhe imponhas a quantia - disse Leonora -, que êle a beije lá quantas
vêzes quiser; exige, porém, que jure pela vida de seus pais e de tudo o que mais
estima, porque com isto estaremos seguras e nos fartaremos de ouvi-lo cantar e
tocar, pois no meu entender o faz maravilhosamente. E vai, não te demores
mais, para que não gastemos a noite em conversa.
Arregaçando as saias, a velha, com ligeireza nunca vista, correu para a
roda onde estava reunida tôda a gente da casa e, mostrando a chave a todos, o
contentamento geral foi tanto que a ergueram em triunfo, como se ela fôsse um
catedrático: “Viva! viva!”, ainda mais quando lhes disse que não havia
necessidade de tirar o molde da chave porque, enquanto o velho untado
dormia, podiam aproveitar bem da casa, tôdas as vêzes que quisessem.
- Pois então, amiga - disse uma das môças -, abra-se a porta e entre êste
senhor, que há muito tempo espera, e vamos lá ouvir música até dizer chega!
- Mas - replicou a aia - antes de entrar há de fazer juramento como na noite
passada.
- Ele é tão bom - disse uma das escravas - que não reparará em juramentos.
A aia abriu então um pouquinho a porta e, conservando-a entreaberta,
chamou Loaysa, que tudo havia escutado pelo buraco da roda e que,
aproximando-se da porta, quis entrar de repente; mas a aia, pondo-lhe a mão no
peito, disse-lhe:
- Saiba Vossa Mercê, meu senhor, que, perante Deus e perante minha
consciência, digo-lhe que tôdas as que se encontram dessa porta para dentro
somos tôdas virgens como as mães que nos pariram, exceto minha senhora; e
eu, ainda que pareça ter uns quarenta anos, embora não tenha nem trinta ainda,
pois faltam-lhe dois meses e meio, também o sou, infelizmente; se pareço velha
é porque fadigas, trabalhos e desgostos acrescentam um zero ao número dos
anos e às vêzes dois, conforme lhes apraz.
E, sendo assim, como é, não haveria razão para que, em troca de duas, ou
três, ou quatro cantigas, deitássemos a perder tanta virgindade como a que aqui
se encerra; porque até esta preta, que se chama Guiomar, também é virgem. De
modo que, meu prezado senhor, Vossa Mercê tem, antes de entrar em nosso
reino, que fazer primeiro o juramento solene de que nada fará além do que lhe
ordenarmos; se lhe parece muito o que lhe pedimos, considere que arriscamos
muito mais por sua causa.
E, se é que Vossa Mercê vem com boas intenções, pouco lhe há de custar o
juramento, que nada custam ao bom pagador as promessas.
- Muito bem e mais do que bem falou a Senhora Marialonso - disse uma
das criadas. - Enfim, falou como pessoa previdente e que vê as coisas como
devem ser; se o senhor não quiser jurar é melhor não vir cá para dentro.
A preta Guiomar, que não era muito ladina, disse:
- Por mim, jure ou não jure, entre com mil diabos, porque; por mais que
jure, ao entrar, acaba esquecendo tudo.
Loaysa ouviu com grande sossêgo a arenga da Senhora Marialonso e, com
grave pausa e autoridade, respondeu:
- Sem dúvida, senhoras minhas irmãs e companheiras, nunca tive outra
intenção, nem terei, senão a de vos dar gôsto e satisfazer-vos em tudo a quanto
cheguem minhas fôrças; e, sendo assim, o juramento que me pedem não será
nenhum sacrifício quisera, porém, que minha palavra merecesse alguma
confiança porque, sendo dada por pessoa de minha honestidade, é tão sagrada
como a obrigação de uma penitência de quaresma; É preciso fazer com que
Vossa Mercê saiba que debaixo de ruim capa esconde-se o bom bebedor. Mas,
para que tôdas estejam tranqüilas e certas de minhas boas intenções, tomo a
resolução de jurar como católico e homem de bem; e, assim, juro pela
intemerata eficácia, onde mais santa e largamente se encerra, pelas entradas e
saídas do santo monte Líbano e por tudo quanto em seu prefácio contém a
verdadeira história de Carlos Magno com a morte do gigante Ferrabrás, de não
sair nem ir além do juramento feito e das ordens que a mais humilde e
mesquinha destas senhoras me der, sob pena, se outra coisa fizer ou quiser
fazer, desde agora para então e desde então para agora, de dá-lo por nulo e não
feito, nem válido.
Chegara o bom Loaysa a êste ponto do seu juramento, quando uma das
duas criadas, que o estivera escutando com atenção, levantou a voz dizendo:
- Isto sim é que é um juramento de enternecer as pedras Faria muito mal
se exigisse que jurasses mais, pois com o que juraste poderias entrar na própria
caverna da Cabra!
E, fazendo outras exclamações, meteu-o dentro de casa e tôdas as outras
juntaram-se ao redor dêle. Uma foi logo dar a notícia à senhora, que estava de
sentinela ao sono do marido, e, quando a mensageira lhe disse que o músico
vinha subindo, Leonora alegrou-se e perturbou-se ao mesmo tempo e
perguntou se êle havia jurado. A outra respondeu-lhe que sim e com um
juramento que nunca ouvira em sua vida.
- Pois se jurou - disse Leonora - está prêso. Como fui prudente em obrigálo a jurar!
Nisto chegou a turma tôda com o músico no meio, álumiados pelo negro e
pela negra Guiomar. Apenas Loaysa viu Leonora, fêz menção de atirar-se-lhe
aos pés para beijar-lhe as mãos Ela, calada, fêz com que êle se levantasse, por
sinais, e tôdas estavam como se fôssem mudas, sem se atreverem a falar, com
mêdo de que seu senhor as ouvisse; Loaysa, porém, percebendo êste cuidado,
disse-lhes que podiam falar bem alto, pois o ungüento com que estava untado
seu senhor tinha tal virtude que, embora não tirasse a vida, deixava um homem
como morto.
- Estou certa disso - disse Leonora -, pois, se assim não fôsse, êle já teria
acordado vinte vêzes, porque seus muitos achaques tornam-lhe o sono muito
leve; e, depois que o untei, está roncando como um animal.
- Pois, sendo assim - disse a aia -, vamos para aquela sala fronteira, onde
poderemos ouvir cantar aqui êste senhor e nos alegrarmos um pouco.
- Vamos - disse Leonora -, mas que Guiomar fique aqui de guarda, para
que nos avise se Carrizales despertar.
Guiomar respondeu:
- Eu, preta, fico; brancas, vão. Que Deus perdoe a tôdas.
Ficou a negra de guarda; os outros foram para a sala, onde havia um rico
estrado, e, colocando o músico no centro, sentaram-se tôdas. Pegando
Marialonso uma vela, começou a olhar o bom do músico de alto a baixo, e uma
dizia: “Que lindo topête êle tem, tão lindo e tão ondeado!” E outra: “E que
brancura de dentes! Mau ano será êste para pinhões pilados, que não os haverá
mais brancos nem mais lindos!” Outra: “Ai, que olhos tão grandes e tão
rasgados! E, por minha mãe, são verdes, parecem duas esmeraldas!” Esta
louvava a bôca, aquela os pés e tôdas juntas fizeram dêle um minucioso estudo
anatômico e uma cabidela. Só Leonora olhava para êle em silêncio e,
examinando-o, achava que tinha melhor aspecto que o marido. Nisto a aia tirou
a guitarra das mãos do negro e a colocou nas mãos de Loaysa, pedindo-lhe que
cantasse umas coplazinhas, que andavam então muito em moda em Sevilha e
que diziam:
Mãe, querida mãe, Protegei-me..
Loaysa satisfez-lhe o desejo. Levantaram-se tôdas e começaram a
requebrar-se, dançando. A aia sabia as coplas e cantou-as com mais entusiasmo
do que com boa voz, e foram estas:
Mãe, querida mãe,
Protegei-me,
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Dizem que está escrito,
E com grande razão,
Ser a privação
A causa do apetite;
Aumenta sem limite
O recalcado amor;
Por isso é melhor
Que não me fecheis;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Se a vontade
Por si não se guarda,
Não a poderão guardar
O mêdo e a posição;
Romperá, na verdade,
Com a própria morte,
Até encontrar a sorte
Que vós não entendeis;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Quem tem por costume
O ser amorosa,
Como maripôsa
Irá procurar a luz,
Podem guardá-la
Com mil cuidados,
Que tudo isto
Não traz resultados;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
É de tal modo
A fôrça amorosa,
Que a môça formosa
Transforma em quimera:
O peito é de cêra,
De fogo o desejo,
As mãos são de lã,
De fêltro os pés;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Apenas tinham elas acabado de cantar e dançar esta canção, dirigida pela
velha aia, quando chegou Guiomar, a sentinela, agitada, gesticulando com os
pés e com as mãos, como se tivesse um ataque de epilepsia, e, com voz rouca e
sumida, disse:
- Senhor acordado, senhora; e, senhora, acordado senhor, e levanta-se e
vem!
Quem já viu um bando de pombas comendo no campo, sem recear, o que
mãos alheias semearam, e que ao furioso estrépido de um tiro se alvoroça e
levanta, esquecido de seu regalo, confuso e atônito cruza os ares, pode imaginar
em que estado ficou o bando das bailadoras, pasmadas e temerosas, ao ouvirem
a inesperada notícia trazida por Guiomar; e, procurando cada uma sua
desculpa e tôdas juntas o remédio, uma por um lado, outra por outro, foram
esconder-se por entre os vãos e recantos da casa, deixando o músico, que,
largando a guitarra e o canto, todo atrapalhado, não sabia o que fazer. Leonora
torcia suas formosas mãos; esbofeteava o rosto, embora brandamente, a Senhora
Marialonso; enfim, tudo era confusão, sobressalto e mêdo.
Mas a aia, que era a mais astuta e moderada de tôdas, mandou Loaysa
entrar em seu aposento, resolvendo que ela e sua senhora permaneceriam na
sala, pois achariam fàcilmente qualquer desculpa a dar ao senhor se êle ali as
encontrasse. Escondeu-se logo Loaysa e a aia permaneceu atenta a ver se o amo
aparecia e, não ouvindo rumor algum, recobrou o ânimo e, pouco a pouco, pé
ante pé, foi chegando ao aposento onde dormia seu senhor e ouviu-o ressonar
fortemente; assegurando-se de que êle dormia, arregaçou as saias e voltou
correndo a pedir alvíssaras a Leonora do sono de seu amo, alvíssaras que
Leonora lhe deu de muito boa vontade.
Não quis, porém, a velha aia perder a ocasião que a sorte lhe oferecia de
gozar, antes de tôdas, dos encantos que imaginava no músico; e assim, dizendo
a Leonora que a esperasse na sala enquanto ela ia chamá-lo, deixou-a e entrou
onde êle estava, confuso e pensativo, esperando para saber o que fazia o velho
untado; maldizia a falsidade do ungüento e queixava-se da credulidade dos
amigos e da imprudência que tivera, não fazendo primeiro a experiência em
outra pessoa antes de fazê-la em Carrizales. Nisto chegou a aia e assegurou-lhe
que o velho dormia mais e melhor. Acalmou-se, então, Loaysa, e permaneceu
atento às inúmeras palavras amorosas que Marialonso lhe disse, apurando
delas sua má intenção, e determinou servir-se dela como isca para pescar sua
senhora. Estando os dois nesta conversa, as demais criadas, que se haviam
escondido em diversas partes da casa, uma aqui, outra ali, voltaram para ver se
era verdade que o amo havia despertado e, perguntando pelo músico e pela aia,
souberam onde êles estavam, e tôdas, com o mesmo silêncio em que haviam
entrado, chegaram-se às portas para escutar o que ambos diziam.
Guiomar também se uniu ao grupo, mas faltava o negro, porque, apenas
soube que o amo havia despertado, abraçou-se à guitarra e fugiu para o
palheiro; aí, coberto com a manta de sua pobre cama, suava e transpirava de
mêdo; mas, apesar de tudo isso, não deixava de apalpar as cordas da guitarra,
tanta era - que o diabo a carregue! - a afeição que tinha pela música. As criadas
ouviram os galanteios da velha e cada uma lhe disse um elogio; nenhuma lhe
chamou, velha sem acrescentar um epíteto ou adjetivo, de feiticeira e barbuda,
de entojada e de outras coisas, que por decôro não se escrevem; porém, o que
mais causaria riso a quem as escutasse seriam as razões da preta Guiomar, que,
por ser portuguêsa e não muito ladina, injuriava a aia da mais singular e
engraçada maneira. Enquanto isso, os dois lá dentro chegaram à seguinte
conclusão: Loaysa obedeceria à vontade de Marialonso se ela lhe entregasse
primeiro sua senhora.
Foi muito difícil para a aia aceder ao que o músico pedia;
mas, vendo que só assim conseguiria satisfazer o desejo que já se lhe
apoderara da alma, dos ossos e da medula do corpo, prometeu-lhe as coisas
mais impossíveis que se podem imaginar.
Deixou-o e saiu para falar com sua senhora; assim que viu a porta rodeada
de tôdas as criadas, disse-lhes que se recolhessem a seus aposentos, pois na
noite seguinte teriam oportunidade de gozar das músicas, com menos ou
nenhum sobressalto, pois naquela noite o susto havia-lhes tirado a vontade de
se divertirem.
Compreenderam muito bem que a velha queria ficar só, mas não puderam
deixar de obedecer-lhe, porque era grande sua autoridade. As criadas saíram e
Marialonso foi para a sala falar com Leonora e persuadi-la a ceder à vontade de
Loaysa, e o fêz com tão longa e habilidosa arenga, que parecia ter levado muitos
dias para estudá-la. Elogiou a gentileza, o valor, a graça e os inúmeros encantos
do músico; descreveu-lhe com eloqüência o maior gôsto que lhe dariam os
abraços do amante jovem que os do marido velho, tranqüilizando-a sôbre o
segrêdo e a duração de sua felicidade, com outras razões semelhantes a estas,
que o demônio lhe pôs na língua, cheias de côres de retórica, tão
demonstrativas e eficazes, que moveram o coração terno e inexperiente da
ingênua e incauta Leonora, como teriam movido o mais endurecido mármore.
Ó velhas aias, nascidas e utilizadas no mundo para a perdição de mil intenções
boas e recatadas! Ó longas e pregueadas toucas, escolhidas para assegurar a
respeitabilidade das salas e estrados, onde tomam lugar senhoras importantes,
e como servis tão ao contrário do que devíeis o vosso quase indispensável
ofício! Enfim, tantas coisas disse a aia, tão bem soube persuadir, que Leonora
rendeu-se, Leonora enganou-se, Leonora perdeu-se, atirando por terra tôdas as
precauções do prudente Carrizales, que dormia o sono da morte de sua honra.
Marialonso levou pela mão e quase à fôrça a sua senhora, com os olhos
cheios de lágrimas, e conduziu-a para onde estava Loaysa, e, deitando-lhes a
bênção com um sorriso falso de demônio, fechou a porta, deixou-os lá dentro e
pôs-se a dormir no estrado, ou, para melhor dizer, a esperar a recompensa de
seu trabalho. Mas, como o cansaço das noites passadas a vencesse, adormeceu
realmente no estrado.
Seria muito bom, a estas alturas, perguntar a Carrizales, se não
soubéssemos que êle dormia, onde estavam seus prudentes cuidados, seus
receios, suas advertências, suas persuasões, os altos muros de sua casa, o não
haver entrado nela, nem por sombra, alguém que fôsse do sexo masculino; a
roda estreita, as grossas paredes, as janelas sem luz, a notável prisão, o grande
dote que dera a Leonora, os contínuos presentes que lhe dava, o bom
tratamento que dispensava às criadas e escravas, o não faltar, em nada, tudo
aquilo que imaginava ser-lhes necessário ou que podiam desejar. Contudo, já
ficou dito que de nada serviria perguntar-lhe, porque dormia além do
necessário; e, se êle ouvisse e por acaso respondesse, não poderia dar melhor
resposta que encolher os ombros, arquear as sobrancelhas e dizer: “Tudo isso
derrubou pela base a astúcia, segundo creio, de um rapaz folgazão e cheio de
vícios, a malícia de uma velha falsa, a inadvertência de uma jovem persuadida e
enganada!” Que Deus livre a todos de tais inimigos, contra os quais não há
escudo de prudência, nem espada de recato, que nos defenda e nos livre.
Com tudo isto, porém, a virtude de Leonora foi tal que, na hora em que
precisava dela, não lhe faltou, e opôs-se às fôrças vis de seu astuto enganador,
que não foram suficientes para vencê-la; cansou-se êle em vão, ela saiu
vencedora e ambos dormiram. Nisto ordenou o céu que, apesar do ungüento,
Carrizales despertasse e, como era de costume, passou a mão pela cama; não
encontrando nela sua querida espôsa, saltou do leito apavorado e atônito, com
mais ligeireza e denôdo que sua avançada idade poderia permitir; quando não
encontrou sua espôsa no aposento e deu com a porta aberta pela falta da chave
entre os colchões, pensou que fôsse perder o juízo; mas, dominando-se um
pouco, saiu para o corredor; dali, andando pé ante pé, a fim de não ser
pressentido, chegando à sala onde a velha dormia e vendo-a só, sem Leonora,
foi ao aposento da aia; abrindo a porta devagarinho, viu o que nunca quisera ter
visto, viu o que daria os olhos para não ver: viu Leonora nos braços de Loaysa,
dormindo ambos a sono sôlto, como se a virtude do ungüento, produzisse nêles
seu efeito e não no ciumento velho.
O coração de Carrizales deixou de bater à vista de tão amarga cena; a voz
morreu-lhe na garganta, os braços caíram sem fôrça e êle permaneceu como
estátua de mármore frio; e, embora a cólera produzisse seu natural efeito,
avivando-lhe as fôrças quase perdidas, foi tão grande sua dor que não o deixou
tomar alento. E, com tudo isso, poria em prática a vingança que aquela grande
afronta exigia, se naquele instante estivesse com armas; determinou então
voltar ao aposento para buscar um punhal e voltar para lavar as manchas de
sua honra com o sangue de seus dois inimigos e também com todo o sangue de
tôda a gente de sua casa. Com êste propósito honrado e necessário voltou, com
o mesmo silêncio e cautela, para seu aposento, onde a dor e a angústia
apertaram-lhe tanto o coração que, sem ânimo para coisa alguma, deixou-se cair
sem sentidos por sôbre o leito.
Amanheceu e o dia encontrou os dois amantes enlaçados na rêde de seus
braços. Marialonso despertou e quis reclamar o que, a seu ver, lhe pertencia;
vendo, porém, que era tarde, quis deixar para a noite seguinte. Inquietou-se
Leonora ao ver o sol tão alto e amaldiçoou seu descuido e o da maldita aia; e as
duas, com passos agitados, foram para onde estava Carrizales, rogando entre
dentes ao céu para o encontrarem ainda ressonando; quando o viram em cima
da cama, quieto, acreditaram que o ungüento ainda estivesse fazendo efeito,
pois dormia; abraçaram-se as duas com grande alegria. Leonora aproximou-se
do marido e, pegando-lhe em um braço, virou-o de um lado para outro, para
ver se despertava sem ser preciso esfregar-lhe as fontes com vinagre, como lhe
haviam dito ser necessário para êle voltar a si.
Mas, com o movimento, Carrizales voltou do desmaio e, dando um
profundo suspiro, disse, com uma voz lamentosa e sumida:
- Infeliz de mim! A que triste fim trouxe-me o destino.
Leonora não entendeu muito bem o que dizia o espôso, mas, vendo-o
acordado e falando, admirada de ver que a virtude do ungüento não durava
tanto como lhe haviam dito, chegou-se a êle, e, encostando o rosto ao seu,
abraçando-o estreitamente, perguntou-lhe:
- Que tendes, meu senhor? Parece-me que vos estais queixando?!
O desditoso velho ouviu a voz de sua doce inimiga e, abrindo os olhos
desmesuradamente, atônito e pasmado, fitou-a e, com grande insistência, sem
pestanejar, permaneceu olhando-a durante um bom tempo, ao fim do qual lhe
disse:
- Fazei o favor, minha senhora, de mandar chamar imediatamente vossos
pais, de minha parte, porque sinto não sei o que em meu coração que me causa
uma enorme fadiga, e receio que brevemente a vida me deixe; queria vê-los
antes de morrer.
Leonora acreditou, sem duvidar, no que o marido lhe dizia, não
imaginando o que êle havia visto, pensando que a violência do ungüento o
tivesse pôsto naquele estado; respondeu-lhe que faria o que êle ordenava;
enviou o prêto, no mesmo instante, para chamar os pais e, abraçando-se ao
espôso, fazia-lhe as maiores carícias que nunca lhe fizera, perguntando-lhe o
que sentia com palavras tão amorosas e ternas, como se êle fôsse o ente que
mais amava no mundo. Êle a olhava com espanto, como já se disse, sentindo
cada palavra ou carícia que ela lhe fazia como facadas que lhe atravessavam a
alma.
A aia havia já contado ao pessoal da casa e a Loaysa que seu amo estava
enfêrmo, acrescentando ainda que devia ser coisa repentina, pois esquecera-se
de mandar fechar as portas da rua, quando o negro saiu para chamar os pais de
sua senhora; admiraram-se todos também dessa embaixada, porque, desde o
casamento da filha, nenhum dêles havia entrado naquela casa.
Enfim, estavam todos calados e inquietos, sem acertarem com a
verdadeira causa da indisposição do amo, que, de quando em quando,
suspirava tão profunda e dolorosamente, que, a cada suspiro, parecia arrancarse-lhe a alma. Leonora chorava ao vê-lo assim e êle riá-se com um riso de
pessoa que estava fora de si, considerando a falsidade de suas lágrimas. Nisto
chegaram os pais de Leonora e, ao encontrarem a porta da casa e a do pátio
abertas, a casa sepultada em silêncio e como abandonada, ficaram admirados e
em grande sobressalto. Foram ao aposento do genro e encontraram-no, como já
se disse, com os olhos sempre cravados na espôsa, que retinha pelas mãos,
derramando ambos copiosas lágrimas; ela, pensando que não tornaria a ver seu
espôso, continuava a derramá-las; êle, por ver com que fingimento ela chorava.
Logo que os pais de Leonora entraram, Carrizales falou-lhes e disse-lhes:
- Sentem-se aqui Vossas Mercês e todos os outros retirem-se dêste
aposento; que fique apenas a Senhora Marialonso.
Obedeceram-lhe e, ficando os cinco a sós no quarto, sem esperar que
alguém falasse, com voz sossegada, enxugando os olhos, Carrizales assim falou:
- Estou bem certo, meus pais e senhores, que não será necessário trazervos testemunhas para que me acrediteis em uma verdade que vos quero dizer.
Deveis estar bem lembrados, pois não é possível que vos tenhais esquecido,
com quanto amor, com que afeto, faz hoje um ano, um mês e cinco dias e nove
horas que me destes vossa querida filha para minha legítima espôsa.
Sabeis também com que liberalidade lhe dei um dote, que chegaria para
mais de três noivas se casarem, com fama de ricas.
Deveis lembrar-vos também do cuidado com que a vesti e enfeitei com
tudo aquilo que ela desejou e que eu considerei que lhe convinha. Da mesma
forma, senhores, tendes visto como, levado pela minha condição de receoso do
mal de que, sem dúvida, hei de morrer, e cheio de experiência que me deram os
anos, dos estranhos e vários acontecimentos do mundo, quis guardar esta jóia,
que escolhi e que me destes, com a maior prudência que me foi possível:
levantei os muros desta casa, tirei a vista das janelas da rua, reforcei as
fechaduras das portas, pus-lhe uma roda, como as que existem nas portarias
dos conventos; desterrei dela perpetuamente tudo o que fôsse, sombra ou
nome, do sexo masculino; dei-lhe criadas e escravas que a servissem; nada lhes
neguei do que me pediram; tornei minha mulher minha igual; comuniquei-lhe
os meus mais secretos pensamentos; entreguei-lhe todos os meus bens. Tudo
isso, e bem o esperava, para que vivesse eu certo de desfrutar, sem sobressalto,
o que tanto me custou, e ela procurasse não me dar oportunidade a que
nenhuma espécie de ciúme entrasse em meu pensamento; mas como não se
pode, com esfôrço humano, evitar o castigo que a vontade divina quer dar
àqueles que nela não depositam inteiramente seus desejos e esperanças, não é
de se admirar que eu me veja frustrado em minhas esperanças e que eu próprio
tenha sido o fabricante do veneno que me vai tirando a vida. Contudo, porque
vejo como todos estais suspensos, presos às palavras de minha bôca, quero
encerrar os longos preâmbulos de minha conversa dizendo-vos numa palavra o
que não é possível dizer-se com milhares delas: Declaro, pois, senhores, que
tudo o que tenho dito e feito fêz com que achasse eu, nesta madrugada, a essa (e
apontou a espôsa), vinda ao mundo. para meu desassossêgo e fim de minha
vida, nos braços de um galhardo mancebo, que se encontra agora encerrado nos
aposentos desta pestilenta aia.
Mal acabou de pronunciar estas últimas palavras e Leonora, levando as
mãos ao coração, caiu desmaiada sôbre os joelhos do marido. Marialonso
perdeu a côr e na garganta dos pais de Leonora formou-se um nó, que não os
deixava dizer uma só palavra. Mas, prosseguindo, Carrizales disse:
- A vingança que penso tomar desta afronta não é nem há de ser das que
ordinàriamente se vêem em tais circunstâncias, pois quero que, assim como fui
extremado no que fiz, também o seja minha vingança, tomando-a de mim
próprio, como o maior culpado dêste delito, pois deveria eu considerar que mal
podiam contentar-se os quinze anos desta jovem com os quase oitenta que
tenho. E eu fui semelhante ao bicho-da-sêda, que faz a casa onde possa morrer;
não te culpo, pobre menina mal aconselhada! - e dizendo isto inclinou-se e
beijou o rosto de Leonora, que ainda estava sem sentidos. - Não te culpo, repito,
porque persuasões de velhas espertalhonas e galanteios de moços enamorados
fàcilmente vencem e triunfam o pouco engenho que os tenros anos encerram.
Mas, para que todo mundo veja a fôrça dos quilates do amor com que te quis,
neste último transe de minha vida quero mostrá-lo de modo que fique no
mundo como exemplo, senão de bondade, pelo menos de ternura jamais ouvida
nem vista; e, assim, quero que se traga logo um escrivão para fazer de nôvo
meu testamento, no qual mandarei dobrar o dote de Leonora e lhe pedirei que,
depois de acabados os meus dias, que serão muito breves, disponha-se a fazer o
que quiser, casando-se com aquêle môço a quem nunca ofenderam as cãs dêste
infeliz velho. E assim ela verá que, se enquanto vivo jamais fiz coisa alguma que
não fôsse de seu gôsto, à hora da morte faço o mesmo e quero que seja feliz com
quem ela deve querer tanto.
O resto de meus bens deixarei para as obras de caridade e a Vossas
Mercês, meus senhores, deixarei o suficiente para que possais viver de maneira
honrada até o fim de vossos dias.
Quero que o escrivão venha logo, pois a paixão que tenho em mim
atormenta-me de tal maneira que, de pouco em pouco, me vai encurtando os
passos da vida.
Mal disse isto, sobreveio-lhe um terrível desmaio e deixou-se cair tão perto
de Leonora que os dois rostos se juntaram. Estranho e triste espetáculo para os
pais que olhavam a querida filha e o amado genro! Não quis a maldosa aia
esperar pelas repreensões que os pais de Leonora lhe poderiam fazer e, assim,
saiu do aposento, foi contar a Loaysa tudo o que se passava, aconselhando-o a
ir-se daquela casa o mais depressa possível, que ela teria o cuidado de informálo, por intermédio do negro, de tudo o que acontecesse, pois já não havia portas
nem chaves que o impedissem. Loaysa admirou-se com estas notícias e,
aceitando o conselho, tornou a vestir-se como mendigo, e foi prestar contas a
seus amigos do estranho e imprevisto desenlace de seus amôres.
Enquanto Carrizales e Leonora estavam desmaiados, o pai desta mandou,
chamar um escrivão seu amigo, que chegou em tempo de encontrar os dois
esposos já despertos. Carrizales fêz o testamento da maneira que dissera, sem
declarar o êrro de Leonora, pedindo apenas, se êle morresse, que ela se casasse
com o jovem que êle lhe indicara em segrêdo. Quando ouviu isto, Leonora
atirou-se aos pés do marido e, com o coração aos saltos dentro do peito, disselhe:
- Vivei muitos anos, meu senhor e maior bem que tenho no mundo, pois,
embora não estejais obrigado a acreditar em coisa alguma do que vos direi,
sabei que não vos ofendi, senão com o pensamento.
E, começando a desculpar-se e a contar por extenso a verdade do caso, não
pôde mais falar e tornou a perder os sentidos. O desditoso velho abraçou-a
assim desmaiada; abraçaram-na os pais; todos choraram tão amargamente que
obrigaram o escrivão a acompanhá-los; o testamento de Carrizales deixara o
que comer para tôdas as criadas da casa, dava alforria às escravas e ao negro, à
falsa Marialonso nada mais deixou que o pagamento de seu salário; a dor do
velho foi apertando de tal maneira que, ao fim de sete dias, levaram-no à
sepultura.
Leonora ficou viúva, chorosa e rica; e quando Loaysa esperava que ela
cumprisse o que o marido lhe ordenara em seu testamento, viu que uma
semana depois ela tornou-se freira e entrou em um dos mais fechados
conventos da cidade. Êle, despeitado e quase corrido, partiu para as índias. Os
pais de Leonora ficaram tristíssimos, embora se consolassem com o que o genro
lhes havia deixado em seu testamento. As criadas consolaram-se com o mesmo,
as escravas e escravos, com a liberdade; a malvada aia ficou pobre e frustrada
em todos os seus maus pensamentos.
E eu fiquei com o desejo de chegar ao fim desta história, exemplo e
espelho da desconfiança que devemos ter em chaves, rodas e paredes, quando a
vontade permanece livre, e, do mesmo modo, da desconfiança que se deve ter
nos verdes e poucos anos, se lhes andam pelos ouvidos as exortações destas aias
de vestes negras e amplas, de toucas brancas e longas. Só não conheço a causa
de Leonora não se ter empenhado, com mais afinco, em desculpar-se e dar a
entender a seu marido ciumento quão limpa e sem ofensa saíra de tais
acontecimentos; mas a perturbação prendeu-lhe a língua e a pressa com que seu
marido morreu não permitiu que ela se desculpasse.
A espanhola inglesa
Entre os despojos que os inglêses levaram da cidade de Cádiz, um
cavalheiro inglês, Clotaldo, capitão da esquadra, levou para Londres uma
menina de uns sete anos mais ou menos, contra a vontade do Conde de Leste,
que, diligentemente, mandou procurar a menina para devolvê-la aos pais,
porque êstes a êle foram queixar-se do rapto da filha, dizendo que os inglêses
costumam contentar-se com os bens apreendidos, deixando livres as pessoas, e
que, assim sendo, por que haveriam de torná-los tão infelizes, deixando-os,
além de pobres, sem a filha, que era a luz de seus olhos e a mais formosa
criatura de tôda a cidade?
O conde mandou comunicar a tôda a armada que sofreria pena de morte
quem tivesse a menina em seu poder; mas, pena alguma ou temores foram
suficientes para fazer Clotaldo obedecer-lhe, pois era êle, Clotaldo, quem
mantinha Isabela escondida em sua embarcação e que se afeiçoara, embora
cristãmente, à sua incomparável beleza. Os pais, sem a menina, ficaram tristes e
desconsolados; Clotaldo, contentíssimo, chegou a Londres e deu a menina,
como presente, à sua mulher.
Quis a sorte que tôdas as pessoas da família de Clotaldo fôssem católicas,
embora, publicamente, demonstrassem seguir a religião de sua rainha. Clotaldo
tinha um filho chamado Recaredo, de doze anos, a quem ensinou a amar e
temer a Deus e a permanecer fiel às verdades da fé católica. Catalina, espôsa de
Clotaldo, senhora nobre, cristã e prudente, afeiçoou-se tanto a Isabela, que a
criava, presenteava e educava como filha; a menina era de tão boa índole, que
aprendia com facilidade tudo quanto lhe ensinavam; com o tempo e com os
presentes, foi esquecendo seus pais verdadeiros, não deixando, entretanto, de
lembrar-se e suspirar por êles muitas vêzes, e, embora aprendendo a língua
inglêsa, não se esquecia da espanhola, porque Clotaldo tinha o cuidado de
trazer secretamente para casa alguns espanhóis para falar com ela; desta
maneira, sem esquecer-se de sua língua, como já dissemos, falava a língua
inglêsa como se tivesse nascido em Londres; depois de lhe terem sido ensinados
todos os trabalhos que tôda jovem pode e deve saber, ensinaram-na a ler e a
escrever, mas o que aprendeu melhor foi tocar todos os instrumentos que a
mulher pode tocar, e o fazia com perfeição; além disso, o céu deu-lhe uma voz
tão boa que, enquanto cantava encantava.
Tôdas estas graças, adquiridas e acrescentadas aos seus dons naturais,
foram, pouco a pouco, inflamando o peito de Recaredo, a quem ela queria e
servia como filho de seu senhor. A princípio Recaredo gostava de ver a beleza
sem igual de Isabela e de observar suas infinitas virtudes e atrativos, amando-a
como se ela fôsse uma irmã, sem que seus desejos ultrapassassem limites da
honra e da virtude, mas, conforme Isabela, que tinha doze anos quando
Recaredo começou a amá-la, foi crescendo, aquela simpatia, aquela satisfação e
prazer de olhá-la transformou-se em ardentíssimo desejo de possuí-la; não que
aspirasse a isto por outros meios que não o casamento, pois, da incomparável
honestidade de Isabela, como a chamavam, não se podia esperar outra coisa e
nem êle o haveria de querer, mesmo que pudesse, mas porque seu caráter nobre
e a estima que tinha por Isabela não permitiam que nenhum mau pensamento
deitasse raízes em sua alma; mil vêzes decidiu manifestar suas intenções aos
pais e outras tantas vêzes não aprovou sua determinação, pois sabia que estava
destinado a ser espôso de uma donzela escocesa, muito rica e importante,
também cristã como êles, e era claro, pensava êle, que não haviam de querer vêlo casado com uma escrava - se é que se pode dar êste nome a Isabela -, já que
haviam combinado de casá-lo com uma fidalga. E assim confuso e pensativo,
sem saber que caminho tomar para realizar suas boas intenções, levava uma
vida tão agitada, que se via a ponto de morrer. Entretanto, julgando ser uma
grande covardia deixar-se morrer sem procurar um remédio para seu mal,
encorajou-se e dispôs-se a declarar suas intenções a Isabela.
Tôdas as pessoas da casa andavam tristes e preocupadas com a doença de
Recaredo, que era estimado por todos, e com profunda dor de seus pais, porque
não tinham êles outro filho porque também o mereciam sua virtude, seu valor e
sua compreensão; os médicos não conseguiram descobrir a causa da
enfermidade do rapaz e nem êle queria que a descobrissem. Finalmente, vendose a sós com Isabela, certo dia em que ela entrou para servi-lo, tendo já decidido
enfrentar as dificuldades, disse-lhe, com voz fraca e comovida:
- Isabela, teu valor, tua virtude e formosura deixaram-me assim neste
estado; se não queres que minha vida seja entregue a maiores penas, concorda
em ser minha espôsa, mesmo contra a vontade de meus pais, que temo eu não
reconheçam como eu reconheço o teu mérito e que são capazes, portanto, de me
negar êste bem que tanto desejo; se me prometes ser minha espôsa, eu também
te prometo, como cristão que sou, ser apenas teu e, mesmo que não chegue a
possuir-te, o que, aliás, não acontecerá até que sejas minha pelas bênçãos de
meus pais e da Igreja, só o fato de imaginar que me pertences será suficiente
para devolver-me a saúde e para manter-me alegre e satisfeito até alcançar a
felicidade que tanto almejo.
Enquanto Recaredo pronunciava estas palavras, Isabela estêve escutandoo, de olhos baixos, demonstrando que sua honestidade igualava-se à sua
formosura, à sua discrição; depois, vendo que Recaredo terminara, respondeulhe:
- Depois que o rigor ou a clemência dos céus, não sei a qual dos dois
fatôres me referir, depois que o rigor ou a clemência dos céus quis afastar-me de
meus pais e dar-me aos vossos, Senhor Recaredo, reconhecida aos infinitos
favores que me têm feito, decidi que minha vontade jamais discordaria da
vontade dêles e, assim, consideraria mau o inestimável favor que me quereis
fazer; se eu fôr mesmo tão venturosa a ponto de vos merecer, ofereço-vos,
desde já, a ordem que êles me derem, mas, mesmo que não se encontre logo ou
que não haja uma solução, que os vossos desejos saibam que os meus serão
eternos e puros em desejar-vos todo o bem que o céu vos pode dar.
Assim encerrou Isabela suas honestas e discretas palavras; depois disso, a
saúde de Recaredo começou a voltar e renasceram também as esperanças de
seus pais.
Os dois despediram-se cortesmente: êle, com lágrimas nos olhos; ela,
muito admirada de ver a alma de Recaredo dedicada inteiramente a amá-la.
Recaredo, deixando o leito por milagre, na opinião de seus pais, não quis
ocultar, por mais tempo, seus pensamentos; manifestou-os um dia à sua mãe,
dizendo-lhe, ao fim de longas palavras, que, se não consentissem em seu
casamento com Isabela, seria o mesmo que matá-lo; encareceu, também, de tal
forma, as qualidades da jovem que fêz a mãe pensar que a enganada seria
Isabela, tomando seu filho como espôso; deu-lhe esperanças de que seu pai
viesse a aceitar êste casamento que ela já havia aceito e assim o foi, pois,
transmitindo ao marido as mesmas palavras que o filho a ela dissera, induziuo,
com facilidade, a concordar com o que o rapaz tanto desejava, pensando já nas
desculpas que deveriam apresentar para não se realizar o casamento, que era
tido como certo, com a jovem da Escócia. Por esta época, teria Isabela uns
catorze anos e Recaredo vinte, mas, apesar de tão verde e tão florida idade, sua
discrição e prudência faziam com que êles parecessem mais velhos.
Faltavam quatro dias para que os pais de Recaredo vissem o filho unir-se a
Isabela pelos laços sagrados do matrimônio, considerando-se felicíssimos por
receberem sua prisioneira como filha, levando em conta mais o dote das
virtudes da jovem que a imensa fortuna da escocesa; as roupas estavam quase
prontas, os parentes amigos convidados; faltava apenas levar o fato ao
conhecimento da rainha, porque sem a sua vontade e consentimento não se
efetua nenhum casamento entre pessoas de sangue ilustre, mas não duvidavam
de seu consentimento, por isso demoraram-se em ir procurá-la. Quando
faltavam, então, como eu dizia, quatro dias para as bodas, apareceu um
ministro da rainha, que veio desfazer a alegria de todos, pois trouxe a Clotaldo
um comunicado de Sua Majestade que o mandava levar à sua presença, na
manhã do dia seguinte, sua prisioneira, a espanhola de Cádiz. Clotaldo disselhe que executaria com muito prazer a ordem de Sua Majestade. O ministro
partiu e deixou todos os corações agitados, cheios de sobressalto e de mêdo.
- Ai - exclamava a Senhora Catalina - se a rainha souber que criei esta
menina com fé na religião católica, se vier a saber que todos desta casa somos
cristãos! E se a rainha lhe perguntar o que aprendeu durante os oito anos em
que foi nossa prisioneira, o que há de responder a pobrezinha, para não nos
condenar, por mais prudente que seja?
Isabela, ouvindo-a, disse-lhe:
- Não vos preocupeis, minha senhora, pois confio no céu, que, em sua
divina misericórdia, há de me inspirar para que minhas palavras não vos
condenem e sim resultem em vosso proveito.
Recaredo tremia, como que pressentindo alguma coisa má; Clotaldo
procurava de inúmeras maneiras afastar-lhe o temor, mas via que contava
apenas com a enorme confiança que tinha em Deus e com a prudência de
Isabela, a quem recomendou, muitas vêzes, que evitasse, por todos os meios,
dizer que eram católicos, pois, embora, em espírito, estivessem preparados para
receber o martírio, a carne recusava-se a beber do cálice amargo. Mais de uma
vez Isabela disse-lhes que ficassem descansados, pois nada do que temiam ou
suspeitavam havia de acontecer, porque embora não soubesse ainda o que
responder às perguntas que lhe fizessem, tinha como viva e certa a esperança
de responder de modo que suas palavras, como aliás já havia dito, lhes fôssem
apenas benéficas.
Naquela noite falaram de muitas coisas, principalmente que se a rainha
soubesse que êles eram católicos, não lhes enviaria um recado tão delicado, pelo
qual se podia deduzir que queria apenas ver Isabela, cuja incomparável beleza e
aptidões teriam chegado a seus ouvidos, como chegara também aos ouvidos de
tôda a cidade, mas o fato de não a terem apresentado à rainha fazia-os sentirem-
se culpados e, para se justificarem perante a soberana, acharam melhor dizer
que haviam escolhido Isabela como espôsa de seu filho Recaredo, desde que ela
chegara a seu poder, porém, ainda assim, sentiram-se culpados por terem
planejado o casamento sem o consentimento da rainha, muito embora esta
culpa não lhes parecesse merecedora de grande castigo.
Consolaram-se com isto e decidiram que Isabela não fôsse vestida
humildemente, como prisioneira, mas sim como espôsa de um homem
importante como era seu filho.
No dia seguinte, vestiram Isabela à moda espanhola, com uma túnica de
cetim verde, com aberturas regulares, através das quais se podia ver um rico
tecido dourado; as aberturas eram rematadas com pérolas, formando esses; e
era tôda bordada com pérolas riquíssimas; o colo e a cintura estavam enfeitados
com belíssimos diamantes; levava também um leque. à maneira das grandes
senhoras espanholas; seus cabelos, loiros e compridos, entrelaçados com
diamantes e pérolas, serviam-lhe de toucado. Elegante, de uma beleza sem
igual, ricamente enfeitada, foi assim que Isabela se apresentou naquele dia a
Londres, transportada por um belíssimo côche, levando com ela as almas e os
olhos de todos quantos a olhavam. Com ela iam Clotaldo, sua espôsa e
Recaredo, acompanhados de inúmeros e ilustres parentes. Clotaldo quis
conceder-lhe tôda esta honra para fazer com que a rainha a tratasse como a
espôsa de seu filho.
Chegando ao palácio, Isabela entrou em uma grande sala, onde se
encontrava a rainha, despertando em todos a melhor de tôdas as impressões. A
sala era grande e espaçosa, as pessoas que a acompanhavam detiveram-se.
Isabela deu dois passos à frente e, assim que se destacou do grupo, foi como se
uma estrêla ou um raio cortasse o sossêgo e a calma da noite, ou, então, como o
raio de sol que, ao nascer do dia, aparece por entre as montanhas, foi também
um cometa a anunciar o fogo que incendiaria mais de um coração dos que ali
estavam presentes e que seriam queimados nas chamas da luminosa beleza de
Isabela, que, humilde e cortês, foi colocar-se de joelhos perante a rainha para
dizer-lhe, em inglês:
- Que Vossa Majestade estenda vossas mãos a esta serva que, de hoje em
diante, sentir-se-á enaltecida, pois teve a ventura de admirar a vossa grandeza.
A rainha olhou-a por um bom espaço de tempo, sem dizer uma palavra,
pois parecia-lhe, como falou depois à sua camareira, ter diante de si um céu
estrelado, estrêlas que eram inúmeras pérolas e diamantes usados por Isabela,
cujo rosto e olhos pareciam o Sol e a Lua e tôda ela uma nova maravilhosa
formosura. As damas que acompanhavam a rainha fizeram tôdas olhos para
não deixarem de admirar nada em Isabela. uma elogiava-lhe o brilho dos olhos;
outra, a côr do rosto; ou a elegância; outra, a doçura de suas palavras; houve
uma que, de pura inveja, disse:
- A espanhola é muito bonita, mas não gosto de suas roupas. Depois de
passada um pouco sua admiração, a rainha, fazendo Isabela levantar-se, disselhe:
- Fala-me em espanhol, jovem, que eu o entendo bem. será um prazer
ouvi-lo. - E, voltando-se para Clotaldo, disse:
- Clotaldo, fizestes-me uma ofensa escondendo êsse tesouro por tantos
anos, ofensa esta agravada porque fôstes movido pela cobiça; estais, pois, na
obrigação de restituí-lo a mim porque, de direito, é meu.
- Senhora - falou Clotaldo -, é bem verdade o que Vossa Majestade diz;
confesso minha culpa, se podemos considerar como tal o fato de ter eu
guardado êste tesouro a fim de que atingisse a perfeição para depois trazê-lo
aos olhos de Vossa majestade; agora que esta perfeição foi alcançada, pensava
trazer Isabela a vossa presença e pedir-vos que consentísseis no casamento dela
com meu filho Recaredo e, oferecendo-os, à rainha, ofereço com êles tudo
quanto vos posso dar.
- Até o nome dela me agrada - falou a rainha - só faltava chamar-se Isabela
para que eu nada ficasse a desejar. mas lembrai-vos, Clotaldo, de que a
prometestes a vosso filho sem o meu consentimento.
- É verdade, senhora. Mas foi confiando nos inúmeros relevantes serviços
que eu e meus antepassados prestamos à coroa que pensei poder alcançar de
Vossa Majestade favores ainda maiores que êste consentimento; além disso,
meu filho ainda não se casou.
- Nem se casará, até que a mereça por êle próprio; quer dizer com isto que
êle não se deve aproveitar de vossos serviços nem dos serviços de vossos
antepassados; êle, por êle próprio, há de se colocar à minha disposição e ser
merecedor desta preciosidade que eu já estimo como se fôsse minha filha.
Isabela, mal ouviu estas últimas palavras, tornou a ajoelhar-se diante da
rainha, dizendo-lhe em castelhano:
- Há desgraças, sereníssima senhora, que devem ser consideradas como
felicidade e não como desventura; se Vossa Majestade chamou-me de filha, que
males haverei de temer ou que benefícios não poderei esperar?
Isabela falava com tanta graça e desembaraço que a rainha afeiçoou-se
extremamente a ela e ordenou que permanecesse a seu serviço, entregando-a a
uma importante senhora, sua camareira-mor, para ensinar-lhe seu modo de
viver.
Recaredo, que sentiu fugir-lhe a vida quando viu que o afastavam de
Isabela, estêve a ponto de perder o juízo; e, assim, tremendo e sobressaltado,
pôs-se de joelhos perante a rainha, dizendo:
- Para servir a Vossa Majestade não é necessário receber outros prêmios,
além daqueles que meus pais e meus antepassados alcançaram por terem
servido a seus reis, mas, já que Vossa Majestade deseja que eu vos sirva por
novos motivos e pretensões, gostaria de saber de que modo e em que trabalho
poderei cumprir com a obrigação que Vossa Majestade me impõe.
- Dois navios, que se encontram sob as ordens do Barão de Lansac, que eu
nomeei general, estão prontos para andar a corso (Andar a corso - dizia-se dos
navios e dos homens armados para correr no encalço de navios mercantes; era uma
forma de pirataria.); faço-vos capitão de um dêles, pois o sangue que tendes nas
veias assegura-me de que há de compensar vossa pouca idade, e lembrai-vos da
graça que vos concedo, pois, com ela, vos dou a oportunidade de, não
desmentindo vossa linhagem, servindo a vossa rainha, demonstrar o valor de
vosso engenho, de vossa pessoa, para alcançardes o melhor prêmio que, a meu
ver, podeis desejar; serei eu a guardiã de Isabela, embora sua honestidade, da
qual ela já nos deu prova, seja sua mais preciosa guardiã; ide com Deus, pois,
partindo enamorado, como imagino, espero que realizeis grandes façanhas;
feliz seria o rei que tivesse em seu exército 10.000 soldados enamorados, que
esperassem possuir suas amadas como prêmio às suas vitórias. Levantai,
Recaredo, e olhai se tendes ou quereis dizer alguma coisa a Isabela, porque
amanhã partireis.
Recaredo beijou as mãos da rainha, agradecendo muitíssimo o favor que
ela lhe fazia; logo a seguir, pôs-se de joelhos perante Isabela e, querendo falarlhe, não pôde, pois sentiu um nó na garganta, que lhe prendeu também a
língua; as lágrimas vieram-lhe aos olhos e procurou disfarçá-las o mais que lhe
foi possível, mas elas não passaram despercebidas aos olhos da rainha, que
disse:
- Não vos envergonheis de chorar, Recaredo, nem vos sintais diminuído
por terdes dado neste momento tão ternas mostras de vosso coração, pois uma
coisa é pelejar com os inimigos e outra é despedir-se de quem se quer bem;
abraçai-o, Isabela, e dai-lhe a vossa bênção, que bem o merecem os seus
sentimentos.
Isabela, que estava surprêsa e admirada de ver a humildade e a dor de
Recaredo e que já o amava como espôso, não compreendeu a ordem da rainha;
começou antes a derramar lágrimas, sem perceber o que fazia, e, permanecendo
como cega, sem movimento algum, parecia uma estátua de alabastro a chorar.
Estas reações tão ternas dos dois enamorados fizeram muitos dos parentes
derramarem lágrimas, sem poder dizer palavra e sem ter conseguido falar com
Isabela, que fêz, juntamente com Clotaldo e todos os que com êle vieram, uma
reverência à rainha, saindo da sala, cheios de compaixão, de pesar e de
lágrimas.
Isabela ficou tal qual uma órfã que acaba de enterrar os pais, receosa de
que sua nova senhora quisesse mudar-lhe os costu mes em que se havia criado;
mas ali permaneceu. Daí a dois dias, Recaredo partiu, dominado por dois
pensamentos entre muitos outros, que o mantinham fora de si: um era pelo fato
de considerar que lhe convinha realizar determinadas façanhas que o fizessem
merecedor de Isabela; o outro, por saber que não podia realizá-las sem ter que
desembainhar sua espada contra católicos, pois estaria contrariando sua
formação interior; não desembainhar a espada seria denunciar sua qualidade de
cristão ou ser acusado de covarde; qualquer das duas soluções redundaria em
prejuízo para sua vida e em obstáculo para suas pretensões. Resolveu, enfim,
atender primeiro à sua condição de católico, pedindo intimamente ao céu que
lhe desse ocasiões em que pudesse demonstrar sua coragem, cumprir com a
religião, deixando a rainha satisfeita, e fazer-se merecedor de Isabela.
Os dois navios navegaram por seis dias com vento favorável seguindo o
caminho das ilhas Terceras, onde sempre há naves portuguêsas das Índias
Orientais ou algumas que se desviaram das Ocidentais. Ao fim de seis dias, um
vento fortíssimo, que no Mediterrâneo chama-se Meio-dia, mas que no
Atlântico tem outro nome, soprou os costados dos navios, e o fêz tão fortemente
e por tanto tempo que os impediu de alcançar as ilhas, obrigando-os a se
dirigirem para a Espanha; junto às costas espanholas, à bôca do estreito de
Gibraltar, descobriram três navios; um, po deroso e grande; os outros dois,
pequenos; os homens de Recaredo perguntaram ao capitão se o general queria
atacar os três navios que tinham sido avistados, mas, antes de poderem
comunicar-se com êle, viram hastear, sôbre a gávea maior, uma bandeira negra
e, chegando-se mais para perto, ouviram o som de clarins e cornetas roucas,
sinais evidentes de que o general, ou alguma outra pessoa importante da nave,
morrera. Inquietos, comunicaram-se com os outros pela primeira vez, coisa que
não haviam feito desde que saíram do pôrto; da nave capitânea disseram, em
altas vozes, que Recaredo assumisse o comando, porque o general morrera na
noite anterior, vítima de apoplexia. Todos se entristeceram, menos Recaredo,
que se alegrou, não pela morte de seu general, mas porque se via livre para
comandar os dois navios, pois a rainha ordenara que, na falta do general,
Recaredo assumisse o seu pôsto. Recaredo apressou-se a passar para a outra
nau, onde encontrou alguns marinheiros que choravam pelo general morto e
outros que se alegravam com sua presença; no fim, puseram-se todos sob suas
ordens, reconhecendo-o como general em rápida cerimônia, passando logo a
falar dos três navios que tinham descoberto, dois dos quais, desviando-se do
maior, vinham em direção de suas naves.
Reconheceram logo, pelas meias-luas que se viam nas bandeiras, que se
tratava de duas galeras turcas. Recaredo alegrou-se, pois, se o céu o permitisse,
aquela seria uma prêsa considerável e vinha de encontro aos seus desejos,
porque, tomando-a, não ofenderia a nenhum católico. As duas galeras turcas
chegaram a reconhecer os navios inglêses, que não traziam insígnias da
Inglaterra e sim da Espanha, não para enganar os que pudessem reconhecê-los,
mas para que não fôssem considerados navios de corsários. Os turcos pensaram
que se tratasse de naves derrotadas das Índias e julgaram que as abateriam com
facilidade. Foram-se aproximando pouco a pouco e Recaredo deixou-os
aproximar-se propositadamente, até que pudesse tê-los sob a mira de sua
artilharia, e, disparando na hora exata, atingiu com tanta fúria, com cinco balas,
o centro de uma das galeras, que a partiu ao meio; a embarcação imediatamente
pendeu para bombordo e começou a ir a pique, sem que nada se pudesse fazer.
