Acessar documento - Opinião Filosófica

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Acessar documento - Opinião Filosófica
TRAVESSIA DO PAMPA:
FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA
SIMÕES LOPES NETO
Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul
1
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS
UCPEL
Chanceler
D. Jayme Henrique Chemello
Reitor
Alencar Mello Proença
Vice-Reitor
Cláudio Manoel da Cunha Duarte
Pró-Reitor de Graduação
Gilberto de Lima Garcias
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e
Extensão
William Peres
Pró-Reitor Administrativo
Carlos Ricardo Gass Sinnott
EDUCAT - EDITORA DA UCPel
Editor
Wallney Joelmir Hammes
CONSELHO EDITORIAL
Wallney Joelmir Hammes- Presidente
Lino de Jesus Soares
Luciano Vitória Barboza
Luiz Roberto Bitar Real
Osmar Miguel Schaefer
Vilson José Leffa
EDUCAT
Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPel
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (0xx53)284.8297 - FAX (0xx53) 225.3105 - Pelotas - RS - Brasil
2
Agemir BAVARESCO
Luís BORGES
(orgs.)
TRAVESSIA DO PAMPA:
FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA
SIMÕES LOPES NETO
Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul
EDUCAT
Pelotas 2003
3
© 2003
BAVARESCO, A. BORGES, L. (orgs.)
Direitos desta edição reservados à
Editora da Universidade Católica de Pelotas
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (0xx53)284.0000 - Fax (0xx53)225.3105
Pelotas - RS - Brasil
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PROJETO EDITORIAL
EDUCAT
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Ana Gertrudes G. Cardoso
CAPA
Luis Fernando Giusti
REVISÃO
Maria M. Louzada
Terezinha M. Louzada
FOTO CAPA
Wilson Lima
PROJETO ESTATUETA TEINIAGUÁ
Arq. Serafim Pinho Dias
Simpósio Simoniano – Lendas do Sul (1º: 2002:Pelotas)
Anais do I Simpósio Simoniano – Lendas do Sul, Pelotas 06 a 08
de dezembro de 2002. - Pelotas: Educat, 2003.
292 p.
I. Título
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim
CRB 10/1233
4
COMISSÕES
Comissão organizadora: Grupo de Pesquisa Simoniano do
Instituto Superior de Filosofia/UCPEL,
Comissão coordenadora: Instituto Histórico e Geográfico de
Pelotas, Núcleo de Estudos Simonianos, Academia
Pelotense de Letras, Instituto João Simões Lopes Neto,
Academia Sul-Brasileira de Letras e SECULT/Pelotas.
APOIO: FAPERGS e UCPEL
5
6
JARAU DE NÓS OUTROS 1
Mário Mattos
Dezembro, 2002
(Primeira Parte – Os Contos Gauchescos)
Na poderosa aeronave Da Leitura, onipresente, Sobrevoei, majestosos,
O Pampa, o Pago... e a Gente.
Pela voz florida e forte
De Blau Nunes, tapejara,
Vi o Rio Grande, amanhecendo,
Vi a colméia - e a seara.
Entre o viver e o morrer ...
O amor... a dor... e o conflito Na fala do narrador,
A força, que vem do mito.
Cada conto é uma vertente,
No chão da História, nascida,
E nela, o falar campeiro,
É poesia, é estilo, é vida!...
Descortinar os limites
Das paixões do ser humano,
É o que faz universal,
O legado simoniano,
1
. Este poema foi composto especialmente para o Simpósio Simoniano Lendas do Sul, sendo declamado pelo autor no dia 05/12/2002.
7
Obrigado, Simões Lopes!...
Escutando passarinhos,
Procuro te conhecer
És árvore, flor e ninhos,
Raio de sol, a nos ver!...
(Segunda Parte - O Cerro da Tentação)
Mas, bah!...que eu também me encontro
Cismado, como o tio Blau
A campear meu Boi Barroso, ,
Pelas bandas do Jarau...
De repente, o meu destino:
Na porta da Salamanca:
Me aparece, frente à frente
O vulto da face branca!...
Ai!... vida, que a cada dia
Nunca pára de mudar!...
Ai!...mente do ser humano,
Que não doma o seu sonhar!...
Já te entendo, meu Santão:
Vou seguir o velho Blau,
Minha sorte, aventurar:
Quem sabe, a Princesa Moura A Teiniaguá tentadora Tem o tudo, pra nos dar?...
8
(Terceira Parte – A Furna e a Velha
Carquincha)
Medo e ambição se peleiam,
Na furna dos Anhangás:
Feras, serpentes, miasmas
Peso de culpas fantasmas,
A nos puxar para trás.
Mas, onde passa um Blau Nunes,
Gaúcho velho de lei Por Cristo!... que eu passarei!
Resistir com alma forte,
Da Carquincha à tentação
Da língua, ao erro fatal Saber lutar, coração,
Vida ou morte, contra o Mal,
Que trago em mim, sem razão...
É justo vender-se a alma
Ao vil metal, sem consciência –
Pra subir, causar estrago,
Pisotear a convivência
Com nossos irmãos do pago?...
(Quarta Parte – A Explosão do Cerro)
Como explodirei meu Cerro
Castelo azul dos meus erros O Jarau da velha crença,
9
Onde mora a indiferença,
O dogma, o preconceito,
E a empáfia de ser perfeito?..
Sem renunciar à aparência
E à falsa felicidade,
Como ver em transparência,
No caos da globalidade?..
(Quinta Parte - Conclusão)
Abro a Caixa de Pandora:
E a Esfinge não me devora;
Mau fado não me intimida,
Tenho o pássaro da vida,
Desse gênio, que me escora!...
A dor de Anhangá Pitã,
Boa nova nos deixou:
Teiniaguá se transformou,
Da lagartixa do Mal,
Na rosa do Manantial:
A mulher - pecado ou flor,
Purificada no Amor!...
10
SUMÁRIO
À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES NETO AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS ................................. 13
Luís Borges ................................................................................. 13
1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA .................. 45
Luís Augusto Fischer ................................................................. 45
2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO ..... 71
Eduardo Arriada ........................................................................ 71
3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA DO
GAÚCHO CONSIDERANDO ASPECTOS METAFÍSICOS ..... 88
Eduardo de Oliveira .................................................................. 88
Mauro Henrique Franzkowiak Martins ................................... 131
5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA DO
JARAU ....................................................................................... 147
Péterson Figueiredo ................................................................ 147
6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM
SIMBÓLICA ............................................................................. 157
Agemir Bavaresco .................................................................... 157
7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES ................ 198
TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO ................................... 198
Luís Borges .............................................................................. 198
8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES LOPES
NETO......................................................................................... 224
Cláudia Antunes ....................................................................... 224
9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO JARAU DE J.
S. LOPES NETO ........................................................................ 246
Oscar Brisolara ....................................................................... 246
11
10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO SIMÕES LOPES
NETO......................................................................................... 268
Zênia de Leon .......................................................................... 268
SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO .................................. 292
Mário Mattos ............................................................................ 292
ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO - LENDAS
DO SUL ..................................................................................... 298
12
À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES
NETO - AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS
Luís Borges
O manancial, realmente, é quase inesgotável.
(Mozart Victor Russomano
in Como se fosse um prefácio)
A apresentação dos textos segue a ordem da
programação do Simpósio Simoniano-Lendas do Sul.
Mantivemos
os
textos
na
sua
integralidade,
procuramos, contudo, dar uma uniformidade na formatação,
e submeter às correções necessárias, guardando em algumas
palestras e comunicações o tom da oralidade, sempre que
não houvesse prejuízo na clareza da expressão.
Infelizmente, a comunicação a ser apresentada pelo
prof. Carlos Francisco Sica Diniz não se realizou em virtude
de problemas de saúde do mesmo, portanto, não pôde
constar aqui. Entretanto, o que nos seria sumariamente
apresentado, sê-lo-á de maneira completa na obra do prof.
Diniz, pela qual todos ansiamos, cujo título é João Simões
Lopes Neto, uma biografia. Este trabalho, fruto de rigorosa e
minuciosa pesquisa, afirmo sem medo de errar, será o livro
definitivo sobre a vida do Velho Capitão.
13
Nossos objetivos no evento foram os seguintes:
- Estudar as Lendas do Sul de João Simões Lopes
Neto, para afirmar a identidade cultural regional em diálogo
com o contexto universal;
- Introduzir a obra simoniana no quadro geral da
literatura brasileira;
- Tornar mais conhecidas as Lendas do Sul;
- Abrir novas linhas hermenêuticas da obra
simoniana;
-
Estabelecer
diálogo
com
outros
escritores
regionalistas.
Entendeu-se que, de forma geral, os objetivos
propostos – supracitados – foram atingidos.
Os resultados relativamente aos objetivos foram os
seguintes:
a) Através das diversas abordagens apresentadas nas
palestras, comunicações e apresentações artísticas, além da
participação do público presente, foi-nos possível constatar
não somente a preocupação em conhecer a obra simoniana,
mas também em resignificá-la, tomando como exemplo a
questão relativa ao problema entre tradição/tradicionalismo;
identidade regional/globalização; regionalismo gaúcho/
contexto literário nacional.
14
b) Quanto a relacionar a obra de João Simões Lopes
Neto com o contexto literário nacional, notou-se,
especialmente,
em
duas
oportunidades,
um
ganho
significativo. A palestra de Luís Augusto Fischer tratou de
trazer à tona alguns enunciados problemáticos fundamentais
para compreender essa relação. De um lado, a partir da
abordagem de Antônio Cândido em Parceiros do Rio
Bonito, Fischer estabeleceu que a tradição cultural/literária
que subjaz ao regionalismo, pode ser analisada, de maneira
geral, pela ―consciência do atraso‖ ou pela ―consciência do
progresso‖. Nessa dialética, pode-se localizar o escritor
gaúcho sob vários prismas, entre os quais, a relação com a
escritura marcantemente urbana de Machado de Assis e
Lima Barreto; a superação dicotômica entre narrador culto e
personagens, coisa que, no período, outros escritores, tais
como Coelho Neto e Afonso Arinos, entre outros, não
souberam dar respostas. Além disso, podemos citar a
comunicação de Luís Borges, onde se traçou uma linha
comparativa entre a escritura simoniana e a literatura
contemporânea de Lígia Fagundes Telles, objetivando
mostrar, apesar de todas as diferenças de linguagem e
recursos expressivos, que Simões, pela vitalidade de sua
imagística
e
narratividade,
15
mostra-se
muito
atual,
recolocando-o além da simples classificação tradicional de
escritor pré-modernista.
c) Sabe-se que Contos gauchescos é a obra mais
conhecida e mais estudada de Simões Lopes Neto. Neste
sentido, o Simpósio realizado procurou – e cremos ter
atingido resultados positivos – estender o olhar para Lendas
do Sul, ainda que não restringindo a discussão a este ponto,
conforme pode ser observado pela programação. Para tanto
buscou-se abarcar três pontos:
1- Uma visão geral das Lendas, o que foi feito pelo
professor Fischer, suscitando muitas perguntas.
2 - Uma visão da universalidade da literatura simoniana
o que compreende as fontes históricas e literárias da
Salamanca do Jarau, no que a palestra de Eduardo Arriada se
concentrou, tendo ainda acrescentado novas informações,
resultado de suas últimas pesquisas.
3 - Uma nova abordagem hermenêutica dos textos
simonianos, sobretudo da lenda a Salamanca do Jarau.
d) Até então, os encontros realizados sobre vida e
obra de Simões Lopes Neto quase que se restringiam a
aspectos literários. Neste evento - Simpósio Simoniano:
Lendas do Sul - houve a incorporação de várias outras
hermenêuticas, algumas bastante recentes, tais como a
16
ético-filosófica e que já está a dar frutos, uma vez que
acadêmicos apresentaram trabalhos dentro desta linha de
pesquisa, como foi o caso do acadêmico Mauro H. Martins
com sua comparação entre a caverna platônica e a caverna
simoniana. Tal cruzamento de informações resultou num
saldo coletivo importante, pois não só reorientou a pesquisa
simoniana,
como
também
atualizou
os
diversos
pesquisadores quanto ao estágio dos estudos sobre Simões
Lopes sob diversos ângulos.
e) Era nossa intenção tomar a literatura simoniana
como um referencial, e não um fechamento, para estabelecer
um diálogo trans e interdisciplinar. Nesse ponto, incluía-se a
pergunta sobre se o regionalismo era um subproduto
cultural-literário e nesse sentido estaria esgotado ou se, por
exemplo,
escritores
como
Aldyr
Garcia
Schlee
apresentavam novos elementos, capazes de sustentar uma
escritura de tema rural-regional dentro da atualidade literária
do Brasil. Constatamos que esse objetivo não foi alcançado,
uma vez que esse debate não apareceu durante o Simpósio.
A fim de verificarmos se os objetivos propostos
tinham
sido
atingidos,
as
diversas
entidades
que
compuseram as comissões de organização e coordenação do
evento se reuniram para fazer uma avaliação no dia 17 de
17
dezembro de 2002. De vários pontos contou essa avaliação.
Podem ser resumidos em alguns itens:
1 - O público: número de inscritos; locais de
inscrição etc. Chegou-se à conclusão de que o número de
inscritos correspondeu às expectativas, considerando a
época do ano, a divulgação, a ocorrência de eventos
paralelos. O público-alvo foi o de professores universitários
e do ensino médio, estudantes univesitários e do ensino
médio, escritores e pesquisadores. Constatou-se a ausência
de pessoas e entidades ligadas ao Tradicionalismo,
excetuando o Escritor Mário Mattos e o Sr. Mogar Pagano
Xavier, responsável pela FUNDAPEL, extinta e substituída
pela atual Secretaria Municipal de Cultura.
2 - A participação das entidades envolvidas na
realização do evento: Exceto o Instituto de Letras e Artes da
UFPEL concluiu-se que todas as entidades, incluindo o
poder público através da Secretaria Municipal de Cultura
participaram,
efetivamente,
para
o
sucesso
do
acontecimento.
3 - Quanto ao desenvolvimento geral do evento:
Constatou-se que a programação artística (teatro, música e
declamação poética) foi adequada ao tema e agradou ao
público. Cumpriram-se os horários e a atuação dos
18
coordenadores das comunicações e dos palestrantes foi
satisfatória.
4 - Quanto à repercussão do evento: Entendeu-se que
a repercussão foi bastante boa, o que pode ser constatado
através da cobertura da imprensa escrita,
além da
radiofônica, que foi realizada pelas rádios Comunidade FM;
Pelotense e Federal FM, e da TV-UCPEL. Os cartazes e
folders foram distribuídos pelas entidades, obedecendo a um
planejamento estratégico, visando um público determinado,
o que correspondeu ao intento.
Compreendeu-se que a figura humana e literária de
João Simões Lopes Neto vem cada vez mais se impondo, no
que é fato significativo, o apoio da FAPERGS, o que não só
possibilitou a viabilização do evento, mas assinala o
reconhecimento oficial da pesquisa acadêmica e seu diálogo
com os diversos setores da sociedade, no debate em torno do
criador de Blau Nunes. A esse reconhecimento, já
estabelecido pelo público e pela crítica, que talvez possa ser
sintetizado pela inclusão do conto Contrabandista, na
antologia Os cem melhores contos brasileiros do século,
organizada por Ítalo Moriconi, editada pela Editora
Objetiva, em 2000, se somou o pedido de inclusão de seu
nome no Livro dos Saberes. O pedido foi entregue à então
19
coordenadora geral do Livro e Literatura do Ministério da
Cultura, Mequita Coimbra de Andrade, em agosto de 2001.
O Livro dos Saberes, instituído pelo decreto nº 3551, de 4 de
agosto de 1999, é uma publicação do Governo Federal, que
destaca a obra dos principais escritores brasileiros, como
uma espécie de memorial da literatura nacional.
Fora essas manifestações críticas, como a de
Moriconi, ou institucionais, onde se inscreveria a inclusão do
Velho Capitão no Livro dos saberes, Simões é antes de tudo
um tema que apaixona. Melhor exemplo não há do que a
resposta de Mário Mattos, cerca de 20 anos depois, ao artigo
Escritor representativo 2 , no trabalho inédito intitulado O
reconhecimento de Simões Lopes Neto: uma revisão à
crítica de Wilson Martins (agosto de 2002). O mesmo
sentimento me fizera redigir também uma contestação
indignada das teses do autor da monumental História da
inteligência brasileira, sob o título de Modernismo e
2
MARTINS, Wilson. In Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28-5-1983. O
pesquisador Mário Mattos vem preocupando-se com esse ponto há vários
anos. Vide MATTOS, Mário. Simões Lopes Neto nas asas da
modernidade. In Diário Popular, Pelotas, 9- 3 – 1994 e do mesmo autor
Os embaraços ao desenvolvimento do MTG e Os mitos na simbologia da
cultura e Simões Lopes no Terceiro Milênio (textos inéditos, 1999).Para
maiores detalhes sobre este assunto vide também Anais do II Seminário
de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp.
154-157.
20
Regionalismo (ensaio inédito, 1999) 3 . Esse trabalho já se
encontra superado pelo artigo de Mattos, o qual esperamos
venha logo a público.
Outro sinal visível de paixão, elemento notado e
elogiado pela pesquisadora Cláudia Antunes, foi a
repercussão
da
palestra
―Contos
gauchescos:
uma
obra-prima do mau gosto‖ realizada, no foyer do Teatro 7 de
Abril, pelo prof. João Arendt, em 13-11-2002, durante o
exitoso projeto da Secretaria Municipal de Cultura de
Pelotas, ―É conversando que a gente se entende‖ , conforme
se pode observar pelo comentário de M. L. Vollosky feito no
artigo Uma lição de coragem publicado no jornal Diário
Popular, de Pelotas, em 19-11-2002.
Vale dizer que foi possível perceber, dentre as
diversas abordagens realizadas no Simpósio, a presença de
um ―Simões contaminador‖, isto é, um autor que teve sua
obra como fonte de outras produções estéticas não literárias
e, em contrapartida, recebeu novas leituras de sua literatura
permeadas pela interpolação de diversificadas linguagens
dos multimeios e de outras formas de arte, tais como a
pintura, a música e o teatro. Apenas para que possamos
3
Para maiores detalhes sobre as divergências com as teses de Wilson
Martins, vide Anais do II Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed.
