1 - Brigadeiro da Didi!

Transcrição

1 - Brigadeiro da Didi!
DESTRUIÇÃO
&
ORIGEM
OSWALDO PEREIRA
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INTRODUÇÃO
São quatro trabalhos distintos. Dois contos e duas peças de
um só ato. Foram, inclusive, escritos em épocas diversas,
sem qualquer preocupação de uni-los numa única temática.
Mas, numa coincidência não intencional, os dois contos
abordaram um mesmo futuro sombrio da humanidade e as
peças, a origem do homem.
Todos já foram, de uma maneira ou de outra, “publicados”
virtualmente, por correio eletrônico ou no meu blog PALAVRA
ESCRITA. Pelo tamanho dos textos, entretanto, tiveram pouca
repercussão num ambiente vocacionado para textos curtos.
Assim, para que não definhassem no limbo dos arquivos
mortos, decidi reuni-los neste e-book e esperar que
despertem alguma curiosidade e que, em oposição ao que
uma vez disse Michel Legrand “comme les chansons que
meurent aussitôt qu’on les oublie” (como as canções que
morrem, tão logo nós as esqueçamos), possam viver na
lembrança de quantos os lerem...
Oswaldo Pereira
Agosto 2014
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1.
Nova Iorque.
Janeiro, 2120.
A noite está linda. Um luar imenso recorta a silhueta de Manhattan e
deixa uma trilha de ouro nas águas mansas do Rio Hudson. Seis e meia.
Temperatura, 28 graus celsius; previsão de chuva, zero.
Ele acabou de chegar de San José. Esperava ter chegado antes, mas a
fila na Eastbound estava imensa. Também, pudera – era véspera das
comemorações do cinquentenário do Dia da União Global. Muita gente
vindo para Nova Iorque, mobiles de todo o tamanho entupindo a linha
tubular atrasando uma viagem de 32 minutos em dias normais. Levara
mais de uma hora. Mas, o que realmente importava era que chegara
antes dela.
Foi até o monitor mais perto, quase em frente à porta do restaurante.
Encostou a mão direita na tela e o plasma azul iluminou-se devagar.
“Ih! É dos antigos...”, pensou.
«Boa noite, Major Vincent. O que posso fazer por si?».
Sotaque oriental; é mesmo dos antigos.
«Estou esperando por Laverne Tan Lau. Localize.»
O logo da IGF encheu a tela. A mesma voz acentuada anunciou:
«Este é um serviço da InternationalGoFind, uma empresa do Grupo
Wong. O custo será de 5.32 yuans. Confirma?»
Ele suspirou com impaciência. Que burocracia chata!
«Sim.»
A vista aérea tridimensional da cidade apareceu, o zoom do satélite
reduzindo rapidamente a amplitude, centrando na parte ocidental da
ilha, aproximando o foco nos quarteirões abaixo do Central Park
Museum. Uma pequena luz vermelha começou a piscar na altura da
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Sexta Avenida com rua 48. No alto esquerdo da tela foram aparecendo
os dizeres:
Tan Lau, Laverne
26 anos. Humana. Pool Afrochina 7.
MH 2451/0022
Ela estava a dois quarteirões. O zoom aumentou a proximidade. Agora,
ele já conseguia vê-la, andando com pressa.
«OK. Obrigado.»
A tela ainda falou, antes de apagar-se.
«A IGF agradece e espera poder servi-lo novamente. Tenha uma boa
noite, Major Vincent.»
Mais cinco minutos, e ela chegaria. Sentiu uma pequena pressão no
braço esquerdo. Uma leve alteração no ritmo cardíaco provavelmente
devia ter disparado o regulador da tensão arterial, refletiu. Estes novos
ternos eram muito sensíveis. “Só espero que ele não tenha enviado uma
mensagem para o meu cardio-analista”, pensou. Não tinha a menor
vontade de passar o feriado trocando o coração, mais uma vez. Sua
intenção para a noite e para o dia seguinte era aproveitar-se da sua
condição especial de Agente Classe S1. Ricky Vincent era uma das
poucas pessoas em todo o território da Nova Inglaterra com permissão
para fazer sexo real.
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2.
Riccardo Alla Vincent, filho único de pai americano e mãe italiana,
nascera no Rio de Janeiro em 2057. Todos os registros oficiais, dentro e
fora da rede autorizada, concordavam que aquele ano marcara o início
do que se convencionou chamar depois de A Grande Era. O terrível
pesadelo, que começara vinte anos antes e se agravara a partir de
2040, terminara com um saldo terrível de catástrofes e de mortandade:
as calotas polares derretidas, a desertificação quase total da Europa,
especialmente da Rússia siberiana, e da América do Norte; o
desaparecimento da linha costeira na maioria dos países com litoral
oceânico, a obliteração de milhares de ilhas no Pacífico e no Índico, as
erupções vulcânicas, seguidas de terremotos, que haviam praticamente
afundado Honshu, o tsunami que varrera o sudoeste asiático e a Índia –
no total, dois e meio bilhões de mortos. Quem pôde, fugiu. O casal
Vincent, como centenas de milhões de americanos e europeus que
correram para as áreas que pareciam estar a salvo do ataque mortal da
natureza, como o continente africano abaixo do Equador, toda a
América do Sul, a parte meridional da Austrália e, miraculosamente, a
China, escapou para o Brasil.
O desastre destroçara a ordem mundial. Nas áreas mais atingidas, a
maioria daqueles que não haviam logrado sair a tempo tinham morrido
num dos muitos acidentes ecológicos, ou de fome, ou da peste. Os
poucos sobreviventes voltaram à Idade da Pedra. Os Estados Unidos e
os países europeus viram sua população residente diminuir em mais de
70% e praticamente deixaram de existir como nações organizadas. O
Japão desaparecera.
Em 2057, o furor das intempéries amainara. A paralização de quase
100% do parque industrial do ocidente, o aniquilamento da indústria
japonesa e a drástica diminuição do trânsito de automóveis em todo o
planeta haviam revertido a agressão dos agentes poluidores e
propiciado uma súbita e dramática diminuição da temperatura global. O
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efeito estufa abrandara, a camada
recuperação. A Natureza amansara.
de
ozônio
dava
sinais
de
A retomada foi fulgurante, porém pautada por uma preocupação quase
religiosa com o meio ambiente. A humanidade havia aprendido uma
dura e inesquecível lição – não podia mais brincar com o equilíbrio da
Terra, não havia mais espaço para o desenvolvimento predatório e
inconsequente do século XX e da primeira metade do século XXI. Brasil
e o sul da Austrália, duas das maiores nações dentre as que haviam
conseguido sobreviver, tinham conseguido manter seus sistemas
políticos e administrativos em razoável nível de funcionamento, apesar
de terem acolhido dentro de suas fronteiras uma boa parte dos bilhões
de fugitivos. Como eram territórios extensos, dotados de recursos quase
inesgotáveis, especialmente de água no caso do Brasil, puderam
acomodar levas e levas de imigrantes, espalhando-as dentro de suas
fronteiras.
No mesmo ano em que Ricky Vincent nascera, o grande êxodo ao
inverso já começara. Todos queriam voltar aos seus países, ou ao que
sobrara deles, para reconstruir, recriar, recomeçar. Dois anos depois, o
governo brasileiro promovia a I Conferência Mundial da Nova Terra. Foi
um marco histórico. Na agenda, a assinatura por todos os países da
Carta de Brasília, que estabelecia os princípios para o contrato de paz
universal, o desmantelamento dos arsenais de guerra, a criação de uma
polícia supranacional de controle do meio ambiente, a formatação do
Banco Internacional, o projeto de ação sustentada de recuperação das
regiões devastadas, a implantação do Mercado Global e, sobretudo, a
instalação de um órgão parecido com a antiga ONU, mas com poderes
de gerência muito mais poderosos, chamado Congresso Geral das
Nações, ou CoGeNa.
O que se viu a partir daí foi um milagre do engenho humano. Todo o
avanço tecnológico interrompido durante os anos da hecatombe foi
retomado com um ímpeto extraordinário. Mas, agora, dirigido para o
bem-estar da humanidade e a saúde do planeta. O fluxo dos recursos
financeiros multinacionais, movimentado através do BancInt e
administrado pelo CoGeNa, foi sendo alocado com extremo critério e
obedecendo a um rigoroso programa de prioridades, cujos objetivos
preferenciais foram uma modificação total nos conceitos de utilização de
energia renovável, de transportes, de moradia, de saúde pública, de
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educação e, principalmente, de controle do clima. Brasil e China
lideraram, inicialmente. Na década de 2070, Alemanha e Estados Unidos
conseguiram reestabelecerem-se como grandes potências. Eram os 4
grandes, embora as decisões continuassem sendo tomadas pelo plenário
do Congresso. Só foi, entretanto, na década seguinte, que as grandes
transformações tiveram lugar.
Em 2082, foi fabricado o último automóvel movido a motor de explosão;
em 2089, toda a frota automotiva dos países mais desenvolvidos já
havia sido substituída por veículos elétricos. Nos dez anos precedentes,
as ruas e as rodovias tinham sido dotadas de sensores colocados nos
seus pisos, de modo que o ato de dirigir era agora totalmente
automático e efetuado pelos computadores de bordo. Isto reduzira, em
toda a Europa, América, Oceania e grande parte da Ásia e da África, o
nível de acidentes de trânsito a praticamente zero. Vinte anos depois,
todas as estradas estavam transformadas em tubos climatizados; a
automação do percurso e os progressos tecnológicos obtidos na
construção dos carros os permitiam andar, com absoluta segurança, em
velocidades próximas a 500 quilômetros por hora.
Paralelamente, outro aspecto da vida diária a sofrer uma total
reviravolta fora o conceito de moradia. Especialmente nos países
destroçados pelo cataclismo, o processo de reconstrução de milhões de
unidades habitacionais arrasadas, num ambiente ainda marcado pela
escassez de certos recursos, como água, alimento e energia, adotou o
princípio da modularidade. As casas seriam compostas apenas de
dependências de família, os living quarters que, de acordo com o
tamanho do núcleo familiar e de sua disponibilidade financeira, poderia
ser composta de um ou vários quartos, uma sala de convívio e um
pequeno escritório. A grande novidade era que essas casas seriam
móveis. Seria como se todos passassem a morar em roulottes, só que
agora essas roulottes, batizadas de Mobile Homes ou MHs, poderiam
acoplar-se, temporária ou permanentemente, a grandes edifícios onde
toda a infraestrutura de higiene, alimentação, lazer e atividades
comerciais era proporcionada por um determinado preço. A economia de
escala e a redução do desperdício eram benefícios evidentes, mas foi só
quando essas MHs evoluíram o bastante para poder ganhar a estrada e
trafegar a espantosas velocidades pelos tubos é que a ideia de viajar
ganhou novo significado, sepultou a indústria de hotelaria e encolheu as
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companhias
aéreas,
intercontinental.
destinando-as
apenas
ao
transporte
Foi na Medicina, porém, que ocorreu o avanço mais dramático. Desde o
final do século XX, experiências com a informatização de diagnósticos e
de procedimentos cirúrgicos, com clonagem e com engenharia genética
já vinham sendo efetuadas em vários centros de excelência médica.
Embates com a consciência religiosa, questionamentos éticos e limites
impostos pela legislação haviam segurado o ritmo dos pesquisadores
nestes dois últimos campos. Mas, silenciosamente, financiados por
poderosos laboratórios e avidamente aguardados por um imenso
mercado potencial, os estudos prosseguiram. Em 2020, a fertilização in
vitro de embriões geneticamente programados e seu uso para
alimentarem bancos de órgãos era prática largamente difundida,
embora ilegal. Por essa altura, entretanto, as drásticas mudanças no
clima já começavam a causar destruições em muitos lugares e os
recursos mundiais para pesquisas migraram para as tentativas de
salvação da Terra. Terminado o apocalipse, ainda foi preciso uma
geração para que a ciência médica voltasse ao estado da arte do período
pré catástrofe. A sorte de Ricky Vincent foi que, em 2088, ano de sua
quase morte, a Medicina já estava apta a realizar operações reparadoras
quase perfeitas.
Os Vincent haviam retornado aos Estados Unidos em 2068. Para Ricky,
deixar o calor tropical e as belas praias do Rio e recomeçar a vida numa
desolada fazenda do meio oeste americano foi uma mudança amarga.
Mas esse era o trato. O país precisava de mão de obra no campo, para
refazer as bases da agropecuária, fazer renascer seus cinturões verdes,
aumentar a produção de grãos, realimentar uma população que crescia
rapidamente. Em troca, o Governo providenciava educação e saúde
gratuitas e de alto nível para os trabalhadores e suas famílias. Ricky
pôde, assim, estudar nas melhores escolas do novo sistema educacional
e escolher o curso universitário mais em moda: Ambientalismo. Em
2082, graduou-se com excelentes notas e foi imediatamente admitido
numa grande empresa da Califórnia, cujo negócio era estabelecer o
equilíbrio ecológico das terras que tinham sido inundadas nas grandes
cheias dos anos 2050 e prepará-las para venda aos investidores locais.
Dois anos mais tarde, ainda em função dos ótimos graus obtidos na
Faculdade, foi convidado pelo Governo a participar do maior projeto
internacional da década e administrado diretamente pelo CoGeNa: a
construção, montagem e instalação em satélites e na superfície da Lua
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da rede de painéis que iria regular o comportamento do clima em todo o
planeta, conhecida até hoje pelo nome de Sistema Apollo.
Como parte dos requisitos para o trabalho que ia desempenhar, teve de
se alistar no Serviço Aéreo e se matricular no Curso de Formação de
Astronautas Voluntários. Em 2087, com a patente de Capitão Técnico,
fez sua primeira visita à Estação GeoMonitor II, onde se realizava a
seleção final da equipe que, no ano seguinte, iria montar as instalações
em solo lunar. Foi aprovado.
O acidente aconteceu em dezembro, num lugar chamado Ridge 4,
dentro da cratera de Eratóstenes. Ricky já estava trabalhando na Lua há
dez meses. Estava cansado e com saudade da MH que comprara e
deixara acoplada no Obama City Trade, arredores de Chicago. Era uma
tarefa banal, repetida muitas vezes nos painéis já montados: injetar
nitrogênio líquido no capacitador de nivelamento, uma das operações
finais do processo de fixação das gigantescas estruturas de carbolenium
que serviam de moldura para inserção das placas refletoras de luz solar.
Era o painel número 296, de um total de 300, numa linha que cobria
quase todo o “equador” lunar. Mais quatro, e ele poderia tirar férias.
Não se lembrava de ter sentido dor. Fora tudo muito rápido. Alguma
micro centelha no cabeamento dentro da cabine pressurizada com
oxigênio puro a 100% transformou o cockpit do guindaste magnético
num inferno. A pressão interna subiu, em frações de segundo, a mais de
30 psi, explodindo a cápsula e lançando Ricky, ou melhor, o que restara
dele, de encontro ao solo da cratera, 421 metros abaixo. E o que restara
era pouco, muito pouco. Os membros e três quartos do tronco tinham
vaporizado dentro do traje espacial. O que, cinco minutos depois, a
equipe de resgate conseguiu recolher na poeira de Eratóstenes foi uma
cabeça de rosto desfigurado pelo fogo. Mas, dentro dela, um cérebro
ainda pulsava com vida.
A reconstrução do Capitão Riccardo Vincent está até os dias atuais
registrada nos anais científicos de todo o mundo. É um dos case study
mais analisados nos cursos de Aplicação Médica. Hoje, qualquer pessoa
com um input financeiro de 110.000 yuans por ano ou mais, depois de
deduzido Contributo CoGeNa, pode ter acesso aos inúmeros Bancos de
Estrutura Clonada espalhados pelos grandes centros. Mas, naquela
época, era tudo novidade. Vincent ficou novo em folha. E famoso.
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Ao longe, começou a vê-la. Seu andar era cadenciado, elegante. Ao
chegar mais perto, ele pôde conferir – ela era ainda mais bonita do que
o holograma que recebera ontem.
Laverne Tan Lau era uma progene, ou seja, uma pessoa programada
geneticamente. Na virada do século XXII, tornou-se moda os pais
engendrarem combinações celulares, nos vários pools existentes, e
determinarem, durante a fecundação assistida, as características físicas
de seus bebês, da cor dos olhos até a conformação do fígado. Havia
vários pools, cada um especializando-se nas diferentes escolhas dos
casais para o aspecto futuro de seus filhos, desde atletas caucasianos a
dançarinas afro-asiáticas. O Pool Afrochina 7, onde os pais de Laverne
foram selecionar a cepa de ADN que seria inserida no óvulo da mãe,
segundos após a penetração do espermatozoide do marido, era
renomado pela imensa variedade à disposição de seus clientes. As
especificações constantes do Contrato de Procriação Intensificada,
assinado por eles, indicavam, no capítulo inicial:
Estrutura física
Endoesqueleto grau 3 (longilíneo/esclerose imune)/Altura prevista aos
21 anos (condições normais)= 1,78m
Cor da pele
Médio saara/22 van Luschen
Cor dos olhos
Âmbar médio no. 12
Cabelos
Negros
O restante da aparência de Laverne viria da combinação das
características físicas de seu pai nepalês e de sua mãe centro-africana.
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O espetacular resultado dessa construção genética estava agora
sorrindo, enquanto perguntava:
«Major Vincent? Ni hao ma?»
Todo mundo falava mandarim. Ele quis testar a cultura dela.
«Vou bem, obrigado. E você?»
«Ah! Português... Sim, eu também estou bem...»
Hummm... Nada mal; um pouco de sotaque, mas passável.
Ele fez um gesto largo na direção da porta do restaurante.
«Espero que goste da minha escolha. Estou com saudade da cozinha
americana tradicional».
O “The Tea Party” estava, desde sua inauguração em 2011, situado no
mesmo lugar – 80, West 46th street. Fora abandonado, naturalmente,
durante as décadas catastróficas de 2040 e 50, mas, tão logo o retorno
começara, tivera suas portas reabertas pelos descendentes dos donos
originais e conservado o mesmo letreiro em neon vermelho por cima da
porta em painéis de carvalho, o mesmo décor, os mesmos móveis e o
mesmo cardápio. Era um dos mais caros restaurantes da ilha de
Manhattan, mas mantinha fiel uma legião de habitués que se deliciavam
com seus frangos grelhados com purê de batata, seus meat loafs &
gravy, seus stakes cobertos de cebola frita e, é claro, suas tortas de
maçã. Um lugar único, numa cidade infestada de locais oferecendo
comida brasileira, chinesa, mexicana, além de centenas de cadeias
alimentares vendendo os últimos lançamentos de comida bioprocessada,
a famosa Biobroma, como ficaram mundialmente conhecidas as pastas
balanceadas de vários nutrientes concentrados e extirpados de tudo o
que pudesse trazer problemas ao equilíbrio hormônio-digestivo das
pessoas. Havia os fanáticos que só consumiam isso. Ricky detestava.
Aliviado, verificou, pelo olhar de aprovação de Laverne ao ver o letreiro
antiquado, que ela não era uma biobroma freak.
«Wan shan hao, Xiansheng Vincent.»
O maitre curvou-se ligeiramente.
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Ricky balançou a cabeça. Mandarim de novo. O período de
preponderância da China já havia terminado há mais de quarenta anos e
todo mundo ainda insistia no mandarim. Até um robô como Al.
«Boa noite, Al. Minha mesa de sempre?»
Imediatamente, os “neurônios” sintéticos de Al reprogramaram os
circuitos de linguagem.
«Claro, Major Vincent. Já está tudo preparado. Queiram acompanharme.»
Com o rabo do olho, ele observou as cabeças se voltando ao vê-la
passar. Ficou satisfeito de ver como ela chamava a atenção. Fiz uma
boa escolha, concluiu. O elegante vestido preto que Laverne usava
obedecia aos mais recentes ditames da moda feminina que, como
sempre ocorrera desde o antigo Egito, movia-se em ciclos. Antes dos
modelos clássicos inspirados nas griffes do começo do século XXI, agora
em voga, o gosto variara drasticamente nos anos iniciais da Grande Era.
Desde trajes nitidamente medievais, na década de 2080, até o
lançamento da Minimal Fashion há dez anos, em que se andava
praticamente despido, teve de tudo. No ciclo presente, os grandes
estilistas tinham ido buscar seus modelos, tanto para mulheres como
para homens, em arquivos do ano 2000. Mas, enquanto na aparência
nada parecia ter mudado, os materiais usados na confecção das roupas
tinham passado por um avanço tecnológico extraordinário. Em sentido
diametralmente oposto ao tempo em que as vestimentas eram
descartáveis, os tecidos agora não só eram mais duráveis, como
também dotados de sensores que monitoravam as condições externas e
internas do corpo, compensavam desconfortos de temperaturas agudas,
eram impermeáveis à chuva e, no caso do bem cortado terno azulescuro de Ricky, equipados para enviar informações a uma central
médica remota, receber feed-back e aplicar, quando necessário,
medicações de emergência.