A outra galera, vendo êstes acontecimentos, apressou-se em desttruí-la, fazendo
com que afundasse próximo aos costados do navio grande, mas Recaredo, que
dispunha de barcos velozes e bem aparelhados, que podiam sair ou entrar como
se tivessem remos, mandou carregar de nôvo tôda a artilharia e os foi seguindo
até a nave maior, descarregando sôbre êles intensa chuva de balas. O pessoal da
galera, logo que chegou perto da nave, abandonou sua embarcação, procurando
abordá-la o mais depressa possível. Recaredo, vendo que a nave se ocupava
com a galera atingida, atacou-a com seus dois navios e, impedindo-a de fazer a
volta ou de valer-se dos remos, encurralou-a; os turcos procuraram, assim
mesmo, recolher-se à nave, não para atacar, mas para salvar suas vidas. Os
cristãos, que estavam nas galeras como prisioneiros, romperam as cadeias e
juntamente com os turcos, procuravam alcançar a nave e, confor me iam
subindo pelos costados, iam servindo de alvo aos arcabuzes dos navios;
Recaredo ordenou que ninguém atirasse nos cristãos. Quase todos os turcos
foram mortos e os poucos que chegaram à nave foram reduzidos a pedaços
pelos cristãos, com que êles haviam-se misturado, apoderando-se de suas
armas, pois quando os valentes caem, a coragem que os anima passa a
substituir a fraqueza dos que se levantam, e, assim, os cristãos, animados,
acreditando que os navios inglêses fôssem espanhóis, realizaram maravilhas,
tendo sempre em mente sua liberdade. A encerrar-se o combate, alguns
espanhóis puseram-se a bordo do navio, e, em altas vozes, chamaram os que
julgavam ser espanhóis, para festejar com êles a vitória. Recaredo perguntoulhes em espanhol, que navio era aquêle. Responderam-lhe que era uma
embarcação vinda da Índia portuguêsa, carregada de especiarias, cheia de
pérolas e diamantes, no valor de mais de 1 milhão em ouro, e que, por causa de
uma tormenta, viera dar naqueles lugares, tôda destruída e sem artilharia,
porque o pessoal enfêrmo, quase morto de fome e de sêde, incumbira-se de
atirá-la ao mar; disseram ainda que as duas galeras pertenciam ao corsário
Arnaute Mami, a quem a nave havia sido entregue, sem a menor resistência, e
que, segundo ouviram dizer, pretendia rebocá-la até o rio Larache, que não
ficava muito distante dali, pois a enorme riqueza que a nave transportava não
cabia em suas embarcações.
Recaredo respondeu-lhes que, se êles pensavam que aquêles dois navios
eram espanhóis, estavam enganados, pois pertenciam à rainha da Inglaterra;
suas palavras deram muito o que pensar e temer a todos que as ouviram, por
compreenderem que haviam escapado de uma armadilha para logo em seguida
caírem em outra. Recaredo, entretanto, disse-lhes que nada temessem, que
contassem como certa sua liberdade e que, assim sendo, não era preciso
tratarem da defesa.
- E nem que quiséssemos não poderíamos - responderam êles -, porque,
como já dissemos, êste navio não tem artilharia e nós estamos desarmados;
assim, temos que aceitar a gentileza e a liberalidade de vosso general; será justo
que quem nos libertou do cativeiro dos turcos leve adiante tão grande mercê e
benefício, pois, assim fazendo, poderá tornar-se famoso em todos os recantos,
que já sabemos serão muitos, onde chegar a notícia desta memorável vitória e a
da liberdade, que dêle esperávamos. Recaredo achou razoáveis as palavras do
espanhol e, reunindo em conselho o pessoal de seu navio, perguntou-lhe como
faria para enviar todos os cristãos à Espanha, sem correr o risco de terem que
enfrentar algum perigo, embora pensassem que as situações difíceis servissem
para levantar-lhes o ânimo. Alguns pensaram em fazê-los passar, um a um,
para seu navio, e matá-los, conforme fôssem entrando debaixo da cobertura,
pois, matando-os a todos, poderiam levar, sem preocupação ou temor, a grande
nave a Londres. Recaredo, porém, falou:
- Já que Deus nos concedeu tanta graça e nos deu tanta riqueza, não quero
retribuir com crueldade, nem ser mal agradecido, nem é justo resolver-se com a
espada aquilo que pode ser resolvido pacificamente; assim, penso que nenhum
católico deve morrer, não porque eu os queira bem, mas porque me prezo
muito e queria que a façanha de hoje não desse, nem a mim nem a vós, que
fôstes meus companheiros, a fama de cruéis, ao lado de nossa fama de valentes,
pois valentia e crueldade nunca andaram juntas; o que se deve fazer é passar
tôda artilharia de um dêstes navios para a nave portuguêsa, deixando nêle
apenas provisões e, sem que haja prejuízo para nossa gente, levaremos a nave
até a Inglaterra, enquanto os espanhóis vão para a Espanha.
Ninguém ousou recusar a proposta de Recaredo; alguns consideraram-no
valente, magnânimo e muito inteligente; outros julgaram-no mais católico do
que devia ser. Obtendo, pois, a aprovação de todos, Recaredo passou com
cinqüenta arcabuzeiros para a nave portuguêsa, todos mantendo-se alertas e
prontos para atirar; encontrou a bordo quase trezentas pessoas das que haviam
escapado das galeras, pediu logo o registro da nave, mas o mesmo homem que
lhe falara pela primeira vez respondeu que o registro estava nas mãos do
corsário, chefe das embarcações, que com elas havia afundado. Utilizando-se do
tôrno e encostando a segunda embarcação na grande nave, com extraordinária
rapidez e a poder de fortíssimos sarilhos, passaram a artilharia do pequeno
batel para a nave maior; depois, dizendo algumas palavras aos cristãos,
Recaredo mandou-os passar para o batel, onde encontrariam provisões em
abundância, para mais de um mês e para um número de pessoas bem maior, e,
conforme iam embarcando, dava-lhes a cada um 4 escudos de ouro espanhóis,
que mandou trazer de seu navio para remediar, em parte, certas necessidades
quando chegassem à terra, que, aliás, estava muito próxima, pois dali podiam
avistar as altas montanhas de Abila e Calpe. Todos agradeceram infinitamente o
favor que êle lhes fazia; o último a embarcar foi o homem que lhe falara em
nome dos demais e que não quis partir sem antes dizer-lhe:
- Gostaria muito mais, valoroso cavalheiro, que me levasses contigo para a
Inglaterra, do que me mandasses para a Espanha, porque, embora seja minha
terra e faça apenas seis dias que dela parti, ali haverei somente de encontrar
tristezas e saudades; desejo que saibais, senhor, que na batalha de Cádiz, há uns
quinze anos atrás, perdi minha filha, levada à Inglaterra pelos inglêses; com ela
perdi o sossêgo de minha velhice e a luz de meus olhos, que jamais se
alegraram com coisa alguma, depois de sua partida; o grande aborrecimento
que sua perda e a perda de todos os meus haveres me causaram puseram-me de
tal maneira que não quis e nem pude mais comerciar, embora eu fôsse
considerado o comerciante mais rico de tôda a cidade, o que, aliás, era verdade,
pois além das muitas centenas de milhares de escudos que eu possuía em
dinheiro, os meus bens, dentro das portas de minha casa, passavam de 50.000
ducados; tudo isso eu perdi, mas nada me importaria se não tivesse perdido
minha filha; além da desgraça que atingiu a todos em geral e a mim em
particular, as necessidades começaram a nos perseguir, a tal ponto que, não
podendo mais resistir, eu e minha mulher, aquela infeliz que ali se encontra,
decidimos ir para as índias, refúgio comum de todos os pobres generosos e,
tendo embarcado há seis dias, fomos surpreendidos, logo ao sair de Cádiz, por
êstes dois navios de corsários que nos aprisionaram, renovando-se assim nossa
desgraça e confirmando-se nossa desventura, que seria ainda maior se os
corsários não tivessem apreendido aquela nave portuguêsa que lhes ocupou a
atenção, até acontecer o que o senhor já sabe.
Recaredo perguntou-lhe como se chamava sua filha. Tendo êle respondido
que seu nome era Isabela, Recaredo viu confirmarem-se as suas suspeitas, pois
já desconfiara que aquêle homem deveria ser o pai de sua querida Isabela; não
lhe disse uma só palavra a respeito da jovem, mas ofereceu-se para levá-los, êle
e sua mulher, para Londres, onde poderiam, por certo, obter as informações que
tanto desejavam; a seguir, fêz com que êles passassem para seu navio; enviando
um número suficiente de marinheiros e guardas para a nave portuguêsa.
Levantaram velas à noite e trataram de se afastar logo das costas da Espanha,
por causa do navio de prisioneiros libertos, entre os quais havia quinze turcos e
aos quais Recaredo concedeu a liberdade, a fim de mostrar que era liberal, mais
por ser de índole generosa do que por dedicar amor aos católicos; pediu aos
espanhóis que, na primeira oportunidade, libertassem os turcos, que, por sua
vez, também se mostraram agradecidos.
O vento, que antes dera mostras de ser favorável, tornou-se excessivamente calmo e os inglêses, atemorizados, passaram a reprovar a liberalidade de
Recaredo, dizendo-lhe que as pessoas por êle libertadas poderiam avisar a
Espanha dos fatos ocorridos e que, se por acaso houvesse no pôrto alguns
galeões de guerra, podiam sair em seu encalço e colocá-los em uma situação
difícil, ou até mesmo aprisioná-los. Recaredo bem que reconhecia a gravidade
da situação, porém, acalmou a todos com uma série de razões, mas o que mais
os acalmou foi o vento, pois voltou a soprar de modo que, batendo suavemente
em tôdas as velas, não se teve a necessidade de amainá-las ou dirigi-las e assim,
dentro de nove dias, encontraram-se às vistas de Londres, voltando, depois de
trinta dias, vitoriosos. Recaredo, em virtude da morte de seu general, não quis
entrar no pôrto dando mostras de muita alegria; às manifestações de
contentamento, preferiu associar as de tristeza; por vêzes, eram os clarins que
soavam, em festa; outras vêzes, as roucas trombetas tocavam qual tambores
alegres e armas de guerra; às trombetas respondiam os pífaros, com sons tristes
e chorosos; de uma das gáveas, às avessas, pendia uma bandeira cheia de
meias-luas; em outra, via-se um grande estandarte de tafetá negro, cujas pontas
beijavam a água. E foi assim que Recaredo entrou no rio de Londres com seu
navio, pois a nave, não encontrando águas suficientes, teve que permanecer no
mar, ao longe. Os sinais tão contraditórios que se avistavam na embarcação
surpreenderam o povo numeroso, que das margens os olhava; conheceram
pelas insígnias que o navio menor era a nau capitânea do Barão de Lansac, mas
não podiam compreender como o outro navio teria sido trocado por aquela
nave poderosa, que se encontrava no mar; sua dúvida, porém, se desfêz quando
viram saltar, com tôdas as armas, ricas e resplandescentes, o valoroso Recaredo
que, a pé, acompanhado apenas pela multidão que o seguia, dirigiu-se ao
palácio, onde a rainha, por entre os corredores, esperava que lhe trouxessem
notícias dos navios; com ela estavam suas damas de honra e Isabela, vestida à
inglêsa; antes que Recaredo chegasse, apresentou-se perante a rainha um
mensageiro, que se incumbiu de dar-lhe as notícias a respeito de Recaredo.
Isabela, ouvindo o nome de Recaredo, temeu e esperou ansiosa pelos
acontecimentos.
Recaredo era alto, aristocrático e elegante; a couraça, o gorjal (Gorjal: Peça
da armadura que servia para proteger o pescoço.), as braceleiras, as escarcelas
(Escarcela: Parte da armadura desde a cintura até o joelho.) e os escudos milaneses de
onze vistas, trabalhados e dourados, contribuíam para produzir viva impressão
em todos quantos o olhavam; na cabeça, em vez de um morrião (Morrião: Antigo
capacete, sem viseiras e de aba levantada.), usava um chapéu de aba larga,
aleonado, com uma porção de plumas colocadas à moda dos valões; sua espada
era larga; os boldriés (Boldrié: Correia a tiracolo, à qual os militares prendem uma
arma.), ricos; as calças, à suíça. Suas roupas e seu passo garboso fizeram com
que muitos o comparassem a Marte, deus da guerra, e outros, impressionados
pela beleza de seu rosto, disseram que êle deveria ser Vênus em pessoa, que se
disfarçara daquela maneira para zombar de Marte. Recaredo chegou, enfim, à
presença da rainha e, pondo-se de joelhos, disse-lhe:
- Majestade, para vossa alegria e para a realização de meus desejos, após a
morte do General de Lansac, ficando eu em seu lugar, graças à vossa
liberalidade, colocou a sorte em meu caminho duas galeras turcas que
rebocavam aquela grande nave, que daqui se pode ver; atacados, vossos
soldados defenderam-se e afundaram as embarcações dos corsários; libertei, em
vosso nome, os cristãos que puderam escapar ao poder dos turcos, permitindo
que êles partissem para a Espanha em um dos nossos navios; trouxe comigo
sõmente um homem e uma mulher, espanhóis, que de livre vontade quiseram
vir conhecer vossa grandeza; a grande nave que trouxemos vinha da Índia
portuguêsa e, por ter sofrido uma tempestade, caiu em poder dos turcos, pois
êles, com pouco trabalho, ou, para melhor dizer, sem trabalho algum,
assenhorearam-se dela e, segundo dizem alguns portuguêses, seus tripulantes,
o valor das especiarias, das pérolas e diamantes que ela carrega passa de 1
milhão, em ouro; ninguém tocou em nada, nem os turcos puderam tirar coisa
alguma, pois o céu o reservou e eu me incumbi de guardar êste tesouro para
Vossa Majestade; contentar-me-ei com apenas uma jóia, que me fará dever-vos
outras dez naves como esta; esta jóia é minha querida Isabela, que vós me
prometestes antes de minha partida; com ela sentir-me-ei pago e satisfeito, não
só por êste serviço, mas por todos os outros que fiz a Vossa Majestade e pelos
muitos que ainda penso fazer para pagar um pouco do quase infinito que, com
esta jóia, me ofereceis.
- Levantai-vos, Recaredo - disse a rainha - e acreditai que, se quisésseis
pagar pelo quanto eu estimo Isabela, não conseguiríeis fazê-lo nem com o que
trazeis nessa nave, nem com o que fica em tôda a índia; eu vos darei Isabela
porque já prometi e porque ela é digna de vós e também sois digno dela: o
vosso valor a merece; se guardastes as jóias da nave para mim, eu também
guardei a jóia que vos pertence e, embora não pareça nada devolver-vos o que é
vosso, sei que vos faço um grande favor com isso, porque os prêmios que se
conquistam por mérito próprio e que são ardentemente desejados valem tanto
quanto a alma e não há na terra preço algum que os pague. Isabela é vossa, eila, podereis tornar-vos dono e senhor dela quando quiserdes; creio que ela o
aceitará de boa vontade e saberá apreciar a amizade que lhe dedicais; digo
amizade e não favores porque somente eu posso concedê-los; podeis ir
descansar e vinde aqui pela manhã, pois quero conhecer pormenorizadamente
tôdas as vossas façanhas, e trazei-me também o casal que, de espontânea
vontade, quis vir para me conhecer, pois quero agradecer-lhes.
Recaredo beijou-lhe as mãos pelos inúmeros favores que ela lhe concedia.
A rainha dirigiu-se para outra sala; as demais pessoas rodearam Recaredo e
uma delas, que se tornara grande amiga de Isabela, chamada Senhora Tansi,
considerada a mais prudente, desenvolta e graciosa de tôdas, disse-lhe:
- Que é isto, Senhor Recaredo, que armas são estas? Pensáveis, porventura,
que viríeis pelejar contra vossos inimigos?
Tôdas aqui somos vossas amigas, com exceção da Senhora Isabela, que,
como espanhola, é obrigada a não vos olhar com bons olhos.' - Mas é preciso
que ela se lembre, Senhora Tansi, de olharme com um pouco de boa vontade falou Recaredo. - A ingratidão não pode andar ao lado de tanto valor, de tanta
compreensão e de tão rara formosura.
- Senhor Recaredo - disse-lhe Isabela -, uma vez que vos pertenço, está em
vós decidir sôbre meu destino, a fim de que sejais plenamente recompensado
pelos elogios que me fizestes e pelos favores que pensais conceder-me.
Estas e outras palavras foram trocadas entre Recaredo, Isabela e as damas,
entre as quais havia uma jovenzinha que nada mais fêz do que olhar Recaredo
enquanto êle estêve ali; levantava-lhe as escarcelas, para ver o que havia
debaixo delas, examinava-lhe a espada e, com sua simplicidade de criança,
queria que as armas lhe servissem de espelho, chegando mesmo a olhar-se nelas
de muito perto, e, quando partiu, dirigindo-se às damas, falou:
- Acho que a guerra deve ser coisa muito boa, porque as mulheres
apreciam muito os homens armados.
- E como não havia de ser? - perguntou a Senhora Tansi.
- Basta olhar para Recaredo, que parece o próprio sol caminhando pelas
ruas.
Tôdas riram-se das palavras da mocinha e da comparação de Tansi; não
faltou, entretanto, quem considerasse uma impertinência de Recaredo o fato de
êle ter ido armado ao palácio, embora houvesse outras que procurassem
desculpá-lo, dizendo que, como soldado, tinha o direito de se apresentar assim,
para que pudesse mostrar sua esplêndida galhardia.
Recaredo foi carinhosamente recebido por seus pais, parentes e amigos.
Naquela noite, tôda Londres festejou a sua vitória.
Os pais de Isabela encontravam-se na casa de Clotaldo e Recaredo já lhe
havia dito quem eram, tendo, entretanto, pedido que nada lhes falasse a
respeito de Isabela, pois êle próprio queria encarregar-se disso. O aviso
estendeu-se à Senhora Catalina, sua mãe, e a todos os criados e criadas da casa.
Naquela mesma noite, com muitos botes, lanchas, barcos, e com muitos olhos a
observarem, começou-se adescarregar a nave, demorando-se oito dias para
retirar a enorme quantidade de pimenta e de outras riquíssimas mercadorias
que nela se encontravam.
No dia seguinte, Recaredo foi ao palácio, levando consigo o pai e a mãe de
Isabela, vestidos como inglêses, dizendo-lhes que a rainha queria vê-los. A
rainha, em meio às suas damas, estava esperando por Recaredo, a quem pensou
agradar, mantendo Isabela a seu lado, vestida com as mesmas roupas que usara
quando apareceu pela primeira vez no palácio, e sua beleza de agora nada
ficava a dever à sua beleza de então. Os pais de Isabela ficaram admirados e
surpresos de ver tanta beleza e elegância juntas. Puseram os olhos nela, mas não
a reconheceram, embora o coração, pressentindo a ventura que os rondava,
começasse a bater mais forte no peito, não com sobressaltos de quem se
entristece, mas com um não sei quê de felicidade, que êles próprios não podiam
entender. A rainha não permitiu que Recaredo se mantivesse de joelhos perante
ela; fêz com que êle se levantasse e sentasse em uma cadeira, sem encôsto, que
tinha sido colocada ali, especialmente para êle, favor êste dificilmente
concedido pela altiva condição da rainha. Houve quem dissesse:
- Recaredo senta-se hoje não sôbre a cadeira que lhe foi dada e sim sôbre a
pimenta que trouxe.
Outro disse:
- Confirma-se agora o que comumente se diz, que as dádivas amenizam as
penas, porque as dádivas que Recaredo trouxe abrandaram o rígido coração de
nossa rainha.
E outro:
- Agora que está tão bem sentado, mais de dois atrever-se-ão a persegui-lo.
Com efeito, aquela nova honra que a rainha concedera a Recaredo fez com
que a inveja nascesse em muitos corações daqueles que o observavam, pois tôda
mercê concedida por um príncipe a alguém que lhe agrade é uma lança a
atravessar o coração do invejoso. A rainha quis saber de Recaredo,
pormenorizadamente, a batalha que travaram com os barcos dos corsários; êle
contou-a novamente, atribuindo a vitória a Deus e aos braços valorosos de seus
soldados, exaltando-os a todos e, particularmente, os feitos de alguns que se
haviam destacado, fato que obrigou a rainha a recompensar todos e
principalmente os nomes citados por Recaredo, que não se esqueceu de falar da
liberdade que dera aos turcos e cristãos, em nome da rainha:
- Aquela mulher e aquêle homem, que ali estão - disse, apontando os pais
de Isabela -, são os que, como já tive oportunidade de dizer ontem a Vossa
Majestade, desejavam conhecer a vossa grandeza, pedindo encarecidamente
para trazê-los comigo; êles são de Cádiz, segundo me disseram, e, conforme
pude observar pelas suas palavras, sei que são gente importante e de bem.
A rainha ordenou-lhes que se aproximassem; Isabela ergueu os olhos para
poder observar aquêles que se diziam espanhóis de Cádiz, ansiosa por saber se
êles conheciam seus pais. Os olhos de Isabela encontraram-se com os de sua
mãe, que se pôs a observá-la demoradamente; na memória da môça começaram
a se formar umas idéias confusas, que lhe deram a impressão de já ter visto
antes aquela mulher. Seu pai encontrava-se na mesma confusão e não se atrevia
a acreditar na verdade que se fazia clara diante de seus olhos. Recaredo
observava atentamente as reações e os movimentos daquelas três almas, que se
encontravam na dúvida e que se procuravam reconhecer. A rainha percebeu o
estado de ânimo dos pais de Isabela, bem como a inquietação da môça, pois a
viu transpirar e levantar a mão inúmeras vêzes para arrumar o cabelo.
Isabela desejava ardentemente ouvir a voz da criatura que imaginava ser
sua mãe, pois seus ouvidos talvez pudessem desfazer a dúvida em que seus
olhos a tinham colocado. A rainha ordenou a Isabela que falasse em espanhol
àquela mulher e àquêle homem, perguntando-lhes por que haviam recusado a
liberdade que Recaredo lhes oferecera, uma vez que a liberdade é, das coisas, a
mais amada, não só pelos indivíduos dotados de raciocínio, como também
pelos animais, que dela precisam. Isabela obedeceu e falou com sua mãe, que,
sem responder-lhe palavra, quase mecânicamente, meio trôpega, chegou-se a
Isabela e, sem respeitar os protocolos e os olhares da côrte, levantou a mão,
tocando a orelha direita de Isabela, onde descobriu um pequeno sinal negro que
ali havia e que veio confirmar as suas suspeitas; vendo claramente que Isabela
era sua filha, abraçou-se a ela, dizendo em altas vozes:
- Filha de meu coração! Vida de minha alma! - Mas foi apenas isto o que
conseguiu dizer, pois caiu desmaiada nos braços de Isabela.
Seu pai, terno e prudente, deu mostras de seus sentimentos não com
palavras, más com lágrimas que, silenciosamente, banharam-lhe o rosto. Isabela
aproximou seu rosto ao de sua mãe e, voltando os olhos para o pai, olhou-o de
tal maneira que o fêz sentir tôda a alegria e ao mesmo tempo a amargura de os
ver ali. A rainha, admirada com os acontecimentos, falou a Recaredo:
- Penso, Recaredo, que vossa prudência preparou êste encontro, mas não
podemos dizer que agistes acertadamente, pois sabemos que uma súbita alegria
pode também matar uma criatura. - E assim dizendo, voltou-se para Isabela,
separando-a de sua mãe, que, tendo-lhe alguém molhado o rosto com água,
voltou a si e, já no domínio de suas emoções, ajoelhou-se aos pés da rainha,
dizendo-lhe:
- Peço que Vossa Majestade perdoe o atrevimento de ter perdido os
sentidos pela alegria de encontrar minha amada prenda.
A rainha, por intermédio de Isabela, que lhe serviu de intérprete, disse-lhe
que era muito natural perder os sentidos em tal circunstância, e ordenou aos
pais de Isabela que ficassem no palácio para poderem ver e falar com a filha
quando quisessem; Recaredo alegrou-se com o fato e pediu novamente à rainha
que cumprisse a palavra de lhe dar Isabela, se é que êle a merecia; se não,
suplicava-lhe, desde logo, que lhe desse novos trabalhos a fim de se fazer digno
dela. A rainha bem sabia que Recaredo estava contente consigo mesmo, com
seu valor, não havendo, portanto, necessidade de novos trabalhos para provar
sua coragem. por isso, disse-lhe que dentro de quatro dias entregar-lhe-ia
Isabela, concedendo aos dois tôda a honra que estivesse em seu alcance.
Recaredo despediu-se contentíssimo e certo de que Isabela havia de lhe
pertencer, sem pensar que poderia perdê-la, pois, êste é, aliás, o último dos
desejos de um enamorado. O tempo correu, mas não com a rapidez por êle
desejada, pois os que vivem esperando o cumprimento de promessas imaginam
sempre que o tempo não voa e que anda sempre sôbre os pés da própria
lentidão. Chegou finalmente o dia em que Recaredo pensou não em pôr fim aos
seus desejos, mas em encontrar em Isabela novas graças que o fizessem amá-la
ainda mais, se isto fôsse possível. Mas, nesse meio de tempo em que êle pensava
que a nave de sua boa fortuna fôsse impelida por um vento favorável até o
pôrto desejado, a sorte adversa preparava tal tormenta que parecia tudo querer
e não dar.
Acontece que a camareira da rainha, a cujos cuidados estava entregue
Isabela, possuía um filho de 22 anos, chamado Conde Arnesto. Sua posição
destacada, a nobreza de seu sangue, a consideração que a rainha tinha por sua
mãe faziam-no mais arrogante, altivo e presumido do que na realidade deveria
ser.
Este homem apaixonou-se de tal maneira por Isabela, que sentia a alma
queimar-se na luz dos olhos da jovem; enquanto Recaredo estêve ausente,
procurou Isabela para manifestar os seus desejos, embora ela nunca lhe tivesse
dado atenção; a repugnância e os desdéns, que no princípio dos amôres
costumam fazer os enamorados desistirem de suas intenções, em Arnesto
produziram efeito contrário, pois seus ciúmes o devoravam e a honestidade de
Isabela o consumia: vendo que Recaredo, segundo a opinião da rainha, fizera
por merecer Isabela e que, dentro de pouco tempo, ela haveria de se tornar
espôsa dêle, quis desesperar-se, mas, antes de chegar a tão infame e covarde
solução, falou com sua mãe, dizendo-lhe para pedir à rainha que lhe desse
Isabela por espôsa; se ela não consentisse, era preciso fazê-la saber que a morte
estava rondando as portas de sua vida. A camareira ficou impressionada com as
palavras do filho e, como conhecia seu gênio violento e a tenacidade com que os
desejos apoderavam-se de sua alma, temeu que seus amôres tivessem um final
infeliz. Além disso, era mãe e seria natural que procurasse o bem-estar de seu
filho; prometeu, então, falar com a rainha, não por esperar que ela voltasse atrás
com sua palavra, o que, aliás, era impossível, mas para não deixar de tentar e
ter esperanças num último remédio.
Naquela manhã, em que Isabela, por ordem da rainha, estava tão
ricamente vestida, que minha pena não se atreve a tentar descrever, tendo no
pescoço um colar feito das mais belas pérolas trazidas pela nave, avaliadas em
20.000 ducados, e, no dedo, um anel com um só diamante, no valor de 6.000
escudos, colocados no colo e no dedo pela própria rainha, naquela manhã, em
que as damas, alvoroçadas, esperavam pela festa do casamento próximo, a
camareira entrou e, de joelhos, suplicou à rainha que suspendesse os esponsais
de Isabela por dois dias e que com êste favor, se lhe fôsse concedido, dar-se-ia
por paga e satisfeita de todos os serviços que lhe prestara. A rainha quis, antes
de mais nada, saber por que lhe pedia ela, com tanta insistência, o não
cumprimento da palavra que dera a Recaredo. A camareira, porém, não lhe quis
dar uma explicação sem que ela lhe atendesse antes o pedido; a rainha lhe fêz a
vontade, pois desejava muito saber a causa de tal demanda. A camareira, tendo
alcançado o que desejava, contou à rainha os sentimentos do filho, dizendo
temer que êle fizesse alguma loucura ou algum escândalo se não lhe dessem
Isabela por espôsa e que pedira aquêles dois dias a fim de que Sua Majestade
pudesse pensar em um meio de resolver a situação.
A rainha respondeu que, se sua palavra não estivesse em jôgo, ela acharia
fàcilmente uma solução para esta situação tão delicada, mas que não voltaria
atrás no que prometera e não frustraria Recaredo em suas esperanças por todo o
interêsse do mundo. Esta resposta a camareira transmitiu-a ao filho, que, sem
nada a esperar, abrasado pelo amor e pelo ciúme, apanhou as armas que pôde
e, montando o cavalo forte e formoso, dirigiu-se à casa de Clotaldo e, em altas
vozes, disse que Recaredo aparecesse na janela; o jovem, que naquele momento
vestia-se como nubente e que se preparava para ir ao palácio com um
acompanhamento que tal ocasião exigia, ouvindo vozes tão altas e tomando
conhecimento de quem as pronunciava e da maneira que se apresentava,
dirigiu-se a uma das janelas, sobressaltado. Arnesto, assim que o viu, disse-lhe:
- Recaredo, presta atenção ao que te quero dizer. A rainha, minha senhora,
ordenou-te que a servisses e realizasses façanhas que te fizessem merecedor da
formosa Isabela; partiste e voltaste com naves carregadas de ouro e com isso
pensas ter comprado e merecido Isabela; nossa rainha prometeu dá-la a ti
acreditando que não haja na côrte alguém que a sirva melhor do que tu, nem
que haja alguém que mais mereça Isabela, no que, julgo eu, pode ter-se
enganado; chegando a esta conclusão digo-te que não fizeste, nem poderás
fazer coisa alguma que te faça merecedor de Isabela; digo-te que não a mereces
e, se queres desmentir-me, desafio-te para um duelo.
Calou-se o conde e Recaredo lhe respondeu:
- Confesso que não mereço Isabela, senhor conde, e reconheço também
que criatura alguma na face da Terra a merece; por esta razão não haveria eu de
aceitar vosso desafio; aceito-o, entretanto, para responder ao atrevimento que
tivestes em vir desafiar-me.
Dito isto, afastou-se da janela e pediu que lhe trouxessem as armas
ràpidamente. Tôdas as pessoas de sua família e todos os que se encontravam
presentes para fazerem parte do acompanhamento que levaria Recaredo ao
palácio alvoroçaram-se. Dentre os que viram o Conde Arnesto armado e
ouviram-lhe o desafio, não faltou quem fôsse falar com a rainha, que mandou o
capitão de sua guarda ir prender o conde. O capitão apressou-se tanto em
executar a ordem, que chegou a tempo de ver Recaredo sair de casa, armado e
montado em um belíssimo cavalo. O conde, vendo o capitão, imaginou logo a
razão de sua presença e decidiu não se deixar prender; levantando a voz, disse
a Recaredo:
- Estás vendo, Recaredo, que estamos impedidos de lutar. se queres
castigar-me, procura-me, pois eu te procurarei, e como duas pessoas que se
procuram fàcilmente se encontram, deixemos para depois a realização de
nossos desejos.
- Está bem - respondeu Recaredo.
Nisto, chegou o capitão com tôda a sua guarda, dizendo ao conde que se
considerasse prêso em nome de Sua Majestade. O conde não resistiu, mas
pediu-lhe que o levassem à presença da rainha. O capitão atendeu ao seu
pedido e, escoltando-o, com sua guarda, levou-o ao palácio, à presença da
rainha, que já fôra informada por sua camareira do grande amor que o filho
dedicava a Isabela e que, com lágrimas nos olhos, pedira à rainha, que, sem
querer ouvir suas explicações, ordenou que lhe retirassem a espada e o
levassem prêso a uma torre.
Tôdas estas coisas atormentavam o coração de Isabela e de seus pais, que
viam perturbar-se, tão cedo, o mar de sua tranqüilidade. A camareira
aconselhou a rainha a enviar Isabela para a Espanha, pois só assim poderia
evitar que alguma coisa má acontecesse entre seus parentes e os de Recaredo,
impedindo, desta maneira, que se chegasse a resultados desastrosos;
acrescentou ainda que Isabela era católica, e tanto, que nenhuma de suas
numerosas palavras tinham podido induzi-la a deixar de sê-lo.
Respondeu-lhe a rainha que a estimava mais ainda por isso, pois
demonstrava, assim, que sabia respeitar o ensinamento de seus pais, e que não
pensava em enviá-la à Espanha porque sua formosa presença, suas inúmeras
graças e virtudes agradavam-lhe muito, e que, sem dúvida alguma, haveria de
fazê-la espôsa de Recaredo; se não fôsse naquele dia, seria em outro, e, assim,
cumpriria o prometido. As palavras da rainha deixaram a camareira tão
desconsolada, que ela não pôde dizer uma só palavra, pois achava que somente
enviando Isabela de volta à Espanha poderia fazer com que seu filho não se
batesse em duelo com Recaredo; como não fôsse bem sucedida em seu plano,
decidiu praticar uma das maiores crueldades que a cabeça de uma mulher
importante como o era ela jamais pôde imaginar: decidiu envenenar Isabela;
decidida e rápida, como o é a maior parte das mulheres, naquela mesma tarde
deu-lhe um veneno para beber, dizendo-lhe que o tomasse por ser bom remédio
para acalmar a ansiedade em que se encontrava. Logo depois que bebeu o
veneno, Isabela sentiu que lhe inchavam a língua e a garganta, que seus lábios
enegreciam, que sua voz enrouquecia, que os olhos não enxergavam e que o
peito lhe apertava. Todos êstes eram sintomas de envenenamento. As damas da
rainha informaram-na do que se passava, afirmando que só a camareira poderia
ter causado aquêle mal a Isabela. Não foi preciso muito para que a rainha
acreditasse e foi imediatamente ver Isabela, que estava quase expirando.
Mandou chamar, à pressa, todos os seus médicos e, enquanto êles não
chegavam, fêz com que lhe ministrassem algumas porções de antídotos que os
grandes príncipes costumam ter para o caso de se encontrarem em situação
semelhante. Chegaram os médicos e pediram à rainha que obrigasse a
camareira a revelar que espécie de veneno havia usado, pois não havia mais
dúvidas de que fôra ela quem envenenara a jovem. Ela revelou-lhes o nome e
assim puderam os médicos aplicar tantos e tão eficazes remédios que, com êles
e com a ajuda de Deus, Isabela pôde ficar com vida ou, pelo menos, com a
esperança de tê-la. A rainha ordenou que prendessem a camareira e a
encerrassem em um pequeno aposento do palácio, com intenção de castigá-la
pelo delito que havia praticado, embora ela procurasse desculpar-se dizendo
que, matando Isabela, oferecia um sacrifício ao céu, por tirar uma cristã da terra,
evitando que seu filho se batesse em duelo.
Quando êstes tristes acontecimentos chegaram aos ouvidos de Recaredo,
quase o fizeram perder o juízo. Isabela não perdeu a vida, mas a natureza fêz
com que ela ficasse sem as sobrancelhas, sem pestanas e sem cabelo, o rosto
inchado, descorada, a pele áspera e os olhos lacrimejantes. Ficou tão feia que, se
antes parecia um milagre de beleza, agora parecia um monstro de feiúra. Todos
os que a conheciam julgavam que seria preferível ter ela morrido do que ficar
reduzida àquele estado. Apesar de tudo isto, Recaredo tornou a pedi-la à
rainha, suplicando que a deixasse levar para casa, pois o amor que a ela
dedicava estendia-se à alma e não simplesmente ao corpo e que, se Isabela
havia perdido sua beleza, não havia, certamente, perdido suas infinitas
virtudes.
- Assim seja - disse a rainha. - Levai-a, Recaredo, e tomai cuidado, porque
levais uma riquíssima jóia, encerrada em uma caixa de madeira tôsca; Deus
sabe que eu vos queria devolvê-la da maneira que a entregastes a mim; já que
não é possível, perdoai-me; talvez o castigo que eu der à autora de tal crime
satisfaça, em parte, o desejo de vingança.
Recaredo disse-lhe inúmeras palavras, procurando justificar a atitude da
camareira e suplicando-lhe que a perdoasse, pois as desculpas que ela
apresentava eram suficientes para perdoar insultos ainda maiores. Finalmente,
entregaram-lhe Isabela e Recaredo levou-a à casa de seus pais; às ricas pérolas e
ao diamante a rainha reuniu outras jóias e outros vestidos, demonstrando o
grande amor dedicado a Isabela, que, durante dois meses, permaneceu naquele
estado, sem dar indício algum de poder voltar à sua antiga formosura; só
depois de dois meses é que a pele começou a cair, deixando ver sua formosa
cútis.
Por êsse tempo, os pais de Recaredo, acreditando que Isabela não voltasse
mais a ser o que era, decidiram mandar buscar a jovem da Escócia que antes
estivera para casar com Recaredo, e fizeram isto sem que êle o soubesse, não
duvidando de que a formosura de sua nova prometida fizesse o filho esquecer a
antiga beleza de Isabela, a quem pensavam enviar para a Espanha, em
companhia de seus pais, dando-lhes riquezas suficientes para recompensá-los
dos prejuízos passados. Não se passara ainda um mês e meio quando, sem que
Recaredo soubesse, a nova espôsa entrou pelas portas de sua casa, tão formosa
que, depois da beleza de Isabela, não havia, em Londres, outra que a igualasse
em formosura. Recaredo assustou-se com a vinda inesperada da jovem e receou
que o choque de sua presença pudesse acabar com a vida de Isabela; para
afastar êsse temor, foi até o leito de Isabela, que se achava acompanhada de
seus pais e, mesmo diante dêles, disse-lhe:
- Isabela de minha alma, meus pais, levados pelo grande amor que me
dedicam, não sabendo o quanto eu lhe quero, trouxeram para cá uma jovem
escocesa com a qual haviam planejado casar-me, antes que eu conhecesse teu
verdadeiro valor; fizeram isto, penso eu, acreditando que a beleza desta jovem
apague de minha alma a tua lembrança; eu, Isabela, sempre te dediquei um
amor que vai muito além de um simples prazer material, pois, se tua formosura
pôde cativar meus sentidos, tuas infinitas virtudes aprisionaram-me a alma, de
modo que, se te quis quando eras formosa, agora que perdeste a beleza adorote, e, para provar que digo a verdade, quero que me dês a tua mão.
Isabela estendeu-lhe a mão direita e êle, unindo-a com a sua, falou:
- Juro pela fé católica, que meus pais me ensinaram, e pelo Deus
verdadeiro, que nos está ouvindo, Isabela de minha alma, juro ser teu espôso. E
como tal me considero desde já, se queres conceder-me a graça de me pertencer.
Isabela surpreendeu-se com as palavras de Recaredo e seus pais ficaram
atônitos, pasmados. Ela não soube o que dizer-lhe; o que fêz foi somente beijar
as mãos de Recaredo muitas vêzes para depois dizer-lhe, Com voz entrecortada
pelas lágrimas, que ela o aceitava e que se considerava sua escrava. Recaredo
beijou-lhe o rosto feio, coisa que não ousara fazer antes, quando êle era
formoso; os pais de Isabela solenizaram com ternas e copiosas lágrimas as festas
do esponsal; Recaredo disse-lhes que adiaria sempre o casamento com a jovem
escocesa, que se encontrava em sua casa, recomendando-lhes que não se
recusassem, os três, a ir para a Espanha, quando seu pai lhes falasse da partida;
que partissem e o aguardassem em Cádiz ou em Sevilha, dentro de dois anos,
pois dava-lhes êle sua palavra de ir procurá-los se o céu lhe concedesse vida até
lá; disse-lhes ainda que, se não aparecesse dentro do prazo estabelecido,
estivessem êles certos de que algum motivo importante ou mesmo a morte
havia-se pôsto em seu caminho. Isabela respondeu-lhe que o esperaria, não só
por dois anos, mas pela vida tôda, até certificar-se de que êle ainda existia, pois,
quando êle morresse, estaria lavrada também sua sentença de morte. Com estas
ternas palavras, renovaram-se as lágrimas de todos e Recaredo saiu para dizer
aos pais que de maneira alguma casar-se-ia com a jovem escocesa, sem antes ter
ido a Roma, para ficar com a consciência tranqüila. Tais razões soube êle
apontar aos seus pais e aos parentes de Clisterna - assim chamava-se a escocesa
- que todos, católicos também, acreditaram fàcilmente em suas palavras;
Clisterna, por sua vez, alegrou-se por ficar na casa de seu sogro até a volta de
Recaredo, o que se verificaria dentro de um ano.
Depois de terem entrado em acôrdo, Clotaldo informou Recaredo que
decidira enviar, se a rainha permitisse, Isabela e seus pais à Espanha, pois talvez
os ares da pátria fôssem benéficos para seu completo restabelecimento.
Recaredo, para não deixar transparecer suas intenções, respondeu
simplesmente que o pai fizesse como achasse melhor, pedindo apenas que não
tirasse de Isabela riqueza alguma que a rainha lhe havia dado. Clotaldo
prometeu e, naquele mesmo dia, dirigiu-se à rainha para pedir-lhe licença de
casar seu filho com Clisterna e enviar Isabela e seus pais à Espanha. A rainha
concordou com a decisão de Clotaldo, pois achou-a acertada; em seguida, sem a
presença de advogados e sem levar a camareira a juízo, afastou-a de seu cargo e
condenou-a a pagar 10.000 escudos de ouro a Isabela; ao Conde Arnesto, por ter
lançado um desafio, desterrou-o por seis anos da Inglaterra. Quatro dias depois,
Arnesto achava-se pronto para partir. A rainha chamou um rico mercador
francês, que habitava em Londres e que possuía representantes na França, Itália
e Espanha, entregou-lhe os 10.000 escudos, pedindo-lhe um comprovante da
entrega do dinheiro, a fim de que esta quantia pudesse chegar às mãos do pai
de Isabela, em Sevilha, ou em qualquer outra praça da Espanha. O mercador,
satisfeito em seus interêsses e ganância, disse à rainha que as cédulas seriam
enviadas a Sevilha em nome de outro mercador francês, seu representante; para
tanto, teria êle que mandar uma carta a Paris ordenando que as cédulas fôssem
feitas por outro de seus representantes, a fim de que constassem as datas da
França e não as da Inglaterra, pois não pagariam assim o impôsto sôbre a
transação de mercadorias entre os reinos; era bastante que mandasse um aviso
sem data, com suas credenciais, para que o dinheiro fôsse imediatamente
entregue ao negociante de Sevilha, pois o de Paris já estaria informado de tudo.
A rainha tomou tôdas as providências para que as negociações saíssem a
contento; mandou chamar o dono de uma nave flamenga, que, no outro dia,
deveria partir para a França, a fim de que pudesse apresentar na Espanha um
documento de partida de algum pôrto da França e não da Inglaterra; pediu-lhe
também, encarecidamente, que levasse Isabela e seus pais, deixando-os em
algum pôrto da Espanha, no primeiro que chegasse, zelando pela segurança
dêles e dispensando-lhes um bom tratamento.
O homem, que desejava cair nas graças da rainha, prometeu fazer tudo o
que ela havia pedido, dizendo que os deixaria em Lisboa, Cádiz ou Sevilha.
Tomadas, pois, tôdas as precauções, a rainha mandou dizer a Clotaldo que
nada tirasse a Isabela do que lhe havia dado, quer fôssem jóias ou vestidos. No
dia seguinte, Isabela e seus pais vieram despedir-se da rainha, que os recebeu
carinhosamente. Entregou-lhe a carta do mercador e muitos outros presentes,
em dinheiro e coisas para a viagem; Isabela agradeceu de tal modo à rainha que
esta se viu ainda na obrigação de lhe fazer mais favores; despediu-se Isabela de
tôdas as damas da côrte, que, vendo agora apagada a beleza da jovem, não
queriam que ela partisse, pois não teriam mais que invejar sua formosura, e
porque sentiam-se felizes de poder mostrar suas graças, suas qualidades. A
rainha abraçou os três, desejando-lhes boa sorte, recomendando-os ao capitão
da nave, pedindo a Isabela que mandasse avisá-la quando chegasse à Espanha,
enviando sempre notícias de seu estado de saúde, por intermédio do mercador
francês. Clotaldo, sua mulher e tôdas as pessoas da casa choraram quando
Isabela partiu naquela mesma tarde, pois ela era muito querida de todos.
Recaredo não estêve presente à despedida porque, para não dar demonstração
de seus sentimentos, fêz com que alguns amigos o levassem à caça. Foram
inúmeros os presentes que a Senhora Catalina deu a Isabela; infinitos foram os
abraços, abundantes as lágrimas, inúmeras as recomendações para Isabela
escrever; pais e filha a tudo responderam afirmativamente, de modo que,
embora chorando, ficaram todos satisfeitos.
A embarcação içou as velas naquela noite; como o vento fôsse favorável e
tivessem êles tomado tôdas as providências necessárias, puderam, daí a trinta
dias, entrar na barra de Cádiz, onde Isabela e seus pais desembarcaram;
reconhecidos por tôdas as pessoas da cidade, foram recebidos com muita
alegria.
Receberam felicitações por terem encontrado Isabela, por terem
conseguido libertar-se dos mouros que os haviam aprisionado e por terem
recebido os favores dos inglêses, fato de que tomaram conhecimento através
dos escravos, que a liberalidade de Recaredo tornara livres. Por êsse tempo,
Isabela dava mostras de retornar à sua antiga formosura. Permaneceram em
Cádiz pouco mais de um mês, fazendo revisões no navio; depois disso foram a
Sevilha para ver se recebiam os 10.000 escudos, que deveriam chegar por
intermédio do mercador francês; dois dias depois, desembarcaram em Sevilha,
procuraram o representante do mercador, encontraram-no, entregaram-lhe a
carta que traziam de Londres, êle a reconheceu como verdadeira, mas não lhes
podia dar o dinheiro enquanto não recebesse o aviso e a ordem de pagamento
de Paris, mas que certamente não deveria demorar.
Os pais de Isabela alugaram uma casa vizinha ao Mosteiro de Santa Paula,
onde se encontrava uma sobrinha dêles, que possuía voz belíssima e
inigualável, e o fizeram porque Isabela havia dito a Recaredo que, quando
viesse buscá-la haveria de encontrá-la em Sevilha e que, ali chegando, era só
perguntar pela monja de melhor voz em todo o mosteiro, porque esta indicação
êle não haveria de esquecer fàcilmente e também porque sua prima, a freira de
Santa Paula, ensinar-lhe-ia sua casa. Passaram-se quarenta dias até que
chegassem os visos de Paris; aí, então, o mercador francês entregou os 10.000
escudos a Isabela, que os passou às mãos de seus pais; com êsse dinheiro e com
mais algum que conseguiram, vendendo algumas das inúmeras jóias de Isabela,
pôde seu pai voltar a ser comerciante, fato que admirou a todos os que
souberam das inúmeras perdas por êle sofridas.
Em poucos meses obteve êle o crédito que perdera e a beleza de Isabela
voltou a ser o que fôra e de tal maneira que, falando-se em beleza, todos eram
unânimes em conceder os louros à espanhola inglêsa, apelido pelo qual Isabela
era conhecida em tôda a cidade. Por intermédio do mercador francês de
Sevilha, Isabela e seus pais enviaram cartas à rainha da Inglaterra falando de
sua chegada e agradecendo os inúmeros favores que dela haviam recebido;
escreveram também a Clotaldo e a Catalina. Da rainha, não obtiveram resposta,
mas Clotaldo e sua mulher responderam-lhes, dizendo-se alegres por terem êles
chegado a salvo e comunicavam-lhes que Recaredo, um dia após a partida
dêles, partira também para a França, de onde dirigir-se-ia depois para outros
lugares, procurando assegurar a paz de sua consciência; acrescentavam, no fim,
outras palavras amorosas e ofereceram-se para auxiliá-los no que pudessem.
Esta carta obteve uma resposta cortês, amorosa e agradecida.
Isabela imaginou logo que Recaredo deixara a Inglaterra para vir buscá-la
e, alimentando essa esperança, sentia-se muito feliz, procurando levar uma vida
simples e virtuosa, a fim de que, quando Recaredo chegasse a Sevilha, ouvisse
falar mais de suas virtudes do que de qualquer outra coisa. Saía muito pouco de
casa e, quando o fazia, era para ir ao mosteiro; os únicos elogios que recebia
eram os que se podem receber em um convento. Em sua casa, em seu oratório,
dirigia o pensamento a Deus e ao Espírito Santo; jamais visitou o rio, jamais
passou por Triana, nem mesmo estêve festejando em meio ao povo, no campo
de Tablada ou na porta de Jerez, o dia de São Sebastião, que é festejado por um
número incalculável de criaturas; não assistiu a nenhuma festa pública de
Sevilha; vivia em seu recolhimento e para suas orações, esperando sempre a
chegada de Recaredo. Êste seu retraimento aguçava a curiosidade e os desejos
não só dos janotas do bairro, como também de todos aquêles que a tivessem
visto, mesmo que fôsse uma só vez; por esta razão, fizeram-lhe muitas canções,
que foram cantadas à noite em sua rua. Muitos foram os que se interessaram
por Isabela e não faltou quem fizesse a tolice de recorrer a feitiços; Isabela,
porém, permanecia imperturbável, como se fôsse uma rocha em meio ao mar:
as águas chegam a tocá-la, mas nem as ondas nem os ventos conseguem movêla. Passou-se um ano e meio e a esperança de tornar a ver Recaredo agitava
mais e mais o coração de Isabela; por êsse tempo, quando a môça imaginava
que seu prometido estava por chegar, quando já o via diante dos olhos e lhe
perguntava que motivos o teriam feito demorar-se tanto, quando já chegavam a
seus ouvidos as desculpas que êle havia de dar e quando ela se via perdoandoo, abraçando-o, como se recebesse a metade de sua alma, chegou a suas mãos
uma carta da Senhora Catalina, de Londres, datada de cinqüenta dias antes,
com os seguintes dizeres:
“Filha de minha alma. Certamente conheceste Guilharte, o pajem de
Recaredo; pois bem, foi êle quem acompanhou, como tive oportunidade de
contar já em outra carta, foi êle quem acompanhou Recaredo em sua viagem à
França e a outros lugares e foi êle próprio quem, dezesseis meses após a partida
de meu filho, entrou, ontem, pela nossa porta, dizendo que o Conde Arnesto
havia matado Recaredo a traição, na França. Imagina, minha filha, como
ficamos eu, seu pai e sua futura espôsa ao recebermos tais notícias; estamos
certos de que a desventura nos acompanha. Clotaldo e eu te pedimos outra vez,
filha de minha alma, que recomendes a Deus a alma de Recaredo, pois êle bem
o merece pelo muito que te quis; pede também a Nosso Senhor que nos dê
paciência e nos assista na hora de nossa morte, que nós pediremos também que
êle dê, a ti e a teus pais, muitos anos de vida”.
A letra e a assinatura de tal carta fizeram com que Isabela não duvidasse
da morte de seu espôso; conhecia ela muito bem o pajem Guilharte, sabia que
êle não mentia e que não tinha motivos para simular aquela morte; nem a
Senhora Catalina seria capaz de mentir-lhe ou inventar-lhe história alguma
porque não tinha nenhum interêsse em enviar-lhe tão tristes notícias; nada,
portanto, poderia fazê-la deixar de acreditar nesta nova desventura que acabava
de atingi-la. Ao terminar de ler a carta, sem derramar lágrimas e sem dar
mostras de que sofria, o rosto tranqüilo, o coração aparentemente confortado,
levantou-se, dirigiu-se ao seu oratório e, ajoelhando-se perante um crucifixo, fêz
votos de ser monja, pois, tendo morrido seu espôso, nada mais a impediria
agora. Seus pais procuraram esconder a grande dor que a notícia lhes causara, a
fim de poderem confortar Isabela em sua amargura, mas foi ela quem,
reconfortando-se, sentindo-se firme no santo e cristão propósito que fizera,
procurou consolar os pais. Falou-lhes também de suas intenções e êles
aconselharam-na a não levar seu plano a efeito, até que passassem os dois anos
de prazo pedidos por Recaredo, podendo-se também, desta forma, confirmar-se
a notícia de sua morte, e ela poderia saber, então, se realmente queria entrar
para o convento.
Isabela assim fêz e, no correr dos seis meses e meio que faltavam para
inteirar os dois anos, passou exercitando-se como religiosa e preparando-se
para entrar no mosteiro que escolhera, o de Santa Paula, onde estava sua prima.
Passaram-se os dois anos e chegou o dia em que Isabela deveria tomar o
hábito; a notícia espalhou-se por tôda a cidade e todos aquêles que a conheciam,
ou de vista ou de nome, foram ao mosteiro para vê-la; os pais de Isabela
convidaram seus amigos e êstes convidaram também outras pessoas, de modo
que ela teve um dos mais belos acompanhamentos que, em semelhante ocasião,
se viu em Sevilha. Entre os acompanhantes estavam o assistente e o provedor
da igreja, o vigário e tôdas as senhoras e senhores importantes que haviam na
cidade, pois todos desejavam ardentemente ver o sol da formosura de Isabela, o
que, por tanto tempo, lhes fôra negado; as jovens que vão receber o hábito
costumam vestir-se da melhor maneira possível, apresentando-se como alguém
que se despede de uma vida cheia de esplendores, por isso, Isabela quis vestirse ricamente; pôs aquêle mesmo vestido que usara quando fôra ver a rainha da
Inglaterra pela primeira vez e que, como já dissemos, era riquíssimo e vistoso;
todos puderam ver as pérolas e o famoso diamante, que eram de imenso valor.
Assim, enfeitada, em tôda a sua elegância, fêz com que todos avaliassem a
grandeza de Deus; Isabela saiu de sua casa a pé, pois, morando tão perto do
mosteiro, não havia necessidade de se utilizar de carros e carruagens; a
afluência de pessoas foi tão grande que os componentes do cortejo
arrependeram-se de não se terem servido de carros para entrar no mosteiro;
algumas pessoas louvavam-lhe os pais, outras louvavam a Deus pela sua
incomparável beleza; uns ficavam na ponta dos pés para vê-la, outros, depois
de vê-la uma vez, corriam mais adiante para vê-la de nôvo; havia, entretanto,
um homem vestido como prisioneiro, que acabava de ser resgatado, com o
símbolo da Santa Trindade no peito, sinal de que havia sido libertado pelos
frades da Ordem da Mercê, que era o mais solícito.
Quando Isabela, recebida segundo o uso pela abadêssa e pelas freiras,
punha os pés na porta do convento, êste prisioneiro gritou, tão alto quanto
pôde:
- Pára, Isabela, pára! Enquanto eu fôr vivo tu não poderás ser freira.