21
exemplificar, busquemos na memória a exposição Mítica
Simoniana, do artista plástico goiano 4 Fábio Borges, no
Centro de Integração do Mercosul, cuja vernissage , em 2011-2000, marcou a abertura do II Seminário de Estudos
Simonianos. O próprio artista em declaração à imprensa
revelou esse poder ―contaminador‖ do autor de Contos
Gauchescos (1912): Não é um trabalho de ilustrar os contos,
mas de unir o que há de comum entre a minha linguagem e a
de Simões Lopes Neto.5
As edições populares, tais como as da Martin Claret e
da L&PM, se multiplicam 6. Se de um lado, isso confirma a
penetração da literatura simoniana entre diversos tipos de
leitores, oriundos de variegados lugares sociais e níveis de
ensino, de outro, se pode incorrer no risco da falta de
critérios editoriais confiáveis, inclusive com erros a respeito
de informações básicas, do que é exemplo a edição do
Cancioneiro guasca, surgida em 1999, pela casa publicadora
Universitária UFPEL, 2001, pp. 154-157.
4
Em notícia do jornal Diário Popular, Pelotas, de 25-11-2000 aparece a
informação de que o artista plástico Fábio Borges é carioca.
5
Cf. RIBEIRO, Roberto. Exposição sobre a obra e Simões Lopes
amanhã. In Diário Popular, Pelotas, 19-11-2000.
6
Para maiores detalhes vide CRUZ, Cláudio. Simões Lopes a mancheias.
In Cadernos Porto e Virgula. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999,
pp.11-14.
22
porto-alegrense Sulina, onde se afirma que a referida obra
apareceu apenas postumamente.
Depois veio a edição, em formato pocket, do
Negrinho do Pastoreio e outras histórias, comemorativa dos
109 anos do Diário Popular, de Pelotas, com seleção e notas
de Mário Osório Magalhães. A capa foi ilustrada com uma
fotografia de Carlos Queiroz, a partir de uma escultura de
Antônio Caringi. Esse tipo de trabalho, meritório por colocar
ao alcance do grande público obras importantes a preços
acessíveis, notadamente do público escolar, possui o
inconveniente
de
poder
desorientar
o
leitor
não
especializado quanto à bibliografia exata do autor, posto que
sabemos nunca ter Simões publicado qualquer livro com este
título, tratando-se, pois, de uma coletânea. De qualquer
forma, isso mais demonstra o interesse na divulgação de sua
obra.
A universalidade simoniana, sempre tão contestada
em função de sua linguagem dialetal gauchesca, não se tem
mostrado elemento impeditivo de sua acolhida, inclusive
através de uma das mais fecundas atividades interculturais,
tanto que Simões Lopes Neto tem sido traduzido para o
espanhol, o inglês, o francês, o italiano, o alemão, o russo e
agora para o japonês, conforme atesta o catálogo da editora
23
Shinseken 7 (2002-2003), no qual constam Trezentas onças
(ilustrado por Clóvis Garcia) e O Negrinho do pastoreio
(ilustrado por Clarice Jaeger), ambos traduzidos por Mayumi
Watanabe e Sachito Tsuda.
Ainda na linha de popularização da obra simoniana,
uma salutar iniciativa coube ao jornal Zero Hora, de Porto
Alegre, que publicou a série Lendas gaúchas, no ano 2000,
onde constavam trabalhos do Rapsodo bárbaro. 8 Temos
ainda livros infantis calcados nas lendas simonianas, tais
como Negrinho do pastoreio e Boitatá, editados pela Sabida,
s/d., integrantes da ―Coleção Folclore em atividades‖.
Essas manifestações de popularização da literatura de
Simões Lopes Neto através de edições voltadas ao grande
público e da divulgação mediada pelos encartes jornalísticos,
em
formato
atraente
e
com
ilustrações
bonitas,
possibilitaram a afirmação senão de um ―Simões canônico‖9,
pelo menos, o encaminhamento de um Simões em vias de
reconhecimento, a partir de sua próximidade com o público
leitor.
7
Catálogo cedido gentilmente pelo pesquisador Adão Monquelat.
Cf. Lendas gaúchas. Porto Alegre: Zero Hora/ Pioneiro, 2000. De
Simões Lopes Neto encontra-se: V. 1: Negrinho do pastoreio, pp. 6-15;
V.2: Casa de M´bororé, p. 27, e Lunar de Sepé, pp. 30-33; V. 3: A M´
boitatá; V.4: Mãe mulita, pp.4-8; V. 5: Salamanca do Jarau, pp. 4 -36.
8
24
Considerando esses impulsos de divulgação da obra
lopesnetina, deve-se assinalar a interessante iniciativa de
gravá-la em fita ou CD, juntamente com a obra de outros
autores gaúchos, tais como Lya Luft e Luís Fernando
Veríssimo, para utilização de portadores de deficiência
visual. 10 Além disso, a gravadora carioca Luz da Cidade
lançou quatro CDs referentes a Simões Lopes Neto, narrados
por Paulo César Pereio, sendo o primeiro uma antologia11, e
os demais, os Casos do Romualdo, na íntegra. Em disco, fora
do circuito comercial, temos ainda o
Negro Bonifácio,
narrado pelo escritor Aldyr Garcia Schlee, como anexo à
dissertação de mestrado de Cláudia Antunes, apresentada na
PUC-RS, e o CD Simões Lopes Neto: sonhos e sons (2002),
produzido por mim especialmente para o programa ―Palavra
Liberdade‖,
na
Rádio
Comunidade
FM,
emissora
comunitária mantida, fundamentalmente, pelo movimento
sindical de Pelotas, programa este reproduzido via Internet,
pela rádio da Casa de Cultura Lázaro Zamenhof.
9
Vide BORGES, Luís. Simões Lopes Neto: um canônico na fímbria do
cânone. (Ensaio inédito).
10
Cf. Autores gaúchos em audiolivros. In Zero Hora, Porto Alegre,
10-5-2000.
11
O conteúdo do disco é o seguinte: Negrinho do pastoreio, O mate do
João Cardoso; Trezentas onças e Algumas miudezas.
25
A intuição de que o Velho Capitão, se não o foi para
si era um bom negócio para os outros, seguida pela editora
Echenique e, mais tarde, pela Globo, é inegável pela sua
vitalidade editorial. Nesse sentido, o boom simoniano, se
assim nos podemos expressar, expandiu-se, quando sua obra
caiu em domínio público, podendo, deste modo, ser editada
sem o pagamento de direitos autorais. Outro fator importante
foi a publicação, no início da década de 80 do século
passado, do livro pioneiro de Carlos Reverbel, Um Capitão
da Guarda Nacional, pela Martins Livreiro.
Em verdade, a trajetória da pesquisa e do resgate da
vida e obra de Simões Lopes Neto12, obrigatoriamente, em
sua fase heróica, tem de ser contada desde os anos 40 até
1981 – a Era Reverbel. Daí pra frente, temos alguns marcos
indispensáveis na reflexão sobre os rumos da pesquisa
lopesnetina. Vejamos alguns: a descoberta de Olhos de
remorso pelo historiador Mário Osório Magalhães 13 , em
12
Para maiores informações vide BAVARESCO, Agemir e BORGES,
Luís, opb. cit, pp. 86-119.
13
Para maiores informações vide o livro Novos textos simonianos.
Pelotas: Confraria Cultural e Científica Prometheu/Livraria Lobo da
Costa, 1991. Ver também BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís.
História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS
Editor, 2001, p. 95 e 113-114, notas 83-85 e 88. Esse debate também
apareceu no II Seminário de Estudos Simonianos. Vide os respectivos
Anais. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp. 181-182.
26
1985, quando teve grande repercussão na imprensa. Esse
conto seria incluído na edição crítica de Lígia Chiappini, de
1988. Nesse mesmo ano, os pesquisadores Adão Monquelat
e Geraldo Fonseca publicaram a Antologia poética (E
alguma prosa de e sobre) Lobo da Costa, obra para a qual
me cedem para um ensaio sobre o regionalismo do autor de
Lucubrações (1874) dois sonetos14 de Simões Lopes Neto,
cuja face poética, com exceção dos triolés das ―Balas de
estalo‖15, era ainda desconhecida.
O pesquisador Adão Monquelat inaugurou uma nova
e significativa fase nos estudos simonianos, pois é ele o
14
Esses poemas, Réve e Duvida, foram divulgados em artigo de
Monquelat ao jornal Diário da Manhã, Pelotas, em 30-6-1991.
Posteriormente apareceram em Novos textos simonianos (1991, pp. 17 e
19) e no nº 17 dos Cadernos Porto & Vírgula. Porto Alegre: Unidade
editorial/ Prefeitura Municipal, 1999, pp. 53-54. Cabe observar que esses
poemas já haviam sido desentranhados do esquecimento dos jornais
antigos desde, pelo menos, a segunda metade da década de 80 do século
passado, quando Monquelat e Fonseca, completaram outra obra
importante: Coletânea e notas biográficas de poetas pelotenses (1985),
que infelizmente permanece inédita. Além disso, apareceram também
na Revista ZH, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, na matéria Baús
revelam poemas de Simões Lopes Neto, de autoria do jornalista Klécio
dos Santos, em 26-5-1996.
15
Sobre as ―Balas de estalo‖ vide o livro de Ângelo Pires Moreira, A
outra face de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.
Mais tarde, em seu artigo João Simões Lopes Neto: a face romântica,
incluído em Novos textos simonianos (pp. 13-22), o pesquisador
Monquelat revela a data em que efetivamente estrearam as ―Balas de
estalo‖, isto é, em 12-6-1888, e não em 2-7-1888 como supunham
Reverbel e Pires Moreira.
27
único a ter descoberto um conto urbano de João Simões
Lopes Neto 16 , Na lagoa... do Fragata 17 , encontrando tal
revelação grande ressonância na mídia18. Alia-se a essa nova
fase de impulso à pesquisa lopesnetina os trabalhos no
campo da estilística e da biografia de Carlos Francisco Sica
Diniz.19
Outro ponto marcante no resgate da obra simoniana
foi a publicação de O teatro de Simões Lopes Neto (v. 1), sob
16
Cf. ARRIADA, Eduardo e BORGES, Luís. Laçando o boi barroso: o
caso de atribuição de autoria do conto „Olhos de remorso‟ a João
Simões Lopes Neto (Ensaio inédito).
17
Publicado originalmente no Radical (Pelotas), ano 1, nº 12, em
22-3-1890, sob o pseudônimo de João Felpudo. Posteriormente apareceu
na edição de 30-6-1991 do Diário da Manhã, Pelotas, inserido ao final
do artigo de Monquelat, Capitão João Simões ... e sua cia. de Joões.
Depois foi republicado ainda em Novos textos simonianos, pp. 53-60; e
CRUZ, Cláudio. Cadernos Porto &Vírgula, n. 17. Porto Alegre:
Unidade Editorial, 1999, pp. 57-62.
18
Cf. Uma herança de inestimável valor. In Zero Hora, Porto
Alegre,26-5-1996.
19
Cf. DINIZ, Carlos F. Sica. Simões Lopes Neto – o espaço da
linguagem. In Diário Popular, Pelotas, 4 -3-2001. Vide também Um
conto bem contado. In Novos textos simonianos, pp. 41-46. Quanto às
pesquisas biográficas de Sica Diniz tivemos duas amostras nas palestras
proferidas em 11-6-1996, quando da realização do I Seminário de
Estudos Simonianos, e em 14 –11-1999, quando ocorreu o III Encontro
Sul-Brasileiro de Escritores, promovido pela Academia Sul-Brasileira de
Letras, Casa Brasileira de Cultura e UCPEL. Cabe observar que foi no
referido Encontro de Escritores, a partir da palestra do prof. Sica Diniz,
que o prof. Bavaresco ―descobriu‖ Simões Lopes, passando a
incorporá-lo como objeto de sua investigação filosófica, notadamente
sob os aspectos ético-metafísicos e de filosofia intercultural. (Cf.
COGOY, Carlos. Filosofando com Simões Lopes. In Diário da Manhã,
Pelotas, 24-12-2002.)
28
os auspícios do Instituto Estadual do Livro, em 1990,
organizado por Cláudio Heemann.
Em 1987, Dilmar Messias, responsável pela política
teatral do Rio Grande do Sul, considerou relevante a
pesquisa das artes cênicas e da dança no estado.20 Heemann,
ligado ao teatro desde a adolescência, aceitou a tarefa,
proposta pela Coordenadoria de Artes Cênicas do CODEC,
de investigar a história do palco rio-grandense, chegando a
publicar uma História do teatro no RS. Na trilha desse
trabalho beneditino, percorrendo acervos diversos e
bibliotecas durante dois anos, auxiliado por Cheila Moro,
trouxe à baila teatrólogos soterrados pelo tempo, tais como
Joaquim Alves Torres, cuja obra, em 1989, foi editada pelo
IEL.21
Municiado dessa experiência era sabedor de que, a
começar por Augusto Meyer, passando por Reverbel,
Guilhermino César, Flávio Loureiro Chaves, Antônio
Hohlfeldt e outros, as referências ao teatro de Simões Lopes
Neto eram invariavelmente as mesmas, quase sempre
distantes das fontes primárias. Estava aí a necessidade de se
20
APPEL, Carlos Jorge. Afinal o teatro de Simões Lopes Neto. In
HEEMANN, Cláudio (org.). In O teatro de Simões Lopes Neto. V. 1.
Porto Alegre: IEL, 1990.
21
Idem.
29
buscar – caso existissem - os originais ou as raríssimas
publicações.
Segundo Sérgio da Costa Franco 22, a ―descoberta‖
de Heemann, que já havia desenterrado outros dramaturgos,
mesmo muito importante, afirmava ainda mais o contista
Simões contra as demais facetas de seu inquieto espírito
criador, pois conforme afirmou Mozart Victor Russomano23,
nem as crônicas, nem o teatro, nem as conferências, nem os
poemas de João Simões Lopes Neto acrescentam algo à sua
glória literária [...] porque a glória verdadeira de Simões
Lopes está conquistada e consolidada, definitivamente,
pelas Lendas do Sul e pelos Contos Gauchescos. Os Casos
do Romualdo foram uma exceção, dessas que não se
repetem.
Cláudio Heemann observa, entretanto, que a obra de
Simões Lopes Neto, especificamente sob o ponto de vista
dramatúrgico, não deve ser encarada como apêndice ou
curiosidade no conjunto da produção de um novelista
clássico, mas é antes a expressão de um estro cênico que não
encontrou no ambiente provinciano de Pelotas, em que se
22
Cf. A descoberta. Recorte do jornal Zero Hora, Porto Alegre, existente
na Biblioteca Pública Pelotense, do mês de julho, sem identificação de
dia e ano. Suponho, contudo, que o ano seja o da publicação do livro.
30
manifestou, a atenção e o cuidado que o encaminhassem à
maturação plena. Conclui ele ainda:
Em conjunto, as comédias de Simões Lopes Neto, as cenas
avulsas, o drama que nos chegou com falta de um ato e os
roteiros para revistas musicais, mesmo limitados ou
inconclusos, não revisados ou em fase de elaboração cuja
terminalidade só podemos presumir, posicionam seu autor na
dramarturgia gaúcha. Como no caso de Qorpo Santo, o valor
deste teatro se afirma dentro do fragmentário. Mas nem por isso
destituído de valor , importância ou encanto cênico. Pois mesmo
nos momentos em que a sua consistência literária apresenta-se
com menor inteireza, a vocação cênica é inegável. 24
Na ocasião em que Heemann divulgou seu livro,
contendo as 13 peças de Simões Lopes Neto, a imprensa
mobilizou-se em louvar – com justeza - os achados do
pesquisador, ―decorrentes de complicadas investigações‖.25
Na ocasião, Sérgio da Costa Franco tratou de lembrar que
Carlos Reverbel, em sua modéstia, não quis imiscuir-se na
pesquisa de Heemann, o que lhe teria facilitado o caminho,
uma vez que em seu Um Capitão da Guarda Nacional
escreveu:
23
RUSSOMANO, Mozart Victor. Como se fosse um prefácio. In Novos
textos simonianos, p. 11.
24
CF. HEEMANN, Cláudio. O teatro de Simões Lopes Neto. Porto
Alegre: IEL, 1990.
25
Sérgio da Costa Franco, no recorte citado.
31
Mais adiante, por volta de 1955, os salvados desse arquivo [de
Simões Lopes Neto] foram doados a Mozart Victor Russomano,
que os recebeu com estas palavras:
―o arquivo de J. Simões Lopes Neto foi espoliado através de
anos. Hoje está entregue às minhas mãos pela viúva do saudoso
escritor. Reduz-se a um amontoado de documentos
desorganizados – muitos dos quais de vital importância para a
história do Rio Grande do Sul -, que reclamam classificação e
detalhada pesquisa.‖ 26
É ainda Mozart Victor Russomano quem esclarece o
impasse entre as opiniões de Sérgio da Costa Franco e Carlos
Jorge Appel, que debatiam ―a conhecida e provinciana
história do pai da criança‖:
A pesquisa sobre o teatro no Rio Grande do Sul, desenvolvida
por Cláudio Heemann, sob patrocínio do CODEC e com o
estímulo entusiasmado de Carlos Jorge Appel, trouxe à luz do
conhecimento público, não a existência das peças do velho
Simões (das quais se tinha ampla notícia, mas os textos , em
número de doze, alguns incompletos e secundários, dos quais
alguns aparecem neste livro [de Heemann], acrescido de Os
Bacharéis, que Regina Clara Simões Lopes obteve no Rio de
Janeiro, completando, assim, o que havia, a propósito, no
arquivo do escritor.27
Paralelamente às atividades individuais de pesquisa,
observamos surgir várias entidades, como o Núcleo de
26
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre:
Martins Livreiro, 1981, p 252.
27
RUSSOMANO, Mozart Victor. O arquivo de Simões Lopes Neto. In
HEEMANN, Cláudio (org). O teatro de Simões Lopes Neto. Porto
Alegre: IEL, 1990.