A mesa reservada por Vincent ficava no segundo andar, numa graciosa
varanda de onde podiam se deliciar com a lua cheia e o céu tranquilo.
“Lua...”, pensou Ricky. Após todos esses anos, flashes do acidente
teimavam em ecoar no fundo de seu subconsciente. Ainda não havia
tecnologia que conseguisse deletar circuitos de memória. Foi ela quem
puxou o assunto:
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«Recordações?...»
«É... às vezes. É quase impossível apagar tudo. Mas nada que possa
estragar este momento...»
Al aproximou-se num andar bastante aceitável para um sintético modelo
2115.
«Quero permitir-me recomendar as costeletas de vitela. Estão realmente
especiais. Vêm acompanhadas batatas de Idaho cozidas, ervilhas
orgânicas e, é claro, gravy e cole slaw em separado.»
Ricky fez um gesto na direção de Laverne.
«Está ótimo para mim», ela falou.
Ele olhou para o maitre.
«Eu acho que vou preferir o hamburger com batatas fritas.» Apontou
para o próprio paletó, sorrindo. «Espero que o meu clínico não fique
sabendo disto...»
O rosto de Al
complementou:
continuou
impassível,
mesmo
quando
Ricky
«E não se esqueça do ketchup, por favor.»
«Perfeitamente, Major Vincent.» E curvando-se para falar mais de perto,
como a segredar algo confidencial. «Ainda temos umas garrafas do pinot
noir de Fujian shiěng.»
O rosto de Ricky iluminou-se.
«Ano?»
«2112.»
«Excelente!» Deviam custar uma pequena fortuna mas, que diabos, a
noite estava linda...
Foi só quando já estavam saboreando a maravilhosa torta de maçã com
chantilly que Ricky sentiu-se à vontade para perguntar.
«Ainda não acertamos o preço. Quanto custará?»
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Laverne apertou o botão do bracelete que trazia no pulso. Uma pequena
tela flutuou sobre a mesa.
«Serão 18 horas, não?»
«Isso. Até o meio-dia de amanhã.»
Ela falou para a tela.
«Dezoito horas», e virando-se para Ricky: «Vai ser na sua MH?»
«Sim...»
«Externa», ela voltou a dirigir-se à pequena tela flutuante.
Com os dedos, ela fez o écran voltar-se para ele. Contra um fundo de
cor neutra, ele leu:
“THE BIG APPLE PLEASURE ADVENTURE
WE DELIVER
No synthetics. The REAL thing.
Season´s promotion price: 300 yuans per 12 hours external
This request: 450 yuans”
Ricky olhou para Laverne. Caro, muito caro. Mas, valia a pena. Afinal,
era o atendimento de primeira classe que ele desejava. Já nem se
lembrava quando tivera sexo com uma mulher real pela última vez;
possivelmente, desde que essa prática fora banida para relações
heterossexuais em 2117.
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4.
Superpopulação. Esse era o problema.
Em 2040, a população mundial chegara a 8,7 bilhões, com um
crescimento anual previsto de 0,75%. Então, adviera o terrível desastre.
Pela primeira vez desde que a Peste Negra dizimara a Europa e parte da
Ásia em 1400, o número de habitantes da Terra diminuiu. Em 2060,
voltara ao nível de sessenta anos antes – 6,5 bilhões. Mas aí, com o
final do ciclo das catástrofes e um mundo aliviado voltando a ter
esperanças, ocorreu o maior baby boom de toda a História, muitas
vezes maior do que o acontecido ao final da Segunda Grande Guerra do
século XX. Em dezembro de 2080, atingiu-se a marca de 10 bilhões;
que continuou subindo, com aceleração nunca vista, nos anos seguintes.
Quatro fatores poderosos contribuíram. Primeiro, a automação do
automóvel, depois das MH´s e das estradas, que praticamente acabou
com as mortes no trânsito. Em segundo lugar, o banimento dos conflitos
armados, o compromisso de paz universal, a destruição dos arsenais; à
exceção de algumas disputas quase tribais na África, não se podiam
mais contar baixas causadas por ações bélicas de qualquer espécie. Em
terceiro, o tão desejado controle climático, proporcionado pelo Sistema
Apollo, permitindo domar a natureza ao ponto de prevenir o
desencadeamento de desastres naturais, acalmar tempestades,
direcionar chuvas, regular a ação dos oceanos, impedir a perda de vidas
com a efetivação de uma eficiente rede de alarmes; e manipular a
temperatura global, inclusive regalando os nova-iorquinos com esta
deliciosa primavera em pleno mês de janeiro. Por último, as
consequências do extraordinário progresso da ciência médica.
Programação
genética,
diagnósticos
imediatos
e
preventivos,
atendimento à distância, disciplina alimentar e o desenvolvimento de
vacinas poderosas haviam erradicado as doenças degenerativas. Mas,
acima de tudo, fora o avanço da cirurgia reparadora, que se iniciara
experimentalmente com a operação de reconstrução de Ricky Vincent, e
que hoje permitia a substituição de qualquer membro ou órgão, o crucial
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fator da redução do número de mortes. Enquanto, na década de 2080,
os óbitos somavam perto de 100 milhões por ano, em 2110 haviam
caído a apenas 20 milhões. Em 2116, quando as projeções indicaram
que, dali a quatro anos, a população da Terra atingiria a marca de 20
bilhões, as autoridades mundiais acenderam a luz vermelha.
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5.
Saíram do “The Tea Party” de mãos dadas. A MH de Ricky estava
acoplada no Grand-Park Center. Eram duas quadras para leste. Com
toda a certeza, seriam os únicos a caminhar por ali. Com o
desaparecimento da necessidade de sair para trabalhar, estudar, ir ao
cinema, fazer compras, o deslocamento pelas ruas das grandes cidades,
principalmente a pé, era coisa rara. As MH´s, especialmente quando
acopladas a centros de qualidade capazes de prover toda a
infraestrutura de lazer e de alimentação, eram praticamente
autossuficientes em tudo. As tarefas profissionais eram virtuais e feitas
em casa e o ensino era à distância. Sair, só mesmo para entretenimento
alternativo, como jantar num restaurante da moda, assistir uma peça de
espetáculos artísticos ao vivo ou comparecer a eventos desportivos.
Coisas não essenciais, mas importantes para preencher a necessidade
atávica do contato físico, de estar no meio de uma multidão, de
compartilhar um momento, uma jogada, uma canção.
As ruas de Nova Iorque estavam relativamente seguras. Além disso, a
maioria dos cidadãos possuía, acoplado ao sistema de comunicação de
suas pulseiras, um mecanismo de alerta. A qualquer indício de perigo,
bastava acioná-lo, e policiais sintéticos apareceriam quase que
imediatamente.
Entraram no imenso saguão do Grand-Park e tomaram um dos
cinquenta elevadores que serviam as MH acopladas. O Centro era capaz
de abrigar mais de cinco mil usuários. Em segundos, chegaram ao 98º
andar.
«Vincent», Ricky falou baixinho e, com um suave murmúrio eletrônico, a
porta de metal dourado abriu-se. No meio da sala de jantar ricamente
decorada, uma jovem esguia de cabelos ruivos e olhos azuis, vestida
com uma camiseta vermelha curta, sorriu, dizendo:
«Olá, Ricky. Em que lhe posso ser útil?»
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Laverne não conteve a admiração.
«Wow, um modelo GE-X AdvanceMood. Que luxo! Ela também vai
participar?»
Ricky sacudiu a cabeça negativamente.
«Não, não... Hoje não quero saber de sintéticos...»
E virando-se para a garota.
«Obrigado, querida. Pode ficar em modo stand by no seu carregador. E
desligue todos os comunicadores externos. Não quero ser incomodado
nas próximas horas, OK?»
«OK, Ricky. Tenho duas mensagens, mas nenhuma urgente. Estão
armazenadas para quando quiser vê-las. Arrivederci.»
A MH de Vincent era espaçosa e confortável, como convinha a um
membro da classe alta. Além da sala de jantar, contava com dois
quartos, um escritório e uma saleta íntima, que Ricky chamava de
studio, onde gostava de ficar horas dedicando-se ao seu passatempo
predileto – construindo einsteins de grandes figuras do século XX.
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6.
Em 1986, a Universidade de Princeton e a Universidade Hebraica de
Jerusalém iniciaram o Einstein Papers Project, destinado a reunir,
preservar, traduzir e publicar documentos pertencentes ao espólio
literário do grande físico alemão, mais de 40.000 itens, e outras 15.000
peças, incluindo anotações, notas de rodapé, bilhetes, correspondências,
fotos e outras manifestações gráficas suas, constantes de coleções
particulares. Até o ano 2000, o projeto residiu na Universidade de
Boston; a partir de então, foi relocado para o Instituto de Tecnologia da
Califórnia, em Pasadena. Em 2005, como parte das comemorações do
centenário de nascimento do gênio, um outro projeto, chamado Living
Einstein, colocou todo este acervo, já totalmente digitalizado, à
disposição de consultas na web. O diferencial deste site era dar a
impressão ao consulente de que era o próprio Einstein quem respondia
às perguntas. Um programa de cruzamento de dados construía, a partir
dos milhares de pedaços de informações constante do acervo
digitalizado, um “raciocínio” lógico, baseado nas muitas opiniões,
conceitos, pensamentos e afirmações emitidos por Einstein ao longo da
vida e criava uma “resposta” alegadamente igual à que ele daria, se
vivo estivesse e a pergunta lhe tivesse sido dirigida pessoalmente. Aos
poucos, o projeto foi assimilando melhoramentos até que, em 2012, já
era uma imagem animada do cientista, obtida por superimposição de
vários instantâneos e filmes, que “conversava”, na sua própria voz
remasterizada de gravações antigas, com os internautas. E, nesse
estágio, o projeto ficou durante uns dez anos, atraindo alguma atenção
da comunidade científica e acadêmica. Foi só com o aperfeiçoamento da
holografia e sua introdução no uso doméstico que o Living Einstein
ganhou significado comercial. Em 2029, uma grande Game House
americana comprou os direitos de copyright do programa e, após uma
milionária campanha publicitária, lançou-o no mercado mundial. O
software, batizado de The Einstein Avatar, permitia às pessoas, desde
que fossem capazes de digitalizar todos os registros de sua vida,
construir um holograma idêntico a si próprias, que poderia não só
19
20
discursar para uma roda de amigos na sua sala de estar, como, enviado
via web e baixado do outro lado do mundo, comparecer a uma reunião
de negócios. Os usos tinham como limite apenas a imaginação do
usuário. Foi o maior sucesso de vendas na história da cibernética em
todos os tempos; ninguém que se prezasse poderia prescindir de seu
einstein pessoal.
A tragédia dos anos 2040 e 2050 acabou com esse mercado. Arquivos
foram apagados, comunicações interrompidas, suportes técnicos
destruídos. Os grandes produtores de softwares comerciais foram
aniquilados. Quando aconteceu a retomada, outras prioridades se
sobrepuseram e a brincadeira dos avatares não ressuscitou. Algumas
cópias antigas do programa, entretanto, ainda podiam ser encontradas
nas mãos de alguns poucos colecionadores ou em decrépitos sebos
periféricos. E foi num deles, há uns seis anos, na chinatown de San
José, que Ricky conseguira comprar, pela bagatela de 120 yuans, um
The Einstein Avatar Versão 3.0. Entretanto, nunca o usara para
desenhar seu próprio holograma; isto agora era considerado démodé.
Mas, como era fascinado pelo século XX, deu início a uma extensa
biblioteca sobre a época, colecionando todo e qualquer arquivo que
encontrasse sobre suas grandes personalidades e se dedicando a
montar os seus einsteins. Era seu hobby preferido.
20
21
7.
«Clássicos antigos?».
Laverne demorou um pouco para responder. Estava admirando a
espetacular vista do rio banhado pela lua cheia e lentamente deslizando
o fecho ecler de seu vestido.
«OK. Pode ser...»
Ricky encostou o dedo num pequeno console junto à cama, que se
levantara do chão coberto por um carpete macio. A luz do quarto
diminuiu lentamente e um acorde suave de violinos tocou as primeiras
notas de Eleanor Rigby.
«Meu DSS favorito. Foi gravado em 2018 pela Filarmônica de Xangai. A
coleção completa dos Beatles.»
Laverne sorriu.
«Meu Deus! Beatles. Você é mesmo vidrado no século XX. Eu...»
A boca de Ricky interrompeu a frase. O vestido preto já caíra no tapete.
Ele murmurou, sentindo a temperatura gostosa da pele dela, o perfume
floral misturando-se com a fragrância de seu corpo, as mãos de dedos
longos entrando em seus cabelos, as suas sentindo a rigidez saudável
dos glúteos daquela mulher real:
«Puxa... quanto tempo...»
Junto ao tapete, no canto esquerdo do quarto, uma pequena luz
vermelha acendeu. Ficou acesa por uns cinco segundos. Depois,
apagou-se. Não fosse o Major Ricky Vincent um Agente Classe S1, em
menos de três minutos um destacamento de sintéticos da Polícia de
Monitoramento Demográfico, a famigerada PMD, invadiria a MH e
prenderia o casal.
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22
8.
A luz junto ao chão era um sensor. Todas as MHs eram obrigadas a têlo, assim como todos os espaços fechados dos Centers, os banheiros dos
restaurantes, dos teatros, dos estádios, até os toaletes dos grandes
aviões de transporte intercontinental. Ou seja, todo e qualquer lugar
fechado onde pudesse acontecer um ato sexual estavam monitorados.
Bastava que o estímulo químico de uma diminuta fragrância de
feromônios masculino e feminino fosse captada por esse olfatômetro
ultrassensível e o alerta soaria numa das muitas centrais de controle da
PMD. Só a combinação dos dois odores ativaria o aviso. Relações entre
pessoas do mesmo sexo ou com sintéticos estavam liberadas; isto é,
aquelas que não traziam o risco de uma gravidez.
Lançadas há três anos, as grandes campanhas desencadeadas pelo
CoGeNa, como o aperfeiçoamento dos meios anticoncepcionais,
abandonados e renegados durante o período de retomada, e os
benefícios fiscais destinados a uniões homossexuais ainda não haviam
surtido grandes efeitos. O número de nascimentos anuais declinara
somente 8%, de 2116 para 2118, e se mantinha acima de 150 milhões
– uma cifra inaceitável. Assim, em 2119, a instalação dos olfatômetros
tornara-se obrigatória.
Mas o mundo sempre fora, e continuava sendo, desigual. Embora
preconizada pela Carta de Brasília, a Terra Ideal, com todos os povos
vivendo no mesmo nível de desenvolvimento, permanecia um sonho,
uma utopia, um desejo apenas. O mesmo quadro geopolítico de
diferenças, ainda que com algumas mudanças dos atores principais
determinadas pela catástrofe do século XXI, mantinha-se. Basicamente,
na segunda década do século XXII, os grupos de maior influência no
plenário do Conselho Geral das Nações eram o sul-americano,
capitaneado pelo Brasil, o norte-americano, pelos Estados Unidos, o
europeu, com hegemonia alemã, e a China-Viet Nam, inquestionável
dona do extremo oriente e do sudoeste asiático. A Austrália era o
grande celeiro e servia de fiel da balança nas votações mais disputadas.
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O resto vivia à margem: África, grandes bolsões do médio oriente, da
antiga Índia, o devastado território russo-siberiano, os escombros das
ilhas japonesas e da península coreana. Nada disso conseguira
recuperar-se; em seus guetos, favelas, kasbahs e acampamentos, uma
imensa população vivia como há trezentos anos atrás, em habitações
sem conforto e higiene, em vielas escuras e sem ar, longe, muito longe
das benesses mais corriqueiras dos afortunados nos grandes centros. A
mesma perversa divisão entre cidadãos de primeira classe e os sem
classe nenhuma perdurava, ainda mais cruel.
E aí residia a grande preocupação do Gabinete de Administração do
CoGeNa. Era a certeza de que nenhuma das grandes medidas
implantadas para conter o número de nascimentos iria atingir aquele
“segundo mundo” – e ali vivia um terço da população global, cerca de
5,6 bilhões de pessoas, com uma taxa de natalidade de quase 1% ao
ano. Assim, mesmo que as regiões ditas “civilizadas” reduzissem a zero
sua taxa de procriação, o que era quase impossível, só o ritmo de partos
daqueles povos miseráveis era suficiente para manter o número de
habitantes subindo.
Dentro do organograma do Gabinete, havia uma divisão especial de
estudos, composta de algumas das melhores cabeças da comunidade
científica mundial e de uma legião de jovens brilhantes, recrutados entre
os primeiros alunos dos cursos universitários mais conceituados. Os
salários eram tentadores, as instalações impecáveis e os recursos para
pesquisa praticamente inesgotáveis. Como a maioria dos projetos
estava classificada no mais elevado grau de sigilo, era exigido, dos
quase 1.500 funcionários, além de total dedicação e execução em nível
de excelência, um compromisso formal de silêncio sobre as suas
atividades – um juramento de omertà, ao melhor estilo das antigas
máfias do século XX. O principal objetivo dessa divisão especial era
engendrar soluções para os grandes problemas da humanidade, se
possível antecipando-se a eles, imaginá-los antes que acontecessem e
antepor-se aos seus efeitos com a descoberta de defesas criativas,
efetivas e rápidas.
Num dia chuvoso de dezembro de 2119, o chefe de um dos
departamentos mais secretos da divisão, cujo quartel-general era um
prédio desapercebido na periferia de San José, na Califórnia,
apresentou-se ao diretor-geral da organização. Na sua pulseira, trazia
um conjunto de vinte arquivos, que eram o resultado final do projeto no
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qual ele e seu grupo de pesquisadores haviam trabalhado
ininterruptamente por um ano e meio: a solução final para o problema
do crescimento demográfico do dito “segundo mundo”. Durante quase
duas horas, as telas projetaram o minucioso estudo, sua concepção, seu
desenho, seus meios, sua aplicação e suas consequências. Quando
terminou, o diretor-geral cumprimentou-o.
«Está excelente. Vou enviá-lo agora mesmo para a Mesa do Gabinete.
Espero ter a luz verde ainda hoje. Parabéns, Major Vincent.»
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9.
Genocídio. A palavra fora pronunciada várias vezes na reunião do
Gabinete de Administração. Mas, não com repulsa ou horror. No
máximo, era um “mal necessário”. E, afinal, não era um real genocídio,
na acepção mais literal do termo. O que o projeto de Riccardo Vincent
determinava era pouco mais do que uma simples esterilização em
massa. Na segunda metade dos anos 1900, o governo indiano fizera
algo parecido, oferecendo vasectomias e laqueaduras em troca de
emprego público, de financiamento barato para casa própria e até de
radinhos de pilha, com a aprovação de grande parte do mundo. Era
verdade que a atual solução não se fundava exatamente na destruição
da capacidade de reprodução e nem oferecia escolha às sociedades a
serem atingidas. Era mais de uma emasculação, uma obliteração do
desejo sexual, tantos nos homens como nas mulheres, que a “solução
final” de Vincent e seu grupo tratava. E que seria ministrada sem sequer
o conhecimento de seus milhões de “pacientes”. Um pouco drástico,
talvez. Mas, no momento, parecia ser a única alternativa para livrar o
planeta do fantasma da superpopulação.
O presidente da reunião olhou em torno.
«Eu voto a favor.»
Os outros seis membros foram concordando, um a um.
Apenas o representante australiano pediu a palavra.
«Embora concordando com a implementação imediata do projeto,
gostaria de enfatizar a necessidade da desvinculação total da
participação deste Gabinete no processo. Todos devem ter percebido
que várias das ações embutidas na sua aplicação ferem alguns dos
princípios estabelecidos na Carta de Brasília e na Regulamentação da
Terra Ideal. Interferir nos programas de controle do Sistema Apollo,
para aumentar a temperatura média das regiões alvo e provocar uma
seca de grandes proporções já é uma gravíssima ilegalidade. O êxodo
dirigido das populações atingidas para áreas de concentração poderá
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trazer lembranças desagradáveis e a manipulação da rede InterNews
para propagar a necessidade de uma vacinação em massa é uma
operação de altíssimo risco. Para não falar nos imponderáveis existentes
no transporte dos soros emasculadores e nos cuidados para que as
milhares de equipes aplicadoras não tenham conhecimento do que estão
na realidade fazendo. Quantas pessoas terão acesso ao conteúdo
verdadeiro da operação?»