Ouvindo estas palavras, Isabela e seus pais voltaram-se e viram que o
escravo, abrindo caminho entre tôda aquela multidão, dirigia-se para onde êles
se encontravam; caíra-lhe da cabeça um barrete azul, deixando à mostra uns
cabelos crespos, côr de ouro, desalinhados, um rosto alvo como a neve e corado
como o carmim, branco e corado, sinais que fizeram todos julgarem-no
estrangeiro. Não foi sem dificuldade que êle conseguiu chegar até onde estava
Isabela e, tomando-a pela mão, disse-lhe:
- Não me reconheces, Isabela? Sou Recaredo, teu espôso.
- Reconheço - disse Isabela -, se não és um fantasma que veio para me tirar
o sossêgo.
Seus pais tocaram-no, olharam-no atentamente e reconheceram nêle, por
fim, Recaredo, que, com lágrimas nos olhos, de joelhos, perante Isabela,
suplicava-lhe que aquêles trajes estranhos e a má situação financeira em que se
encontrava não a impedissem de cumprir a palavra que ela lhe dera. Isabela,
apesar de ainda vivamente impressionada pela carta da mãe de Recaredo, que
lhe falava da morte dêle, quis acreditar mais em seus olhos e no que via, e
assim, abraçando o jovem prisioneiro, disse-lhe:
- Vós, sem dúvida alguma, meu senhor, sois a criatura que poderá
impedir-me de realizar meu propósito cristão; sois, sem dúvida alguma, meu
senhor, a metade de minha alma, pois sois meu verdadeiro espôso; trago vossa
imagem guardada em minha memória e em meu coração; as notícias de vossa
morte, enviadas por minha senhora, vossa mãe, não me tiraram a vida, mas
fizeram-me escolher uma vida de recolhimento da qual queria fazer parte;
porém, já que Deus parece ter disposto os fatos de outra maneira, não podemos
nem devemos opor-nos; vinde, senhor, à casa de meus pais, pois ela vos
pertence; ali podereis tornar-vos meu senhor, de acôrdo com os preceitos da
santa fé católica.
Todos os presentes ouviram essas palavras; o assistente, o vigário, o
provedor do arcebispo admiraram-se ao ouvi-las e quiseram saber logo do que
se tratava, quiseram saber quem era aquêle estrangeiro e a respeito de que
casamento falava. O pai de Isabela procurava responder a tôdas as suas
perguntas, acrescentando depois que aquela história exigia outro lugar para ser
contada e algum tempo para que se pudesse narrá-la; em seguida, pediu a todos
os religiosos que fôssem à sua casa, tão próxima dali, pois lá haveria de contar a
verdade, a fim de que todos ficassem satisfeitos e ficassem admirados com a
grandiosidade e estranheza do caso. Nisto, um dos presentes, levantando a voz,
disse:
- Senhores, êste jovem é um grande corsário inglês; eu o conheço, é aquêle
que, faz pouco menos de dois anos, tomou dos corsários de Argel a nave
portuguêsa que vinha das Índias; não há dúvida, eu o conheço, pois foi êle
quem me deu liberdade e dinheiro para vir à Espanha, a mim e a outros
trezentos prisioneiros.
Estas palavras alvoroçaram tôda aquela gente, despertando nela o desejo
de saber claramente a respeito de fatos tão complicados. Tôdas as pessoas
importantes, o assistente do arcebispo e demais autoridades eclesiásticas
voltaram para acompanhar Isabela até sua casa, deixando as religiosas tristes,
confusas e chorando por perderem a companhia da formosa Isabela, que, tendo
chegado à sua casa, fêz com que todos os seus acompanhantes se acomodassem
em uma grande sala que nela havia; Recaredo quis encarregar-se de contar tôda
a história, porém, pareceu-lhe melhor confiar na discrição de Isabela e em sua
maneira de falar, pois êle sabia que não falava perfeitamente a língua
castelhana. Calaram-se todos os presentes e voltaram a atenção a Isabela, que
passou a narrar os fatos, desde o dia em que Clotaldo a roubou de Cádiz até o
dia em que para ali voltou; falou da batalha de Recaredo contra os turcos, da
liberalidade que êle tivera para com os cristãos, da promessa que haviam feito
de se tornarem marido e mulher, do prazo de dois anos que Recaredo lhe
pedira, das notícias da morte dêle, notícias estas que a levaram a decidir-se pela
vida religiosa; elogiou a liberalidade da rainha, o espírito cristão de Recaredo e
de seus pais e, finalizando, pediu a Recaredo para contar o que havia
acontecido desde que êle saíra de Londres, até o tempo presente, em que se
apresentava com roupas de prisioneiro e com mostras de ter sido libertado por
esmola.
- É verdade - falou Recaredo. - Resumirei em poucas palavras os difíceis
trabalhos pelos quais passei. Depois que saí de Londres, por recusar-me a casar
com Clisterna, aquela jovem católica, da qual Isabela já teve oportunidade de
falar, levando em minha companhia Guilharte, o pajem, que, como falou minha
mãe em sua carta, levou a Londres a notícia de minha morte, cheguei a Roma,
atravessando antes a França, onde minha alma se alegrou e onde minha fé se
fortaleceu; beijei os pés do sumo pontífice, confessei meus pecados,
penitenciando-me dêles; êle absolveu-me e deu-me os papéis necessários para
comprovar minha confissão e penitência, assim como minha conversão à Santa
Madre Igreja. Depois disso, visitei os inúmeros lugares santos daquela santa
cidade e, dos 2.000 escudos de ouro que possuía, troquei 1600 por dinheiro
florentino; com os 400 que me ficaram, parti para Gênova, com intenção de vir
para a Espanha, pois eu sabia que duas galeras estavam prestes a partir.
Cheguei com Guilharte, meu criado, a um lugar chamado Água Pendente; é o
último lugar sob os domínios do papa, vindo-se de Roma para Florença; desci
em uma hospedaria ou pousada, onde me encontrei com o Conde Arnesto, meu
inimigo mortal, que, segundo pude perceber, acompanhado de quatro criados
disfarçados, ia, secretamente, para Roma, e o fazia mais por curiosidade que por
ser católico; fechei-me em um dos aposentos com meu criado, decidido a
procurar outra hospedaria, logo que a noite chegasse; não o fiz, entretanto,
porque a aparência despreocupada do conde e de seus criados fizeram-me
pensar que êles não me tivessem reconhecido; jantei em meus aposentos, fechei
a porta, examinei minha espada, rezei, mas não quis deitar-me; meu criado
dormiu e eu, recostado numa cadeira, adormeci; pouco depois da meia-noite,
quatro pistoletes acordaram-me para me fazer dormir o sono eterno, pois, como
depois fiquei sabendo, o conde e seus criados dispararam contra mim e,
julgando que eu estivesse morto, montaram os cavalos que já estavam prontos e
partiram, dizendo ao dono da hospedaria que me enterrasse, porque eu era
homem importante.
“Meu criado, segundo me disse depois o hospedeiro, despertou e pulou
uma janela que dava para o pátio, dizendo: “Ai de mim, mataram meu senhor!',
deixou a hospedaria e o deve ter feito com muito mêdo, pois só parou em
Londres e levou a notícia de minha morte. O pessoal da estalagem subiu e
encontrou-me com o corpo varado por quatro balas e por muito chumbo, mas
nenhuma das feridas foi mortal. Como católico que sou, quis confessar-me e
receber os sacramentos; fui atendido, dispensaram-me todos os cuidados, mas
não pude caminhar durante dois meses, no fim dos quais fui até Gênova, onde
encontrei apenas duas fragatas que eu e outros dois espanhóis importantes
alugamos, uma para que fôsse adiante a fim de reconhecer o caminho e outra
onde pudéssemos viajar; tomadas estas precauções, embarcamos, procurando
não nos afastar da costa da França; sem que esperássemos, fomos abordados
por duas galeotas turcas que saíram de uma enseada; uma delas cortou-nos o
caminho do mar, a outra, o caminho da terra, e, assim, conseguiram aprisionarnos; quando subimos às galeotas, despiram-nos até deixar-nos completamente
nus; tiraram tudo o que as fragatas levavam e deixaram-nas ir ter à praia, pois
não quiseram afundá-las, dizendo que nossas embarcações poderiam trazerlhes outras prêsas; ninguém poderá duvidar do quanto sofri, ao tornar-me
escravo, e, principalmente, por perder os documentos e a cédula de 1600
ducados, que trazia de Roma em um baú; quis a fortuna, entretanto, que o baú
fôsse parar nas mãos de um espanhol, escravo e cristão, que o guardou, pois, se
chegasse às mãos dos turcos, poderia servir para me resgatar, porque,
certamente, êles haveriam de verificar a origem da cédula e procurar obter seu
valor em dinheiro.
“Levaram-nos para Argel, onde encontrei-me com os padres da Santíssima
Trindade; falei com êles e expliquei-lhes quem eu era e êles, movidos pela
caridade, resgataram-me, embora eu fôsse estrangeiro, dando por mim 300
ducados, 100 de início e 200 quando o barco que trazia o dinheiro viesse para
resgatar um padre daquela ordem, que se encontrava em Argel, pois exigiram
por êle 4.000 ducados e êle já havia gasto o dinheiro que possuía. E isso porque
a caridade e desprendimento dêstes padres é tanta que êles chegam a dar sua
liberdade pela alheia; tornam-se escravos para libertar escravos. Para minha
maior felicidade, pude encontrar o baú que perdera, com os documentos e a
cédula; mostrei-a ao abençoado padre que lhe havia resgatado e ofereci-lhe 500
ducados além do preço do meu resgate, para ajudá-lo. A nave, que trazia o
dinheiro, demorou quase um ano para voltar, e o que aconteceu durante êste
ano, se tivesse que contar, daria para compor outra história; direi apenas que fui
reconhecido por um dos vinte turcos aos quais libertei, juntamente com os
cristãos, e êle mostrou-se muito agradecido, pois não quis denunciar-me; se os
turcos me reconhecessem e se lembrassem de que eu pusera a pique seus dois
navios e lhes havia tirado das mãos a grande nave que vinha da índia, ou levarme-iam à presença do paxá, ou tirar-me-iam a vida; se me levassem à presença
do grão-senhor, certamente eu jamais recobraria minha liberdade. Finalmente, o
padre redentor veio para a Espanha comigo e mais cinqüenta cristãos, que
foram resgatados. Em Valência, separamo-nos e cada um partiu para onde quis,
levando as insígnias de sua liberdade, que são êstes hábitos; cheguei hoje a esta
cidade, com tanto desejo de ver Isabela que, sem preocupar-me com mais nada,
perguntei onde ficava o mosteiro, pois êle haveria de me dar notícias de minha
espôsa; o que aconteceu daí por diante todos já sabem, mas, para que possam
acreditar em minha história, que tanto tem de assombrosa quanto de
verdadeira, é preciso que eu mostre os papéis dos quais lhes falei.” Dizendo
isto, tirou de um baú os papéis aos quais se referia, colocando-os nas mãos do
provedor, que, junto com o assistente, examinou-os, nada encontrando que
pudesse pôr em dúvida as palavras de Recaredo. E, para que elas se tornassem
mais verdadeiras, quis o céu que o mercador florentino em nome de quem
estava a cédula de 2600 ducados estivesse presente, e pedisse para ver a cédula;
mostraram-na, êle reconheceu-a como válida e aceitou-a logo, pois há muitos
meses já lhe havia chegado o aviso de tal cédula; tudo isto fêz com que à
admiração se acrescentasse admiração e ao espanto, espanto. Recaredo disse
novamente que oferecia os 500 ducados que prometera. O assistente abraçou
Recaredo, Isabela e seus pais, colocando-se cortesmente à disposição de todos.
Os outros dois sacerdotes fizeram o mesmo e pediram a Isabela que narrasse
tôda a história por escrito, a fim de que o arcebispo a lesse. Isabela disse que
sim. O grande silêncio em que todos os circunstantes se haviam mergulhado
para escutar aquela história estranha rompeu-se, pois queriam todos dar graças
a Deus pelas maravilhas que êle realizara; desde o mais rico até o mais humilde,
todos foram cumprimentar Recaredo, Isabela e seus pais, deixando-os a sós,
logo em seguida. O assistente do arcebispo foi convidado para honrar, com sua
presença, as bodas de Recaredo e Isabela, que se realizariam dali a oito dias; o
assistente sentiu-se muito honrado e, dali a oito dias, acompanhado pelas
pessoas mais importantes da cidade, lá se encontrou. Os pais de Isabela
procuraram por todos os meios recompensá-la por seu sofrimento e ela,
abençoada pelo céu, auxiliada por suas inúmeras virtudes, a despeito de tantos
contratempos, encontrou marido tão bom como Recaredo, em cuja companhia,
pensa-se, vive até hoje na casa que alugaram, nas proximidades de Santa Paula,
e que foi comprada, depois, aos herdeiros de um fidalgo burgalês, chamado
Hernando de Cifuentes.
Esta novela pode ensinar a todos nós a fôrça da virtude e da formosura,
pois ambas, quer isoladas, quer unidas, são suficientes para apaixonar até
mesmo os inimigos; pode mostrar ainda como os céus podem fazer das maiores
adversidades nossos maiores benefícios.
O casamento enganoso
Saía do Hospital da Ressurreição, situado em Valladolid, além da Porta do
Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão, pela fraqueza de suas
pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora não
estivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tôda a
disposição que, com tôda certeza, adquirira numa hora.
Andava cambaleando, tropeçando a cada momento, como um
convalescente, e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vir em sua direção um
amigo a quem não via há mais de seis meses. Este, persignando-se como se
tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:
- Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? É possível que esteja nessa
terra? Imaginava-o em Flandres, empunhando a lança, e não por êstes lados,
arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?
Campuzano respondeu:
- Se estou ou não nessa terra, Senhor Licenciado Peralta, minha presença
pode responder-lhe. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder,
senão que estou saindo daqui do hospital, onde agüentei quarenta suadouros,
por causa de uma mulher a quem escolhi para espôsa, coisa que jamais deveria
ter feito.
- Vossa Mercê casou-se? - perguntou Peralta.
- Sim senhor - respondeu Campuzano.
- Será que foi por amor? - disse Peralta, acrescentando:
- Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.
- Não saberei dizer se foi por amor - respondeu o alferes -, embora possa
garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego
tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram
quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa
aliviálas. Mas Vossa Mercê há de me perdoar: não posso manter longas
conversas na rua. Outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei, minhas
aventuras; são as mais novas e originais que Vossa Mercê terá ouvido em todos
os seus longos dias.
- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha à minha
pousada e ali choraremos juntos nossas mágoas. Além disso, tenho uma comida
própria para convalescentes; embora tenha sido preparada para dois, meu
criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas
fatias de presunto de Rutenos servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de
boa vontade, agora e tôdas as vêzes que Vossa Mercê desejar.
Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram
ambos a São Lourenço, onde ouviram missa. Depois, Peralta levou o amigo à
sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo êle
acabado de comer, pediu-lhe Peralta para narrar os acontecimentos que tanto o
haviam mortificado. Campuzano não se fêz de rogado e começou a falar:
- Vossa Mercê há de se lembrar, Senhor Licenciado Peralta, como fui, nesta
cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.
- Lembro-me, lembro-me- respondeu Peralta.
- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal acabávamos a
refeição na Pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de belo
aspecto, acompanhadas por dois criados; uma delas pôs-se logo a falar com o
capitão, encostados ambos a um canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira
junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver o seu
rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora lhe suplicasse
cortesmente que se descobrisse, nada consegui. Para completar a história, fôsse
de propósito ou por acaso, exibiu ela suas mãos muito brancas, cobertas por
magníficas jóias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que
Vossa Mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões,
com o traje de côres e a arrogância de um soldado, tão imponente aos olhos de
minha vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se
descobrisse, ao que ela respondeu:
- Não sejais importuno; tenho minha casa; fazei com que um pajem me
siga, pois, embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta, quero ver se
vossa discrição corresponde à vossa galhardia; folgarei que me vejais.
“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em paga lhe prometi
montes de ouro. O capitão concluiu sua conversa; elas se foram, seguidas pelo
meu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para levar cartas a outro
capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas êle bem sabia que eram
para seu amante. Eu fiquei abrasado pelas mãos de neve que havia visto e
ansioso pelo rosto que desejava ver. assim, no dia seguinte, guiado por meu
pajem, fui visitá-la. Dei com uma bela residência e com uma mulher de quase
trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas
podia prender-nos pelo trato, pois possuía um tom de voz tão suave e
penetrante que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios;
blasonei, garganteei, prometi; dei enfim tôdas as demonstrações que me
pareceram necessárias para tornar-me benquisto, mas ela parecia ter sido feita
para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvi-a, mas parecia não acreditar.
Para concluir: nossos colóquios floresceram durante quatro dias. Continuei a
visitá-la, sem chegar, porém, a colhêr o fruto desejado.
“Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais
percebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa môça mais astuta
que ingênua. Tratando meus amôres como soldado em vésperas de partida,
apertei, finalmente, a Senhora Dona Estefânia de Caicedo - pois êste é o nome
de quem me deixou assim -, que respondeu: “Seria ingenuidade, Alferes
Campuzano, se quisesse vender-me a Vossa Mercê como santa; tenho sido
pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem
e os empregados comentem.
Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas, apesar disso, o que
tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isto em coisas que,
vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com esta fortuna, procuro
marido a quem me entregar, a quem obedecer e a quem, juntamente com o
arranjo de minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir.
Príncipe algum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba dar o ponto
nos guisados. Poderei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor
senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam.
Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais
quando gasto sob minha orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e
da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou vendedores ambulantes;
fizeram-na êstes dedos e os de minhas criadas e, se fôsse possível tecê-la em
casa, assim teríamos feito.
Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a
necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido
que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois vá falar
mal de mim. Se Vossa Mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe
é oferecida, estou à vossa disposição, sujeita a tudo quanto Vossa Mercê
obrigar, e isto sem me pôr à venda, queé a mesma coisa que andar em língua de
casamenteiros; não há nada para con o todo como as suas próprias partes.
“Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas nos calcanhares, julgando
a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e oferecendo-se-me
tão à mão tal quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em
dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aquêles a que dava lugar a
ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi-lhe que me sentia muito
alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, tal
companheira, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus bens, não tão
poucos que não valessem juntos com aquela corrente que trazia no peito e
outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado,
mais de 2000 ducados, que, juntos aos mil e quinhentos dela, formavam quantia
mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía
alguns bens; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o
tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite
acertamos o casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros nos próximos três
dias de festas que vieram. logo pela Páscoa fizeram-se os proclamas e no quarto
dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que
dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como
foram as que até então êle dirigira à minha nova espôsa; falava, no entanto, com
intenção tão falsa e hipócrita que prefiro calar, porque, embora esteja dizendo
somente a verdade, não são verdades de confessionário, dessas que não podem
deixar de ser ditas.
“O criado levou meu baú da pousada para a casa de minha mulher.
Encerrei nêle, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras
três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim
como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e
chapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os 400 reais que possuía. Seis
dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, como genro pobre em casa de sogro
rico. Pisei custosos tapêtes, dormi em colchas da Holanda, alumiei-me com
candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às 11 horas, comendo
às 12 e fazendo a sesta àsduas. Dona Estefânia e a criada excediam-se em
agrados e cuidados. Meu criado, que até então fôra lerdo e preguiçoso,
transformou-se num azougue. Nos momentos que Dona Estefânia não passava
ao meu lado, era fácil encontrá-la na cozinha, solícita em ordenar guisados que
me despertassem o gôsto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e
lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um nôvo Aranjuez de flôres,
banhados como eram em água de flor de laranjeira.
“Êstes dias passaram voando como passam os anos sob o império do
tempo; por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má
intenção com que começara aquêle negócio. Ao fim dêles, certa manhã, quando
ainda no leito com Dona Estefânia, chamaram com grandes batidas na porta. A
criada surgiu à janela e disse:
- Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que esperávamos.
“- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.
- Quem? - respondeu ela. - Minha senhora, Dona Clementa Bueso,
acompanhada por Dom Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a aia
Hortigosa.
- Corre, mulher, e abre-lhes a porta, que já vou - disse Dona Estefânia à
criada, que parara, sem saber que atitude tomar. - E vós, senhor, pelo amor que
me tendes, não vos assusteis nem respondais em meu nome a coisa alguma que
contra mim ouvirdes.
- Mas quem se atreverá a ofender-vos em minha presença? Dizei: que
gente é essa que tanto alvorôço vos causa?
- Não tenho tempo para responder-vos - disse Dona Estefânia. - Sabei
somente que tudo o que se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual
sabereis depois.
“Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, pois
entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com
cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas
e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade de seu rosto estava oculto por um véu
leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Meléndez de Almendárez,
não menos bizarro nem menos ricamente ataviado.
“Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:
- Jesus! Que é isso? Ocupando oleito da Senhora Clementa e além disso
com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que Dona
Estefânia tomou o pé pela mão, abusando da amizade de minha senhora.
“- Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que jamais me
aborreça novamente por arranjar amigas que não o sabem ser senão quando o
desejam!
“A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:
- Não se aborreça, Dona Clementa Bueso, e creia que não é sem mistério
que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que
ficarei desculpada e Vossa Mercê sem nenhum motivo de queixa.
“A essas alturas eu já vestira as calças e a camisa; Dona Estefânia,
tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua
amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se, que o engano
era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia e
disso tudo pensava fazer seu dote. Realizado o casamento, pouco importava
que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom
Lope.
- Logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a nenhuma
outra mulher que procura marido honrado, embora por meio de um embuste.
“Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que desejava fazer
e que primeiro pensasse bem, porque poderia depois, sem ter necessidade,
precisar da justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e
tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir Dona Clementa,
coisas de pouca importância, é verdade, que, embora de má vontade e com
remorso, concordei com o desejo de Dona Estefânia. Asseguroume ela que o
engano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra
amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de Dona Clementa
Bueso e do Senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse a meu criado que
carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de
ninguém.
“Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos,
estêve lá dentro um bom espaço de tempo falando com ela; depois apareceu
uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Levou-nos a um
pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam uma só; não
havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos seis
dias e em todos êles não passou uma hora em que não tivéssemos alguma
discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus haveres,
ainda que fôsse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha pelo
quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fôra ver como
estavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto com
ela e o que tanto a ofendia, insistindo em dizer que fôra loucura notória e não
amizade perfeita. Contei-lhe tôda a história, falei que me casara com Dona
Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande bobagem que
fizera em deixar a casa a Dona Clementa, embora fôsse com a boa intenção de
conseguir um marido da importância de Dom Lope, começou a benzer-se e a
persignar-se com pressa e com tantos “Ai! Jesus!' que não pude deixar de ficar
grandemente preocupado. Ela então me disse:
- Senhor alferes, não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o
que também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus e pelo
destino, seja lá o que fôr: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que
Dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram
como dote; mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possuía
casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquêle que traz no corpo. E para
tornar viável êste lôgro Dona Clementa quis visitar um parente em Placência e
dali foi fazer uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe; neste espaço de
tempo deixou Dona Estefânia cuidando de sua casa, pois são realmente grandes
amigas. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar
para marido uma pessoa como o Senhor alferes.
“Aqui terminou ela sua conversa e eu dei princípio ao meu desespêro e,
sem dúvida, o teria prolongado se meu anjo da guarda não acudisse dizendome para não esquecer de que era cristão e de que o maior pecado dos homens
era o desespêro, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração confortoume um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e a espada para
sair à procura de Dona Estefânia, com intenção de dar-lhe castigo exemplar;
porém a sorte, que não saberei dizer se melhora ou piora as coisas, determinou
que eu não a encontrasse em lugar algum onde pensava encontrá-la. Fui a São
Lourenço e encomendei-me a Nossa Senhora; sentei-me depois em um banco e
o desgôsto me fêz cair em um sono tão pesado que não despertaria tão cedo se
não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de Dona
Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa; não
ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente. Voltei à casa de minha
hospedeira, que me disse haver contado a Dona Estefânia como eu já sabia de
tôda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu_ com a
notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, parecia-lhe, eu
saíra para procurá-la com muito má intenção. Disse, finalmente, que Dona
Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nêle uma só peça de
roupa.
“Aí é que foram elas! Aqui me teve Deus de nôvo em suas mãos. Fui ver o
baú e encontrei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia
muito bem ter sido o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha
desgraça.”
- Bem esperta foi - disse nesse momento o Licenciado
Peralta -, por ter Dona Estefânia levado tanta corrente e tantos cintos, pois
como se diz, todos os duelos ... etc., etc.
- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei
dizer: “Dom Simueque pensou que me enganava com sua filha caolha, mas,
pela vontade de Deus, sou coxo”.
- Não sei por que Vossa Mercê está a dizer isso - respondeu Peralta.
- Acontece - disse o alferes - que aquêle embrulho e aparato de correntes,
cintos e brincos poderia valer quando muito, 10 ou 12 escudos.
- Isso não é possível - replicou o licenciado -, porque a corrente que o
senhor trazia no pescoço parecia valer mais de 200 ducados.
- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à
aparência; porém, como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, cintos, jóias e
brincos eram apenas imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou
o fogo poderiam revelar sua qualidade.
- Dessa maneira - disse o licenciado -, houve empate no jôgo entre Vossa
Mercê e a Senhora Dona Estefânia?
- E tal empate - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as
cartas. Mas o estrago, senhor licenciado, é que ela poderá desfazer-se de minhas
correntes e eu não poderei sair do laço em que caí, pois, embora muito me pese,
ela é minha mulher.
- Dai graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela se foi com os
próprios pés e não estais obrigado a ir buscá-la.
- Assim é - respondeu o alferes -, porém, com tudo isso, embora não a
procure, tenho-a sempre no pensamento e, onde quer que eu vá, está presente a
afronta.
- Não sei o que responder - disse Peralta -, Só sei trazer-vos à memória
dois versos de Petrarca que dizem:
Che chi prende diletto di far frode,
non sha di lamentar saltro Nnganna.
O que em nossa língua quer dizer: “Aquêle que tem o costu me e gôsto de
enganar os outros não se deve queixar quando é enganado”.
- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o
culpado nem por reconhecer a culpa deixa de sentir a pena do castigo. Tentei
enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com as minhas próprias armas,
mas não posso evitar que tais sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais
importa no meu romance, pois tal nome se pode dar às minhas aventuras, é ter
sabido que Dona Estefânia se fôra com o primo, o mesmo que se encontrava em
nosso casamento e que tempos atrás fôra seu amigo para tôdas as coisas. Não
quis procurá-la para não encontrar o mal que me faltava. Mudei de pousada e
cabelo, em poucos dias, pois começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas,
dos cílios e pouco a pouco êles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: deume uma doença que chamam de calvície.
Achei-me verdadeiramente limpo; não possuía cabelos para pentear nem
dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao lado da minha miséria e,
como a pobreza atropela a honra e leva uns à fôrça, outros ao hospital e ainda
faz outros baterem nas portas de seus inimigos com pedidos e súplicas, o que é
uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz; por não ter
podido cuidar das roupas que me haveriam de cobrir e assegurar a saúde, ao
chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, para
êle me dirigi e ali tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar;
espada ainda possuo; o resto ficará nas mãos de Deus.
As duas donzelas
A 5 léguas da cidade de Sevilha há um lugar chamado Castilblanco. Ao
anoitecer, entrou, em uma das muitas hospedarias que ali existem, um viajante,
montando um formoso cavalo estrangeiro; não o acompanhava nenhum criado
e, sem esperar que lhe segurassem o estribo, pulou da sela com grande
ligeireza.
O estalajadeiro, que era homem diligente e atencioso, apressou-se em
recebê-lo, mas não o fêz suficientemente rápido a ponto de impedir o viajante
de sentar-se em um banco de pedra, que havia junto à porta. O desconhecido
desabotoou ràpidamente a roupa e deixou cair para os lados ambos os braços,
dando mostras de que ia desmaiar. A estalajadeira, que era muito bondosa,
chegou-se a êle e, borrifando-lhe o rosto com água, fê-lo voltar do desmaio.
Demonstrando que se aborrecera por ter-se deixado ver daquela maneira,
abotoou a roupa e pediu que lhe dessem logo um aposento onde pudesse
recolher-se e, se fôsse possível, para colocarem-no sozinho.
A estalajadeira disse-lhe que havia em tôda a casa apenas um quarto com
duas camas e que, se viesse outro hóspede, seria obrigada a acomodá-lo na
outra cama. O viajante respondeu que pagaria pelos dois leitos, viesse ou não
algum hóspede, e, tirando 1 escudo de ouro, deu-o à estalajadeira, com a
condição de ela não ceder a ninguém o leito vazio.
A estalajadeira não se entristeceu com a paga, pelo contrário, ofereceu-se
para fazer o que êle pedia, ainda que o próprio deão de Sevilha chegasse
naquela noite à sua casa. Perguntou ela ao viajante se queria jantar e êle
respondeu que não; pediu a chave do quarto e, levando consigo umas bôlsas
grandes de couro, entrou no aposento, fechou a porta à chave, e ainda, como se
pensou depois, encostou nela duas cadeiras.
Mal êle se fechou, o estalajadeiro, o rapaz que cuidava dos cavalos e
outros dois vizinhos que ali se encontravam, todos, enfim, elogiaram a grande
formosura e garbosa disposição do nôvo hóspede, chegando à conclusão de que
jamais haviam visto tanta beleza. Calcularam a idade dêle e acharam que
deveria ter de dezesseis a dezessete anos; deram tratos à bola, como se costuma
dizer, para descobrirem a causa do seu desmaio, mas, como não conseguissem,
contentaram-se em elogiar-lhe a galhardia.
Os vizinhos foram embora para casa, o estalajadeiro foi cuidar do cavalo e
a estalajadeira foi preparar o que comer, para o caso de aparecerem outros
hóspedes. Não demorou muito, entrou outro rapaz, um pouco mais velho e tão
elegante quanto o primeiro. A estalajadeira, nem bem o viu, disse:
- Valha-me Deus! O que é isso? Será que os anjos querem pousar em
minha casa esta noite?
- Por que a senhora estalajadeira diz isso? - perguntou o cavalheiro.
- Por nada, senhor - respondeu ela. - Digo apenas a Vossa Mercê para não
apear porque não tenho cama para dar-lhe, onde Vossa Mercê possa dormir. Eu
tinha duas, mas um cavalheiro, que está naquele quarto, embora precisasse
apenas de uma, tomou-as e pagou ambas, a fim de que ninguém entre no
aposento. êle deve gostar da solidão, mas não sei por que, pois motivos para se
esconder não tem, antes o tem para que todo o mundo o veja e o bendiga.
- É assim tão bonito, senhora estalajadeira? - perguntou o cavalheiro.
- E como é bonito! - respondeu ela. - É mais que bonito. - Segura aqui,
rapaz - disse á estas alturas o cavalheiro. - Embora tenha eu de dormir no chão,
preciso ver êsse homem tão elogiado.
E, dando o estribo a um rapaz, que o acompanhava, apeou e pediu para
lhe trazerem logo o jantar. E assim se fêz. Estava êle a jantar, quando entrou um
aguazil - que sempre há nos lugares pequenos - e sentou-se para conversar com
o rapaz enquanto êle jantava. E, conversa vai, conversa vem, não deixou de
engolir três bons copos de vinho, de roer o peito e uma coxa de perdiz que o
cavalheiro lhe deu. O aguazil pagou-o, pedindo-lhe notícias da côrte, das
guerras de Flandres, dos turcos, não se esquecendo ainda dos acontecimentos
da Transilvânia, que Deus, Nosso Senhor, guarde.
O cavalheiro jantava calado porque não vinha da côrte e não podia,
portanto, responder a suas perguntas. O hospedeiro, que acabava naquele
instante de tratar do cavalo, sentou-se para tomar parte na conversa e para
beber de seu próprio vinho tantos tragos quantos bebêra o aguazil.
Acompanhava cada trago com uma inclinação de cabeça por sôbre o
ombro esquerdo, e elogiava o vinho, pondo-o nas nuvens, embora não o
deixasse lá por muito tempo a fim de não ficar aguado. Aos poucos, puseram-se
a elogiar o hóspede que se encontrava no quarto; falaram do seu desmaio e
disseram que êle não quisera comer nada; lembraram a história das bôlsas, a
qualidade do cavalo, as vistosas roupas de viajante que o rapaz usava,
estranhando, porém, o fato de não trazer nenhum criado para servi-lo. Todos
êstes elogios despertaram no cavaleiro o desejo de ver o outro jovem; pediu ao
estalajadeiro para dar um jeito de pô-lo a dormir na outra cama, que lhe daria 1
escudo de ouro. A cobiça do estalajadeiro venceu-o, mas, mesmo assim, nada
pôde fazer, porque a porta estava fechada por dentro e êle não se atrevia a
despertar o jovem, que lhe havia pago tão bem pelos dois leitos. O aguazil
procurou ajeitar a situação, dizendo:
- O que se pode fazer é chamá-lo à porta, dizendo que sou da Justiça e que,
a mandado do senhor alcaide, pedi ao senhor estalajadeiro para dar pousada a
êste rapaz; e, não havendo outra cama, é preciso que aquela lhe seja dada. O
hóspede há de alegar que o ofendem, pois já está alugada e não será direito tirála; com isto, o estalajadeiro será desculpado e Vossa Mercê conseguirá seu
intento.
Todos gostaram do plano do aguazil, o rapaz principalmente, pois lhe deu
4 reais.
Puseram mãos à obra; o rapaz que chegara primeiro à hospedaria abriu a
porta ao ouvir “em nome da Justiça”, mostrando-se bastante aborrecido; o
outro, pedindo-lhe desculpas pela ofensa que lhe parecia ter feito, deitou-se no
leito desocupado, mas o primeiro não lhe disse uma palavra, nem ao menos o
deixou ver-lhe o rosto, porque, mal abriu a porta, voltou para a cama, virou-se
para a parede e, para não responder, fingiu que dormia. O segundo jovem
deitou-se; esperando pela manhã e esperando ver realizado o seu desejo
quando se levantassem. Estávamos em uma dessas noites dolentes, preguiçosas
e longas de dezembro; o frio e o cansaço da viagem obrigavam a procurar
repouso; o nosso primeiro hóspede, porém, não podia descansar e, lá pela meianoite, começou a suspirar tão amargamente que, a cada suspiro, a alma parecia
abandonar-lhe o corpo; suspirava, enfim, de tal maneira que o tom lastimoso de
sua voz despertou seu companheiro e êste, admirado com os soluços que
acompanhavam os suspiros, pôs-se a escutar atentamente o que o outro mal
murmurava. O aposento estava às escuras e as camas bem afastadas, mas nem
por isso deixou êle de ouvir estas palavras, entre muitas outras que o primeiro
hóspede, com voz fraca e debilitada, dizia:
- Ai de mim! Onde me leva a obstinada fôrça de meus fados? Qual é o meu
caminho ou que saída espero encontrar para o complicado labirinto onde me
encontro? Ah, poucos e inexperientes anos, incapazes de discernir e aceitar
conselhos! Que fim há de ter essa minha desconhecida peregrinação? Ah, honra
desprezada! Ai, amor mal agradecido! Respeito de honrados pais e parentes
ofendidos! Ai de mim mil e uma vezes, pois me deixei levar pelo vendaval de
meus desejos! Ó palavras fingidas que tanto me obrigastes a retribuir com
obras! Porém, de quem me queixo, pobre de mim! Não foi a mim que ele quis
enganar? Não fui eu quem tomou de uma lâmina com as próprias mãos e
cortou e atirou por terra o crédito em cujo valor se fiavam meus velhos pais? Ó
mentiroso Marco Antônio! Como é possível que as doces palavras que me
dizias estivessem mescladas com o fel de tuas grosserias e desdéns? Onde estás,
ingrato? Para onde fôste? Responde-me, é a ti que falo; espera-me que te sigo;
sustenta-me, que desmaio; paga-me o que me deves; socorre-me, pois a ti estou
ligada.
Em seguida, calou-se, demonstrando, pelos ais e pelos suspiros, que seus
olhos não deixavam de derramar ternas lágrimas. O outro hóspede permanecera escutando tudo em silêncio, concluindo, pelas palavras que ouvira,
tratar-se de uma mulher, fato que lhe avivou ainda mais o desejo de conhecê-la,
e estêve muitas vêzes para ir até o leito daquela que se lastimava e o teria feito
se em certo momento não a visse levantar-se e abrir a porta do aposento para
ordenar ao hospedeiro que encilhasse o cavalo, pois queria partir. Ao fim de um
bom espaço de tempo, o estalajadeiro disse-lhe que sossegasse, pois ainda não
passava de meia-noite. e a escuridão era tanta que seria temeridade querer pôrse a caminho. O rapaz acalmou-se e, tornando a fechar a porta, atirou-se na
cama, exalando um profundo suspiro.
O outro rapaz, que o escutava, acreditou ser muito bom falar-lhe e
ofereceu-se para ser útil no que fôsse possível; assim, poderia obrigá-lo a
mostrar-se e a contar-lhe sua triste história. Disse-lhe então:
- Por certo, cavalheiro, se os suspiros que destes e as palavras que
pronunciastes não tivessem tocado meu coração, pelo mal do qual vos queixais,
pensaria que não tenho sentimento ou que minha alma é de pedra e meu peito
de duro bronze; se a pena que sinto de vós e a intenção que em mim nasceu de
pôr minha vida à procura de um remédio - se é que vosso mal é curável merecem algum favor, como recompensa, rogo-vos que useis delas, declarandome, sem nada encobrir, a causa de vossa dor.
- Se eu não tivesse perdido o juízo - respondeu o queixoso -, não teria me
esquecido de que não estava só neste aposento, teria freado um pouco mais
minha língua e dado trégua a meus suspiros; mas, como paga de haver-me
faltado a memória quando eu mais precisava dela, farei o que me pedis, porque,
relembrando a amarga história de minhas desgraças, talvez meu nôvo
sentimento se acabe. Se quereis, entretanto, que eu atenda o vosso pedido,
havereis de prometer, diga eu o que disser, pela fé que demonstrastes com
vosso oferecimento e por quem sois e vossas palavras parecem provir de um
homem de bem -, havereis de prometer não vos mover de vosso leito nem vir
até o meu nem me perguntar nada além do que eu vos quiser dizer. Se fizerdes
o contrário, ao perceber eu que vos moveis, transpassarei meu peito com uma
espada que tenho aqui à cabeceira.
O outro, tendo prometido o impossível, ansioso por saber de tudo,
respondeu-lhe que não perguntaria um “a” além do prometido, reforçando suas
palavras com mil juramentos.
- Assim sendo, com esta promessa, farei o que até agora não fiz: prestar
contas de minha vida a alguém. Havereis de saber, senhor, que eu entrei nesta
hospedaria - e, sem dúvida, já vos terão dito - vestida como homem. Sou,
entretanto, uma infeliz donzela, ou melhor, fui, porque deixei de sê-lo, não faz
oito dias, por ser imprudente, louca e por acreditar nas palavras bonitas de um
homem falso. Meu nome é Teodósia e minha terra, um lugar importante de
Andaluzia, cujo nome prefiro não revelar, porque a vós não interessa tanto
sabê-lo como a mim interessa ocultá-lo. Meus pais são nobres e um pouco mais
que medianamente ricos; tiveram êles um filho e uma filha: êle, para seu
consôlo e orgulho; ela, para seu desgôsto. O filho, enviaramno para estudar em
Salamanca; a mim, mantinham-me em sua casa, onde me criavam com o
recolhimento e recato exigidos pela sua virtude e nobreza e eu, sem pesar
algum, sempre fui obediente, combinando, subordinando, adaptando minha
vontade à dêles, sem discordar em nada, até que minha falta de sorte ou, talvez
minha sorte excessiva fêz com que o filho de um nosso vizinho, mais rico do
que meus pais e tão nobre quanto êles, me visse. Quando o olhei pela primeira
vez, senti apenas satisfação por tê-lo visto, mas não foi muito, pois sua
elegância, sua galhardia, seu semblante e seus costumes eram elogiados e
apreciados pelo povo, bem como sua rara discrição e cortesia. Mas de que me
serve louvar meu inimigo e ir prolongando com palavras minha desgraça ou,
para melhor dizer, o princípio de minha loucura? Digo, enfim, que êle me viu,
uma e muitas vêzes, de uma janela fronteira à minha; dali, segundo meu
parecer, enviou-me a alma pelos olhos e os meus gostaram de vê-lo, sentindo
uma alegria diferente daquela que sentiram quando eu o vi pela primeira vez,
forçando-me a acreditar na veracidade de tudo que eu lia em seu rosto e em
seus gestos. Os olhos foram os intercessores e medianeiros da palavra; a palavra
foi para declarar seus desejos; seus desejos despertaram os meus e fizeram-me
acreditar nos dêle. Acrescentaram-se a tudo isto as promessas, os juramentos, as
lágrimas, os suspiros e tudo aquilo que, segundo penso, pode um enamorado
fazer para revelar a integridade de sua vontade e a firmeza de seus sentimentos
e em mim - infeliz! -, que nunca me vira em situação semelhante, cada palavra
era um disparo de artilharia a derrubar parte da fortaleza de minha honra; cada
lágrima era uma fogueira onde se abrasava minha honestidade; cada suspiro,
um furioso vento a avivar a fogueira de tal sorte que acabou por consumir
minha virtude até então imaculada. Finalmente, com a promessa de ser meu
marido, mesmo contra a vontade dos pais, que lhe haviam reservado outra
pessoa, vi todo o meu recato ir por terra; sem saber como, entreguei-me a êle, às
ocultas de meus pais, tendo como testemunha de meu desatino apenas um
pajem de Marco Antônio, que êste é o nome do perturbador de meu sossêgo.
Roubou de mim tudo quanto quis e, dali a dois dias, sumiu da cidade, sem que
seus pais ou qualquer outra pessoa soubessem dizer ou imaginar para onde
fôra. Como fiquei, diga-o quem tiver poder para dizê-lo, pois eu soube e sei
apenas sentir. Arranquei os cabelos, como se êles tivessem culpa de meu êrro;
arranhei meu rosto, por parecer-me ter sido êle a causa de minha desventura;
amaldiçoei minha sorte, lamentei minha precipitação; derramei infinitas
lágrimas, vi-me quase afogada nelas e nos suspiros que saíam de meu peito
ofendido, queixei-me ao céu em silêncio, dei tratos à imaginação para ver se
descobria algum caminho a seguir. Pensei, então, em vestir-me de homem,
ausentar-me da casa de meus pais e ir procurar êste Enéas enganador, êste cruel
e falso Vireno, êste defraudador de meus bons pensamentos, de minhas
legítimas e bem fundadas esperanças. E assim, para encurtar minhas palavras,
encontrando um traje de viagem de meu irmão, um cavalo que pertencia a meu
pai e que eu criei -, saí de casa, em uma noite muito escura, com intenção de ir a
Salamanca, aonde, segundo se falou depois, Marco Antônio poderia ter vindo,
porque é também estudante e colega de meu irmão. Não me esqueci também de
arranjar uma boa quantia de dinheiro em ouro, para auxiliar-me em tudo que
me possa acontecer nesta precipitada viagem. O que mais me atemoriza é saber
que meus pais haverão de me seguir e, por causa de minhas roupas e do cavalo,
haverão de me encontrar. Além disso, tenho mêdo de meu irmão, que se
encontra em Salamanca, pois, se êle me reconhecer, já se pode imaginar o perigo
que minha vida corre, porque, embora êle escute minhas justificações, poderá
querer vingar a honra ofendida. Apesar de tudo isto, decidi, ainda que perca a
vida, procurar aquêle meu cruel espôso, quenão pode recusar-se a sê-lo, pois
deixou em meu poder um anel de diamantes com as seguintes palavras: “Marco
Antônio, espôso de Teodósia”. Se eu o encontrar, saberei o que viu êle em mim
que o levou a abandonar-me assim tão depressa. Eu o farei cumprir suas
promessas, não o deixarei, enfim, faltar à palavra dada, ou então, renunciarei à
vida, mostrando-me, na vingança, tão rápida quanto o fui ao consentir na
ofensa, porque a nobreza do sangue que meus pais me deram desperta aos
poucos meus brios, que exigem ou o remédio imediato ou a vingança ao meu
ultraje. Esta é, cavalheiro, a verdadeira e infeliz história, suficiente para
justificar os suspiros e as palavras que vos despertaram. Peço-vos, já que não
podeis, ajudai-me ao menos a evitar os perigos que me rondam, a abrandar o
temor que tenho de ser encontrada e facilitar os meios dos quais devo lançar
mão para executar meus planos, tão desejados quanto necessários.
O rapaz, após ouvir a história da enamorada Teodósia, ficou sem dizer
palavra um bom espaço de tempo. Teodósia pensou que êle estivesse dormindo
e não ouvira coisa alguma. Para certificar-se de sua suspeita, perguntou-lhe:
- Dormis, senhor? Seria natural que dormísseis, porque as desditas de um
apaixonado, contadas a quem não as sente, na verdade despertam mais sono do
que lástima.
- Não estou dormindo - respondeu o cavalheiro -, estou tão acordado e de
tal modo sinto a vossa desventura, que talvez ela me aflija e doa tanto quanto a
vós. Por isso, não me contentarei apenas com aconselhar-vos. mas também vos
ajudarei em tudo quanto minhas fôrças permitirem, pois, embora a maneira
pela qual contastes vossa história tenha mostrado o raro entendimento de que
sois dotada e tenha mostrado, segundo vossas palavras, que fôstes enganada
mais pela vossa vontade enfraquecida do que pelas promessas de Marco
Antônio, sou obrigado a acreditar ter sido a causa de vosso êrro os vossos
poucos anos, que não conhecem a falsidade dos homens. Tranqüilizai-vos,
senhora, e, se podeis, dormi o pouco da noite que resta, pois, vindo o dia,
conversaremos e veremos que solução poderíamos encontrar para vosso
problema.
Teodósia agradeceu-lhe da melhor maneira que pôde, procurou descansar
um pouco e deixar o cavalheiro dormir, mas êste não pôde descansar um só
momento, começou a mexer-se na cama e a suspirar, de modo que Teodósia se
viu obrigada a perguntar-lhe o que sentia, pois, se fôsse alguma coisa que ela
pudesse remediar, haveria de fazê-lo com a mesma boa vontade demonstrada
por êle em querer servi-la. O cavalheiro respondeu:
- Sois vós, senhora, a causa de meu desassossêgo; não sereis vós quem
poderá saná-lo, pois, se o fôsseis, eu não teria pena alguma.
Teodósia não pôde entender a intenção daquelas palavras confusas;
continuou, porém, a suspeitar de que alguma paixão amorosa o perturbava;
pensou ainda ser ela a causa, e era mesmo de suspeitar, pois a comodidade do
aposento, a calma, a escuridão e o fato de ela ser mulher poderiam, fàcilmente,
ter despertado nêle algum mau pensamento. Receando isto, vestiu-se rápida e
silenciosamente, cingiu a espada e a adaga e, daquela maneira, sentada sôbre a
cama, permaneceu, esperando o dia, que, dali a pouco, anunciou sua chegada,
com a luz que penetrava pelas várias passagens usuais em aposentos de
hospedarias e estalagens. O cavalheiro fêz o mesmo que Teodósia fizera e, mal
viu o aposento iluminado pela luz do dia, ergueu-se da cama e disse:
- Levantai-vos, Senhora Teodósia, que eu quero acompanhar-vos nesta
jornada e não vos abandonarei senão quando tiverdes Marco Antônio como
legítimo espôso; em caso contrário, ou eu ou êle perderá a vida. Por isso,
poderei ver a obrigação que me impôs vossa desgraça.
Dizendo isto, abriu as janelas e as portas do aposento. Teodósia estivera
esperando pela claridade para ver, com a luz, o porte e a fisionomia daquele
com quem estivera falando durante tôda a noite; mas, quando o viu e
reconheceu, quisera que jamais tivesse amanhecido e antes lhe tivessem fechado
os olhos em escuridão perpétua, porque, apenas o cavalheiro voltou os olhos
para vê-la - que também êle desejava olhá-la -, ela reconheceu que êle era seu
irmão, a quem temia. Ao vê-lo, quase perdeu os sentidos, ficou atônita, muda e
sem côr. Fazendo, porém, do temor, esforços, e do perigo, sensatez, tomou da
adaga e prostrou-se de joelhos perante o irmão, dizendo, com voz perturbada e
receosa:
- Toma, querido irmão, e castiga-me com esta lâmina pelo crime cometido;
descarrega tua ira, pois, para tão grande culpa, misericórdia alguma deverá
valer-me; confesso meu pecado e não quero que meu arrependimento sirva
como desculpa; suplico-te apenas que o castigo se limite a tirar-me apenas a
vida e não a honra, pois, embora eu a tivesse pôsto em perigo, ausentando-me
da casa de meus pais, ela não será posta em jôgo se o castigo que me deres fôr
secreto.
O irmão olhava-a e, embora seu atrevimento o incitasse à vingança, as
palavras ternas e firmes com que ela manifestava sua culpa abrandaram-lhe de
tal sorte o ânimo que êle, calma e amàvelmente, soergueu-a do solo e consoloua da melhor maneira possível, dizendo-lhe, entre outras coisas, que, por não
achar um castigo à altura de sua culpa, e também por parecer-lhe que a fortuna
ainda não lhe havia fechado de todo as portas, suspendia-o por enquanto;
queria antes procurar-lhe um alívio por todos os meios possíveis e não se
vingar do agravo a que sua leviandade a conduzira.
Estas palavras fizeram Teodósia recobrar o ânimo, recuperar a côr e
reavivar suas esperanças quase mortas. Dom Rafael, assim se chamava seu
irmão, não quis mais falar do ocorrido; disse-lhe apenas que mudasse o nome
de Teodósia para Teodoro e sugeriu que ambos fôssem dar uma volta em
Salamanca para procurar Marco Antônio, embora julgasse que não deveria estar
lá, porque, sendo seu amigo, teria ido procurá-lo, mas podia ser também que a
ofensa que lhe fizera lhe tivesse tirado a vontade de vê-lo. Teodósia submeteuse à vontade do irmão. Nisso, entrou o estalajadeiro e êles pediram-lhe algo
para comer, pois desejavam partir imediatamente.
Enquanto o criado selava as mulas e o almôço não vinha, entrou na
estalagem um fidalgo com roupas de viagem, e que Dom Rafael logo
reconheceu. Teodoro também o conhecia e por isso não se atreveu a sair do
aposento, para não ser visto. Abraçaram-se e Rafael perguntou ao recémchegado que novidades havia em sua terra. O outro respondeu que vinha do
pôrto de Santa Maria, onde deixara quatro galeras prontas para partir rumo a
Nápoles, e que Marco Antônio Adorno, filho de Dom Leonardo Adorno,
embarcara numa delas. Dom Rafael alegrou-se com as notícias, pois pareceu-lhe
que o fato de ter recebido inesperadamente informações a respeito de coisas que
tanto lhe interessavam era sinal de que sua emprêsa haveria de ser bem
sucedida. Pediu ao amigo para ceder-lhe a mula que montava.
Em troca, dar-lhe-ia seu cavalo, porque não queria levar tão bom animal
em tão longa viagem, pois lhe dissera que ia a Salamanca, e não que vinha de lá.
O outro, que lhe tinha grande amizade, concordou e encarregou-se de entregar
o cavalo ao pai de Dom Rafael. Comeram juntos, o amigo logo se despediu e
tomou o caminho de Cazalha, onde possuía uma rica propriedade. Dom Rafael
não partiu com êle, pois disse que precisava voltar naquele dia para Sevilha;
assim, tão logo o viu partir, estando já prontas as cavalgaduras e acertadas as
contas com o estalajadeiro, saíram, dizendo adeus e deixando admirados todos
os que ali se encontravam, com sua formosura e elegância, pois Dom Rafael
destacava-se por seu garbo e desenvoltura e sua irmã pela graça e beleza.
Ao sair, Dom Rafael contou imediatamente as notícias que lhe haviam
dado de Marco Antônio, dizendo ainda que deviam dirigir-se ràpidamente para
Barcelona, onde, em geral, as galeras que vão para a Itália ou vêm para a
Espanha costumam parar; se as galeras não tivessem ainda chegado, poderiam
esperá-las, pois, sem dúvida, haveriam de encontrar-se com Marco Antônio. A
irmã disse-lhe para fazer o que lhe parecia melhor, pois sua vontade limitava-se
a querer o que ele quisesse. Dom Rafael pediu ao cavalariço que o
acompanhava para ter paciência, pois precisava ir a Barcelona, assegurando-lhe
que pagaria, conforme sua vontade, pelo tempo que ficasse com ele. O criado,
que era alegre e conhecia a liberalidade de Dom Rafael, respondeu que o
serviria e o acompanharia até o fim do mundo. Dom Rafael perguntou à irmã
quanto dinheiro ela levava. Ela respondeu que não o contara e, portanto, não
sabia, mas havia pôsto a mão no cofre de seu pai sete ou oito vêzes, tirando-a
cheia de escudos de ouro. Esta informação fez Dom Rafael calcular que ela
poderia ter tirado uns 500 escudos; êstes, somados a outros 200 que ele possuía
e a uma cadeia de ouro, garantiram-lhe maior sossego, pois já estava certo de
que haveria de encontrar Marco Antônio em Barcelona.
Apressaram-se e sem empecilho algum chegaram a 2 léguas de um lugar
chamado Igualada, que fica a 9 léguas de Barcelona. Pelo caminho souberam
que um cavalheiro, que ia para Roma como embaixador, estava em Barcelona,
esperando pelas galeras, que ainda não haviam chegado; esta notícia os deixou
muito contentes. Caminharam até entrar em um bosquezinho atravessado pela
estrada, de onde viram um homem sair correndo e olhando para trás
espantado. Dom Rafael cortou-lhe a carreira, dizendo-lhe:
- Por que correis, bom homem? Que vos aconteceu para estardes assim
com êste mêdo que vos faz tão ligeiro?
- E como não hei de correr com tôda a fôrça e mêdo, se escapei, por
milagre, a um grupo de bandoleiros que se esconde nesse bosque? - falou ele.