32
Estudos Simonianos, do Instituto Histórico e Geográfico de
Pelotas, o Instituto João Simões Lopes Neto e, mais
recentemente, o Grupo de Pesquisa Simoniano, ligado ao
Instituto Superior de Filosofia da UCPEL. Nessa orientação,
vão também os eventos do I e II Seminário de Estudos
Simonianos (1996 e 2000, respectivamente) e, em dezembro
de 2002, o Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, cujo
registro são os presentes Anais.
Todos estes encontros foram momentos decisivos
para os pesquisadores e interessados na vida e obra de
Simões Lopes Neto, posto que eles nos deram uma idéia do
ponto em que estão as pesquisas e as linhas em que mais se
desenvolvem, permitindo um significante saldo coletivo.
Lembra-me justamente no concernente aos objetivos
propostos na realização do Simpósio Simoniano - Lendas do
Sul, de que estava a superação de competitividades funestas,
intrigas pessoais e polêmicas intransigentes. Soubemos,
pois, com satisfação que esse propósito foi atingido, não só
pela representatividade institucional do evento, que contou
com a participação do NES/IHGPEL, ASBL, APEL e
SECULT/Pelotas, capitaneadas pelo ISF/UCPEL, mas
também pelas perspectivas abertas pelos debates ali
travados, sendo um dos mais importantes o que foi sugerido
33
por Mário Mattos, durante a palestra do prof. Luís Augusto
Fischer, que deverá se concretizar através de painéis, em
2003, sob o título geral de As raízes populares da gauchesca
rio-grandense 28.
O Simpósio Simoniano - Lendas do Sul logrou
continuar a tradição de, ao lado de grandes nomes sediados
em Pelotas, trazer renomados pesquisadores da Capital,
entre os quais se destacam o prof. Fischer e a jornalista
Cláudia Antunes. Aliás, esta última pesquisadora, aplicando
a crítica genética a Simões, mais especificamente ao conto
Negro Bonifácio
29
, fez uma importante descoberta: a
publicação no jornal Diário Popular de contos, inclusive já
em 1911, que irão integrar sua obra mais famosa, Contos
gauchescos. 30
28
Cf. e-mail de Mário Mattos, em 9-1-2003. Esse tema, o que mostra a
pertinência
da
sugestão,
surgiu
no
debate
sobre
tradicionalismo/modernidade na identidade do gaúcho, principalmente
na literatura, o que foi objeto da mesa-redonda ―Literatura gaúcha com
cara universal‖, mediada por Luís Borges, de que participaram Agemir
Bavaresco, Manoel Soares Magalhães e Charles Kiefer. A atividade
aconteceu durante a 30a. Feira do Livro de Pelotas, no dia 12-11-2002,
no auditório do Colégio São José. Obs: Eurico de Souza Gomes não
compareceu por motivo de doença em família.
29
ANTUNES, Cláudia Rejane Dornelles. Simões Lopes Neto: a lógica
da criação literária. O exemplo do conto Negro Bonifácio. 2 v. Porto
Alegre: PUCRS. Dissertação de mestrado, 2001.
30
Cf. RIBEIRO, Roberto. Contos gauchescos em primeira mão. In
Diário Popular, Pelotas, 4 –3- 2001.
34
Em maio de 2000, encontrei também no Diário
Popular, de 2-11-1912, a primeira manifestação crítica sobre
os Contos gauchescos, de Januário Coelho da Costa
(1886-1949), sendo que até então tal prioridade era
concedida a Antônio de Mariz (1855-1929) (pseudônimo de
José Paulo Ribeiro), cujo trabalho crítico sobre Simões
Lopes Neto apareceu no Correio do Povo, de Porto Alegre,
em 7-11-1913, e mais tarde, em 17-11-1913, no periódico
pelotense Opinião Pública. 31
Nos ecos das novas hermenêuticas e descobertas se
desenvolviam
os
―transbordamentos‖
da
literatura
simoniana para outras linguagens, sendo uma das mais
peculiares e atraentes as Histórias em Quadrinhos (HQ). Em
1976, na revista Parelelo 32 , quadrinizado por Santiago,
aparece o conto O jogo do osso e agora, durante a realização
do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, tivemos a
exposição da Salamanca do Jarau em HQ, trabalho de autoria
do desenhista Saulo Morales.
31
Para maiores detalhes vide BORGES, Luís. Primeiras manifestações
críticas sobre Contos gauchescos: Coelho da Costa e Antônio de Mariz.
(Ensaio inédito, 2001) Vide também breve comentário em
BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto
em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2001, pp. 87-89.
32
Cf. Revista Paralelo, nº 2, out. 1976, pp. 14 -18.
35
Talvez seja na música que possamos constatar os
primeiros ―transbordamentos‖. Luís Cosme (1908-1965)
compôs, em 1936, uma trilha baseada na Salamanca do
Jarau.33 Em 1945 ela foi usada pela primeira vez num balé,
montado pela coreógrafa Tony Petzhold (1914-2000). Em
1985, o espetáculo do Balé Phoenix, dirigido pela mesma
coreógrafa, foi remontado. Será somente 17 anos depois, nos
dias 20 e 21 de dezembro de 2002, que o espetáculo de dança
retornará34, dessa vez com o acompanhamento da OSPA e
direção artística e coreografia de Eva Shul, com regência e
direção musical de Ion Bressan. Outros grandes intérpretes e
compositores da música gaúcha e brasileira também usaram
a literatura simoniana como fonte de inspiração 35.
33
COSME, Luís. A Salamanca do Jarau: bailado sobre a lenda
missioneira. Porto Alegre: Movimento, 1976. Vide também GUEDES,
Paulo. Salamanca do Jarau [comentário sobre a música de Luís Cosme].
In Província de S. Pedro. Porto alegre: Globo, n. 3, dez. 1945, pp. 92-93.
34
A montagem foi o resultado de um concurso promovido pela SEDAC,
em 2001.
35
Sem fazer um levantamento exaustivo foi-nos possível listar as
seguintes composições musicais que buscaram em Simões Lopes Neto
sua fonte: Meu rosilho Piolho (Ramiro Amoril/Joca Martins, CD: Vida
Buena, 2000); No manantial (Vítor Ramil, CD: Ramilonga, 2000);
Correndo eguada (Alex Silveira, CD: De quem anda por aí, 2000);
Negrinho do pastoreio (Barbosa Lessa, CD: 50 anos de música, 2001);
Negro Bonifácio (Antônio Augusto Ferreira/Mauro Ferreira/Luís Bastos,
CD: Tertúlia Nativista, do festival realizado em Santa Maria, RS, 1985);
Cruzilhada (Tiago Cesarino, CD: 18º Reponte, festival realizado em São
Lourenço do Sul, RS, 2002); Olhando o cerro do Jarau (Rodrigo
Bauer/Mauro Moraes, CD: Autores gaúchos, 2002); Quisera ter sido
36
É no teatro, porém, que Simões Lopes Neto tem
recebido grandes abordagens, pois, ao lado dos aspectos
cênicos e plásticos (cenários, figurinos, etc), muitas vezes,
temos uma incursão concomitante pelo musical.
Em 1989, a diretora Inês Marocco, do grupo de
teatro da UFSM, produziu o espetáculo Manantiais, para
divulgação no exterior, mais especificamente no Marrocos.36
Esse espetáculo tinha enquanto proposta, eis que visava
atingir um público estrangeiro alheio ao universo cultural
pampino37, tentar universalizar o mais possível a linguagem
simoniana.
38
Diferentemente dessa circunstância, mas
tomando Manantiais como uma referência, o diretor e
dramaturgo Valter Sobreiro Júnior pretendia montar uma
peça também a partir dos textos simonianos.
Lucidamente sabia que era já território bastante
visitado, principalmente em se tratando das Lendas do Sul.
(Jaime Caetano Braum/Leonel Gomes, CD: No compasso de meu mundo
[de Jari Terres], 2001); Sagração a M‟boitatá (Ribeiro Rudson/Airton
Pimentel, CD: 30ª Califórnia da Canção Nativa, festival realizado em
Uruguaiana, RS, 2001) e O jogo do osso, composição inédita de Antonio
Guadalupe Júnior, de quem colhemos todas essas informações.
36
SOBREIRO JR., Valter. Contos gauchescos: uma experiência cênica.
In CRUZ, Cláudio. Simões Lopes Neto. Cadernos Porto & Vírgula, n.
17. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999, p. 84.
37
Expressão de Januário Coelho da Costa, utilizada na primeira
manifestação crítica sobre Contos gauchescos, publicada no Diário
Popular, Pelotas, 2-11-1912.
37
Nessa direção, buscou um novo desafio: a experiência cênica
dos
Contos
gauchescos.
Seu
público-alvo
eram,
principalmente, os estudantes das escolas públicas e
particulares de Pelotas e região. 39
Numa enquete informal o seu grupo chegou a
preocupante constatação: ―Ao contrário do que se
imaginava, a leitura das obras de João Simões Lopes Neto
cingia-se a um grupo restrito e, principalmente, ao
obrigatório das aulas de literatura e dos programas de
vestibular.‖40
Pronto. Estava instituído o norte do trabalho: o
estímulo à leitura de Simões Lopes Neto.41
As reuniões preparatórias tiveram a parceria do
Teatro Permanente da UCPEL e o Teatro Escola de Pelotas,
nas quais foram estudados os Contos, tanto em seus aspectos
socioculturais quanto lingüísticos. Ao final de quatro meses
de estudos e ensaios, com música de Leonardo Oxley
Rodrigues, estava pronto para nascer o espetáculo Teias de
amor e morte.
38
SOBREIRO JR., Valter, ob. cit., p. 85.
Idem, ibidem.
Idem.
41
Idem.
39
40
38
A peça estreou em Ijuí, em setembro de 1998, como
uma
das
atividades
artísticas
que
compunham
programação da Feira do Livro do município.
a
No ano
seguinte, até outubro, sucederam-se encenações em Pelotas e
Canguçu.42
Segundo Michele Ferreira43, o ator paulista José de
Abreu, hoje conhecido artista da Rede Globo, vindo da
Grécia em companhia de sua esposa, Nara Keisermann,
pelotense de nascimento, passa a residir em Pelotas desde
1973. No ano seguinte, ele participa de um movimento que
visava contrapor-se à venda do Teatro 7 de Abril e sua
possível demolição. A mobilizacão, da qual participou
ativamente José de Abreu, culminou com a desapropriação
do prédio por parte da Prefeitura Municipal e seu
tombamento pelo IPHAM.
Em 1975, estréia no Teatro 7 de Abril, a peça A
Salamanca do Jarau, com adaptação e direção de Luiz Artur
Nunes e trilha sonora de Carlinhos Hartleb, tendo como ator
principal e produtor José de Abreu. A peça percorreu 90
cidades em todo o RS, fazendo ainda uma temporada de
42
Informações prestadas pelo diretor e teatrólogo Valter Sobreiro Júnior
em conversa telefônica informal.
39
duas semanas em São Paulo, primeiro no Teatro Municipal,
por intermédio de Sábato Magaldi, e depois no MASP. O
espetáculo foi aclamado pela crítica e pelo público.
O
sucesso,
conforme
Roberto
Ribeiro
44
,
proporcionado pela Salamanca do Jarau, em ―montagem
moderníssima e experimental‖, fez com que José de Abreu
recebesse um convite, em 1980, quando abandonou Pelotas,
para participar do filme A intrusa, baseado na obra de Jorge
Luís Borges, recebendo o kikito de melhor ator no Festival
de Cinema de Gramado.
Recentemente dois esquetes, ancorados em textos
lopesnetinos, foram montados. Um deles em 28-11-2002,
numa apresentação única no Auditório do CEFET-RS,
exibido pela Cia. Cem Caras, grupo amador dirigido por
Flávio Dornelles, que apresentou O jogo do osso. O outro
aconteceu na abertura do Simpósio Simoniano - Lendas do
Sul, quando o grupo Tribo da Lua, cujo diretor é Aceves
Moreno, encantou o público com magistral encenação.
Apenas de 1999 em diante é que surgiram produções
baseadas na obra do maior regionalista brasileiro, no campo
43
FERREIRA, Michele. José de Abreu, cidadão pelotense. In Diário
Popular, Pelotas, 6-11-2002. Obs: José de Abreu é sócio honorário do
Instituto João Simões Lopes Neto.
40
da ―sétima arte‖.45 O filme Cobra de fogo, baseado na lenda
do Boitatá, tem o roteiro e direção de Antônio Carlos Textor,
fotografia de Antônio Oliveira e trilha sonora de Heitor
Barbosa. No elenco estão o cantor nativista Telmo de Lima
Freitas, o tradicionalista e escritor Antônio Fagundes e a
atriz Maria Fakembach 46.
Produções para TV e vídeo são também atividades
recentes. Em 29-2-2000, na sala multiuso do SESC-Pelotas,
houve mostra pública do vídeo O mate do João Cardoso 47.
O vídeo, em verdade, é a gravação da peça teatral adaptada
do conto simoniano por Chico Meirelles, com música de
Sueli Costa e Lisiara Silva. A produção do vídeo foi do
Grupo de Teatro Regionalista, contando com o apoio do
SESC e da Casa de Brinquedos/Cooperativa de teatro. O
Grupo de Teatro Regionalista é formado por vários
integrantes de CTGs de Pelotas e surgiu em 1999, a partir de
um curso de teatro regionalista, que trabalhou somente com
44
RIBEIRO, Roberto. José de Abreu recebe título hoje. In Diário
Popular, Pelotas, 5-11-2002.
45
Cf. Obra de Simões Lopes é tema de filme. In Diário Popular,
Pelotas,9-7-1999.
46
Cf. Filme retrata conto de Simões Lopes Neto. In Diário da Manhã,
Pelotas, 25-11-2000.
47
Cf. PARANHOS, Maristela. Obra de Simões Lopes Neto é difundida
cada vez mais. In Diário Popular, Pelotas, 29-2-2000.
41
textos de Simões Lopes Neto. 48 Outro vídeo existente é
Melancia-côco verde, levado ao ar pelo Canal 7, TVE, em
13-12-2002 .49
Produzido especialmente para a televisão foi o
clássico Negrinho do pastoreio, que teve como protagonistas
os atores João Diemer (estancieiro), William da Silva
(Negrinho) e Simone Castiel (Virgem Maria), sendo a
narração de Neto Fagundes. O episódio foi ao ar na RBS-TV
em 17-11-2001, na série ―Histórias extraordinárias‖, sendo
reprisado na TVCOM, às 21 h , e no dia seguinte mais duas
vezes, às 14h10min e às 18h10min. 50
Diante do exposto, uma digressão um tanto longa
para uma simples introdução, concluímos que o Simpósio
Simoniano - Lendas do Sul se enraíza num rico e complexo
contexto interpretativo da literatura simoniana - de sua
afirmação e de seus ―transbordamentos‖ - mostrando seus
percalços, suas lacunas, mas principalmente suas conquistas
de resignificação do olhar simoniano e, num sentido mais
amplo, da identidade cultural gaúcha e das identidades
locais, em geral, em face de um mundo globalizado.
48
Cf. PARANHOS, Maristela. Idem, Diário Popular, Pelotas,
29-2-2000.
49
Informação via e-mail do poeta e compositor nativista Antônio
Guadalupe Júnior.
42
50
Cf. Lendas recontadas. In Zero Hora, Porto Alegre, 17-11-2001.
43
44
1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA
Luís Augusto Fischer 51
Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista;
mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades
alternativas
pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícita no
ser humano.
Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional
E. P. Thompson
Nada como um bom historiador para ajudar a pensar;
nada como uma frase de Thompson para servir de guia a uma
aproximação em direção às magníficas Lendas do sul,
obra-chave de Simões Lopes Neto e da cultura do sul do
Brasil. Pensar sobre elas, freqüentá-las, não significa uma
apologia do passado, ou uma defesa da excelência do
período nelas retratado, e uma conseqüente reprovação em
bloco do presente; é certo que as dificuldades de nossos dias
sempre - das mais amplas às mais restritas, das guerras e da
fome à injustiça miúda e diária - parecem um convite a
dourar o passado. Mas não é o caso aqui, nem foi o caso do
autor. O que anima esta edição está apontado nas linhas da
epígrafe: conhecer um mundo que não existe mais sempre
51
Professor da UFRGS.
45
pode ser uma forma de pensar sobe as potencialidades da
vida humana, que não se esgota na regra do mercado, nem na
regra do presente, nem na da razão.
Lendas do sul, livro de Simões Lopes Neto, foi
publicado em 1913, sendo o terceiro e último de seus livros
que o autor viu impressos, sucedendo ao Cancioneiro
guasca, de 1910, e aos Contos gauchescos, de 191252. A
partir de 1926, as Lendas e os Contos passaram a ser
publicados conjuntamente. E, ainda hoje, o leitor brasileiro
encontra dificuldades de leitura, porque a genial criação de
Simões Lopes Neto foi escrita em dialeto regional fenecido.
Nessas poucas frases já se insinua uma equação imensa. Para
não ir muito longe, o que significa exatamente ―escrever em
dialeto regional‖? O que significa o adjetivo, no quadro
brasileiro da época do autor e na nossa própria época?
Estamos entrando em terreno pantanoso; tentemos não
perder o senso de direção.
***
52
Publicamos, pela editora Artes e Ofícios, uma edição anotada dos
Contos gauchescos (em 1998) e uma das Lendas do sul (2002), além de
uma edição também anotada de Antônio Chimango, clássico de Amaro
Juvenal publicado pela primeira vez em 1915.
46
País imenso e ainda hoje não incorporado totalmente
- nem à lógica do mercado, nem ao âmbito de ação do Estado
nacional -, é esperável que o Brasil se depare com o tema do
regionalismo. Nem que seja pelo mero fato de que há regiões
remotas no espaço, regiões, que ao longo do tempo,
desenvolveram um jeito mais ou menos próprio de lidar com
todas as coisas, da economia à cultura, da moeda à língua. O
caso do Rio Grande do Sul, se visto dessa panorâmica e
inocente altura, pode ser explicado por aí: sendo a província
mais meridional do país, distante do Centro de turno (a
Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, pela ordem
de entrada em cena) e - importantíssimo - quase não
acessível por mar durante os quatro primeiros séculos da
vida brasileira (a maldita barra do porto de Rio Grande,
único porto marítimo do estado, só deixou de ser um enigma
e um risco totais no começo do século 20), desde sempre
precisou o estado gaúcho inventar suas práticas.
