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Pedro da Cunha e Menezes
ISBN 978-85-8874-240-6
9 788588 742406
Capa final indesignRA.indd 1
Maldito Juscelino
Pedro da Cunha e Menezes nasceu no
Rio de Janeiro em 1961. É diplomata,
torcedor do Fluminense e apaixonado
pela Cidade Maravilhosa. Publicou vários
livros sobre a história da cidade, entre
eles Fluminense Football Club – 100 anos
de glórias, O Rio de Janeiro na rota dos
mares do Sul, Oswald Brierly: diários de
viagens ao Rio de Janeiro, Transcarioca:
todos os passos de um sonho e Trilhas
do Rio.
A trama de Maldito Juscelino envolve crime, suspense e violência.
Classificar o livro como um representante do gênero policial, entretanto, seria
um equívoco só permitido aos cegos. Embora sua história objetive prender e
agradar a todos os leitores, o valor da obra não está somente na substância,
mas também na forma. Ao contrário de Brasília, que foi projetada sobre a
cartografia do Planalto Central, Maldito Juscelino foi concebido
sobre um mapa detalhado do Grande Rio.
O romance aborda a decadência da cidade maravilhosa sob o prisma de
vários personagens. Alguns com pinta de estrela, outros com apenas 15
minutos de fama, nenhum deles aparece gratuitamente. Todos têm alguma
ligação profunda com a Guanabara. Seus interesses e paixões são cariocas:
leem Lima Barreto, José de Alencar e Rubem Fonseca, escutam Marcelinho
da Lua, Farofa Carioca, Pixinguinha e MV Bill, evocam D. Sebastião, Zuenir
Ventura e Raimundo de Castro Maia, mergulham nas Ilhas Cagarras, sobem as
montanhas da região oceânica de Niterói, jantam nos restaurantes de Santa
Teresa, apreciam as estátuas que adornam as ruas da antiga capital do Brasil.
A trama discute os valores em voga na cidade e mostra o Rio nu e cru como
ele é, apresentando ao leitor lados da Guanabara que ele provavelmente não
conhece. Tudo fruto do mapa que o autor seguiu.
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Maldito Juscelino descobre o
Rio de Janeiro em 1502 bairros,
favelas e localidades. A cidade vai sendo
descortinada ao longo da trama. Alguns
bairros são protagonistas: Maria da Graça,
Rocha, Glória, Bento Ribeiro e Vidigal
emprestam seus nomes aos personagens
principais do romance. Outros figuram
como locais onde a história se desenvolve.
São João de Meriti, Copacabana, Floresta
da Tijuca e Aterro do Flamengo são
exemplos dessa categoria. Ao leitor que
se der ao trabalho de procurar todas as
citações, uma por uma, o autor agradece
o esforço e deseja sorte; dos demais –
que, tem certeza, serão a imensa maioria
– espera arrancar um pequeno sorriso de
prazer quando identificarem um ou outro
bairro no desenrolar da narrativa.
Pedro da Cunha e Menezes
19.04.10 17:51:36
MALDITO JUSCELINO
Pedro da Cunha e Menezes
© Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda., 2010.
Texto: Pedro de Castro da Cunha e Menezes
Produção editorial: Renata Arouca
Revisão: Maria Beatriz Branquinho da Costa
Capa: Erika Martins
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do todo ou parte em qualquer
suporte sem a autorização expressa da Editora.
Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda.
Rua Senador Dantas 75 grupo 1310
Centro, Rio de Janeiro, RJ 20031-204
Telfax: [21] 2533-9353
www.jakobssonestudio.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M51m
Menezes, Pedro da Cunha e., 1961Maldito Juscelino / Pedro da Cunha e Menezes. Rio de Janeiro : Andréa Jakobsson Estúdio, 2010.
172p.
ISBN 978-85-88742-40-6
1. Romance brasileiro. I. Título.
10-1063.
10.03.10 16.03.10
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3
017994
MALDITO JUSCELINO
Pedro da Cunha e Menezes
PREFÁCIO
A trama do romance Maldito Juscelino envolve crime, suspense e violência. Classificar
o livro como um representante do gênero policial, entretanto, seria um equívoco só
permitido aos cegos. Embora sua história objetive prender e agradar a todos os
leitores, o valor da obra não está somente na substância, mas também na forma. Ao
contrário de Brasília, que foi projetada sobre a cartografia do Planalto Central, o
Maldito Juscelino foi concebido sobre um mapa detalhado do Grande Rio.