- Muito mau - falou o criado. - Deus nos livre! Bandoleiros a estas horas?
Benzamo-nos, pois se êles nos pegam...
- Não vos assusteis, irmão - falou o homem que saía do bosque -, pois os
bandoleiros já se foram e deixaram, amarrados às árvores dêste bosque, mais ou
menos trinta passageiros, largando-os em manga de camisa; deixaram livre
apenas um homem para desamarrar os outros, depois que tivessem transposto
um pequeno morro que indicaram.
- Se é assim - disse Calvete, pois assim se chamava o criado -, podemos
passar sem mêdo, porque os bandoleiros não costumam voltar por alguns dias
ao lugar que assaltam, e posso afirmar-vos isso como quem conhece bem a
palma da mão e sabe quais os seus usos e costumes.
- É assim mesmo - disse o homem.
Dom Rafael, ouvindo isso, decidiu seguir para frente. Não demorou muito
para encontrarem as pessoas amarradas e que eram mais de quarenta; o homem
deixado sôlto estava desamarrando-os. Vê-los era um espetáculo singular: uns,
completamente nus; outros, vestidos com as roupas sujas dos bandoleiros,
outros, rindo ao verem as esquisitas roupas dos companheiros; êste contava
minuciosamente o que lhe haviam roubado; aquêle dizia que sentia mais a
perda de um agnus que trouxera de Roma que a das inúmeras coisas que
levava. Enfim, tudo ali era gemidos e prantos dos miseráveis despojados. Os
dois irmãos olhavam tudo, imensamente penalizados, dando, porém, graças ao
céu, que os havia livrado de tão grande perigo. Entretanto, o que mais lhes
causou compaixão, especialmente a Teodoro, foi ver, prêso ao tronco de uma
azinheira, um rapaz que aparentava ter uns dezesseis anos, vestindo apenas
uma camisa e um calção de algodão, mas tão formoso de rosto, que obrigava
todos a olharem para êle. Teodoro apeou, foi desamarrá-lo e êle agradeceu-lhe
com palavras corteses o benefício; Teodoro pediu a Calvete, o criado, para
emprestar-lhe a capa até que pudessem comprar outra para o gentil mancebo.
Calvete deu-lha e Teodoro cobriu com ela o rapaz, perguntando-lhe de onde
era, de onde vinha e para onde ia. Dom Rafael presenciava tudo e ouviu o rapaz
dizer que era de Andaluzia e, dizendo o nome do lugar, souberam todos tratarse de uma cidade que ficava apenas a duas léguas de onde moravam. O rapaz
disse que vinha de Sevilha e pensava ir à Itália para exercitar-se no manejo das
armas, como o faziam muitos outros espanhóis; a sorte, porém, não lhe fôra
favorável, pois os bandoleiros lhe haviam levado boa quantia de dinheiro e
umas roupas que não se compram com apenas 300 escudos; apesar de tudo isso,
porém, pensava prosseguir em seu caminho, porque era gente de fibra e o calor
de seu desejo não haveria de gelar com o primeiro empecilho.
As palavras do rapaz, o fato de ser de um lugar tão próximo de sua cidade
e a carta de recomendação que era sua beleza fizeram os dois irmãos se
oferecerem para ajudá-lo em tudo o que lhes fôsse possível; repartiram êles
algum dinheiro entre os que pareciam mais necessitados, especialmente os
frades e clérigos, que eram mais de oito, fizeram o mancebo montar o cavalo de
Calvete, e, sem demorar mais, chegaram logo a Igualada, onde souberam que as
galeras haviam chegado a Barcelona no dia anterior e partiriam dali a dois dias
se a discutível segurança da praia não os obrigasse a partir antes.
Estas notícias fizeram-nos levantar-se na manhã seguinte antes do sol.
Dormiram pouco durante a noite e sobressaltados, porque, estando êles à mesa,
Teodoro olhou demoradamente o rapaz que haviam desatado e, observando-o,
pareceu-lhe ter êle as orelhas furadas. Por isso, por seu olhar meio envergonhado, Teodoro desconfiou que se tratasse de uma mulher e desejou acabar de
comer logo para poder certificar-se de suas suspeitas. Durante o jantar, Dom
Rafael perguntou-lhe de quem era filho, pois conhecia tôda a gente importante
do lugar de onde êle dissera ter vindo. O jovem respondeu que era filho de
Dom Enrique de Cárdenas, cavalheiro muito conhecido. Dom Rafael disse-lhe
que conhecia muito bem a Dom Enrique e tinha certeza de que êle não possuía
filho algum, mas, se êle assim falara para não revelar o nome de seus pais, não
tinha importância e nunca mais lhe faria perguntas.
- É verdade - replicou o môço - que Dom Enrique não tem filhos, mas um
irmão seu, chamado Dom Sancho, os tem.
- Mas êsse também não tem filhos - disse Dom Rafael - e sim uma única
filha. Dizem que é das mais formosas donzelas que há em Andaluzia, mas isto
eu sei apenas por ter ouvido falar, pois, embora eu tenha estado lá inúmeras
vêzes, jamais pude vê-la.
- Tudo o que dizeis, senhor, é verdade - falou o jovem.
Dom Sancho tem apenas uma filha, mas não é tão formosa como dizem, e
se eu falei que era filho de Dom Enrique, foi para que me considerásseis um
pouco, senhores, pois sou apenas filho do mordomo de Dom Sancho, que há
muitos anos o serve.
Eu nasci em sua casa, mas, por certo desgôsto que dei a meu pai, tirandolhe considerável quantia em dinheiro, quis ir para a Itália, como já vos disse, e
seguir o caminho da guerra por intermédio da qual, conforme pude observar,
até os de origem obscura conseguem tornar-se ilustres.
Tôdas estas palavras e o modo pelo qual eram ditas foram confirmando as
suspeitas de Teodoro. Terminado o jantar, tirou-se a mesa e, enquanto Dom
Rafael se despia, tendo-lhe já confiado suas suspeitas, Teodoro, com o
consentimento do irmão, retirou-se para o balcão de uma grande janela que
dava para a rua e ali, debruçados os dois, começou a falar com o rapaz:
- Quisera, Senhor Francisco - assim disse chamar-se o môço -, ter-vos feito
tantos benefícios que vos obrigasse a não negar qualquer coisa que eu pudesse
ou quisesse pedir-vos, mas o pouco tempo que vos conheço não o permite;
podia ser também que descobrísseis meu desejo e, se agora não quiserdes
satisfazer minha curiosidade, nem por isso deixarei de ser vosso servidor, como
o sou agora. Quero também que saibais, embora tenha eu tão pouca idade
quanto tenho mais experiência das coisas do mundo do que parece, pois com
ela cheguei a suspeitar de que não sois homem, como o mostram as vossas
roupas, mas mulher, e de origem tão nobre quão evidente é a vossa formosura,
e também infeliz como o demonstra a mudança de traje que fizestes, pois nunca
tais mudanças são feitas por alguém sem algum motivo. Se minha suspeita tem
fundamento, dizei, pois juro-vos pela minha fé que vos ajudarei e servirei em
tudo quanto puder. Não podeis negar que sois mulher, pois os furos de vossas
orelhas deixam transparecer a verdade e fôstes descuidada esquecendo-vos de
ocultá-los com um pouco de cêra; podia ser que outro, tão curioso quanto eu e
talvez não tão honrado, revelasse o que não soubestes disfarçar muito bem. Não
vos recuseis a dizer-me quem sois, pois ofereço-vos a minha ajuda e assegurovos que saberei manter segrêdo.
O jovem escutou com grande atenção o que Teodoro lhe dizia e, vendo
que êle se calava, em vez de falar, tomou-lhe as mãos e, levando-as aos lábios,
beijou-as e banhou-as com muitas lágrimas que seus formosos olhos derramavam. Êsse estranho procedimento impressionou Teodoro de tal forma que
êle não pôde deixar de chorar também - pois é comum e natural as mulheres
nobres se comoverem com os sentimentos e fadigas alheias. Após ter retirado
com dificuldade as mãos dos lábios do rapaz, permaneceu atenta a esperar para
ver sua resposta. Êste, dando um doloroso gemido, acompanhado de muitos
suspiros, falou:
- Não vos quero negar, senhor, que vossa suspeita é verdadeira; sou
mulher e a mais infeliz mulher que o mundo já conheceu; os favores que me
fizestes e os oferecimentos que me fazeis obrigam-me a obedecer-vos em tudo
quanto me ordenardes; escutai e eu vos direi quem sou, se é que não vos
cansareis de ouvir apenas desventuras.
- Que eu seja para sempre desventurado - replicou Teodoro - se não
chegar a sentir pena de vossas desgraças, pois já as vou sentindo como se
fôssem minhas.
E, tendo tornado a abraçá-lo e a fazer-lhe novos e sinceros oferecimentos, o
jovem, um pouco mais tranqüilo, começou a falar:
- A respeito de minha pátria já vos disse a verdade; não a disse, porém,
quando me referi a meus pais, porque Dom Enrique é apenas meu tio; sou filha
de Dom Sancho, seu irmão; sou eu a desventurada filha de Dom Sancho, cuja
beleza, segundo disse vosso irmão, é elogiada por todos, o que não passa de
engano, conforme podeis muito bem ver. Meu nome é Leocádia e sabereis agora
a razão da minha mudança de traje: a 2 léguas de minha cidade há um lugar
considerado como um dos mais ricos e nobres de Andaluzia, onde vive um
cavalheiro importante, descendente da família dos nobres e antigos Adorno, de
Gênova. Êste senhor tem um filho que é considerado um dos homens mais
elegantes que se possa imaginar. Êle, quer por morar perto de cidade, quer por
ser, como meu pai, aficionado a caçadas, vinha à minha casa muitas vêzes e ali
permanecia por cinco ou seis dias, passando-os, bem como parte da noite, no
campo, juntamente com meu pai. Desde então, apoderou-se da fortuna, do
amor ou da minha inexperiência, que foi suficiente para lançar-me da altura de
meus bons desejos, ao estado em que me encontro, pois, tendo eu olhado, mais
do que se permite a uma recatada donzela, a elegância de Marco Antônio, tendo
considerado sua origem nobre e a grande quantidade dos bens de seu pai,
pareceu-me que, se eu conseguisse tê-lo como espôso, teria tôda a felicidade
comigo; assim pensando, comecei a olhá-lo mais demoradamente para depois
olhá-lo de maneira mais descuidada, pois êle chegou a perceber que eu o
olhava; não quis o traidor nem foi preciso outro caminho para conhecer meu
segrêdo e para roubar as melhores prendas de minh'alma. Mas não sei por que
me ponho a contar-vos, senhor, as particularidades de meus amores, pois quase
não vêm ao caso; basta dizer-vos que fui muito liberal para com êle porque,
havendo-me dado sua palavra e, segundo acreditei, fazendo juramentos firmes,
cristãos, de ser meu espôso, disse-lhe, que dispusesse de mim como bem
entendesse; porém não estando eu muito satisfeita apenas com seus juramentos
e palavras, e para que não as levasse o vento, fi-lo escrevê-las em um papel que
êle me devolveu depois de deixar nêle sua assinatura e escrever certas palavras
que me satisfizeram. Recebi o documento, dei um jeito para que viesse de sua
cidade até a minha, entrasse à noite pelos muros do jardim e fôsse ter ao meu
quarto, onde, sem susto algum, podia colhêr o fruto que a êle somente estava
destinado. Chegou, enfim, a noite que eu tanto desejava Teodoro permanecera
em silêncio até então, tendo a alma prêsa às palavras de Leocádia, palavras que
lhe trespassaram a alma, principalmente quando ouviu o nome de Marco
Antônio e notou a peregrina formosura de Leocádia, considerou também sua
grandeza e seu valor por sua discrição, demonstrada através do modo de ela
contar sua história. Entretanto, quando disse: “Chegou a noite que eu tanto
desejara”, estêve a ponto de perder a paciência e, sem poder fazer mais nada,
interrompeu-a, dizendo:
- E então, o que fêz êle quando chegou esta desejadíssima noite? Conseguiu entrar? Chegou a possuir-vos? Confirmou o que escrevera? Ficou satisfeito
por ter conseguido de vós o que lhe reservastes? E vosso pai, soube do fato?
Que fim tiveram tão honestos e sábios princípios?
- Tais princípios - disse Leocádia - acabaram por deixarme como vêdes,
porque nem eu o possuí, nem êle me possuiu, nem veio ao encontro marcado.
Teodósia, ouvindo estas palavras, tomou nôvo alento, recuperou a razão,
que, encurralada pelo maldito ciúme, estava prestes a abandoná-la; se a
situação se prolongasse um pouco mais, o ciúme acabaria infiltrando-se em seus
ossos e medula até apoderar-se inteiramente de sua paciência; contudo, ela não
pôde deixar de ouvir com grande sobressalto o que Leocádia tinha ainda a
dizer:
- Não somente deixou de vir como também, dali a oito dias - eu soube isto
de fonte limpa -, acabou por ausentar-se da cidade, não sem antes ter levado
para a casa de seus pais uma donzela, filha de um homem importante, chamada
Teodósia, jovem dotada de grande beleza e rara discrição. Por tratar-se de uma
jovem, filha de pais nobres, a notícia do rapto chegou depressa à minha cidade
e mais depressa ainda a meus ouvidos; com ela chegou também a temida e fria
lança do ciúme, que me atravessou o coração, abrasou minh'alma em chama tal
que transformou minha honra em cinzas, arrebatou-me as esperanças, esgotou
minha brandura. Como fui infeliz! Imaginei logo como deveria ser Teodósia:
mais formosa que o sol, mais sensata que a própria sensatez e, sobretudo, mais
venturosa que eu. Tomei o papel e reli as palavras; achei-as firmes e verdadeiras, incapazes de trair a fé que revelavam, mas, embora minha esperança
tivesse recorrido a elas, vi-as caídas por terra ao levar em conta a duvidosa
companhia que Marco Antônio levava com êle. Maltratei o meu rosto, arranquei
os cabelos, maldisse minha sorte. E o que mais me aborrecia era não poder fazer
tais sacrifícios a tôda hora, por causa da presença constante de meu pai. Enfim,
para poder ficar sozinha ou para acabar com a vida, decidi deixar a casa de meu
pai, e, como a sorte parece facilitar e afastar todos os inconvenientes a fim de
que um pensamento seja pôsto em prática, roubei a um pajem, sem temor
algum, umas vestes, e a meu pai, grande quantidade de dinheiro, que cobri com
uma capa negra; saí de casa certa noite, andei a pé algumas léguas e cheguei a
um lugar chamado Osuna e, acomodando-me em uma carruagem, entrei em
Sevilha, dali a dois dias, onde, ainda que me procurassem, podia estar certa de
que não me encontrariam. Comprei umas roupas, um animal e caminhei até
ontem com uns cavaleiros que vinham para Barcelona a tôda a pressa, pois não
queriam perder a oportunidade de ir para a Itália numas galeotas que aqui se
encontram; caminhei até acontecer o que já sabeis; os bandoleiros tiraramme
tudo quanto trazia, inclusive a jóia que mantinha minha saúde e aliviava o pêso
de minhas fadigas: o documento escrito por Marco Antônio. E eu, que pensava
levá-lo para a Itália, encontrar Marco Antônio, apresentá-lo como prova de sua
infidelidade e exigir dêle o cumprimento de sua promessa; mas, considerei
também que quem se nega a cumprir obrigações que deviam estar gravadas em
sua alma, negará com facilidade as palavras escritas em um papel. Se êle tiver
em sua companhia a incomparável Teodósia, claro está, não há de querer olhar
para a infeliz Leocádia. Por tudo isso, penso em morrer ou, então, apresentarme na presença dos dois, para que minha vida lhes tire o sossêgo. Não pense a
inimiga de meu descanso gozar assim tão fàcilmente aquilo que é meu. Eu a
procurarei, eu a encontrarei e haverei de tirar-lhe a vida, se puder.
- Mas que culpa terá Teodósia - disse Teodoro - se ela também tiver sido
enganada por Marco Antônio, como vós o fôstes, Senhora Leocádia?
- E como pode ser assim - falou Leocádia -, se êle a levou consigo? E
estando juntos os que se querem bem, que engano pode haver? Nenhum, por
certo. Êles estão felizes, porque estão juntos. Pois que fiquem nos distantes e
abrasadores desertos da Líbia ou nas terras isoladas da fria Cítia, como se
costuma dizer. Ela o possui, sem dúvida, e somente ela há de pagar pelo que
sofri.
- Talvez estejais enganada - replicou Teodósia -, pois eu conheço muito
essa vossa inimiga, e sei que ela, em seu recato, nunca se aventuraria a deixar a
casa de seus pais nem concordar com a vontade de Marco Antônio. E, mesmo
que o tivesse feito, não vos conhecendo nem sabendo nada a respeito do que se
passava, não vos pode ter ofendido em coisa alguma, e onde não há ofensa não
pode haver vingança.
- Quanto ao recato - falou Leocádia -, nada significa, pois eu também era
tão recatada e honesta como pode ser qualquer donzela e, no entanto, fiz o que
bem sabeis. Êle a levou, não há dúvida, e, analisando os fatos desapaixonadamente, sou obrigada a confessar que ela não me ofendeu, mas a dor que me
despertam os ciúmes me faz sentir como que uma espada a atravessar minhas
entranhas; não é exagêro procurar arrancar e fazer em pedaços êsse punhal que
tanto me fere; é sinal de muita prudência afastar de nós tôdas aquelas que
atrapalham nossa felicidade.
- Seja como dizeis, Senhora Leocádia - retrucou Teodósia -, pois vejo que
vossa paixão não vos deixa dizer palavras mais ponderadas; sei que a hora não
é própria para conselhos. De minha parte, repito-vos que hei de ajudar-vos a
favorecer em tudo quanto fôr justo e possível. Sei que meu irmão fará a mesma
coisa, pois sua condição e nobreza não o levarão a agir de outra forma. Nosso
destino é a Itália; se quiserdes vir conosco, já sabeis mais ou menos como sereis
tratada em nossa companhia. Peço-vos apenas licença para contar a meu irmão
o que sei a vosso respeito; assim êle poderá tratar-vos com o respeito que
mereceis e cuidará de vós como se deve. Parece-me, também, que não deveis
mais usar estas roupas e, se tivermos oportunidade, comprarei, pela manhã, as
melhores roupas que houver e que melhor vos convenham. Quanto às vossas
demais pretensões, dai tempo ao tempo, que é grande mestre em achar remédio
para os casos mais desesperadores.
Leocádia agradeceu a Teodósia, que ela julgava ser Teodoro, os muitos
oferecimentos que fazia e permitiu-lhe contar ao seu irmão tudo que quisesse,
suplicando-lhe para não a desamparar, pois já antevia os inúmeros perigos a
que estaria exposta se todos soubessem ser ela mulher.
Com isto, despediram-se e foram dormir. Teodósia dirigiu-se ao quarto do
irmão e Leocádia ao quarto contíguo. Dom Rafael ainda não dormira, pois
esperava a irmã para saber o que se havia passado. Quando Teodósia entrou,
perguntou-lhe, antes de ela se deitar, qual o resultado da conversa. A môça
contou-lhe detalhadamente o que Leocádia lhe dissera: de quem era filha, de
seus amôres, do papel que Marco Antônio lhe dera e de sua intenção. Dom
Rafael, admirado, falou à irmã:
- Se ela é de fato a pessoa que diz, só vos posso dizer, minha irmã, que ela
é uma das senhoras mais nobres e importantes de tôda Andaluzia; seu pai é
muito conhecido do nosso e a beleza de seu rosto não desmente a fama de que
goza por sua formosura. Isso me faz pensar que devemos agir cautelosamente e
não a deixar falar com Marco Antônio antes de nós, pois o documento assinado
por êle, embora ela o tenha perdido, muito me preocupa. Mas, tranqüilizai-vos
e repousai, minha querida irmã, pois haveremos de encontrar uma solução para
tudo.
Teodósia procurou fazer o que o irmão lhe dizia, mas não pôde acalmarse, pois a doença do ciúme se havia apoderado de sua alma. Como a beleza de
Leocádia e a deslealdade de Marco Antônio se apresentavam muito maiores do
que eram na realidade! Quantas vêzes lia ou imaginava ler o papel que êle
assinara! Quantas palavras e argumentos via serem acrescentados àquele papel,
que aumentava assim em valor! Quantas vêzes imaginou que, se êle não
existisse, Marco Antônio não teria deixado de cumprir a promessa que lhe
fizera!
Assim, passou ela a maior parte da noite sem poder conciliar o sono. Dom
Rafael, seu irmão, também não conseguiu descansar, pois, logo que ouviu dizer
quem era Leocádia, seu coração queimou-se em amôres, como se de há muito
esperasse que isso acontecesse; tal é o poder da formosura, que, de repente,
arrasta consigo o desejo de quem a vê e a conhece, pois, quando promete
alguma esperança, inflama impetuosamente a alma de quem a contempla e o
faz de tal modo que qualquer centelha incendeia com facilidade a pólvora que
ali se encontra. Dom Rafael não podia imaginar Leocádia prêsa a uma árvore
nem vestida com andrajosas roupas de homem e sim vestida com roupas de
mulher, em casa de seus ricos e importantes pais. Não fixava nem queria fixar o
pensamento nas causas que o fizeram conhecê-la; desejava que o dia chegasse
para prosseguir em sua jornada e procurar Marco Antônio, não tanto para fazer
dêle seu cunhado, mas para impedi-lo de tornar-se espôso de Leocádia. O amor
e o ciúme apoderaram-se dêle de tal forma que êle pensou em deixar de ajudar
a irmã e matar Marco Antônio, a fim de que nada o impedisse de casarse com
Leocádia; suas esperanças prometiam bom têrmo para seu desejo, que haveria
de ser realizado, quer pela fôrça quer pelos favores que pudesse prestar, pois a
ocasião e o lugar lhe eram propícios.
Prometendo uma porção de coisas a si próprio, acalmou-se um pouco e
dali a instantes viu chegar o dia. Todos se levantaram e Dom Rafael, chamando
o hospedeiro, perguntou-lhe se naquela cidade havia roupas adequadas para
vestir um pajem que os bandoleiros haviam deixado nu. O hospedeiro disse que
possuía umas roupas em bom estado. Dom Rafael ordenou-lhe que as trouxesse
e, como servissem em Leocádia, pagou-as. A môça vestiu-se, cingiu uma espada
e uma adaga com tanta graça que perturbou a razão de Dom Rafael e aumentou
o ciúme de Teodósia. Calvete arreou os cavalos e, às 8 horas, partiram êles para
Barcelona, sem visitar o famoso mosteiro de Montserrat, deixando para fazê-lo
quando Deus os deixasse tornar sossegados à sua terra. Não podemos contar,
de maneira satisfatória, os pensamentos dos dois irmãos, nem falar dos
diferentes ânimos com que iam olhando Leocádia. Teodósia desejava-lhe a
morte; Dom Rafael, a vida. Ambos, ciumentos e apaixonados. Ela atribuía-lhe
defeitos para não ver fenecer suas esperanças; Dom Rafael via-lhe perfeições
que, pouco a pouco, o obrigavam a amá-la cada vez mais. Apesar de tudo isso,
não deixaram de se apressar, de modo que chegaram a Barcelona antes do pôr
do sol.
Admiraram-se com a beleza do lugar e consideraram Barcelona a mais
bela entre as belas cidades do mundo, a glória da Espanha, o temor e espanto de
seus inimigos, ou vizinhos ou distantes, o regalo e delícia de seus moradores,
abrigo para os estrangeiros, modêlo de cavalheirismo, coragem, e exemplo de
lealdade e satisfação de tudo aquilo que um discreto e curioso desejo pode
pedir a uma grande, formosa e rica cidade. Ao entrarem, ouviram um fortíssimo estrondo e viram muita gente a correr alvoroçada. Indagando a causa de
tal agitação, souberam que o pessoal das galeras estava na praia e lutava com a
gente da cidade. Dom Rafael, ouvindo isso, quis ver o que se passava, embora
Calvete lhe dissesse para não o fazer, que era loucura meter-se em tal perigo,
que era difícil uma pessoa sair-se bem em tais brigas, comuns naquela cidade,
quando ali chegavam galeras. O conselho de Calvete não conseguiu, porém,
demover Dom Rafael de seu intento e acabaram todos por segui-lo. Chegando à
praia, viram muitas espadas desembainhadas e muita gente golpeando-se sem
dó nem piedade. Apesar disso, sem apear, chegaram tão perto do local da luta,
que puderam ver distintamente o rosto dos combatentes, porque o sol ainda
não se havia escondido. Era imenso o número de pessoas da cidade que para lá
se dirigiam e grande o número de pessoas que desembarcavam das galeras,
embora o cavalheiro que as comandava, um valenciano chamado Dom Pedro
Vique, da pôpa da galera capitânea, ameaçasse a todos os que haviam embarcado em seus botes para que fôssem socorrer os demais. Enfim, vendo Dom
Pedro que de nada adiantavam seus gritos e ameaças, mandou virar as proas
das galeras em direção da cidade e disparar uma peça de artilharia sem bala,
sinal de que, se êles não parassem de lutar, o outro disparo não iria sem ela.
Enquanto isso, Dom Rafael olhava atentamente a luta ferrenha que se travava.
Notou, então, que, entre os homens das galeras, havia um jovem de uns 22
anos, vestido com roupas verdes e um chapéu da mesma côr, enfeitado com um
galão muito rico, talvez de diamante, que se destacava dos demais. Sua destreza
ao lutar e a elegância de sua roupa chamou a atenção de todos os que
apreciavam a luta; os olhos de Teodósia e os de Leocádia fitaram-no de tal
forma que ambas exclamaram a um só tempo:
- Valha-me Deus! Ou não tenho olhos ou aquêle jovem de roupas verdes é
Marco Antônio.
Dizendo isto, saltaram das mulas com grande ligeireza e, passando a mão
nas espadas, entraram sem temor algum no meio da turba, colocando-se lado a
lado de Marco Antônio, pois era êle mesmo o jovem que usava as roupas verdes
das quais falamos.
- Não temais, Senhor Marco Antônio - disse Leocádia assim que chegou -,
pois tendes a vosso lado alguém que fará escudo de seu próprio corpo para
defender o vosso.
- Quem o duvidará, estando eu aqui? - perguntou Teodósia.
Dom Rafael, vendo e ouvindo o que se passava, seguiu-as e colocou-se a
seu lado. Marco Antônio, ocupado em atacar e defender-se, não prestou atenção
às palavras que elas lhe disseram; empenhado na luta, fazia coisas incríveis,
porém, como o pessoal da cidade aumentasse, viram-se obrigados a recuar até
meterem-se na água. Marco Antônio retirava-se de má vontade e junto com êle
as duas novas e valentes Bradamante e Marfisa ou Hipólita e Pantasiléia. Nisto,
aproximou-se um cavaleiro catalão da ilustre família dos Cardona, que,
colocando-se entre os inimigos, fazia o pessoal da cidade retirar-se, pois todos o
respeitavam. Entretanto, alguns, mais exaltados, de longe atiravam pedras aos
que entravam na água, e quis a má sorte que uma delas atingisse a fronte de
Marco Antônio, com tanta fúria, que o fêz cair dentro da água. Leocádia, tão
logo o viu cair, levantou-o e recolheu-o em seus braços.
Teodósia fêz o mesmo. Dom Rafael estava um pouco distante defendendose da chuva de pedras que por sôbre êles caía e, quando quis ir em socorro de
sua bem-amada, de sua irmã e do cunhado, pôs-se diante dêle o cavalheiro
catalão e lhe disse:
- Acalmai-vos, senhor, como bom soldado que sois, e fazei o favor de
colocar-vos a meu lado que eu vos livrarei da insolência desta gente.
- Deixai-me passar, senhor - falou Dom Rafael -, pois vejo em grande
perigo tôdas as pessoas que mais estimo na vida.
O cavalheiro deixou-o passar, mas êle não chegou a tempo.
Marco Antônio e Leocádia, que o mantinha nos braços, foram recolhidos
ao barco da galera capitânea; Teodósia não conseguiu ir com êles, pois não teve
fôrças para subir no bote, ou por estar cansada, ou por sofrer vendo que Marco
Antônio estava ferido, ou por ver que sua maior inimiga estava com êle; e teria,
sem dúvida, caído na água, desmaiada, se o irmão não chegasse a tempo de
socorrê-la. Dom Rafael ficou tão aborrecido quanto a irmã por ver que Leocádia
se fôra com Marco Antônio, pois também êle já o havia reconhecido. O cavalheiro catalão, impressionado com a galhardia de Dom Rafael e de sua irmã,
que êle pensava ser homem, chamou-os da praia e pediu-lhes para ir ter com
êle. Forçados pela necessidade e receando que o povo, ainda não totalmente
acalmado, lhes causasse algum mal, tiveram de aceitar o convite que lhes era
feito.
O cavalheiro desmontou, e, colocando-se junto aos dois jovens, passou
com a espada desembainhada por entre a turba, pedindo ao povo que se
afastasse, e êle assim o fêz. Dom Rafael olhou para todos os lados para ver se
encontrava Calvete e as mulas, mas não conseguiu, pois o criado as levara para
uma estalagem onde costumava ficar. O cavalheiro chegou a casa, que era uma
das mais importantes da cidade, e perguntou a Dom Rafael em qual das galeras
tinha êle vindo.
Dom Rafael respondeu-lhe que não viera em nenhuma, pois havia
chegado à cidade no momento em que a luta começava e, por ter reconhecido o
cavalheiro que tinha sido ferido pela pedrada, expusera-se àquele perigo. Disse
isso e pediu-lhe para mandar buscar o rapaz ferido, porque dêle dependiam sua
alegria e sua vida.
- Eu o farei de boa vontade - falou o fidalgo -, e sei que o general me
atenderá, pois é um cavalheiro e é também meu parente.
Sem mais demora dirigiu-se êle à galera, onde Marco Antônio estava
sendo socorrido, pois a ferida, como dissera o cirurgião, era perigosa, por ser do
lado esquerdo. Conseguiu do general permissão para transportar Marco
Antônio à terra a fim de curá-lo; puseram o rapaz no bote com muito cuidado e
o levaram para terra; Leocádia não o abandonou um só instante, embarcou
também, como para seguir o guia de sua esperança.
Chegando à terra, o cavalheiro mandou trazer de sua casa uma liteira para
o levarem. Enquanto isto se passava, Dom Rafael mandou procurar Calvete,
que se encontrava na estalagem, preocupado com a sorte de seus amos;
entretanto, ao saber que êles estavam bem, alegrou-se muitíssimo e foi para
onde estava Dom Rafael.
Entrementes, chegaram Marco Antônio e Leocádia e o cavalheiro, que
acomodou a todos com muito confôrto e carinho. Ordenou que se procurasse
um famoso cirurgião da cidade a fim de que êle medicasse Marco Antônio
novamente. O médico atendeu o chamado, mas não quis receitar nada, dizendo
que os médicos dos exércitos e armadas eram muito experientes, pois tinham,
freqüentemente, de cuidar de feridos e que, portanto, nada queria receitar, pelo
menos até o outro dia. Deu instruções apenas para colocarem Marco Antônio
em um quarto bem fechado e que o deixassem descansar. Logo depois chegou o
médico da galera, que lhe contou como socorrera o ferido e qual era, segundo
pensava, seu verdadeiro estado. O médico da cidade achou que Marco Antônio
tinha sido bem atendido e também, levando em consideração o relatório feito
pelo outro, exagerou ao falar do perigo que o rapaz corria.
Leocádia e Teodósia, ao ouvirem suas palavras, pensaram ter ouvido sua
própria sentença de morte, mas, para não darem mostras de sua dor, calaramse. Leocádia, porém, decidiu fazer o que lhe parecia mais conveniente para
preservar sua honra. Assim, tão logo os médicos se foram, entrou no quarto de
Marco Antônio e, perante o dono da casa, perante Dom Rafael, Teodósia e
outras pessoas, chegou à cabeceira do ferido e, tomando-lhe as mãos, disse-lhe:
- A situação não permite, Senhor Marco Antônio Adorno, gastarem-se
muitas palavras convosco, por isso peço-vos apenas para escutar algumas
palavras que, se não forem benéficas para a saúde do corpo, haverão de sê-lo
para vossa alma, mas para eu as dizer é necessário dardes licença e demonstrardes se estais em condição de ouvir-me. E isso porque, tendo eu procurado
agradar-vos desde que vos conheci, não é justo que nesse instante, talvez fatal,
eu vos seja a causa de algum aborrecimento.
Ao ouvir estas palavras, Marco Antônio abriu os olhos, fixou-os
demoradamente em Leocádia e, parecendo reconhecê-la, disse, com voz fraca e
apagada:
- Dizei, senhora, o que desejais, pois eu não estou assim tão mal que não
possa nem mesmo escutar-vos, nem tendes voz tão desagradável que eu me
aborreça ao ouvi-la.
Teodósia permanecia atenta; cada palavra de Leocádia era uma seta aguda
a atravessar-lhe o coração e a ferir a alma de Dom Rafael, que também a
escutava. Leocádia prosseguiu:
- Se o golpe desfechado em vossa cabeça ou, para melhor dizer, em
minh'alma, Senhor Marco Antônio, não levou de vossa memória a imagem
daquela que há pouco tempo considerastes como vossa glória e vossa
felicidade, havereis de lembrar quem é Leocádia e que palavras escrevestes,
com vossa própria mão e com vossa letra, em um papel que a ela entregastes;
não tereis esquecido também a nobreza de sua origem, tôda a sua integridade e
seu recato e vossa obrigação, por terdes consentido, de vossa própria vontade,
que ela satisfizesse todos os vossos desejos. Se não vos esquecestes, havereis de
reconhecer fàcilmente que sob êstes trajes se esconde Leocádia, pois eu,
receando que novos acidentes me roubassem o que tão justamente é meu, tão
logo partistes, superando muitas inconveniências, decidi seguirvos com a
intenção de procurar-vos em tôda parte da terra, até encontrar-vos. E não vos
deveis admirar, se é que já ouvistes falar alguma vez onde chegam as fôrças de
um amor verdadeiro e a cólera de uma mulher enganada. Passei algumas
dificuldades em minha viagem, mas eu as julgo uma alegria, pois elas me
permitiram ver-vos; talvez Deus queira levar-vos desta vida, por isso, se
fizerdes o que deveis antes de partir, considerarme-ei mais do que feliz e vos
prometo que, depois de vossa morte, pouco tempo há de se passar até eu vos
seguir nesta última e forçosa jornada. Rogo-vos, primeiro por Deus, a quem
ofereço meus desejos, e depois por vós, que muito deveis a vós mesmo por
serdes quem sois, e finalmente por mim, a quem deveis mais do que a qualquer
outra pessoa no mundo, que me recebais aqui como vossa legítima espôsa, não
permitindo que a Justiça faça o que a razão vos indica.
Leocádia calou-se e todos os presentes, que tinham permanecido em
profundo silêncio enquanto ela estivera falando, mantiveram-se em silêncio,
esperando a resposta de Marco Antônio.
- Não posso negar, senhora, que vos conheço, pois vossa voz e vosso rosto
não me permitem negá-lo. Também não quero negar o muito que vos devo nem
o grande valor de vossos pais nem vossa incomparável honestidade e sensatez,
nem vos menosprezarei por terdes vindo procurar-me vestida com êstes trajes;
pelo contrário, estimo-vos por isso e estimarei muito ainda; mas, já que minha
sorte me fêz chegar ao fim, como dissestes, e porque em tais ocasiões nada se
deve esconder, quero revelarvos uma verdade que, se não vos agradar agora,
talvez no futuro vos traga algum proveito. Confesso, formosa Leocádia, que vos
quis bem, mas também confesso que assinei aquêle papel mais para realizar
vosso desejo que propriamente o meu, pois muitos dias antes de assiná-lo já
entregara minha vontade e minh'alma a uma jovem de minha cidade, chamada
Teódósia, filha de pais tão nobres quanto os vossos, e a quem vós bem
conheceis; se vos dei um papel assinado por meu próprio punho, dei a ela
minha mão, juntamente com tais obras e testemunhas que estou impossibilitado
de prender-me a qualquer outra pessoa no mundo. Nossos amôres foram sem
maior conseqüência, e dêles nada mais alcancei além de flores, que não vos
ofenderam nem vos podem ofender em coisa alguma; com Teodósia, entretanto,
obtive o fruto que ela pôde dar e que desejei que me desse, pois , estava certo de
ser seu espôso, como de fato o sou. Se deixei a vós admirada e enganada, a ela,
receosa e, a seu ver, desonrada, foi levado pelo meu pouco juízo, acreditando
que tais coisas não tivessem muita importância e que podia fazê-las sem
escrúpulo algum; levado por outros pensamentos, quis ir para a Itália e passar
ali alguns anos de minha juventude e depois voltar para ver o que Deus havia
feito de vós e de minha verdadeira esposa, mas o céu, apiedando-se de mim,
permitiu-me ficar neste estado para que, confessando estas verdades, nascidas
de minhas inúmeras culpas, pague nesta existência minhas dívidas, a fim de
que vós fiqueis desenganada e livre para fazerdes o que melhor vos parecer. Se
Teodósia souber algum dia de minha morte, saberá, por vós e pelos que estão
presentes, como em minha hora extrema eu soube cumprir a palavra que
empenhei estando vivo e se, no pouco tempo de vida que me resta, Senhora
Leocádia, eu vos puder servir em alguma coisa, exceto receber-vos como
esposa, é só dizer, pois tudo farei para vos agradar.
Enquanto Marco Antônio dizia estas palavras, apoiava a cabeça em seu
cotovêlo, mas, acabando de pronunciá-las, deixou cair o braço, dando mostras
de que desmaiava. Dom Rafael acudiu logo e, abraçando-o fortemente, disse:
- Voltai, senhor, abraçai vosso amigo e irmão; sou Dom Rafael, vosso
amigo, que será a verdadeira testemunha de vossa vontade e da graça que
concedeis a minha irmã, aceitando-a por esposa.
Marco Antônio voltou a si e logo reconheceu Dom Rafael, abraçou-o
estreitamente, beijou-o no rosto e disse:
- Meu querido amigo e irmão, a imensa alegria que senti ao ver-vos só
pode ser transformada em imenso pesar, pois costuma-se dizer que à alegria
segue-se a tristeza, mas eu darei por bem empregada qualquer tristeza em troca
da alegria de vos ver.
- Pois eu quero prolongar vossa alegria - disse Dom Rafael -, apresentando-vos esta jóia que é a vossa querida espôsa. Procurou Teodósia e a
encontrou chorando, surprêsa, hesitante entre o pesar e a alegria pelo que via e
acabava de ouvir. Dom Rafael pegou-a pela mão e ela, sem resistir, deixou-se
levar até Marco Antônio, que a reconheceu, que a abraçou, e ambos derramaram ternas e amorosas lágrimas. Todos os presentes ficaram admirados por
presenciar tais acontecimentos; entreolhavam-se sem dizer palavra, esperando
para ver que fim teriam tôdas aquelas coisas. A desventurada Leocádia, vendo
com seus próprios olhos o que Marco Antônio fazia e vendo aquêle que julgava
irmão de Dom Rafael nos braços de quem ela acreditava seu espôso e vendo
também frustrados seus desejos, perdidas suas esperanças, abandonou o
aposento sem ser vista, pois todos olhavam atentamente o enfêrmo, que
permanecia abraçando o suposto pajem; num instante encontrou-se ela na rua,
com intenção de ir para onde ninguém pudesse vê-la. Mal chegara à rua, Dom
Rafael deu pela sua falta, e, como se lhe faltasse a alma, perguntou por ela, mas
ninguém soube dizer para onde tinha ido.
Desesperado, não esperou mais; saiu para procurá-la e dirigiu-se até a
hospedaria onde estava Calvete, pois talvez ela tivesse ido para lá à procura de
um animal que pudesse montar. Não a encontrando, andou como um louco
pelas ruas, procurando-a em tôdas as partes. Depois, pensando que ela poderia
ter voltado às galeras, dirigiu-se à praia e, ao chegar, ouviu gritos que chamavam da terra o bote da nau capitânea e reconheceu que quem os pronunciava
era a formosa Leocádia. Esta, receando algum perigo, ao ouvir seus passos,
empunhou a espada e esperou.
Dom Rafael aproximou-se dela, ela o reconheceu e lamentou que a
encontrasse, e ainda mais em lugar tão deserto, pois já percebera que Dom
Rafael não lhe queria mal; percebeu até que êle lhe queria muito bem e desejou
que Marco Antônio lhe quisesse tanto quanto Dom Rafael lhe queria.
Que palavras poderei eu usar para transmitir o que Dom Rafael disse a
Leocádia ao declarar-lhe seus sentimentos? Tantas foram suas razões que eu
não me atrevo a repeti-las, mas, como é preciso, direi algumas delas:
- Se eu não tivesse agora, ó formosa Leocádia, o atrevimento de vos
revelar os segredos de minh'alma, ficaria enterrada no seio do esquecimento
perpétuo a mais enamorada e honesta vontade que já nasceu ou há de nascer
em um coração enamorado. Mas, para não ofender meu sincero desejo,
aconteça-me o que acontecer, quero, senhora, que observeis, se o vosso agitado
pensamento consentir, que Marco Antônio em nada é superior a mim, a não ser
pelo fato de ser amado por vós; minha linhagem é tão nobre quanto a sua e sua
fortuna não me leva muita vantagem; quanto ao físico, não convém gabarme,
pois vossos olhos não me estimam; digo-vos tudo isso, minha senhora, para que
aceiteis o remédio que a sorte vos oferece no auge de vossa desgraça. Já sabeis
que Marco Antônio não pode ser vosso porque o céu o reservou para minha
irmã, e êste mesmo céu que vos tirou Marco Antônio quer recompensar-me,
pois não desejo outro bem na vida senão tornar-me vosso espôso. Notai que, se
até há pouco a má sorte nos acompanhou, a fortuna bate agora às nossas portas;
não penseis que vosso atrevimento ao procurar Marco Antônio seja motivo para
que eu não vos estime e não vos considere, pois, quando vos receber como
espôsa, hei de esquecer - e já esqueci - tudo quanto soube e vi. Sei muito bem
que as fôrças que me obrigaram tão impetuosamente a adorar-vos e a entregarme a vós trouxeram-vos ao estado em que vos encontrais e, assim, não haverá
necessidade de apresentar desculpas, pois não há êrro algum.
Leocádia permaneceu em silêncio, ouvindo o que Dom Rafael lhe dizia; de
vez em quando, dava uns profundos suspiros, saídos do imo de suas entranhas.
Dom Rafael atreveu-se a pegar-lhe numa das mãos e beijá-la muitas vêzes.
Leocádia não teve fôrças para impedi-lo.
- Consenti, senhora de minh'alma, em ser minha espôsa - dizia êle -,
consenti em presença dêste céu estrelado que nos cobre, dêste sossegado mar
que nos escuta e desta areia que nos sustém; dai-me o sim que sem dúvida
convém tanto à vossa honra como a minha satisfação. Torno a dizer-vos que sou
um cavalheiro, como sabeis, que sou rico e que vos quero bem - e será o que
mais haveis de estimar. Em vez de encontrar-vos só e vestida com roupas
menos condizentes com a vossa honra, longe da casa de vossos pais e parentes,
sem ninguém para vos auxiliar e sem esperança de alcançar o que procuráveis,
podeis voltar à vossa pátria em vosso próprio, honrado e verdadeiro, traje,
acompanhada de tão bom espôso quanto aquêle que soubestes escolher, rica,
satisfeita, estimada, servida e também louvada por todos aquêles a cujos
ouvidos chegar a notícia de tais fatos. E, se isto é assim, não sei o que esperais;
consenti e eu vos digo outra vez - em levantar-me do chão de minha miséria ao
céu de merecer-vos, que também vos encontrareis nêle e cumprireis com as
normas da cortesia e educação, mostrando-vos ao mesmo tempo agradecida e
sensata.
- Está bem - disse Leocádia então. - Já que o céu assim o ordenou e não
está em minhas mãos ou nas mãos de vivente algum opor-se ao que êle
determina, faça-se o que êle quer e vós também quereis, meu senhor; mas êste
mesmo céu sabei quão envergonhada estou ao ceder à vossa vontade, não
porque.) não entenda o muito que lucro em obedecer-vos, mas porque; temo
que, realizando vosso desejo, haveis de me ver com outros olhos, pois talvez
estejais enganado até agora. Mas, seja como fôr, não poderei perder o nome de
mulher legítima de Dom Rafael de Villavicencio; com êste título já viverei
contente. Se meus hábitos e costumes merecerem um dia que me estimeis,
agradecerei ao céu por ter concedido a mim, através de tão estranhas voltas e de
tantos males, a ventura de vos pertencer. Aceito, Dom Rafael, a vossa proposta
e que o céu, o mar, as areias e êste silêncio, interrompido apenas pelos meus
suspiros e pelas vossas palavras, sejam, como dizeis, as testemunhas de vossas
promessas.
Dizendo isto, estendeu a mão a Dom Rafael e deixou-o abraçá-la; apenas
lágrimas de alegria, que brotavam de seus olhos, celebraram êste nôvo
esponsal. Voltaram em seguida à casa do fidalgo, que estava preocupadíssimo
com sua ausência, o mesmo acontecendo com Marco Antônio e Teodósia, que já
se haviam casado, pois Teodósia, receando que algum incidente pudesse tirarlhe o bem que encontrara, pediu para trazerem um padre o mais depressa
possível. O fidalgo atendeu-a imediatamente, e assim, tendo tornado de volta os
dois jovens e tendo Dom Rafael contado o que se passara, todos se alegraram
como se êles fôssem parentes muito próximos, fato característico da nobreza
catalã, que sabe ser amiga e auxiliar de todos os estrangeiros que dela precisem.
O sacerdote que ali se encontrava ordenou a Leocádia para mudar de roupas; o
cavalheiro dispôs-se a ajudá-la e a ajudar também Teodósia, dando-lhes ricos
vestidos de sua mulher, que era uma senhora importante, pertencente à famosa
e antiga família dos Granalheques. O cirurgião, preocupado com o estado do
ferido, pois êle falava muito e ninguém o deixava só, ordenou que todos se
mantivessem em silêncio. Deus, decidindo restituir a saúde de Marco Antônio,
ordenou que a alegria e o ruído que giravam em tôrno do rapaz o reanimassem
e assim, no outro dia, quando o examinaram novamente, acharam-no fora de
perigo; daí a catorze dias Marco Antônio sentiu-se tão bem que, sem temor
algum, pôde empreender viagem.
É preciso saber que Marco Antônio, enquanto estêve no leito, fêz a
promessa de ir a pé a Santiago da Galícia. Dom Rafael, Leocádia, Teodósia e até
mesmo Calvete o acompanharam. Os cavalariços raramente fazem tal coisa,
mas a bondade e a simplicidade de Dom Rafael obrigaram Calvete a não o
deixar até que êle voltasse à sua terra; tendo o criado que viajar a pé como
peregrino, enviaram suas mulas e a de Dom Rafael a Salamanca, pois não faltou
quem quisesse levá-las. Chegando o dia da partida, muniram-se todos de suas
esclavinas, de outras coisas necessárias e despediram-se do liberal cavalheiro
que se chamava Dom Sancho de Cardona, nobre de origem, afamado por suas
ações e que tanto os havia auxiliado; prometeram todos lembrar para sempre os
imensos favores que dêle haviam recebido, agradecendo pelo menos a êle e a
seus descendentes, já que não lhes podiam retribuir. Dom Sancho abraçou-os,
dizendo que fazia de bom grado tôdas aquelas e mais outras boas ações, a todos
os que eram ou pareciam ser fidalgos castelhanos. Repetiram-se os abraços e
com um misto de alegria e tristeza despediram-se. Caminhando conforme o
permitia a constituição delicada das duas peregrinas, chegaram daí a três dias a
Montserrat; permaneceram neste lugar também por três dias, fazendo o que,
como bons cristãos. e católicos, deviam fazer; retomaram depois seu caminho e
chegaram a Santiago sem que nada lhes acontecesse.
Cumpriram a promessa com a maior devoção possível e não quiseram
tirar as roupas de peregrinos até chegarem a suas casas, onde entraram lentamente, descansados e felizes. Antes de chegar, porém, avistando de uma
encosta o lugar onde Leocádia e Teodósia moravam, o qual, como já se disse,
ficava apenas a 1 légua um do outro, não puderam conter as lágrimas que a
alegria lhes trouxe aos olhos, principalmente aos das duas jovens, que
relembraram os acontecimentos passados.
De onde estavam, podia-se ver um grande vale que separava as duas
cidades e nêle viram, à sombra de uma oliveira, um cavalheiro, montando um
belíssimo cavalo, com uma adaga cintilante na mão esquerda e uma comprida
lança na direita.
Olhando mais atentamente, viram ainda por entre o olival dois outros
cavaleiros também armados e tão elegantes quanto o primeiro. Viram então que
êles se reuniram e, depois de terem ficado juntos por um instante, separaram-se.
O último dêstes cavaleiros afastou-se com o que estava embaixo da oliveira e
ambos, esporeando seus cavalos, atacaram-se mutuamente, dando mostras de
ser inimigos mortais. Seus fortes e destros golpes de lança provavam que êles
eram mestres em lutar. O terceiro dêles olhava-os sem sair de seu lugar. Dom
Rafael, não podendo ficar observando de longe aquela renhida e singular
batalha, desceu ràpidamente a encosta, sendo seguido pelos demais; em pouco
tempo encontrou-se êle junto aos dois combatentes, mas os cavaleiros já se
haviam ferido bastante. Um dêles, ao perder seu chapéu e seu capacete de aço,
voltou-se, e Dom Rafael pôde reconhecer nêle seu pai; o outro cavaleiro era o
pai de Marco Antônio, e foi imediatamente reconhecido pelo filho. Leocádia,
olhando atenciosamente o cavaleiro que não entrava na luta, reconheceu que êle
era seu pai; ao vê-lo, ficaram todos admirados, perplexos, mas o espanto cedeu
lugar à razão e os dois rapazes, sem mais demora, puseram-se entre os que
lutavam, dizendo em altas vozes:
- Parai, cavalheiros, parai, pois êstes que vos rogam e suplicam são os
vossos próprios filhos. Eu sou Marco Antônio, meu pai. Sou aquêle por quem,
segundo penso, vossas veneráveis cãs estão sofrendo êste difícil transe; abrandai a fúria e abandonai a lança ou guardai-a para outros inimigos, pois êste que
está diante de vós há de ser vosso irmão.
Dom Rafael dizia mais ou menos estas mesmas palavras a seu pai; os
cavalheiros, ouvindo-as, estacaram e puseram-se a olhar atentamente os que as
pronunciavam. Voltando a cabeça, viram que Dom Enrique, o pai de Leocádia,
se abraçava ao suposto peregrino. E que Leocádia, aproximando-se dêle e
dando-se a conhecer, pediu-lhe que evitasse a luta, dizendo-lhe, em breves
palavras, que Dom Rafael era seu esposo e Marco Antônio, o espôso de
Teodósia.
Ouvindo isto, Dom Sancho desmontou, abraçou a filha e procurou logo
acalmar os dois fidalgos, embora não fosse preciso, pois êles já haviam reconhecido seus filhos, já haviam apeado e estavam a abraçá-los, chorando lágrimas
nascidas do amor e da satisfação. Reuniram-se e, tornando o olhar para os
filhos, não sabiam o que dizer; tocavam-lhes o corpo, para ver se eram
fantasmas, pois sua imprevista chegada engendrara suspeitas, mas, certificados
da verdade, voltaram às lágrimas e aos abraços. Nisto, apontou no vale grande
quantidade de gente armada, a pé e a cavalo, que vinha defender o cavaleiro de
sua cidade.
Ao chegarem e verem todos abraçados, com os olhos cheios de lágrimas,
desceram, espantaram-se e permaneceram admirados até que Dom Sancho lhes
disse brevemente o que Leocádia lhe havia contado. Todos começaram a
abraçar os peregrinos com tais mostras de contentamento que não podemos
descrever.
Dom Rafael contou novamente a todos, com a brevidade requerida pelo
tempo, que estava casado com Leocádia e que sua irmã Teodósia se casara com
Marco Antônio, notícias estas que causaram novas e imensas alegrias. O pessoal
recém-chegado arranjou cavalos suficientes para os cinco peregrinos, que
decidiram ir à cidade de Marco Antônio, pois seu pai se oferecera para celebrar
ali as bodas dos dois casais. Partiram e alguns dos presentes adiantaram-se para
chegar à cidade e pedir alvíssaras a seus parentes e amigos.
No caminho, Dom Rafael e Marco Antônio souberam a causa da luta: o pai
de Teodósia e de Leocádia, sabedores do que se passara, haviam desafiado o pai
de Marco Antônio para um duelo. Vieram os dois a um só tempo, mas, não
querendo ser desleais, resolveram que, como cavalheiros, haveria de lutar um
de cada vez; a luta acabaria com a morte de um dêles, ou mesmo de dois, se os
peregrinos não tivessem chegado. Os quatro peregrinos agradeceram a Deus
pelo bom desfecho dos fatos. No dia seguinte ao de sua chegada, o pai de
Marco Antônio mandou celebrar, magnífica e esplendidamente, as bodas de seu
filho com Teodósia, e as de Dom Rafael com Leocádia. E êstes viveram felizes
por muitos e muitos anos, em companhia de suas espôsas, deixando ilustre
descendência, que até hoje existe naqueles dois lugares, os melhores de
Andaluzia. Se não dizemos o nome dos lugares é por respeito às donzelas, às
quais, talvez, as línguas maledicentes ou inescrupulosas haveriam de criticar a
leviandade dos desejos e a mudança de roupa. Peço a esta gente para não
criticar tais liberdades, até que tenha sido ferida pelas chamadas flechas de
Cupido, pois, na verdade, elas são uma fôrça insuperável, se assim podemos
dizer, que faz o desejo vencer a razão. Calvete, o cavalariço, ganhou a mula que
Dom Rafael mandou levar a Salamanca e muitos outros presentes que os recémcasados lhe deram. Os poetas daquele tempo tiveram oportunidade de usar
suas penas, exaltando a formosura e as vitórias das duas tão destemidas quão
honestas donzelas, figuras principais desta aventura estranha.