Devemos acrescentar a tais elementos um outro,
quem sabe mais decisivo ainda: trata-se da situação
fronteiriça do Rio Grande do Sul. Pode parecer uma
trivialidade nos dias de hoje, mas ser da fronteira, ou melhor,
ser a fronteira, implicava ser a face real e viva que o Império
português oferecia ao Império espanhol, até o começo do
47
século 19, e depois da face do Brasil diante dos estados
platinos, Uruguai e Argentina. Quer dizer: desde que esta
parte do planeta foi alcançada pela civilização européia, o
território do Rio Grande do Sul foi o palco mais vivo (quase
foi o único de fato vivo, em todo o país) do atrito entre
interesses conflitantes, às vezes chegando à expressão das
armas.
Traduzido em miúdos, viver no Rio Grande do Sul
significou ser brasileiro e (ou ―mas‖?) precisar saber disso ao
montar a metafórica ou real guarda dos limites do país:
significou ser brasileiro sem a inocência de sê-lo. E isso
acrescido ainda da circunstância, não desprezível, de que as
condições naturais da região - padrão da terra, capacidade de
produção agropastoril, acesso ao mar - assim como as
condições históricas - a presença forte de índios de certo
padrão de vida, os jesuítas e as Missões, os padrões de vida
humana - enfim, de tudo isso ser compartilhado pelos
habitantes tanto do lado de cá como do lado de lá da
fronteira. Os habitantes do Rio Grande do Sul eram por
assim dizer iguais aos habitantes do Uruguai e da Argentina,
mas o tempo todo precisavam afirmar a pouca diferença pouca mas decisiva, porque era justamente essa diferença o
que regulava as relações por aqui. Ser partidário de Portugal
48
ou da Espanha, ser brasileiro ou ser uruguaio e argentino,
isso acabava pesando mais que toda a realidade cotidiana de
trabalho e fruição da natureza, pastoreio e pampa.
Aqui deve entrar de novo na conversa a idéia do
regionalismo. Vistas as coisas desde o centro do Brasil tomemos o século 19 como referência, o Rio de Janeiro
capital do Império e depois da República - a região sul era
parte do Brasil, sem dúvida, mas uma parte apenas. Não
poderia ser tomada como regra do centro, naturalmente: o
centro só é centro, porque ele comanda regiões periféricas.
Além disso, naquela época como agora, o Sul do Brasil não
parece alcançar nem reproduzir a idéia de representação que
o Brasil faz de si mesmo, a cada geração renovadamente,
país periférico mas com fumos de autonomia que é. O Rio
Grande do Sul não parece caber nunca nos elementos
identitários, sejam eles as palmeiras e os sabiás ou os índios
que casam com brancas, nos termos do Romantismo, sejam
eles a malemolência do samba ou a excelência da mulata e
do malandro, nos termos da Era do Samba, sejam eles, ainda,
a negritude explícita e batuqueira na beira de uma praia
tropical paradisíaca, nos termos atuais desta espécie de
Grande Bahia que ocupa o cenário mental de nossos dias.
49
Nada disso. Aqui temos a linha reta do pampa no
lugar das palmeiras e da praias; temos o gaúcho,
originalmente um pária social e depois uma simbolização da
identidade, tão arbitrária quanto qualquer outra, em lugar do
malandro, a mulata, o trabalhador paulista, o caipira mineiro
etc.; em lugar da malemolência sincopada do samba, a
rigidez monotônica da milonga, porta de entrada de outra
rigidez que foi também uma predileção sulina, o tango; em
lugar da malandragem, a grossura e o estabanamento; em
lugar do calor tropical, o frio. Quer dizer: não apenas o Rio
Grande do Sul era e continua sendo uma periferia do centro
do país; é também uma periferia esquisita, fora do âmbito
identitário dominante no Brasil. O que se dirá, então, da
literatura produzida em torno dessas diferenças, ou melhor, a
partir da afirmação positiva das coisas identitárias sulinas,
em boa parte opostas àquelas brasileiras?
Está traçado o caminho do enquadramento da cultura
sul-rio-grandense no escaninho fácil do ―regionalismo‖, isto
é, do quadro de minoridade estética. Dez Simões Lopes
Neto, com toda a sua qualidade especificamente artística,
não fazem sequer sombra a um ou dois Carlinhos Brown,
para fazer uma aproximação tão vigorosa quanto, talvez,
perigosa, no cenário mental dominante no país de nossos
50
dias. (Isso para nem falar de outra variável, aquela que
filiaria Simões Lopes Neto, de pleno direito, segundo meu
ponto de vista, à tradição da gauchesca platina, filiação que
ainda hoje parece arrepiar os nacionalistas rasteiros que
gostam de pensar em nosso autor como alguém que se
definiu, supostamente, contra os platinos. Não é lugar para
esse debate, que no entanto me parece mais e mais pronto
para acontecer, se não pelas evidências literárias, pelas
contingências históricas, que têm desvelado a fragilidade das
fronteiras nacionais na consideração de mérito do fenômeno
cultural, como Ángel Rama há duas décadas apontou.
Restaria, no entanto, a necessidade de apontar, ainda aqui,
que o esforço construtivo da identidade gauchesca foi, em e
para Simões Lopes Neto, apenas um tópico regional no
contexto da condição brasileira, ao passo que, em e para os
Ascasubi e os Hernández, o maior e mais prestigioso tópico
identitário nacional.)
***
Quando Simões Lopes Neto está publicando sua
obra, década de 1910, a Literatura Brasileira é, em primeiro
lugar, o que o Rio de Janeiro define que ela seja. Na prática,
fazer literatura, para quem mora na então capital ou para
51
quem quer ser lido lá, ou quer no mínimo ser parecido ao que
considera correto, fazer literatura é ser Olavo Bilac - fazer
sonetos elegantes, de vocabulário cuidado, tendendo ao raro,
sobre assunto de preferência bem afastado das durezas da
vida real, sobre assunto localizado no alto da Torre de
Marfim que servia de símbolo e programa de ação para os
letrados nacionais, todos eles de uma francofilia quase
assutadora de tão alegre. Ou então fazer literatura era fazer
como Coelho Neto - um narrador que, mesmo em tema
regional de seu Maranhão natal, era um preciosista, um
exemplo perfeito da afetação pseudo-erudita, praticada
largamente naquela altura parnasiana.
(Que Simões Lopes Neto tenha dedicado parte da
obra reunida em Lendas do sul ao próprio Coelho Neto é um
enigma pequeno e resolvível: todos admiravam o escritor
maranhense naquela época, e ele de fato era uma referência
para os provincianos que queriam seguir seu exemplo,
erguendo a matéria de sua região à dignidade nacional. Mas
o futuro decidiu a questão, eternizando o alcance literário de
Simões Lopes e restringindo tremendamente o alcance da
obra de Coelho Neto.)
É uma época em que várias regiões estão alcançando
um padrão civilizatório inédito, com cidades de porte já
52
considerável procurando viver de acordo com as novas
exigências,
que
envolviam
uma
intensa
atividade
jornalística, mais educação formal, maior proximidade aos
padrões europeus, e correspondentemente um maior
afastamento da vida rural, que havia dado substância à
mesma região; e por isso mesmo, da parte dos letrados
aderentes à cidade e ao que ela parecia implicar - elevação,
elegância, sofisticação, até o nefelibatismo - isso parecia
acarretar uma renegação, total ou parcial, das origens e de
tudo o que elas implicavam.
Por outro lado, e dialeticamente, é um período em
que vários escritores e pensadores se proporão a tarefa
simetricamente oposta a essa adesão. Estamos falando de um
grupo de letrados que se vai interessar, sem método ou
consciência claros, pela fixação de tipos, cenas, situações,
fantasias e mesmo registros lingüísticos em vias de fenecer.
Justamente a cidade moderna, esta fantástica criação humana
ainda hoje enigmática, tratará de impor um nova lógica sobre
toda a experiência humana; e é na cidade que se criarão tanto
aqueles aderentes, que optam pela saída mais fácil, com
vento a favor e sucesso fácil junto ao público ávido de
parecer elegante (imagine Bilac palestrando para gente
semi-ilustrada, interioranos em férias na capital, candidatos
53
a chiques etc.), quanto aos críticos, que enfrentarão a maré
braba de falar daquilo que a cidade quer esquecer ou
esmagar. O leitor não precisa muita imaginação para lembrar
os casos brasileiros de tais escritores críticos, que colocarão
sua pena a serviço do futuro: um Sílvio Romero colhendo
lendas do folclore, e incentivando outros a imitá-lo; um
Euclides da Cunha relatando a guerra genocida contra
Canudos; um Simões Lopes Neto salvando do esquecimento
figuras e cenas do sul profundo, em vias de desaparecer.
No volume das Lendas do sul, temos três lendas
relatadas com detalhe, em formato digamos definitivo, e
quinze argumentos de lendas. Assim o autor deixou o
trabalho. Essa incompletude, este aspecto de work in
progress, de trabalho apresentado ao mundo ainda com os
andaimes, dá a medida simoniana das coisas: parece que lhe
interessava a divulgação, mesmo ao custo de certo aspecto
apressado. Simões Lopes Neto quer comunicar, quer falar,
quer ser ouvido.
Por isso mesmo se pode compreender a concepção do
livro, que talvez tenha germinado em seu espírito por muito
tempo. Para ficar com um elemento concreto, veja-se que ele
mesmo anota que a história registrada aqui com o nome de
―Lunar de Sepé‖ ele a ouviu no ano de 1902. Simões Lopes
54
colheu as histórias na tradição oral, propriamente dita,
conviveu com o material por longo tempo e depois publicou
o resultado, na forma de três relatos e quinze esboços, isso
sem falar de sua primeira publicação em livro, o
Cancioneiro guasca, recolha bastante aleatória, ainda que
significativa, deste material.
Não foi o primeiro a fazer isso, naturalmente. Antes
dele, aqui mesmo no Rio Grande do Sul já alguns
intelectuais haviam se preocupado com a fixação da
memória popular. Como lembra Reverbel53, a partir de 1880
Karl von Koseritz se pôs à tarefa, instado pelo
folclorista-mor do período, Sílvio Romero; depois dele, o
grande
animador
da
Sociedade
Partenon
Literário,
Apolinário Porto Alegre, que recolheu (imperfeitamente, na
avaliação de Augusto Meyer) o que chamou de ―cancioneiro
de 35‖, motivos poéticos e poemas que teriam circulado no
estado
53
Um capitão da guarda nacional, p. 222.
55
durante a guerra dos Farrapos; e assim também Graciano
Azambuja, Cezimbra Jacques, Luís de Araújo Filho e, mais
recentemente, Barbosa Lessa e Aparício Silva Rillo. No
centro do Brasil, como anota Lígia Chiappini 54 , estão
engajados em tarefa semelhante escritores de nomeada,
como os já mencionados Bilac e Coelho Neto, que publicam
conjuntamente Contos pátrios, em 1904.
O sentido edificante de todos estes empenhos é
bastante claro, chegando mesmo ao compromisso patriótico
no conhecido caso de Bilac, ou ao quase delírio de Por que
me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, obra
publicada em 1900, que marcou época e ficou na memória da
língua com a alusão ―ufanismo‖. Mas é de lembrar que não
era exatamente este o ânimo inicial daqueles que, na Europa
e depois na América, recolheram pelas primeiras vezes o
material que depois viria a ser chamado de ―folclore‖; estes,
ainda que animados de algum nacionalismo, atuaram muito
mais na perspectiva de salvar do esquecimento elementos
com que se identificavam eles própri os, ou com as
pessoas
54
de
determinada
No entretanto dos tempos, p. 104.
56
região, em geral, elementos que poderiam parecer inúteis ou
meramente instrumentais para a cultura das capas superiores,
cultura tendencialmente leiga, científica, erudita, formal,
distante, desde o século 18, da vida cultural popular,
plebéia55.
O caso de Simões Lopes parece habitar um ponto
intermediário entre os dois pólos. De um lado, sua biografia
e parte de sua obra (excluindo justamente o melhor, que são
os Contos gauchescos, as Lendas do sul e os Casos do
Romualdo) demonstram cabalmente seu interesse por assim
dizer patriótico gauchesco e brasileiro, já na militância em
prol da formação de insitutições culturais, já no caráter
edificante de algumas iniciativas (incluindo a quase
malograda obra Terra gaúcha, de intenções didáticas, só
publicada bem após sua morte), já mesmo em traços mais
sutis, como as notas didáticas que apôs às Lendas. Do outro
lado, porém, está precisamente o melhor Simões Lopes, o
escritor que superou o mero registro folclórico, em Lendas
do sul, e o mero decalque fotográfico ou histórico, em
Contos gauchescos. Está aí mesmo o acerto do autor, que
logrou ultrapassar as contingências tanto localistas quanto
55
Para o debate deste assunto, veja-se o citado E. P. Thompson em
Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad.
57
historicistas, na direção de uma literatura madura; nas
palavras de Augusto Meyer, Simões Lopes acertou foi com
―o cuidado em reconstituir o timbre familiar das vozes‖.
***
As Lendas do sul, muito especialmente as três lendas
desenvolvidas - ―A M‘boitatá‖, ―A salamanca do Jarau‖ e ―O
negrinho do pastoreio‖ -, se apresentam com todos os
apetrechos convenientes a seu estilo. Talvez não importe
muito, para o leitor de hoje, o debate sobre o estatuto literário
específico dos textos, se de fato estamos diante de uma lenda
ou, como observa com boas razões Flávio Loureiro Chaves,
se trata melhor de um conto56. Importará mais, sem dúvida,
ter em mente certas variáveis históricas que enquadram as
histórias aqui relatadas e lhes dão substância.
Para iniciar, veja-se que os enredos se situam no
tempo anterior ao mundo urbano, anterior à lógica
republicana; com boa dose de certeza, pode-se mesmo dizer
que a referência histórica mais recente está na altura de 1850,
Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
56
Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura, p. 79: ―A salamanca do
Jarau, assim como foi redigida por Simões Lopes Neto, não é uma lenda
58
na história da Salamanca, de que participa Blau Nunes, como
personagem. Quem percorreu as páginas dos Contos
gauchescos lembrará que Blau é dado como um homem de
seus noventa anos na apresentação do livro, editado em
1912, e que esta referência permite localizá-lo como nascido
na altura de 1820, pouco mais ou menos. E lembrará que as
histórias se passam entre esta data e o fim da Guerra do
Paraguai, aproximadamente.
Nas Lendas, temos uma narrativa que se passa em
tempo rigorosamente mítico, pré-histórico no rigor do termo,
―A Mboitatá‖, referente a uma vaga era em que houve um
dilúvio; outra, ―A salamanca do Jarau‖, que transcorre não
entre, mas em dois momentos bastante distintos, o primeiro
na altura de 1650, quando o sacristão é encantado pela
princesa moura, e 1850, quando Blau encontra o fantasma
dele e aceita o desafio de entrar na furna encantada; e ―O
negrinho do pastoreio‖, por fim, enredo que forçosamente se
situa nos limites da escravidão e da estância mais ou menos
primitiva, não conectada, claramente, ao mundo do mercado,
o que nos permite pensá-la, acompanhando a tradição crítica
a este respeito, na altura da passagem do século 18 para o 19,
e nem tampouco apenas uma nova versão da lenda. É um conto: a
aventura de Blau‖.
59
aproximativamente. (Dos esboços de lendas referentes ao
mundo missioneiro, já por isso sabemos que se passam até a
metade do século 18, quando se operou aquela chacina
contra os índios e os jesuítas, a mando das coroas ibéricas,
para cumprimento do Tratado de Madri. Uma delas, ―São
Sepé‖, se alimenta de fatores diretamente históricos, como o
próprio Sepé Tiaraju, mas se conduz ao modo das lendas
fundadoras, neste caso em relação ao Cruzeiro do Sul.)
Pelo modo como Simões Lopes Neto aborda os
temas humanos e sociais nas lendas, percebe-se sua nítida
simpatia pela civilização missioneira, que se explicita mais
claramente ainda em seu livro Terra gaúcha, editado
postumamente (1955), mas escrito pelo menos desde 1904.57
Neste, lemos comentários do autor como, por exemplo, a
propósito dos horrores da escravidão dos negros no Brasil:
―Foram os jesuítas os únicos que se opuseram e protestaram
sempre contra semelhantes iniqüidades‖. Entusiasma-se com
o fato de não ter havido propriedade privada dos meios de
produção e com a simplicidade do modo de vida dos índios.
Mais significativo para a perspectiva de nossos dias, Simões
57
Lígia Chiappini, no livro já citado, aventa a interessante tese de que
entre Terra gaúcha e Lendas do sul haveria uma espécie de
complementaridade e correspondência, sendo este o equivalente literário
daquele.
60
Lopes Neto trata o patrimônio histórico das Missões como
pertencente ao universo formador da história do Rio Grande
do Sul, pertencimento que durante muito tempo, e até hoje
mesmo, é esquecido ou renegado, recaindo a preferência de
boa parte dos historiadores na data de 1737 (fundação do
forte do Rio Grande por portugueses, em missão oficial).
Em conferência proferida na Biblioteca Pública
Pelotense, em 1905, Simões Lopes Neto especifica tal
compreensão, ao dizer o futuro que imagina para seu
almejado livro que viria a ser o Terra gaúcha, nesta altura
apenas ideado: ―Um livro que vivesse no rancho das
margens do Uruguai e no palácio das plagas do Oceano; e
que das suas páginas simples e sinceras fulgisse nítida e
vivaz, amorosa, exemplificadora e saudosa, a plaga dos
pampas, o berço dos farrapos, a Terra Gaúcha‖.58 Não havia
rupturas nem de classe, entre o rancho e o palácio, nem na
geografia, desde o oeste missioneiro até o leste pelotense:
tudo era Rio Grande, tudo era terra gaúcha.
58
Os dados estão no livro de Reverbel, citado.
61
O tratado de Madri, assinado em 1750, é uma espécie
de chave da história do Rio Grande e do sul da América.