O romance aborda a decadência da cidade maravilhosa sob o prisma de vários personagens. Alguns com pinta de estrela, outros com apenas 15 minutos de fama,
nenhum deles aparece gratuitamente. Todos têm alguma ligação profunda com a
Guanabara. Seus interesses e paixões são cariocas: leem Lima Barreto, José de Alencar e Rubem Fonseca, escutam Marcelinho da Lua, Farofa Carioca, Pixinguinha e MV
Bill, evocam D. Sebastião, Zuenir Ventura e Raimundo de Castro Maia, mergulham
nas Ilhas Cagarras, sobem as montanhas da região oceânica de Niterói, jantam nos
restaurantes de Santa Teresa, apreciam as estátuas que adornam as ruas da antiga
capital do Brasil.
Seus nomes não foram escolhidos ao acaso. O Major Vidigal é figura real da história
setecentista da cidade e personagem da ficção de Joaquim Manuel de Macedo
(Memórias de um sargento de milícias), Edson Passos é uma homenagem ao copacabaníssimo personagem Ed Mort de Luís Fernando Veríssimo (não por outra
razão é gaúcho e torcedor do América), Ilha é um apelido cuja gênese explica o
nome do bairro homônimo na região de Guaratiba, Campo dos Afonsos é aeronauta (ou araújo na gíria dos aviadores) e mora na rua Gago Coutinho (o grande piloto português, que foi o primeiro a sobrevoar o Atlântico Sul), Magalhães é um
oficial intendente da FAB. Enfim, todos os nomes, mesmo quando não parecem,
têm relação com a geografia, mas também com a história e a situação atual do Rio
de Janeiro. Assim, o penteado do comandante do Bope em estilo príncipe valente,
além de ser um corte de cabelo, é uma referência a dois ex-comandantes daquele
batalhão da polícia carioca, o turbilhão em que o dr. Coelho Netto vê o Rio de
Janeiro se debater é um famoso livro daquele ilustre tricolor e o Cutty Sark que embebeda os personagens foi escolhido menos pelo malte e mais pelo seu rótulo que
mostra a entrada da Baía de Guanabara. Tampouco há no livro data ou número
sem significado. O 1711 do voo Paris-Rio é o ano que Duguay Trouin invadiu o Rio
de Janeiro; Primeiro de Março é a data de fundação da cidade, Dezoito e Sete Sete
são comunidades em Bangu.
Estoril, Nova Jérsei, San Francisco, Colúmbia, Califórnia, Monte Carlo, Cabo Verde,
Madagascar, Ubá, Uberlândia, Olinda, Santa Catarina e Rio Grande, entre outros,
estão no livro não por serem cidades e estados do mundo e do Brasil, mas por denominarem bairros do Rio de Janeiro e sua área metropolitana. Olavo Bilac, José
Bonifácio, Carlos Drummond de Andrade, Tancredo Neves, João XXIII e João Paulo
II tampouco ganharam espaço no livro por seus dotes literários, políticos ou religiosos, mas porque fazem parte da geografia carioca.
Pois é, se a trama discute os valores em voga na cidade, também mostra o Rio nu e
cru como ele é e apresenta ao leitor lados da Guanabara que ele provavelmente
não conhece. Isso é tudo fruto do mapa que o autor seguiu.