O Licenciado Vidriera
Dois jovens estudantes, passeando pelas margens do Tormes, encontraram
embaixo de uma árvore, dormindo, um rapaz de uns doze anos, vestido como
lavrador; mandaram um criado despertá-lo; o rapazinho acordou e êles
perguntaram-lhe de onde era e o que fazia ali, sozinho. O menino respondeulhes que já não se lembrava mais do nome de sua terra e que ia à cidade de
Salamanca para ver se encontrava um amo a quem servir, mas que o deixasse,
ao mesmo tempo, estudar. Os moços perguntaram-lhe se êle sabia ler; êle
respondeu que sim e que sabia também escrever.
- Se é assim - disse um dos rapazes -, não é por falta de memória que não
sabes o nome de tua pátria.
- Seja lá como fôr - respondeu êle -, ninguém saberá o nome de minha
pátria, nem o nome de meus pais, até que eu possa honrá-los.
- E de que maneira pensas honrá-los? - perguntou o outro jovem.
- Com meus estudos, tornando-me famoso, pois ouvi dizer que dos
homens se fazem os bispos.
Esta resposta fêz com que os rapazes o levassem e lhe oferecessem
determinadas condições, que costumam ser proporcionadas aos criados que
ingressam naquela universidade. O rapaz disse chamar-se Tomás Rodaja e, por
seu nome, por suas roupas, seus patrões concluíram que êle devia ser filho de
algum lavrador pobre. Alguns dias depois, vestiram-no de negro e dentro de
poucas semanas Tomás demonstrou possuir um talento fora do comum,
servindo seus amos com tanta fidelidade, pontualidade e diligência que parecia
não fazer outra coisa senão servi-los, embora não se descuidasse dos estudos; e,
como a boa vontade do criado desperta a boa vontade do patrão, Tomás Rodaja
deixou de ser criado para ser amigo e companheiro de seus patrões. Ao fim de
oito anos, tornou-se êle tão famoso na universidade, por seu talento e por sua
habilidade extraordinária, que era estimado pelas mais diferentes pessoas.
Especializou-se em leis, mas o que lhe dava posição de relêvo era o estudo das
humanidades; sua memória era tão brilhante que causava espanto e êle
procurava cultivá-la com sua inteligência, que não era menos famosa.
Quando seus amos terminaram os estudos voltaram para sua terra natal,
que era uma das melhores cidades de Andaluzia.
Levaram Tomás, que ficou ali com êles, mas a vontade que êle tinha de
terminar os estudos e de voltar a Salamanca - que aguça o desejo de fazer
retornar a ela todos os que provaram as delícias de seu modo de viver - fê-lo
pedir aos amos licença para voltar. Êles, corteses e liberais, consentiram, dandolhe o suficiente para sustentar-se durante três anos.
O rapaz despediu-se dêles e, em suas palavras, demonstrou-lhes tôda a
gratidão; saiu de Málaga - que esta era a pátria de seus amos - e, ao passar pela
costa de Zambra, caminho que leva a Antequera, encontrou um gentil-homem a
cavalo, esplêndidamente vestido, acompanhado por dois criados, também a
cavalo. Chegou-se a êle e soube que iria seguir o mesmo caminho; fizeram
camaradagem, conversaram sôbre muitas coisas e Tomás, com poucas palavras,
demonstrou seu extraordinário talento; o cavalheiro, por sua vez, demonstrou
sua generosidade, pois, como êle próprio o disse, era capitão da infantaria de
Sua Majestade e seu alferes encontrava-se em Salamanca, exercitando a tropa.
Elogiou a vida de soldado, pintou-lhe ao vivo as belezas de Nápoles, as
diversões de Palermo, a fortuna de Milão, os festins da Lombardia, as deliciosas
comidas das hospedarias; pintou-lhe, doce e detalhadamente, o: “Olha o
fricassé, compadre!; Passa pra cá, seu malandro!; Que venha la macatela, li
polastri e li macarroni!” Elevou às alturas a vida livre do soldado e a liberdade
na Itália, mas nada lhe disse sôbre o frio que as sentinelas passavam, sôbre o
perigo dos assaltos, sôbre as ameaças de guerra, sôbre a fome que se sofre,
sôbre a ruína das minas e outras coisas dessa espécie, que os soldados têm de
aturar. Para resumir, disse-lhe tantas coisas e de tal maneira, que a sensatez do
nosso Tomás Rodaja começou a fraquejar e a se interessar por aquela vida, que
corteja sempre a morte.
O capitão, que se chamava Dom Diego de Valdívia, muito impressionado
pela aparência, talento e desembaraço de Tomás, pediu-lhe que fôsse com êle
para a Itália, se é que sua curiosidade desejava conhecê-la; oferecia-lhe um
lugar à sua mesa e também, se fôsse necessário, sua própria bandeira, porque o
alferes estava para deixar seu pôsto. Não foi preciso muita coisa para Tomás
aceitar o convite, fazendo previamente um discurso a si próprio, dizendo lá
com seus botões que seria muito bom conhecer a Itália, Flandres e outras terras
e países, pois as longas viagens muito ensinam aos homens; para isso, gastaria,
no máximo, três ou quatro anos, que, acrescentados à sua pouca idade, não
seriam assim tão longos a ponto de prejudicar-lhe os estudos. E, pensando que
tudo haveria de sair conforme sua vontade, disse ao capitão que se sentia feliz
por ir com êle à Itália, com a condição de não se colocar sob suas ordens, nem
sob as ordens de sua bandeira, nem ser obrigado a sentar praça. O capitão
disse-lhe que não era necessário alistar-se, pois receberia assim mesmo os
socorros e os benefícios dispensados à companhia e que lhe daria licença tôdas
as vêzes que êle a pedisse.
- Aceitar isso - disse Tomás - seria ir contra minha consciência e contra a
sua própria, senhor capitão; por isso, prefiro ir por minha própria conta.
- Uma consciência assim tão escrupulosa - disse Dom Diego - parece mais
a consciência de um religioso que a de um soldado, mas, de qualquer modo,
podemos considerar-nos amigos.
Chegaram em Antequera à noite e, dentro de poucos dias, andando quase
sem parar, chegaram aonde se encontrava a companhia já formada e pronta
para começar a viagem de volta a Cartagena, tendo ela, e mais outras quatro
companhias, procurado alojamento nos lugares que lhe ficavam mais à mão.
Tomás pôde observar a autoridade dos comissários, a impertinência de
certos capitães, a solicitude dos oficiais encarregados de acomodar as tropas, a
habilidade dos pagadores, as queixas do povo, a maneira de se trocar vale por
dinheiro, a arrogância dos recrutas, as discussões dos hóspedes, a mania de se
pedir coisas além do necessário e, finalmente, a necessidade quase inevitável de
fazer tudo aquilo que via, mas que não aprovava.
Tomás vestiu-se de meganha e deixou de usar suas roupas de estudante,
para entregar-se ao “Deus dará”, como se costuma dizer. Os inúmeros livros
que possuía ficaram reduzidos a umas Horas de Nossa Senhora e a um
Garcilaso, sem comentários, que levava em suas algibeiras. Chegaram a
Cartagena mais depressa do que queriam, porque a vida nos alojamentos é
folgada, cheia de deliciosos imprevistos. Dali embarcaram para Nápoles, em
quatro galeras, onde Tomás Rodaja pôde observar a vida esquisita que aquela
gente leva, em suas casas flutuantes, passando a maior parte do tempo a
ridicularizar os maçantes, a roubar os galeotes, a aborrecer os marinheiros, a
destruir os ratos, a exaltar os ânimos. As grandes borrascas e tormentas
temorizaram-no, principalmente no gôlfo do Leão, onde foram surpreendidos
por duas tempestades; uma levou-os à Córsega e outra a Toulon, na França.
Depois de tudo isso, tresnoitados, molhados e com olheiras, chegaram à
belíssima cidade de Gênova e desembarcaram; depois de terem visitado uma
igreja, o capitão e todos os seus companheiros foram para uma hospedaria,
onde esqueceram tôdas as tempestades.
Conheceram ali a suavidade do Trebiano, o valor do Montefrascão, a fôrça
do Asperino, a generosidade dos dois vinhos gregos Cândia e Soma, a grandeza
do Cinco Vinhas, a calma e a doçura do famoso Guarnacha, a aspereza do
Chentola, sem saírem do sério. O hospedeiro, tendo enumerado grande
quantidade de diferentes vinhos, ofereceu-se para trazer-lhes o verdadeiro
Madrigal, o Coca, o Alaejos e o Imperial, que o deus da alegria prefere ao
próprio Real Cidade; ofereceu-lhes o Esquivias, o Alanis, o Cazala, o
Guadalcanal e o Membrilha, sem esquecer-se do Ribadávia e do Descargamaria.
Em resumo, o hospedeiro esmerou-se e lhes trouxe tanto vinho que podia
abrigar em suas adegas o próprio Baco.
Tomás admirou-se ao ver os cabelos loiros das genovesas, a gentileza e a
disposição garbosa dos homens, a admirável beleza da cidade, que parece ter
suas casas engastadas nos penhascos, como se elas fôssem diamantes de ouro.
No outro dia, tôdas as companhias que deviam ir a Piemonte desembarcaram;
Tomás, entretanto, não quis fazer esta viagem e sim ir por terra a Roma e
Nápoles, ficando de passar por Veneza, ir de Loreto a Milão e a Piemonte, onde
encontrar-se-ia com Dom Diego de Valdívia, caso êle não recebesse ordens de ir
a Flandres, o que era bem provável. Tomás despediu-se do capitão dali a dois
dias e em cinco chegou a Florença, tendo passado antes por Lucca„, cidade
pequena, mas bem bonita, e onde, mais do que em qualquer outra parte da
Itália, os espanhóis são bem recebidos. Gostou imensamente de Florença, do
lugar onde foi construída, de sua limpeza, de seus suntuosos edifícios, de seu
rio agradável e de suas ruas calmas. Permaneceu ali quatro dias e depois partiu
para Roma, a rainha das cidades e senhora do mundo.' Visitou seus templos,
adorou suas relíquias, admirou sua grandeza e, assim como se conhecem o
poder e a ferocidade do leão pelas suas unhas, êle também conheceu a grandeza
e o poder de Roma pelos restos de mármore, pelas estátuas, ou inteiras ou
mutiladas, pelos arcos quebrados e pelas termas destruídas, pelos seus
magníficos pórticos e grandes anfiteatros, pelo famoso rio santo, que sempre
enche de águas as suas margens, abençoando-as com as infinitas relíquias de
mártires, que ali tiveram sua sepultura, por suas pontes, que parecem olharemse mútuamente, e por suas estradas, que, só pelo nome, se impõem a tôdas as
outras cidades do mundo: a Via Ápia, a Flamínia, a Júlia e outras semelhantes.
Admirava-se também com a própria divisão de seus montes: o Célio, o
Ouirinal, o Vaticano e os outros quatro cujos nomes expressam a grandeza e a
majestade de Roma. Observou também a importância do Colégio dos Cardeais,
a majestade do sumo pontífice, a afluência e variedade de pessoas de tôdas as
nações. Observou e anotou as coisas minuciosamente. Depois de percorrer a
estação das sete igrejas, depois de ter-se confessado e beijado os pés de Sua
Santidade, o papa, cheio de agnus dei e de planos, decidiu ir a Nápoles por mar,
porque era época de se fazerem mudanças, tempo desfavorável, portanto, para
todos aquêles que querem entrar ou sair de Roma por terra. A admiração que
sentira ao ver Roma tornou-se ainda maior quando viu Nápoles, que lhe
pareceu, como acontece a todos os que a vêem, a melhor cidade da Europa e
também de todo o mundo.
Dali foi para a Sicília, Palermo e Messina; de Palermo, admirou a posição
geográfica e a beleza; de Messina, o pôrto; de tôda a ilha, a abundância que lhe
vale, merecidamente, o nome de “celeiro da Itália”. Em seguida voltou a
Nápoles e a Roma; dali foi a Nossa Senhora de Loreto, em cujo templo não viu
nem muros nem paredes, porque estavam todos cobertos por muletas, cadeias,
grilhões, algemas, cabeleiras, bustos de cêra, pinturas e painéis, que demonstravam as inúmeras graças recebidas das mãos de Deus, por intermédio de sua
Santa Mãe, pois aquela imagem sagrada quis engrandecer, com uma série de
milagres, a devoção que lhe dedicam aquêles que, com tais dosséis, adornam as
paredes de sua casa. Viu a casa e o aposento onde se passou o mais importante
acontecimento do mundo, que, entretanto, nem mesmo os céus, nem os anjos,
nem todos os habitantes das moradas eternas conseguiram entender. Dali foi a
Ancona, onde embarcou para Veneza, cidade que não teria rival se Colombo
não tivesse nascido e também graças ao auxílio do céu e ao grande Fernão
Cortês, que conquistou a grande Cidade do México, para que a bela Veneza
encontrasse quem pudesse competir com ela. Estas duas famosas cidades têm
suas ruas feitas de água; a da Europa é a admiração do Mundo Antigo; e a da
América, a maravilha do Nôvo Mundo. Sua riqueza pareceu-lhe infinita; seu
govêrno, previdente; sua localização, inexpugnável; sua fartura, admirável; seus
contornos, alegres; considerou-a, tôda ela, enfim, digna da fama que tem em
tôda a face da terra, fama que se deve sobretudo ao seu famoso arsenal, onde se
fabricam galeras e outras inumeráveis embarcações.
As diversões e os passatempos que nosso curioso encontrou em Veneza
quase o fizeram esquecer seus objetivos. Mas, depois de estar ali um mês,
passando por Ferrara, Parma e Placência, voltou a Milão, oficina de Vulcano,
pouco apreciada pelo reino da França, cidade, enfim, que desperta inúmeros
comentários, magnífica por sua grandeza, pela grandeza de seu templo e pela
extraordinária fartura de tôdas as coisas necessárias à vida humana. Dali foi
para Aste, onde chegou a tempo de alcançar o tércio (tércio: Antigo corpo de
tropas espanholas dos séculos XVI e XVII.) que no dia seguinte partia para
Flandres. Seu amigo, o capitão, recebeu-o muito bem e, em sua companhia,
passou por Flandres, dirigindo-se depois a Antuérpia, cidade que nada ficava a
dever às outras cidades que vira na Itália. Visitou Gante, Bruxelas e observou
que todo o país se preparava para tomar armas e realizar operações militares no
verão seguinte. Tendo realizado seu desejo, Tomás decidiu voltar à Espanha,
mais precisamente para Salamanca, a fim de terminar seus estudos; seu amigo
sentiu imensamente que êle se fôsse e pediu-lhe para mandar notícias de sua
saída, de sua chegada e de tudo o que lhe acontecesse. O rapaz prometeu
satisfazer-lhe a vontade ' e, passando pela França, voltou à Espanha, sem
conseguir ver Paris, pois ela estava em pé de guerra. Finalmente, chegou a
Salamanca, onde foi bem recebido pelos amigos; com o auxílio dêles, continuou
os estudos, até graduar-se em leis. Por êsse tempo, chegou àquela cidade uma
senhora imponente e intrigante. Todos os pássaros do lugar foram logo atraídos
pelo seu canto, caíram todos em sua armadilha e não havia vademecum que
não a visitasse. Disseram êles a Tomás que aquela dama dizia ter estado na
Itália e em Flandres; êle, para ver se a conhecia, foi visitá-la e ela apaixonou-se
por êle; Tomás, entretanto, não se deixou prender; somente à fôrça e levado por
outros é que entrava em casa dela. Por fim, ela revelou-lhe seus sentimentos e
ofereceu-lhe todos os seus bens; êle, porém, preocupava-se mais com os livros
que com qualquer outra coisa e de maneira alguma correspondeu aos
sentimentos daquela senhora, que, vendo-se desprezada e sabendo que, por
meios comuns, não poderia conquistar a rocha que era Tomás, decidiu procurar
outros meios, em sua maneira de ver, mais eficazes, para fazê-lo ficar sob suas
ordens. Aconselhada por uma jovem moura, deu a Tomás, em um marmelo
Toledano, uma droga, acreditando que assim pudesse obrigá-lo a amá-la, como
se no mundo houvesse ervas, encantos ou palavras suficientes que nos
pudessem tirar o livre arbítrio; por isso as criaturas que fazem essa espécie de
bebidas ou comidas chamam-se venéficas, pois nada mais fazem que dar
veneno a quem bebe os seus filtros, como já o demonstrou uma série de
experiências em diversas ocasiões. Tomás comeu o marmelo e logo depois
começou a bater as mãos e os pés, como se estivesse com epilepsia, ficando
inconsciente durante muitas horas; quando voltou a si, falou, com a língua
enrolada, que se encontrava naquele estado porque comera um marmelo que o
envenenara e denunciou quem o havia dado. O caso foi levado à Justiça, que se
pôs a procurar a malfeitora, mas ela, vendo o mau sucesso de seu plano, já se
havia pôsto a salvo e nunca mais apareceu.
Tomás ficou na cama seis meses e emagreceu de tal forma que ficou só
pele e osso, como se costuma dizer; além disso, mostrava estar com o juízo
perturbado e, embora lhe tivessem dado todos os remédios possíveis, curaramlhe apenas a enfermidade do corpo; a do entendimento não; ficou louco e da
mais estranha loucura que já se viu. O infeliz imaginou-se todo feito de vidro e,
por isso, quando alguém chegava perto dêle, gritava, pedindo, suplicando que
não se aproximassem dêle senão se quebraria, pois não era como todos os
outros homens, e sim inteirinho de vidro, da cabeça aos pés.
Para tirar-lhe êsse pensamento esquisito, muitas pessoas, sem atender ao
que êle dizia, abraçavam-no, dizendo para observar como êle não se quebrava.
O que conseguiam com isto, entretanto, era fazer com que o pobre rapaz se
deitasse no chão, gritanto terrivelmente e desmaiando logo em seguida; e só
voltava a si depois de quatro horas; quando o fazia era para renovar os rogos,
os pedidos para não se aproximarem dêle. Dizia para lhe falarem a distância,
para lhe perguntarem o que quisessem que êle a tudo responderia e mais
sàbiamente, pois era um homem de vidro e não de carne, porque o vidro,
matéria fina e delicada, deixava que o espírito trabalhasse com maior prontidão
e eficácia que a do corpo comum, pesado e prêso à terra.
Houve quem quisesse ver se era verdade o que êle dizia e perguntaramlhe muitas coisas difíceis, às quais êle respondeu sábiamente e com grande
agudeza de espírito, fato que causou espanto aos letrados da universidade e aos
professôres de medicina e filosofia, pois estavam diante de um indivíduo que,
portador de uma loucura tão fora do comum, era dotado de grandes
conhecimentos e respondia tôdas as perguntas com propriedade e perspicácia.
Tomás pediu para lhe arranjarem uma capa que lhe cobrisse o corpo frágil,
a fim de não se quebrar por ter de vestir uma roupa mais apertada; deram-lhe
uma veste marrom, uma capa bem larga, que êle pôs com cuidado e prendeu
com uma corda de algodão. Não quis calçar os sapatos de maneira alguma e
ordenou que lhe dessem de comer sem chegar perto dêle; para resolver esta
situação, puseram na ponta de uma vara uma bandeja, na qual colocaram um
pouco de fruta, de acôrdo com a estação. Não comia carne nem peixe, bebia só
na fonte ou no rio e fazia-o com as mãos; quando andava, ia pelo meio da rua
olhando os telhados, receoso de que lhe caísse alguma coisa em cima e o
quebrasse; no verão, dormia no campo, ao ar livre; no inverno, metia-se em
uma hospedaria qualquer, enterrava-se no palheiro até a garganta, dizendo que
aquela era a melhor e mais segura cama para um homem de vidro. Quando
trovejava, êle tremia como se estivesse com febre, ia para o campo e só voltava
para o povoado quando a tempestade tivesse passado.
Seus amigos o prenderam por muito tempo, mas, vendo que seu
sofrimento diminuía quando êle estava livre, deixaram-no e êle saiu pela
cidade, causando admiração e pena a todos os que o conheciam.
Os rapazes cercavam-no logo, porém êle detinha-os com a vara, pedindolhes que falassem de longe para não parti-lo, pois era um homem de vidro,
delicado e quebradiço. Os rapazes, que são a raça mais travêssa do mundo,
apesar de seus rogos, começaram a dirigir-lhe ofensas e até mesmo a lançar-lhe
pedras, para ver se era de vidro, como dizia; Tomás porém, gritava e exaltavase tanto que fazia os outros repreenderem e castigarem os rapazes a fim de não
lhe atirarem mais nada. Um dia aborreceram-no tanto que êle se voltou e lhes
disse:
- O que quereis de mim, criaturas teimosas como môscas, sujas como
percevejos, atrevidas como pulgas? Serei, por acaso, o monte Testacho de Roma
para me atirardes tantas pedras e telhas?
Muitos rapazes o seguiam para ouvi-lo esbravejar, defenderse e responder
a todos, chegando depois a preferirem apenas ouvi-lo falar. Certa vez, passando
pela alfaiataria de Salamanca, uma costureira perguntou-lhe:
- Sua desgraça, senhor licenciado, entristece-me bastante, mas que hei de
fazer se não posso chorar?
Êle voltou-se e respondeu-lhe calmamente:
- Filiae Hierusalem plorate super vos et super filios vestros. (Filhas de
Jerusalém, chorai sôbre vós e sôbre vossos filhos.)
O marido da costureira percebeu a malícia da resposta e disse-lhe:
- Meu caro Licenciado Vidriera - que assim dizia chamar-se -, és mais
velhaco do que louco.
- Posso jurar - respondeu êle - que de estúpido nada tenho.
Passando um dia pelo prostíbulo e vendo à sua porta muitas de suas
moradoras, disse que elas eram componentes do exército de Satanás, alojadas
na casa do inferno. Certa vez alguém lhe perguntou que conselho daria êle a
um amigo que estava muito triste porque sua mulher havia fugido com outro.
- Diga-lhe que dê graças a Deus por ter permitido que levassem para longe
dêle um grande inimigo.
- Não deve, então, ir buscá-la?
- Nem por brincadeira - respondeu êle. - Seria o mesmo que procurar um
verdadeiro perpétuo castigo para sua desonra.
- Já que é assim, que farei eu para viver em paz com minha mulher?
- Dá-lhe o que ela precisar, deixa que ela mande em todos os de sua casa,
mas não consintas que mande em ti.
Um rapaz lhe disse:
- Senhor Vidriera, não quero morar mais com meu pai, porque êle me bate
muito.
- Cuidado, filho, os açoites dos pais honram os filhos, os do verdugo
ultrajam.
Estando à porta de uma igreja viu entrar nela um lavrador, daqueles que
sempre se gabam de ser cristãos verdadeiros; atrás dêle vinha outro lavrador
que tinha a mesma opinião; o licenciado dirigiu-se a êle, falando bem alto:
- Vamos, Domingo, espere que o Sábado passe.
Dizia que os professôres eram felizes porque lidavam sempre com os
anjos; mas que seriam felicíssimos se os anjinhos não fôssem sujos. Alguém lhe
perguntou o que êle pensava das alcoviteiras e êle respondeu que só havia
alcoviteiras quando duas mulheres eram vizinhas.
As notícias de sua loucura, de suas respostas e chistes estenderam-se por
tôda a Castilha, chegando até mesmo aos ouvidos do príncipe da côrte, que
pediu a um amigo de Salamanca para enviá-lo à sua presença. Êste cavalheiro,
encontrando-se com êle, disse-lhe:
- Saiba o senhor licenciado que uma grande figura da côrte deseja
conhecê-lo e me envia para falar-lhe.
- Vossa Mercê desculpe-me com êste senhor, pois eu não sou de ficar em
palácios, porque tenho vergonha e não sei bajular ninguém.
Apesar disso, o cavalheiro levou-o à côrte, mas para conseguir que êle
fôsse usaram de um artifício: puseram-no em um cêsto de vime, igual àqueles
cêstos onde se colocam vidros, calçaram os espaços com pedras e vidros
envoltos em palha para fazê-lo pensar que o levavam como se fôsse um objeto
de vidro.
Chegou a Valladolid de noite e foi levado à casa do fidalgo que o mandara
buscar, sendo aí muito bem recebido.
- Seja bem-vindo, Senhor Vidriera. Como foi de viagem?
Como vai a saúde?
- Dos caminhos, o único ruim, quando se acaba, é aquêle que leva à fôrca.
Quanto à saúde, nada há de nôvo; meu pulso e meu cérebro batem no mesmo
ritmo.
Certo dia, tendo visto em várias gaiolas muitos nebris (Nebri: Espécie de
falcão, adestrado para a caça.), açôres (Açor: Ave de rapina de asas e bico prêtos, cauda
cinzenta manchada de branco e penas amarelas.) e outros pássaros de altanaria
(Altanaria: Arte de caçar com aves amestradas.), disse que esta espécie de caça era
digna de príncipes e de grandes senhores, mas para tomarem cuidado com ela,
pois na maioria das vêzes cobrava pesado tributo. Disse que a caçada de lebres
é muito boa, ainda mais quando se caça com galgos amestrados.
O fidalgo gostou de sua loucura e deixou-o sair pela cidade sob os
cuidados de um homem que não deixasse os garotos lhe fazerem mal. Em seis
dias Tomás tornou-se conhecido de tôda a côrte e de todos os rapazes; na rua,
ou em qualquer esquina, respondia a tôdas as perguntas que lhe faziam; um
estudante perguntou-lhe se êle era poeta, pois parecia ter talento para tudo.
- Até agora não tive oportunidade de ser assim tão néscio nem tão
venturoso - respondeu êle.
- Não entendo essa história de néscio e de venturoso - disse o estudante.
- Não fui néscio porque não quis ser um mau poeta, nem fui tão venturoso
que tenha merecido ser um bom poeta.
Outro estudante perguntou-lhe o que pensava dos poetas. Êle respondeu
que admirava muito a ciência, mas os poetas não.
Perguntaram-lhe por que dizia aquilo e êle respondeu que da grande
quantidade de poetas raríssimos eram os bons e, portanto, não havendo quase
poetas, não poderia estimá-los; admirava, entretanto, a ciência da poesia, pois
ela encerra em si tôdas as outras ciências; serve-se de tôdas as outras, enfeita-se
com tôdas elas e dá à luz suas maravilhosas obras, oferecendo ao mundo
grandes lições, prazer e encantamento. E acrescentou:
- Bem sei o quanto se deve estimar um bom poeta e lembro-me daqueles
versos de Ovídio que dizem:
“Cura ducum fuerunt olim regumque poetae,
Praemiaque antiqui magna tulere chori.
Sanctaque magistras et erat venerabile nomen
Vatibus et larguae saepe dabantur opes.”
(Os poetas foram outrora a preocupação dos generais e dos reis, os coros
da antiguidade ofereceram-lhes grandes honrarias.
Os poetas tinham, então, uma soberania sagrada, um nome venerado e
inúmeras recompensas foram-lhes muitas vêzes oferecidas.)
Não posso também esquecer-me dos poetas de alta categoria, aquêles que
Platão chama de intérpretes dos deuses e dos quais diz Ovídio:
“Est Deus in nobis, agitante calescimus illo (Há um deus em nós, e nós nos
inspiramos nêle quando êle se inflama.).
“E ainda:
“At sacri vates, et Divum cura vocamur (Mas nós, os poetas, somos chamados
sagrados e somos a preocupação dos deuses.).
“Isto diz êle dos bons poetas, pois dos maus, dos charlatães, o que se pode
dizer senão que são êles a idiotice e a arrogância do mundo? Como é aborrecido
ver-se quando um dêstes poetas pede licença aos que o rodeiam para dizer um
sonêto: Escutem os senhores um sonetinho que fiz uma noite dessas, pois,
embora me pareça não valer nada, tem um não-sei-quê de bonito. E, assim
dizendo, torce a bôca, levanta as sobrancelhas, remexe o bôlso e tira, do meio de
mil papéis ensebados e rasgados que contêm uns mil sonetos, o sonêto que quer
recitar, e o recita de fato, com voz melíflua e afetada. E se por acaso os que o
escutam não o elogiam, ou porque sejam astutos, ou porque sejam ignorantes,
diz: Ou os senhores não entenderam o sonêto ou eu não soube recitá-lo; é bom
que eu o recite novamente e que os senhores prestem mais atenção, porque na
verdade o sonêto merece. E torna a recitar, com novos trejeitos e novas pausas.
Como é aborrecido ver êstes poetas censurarem-se mutuamente!
Que posso eu dizer de cachorros e de alguns indivíduos chamados
modernos que latem para os grandes mastins, antigos e graves? Que direi eu
dos que criticam alguns ilustres e excelentes indivíduos, onde resplandece a
verdadeira luz da poesia, que, considerando com alívio o entretenimento para
suas inúmeras e graves preocupações, mostram a divindade de seus talentos, a
excelência de seus conceitos, pouco se importando com o ignorante que emite
juízos a respeito do que não conhece, que menospreza o que não entende?
Que direi eu daquele que se deseja ver estimado, apreciado em sua
estupidez, venerado, enquanto a ignorância se aproxima dêle cada vez mais?”
De outra feita perguntaram-lhe por que a maior parte dos poetas era pobre.
Respondeu êle que os poetas eram pobres porque queriam, pois estava em suas
mãos serem ricos; era só saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se
encontrava nas mãos de suas namoradas, pois eram tôdas riquíssimas:
possuíam cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verdeesmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente e suas
lágrimas, pérolas líquidas; seus pés, ao pisarem a terra mais dura e estéril do
mundo, faziam-na produzir jasmins e rosas; que seu hálito era de puro âmbar,
almíscar e algália; e que tudo isto eram pequenas mostras de sua imensa
riqueza. Esta era sua opinião sôbre os maus e bons poetas; dos bons sempre
falou bem, pondo-os nas alturas.
Certo dia viu na Rua de São Francisco umas figuras muito mal pintadas e
disse que os bons pintores imitavam a natureza, mas que os maus a vomitavam.
Aproximou-se uma vez, com muito cuidado, a fim de não se quebrar, da oficina
de um livreiro e disse-lhe:
- Gostaria muito dêste ofício se não tivesse um grande defeito.
- Que defeito? - perguntou-lhe o livreiro.
- O de causar melindres quando compram os direitos autorais de um livro
e a trapaça que fazem com o autor quando o livro é impresso às suas custas,
pois, em lugar de imprimirem 1500 livros, imprimem 3.000 e, quando o autor
pensa que seus livros estão sendo vendidos, os livros de outros é que estão
sendo despachados.
Aconteceu que, neste mesmo dia, passaram pela praça seis homens
açoitados, e, tendo o pregoeiro dito que ao primeiro se açoitava por ser ladrão,
Vidriera, em altas vozes, disse aos que lhe estavam à frente:
- Afastai-vos, irmãos, que nenhum de vós seja o primeiro a querer uma
justificação.
E, quando o pregoeiro chegou a dizer: “O último.. “, êle falou:
- Aquêle deve ser o fiador dos rapazes.
Um jovem disse-lhe:
Vidriera, amanhã vão açoitar uma alcoviteira.
- Se dissesses que iam açoitar um alcoviteiro eu diria que iam açoitar um
porco.
Encontrava-se presente nesta ocasião um dêsses indivíduos que carregam
liteiras, e que lhe falou:
- E de nós, licenciado, nada tens a dizer?
- Não - respondeu êle -, a não ser que cada um de vós sabe mais pecados
que um confessor, mas com a diferença de que o confessor sabe mantê-los em
segrêdo, e vós sabeis divulgálos pelas tabernas.
Um rapaz de cavalariça, que tôda espécie de gente sempre o escutava,
perguntou-lhe:
- De nós, Senhor Redoma, pouco ou nada há que dizer, porque somos
gente de bem e úteis à república.
- A honra do amo revela a do criado; segundo isto, olha a quem serves e
verás quão honrado és; todos vós sois os piores canalhas que existem na face da
terra. Certa vez, quando eu não era de vidro, fui obrigado a montar uma mula
de aluguel tão ruim que pude contar nela 101 defeitos, todos importantes e
inimigos da espécie humana. Todos os moços de cavalariça têm um pouco de
rufião, um pouco de ladrão e um não-sei-quê de bôbo; se seus amos - assim
chamam êles aos indivíduos que levam em suas mulas - são uns bôcas-moles,
ganham dêles mais do que perderam em todos os outros anos; se são
estrangeiros, tratam de roubá-los; se estudantes, de maldizê-los; se religiosos,
de renegá-los; se são soldados, temem-nos. Êles, os marinheiros, os carreiros, os
arrieiros, têm um modo de viver diferente dos outros e todo seu: o carroceiro
passa a maior parte de sua vida entre a vara e um pedaço que vai pouco além
do jugo das mulas à bôca do carro; passa a metade do tempo a cantar, a outra
metade a blasfemar e a dizer: “Afasta!”, e, se por acaso tem de tirar uma roda
do carro de algum atoleiro, vale-se mais das pragas que da fôrça de três mulas.
Os marinheiros são gente selvagem, anti-social e só sabem a linguagem usada
nos navios; são diligentes na bonança, na borrasca são preguiçosos; na tormenta
são muitos os que mandam, os que obedecem, poucos; seu deus é o dinheiro e a
comida; seu passatempo é ver os passageiros enjoarem. Os arrieiros são gente
que nasceu para se casar com a albarda (Albarda: Espécie de sela grosseira que serve
para bêstas de carga.); são tão delicados e pressurosos que para não perderem
uma viagem são capazes de perder a alma; sua única música é a do marteiro
(Marteira: Refere-se aqui a uma peça de ferro de pequenas dimensões, que se enche de
pólvora para dar tiros, imitando as salvas de artilharia.); seu aperitivo, a fome; suas
matinas consistem em dar comida ao gado; sua única devoção é não ter
devoção alguma.
Na ocasião em que assim falava, encontrava-se à porta de uma farmácia;
dirigindo-se a seu dono, falou-lhe:
- O senhor teria uma ótima profissão se não fôsse tão inimigo de suas
próprias candeias.
- Como posso ser inimigo de minhas candeias? - perguntou o boticário.
- Digo isto - respondeu Vidriera - porque, faltando-lhe qualquer azeite, o
senhor pega o azeite da candeia que lhe está mais à mão e sua profissão é capaz
de tirar o crédito ao mais competente médico do mundo.
Perguntaram-lhe por que êle disse haver certos boticários que substituíam
os remédios receitados pelos médicos por outros que julgavam produzir o
mesmo efeito, só para não dizer que, em sua botica, não havia tal produto; por
isso o remédio mal ministrado agia em sentido contrário ao que deveria, se
fôsse bem ministrado. Alguém lhe perguntou, então, o que pensava dos
remédios e êle respondeu:
- Honora medicum propter necessitatem, etenim creavit eum Altissimus.
A Deo enfim est omnis medela, et a rege accipiet donationem. Disciplina medici
exaltabit caput illius, et in conspectu magnatum collaudabitur. Altissimus de
terra creavit medicinam et vir prudens non abhorrebit illam (Honra o médico
porque precisas dêle, pois o Altíssimo o criou. Todo remédio provém de Deus e do rei
receberá êle a recompensa. A ciência do médico exaltará e êle será louvado diante dos
poderosos. O Altíssimo criou a medicina da terra e o homem prudente não se oporá a
ela.). É isto o que diz o Eclesiástico da medicina dos bons médicos; dos maus
poderíamos dizer tudo isto ao contrário, pois não há gente mais perniciosa para
a população. O juiz pode abrandar ou adiar o cumprimento da justiça; o
advogado pode defender por interêsse próprio uma demanda injusta; o
mercador pode acabar com nossos bens; tôdas as pessoas com as quais tratamos
podem, enfim, causar-nos algum mal, porém ninguém pode tirar-nos a vida
sem ficar subordinado ao temor do castigo; só os médicos podem matar-nos e
nos matam sem temor e a sangue frio, desembainhando uma única espada: a
receita; e ninguém pode descobrir seu crime porque as provas vão para debaixo
da terra. Lembro-me de que, quando eu era de carne e não de vidro como sou
agora, um dêsses médicos de segunda classe mandou um enfêrmo procurar
outro médico e dali a quatro dias resolveu passar pela botica que aviava as
receitas do tal médico, perguntar ao boticário como ia o enfêrmo, que êle não
quisera tratar, e saber se o outro médico havia receitado algum purgante. O
boticário respondeu-lhe que havia mesmo uma receita de purgante, que o
doente deveria tomar no dia seguinte; o médico pediu-lhe que a mostrasse e,
vendo que no fim dela estava escrito: Sumal diluculo (Tome-o pela manhã.), disse:
“Aprovo tudo neste purgante, menos êsse tal de dilúculo, porque é
excessivamente úmido”.
Por estas e por outras coisas que dizia a respeito de tôdas as profissões,
havia muita gente que andava atrás dêle, sem fazer-lhe mal, porém sem deixálo sossegado, e êle não poderia defender-se dos rapazes se seu guarda-costas
não cuidasse dêle.
Alguém lhe perguntou o que deveria fazer para não ter inveja de
ninguém.
- Dorme, pois durante todo o tempo em que estiveres dormindo serás
igual àquele que invejas.
Outro lhe perguntou o que deveria fazer para conseguir um cargo que
desejava há dois anos.
- Parte a cavalo e, sem perder de vista a pessoa que está encarregada de
realizá-la, acompanha-a até sair da cidade, que só assim sairás com ela.
Certa vez passou, casualmente, por onde êle estava um juiz que devia
resolver uma questão, acompanhado de um grande número de pessoas e dois
aguazis; quis saber quem era tôda aquela gente e, quando soube, disse:
- Aposto que aquêle juiz leva víboras em seu seio, pistolas na cinta e raios
nas mãos para destruir tudo o que puder. Lembro-me de ter tido um amigo que
em uma destas comissões proferiu uma sentença que ia muito além da culpa
dos acusados.
Perguntei-lhe por que havia êle pronunciado aquela sentença tão cruel e
feito tão grande injustiça. Respondeu-me que pensava concordar com a
apelação que seria feita, podendo assim mostrar aos componentes do Conselho
sua misericórdia, atenuando e pondo aquela rigorosa sentença em seu devido
lugar. Respondi-lhe eu que teria sido muito mais fácil dar a sentença de modo a
evitar todo aquêle trabalho, podendo também fazer com que todos o
considerassem um juiz honesto e honrado.
No meio das inúmeras pessoas que sempre o ouviam, estava um seu
conhecido vestido como advogado, a quem uma pessoa da roda chamou de
“senhor doutor”, mas Vidriera, sabendo que o indivíduo ao qual chamaram de
doutor não tinha sequer o título de bacharel, disse-lhe:
- Cuidado, amigo, que os frades libertadores de escravos não vejam vosso
título, pois, do contrário, haviam de levar-vos pensando que fôsseis um
vagabundo.
- Tratemo-nos bem, Senhor Vidriera, pois já sabeis que sou homem de
sólida cultura.
- Já sei que sois um Tântalo da cultura, porque vos preocupais tanto com a
altura dela que não podeis alcançá-la em profundidade.
Estando, certa vez, próximo à barraca de um alfaiate e vendo que êle
estava com os braços cruzados, disse-lhe:
- Sem dúvida, mestre, estais a caminho da salvação.
- Como o sabeis?
- Como o sei? Sei porque, já que nada tendes a fazer, não tereis também
ocasião para mentir.
E acrescentou:
- Infeliz do alfaiate que não mente e que cose para as festas; o interessante
é que, entre tôdas as pessoas desta profissão, encontra-se apenas um que faça
roupas sem defeitos; os outros todos não sabem costurar.
Quanto aos sapateiros, dizia que - na opinião dêles, sapateiros - jamais um
calçado era malfeito, pois se as pessoas reclamam que o sapato é estreito e
apertado êles dizem que é assim mesmo, que os elegantes costumam calçar um
sapato justo, que usando o tal sapato por duas horas êle fica mais largo do que
uma alpargata e, se alguém reclama que o sapato é largo, êles dizem que é bom
mesmo ser largo para não provocar a gôta.
Um rapaz esperto que ocupava um cargo de escrevente da província
crivava-o de perguntas e trazia-lhe as novidades, pois êle tecia comentário
sôbre tudo e respondia a tôdas as perguntas.
Certa vez disse-lhe êste rapaz:
- Vidriera, esta noite morreu no cárcere um prêso que estava condenado à
fôrca.
- Fêz êle muito bem em apressar sua morte, assim o verdugo não se
sentará sôbre êle.
Na Rua de São Francisco, por onde êle passeava certa vez, havia um carro
de genoveses; um dêles chamou-o e disse-lhe:
- O Senhor Vidriera bem que podia vir até aqui e contar-nos uma história.
- Não, porque não quero que a repitais em Gênova.
Encontrando uma vez uma mulher, dona de uma loja, que acompanhava
uma filha muito feia, mas tôda cheia de enfeites, de jóias, de pérolas, disse-lhe:
- Fizeste muito bem em enfeitá-la para que ela possa passear.
Dizia que os pasteleiros, há muitos anos, jogavam dobladilla (Dobladilla:
jôgo de cartas que consiste em ir dobrando a parada cada vez que se ganha.) porque,
sem mais nem menos, passaram a cobrar 4 pelo pastel de 2, 8 pelo de 4 e meio
real pelo pastel de 8 e ninguém os multava. Falava muito mal dos saltimbancos,
dizendo que essa gente é vadia e desrespeita as coisas divinas, porque,
mostrando em seus retábulos imagens divinas, transformam a devoção em
motivo de chacota e que acontecia, muitas vêzes, de êles colocarem dentro de
um saco tôdas ou a maior parte das figuras do Velho e do Nôvo Testamento e
sentarem-se em cima dêle para comer ou para beber nos bares e nas tabernas;
dizia, enfim, admirar-se de que ninguém os fizesse silenciar ou os desterrasse
do reino.
Passando, certa vez, por um comediante vestido como um príncipe, disse:
- Lembro-me de ter visto êste homem em um teatro com o rosto
enfarinhado, com uma samarra vestida ao contrário e, apesar disso, fora do
palco, parece um fidalgo.
- É possível que o seja - disse alguém -, porque há muitos comediantes que
são de origem nobre e fidalga.
- Talvez seja verdade - replicou Vidriera -, mas a comédia não precisa de
pessoas de origem nobre, precisa é de galãs, de gente elegante e que saiba falar
bem. Os comediantes ganham o pão com o suor de seu rosto, com o trabalho
árduo, recitando, de cor, feito ciganos, indo de um lugar a outro, de pousada a
pousada, desdobrando-se para contentar os outros, porque seu único bem
consiste na alegria de outrem. Não enganam a ninguém, pois tiram sua
mercadoria em praça pública, à vista de todos. O trabalho dos empresários das
comédias é incrível e seu cuidado, extremo, e precisam, pois, ganhar bastante
para que no fim do ano não se vejam tão endividados que sejam obrigados a
litigar com credores; todos êles são necessários a todos nós, como o são as
florestas, as alamêdas, os parques, como o são, enfim, tôdas as coisas que
honestamente nos divertem. Um amigo meu - dizia êle - achava que quem
trabalhava para uma comediante trabalhava para muitas damas a um só tempo;
para uma rainha, para uma ninfa, para uma deusa, para uma criada, para uma
pastôra, acontecendo muitas vêzes servir também a um pajem, a um lacaio, pois
uma comediante costuma representar tôdas estas e muitas outras figuras.
Alguém lhe perguntou quem foi o homem mais feliz do mundo e êle
respondeu que foi Nemo, porque Nemo novit palrem; Nemo sine crimine vivit;
Nemo sua sorte contentus; Nemo ascendit in caelum (Ninguém, porque Ninguém
conhece o pai; Ninguém vive sem êrro; Ninguém está contente com sua sorte; Ninguém
sobe ao céu.). Dos esgrimistas disse uma vez serem êles mestres em uma ciência
ou arte que ignoravam quando precisavam dela, e que eram um tanto
presunçosos, pois queriam reduzir a demonstrações matemáticas, infalíveis, os
movimentos e pensamentos coléricos de seus adversários. Tinha verdadeira
ojeriza pelos indivíduos que tingiam a barba. Certa ocasião, dois homens, um
dêles português, de barba muito pintada, discutiam em sua presença. Em dado
momento disse o português ao espanhol:
- Pela barba que tenho no rosto.
Vidriera não o deixou terminar:
- Olhe aqui, homem, não diga pela barba que tenho no rosto e sim pela
barba que tinjo.
Havia outro que tinha a barba manchada de várias côres por causa da
tinta ruim que usara; Vidriera não deixou passar: disse que a barba dêle parecia
um depósito de lixo. A outro, cuja barba crescera e que, por descuido, não a
tinha pintado, deixando-a metade branca, metade escura, disse Vidriera para
não discutir nem brigar com ninguém, pois poderiam dizer-lhe que êle era tão
falso quanto a própria barba.
Uma vez contou êle que uma jovem discreta e ajuizada, para satisfazer a
vontade dos pais, concordou em casar-se com um velho de barba e cabelos
brancos, mas o velho, na véspera do casamento, não foi procurar o rio Jordão,
como dizem as velhas, mas sim, uma tintura, com a qual pintou a barba; assim,
da noite para o dia, a barba, de branca como a neve, tornou-se negra como o
breu. Chegou a hora do casamento e a môça, vendo o que o velho fizera, disse
aos pais para lhe darem o espôso prometido, pois que não queria saber de
outro. Disseram-lhe que era aquêle mesmo o espôso que lhe haviam
apresentado. Ela tornou a dizer que não era aquêle e trouxe várias testemunhas
para afirmarem com ela que o homem prometido por seus pais era um senhor
respeitável, de barba e cabelos brancos. A môça manteve-se firme em sua
opinião; o velho envergonhou-se e desfez-se o casamento.
A mesma ojeriza que tinha pelas pessoas que pintavam o cabelo, tinha
também pelas aias; admirava-se com sua permafoy, com os babados
complicados de sua touca, com sua afetada delicadeza, com seus escrúpulos e
com sua mesquinhez fora do comum; aborreciam-lhe as fraquezas de seu
estômago, seus desmaios, seu modo de falar mais complicado que suas toucas
e, finalmente, sua inutilidade e suas atitudes desprezíveis.
Alguém lhe disse:
- O que acontece, senhor licenciado? Eu vos tenho ouvido falar mal de
muitas profissões, mas nunca falastes dos escrivães, e há muito o que falar
dêles.
- Embora eu seja de vidro, não sou assim tão fraco que me deixe levar pela
conversa dos outros. Parece-me que a gramática dos murmuradores e o Ia, Ia, Ia
dos que cantam são os escrivães, pois, assim como não se podem estudar outras
ciências sem passar pela porta da gramática e assim como o músico primeiro
murmura para depois cantar, também os difamadores começam a mostrar a
maldade de suas línguas falando mal dos escrivães, dos aguazis e de outros
membros da Justiça, quando, sem os escrivães, a verdade andaria escondida,
desprezada, maltratada pelos cantos do mundo; diz o Eclesiástico: n manum
Dei potestas hominis est, et super fatiem scribae imponet honorem (O poder do
homem está nas mãos de Deus e êle coloca a honra na fisionomia do escriba.). O
escrivão e o juiz são funcionários que não podem exercer cômodamente sua
profissão se não tiverem algo de seu. Os escrivães têm de ser livres e não
escravos, e nem podem ser filhos de escravos; devem ser legítimos, e não
bastardos, nem descender de má família. Juram fidelidade secretamente e juram
não passar escrituras com lucro excessivo; juram que nem a amizade nem a
inimizade, lucro ou prejuízo haverá de movê-los a exercer sua função fora de
sua consciência cristã. Se esta profissão exige tantas qualidades, por que se há
de pensar que os vinte e tantos mil escrivães existentes na Espanha não podem
produzir frutos honestos em seu trabalho? Não quero acreditar, nem é bom que
ninguém acredite, que as coisas não sejam assim, pois os escribas foram as
pessoas mais úteis que existiram nas repúblicas bem organizadas onde havia
dessa gente, alguns excessivamente direitos e outros excessivamente tortos, e
que dêstes dois extremos poderia originar-se um meio têrmo que os fizesse
entrar nos eixos.
Dos aguazis falou que não era de se estranhar que tivessem alguns
inimigos, pois sua função era prender, ou tirar-nos ou vigiar-nos e comer à
nossa custa. Censurava a negligência e a ignorância dos procuradores e dos
solicitadores, comparando-as com as dos médicos, que, curando ou não o
doente, ganham o seu dinheiro.
Alguém lhe perguntou qual era a melhor terra e êle respondeu que era a
fértil e agradecida.
- Não foi isso o que lhe perguntei, quero saber qual é o melhor lugar:
Valladolid ou Madri.
- De Madri, os extremos, de Valladolid, o meio.
- Não entendo - disse o indivíduo que o interrogava.
- De Madri, terra e céu; de Valladolid, as habitações.
Vidriera ouviu um homem dizer a outro que, nem bem entrara em
Valladolid, sua mulher ficara doente, porque a terra quis experimentá-la.
Disse-lhe Vidriera:
- Se ela é ciumenta, melhor seria que a terra a tivesse comido.
Dizia que a sorte e as esperanças dos músicos e dos estafêtas eram
limitadas, porque os primeiros podiam, no máximo, chegar a ser músicos do rei
e os segundos, a conseguir um cavalo para entregar a correspondência. Dizia
que tôdas ou quase tôdas as cortesãs eram mais corteses do que sãs. Estando
um dia em uma, igreja e vendo entrar nela, ao mesmo tempo, um velho que ia
ser enterrado, um menino para batizar e uma mulher que ia velar, pelo
Santíssimo, disse que os templos eram campos de batalha onde morrem os
velhos, vencem as crianças e triunfam as mulheres.
Certa ocasião uma abelha picava-lhe o pescoço, mas êle não se atrevia a
tocá-la para não se quebrar, embora se queixasse da dor que sentia.
Perguntaram-lhe como podia êle sentir a dor da picada se seu corpo era de
vidro e êle respondeu que aquela abelha deveria ser faladeira, pois, se as
línguas das faladeiras eram suficientes para abater até mesmo corpos de bronze,
que não haveria de ser dos corpos de vidro?
De outra vez, um religioso, muito gordo, passou casualmente por êle e
pelas pessoas que costumavam ouvi-lo; uma destas pessoas falou:
- De tão magro que é, não pode nem mover-se.
Vidriera aborreceu-se e disse:
- Que ninguém se esqueça do que disse o Espírito Santo: Nolite tangere
christos meos (Não toqueis os meus ungidos.)
Chegou a encolerizar-se e disse a todos para notarem que dos inúmeros
santos canonizados pela Igreja e considerados bem aventurados, nenhum se
chama Capitão Fulano, nem Sicrano de Tal, nem conde, nem marquês ou duque
de tal lugar, e sim Frei Diogo, Frei Jacinto, Frei Raimundo; todos eram frades e
religiosos, porque as religiões são abrunheiros do céu, cujos frutos, comumente,
são postos na mesa de Deus.
Dizia Vidriera que as línguas dos faladores eram como as águias, que
bicam e arrancam as penas das outras aves que a elas se juntam. Dos gariteiros
e dos jogadores dizia coisas espantosas: dizia que os gariteiros são
prevaricadores públicos, porque, tirando a porcentagem de quem vai
ganhando, desejam que a pessoa perca ou passe adiante o naipe, a fim de que
ela faça o contrário e êles possam cobrar seus direitos. Elogiava a paciência do
jogador que, jogando e perdendo durante tôda a noite, embora seja de natureza
colérica e endemoninhada, não abre a bôca e sofre tanto quanto Barrabás, a fim
de que seu adversário não abandone o jôgo. Elogiava, também, a consciência de
alguns gariteiros honrados, que nem por sonho permitem que em sua casa se
façam outros jogos a não ser palla e cientos e, com isso, tiram lentamente, no
fim do mês, sem temor e sem trapaça, uma porcentagem muito maior do que a
estabelecida pelos juízes. Em suma, dizia êle tais coisas que, se não fôssem os
grandes gritos que dava quando o tocavam ou quando se aproximavam dêle, se
não fôsse pelas roupas que usava, pelo pouco que comia, pelo modo de beber,
pelo fato de querer dormir ao ar livre no verão, e no palheiro durante o inverno,
como já tive oportunidade de contar, dando assim claras provas de sua loucura,
ninguém poderia dizer que êle não era uma das pessoas mais ponderadas do
mundo.
Sua enfermidade durou dois anos mais ou menos, porque um padre, da
Ordem de São Jerônimo, que possuía a faculdade de fazer os mudos
compreenderem as coisas e, de certo modo, falarem, êste padre, que podia
também curar loucos, sentindo pena de Vidriera, fêz o possível para curá-lo e o
conseguiu. Vidriera recuperou a razão e voltou a ser o que era. O padre, vendoo curado, deu-lhe roupas de bacharel e o fêz voltar à côrte, onde, dando mostras
de sábio, como as dera de louco, podia exercer sua profissão e tornar-se famoso.
Vidriera assim o fêz e, com o nome de Licenciado Rueda e não Rodaja, voltou à
côrte, onde, nem bem entrou, foi conhecido pelos rapazes, que, vendo-o com
roupas diferentes das que costumava vestir, não ousaram dirigir-lhe gracejos
nem lhe fazer perguntas, embora o seguissem, indagando-se uns aos outros:
- Êste não é Vidriera, o louco? Olha que é! Mas vem curado. Bom, pode ser
que continue louco, apesar de bem arrumado.
- Vamos perguntar-lhe alguma coisa e assim poderemos tirar nossa
dúvida.