Com ele, Portugal desistiu formalmente de manter uma
posição na margem do rio da Prata, posição que tentara
construir em 1680, com a Colônia de Sacramento, e portanto
absteve-se de disputar com a Espanha a hegemonia daquela
área. Mais ainda, Portugal assumia, em total acordo com a
Espanha, o encargo de dizimar as Missões jesuíticas, que
cresciam, tinham consistência econômica e representavam,
para as coroas, uma ameaça geopolítica - suspeitava-se que a
Companhia de Jesus teria intenções de fundar por ali um
Estado autônomo. Para o cumprimento do Tratado,
organiza-se um exército luso-espanhol que vai destruir os
Sete Povos, entre 1754 e 56. Era o fim de uma alternativa de
civilização para os índios do sul da América, que, sem ela,
foram tragados pela civilização envolvente, para nunca mais.
Como sempre acontece, os mortos da vida estavam
disponíveis, então, para a história e a literatura. Do massacre
das
Missões,
brotaram
muitas
interpretações
historiográficas, e também nasceram duas vertentes de
literatura: uma erudita, de pouca vigência, e outra popular,
de tardia mas longa frutificação. Da primeira é exemplo
62
maior O Uraguai, poema narrativo de Basílio da Gama,
editado em 1769, praticamente no calor da hora. Basílio,
segundo declara em notas a seu próprio texto, resolveu
escrever para que os europeus soubessem o que havia se
passado aqui - sua intenção era antijesuítica, como se sabe,
em função de haver sido beneficiado pelo Marquês do
Pombal, o verdugo dos jesuítas em Portugal. O Uraguai não
foi muito lido, apesar dos elogios que recebeu de
comentadores como Machado de Assis, que teria preferido
que o indianismo literário brasileiro tivesse tomado em
Basílio a referência para o assunto.
A outra vertente é a que vai desaguar em Simões
Lopes Neto, e daí em toda a atual experiência do que, no Rio
Grande do Sul, se chama de Tradicionalismo. Pode-se
retraçar a história pelo menos a partir do depoimento do
autor das Lendas: diz ele que colheu aqueles versos
recolhidos neste volume sob o nome de ―São Sepé‖ de uma
velha, em 1902, mulher esta que, suponhamos, terá ouvido
de algum contemporâneo do massacre. Do mesmo
manancial nasceu, por via indireta, todo um conjunto de
lendas, incluindo a da Salamanca da Jarau. Dela em diante,
pode-se falar com mais certeza: é certo que Érico Verissimo
tomou-a como mote para a construção de uma grande
63
personagem de seu O tempo e o vento, aquela Luzia de gênio
tão parecido com o da princesa moura.
Mais difusamente, deve-se reconhecer que a obra de
Simões Lopes Neto, quando de fato entra em circulação refiro-me à edição feita pela Globo, apenas a terceira,
reunindo os Contos gauchescos e as Lendas do sul, em 1949
-, catalisa toda uma retomada do tema regional no Rio
Grande do Sul. A conta seguinte parece que não foi feita
suficientemente: foi quase ao mesmo tempo que Simões
Lopes Neto ganhou de fato leitores, que o cosmopolita
escritor Érico Verissimo, até então ocupado quase
exclusivamente no tema urbano, começa a publicar sua obra
prima, O tempo e o vento, cujo primeiro volume sai à luz no
mesmo 1949; dois anos antes, alguns jovens interioranos,
sentindo-se oprimidos numa Porto Alegre que lhes parecia
descaracterizada,
entregue
à
cultura
imperialista
norte-americana, resolvem unir-se para fundar o que vai
chamar-se Centro de Tradições Gaúchas, impressionante
movimento cultural de aspecto popular (e popularesco), de
larga vigência nos dias de hoje; pouco depois, vai ser lançada
a primeira edição bem feita do Antônio Chimango, ―poemeto
campestre‖ que satirizava os desmandos de Borges de
Medeiros e que, até então, era tido apenas como panfleto, e
64
que passa a ser visto como texto decivisivo na gauchesca
sul-rio-grandense; e toda uma nova geração de escritores
vai-se apresentar ao mundo a partir de então, muitos deles
versando diretamente o tema local numa perspectiva ingênua
ou mesmo mistificante, vistas as coisas do ângulo da cultura
letrada; isso para não falar dos escritores que já vinham
escrevendo sobre tema gaúcho, como Cyro Martins, Darcy
Azambuja e outros.
A relação foi longa e significativa; Simões Lopes
Neto, com sua obra, está no miolo desta retomada. E assim
acontece, é bom lembrar, por causa do nível elevado de
tratamento dispensado por ele ao material com que lidou dizendo de modo mais direto, porque ele fez literatura, não
ideologia. Coincidindo com intuições dos melhores
escritores e críticos que se debruçaram sobre o tema da
relação entre vida e mentalidade popular, de um lado, e alta
literatura, de outro, Simões Lopes percebeu que era preciso
reinventar os modos de escrever; daí ter plasmado, na figura
de Blau Nunes, aquilo que três décadas depois uma
inteligência sutil como a de Walter Benjamin diagnosticará
de modo singular em seu conhecido ensaio ―O narrador‖ uma espécie de consagração, pela via literária, de uma
prática ancestral e comunitária, o relato de histórias por um
65
indivíduo experiente, cuja voz merece ser ouvida porque
conhece
a
história
horizontal
e
verticalmente,
na
permanência do tempo e no deslocamento no espaço. Blau
Nunes, a voz que fala desde o tempo da história local e a
geografia do sul da América.
Das três lendas aqui apresentadas em forma
desenvolvida já se retraçou a origem, com bastante
precisão59. Nesse âmbito, de vez em quando ressurge o tema
da
originalidade
de
Simões
Lopes
Neto,
questão
perfeitamente secundária, e o tema da condição autóctone ou
não dos enredos, questão igualmente secundária, mas que
merece um comentário. Durante muito tempo, pareceu a
bons intelectuais do Rio Grande do Sul que teria maior valor
aquilo que fosse puramente local, com nascimento e
desenvolvimento
não
―conspurcados‖
por
influência
estrangeira. Nessa visão, a única das três lendas
verdadeiramente gaúcha seria a do Negrinho, uma vez que
das outras se encontraram, em outras partes, versões mais ou
menos parecidas.
Trata-se de uma perspectiva que considera as coisas
estaticamente, sem a necessária dialética - especialmente
59
Não é tema de nosso interesse o tópico das origens; na fortuna crítica
do autor encontra-se farto material a respeito.
66
aquela que a crítica à condição colonial nos devia ter
ensinado, aquela que lida com o tema da importação e da
aclimatação das formas, espécie de fatalidade para países
periféricos. Não vamos descer ao detalhe do argumento, que
se encontra desenvolvido na obra de Antonio Candido e,
mais ainda, na de Roberto Schwarz; mas vamos consignar a
idéia-chave: o principal interesse do analista deveria estar na
argüição sobre o modo como o autor consegue mediar entre
a forma (que sempre é externa, em região colonizada) e a
matéria local. A via mais adequada para alcançar bons
resultados, no caso da narrativa, é pela boca do narrador60.
Por tal critério, Simões Lopes foi de fato um pequeno gênio,
porque conseguiu mediar entre tais limites de modo
excelente, e isso para além do debate em geral mesquinho
sobre a ―nacionalidade‖ da literatura e da arte.
Da mesma forma, deve-se afastar do horizonte um
debate
igualmente
nacionalista,
mas
neste
caso
anti-castelhano. Por muito tempo, e por razões óbvias
ditadas pela condição de fronteira com os ―outros‖ mais
evidentes, o Rio Grande do Sul assistiu a uma insana procura
60
Para quem se interessar na teoria do assunto, sugiro o artigo
―Conjecturas sobre a literatura mundial‖, de Franco Moretti (publicado
no Brasil em Contracorrente - o melhor da New Left Review em 2000;
organização de Emir Sader, Rio de Janeiro: Record, 2001.
67
por distinção entre o gauchismo brasileiro e o platino, o que
significava negar as mais duras evidências, que nos
aproximam muito mais do que nos afastam. O próprio
Simões Lopes entrou no debate, ao dizer, no último
parágrafo do texto, que deixa de desenvolver determinadas
lendas,
porque
elas
―são
mais
do
acervo
rio-platense--andino‖. Mas mesmo tal delimitação não o
impediu, ainda bem, de freqüentar material que seria menos
brasileiro que argentino ou uruguaio. O que importa, em
todos os casos, é a boa literatura.
Isso sem falar na própria lenda da Salamanca,
francamente ibérica, como se sabe. Ocorre que na mesma o
autor conseguiu arranjar elementos claramente locais, como
as Missões, cuja história ele tanto prezava, com fantasia
fundadora, como é o caso do desfecho da vida do
sacristão-fantasma, que tem sua maldição quebrada por Blau
Nunes e, por isso, encontra a princesa moura devidamente
transformada em uma formosa tapuia - desfecho que bem
pode simbolizar uma espécie de matriz do homem gaúcho.
Na história do Negrinho, também não chegamos a
pensar suficientemente, tal o eco que ela encontra ainda hoje.
Para não ir muito longe, evoco aqui apenas uma
possibilidade interpretativa, aventada pela primeira vez, que
68
eu saiba, por Susana Gastal: em pleno estado do Rio Grande
do Sul, de tradições guerreiras que consagraram os brancos
proprietários de estância como modelares, mas exploração
absurdamente cruel dos negros escravos, nas charqueadas. O
símbolo maior da bênção dos céus e único santo local (e a
julgar pelo debate sobre as origens, a única das lendas que
seria puramente gaúcha de nascimento...) vem a ser um
negro escravo, aquele que faz nascer a luz por graça da mãe
de Jesus. (Aliás, as três lendas lidam diretamente com a luz:
no interior da Mboitatá, na cabeça da lagartixa e da princesa,
nos pingos de luz que saem da vela do Negrinho.) 61
Quanto aos argumentos de outras lendas, apenas um
registro: ao contrário das histórias missioneiras, que lidam
com figuras do Bem (Mbororé, a mãe mulita, Sepé), em
todas as histórias alegadamente do centro e do norte do
Brasil as figuras são do Mal (Caapora, Curupira, Saci, Uiara,
Jurupari,
Lobisomem,
Mula-sem-cabeça).
Alguma
coincidência? Alguma fantasia de nosso grande autor acerca
de seu estado natal? Quanta coisa ainda por discutir, quantos
temas férteis Simões Lopes nos oferece - em sinal de sua
inequívoca superioridade literária.
61
Ver ―A luz no imaginário gaúcho‖, in Nós, os gaúchos, org. de Sergius
Gonzaga e Luís Augusto Fischer, Porto Alegre: Editora da UFRGS,
69
1992.
70
2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES
NETO
Eduardo Arriada 62
Não tive a sorte, ao contrário de Augusto Meyer, de
ler os Contos Gauchescos na edição de 1912 e muito menos
numa velha casa de campo. Como rapaz de cidade, ainda que
fronteiriça e interiorana, li e reli na pequena e simples edição
de 1965, Coleção Catavento da Editora Globo, que a mim do
mesmo modo que Meyer, me acompanha.
Estamos vivendo nos dias atuais uma enorme
efervescência cultural em torno da obra de João Simões
Lopes Neto. Durante muito tempo sua obra esteve
―esquecida‖ no panorama da literatura brasileira. Pode-se
afirmar que somente com a publicação da edição crítica
Contos Gauchescos e Lendas do Sul (1949) da extinta
Editora Globo, contendo o belo prefácio de Augusto Meyer,
uma introdução de Aurélio Buarque de Holanda e o posfácio
de Carlos Reverbel, João Simões se transporta para além
Província.
A edição da Globo teve o papel fundamental de
divulgar e tornar acessível à população brasileira a produção
62
. Professor da FAE/UFPEL.
71
literária simoniana para todo o Brasil. Embora somente com
os estudos críticos de Lígia Chiappini, Modernismo no Rio
Grande do Sul: materiais para o seu estudo (1972),
Regionalismo e Modernismo: o caso gaúcho (1978) e No
entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões
Lopes Neto (1988), é que o autor ganharia, definitivamente,
a consagração nacional.
Isso não implica dizer que antes João Simões Lopes
Neto não fosse conhecido da intelectualidade brasileira;
tanto Sílvio Júlio em Pampas (1919) como em Estudos
Gauchescos de literatura e folclore (1953) e Literatura,
folclore e linguísta da área gauchesca no Brasil (1962); L.
Freire, ―Letras Rio-Grandenses‖ in: A Máscara (1922);
Victor Russomano, ―Impressões Literárias‖ in: Ilustração
Pelotense (1920); Gomes de Freitas, ―Alocução proferida
por ocasião da romaria ao túmulo de João Simões Lopes
Neto‖, in: O Tiro Brasileiro (1916); Amadeu Amaral, ―O
Dialeto Caipira‖ (1920); Mário de Andrade, ―Folclores‖
(1949); Cecília Meireles, ―Folclore Guasca e Açoriano‖;
Olavo Bilac, Últimas Conferências e Discursos (1927),
podendo ainda ser acrescentado entre outros, Lúcia Miguel
Pereira,
Athos
Damasceno,
José
Salgado
Martins,
Guilhermino Cesar, Manoel Bandeira, Augusto Meyer,
72
Carlos Reverbel, Propício da Silveira Martins já tinham
analisado e tecido diversos comentários sobre a sua obra.
Assim um reconhecimento da intelectualidade
brasileira já se fazia presente, tanto o é que o conhecido
crítico carioca Agrippino Grieco em sua obra Evolução da
Prosa Brasileira (1933) tece o seguinte comentário:
―Simões Lopes Neto fixou, em páginas indestrutíveis, o que
havia de mobil e flutuante nas tradições do seu rincão. Toda
a alma guasca está nesses contos, que valem por uma
epopéia cíclica, antes contada que escrita, com um dom
narrativo da mais tocante familiaridade‖.
Devemos salientar o que hoje já é sobejamente
conhecido, que tanto a matéria-prima de seus contos ou
lendas nada tinham de original. É o caso da ―Salamanca do
Jarau‖, apesar de o autor fazer referência ao texto de Carlos
Teschauer, a verdadeira fonte é Reseña historico-descriptiva
de antigas y modernas supersticiones del Rio de la Plata
(1896) de Daniel Granada.
Em relação aos contos, além dos estudos de Aurélio
Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Carlos Reverbel,
Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini, Sica Diniz, Mário
Mattos, Luís Borges, os quais trazem novas abordagens, seja
estudando as origens e as fontes de seus contos, bem como
73
levantando dados e fontes sobre o autor, tenho para mim que
uma grande influência na obra de João Simões deve-se aos
textos produzidos por seu contemporâneo Alberto Coelho da
Cunha(1853-1939). Nos anos de 1872/75 publica o autor,
nas páginas da Revista Partenon Literário, uma obra
intitulada ―Contos Rio-Grandenses‖ com os seguintes
contos: ―A mãe de ouro‖, ―Fantasias e Caprichos‖, ―Mimi e
meu anjo‖, ―Vozes à toa, vozes de amor e a morte de
Serafina‖, ―Vozes a Esmo‖, ―Pai Felipe: um episódio de
charqueada‖, ―Um farrapo não se rende‖, ―A filha do
capataz‖.
Quase todos têm como temática o universo regional
do Rio Grande do Sul. A valorizar os contos, temos o
conhecimento e o gosto do autor pelas coisas do campo;
viveu ele vários anos de sua vida na zona rural.
Na introdução aos
―Contos Rio-Grandenses‖,
Alberto Coelho da Cunha arrola notícia sobre a lenda do
Negrinho do Pastoreio: ― Entranhai-vos pelas campinas do
Rio Grande; ide aos nossos pampas, e tomai pouso entre os
generosos gaúchos. Convivei com eles algum tempo, o
preciso para estudar-lhes a feição do caráter, costumes e
índole: aprendei as suas frases pitorescas, as suas tradições,
crenças e religiões.
74
Vel-los-ei, por exemplo, ao mesmo tempo, que fazem
uma promessa ao milagroso Santo Antônio, irem mais
confiadamente acender uma vela de sebo no fundo da
canhada ao negrinho do pastoreio, para que lhes traga a égua
madrinha que se extraviou da manada‖.
Os 16 contos que compõem a obra Contos
Gauchescos edição de 1912 constituem uma narrativa sobre
a decadência do tipo social - gaúcho -. São ―casos‖ narrados
por um gaúcho, Blau Nunes.
O assunto tratado nesses contos é o mundo rural,
percebe-se uma grande riqueza na descrição dos cenários.
Em vários momentos de sua obra, a descrição da natureza é
sabiamente aproveitada para contextualizar o ambiente,
assim como para traçar uma relação íntima entre natureza
humana e mundo natural.
Vejamos o primeiro aspecto: ― A estrada estendia-se
dezerta; a esquerda os campos desdobravam-se a perder de
vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol
morrente, manchados de pontas de gado que iam se
arrolhando nos paradouros da noite; á direita, o sol, muito
75
baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de
beiradas luminozas‖ (Trezentas onças, 1912, p.17) 63.
Pode-se ver esse tom narrativo em outras passagens:
― Lá adeante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum
rincão, numa trepada de coxilha, numa decida de canhada,
rufando duma restinga, os lotes de eguariços íam se
encontrando,
entreverando-se;
os
campeiros
vinham
chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ía-se tocando a
bagualada de cada querencia; de todos os lados cruzava-se a
contradansa, que se encaminhava sobre uma linha já
combinada: e aos poucos ía crecendo o rodeio movediço,
que engrossava, redomoinhava, espirrava, tornava a
embolar-se e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo
disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma
trovoada‖.(Correr eguada, 1912, p. 88/89).
Do mesmo modo, no dizer de Lúcia Miguel Pereira,
as suas imagens nada têm de retórica, nunca se destacam do
texto como recursos literários; antes surgem naturalmente
exigidas pela necessidade de suscitar uma impressão direta,
sem auxílio de longas explicações ou de raciocínio. Já na
apresentação de Blau Nunes, esse tipo de narração se
63
. Os organizadores respeitaram a grafia com que o autor apresentou o
trabalho, conforme a publicação dos textos de Simões Lopes Neto da
76
encontra-se presente: ― Fazia-me elle a impressão de um
perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio,
e abrigando dentro do tronco cernozo enxames de abelhas,
nos galhos ninhos de pombas...‖.