A ideia vem de longe. No fim da década de 1980, com muito tempo livre nas mãos,
Pedro da Cunha e Menezes comprou o Guia Quatro Rodas e decidiu visitar cada um
dos bairros do Grande Rio, sem esquecer nenhum. Não conseguiu vê-los todos (na
verdade, visitou pouco mais da metade), mas ao longo de cinco anos tornou-se conhecedor da cidade em que nasceu como poucos. Seguiu a mesma proposta para
redigir Maldito Juscelino. Listou 1.565 bairros, favelas, conjuntos residenciais, subúrbios, morros habitados e marcos urbanos relevantes do Rio (isso é que os geográfos
chamam de megalópole). O objetivo era que a história percorresse todos eles, um a
um, e que o desenrolar do romance fosse definido pelo traçado imposto ao autor
pela cartografia carioca. Também nessa empreitada foi mal-sucedido. Infelizmente,
mesmo com todos os recursos da ficção, não conseguiu ir a Quafá, Vila Igaratã e
Camarista Meyer. Tampouco logrou navegar nas águas do Rio Parnaíba, represar o
Canal do Anil ou desfrutar das sombras benfazejas do Bosque Mont Serrat. Os frangos que quis criar na Granja de Paulo Medeiros morreram antes de serem chocados
e não chegaram à Mesa do Imperador, como planejado. As flores que plantou nos
jardins Moriçaba, do Carmo e Campo Belo, murcharam, não chegando a formar
buquês. Sem elas, o charme do autor não foi suficiente. Acabou repelido nas tentativas de flerte com Adriana, Eliane, Maria José, Núbia e Ana Clara. Suas pernas
cansaram-se na subida das ladeiras do Calharins e de Santa Isabel. Não alcançou o
topo. Paciência, a Vista Alegre do Recreio que se descortina lá de cima fica para
outra vez. Por fim, perdeu-se em sua tentativa de visitar o sítio do Pai João. Arriscou
três trajetos diferentes: pelo Caminho do Lúcio, na hora de cruzar o Rio do Ouro,
escolheu a Ponte de Coelho Netto. Ao perceber o equívoco, voltou. Tomou o
Caminho do Waldemar, mas por ali, a Ponte do Rio dos Cachorros estava quebrada.
Arriscou ainda o Caminho do Arroio Pavuna, mas foi parar na Estrada do Quitite
que não tinha nada a ver com o destino desejado. Em sua obsessão para citar todas
as localidades, ainda tentou uma prece à Nossa Senhora da Penha. Não adiantou,
ainda há tantos lugares recalcitrantes que sozinhos poderiam formar uma nova
cidade. Ainda assim, o romance descobre, com seus personagens, locais, diálogos e
citações exatos 1502 bairros, localidades e favelas dessa metrópole que, apesar de
suas mazelas, insiste em seguir sendo a síntese do Brasil. No trajeto, faz alusão a
diversos episódios marcantes da história e da cultura do Rio de Janeiro.
Talvez nem mesmo o leitor atento seja capaz de identificar mais de um terço dessas
localidades ou citações. Embora fique aqui o desafio, esse não foi o objetivo do
autor. Pelo contrário, espera-se que a homenagem a tantos lugares, efemérides,
personagens e acontecimentos da Guanabara não seja em detrimento do prazer da
história contada. Afinal, a parte é menos importante que o todo e essa é a mensagem que o carioca precisa aprender, se genuinamente deseja que sua cidade jamais deixe de ser maravilhosa. Na ficção, assim como na realidade, é tarefa difícil de
ser empreendida com sucesso, mas o objetivo almejado vale o esforço.
Horácio Cardoso Franco
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Dedico esse livro especialmente a Luiz Barros, mas também a todos aqueles que,
cariocas da gema, da clara ou da casca do ovo, teimam em querer fazer do Rio de
Janeiro uma Cidade Maravilhosa de se viver.
Agradeço a Mag Paletta, Rogério Fulgêncio, Carlos da Cunha e Menezes, Ruy
da Cunha e Menezes, Celina Lutz, Frederico Faulhaber, Luiz Fernando Vitor Filho,
Ana Leonor e Cristina Capêlo, conjunto de amigos cuja revisão paciente ajudou-
me a corrigir os infinitos erros e impropriedades. Qualquer falha que tenha per-
manecido é de minha exclusiva responsabilidade.
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MALDITO JUSCELINO
maldito juscelino
Onze e trinta da manhã. A viatura 01-1565 entra em contato com a sala de operações do 21º BPM:
— 1565, 1565, câmbio.
— Prossiga, 1565.
— Operações, Zulu 20 para Romeu Delta Juliete primeiro-nono-sexto-negativo.
O operador da sala digita a placa pedida no computador ligado com maré-zero:
— VOLKSWAGEN BRASÍLIA, ANO 1960, COR AZUL E AMARELA, PRODUTO DE ROUBO.
O operador solta um palavrão.
— Não pode ser, os dados não batem. Tem vírus nessa merda. Levanta, troca de
computador, redigita a placa.