Vidriera ouvia tudo em silêncio; estava mais confuso e enver gonhado do
que quando perdera a razão. A notícia passou dos rapazes para os homens e,
antes que o licenciado chegasse ao pátio dos Conselhos, tinha atrás de si mais
de duzentas pessoas de tôda espécie. Com êste acompanhamento, digno de um
catedrático, chegou ao pátio, onde todos o rodearam. Êle, vendo-se cercado por
tanta gente, disse em voz alta:
- Senhores, eu sou o Licenciado Vidriera; só que agora me chamo
Licenciado Rueda. Quis o céu que eu, por determinadas circunstâncias,
perdesse o juízo, mas a misericórdia de Deus permitiu-me recuperá-lo. As
coisas que eu disse quando louco, 50, é verdade o que me disseram, serão
repetidas e feitas agora qual estou em meu perfeito juízo. Sou diplomado em
leis por Salamanca, onde estudei com sacrifício e onde obtive o segundo lugar;
podendo-se concluir que eu obtive minha posição mais por mérito que por
favor. Vim para a côrte a fim de advogar e ganhar a vida, mas, se não o
permitirdes, ficarei aqui a vagar e a cortejar a morte; pelo amor de Deus, não
transformeis o seguir-me em perseguir-me e nem me façais perder, agora que
sarei, a posição que consegui quando era louco. O que acostumaveis perguntarme pelas praças, perguntai-me agora em minha casa. vereis que as respostas
que eu vos dava de improviso, segundo dizem, serão muito melhores agora que
posso pensar.
Todos o escutaram; alguns o deixaram. Voltou para sua casa com um
acompanhamento bem menor.
No dia seguinte, quando saiu, foi a mesma coisa; êle fêz outro sermão, que
nada adiantou. Perdia muito e ganhava pouco. vendo, enfim, que estava a
morrer de fome, decidiu deixar a côrte e ir para Flandres, onde pensava fazer
valer a fôrça de seu braço, já que não lhe valiam as de seu talento. Pondo seu
plano em prática, disse, ao sair da côrte:
- Ó côrte, que dilatas as esperanças dos atrevidos e que reduzes as dos
talentosos tímidos, que alimentas fartamente truões desavergonhados e matas
de fome os que são discretos e briosos! Assim falou e partiu para Flandres, onde
acabou de eternizar pelas armas, em companhia de seu bom amigo, o Capitão
Valdívia, a vida que começara a eternizar pelas letras, deixando, até morrer,
fama de prudente e valentíssimo soldado.
A Senhora Cornêlia
Dom Antônio de Isunza e Dom João de Gamboa, senhores importantes, da
mesma idade, ponderados e grandes amigos, sendo ambos estudantes em
Salamanca, decidiram interromper seus estudos para ir a Flandres, levados pelo
fervor do sangue môço e pelo desejo de ver o mundo, como se costuma dizer, e
também por lhes parecer que a vida militar, ainda que dê honra a todos,
convém principalmente aos fidalgos, aos nascidos de sangue ilustre. Chegaram,
pois, a Flandres, no tempo em que as coisas estavam em paz ou em acertos e
tratos para consegui-la.
Em Amberes, receberam cartas de seus pais, que lhes falavam de seu
desagrado por terem êles interrompido os estudos sem os avisar, pois, se o
tivessem feito, poderiam ter viajado em melhores condições, com a comodidade
que convinha a gente de sua posíção. Finalmente, sabedores do desgôsto dos
pais, tomaram a resolução de voltar à Espanha, pois nada havia a fazer em
Flandres; porém, antes de voltar, quiseram conhecer as mais famosas cidades
da Itália; e, tendo visto tôdas, pararam em Bolonha, onde, admirados com os
estudos que se faziam naquela magnífica universidade, quiseram continuar a
estudar ali. Escreveram aos país, revelando-lhes seu propósito, e êstes
alegraram-se muitíssimo e o demonstraram, possibilitando-lhes viver
magnificamente e de modo a mostrarem ser pessoas de fino trato e origem;
desde os primeiros dias em que foram à escola, tornaram-se conhecidos como
cavalheiros distintos, prudentes e educados.
Dom Antônio teria uns 24 anos e Dom João não passava de 26; à
juventude acrescentava-se o fato de serem êles verdadeiros fidalgos, músicos,
poetas, hábeis e valentes, o que os tornava simpáticos e queridos de todos os
que com êles tratavam. Tiveram logo muitos amigos, tanto entre os estudantes
espanhóis que cursavam aquela universidade, como entre os próprios
habitantes da cidade e entre os estrangeiros; mostravam-se liberais e comedidos
para com todos e muito alheios à arrogância de que, dizem, os espanhóis
costumam ser acusados. Como eram jovens e alegres, não desgostavam de olhar
as mulheres mais lindas da cidade e, embora houvesse muitas môças solteiras e
casadas, com fama, de serem honestas e famosas, distinguia-se entre elas a
Senhora Cornélia Bentibolli, da antiga e generosa família dos Bentibolli, que
durante certo tempo foram senhores de Bolonha. Cornélia era formosíssima e
encontrava-se sob a guarda e amparo de Lourenço Bentibolli, seu irmão, fidalgo
muito conceituado e valente, órfãos de pai e mãe, que, embora os tivessem
deixado sozinhos, deixaram-nos ricos, e a riqueza é grande consôlo para a
orfandade. Cornélia era tão recatada e seu irmão tão solícito em guardá-la que
nem ela se mostrava, nem seu irmão consentia que a vissem. A fama de
Cornélia tornava Dom João e Dom Antônio desejosos de conhecê-la, mesmo
que fôsse na igreja; mas o esfôrço que fizeram foi em vão e, perante o
impossível, que é cutelo da esperança, seu grande desejo foi enfraquecendo. E
assim, entregues ao estudo e a divertimentos honestos que compartilhavam
com alguns amigos, passavam uma vida tão alegre como honrada; poucas vêzes
saíam à noite e, se saíam iam juntos e bem armados.
Aconteceu, porém, que, tendo Dom João de sair certa noite, disse-lhe Dom
Antônio que não podia acompanhá-lo, pois queria ficar para rezar e cumprir
certas devoções; mas que fôsse andando porque logo iria encontrar-se com êle.
- Para quê? - disse Dom João. - Eu vos esperarei e se não sairmos esta noite
pouco importa.
- Lá isso é que não - replicou Dom Antônio. – Ide. tomai um pouco de ar,
que eu daqui a um momento hei de encontrar-vos, se é que ides por onde
costumamos ir.
- Está bem - disse Dom João. - Ficai com Deus e quando sairdes, tomai
nosso costumado caminho que nêle me encontrareis.
Dom João saiu e Dom Antônio ficou só. Eram 11 horas e a noite estava
escura; Dom João, tendo percorrido duas ou três ruas e vendo-se muito só e sem
ter com quem conversar, resolveu tornar a casa. E assim o fêz; mas, ao passar
por uma rua cujos portais eram de mármore, percebeu que, de uma porta, o
chamavam baixinho. A escuridão da noite, aumentada pela sombra das arcadas,
não lhe permitiu ver quem lhe falava. Deteve-se um pouco, permaneceu atento
e viu entreabrir-se uma porta; aproximou-se e uma voz disse-lhe, sussurrando:
- Sois vós, Fábio?
Dom João, por êsse ou por aquêle motivo, respondeu que sim, - Tomai falaram lá de dentro. - Levai-o para lugar seguro e voltai sem demora, que é
urgente.
Dom João estendeu a mão, topou com um embrulho e, querendo pegá-lo,
viu que precisava das duas mãos; tão logo lhe entregaram o fardo, fecharam a
porta e êle encontrou-se no meio da rua, carregado sem saber de quê. Mas, um
momento depois, sob o embrulho, uma criatura começou a chorar e parecia um
recém-nascido; Dom João ficou surprêso e confuso, sem saber o que fazer ou
que solução dar para o caso; se tornasse a bater na porta, pareceu-lhe que a mãe
da criança poderia correr algum perigo; se deixasse o bebê ali, também êle
correria perigo; se o levasse para casa, não teria quem tratasse dêle, e não
conhecia na cidade nenhuma pessoa a quem pudesse entregá-lo. Lembrando-se,
porém, de que lhe haviam recomendado que pusesse o recém-nascido em lugar
seguro e logo voltasse, resolveu levá-lo para casa e deixá-lo aos cuidados de
uma criada que os servia, tornando ali a tôda pressa, para ver se podia ser útil
em alguma coisa, embora tivesse percebido muito bem que lhe haviam
entregado o bebê por engano.
Por fim, deixando de lado tais considerações, foi para casa com a criança e
já não encontrou Dom Antônio; entrou em um quarto, chamou a criada,
descobriu a criança e viu que era o mais lindo bebê que seus olhos já tinham
visto; as roupas que o envolviam mostravam ter êle nascido de pais muito ricos;
a ama desembrulhou-o e viram que era um menino.
- É preciso - disse Dom João - dar de mamar a êste menino e fazer o
seguinte: tirai-lhe estas roupas tão ricas e embrulhai-o em outras mais modestas
e, sem dizer que fui eu quem o trouxe para casa, levai-o à casa de uma parteira,
pois essas mulheres sabem sempre achar remédio para tais apuros; levareis
bastante dinheiro para que a parteira fique satisfeita; inventareis os pais que
quiserdes, contanto que não reveleis terdes recebido a criança de minhas mãos.
A criada respondeu que assim faria e Dom João, com a maior pressa
possível, voltou para ver se lhe diziam mais alguma coisa; porém, um pouco
antes de chegar à casa de onde o tinham chamado, ouviu grande ruído de
espadas, como de muita gente que se batesse. Permaneceu atento, mas não
ouviu palavra alguma; brigavam em silêncio e, à luz das centelhas que as
pedras, feridas pelas espadas, lançavam, quase pôde ver que eram muitos para
atacar um só; esta suspeita confirmou-se quando ouviu dizer:
- Ah! traidores, que sois tantos contra um homem só! Mas, com tudo isso,
nada vos há de valer a esperteza.
Ouvindo e vendo isto, Dom João, levado pelo seu generoso e esforçado
coração, de um salto, pôs-se ao lado do homem que assim falara e, lançando
mão da espada e de um punhal, para não ser reconhecido, falou em italiano ao
que se defendia:
- Não temais, chegou-vos refôrço, que não vos faltará enquanto me durar a
vida. Servi-vos bem da espada que os traidores nada podem, embora sejam
numerosos.
- Mentes. Aqui não há traidores, pois o querer recuperar a honra perdida
tudo permite. Não lhe falou mais nada, pois a pressa que tinham de se ferir
mutuamente não lhes dava tempo. Os inimigos, que Dom João acreditou serem
em número de seis, apertaram tanto o seu companheiro que, afinal, o atiraram
por terra. Dom João pensou que o tivessem matado e, com ligeireza e
extraordinária coragem, saltou à frente dos adversários e os fêz recuar sob uma
chuva de golpes; mas não teria sido bastante sua valentia para atacar e
defender, se a sorte não o ajudasse, fazendo com que os moradores daquela rua
aparecessem com luzes às janelas e chamassem, em altos gritos, pela justiça. Ao
verem isso, os adversários voltaram as costas e fugiram. Entretanto, levantarase o que fôra ao chão, porque as espadas tinham encontrado uma couraça rija
como diamante, onde se embotaram. Na refrega, o chapéu de Dom João caíra e,
ao procurá-lo, encontrou outro com que se cobriu, sem reparar se era o seu. O
desconhecido aproximou-se dêle e lhe disse:
- Senhor, confesso que vos devo a vida e declaro que essa vida e tudo
quanto tenha e valha está a vosso dispor. Fazei-me a honra de me dizer quem
sois, para que eu saiba a quem devo mostrar-me agradecido.
Dom João respondeu:
- Sou desinteressado, mas não quero ser descortês; para vos fazer a
vontade direi que sou fidalgo espanhol e estudante nesta cidade. Se por acaso
quiserdes servir-vos de mim para qualquer coisa, sabei que me chamo Dom
João de Gamboa.
- Muito vos agradeço o favor - respondeu o outro. - Mas eu, Senhor Dom
João de Gamboa, não vos quero dizer meu nome, pois prefiro que o saibais por
intermédio de outra pessoa e terei o cuidado de vos fazer conhecê-lo.
Dom João já lhe perguntara se êle estava ferido, porque vira os outros lhe
darem duas grandes estocadas e êle respondera que; depois de Deus, uma
couraça o defendera, mas que, apesar de tudo isto, seus inimigos teriam
acabado com êle se Dom João não estivesse ao seu lado. Nisto, viram uma
porção de gente que se aproximava e Dom João disse:
- Se êstes são os vossos inimigos que voltam, ponde-vos em guarda,
senhor, e agi como costumais. Mas, ao que parece, não são inimigos e sim
amigos que aí vêm.
E assim foi, pois os que chegaram, e eram oito homens, rodearam o
desconhecido e trocaram com êle algumas palavras mas tão baixas e secretas
que Dom João não as pôde ouvir. O desconhecido voltou logo para junto de
Dom João e disse-lhe:
- Se não tivessem vindo êstes amigos, Senhor Dom João, de modo algum
haveria de me separar de vós, até que me pusésseis a salvo; porém, agora, peçovos encarecidamente que me deixeis.
Assim falando, levou a mão à cabeça e reparou que estava sem chapéu;
voltando-se para os recém-chegados, pediu-lhes que lhe dessem um, pois havia
perdido o seu. Dom João, ouvindo estas palavras, tirou o chapéu que o cobria e
colocou-o na cabeça do desconhecido; êste apalpou-o e, voltando-se para Dom
João, disse:
- Êste chapéu não é meu. Peço-vos, por favor, Senhor Dom João, que o
leveis como troféu desta refrega e o guardeis, pois me parece que é um chapéu
bem conhecido.
Deram-lhe então outro chapéu e Dom João, depois de breves cumprimentos de despedida, voltou para casa, sem parar à porta onde lhe haviam
entregado o recém-nascido, porque o bairro acordara e estava alvoroçado com a
briga.
Aconteceu, então, que encontrou no caminho Dom Antônio de Isunza, seu
companheiro, que, reconhecendo-o, lhe disse:
- Voltai comigo, Dom João, que no caminho eu vos contarei uma história
bem estranha que acaba de me acontecer e talvez nunca tenhais ouvido outra
igual.
- Quanto a aventuras - respondeu Dom João -, eu também poderei contarvos algo espantoso, mas primeiro vamos aonde quereis para contar-me a vossa.
Dom Antônio falou:
- Pouco mais de uma hora depois que saístes de casa, decidi ir procurarvos e, a menos de trinta passos daqui, veio ao meu encontro um vulto negro de
mulher, que parecia muito agitada e que, entre suspiros e soluços, me
perguntou: “Dizei-me, senhor, sois por acaso estrangeiro ou de Bolonha?” “Sou
estrangeiro”, respondi eu, “e espanhol”. E ela tornou: “Graças a Deus, por não
permitir que eu morra sem sacramentos”. “Estais ferida, senhora”, perguntei,
“ou tendes alguma doença mortal?” “Pode ser que meu mal seja de morte se eu
não lhe der logo um remédio. Por confiar na cortesia, que, em geral, é virtude
dos espanhóis, peço-vos, senhor, que me tireis destas ruas e me leveis para
vossa casa o mais depressa possível e lá, se quiserdes, poderei contar-vos de
que mal estou morrendo e quem sou, embora isso me custe muito.” Ouvindo eu
essas palavras e parecendo-me que ela estava em grande necessidade, sem dizer
mais nada, tomei-a pela mão e levei-a para nossa casa. O pajem Santisteban
abriu-me a porta; ordenei-lhe que se retirasse e, sem que êle a visse, conduzi-a
para o meu aposento, onde, entretanto, se atirou na cama, sem sentidos.
Cheguei-me a ela e descobri-lhe o rosto, que estava oculto sob o manto, e vi
então a maior formosura que os olhos humanos jamais viram. Deve ter uns
dezoito anos, talvez menos; fiquei admirado ao ver tanta beleza; depois, atireilhe umas gôtas de água no rosto; ela voltou a si, suspirando ternamente, e a
primeira coisa que me disse foi: “Conheceis-me, senhor?” “Não”, respondi eu,
“ainda não tive a honra de conhecer tal formosura.” “Infeliz daquela que a
possuí para sua desventura”, falou ela. “Mas agora não é ocasião de se gabarem
formosuras e sim de remediar desgraças. Por quem sois, deixai-me aqui fechada
e não permitais que ninguém me veja; tornai imediatamente ao lugar onde me
encontrastes para ver se há alguma briga na rua e não tomeis partido de
ninguém, mas procurai separar os combatentes, pois qualquer desgraça que
aconteça a qualquer das partes virá aumentar minha desventura.” Deixei-a
fechada no quarto e vim à procura dessa gente que se deve bater, para
apaziguá-los.
- Tendes mais alguma coisa para me dizer, Dom Antônio? - perguntou
Dom João.
- Pois não vos parece bastante o que já contei? Parece-vos pouco dizer eu
que tenho, fechada em meu quarto, a maior beleza que já vi?
- O fato é, sem dúvida, extraordinário - disse Dom João -, porém ouvi
agora o que tenho a dizer.
Contou tudo o que lhes sucedera e acrescentou que a tal briga a que a
senhora se referia devia ser aquela na qual se achara envolvido e disse a Dom
Antônio que, segundo lhe parecia, as pessoas que tinham combatido eram tôdas
de grande importância.
Ficaram ambos admirados e pensativos com as aventuras de cada um e,
sem demora, voltaram para casa para ver se a môça precisava de alguma coisa.
Pelo caminho Dom Antônio disse a Dom João que prometera àquela senhora
não deixar ninguém vê-la e que só êle entraria no quarto, enquanto ela não
ordenasse outra coisa.
- Não importa - respondeu Dom João -, acabaremos por obter seu
consentimento a fim de que eu possa vê-la, pois, ao ouvir-vos gabar tanto sua
formosura, tenho muita vontade de conhecê-la.
Com isto, chegaram a casa e, à luz das tochas que os três pajens traziam ao
abrir-lhes a porta, levantou Dom Antônio olhos para o chapéu de Dom João e
viu-o resplandescente dos diamantes. Tirou-o e verificou que todo aquêle brilho
provinha de uma fivela pregada no chapéu e cravejada com essas pedras
preciosas. Os dois a examinaram com atenção e chegaram à conclusão de que,
se tôdas aquelas pedras eram finas como pareciam, valiam mais de 12.000
ducados. Convenceram-se ainda mais de que o pessoal da briga devia ser
importante, sobretudo aquêle que Dom João socorrera e lhe dissera para ficar
com o chapéu como recordação e por ser bem conhecido. Ordenaram aos pajens
que se retirassem; Dom Antônio abriu o seu aposento e encontrou a senhora
sentada na cama, com a mão encostada no queixo e derramando muitas
lágrimas. Dom João, desejoso de vê-la, aproximou-se da porta e estendeu a
cabeça, de modo que a luz, batendo-lhe no chapéu, fêz brilhar os diamantes aos
olhos da senhora, que logo exclamou:
- Entrai, senhor duque, entrai! Por que me negais o bem de vossa
presença?
Ao ouvir isso, Dom Antônio disse:
- Aqui não há nenhum duque, minha senhora, que não vos queira ver.
- Como não? - replicou ela. - Aquêle que ali olhou por um momento é o
Duque de Ferrara, pois a riqueza de seu chapéu não o deixa passar
despercebido.
- Em verdade, minha senhora, o chapéu que ali apareceu não está na
cabeça de nenhum duque; se quereis desiludir-vos, permiti que entre quem o
traz.
- Pois que entre - disse ela -, ainda que minha desgraça aumente se não fôr
o duque.
Dom João ouvira tôda a conversa e vendo, a essas alturas, que tinha
licença para entrar, assim fêz, trazendo o chapéu na mão; apenas a senhora viu
que o portador do chapéu não era quem pensava, disse precipitadamente e com
voz perturbada:
- Ai, infeliz de mim! Dizei-me senhor, pelo amor de Deus: conheceis o
dono dêste chapéu? Onde o deixastes e por que motivo tendes o chapéu em
vosso poder? Vive ainda ou é êsse o sinal que me envia de sua morte? Que se
passa? “Vejo as coisas que te pertencem, mas não vejo a ti.” Estou aqui
encerrada e graças a Deus em poder de fidalgos espanhóis, pois, se não fôsse
isso, teria já morrido com mêdo de perder a minha honra!
- Sossegai, minha senhora - disse Dom João -, pois nem o dono dêste
chapéu morreu, nem vos encontrais em lugar onde vossa honestidade corra
perigo. Aqui estamos nós para vos servir em tudo o que pudermos e prontos a
arriscar a própria vida para vos defender e amparar, pois nunca será
desmentida a fé que tendes no cavalheirismo espanhol. Somos espanhóis e de
nobre origem - não é arrogância declará-lo neste momento. Tranqüilizai-vos,
pois, que será bem guardado o decôro que vossa presença merece.
- Confio plenamente em vós - respondeu ela -, mas dizei-me, senhor: como
veio às vossas mãos êsse rico chapéu e onde está seu dono, Alfonso de Este,
Duque de Ferrara?
Dom João, para satisfazer-lhe a vontade, contou-lhe como havia, em uma
luta, ajudado o cavalheiro que, de acôrdo com suas informações, devia ser o
Duque de Ferrara. Contou-lhe como o duque havia perdido o chapéu e achado
aquêle; disse que, a pedido do próprio duque, havia êle guardado o chapéu ao
qual ela se referia; falou ainda que, no final da luta, nem êle nem o cavalheiro se
achavam feridos, pois havia chegado gente, ao que parece, amiga do duque, e
êste, agradecido, lhe dera o chapéu como lembrança. E concluiu:
- Agora sabeis, minha senhora, como êste rico chapéu veio ter às minhas
mãos, e, se seu dono é, como assegurais, o duque, é preciso dizer-vos que há
menos de meia hora deixei-o são e salvo. Que esta notícia vos sirva de consôlo,
se vos podeis consolar.
- Para saberdes, senhores, que tenho motivos para perguntar por êle, ficai
atentos e escutai minha infeliz história.
Enquanto isso a criada estivera tomando conta do recém-nascido, dandolhe mel para chupar e trocando-lhe as belas rou-Ï pas que usava por outras mais
modestas; quando acabou êste serviço, preparou-se para levar a criança à casa
da parteira, como Dom João lhe ordenara. Passando, porém, com o bebê pelo
quarto onde estava aquela que se dispunha a contar sua história, a criancinha
chorou e a senhora, levantando-se, ficou a escutar atentamente; ouvindo mais
distintamente o chôro, perguntou:
- Senhores, quem está chorando? Parece um recém-nascido
Dom João respondeu:
- É um menino que abandonaram esta noite à porta de nossa casa e agora a
criada vai levá-lo a quem lhe dê de mamar.
- Tragam-no aqui, pelo amor de Deus! - pediu a senhora. Eu farei essa
caridade aos filhos alheios, visto não permitir océu que eu a faça aos meus.
Dom João chamou a criada, pegou a criança e, voltando para o quarto com
ela nos braços, disse:
- Aqui está, minha senhora o presente que nos fizeram esta noite, e não foi
o primeiro, porque poucos meses passam sem acharmos tais surprêsas na
soleira de nossa porta. - Ela pegou o recém-nascido, olhou-o atentamente,
examinando-lhe não só o rosto como também as roupas, simples , porém
limpas, que o envolviam; em seguida, começou Ì a chorar e, tapando os peitos
com o manto para poder dar de mamar à criancinha com recato, aconchegou-a
ao seio e, sustentando-a com seu leite, banhava-a de lágrimas. Assim ficou, sem
erguer o rosto enquanto a criança não largou o peito. Todos os quatro estavam
silenciosos; o menino mamava, mas não muito bem, porque as parturientes não
podem logo dar de mamar; e assim o entendeu afinal a senhora, que, voltandose para Dom João, lhe disse:
- Mostrei-me caridosa em vão; sou novata neste assunto.
Mandai, senhor, que sustentem esta criancinha com uma gôta de mel e
não permitais que a levem pelas ruas a esta hora; esperai pelo dia de amanhã e,
antes de a levarem, gostaria de tornar a vê-la, pois é para mim um consôlo.
Dom João tornou a entregar a criancinha à criada, dizendo-lhe que
deixasse para levá-la de casa no dia seguinte e que antes tornasse a envolvê-la
nas mantas com que viera e o avisasse antes de partir. Entrando novamente no
quarto e encontrando-se os três a sós, a formosa senhora falou:
- Se quereis que eu fale, dai-me primeiro alguma coisa para comer, pois
estou muito fraca e tenho motivo para tal.
Dom Antônio foi logo abrir um armário, de onde tirou muitas conservas; a
senhora comeu algumas e bebeu um copo de água fria. Reanimada e um pouco
mais tranqüila, disse:
- Sentai-vos, senhores, e escutai.
Obedeceram-lhe e ela, acomodando-se no leito e abrigando-se bem com as
saias, deixou escorregar para os ombros o véu que trazia na cabeça, ficando com
o rosto bem descoberto; sucedeu, então, o que sucede à luz, ou melhor, ao
próprio sol, quando, liberto das nuvens, se mostra formoso e claro. Caíam-lhe
dos olhos pérolas líquidas e ela as limpava com um lenço alvíssimo e com tais
mãos que, entre elas e o lenço, teria bons olhos aquêle que soubesse distinguir a
brancura. Finalmente, depois de soltar muitos suspiros, tranqüilizou-se um
pouco e disse, com voz magoada:
- Sou aquela de quem, sem dúvida, deveis ter ouvido muitas vêzes falar,
porque a fama de minha beleza é tanta que poucas línguas há por aí que não a
publiquem. Sou, com efeito, Cornélia Bentibolli, irmã de Lourenço Bentibolli, e,
dizendo-vos isto, revelo duas verdades: a da minha nobreza e a da minha
formosura. Fiquei órfã de pai e mãe quando era ainda muito pequena e fui
entregue a meu irmão, que sempre me guardou com desvêlo inigualável,
embora confiasse mais na seriedade e honradez de meu caráter que propriamente na solicitude que empregava em guardar-me. Fui crescendo entre
paredes e solidão, acompanhada apenas por minhas criadas; crescia comigo a
fama de minha beleza, apregoada por meus servidores, por aquêles que
conseguiam ver-me e por um retrato feito por um pintor famoso a pedido de
meu irmão, a fim de que, dizia êle, o mundo não ficasse sem mim, quando o céu
me mandasse para outra vida melhor. Mas tudo isso seria pouco para assegurar
minha perdição, se o Duque de Ferrara não fôsse ao casamento de uma parenta
minha como padrinho, a cujas bodas meu irmão me levou com boas intenções e
para homenagear minha prima.
Ali, olhei e fui vista; ali, segundo crêem, venci corações, avassalei
vontades; ali percebi o gôsto que produzem os louvores, ainda que sejam dados
por línguas lisonjeiras; ali, finalmente, vi o duque e êle me viu, e é por isso que
me encontro agora nesse estado. Não vos quero dizer, senhores, porque não
teria mais fim essa narrativa, os meios, a persistência, os estratagemas, os
modos pelos quais o duque e eu chegamos a realizar, ao cabo de dois anos, os
desejos que naquelas bodas nasceram, porque nem vigilância, nem prudência,
nem admoestações, nem outros cuidados humanos foram suficientes para
impedir que viéssemos a juntar-nos, o que, por fim, sucedeu, com a promessa
de que viria a ser meu espôso, pois sem ela teria sido impossível quebrar a
rocha de meu orgulho. Mil vêzes lhe disse para falar com meu irmão, pois êle
não se negaria a consentir em nosso casamento, e que não precisaria pensar em
qualquer desigualdade em nossa união, porque a nobreza dos Bentibolli em
nada era inferior à sua. Respondeu-me com razões que julguei boas e
necessárias e confiante, com a credulidade de uma namorada, entreguei-me a
êle por intermédio de uma criada minha, mais sensível às dádivas e promessas
do duque que à consciência que devia à confiança que meu irmão depositava
em sua fidelidade. O resultado de tudo isso foi que daí a pouco tempo percebi
que estava grávida e, antes que meu aspecto revelasse meu estado, fingia-me
doente e melancólica e fiz meu irmão me mandar para a casa daquela prima de
quem o duque fôra padrinho de casamento. Aí o tornei sabedor da situação em
que me encontrava, do perigo que me ameaçava e da pouca segurança em que
estava a minha vida, por pressentir que meu irmão já suspeitava de meu estado.
Combinamos então que, ao fim de minha gravidez, eu o avisaria e êle viria
buscar-me, acompanhado por seus amigos, e me levaria para Ferrara, onde,
logo que pudesse, se casaria comigo publicamente. Esta noite em que estamos
foi a combinada para a sua vinda, porém, na hora em que o esperava, senti
passar meu irmão com muitos outros homens, que, pelo tilintar das espadas,
pareciam armados. Isto me causou tal sobressalto que, de repente e sem
esperar, sobreveio o parto e dei à luz um lindo menino. Minha criada, sabedora
e medianeira de meus feitos, estando já prevenida para êste caso, envolveu a
criancinha em roupas e mantas diferentes das que cobriam o menino
abandonado à vossa porta e, indo à porta da rua, entregou-o, segundo disse, a
um criado do duque. Quanto a mim, logo depois, arranjando-me como pude,
saí de casa, julgando que encontraria o duque na rua, e nunca devia tê-lo feito
antes de êle estar à porta. Mas o mêdo que me inspirava a quadrilha armada de
meu irmão, pois parecia-me sentir no pescoço o fio de sua espada, não me
deixou raciocinar melhor; e assim, louca e desatinada, saí e andei até onde me
encontrastes. E, conquanto agora me veja sem filho e sem espôso, receando
coisas piores, dou graças a Deus por ter-me trazido para debaixo de vosso teto,
esperando de vós tudo o que a cortesia espanhola me permite esperar e
especialmente da vossa, pois estou certa de que sabereis ser tão nobres quanto
pareceis.
Dizendo isso, deixou-se cair por sôbre o leito; acudindo os dois fidalgos,
pensando que ela perdera os sentidos, viram que chorava amargamente.
Dom João lhe disse:
- Se até aqui, minha senhora, eu e Dom Antônio, meu amigo, nos
sentíamos compadecidos perante vosso infortúnio, pelo fato de serdes mulher,
agora que sabemos quem sois, a nossa compaixão se torna dever sagrado de vos
servir. Recuperai o ânimo e não vos desalenteis; ainda que não estejais
acostumada a semelhantes aventuras, lembrai-vos de que quanto maior fôr a
vossa paciência e coragem para suportá-las melhor mostrareis quem sois. Estou
convencido, minha senhora, de que êstes acontecimentos extraordinários hão de
ter um bom fim, pois o céu não há de permitir que tanta beleza se perca e tão
nobres pensamentos malogrem. Deitai-vos agora e cuidai de vossa pessoa, que
muito o necessitais; uma criada virá aqui para vos servir; podereis depositar
nela tôda a confiança, pois saberá guardar segrêdo sôbre as vossas desgraças e
acudir às vossas necessidades.
- E eu preciso muito - respondeu ela. - Que venha então, senhor, quem
dizeis, porque, vindo de vossa parte, só pode ser de confiança; peço-vos, porém,
que ninguém mais me veja, a não ser vossa criada.
- Está bem - falou Dom Antônio.
Saíram, deixaram-na sozinha e Dom João disse à criada que entrasse no
quarto e levasse o recém-nascido com suas verdadeiras roupas e mantas. A
criada entrou no quarto preparada para responder ao que a senhora lhe
perguntasse sôbre o bebê.
Ao vê-la, Cornélia lhe diz:
- Chegais em boa hora, amiga; dai-me essa criancinha; chegai aqui esta
vela.
A criada assim fêz e Cornélia, tomando a criança nos braços, perturbou-se,
fitou-a atentamente e disse:
- Dizei-me: êste menino é o mesmo que trouxestes há pouco?
- Sim, minha senhora - respondeu a criada.
- Mas, então, por que está vestido com outras roupas?
perguntou Cornélia. - Em verdade, amiga, parece-me que as roupas são
diferentes ou esta não é a mesma criança.
- Tudo pode ser - falou a criada.
- Ai de mim! - disse Cornélia. - Como tudo pode ser? Respondei-me, pois o
coração parece arrebentar-se dentro do meu peito. Dizei-me, amiga, por tudo
quanto tendes de mais sagrado, como vieram parar em vossas mãos estas
roupas. Vereis que são minhas, se não me falha a vista e se não me engana a
memória. Com estas mesmas roupas ou com outras iguais a estas, entreguei à
minha aia a prenda mais querida de minha alma. Quem as tirou? Ai de mim!
Quem as trouxe aqui? Como sou infeliz!
Dom João e Dom Antônio, que escutavam tôdas essas queixas, não
quiseram que a ansiedade da pobre Cornélia se tornasse ainda maior e,
entrando os dois, Dom João disse:
- Essas roupas e êsse menino pertencem-vos, Senhora Cornélia.
E contou-lhe pormenorizadamente como fôra a êle que, por engano, sua
criada entregara a criancinha à porta de sua casa.
- E qual o motivo da troca de roupas? tinha certeza de que aquêle menino
era seu filho e, se ainda não dissera nada, fôra para evitar uma comoção
violenta que lhe poderia ser nociva; e, assim, êsse conhecimento viera aos
poucos e, ao sobressalto da dúvida, seguiu-se a alegria de tê-lo reconhecido.
Neste ponto as lágrimas de felicidade de Cornélia pareciam não ter fim.
Infinitos foram os beijos que deu em seu filho, infinitas as graças que deu aos
dois rapazes, chamando-os de seus anjos da guarda e de outros nomes
inspirados por sua gratidão. Deixaram-na, então, com a criada, recomendando a
esta que a tratasse com todo o carinho de que necessitava, e foram deitar-se
para descansar o resto da noite, com o propósito de não voltarem ao aposento
de Cornélia, a não ser que ela os chamasse e que sua presença fôsse necessária.
Amanheceu; a criada trouxe à casa uma mulher que deu de mamar à criança, às
escuras e secretamente. Os dois amigos perguntaram por Cornélia e a criada
disse que ela descansava; foram então à escola e passaram pela rua onde se dera
a briga e pela casa de onde Cornélia saíra, para ver se já tinham dado por sua
falta ou se ouviam algum comentário; mas nada viram nem ouviram que se
relacionasse com a briga ou com a ausência de Cornélia. Depois das aulas
voltaram para casa.
Cornélia mandou chamá-los por intermédio da criada, mas êles
responderam que tinham decidido não voltar ao seu aposento, a fim de que ela
se cuidasse com o decôro que exigia sua honestidade; Cornélia, porém, pediulhes com lágrimas para que tornassem a vê-la, pois êsse era o decôro mais
adequado, senão para seu remédio, pelo menos para seu consôlo. Fizeram-lhe a
vontade e ela recebeu-os com rosto alegre e cortesmente; pediu-lhes que
perguntassem na cidade para ver se havia alguma notícia a seu respeito. Os
rapazes responderam-lhe que já tinham empregado diligências nesse sentido,
mas ninguém falava em nada.
Nisto chegou um dos três pajens da casa e disse, à porta do aposento:
- Está aí um fidalgo com dois criados que diz chamar-se Lourenço
Bentibolli, meu senhor Dom João de Gamboa.
Ao ouvir êste recado, Cornélia fechou ambas as mãos e levou-as à bôca,
falando com voz baixa e trêmula:
- Meu irmão, senhores. É meu irmão que está aí. Sem dúvida já sabe onde
estou e vem para me matar. Socorro, senhores, defendei-me.
- Tranqüilizai-vos, minha senhora - disse Dom Antônio.
- Estais em lugar seguro e sob a proteção de quem não vos deixará sofrer a
menor ofensa. Ide, Dom João, e vêde o que deseja êsse fidalgo; eu ficarei aqui
para defender a Senhora Cornélia, se fôr necessário.
Dom João, sem mudar de fisionomia, desceu as escadas e logo Dom
Antônio mandou trazer duas pistolas carregadas e ordenou aos pajens que
pegassem as espadas e ficassem prevenidos.
A criada tremia vendo todos aquêles preparativos; Cornélia, receando o
que poderia acontecer, aterrorizava-se. Só Dom Antônio e Dom João sentiam-se
seguros e decididos sôbre o que deviam fazer. Dom João encontrou Dom
Lourenço à porta da rua, e êste lhe disse:
- Suplico a Vossa Mercê que faça o favor de me acompanhar àquela igreja,
pois tenho um negócio a comunicar-lhe, ao qual estão ligadas a minha vida e a
minha honra.
- Com todo o prazer - respondeu Dom João. - Iremos aonde quiserdes.
Dito isso, dirigiram-se à igreja, sentaram-se em um banco, em lugar onde
não podiam ser ouvidos. Lourenço foi o primeiro a falar:
- Eu, senhor espanhol, sou Lourenço Bentibolli, senão dos mais ricos, pelo
menos de uma das mais nobres casas desta cidade. Êste fato, de todos
conhecido, poderá parecer presunção. Fiquei órfão há alguns anos e tornei-me
responsável por uma irmã tão formosa que, não fôsse ela minha parenta e
quisesse eu elogiá-la, não encontraria palavras para fazê-lo, pois não há
palavras capazes de exprimir tôda a sua beleza. Por ser eu homem de bem e ela
jovem e formosa, minha solicitude em guardá-la era extrema; mas tôdas as
minhas precauções e diligências foram frustradas pela vontade de minha irmã
Cornélia, pois é êste o seu nome. Finalmente, para resumir e não ser cansativo,
direi que o Duque de Ferrara, Alfonso de Este, com olhos de lince, venceu os de
Argos, triunfou sôbre meu engenho, conquistando minha irmã, e ontem à noite
levou-a, tirando-a da casa de uma parenta nossa, e, além de tudo, segundo
dizem, com um filho. Ontem à noite eu o soube e logo saí à procura do duque e
penso que o encontrei e lhe dei duas estocadas; mas êle foi socorrido por um
anjo que não consentiu que eu lavasse, com seu sangue, a mancha feita em
minha honra. Disse-me minha prima, que foi quem me contou tudo, que o
duque enganou¡ minha irmã, prometendo recebê-la como espôsa. Nisso não
acredito, porque o casamento seria desigual quanto à riqueza, embora não o
fôsse quanto à linhagem, pois todos sabem quem são os Bentibolli de Bolonha.
Parece-me que o duque se fiou no que se fiam os poderosos que desejam
conquistar uma donzela tímida e recatada, acenando-lhe com o doce nome de
espôsa e, fazendo-a acreditar em vários motivos que não permitissem a
realização imediata do casamento; são mentiras com aparência de verdades,
porém falsas e mal-intencionadas. Mas, seja como fôr, vejo-me sem irmã e sem
honra, conquanto tudo isto, de minha parte, esteja sob a chave do silêncio; não
quis contar a pessoa alguma êste agravo, até ver se posso encontrar um jeito de
remediá-lo: é melhor que as infâmias se presumam ou suspeitem do que se
conheçam com certeza, porque entre o sim e não da dúvida cada um pode
inclinar-se para onde quiser. Em resumo, resolvi ir a Ferrara e pedir ao duque
satisfação de tão grande ofensa; se êle a negar, eu o desafiarei e isto não será
com esquadrões de gente, pois não posso formá-los nem sustentá-los, mas sim
de homem para homem. Desejaria que me ajudásseis e me acompanhásseis
nesta jornada. Espero que não vos recuseis, pois sei que sois espanhol e fidalgo.
Faço isto para não ter de prestar contas a nenhum parente ou amigo, de que só
poderia esperar conselhos e dissuasões, e de vós só posso esperar o que é bom e
honrado, mesmo a trôco de qualquer perigo. Peço-vos o favor de me
acompanhar, pois, levando eu um espanhol a meu lado e tal como vós me
pareceis, farei de conta que levo comigo o próprio exército de Xerxes. Bem sei
que vos peço muito, mas o dever que tendes de corresponder à fama de vossa
pátria obriga-vos a muito mais.
- Nem mais uma palavra, Senhor Lourenço - disse a essas alturas Dom
João, que estivera escutando em silêncio. - Nem mais uma palavra, pois desde já
me considero vosso defensor e tomo como obrigação a vingança de vosso
agravo. E isto, não só por ser espanhol, mas também por ser cavalheiro, como
vós dissestes que sois, o que, aliás, já era de meu conhecimento.
Quando partiremos? Quanto mais depressa melhor, porque o ferro deve
ser malhado enquanto está quente, o ardor da cólera aumenta a coragem e a
injúria recente estimula a vingança.
- Ânimo tão generoso quanto o vosso, Senhor Dom João, não precisa ser
estimulado por outro interêsse que não seja a honra que haveis de receber por
êste feito e que, desde já, por minha parte, reconheço, oferecendo-vos tudo
quanto tenho, posso e valho. Partiremos amanhã porque hoje providenciaremos
o que fôr necessário.
- Parece-me que assim está bem - disse Dom João. - Se permitis, Senhor
Lourenço, levarei o fato ao conhecimento de um cavalheiro meu amigo que é
até de maior valor e muito mais discreto do que eu.
- Senhor Dom João, haveis tomado minha honra a vosso cargo; logo,
podereis dispor dela como quiserdes, falar dela o que quiserdes e a quem bem
desejardes. Tanto mais que, sendo vosso amigo e companheiro, só poderá ser de
caráter nobre.
Dito isto, abraçaram-se e despediram-se, combinando que no dia seguinte
Lourenço mandaria chamar Dom João; montariam em seus cavalos fora da
cidade e, disfarçados, seguiriam seu caminho.
Voltando a casa, Dom João contou a Dom Antônio e a Cornélia tudo o que
se passara.
- Valha-me Deus! - disse Cornélia. - Vossa confiança e cortesia são em
verdade muito grandes. Como vos dispusestes logo a empreender uma façanha
tão cheia de perigos? E sabeis, senhor, se meu irmão vos leva a Ferrara ou a
outro lugar? Mas, seja aonde fôr que vos leve, podeis estar certo de que vos
acompanha a fidelidade em pessoa, ainda que eu me afogue em um copo de
água e veja perigo até mesmo nos sonhos. E como não haveria de temer se
minha vida ou minha morte dependem da resposta do duque? Talvez êle fale
cortêsmente e desarme a cólera de meu irmão. E, se assim não fôr, que grande
inimigo terá êle pela frente! Como hei de passar êsses dias enquanto ficar aqui
ansiosa e a tremer de mêdo, esperando as notícias que hão de vir? Será que
estimo tão pouco ao duque ou ao meu irmão que não receie as desgraças e as
sinta até o fundo da alma?
- É justo que vos agiteis, minha senhora - disse Dom João.
- Mas, entre tantos receios, dai lugar à esperança; confiai em Deus, em
minha habilidade e meus bons desejos e assim vereis, com facilidade, cumpridos os vossos. Eu não podia recusar meu auxílio a vosso irmão nem minha
companhia em sua jornada a Ferrara. Até agora não conhecemos as intenções
do duque, nem se êle sabe que vos ausentastes de casa; saberemos tudo isso no
momento oportuno e por intermédio dêle; ninguém melhor do que eu para
perguntar. Convencei-vos, minha senhora, de que a saúde, o contentamento de
vosso irmão e do duque me são mais preciosos que a menina dos olhos; eu os
defenderei da mesma forma que defendo a ela.
- Senhor Dom João - disse Cornélia -, se o céu vos dá poder para remediar
como bondade para consolar, considero-me feliz. Gostaria de ver-vos ir e voltar,
quer me aflija o temor, quer me anime a esperança durante vossa ausência.
Dom Antônio aprovou a decisão de Dom João e elogiou a maneira pela
qual êle correspondeu à confiança de Lourenço Bentibolli, dizendo ainda que
desejaria acompanhá-lo. Dom João respondeu:
- Isso não, porque não é prudente deixarmos a Senhora Cornélia sozinha e
porque não quero que o Senhor Lourenço pense que preciso valer-me de fôrças
alheias.
- O que é meu é vosso - replicou Dom Antônio -, de modo que, embora
disfarçado e de longe, hei de seguir-vos; sei que a Senhora Cornélia aprovará
meu procedimento, pois não ficará tão só que não tenha alguém para servi-la,
guardá-la e acompanhá-la.
Cornélia respondeu:
- Será um grande consôlo para mim saber que ides juntos, ou, pelo menos,
de modo que possais auxiliar-vos mutuamente se a sorte assim o exigir. E, como
vossa emprêsa parece a mim cheia de perigos, fazei-me o favor de levar
convosco estas relíquias.
E, dizendo isto, tirou do seio uma cruz de diamantes de valor incalculável
e um agnus de ouro, tão precioso quanto a cruz. Examinaram ambos as
riquíssimas jóias com mais admiração ainda do que quando haviam visto a
fivela do chapéu do duque, mas devolveram-nas a Cornélia, não querendo de
modo algum ficar com elas, dizendo que levariam consigo outras relíquias não
tão bonitas, mas igualmente preciosas pela sua santidade.
Cornélia sentiu muito ao vê-los recusar as relíquias, mas teve de se
conformar com sua vontade.
A criada mostrara-se muito zelosa e atenta com a senhora de quem não
conhecia o nome e, sabendo que seus amos precisavam viajar, ignorando,
porém, para onde iam e qual seu intento, prometeu cuidar de Cornélia de tal
modo que ela não sentisse a falta de seus protetores.
No dia seguinte, logo de manhãzinha, já estava Lourenço à porta de casa e
Dom João pronto para partir, levando na cabeça o chapéu do duque, enfeitado
por plumas negras e amarelas, cobrindo a fivela de diamantes uma roseta
negra. Os dois rapazes despediram-se de Cornélia, mas esta, considerando que
o irmão estava tão perto, não teve ânimo para lhes dizer uma palavra.
Dom João saiu primeiro e, na companhia de Lourenço, encontrou dois
excelentes cavalos e dois criados que os seguravam pelas rédeas. Montaram e,
com os dois criados adiante, por atalhos e caminhos escondidos, foram
andando na direção de Ferrara.
Dom Antônio, disfarçado e montando seu cavalo, seguia-os. Pareceu-lhe,
porém, que os outros, sobretudo Lourenço, desconfiavam dêle; resolveu, então,
tomar a estrada real de Ferrara, na certeza de encontrar lá o seu amigo no fim
da jornada.
Mal tinham saído da cidade quando Cornélia contou à criada tudo o que
lhe sucedera, como aquêle menino era seu filho e do Duque de Ferrara; contou
com todos os pormenores já narrados, não lhe escondendo que os dois amigos
tinham partido para Ferrara acompanhando seu irmão, que ia desafiar o Duque
Alfonso.
Ouvindo isto, a ama, como se o demônio a tentasse para dificultar ou
estorvar a salvação de Cornélia, disse:
- Ai, minha senhora! Tôdas essas coisas passaram por vós e estais aí
descansada da vida? Não tendes alma ou a tendes tão desprezada que não a
percebeis. Pensais, porventura, que vosso irmão vai a Ferrara? Não vêdes que
seu intento foi afastar os meus amos de casa para vir aqui e tirar-vos a vida com
a maior facilidade? Qual é nossa defesa e amparo agora, senão três pajens que
só fazem coçar a sarna que têm e não querem saber de outros cuidados? Quanto
a mim, direi que me falta o ânimo para esperar os desastres que ameaçam esta
casa. Como hei de acreditar que o Senhor Lourenço, italiano, confia em
espanhóis e lhes pede favores? Não. Não creio. Se vós, filha, quisésseis aceitar
um conselho, eu vos daria um muito proveitoso.
Pasmada, confusa, atônita, Cornélia ouvia as palavras que a velha criada
declarava com tanta veemência e mostras de temor; a pobre senhora começou a
acreditar no que ela dizia e a afigurar-se que, talvez, àquela hora Dom-João e
Dom Antônio estivessem mortos e de um momento para outro seu irmão
entraria pela casa adentro e a crivaria de punhaladas.
- Qual seria o vosso conselho, amiga, capaz de nos salvar e prevenir a
desventura que temeis? - perguntou ela à criada.
- Meu conselho é tão bom que não pode haver melhor. Há alguns anos,
servi eu a um cura que vive em uma aldeia a 2 milhas de Ferrara. É um bom e
santo homem, que fará por mím tudo quanto eu lhe pedir, porque me deve
mais obrigações que as que um amo costuma dever a seu criado. Vamos para lá.
Tratarei de arranjar quem nos leve; quanto à mulher que dá de mamar ao
menino, é muito pobre e irá conosco até o fim do mundo.
E, como supomos que acabareis por ser encontrada, melhor será vos
encontrarem em casa de um sacerdote de missa, velho e honrado, que em poder
de dois estudantes moços e espanhóis, pois êstes, e disso eu sou testemunha,
não desprezam uma patuscada, e, se agora vos respeitam é porque estais
doente; logo que estiverdes curada e em seu poder, só Deus vos poderá ajudar,
porque, em verdade, se minha repugnância, desdém e coragem não me
tivessem guardado, já teriam acabado comigo e com minha honra, pois nem
tudo o que reluz é ouro. Uma coisa é o que dizem, outra é o que pensam; mas
comigo perderam seu tempo, porque tenho pêlo nas ventas e sei onde o sapato
me aperta; além de tudo, sou bem nascida, pois descendo dos Cribelos de Milão
e considero minha honra 10 milhas acima das nuvens. Por isto, podem-se ver as
calamidades que por mim passaram, pois, sendo quem sou, cheguei a ser
escrava de espanhóis, embora não me possa queixar de meus amos, porque são
muito bons quando não se zangam; neste ponto parecem vasconços, como
dizem que são, mas pode ser que para convosco venham a ser galegos, que é
outra nação e tem fama de ser menos, pontual e séria que a vasconça.
Enfim, tantas e tais razões apresentou a velha que a pobre mõça resolveu
seguir-lhe o conselho. E assim, em menos de quatro horas, com o consentimento
de Cornélia, a criada arranjou tudo e puseram-se as duas e a ama, com o
menino, num carro, a caminho da aldeia do tal cura, sem que os pajens dessem
pela sua partida. Tudo isto se fez a conselho da velha e com o seu dinheiro,
porque os amos, antes de partir, lhe haviam pago um ano de seu ordenado e
assim não foi preciso empenhar uma jóia que Cornélia lhe queria dar para tal
fim. Como tivessem escutado Dom João falar que nem êle nem Lourenço
Bentíbollí seguiriam pela estrada principal, quiseram ir por êste caminho e de
vagar, a fim de não os encontrar. O dono do carro sujeitou-se à vontade delas,
pois lhe pagavam bem. Mas deixemos que elas se vão, cheias de si e bem
encaminhadas; vamos ver o que aconteceu a Dom João de Gamboa e a
Lourenço Bentibolli. Souberam êles, pelo caminho, que o duque não se
encontrava em Ferrara e sim em Bolonha. Abandonando, então, o atalho que
seguiam, tomaram a estrada real ou a estrada mestra, como lá se diz, considerando que o duque, ao sair de Bolonha, por ela passaria. Pouco depois de
caminharem nessa estrada, dirigindo os olhares para Bolonha, a fim de ver se
alguém se aproximava, enxergaram uma porção de gente a cavalo. Dom João
disse a Lourenço que se afastasse da estrada e fôsse para longe, pois, se por
acaso o duque viesse no meio daquela gente, queria falar-lhe ali mesmo, antes
que êle entrasse em Ferrara. Lourenço assim o fêz, aprovando o parecer de Dom
João. Assim que Lourenço se afastou, Dom João tirou a roseta que escondia a
rica fivela do chapéu.
Nisto, chegou o grupo de cavalheiros; vinha com êles uma mulher vestida
com roupas de viagem e de rosto coberto por uma pequena máscara, ou para
esconder o rosto ou para proteger contra o sol e o ar. Dom João parou no meio
da estrada e esperou os viajantes; quando êstes se encontravam perto, sua
estatura, seu garbo, o possante cavalo que montava, a riqueza e elegância de
seu vestuário, o brilho dos diamantes em seu chapéu despertaram a atenção dos
que chegavam, principalmente a do duque, que era um dos cavaleiros, e que, ao
pôr os olhos na fivela de diamantes, percebeu logo que aquêle homem era Dom
João de Gamboa, que lhe salvara a vida na luta em Bolonha. Mal se compenetrou desta verdade, sem esperar por mais nada, esporeou o cavalo e partiu ao
encontro de Dom João, dizendo:
- Suponho que não me enganarei, senhor cavalheiro, se vos chamar de
Dom João de Gamboa, pois vossa aparência e o enfeite dêsse chapéu revelam
vosso nome.
- Não vos enganastes - respondeu Dom João. - Jamais soube ou quis
esconder meu nome, para nunca ser descortês.
- Isto será impossível - respondeu o duque -, pois tenho a certeza de que
jamais poderieis ser descortês. Sou o Duque de Ferrara, Senhor Dom João,
aquêle que está obrigado a vos servir durante tôda a vida, pois não faz quatro
noites que vós me salvastes da morte.
O duque não acabara ainda de falar e Dom João, com extraordinária
agilidade, já saltara do cavalo e corria para beijar-lhe os pés, mas, por muito
ligeiro que fôsse, já encontrou o duque fora da sela, de modo que êste acabou de
apear nos braços de Dom João.
Lourenço, que de longe olhava estas cerimônias, julgando que não eram
de cortesia e sim de cólera, esporeou o cavalo, mas estacou no mesmo instante,
porque viu os dois estreitamente abraçados e imediatamente reconheceu o
duque. Este, por cima do ombro de Dom João, olhou para Lourenço e também o
reconheceu e sobressaltou-se um pouco; assim como estava, abraçado a Dom
João, perguntou-lhe se Lourenço Bentibolli viera em sua companhia. Dom João
respondeu:
- Afastemo-nos daqui e contarei a Vossa Excelência grandes coisas.
O duque assim fêz e Dom João lhe disse:
- Senhor duque, Lourenço Bentibolli, que ali vêdes, tem uma grande
queixa de vós. Diz êle que há quatro noites tirastes sua irmã, a Senhora
Cornélia, da casa de uma prima, que a enganastes e desonrastes, e deseja saber
de vós que satisfação podereis dar para êle pensar no que deve fazer. Pediu-me
para ser seu mediador e eu aceitei, porque, pela descrição que me fêz do
combate, descobri serdes vós, senhor, o dono desta fivela, que, por liberalidade
e cortesia, quisestes que fôsse minha; e, vendo que ninguém melhor do que eu
podia servir a ambos, aceitei, como já vos disse. Peço-vos agora, senhor, para
me dizerdes o que sabeis acêrca dêste caso e se é verdade o que Lourenço diz.