―Homem derrotado‖, na expressão de Wilson
Martins, ele encontrou na ―estrada das recordações‖ o
caminho compensatório e sublimizante da grande evasão
estética. Vitorioso postumamente, enquanto homem de
letras, ele construiu o universo esquizofrênico no qual se
refugiou em vida contra a mesquinhez obstinada da
realidade.
A linguagem utilizada na narrativa simoniana flui
com uma espontaneidade e originalidade somente possível a
um profundo conhecedor do universo criado – no caso, o
gaúcho -.
Para isso, não basta conhecer como viviam os
gaúchos, ou até mesmo ser gaúcho. É necessário ser isso e
algo mais, é necessário e imprescindível ser como Cervantes,
Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Javier de Viana,
homens cultos e leitores vorazes, conhecedores profundos
das debilidades humanas. Assim pôde João Simões Lopes
Neto, urbano, culto, educado, conviver com homens do
edição de 1912..
77
campo (gaúchos), identificar-se com eles, conhecer seu
mundo, seu linguajar, criando desse modo, sem falsear, sem
descaracterizar a realidade rural sulina. Põe como narrador
de sua obra, o genuíno rio-grandense Blau Nunes, alter-ego
dele mesmo.
Nas lendas(...) ―como nos contos, quem fala é um
gaúcho pobre, que só tem de seu um cavalo e as estradas‖
(Meyer, Augusto. Prosa dos Pagos, 1943).
Hoje já está João Simões Lopes Neto a merecer
traduções/versões para outras línguas, temos a pioneira
versão de 1956 em italiano ―Storie di gauchos‖ vertida por
Giuseppe Tavani.
Vejamos alguns trechos: ― Gli occhi di Tudinha
somigliavano perfettamente agli occhi di un cervo,
spaventato: neri, grandi, lucenti, timidi e allo stesso tempo
astuti... parevano occhi che stessero sempre ad ascoltare... ad
ascoltare più che a vedere...
Le guance del colore della pesca matura; i denti
bianchi e lustri come dente di cane giovane; e le labbra della
brunetta dovevano essere morbide come un campo di
trifoglio, dolci come il miele, fresche come la polpa di
guabiju...‖(Il Negro Bonifacio, p.19).
78
Em espanhol, temos a versão ―limpia, elegante y
graciosa‖ feita por Aldyr Garcia Schlee em 1991 da
―Salamanca do Jarau‖. Parte do texto: ― Y al tranquito
andaba, mirando; mirando hacia el fondo de las sanjas, por
arriba de las cuchillas, a lo largo de las cañadas. Tal vez
estuviese echado em medio de las carquejas – la carqueja es
señal de campo bueno -, así que el campero a veces alzábase
en los estribos, mano delante las vistas, y más firmaba la
mirada alrededor; pero el buey barroso, nativo de aquel
pago, no le aparecía; y Blau iba campeando, campeando...‖.
(La Salamanca del Jarau, p. 11).
No ano 2000, Margarita Barretto verteu para o
espanhol partes do conto ―O Mate do João Cardoso‖ .
Transcrevo um fragmento: ― João Cardoso era un sujeto que
vivía por aquellas bandas del Paso de María Gomes, viejo
bueno, muy estimado, pero charleta como treinta y que daba
un diente por dos dedos de conversación y muy amigo de
novedades. No pasaba viajante por la puerta, o más lejos, que
el viejo João Cardoso no llamara, risueño e insistente como
mosca; y ahí nomás ya espantaba los perros y sacando la
chala de atrás de la oreja, carraspeaba y decía:
79
- Hola amigo! Abájese, descanse un poco! Venga a tomar un
amargo. Es un momentito... Chiruzo?‖ (El Mate: su historia
y cultura. p.106).
Com certeza qualquer leitor do mundo ficaria
apaixonado por sua prosa, vejamos como não perde a
sonoridade e a beleza na língua de Racine: ― Mon
compatriote, je te présente Blau, le ―vaqueano‖. – J‘ai
traversé notre contrée en bizarre zigzag. J‘ai déjà senti
l‘ardeur des sables désolés du littoral; je me suis déjà amusé
dans les charmantes îles de la lagune Mirim, je me suis
fatigné dans l‘extension de la colline de Santana; j‘ai mouillé
mês mains dans le superbe Uruguay; j‘ai en l‘ébranlement de
la peur dans les durs rochers du Caverá; j‘ai cueilli des
reines-margnérites dans les plaines du Saicã, j‘ai oscillé sur
les grandes eaux de l‘Ibicuí.(...)
J‘ai vu la ruche et l‘étable, j‘ai vu le verger et le
troupeau, j‘ai vu la moisson et les manufactures, j‘ai vu la
montagne, les fleuves, la plaine et les villes; et des visages et
des aurores d‘oiseaux et d‘enfants, des sillons de la charrue,
des eaux et de tout, ces yeux, pauvres yeux condamnés à la
mort, à la disparition, vont garder dans la rétine jusqu‘au
dernier millième de lumière, l‘impression de la vision
sublimée et consolatrice.
80
Un type pur – ―crioulo rio-grandense‖ (si modifié
aujourd‘hui) c‘était Blau, le ―guasca‖ sain, en même temps
loyal et naïf, impulsif dans la joie et la témérité,
précautionneux, perspicace, sobre et infatigable; et doué
d‘une mémoire de rare netteté Qui brille à travers une
loquacité charmante et pleine d‘imagination, ornée par le vif
et pittoresque dialeto ―gauchesco‖.
Et du trot sur tant de chemins des logements dans les
―estâncias‖; des cheminées où il s‘est chauffé; des
―ranchos‖, où il a chanté, des villages qu‘il a traversé, des
érosions de la mort et des éclosions de la vie, entre Blau –
jeune, militaire – et Blau – vieux, ―paisano‖ – s‘étendait une
longne route semée de souvenirs – ―casos‖, il disait – que le
―vaqueano‖ racontait plusieurs fois, de temps en temps,
comme quelqu‘un qui étend au soleil, pour áerer des
vêtements gardés au fond d‘une arche.
Mon cher digne vieillard!
Je sens ton absence, Blau!
Mon compatriote, écoute-le.
Por uma grande paixão pela obra simoniana,
particularmente pelos seus contos, dei início juntamente com
a profa. Marina Miatina, russa apaixonada por literatura, a
81
uma versão nessa estranha língua de alguns fragmentos da
obra de João Simões Lopes Neto, eis alguns deles:
... ―И, шагая по разным дорогам; различным
помещичьим имениям; обогреваясь у очагов; напевая в
шалашах; проходя мимо небольших селений; он
понимал
вещи,
которые
были
сокрыты
от
поверхностного взгляда, встречаясь лицом к лицу с
людьми, разрушением смерти и созиданием жизни;
между Блау – молодым военнослужащим и Блау –
старым штатским чиновником, - пролегла длинная
дорога, усеянная воспоминаниями, - я бы сказал, событиями, которые пастух иногда пересказывал, как
достают из сундука и развешивают на солнце, чтобы
проветрить, старую одежду. (E, do trotar sobre tantíssimos
rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se
aqueceu: dos ranchos em que cantou, dos povoados que
atravessou; das cousas que ele compreendia e das que
eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-pêlo
com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida,
entre o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações –
casos, dizia - que de vez em quando, o vaqueano recontava,
82
como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao
fundo de uma arca.).
Пролегающая дорога была пустынна; слева
расстилались необозримые поля, безмятежные, зеленые,
освещенные мягким светом заходящего солнца, с
пятнами стад, замолкающих на ночных стойбищах;
справа – очень низкое, червоного золота, солнце,
входящее в массу облаков со светящимися краями.
На высохших топях ни одной ‗керу-керу‘64: одна
только куропатка, ловкая, осторожная, пробирающаяся
между кочками сухой травы; и вдалеке, между остатком
уходящего света, с одной стороны, и сгущающимися
сумерками приходящей ночи, с другой, просвечивала
белизна ‗жоао гранде‘65, безмятежно летящего, почти не
шевеля крыльями, как некая грусть прощания, в котором
люди еще не успели разжать рук.
Опускался прохладный туман; и всеобъемлющая
тишина. ( A estrada estendia-se deserta; à esquerda os
campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes,
clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de
pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da
64
65
керу-керу (quero-quero - port) – голенастая птица Бразилии
жоао гранде (joão grande – port) – птица Бразилии
83
noite à direita, o sol muito baixo, vermelho-dourado,
entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.
Nos atoleiros; secos, nem um quero-quero: uma que
outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos
maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e
a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de
um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas,
como numa despedida triste, em que a gente também não
sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande,
em tudo.).
Que mistérios e enigmas profundos levam a um autor
a escrever uma obra-prima que transcende o tempo e o
espaço.
Para mim, o autor dos Contos Gauchescos, continua
sendo uma surpresa, uma grata surpresa, quanto mais o leio,
tanto mais me apaixono. Mais e mais sua narrativa
infindável, labiríntica, envolvente, com sinuosidades,
pausas, silêncios, reticências, sons ecoam no fundo do meu
eu.
84
85
Referências Bibliográficas:
AMARAL, Amadeu. O Dialeto Caipira. São Paulo: Casa
Editora ―O Livro‖, 1920.
BARRETO, Margarita. El Mate: sua historia y cultura. 2ª
edição, Buenos Aires: Ediciones del Sol, 2000.
BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História,
resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre:
WS Editor, 2001.
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:
regionalismo e literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982.
CUNHA, Alberto Coelho da. Contos Rio-Grandenses.
Introdução. In: Revista Mensal da Sociedade Partenon
Literário. Nº 5 e 6, ano I da II Série, Porto Alegre: Typ. do
Constitucional, 1872.
GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de
Janeiro: Ariel, 1933.
ILUSTRAÇÃO PELOTENSE. João Simões(com foto).Nº
01, ano II, Pelotas, 01.01.1920
JÚLIO, Sílvio. Pampas. S/ed. Fortaleza, 1919.
CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos: literatura e
história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Pelotas:
Livraria Universal, 1912.
________________________. Contrabandista. Almanaque
do Globo. Porto Alegre, 2º ano, 1918, (169/73).
86
________________________. Storie di Gauchos. Firenze:
Fratelli Bocca-Milano, 1956.
________________________. La salamanca del Jarau.
Porto Alegre: IEL/IGEL, 1991.
MARTINS, Wilson. Escritor representativo. Jornal do
Brasil. Rio de Janeiro, 28.05.1983.
MEYER, Augusto. Prosa dos Pagos. São Paulo: Livraria
Martins. 1943.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira
(Prosa de ficção: 1870-1920). Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional.
Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981.
87
3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA
DO
GAÚCHO
CONSIDERANDO
ASPECTOS
METAFÍSICOS
Eduardo de Oliveira 66
No início do século passado (em 1913), Simões
Lopes escreveu a lenda A Salamanca do Jarau. Quando
escreve esta lenda Simões Lopes completa, segundo Aurélio
Buarque de Holanda, a trilogia das Lendas do Sul: Negrinho
do Pastoreio foi escrita em 1906, enquanto M‟boitatá foi
escrita em 1909.
A Salamanca do Jarau é composta de duas partes: o
conto escrito por Simões Lopes (composto basicamente
pelos capítulos I e VII-X) e a lenda da qual o autor se
apropriou, para compor a história como um todo (a lenda
consta basicamente dos capítulos III-VI, já o capítulo II é
uma espécie de transição entre as duas partes distintas). Há
que se observar que a lenda utilizada por Simões Lopes não é
simplesmente copiada por ele, mas é estilizada e adaptada
para mais bem atingir os objetivos pretendidos pelo autor.
66
Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa
Simoniano. ISF/UCPEL.
88
Mas, por que Simões Lopes resgata a lenda da
salamanca e a insere neste conto? Talvez Flávio Loureiro
Chaves ajude a esclarecer essa questão: ―a recuperação do
passado mítico pode elucidar o presente problemático‖
(CHAVES, 1992, p.77). Esse presente problemático se
manifesta na crise econômica em que Blau se encontra: ele é
um gaúcho pobre com poucos bens materiais (p.140, l.2s) 67.
O contexto em que ele está inserido, evidentemente, é o do
capitalismo e a crise econômica influenciará no seu modo de
agir.
Aliás, Chaves diz que ―o verdadeiro objetivo de
Simões Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é a invenção de
uma personagem e a observação da situação-limite em que
se encontra‖ (CHAVES, 1992, p.82). Neste artigo, de modo
contrário
a
Chaves,
observar-se-á,
basicamente,
o
comportamento do arquétipo gaúcho, representado por Blau,
dentro da situação-limite em que está.
67
Neste trabalho, sempre que houver citações sem referência a autor,
elas estarão se referindo à seguinte bibliografia: LOPES NETO, João
Simões. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição
crítica por Lígia Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
89
Portanto, o objetivo deste artigo é mostrar qual o
modo de agir que Blau adotará ao longo desse percurso que
tem como ponto de partida a procura pelo boi barroso. É
levado em conta que as origens são importantes no ponto de
vista simoniano (porque ele insere em seu conto a lenda das
salamancas), e as origens têm estreita relação com o
metafísico, uma vez que são abordados temas folclóricos e
míticos ao longo do conto, além, é claro, do divino. Como
exemplos de entes metafísicos, podem ser citados o Caipora,
os poderes mágicos que a princesa moura possuía entre
outros que serão comentados ao longo deste trabalho. Ou
seja, como a própria palavra aponta, o metafísico é aquilo
que está além do físico, aquilo que não é observável dentre
os fatos empíricos.
Colocados os objetivos deste texto, é necessário
mostrar o modo que se procederá para alcançá-los: no
primeiro subitem se analisará os dois primeiros capítulos do
conto, mostrando qual a problemática levantada por Simões
dentro do viés ético. No segundo, a análise se voltará para a
lenda da salamanca que o autor utilizou, para mostrar as
origens do gaúcho. No terceiro, será retomada a análise do
gaúcho, focalizando a sua eticidade a partir da experiência
feita no interior do cerro. Como se pode perceber, esta
90
hermenêutica será feita capítulo por capítulo do conto de
Simões Lopes e,
partindo daí será elaborada a síntese
conclusiva, que tentará abarcar os principais elementos aqui
discutidos.
3.1 - O gaúcho
3.1.1 - Blau: alguém que está à procura da
identidade
Simões Lopes apresenta logo no início o protagonista
da história: Blau, um gaúcho pobre ―que só tinha de seu um
cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais‖, (p.140, l.3)
que está à procura de um boi barroso. Dessa busca de um
gaúcho pobre saltam aos olhos dois aspectos: o primeiro, do
próprio fato de o gaúcho ser pobre, deduz-se a ética vigente
no início do século XX: a ética do desprendimento que é
contra o acúmulo, aí se percebe forte influência da Igreja
Católica. Esse fato pode também ser lido como pobreza
absoluta:
a
época
do
gaúcho
a
pé
(não
sendo
necessariamente causada pela ética vigente). Conforme se
verá adiante, a riqueza pode trazer intranqüilidades que antes
(no estado de pobreza) não havia; e o segundo, de que a
91
busca não almeja algo que pode ser percebido dentre os
próprios fatos empíricos: ela é de caráter metafísico, pois o
boi barroso nunca pode ser encontrado (cf. nota nº4 do
próprio autor). Porém, é esta busca que dá sentido à vida de
Blau.
Outra figura metafísica (ou pelo menos mitológica),
além do boi barroso, citada no primeiro capítulo do texto, é o
Caipora: quando alguém encontra o Caipora, encontra
também a desgraça. Simões Lopes mostra uma outra
possível causa para a pobreza de Blau a qual é mitológica, ou
seja, não é explicada de forma racional. É esta a causa da
pobreza de Blau? Há fatores econômicos que podem explicar
esta pobreza.
A propósito, parece que a identidade do gaúcho passa
por uma crise e, neste contexto surgem outras perguntas:
Qual a origem da perda de identidade pela qual o gaúcho
passa? Tem algo a ver com a miscigenação pela qual passou,
isto é, pelo fato de ter várias etnias em suas raízes o gaúcho
não sabe mais quem é? Quanto à sua identidade, basta
afirmar que é um tapejara e ponto final? Sem dúvida, a
procura pela identidade é um processo muito mais
complexo, pois envolve toda o contexto social em que Blau
vive.
92
Nesta busca, Blau, incansável, encontra-se com ―um
vulto de face branca e tristonha‖: é o santão. Blau o saúda
pela primeira vez com uma saudação cristã. É o início de
uma relação que mudará o rumo das histórias destes dois
homens. Aqui se mostra a postura do gaúcho diante de um
ser desconhecido e como se dá a relação do gaúcho com ele.
A conversa desemboca na narração de Blau acerca da
salamanca do cerro do Jarau, a qual será apresentada no
capítulo seguinte.
3.1.2 – O que Blau sabe de suas origens
A seguir é apresentada a origem da lenda de que
Simões Lopes se utiliza, para compor seu conto. É Blau
quem conta a origem da lenda: foi sua avó quem lhe
transmitiue talvez seja ele uma das últimas pessoas capaz de
manter viva essa tradição oral que narra a chegada dos
mouros no Rio Grande do Sul. Na história contada por Blau
há uma certa mitificação, pois ele fala de alguns aspectos que
não podem ser racionalmente explicados, há várias alusões a
mitos. A própria história se torna um mito por ter sido
passada oralmente pelos antepassados do gaúcho.
93
Um aspecto que é mostrado neste capítulo (o
segundo), diz respeito à identidade (pelo menos genética) do
gaúcho: ele tem o índio como um de seus antepassados, ou
seja, o índio é uma das etnias que compõe sua árvore
genealógica, que passou por uma serie de miscigenações. A
chegada dos mouros vem trazer, no mínimo, uma crise de
identidade àqueles que habitavam o estado gaúcho. Talvez
consista num preconceito afirmar que o europeu traz o mal,
pois os índios já conheciam o mal, tanto que chamavam o
diabo de Anhangá-pitã. Mas a vinda dos europeus representa
um certo desvirtuamento da identidade, pois é uma outra
cultura que está chegando. E essa outra cultura se impõe de
tal modo, que a anterior é ―abafada‖ até o ponto em que a
nova cultura predomina sobre a que antes existia,
provocando sobre esta uma crise de valores.