O presidente olhou para uma das telas flutuantes em cima da mesa.
«Bem, aqui indica que 1.232 oficiais de várias qualificações terão
conhecimento limitado, 102 saberão de alguns dos vetores operacionais,
3 pesquisadores-chefes dirigirão os grandes movimentos de recursos...»
Com um gesto virou a tela para os outros.
«Conhecimento total da Operação Espada de Herodes só mesmo o Major
Vincent e o diretor-geral da Divisão Especial. E nós.»
O australiano ficou em silêncio por uns segundos, antes de voltar a
falar.
«Vamos dar a luz verde. E depois, vamos apagar qualquer registro de
nossa aprovação e desta reunião. Ela não existiu, OK? Para todos os
efeitos, a responsabilidade única e exclusiva será do Major Ricky
Vincent. Não podemos nos arriscarmos a uma exposição perante o
Grande Plenário do CoGeNa, caso isso venha a dar errado. E, na minha
opinião, pode dar errado de inúmeras maneiras. Não me chamo Murphy
por acaso...»
Os demais riram discretamente.
Assim que todos saíram, o presidente do Gabinete chamou seu
assistente sênior.
«Você queria falar comigo.»
«Sim, senhor presidente. Temos recebido informes inquietantes de
nossos agentes implantados na região do sub-Hindu. Parece que
detectaram uma união de forças políticas que...»
O presidente interrompeu.
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«Esses agentes vivem inventando fantasmas. A região está sob
controle. As máfias locais vivem se engalfinhando. Não têm condição
nem de organizar uma representação para a próxima olimpíada.»
O outro insistiu.
«Desculpe, senhor, mas os informes estão suportados por material
decodificado da Kampuchea Stream, uma rede pirata que volta e meia
circula na broadweb. A princípio, pensamos que era coisa de
adolescentes. Estamos convencidos agora que se trata de algo mais
sério. Há menções consistentes a uma tal Frente Sama. Sama quer dizer
Igualdade em indonésio. Seu propósito inicial é de realizar ações de
impacto para chamar a atenção mundial para os problemas do segundo
mundo.»
O presidente ficou calado. “Logo agora”, pensou contrariado.
Aparentando calma, levantou-se, pegou o assistente pelo braço e foi
saindo da sala, falando enigmaticamente.
«Não se preocupe. Esta Frente, se é que existe, logo, logo vai ter com o
que se preocupar...»
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O sol só aparecia metade acima da linha reta do Índico; mais 45
segundos,
e
ele
mergulharia
no
horizonte,
levando,
misericordiosamente, uma parte do calor infernal daquele dia abafado
de dezembro. A varanda do bar que dava para o poente estava deserta,
à exceção de um solitário cliente, que se preparava para sorver mais um
gole de seu chá gelado, quando sentiu a pressão de sua pulseira. Num
relance, a tela flutuou na sua frente. Ele murmurou em surdina a senha:
«Jawaban.»
Um rosto conhecido apareceu, ocupando quase completamente o écran.
Sua voz era grave e carregava urgência.
«A Operação Herodes acabou de ser aprovada. Temos de agir
imediatamente. O líder é mesmo o Major Riccardo Alla Vincent. Já
selecionaram o executor?»
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«Já»
«Confiável?»
«Armas nível AAA, ultrafighter com cursos no Rio e em Ancara, línguas e
disfarces topo de linha. Melhores notas de sua turma de doutrina.
Checagem de antecedentes impecável. E bonita.»
«Mulher?»
«Sim... Ricky Vincent é um hetero bastante ativo e tem a classificação
S1...»
«Já está em posição?»
«Em Nova Iorque, trabalhando no Big Apple Pleasure Adventure, o único
serviço de escort da Nova Inglaterra, destinado a homens com
permissão para sexo real, como o Major.»
«OK. Você sabe que não podemos falhar. A Frente jogou todas as fichas
em nós.»
«Eu sei. Fique tranquilo. Selamat Tinggal.»
«Adeus.»
A tela desapareceu.
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29
10.
A cabine do guindaste era um inferno. Desesperado, ele sentiu as
chamas envolverem o seu traje espacial, transformando-o numa
labareda viva. Uma pressão doida parecia querer reduzi-lo a uma
compota de carne e ossos e começava a estilhaçar as janelas do
pequeno quadrado de metal. Aí veio a explosão, e ele se viu subindo no
ar rarefeito, ao lado do grande painel de carbolenium cinzento. E,
depois, começando a cair, lentamente, lentamente, lentamente...
Acordou.
Percebeu que algo estava errado. Esticou o braço para o lado vazio da
cama.
«Não se mexa.»
Laverne estava em pé, nua, entre a cama e a porta entreaberta do
studio. Na penumbra do quarto, ele apenas via o contorno do seu corpo,
o antebraço levantado na direção dele, o cano apontado para sua testa.
Deu para reconhecer a arma: uma Cascabel 3.4, certamente fabricada
fora das zonas de controle do CoGeNa. Combinava carga ultrarrápida
com um projétil ativado a laser e destinado a, praticamente, derreter o
cérebro em décimos de segundo. Mortal.
Ricky viu o brilho calmo dos olhos dela. Ela iria atirar a qualquer
momento As duas bolas de âmbar plácido estavam fixas, seguras,
decididas.
Então elas tremeram. Um ruído que parecia o estalo dos tacos de um
par de botas ressoou no studio. Um átimo. O corpo de Laverne
deslocou-se quase que imperceptivelmente. Os olhos perderam a mira
por um minúsculo instante. Foi o suficiente para Ricky. Com a imensa
agilidade que sua condição de semissintético lhe conferia, ele
despregou-se da cama e saltou sobre ela, gritando ao mesmo tempo
com toda a força de seus pulmões.
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«Gina!...Intruso!...Uccidere!...»
Os lindos olhos azuis de Gina abriram-se. Imediatamente, ela desceu do
carregador e, com três passadas largas e ligeiras, cruzou a sala, entrou
no quarto, onde Ricky tentava impedir que Laverne o alvejasse. Os
modelos GE-X AdvanceMood estavam, entre muitas outras coisas,
programados também para isto. Com uma força descomunal, Gina
segurou o braço de Laverne e virou-o para trás, violentamente. A
mulher deu um grito. O barulho de ossos partidos coincidiu com o início
de um discurso inflamado, numa voz potente de sotaque bávaro, que
emanava do quarto ao lado. Com o mesmo sorriso sereno nos lábios,
Gina enlaçou a pescoço de Laverne com o outro braço. O âmbar
começou a empalidecer no centro dos olhos arregalados. O corpo cor
médio Saara, geneticamente programado, entrou numa sequência de
convulsões. Aos poucos, os espasmos foram cessando. Numa expressão
angelical, Gina virou-se para Ricky.
«Está morta. Posso largar?»
«Sim, Gina. E contate o concierge. Dê a minha identificação e mande vir
recolher o corpo. E avise o diretor-geral da divisão que uma tentativa de
impedir a implantação da Operação Herodes não resultou. O caminho
está livre. Use o canal codificado, OK?»
«OK, Ricky. Mais alguma coisa?»
Ele ficou admirando as longas pernas da sintética.
«Bem...no momento, não. Talvez mais tarde...»
Olhou para a porta entreaberta do studio. A arenga continuava.
«...es lebe der Deutscher Nazional-Sozialimus... es lebe der Deutscher
Volk...»
Com um sorriso, ele então descobriu o que havia distraído Laverne e
salvado a sua vida.
Em pé, no meio do pequeno espaço, com uma mão segurando o cinto e
o outro braço estendido na diagonal, o einstein de Hitler discursava para
uma multidão imaginária.
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013
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1
Ele abriu a porta da pousada. Era de manhã, cedo. Era sábado e fazia um frio
cortante. Levantou a gola do casaco e esperou.
Não demorou muito. Vestindo uma batina preta, com um chapéu também
negro, arredondado de abas largas, o padre chegou. Olhou longamente para ele
e disse, com doçura.
«Está na hora. Vamos?»
Tinha vindo para cá há menos de uma semana. Ordens do patrão. «Grande
oportunidade, cara. Terreno inexplorado, cidade em expansão. Ideal para um
vendedor iniciante e com potencial, como você.» A inevitável palmada nas
costas.
Mas, onde é mesmo que ficava? Falou com um colega, que parecia amigo
nestes primeiros dias na firma. «Sei lá, amigão. É pra lá de onde Judas perdeu
as botas. O que eu sei é que nenhum outro vendedor topou ir... Já sei, o chefe
não te deu muita escolha, não foi?»
Era verdade. Não fora bem um convite, nem uma proposta. Fora um ultimato.
«Bem...quem sabe...Pode ser mesmo uma oportunidade...sou novo na
empresa...»
«É...quem sabe...», o outro falou. Havia mesmo certo tom de mistério na voz
dele, ou estaria imaginando coisas?...
A viagem fora longa, muito mais do que esperava. Avião de carreira até a
capital do estado, depois outro minúsculo e instável, que quase lhe revirara o
estômago, até a escala final. Daí para frente, intermináveis horas sacolejando
num ônibus antediluviano por entre serras, precipícios, subidas, descidas,
curvas sem fim.
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Chegara à noite, saltando em frente da pensão onde dormiria, vergado pelo
cansaço e pelo peso dos mostruários e catálogos que trazia. Apagou na cama
ampla e macia antes de conseguir despir-se todo.
Logo de manhã, o único empregado bateu-lhe à porta do quarto com um
autêntico breakfast americano: café, torradas, manteiga, ovos mexidos, fatias
de bacon crocantes, leite com cereais, copão de suco de laranja. Arregalou os
olhos, enquanto tudo lhe era colocado em cima de uma cômoda. Fazendo uma
mesura, o rapaz ainda perguntou-lhe.
«Anything else?»
«Hein...?»
Meio sem jeito, o empregado explicou.
«É... desculpe, senhor. Mas como o café da manhã está no cardápio com o
nome de “Yankee Morning Call”, eu resolvi acentuar a cor local. O que eu
queria dizer é – deseja mais alguma coisa?»
Ele não quis demonstrar ignorância.
«Eu entendi. Também sei falar algum inglês.... Mas, é que não esperava esta...
esta...»
O outro olhava para ele, empertigado, esperando o fim da frase – que ele não
conseguiu terminar. Foi apenas capaz de dizer.
«É...obrigado...muito obrigado, está excelente...»
Comeu com prazer. Depois, tomou um banho de chuveiro, colocou o único
terno que trazia, apurou-se. Era o início de um grande dia, avaliou. Ia
desbravar um novo mercado, mostrar sua habilidade de vendedor e
representante, realizar negócios. Se provasse ser capaz neste fim de mundo,
certamente a empresa lhe abriria as portas de uma promissora carreira.
Galgaria a hierarquia, chegaria a gerente, talvez Diretor. Sócio, quem sabe?
Embalado pelos sonhos de sucesso, saiu do quarto carregando os mostruários,
passou pela portaria, acenando para o surpreendente funcionário da pensão, e
ganhou a rua.
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Logo à frente da porta, estava estacionado o que pareceu ser um táxi. “Numa
cidade que é um ovo, pra que táxi”, pensou. Na realidade, porém, não foi isso
que o intrigou. Foi o carro.
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2
Era um Austin FX3 modelo 1948, todo imaculadamente preto, com os
cromados reluzentes, as luzes de direção amareladas sobre as portas traseiras e
o letreiro iluminado em cima do para-brisas Uma visão saída de Londres do
pós-guerra. Imediatamente, a porta da frente abriu-se e um impecável
chauffer, de uniforme cinza médio, polainas e boné, apresentou-se.
«Seja bem-vindo, senhor. Onde quer que o leve?»
Ele olhou demoradamente para o motorista. “Incrível...”
«Bem, amigo, sou representante comercial de uma grande firma de São Paulo.
Vim aqui para lançar os seus produtos. Trago catálogos, amostras, listas de
preços. Por onde acha que devo começar?»
O outro nem pestanejou. Parecia que já adivinhava a pergunta e tinha a
resposta na ponta de língua.
«Se me permite, vou levá-lo a Sir John McTavernall».
Ele se surpreendeu.
«Sir...o que? Quem é? O Prefeito?»
Abrindo a porta traseira e fazendo um gesto para que entrasse, o taxista
respondeu.
«Não exatamente...»
Apesar de sua idade, o Austin comportou-se com garbo durante a pequena
viagem. O molejo era suave, o motor seguro, o interior sóbrio, limpo e
confortável.
Assim que deixaram a área urbana, as margens do caminho mostravam uma
natureza cambiante, que aos poucos deixara de exibir uma vegetação comum
de cerrado e passara a mostrar uma paisagem serrana, que gradativamente se
tornava mais e mais fechada, eucaliptos e pinheiros impondo sua sombra e sua
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quietude. Dentro do carro, também o silêncio. O chofer levantara o vidro que
ficava entre o banco dianteiro e o de trás.
Quinze minutos após terem saído da porta da pousada, o Austin fez uma curva
à direta, cruzou um portentoso arco de pedra e entrou num caminho bem
cuidado, com bom pavimento e cercado por um muro recoberto de hera verde
e espessa. Ao chegar ao topo de um suave declive, ele pôde visualizar, logo
abaixo, um gramado perfeito cercando uma construção que poderia ter saído
de um folheto turístico das highlands escocesas. Era um pequeno castelo, com
suas ameias, suas torres recortadas, suas paredes austeras. Havia até um fosso,
com ponte levadiça, que o táxi cruzou com cuidado. O chofer anunciou,
abrindo-lhe a porta.
«Chegamos». E, olhando em torno, completou.
«Pode andar até aquele portão...», falou com solenidade. « Sir McTavernall irá
recebê-lo no salão de entrada».
Não precisou bater. Assim que se aproximou da imensa porta de madeira
trabalhada, ela abriu-se de par em par, revelando uma figura inesquecível.
Parado na entrada, de mãos na cintura, um gorro verde encimando um rosto
corado e de vistosa barba grisalho-avermelhada, um elaborado cachimbo preso
em perfeitos dentes exibidos num largo sorriso, uma camisa branca de mangas
bufantes e um kilt tecido num padrão de quadrados verdes, amarelos e
vermelhos, o dono do castelo, apertando os olhos azuis, cumprimentou-o.
«Welcome... quero dizer, seja bem-vindo, Mr...»
Pela segunda vez desde que chegara, foi-lhe difícil achar o que dizer. Apenas
balbuciou o seu nome e alguma coisa sobre o objetivo que o trouxera até a
cidade. O anfitrião pareceu satisfeito com as informações e, fazendo um largo
gesto, convidou-o a entrar. Foi andando, levando-o pelo braço com simpatia.
«Bem, você... permita-me que o chame de você, afinal é muito mais jovem
que eu...você deve estar achando tudo muito curioso, ...»
Ele só conseguia assentir com a cabeça. O outro prosseguiu.
«É natural... quem vem da cidade grande acha, às vezes, os hábitos do pessoal
interiorano um pouco peculiar. Mas...», e seguiu falando de coisas
absolutamente triviais, como se castelos escoceses, táxis londrinos e desjejuns
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americanos não existissem ou fosse parte do dia a dia de qualquer comarca
brasileira.
E, embora isto o incomodasse, o que os seus olhos iam apreendendo o
impressionava muito mais. Do lúgubre salão de entrada onde fora recebido,
Sir John o levara para um amplo cômodo, de pé direito altíssimo, grandes
panóplias medievais descendo pelas paredes como longas páginas ilustradas
de um livro de história. Uma formidável lareira (lareira!) era suficiente para
iluminar o aposento, achas crepitando num fulgor vermelho e hipnotizante.
Duas vetustas poltronas ladeavam o fogo. McTavernall indicou uma para que
ele se sentasse.
A tarde já virara noite quando entrou no táxi preto para voltar à pensão. O
motorista levantara o vidro que o separava do passageiro e ele pôde viajar em
silêncio, digerindo pouco a pouco tudo o que escutara durante as fantásticas
horas que passara em companhia de Sir John McTavernall, um dos mais
extraordinários tipos que havia jamais conhecido. De qualquer maneira, ficou
com a impressão de que a visita fora um teste, e que recebera o selo de
aprovação. Com simpatia, o escocês até indicara um possível cliente, a dona
de uma pequena loja. «Não se deixe influenciar pelo tamanho do negócio. É
pequeno, mas vende muito e é altamente prestigiado por todos os nossos
habitantes. E não se engane: vai conhecer uma hábil comerciante...», dissera
cuidadosamente Sir John.
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3
Na manhã seguinte, não havia táxi à porta. Também não importava muito.
Tudo era perto. Sobraçou os catálogos e os mostruários, conferiu as anotações
que fizera para ter todas as informações técnicas na ponta da língua e começou
a andar em direção à La Belle Époque, a loja indicada por McTavernall como
a primeira a ser visitada em sua campanha de vendas.
Ficava a dois quarteirões da pensão, pouco mais de cem metros que ele cobriu
em passos lentos, meio dobrado pelo peso da literatura comercial que
carregava. O ritmo vagaroso também permitiu-lhe observar mais o casario da
cidadezinha, uma mescla de estilos, cores, referências de épocas e materiais,
desde uma construção tipicamente colonial americana, logo ao lado da
pousada, até uma sombria mansão inglesa, um solar italiano em neoclássico
linear, um sobrado espanhol, um casarão em rebuscado rococó, e assim por
diante. Parecia quase um set de filmagem, pensou. E, apesar de a manhã já ir
avançada, ninguém nas ruas.
De longe, viu a fachada da tal lojinha. Em consonância com o festival
arquitetônico que parecia dominar a vila, era um prédio de dois andares que
poderia ter sido transplantado de Paris da virada do século. Virada do século
19 para o 20, bem entendido. O nome tinha mesmo de ser este, dependurado
num letreiro de ferro torneado, debaixo de uma graciosa varandinha do
segundo andar, com seu gradil volteado, as paredes pintadas de rosa
esmaecido, um grande vitral de vidro colorido desenhando uma figura
feminina cercada de flores. Tudo legitimamente art-nouveau.
Abriu a porta estreita com cuidado. Um sininho tilintou. Um perfume suave
acariciou o seu olfato e um enorme gato, de pelo farto totalmente branco,
apareceu andando com majestade. E aí, ela.
Primeiro foi o vulto, ofuscado pela luz que vinha de uma janela situada nos
fundos. Quando os contornos ficaram nítidos, foi então o rosto que o
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surpreendeu. Emoldurado por cabelos negros como a noite cortados à la
garçon e um imenso pega-rapaz na fronte, era de um jambo maduro, com um
rosado natural acentuando olhos escuros e brilhantes cercados de uma sombra
lilás e a boca bem desenhada de carmim rútilo. O longo vestido de seda preta,
colado ao corpo esguio e acentuadamente decotado, e uma piteira comprida e
dourada, de cuja ponta finos volteios de fumaça subiam para o teto,
completavam a imagem de uma mulher nos início de seus quarenta anos,
formosa e elegante, como que saída de um número da Vogue da década de
1920.
«Oui?...» A voz era rouca, sensual.
Ele pigarreou, novamente emudecido pela surpresa.
«Bom...bom dia...é que Sir MacTavernall...»
Ela interrompeu. «Já sei... ele me informou que você viria. É o representante
comercial de São Paulo. Alors, o que tem para oferecer?»
O tom era direto, de quem não gosta de perder tempo e carregava um sotaque
distintamente francês. Ele atrapalhou-se, deixou cair parte dos catálogos,
esbarrou num mostruário de roupas, tipo elefante em loja de louças. Ela ficou
imóvel, observando com resignação. Ele sentiu as bochechas arderem.
«Desculpe... bem... Tenho várias linhas de produtos, nossa firma é
importadora, revende coisas do mundo inteiro, vestuário, cosméticos,
eletrônicos, alimentos. Nosso lema é “Querer é Pedir”, sabe, um trocadilho
com o ditado “Querer é po...”». Parou e olhou para ela. E ela o olhava como se
dissesse “a-hã...” Sentiu-se um idiota. Felizmente, ela cortou o momento
embaraçoso.
«Tudo bem. Deixe os seus catálogos e eu vou preparar uma lista de
encomendas. Passe aqui hoje à tarde para pegá-la. Aurevoir, Monsieur...»
Ele disse seu nome. E tentou imitar a despedida.
«Ôrrevuá, dona...»
«Mademoiselle....Mademoiselle Louise de Lautrec», ela informou, estendendo
a mão para que ele a beijasse. Sem entender a intenção, ele segurou-a com
força num aperto de mãos deselegante. Depois, na rua, percebeu a descortesia
e pensou, mais uma vez, “que idiota eu fui...”