– VOLKSWAGEN GOLF, ANO 2000, VERMELHO E PRETO, PRODUTO DE ROUBO.
1565, 1565, a placa pertence a Golf, ano 2000, vermelho e preto, produto de roubo,
repito, produto de roubo, positivo?
– Positivo, positivo, 1565.
A viatura liga a sirene e inicia a perseguição. O Golf é bem mais veloz que a limitada patrulhinha do batalhão, mas os dois carros têm que costurar pelo trânsito da
avenida, e a sirene ajuda a viatura a se aproximar do Golf. O estampido é seco e
muito conhecido dos soldados. A viatura está sendo repelida a tiros. O “SD” carona
saca um dos seus 38 e revida. O Golf bate; seu motorista não sabia que, em frente ao
21º BPM, a avenida 28 de Agosto tem suas duas mãos divididas por um canteiro.
Rapi-damente os quatro bandidos saem do carro, jogam-se no asfalto e continuam o
tiroteio. O “SD” motorista para a 1565 e os soldados procuram abrigo, descarregando
seus revólveres. Do portão do batalhão saem dezenas de papa-mikes disparando contra os ocupantes do veículo batido. O reforço do 21º chegou em boa hora; as sub-metralhadoras já estão funcionando, trazendo consigo a certeza de uma definição
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PRELÚDIO
favorável da peleja. Os meliantes põem as mãos nas cabeças e, ainda deitados, esperam, sem muita esperança, a sentença final. Os policiais engatilham suas armas.
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O capitão está em sua sala refrigerada, mas o ruído do ar-condicionado é superado
pelos tiros. Sai para o pátio e pergunta ao primeiro “SD” que encontra:
— Que porra é essa!!!?
— O pau tá comendo aqui em frente, senhor, uns bandidos que estavam trocando
tiros com a 1565 colidiram em frente ao batalhão. Bateram no canteiro da avenida.
Tenente, sargentos, tá todo mundo lá, só não fui porque estou preso.
Rapidamente o capitão retorna à sua sala, põe um carregador na sua HK-9 mm,
pega dois de reserva e sai do quartel. O barulho é ensurdecedor. Entra no meio do fogo
cruzado. Pouco depois o tiroteio cessa. Os papa-mikes engatilham suas armas.
— Não matem eles, não matem eles! — grita o capitão.
Os PMs continuam com suas armas apontadas e prontas para disparar. Não querem
acreditar no que estão ouvindo. O capitão aponta sua pistola para os PMs e repete:
— Ninguém atira!
Numa sala dentro do 21º, os ocupantes do Golf são questionados e respondem às
perguntas. Estão presentes um major, o capitão e a guarnição da 1565.
— Sim, senhor. A gente meteu um Peugeot lá em Bangu, mas ele enguiçou. Então
ganhamos esse Golf em Nova Iguaçu para assaltar um banco aqui em São João. Precisávamos do dinheiro para alugar umas peças. Depois deu no que deu. Se não fosse
o senhor, a gente tava morto.
maldito juscelino
Conheci Glória há cerca de três anos. Lembro-me bem de que era um dois de maio,
pois no feriado da véspera meus amigos foram todos à praia enquanto eu tive que
fazer um voo para La Paz. Ela embarcou no aeroporto de El Alto. Chegou a bordo
vestindo uma saia esvoaçante e um casaco de alpaca. A pele muito branca, realçada
por uma vasta cabeleira negra, o pescoço adornado por um vistoso cordão de prata
e o rosto parcialmente escondido atrás de um par de óculos escuros. Estava de braços
dados com Guadalupe, uma estudante boliviana que fazia graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com quem uns meses antes eu me embriagara de
amores na noite de Copacabana. Guadalupe abriu um belo sorriso para mim e sugeriu um novo encontro. Depois da decolagem e terminado o serviço de voo, senteime ao lado delas. Quando pousamos, já tinha anotado o telefone de Glória.
Guadalupe, apesar do charme e do brilho radiante nos olhos amendoados, sumiu da
minha vida. Minha cota de salsa e merengue estava prá lá de esgotada. Glória passou a ser onipresente.