Este capítulo também mostra como a princesa moura
encantada dotada de poderes e que oferece riquezas às
pessoas, foi transportada para o RS sem que ninguém
percebesse, escondida num navio. Ninguém percebeu sua
presença devido à força do condão mágico. Essa nova
cultura, porém, que que chega ano eEstado (os espanhóis)
fica como que impotente diante dos nativos que habitavam o
RS, pois entre os índios não havia cobiça por bens materiais.
94
Blau diz que Anhangá-pitã ―folgou, porque a gente nativa
daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça
de riquezas‖ (p.143, l.18-20). Assim, fica expresso que os
nativos que habitavam o pampa tinham uma outra noção de
mal, pois se trata de uma outra cultura.
Blau Nunes ainda conta como foi que o diabo
transformou a princesa moura, com poderes do outro mundo,
numa lagartixa e o seu condão encantado em pedra luzente a
qual é colocada no lugar da cabeça: a princesa moura é,
agora, uma lagartixa sem cabeça: a Teiniaguá. Aqui se
mostra que o diabo ―não havia tomado tenência que a
teiniaguá era mulher‖ (p.144, l.12). O que isso quer
significar será discutido mais adiantea frente.
3.2 - A lenda
A seguir, santão conta a história de sua vida. Além de
representar o desconhecido, o interior do cerro é um lugar
metafísico. É na chamada terceira parte do conto simoniano,
que aparece a lenda propriamente dita, apesar de alguns
aspectos da lenda mesma já terem sido apontados no
segundo capítulo. É fundamental que se faça uma análise
profunda dos aspectos ético-metafísicos desta parte do
95
conto, pois daqui serão tiradas as possíveis conclusões a
respeito das diferentes crises que o gaúcho passou e passa no
decorrer da história.
3.2.1 - O sacristão: modelo de cristão face à crise
A partir do capítulo III, o ―vulto de face branca e
tristonha‖ toma sua parte no discurso. A fala desta
personagem, o sacristão, é a forma pela qual Simões Lopes
se utiliza para mostrar a lenda68 propriamente dita do Cerro.
O período em que se formou a lenda original é em torno de
1650 – segundo a nota nº 11 de Simões Lopes. Neste capítulo
santão (o sacristão) se apresenta a Blau e conta-lhe sua
história até o momento em que a Teiniaguá se
68
De acordo com as notas 6 e 9 da lenda A Salamanca do Jarau, escritas
pelo próprio Simões, o contato que Simões Lopes tem com a lenda, que
foi escrita pela primeira vez por Daniel Granada em 1896, se dá através
do reverendo C. Teschauer na obra Poranduba Rio Grandense. Nesta
obra, Teschauer narra a lenda que Simões lerá antes de escrever a
Salamanca e contará ao redigir a mesma.
96
transforma em mulher e fica diante dele. Dentre os aspectos
ético-metafísicos da lenda, cabe destacar.
97
Já na sua origem, a vida do sacristão é tomada por
uma serie de fatores opostos:
―A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela
entraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido
com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga,
do pecado... A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou
a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...‖ (p.144,
l.27-31).
Fica, portanto, evidente a contradição entre duas
morais: a moral cristã, que seria como que uma
―conseqüência” dos sacramentos, e a moral ―humana,
carnal‖ (poder-se-ia dizer que seria algo semelhante ao id
freudiano) à qual todos os homens sofrem uma certa
inclinação. Esse dualismo da de moralis que está aqui
presente poderia ser um reflexo do momento histórico que
está se vai passando na época que a lenda original retrata: o
período barroco. O período barroco é assinalado pela
transição entre o teocentrismo que marcou toda a Idade
Média e o antropocentrismo que marcaria caracterizaria a
Idade Moderna. Como é um período de transição, o homem
encontra-se perdido diante de tantas mudanças.
.
98
No conto simoniano há uma separação entre Teiniaguá e
Anhangá-pitã, embora ambos representem o mal. A
Teiniaguá é o mal colocado de modo externo ao próprio
homem. Isto é afirmado porque a Teiniaguá é vista como
―algo‖ que não existia no Rio Grande do Sul antes da
chegada dos mouros. Porém Todavia há um mal que é
inerente ao homem, que o convida a que este se deixe
seduzir, que sinta o sabor que há em fazer as coisas
aparentemente proibidas. Este mal que habita em cada
homem é Anhangá-pitã. Simões Lopes diz que esse era o
nome pelo qual era conhecido o mal entre os nativos:
Anhangá-pitã (p.143, l.17). Em outras palavras: há o mal que
já existia (Anhangá-pitã) e o mal que vem de fora
(Teiniaguá), que certo modo representam duas culturas
diferentes e dois modos diversosferentes de se ver o mal que
sempre existe numa comunidade humana.
Ao mesmo tempo em que há uma dicotomia entre o
mal interior e o mal exterior, há um dualismo ético
representado pelo sacristão diante do pecado, uma vez que o
sacristãoeste representa todo um modelo de religiosidade.
Esse modelo mostrando a evidente crise que há dentro da
própria religião, uma vez que ele é o arquétipo religioso.
HPorém, há quede se observar-se, porém, que o sacristão é
99
movido por um desejo de riqueza tendo como modelo aquilo
que era feito pela Igreja no século XVII, durante o estado de
cristandade:
―Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse
a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais
rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da
Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...‖ (l.28-31).
Para que alguém se torne rico, a Teiniaguá pode ser o
caminho mais fácil. Simões Lopes mostra como o sacristão
conhece a Teiniaguá: sua primeira manifestação é um tanto
misteriosa, chegando a assemelhar-se com o episódio da
―sarça ardente‖ apresentado no Êxodo. ―Eis que a sarça ardia
no fogo, e a sarça não se consumia‖ (Ex 3, 2b), diz o livro
bíblico. Simões Lopes, por sua vez descreve o fenômeno
assim:
―A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando
tal e qual uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo,
dentro da terra é que estaria o braseiro que levantava aquela
fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas
dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos
daquelas águas... Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa...,
ferver sem fogo que se visse!‖ (p.145, l.17-23).
Assim, esta citação pode ser lida na perspectiva da
Teiniaguá como um ente metafísico, de caráter sobrenatural.
E semelhante à manifestação de Javé a Moisés a Teiniaguá
se manifestará ao sacristão dizendo ―Eu sou a princesa...‖, ou
seja, as duas primeiras palavras constituem o nome de Deus
100
revelado a Moisés (EU SOU). Aqui não se está afirmando
que a Teiniaguá seja uma divindade, mas apenas seu caráter
metafísico.
Após ter conseguido apanhar a Teiniaguá, o desejo
que o sacristão tem de enriquecer é muito forte. Por isso, ele
observa um cuidado pela Teiniaguá, pois ela lhe pode ser
uma fonte de riquezas para ele. É esse desejo de ser rico que
chegará ano Rio Grande do Sul trazido pelos mouros e que
Blau narra como a possibilidade de ser a gênese do mal. O
mal que chega no estado sulino pode ser visto como uma
espécie
de
―teste‖
para
as
virtudes
do
gaúcho,
considerando-se a tese de que não há virtude sem o mal.
Três vezes Simões Lopes diz, no capitulo III, que
―Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu‖ (p.145, l.16;
p.146, l.26; p.147, l.25). Esta frase tem um significado
especial em todo o contexto desta análise ética da lenda, pois
todo o povo significa que todas os princípios normativos
(morais, jurídicos, religiosos e de trato social) estavam
―sesteando‖, ou seja, seus olhos estavam fechados àquilo que
o sacristão fazia e a conseqüência disto é a sua condenação.
A antiga norma de identidade está de olhos fechados para as
atitudes do sacristão, ou seja, o povo não vê a nova época
101
que está chegando e, assim, uma possível transição estaria
prejudicada, ou sendo atrasada.
Para concluir a análise deste capítulo, é preciso
retornar ao seu início, o qual mostra o santão afirmando que
Anhangá-pitã não havia tomado tenência de que a Teiniaguá
era mulher. Fica subentendo que há a separação de culturas
da qual já se falou aqui: o mal é visto por um outro prisma e
não há nenhum mal na mulher para os nativos gaúchos
Anhangá-pitã vê a Teiniaguá – que é uma mulher – como se
fosse uma lagartixa (com a cabeça de pedra luzente). Nos
próximos capítulos fica a possibilidade de a mulher ser a
―salvação‖ do homem, porém aqui ela é vista como a causa
do pecado e o
maAnhangá-pitãl não faz um ―uso‖
devidoadequado da presença da mulher para conseguir
―mais mal‖. Considerando-se o todo formado por esta
leitura, pode-se dizer que a Teiniaguá é uma espécie de
hibris entre o bem e o mal, uma vez que o próprio ser
humano é constituído por essas duas facetas inseparáveis.
3.2.2 - O sacristão face ao pecado
102
Neste capítulo, transparece através do texto, que
devido ao fato de o sacristão não ter desejado nem a
Teiniaguá, nem as riquezas, ela se manifesta a ele (apesar de,
conforme ficou claro na análise do capítulo anterior, o
sacristão ter desejo de enriquecer). O cuidado que o sacristão
dispensa à Teiniaguá é decisivo: ―Tu não me procuraste
ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo
água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento‖
(p.148, l.7-9). O cuidado dispensado à Teiniaguá, feito com
espírito puro, sem segundas intenções, e isso faz com que ela
ofereça as riquezas que o sacristão quiser.
Fica expresso no texto a estreita relação entre a
sedução que a Teiniaguá ―impõe‖exerce sobre o sacristão e o
pecado. Quando a Teiniaguá aparece ao sacristão, deixa
evidente que se o sacristão for seduzido estará em situação
de pecado: ―Si a cruz do teu rosário não me esconjurar”
(p.148, l.22).
Transparece, no texto, o dualismo pregado pela
tradição cristã desde Santo Agostinho: ―e minha alma de
cristão foi saindo de mim...‖ (p.148 l.35). Aqui, além de
haver a separação corpo/alma, o corpo é o responsável pelos
pecados que a alma comete.
103
A ética é cristã. O pecado é praticado às escondidas.
O fato de um sacristão pecar às escondidas, e esse pecado
está diretamente relacionado com o corpo, revela uma
possível crise de identidade que há na religião da época.
Após a prática do pecado, o sacristão encontra-se (quando
acorda) cercado de padres: está condenado! Aqui aparece o
caráter de inquisição (período em que se passa a lenda) que a
moral do século XVII possui. O sacristão é condenado. E
para esse fato não há volta, não há espaço para a
reconciliação com Deus. Ele está condenado ao inferno.
Um aspecto que não pode passar em branco é o fato
de que é a representação que o sacristão faz (deve-se lembrar
que se está no período barroco). O sacristão por si só é o
símbolo do cristianismo (uma vez que é o único personagem
que tem alguma ligação com a religião) e cria-se um conflito
grande, quando o sacristão deixa-se seduzir: há uma
passagem que pode ser vista não do puritanismo para o
pecado de um modo radical, mas de uma possível mudança
interna do cristianismo, um cristianismo menos rígido
(contudo, não um cristianismo liberal, em que tudo é
permitido).
Há,
portanto,
um
conflito
entre
―dois
cristianismos‖, ou seja, trata-se de um período de transição
104
(pelo menos histórico) em que os valores estão em crise e
uma ruptura com antigo sistema já pode ser observada.
Ao fim deste capítulo, reaparece o dualismo acima
assinalado: ―...o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a
morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖
(p.149 l.28-9). Provavelmente, através desta citação, fique
evidente a morte (pelo menos do ―corpo‖, para manter o
dualismo) do sacristão.
105
3.2.3 – A condenação do sacristão
O capítulo V é assinalado, já no seu início, por uma
palavra que será repetida por cinco vezes durante o capítulo:
saudade. A palavra saudade, que não apenas existe na
Europalíngua
portuguesa,
por
exemplo,
é
uma
palavratambém tipicamente brasileira, ou ainda mais ee
muito specificamenteusada pelos gaúchaos. Com essa
palavra Simões Lopes quer mostrar o processo de
regionalização pelo qual passa a lenda que ele está contando,
e o seu intento de mostrar apresentar a situação em que se
encontra o gaúcho.
No fim do capítulo anterior era visto que o sacristão
estava sentenciado a morrer e no princípio do capítulo V,
pode-se ver o sacristão como se fosse uma ―alma penada‖. O
sacristão diz: ―os santos padres, pasmados mas sisudos,
rezavam encomendando a minha alma‖ (p.150, l.13s). Dá a
entender que o sacristão morreu e que quem conta a história
é contada por a ―sua alma‖.
Se até o presente momento a Teiniaguá e,
conseqüentemente, a figura da mulher foi tratada sob um
olhar machista, neste capítulo surge, pelo menos, uma
dialética acerca da figura feminina que tenta superar esse
106
problema. Ao se analisar o capítulo anterior da lenda, ficou
dito que a mulher é a causa do pecado, pois, quando o
sacristão se deixa seduzir, recebe, como conseqüência, sua
devida condenação. Contudo, aqui a perspectiva é mudada.
Será, aqui analisado, primeiramente o texto bíblico do livro
do Gênesis que mostra Eva caindo na tentação, ao ser
seduzida pela serpente e depois se retomará o texto
simoniano.
Deus criou o homem e o colocou no paraíso. Adão e
Eva estavam no paraíso. O homem tem tudo ao seu dispor. O
mundo ideal, perfeito é seu com uma condição: não comer
do fruto da árvore da sabedoria. A Bíblia conta que a história
acontece no tempo que os animais falavam. Ora,
cientificamente, isso até hoje não foi comprovado.
Poder-se-ia afirmar que se trata de mais uma simbologia
bíblica. As Escrituras afirmam que a serpente falava, mas
partiremos do pré-suposto que esse ―falar‖ se trata da
influência que a situação externa ao homem exerce sobre ele.
Eva se deixa seduzir pela serpente: ela dá ouvidos a
alguém, que não é ela, e que lhe convida ao pecado – esse
convite é percebido, quando o meio, a situação ou a
circunstância em que se está inserido, passa a ser visto com
outros olhos, e o homem vê a possibilidade de quebrar as
107
normas éticas. Então Eva come o fruto da árvore proibida.
Porém, ela não o faz sozinha, mas compartilha do pecado
com seu companheiro. Os dois são expulsos do paraíso. O
pecado cometido pelo homem não consiste no simples fato
de ter desobedecido a uma ordem ou de ter comido uma
fruta, mas no fato de querer ser como Deus. Deus havia
deixado claro que, se o homem comesse daquele fruto, ele
seria como Deus, conhecedor do bem e do mal. Há um
modelo (Deus) que dificilmente será atingido pelo homem, a
menos que este transgrida uma lei (que de certa forma lhe foi
imposta, apesar de ter sido a única condição).
Agora, retorne-se ao conto simoniano A Salamanca
do Jarau, tendo como bases principais a própria lenda e a
pequena hermenêutica exposta acima: pode-se afirmar que o
sacristão era alguém feliz, tinha tudo o que precisava para ter
uma vida digna. Surge, porém a Teiniaguá encantada: uma
pequena lagartixa com a cabeça de pedra luzente. Por querer
cuidar da lagartixa, ou seja, por se deixar influenciar por algo
exterior, dá-se de frente com uma mulher que o seduz, ou
seja, ele vê aquilo que antes era uma simples lagartixa, de um
outro modo. Talvez antes de ouvir sua consciência o
sacristão não percebesse o que viria a ser uma mulher (no
sentido de pecado, na visão judaico-cristã). Há que se frisar
108
que a Teiniaguá não era uma mulher qualquer, mas ela
poderia dar ao sacristão todas as riquezas que este quisesse,
mas seu objetivo principal era derrotar o cristianismo,
unindo-se a ele.
As riquezas, por sua vez, são o modelo da época
desta lenda: a Igreja detém uma grande riqueza, o modelo é
teocêntrico (embora esteja em decadência) e a Igreja
representa Deus na Terra, assim, neste período histórico,
querer ser como Deus é querer ser igual à Igreja. Mas não é
isto que o sacristão quer, ele quer acima de tudo ter em seus
braços a Teiniaguá, porém há uma certa censura a este tipo
de atitude, pois o sexo é um pecado a que o corpo está
sujeito, e o homem virtuoso deve evitá-lo. Não conseguindo
ter tal atitude, sua condenação está promulgada. O sacristão
é condenado a morrer. Assim como Adão é expulso do
paraíso, o sacristão é expulso deste mundo.
TodaviaPorém, ainda na perspectiva cristã, se o
pecado tem sua gênese com a mulher, a salvação também é
trazida por uma outra mulher: Maria, a nova Eva. Aqui, no
conto simoniano, a própria Teiniaguá traz a salvação ao
homem (pois ela é hibris), tirando-o do domínio da morte:
―Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros
no corpo, sem peso de remorsos na alma passei o rio para o lado
do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e
juntos fizemos então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou
109
sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros
lugares‖ (p.152, l.8-12).
O Cerro é um lugar metafísico, onde o sacristão nada
pode gozar entre os homens. Tem-se aqui uma idéia de um
total abandono e isolamento. Mas, antes que se passe a este
ponto (a análise do cerro como um lugar metafísico, análise
esta que está presente de modo mais detalhado no próximo
capítulo), convém destacar que a Teiniaguá é uma
hibridação entre as personagens bíblicas Eva e Maria: ela é a
síntese na dialética acima esplanada. A Teiniaguá é causa de
condenação e, ao mesmo tempo, salva aquele que por sua
culpa foi condenado.
3.2.4 - O cerro como lugar metafísico
―Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi
sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros
homens que bem sabem que a alma é peso entre o mandar e o
ser mandado...‖ (p.152, l.15-7). É assim que inicia o sexto
capítulo da lenda de Simões. É mostrado por Simões Lopes
que faz muito tempo que o sacristão está na salamanca,
tempo que um ser humano não poderia viver. Já as
sabedorias árabes que o sacristão diz ter aprendido, mostram
tradição moura herdada pelos espanhóis. Também há que se
110
lavar em conta o projeto de destruição da cristandade
judaico-ocidental, representado pela Teiniaguá.
Ainda vivo, sob o estado de uma ―alma penada‖, o
sacristão, passa por uma fase de ascetismo para se
purificar-se do pecado antes praticado. Ele agora é um vulto,
pois perdeu sua identidade de cristão. ―Nunca mais dormi;
num mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...‖ (p.152,
l18s). O sacristão não goza mais nada entre os homens e
espera por ―sinal‖ divino: ouvir três vezes uma saudação
cristã, para, assim, sua salvação chegar à plenitude. E, em
outras palavras, o sacristão resgatará sua identidade de filho
de Deus, quando ouvir três vezes uma saudação cristã.