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Voltou para a pousada. Uma da tarde. O empregado estava na recepção, agora
vestido num impecável summer, jaquetão branco, calças pretas, sapatos de
verniz, uma camisa de babados, gravatinha borboleta vermelha. Tudo very
continental. Assim que ele entrou, fez-lhe uma mesura.
«O senhor quer almoçar?» E, sem esperar a resposta, entregou-lhe um enorme
menu, de capa de couro desenhada com motivos medievais e várias páginas
em que finíssimas sugestões das melhores cozinhas apareciam em caligrafia
rebuscada, cercadas de ilustrações de épocas e de lugares.
Depois de tudo por que passara desde a sua chegada, resignara-se ao
imprevisto. Com naturalidade, apontou para um poêlée de penne au poulet et
aux petits legumes. Não fazia a menor noção do que era, mas, com este
pomposo nome, não podia ser ruim. O rapaz curvou-se novamente, satisfeito.
«Excellent! E para beber? Posso sugerir um Barton & Guestier? É um
cabernet sauvignon de ótima qualidade, safra de 2009».
Ele apenas balançou a cabeça, afirmativamente. Dentro, seu cérebro dava
voltas.
Passada meia hora, ele estava esparramado na cadeira do salão de refeições.
Jamais comera nada como aquilo. A fumaça perfumada que suspendera-se da
caçarola de barro onde fumegava a magnífica massa entremeada de sutis
pedaços de frango, o sabor balanceado dos ingredientes, o gosto pressentido
dos cogumelos..., tudo o inebriara. E o vinho, tornando a comida ainda mais
superlativa e que, depois de garrafa consumida, o fazia flutuar no salão vazio.
Mal conseguiu chegar ao quarto. Desabou na cama e dormiu profundamente.
Quando acordou, já estava escuro. Estremunhado e vagamente irritado
consigo mesmo, afinal perdera uma preciosa tarde de vendas, foi até a janela e
abriu-a.
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Era uma noite linda, céu estrelado, brisa amiga soprando de mansinho,
quietude total. Ficou observando os tetos do casario próximo, mansardas
renascentistas ombreando com terraços mediterrâneos e espirais do Oriente.
Pela enésima vez naquele dia, sentiu-se confuso. Respirou fundo e decidiu
sair.
Fora, a mesma brisa que o acariciara na janela abraçou-o com ternura. Era
suave, levemente brincalhona ao mexer com os seus cabelos e carregava um
perfume que lembrava jasmim manga, mas não tão doce. Levantou os olhos
para o céu. Sempre gostava de esmiuçar as estrelas, saudar as Três-Marias,
sentir-se seguro ao cumprimentar o Cruzeiro, que lhe dava a direção certa (três
vezes a distância entre o topo e o pé da cruz, e aí você tem o Sul...) Olhou,
olhou... Mas não as encontrou. Simplesmente, não estavam lá, onde deveriam
estar, nesta noite estrelada de agosto. Ficou estático, a nuca já doendo de tanto
manter a cabeça virada para trás, um desconforto para além do físico
crescendo dentro, uma perdição fria subindo pelo estômago. Este não era o seu
céu, o que vira desde menino cobrindo o Brasil.
Resolveu entrar. Um quase medo lhe arrepiava devagar os cabelos do braço e
atrás das orelhas. Precisava de algumas horas sem inexplicáveis, alguns
momentos de escuridão no quarto, fazer um inventário do que vira e ouvira, e
tentar achar um norte, onde não encontrara o sul...
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Chuva. Só conseguira pregar os olhos de madrugada e agora a chuva lhe
acordava batendo na janela. Nove da manhã. Tomou banho, aprontou-se e
desceu para a sala de refeições. Ninguém, apenas sua mesa preparada com
requinte, como se tivessem adivinhado a hora precisa de sua descida. O
mesmo café da manhã farto, que devorou. A fome superava o coração pesado
de dúvidas. O surpreendente empregado apareceu.
«Então, senhor, tudo bem? Ia desejar-lhe bom dia, mas com essa chuva...»
Ele procurou ser simpático.
«Pois é... não faz mal, eu até gosto de mau tempo, de vez em quando. Há
alguma previsão de melhoria?»
«Sim, claro...quer dizer, é a chuva das quartas-feiras. Amanhã é o dia do
vento. Sexta, temos geada pela manhãzinha e nuvens pela tarde. Sábado é sol
miúdo e frio. Domingo, é o sol, direto, primaveril. Segunda, a temperatura
sobe, ainda com um pouco de brisa à noite. Terça será como ontem, um dia de
verão», o outro esclareceu, satisfeito com a curiosidade do hóspede.
«Caramba, que precisão. É a previsão do tempo da Globo?», ele perguntou,
impressionado com a minúcia. O empregado balançou a cabeça.
«Não, não é previsão. É que aqui o tempo é sempre assim, entra semana sai
semana. Temperaturas de verão tropical às segundas e terças, outono molhado
e ventoso às quartas e quintas, inverno sextas e sábados, primavera no
domingo. E a natureza tudo recomeçando na segunda»
Ele ficou olhando para o rapaz. Será que ele estava de gozação? As quatro
estações em sete dias. Sei...
Mudou de assunto.
«Você tem internet aqui na pousada?»
O outro apressou-se a responder, solícito.
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«Sim, sim, claro, venha comigo, por favor...»
E entrou por um corredor à direita da sala de refeições, mostrando o caminho.
O corredor dava numa pequeno escritório, decorado com o que havia de mais
moderno em termos de equipamento funcional. Acarpetado de cor cinza
neutro e com painéis de madeira nas quatro paredes, tinha três mesas de
design arrojado, cadeiras estofadas de couro negro, um sofá de igual padrão.
Em cima de cada mesa, um fino teclado e um monitor de 21 polegadas
prateado como a inconfundível meia maçã em relevo.
Mais uma mesura do empregado.
«Fique à vontade, senhor». E retirou-se.
Assim que acessou a sua caixa de correio, levou um pequeno choque. Havia
duas mensagens da empresa.
A primeira referia-se ao pedido feito pela La Belle Époque, um opulenta
compra de quase cinquenta produtos. Total R$9.735,20!
A segunda era um e-mail que lhe deu uma morna sensação de felicidade. Era
assinado pelo chefe.
“Quero expressar minha admiração pelo trabalho desenvolvido neste curto espaço de
tempo. Gostaria de informar que sua performance não encontra exemplo semelhante nos
anais de nossa empresa. Venho declarar que nós, eu e os acionistas, estamos
verdadeiramente satisfeitos com a nossa decisão de tê-lo como colaborador.
Nesta conformidade, resolvemos promovê-lo a Vendedor Senior, com correspondente
aumento no valor de seu salário-base e dos percentuais de comissionamento.
Decidimos também mantê-lo na presente região por mais dois meses, haja vista que ela
nos parece oferecer inigualável potencial de negócios.
Atenciosamente,”
Recostou no couro macio da cadeira. E ficou sorrindo baixinho, ainda meio
incrédulo. «Que coisa fantástica...», murmurou em surdina. Mas, como isso
fora possível?
Voltou para a recepção e decidiu permanecer sentado numa poltrona. Algo
dentro de si continuava exigindo explicações. Era a tortura do desconhecido,
uma geleia espiritual de incertezas e insegurança. Seu lado racional rebelavase, tentava achar pé numa maré repentina de dúvidas e perguntas. Para manter
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sua sanidade, tinha de achar respostas, conclusões, terreno firme. O
empregado estava perto da porta da pousada. Tinha de começar por aí.
«Oi, amigo. Tudo bem? Olha, necessitava de umas informações sobre a
cidade. Será que você podia-me ajudar?»
O rapaz aproximou-se, sorrindo.
«Sim, claro. O que quer saber?»
«Bem... Queria saber da história aqui do lugar. Isto é, quando a vila foi criada,
quem a fundou e quantos habitantes tem, quem é o prefeito, essas coisas...»
O outro ficou olhando para ele. A resposta parecia estar já no terço superior da
garganta, pronta para sair. Mas, ele apenas disse.
«Desculpe, mas não sei. É...estou há pouco tempo aqui....Por favor,
compreenda. Não lhe posso adiantar nada...»
«Não pode ou não sabe?»
O empregado pareceu ruborizar-se.
«Quer dizer, não sei...Me perdoe, mas tenho de ir arrumar o salão de
refeições...». E saiu.
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Quase meio-dia e a chuva parecia não querer dar trégua. Subiu a rua. Mais
uma sucessão de estilos desfilou em ambos os lados do paralelepípedo
molhado, um barroco português, uma cottage bretã, uma casa normanda e
outras variações que não conseguiu reconhecer, afinal arquitetura não era o
seu forte. Com alívio, sentindo a umidade penetrar o terninho ligeiro que
vestia, viu, logo a seguir a um bungalow polinésio, a porta aberta do que devia
ser um bar.
Era mais. Acima de um arco em mogno escuro, uma tabuleta de metal
dourado informava em letras rústicas que o lugar, superconvidativo em meio
ao temporal, chamava-se “The Drinking Irishman”. Nada mais, nada menos
do que um legítimo e autêntico pub irlandês, desde o centenário balcão de
carvalho ao qual se encostava uma fileira de banquinhos altos e redondos, as
quatro torres de cerveja identificadas com seus distintivos coloridos, o imenso
espelho posterior e suas prateleiras de vidro habitadas por dezenas de garrafas
orgulhosas de seus rótulos, até o cheiro abafado e acolhedor de madeira,
bebida e fumo de cachimbo. E um sutil e agradável perfume francês.
À exceção de uma mesa, na qual um casal conversava em voz baixa, o pub
estava vazio. Assim que entrou, o homem levantou-se. Era alto, corpulento,
um jeito de urso na postura, os olhos claros comprimidos numa expressão de
permanente bom humor. Ele pressentiu corretamente que deveria ser o dono.
Decidiu testar o seu inglês rudimentar.
«Good morning...»
O outro deu uma sonora risada e retrucou. A voz era potente, clara como um
trovejar nos vales verdes de Killarney.
«Yes? Well...what´s good about it?»
Sem entender direito a resposta e a ironia, balbuciou.
«Desculpe...como?»
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A tradução veio em sotaque francês e num soprano modulado.
«É uma brincadeira. Ele está simplesmente perguntando o que pode haver de
bom num dia péssimo como o de hoje...»
Ele voltou o olhar para a mesa. O cabelo preto colado ao rosto moreno, o
vestido decotado e a piteira longa não deixavam dúvidas. Mademoiselle de
Lautrec.
«Sente-se», pediu ela. E, virando-se para o dono do bar.
«É o vendeur de São Paulô, aquele que me visitou ontem».
O irlandês sorriu, pegou uma garrafa de rótulo verde musgo com letras
brancas dizendo Bushmills Malt com o número 21 em dourado logo abaixo e
três pequenos cálices.
«May you be welcome, sir».
E, continuando num português carregado de sons guturais, piscando o olho
para a proprietária do La Belle Époque.
«Temos de comemorar. Afinal, é mais um que se salva».
E, antes que o recém-chegado pudesse sequer esboçar uma fugidia expressão
de dúvida, encheu os cálices com o líquido amarelo ouro e gritou
«Erin Go Bragh!», erguendo o copo numa saudação.
A bebida desceu-lhe pela garganta como uma onda de calor, resgatando-o
imediatamente do desconforto que sentira caminhando sob o temporal. Teve
de fazer um pequeno esforço para voltar a falar.
«Puxa, obrigado...Aliás, tive uma experiência semelhante no castelo de Sir
McTavernall e...»
O outro quase pulou da cadeira, seu físico fazendo a mesa oscilar e por pouco
não derrubando os cálices já vazios.
«O QUÊ? Aquele bastardo o obrigou a tomar daquela água intragável a que os
escoceses chamam de Scotch Whisky? How dared him! Como ele ousou? No,
my friend», prosseguiu em tom mais conspiratório, passando o braço por cima
do respaldo da cadeira do visitante, «digno do nome, só existe o whisky
irlandês. Fomos nós que inventamos. Aquela imitação barata das highlands
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sabe a fumaça misturada com lixo, não serve nem para limpar o chão da
cozinha».
A francesa sorriu.
«Não se assuste com o Sean. Ele é um brincalhão contumaz, mas quando o
assunto é whisky...»
«Louise tem razão. Não fique alarmado com os meus modos. Sou um homem
de paz. Meu nome é Sean O´Larry. Muito prazer.» E estendeu-lhe a mão de
lenhador.
A primazia entre destilarias das ilhas não era, entretanto, o que lhe aferroava a
mente. Era a frase, dita casualmente por Sean O´Larry, quando ele entrara.
“Afinal, é mais um que se salva”
E foi por aí que ele iniciou a conversa.
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«Em primeiro lugar, eu queria apresentar os meus agradecimentos a
Mademoiselle Louise pela encomenda que fez. Mas, até agora não entendi o
tamanho desse pedido. Afinal, pelo pouco que vi da cidade, não há mercado
consumidor que justifique isso. Estou sendo super sincero. A rigor, como
representante comercial, eu deveria estar calado e agradecer a Deus pela
venda. Mas, confesso que estou confuso. Tenho visto e ouvido coisas que não
consigo aceitar como normais. Parece que aqui há gente de todo o mundo, de
todas as religiões, que parecem até viver em épocas diferentes. Gostaria que
vocês pudessem-me esclarecer algumas coisas importantes, tipo onde eu
estou, que lugar é este, o que quis dizer a frase do senhor Sean quando entrei.
“Mais um que se salva”. De que?»
Sean havia enchido novamente os cálices. No silêncio que se seguiu, olhou
para Louise. Ela levou a comprida piteira à boca, soltou uma elegante
baforada, segurou o pequeno copo contra a luz amortecida do pub e falou.
«Vou ligar para pére Castiglioni». Pousou o copo, abriu uma bolsa em couro
de crocodilo preto como o logo da Hermés e tirou de dentro um blackberry
última geração. Ele não pôde deixar de observar para si mesmo. “Paris 1920
viaja no tempo...”
«Alô? Pére Castiglioni? C´est moi, Louise. Estou aqui no pub do Sean
O´Larry com o nosso amigo de São Paulo....Sim, eu sei que é o dia da chuva,
mas é que...Pois é, não deveria ser já, mas acho que não dá para esperar...»
Ele olhava para ela, sentindo a ansiedade andar pelas costelas. E um certo
medo. Ela olhou para ele, como que medindo-o de alto a baixo.
«Sim, sim, pére ... Vai falar com os outros? Trés bien, eu espero... Au
revoir...»
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Ela colocou o portátil sobre a mesa. Tomou mais gole de whisky, no que Sean
prontamente a acompanhou. Sua voz estava ainda mais rouca quando,
virando-se bem de frente para ele, começou a falar. Era uma pergunta.
«O que sabe o senhor sobre Astronomia?»
Ele escaneou a memória. Não havia muito sobre a matéria. Sabia um trivial
simples, lua, sol, satélites, planetas, constelações... Uma cutucada no esôfago
lembrou-o do céu estranho que o assombrara na noite anterior. Resolveu jogar
pelo seguro.
«Lamentavelmente, muito pouco».
«Bien. Vou tentar explicar da maneira mais simples possível. Pelo menos,
sabe que a Terra gira em torno do Sol, non?»
Ele olhou duro para ela.
«Pardon... Mas talvez não tenha tido conhecimento que, durante o ano, temos
quatro fenômenos chamados de equinócios e solstícios. Os primeiros ocorrem
em Março e Setembro. Os segundos, em Junho e Dezembro. Equinócio é o
nome que se dá à posição do sol no momento em que ele está exatamente
equidistante entre seu ponto mais alto e seu ponto mais baixo no céu. Para
melhor compreender, é a hora em que os dias têm aproximadamente o mesmo
tamanho da noite e marca o início da primavera num hemisfério e do outono
no outro. Quanto ao solstício, é o instante em o sol está no ponto mais baixo
para um hemisfério e no mais alto para o outro, marcando o começo do
inverno na parte norte do planeta e de verão no sul, em dezembro, e o
contrário em junho. Noites grande e dias curtos num lado e vice-versa no
outro, comprenez-vous?»
Ele assentiu levemente com a cabeça.
«Isto ocorre, evidentemente, porque a Terra está inclinada com relação ao seu
plano elíptico com o sol e, à medida que gira em torno dele, cada metade
recebe seu quinhão maior de luz e calor em épocas diferentes. Para os antigos,
entretanto, não era a Terra que circundava o sol, mas era o sol que passeava
pelos céus. E, durante um ano típico, aproximadamente a cada mês, o sol se
colocava à frente de uma determinada constelação. Eram, portando, doze, que
ganharam o nome de zodiacais. E, numa época em que a astronomia respondia
pelo nome de Astrologia, esses símbolos estelares deram origem aos signos e
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a toda a cultura esotérica que hoje conhecemos. Simples, non? Mas, agora,
compliquemos um pouco».
Sean reabasteceu os cálices. O cigarro de Louise apagara.
«Era de se esperar, portanto que, todos os anos, a posição do sol em relação a
uma determinada constelação zodiacal fosse sempre a mesma. Mas não é. Por
que? Parce que a Terra não está estavelmente inclinada. Seu movimento é
semelhante ao de um pião que começa a perder a força que o faz girar. Seu
topo começa a rodar em círculos. Isto é exatamente o que acontece com a
Terra. Como este movimento é para trás, a cada 72 anos o eixo regride um
grau. Portanto, a cada 2.160 anos, no equinócio de Março, o sol está em frente
à constelação precedente no zodíaco. É o que chamam de precessão dos
equinócios. Para os astrólogos, é o momento da mudança das eras. Em 2012, o
sol deixa definitivamente sua correspondência com a constelação de Peixes e
inicia sua passagem pela precedente. A era de Aquarius, de que certamente já
deve ter ouvido falar».
A música ficou rodando na cabeça. Mas ele sequer atreveu-se a assobiá-la.
Sean, entretanto, explodiu o ar com sua voz de barítono. Aquarius...aquarius..
Mademoiselle de Lautrec deu risinho leve e prosseguiu na “aula”.
«Isto, evidentemente, nada tem de catastrófico. É uma ordem imutável, uma
lei orbital que rege o universo há bilhões de anos. E nada mudaria para nós no
futuro previsível se outra lei universal não nos viesse confrontar com a
fatalidade de seus desígnios. Ora, toda esta dança cósmica da Terra ao redor
do Sol, é repetida por este ao redor do centro da nossa galáxia, numa viagem
cujo destino não é tão linear e previsível como nosso alegre passeio anual
dentro do nosso sistema. É bem provável que, desde a sua formação, o nosso
Sistema Solar ainda não tenha conseguido efetuar uma volta completa. E era
também de se admitir que esta circunavegação, pelo simples tamanho de sua
órbita, viesse a sofrer a influência de campos gravitacionais exógenos,
causados por fenômenos estelares encontrados ao longo do caminho».
Uma voz suave, acostumada a falar para paroquianos contritos com o toque
melodioso de sua Toscana de origem, disse.
«Era, não. É».
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Francesco Castiglioni, vestindo uma capa de chuva negra e com um enorme
guarda-chuva da mesma cor fechado e respingando, havia entrado sem ruído.
Sean e Louise abriram um sorriso radioso.
«Salve, padre». O irlandês aproximou-se, ajoelhou e beijou-lhe a mão.
O sacerdote olhou para o vendedor de São Paulo.
«Bom dia, meu caro amigo. Como vai? Já soube que fez bons contatos aqui na
nossa terra».
Ele pensou “não me diga que vão continuar se comportando como se este
lugar fosse normal...”
O padre sentou-se. Sean prontamente trouxe outro cálice e o encheu com
uísque.
«Your favourite, padre».
Castiglioni levou o pequeno copo à boca, sorveu seu conteúdo de uma só vez,
fez uma careta de puro prazer.
«Ah! Bushmill. Vocês irlandeses sabem o que fazem».
Só então ele pôde notar melhor as feições do reverendo italiano. Tinham uma
beleza serena, quase santificada, um distinto toque renascentista no nariz bem
proporcionado, os cabelos fartos, totalmente brancos, repartidos quase ao
meio, queixo forte, os olhos castanhos de uma doçura infinita. Sua presença
inspirava sobretudo tranquilidade. Com gestos precisos, tirou a capa,
pendurou-a no porta casacos, sentou e voltou-se para ele.