Em nosso primeiro encontro, quis impressioná-la. Levei-a para passear em Itacoatiara, que não frequentava há muitos anos. Minha memória fantasiava a praia como
um pequeno paraíso na região oceânica de Niterói, onde na maré baixa ainda era possível retirar mexilhão e catar tatuí. Achava o lugar uma maravilha, mas não foi por isso
que o escolhi. Tinha recém-terminado um namoro de cinco anos com uma despachante de voo da Varig, com quem ainda sonhava reatar. Ela me flagrara aos beijos
com uma aeromoça dentro do avião. Não era para ter acontecido, Marlene deveria
estar de folga no dia. O problema é que foi cobrir uma colega que adoecera e me
pegou com a boca na botija. Rodou a baiana e terminou o relacionamento.
O estranho é que a gente é galinha e pegador mas, quando uma coisas dessas
acontece, nos damos conta de quanto amávamos nossas namoradas. Tentei de tudo
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MARLENE E GLÓRIA
maldito juscelino |
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para reatar. Fiz ponto em sua casa, na parte alta da Rocinha. Fui laborioso. Levei
ramos de hortênsias coroados por uma gardênia azul que, em qualquer parque, das
flores é a mais bela. Comprei caixas de bombons, presentei-a com perfumes franceses, escrevi cartas apaixonadas, prometi levá-la de férias para as Ilhas Baleares ou para
o Havaí, cheguei a fazer reserva de hotel em Malibu. Pedi interferência das suas tias
que moravam na favela. Dona Irene e dona Francisca bem que tentaram ajudar. Também seu Pedro, amigo antigo da família, quis interceder. Mas não houve jeito. Perdi
meu sossego, minha alegria e quase fiquei sem esperança. Apelei até para o Espírito
Santo. Pensei em escrever ao Vaticano implorando a interferência de João Paulo II em
pessoa. Como não tinha acesso ao Papa, conversei com quem tinha relações e influência com Deus no terreno da favela. Frei Gaspar e Frei Sampaio, dois jesuítas que
distribuíam graças na comunidade, me atenderam solícitos. Segui seus conselhos, fiz
do Senhor meu bom pastor. Passei a frequentar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, rezei novenas e pais-nossos, realizei trabalhos de caridade na favela. Marlene
que é bom, contudo, não voltava para mim. Só me sobrou um baita vazio no coração.
Quase morro do amor, quase morro da fé. Nada disso adiantou. “Besteira faz quem
quer”, foi a última coisa que Marlene me disse, “agora vê se some do morro. Adeus”.
E assim Glória começou como um prêmio de consolação. Uma menina branquinha
de formas curvilíneas em cujo afeto eu poderia afogar as mágoas. Levei-a para Itacoatiara por que era o canto do Rio mais afastado que eu c-nhecia. Se ainda nutria
alguma aspiração de voltar com Marlene, a armação tinha que ser bem feita. Ali as
chances de trombar com algum amigo da minha ex eram quase nulas. Eu frequentava
aquele extremo da Cidade Maravilhosa desde meus tempos de escoteiro, quando ir
até lá era um empreendimento cansativo, feito de barca seguida de ônibus baldeador,
que demorava anos para chegar ao destino. Dessa vez, fomos de moto. É longe, mas
fizemos boa viagem. Não tive dificuldades para encontrar a figueira centenária que
marca o início da trilha ligando o topo da estrada Gilberto Carvalho ao Pico do Alto
Mourão. Filho de mateiro e criado na Floresta da Tijuca, quis impressionar Glória com
meus supostos conhecimentos dos encantos escondidos do Rio de Janeiro (porque
Niterói para mim é Rio). O tiro saiu pela culatra. Glória, apesar de esguia e bela, não
é muito atlética. Sofreu horrores para subir a montanha. Na parte final, pouco antes
de chegar ao cume do Morro do Elefante, onde há uma escala-minhada, travou. Ficou
histérica. Não quis prosseguir de jeito nenhum. Estava morrendo de medo. Procurei
convencê-la de tudo que é maneira, mas não fui bem-sucedido. Descemos sem
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maldito juscelino
conseguir alcançar a mais bela vista de todo o Grande Rio. O que tinha sido pensado
para ser uma brincadeira no parque virou programa de tupinambá.
