Trabalho de literatura grega V

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Trabalho de literatura grega V
“Katholikos” em Políbio
Brian Kibuuka
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A constituição mista romana, descrita por Políbio no livro VI de sua Ἱστορία,
corresponde à elucubração teórica que, sendo nesse particular, pró-romana,1
procura explicar como Roma se tornou senhora de todas as partes conhecidas
do mundo habitado2 entre a segunda metade do século terceiro e a primeira do
século segundo, após serem vencidas a Segunda Guerra Púnica e a batalha de
Pidna.3 No livro VI, o autor se detém na descrição da πολιτεία (constituição) – no
caso, mista -, vigente “no tempo das Anibálicas”,4 especificamente no tempo da
batalha de Canas.5 E, no juízo de Políbio, quanto ao valor dessa constituição, é
impossível “achar uma composição da política melhor.”6
Há indícios de que Políbio pressupõe em sua história uma audiência romana
para seus escritos,7 bem como grega.8 Porém, na descrição da constituição
mista romana, formada pelos cônsules [ὕπατοι],9 pelo senado [σύγκλητος]10 e
pelo povo [δῆμος],11 as evidências apontam para o fato de que o autor submete
tal sistema político às “noções aprendidas nas escolas helenísticas de retórica”
1
ROSENSTEIN, N. S. & MORSTEIN-MARX, R., A Companion to the Roman Republic, Oxford,
Blackwell, 2006, 38.
2 Plb., I.1.5-6; III.3-4.
3 [ἐν τοῖς Ἀννιβιακοῖς καιροῖς]. Esse período está compreendido entre o início da Segunda Guerra
Púnica entre romanos e cartagineses (219/18 a.C.), e a batalha de Pidna (168 a.C.), por meio da
qual a Grécia passou para domínio romano.
4 Idem, VI.1.1.
5 Idem, VI.1.2. Aqui, Políbio afirma: “ἐν οἷς λειφθέντες τῇ περὶ Κάνναν μάχῃ τοῖς ὅλοις ἔπταισαν
πράγμασιν”. Essa batalha aconteceu em 216 a.C. Políbio está a avaliar uma constituição
estabelecida em um período de crise. Ver: VON FRITZ, K., The Theory of the Mixed Constitution
in Antiquity. A Critical Analysis of Polibius’ Political Ideas, Nova York, Columbia University Press,
1954, 33.
6 [εὑρεῖν ἀμείνω πολιτείας σύστασιν]. Plb., 6.18.1.
7 “Não ignoro por essa razão que, aos que são impelidos por essa constituição, pareçamos fazer
uma narrativa mais defectiva” [οὐκ ἀγνοῶ δὲ διότι τοῖς ἐξ αὐτῆς τῆς πολιτείας ὁρμωμένοις
ἐλλιπεστέραν φανησόμεθα ποιεῖσθαι τὴν ἐξήγησιν]. Idem., VI,.11.3
8 Idem, VI.39.12-15. Segundo Champion, há uma ambiguidade no texto do livro VI, e tal seria
decorrente da audiência grega e romana para as quais ele dirige seu relato histórico. Ver:
CHAMPION, C. B., Cultural Politics in Polybius's Histories, Berkeley, University of California
Press, 2004, p. 97.
9 Plb., VI.12,15.
10 Idem, VI.13,16.
11 Idem, VI.14,17.
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nas quais “classes abastadas eram educadas”.12 Uma primeira evidência desse
olhar grego de Políbio ao sistema político de Roma está no seu próprio
testemunho. Ele fala do ponto de vista de um estrangeiro em Roma, ou mesmo
a partir do olhar de um embaixador estrangeiro.13
Outra evidência é a atestação do conceito de constituição mista em autores
gregos anteriores a Políbio, como Platão,14 Aristóteles,15 Arquitas de Tarento e
Dicearco.16 Não se sabe ao certo as influências específicas do tempo de Políbio,
as quais sobre ele incidiram,17 mas a atribuição de um modelo análogo
compartilhado entre a Esparta de Licurgo e Roma é mais uma evidência de que
essa descrição parte de uma cosmovisão grega.18 Portanto, é possível afirmar,
com Walbank, que “a doutrina da constituição mista o cegou de modo
extraordinário em relação à elaborada textura da vida política que ao longo deste
período assegurou o domínio dos nobiles.”19 Também, destaca-se que a
terminologia propriamente grega do vocabulário político de Políbio é evidente,
pois “como nós pudemos ver, Políbio admirava o governo republicano porque
12
FINLEY, M. I., Politics in the Ancient World, Cambridge, Cambridge University Press, 1983,
127.