«Vou pegar de onde Louise estava. O sol, carregando consigo o nosso sistema
com todos os seus planetas, satélites e asteroides, viaja ao redor do centro da
galáxia. Os astrônomos, desde o século dezenove, já haviam sido capazes de
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medir a velocidade dessa viagem e de, com uma certa dose de aproximação,
mapear seu curso previsto. Há vinte e cinco anos, entretanto, um astrônomo
italiano trabalhando no Observatório Astrofísico de Asiago, perto de Pádua,
descobriu uma inquietante variação no comportamento da trajetória solar. Era
março de 1987 e, ao examinar casualmente a posição do sol em relação à
constelação de Peixes, verificou que, comparando-se ao ano anterior, a Terra
não deslocara seu eixo em 72 graus, mas em 0,872 grau a mais. Desconfiado
de que podia ter feito uma medição equivocada, guardou para si a informação.
No ano seguinte, fez nova verificação. E alarmou-se. A diferença anual saltara
para 1,768. E deduziu que a Terra acelerava seu movimento de precessão».
Sean segurou a garrafa de uísque e aproximou-a do copo do padre, que fez um
gesto com a mão, sorrindo.
«Não, não, meu caro. Mais um, seria atentar o diabo». E prosseguiu.
«O astrônomo resolveu então conversar com seus colegas professores da
Università di Padova. Deram-lhe carta-branca para aprofundar as pesquisas.
Ele, então, resolveu entrar em contato com cientistas internacionais que
conhecia, inclusive com um renomado astrofísico escocês do Royal
Observatory de Edimburgo, chamado Dr. John McTavernall».
Ele agitou-se imediatamente na cadeira.
«McTavenall? Mas, não é o cara do castelo?»
Castiglioni assentiu.
«Sim, é claro, você já o conheceu...»
Ele continuava surpreso.
«Mas, como?... Por que ele...»
O padre levantou a mão.
«Calma, meu amigo. Tudo ao seu tempo». E continuou.
«Para surpresa do italiano, McTavernall havia percebido o mesmo fenômeno.
E mais. Também já verificara que o aumento de velocidade na
correspondência do sol com as constelações zodiacais não era devido a
mudanças no ritmo da precessão do equinócio, como pensava o astrônomo de
Pádua, mas causado por uma força gravitacional estranha ao movimento da
Terra. Segundo o que descobrira até então, alguma coisa fazia o Sol, e, por
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consequência, todo o Sistema Solar, aumentar sua taxa de deslocamento ao
redor do centro da galáxia, tornando-o mais acelerado do que andamento
normal dos outros corpos celestes vizinhos. Isto explicava porque o Sol estava
“passando” mais rápido pelo zodíaco. O problema era entender o que estava
fazendo isto acontecer. Em agosto de 1988, McTavernall viajou para a Itália».
O dono do pub levantara-se, no entanto, e agora retornava à mesa, trazendo
dois pratinhos com pretzels e uma travessa de sanduíches de queijo.
«It´s on the house. É por conta da casa, não se preocupem...»
Louise e Castiglioni se serviram. Ele não tinha fome.
«Em Pádua, os dois cientistas compararam suas anotações e passaram a se
dedicar de corpo e alma à procura de uma resposta. Após uma intensa troca de
cartas com observatórios e universidades de todo o mundo, chegaram à
conclusão que apenas uma meia dúzia de colegas seus percebera a anomalia.
Os outros a desconheciam ou não lhe tinham atribuido qualquer importância.
Decidiram, então, reunir o pequeno grupo em petit commité, isto é, sem
qualquer divulgação ao mundo científico. Primeiro, porque ainda receavam
estar enganados e não queriam expor-se ao ridículo da academia internacional.
Depois, exatamente pelo motivo oposto. Porque estavam certos e porque
haviam descoberto uma terrível verdade».
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Lá fora, a chuva continuava, pesada, interminável.
«Era um time fechado, de sete membros, formado em seguida à ida de
McTavernall para Pádua. Quatro europeus, um americano e um chinês. Graças
ao renome do escocês, obtiveram permissão para montarem um laboratório na
sede do OES, o Observatório Europeu do Sul, em Garching bei Munchen, na
Alemanha. O OES era, e ainda é, a maior referência em termos de astrofísisca.
E lá, os sete conseguiram a privacidade e o apoio técnico de que necessitavam.
Ao final de um ano e meio de trabalho ininterupto, a charada do desvio nos
padrões de deslocamento do Sol estava decifrada e, com isso, também, o
futuro da viagem do Sistema Solar pela galáxia».
O padre olhou para ele.
«Você já deve ter visto três estrelas alinhadas em linha reta no céu, não?...O
povo as chama de as Três Marias...»
Ele assentiu com a cabeça, rápido.
«Pois bem. Na realidade, elas são chamadas, pelos astrônomos, de “o cinturão
do caçador”. Fazem parte da constelação de Orion, uma figura mítica que os
gregos julgavam ver no firmamento, desenhada por essas três estrelas e mais
um trapézio formado por outras quatro: Saiph, Bellatrix, Rigel e Betelgeuse.
Apesar de constituirem uma figura aparentemente homogênea na abóboda
celeste, estas estrelas encontram-se a distâncias diferentes, são de diferentes
tamanhos e estão em fases diversas de suas “vidas”. Betelgeuse, porém,
sempre foi “especial”. Ela é o exemplo mais visível que temos de uma
supergigante vermelha. Observada desde a Antiguidade, dada sua
proeminência no céu, exerceu uma poderosa fascinação entre os amantes da
Astronomia. Depois do Sol, é a estrela mais estudada em todos os tempos».
O vento uivava lá fora. A tempestade recrudescera. Sean encheu mais um
cálice e tomou de um gole.
«Como diz o mais famoso ditado irlandês, it never rains in the Pub...nunca
chove dentro de um pub...»
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Castiglioni sorriu. Ajeitou-se na cadeira e, chegando-a mais perto da mesa,
continuou.
«Para começar, é enorme, setecentas vezes maior que o nosso dito astro-rei.
Para ter uma ideia aproximada do que é isto, se o Sol tivesse o diâmetro de
uma bola de futebol, ela teria o diâmetro do Maracanã. Está relativamente
perto, em termos celestiais, a uns meros 197 parsecs, ou 645 anos-luz. E,
apesar de ser uma estrela “jovem”, com mais ou menos 15 milhões de anos de
idade, a imagem que dela nos chega indica que está morrendo. O espetáculo
de sua “morte” nos céus da Terra será um fenômeno inesquecível. Antes de
explodir, ela crescerá de tamanho, ficará tão grande como uma lua cheia. E
depois, desaparecerá. Orion perderá seu ombro direito. Só que nós não
estaremos aqui para ver essa fantástica performance».
Ele resolveu concluir.
«Quer dizer, isto vai acontecer daqui a centenas de anos. Só os nossos ne...»
O padre atalhou.
«Não, não. Desculpe interrompê-lo. Na realidade, a “morte” de Betelgeuse já
ocorreu».
«Ué... então...»
Castiglioni fez um gesto como que dizendo “calma, vou explicar...” Mastigou
um pretzel, pigarreou e recomeçou.
«O que a equipe de cientistas descobriu, depois de 18 meses em que trabalhou
dia e noite num laboratório quase secreto nas dependências do OES, no sul da
Alemanha, deixou-os estarrecidos. Há meses haviam focalizado sua atenção
em Betelgeuse. Os registros coletados sobre o comportamento irregular da
estrela já eram do conhecimento da comunidade acadêmica há muito tempo, o
que a transformava num tópico permanente de observação. Mas, ao realizar
suas medições, o grupo conseguiu estabelecer uma correlação entre o aumento
de velocidade no deslocamento do Sistema Solar pelo universo e alguma coisa
que inicialmente identificaram como um distúrbio magnético orginário da
supergigante vermelha. Era como se algo tevesse atingido a órbita do Sistema
e forçado um desvio em sua trajetória. Algo tão poderoso que só poderia ter
como causa uma explosão catastrófica – o fim de Betelgeuse».
Ele não se conteve.
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«Bem, mas aí o grande espetáculo de que falou já teria aparecido no céu e...»
Com paciência inifinita nos olhos castanho-esverdeados, o padre interrompeu.
«Necessariamente, não. É preciso entender que a imagem que nos chega da
estrela é sua fotografia de 645 anos atrás. E, pelos cálculos feitos por
McTavernall e seus colegas, a sua “morte” aconteceu há aproximadamente
250 anos. Ou seja, ela não mais está lá onde a vemos. Só daqui a uns
quatrocentos anos, o assombroso cenário de sua extição apareceria em nossos
telescópios».
«Apareceria? Por que não aparecerá?», ele perguntou.
«Porque, como já disse, a Terra não estará mais onde deveria estar, nem
nós...», disse Castiglioni. E seguiu.
«Embora a velocidade da luz só nos iria mostrar o terrível acontecimento no
futuro, os efeitos magnéticos da grande explosão tiveram efeito quase
imediato. Os ventos cósmicos gerados pelo evento nos atingiram em pouco
tempo, desviando a rota orbital do Sol e sua família planetária. E isto
explicava, em parte, a variação de ritmo do passeio zodiacal, descoberto
quatro anos e meio antes em Pádua pelo astrônomo italiano. Entretanto, o
aumento cada vez maior desse ritmo continuava a intrigar a equipe. Numa
madrugada de setembro de 1991, o membro chinês do time, trabalhando
sozinho enquanto os outros dormiam, solucionou finalmente a charada.
Atordoado pela descoberta, Chung Tai Li foi acordar os colegas...»
Castiglioni olhou para Sean e Louise. Havia uma certa tensão nos olhos dos
três, como se a próxima revelação trouxesse consigo lembranças amargas. O
reverendo respirou fundo.
«É necessário lembrar que, em 1991, a capacidade máxima de memória de um
computador para fins científicos era de aproximadamente 80 megabytes. Um
simples iphone, hoje, é 50 vezes mais poderoso do que a melhor
disponibilidade cibernética da época. O primeiro web browser ainda estava em
fase de testes. Assim, a atividade de pesquisa, especialmente num campo de
dados tão imenso como a astrofísica, era brutal, árdua, extenuante. Naquela
madrugada de setembro, Chung Tai Li ficou alguns minutos sentado,
segurando as muitas folhas que a impressora escorregara para as suas mãos,
contendo os cálculos finais daquelas centenas de milhares de horas de
trabalho. O que eles revelavam era tão assustador que lhe fazia tremer as mãos
e umedecer os olhos. Por uns segundos, ainda quis enganar-se, aferrar-se à
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hipótese de algum erro, alguma falha conceitual, uma interpretação
equivocada. Mas os resultados estavam lá, verificados e contra-verificados,
verdadeiros, claros, frios. Foi, então, acordar os outros».
Ele notou uma pequena lágrima brilhando no olho direito de Louise. Mais
inquieto ficou.
«No final da manhã daquele dia, os sete cientistas estavam sentados, em
silêncio, na sala do pequeno laboratório, ainda absorvendo o que Tai Li lhes
comunicara. Haviam feito algumas objeções, levantado algumas dúvidas, mais
por hábito de homens cuja profissão era indagar do que por desconfiarem das
conclusões do colega. Mas, não havia enganos. Deslocado de sua órbita pela
explosão de Betelgeuse, o nosso querido Sistema Solar mudara sua trajetória
e, atraído por uma força gravitacional cada vez maior, encaminhava-se agora
diretamente para o centro da galáxia, onde se encontrava a origem desta
atração. A força gravitacional crescente e gigantesca de um buraco negro».
No início, ele não sentiu nada. Nenhuma emoção, nenhum tropeço no coração,
nenhum alarme. Era como se o que acabara de ouvir fosse um conto, um relato
de mais um blockbuster de Hollywood, um livro que Padre Castiglioni lera e
de que decidira referir-lhe algumas páginas. Foi aos poucos. Foi o silêncio que
caiu sobre o pub, o eco das trovoadas lá fora, a expressão de inevitável no
rosto de Louise de Lautrec e de Sean O´Larry. Foi a constatação de que estava
numa terra estranha, de que há dois dias vinha testemunhando coisas fora do
comum, conhecendo gente inesperada, vendo miragens. E, então, a gravidade
do que estava para acontecer, dita de uma maneira tão precisa e insofismável,
penetrou-o.
«E...não há como escapar?...»
Castiglioni abanou a cabeça.
«Infelizmente, não, não há. Quer dizer, para o resto da humanidade, não há.
Para nós...»
Ele levantou o rosto, fitando intensamente o padre.
«Como assim?... quem, NÓS?»
O sacerdote trocou um olhar furtivo com Louise e Sean e disse.
«Bem, meu caro amigo. Isto eu não posso revelar-lhe agora. Não iria entender.
É algo extremamente complexo e que envolve um pré-conhecimento de várias
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circunstâncias que merecem ser analisadas nos lugares onde elas fazem
sentido. Hoje é quarta-feira. Virei apanhá-lo no sábado de manhã na pousada e
aí você tomará conhecimento do resto. Por favor, tente compreender. É para o
seu próprio bem. Aliás, você ainda não tem noção da sorte que teve ao vir para
cá...»
Levantou-se, vestiu a capa negra, segurou o guarda-chuva e saiu, despedindose.
«Cuidem bem aqui do nosso amigo. Vocês devem avaliar como ele se sente.
Louise, por que não o leva ao Museu? Ele vai gostar, com certeza».
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As doze imensas colunas que compunham a fachada do prédio neo-clásssico
evocavam a beleza serena de um templo grego. Acima delas, um pórtico
triangular em mármore cercava, com cenas em relevo de batalhas helênicas, as
palavras MUSEU DA HUMANIDADE. Antes de lá chegarem, tinham
caminhado pela alameda de um gramado irretocável, habitado apenas por uma
fonte na qual um fauno de pedra cuspia um jato d´água para o céu de cumbo.
O lugar ficava na parte alta da cidade, pela qual ele ainda não passara. Mesmo
que passase, talvez não fosse capaz de divizá-lo. Estava cercado por um muro
alto de casuarinas impenetráveis, como que a guardar segredos dos olhos
humanos.
Em frente à porta de metal escovado, Louise retirou o blackberry da bolsa e
digitou um código. Clic.
Entraram. Não havia ninguém. Nem recepcionistas, nem guardas. E nem
visitantes. O imenso hall era circular, as paredes arqueadas cobertas de frescos
lindíssimos. Algumas reproduções lhe pareceram óbvias, como aquela à
direita, um homem estendendo a mão a um velho, seus dedos quase se
tocando... Onde vira isto?...
«É...mademuasele...tenho a impressão que já vi ess...»
Ela sorriu.
«Eh bien... chame-me de Louise, por favor. Sim, já deve ter visto várias delas.
São cópias das mais famosas pinturas murais da Renascença. Infelizmente,
não pudemos trazer as originais. Significaria ter de demolir alguns prédios
famosos... Mas, com relação às telas...»
Ele arregalou os olhos.
«Não me diga que roubaram os quadros dos museus...»
Louise deu uma gargalhada.
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«Non, mon cher ami...não, é claro que não. Não haveria como, em tão pouco
tempo. O que fizemos foi digitalizá-los e arquivá-los aqui. No fundo, este
museu é um grande, imenso hard disc, guardando tudo o que se fez, escreveu,
pintou, esculpiu, fotografou, filmou em toda a história da raça humana. Com
um diferencial».
Ela encaminhou-se para uma das inúmeras portas que circundavam o hall.
Abriu-a, revelando uma sala cujas paredes eram enormes monitores. Foi até
um console e apertou um botão. Imediatamente, um deles acendeu, e um menu
apareceu. Impressionistas. 1860-1910. Ela clicou nos números. Vários nomes
começaram a surgir. Adams, John Otis (1851-1927). Alexander, John Hurst
(1856-1915). Bastille, Fréderick (1841-1870). Bonnard, Pierre (1867-1947).
Boudin, Eugene (1824-1898)… Apontou a seta para Cezanne, Paul (18391906). Uma foto em preto e branco de um rosto moreno de bigode encheu o
monitor como pano de fundo das palavras Biografia, Períodos, Galeria...
Escolheu este ícone. A tela encheu-se de nomes e datas. Ela foi escorregando
a seta até chegar em Les Jouers des Cartes (Jas de Bouffan, 1890-1892) 45cm
x 57cm. Musée d´Orsay. A imagem de dois homens concentrados nas cartas
que têm nas mãos, uma garrafa de vinho dividindo a pintura, a forma branca
de um cachimbo na boca do jogador à esquerda iluminou a sala redonda.
«Agora, espere...», ela falou, apertando o interruptor de uma espécie de
armário em metal fosco ao lado da porta. Um hummmm abafado. Dois flashes
de luz seguidos de um ruido de engrenagens. A parte de baixo do armário
abriu-se, projetando uma esteira sobre a qual deslizava o quadro do mestre
francês. Louise pegou-a e aproximou-se dele. Ainda cheirava a tinta fresca.
«Uma cópia absolutamente idêntica ao original. Nem o maior entendido em
Cezanne seria capaz de perceber que esta é uma reprodução».
Ele ficou parado, sem fala. Por um momento, cogitou se não estava
elouquecendo. Tudo era real, e, ao mesmo tempo, não parecia ser. Ela intuiu
seu estado de espírito.
«Parece magia, não? Mas, não é. É apenas o fruto do aperfeiçoamento de uma
tecnologia que já estava disponível há algum tempo. Nós conseguimos colocála em prática em dois anos porque era fundamental para o nosso projeto de
preservar as realizações da humanidade em espaço compatível com o tamanho
do Museu».
«Nós?...nosso?... de quem você está falando?»
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Louise olhou-o com simpatia.
«Éxcuse-moi...desculpe... É realmente muita coisa para um dia só...»
«Não, por favor, me conta. Acho que estou perdendo o juízo. Por favor, me
ajude...»
«Très bien... pelo menos esta parte relacionada ao Museu acho que posso-lhe
revelar. Eu faço parte de uma equipe selecionada por Sir McTavernall em
2001. Ele tivera a ideia da criação do Museu um ano antes. O Templo do
Conhecimento, como ele o chamou. Sabendo que a Humanidade tinha os dias
contados, teve a ideia de guardar, no único lugar onde havia uma possibilidade
de salvação, tudo o que havia sido gerado pelas civilizações nos séculos em
que a raça humana tinha transformado a face da Terra. Sua história, seus
sonhos, suas obras, sua genialidade, seus erros, suas vitórias. O chefe da nossa
equipe, um jovem e brilhante pós-graduado da Universidade de Columbia,
chamado Clark J. Kent, já vinha desenvolvendo projetos de Mecânica
Quântica e Nanomedicina quando McTavernall o contatou. O problema era
como armazenar num espaço relativamente pequeno os milhares de
exemplares do engenho humano. E como obtê-los sem surrupiá-los de
colecionadores, teatros, museus, prédios governamentais, instalações
militares, igrejas, sinagogas, mesquitas, et cetera.»
Ele não conteve a curiosidade.
«Clark Kent? Espera aí...não é o nome do...»
Ela riu.
«Superhomem. Pois é. O pai do rapaz era fou pelas bandes déssignées, louco
por história em quadrinhos. Como o seu nome de família era Kent, nem
hesitou quando teve um filho... Mas, o garoto era um gênio. Ele e
McTavernall pesquisaram tudo o que havia sobre impressoras 3D em centros
de excelência como universidades e empresas de ponta no mundo. E foram
atraindo os melhores experts que encontravam para o grupo que, ao fim de
seis meses, trabalhava em sigilo num galpão que o escocês montara em sua
mansão, perto de Edimburgo. Em agosto de 2001, o projeto para construção
destas impressoras estava pronto. O segundo problema era a confecção de
máquinas digitais que fossem capazes de captar todos os detalhes de um
objeto em três dimensões, com absorção e emissão de fótons suficientes a
alimentar os programas nos computadores e comandar as impressoras. Ou
seja, câmeras holográficas».
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Ele olhava para ela, sem piscar. Era difícil entender como uma mulher que
parecia uma vamp parisiense dos loucos anos vinte poderia estar falando com
tanta desenvoltura de tecnologia moderna.
«Em 1999, eu completei o Doutorado em Física pela Université Libre de
Bruxelles com especialização em holografia digital. Nos dois anos seguintes,
estive na CPE de Lyon, como assistente de projetos ligados à engenharia ótica.
Desenvolvia um sistema de videoconferências em 3D para uma firma
britânica, quando McTavernall me descobriu. Fui para a Superman´s Fortress,
a Fortaleza do Superhomen, como ele carinhosamente chamava o seu galpão
na Escócia, em homenagem a Clark J. Por esta altura, o time já contava com
vinte e três membros, todos sumidades nos mais diversos ramos. No final de
2001, o estudo para construção do Templo do Conhecimento estava pronto.
Havíamos obtido todos os meios técnicos para podermos captar as mais
importantes manifestações do saber humano, digitalizá-las, armazená-las, e
quem sabe um dia, reproduzí-las exatamente como eram».