Quando finalmente pisamos nas areias de Itacoatiara, Glória estava exausta. Tentei chamar sua atenção para a praia formosa encaixada entre dois belos pontões de
pedra lisa, crua e reluzente, sem igual do outro lado da baía. Glória só queria saber
de se deitar. Transpirava profusamente, coçava sem parar as pernas picadas de
formiga e ainda estava tensa da caminhada. Para o seu nível de experiência, aquela
excursão no mato havia sido uma grande aventura por uma terra nova e bravia que
ela só conhecia dos filmes de Indiana Jones. Quis logo apertar um baseado para relaxar. Me opus à ideia. Gosto da minha maconha, mas acho que fumar na praia dá
bandeira, incomoda quem é careta e chama atenção da polícia. Glória não fez caso
da argumentação e queimou sua erva. Me destaquei e fui dar um mergulho. Saí do
mar alegre, achando que aquele era o meu dia, mas felicidade de pobre dura pouco.
Glória havia caído no mais profundo dos sonos. Fiquei sem saber o que fazer. Imbuído de segundas intenções, tinha planejado almoçar em um restaurante caseiro
em Piratininga e fechar a tarde com chave de ouro, apreciando o pôr do sol no Museu
de Arte Contemporânea no Ingá. O projeto era mostrar à Glória um Rio bonito e diverso daquele que ela conhecia. Deu tudo errado e eu não tinha um plano B. A moça
dormiu mais de duas horas. Fiquei a seu lado, de atalaia, para que nada, nem ninguém
perturbasse seu descanso. Deixei-me entreter por seu par de seios semicobertos pelo
escasso sutiã do biquíni. Fiquei imaginando aqueles peitos alvos e rijos como se fossem o Chimborazo e o Cotopaxi, dois vulcões cônicos que flanqueiam a capital do
Equador, eternamente cobertos pelas neves da Cordilheira dos Andes. Foi um erro
crasso. Glória passou esse tempo todo com a pele branca exposta ao sol. Despertou
muito queimada. Saiu da praia vermelha como um pimentão. Um desastre.
Tinha idealizado fazer sexo madrugada adentro. Preparara um arsenal de golpes
sedutores: frases de efeito, espumantes gelados, filmes românticos, haxixe trazido de
Amsterdã para ser fumado em narguilê digno dos califas de Bagdá e outros badulaques. A realidade foi um pouco diferente. Passei a noite na cama com Glória, sim.
Mas com novalgina, água de coco e termômetro do lado de cá, cuia com cremes
hidratantes e unguentos do lado de lá. Tirei serviço de enfermeiro.
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QUATRO PLANTÕES
Sexagésima quarta delegacia de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, São João
de Meriti, Baixada Fluminense. Vinte de janeiro, meio-dia.
O delegado Castilho chama o detetive André Rocha Miranda. Recebe-o com as
janelas e o colarinho abertos. O ar-refrigerado da sala do delegado, único da repartição, está quebrado. Seu rosto suarento encontra-se encoberto por um jornal. Está
lendo as notícias do dia. Não olha para cima, fala sem desviar a atenção do matutino.
— Tá aí a portuguesa. Se despencou lá do Moneró só para falar comigo. Essa mulher vive aqui. É meio pancada, mas em memória ao inspetor Juliano Moreira, seu finado marido, atende ela pra mim e vê se trata ela direitinho.
Rocha vira-se para sair. Ao atravessar a porta, ainda ouve o del. Castilho sussurrar
alto instruindo-o a não revelar que ele estava na delegacia. A portuguesa era personagem folclórico na 64ª. Viúva de um policial das antigas, pirou quando o marido
faleceu. Com efeito, a morte do velho Juliano Moreira foi cruel. Ao ser parado em
uma falsa blitz, foi identificado pela bandidagem como cana dura. Ainda tentou reagir, mas não teve tempo. Morreu com mais de 15 tiros. A maioria no rosto, que ficou
completamente desfigurado. No enterro, era lamentável o estado da portuguesa.
Uivava como o vento; as lágrimas saíam aos borbotões, saltando de seus olhos como
se fossem os gordos pingos de uma chuva de verão.