- Ai, amigo! - respondeu o duque -, é tão verdade que não me atreveria a
negá-lo, mesmo se quisesse; porém não enganei Cornélia nem a tirei de casa
como dizeis; não a enganei porque a considero minha espôsa e não a raptei,
pois nem mesmo sei onde ela se encontra. Se não celebrei públicamente a nossa
união, foi porque esperava que minha mãe, que está nas últimas, passasse desta
vida para a outra, pois ela queria que eu desposasse a Senhora Lívia, filha do
Duque de Mântua, e também por outros motivos talvez mais graves ainda que
não convém agora dizer.
Naquela noite em que me acudistes, eu deveria trazê-la para Ferrara,
porque ela estava já em vésperas de dar à luz o tesouro que, por favor do céu,
pôde ela conceber. Porém, ou por causa da briga ou por eu ter-me demorado
um pouco, quando cheguei à sua casa encontrei-me com a pajem que nos
ajudava secretamente e, tendo-lhe perguntado por Cornélia, disse-me ela que já
saíra e que naquela mesma noite dera à luz um menino, o mais lindo e perfeito
que tinha visto, e que o entregara a meu criado Fábio. A aia é aquela que me
acompanha; Fábio está aqui, porém Cornélia e o menino desapareceram. Passei
êstes dois dias em Bolonha, esperando e procurando receber alguma notícia de
Cornélia, mas nada consegui.
De maneira que, meu senhor - disse Dom João -, tão logo que Cornélia e
vosso filho apareçam, não negareis que ela é vossa espôsa e êle vosso filho?
- Certamente que não, pois, se me prezo como cavalheiro, prezo-me ainda
mais como cristão. Além disso, Cornélia tem tais qualidades que merece ser
dona de um reino. Se ela aparecer, esteja minha mãe viva ou morta, todo o
mundo verá que, se eu soube ser amante, sei também manter perante todos a fé
que jurei em segrêdo.
- E podereis repetir a seu irmão, o Senhor Lourenço, o que acabastes de me
declarar? - perguntou Dom João.
- O meu mal - respondeu o duque - foi não lhe ter dito nada ainda.
Dom João, no mesmo instante, fêz sinal a Lourenço para desmontar e vir
ter com êles; o rapaz concordou, longe de adivinhar a boa nova que o esperava.
O duque dirigiu-se a êle de braços abertos e a primeira coisa que fêz foi chamálo de irmão. Lourenço, surpreendido, mal sabia responder a tão afetuosa
saudação e a tão cortês acolhimento. E, estando assim perplexo, antes que
pudesse dizer uma palavra, Dom João falou-lhe:
- Senhor Lourenço, o duque confessa as relações secretas que manteve com
vossa irmã, a Senhora Cornélia. Confessa também que a considera como legítima espôsa e que o dirá publicamente, tão logo lhe seja possível. Diz ainda que
foi há quatro noites buscá-la à casa de sua prima, a fim de trazê-la para Ferrara,
à espera de uma oportunidade para celebrar seu casamento, que tem sido
adiado por motivos muito justos e que êle me confiou. Falou-me também do
combate que travou convosco e que, quando foi buscar Cornélia, se encontrou
com Sulpícia, sua aia, aquela mulher que ali está -, e por intermédio dela soube
que Cornélia tivera um filho e logo saíra de casa, julgando ir ter com o duque, e
receosa, pois pensava que vós, Senhor Lourenço, já sabíeis o que se passava.
Sulpícia, acreditando entregar o recémnascido a um criado, deu-o a uma pessoa
desconhecida. Desapareceram, pois, mãe e filho; o duque reconhece sua culpa e
declara que, tão logo encontre Cornélia, a receberá como espôsa.
Considerai agora, Senhor Lourenço, se há mais alguma coisa a dizer ou
desejar, a não ser a descoberta de dois tesouros tão preciosos quanto desgraçados.
Lourenço respondeu atirando-se aos pés do duque, que se esforçava para
erguê-lo.
- De vossa bondade cristã e grandeza, sereníssimo senhor, não poderíamos
esperar outra atitude; a ela, tornando-a igual a vós; a mim, considerando-me
vosso criado.
Nesse ponto, os dois tinham os olhos rasos de lágrimas, enternecidos, um
com a perda da espôsa, o outro por ter encontrado um cunhado tão bom. Mas,
considerando que seria fraqueza dar mostras de seus sentimentos com lágrimas
nos olhos, ambos procuraram reprimi-las. Nos olhos de Dom João brilhava a
alegria, que lhe vinha ao pensar que as duas jóias estavam sãs e salvas em sua
casa.
Estavam, pois, nesta situação, quando apontou na estrad a Dom Antônio
de Isunza, que Dom João reconheceu de longe.
Mas, quando se aproximou, deteve-se, observando os cavalos de Dom
João e de Lourenço, que dois criados seguravam. Dom Antônio reconheceu
Dom João e Lourenço, mas não reconheceu o duque e não sabia o que fazer: se
devia aproximar-se ou não.
Dirigiu-se aos criados do duque e perguntou-lhes se sabiam quem era o
fidalgo que estava falando com os outros dois. Responderam-lhe que era o
Duque de Ferrara, e esta notícia deixou-o ainda mais perplexo; Dom João correu
em seu auxílio, chamando-o pelo nome. Dom Antônio, vendo que todos
estavam desmontados, apeou e, ao aproximar-se, foi recebido pelo duque muito
cortêsmente, pois Dom João já lhe dissera que aquêle era seu grande amigo e
companheiro. Finalmente, Dom João contou-lhe tudo o que acontecera desde
que se haviam separado até aquêle momento.
Dom Antônio regozijou-se e disse a Dom João:
- Por que não completais a alegria e o contentamento dêstes senhores,
dizendo-lhes onde se encontra Cornélia com seu filho, e lhes pedis alvíssaras
pelo achado?
- Se não fôsse vossa chegada, Dom Antônio, eu já o teria feito, mas vós
podeis pedi-las agora que êles as darão de muito boa vontade.
Ao ouvirem falar de Cornélia e de alvíssaras, o duque e Lourenço
perguntaram de que se tratava.
- Que há de ser - respondeu Dom Antônio -, senão que desejo também
representar meu papel nessa comédia trágica, e que êsse papel será o da
personagem que pede alvíssaras pelo fato de estarem em sua casa a Senhora
Cornélia e seu filho?
E contou-lhes pormenorizadamente tudo o que narramos até agora. O
duque e Lourenço sentiram tal alegria que abraçaram estreitamente os dois
amigos, prometendo o duque o seu Estado como alvíssara e Lourenço os seus
bens, sua vida e sua alma.
Chamaram, então, a aia, que entregara por engano o recém-nascido a Dom
João, a qual tendo reconhecido seu amo Lourenço tremia de mêdo. Perguntaram-lhe se conhecia o homem a quem dera a criança e ela respondeu que não,
que lhe perguntara se era Fábio e êle respondera afirmativamente e, confiando
nisto, entregara ela o menino.
- Foi assim mesmo - falou Dom João. - E vós fechastes a porta logo depois
de me recomendardes que pusesse o bebê a salvo e voltasse depressa.
- Assim foi, meu senhor - respondeu a aia chorando.
O duque disse:
- Não queremos lágrimas aqui, e sim júbilo e festas. Agora não posso
entrar em Ferrara, antes de voltar a Bolonha, pois tôda essa alegria é apenas
uma sombra e só a presença de Cornélia a tornará real.
E, sem dizer mais nada, partiram todos de volta a Bolonha.
Dom Antônio entrou antes de todos na cidade a fim de prevenir Cornélia,
impedindo assim que se assustasse com a súbita chegada do duque e de seu
irmão; mas, como não a encontrou em casa, nem os pajens souberam dar notícias dela, ficou triste e desesperado, sem saber o que fazer de sua vida. Dando,
então, pela falta da criada velha, lembrou-se de que talvez fôsse a causadora da
partida de Cornélia. Os pajens disseram-lhe que a aia se ausentara no mesmo
dia em que seus amos haviam partido e que essa Senhora Cornélia de quem
Dom Antônio falava êles nunca tinham visto. Dom Antônio ficou fora de si ao
considerar esta nova desgraça, temendo que o duque os tomasse por mentirosos
ou embusteiros ou até imaginasse coisa pior, que redundasse em prejuízo de
sua honra e da reputação de Cornélia.
Estava, pois, nesta situação quando entraram o duque, Lourenço e Dom
João, que, deixando a comitiva fora da cidade e passando por ruas desertas,
chegaram à casa de Dom João. Encontraram Dom Antônio sentado em uma
cadeira, com a mão no rosto e pálido como um morto. Dom João perguntou-lhe
o que tinha e onde estava Cornélia.
- Que não haverei eu de ter - respondeu Dom Antônio. Cornélia desapareceu juntamente com a criada que deixamos para lhe fazer companhia,
desapareceu no mesmo dia em que partimos.
Ao ouvir estas palavras, o duque estêve para expirar; Lourenço ficou
desesperado. Todos se mantiveram aflitos, suspensos e pensativos. Nisto,
chegou um pajem de Dom Antônio e disse-lhe ao ouvido:
- Santisteban, o pajem do senhor Dom João, desde o dia em que os
senhores saíram de casa, tem uma mulher muito bonita fechada em seu quarto e
creio que seu nome é Cornélia, assim tenho ouvido chamá-la.
Dom Antônio alvoroçou-se novamente e queria que Cornélia não aparecesse em tais circunstâncias, pois imaginou que o pajem a tivesse escondido e
era preferível não a encontrar do que encontrá-la fechada em tal lugar. Mas não
disse nada a ninguém e foi ao aposento do pajem; encontrou a porta fechada e o
pajem ausente; aproximou-se, então, da porta e disse em voz baixa:
- Abri, Senhora Cornélia, vinde receber o vosso irmão e o duque vosso
espôso, que vieram para buscar-vos.
- Estão zombando de mim? Não sou assim tão feia nem tão sem graça que
não possam vir buscar-me duques e condes, mas é isso que dá a gente meter-se
com pajens.
Por estas palavras Dom Antônio percebeu que não era Cornélia quem
falava. Nesse instante chegou Santisteban e, dirigindo-se ao seu aposento, ali
encontrou Dom Antônio, que lhe pediu para trazer várias chaves da casa para
ver se alguma dessas servia na porta daquele quarto. O pajem caiu de joelhos e,
com a chave na mão, disse:
- A ausência de vossas mercês e a minha velhacaria fizeram-me trazer para
cá uma mulher para ficar comigo; suplico a Vossa Mercê, Dom Antônio de
Isunza, que, se meu senhor Dom João não sabe disto, não lhe digais nada, e eu
neste mesmo instante mando esta mulher embora.
- E como se chama a tal mulher? - perguntou Dom Antônio.
- Chama-se Cornélia - respondeu o pajem.
O outro pajem, que fizera a denúncia e que não era muito amigo de
Santisteban, desceu à sala onde estavam o duque, Lourenço e Dom João e disse:
- Agarrai o pajem, por Deus, que o obrigaram a entregar a Senhora
Cornélia! Escondeu-a bem! Teria gostado de que os senhores se demorassem
para estender ainda o gaudeamus por mais três ou quatro dias.
Ouvindo isto, Lourenço perguntou-lhe:
- Que dizeis, homem? Onde está Cornélia?!
- Lá em cima - respondeu êle.
Ao ouvir isto, o duque não esperou mais e subiu a escada como um raio,
julgando que ia ver sua Cornélia. Entrando no aposento onde estava Dom
Antônio, disse:
- Onde está Cornélia? Onde está a vida de minha vida?
- Aqui está Cornélia - respondeu uma mulher envôlta por um lençol e de
rosto coberto. - Valha-me Deus! - exclamou ela. - Terei roubado alguma coisa?
Será assim tão espantoso uma mulher dormir com um pajem para se fazer tanto
barulho?
Lourenço, que também estava presente, cheio de despeito e cólera, puxou
uma ponta do lençol e viu uma mulher, jovem ainda, de boa aparência, que,
envergonhada, tapou o rosto com as mãos e tratou de pegar sua roupa que
estava sôbre a cama servindo de travesseiro; todos viram, então, que aquela
mulher devia ser uma dessas mulheres perdidas que andam pelo mundo.
O duque perguntou-lhe se era verdade que se chamava Cornélia. Ela
respondeu que sim, que tinha parentes muito honrados na cidade e que
ninguém devia dizer: desta água não beberei. O duque ficou tão acabrunhado
com tudo isto que estêve para desconfiar de que os espanhóis tivessem caçoado
dêle, mas, para não se entregar a tão maus pensamentos, voltou as costas e, sem
dizer palavra, seguido por Lourenço, montaram ambos a cavalo e foram-se
embora, deixando Dom Antônio e Dom João em situação pior que a dêles,
ainda mais envergonhados que êles. Os dois espanhóis decidiram fazer tôdas as
diligências possíveis e impossíveis para encontrar Cornélia. Despediram
Santisteban por causa de seu atrevimento e disseram a Cornélia que fôsse
embora.
Nisto, veio-lhes à memória que haviam esquecido de contar ao duque o
fato do agnus e da cruz de diamante que ela quisera oferecer-lhes; com êstes
sinais, êle haveria de acreditar que Cornélia estivera em seu poder e que, se não
estava ali, a culpa não era dêles. Saíram para dizer isso ao duque, mas não o
encontraram em casa de Lourenço, onde julgaram que êle deveria estar.
Lourenço estava em casa e disse-lhes que o duque partira para Ferrara,
deixando-o encarregado de procurar sua irmã.
Contaram a Lourenço o caso das jóias, mas êste respondeu que o duque
estava muito satisfeito com seu procedimento e que tanto êle quanto o duque
atribuíam a fuga de Cornélia ao grande mêdo que dela se apoderara, e que
Deus haveria de fazê-la aparecer, pois a terra não poderia ter engolido a ela, à
criada e ao menino. Com estas palavras todos ficaram mais animados e
combinaram não fazer diligências públicas e sim secretas, porque ninguém, a
não ser sua prima, sabia do desaparecimento de Cornélia. E, como não se
conheciam as intenções do duque, correria grande risco a reputação de Cornélia
e seria grande trabalho estar a desfazer as suspeitas que uma convicção infunde
nas mais diferentes pessoas.
Seguiu o duque a sua viagem e a boa sorte que lhe ia preparando a
ventura fê-lo passar pela aldeia onde morava o cura e em cuja casa se
encontravam Cornélia, o menino, a criada conselheira e a ama; elas já haviam
contado a história ao bom padre, pedindo-lhe proteção e conselho. O cura era
grande amigo do duque e êste vinha muitas vêzes de Ferrara para visitá-lo e
descansar em sua casa, que era muito bem arrumada, como convinha a um
sacerdote rico, ilustrado e colecionador de curiosidades.
O duque fazia ali grandes caçadas e gostava de conversar com o padre,
que era bem engraçado em tudo quanto dizia e fazia. Não se alvoroçou, pois, o
cura, ao ver o duque entrar, porque não era a primeira vez que isso acontecia,
mas afligiu-se ao vê-lo triste, pois logo pensou que alguma paixão lhe
atormentava o espírito.
Cornélia percebeu que o duque estava ali e perturbou-sei muito, pois não
sabia quais eram as suas intenções; torcia as mãos e andava de um lado para
outro, como se estivesse fora de si; queria falar ao cura, mas êste conversava
com o duque e era impossível chamá-lo.
O duque disse ao padre:
- Venho tristíssimo, meu pai, e não quero entrar hoje em Ferrara e sim ficar
aqui como vosso hóspede. Dizei aos que me acompanham para irem a Ferrara e
que só fique Fábio.
O cura assim fêz e logo foi dar ordem a fim de que tudo se preparasse
para acomodar o duque e dar-lhe de comer. Só então Cornélia pôde falar-lhe e,
pegando-lhe as mãos, disse-lhe:
- Ai meu pai! Que deseja o duque? Pelo amor de Deus, falai-lhe um pouco
de mim e procurai saber quais as suas intenções a meu respeito. Fazei como vos
parecer melhor e como vossa grande prudência vos aconselhar.
- O duque está muito triste - falou o cura -, mas até agora não me disse por
quê. É preciso vestir êste menino com suas melhores roupas e pôr-lhe as
melhores jóias que tiverdes, sobretudo as que o duque vos tiver dado. Deixai o
resto por minha conta, pois se Deus quiser teremos hoje um dia feliz. Cornélia
abraçou-o e beijou-lhe a mão, retirando-se em seguida para vestir e enfeitar o
seu filho. O cura foi ter com o duque para conversar com êle enquanto não
chegava a hora do jantar. No decorrer da conversa, perguntou-lhe se não era
possível saber-se a causa de sua tristeza, pois a 1 légua de distância podia-se
notar o que lhe passava no coração.
- Pai - respondeu o duque -, é bem certo que as tristezas do coração
transparecem no rosto; lê-se nos olhos o que se passa na alma. E o pior é que,
por enquanto, não posso contar minha tristeza a ninguém.
- Em verdade, meu senhor - respondeu o cura -, se estivésseis disposto
para ver coisas agradáveis, eu teria uma para vos mostrar e sei que vos daria
grande prazer.
- Tolo seria aquêle - disse o duque - que, tendo ocasião de ver aliviado seu
mal, se recusasse a isso. Por Deus, mostrai me, padre, o que dizeis, pois deve ser
algum objeto para sua coleção e gostaria muito de vê-lo.
O cura levantou-se e dirigiu-se para onde estava Cornélia, que já tinha
vestido e enfeitado o filho, pondo-lhe a cruz de diamantes e o agnus e outras
jóias preciosíssimas, oferecidas pelo duque; o cura pegou a criança e, levando-a
à sala onde estava o duque, chamou êste para junto da claridade de uma janela
e, desembrulhando o menino, colocou-o em seus braços. O duque olhou
admirado e, quando reconheceu as jóias, ficou atônito.
Olhava espantado o pequenino e parecia-lhe que estava a ver seu próprio
retrato. Cheio de admiração, perguntou ao cura de quem era aquela criancinha,
que, pelo vestuário e pelos enfeites, parecia filha de um príncipe.
- Não sei - respondeu o cura - Uma noite destas, um cavalheiro de Bolonha
trouxe-o aqui e me encarregou de olhar por êle e criá-lo, pois era filho de nobre
e valoroso pai e de mãe fidalga e formosíssima. Com o cavalheiro veio também
uma mulher para dar de mamar ao menino; eu lhe perguntei se ela sabia
alguma coisa a respeito dos pais da criança e ela me disse que não. Se a mãe é
tão linda como a ama, deve ser a mulher mais formosa da Itália.
- Não poderia eu vê-la? - perguntou o duque.
- Sem dúvida - respondeu o cura. - Vinde comigo, senhor, pois, se a beleza
desta criança vos surpreendeu como penso, o mesmo efeito vos há de fazer a
vista de sua ama.
O cura quis pegar o menino, mas o duque não o largou; apertou-o contra o
peito e cobriu-o de beijos. Saiu o cura por uns instantes e disse a Cornélia para
vir, sem preocupação alguma, ao encontro do duque. Cornélia assim fêz, mas
com a comoção veio-lhe tal côr ao rosto que sua beleza parecia do outro mundo.
O duque espantou-se ao vê-la e ela quis atirar-se a seus pés para beijá-los. Sem
dizer uma palavra, o duque entregou o menino ao cura e, voltando as costas,
saiu do aposento a tôda pressa.
Cornélia, vendo isto, virou-se para o cura e disse:
- Ai, meu pai! Teria o duque se espantado ao ver-me? Detesta-me, por
certo; pareço-lhe feia. Esqueceu já as obrigações que me deve! Será que não me
vai dizer nem uma palavra?
Cansou-se tanto de segurar o filho que o largou!
O cura, admirado com a saída precipitada do duque, não disse uma só
palavra, pois parecera-lhe que êle fugira. Enganava-se, porque o duque, saindo,
chamou Fábio e lhe disse:
- Corre, Fábio amigo, e vai a Bolonha o mais depressa que puderes e dize a
Lourenço Bentibolli e aos dois fidalgos espanhóis, Dom João de Gamboa e Dom
Antônio de Isunza, para virem sem demora alguma a esta aldeia. Vai, amigo, e
não voltes sem êles, pois vê-los importa-me mais que a própria vida.
Fábio apressou-se em cumprir a ordem de seu amo. O duque voltou
imediatamente para a sala onde estava Cornélia, que derramava muitas
lágrimas; apertou-a em seus braços e, juntando suas lágrimas às dela, beijou-lhe
mil vêzes os lábios, pois a felicidade era tamanha que lhes prendia a fala. E
assim, arrebatados em amoroso silêncio, abraçavam-se os dois felizes amantes e
verdadeiros esposos. A ama do menino e Cribela, a criada, que, por uma fresta
da porta, espreitavam o que se passava entre o duque e Cornélia, de alegria,
davam cabeçadas pelas paredes, como se tivessem perdido o juízo. O cura dava
mil beijos no menino que tinha nos braços e, com a mão direita, que deixara
livre, não se cansava de abençoar os dois esposos. A ama do cura, que não se
encontrava presente a êstes acontecimentos por estar na cozinha preparando o
jantar, apareceu nesta altura, anunciando que a mesa estava posta. Isto veio pôr
fim aos estreitos abraços dos dois jovens; o duque tirou o menino dos braços do
cura e o segurou no colo durante todo o tempo em que durou o simples mas
saboroso jantar. Enquanto comiam, Cornélia contou tudo o que lhe sucedera até
chegar àquela casa, dizendo que partira a conselho da velha criada, fugindo da
morada dos dois fidalgos espanhóis que a tinham servido, amparado e
guardado com o mais honesto e correto decôro que se podia imaginar. O duque,
por sua vez, contou-lhe tudo o que se passara até aquêle momento. A criada
velha e a ama do menino, que estavam presentes, encontraram no duque
grandes oferecimentos e promessas. Em todos, enfim, renovou-se a alegria e a
satisfação com o feliz desenlace dêstes acontecimentos e, para que a ventura
geral fôsse completa, faltava apenas a presença de Lourenço, Dom João e Dom
Antônio. Chegaram êles dali a três dias, pressurosos e desejosos de saber se o
duque tivera alguma notícia de Cornélia, pois Fábio, que fôra chamá-los, nada
lhes pudera dizer, porque nada sabia.
O duque veio recebê-los em uma sala contígua àquela em que se
encontrava Cornélia e não deu mostras do mais leve contentamento, o que
entristeceu os recém-chegados; mandou-os entrar e, sentando-se também,
dirigiu-se a Lourenço nestes têrmos:
- Bem sabeis, Senhor Lourenço Bentibolli, que jamais enganei vossa irmã,
do que o céu e minha consciência são testemunhas. Sabeis igualmente com que
empenho a procurei e o desejo que tinha de encontrá-la para me casar com ela
conforme lhe prometera. Porém, ela não aparece e minha palavra não pode ser
eterna. Sou jovem e tão inexperiente das coisas do mundo que não posso
impedir de me deixar levar pelos prazeres que se me oferecem a cada passo. A
mesma afeição que me levou a prometer casamento a Cornélia obriga-me a
fazer igual promessa a uma camponesa desta aldeia a quem agora deixava
enganada por terme rendido aos merecimentos de Cornélia, embora não
atendesse ao que a consciência me pedia, o que não era pequena prova de amor.
Mas, visto que ninguém se casa com uma mulher desaparecida, nem é razoável
que um homem procure a mulher que o deixa, pergunto-vos agora, Senhor
Lourenço, que satisfação posso eu dar-vos da afronta que não vos fiz, pois
nunca tive intenção de fazê-la? Quero, além disso, pedir-vos licença para
cumprir a minha primeira palavra e casar-me com a camponesa que já está
dentro desta casa.
Enquanto o duque falava, Lourenço não conseguia permanecer quieto na
cadeira; seu rosto mudava de expressão e tornava-se de mil côres, dando claros
sinais de que a cólera ia aos poucos tomando conta de todos os seus sentidos. O
mesmo acontecia a Dom João e a Dom Antônio, que decidiram não deixar o
duque ir adiante, ainda que tivessem de lhe tirar a vida. O duque, lendo tais
intenções em suas fisionomias, disse-lhes:
- Tranqüilizai-vos, Senhor Lourenço. Antes de ouvir vossa resposta quero
que vejais a formosura daquela que tenciono receber como legítima espôsa; essa
formosura vos obrigará a dar-me a licença que vos peço, pois é tão grande que
poderia desculpar erros ainda maiores.
Dizendo isto, levantou-se e entrou na sala onde se encontrava Cornélia,
ricamente vestida e enfeitada com tôdas as jóias que o menino tinha e muitas
outras mais. Quando o duque voltou as costas, Dom João levantou-se e, pondo
ambas as mãos nos braços da cadeira em que Lourenço estava sentado, disselhe ao ouvido:
- Por Santiago de Galiza, Senhor Lourenço, pela fé que tenho e pela honra
de fidalgo que será mais fácil eu me tornar mouro do que deixar o duque levar
adiante sua intenção. Aqui, aqui em minhas mãos há de perder a vida ou há de
cumprir a palavra que deu à Senhora Cornélia, vossa irmã, ou pelo menos há de
nos dar tempo para procurá-la, e, até o dia em que tenhamos certeza de que ela
morreu, o duque não se casará.
- Sou dêste mesmo parecer - respondeu Lourenço.
- E sei que meu amigo Dom Antônio também está de acôrdo - falou Dom
João.
Nisto Cornélia entrou pela sala adentro, entre o cura e o duque, que a
trazia pela mão. Atrás dêles vinha Sulpícia, a aia de Cornélia que o duque
mandara vir de Ferrara, assim como a criada dos espanhóis e a ama do menino.
Quando Lourenço viu a irmã e a reconheceu bem, pois de início a impossibilidade de que tal coisa acontecesse impedia-o de aceitar a verdade, tropeçando
em seus próprios pés, foi atirar-se aos pés do duque, que o levantou,
conduzindo-o aos braços de sua irmã; esta abraçou-o, dando mostras de imensa
alegria. Dom João e Dom Antônio disseram ao duque que jamais tinham visto
brincadeira tão gostosa. O duque pegou o menino que Sulpícia trazia no colo e
entregou-o a Lourenço, dizendo:
- Recebei, meu irmão, o vosso sobrinho e meu filho e respondei se agora
podereis dar licença para que eu me case com esta camponesa, que é a primeira
mulher a quem prometi casamento.
Seria um não mais terminar se contássemos o que Lourenço respondeu, o
que perguntou Dom João, o que sentiu Dom Antônio, o regozijo do cura, a
alegria de Sulpícia, o contentamento da criada conselheira, o júbilo da ama, a
admiração de Fábio e, finalmente, a felicidade de todos. O cura casou-os ali
mesmo e Dom João de Gamboa foi o padrinho. Todos concordaram em que o
casamento fôsse mantido em segrêdo até ver em que parava a doença da velha
duquesa, que estava muito mal. Enquanto isso Cornélia voltaria para Bolonha
com seu irmão. E tudo terminou assim: a duquesa morreu e Cornélia entrou em
Ferrara alegrando tôda gente com o esplendor de sua beleza. Os lutos
transformaram-se em galas; as criadas ficaram ricas; Sulpícia casou-se com
Fábio; Dom Antônio e Dom João ficaram contentíssimos por terem servido o
duque em alguma coisa e êste ofereceu-lhes suas primas como espôsas, com
dotes riquíssimos. Mas êles responderam que os fidalgos vasconços tinham por
costume casarem-se em sua pátria e que, portanto, não por menosprêzo, pois tal
coisa não era possível, mas sim para cumprir êsse louvável costume e a vontade
de seus pais, que certamente já lhes tinham escolhido noivas, não aceitavam tão
honroso oferecimento.
O duque admitiu a desculpa e, honrosa e delicadamente, procurando
ocasiões oportunas, mandou muitos presentes a Bolonha; alguns foram tão ricos
e enviados em tão boa hora que, embora não os pudessem aceitar para não
parecer que recebiam paga, a ocasião em que chegavam, a delicadeza com que
eram mandados desarmavam todos os escrúpulos. Apreciaram particularmente
os presentes que o duque lhes enviou quando partiram; para a Espanha e os
que lhes deu quando foram a Ferrara, para se despedirem dêle; chegando lá
encontraram Cornélia com duas filhas gêmeas e o duque mais enamorado do
que nunca. A duquesa quis dar a cruz de diamantes a Dom João e o agnus a
Dom¡ Antônio, que, não podendo desta vez recusar, aceitaram tão valiosas
lembranças.
Voltaram os dois rapazes para a Espanha e dirigiram-se para sua terra,
onde se casaram com ricas, importantes e formosas fidalgas; mantiveram
sempre correspondência com o duque, com a duquesa e com Lourenço
Bentibolli, para enorme satisfação de todos.
Rinconete e Cortadilho
Na Estalagem do Molinilho, situada nos confins dos famosos campos da
Alcúdia, como quem vai de Castela para Andaluzia, encontraram-se, por acaso,
num dêsses dias quentes de verão, dois rapazes de uns catorze ou quinze anos,
nem um nem outro passava dos dezessete, ambos atraentes, porém
desalinhados, rotos e maltrapilhos. Capa não tinham; seus calções eram de
cânhamo, as meias, a própria pele e, para completar êste conjunto, os sapatos;
porque os de um eram alpargatas, muito usadas, os do outro, furados e sem
solas, a lhe servirem mais como grilhões que propriamente de sapatos. Um
usava barrete verde de caçador; o outro, um chapéu sem fita, enterrado na
cabeça. Um trazia às costas, fechada ao peito, uma camisa côr de camurça
encerada e prêsa a uma das mangas; o outro estava desabrigado e sem alforjes,
ainda que no peito lhe aparecesse um grande volume que, como depois se
verificou, era um cachecol, à moda dos valões, ensebado e tão desfiado que
mais parecia um trapo. Nêle, envoltos e guardados, havia uns baralhos de
forma oval, porque, de tanto serem usados se lhes gastaram as pontas, que
foram aparadas para que êles durassem mais, donde aquêle seu formato.
Estavam os dois queimados pelo sol, tinham as unhas caireladas e as mãos não
muito limpas; um possuía uma espada de meio tamanho e o outro, uma
peixeira de cabo amarelado.
Saíram ambos para dormir a sesta no saguão ou alpendre que se costuma
construir diante das estalagens e, sentando-se um defronte ao outro, disse o que
parecia mais velho ao mais jovem:
- De que terra é vosmecê, meu ilustre fidalgo, e para onde vai?
- Minha terra, cavalheiro - respondeu o interrogado -, não sei qual é e
também não sei para onde vou.
- Não me parece que vosmecê tenha caído do céu - disse o mais velho -, e
êste não é um lugar onde se possa morar; vosmecê forçosamente haverá de ir
para diante.
- Bem, assim é - respondeu o mais jovem -, mas disse a verdade, porque
minha terra não é minha; nela tenho um pai que não me considera como filho e
uma madrasta que me trata como enteado; vou por aí sem destino e só haveria
de parar onde encontrasse alguém que me desse o necessário para passar esta
vida miserável.
- E tem vosmecê algum ofício? - perguntou o mais velho.
E o mais jovem respondeu:
- Sei apenas que corro como uma lebre, que salto como um gamo e que
manejo a tesoura muito bem.
- Tudo isso é muito bom, útil e proveitoso - disse o mais velho -, porque há
de haver um sacristão que lhe dê a oferenda de todos os santos a fim de que na
quinta-feira santa vosmecê lhe corte florões de papel para o altar.
- Não é dêsse corte que eu falo - respondeu o mais jovem.
- Meu pai, pela misericórdia dos céus, é alfaiate e calceiro e me ensinou a
cortar antiparras, que, vosmecê bem sabe, são meias calças com protetores para
os pés, comumente chamadas polainas, e corto-as tão bem que poderia ser
considerado um mestre, não fôsse a sorte ingrata que me mantém desterrado.
- Tudo isso e mais ainda acontece aos bons - respondeu o mais velho -, e
sempre ouvi dizer que as melhores habilidades são as mais desperdiçadas,
porém, vosmecê é ainda suficientemente jovem para modificar sua sorte. Mas,
se não me engano e não me falha a vista, vosmecê tem outros dons ocultos e
não os quer revelar.
- Tenho, sim - respondeu o mais jovem -, mas não são de interêsse público,
como vosmecê observou muito bem.
Ao que replicou o mais velho:
- Pois eu sei dizer que sou um dos moços mais discretos que se pode
encontrar e, para obrigar vosmecê a abrir-se e a confiar em mim, quero que me
conheça primeiro, pois imagino que a sorte não nos uniu aqui à toa e penso que
havemos de ser, de hoje até o último dia de nossa vida, verdadeiros amigos. Eu,
meu fidalgo, sou natural de Fuenfrida, lugar conhecido e famoso pelos ilustres
passageiros que por ali passam continuamente; meu nome é Pedro del Rincón;
meu pai é homem de bem, é ministro da Santa Cruzada; quero dizer que é
buleiro ou buldero, como chama o povo. Acompanhei-o em seu trabalho por
alguns dias e aprendi a profissão de tal forma que ninguém seria capaz de me
superar na arte de apregoar bulas; porém, um dia, tendo-me entusiasmado mais
pelo dinheiro que pelas próprias bulas, agarrei-me a um taleigo, dei comigo e
com êle em Madri, onde, por causa das comodidades que ali comumente se
oferecem, esvaziei em poucos dias o interior do taleigo e o deixei com mais
dobras do que lenço de recém-casado. O encarregado do dinheiro foi atrás de
mim; prenderam-me; não me favoreceram, ainda que tivessem visto minha
pouca idade: contentaram-se em que me encostassem à aldrava e me açoitaram
um bocado as costas e que fôsse desterrado da côrte por quatro anos. Tive
paciência, encolhi os ombros, sofri a pena e os açoites e saí para cumprir meu
destêrro, com tanta pressa, que não tive tempo de arranjar um animal. Das jóias
que tinha, apanhei as que pude e as que me pareceram mais necessárias; dentre
elas peguei êste baralho - nesse momento descobriu os naipes, que, como já se
disse, estavam envoltos pelo cachecol -, com o qual tenho ganhado a vida pelas
tabernas e estalagens que existem de Madri até cá, jogando o vinte-e-um, e,
ainda que vosmecê o julgue vil e maltratado, produz êle efeitos maravilhosos
para quem sabe estendê-lo e sabe onde o ás se encontra; e, se vosmecê conhece
bem êste jôgo, verá quantas são as vantagens para quem tem a certeza de
possuir um ás como primeira carta e que tanto lhe pode servir como um ponto
ou como onze; com esta vantagem, apostando-se o vinte-e-um, o dinheiro não
lhe sai do bôlso. Fora isto, aprendi com um cozinheiro de certo embaixador
certas manhas na “quina” e no “parar”, a que chamam também de “andaboba”,
e assim, como se pode considerar a vosmecê mestre no corte de suas antiparras,
eu posso ser considerado mestre na ciência de velhacarias. Com isso estou certo
de não morrer de fome, porque, chegando eu a uma colônia, há sempre quem
queira passar o tempo jogando um pouco; e disto haveremos logo de fazer a
experiência dos dois: armemos a rêde e vejamos se nela cai algum dêstes tolos
arrieiros que por aqui existem; quero dizer com isto que jogaremos nós dois o
vinte-e-um como se fôsse de verdade, e, se alguém quiser ser o terceiro, êle será
o primeiro a deixar a grana.
- Está muito bem - disse o outro -, e tenho em grande consideração a mercê
com que vosmecê me distinguiu, prestando-me contas de sua vida, obrigandome a não encobrir a minha, que, narrada o mais brevemente possível, é a
seguinte: nasci em Pedroso, entre Salamanca e Medina do Campo; meu pai é
alfaiate; ensinou-me sua profissão e o manejo das tesouras; com minha
habilidade passei a cortar bôlsas. Aborreceu-me a vida acanhada da aldeia e o
desamoroso trato de minha madrasta; deixei meu povo, vim a Toledo para
exercer meu ofício e nêle consegui maravilhas, porque não há relicário enfeitado
nem algibeira tão escondida que meus dedos não visitem ou que minhas
tesouras não cortem, ainda que a estejam guardando com olhos de Argos. Em
quatro meses que estive naquela cidade nunca fui apanhado entre portas, nem
sobressaltado nem corrido por policial algum, nem acusado por qualquer
delator; é bem verdade que há uns oito dias um espião dissimulado deu
notícias de minha habilidade ao corregedor, que, entusiasmado com a minha
perícia, quis ver-me; mas eu, por ser humilde, não quero tratar com pessoas tão
importantes; procurei não me avistar com êle e, assim, saí da cidade com tanta
pressa que não tive tempo de me munir de montaria, nem de dinheiro, nem de
carruagem, nem ao menos de uma carrêta.
- Esqueçamos isso - disse Rincón -, e, já que nos conhecemos, não há razão
para grandezas nem altivez; confessemos francamente que não tínhamos nem
dinheiro nem sapatos.
- Está bem - respondeu Diego Cortado, pois assim disse chamar-se o mais
jovem -, e uma vez que nossa amizade, como vosmecê mesmo disse, Seu
Rincón; há de ser eterna, vamos começá-la com santas e louváveis cerimônias.
Levantando-se, Diego Cortado abraçou Rincón; Rincón o abraçou, terna e
fortemente, e ambos puseram-se logo a jogar o vinte-e-um com as referidas
cartas, limpos do pó e da palha, mas não da graxa e da malícia, e, com poucas
jogadas, Cortado tirava tão bem o ás quanto Rincón, seu mestre.
Nisto, um arrieiro chegou ao alpendre para refrescar-se e pediu para ser o
terceiro no Ago. Receberam-no amigàvelmente e em menos de meia hora
ganharam-lhe 12 reais e 22 maravedis, e foi o mesmo que lhe dar doze golpes e
22.000 desgostos. Acreditando o arrieiro que, por serem êles jovens, não se
defenderiam, quis tirar-lhes o dinheiro, mas êles, passando um a mão na
pequena espada e outro na faca de cabo amarelado, deram-lhe tanto o que fazer
que, se os seus companheiros não acudissem, sem dúvida alguma teria passado
mal.
Neste momento, passou casualmente pelo caminho um bando de viajantes
a cavalo, que iam fazer a sesta na taberna do Alcalde, que ficava meia légua
mais adiante; êstes, vendo a briga do arrieiro com os rapazes, apaziguaram-nos,
dizendo aos últimos que, se por acaso fôssem a Sevilha, poderiam ir com êles.
- Vamos para lá, sim - disse Rincón -, e serviremos aos senhores em tudo
quanto nos ordenarem.
Sem perda de tempo saltaram os dois à frente das mulas e foram-se com
êles, deixando o arrieiro agravado e enfurecido e a estalajadeira admirada com
a astúcia dos mandriões, pois estivera ouvindo a conversa sem que êles isto
percebessem; quando disse ao arrieiro que os tinha ouvido dizer serem falsos os
naipes que traziam, pôs-se êle a arrancar as barbas e queria ir à taberna atrás
dêles para cobrar o que era seu, porque dizia ser afronta muito grande e não ter
cabimento dois rapazes enganarem um homenzarrão tão grande quanto êle.
Seus companheiros aconselharam-no que não fôsse para não tornar pública sua
falta de habilidade e parvoíce. Mostraram-lhe, enfim, tais razões, que, se não o
consolaram, pelo menos o obrigaram a ficar.
Enquanto isso, Cortado e Rincón puseram-se a servir os viajantes com
tanta solicitude, que pelo resto do caminho êles os levaram à garupa e, ainda
que se lhes oferecessem algumas ocasiões de tocar as valises de seus quase
amos, não quiseram, para não perder a tão boa oportunidade de ir a Sevilha,
onde tanto desejavam estar. Contudo, à entrada da cidade, o que se verificou à
hora das aves-marias, e pela porta de Adriana, por causa do registro e da taxa
que se paga, Cortado não pôde deixar de cortar a bôlsa de couro que um francês
trazia prêsa ao flanco do animal, e assim, com sua faca, fêz-lhe um talho tão
comprido e profundo que deixava à mostra as entranhas, e ràpidamente tirou
dali duas boas camisas, um relógio de sol e um livrinho de notas, coisas de que
não gostaram muito, pensando que se o francês levava aquela maleta às costas
não haveria de tê-la ocupado com tão pouco pêso como era o daquelas “jóias”, e
quiseram voltar para dar-lhe outro golpe; não o fizeram, entretanto, ao
imaginar que já teriam notado a falta dela e pôsto a salvo o que ficara.
Tinham-se despedido antes de assaltar aquêles que até então os haviam
sustentado; no outro dia venderam as camisas em uma barraca que existe fora
da porta do arsenal, obtendo com a venda 20 reais. Feito isto, foram ver a
cidade e admiraram-se com a grandeza e a suntuosidade de sua maior igreja,
com a grande afluência do pessoal do rio, porque era tempo do carregamento
da frota, e com a presença de seis galeras, cuja vista os fêz suspirar e recear
também o dia em que suas culpas os haveriam de fazer morar nelas por tôda a
vida. Viram os inúmeros rapazes da estiva, que ali andavam, perguntaram a
um dêles que espécie de ofício era aquêle, se era muito trabalhoso e se era
lucrativo. Um rapaz asturiano, a quem, aliás, fizeram a pergunta, respondeu
que o serviço era folgado, que não se pagava impôsto e que em certos dias saía
ganhando 5 ou 6 reais de lucro, podendo comer, beber e repousar como um rei,
sem ter de dar satisfação a ninguém e certo de comer à hora que bem
entendesse, pois em qualquer bodega da cidade, a qualquer hora, podia
encontrar alimento.
Os dois amigos não acharam má a informação do jovem nem desgostaram
da profissão, por parecer-lhes que vinha de encontro às suas intenções de
agirem livremente e também pela comodidade que oferecia de poder entrar em
tôdas as casas; imediatamente resolveram comprar os utensílios necessários e,
tendo perguntado ao asturiano o que precisavam comprar, souberam que
precisavam de dois sacos pequenos, limpos ou novos, e três cêstos de palha
para cada um, dois grandes e um pequeno, nos quais se distribuíam a carne, o
pescado e a fruta, deixando o saco para o pão; o rapaz levou-os onde se
vendiam tais utensílios; êles, do dinheiro tirado ao francês, compraram tudo e,
dentro de duas horas, enquanto provavam os cestos e ajustavam os sacos às
costas, eram empossados na nova profissão. Seu chefe indicou-lhes os lugares a
que deviam atender:
pelas manhãs ao açougue e à Praça de São Salvador; nos dias de pescado,
à peixaria e à Costanilha; tôdas as tardes, ao rio; nas quintas-feiras, à feira.
Aprenderam de cor a lição e no outro dia, bem cedinho, plantaram-se na
Praça de São Salvador; nem bem chegaram foram rodeados por outros rapazes
da mesma profissão, que, pelo brilho dos sacos e dos cêstos, viram logo serem
êles novos na praça; fizeram-lhes mil perguntas, às quais respondiam com
discrição e mesuras. Nisto chegaram um estudante, um soldado e uns
encarregados da limpeza dos cêstos dos dois novatos; o que parecia estudante
chamou Cortado e o soldado chamou Rincón.
- Que Deus seja louvado - disseram ambos.
- Para que eu comece bem na profissão - disse Rincón - é necessário que
vosmecê estréie, meu senhor.
Ao que o soldado respondeu:
- A estréia não será má porque estou de sorte, porque estou enamorado e
porque tenho de banquetear umas amigas de minha senhora.
- Pois sirva-se à vontade, que eu tenho ânimo e fôrças para levar esta praça
inteira e, se fôr necessário ajudá-lo a cozinhar, eu o farei de bom grado.
Alegrou-se o soldado com a boa vontade do rapaz e disse-lhe que se êle
quisesse poderia tirá-lo daquele serviço horrível; Rincón respondeu que era
aquêle seu primeiro dia na profissão e não queria deixá-la assim tão depressa,
até ver, pelo menos, o que teria ela de bom ou de mau e que, quando se
aborrecesse, dava-lhe sua palavra de que preferia servi-lo a ter de servir um
cônego.
O soldado riu-se, pagou-o muito bem, mostrou-lhe a casa da namorada
para que daí em diante soubesse onde ela ficava e para que êle não precisasse
acompanhá-lo quando o enviasse de outra vez. Rincón prometeu-lhe fidelidade
e bom tratamento; o soldado lhe deu 3 quartos (Quarto: Antiga moeda espanhola
de cobre que valia 4 maravedis de tosão, ou seja, três centésimos de peseta.) e êle,
ràpidamente, voltou à praça para não perder outras oportunidades, porque o
asturiano lhe recomendara mais êste cuidado, dizendo-lhes ainda que, quando
levassem peixe miúdo, isto é, bogas, sardinhas ou linguado, podiam tomar
alguns e deixá-los como amostra naquele dia, mas que o fizessem com tôda a
sagacidade e atenção, a fim de não se perder o crédito, que era o que mais
importava neste trabalho.
Por mais depressa que Rincón voltasse, já encontrou Cortado a postos.
Cortado chegou-se a Rincón e perguntou-lhe como se tinha saído; Rincón abriu
a mão e mostrou-lhe as três moedas.
Cortado pôs a sua no peito e tirou uma bolsinha que demonstrava ter sido
de âmbar em tempos atrás e que estava um tanto estufada. Disse êle:
- Pagou-me o estudante com esta bôlsa e mais 2 quartos; pega-a, Rincón.
Mal havia dado secretamente a bôlsa, quando o estudante voltou,
transpirando e profundamente perturbado. Avistando Cortado, perguntou-lhe
se por acaso não teria êle visto uma bôlsa pequena, côr de âmbar, com 15
escudos de ouro, 3 reais e muitos maravedis, que êle havia perdido,
perguntando-lhe ainda se êle não a teria tomado, enquanto êle fazia as compras.
Cortado, com singular dissimulação, respondeu-lhe sem perturbar-se:
- Só sei dizer que esta bôlsa não deve estar perdida, se é que vosmecê a
pôs em lugar seguro.
- É isso, pobre de mim - respondeu o estudante -, não devo tê-la guardado
bem, pois a roubaram.
- É o que digo - falou Cortado -, mas para tudo há remédio, só para a
morte que não, e a primeira coisa que vosmecê tem a fazer é ser paciente, pois
nada há como um dia após o outro, e pode ser que, com o tempo, quem levou
sua bôlsa venha a arrepender-se e a devolvê-la a vosmecê ainda mais recheada.
- Isto seria o de menos - respondeu o estudante.
Cortado prosseguiu:
- Ainda mais que há o perigo de excomunhão e uma fiscalização severa, o
que, aliás, é uma grande sorte e, para dizer a verdade, eu não queria ser o
ladrão de tal bôlsa, porque se vosmecê pertence a alguma ordem sacra me
parecia ter cometido grave incesto ou sacrilégio.
- E que sacrilégio! - disse o aflito estudante -, pois, embora não seja eu um
sacerdote, sou sacristão de umas monjas; o dinheiro da bôlsa era do têrço de
uma fundação religiosa, que um sacerdote meu amigo pediu para cobrar, e é
um dinheiro sagrado, bendito.
- Cada um sabe o que faz - disse Rincón a essas alturas. Eu não imitaria tal
ganância; há de chegar um dia em que tudo será pôsto em pratos limpos e então
veremos o poder da justiça e conheceremos o indivíduo que se atreveu a tomar,
a furtar, a menoscabar o têrço da capelania. E quanto rende por ano?
Vamos lá, diga-me, senhor sacristão.
- Rende a puta que te pariu! Eu tenho lá obrigação de dizer o que rende? respondeu o sacristão, enfurecido. - Dizei-me, amigo, se sabeis algo a respeito,
se não ficai com Deus, que eu quero dar parte à polícia.
- Esta decisão não me parece de todo má - disse Cortado -, mas que
vosmecê tome cuidado, para não se esquecer das características da bôlsa, nem
da quantidade exata do dinheiro que há dentro dela, porque se vosmecê
esquece de 1 ceitil, nunca mais a achará, escute o que lhe digo.
- Não seja por isso - respondeu o sacristão -, que eu tenho tudo gravado na
memória, mais do que o próprio tocar dos sinos; não me esquecerei de nada.
Tirou da algibeira um lenço rendado para limpar o suor que lhe escorria
do rosto, em bicas; Cortado, logo que viu o lenço, achou que deveria pertencerlhe; o sacristão partiu, Cortado correu atrás dêle e o alcançou ali nas Gradas,
chamou-o a um canto e começou-lhe a dizer tantos disparates e mentiras acêrca
do roubo e do achado de sua bôlsa, dando-lhe grandes esperanças sem jamais
concluir nada, que o pobre sacristão o escutava embevecido e, como não
entendesse muito bem, fazia Cortado repetir-lhe os argumentos por duas ou
três vêzes. Cortado observava-o atentamente e não tirava os olhos de seus
olhos; o sacristão olhava-o da mesma maneira, prêso às suas palavras. Tal
embevecimento permitiu a Cortado concluir sua obra; tirou-lhe sorrateiramente
o lenço da algibeira e, despedindo-se dêle, disse-lhe que, à tarde, procurasse vêlo naquele mesmo lugar, pois desconfiava de que um rapaz de sua profissão, de
seu tamanho e que era meio ladrãozinho lhe tivesse roubado a bôlsa, comprometendo-se êle a descobrir a verdade, dentro de poucos ou de muitos dias.
O sacristão consolou-se um pouco e despediu-se de Cortado; êste voltou
para onde estava Rincón, que tudo observara a distância; mais abaixo havia
outro rapaz, que presenciou o fato e, enquanto Cortado dava o lenço a Rincón,
aproximou-se dêles e disse-lhes:
- Digam-me, caros senhores, vosmecês são de boa paz ou não?
- Não entendemos, caro senhor - respondeu Rincón.
- O que não entenderam, seus múrcios? - perguntou o outro.
- Não somos de Tebas nem de Múrcia - disse Cortado. Se quer alguma
coisa, diga logo, se não, vá com Deus.
- Não entende? - perguntou o rapaz. - Pois eu me farei entender e lhes
darei, para beber, uma colher de chá; quero dizer, senhores, se vosmecês, por
acaso, não são ladrões. Mas nem sei por que lhes pergunto isso, pois já sei que o
são. E digam-me: por que não foram à alfândega do Senhor Monipódio?
- Paga-se, nesta terra, impôsto de ladrão, caro senhor? perguntou Rincón.
- Se não se paga - respondeu o rapaz -, pelo menos registra-se com o
Senhor Monipódio, que é pai, mestre e amparo dos ladrões e, portanto,
aconselho-os a virem comigo para prestar-lhe obediência; não se atrevam a
furtar sem o seu consentimento, pois lhes custará muito caro.
- Eu pensei - disse Cortado - que furtar era profissão liberal, isenta de
contribuições e de impostos, e, caso fôsse paga, haveria de ter como fiadores
apenas a garganta e as costas, mas já que é assim, e que cada terra tem seu uso,
vamos respeitar o uso desta, que, por ser a mais importante do mundo, terá o
mais correto de todos os usos; portanto, pode vosmecê guiar-nos até êste
cavalheiro a quem se refere, pois já sei que, de acôrdo com o que ouvi dizer, êle
é homem de classe, generoso e, além do mais, mestre no ofício.
- E como é de classe, hábil e competente - respondeu o rapaz -, e tanto que
em quatro anos de serviço como nosso chefe e pai apenas quatro padeceram no
finibusterrae (Finibusterrae: Fôrca.), cêrca de trinta foram açoitados e 62 foram
para as galeras.
- Na verdade, senhor - disse Rincón -, entendemos muito bem o
significado destas palavras.
- Vamos andando que pelo caminho irei enumerando outras que os
senhores devem conhecer como conhecem a palma da mão - replicou o jovem. E
assim foi-lhes dizendo e explicando outras palavras pertencentes àquilo que
êles costumam chamar de gíria ou calão, ao longo de sua conversa, que não foi
curta, pois o caminho era longo. Rincón, por sua vez, dirigiu-se ao guia:
- É vosmecê, porventura, um ladrão?
- Sim - respondeu êle -, para servir a Deus e às pessoas de bem, embora eu
não seja dos melhores, porque ainda estou em início de carreira.
Ao que Cortado retrucou:
- Para mim é novidade que haja no mundo ladrões para servir a Deus e às
pessoas de bem.
- Caro senhor, não entendo muito bem de teologia; só sei que cada um, em
sua profissão, pode servir a Deus, ainda mais com as instruções dadas por
Monipódio a todos os seus afilhados, - Essas instruções, sem dúvida alguma,
hão de ser boas e santas, pois fazem os ladrões servirem a Deus - disse Rincón.
- São tão santas e boas - replicou o môço - que talvez não haja nada a
melhorar em nossa arte. Recebemos ordem de tirar, do que roubamos, alguma
coisa ou esmola para o azeite da lâmpada de uma imagem milagrosa que está
na cidade, e temos realmente recebido grandes graças por esta obra; dias atrás,
deram três ansias a um cuatrero, que havia passado os cinco em dois roznos,
que, mesmo estando fraco e acabado, agüentou sem reclamar, como se nada
fôsse; e isto, nós, de nosso ofício, atribuímos à sua devoção, porque suas fôrças
não eram suficientes para sofrer o “primeiro trabalho” do verdugo. E porque sei
que me hão de perguntar o significado de algumas de minhas palavras, quero
explicá-las, para evitar complicações. Saibam vosmecês que cuatrero é o ladrão
de cavalos, ansia é a tortura, roznos são os asnos, com o perdão da palavra,
“primeiro trabalho” são as primeiras lambadas ministradas pelo verdugo.
E temos mais: rezamos nosso têrço em certos dias da semana e muitos de
nós não furtam às sextas-feiras, nem conversam com mulheres que se chamam
Maria aos sábados.
- São verdadeiras preciosidades - disse Cortado -, mas diga-me vosmecê:
costumam-se restituir as coisas roubadas ou fazer outra penitência além da que
vosmecê já citou?
- Isso de restituir é caso encerrado - respondeu o jovem.