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Louise acompanhou-o até a porta da pousada. A tarde diluia-se no meio das
nuvens e da torrencial chuva. Ele encolhia-se, buscando abrigo em seu
terninho ensopado. Ela olhou-o, com pena.
«Agasalhe-se melhor amanhã. É o dia do vento. Vai fazer frio».
Ele desculpou-se.
«Isto é o mais quente que trouxe. Não imaginava que poderia encontrar um
tempo tão mau».
Louise estendeu a mão e, com os dedos, verificou a textura do tecido.
«Mon Dieu... isto é muito leve... não vai conseguir sobreviver ao nosso outono
só com isto». Pensou um pouco e disse. «Vou escolher um bom casaco lá na
minha loja e mando entregar amanhã de manhã aqui na pousada. Não saia sem
ele».
Ele retrucou.
«Mas... eu não vou poder pagar...»
Ela interrompeu.
«Não há problema. Você agora faz parte da nossa grande família. Aqui tudo é
de todos».
E, antes que ele tivesse tempo de fazer mais uma pergunta, despediu-se.
«Aurevoir, mon cher ami. Espero vê-lo em breve».
E partiu.
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O jantar foi a única nota agradável daquela noite lúgubre. Deixara a escolha ao
extraordinário empregado e se deliciara com uma barca de suhis e sashimis
delicados, feitos com extrema perícia e apresentados com requinte digno dos
melhores restaurantes japonêses. Enquanto se servia de mais uma dose de
sakê, ficou ponderando quem seria o cozinheiro. Tudo o que comera, até
agora, fora da melhor qualidade. Resolveu descobrir onde era a cozinha e
cumprimentá-lo.
Saiu da sala de jantar, e encaminhou-se para um corredor que terminava numa
porta de vidro fosco. Deu três batidas educadas. Sem resposta. Forçou a porta
e entrou.
Em cascata, luzes alóginas acenderam-se por todo lado. Era um ambiente
espaçoso, imaculadamente limpo, com uma grande ilha em granito cinza no
centro, vários armários metálicos encostados às paredes e dois monitores em
cima de uma bancada. Nada de fogões, fornos, dispensas, panelas, frigideiras,
exaustores.
«Uma cozinha diferente, não?» A voz vinha da porta que deixara entreaberta.
Ele voltou-se. O empregado exibia um sorriso amistoso.
«É a solução ideal para quem não entende nada de culinária, como eu».
Acercou-se de um dos monitores, que imediatamente iluminou-se e abriu um
menu. Que era exatamente isto – um cardápio com uma infinidade de opções.
O rapaz indagou.
«O senhor ainda não comeu a sobremesa. O que deseja?»
Como ele continuava de boca aberta, o empregado prosseguiu.
«OK. Como o jantar foi leve e sobremesas não fazem parte das tradições do
Japão, que tal um pequeno pecado?»
Piscou o olho e tocou sucessivamente na tela até aparecer mousse de
chococolat au Calvados. Deu mais um toque. Atrás deles, um dos armários
emitiu o mesmo hmmm abafado das impressoras do Museu. Uma porta abriuse e, na esteira que se projetou para fora, uma linda taça caminhava, cheia até
a borda de um creme espesso de chocolate escuro, cujo perfume encheu-lhe a
boca d´água. Comeu ali mesmo, em pé. O outro sorria, levemente.
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De madrugada, começou a sentir a febre. A garganta ardia-lhe, a cabeça
pesava cem quilos. “Gripe”, pensou. E agora?
Atravessando vários estados de quase inconsciência, conseguiu chegar até o
raiar do dia. Quando viu que eram seis horas, pegou o telefone. Será que o
empregado já estava acordado?
Quinze minutos depois, ouviu a porta do quarto abrir-se suavemente. Um
homem alto, magro, vestido com um jaleco branco entrou de mansinho. Com
uma voz grave e um leve sotaque que ele não conseguiu precisar, falou
tranquilamente.
«Diga o que sente»
Depois de tres frases, em que com muito esforço procurou resumir o mal-estar
que sentia, o outro disse.
«OK. Está bem, não fale mais».
Sentou-se na beira da cama.
Apesar do desconforto, ele reparou que o médico (seria, mesmo um médico?)
não trazia a costumeira maleta, nem estetoscópios, termômetros e outros
apetrechos tão comuns. Apenas enfiou a mão no bolso e tirou o que parecia
ser uma pequena câmera fotográfica. Pareceu focá-la em sua direção por
alguns segundos e um flash azul brilhou.
O “doutor” levantou-se.
«Você estava com uma bela influenza. Mais um pouco, e teríamos uma
pneumonia. Mas, fique sossegado. Está curado. Só ficará um pouco tonto por
uns quinze minutos. Depois, pode sair da cama e levar sua vida normal»
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“Vida normal?”, pensou ele, enquanto procurava vencer a tontura e perguntar
quanto era a consulta. Mas o outro já se retirara.
Quando, uma hora mais tarde e inteiramente recuperado, desceu para a
recepção, o empregado o esperava com dois grandes embrulhos.
«Acabou de chegar da Belle Époque. É para si».
Abriu o primeiro pacote. Era um lindo casaco de couro, de meia altura e
ligeiramente cintado, com a gola forrada de uma pele macia. Um cachecol de
cashmere tweed e um boné de feltro vinham enrolados dentro do casaco. No
segundo volume, uma bem cortada calça de veludo castanho-escuro e três
pares de meias de lã grossa completavam o enxoval.
O rapaz levantou o polegar.
«Parfait! Mademoiselle de Lautrec tem um excelente gosto. Aconselho que
suba e coloque estas roupas antes de sair. Lá fora venta muito.»
A sensação de conforto que a nova vestimenta lhe dava quase o fez esquecerse das terríveis revelações que ouvira de Castiglioni. Mas, assim que cruzou a
entrada da pousada, o mistério do lugar onde estava envolveu-o novamente.
Parado rente à calçada, lá estava o velho Austin, com o impecável motorista
abrindo-lhe a porta do carro.
«Bom dia, senhor. Por favor, entre.»
Ele ainda quis perguntar “aonde vamos”, mas viu que seria inútil. O chofer já
fechara a porta e fora ocupar seu lugar no banco da frente.
E aí ele notou que havia mais alguém no taxi.
Era McTavernall, que o cumprimentou sorridente e disse.
«Está melhor? Então, venha conhecer o resto da cidade. E, também, o resto
que falta para você entender a razão disto tudo»
O carro rumou para o alto da colina por onde passara para ir ao castelo do
escocês. Bem no topo, o Austin parou. Dali, via-se praticamente toda a cidade
e sua incrível diversidade de estilos. Logo notou que somente metade da área
urbana era ocupada por casas. A outra parte parecia um extenso complexo de
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prédios iguais, compridos, cinzentos e funcionais. McTavernall olhou com
carinho para a paisagem e comentou.
«Foi um grande trabalho...»
Saíram do táxi. O vento havia diminuído um pouco, mas ainda era brisa forte
de outono europeu. Ele respirou fundo. McTavernall ainda tinha um leve
sorriso nos lábios, quando começou a falar. Era uma pergunta aparentemente
fora de propósito para o lugar e a hora.
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«Você, por acaso, assistiu a um filme chamado “A Vida de Truman”?»
Ele refletiu por um instante, rebuscando a memória, e lembrou-se.
«Sim... um filme sobre um programa de televisão, tipo Big Brother, no qual se
segue diariamente a vida real de um cara...e que no fundo é tudo armado, o
mundo em que ele vive é irreal, só que ele não sabe...é com aquele ator
engraçado...o...»
«Jim Carey»
«Exato...e no fim ele vence o medo que tem do mar e navega até uma parede
que é o fim do imenso estúdio onde montaram o lugar onde ele vive...Mas, o
que tem...»
McTavernall havia acendido seu cachimbo enquanto ele falava. Soltou a
primeira baforada logo levada pelo vento e interrompeu-o.
«É que esta mesma idéia foi posta em prática aqui, de uma maneira muito
mais sofisticada e completa. Esta nossa pequena cidade está, da mesma forma
que no filme, coberta e protegida por uma imensa redoma, uma cobertura
gigantesca que a protegerá do que está para acontecer com o resto da Terra. O
que aqui criamos foi uma biosfera, completa, auto-suficiente, preservada. Para
manter as mesmas condições do mundo real, criamos um firmamento
artificial, que simula um “céu” verdadeiro, o sol, a lua e as estrelas e imita os
efeitos das quatro estações. Achamos isto necessário para manter a sanidade
enquanto estivermos aqui encerrados»
Ele ficou olhando, incrédulo. O escocês sabia que assim seria.
«Difícil de acreditar, não? Venha comigo»
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Deram alguns passos em direção a um grupo de árvores baixas para o lado
esquerdo do caminho. De repente, McTavernall parou e disse.
«Ande agora com cuidado na direção daquela acácia»
Ele obedeceu. Pouco antes de chegar à árvore, sentiu alguma coisa roçar a sua
cabeça. Logo depois, sua testa colidiu levemente com o que parecia ser uma
parede inclinada e que descia em direção ao chão. Ele parou. Esticou a mão e
seus dedos tocaram algo frio, liso e curvo. A pequena floresta parecia
prosseguir além daquilo, mas tinha-se tornado inatingível pela barreira
invisível.
A fumaça perfumada do cachimbo espalhava-se à sua frente, prisioneira entre
o vento e a redoma. McTavernall pôs-lhe a mão no ombro.
«Não há nada do outro lado, acredite. É pura ilusão»
Votaram lentamente para o carro.
Ele sentia-se ligeiramente cansado, como se o peso das revelações o curvasse.
E ainda havia tanto para saber. Como entrara neste mundo?
Pararam junto ao Austin negro. McTavernall fez um gesto largo, abarcando o
panorama.
«Com você, chegamos a 3.260 pessoas aqui em Arcabis. É o máximo que a
biosfera pode suportar. Uma pequena falha na cobertura permitiu que o seu
transporte penetrasse. Felizmente, só você saltou do ônibus. Resolvemos
aceitá-lo. Depois que o veículo retornou por onde viera, reparamos o defeito e
selamos definitivamente a entrada. E decidimos ir revelando a realidade aos
poucos, com medo que você perdesse o juízo»
Reacendeu o cachimbo que apagara com uma rajada brusca.
«Você é o único não cientista entre nós. Todos os outros, dos sete astrônomos
que primeiro descobriram o destino da humanidade aos últimos técnicos que
trabalharam na montagem final da estrutura de proteção da cidade, foram
escolhidos a dedo entre os melhores profissionais existentes e decidiram
livremente abandonar suas vidas e suas carreiras, alguns até suas famílias, e
vir para cá. Ninguém está aqui por acaso, a não ser você»
Ele achou que precisava achar uma desculpa.
«Bem, eu não tive a menor...»
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O escocês atalhou.
«Não, por favor, não se desculpe. Estamos felizes por você ter entrado. Você
terá tratamento igual a todos nós, não se preocupe. A única coisa que não
podemos mais fazer é deixá-lo sair. Isto o incomoda? Deixou alguém para
trás?»
Ele contabilizou seus ativos pessoais. Uma namorada negligenciada. Uma tia
distante. Pais falecidos. Respondeu sem hesitar.
«Não, ninguém. Mas, a empresa que me mandou para cá recebeu uma
encomenda de Louise e até me elogiou...»
McTavernall sorriu.
«Nada disto foi real. Montamos a correspondência virtual para mantermos a
ilusão que tudo estava bem enquanto não revelávamos tudo para você.
Perdão...»
Ele ficou olhando para o outro. Depois para a cidade e para o “sol” miúdo que
brilhava frio entre nuvens quase reais.
«Não peça perdão, Sir John. Afinal, se a barganha é a vida, eu é que tenho de
agradecer...»
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Sexta-feira. Como previsto, o orvalho da noite transformara-se em pequenas
gotículas de gelo translúcido. Ele ficou olhando para a relva embranquecida
no jardim da praça, enquanto caminhava com as mãos nos bolsos do pesado
casaco de inverno que recebera de Louise. E era ao encontro dela que ia.
Ainda se sentia imerso numa grande confusão mental. Quando acordara hoje
de manhã, ficara vários minutos oscilando entre o sonho e a realidade, só que
a realidade à sua frente era maior que o sonho.
Quando chegou à Belle Époque, Louise estava sentada em seu pequeno
escritório no fundo da loja, olhando para uma tela de TV.
«Começou»
Ele aproximou-se.
Era um noticiário do Canal 5 francês. Embora não entendesse o que o locutor
transmitia com tanta emoção, podia perceber que algo grave estava
acontecendo. Depois, as imagens explicaram.
Havia cenas de gigantescos tornados em todo o sudoeste asiático e no sul dos
Estados Unidos. Um ciclone acima da categoria máxima caminhava como
uma apocalíptica mancha branca na direção do Caribe e da América Central.
Chuvas torrenciais tinham inundado todo o sul da China. Louise desligou o
aparelho e voltou-se para ele.
«Os nossos cálculos estão corretos, infelizmente. A partir de hoje, a aceleração
do deslocamento imposto ao Sistema Solar pela atração do centro da galáxia
vai aumentar os distúrbios climáticos da Terra. Daqui para frente, serão anos
de catástrofes, desastres, cataclismos. Ainda bem que conseguimos aprontar
tudo em tempo»
Levantou-se. Estava elegantemente vestida com um manteau de lã castanho
claro, botas de cano alto e um charmoso gorro de astracã. Deu-lhe um beijo
rápido em cada lado do rosto.
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«Quer um café?»
Saíram da loja de braços dados. O perfume dela o inebriava, a proximidade
que ela tão naturalmente adotara ao ganharem a rua causava-lhe um certo
calafrio nas costelas. Haviam combinado saírem juntos. Proposta dela. “Vou
mostrar-lhe o que falta conhecer de Arcabis. Prometo que, depois desse
passeio, você não precisará de mais explicações”. Após caminharem por
alguns minutos em silêncio, ela disse.
«Bem, além das condições extraordinárias deste lugar, você já deve ter notado
algumas coisas. Como vê, não há automóveis à vista. Não podemos ter o luxo
de utilizar veículos com motores à explosão aqui. Primeiro, não queremos
estocar combustíveis e, segundo, a nossa redoma não suportaria a poluição. Só
há o velho Austin de McTavernall, pelo qual ele tem um afeto todo especial e
que ele usa para ir e vir de seu querido castelo. Como idealizador de tudo, foilhe permitido mantê-lo. Também, as distâncias são pequenas e podemos fazer
tudo a pé. Você também ainda não viu crianças. Elas existem, são mais ou
menos umas quinhentas, filhos que os habitantes daqui já tinham antes de
serem convidados a vir para cá. É que, no momento, estão em regime de
internato no Gymnasium, que iremos visitar daqui a pouco. É preciso que você
compreenda que, dada a fragilidade de nosso universo interno, tudo tem de ser
tratado com imenso cuidado e bom senso. E isso inclui o consumo de
alimentos e de água, a renovação do ar, a reciclagem dos detritos vegetais,
minerais e humanos. Como você já sabe, de agora até um futuro longínquo, só
poderemos contar conosco e com o que conseguirmos produzir aqui dentro.
As crianças precisam ser treinadas para isso»
Estavam passando pelas últimas casas a leste. Daí para frente, havia uma
sucessão de prédios. Eram os edifícios cinzentos que vira do alto da colina no
dia anterior. Louise começou a explicar.
«Esta é a parte dos complexos funcionais. São laboratórios das mais variadas
especialidades, estações de energia, centros de pesquisas, uma clínica, um
hospital, as unidades de reciclagem. Quase todos os moradores trabalham aí,
em turnos»
Deram mais uns passos. Ao fim da longa fileira de blocos simétricos, abria-se
uma grande área aberta, com campos esportivos, uma piscina de dimensões
olímpicas e três construções baixas de cores claras e grandes janelas
envidraçadas. Os pátios estavam desertos àquela hora.
«Este é o Gymnasium. As crianças devem estar em aula»
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Deram meia-volta. Louise continuou explicando.
«Do outro lado da cidade está a nossa área agrícola, as nossas minis
“fazendas”. Temos vários PhD´s em agricultura por aqui... E o nosso berçário
de embriões»
«Embriões?»
«Sim. Como não podemos aumentar a população, e, ao mesmo tempo, de olho
no futuro, não queremos inibir a capacidade procriativa da nossa gente, somos
obrigados a, assim que uma gravidez é confirmada, retirar o óvulo fecundado
do útero da mãe e colocá-lo no “berçário”. Quando há uma diminuição do
número de habitantes, recolocamos o embrião no útero para que a gestação
prossiga»
«À espera de vaga...»
«Parece frio e calculista, mas é a única opção...»
Quando chegaram de volta à pensão, o frio recrudescera. Ele levantou a gola
do casaco.
«Não que almoçar comigo? O empregado aqui da pousada faz milagres com
sua cozinha virtual...»
Louise sorriu.
«Eu sei. Na realidade, Marcel é um expert em produção de grãos. Trouxemolo de sua Bélgica natal para administrar um dos nossos experimentos com
combinações genéticas de leguminosas e tubérculos. A pousada é para ele um
hobby que decidimos manter»
Segurou-lhe as mãos.
«Agradeço o convite, mon cher. Mas, está na hora do meu turno no Poço, que
é como chamamos a nossa Sala da Situação, onde monitoramos o que está
acontecendo lá fora e registrar tudo o que acontece no planeta. Enquanto ele
existe...»
Antes de ir embora, ainda falou.
«Não se esqueça que padre Castiglioni virá encontrar com você amanhã de
manhã. Esteja preparado. Ele é pontual»
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«Sim, padre. Estou pronto»
Apesar do frio, o dia estava radioso. E então ele notou. As ruas estavam cheias
de gente, todas caminhando na mesma direção que ele e Castiglioni haviam
tomado. O ar parecia de festa. À medida que passavam uns pelos outros os
cumprimentos eram alegres, claramente amistosos, como se todos fossem
membros de uma grande família.
O padre era o mais festejado, retribuindo com sorrisos e comentários gentis,
vários em línguas diversas. Parecia saber o nome de toda a gente, sua origem,
sua história. Ele próprio sentiu-se alvo de alguma curiosidade e de apertos de
mão calorosos. Era um pouco como se estivesse retornando a casa, às suas
origens. Nunca sentira isto antes.
A multidão parecia ter um destino certo e pré-combinado. E, efetivamente, ele
começou a divisar ao longe, num dos lados da cidade que ainda não conhecia,
um monumental anfiteatro, com capacidade para talvez milhares de pessoas.
Um grande palco e seu solitário pódio dominavam o grande espaço.
Castiglioni dirigiu-se para lá, pedindo a ele que o acompanhasse.
De lá, ao lado do púlpito de madeira que o padre acabara de ocupar, pôde
observar a imensa audiência. A paisagem humana era a réplica viva da salada
de estilos arquitetônicos que observara na cidade. Havia gente de todas as
raças, de todas as cores, de todos os continentes. Sentiu um calafrio. Ali estava
o grupo que iria sobreviver ao fim do mundo.
Fez-se um profundo silêncio. Castiglioni esperou uns segundos e começou a
falar.
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«Caros amigos. Ontem, como vocês já devem ter tido a oportunidade de saber,
o processo de destruição da nossa querida Terra teve início. É, pois, para nós,
um momento de enorme tristeza e reflexão. Nas últimas vinte e quatro horas,
milhares de pessoas sofreram perdas humanas e materiais irreparáveis.
Sabemos também que isto é apenas o início das grandes tragédias que se
abaterão sobre a nossa espécie e que, daqui a algum tempo, levarão à sua total
aniquilação. Mas o momento também é de esperança e agradecimento...»
Ele ficou observando a platéia. Alguns tinham lágrimas nos olhos. Outros
colocavam pequenos aparelhos junto aos ouvidos. Já lhe haviam dito algo
sobre equipamentos virtuais de tradução simultânea. Castiglioni discursava em
português, disto ele tinha certeza. A voz do padre repercutia serena e firme,
cheia de justo orgulho por terem sido capazes de construir Arcabis. De
haverem conseguido reunir as condições de se protegerem da extinção total, e
de assumirem a missão de preservar a história da humanidade, de guardá-la
para o futuro, para o momento, talvez milênios à frente, em que pudessem
reiniciar a saga humana em outro mundo. Segundo as previsões, durante os
próximos duzentos anos, a Terra se tornaria num inferno árido e sufocante. A
camada atmosférica que garantira a vida se volatilizaria, os oceanos iriam se
evaporar lentamente e um deserto estéril cobriria o planeta. Quinhentos anos
depois, com o aumento das pressões magnéticas exercidas pelo buraco negro,
a Terra se desintegraria. Aí a biosfera, mantida pelas gerações futuras de seus
habitantes, se desprenderia e passaria a flutuar no espaço, até encontrar um
porto em outro corpo celeste, outro sistema solar, que pudesse garantir as
condições mínimas para recomeçar. Uma viagem que poderia durar uma
eternidade. Esta foi a palavra usada por Castiglioni para encerrar seu discurso.