Nos meses que se seguiram, a portuguesa se entregou à religião. Foi a forma que
encontrou para aliviar a dor. Passou a frequentar a missa todos os dias. Assistia aos sermões de Miguel Dibo, um beneditino culto, muito mais devotado à história do que
aos ensinamentos da Bíblia. Padre Miguel, por sua vez, era discípulo de Dom Sebastião,
um bispo que, na década de 1950, empreendera uma nova cruzada se opondo com
veemência à remoção da capital para Brasília. Fiel aos ensinamentos do mestre, Miguel
acreditava que essa transferência tinha sido a mãe de todos os males que afligiam o
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17
maldito juscelino
Rio de Janeiro: a favelização, o desinvestimento, a deterioração dos costumes, a insegurança pública e, sobretudo, a posterior fusão, que subordinara os interesses de uma
cidade acostumada à sua independência a um estado atrasado e corrupto.
D. Sebastião batera-se em sua cruzada pelo Rio até os limites de suas forças. Lutou
contra tudo e contra todos. Até na Igreja, que era sua própria corporação, encontrou dificuldades. Foi repreendido mais de uma vez pelo cardeal Dom Jaime Câmara
e, em sigilo, pelo próprio Papa João XXIII.
Tanto fez que acabou sumindo misteriosamente dois anos antes da inauguração da
nova capital. Após rezar uma missa dominical na matriz de Guaratiba, seguira para
uma reunião com os opositores da construção de Brasília em um restaurante chamado
A Casa dos Quibes, na verdade pouco mais que um boteco na avenida Marrocos, em
Bangu. O encontro não correu bem. Vários eleitores do presidente Juscelino — veio
gente até de Nova Iguaçu — haviam se infiltrado no bar e tumultuaram o discurso do
religioso. O clima subiu a temperaturas dignas do Saara e o pau comeu. Ao final, os
seguidores do bispo foram desbaratados à porrada. O próprio Dom Sebastião desapareceu na confusão e jamais foi encontrado de novo.
Pois é. Desde que perdeu o marido, a portuguesa meteu na cabeça que Dom Sebastião não havia morrido na batalha da Casa dos Quibes. Insuflada pelos sermões sebastianistas de Padre Miguel, acreditava piamente que o bispo havia de reaparecer e
restaurar a grandeza e a autonomia do Rio de Janeiro.
Com o passar dos anos começou a ser acometida de delírios. Via Dom Sebastião nos
lugares mais estranhos, dentro do tanque de sua casa, jogando bola de gude com os
alunos na hora do recreio no meio do campo do colégio do seu neto, recolhendo
oferendas de macumba nas encruzilhadas do Parque Roial, pregando para crianças assustadas agarradas à barra das saias das mães, negociando uma pechincha na venda
da varanda, saboreando as frutas mais maduras do jardim pedregoso que era o quintal de sua casa, fritando castanha-de-caju com óleo de dendê em uma casinha no
Guarabu e por aí afora. A cada visão correspondia uma queixa na delegacia do bairro.
Queria que alguém fosse lá resgatar o pobre Dom Sebastião e convencê-lo a reassumir suas funções de defensor perpétuo do Rio de Janeiro. No princípio, a tiragem
ainda a recebia, anotava seu pleito e prometia providências. Com o passar do tempo,
contudo, os antigos colegas de Juliano Moreira foram se aposentando e a portuguesa
não lograva mais sequer ser ouvida pela Polícia. Por isso é que, mês sim outro também,
ela empreendia a longa jornada até Meriti para informar o paradeiro de Dom
maldito juscelino |
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Sebastião. O del. Castilho tinha sido íntimo de seu marido e, ainda por cima, era caxias. Na 64ª, a portuguesa era sempre atendida.
Acabava sobrando para Rocha. Era o mais novinho na delegacia. Cabia a ele roer
o osso duro. Mal chegou à recepção, já deu com a pança da portuguesa apoiada no
balcão. Com seu forte sotaque de Lisboa temperado pelo hálito azedo dos dentes de
alho que comia todas as manhãs, ela metralhou:
— Dom Sebastião está a andar aí. Eu o vi hoje mesmo embaixo de um salgueiro que
plantei no viçoso jardim que mantenho nos fundos de casa. O gajo está com saúde,
mas está encantado ou coisa parecida. Quando comecei a falar com ele, saiu apressado e se escondeu no terrenão da olaria desativada lá do bairro. Eu corri atrás e não
o encontrei, mas pá, que tá lá, isso ele tá. Ele não gosta de ser flagrado. É cheio de
engenhos esse Sebastião.