13 Plb., VI.13.9. Nicolet, ao comentar esse texto, destaca o olhar estrangeiro de Políbio. Na
passagem em questão, Políbio fala dos embaixadores estrangeiros e sobre os procedimentos
que tais embaixadores devem tomar se quiserem “resolver pendências, ou receber submissão,
ou declarar guerra [...]”. Ver: NICOLET, C., “Polybe et la constitution de Rome. Aristocratie et
démocratie” (In: idem (ed.), Demokratia et aristokratia. A propos de Caius Gracchus. Mots grecs
et réalités romaines). Paris, 1983, 20. Ainda que Políbio destaque a dificuldade dos romanos
para descreverem sua própria constituição (“ἂν εἰπεῖν δύνασθαι βεβαίως μηδὲ τῶν ἐγχωρίων
πότερ᾽ ἀριστοκρατικὸν τὸ πολίτευμα σύμπαν ἢ δημοκρατικὸν ἢ μοναρχικόν.” [nem sequer seria
possível a todo o cidadão do país dizer com certeza qual desses [era], aristocrático, ou
democrático, ou monárquico]. Plb., 6.11.11.), ele afirma ser o sistema político romano complexo
para um grego (Idem, I.3.7; VI.3.3.).
14 Platão, em Menexeno, estabelece a primeira combinação conhecida entre a monarquia, a
aristocracia e a democracia. Ver: Pl., Menex., 238cd. Também defende a constituição mista nas
Leis (Pl., Lg., IV.712de), relacionando tal constituição a Esparta.
15 No caso de Aristóteles, ele está a comentar as Leis, de Platão, em Ar., Pol., 1565b 26 – 66a
30.
16 Tripoliticus, frag. 1.67-72W.
17 Walbank afirma ser possível que Políbio tenha tido acesso a tais conceitos através dos estóicos
e dos peripatéticos. Cato, por sua vez, aplicou tal conceito de constituição mista a Cartago. Ver:
WALBANK, F. W., Polybios, Rome and Hellenistic world. Essays and reflections, p. 203. Ver
também: NICOLET, C., “Polybe et les institutions romaines,” Entretiens Hardt 20 (1974), 250.
18 Inclusive, a comparação entre a constituição estabelecida por Licurgo e a romana utiliza os
mesmos termos e designações. Por exemplo: a constituição de Roma é chamada de “simples” e
“homogênea”, mesmos termos utilizados em Plb., VI.3.8; 10.8, para se referir a Esparta.
19 WALBANK, F. W., Polybius, Los Angeles & Berkeley, University of California Press, 1972, p.
155.
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esse reunia elementos que os gregos reconheciam como os três tipos de
constituição – monarquia, democracia e aristocracia.”20
A ideia da existência de um modelo universal que submete os sistemas políticos
à dinâmica inelutável da mudança (μεταβολή) é de inspiração grega e, segundo
a evidência das fontes, fortemente polibiana. Como um organismo, os sistemas
políticos sofrem ἀνακλύκλωσιϛ: crescimento (αὔξησις), apogeu (ἀκμή) e
decadência (φθορά), até o fim (τέλοϛ).21 Esse processo, segundo o autor, foi
percebido por Licurgo quando da formulação da sua constituição mista de
Esparta22 e fez sucumbir a constituição cartaginesa.23 Tal condição também é
responsável pela futura decadência de Roma.24 Sendo assim, se é fato que
“depois de Tucídides, Políbio teve a mais profunda intuição dentre todos os
historiadores clássicos a respeito do processo histórico e da correlação de
eventos em base universal”;25 também é verdadeiro que ele submeteu o sistema
romano a uma simplificação significativa, determinada “κατὰ φυσίν” [segundo a
natureza],26 que também é sugerida em Platão27 e atestada em Ocellus
Lucanus.28
20
SHOTTER, D.C.A., The Fall of the Roman Republic, Londres, Routledge, 1994, 6. Um exemplo
de que Políbio submete instâncias do sistema político romano aos termos gregos é que ele
chama de monarquia o governo exercido pelos cônsules. Porém, os cônsules eram eleitos em
número de dois, o que não coaduna com a especificidade das monarquias gregas. O mesmo
poderia ser dito em relação à democracia e a aristocracia.