«Um compromisso para a eternidade. Este é o nosso propósito, nossa fé, nossa
verdade»
Num flash, ele entendeu o destino de Arcabis. Arca-Bis. Ele agora era
passageiro da segunda Arca de Noé.
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Os aplausos ainda ecoavam pelo anfiteatro quando ele desceu do palco.
Castiglioni havia acabado de apresentá-lo à multidão. “Nosso mais novo
irmão”. Sentia-se um pouco encabulado, mas feliz. Havia ganho sua nova
nacionalidade. Ouviu alguém chamá-lo. Era Louise.
Foram caminhando juntos, enquanto, pouco a pouco, os demais iam
procurando seu destino. Ele perguntou.
«Por que um padre católico foi escolhido para liderar? E as outras religiões?»
Louise respondeu.
«Cada um aqui segue sua religião em separado. Não há restrições nem
imposições. Temos lugares de culto para todos os que crêem. E o padre não
foi escolhido pela batina. Antes de se ordenar na Itália, père Francesco
Castiglioni era um competente astrônomo. Depois da ordenação, foi trabalhar
no Observatório de Asiago. E lá fez a descoberta da variação no
comportamento dos equinócios que levou a tudo o que hoje sabemos»
«Então foi ele o tal cientista que primeiro contatou McTavernall...»
«Oui, mon cher...»
Ele olhou para ela.
«Bem, e agora? O que devo fazer. Não sou expert em nada, sou um mero
vendedor, e mesmo assim...»
Ela tomou as mãos dele nas suas.
«Não seja modesto. Você deve ter algum talento. E, sempre pode aprender
algo novo. Venha trabalhar comigo no Poço»
Seus grandes olhos agora fitavam os dele com intensidade.
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«E há outra coisa que precisa fazer. É obrigatório contribuir para o berçário de
embriões...»
Ele sentiu as bochechas corarem.
«Mas, como posso fazer isto? É... quero dizer...com quem posso...»
Louise aproximou-se e beijou-o na boca.
«Não tenho nada programado para esta noite, chéri...»
Oswaldo Pereira
Maio 2013
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Peça mínima, em um só ato de fácil montagem, com um ator no palco e
dois nos bastidores.
Palco totalmente escuro.
PRIMEIRA VOZ MASCULINA
Sou aquele que vem. Sou aquele que vai. Sou hoje, sou ontem, sou amanhã.
SEGUNDA VOZ MASCULINA
Sou tudo. Sou todos. Sou o átomo, a partícula, a galáxia.
PRIMEIRA VOZ MASCULINA
Sou a semente do destino e sou o algoz da lembrança. Sou o cataclismo do
início e o suspiro do fim. SOU O TEMPO.
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SEGUNDA VOZ MASCULINA
Sou o ar e sou o vácuo. Sou os céus, as terras. Sou miríades de planetas, de
constelações e cometas. É para mim que existes. SOU O UNIVERSO.
O palco acende-se, lentamente. Na tela ao fundo, projeta-se uma paisagem de
deserto: areia, céu e sol. O Peregrino entra devagar em cena. Vai até o centro
do palco. Está vestido apenas com uma tanga bíblica, traz um cajado e tem
barba e cabelos compridos.
SEGUNDA VOZ MASCULINA (UNIVERSO)
Quem és tu?
PEREGRINO
Eu?
UNIVERSO
Não há cá mais ninguém...
PEREGRINO
Há tu. E há o TEMPO.
Breve silêncio.
UNIVERSO
Sim. Mas nós aqui estamos desde quando não foi quando, e nem havia jamais
nem sempres. Eu nunca comecei nem vou acabar, como o TEMPO pode bem
atestar.
PEREGRINO
Mentes...
UNIVERSO
Como ousas? Quem pensas que és, mísero intruso de meu imenso ser?
PEREGRINO
Intruso? (sorrindo)... Então, não te lembras? Teu amigo TEMPO tem memória,
tu não. Diz-lhe, TEMPO.
PRIMEIRA VOZ MASCULINA (TEMPO)
Bem...
UNIVERSO
TEMPO!
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TEMPO
Bem...
UNIVERSO
Então, só sabes dizer “bem...”? Por que não esmagamos já este insolente? Por
que tu não avanças o relógio para levá-lo à decrepitude instantânea, pois nada
a não ser nós dura, ou eu mesmo levanto uma tempestade insana, um simum
assassino, e o afogo nas areias deste meu deserto?
TEMPO
Melhor não tentarmos...
UNIVERSO
O QUÊ!? Não me digas que tens medo deste verme, deste insignificante ser
que rasteja na crosta desta rocha redonda e perdida no anonimato, no mais
escuro canto dos meus gloriosos domínios. Extermínio, é o que ele merece. E
já!
TEMPO
Para! Olha com cuidado. Não vês, mesmo através da tua doida arrogância,
deste hubris desenfreado que te assola, quem ELE é? Não O reconheces? Será
que teu solapado orgulho, cevado em tua falsa ilusão de onipotência, te fez
cego de soberba?
Silêncio. Durante todo o diálogo entre as duas vozes, o Peregrino permanece
sorrindo levemente, uma mão à cintura, outra segurando o cajado em que se
apoia.
UNIVERSO
Ora... Não, não pode ser. ELE desapareceu quando surgimos. Viemos DELE,
sim. Mas, ELE morreu. Ou deve ter morrido após o parto... Nunca mais
soubemos DELE.
TEMPO
Cala-te! Observa...
Silêncio. O Peregrino move-se. Olha para cima, para o lado direito, de onde
vem a Primeira Voz Masculina.
PEREGRINO
Bravô, TEMPO! Afinal, é para isto que existes, para dar a dimensão correta às
coisas, serenares as paixões, (olhando para o lado esquerdo) arrefeceres os
arroubos... Acertaste. Sou eu, o VERBO, como alguns irão chamar-me. Eu
prefiro, entretanto, ser conhecido como o CRIADOR.
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TEMPO
Viste?
Novo silêncio.
PEREGRINO
Então, grande UNIVERSO, não dizes nada?
UNIVERSO
Ora, digo... Digo que culpa não me cabe. Se memória não tenho para
reconhecer-TE, foste TU quem não ma deste. E, mesmo, como poderia
reconhecer-TE em trajes tão andrajosos e aparência não menos?
PEREGRINO
Continuas o que és: matéria. Para ti, tudo o que importa é o que se vê, se
toca, se cheira, se ouve. Estás sempre nas mesmas três dimensões que te
confinam no plano em que estás e do qual não sais, das tuas leis escritas na
pedra de teus milênios repetidos. Pois saibas que hoje aqui vim para criar algo
que não conheces: a VIDA.
TEMPO E UNIVERSO
Em uníssono.
VIDA??
PEREGRINO
Sim. O grande desenho, a parte central da criação, o elemento nuclear, minha
obra-prima, a estrela principal deste palco, o capítulo final, a razão de ser da
vossa existência, UNIVERSO e TEMPO. Para ela, para recebê-la, suportá-la,
amainá-la, alimentá-la, glorificá-la, eu vos criei.
TEMPO E UNIVERSO
Em uníssono.
Vida...
TEMPO
Senhor...
PEREGRINO
Diga, TEMPO.
TEMPO
Desculpe-me, Senhor, mas pelos meus cálculos, e o Senhor sabe que são eles
corretos, fomos por ti criados há 12.324.487.812 anos...
PEREGRINO
E dois meses, sete dias, 3 horas e 42 minutos...
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TEMPO
Sim, sim...é isto mesmo, desculpe. Mas, eu pergunto. Por que esperou tanto
tempo para só agora surgir a razão de tudo, para somente hoje, como nos
revela com tão alentado entusiasmo, dar início à fase mais importante de teu
grande trabalho?
PEREGRINO
Sorrindo.
São desígnios, meu caro TEMPO. São degraus de uma longa escada, palmos de
um intrincado caminho. Doze bilhões de anos... Fossem vinte, trinta... Sabes
que, embora tua valia seja inestimável para a ordem das coisas, para mim
nada contas. Apenas te digo que a hora é chegada. E aqui, neste pequeno
recanto dos céus, vou lançar as sementes, fecundar a terra, enterrar meu
sêmen para que, finalmente, brote a VIDA.
UNIVERSO
Pigarreia.
PEREGRINO
Tens algo a dizer, UNIVERSO?
UNIVERSO
Tenho uma pergunta, Senhor.
PEREGRINO
Muito bem. Faça-a.
UNIVERSO
É que... Bem... Perdão pela ousadia, mas se me fosse dada a tua permissão,
apreciaria saber: o que é esta tal VIDA? Na minha gloriosa extensão, mui
magnanimamente conferida por teus poderes, Senhor, há de tudo: sóis de
todas as cores, planetas de todos os matizes, nebulosas de todos os tamanhos,
há cometas, asteroides, pulsares, quasares, há buracos negros, estrelas
gêmeas, anãs, gigantes, supernovas, berçário de galáxias, meteoros, ventos
solares. O que pode suplantar isto? Que fenômeno, por mais magnífico que
seja, pode importar mais do que esta gigantesca criação?
PEREGRINO
Olhando para frente, com ares de sonhador.
Algo que vou criar à minha imagem e semelhança. Uma manifestação clara e
definitiva da minha mensagem, a corporificação do VERBO, moldada na argila
acariciada por minhas mãos e bafejada por meu sopro divino.
UNIVERSO
Argila?
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PEREGRINO
Bem... Maneiras de dizer. Na verdade, o processo da criação é mais intrincado.
Agora que esta esfera rochosa esfriou e apascentou-se, as condições estão
prontas. Aqui lançarei, num dos incontáveis lagos azuis que murmuram entre
as pedras, uma ínfima bactéria cuja missão simples é apenas multiplicar-se. E
transformar-se. Em alguns milênios, a bactéria será uma ameba; depois, um
peixe invertebrado. E, numa sucessão inexorável, nem sempre linear, mas
perseverante e segura, dos peixes surgirão os batráquios; deles, os répteis, e
a seguir os mamíferos. E então, daqui a mais de três bilhões de anos, uma
pequena tribo de animais peludos, ágeis, gregários e curiosos receberá de mim
uma centelha, um feixe de poderosa luz pelo qual o fermento da inteligência,
da vontade e do livre arbítrio penetrará no crânio daqueles macacos, assim se
chamarão eles, e acenderá um enxame de neurônios em seus cérebros. A
VIDA, então, terá subido ao seu mais alto degrau, ao ápice de sua evolução.
Meu projeto mais querido, o crème de la crème de minha grandiosa obra – o
HOMEM.
Silêncio.
PEREGRINO
Então?... Emudecestes?
TEMPO
Senhor... É... Mil perdões, mas não acha que o lugar para o aparecimento de
tão formidável criatura é, no mínimo, impróprio? Estamos num dos menores
planetas, de um dos mais pobres sistemas da mais medíocre galáxia que aqui
o meu inseparável companheiro UNIVERSO possui em seu vasto território. Um
recôndito obscuro, anônimo, acanhado. Há mundos esplêndidos, radiosos,
centrais, muito mais dignos desta estirpe visceral do que este grão de areia
insignificante. Não concorda que teu ator principal merece um palco maior e
mais iluminado?
PEREGRINO
Estás de acordo com o TEMPO, UNIVERSO?
UNIVERSO
Sim, meu Senhor, inteiramente.
PEREGRINO
Sorrindo e balançando a cabeça.
Minhas caras crianças... Não percebeis que este é exatamente o grande
desígnio, a beleza da coisa, a chave de ouro do soneto? Nascer no mais
descentrado astro, que gira com obediência muar ao redor de um sol
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desambicioso, numa viela do Orbe, para depois, com seu próprio engenho e
arte, conquistar todos os outros corpos do espaço, numa epopeia grandiosa.
Abrindo os braços.
Uma saga de bilhões de anos, contínua, inexorável, imparável, invencível, in...
UNIVERSO
Desculpe interromper, Senhor, mas...
PEREGRINO
Olhando duro para o alto.
Bolas, UNIVERSO! Continuas o mesmo impertinente de sempre. O que é?
UNIVERSO
É verdade, Senhor, desculpa-me, mais uma vez. Mas é que estou ansioso, logo
eu que sempre me vali das virtudes do equilíbrio para cuidar de mim mesmo.
Estou ansioso, repito, por saber como será este HOMEM, este ser que me vai
dominar e possuir, que domará as forças que campeiam pelos meus domínios,
que encilhará os campos magnéticos que atraem e repudiam as minhas
entranhas, que cavalgará as tempestades estelares que estremecem meu
corpo, que viajará no vácuo profundo de minhas artérias. Estou curioso por
saber que forma terá este tremendo rei da criação.
TEMPO
Ora, UNIVERSO. Não é muito difícil adivinhar. Com toda a certeza, terá de ser
eterno. Não te esqueças do que o Senhor já adiantou. “Será concebido à minha
semelhança”. Portanto, é fácil perceber que dotado será de um poder
extraordinário, um gigante indestrutível, talvez com mil tentáculos, talvez feito
de metal, de uma liga impenetrável e capaz de suportar todas as
temperaturas, resistir a todos os impactos. Evidentemente, deverá ser capaz
de voar à velocidade da luz, aguentar as pressões do mais profundo dos
mares, atravessar a mais dura das rochas, suportar a apneia e a escuridão dos
oceanos siderais. Um titã, sem dúvida.
UNIVERSO
Sim, sim, um titã!
PEREGRINO
Balançando a cabeça.
Errado. Tentai de novo.
Breve silêncio.
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UNIVERSO
Bem… Então será um ser de luz intensa, uma antimatéria radiosa, uma
concentração de energia pura, algo parecido com o que eu era nos primeiros
nanossegundos do meu nascimento, uma força brutal e gigantesca,
concentrada num raio cósmico, uma usina geradora de poder infinito. Acertei?
PEREGRINO
Novamente balançando a cabeça.
Erraste. Ainda não compreendestes nada. Seria fácil demais, de pobre
imaginação e rasteiro pensar, criar um ser de tal magnitude. Não se trata
disto. O HOMEM será muito menos, e assim sendo, será muito mais.
TEMPO
Será muito menos e muito mais…. Perdão, Senhor, mas não alcanço o sentido
desta charada. Não sou muito bom de adivinhações. Meu negócio é contar.
Conto segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, séculos, milênios. Só sei
andar para frente. Comigo, não há retornos, contornos, bypasses, desvios. Sou
simples, reto, preciso. Assim me fizeste; assim eu sou.
UNIVERSO
Também eu, Senhor, não consigo encontrar a chave deste mistério. Só
entendo o que vejo, sinto, provo, cheiro, ouço. Não me deste a capacidade de
imaginar algo que ainda não existe. Desisto. Diga-nos, finalmente: como será
o HOMEM?
Silêncio. O Peregrino caminha para o centro do palco.
PEREGRINO
Olhando para um ponto indefinido, como a sonhar.
Imaginai um ser de carne e osso, que metaboliza alimento, água e oxigênio
para poder viver; de delicados órgãos internos cuja proteção necessita mais do
que a frágil epiderme que os cobre e que apenas sua desenfreada aptidão para
reproduzir-se o salvará do aniquilamento total. Imaginai também que, a partir
do momento em que a luz da inteligência se acender em seu cérebro, no
instante final do processo de evolução da vida, se tornará capaz de pensar e,
portanto, de querer; de ter consciência de si e da natureza que o cerca; de
criar e, logo depois, destruir; de amar para, a seguir, esquecer. De se crer à
vez poderoso, imortal, ínfimo, provisório, destemido, covarde, grandioso e
desprezível. Um contraditório por excelência. Mas será, acima de tudo, o
grande questionador, cuja curiosidade voraz o fará romper as barreiras
impostas por seus limites físicos na busca de respostas e de conhecimento.
Viverá sempre questionando seu passado, analisando seu presente e tentando
desvendar seu futuro.
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UNIVERSO
Com sucesso, evidentemente.
PEREGRINO
Infelizmente… não.
TEMPO
Ooooh!...
UNIVERSO
Mas, Senhor… E o grande destino reservado para esta sua obra-prima, que há
pouco nos revelaste?
PEREGRINO
Mas esta é, exatamente, a proposta. O destino do HOMEM será isto. A
capacidade de ter esperança, de sonhar com a eternidade, que nunca lhe
pertencerá. Os seus descendentes procurarão a vitória sobre a morte, esta
única certeza, o evento mais previsível. Inventarão poções e talismãs, se auto
prescreverão remédios e antídotos para vencê-la. Inutilmente. Impotentes,
criarão mitos e religiões que preconizarão a vida eterna, assegurada pela
suposta existência de uma figura mitológica a que darão muitos nomes, como
espírito, sombra, ectoplasma, alma. A isto, chamarão de FÉ. E será esta FÉ
que os inspirará e os guiará na saga infinita da grande conquista, que os fará
transmitir os conhecimentos adquiridos para as gerações seguintes, uma tocha
de saber acumulado que os levará aos mais distantes recônditos do
UNIVERSO, sempre à procura de uma resposta para suas duas mais cruciais
perguntas: de onde viemos? Para onde vamos?
UNIVERSO
Sem tê-la, jamais.
PEREGRINO
Claro. Senão, qual seria a graça?
Silêncio.
PEREGRINO
Bom, a conversa está boa, mas eu tenho o que fazer. Está na hora. Vou
procurar uma linda lagoa, mansa e cristalina, para aí lançar o germe inicial, a
primeva bactéria. Nos vemos daqui a uns três bilhões de anos.
O Peregrino sai de cena, lentamente, cantarolando “Let the sunshine…let the
sunshine in… the Sun shine in…”
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TEMPO
Depois que o Peregrino se retira totalmente do palco.
O que acha, UNIVERSO?
UNIVERSO
Não sei… Estou ainda confuso. Há algo que não bate.
TEMPO
Taí! Fiquei com a mesma sensação. Uma obra-prima… Tenho minhas dúvidas.
UNIVERSO
Pois eu também te confesso que esperava mais. Em princípio, o CRIADOR não
erra, mas…
TEMPO
Pois é o que tu disseste. Não bate. Um ser que pretende conquistar-te, povoarte, dominar-te e… tão frágil.
UNIVERSO
Pior. Um ser com capacidade de sonhar, dotado por ELE de esperança, de
anseio por uma eternidade que lhe será sempre escamoteada, condenado a
viver dessa miragem, crendo num conto de fadas. Pelo que deduzo das
palavras do CRIADOR, cada HOMEM, individualmente, viverá no máximo uns
míseros cem anos, e isto com muito favor. E morrerá sem desfrutar nem de
um quinto de sua potencialidade cerebral. É cruel…
TEMPO
Cruel… Esta é a palavra. Qual, UNIVERSO, isto realmente não faz o menor
sentido!
UNIVERSO
O menor sentido!
Silêncio.
UNIVERSO
Notaste alguma coisa NELE?
TEMPO
Como assim?
UNIVERSO
Sei lá! Um sinal de debilidade, algum sintoma senil…
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TEMPO
UNIVERSO! Mais respeito. Estás falando do CRIADOR, Senhor de tudo o que
há, eterno, perfeito, infalível.
UNIVERSO
Bem, Senhor de tudo é verdade, eterno sem dívida, perfeito realmente. Mas…
infalível?
TEMPO
O que queres dizer?
UNIVERSO
Quero dizer que, no meu humilde pensar, esse projeto do HOMEM é falho, mal
planejado, peca por base. O que o nosso querido CRIADOR está engendrando é
um monstro, uma criatura canhestra, desproporcional. É um desvio no
equilíbrio inabalável que reina em meus domínios. É a negação da
racionalidade, na qual o fim não merece os meios, o caminho para o objetivo
se perde em labirintos, a estrutura se apoia em fundações tortas, as frações
não somam uma unidade. Melhor dizendo, esse HOMEM nada mais é do que
uma fração imprópria, dotado de uma mente poderosa encerrada numa
embalagem precária e de duração curta.
TEMPO
Não sei…
UNIVERSO
Não sabes… é só o que tens a dizer?
TEMPO
Talvez exista um propósito em tudo isto, algo que não nos é dado ver neste
momento. Tenho de continuar confiando NELE. Senão, tudo perde o sentido.
UNIVERSO
Está bem. Vamos deixar que continues a contar os teus milênios. Estaremos
aqui para conferir. Até daqui a três bilhões de anos.
TEMPO
Até.