Rocha virou o rosto para se resguardar das lufadas impregnadas de alho e começou
a anotar. Simulava estar levando o caso a sério, mas a lusa não se convenceu. Entrou
a esbravejar:
— Vocês só escrevem e rabiscam. Para ter bom sucesso tem é que mandar alguém lá!
O detetive suspirou e respondeu:
— Não se preocupe dona, a polícia irá já. Tão logo tenhamos uma viatura, enviamos
alguém.
O argumento, construído em cima de um montão de veículos parados por falta de
manutenção, não aplacou a viúva.
— Estou vendo que o pátio está cheio de carros. Em bom português, irá já quer
dizer agora mesmo, não é depois, nem amanhã. Falta aqui é alguém como o finado
inspetor Mesquita. Com ele não havia essa falta de vontade de trabalhar. Vocês são
todos vagabundos!
Enquanto falava, lançava um chafariz de perdigotos no chão, no balcão, no rosto
do detetive. Rocha perdeu as estribeiras:
— Sua velha coroca, vira essa boca do mato pra lá. Vê se escova os dentes de
manhã antes de falar com as pessoas. Além disso, desiste. Troca o disco. Esse cara já
morreu. Faleceu. Bateu as botas! Ficou para santo. São Sebastião não vai renascer.
Nunca vai voltar, entendeu? Jamais! A senhora só vai encontrá-lo quando tomar o
caminho do céu.
Nem sequer tinha acabado de despejar sua ira e a portuguesa já estava uivando.
O del. Castilho apareceu em menos de 40 segundos. Abraçou a velha, acariciou seus
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cabelos. Chamou o detetive Sampaio, ordenou que pegasse seu automóvel e levasse
a viúva de volta para casa. Recomendou que vasculhasse a olaria.
— Se Dom Sebastião ainda estiver lá, ache-o.
Retornou à sua sala. Convocou o inspetor Silvestre.
— Esse Rocha é duro demais. Não tem maturidade para atender o público. Vamos
ter que tomar uma providência. O que você acha da ideia de transferi-lo para o setor
de homicídios?
maldito juscelino
maldito juscelino |
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64ª Homicídios
Sexagésima quarta delegacia, São João de Meriti, Baixada Fluminense. Primeiro de
março, três e trinta da manhã. Toca o telefone, atende o detetive Sampaio; fala, conversa, toma notas, desliga. Traga uma última vez seu Marlboro, suspira, amassa a
guimba do cigarro no cinzeiro e, pesadamente, levanta-se.
As paredes estão com a tinta descascando, o chão está impregnado de poeira e,
apesar dos janelões e do pé-direito altíssimo, a D.P. é quente como uma sauna finlandesa. Sampaio cruza a sala de atendimento e atravessa duas portas para entrar
num recinto escuro. Para em frente a um sofá velho e desconjuntado. Ali, com a barba
por fazer, dorme um homem. O inspetor ainda hesita antes de despertá-lo, chega a
levar as mãos aos bolsos em busca do maço de cigarros, mas desiste. Olha com carinho o pequeno ventilador que acalenta seu colega. Uma propriedade particular, é
claro. A Polícia Civil não possui verba para luxos.
O tira Rocha acorda com cara de espanto. Olhos arregalados, remela, dor de
cabeça, o cabelo em desalinho mais parece uma juba. Apruma-se no sofá. Estica os
braços. Espreguiça-se. Escancara a boca, abre o bocejo característico e largo dos leões,
com direito a bafo e tudo (Sampaio vira o rosto). Levanta-se. Lava a cara.
Homicídios. A PM informa e a Civil faz a perícia do local, só que a 64ª não dispõe
de viatura para este tipo de serviço. Dos quatro veículos da delegacia, só o do delegado está em condições de uso, os outros repousam há semanas na oficina Auto Castro, de propriedade de um detetive aposentado. O Estado não liberou a verba para
pagar a manutenção. Francisco de Castro não cobra mão de obra. Seus mecânicos vão
consertando os carros à medida que conseguem receber os acessórios que precisam
ser repostos, mas o processo não é simples. Sem dinheiro, nem mesmo as peças
chegam em sincronia com a necessidade. Dez para as quatro da manhã, o tira Rocha

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