21 Ver: Plb., VI.9.12-14; 51.4; 57.1-10.
22 Idem, VI.10.1-2.
23 Idem, I.13.12; VI.51.3.
24 Idem, VI, 9.12-14. Ver também 51.4; 57.1-10.
25 HAMMOND, M. “Ancient Imperialism: Contemporary Justification”. HSCPh 68, 1948, 105-161.
26 BRINK, C.E. & WALBANK, F.W., “The Construction of the Sixth Book of Polybius,” CQ 4, 1954.
97-122.
27 Pl., Pol., 8.544c.
28 Não há evidência da dependência entre Políbio e Ocellus Lucanos (WALBANK, F. W.,
Polybios, Berkeley, University of California Press, 1972, 144). Ainda assim, não é improvável a
atestação de tal conceito na filosofia popular, que influenciasse o peripatos e, por extensão, o
estoicismo (Idem, Polybius, Rome, and the Hellenistic World. Essays and Reflections,
Cambridge, Cambridge University Press, 2002, 205). Segundo Diógenes (7.31), os estóicos
Panécio e Posidônio estabeleceram a teoria de um governo composto por elementos
democráticos, aristocráticos e monárquicos (CHAMPION, C. B., Cultural Politics in Polybius’s
Histories, Berkeley: University of California Press, 2004, 97. Observe-se também a exclusão, por
Políbio, dos praetores, a qual, não cremos, seja acidental.
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A observação mais aproximada do sistema político romano revelará que Políbio
seleciona vários dados em seu relato da constituição mista de Roma. 29 A
importância dos italiotas, escravos e dos civitates sine suffragio,30 a divisão da
sociedade em classes censitárias, as assembleias (comitia centuriata e comitia
tributa),31 a reunião dos plebeus (concilium plebis),32 o recrutamento de
magistrados e senadores – são todos assuntos ausentes na descrição de Políbio
no livro VI, revelando não só que o autor, como ele próprio afirma, selecionou
seus assuntos,33 como tinha um olhar preponderantemente grego, interessado
mais no modelo geral e nas categorias gregas da sua descrição de Roma do que
nas particularidades do regime estabelecido nessa cidade. Cabe afirmar aqui
que Políbio é um autor bem informado, pois tem detalhes das finanças públicas
e, mais particularmente, dos contratos públicos.34 Tal evidência aponta que a
exclusão dos detalhes supracitados está relacionada muito mais a avaliação
grega de Políbio do sistema político de Roma do que com a preocupação de,
com exatidão, apresentar com detalhes o modus operandis da política em
múltiplas instâncias decisórias. Finalmente, é reveladora também a preferência
de Políbio por questões financeiras, fiscais e militares (não as abstratas e
propriamente jurídicas).35
Dados ignorados por Políbio. Ver: NICOLET, C., “Polybe et la constitution de Rome.
Aristocratie et démocratie” (In: idem (ed.), Demokratia et aristokratia. A propos de Caius
Gracchus. Mots grecs et réalités romaines). Paris, 1983, 17,30.
30 Para a compreensão dos conflitos e crescimento da importância dos mesmos desde o século
III a.C., ver: ALFÖLDY, G., História social de Roma, Lisboa, Presença, 1989, 42-51.