Começa uma projeção de imagens. A foto do deserto é substituída, em rápida
sucessão, por slides que procuram dar a sequência da evolução: uma ameba,
um peixe, um batráquio, um réptil, uma cena de pré-história, um macaco, um
chimpanzé, um homo erectus, o homem das cavernas (soa um clarim). Esta
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imagem demora um pouco. Depois, em sucessão: uma comunidade neolítica,
uma cena egípcia de guerra, uma cena das guerras greco-persicas, Sodoma e
Gomorra, Roma antiga, uma orgia romana, uma cena de batalha entre
romanos e cartagineses e, finalmente, uma cena de presépio, a manjedoura
ainda vazia.
Fundo musical: Área da corda de sol de J. S. Bach.
O Peregrino aparece no palco, andando com pressa, o cenho cerrado.
TEMPO
Senhor!...
PEREGRINO
TEMPO! Diga. Estou com pressa.
TEMPO
Aonde vais, Senhor?
PEREGRINO
Com ar contrariado.
Vou descer à Terra.
UNIVERSO
Descer à Terra?! Mas, como Senhor? E por que?
PEREGRINO
Ora, não tenho muito tempo para explicações. Mas, algo deu errado no projeto
HOMEM. Houve descaminhos, imperfeições, retrocessos. Tenho de ir remediar.
Vou-me transformar em um deles, dar alguns exemplos, ditar novas regras.
Kick a few butts, como se dirá em uma língua ainda em gestação. Dar umas
palmadas… Espero que dê certo. Adeus.
O Peregrino se retira do palco com pressa.
UNIVERSO
Eu não falei?... O projeto está comprometido.
TEMPO
Que loucura…
Nova sessão de slides: a crucificação, cruzadas, Inquisição, guerra medieval,
guerras napoleônicas, trincheiras da Primeira Guerra Mundial, Hitler e tropas
alemãs, explosão da bomba atômica em Hiroshima, uma pessoa queimada pela
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radiação, cenas de poluição ambiental, uma manchete de jornal alertando
contra o aquecimento global, cenas de uma Terra desabitada e morta, florestas
secas, geleiras derretidas.
Fundo musical: 4ª. Sinfonia de Mahler.
UNIVERSO
Viste? Acabou… Sabia que não ia dar certo…
TEMPO
Que loucura…
UNIVERSO
E cadê ELE?
TEMPO E UNIVERSO
Gritando.
Senhor!... Senhor!...
Silêncio.
UNIVERSO
É. Foi-se embora.
TEMPO
Não é possível. O que será de nós?
UNIVERSO
Nós? Ora, eu continuarei expandindo-me e tu, contando.
Nova sequência de slides, mostrando o Universo em expansão e um mostrador
mostrando a passagem dos milênios. A seguir, as imagens mostram a inversão
do processo, o Universo se contraindo, o mostrador mostrando os números em
ordem decrescente. Até chegar no número ZERO e a imagem mostrar o Big
Bang em rewind.
O palco fica totalmente escuro.
VOZ DO PEREGRINO
Bem… Vamos começar de novo.
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A tela mostra a palavra “RECOMEÇO”. Música de fundo: “Assim Falou
Zaratustra” de Richard Strauss.
PANO
Oswaldo Pereira
Dezembro 2010
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PECADO ORIGINAL
PEÇA RÁPIDA EM UM ATO
ELENCO
Um casal de atores nus, uma atriz fantasiada de serpente e um ator nos
bastidores para fazer a Voz de Deus.
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Quando a luz do palco se acende, o cenário mostra uma paisagem tropical,
com árvores, coqueiros, alguns pássaros coloridos empalhados. No pano de
fundo, está projetado um imenso slide de uma praia paradisíaca. Eva está
em cena, brincando alegremente com uma folha e cantarolando. Adão surge
logo a seguir, andando devagar.
EVA
Oi, tudo bem? Tá cansado?
ADÃO
Cansado?...De que? Aqui não acontece nada, não há nada para fazer, lugar
nunhum para ir...
Para. Leva a mão à fronte, como a perscrutar o horizonte.
Tudo igual, como ontem, anteontem, trás-anteontem... Da mesma forma
como será amanhã, depois de amanhã, depois de depois de depois...
EVA
Mas, o que você queria? Nós aqui temos tudo. Comida, bom tempo,
segurança. Os animais nos querem bem, as árvores nos dão frutos, há rios
e lagos naturais para banharmo-nos, brisa fresca para nos secar. Paraíso,
não é assim que se chama este lugar?
ADÃO
Paraiso... Eu prefiro chamar de prisão. Agradável, frondosa, arejada, mas
prisão. Já tive o trabalho de percorrer todo o território. Isto é uma ilha,
percebe? Cercada de água por todos os lados. Não há como sair daqui.
EVA
Exasperando-se.
Mas, sair para que? Ir para onde?
ADÃO
Não sei. Ir. Conhecer, desbravar, descobrir. Provar novos frutos, cheirar
novos perfumes, respirar um ar diferente. A vida não pode ser só isto.
Acordar com o sol nascendo radioso, andar por estas areias finas, beber a
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mesma água do mesmo poço cristalino, saborear a mesma comida... Olhar
para você...
EVA
Irritada
E qual é o problema de olhar para mim?! Você mesmo diz sempre que sou
a coisa mais linda que já viu.
ADÃO
Sim, claro. Não me leve a mal. Você é realmente linda, uma festa para os
olhos. Mas, é sempre você...
EVA
E você também é sempre você. E eu não estou nem um pouco chateada
com isso. Depois, somos os únicos exemplares da nossa espécie. Não há
mais ninguém como nós.
Eva olha para Adão, examinando.
É verdade que você tem aí umas coisas que eu não tenho. Da mesma
maneira que eu tenho outras que você não tem. Mas, tudo bem, acho que
Deus resolveu diversificar...
ADÃO
Diversificar? Só isso? Para mim, esta diversificação tem de ter algum
propósito. Só que eu não consigo atinar qual. Por que eu tenho isto aqui
(aponta para seu membro) e você não? Por que você tem estas duas
colinas no peito e eu não? Faz algum sentido?
EVA
Não sei... Eu não preciso disso aí para fazer xixi. Quanto aos meus peitos...
sei lá. Devem ser para proteger o meu umbigo do sol ...(dá um risinho)
ADÃO
Não sei como você aceita tudo assim, sem questionamentos, sem
perguntas. Não gostaria de saber o porquê das coisas?
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EVA
Mas, não há porquês nem porcomos. Deus nos criou perfeitos, à sua
imagem. Nos colocou num lugar perfeito, para vivermos eternamente
gozando as delícias deste jardim bemaventurado. Nos deu este tempo
perfeito, estas árvores perfeitas, esta...
ADÃO
Chega, Eva! Que tanto perfeito é esse. Não vê que não pode ser só isso?
Criar um casal e colocá-lo numa gaiola dourada. Qual é a graça?
EVA
Ora, Adão. Que pergunta sem sentido. A graça é estarmos aqui, nesse dolce
far niente. E há sempre coisas para fazer. Olha, eu vou procurar umas
ramas de coqueiro para tecer uma toalha para a nossa mesa. A madeira é
muito rústica e vai ficar mais bonita coberta.
Aproxima-se dele, e passa-lhe a mão no rosto com ternura
Sossegue, cara. Relaxe e aproveite.
ADÃO
Aproveitar... aproveitar o que?...
Eva sai cantarolando, feliz... Adão fica sozinho em cena. Olha para o cenário
como se olhasse para um futuro remoto e indecifrável. Balança a cabeça.
ADÃO
Não pode ser... Isto não é um plano minimamente aceitável. O projeto
divino não pode ser isto. Um casal ocioso perambulando por uma terra
dadivosa. Sem desafios. Sem conquistas, vitórias, dúvidas, perdas. Nada
que estremeça este equilíbrio de fantasia, que dispare uma adrenalina.
Nada que quebre esta rotina medíocre.
Vai andando lentamente para uma ponta do palco. Um spotlight acende-se,
com o facho de luz incidindo sobre Adão.
VOZ DE DEUS
Adão...
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Adão para e olha para cima, na direção da luz.
ADÃO
Senhor...
VOZ DE DEUS
O que há? Você não me parece bem... Algo o incomoda?
ADÃO
Bem... é...
VOZ DE DEUS
Vá. Fale. Você sabe que de qualquer maneira eu vou descobrir o que se
passa...
ADÃO
Bem, Senhor... é que eu não me sinto feliz aqui. Falta alguma coisa, é tudo
muito bom, muito bonito, mas muito previsível. Os dias e as noites são
sempre iguais, o tempo é sempre bom, há sempre comida. Nada me é
exigido em troca do que tenho. Tudo me é dado sem que eu faça por
merecer. As coisas estão todas como deviam estar, não há espaço para
criar, para mudar, para...
VOZ DE DEUS
Ôooo... espera aí! Que conversa é esta? Foi Eva quem colocou estas ideias
na sua cabeça?
ADÃO
Não, senhor, claro que não. Pelo contrário. Pelo que posso perceber, ela
está supersatisfeita com isto aqui.
VOZ DE DEUS
“Isto aqui” chama-se Paraiso, meu caro. Criado por mim como
coroamento do projeto Jardim do Eden, onde tudo leva a chancela da
minha perfeição, desde a Natureza, as plantas e os animais, até o ponto
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alto do processo, que são vocês dois. A minha mais querida invenção. E
você vem-me dizer que não está feliz?! Era só que me faltava...
ADÃO
Não me leve a mal, Senhor. Realmente, quem sou eu para questionar sua
obra. Mas o problema é que eu penso. Cogito, ergo sum, não é isso?
VOZ DE DEUS
Surpreso e irritado.
De onde você tirou esta frase idiota?
ADÃO
Ué, de ninguém. Me veio à cabeça. Por que, não é verdade?
VOZ DE DEUS
Verdade, verdade... Quem decide o que é verdade por aqui sou eu, OK?
Faz uma pausa
Olha, quer saber? Não tenho tempo para estes seus problemas
existenciais. Você não tem ideia da sorte que tem. Deixe de ser malagradecido e vá curtir sua vida ao lado de Eva, nesta maravilhosa ilha
tropical. E passe bem!
O facho de luz apaga-se.
Adão começa a andar vagarosamente, cabisbaixo.
A serpente surge entre as árvores, enroscando-se.
SERPENTE
Olá...
Adão vira-se, espantado
ADÃO
O quê?...Como?...
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SERPENTE
Não quis ouvir você, não é?
ADÃO
Quem?... Como?...
SERPENTE
Que é que houve? Perdeu a inteligência que tanto apregoava há bocado
perante ELE? Fica só neste que...como...
ADÃO
Mas você não é suposta de estar falando! Eu nunca vi...
SERPENTE
Interrompendo e rindo
“Suposta de estar falando”... Que linguagem de telemarketing é esta? É
claro que eu estou falando. Afinal, não estava interessado em coisas
diferentes? Pois aqui está uma. Uma serpente falante.
Bem, repetindo a pergunta: ELE não o ouviu, não foi?
ADÃO
Resignando-se à evidência de estar conversando com uma serpente
Pois é... Me chamou de mal-agradecido e tudo. Só porque eu tenho
dúvidas, anseios, cogitações. Só porque eu questiono a situação, porque
quero saber mais, descobrir o sentido da vida, me ver dentro de uma
perspectiva de causa e efeito, entender como e porque as coisas são como
são, e como posso modificá-las, mudar o curso da História...
SERPENTE
Uáu...
ADÃO
Queria também saber por que eu e Eva somos diferentes, para que
servem certos apetrechos..
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SERPENTE
Apetrechos?
ADÃO
Sim! Por que eu tenho isso..(olhando para baixo). E ela tem...aquilo...
SERPENTE
Rindo com deboche
Eu sabia. Tanta prosopopéia para chegar ao verdadeiro motivo. O que
você quer mesmo é descobrir o que Deus está escamoteando de vocês
dois. A mola do mundo. O começo de tudo. O princípio da existência. O
dominador da mente. O senhor do corpo. O que você quer mesmo, no
meio desse discurso bonito, é Sexo.
ADÃO
Nunca ouvi falar...
SERPENTE
Claro que não. ELE não quer que isso aconteça. Poderia revolucionar a
ordem das coisas, atrapalhar SEU plano, chacoalhar a beatitude deste
local.
ADÃO
Jura? Mas, é isto mesmo que eu sonho. Mudar o ritmo destes dias
estúpidos, reverter o status quo.
SERPENTE
Beleza! Você está inspirado, amigo. Cheio de frases em Latim... Acho que
está no ponto.
ADÃO
No ponto? De que?
SERPENTE
De iniciar a grande revolução. Fala prá mim. Quando você olha para Eva, o
que sente?
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ADÃO
Sei lá... Acho ela bonita, graciosa. Quando ela fala, parece música. Seu
corpo recende a flores do campo, seus olhos são lindos e sonhadores, seu
andar tem a cadência das ondas do mar...
SERPENTE
Que romântico! E mais?
ADÃO
Mais o que?
SERPENTE
Não sente nada mais? Um calafrio batendo nas costelas, o ar ficando
rarefeito, a respiração acelerando-se, um aquecimento nas virilhas, a boca
secando...
ADÃO
Deus me livre! Deve ser uma doença terrível. É isto o tal de Sexo?
SERPENTE
Suspirando
É quase. Essa febre, que consome os sentidos, chama-se Desejo. O Sexo é
filho dela. Quando senti-la, vai querer ficar doente para o resto da vida.
ADÃO
Não sei não... Mas, por que eu deveria adoecer deste jeito ao olhar para
Eva?
SERPENTE
Porque você....
Para por um breve momento
Bem. É muito difícil explicar assim... Espere um instante.
A serpente some atrás das árvores. Quando volta, traz na mão uma maçã
azul
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Pronto. Leve isto com você. Antes de encontrar com Eva, coma metade.
Espere uns minutos para fazer efeito. Depois, procure-a e convide-a a
comer a outra metade.
ADÃO
Olhando a fruta com estranheza.
Nunca vi uma maçã azul.
SERPENTE
Se acontecer o que eu prevejo, num futuro longínquo, em vez de maçãs,
teremos pílulas desta cor...
ADÃO
O que são pílulas?
SERPENTE
Bem, não interessa agora. Faça o que eu lhe digo e o mundo como
conhecemos nunca será o mesmo outra vez.
ADÃO
Maravilha. Mas, e se Eva não quiser comer? Agarro-a e a obrigo? Sou
muito mais forte que ela.
SERPENTE
Não, não! De jeito nenhum. Tente convencê-la. Use sedução. Explore a
curiosidade inata da mulher. Seja carinhoso...
ADÃO
Olhando para a fruta ainda com desconfiança
OK. Seja o que Deus quiser.
Arrependendo-se do que disse, e ostentando um olhar de triunfo
Não!... Seja o que EU quiser....
Adão começa a afastar-se.
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SERPENTE
Adão! É... não se esqueça de levar também um ramo de flores.
ADÃO
Flores! Para que? Vamos comê-las também?!
SERPENTE
Rindo com condescendência
Não, bobinho... É para oferecer à Eva. Flores operam milagres com o sexo
feminino...
A Serpente some entre as árvores. Adão também embrenha-se na floresta,
desaparecendo de cena.
Há um breve intervalo.
Eva aparece em cena, novamente cantoralando feliz. Adão aparece,
carregando a maçã já sem uma metade e um ramo de rosas. Sua expressão
está mudada. O desejo domina a sua face.
ADÃO
Olá Evinha, meu amor.
EVA
Olhando surpresa e meio desconfiada
Oi... Ué, que é que houve? Você está estranho...
ADÃO
Tô nada, querida... Pelo contrário, estou super feliz e animado. Aliás como
nunca estive.
Num gesto teatral, entrega o buquê para Eva
Toma, fofinha. É para você.
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EVA
Maravilhada
Puxa... Prá mim? Que gentileza. Mas, estamos comemorando alguma
coisa? Meu aniversário foi no mês passado...
ADÃO
Estamos comemorando o fato de você ser tão linda, tão perfeita...
Passa-lhe a mão pelos cabelos
Estamos comemorando o fato de eu te querer tanto...
EVA
Oh! Adão, como você é romântico. Nunca pensei...
ADÃO
Ofertando a maçã
E tem mais. Trouxe esta maçã para você. Comi um pedaço, mas guardei o
resto. Para provar que tenho você sempre em meu pensamento...
EVA
Pegando a fruta
Uma maçã azul... que estranho... É gostosa?
ADÃO
Maravilhosa. Como você...
Adão passa o braço pelos ombros de Eva e ambos vão caminhando até
desparecerem entre as árvores. Fundo Musical: Je T´aime Moi Non Plus
(Serge Gainsborough e Jane Birkin)
De repente, as luzes se apagam, a música é interrompida e ouve-se um
barulho infernal de trovões, explosões, ventania. As luzes simulam uma
tempestade de raios.
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Quando a barulhada cessa, acendem-se as luzes. O cenário mudou. Agora
não há mais árvores nem coqueiros. O slide de fundo é de uma terra
inóspita, escarpada, com um céu de chumbo.
Adão e Eva aparecem, cobrindo sua nudez com as mãos e tremendo de frio.
EVA
Assustada
O que aconteceu? Onde estamos?
ADÃO
Não faço a mais pequena ideia. Alôo! Há alguem aí?
O facho de luz acende-se
VOZ DE DEUS
Eu bem que avisei, Adão.
ADÃO
Senhor! O que houve?
VOZ DE DEUS
Ainda não adivinhou? Vocês estão fora do Paraiso. A partir de agora, vão
viver neste lugar inóspito e perigoso chamado Terra. Aqui, não existe
almoço grátis. A vida é árdua e a morte aleatória. Se não trabalhar, não
come. A ordem é adaptar-se para sobreviver, lutar contra uma natureza
que vai querer engoli-los, matar um leão por dia. Acabou a sopa. Um
mundo de desafios, não era o que você queria?
ADÃO
Mas, Senhor, também não precisava exagerar... Eu pensava numa
transição progressiva, um estágio preparatório. Por que tudo assim de
repente?
VOZ DE DEUS
Porque vocês cometeram o Pecado Original.
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ADÃO
Ué, a Serpente me disse que o nome disso era Sexo.
VOZ DE DEUS
É o nome vulgar para esta horrível transgressão.
EVA
Tá vendo, Adão? Viu no que você nos meteu?! Senhor, eu não queria, juro
que não queria. A culpa é deste cara aí que, de repente, colocou os
testículos na cabeça.
VOZ DE DEUS
Mentes, Eva. Você também provou do mesmo fruto, sentiu esta mesma
danação da libido. Eu sei, eu vi.
EVA
Voyeur...
ADÃO
Ei, que conversa é essa? Meus testículos estão onde sempre estiveram.
Aliás, como tudo o mais. E, pensando bem, se não eram para ser usados
como agora foram, prá que o Senhor os colocou em nós?
VOZ DE DEUS
Para que vocês praticassem a renúncia, reprimissem os reclames da
carne, esquecessem a volúpia do desejo. E, como recompensa,
continuassem a viver no Eden.
ADÃO
Então, é isso. O trade-off é este. Tesão versus abstinência. A escolha
crucial que marcará o destino da raça humana dependendo da existência
ou não de uma ereção, de um mamilo rígido. Não me parece muito justo.
Nem muito plausível. Por que esta fixação em sexo? O que pode haver de
tão errado nele, a ponto de causar um desvio tão radical nos desígnios do
Genesis?
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VOZ DE DEUS
Poque ele é a força que pode desagregar outros valores. A obsessão por
ele pode cegar os homens, desvirtuar a mulheres, destriur reinos,
engendrar guerras...
ADÃO
Bullshit! O sexo não causará isto. A repressão a ele é que sim. Deixado
livre, leve e solto, só poderá trazer alegria, paz, felicidade. O sexo é a
própria existência, é o complemento do amor, o fogo do entusiasmo pela
vida. Não se esqueça que, a partir de agora, teremos de povoar a Terra. E
só há um jeito de fazê-lo...
VOZ DE DEUS
Chega! Se não acredita em mim, que descubra por si. Já vi que a sua
escolha foi consciente. Paciência. Daqui para a frente, depende só de
vocês. Como já avisei, não vai ser nada fácil. Até mais ver.
O facho de luz apaga-se
Adão e Eva abraçam-se e vão andando.
ADÃO
Está arrependida?
EVA
Sim...e não.
Beija Adão no rosto.
Ainda acho que valeu a pena. E você?
ADÃO
Erguendo Eva nos braços.
É claro que sim!
Coloca-a no chão.
Vamos querida. Temos muito para fazer.
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Saem do palco rindo
PANO
Oswaldo Pereira
Abril 2013
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