- A restituição é impossível uma vez que a prêsa é dividida em muitas
partes e cada um dos ministros, cada um dos contra-mestres leva seu quinhão;
o ladrão nada pode restituir, ainda mais porque não há quem nos mande fazer
tal coisa, motivo pelo qual jamais confessamos; em caso de excomunhão, não
tomamos conhecimento, porque nunca vamos à igreja, no tempo em que as
excomunhões são tornadas públicas; só vamos lá nos dias de festa, pela cobiça
que nos desperta a afluência de muita gente.
- E com tudo isto que fazem, êstes senhores dizem que sua vida é santa e
boa? - perguntou Cortado.
- Pois então, o que há de mal nisso? - replicou o jovem.
- Não é pior ser herege ou renegado ou matar pai e mãe ou ser solomico?
- Sodomita quer vosmecê dizer - atalhou Rincón.
- Pois é - disse o jovem.
- Tudo é mau - replicou Cortado. - Mas, se a sorte quer que façamos parte
desta confraria, que vosmecê aperte o passo, pois morro de vontade de me
avistar com o Senhor Monipódio, a quem se atribuem virtudes.
- Seu desejo será logo satisfeito, pois daqui já se avista a casa dêle.
Vosmecês fiquem na porta que eu entrarei para ver se êle está desocupado,
porque a estas horas êle costuma dar audiência.
- Chegamos em boa hora - disse Rincón.
O môço, adiantando-se um pouco, entrou numa casa feia e de aparência
suspeita; e os dois ficaram junto à porta esperando.
Pouco depois, o rapaz voltou e os chamou; êles entraram e seu guia
mandou-os esperar em um pequeno pátio ladrilhado, que, de tão perfeito e
limpo, parecia exalar o mais fino carmim. De um lado havia um banco de 3 pés
e do outro um cântaro desbeiçado, com um pequeno jarro em cima, tão
desbeiçado quanto o cântaro; em outro lugar, havia uma esteira e no meio um
vaso de manjericão, que, em Sevilha, é conhecido por macela.
Os rapazes olharam atentamente tais preciosidades, esperando a descida
do Senhor Monipódio, mas, como êle tardasse, Rincón atreveu-se a entrar em
uma sala baixa, uma das duas pequenas salas que existiam no pátio, e viu nela
duas espadas, dois escudos de cortiça, dependurados em quatro pregos, uma
arca mais ou menos grande, sem tampa ou coisa alguma que a cobrisse, e três
outras esteiras espalhadas pelo chão. Na parede da frente, havia uma imagem
de Nossa Senhora, muito malfeita; mais abaixo, uma alcôfa de palma e,
embutida na parede, uma bacia branca, pela qual deduziu Rincón que a alcôfa
servia como depósito para esmolas e a bacia para pôr água benta, e de fato
assim o era.
Nisto, entraram na casa dois jovens de uns vinte anos, vestidos como
estudantes; logo depois, entraram dois rapazes da estiva e um cego; sem dizer
uma palavra, começaram êles a passear pelo pátio. Não demorou muito,
entraram dois velhos de baeta e de óculos, que os tornavam sérios e dignos de
serem respeitados, com dois rosários de contas barulhentas nas mãos. Atrás
dêles entrou uma velha, cheia de saias, que, sem dizer nada, foi à sala e, tendo
tomado água benta, pôs-se, com grande devoção, de joelhos ante a imagem e,
ao fim de um bom espaço de tempo, depois de beijar três vêzes o chão, de
levantar os braços e os olhos para o céu outras tantas vêzes, levantou-se e
deixou sua esmola na alcôfa e foi juntar-se aos demais no pátio. Em suma, em
pouco tempo, juntaram-se no pátio umas catorze pessoas com diferentes trajes e
de diferentes profissões. Chegaram também, entre os últimos, dois jovens fortes
e estranhos, de bigodes longos, chapéus de aba larga, colarinhos à moda dos
valões; meias de côr, ligas mal-ajambradas, espadas de diferentes marcas, dois
pistoletes em lugar de adagas e com escudos dependurados na cintura; logo
que entraram, olharam Rincón e Cortado, de esguelha, à maneira de quem
estranha e não conhece. Chegando-se a êles, perguntaram-lhes se pertenciam à
confraria.
Rincón respondeu que sim e que era um criado para os servir. Nisto
desceu o Senhor Monipódio, tão esperado e benquisto de tôda aquela virtuosa
confraria. Parecia ser um homem de 45 a 46 anos, alto, de rosto moreno, de
sobrancelhas cerradas, de barba negra e espêssa; os olhos eram fundos. Estava
em mangas de camisa, que, um pouco aberta na frente, deixava à mostra uma
verdadeira floresta, tão grande era a quantidade de pêlos que lhe cobriam o
peito. Às costas, uma capa de baeta que quase chegava aos pés, nos quais havia
uns sapatos que mais pareciam chinelas; cobriam-lhe as pernas uns calções de
cânhamo, largos e que iam até o tornozelo; seu chapéu era como são os chapéus
de todos os malandros: bojudo e de aba caída; usava um talim a tiracolo, de
onde pendia uma espada curta e larga, como se fôsse uma serrinha; as mãos
eram pequenas, peludas, e os dedos, gordos; as unhas, finas e arrebitadas; as
pernas não apareciam, mas os pés eram descomunais, por serem largos e
possuírem joanetes. Para dizer a verdade, representava êle o mais rústico e
disforme bárbaro do mundo. A seu lado desceu também o guia de Rincón e
Cortado, que, tomando-os pelas mãos, apresentou-os a Monipódio, dizendolhe:
- Estes são os dois jovens dos quais lhe falei, Seu Monipódio; se vosmecê
os examinar, verá como são dignos de entrar na nossa congregação.
- Eu o farei com prazer - respondeu Monipódio.
Esquecia-me de dizer que, assim que Monipódio desceu, todos os que
esperavam fizeram-lhe profunda e demorada reverência, com exceção dos dois
bravos jovens, que, com um sorriso amarelo, como se diz, deixaram os chapéus
e voltaram logo a seu passeio em um dos lados do pátio; pelo outro lado
passeava Monipódio, que perguntou aos novatos qual era sua especialidade, de
que lugar vinham e quem eram seus pais.
Ao que Rincón respondeu:
- Sôbre nossa especialidade, nada tenho a dizer, pois viemos perante
vosmecê; quanto à nossa terra, não me parece importante falar dela; de nossos
pais, muito menos, pois não se trata de dar informações para receber nenhum
cargo honroso.
Respondeu Monipódio:
- Você está certo, meu filho; faz muito bem em não prestar estas informações, porque se a sorte não correr como deve não fica bem aparecer assentado
debaixo da assinatura do escrivão, nem do livro de registros: “Fulano, filho de
Fulano, vindo de tal lugar, foi enforcado dia tal, ou foi açoitado”, ou qualquer
outra coisa semelhante, que soe mal aos bons ouvidos, e assim, torno a dizer
que é muito proveitoso não falar sôbre a pátria, encobrir o nome dos pais e
mudar os próprios nomes, ainda que aqui entre nós não há de haver nada
encoberto e somente agora quero saber os nomes dos dois.
Rincón disse o seu e Cortado também.
- Pois daqui por diante - falou Monopódio -, quero e é de minha vontade
que você, Rincón, se chame Rinconete e você Cortado, Cortadilho, nomes feitos
sob medida para suas respectivas idades e para nossos estatutos, de acôrdo com
os quais é necessário saber o nome dos pais de nossos confrades, porque é
nosso costume mandar rezar, todo ano, umas missas pelas almas de nossos
defuntos e benfeitores, tirando o estupendo para a esmola de quem as diz de
alguma parte do que se afana; diz-se que tais missas, rezadas e pagas,
beneficiam tais almas por meio de um naufrágio (Naufrágio: Sufrágio.) e ficam
sob as ordens de nossos benfeitores o procurador que nos defende, o beleguim
que nos avisa, o verdugo que de nós tem pena, aquêle que, quando um de vós
vai fugindo pela rua e outros o vão seguindo e gritando: “Ao ladrão, ao ladrão!
Pega, pega!”, se põe no meio, se mistura com a multidão que o segue dizendo:
“Deixem-no à própria sorte, que já é bastante desventurado! Deixem-no para lá,
que seu pecado o castigue!” São também nossas benfeitoras aquelas que, com
seu suor, nos socorrem tanto na guerra como na paz, e também o são nossos
pais e mães, que nos põem no mundo, e o escrivão, que, se está de boa veia, não
há delito que êle considere culpa, nem culpa à qual êle atribua grande pena; por
todos êstes, nossa irmandade festeja, cada ano, seu adversário (Adversário:
Aniversário.) com a maior popa (Popa: Pompa.) e soledade (Soledade: Solenidade.)
que pode.
- Sem dúvida - disse Rinconete, já conformado com o apelido - é uma obra
digna do altíssimo e profundíssimo engenho que temos ouvido dizer que
vosmecê, Senhor Monipódio, possui. Mas nossos pais ainda gozam de boa
saúde e, se os encontrarmos ainda com vida, comunicaremos logo a felicíssima
e medianeira confraria, para que faça por suas almas um naufrágio ou
tormenta, ou êsse adversário ao qual vosmecê se refere, com a solenidade e
pompa habituais, se é que não é melhor com popa e soledade, como também
apontou vosmecê, em sua exposição
- Assim será ou não sobrará nada de mim - replicou Monipódio. E,
chamando o guia, disse-lhe:
- Ganchuelo, vem cá. Estão todos a postos?
- Sim - disse o guia, que se chamava Ganchuelo. – Os sentinelas estão de
ôlho e não há perigo de ninguém nos colher desprevenidos.
- Mas, voltando ao nosso negócio - disse Monipódio - queria saber, filhos,
o que vocês sabem para distribuir-lhes ofício e atividades de acôrdo com as
respectivas inclinações e habilidades.
- Eu - respondeu Rinconete - sei passar muito bem conversa nos outros,
modéstia à parte, sei explorar a vaidade, faço qualquer jôgo muito bem,
ninguém me vence na trapaça, na astúcia e nas fanfarronadas; enfrento o
perigo como se nada fôsse, sei aproveitar das oportunidades melhor do que
ninguém e sou capaz de dar um golpe no sujeito mais esperto.
- É um bom comêço - disse Monipódio -, mas tôdas estas coisas são do
tempo da minha avó; são tão usadas que qualquer principiante as conhece e
servem para os trouxas que se deixam matar, sem essas nem aquelas, mas
vamos dar tempo ao tempo e então veremos; espero que, com meia dúzia de
aulas e com a ajuda de Deus, o senhor se faça um oficial famoso; quem sabe, um
mestre.
- E tudo isso para servir a vosmecê e aos caros colegas - respondeu
Rinconete.
- E você, Cortadilho, o que sabe? - perguntou Monipódio.
- Eu - respondeu Cortadilho - conheço aquela trapassa do põe dois e tira
cinco e sei esvaziar uma algibeira com muita precisão e rapidez.
- Que mais sabe vosmecê? - perguntou Monipódio.
- Nada mais, para minha infelicidade - respondeu Cortadilho.
- Não se aflija, meu filho - replicou Monipódio -, porque você bateu em
porta certa; haverá de sair daqui bem escolado para aquilo que tiver maior
vocação. E a coragem, filhos, como vai?
- E como haveria de ir? - falou Rinconete. - Muito bem, Temos coragem
para tentar qualquer emprêsa que diga respeito à nossa arte e atividade.
- Está bem - disse Monipódio -, mas eu queria que vocês tivessem coragem
para agüentar, se fôsse preciso, meia dúzia de lambadas, sem abrir a bôca e sem
dizer um ai.
- Já sabemos - disse Cortadilho -, e temos coragem para tudo, e não somos
tão ignorantes a ponto de não saber que a língua é o chicote do corpo e grandes
graças concede o céu aos homens ousados, deixando que a língua decida sôbre
sua vida e morte. Como se um não tivesse mais letras que um sim!
- Basta! Chega! Não fale mais nada - disse Monipódio a essas alturas. Estas últimas palavras já me convenceram e já me obrigam, persuadem-me e me
forçam a aceitá-los, desde logo, como confrades graduados e elevá-los ao
noviciado.
- Eu também sou dêste parecer - disse um daqueles bravos.
Todos os presentes que tinham escutado a conversa aprovaram-nos a uma
só voz e pediram a Monipódio que permitisse aos recém-chegados gozarem das
imunidades da confraria, porque sua presença agradável e suas declarações
bem que faziam jus a isso. Respondeu Monipódio que, para agradar a todos,
consentia, convidando, porém, os rapazes a estimá-las bastante porque consistiam em não pagar a metade do primeiro furto que fizessem; não fazer serviços
pequenos durante o ano todo, ou seja, não levar arrecadação de nenhum irmão
superior ao cárcere, nem à casa, da parte de seus contribuintes, beber vinho
puro, fazer banquetes quando, como e onde quisessem, sem pedir licença ao
chefe; ter direito, desde logo, como qualquer um dêles, a uma parte do que os
irmãos superiores embolsassem e outras coisas mais que êles consideravam
como especial deferência e os outros, com palavras corteses, agradeceram
muito.
Neste momento, entrou, correndo e ofegante, um rapaz que disse:
- O aguazil dos vagabundos está a caminho desta casa, mas vem sem o
bando.
- Que ninguém se afobe - disse Monipódio -, pois é amigo e jamais veio
para nos prejudicar. Fiquem sossegados que eu irei falar com êle.
Todos os que já estavam um tanto sobressaltados acalmaram-se; Monipódio dirigiu-se para a porta, onde encontrou o aguazil, com o qual falou um
pouco, entrando logo a seguir para perguntar:
- A quem coube hoje a Praça de São Salvador?
- A mim - disse o rapaz que servira de guia a Rinconete e Cortadilho.
- E por que - perguntou Monipódio - não me mostrou a bolsinha de âmbar
que você surrupiou lá esta manhã, com 15 escudos de ouro, 2 duplos reais e não
sei lá quantos quartos?
- É verdade - disse o guia - que esta bôlsa desapareceu hoje, mas não fui eu
quem a roubou, nem posso imaginar quem a tenha roubado.
- Não me venha com mentiras - disse Monipódio. - Á bôlsa tem de aparecer, pois quem a vem pedir é o nosso amigo aguazil, que nos faz mil e tantos
favores por ano!
O rapaz tornou a jurar que nada sabia a respeito. Monipódio começou a
ficar com raiva e seus olhos pareciam lançar chispas de fogo.
- Que ninguém se atreva a transgredir a mínima coisa de nossa ordem,
pois pagará com a vida. Que trate logo de mostrar a bôlsa e, se por acaso está se
escondendo para não pagar os impostos, eu lhe darei, inteirinha, a parte que lhe
toca, e o que falta tirarei de meu bôlso, porque de qualquer maneira o aguazil
tem de sair contente daqui.
O rapaz tornou a protestar sua inocência e a se maldizer, dizendo que não
havia roubado nem visto a tal bôlsa, mas o que conseguiu foi apenas aumentar
a cólera de Monipódio e permitir que a confraria se alvoroçasse, ao ver que se
rompiam seus estatutos e leis.
Rinconete, porém, vendo tanta altercação e alvoroço, achou que seria bom
sossegá-los e agradar ao chefe, que se arrebentava de raiva; consultando seu
amigo Cortadilho, entrou em acôrdo com êle, e tirou a bôlsa roubada ao
sacristão, dizendo:
- Vamos encerrar a questão, meus senhores, aqui está a bôlsa, sem faltar
nada do que o aguazil declarou; hoje, meu amigo Cortadilho apanhou-a,
juntamente com êste lenço, tirado ao mesmo dono.
Cortadilho tirou o lenço e o mostrou ràpidamente. Monipódio, vendo-o,
disse:
- Cortadilho, o bom - pois com êsse título e apelido há de ficar, daqui em
diante -, fique com o lenço e aceite os meus cumprimentos pelo serviço
prestado; a bôlsa o aguazil vai levar, pois é de um sacristão, seu parente, e
convém pôr em prática o que diz o ditado: “Não é muito dar uma perna de
galinha a quem te deu uma galinha inteira”. Mas perdoe o nosso amigo aguazil,
pois não podemos e nem costumamos exigir nada dêle.
Todos, de comum acôrdo, aprovaram a fidalguia dos dois novatos, a
sentença e a opinião de seu chefe, que saiu para dar a bôlsa ao aguazil;
Cortadilho ficou com o cognome de “Bom” tal como se fôsse Dom Alonso Pérez
de Gusmá, o Bom, que atirou uma faca pelas muralhas de Tarifa, para degolar
seu único filho.
Monipódio voltou e com êle entraram duas môças, pintadas, de lábios
pintados e de peito branco como alvaiade, cobertas com mantos de anascote,
desembaraçadas e sem nenhuma cerimônia, sinal evidente de que eram
mulheres de vida fácil; assim o julgaram Rinconete e Cortadilho e de fato não se
enganaram; logo que entraram dirigiram-se, de braços abertos, uma em direção
de Chiquiznaque e a outra na direção de Mão-de-Ferro, pois eram êstes os
nomes dos dois valentes; um chamava-se Mão-de-Ferro porque uma de suas
mãos era de ferro, que a outra fôra cortada por ordem da justiça. Êles as
abraçaram com grande alegria e perguntaram-lhes se traziam algo com que
pudessem molhar a goela.
- Pois não havia de trazer, meu pilantra? - respondeu a que se chamava
Gananciosa. - Não tardará a chegar Silbatilho, teu criado, com as cubas de
vinho, cheias do que Deus bem quis.
E era verdade, porque naquele mesmo instante entrou um rapaz com uma
cuba de vinho, coberta com um pano.
Todos alegraram-se com a chegada de Silbato e, então, Monipódio
mandou tirar uma das esteiras que estavam no aposento e estendê-la no meio
do pátio. Ordenou também que todos sentassem ao redor, porque, passada a
raiva, tratar-se-ia de assuntos de interêsse geral. Nisto, a velha que tinha rezado
ao pé da imagem disse:
- Meu filho Monipódio, não tenho disposição para festas porque estou, há
dois dias, com uma tontura que me deixa louca; ainda mais que, antes de ser
meio-dia, tenho de ir cumprir minhas devoções e devo acender minhas velas a
Nossa Senhora das Águas e ao Santo Crucifixo de Santo Agostinho, o que não
deixaria eu de fazer mesmo que nevasse e armasse uma tempestade.
Vim porque, à noite, Renegado e Cem Pés levaram à minha casa uma cuba
de vinho bem maior do que esta, cheia de roupa branca, e juro por Deus e por
minha alma que vinha com sua barrela e os pobrezinhos não tinham onde
deixá-la; vinham suando por todos os poros e dava dó vê-los entrar, arquejantes
e escorrendo tanta água pelo rosto que pareciam uns anjinhos. Disseram-me
que iam ao encalço de um negociante de gado, que tinha pesado alguns
carneiros no açougue, para ver se podiam passar a mão em uma burra, cheia de
dinheiro, que êle levava. Não desembrulharam nem contaram a roupa,
confiando na integridade de minha consciência e, assim, que Deus testemunhe
minha boa intenção e nos livre a todos de cometer injustiças, pois eu não toquei
na roupa, estando ela tal como chegou.
- Acreditamos piamente, mamãe - falou Monipódio - que a cuba assim
permaneça; pois à noitinha irei lá e verei tudo o que ela contém e darei a cada
um o que lhe tocar, como é meu costume.
- Será como ordenas, filho - disse a velha -, e, como está ficando tarde para
mim, dá-me um traguinho, se é que tens para consolar meu estômago; que anda
sempre fraco.
- Mas é claro, mamãe - disse por sua vez Escalanta, companheira que com
ela viera.
E, descobrindo a cesta, deixou à mostra um odre com 30 litros de vinho e
uma caneca que podia conter bem uns 2 li tros; Escalanta encheu-a e a pôs nas
mãos da dedicadíssima velha, que, segurando-a com ambas as mãos e depois de
assoprar um pouco a espuma, disse:
- Puseste muito, minha filha, mas Deus me dará fôrças para beber tudo.
E, levando-a à bôca, passou, de uma só vez, sem tomar fôlego, o vinho da
caneca para o estômago.
- É de Guadalcanal - disse, e ainda tem um não-sei-quê de gôsto de barro,
o danado. Que Deus te abençoe, minha filha, pois me reconfortaste; eu só tenho
mêdo de que me faça mal, pois ainda não comi.
- Não há de fazer, mãe - falou Monipódio -, porque já tem mais de três
anos.
- Que a Virgem Maria te ouça - disse a velha. E acrescentou:
- meninas, vocês, por acaso, não teriam aí algum dinheiro para eu comprar
umas velinhas para oferecer ao santo de minha devoção? Porque a pressa e a
vontade que tinha eu de trazer as novidades me fizeram esquecer a bôlsa em
casa.
- Tenho sim, Dona Pipota (êste era o nome da velha) - respondeu
Gananciosa. - Tome. Aí tem duas moedas; peço-lhe que compre uma vela pra
mim e ofereça a São Miguel; se der para comprar duas, ofereça a outra a São
Brás, que são meus protetores. Gostaria que oferecesse a outra a Santa Luzia, de
quem sou também devota, porque protege os olhos, mas não tenho trocado;
outro dia pago a dívida a todos.
- Fazes muito bem, filha, e olha, não sejas miserável, porque é muito mais
importante a pessoa oferecer as velas antes de morrer do que esperar que os
herdeiros e testamenteiros as ofereçam.
- A senhora tem razão, mamãe - disse Escalanta. E enfiando a mão na
bôlsa, deu-lhe outra moeda, encarregando-a de oferecer outras duas velinhas
aos santos que ela achasse mais diligentes e agradecidos. E lá se foi a Pipota,
não sem antes dizer:
- Aproveitem agora, filhos, enquanto é tempo, que a velhice logo chega e
então vocês hão de chorar, como eu, o tempo que perderam na mocidade;
recomendem-no a Deus em suas orações, que eu vou fazer o mesmo por mim e
por todos vocês, para que êle nos proteja e mantenha nossa perigosa profissão
sem preocupações com a justiça.
Depois que a velha partiu, sentaram-se todos em volta da esteira; Gananciosa estendeu o lençol, fazendo de toalha; a primeira coisa que tirou da cesta
foi um grande maço de rabanetes, umas duas dúzias de laranja e limão, uma
caçarola grande, cheia de bacalhau frito, a metade de um queijo de Flandres,
uma panela de azeitonas famosas, um prato de camarões, um bom punhado de
caranguejos, com apetitosas alcaparras refogadas com pimentão e três
branquíssimas broas de Guandu. Havia umas catorze pessoas para comer e
nenhuma delas deixou de tirar sua faca de cabo amarelado, com exceção de
Rinconete, que tirou sua pequena espada. Os dois velhos de baeta e o guia
tiveram de tomar vinho na caneca. Mal tinham começado a entrar nas laranjas,
quando uns golpes dados na porta fizeram todos ficar sobressaltados.
Monipódio pediu-lhes que se mantivessem calmos; entrando na sala baixa,
pegando um escudo, passando a mão na espada, chegou à porta e perguntou
com voz tonitroante e assombrosa:
- Quem é?
De fora responderam:
- Sou eu, Senhor Monipódio, não é nada. Sou Tagarote, sentinela da
manhã, e venho para dizer-lhe que Juliana, a Cariharta, vêm aí, tôda desgrenhada e chorosa; parece que lhe aconteceu algum desastre.
Nisto chegou a criatura de quem falavam, soluçando; escutando-a,
Monipódio abriu a porta : mandou Tagarote voltar ao seu pôsto e que, daí por
diante, anunciasse a chegada de alguém com menos estrondo e ruído. Tagarote
respondeu que assim o faria. Aí entrou Cariharta, môça da mesma espécie das
outras e que exercia a mesma profissão. Vinha descabelada, com o rosto todo
inchado, e assim que entrou no pátio caiu desmaiada.
Gananciosa e Escalanta vieram em seu auxílio; desabotoando-lhe o peito,
viram que ela estava cheia de manchas roxas e machucada. Jogaram-lhe água
no rosto e ela voltou a si, dizendo em altas vozes:
- Que a justiça de Deus e do rei caia sôbre aquêle ladrão sem vergonha,
sôbre aquêle covarde gatuno, sôbre aquêle patife piolhento! E eu que o salvei
mais vêzes da fôrca do que os pêlos que tem na cara! Pobre de mim! Vejam com
quem perdi e gastei minha mocidade, a flor dos anos! Com um velhaco
desalmado, delinqüente e incorrigível!
- Acalma-te, Cariharta - falou Monipódio -, estou el aqui para te fazer
justiça. Conta-nos o caso; farei tudo para que sejas vingada; dize-me se êle te
faltou com o respeito; se assim foi e se queres que te vingue, é só falar.
- Mas que respeito? - falou Juliana. - Ao inferno com o respeito! Era mais
fácil um leão respeitar as ovelhas do que êle a mim. Depois do que aconteceu,
poderia eu repartir ainda meu pão com êle e morar sob o mesmo teto? Prefiro
ver devoradas pelos vermes estas carnes, que êle maltratou, como bem podeis
ver.
Levantando as saias acima do joelho, mostrou as pernas cheias de
equimoses.
- Foi assim que me deixou Repolido, aquêle ingrato, a mim, a quem deve
mais que à mãe que o pariu. E por que pensam vocês que êle fêz isso? Teria eu
dado algum motivo? Claro que não! O que fiz foi somente mandar-lhe apenas
24 reais, em lugar dos 30 que êle mandou o rufião Cabrilhas me pedir, pois êle
estava perdendo no jôgo; peço aos céus que o trabalho e o suor que me
custaram êsse dinheiro sirvam para descontar meus pecados. Em troca dêste
favor e bom serviço, acreditando êle ter eu tirado alguma coisa que, lá na sua
imaginação, pensou que eu pudesse ter, levou-me essa manhã ao campo, atrás
da quinta do rei e ali, entre uns olivais, tirou-me a roupa e com uma cinta, sem
dó nem piedade - maldito seja! -, bateu-me tanto que me deixou feito morta;
estas marcas são boas testemunhas do que eu disse.
Tornou a levantar a voz, e pedir justiça; de nôvo, Monipódio e todos os
bravos que ali estavam tornaram a prometer justiça. Gananciosa pegou-lhe a
mão para a consolar, dizendo-lhe que daria, de boa vontade, uma das melhores
jóias que possuía para que seu amado lhe fizesse o mesmo.
- E o digo por querer que saibas, querida Cariharta, se já não o sabes, que
se castiga àquilo que se quer bem e quando êstes velhacos nos batem, açoitam e
dão coices, é porque nos adoram; e cá entre nós, depois que Repolido te bateu e
maltratou, não te fêz nenhuma carícia?
- Como uma? - falou ela chorosa. - Fêz-me um milhão e daria um dedo
para que eu fôsse com êle até sua casa; parece-me também que as lágrimas
quase lhe saltaram dos olhos depois de me haver moído de pancada.
- Eu não duvido - replicou Gananciosa -, e talvez chorasse mesmo de pena
por ver o estado em que te deixou, porque êstes homens, em casos como êste,
dizem não terem culpa quando lhes chega o arrependimento e hás de ver,
minha irmã, como êle vem te buscar antes de sairmos daqui e como vem te
pedir perdão pelo que fêz, sorrindo como um cordeiro.
- Mas aqui por estas portas êste covarde não entra, sem antes fazer uma
penitência pelo delito que cometeu. Por que se atreveu êle a pôr as mãos em
Cariharta, pessoa que em honestidade e ganância pode competir com a própria
Gananciosa que aqui está? Não. Eu não posso mais ter consideração por êle falou Monipódio.
- Ai! - exclamou a estas alturas Juliana. - Não diga Vossa Mercê, Senhor
Monipódio, mal daquele maldito, que, apesar de êle ser tão ruim, eu o quero
com tôdas as fôrças de minha alma; as palavras ditas por Gananciosa, minha
amiga, em favor dêle, fizeram-me voltar à razão e, para dizer a verdade, estou
quase indo atrás dêle.
- Isso não te aconselho - falou Gananciosa -, porque êle vai ficar
convencido, vai fazer-se de rogado e zombar de ti até dizer chega. Acalma-te,
irmã, que mais cedo do que pensas o verás chegar arrependidíssimo, mas, se
não vier, nós lhe escreveremos uma carta com uma porção de desaforos.
- Isso sim - disse Cariharta -, pois tenho mil coisas a dizer-lhe.
- E eu serei o secretário, quando fôr preciso - disse Monipódio. - Não sou
poeta, mas, quando um homem se decide, faz 2.000 versos com a maior
facilidade e, se não saírem bons, tenho um barbeiro, meu amigo, que
completará o que falta a qualquer hora; bom, mas agora vamos tratar de comer,
que depois tudo se arranjará.
Juliana foi tôda contente obedecer à ordem do chefe; assim, tornaram
todos ao seu gaudeamus; num instante chegaram ao fundo da pipa e à bôrra do
odre. Os velhos beberam nine fine; os jovens, abundantemente; as senhoras, à
vontade. Os velhos pediram licença para ir embora; Monipódio a deu logo,
encarregando-os de trazer com tôda a rapidez possível as notícias de tudo o que
julgassem útil para a comunidade. Responderam êles que o faziam com o maior
cuidado e partiram. Rinconete, que era curioso de natureza, pedindo perdão e
licença, perguntou a Monipódio o que faziam na confraria duas pessoas tão
encarnecidas, tão sérias e tão bem afeiçoadas. Respondeu Monipódio que tais
pessoas, em sua gíria e modo de falar, se chamavam ahispones, e que seu
serviço era andar de dia por tôda a cidade, ahispando a casa em que se podia
dar o golpe à noite, e observavam também os que recolhiam dinheiro do
comércio ou da Casa da Moeda, para ver aonde o levavam e onde o punham;
feito isso, calculavam a grossura da parede de tal casa e indicavam o lugar mais
conveniente para se fazer buracos, a fim de facilitar a entrada.
Disse, em suma, que era gente de igual ou maior valor da comunidade e
que, de tudo o que, por seu engenho, se furtava, recebiam a quinta parte, como
acontece com Sua Majestade nos tesouros, e que, com tudo isso, eram homens
dignos de fé, muito honrados, de boa vida e boa fama, tementes a Deus e às
suas consciências e que assistiam a missas todos os dias com singular devoção..
- E há alguns tão modestos, especialmente êsses dois que foram embora,
que se contentam com muito menos do que, segundo nossas leis, lhes toca. Há
outros dois que são beleguins, andam de casa em casa, conhecem as entradas e
as saídas de tôdas elas, na cidade, em quais convém entrar e em quais não
convém.
- Tudo isto é maravilhoso - disse Rinconete -, e gostaria de ser útil em tão
famosa confraria.
- O céu ajuda sempre as boas intenções - disse Monipódio.
Estavam nessa conversa, quando alguém chamou à porta; Monipódio saiu
para ver quem era e de fora respondeu:
- Abra Vossa Mercê, Seu Monipódio, sou eu, Repolido.
Cariharta, ouvindo esta voz, falou bem alto:
- Não abra, Senhor Monipódio; não abra a êsse marinheiro de Tarpéia, a
êsse tigre de Ocanha.
Nem por isso Monipódio deixou de lhe abrir; Cariharta, vendo isso,
levantou-se correndo, entrou na sala dos escudos e, fechando a porta atrás de si,
falou em alta voz:
- Livrem-me da presença dêsse homem, dêsse verdugo de inocentes, dêsse
assustador de pombas ingênuas.
Mão-de-Ferro e Chiquiznaque continham Repolido, que, de qualquer
maneira, queria entrar onde Cariharta estava e, como não o deixassem, dizia do
lado de fora:
- Sai, minha braveza; acalma-te, que te verás casada.
- Casada eu, perverso? Olha em que tecla bates! Querias que eu fôsse
contigo, mas prefiro mil vêzes a morte!
- Vamos, bôba! Vamos acabar com isso que já é tarde, E olha, não fiques
convencida por eu falar tão manso e vir tão submisso, porque - louvado seja
Deus -, se me sobe o sangue à testa, a emenda será pior do que o sonêto.
Humilha-te; vamos nos humilhar todos e não vamos dar de comer ao diabo.
- Eu seria capaz até de lhe preparar um banquete, para que êle te levasse
para onde meus olhos nunca mais te vissem - disse Cariharta.
- Não estou dizendo? Por Deus! Estou vendo, sua faladeira, que tenho de
botar tudo a perder e faltar com minha palavra - falou Repolido.
- Em minha presença ninguém há de cometer violências; Cariharta sairá
não por causa das ameaças, mas por consideração a mim, e então tudo se
arranjará, pois as brigas entre os que se querem bem são, depois, motivo de
satisfação quando fazem as pazes. Ó Juliana! menina! Cariharta! Sai daí por
favor, que farei Repolido pedir-te perdão de joelhos.
- Se êle fizer isso - disse Escalanta - estaremos todos do seu lado e
pediremos a Juliana que saia.
- Se eu tenho de me dar por vencido para depois vocês fazerem pouco de
mim - disse Repolido -, não me entregarei nem a um exército de suíços, mas. se
é porque Cariharta assim o quer, não digo que eu me mêta aí de joelhos, porém
meterei um cravo na testa se ela assim o desejar.
Chiquiznaque e Mão-de-Ferro riram-se; Repolido ficou muito insultado,
pensando que zombavam dêle, e disse com uma raiva imensa:
- Aquêle que rir ou pensar em rir do que Cariharta possa dizer contra
minha pessoa e eu contra a dela estará mentindo e mentirá tôdas as vêzes em
que rir ou pensar.
Chiquiznaque e Mão-de-Ferro entreolharam-se de tal modo que
Monipódio viu que a história acabaria mal se êle não procurasse remediar a
situação, e assim, pondo-se logo entre êles, disse:
- Vamos parar por aqui, cavalheiros, não digam mais nada; não se
ofendam e, já que as palavras ditas não atingiram ninguém, que ninguém vista
a carapuça.
- Sabemos muito bem que tais ofensas não foram ditas por nós e nem o
serão - falou Chiquiznaque -, e, se desconfiássemos de que poderiam ser
dirigidas a nós, teríamos às mãos um pandeiro e saberíamos tocá-lo.
- Eu também tenho um pandeiro, Seu Chiquiznaque, e, se fôr preciso,
saberemos tocar os guizos, e já disse que quem zombar estará mentindo e quem
pensar em outra coisa siga-me, pois não será um palmo de espada que me fará
menos homem, e o que eu disse está dito.
Dizendo isto, preparava-se para sair porta afora. Cariharta estava a escutar
e, quando percebeu que êle ia embora enfurecido, saiu dizendo:
- Não deixe que êle se vá, pois fará das suas! Não vêem que ele vai embora
com raiva e nessa história de valentia êle é igual a Judas Marcaelo? Volta aqui,
valentão de minha alma. E, abraçando-se a êle, agarrou-o fortemente pela capa;
Monipódio correu também para segurá-lo; Chiquiznaque e Mão-de-Ferro não
sabiam o que fazer, se deviam encolerizar-se ou não; ficaram parados,
esperando para ver o que Repolido faria; êste, vendo-se chamado por Cariharta
e Monipódio, voltou, dizendo:
- Os amigos nunca devem encolerizar os amigos, nem zombar dêles, ainda
mais quando vêem que os amigos estão com raiva.
- Aqui não há nenhum amigo que queira encolerizar ou zombar de outro
amigo, e, como somos todos amigos, que os amigos se dêem as mãos - disse
Mão-de-Ferro.
- Todos vocês falaram como bons amigos e, como amigos, que se dêem as
mãos os amigos.
Todos apertaram logo a mão e Escalanta, tirando um de seus chapins,
começou a bater nêle como se êle fôsse um pandeiro; Gananciosa pegou uma
vassoura de fôlha de palmeira, nova, que se encontrava ali por acaso, e,
arranhando-a, conseguiu dela um som que, embora rouco e áspero, combinava
com o do chapim.
Monipódio quebrou um prato e fez dêle duas castanholas, que, tocadas
com grande rapidez, serviam de contraponto ao chapim e à vassoura.
Rinconete e Cortadilho espantaram-se com a história da vassoura, porque,
até então, nunca tinham visto tal coisa. Mão-de-Ferro, percebendo, disse-lhes:
- Estão admirados? Pois fazem muito bem, porque não há no mundo
música mais rápida, mais leve, nem mais barata e, na verdade, ouvi, outro dia,
um estudante dizer que nem o Negrofeo, que tirou Arauz do inferno, nem
Marión, que subiu às costas do delfim e saiu do mar como se tivesse vindo no
lombo de uma mula de aluguel, nem o grande músico que construiu uma
cidade com cem portas e com outros tantos postigos, inventaram melhor gênero
musical, tão fácil de aprender, tão ajeitado para tocar, tão sem trastes, cravelhas
ou cordas e tão sem necessidade de se afinar, e - pasmem! - dizem que quem o
inventou foi um galã desta cidade, que se gaba de ser o Hércules da música.
- Acredito, acredito - respondeu Rinconete -. mas vamos escutar o que os
nossos músicos querem cantar, pois parece que Gananciosa já pigarreou, sinal
de que vai cantar.
E era verdade, porque Monipódio tinha-lhe pedido para cantar algumas
seguidilhas da moda, mas quem começou primeiro foi Escalanta, que, com voz
sutil e delicada, cantou:
Por un sevillano rufo a lo valón
tengo socarrado todo el corazón.
Depois foi a vez de Gananciosa:
Por un morencio de color verde,
cuál es la fogosa que no se pierde?
A seguir, ouviu-se Monipódio, que, apressando o ritmo com suas
castanholas, cantou:
Rinen dos amantes; hácese la paz:
si el enojo es grande, es el gusto más.
Cariharta não quis regozijar-se em silêncio, porque, tomando de outro
chapim, entrou na dança e acompanhou as demais, dizendo:
Detente, enojado, no me azotes más:
que si bien lo miras, a tus carnes das.
- Cantem à vontade - disse neste momento Repolido - e não toquem em
coisas passadas, que não há necessidade; o que passou, passou; vamos tomar
outro caminho e basta.
Pareciam êles não ter intenção de acabar a cantoria tão cedo, mas ouviram
chamar apressadamente à porta; Monipódio saiu para ver quem era e a
sentinela contou-lhe que vira aparecer no fim da rua o oficial de justiça, e que, à
frente dêle, vinham Tordilho e Cernicalo, os agentes imparciais da justiça.
Todos os que estavam dentro escutaram e se alvoroçaram de tal maneira que
Cariharta e Escalanta calçaram seus chapins ao contrário; Gananciosa largou a
vassoura; Monipódio, suas castanholas; a música cessou e tudo caiu em silêncio
constrangedor; Chiquiznaque emudeceu; Repolido espantou-se, Mão-de-Ferro
levantou-se e todos desapareceram subindo às sotéias e aos telhados para fugir
e passar do outro lado da rua. Nem um arcabuz disparado fora de hora, nem
um trovão repentino espantaria um bando de pombas descuidadas, como a
vinda do oficial de justiça alvoroçou e espantou tôda aquela comunidade
reunida, tôda aquela boa gente. Os dois noviços, Rinconete e Cortadilho, não
sabiam o que fazer; ficaram parados, esperando para ver no que dava aquela
tempestade repentina, que terminou com a volta da sentinela, dizendo que o
oficial de justiça passara reto, sem dar mostras da mais leve sombra de suspeita.
E, enquanto êle dizia isto a Monipódio, chegou um jovem cavalheiro à porta,
vestido à moda caipira, como se costuma dizer; Monipódio entrou com êle e
mandou chamar Chiquiznaque, Mão-de-Ferro e Repolido, dando ordens para
não descer ninguém além dêles. Rinconete e Cortadilho, como tivessem ficado
no pátio, puderam ouvir a conversa de Monipódio com o cavalheiro recémchegado, que perguntou por que haviam feito tão mal o que tinha êle
encomendado. Monipódio respondeu que ainda não sabia o que se tinha feito,
mas ali estava o oficial encarregado do negócio, pronto para a prestação de
contas. Chiquiznaque desceu e Monipódio perguntou-lhe se êle terminara o
serviço, se tinha dado a facada de catorze, que lhe haviam encomendado.
- Qual? - perguntou Chiquiznaque. - Aquela do mercador da encruzilhada?
- É essa mesmo - disse o cavalheiro.
- O que se passou - falou Chiquiznaque - foi o seguinte: eu o esperei de
noite, à porta de sua casa; êle chegou antes da hora da oração; cheguei perto
dêle, bati os olhos no seu rosto e vi que era tão pequeno que seria impossível,
impossibilíssimo, caber nêle uma facada de catorze pontos, e, vendo-me
impossibilitado de poder cumprir o prometido e de levar a cabo minha
destruição..
- Instrução, quer Vossa Mercê dizer - interrompeu o cavalheiro -, não
destruição.
- É isso - falou Chiquiznaque. - Dizia eu que, vendo que a estreiteza e
pequenez daquele rosto não davam para os pontos prometidos, a fim de que
minha viagem não fôsse em vão, dei a facada em um seu lacaio, que, para dizer
a verdade, pode levar um número bem maior de pontos.
- Mas eu queria - disse o cavalheiro - que se tivesse dado no amo uma
facada de sete em vez de dar uma de catorze no criado. Não cumpriram o trato
feito comigo, como era de direito, mas não importa; não me fazem falta os 30
ducados que deixei de sinal. Beijo as mãos de Vossa Mercê.
E, dizendo isto, pegou o chapéu e virou as costas para ir-se embora;
Monipódio, porém, segurou-o pela capa de mescla que êle vestia, dizendo-lhe:
- Vosmecê volte e cumpra sua palavra, pois nós cumprimos a nossa com
muita honra e perfeição; faltam 20 ducados e não há de sair daqui sem dá-los ou
sem deixar coisas que valham essa quantia.
- É a isso que Vossa Mercê chama de cumprimento da palavra? Dar uma
facada no criado quando devia dá-la no patrão?
- Como o senhor está ruim de contas! - exclamou Chiquiznaque. - Bem
parece que não se lembra daquele ditado que diz:
“Quem quer bem o patrão, ama também o seu cão”.
- A trôco do que êsse ditado? - perguntou o cavalheiro.
- Pois então - prosseguiu Chiquiznaque -, não é o mesmo que dizer:
“Quem quer o mal do patrão, quer também o do cão”?
É assim: o patrão é o mercador, vosmecê lhe quer mal; seu lacaio é o cão;
batendo-se no cão, bate-se no patrão; a dívida fica liquidada e bem executada;
por isso, é tratar de pagar logo, sem fazer nenhuma observação.
- Isso eu também posso jurar - acrescentou Monipódio -, e tudo quanto
disseste tiraste-me da bôca, Chiquiznaque amigo, e assim, meu caro, não faça
conta de ninharias com seus amigos e servidores, siga meu conselho e pague
logo sua conta; se quiser que se dê uma facada no patrão, com a quantidade de
pontos que cabe no rosto dêle, pode estar certo de que até já lhe estarão fazendo
curativos.
- Já que é assim - respondeu o rapaz - pagarei de muito boa vontade tanto
uma conta como a outra.
- Isso é tão certo quanto é certo eu ser cristão - disse Monipódio -, pois
Chiquiznaque dará a facada de tal maneira que ela parecerá ser de nascença.
- Com esta certeza e promessa - disse o cavalheiro -, receba esta cadeia em
lugar dos 20 ducados atrasados e de 40 que ofereço pela futura facada; vale
1.000 reais e pode ser que seja arrematada, pois estou desconfiado de que serão
precisos outros catorze pontos.
Dizendo isto, tirou do pescoço uma cadeia de voltas pequenas e deu-a a
Monipódio, que, pela côr e pelo pêso, viu bem que ela não era falsa. Monipódio
recebeu-a muito contente e com delicadeza, porque era um homem
extremamente educado; a execução ficou a cargo de Chiquiznaque, que
prometeu pô-la em prática naquela noite. O cavalheiro foi-se muito satisfeito;
Monipódio chamou logo todos os ausentes e refugiados. Todos desceram e
Monipódio, misturando-se com êles, tirou um caderninho de notas que trazia
no capuz; deu-o a Rinconete para que lesse, porque êle não sabia ler.
Rinconete abriu-o e viu que a primeira página dizia:
“Facadas que devem ser dadas nesta semana.
“A primeira será no mercador da encruzilhada. Vale 50 escudos.
“Recebemos 30 por conta. Executor: Chiquiznaque”.
- Não creio que haja outra, filho - disse Monipódio. Passe para a frente e
olhe onde diz: “Pauladas”.
Rinconete virou a fôlha e viu que na outra estava escrito:
“Pauladas”. Mais abaixo dizia:
“No taberneiro de Alfafa, doze pauladas da melhor qualidade, a 1 escudo
cada uma. Foram dados 8 escudos por conta.
Prazo: seis dias. Executor: Mão-de-Ferro”.
- Bem que podia apagar essa nota - disse Mão-de-Ferro -, porque esta noite
darei conta do recado.
- Há mais alguma outra, filho? - perguntou Monipódio.
- Sim - respondeu Rinconete -, há uma outra que diz assim:
“No alfaiate corcunda, conhecido como Silguero, seis pauladas da melhor
qualidade, a pedido daquela senhora que deixou a gargantilha. Executor:
Desmochado”.
- Estou admirado - falou Monipódio - de êste serviço não ter sido feito
ainda. Na certa, há alguma coisa errada com Desmochado, pois já se passaram
dois dias do prazo e ainda não se mexeu nisso.
- Encontrei-me com êle ontem - disse Mão-de-Ferro - e êle me falou que o
corcunda não tinha aparecido porque está doente, e por isso não pôde êle
cumprir com a obrigação.
- Acredito - falou Monipódio -, pois sei que Desmochado é um bom
profissional e que se não fôsse por um motivo tão justo êle já teria dado conta
do recado da melhor forma possível.
Há mais alguma coisa, rapaz?
- Não senhor - respondeu Rinconete.
- Então vamos para frente e veja onde está escrito: “Agravos comuns”.
Rinconete passou adiante e, em outra fôlha, encontrou escrito:
“Agravos comuns, isto é, garrafadas, banhos de merda, cornos, injúrias,
zombarias, ameaças, motins, facadas simuladas, publicação de nibelos (Nibelos,
isto é, libelos, escritos difamatórios.), etc.” - Que diz mais abaixo? - perguntou
Monipódio.
- Diz - falou Rinconete - “Banho de merda na casa.. “ - Não leia o nome da
casa, que eu já sei onde é, sou eu o tuatem (Tuatem: Indivíduo que se julga
indispensável.) e executor desta ninharia e já foram dados 4 escudos por conta;
ainda faltam 8.
- É verdade - falou Rinconete -; tudo isso está escrito aqui e mais abaixo
ainda tem: “Cornos”.
- Também não precisa falar a casa e o lugar - disse Monipódio. - Basta que
se faça a ofensa, sem que se diga em público; é uma questão de consciência. Eu,
pelo menos, sendo pago pelo meu trabalho, preferia fazer cem injúrias e outras
tantas difamações do que revelar um nome, ainda que fôsse à mãe que me
pariu.
- O executor disto é Narigueta - disse Rinconete.
- Isso já foi feito e pago - falou Monipódio. - Olha se tem mais, que, se não
me falha a memória, há de ter aí uma ameaça de 20 escudos; a metade já foi
dada, o executor é a comunidade inteira, o prazo é todo o mês que estamos
atravessando, e há de ser cumprida sem faltar nenhum pingo nos II e será um
dos mais notáveis acontecimentos desta cidade, nos últimos tempos.
Dá cá o livro, jovem, pois eu sei que não há mais nada e sei também que a
praça não anda muito boa, mas, nesse meio tempo, há de vir alguém e então
teremos mais serviço do que se pode imaginar, pois não cai uma fôlha sem que
Deus veja e nós não iremos fazer com que alguém se vingue à fôrça, ainda mais
que cada um costuma ser valente dentro de sua casa e não quer pagar pela
execução de serviços que pode fazer com suas próprias mãos.
- É verdade - falou Repolido -, mas Vossa Mercê, Senhor Monipódio, veja
aí o que nos vai ordenar, porque já é tarde e o dia já vem chegando mais do que
depressa.
- O que se tem a fazer - disse Monipódio - é irem todos para seus postos e
que ninguém mude de lugar até domingo, que nos reuniremos aqui mesmo e
repartiremos tudo o que tiver entrado, sem prejudicar ninguém. A Rinconete e
Cortadilho daremos, até domingo, o distrito que vai desde a Torre del Oro, por
fora da cidade, até o postigo de Alcázar, onde podem trabalhar sentados, com
seus naipes, pois já vi outros, menos hábeis que êles, saírem com mais de 20
reais em miúdo, além da prata, com um baralho só e ainda com quatro naipes
menos. Ganchoso ensinará onde fica êsse distrito e, ainda que vocês trabalhem
até San Sebastián e San Telmo, não importa, embora não seja justo que ninguém
entre no domínio de ninguém.
Os dois rapazes beijaram-lhe a mão, pela graça que êle lhes concedia, e
prometeram cumprir a obrigação muito bem, fielmente, com tôda a diligência e
honestidade.
Nisto, Monipódio tirou um papel dobrado do capuz, onde se encontrava a
lista dos confrades, e disse a Rinconete que pusesse ali seu nome e o de Cortadilho, mas, como não houvesse tinteiro, deu o papel para que êle o levasse e, no
primeiro boticário, tratasse de escrevê-los, colocando: Rinconete e Cortadilho,
confrades; noviciado: nenhum; Rinconete: conversa fiada; Cortadilho: trapaça;
dia, mês e ano; pátria e pais não precisariam pôr. Neste momento, entrou um
dos velhos abispones, que disse:
- Venho dizer a Vossas Mercês que encontrei agora, em Gradas, Lobilho,
aquêle de Málaga, e êle me disse que melhorou tanto sua técnica que, mesmo
com naipes sem marcas, pode tirar dinheiro até mesmo do Satanás e que, por
estar mal arrumado, não vem logo à sua presença, para prestar a obediência
costumeira, mas que domingo, sem falta, estará aqui.
- Eu sempre achei - disse Monipódio - que êste Lobilho havia de ser o
único em sua arte, porque possui as melhores e mais ajeitadas mãos que se
pode desejar para isto, pois, para ser um bom oficial na profissão, é preciso
tanto ter bons instrumentos para realizá-la como engenho para aprendê-la.
- E encontrei também - disse o velho -, numa casa de pensão da Rua de
Tintores, o Judeu, vestido de padre, que passou por ali por saber que dois
ricaços vivem nesta mesma casa e queria ver se podia jogar com êles, ainda que
fôsse um pouco só, pois êste pouco poderia mais tarde vir a ser o muito. Disse
também que, no domingo, não faltará à reunião e prestará contas de sua pessoa.
- Êste judeu também - disse Monipódio - é uma águia e tem grandes
conhecimentos. Faz dias que não o vejo e êle faz muito mal em não aparecer. Se
não se emendar, tiro-lhe o pôsto, pois êle tem tanta autoridade quanto o Turco e
sabe tanto latim quanto minha mãe. Há mais alguma novidade?
- Não - disse o velho -, pelo menos que eu saiba, não.
- Está muito bem - falou Monipódio. - Peguem todos êste pouco de
dinheiro e que ninguém falte no domingo, pois repartiremos o resto. - E, assim
dizendo, distribuiu entre êles 40 reais.
Todos lhe agradeceram; Repolido e Cariharta, Escalanta e Mão-de-Ferro,
Gananciosa e Chiquiznaque tornaram a se abraçar, combinando que, naquela
noite, depois de terminarem o serviço da casa, iriam à casa de Pipota, para onde
iria também Monipódio, a fim de examinar a canastra, depois de cumprir e
apagar do caderninho de notas o trabalho que se propusera a fazer.
Abraçou Rinconete e Cortadilho e, abençoando-os, despediu-os, aconselhando-os a não terem jamais lugar certo para dormir ou ficar, pois assim era
necessário para o bem de todos. Ganchoso acompanhou-os para ensinar-lhes
seus postos, recomendando-lhes que não faltassem no domingo, porque
pensava que Monipódio havia de dar uma lição de posições referentes à sua
arte. Com isto se foi, deixando os dois companheiros admirados com o que
tinham visto.
Rinconete, embora jovem, possuía muitos conhecimentos, era inteligente
por natureza; como andara com o pai no negócio das bulas, sabia falar bem e
tinha muita vontade de rir ao pensar nas palavras que ouvira de Monipódio e
dos demais componentes de sua confraria e bendita comunidade, ainda mais
quando, em lugar de modum sufragâ, dissera naufrágio, e tiravam o estupendo,
em vez de estipêndio, do que, aliás, se gabava; assim também quando Cariharta
disse que Repolido era como um marinheiro de “Tarpéia” e um tigre de
“Oeanha”, em vez de Hircânia, e outras mil coisas semelhantes ou piores que
essas. Achou uma graça especial quando ela falou que o trabalho que tivera
para ganhar os 24 reais fôsse recebido pelo céu em paga de seus pecados;
admirava sobretudo a segurança, a confiança que tinham de ir para o céu, por
não faltarem às suas devoções, embora estivessem tão cheios de furtos,
homicídios e ofensas a Deus.
Riam-se também da boa velha Pipota, que deixava a canastra furtada, em
sua casa, e ia oferecer velinhas de cêra às imagens, pensando em ir ao céu de
mala e cuia. Não se admirava menos da obediência e respeito que todos tinham
por Monipódio, sendo êle um homem bárbaro, rústico e desalmado.
Considerava o que lera em seu caderno de notas as obrigações de cada um
e, finalmente, considerava quão descuidada era a justiça da famosa cidade de
Sevilha, pois vivia nela, sem nenhuma assistência, gente tão perniciosa e tão
contrária à própria natureza; fêz, então, o propósito de convencer o seu
companheiro a não permanecer, por muito tempo, naquela vida tão perdida,
tão má, tão inquieta, tão livre e dissoluta. Contudo, em virtude de sua pouca
idade e pouca experiência, permaneceu nela mais alguns meses, nos quais lhe
aconteceram coisas que exigiriam muitas outras fôlhas; e, assim, deixamos para
contar, em outra oportunidade, sua vida, os milagres que fêz, mais os de seu
mestre Monipódio e outros acontecimentos relativos aos componentes daquela
infame academia, pois serão todos êles muito importantes e poderão servir de
exemplo e advertência a todos os que os lerem.
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