31 Traduz-se aqui comitia por “assembleia” porque o “que caracteriza fundamentalmente as
assembleias romanas é precisamente o facto de elas não resultarem da reunião de um número
indefinido de individuos, mas de um número limitado e preciso de unidades de agrupamento, no
interior das quais cada indivíduo dá o seu parecer mas cuja única opinião registada (sic) será a
colectiva. Daí o fato linguístico: em latim, “assembleia” diz-se comitia, no plural.” NICOLET, C.,
“O cidadão e o político” (In: GIARDINA, G. (org.), O homem romano), Lisboa, Presença, 1991,
33. Sobre as comitia, veja: STAVELEY, E. S., The Constitution of the Roman Republic 1940-54,
5 HISTORIA 74, 1956, 75–84; Para fontes primárias, especialmente CICERO, De Re Publica, 69
(Clinton Walker Keyes transl., 1928; Loeb Classical Lib. Rep. 1988).
32 Ou plebis scita, ver : JOLOWICZ, H.F. & NICHOLAS, Historical Introduction to the Study of
Roman Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1972, 24–30, 86–88; KUNKEL,
WOLFGANG, An Introduction to Roman Legal and Constitutional History, Oxford, Clarendon
Press, 1973, 22.
33 Plb., VI.11.3.
34 Idem., VI., 17.1-6.
35 NICOLET, C., “Polybe et la constitution de Rome. Aristocratie et démocratie” (In: idem (ed.),
Demokratia et aristokratia. A propos de Caius Gracchus. Mots grecs et réalités romaines). Paris,
1983, 35.
29
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Citamos como exemplo o estudo de Paolo Desideri, que atenta para o processo
de formação e de sedimentação de uma cultura única – iniciada já na época de
Políbio e continuada por Plutarco – que atuava como um instrumento político nas
mãos do imperador. Em contrapartida, Desideri (1992, p. 4486) vê nessa
manobra política imperial o ônus da subtração da identidade cultural romana no
Império em prol da grega. O interessante no estudo de Desideri é que o autor
retira da noção de superioridade cultural grega o seu papel natural de civilizador,
ressaltado pelos estudiosos, para colocá-la no plano da dominação política. O
imperador apropriava-se das práticas culturais gregas não por admiração e
respeito, mas por sua utilidade e eficiência na divulgação da política imperial nos
ricos territórios de cultura grega na região oriental do Império.
Políbio, prosseguindo seu exame dos dois "instrumentos" - visão e audição -, cita
o caso de Timeu, que teria escolhido para suas investigações o método "mais
agradável, porém menos válido", abrindo mão do testemunho ocular e valendose da audição, campo que comporta também a leitura.36 Neste último caso, é
preciso que o historiador tenha o cuidado de "buscar uma cidade que possua
documentação abundante ou que tenha em suas cercanias uma biblioteca", de
modo a permitir o cotejo dos diferentes relatos".37 A comparação e exame
cuidadoso das diversas posições analisadas fazem-se necessários, também,
quando existem diferentes versões orais. É significativo, nesse sentido, que
Heródoto, nas passagens de suas Histórias que tratam de acontecimentos já
opacos na memória dos homens, seja extremamente cauteloso, evocando
diversas posições e muitas vezes abstendo-se de tomar partido, enquanto os
logoi de suas viagens não comportam este tipo de procedimento, sendo mais
afirmativos.38 O cotejamento de informações obtidas por meios orais ou pela
leitura de livros não deve, porém, substituir a "investigação pessoal", como
36
Cf. POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.521.
Cf. POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.522.
38 O que se relaciona diretamente àquilo que Santo Mazzarino considera uma singularidade de
Heródoto: sua tentativa de compreender também o ponto de vista persa. Cf. MAZZARINO, Santo.
Il pensiero storico classico, p.164.
37
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defende Políbio.39 "Éforo", diz ele, "afirma que se pudéssemos ser testemunhas
de todos os acontecimentos, esta experiência seria muito distinta das outras". 40
39
40
POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.522.
POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.522.
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