Enquanto isso, ele vive como uma espécie de ermitão,
isolado dentro de uma caverna. Ele possui riquezas aos seus
pés (literalmente):
―...ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso
torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa (...) tudo
ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo
cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de
Castela e Aragão...‖ (p.152, l.20ss).
Aquele padrão de riquezas que antes era almejado
pelos homens e que era representado pela Igreja, não traz
felicidade, assim como querer ser como deuses, no paraíso,
não trouxe felicidade para Adão e Eva, mas apenas
infelicidade (o santão não é feliz, pois já no início é
111
apresentado como sendo alguém de ―face branca e
tristonha‖). O sacristão não almejava riquezas, mas chega ao
padrão querido pela maioria dos homens, enquanto Adão e
Eva não chegam a esse padrão. Contudo, expulsão e
purificação são comuns ao sacristão e a Adão e Eva.
Durante esse período em que o sacristão está numa
atitude de quem é asceta, chega à conclusão de que o novo
princípio ético-metafísico é: ―alma forte e coração sereno‖
(p.152, l.36). Um princípio que quer re-unir as duas
entidades metafísicas antes separadas (corpo e alma) através
de atitudes éticas, ou seja, a alma deve ter força para poder
vencer aàs inclinações que o corpo sofre, enquanto que o
coração sereno, que representa o corpo, mostra que a pessoa
deve pensar, analisar antes de tomar qualquer atitude de
forma precipitada. Assim se chega a uma harmonia,
harmonia não de dois opostos (corpo e alma), mas da pessoa
como um todo (alma e coração).
112
3.3 - O gaúcho
3.3.1 - Blau e as sete provas
É neste capítulo que Blau é submetido a sete provas.
Ao entrar no cerro, a convite do santão, surgem as sete
provas. Foi falado anteriormente que o cerro (ou a caverna) é
um lugar metafísico. Neste ponto, pode-se explicar o porquê
do cerro se enquadrar em tal aspecto: primeiramente o
sacristão se retira do meio dos homens e vai para o cerro para
uma espécie de purificação (cf. capítulo anterior), e agora o
mesmo acontece com Blau. UBlau é um gaúcho pobre que se
encontra em crise de identidade (àa procura dopelo boi
barroso, fato principal que vai dardá sentido à sua
existência). É aqui, dentro do cerro do Jarau, que o gaúcho
será testado, enquanto um homem de virtudes e Blau só
passará neste teste, se tiver ―alma forte, coração sereno‖.
No interior do cerro Blau, enfrenta sete provas as
quais vence com sucesso. Aquilo que lhe fora dito pelo
sacristão (―alma forte, coração sereno‖) é o que lhe dá forças
para vencer cada prova, e este mote fica claro como o novo
princípio metafísico:
―Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer
o sinal da cruz;... porém – alma forte, coração sereno! – meteu o
113
peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas
soltavam das suas juntas bolorentas‖ (p.155, l.19ss).
O fato de Blau não ter feito o sinal da cruz mostra sua
aderência a um novo projeto que não é o da cristandade:
―alma forte e coração sereno‖ é a nova máxima. Já na lenda
original, de Daniel Granada69, transparece de forma direta
quais devem ser as condições morais para que se entre em
uma salamanca:
―Para merecer y poder entrar en ellas, es necesario revestirse de
mucho coraje y de mucha indiferencia á todo cuanto rodee y sea
capaz de hacer imprecisión leve ó vehemente en los sentidos y
en el ánimo del aspirante, que debe tener al intento la
impasibilidad de un estoico. Pruebas terribles, aparatos y
ceremonias magníficas, que traen á la mente las que usaron los
pueblos del Oriente y las que diz que usan masones en la
recepción de sus neófitos, esperan al sujeto que quiere iniciase
en los misterios de una salamanca. Mas aun así, con todas estas
purificaciones, todavía él neófito no sabe si, al salir de la
salamanca, será feliz ó desgraciado en su vida terrenal‖
(GRANADA, 1896, p.98).
Adaptando esse princípio, Simões Lopes cita-o desta
forma: ―alma forte, coração sereno‖. Com ―alma forte e
coração sereno‖ Blau supera, com vitória, as sete provas, e,
então, surge uma velha que lhe oferece sete recompensas e
das quais pode escolher uma como forma de prêmio por sua
69
Aqui é tomado o texto de Daniel Granada, por ser este o texto que mais
se assemelha ao de Simões Lopes e também porque é sabido que
Teschauer se serviu de Daniel Granada ao escrever Poranduba
Rio-grandense. Há teses que afirmam que Simões Lopes leu o texto de
114
vitória no cerro. Porém, Blau, porém, nega todas as formas
de recompensa que lhe são oferecidas. A recusa das sete
recompensas obtidas, ao vencer as sete provas, mostra um
conflito interior que há no gaúcho: sentimento x riqueza.
Contudo, Blau queria uma recompensa, mas ele não
fala à velha qual a recompensa que gostaria de ganhar. Seu
real desejo era a Teiniaguá:
―Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque és tudo!... És
tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de
mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti,
teiniaguá encantada!...‖ (p.158, l13ss).
A que se deve o fato de Blau querer ter a Teiniaguá
acima de tudo? Teria algo a ver com a história que fora
contada pelo sacristão? Ou tem algo a ver com a história
contada por sua avó e que fora recontada por ele ao
sacristão? O texto não aprofunda o porquê do desejo que
Blau tem em possuir a Teiniaguá, mas há a possibilidade de
ele querer aderir ao novo, que é representado por ela, para
sair de sua situação de pobreza. É certo que este momento foi
um grande deslize de Blau e é o próprio sacristão quem o
observa:
―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste,
mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a
língua!...
Granada, utilizando-o de forma direta ao compor A Salamanca do Jarau
(cf. Eduardo Arriada, por exemplo).
115
Não te direi si bem fizeste ou mal‖ (p.153, l.37ss).
Apesar de ter recusado aàs sete recompensas o
sacristão oferece uma onça encantada a Blau na saída do
cerro. Esta onça que Blau está recebendo, possui poderes
mágicos: de dentro dela saem quantas onças Blau quiser,
porém todavia uma de cada vez. Esta onça encantada tem um
ar de sagrado: ―Guarda-a em lembrança de mim!‖ diz o
sacristão ao entregá-la a Blau. De modo semelhante Jesus
Cristo havia falado na última ceia: ―Fazei isto em minha
memória‖. O sacristão para ter o efeito do encantamento da
Teiniaguá desfeito anulado, precisa ouvir três vezes uma
saudação cristã. E será esta onça que manterá o sacristão na
memória de Blau e, posteriormente, desfará o encantamento.
Blau guarda a onça e vai-se embora do cerro. Devido ao fato
de Blau ser um homem de virtudes e também com valores
cristãos inseridos em sua cultura, o sacristão concede-lhe a
onça encantada. Essa atitude talvez seja uma ―aposta‖ que o
sacristão faz para se ver livre da maldição da Teiniaguá,
pois, se ele for mesmo honesto, voltará à caverna.
116
3.3.2 - O enriquecimento de Blau com a onça
encantada
Neste capítulo (o sétimo do conto) são encontrados
alguns elementos que facilitarão a compreensão dos últimos
capítulos deste conto. Por isso, nesta análise, ao desenvolver
o oitavo capítulo, será feita apenas uma descrição dos
eventos sucedidos a Blau após sua saída do cerro.
Com a onça encantada, Blau causa admiração às
demais pessoas, porque Blau é pobre e agora ele paga todas
as suas despesas no mesmo instante em que efetua uma
compra. Fato curioso é que, conforme dissera o sacristão, da
onça encantada, só apenas se tira uma onça de cada vez.
Apesar disto, Blau aproveita que tem em mãos a onça
encantada para efetuar grandes compras:
―Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil
cabeças, aquerenciado. O negócio era muito acima de três mil
onças, a pagar no recebimento. Aí o coitado perdeu quase o dia
inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma
atrás da outra, sempre uma a uma!...‖ (p.160, l.41ss).
Parece que Blau ele quer adquirir bens em demasia
para superar a pobreza em que se encontra (note-se que ele
adquire bens que um estancieiro compraria). Contudo, as
pessoas observam que há um mistério nissto tudo: Blau de
uma hora para a outra enriquece e o seu modo de pagar os
117
seus gastos é um tanto quanto estranho. O próprio Blau se
espanta de sua riqueza. E maior fica o mistério, quando se
percebe que todas as pessoas que faziam negócio com
Blauele perdiam exatamente a quantia em dinheiro a quantia
que fora negociada com ele. Simões Lopes diz que o
dinheiro simplesmente ―evaporava‖.
3.3.3 - O agir ético de Blau e a quebra do
encantamento do sacristão
A riqueza de Blau torna-se um mistério para os
homens que o observam: Como um homem poderia
enriquecer tanto de forma tão repentina? Por que as pessoas
tinham prejuízos ao fazer negócios com Blau? As pessoas
acham que Blau fez uma espécie de pacto com o diabo ou
algo parecido, pois acham que o dinheiro que Blau tinha era
maldito: a quantia que ele dava nos negócios era prejuízos na
certa.
As pessoas começam a relacionar a riqueza obtida
por Blau com a salamanca do Jarau. Muitos fazem tentativas
118
frustradas paraem entrar na salamanca. Não conseguem,
entrar porque é preciso ―alma forte, coração sereno‖ e o
desejo de riquezas impede com que qualquer um entre na
salamanca.
Contudo , Blau começa a ser colocado de lado pelas
demais pessoas e ninguém tem a coragem ou quer se
aproximar dele. Blau eEstá sozinho e tem no máximo a
companhia dos cachorros. Ninguém mais quer fazer
negócios com ele. Então: ―Blau deu em cismar, e cisma foi
que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o
ralava e esmorecia‖ (p.162, l.19s). Blau tem uma atitude
decidida: vai retornar à salamanca, porque quer recuperar a
tranqüilidade, os amigos e companhias que outrora possuía.
Retornar à salamanca é de fundamental importância,
porque é lá que está a raiz do problema. Não basta apenas
guardar e não utilizar mais a onça encantada, mas é
necessário devolvê-la ao sacristão como uma forma de
atitude honesta. Talvez aquilo que aqui se chamou de
―tática‖ do sacristão, tenha dado certo: Blau (homem de alma
forte e coração sereno) retornará ao cerro. DBlau devolve a
onça encantada ao sacristão e, assim, mostra qual é a sua
ética. É a ética do desprendimento, ética em que o maior
valor válido para ele não é material, mensurável, mas está
119
nas relações que ele mantém com os seus amigos e também
com o dever ético. De que vale ser rico e não ter amigos? É
preferível ser pobre, mas ter com quem partilhar o pouco que
se possuitem. Blau, ao voltar ao cerro, não perde nada, ou
seja, ele não perde as riquezas que havia adquirido com a
onça encantada, ele não ficou pobre. Ele era pobre e se
reconhece como tal, ao devolver a onça encantada. Isso se
verifica, quando Blau chega àna salamanca e diz: ―Devolvo!
Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não
se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque
nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de
onças!...‖ (p.162 l.34ss). Deve-se lembrar que a ética cristã
afirma que a recompensa é ganha por aquele que sabe
renunciar às coisas do mundo.
Quando Blau chegou à salamanca, pronunciou pela
segunda vez uma saudação cristã e, quando vai-se embora,
pronuncia uma terceira saudação: o encantamento ao qual o
sacristão estava submetido está quebrado. Todos os tesouros
da salamanca são queimados.
3.3.4 - Blau recupera a paz e a tranqüilidade
120
Quando o encantamento da salamanca é desfeito,
todos aqueles entes que lá habitavam são queimados
juntamente com a salamanca. Todos os encantamentos são
desfeitos: ―a velha carquincha transformou-se na teiniaguá...
e a teiniaguá na princesa moura... a moura numa tapuia
formosa; ... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à
figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num
guasca desempenado...‖ (p.163). Assim, pode-se verificar
que as principais figuras que estavam na salamanca, a saber
o sacristão e a Teiniaguá, voltam ao seu estado primitivo
(estado primitivo no começo da história, o que não quer dizer
que eles depois de terem passado por toda esta experiência
tenham permanecido os mesmos. O ser humano se faz e toda
experiência por que ele passa o faz diferente). Simões Lopes
chama a Teiniaguá de tapuia, nome que os tupis utilizavam
para designar os gentios inimigos, segundo o dicionário
Aurélio, mostrando, assim, que há o mal dentro da figura da
Teiniaguá. E o sacristão, por sua vez, torna-se um guasca, ou
seja, adquiriu, agora, sua verdadeira identidade.
Blau, por sua vez, traça sobre si e sobre seu cavalo o
sinal da cruz como forma de proteção. O gaúcho é, portanto,
um cristão convicto de seus deveres enquanto tal. Ele é
alguém que valoriza não apenas gestos que lembram sua
121
religiosidade, mas que valoriza também os atos concretos
que o fazem ser um cristão. Alguém que, na linguagem
bíblica, é bem-aventurado porque pobre (Mt 5,3). Ele Blau
representa o gaúcho que é alguém que mantém, acima de
tudo, a honestidade como o valor primordial de sua vida.
ABlau ao devolver a onça encantada tem de volta a paz e os
amigos antes perdidos.
Simões Lopes encerra o conto assim: ―Anhangá-pitã,
também não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda
escondido, por não haver tomado bem tenência que a
teiniaguá era mulher...‖ (p.164). Uma vez que o gaúcho toma
uma atitude honesta, e recupera, desse modo, sua identidade
que estava em crise, o mal que habita dentro dele
(Anhangá-pitã) não o incita a ter más atitudes. A mulher,
para ele, pode ser uma companheira, alguém que se faz
presente em sua vida, ou qualquer outra coisa, menos a causa
ou motivo para o pecado, pois o gaúcho está em paz com sua
consciência.
Síntese conclusiva
Uma vez feita a análise do agir ético dos personagens
do conto A Salamanca do Jarau, é justo relacionar esses
122
aspectos entre si, pois até aqui eles foram apenas mostrados e
parece não haver conexão entre eles na leitura que foi feita.
O objetivo central deste item é mostrar quais as relações que
se pode fazer entre os três personagens da lenda simoniana:
Blau, o sacristão e a Teiniaguá.
O primeiro aspecto a ser observado é a crise por que
passam o sacristão e Blau. O sacristão, representando a
religião no século XVII, percebe que a religião esta não
responde mais às perguntas de seu tempo. Conforme a
análise acima, pode-se perceber que há necessidade de um
cristianismo menos rígido, numa época de transição para o
que seria depois, caracterizado como antropocentrismo.
Quando o sacristão é seduzido, mostra que quando se age
contraao agir-se contra as normas de uma época, tem quede
arcar-se com as conseqüências dos atos. Num período de
exclusão em relação aos demais homens procura por sua
identidade (pois tem a face desfigurada – ―branca e
tristonha‖). Já Blau passa por crise semelhante: perdeu
também sua identidade, mas isso pouco tem a ver com a
religião. Seu problema é basicamente econômico, por isso
procura por algo que é material: o boi barroso (o boi barroso
é visto como uma possível solução aos seus problemas
econômicos). Após ter passado pelas sete provas com
123
sucesso, Blau nega as sete recompensas, mas leva a onça
encantada e vê nela a possibilidade de ter resolvidos seus
problemas econômicos, uma vez que pois a emprega em seus
negócios. Contudo, se dá conta de que perdeu seus amigos
por causa da onça encantada e que causou prejuízos aos
outros, se vê isolado, como o sacristão, e decide acabar com
essa situação. Percebe-se que no isolamento (talvez em
atitude de ascetismo), os personagens se encontram consigo
mesmos. ContudoPorém, o sacristão não depende somente
de si para sair desta situação. A crise de identidade pela
qualque ambos personagens passam, tem a ver com o
modelo que é colocado em evidência na época (Blau é o
econômico; o sacristão, o religioso). Ambos os modelos
devem se repensar, para que o homem tenha maior
autonomia (o sacristão vive numa crise de valores religiosos
e Blau, no momento de expansão do capitalismo, e, ao
mesmo tempo, de crise econômica – época do gaúcho a pé),
isto é, o sacristão pensa em como ser mais livre continuando
a ser cristão, e Blau quer saber como ser livre
economicamente no capitalismo e na pobreza.
Cabe, depois, analisar a relação que o sacristão
mantém com a Teiniaguá. Conforme já foi dito, o sacristão
dispensa um cuidado pela Teiniaguá, quando esta ainda
124
estava sob a forma de lagartixa. Mas depois de um certo
tempo ele a vê na forma decomo mulher. Mas a ética de seu
tempo condena as relações que o homem mantém com a
mulher, por ser uma ética com fundamentos religiosos que
desvalorizam o corpo e dão ênfase à alma, ao espiritual.
Contudo, o sacristão quebra essa ética e se deixa seduzir pela
Teiniaguá. O momento da sedução é o momento que o
sacristão olha nos olhos da Teiniaguá e não mais lhe resiste
ao encanto. Como já era de se esperar, o sacristão é
condenado à morte pelos padres, pois está vivendo no
período inquisitorial. Mas o fato do sacristãode ele ter
rompido com a ética cristã mostra que o homem passa por
uma transição cultural, a qual repercute em cada pessoa, e
isso lhe traz inquietações. O sacristão apesar de ter morrido é
salvo pela Teiniaguá. Mas há dúvidas quanto essa
―salvação‖, pois ela quer formar uma nova estirpe com o
sacristão, e, por isso, salva-o. Até que ponto isso é salvação?
A salvação teria que ser por amor, portanto, gratuita. Mas,
não é o que ocorre. Outra questão a ser levantada é: Por que a
Teiniaguá salva o sacristão, se ele passa duzentos anos
isolado dos demais homens? O ―novo‖ que a Teiniaguá
representa tem quais projetos com o sacristão? Poder-se-ia
dizer que esse novo seria uma proposta que não é nem o
125
cristianismo que está sendo vivido, nem um paganismo
completo. Isto está assim fundamentado: se fosse uma
proposta de paganismo, a Teiniaguá teria escolhido alguém
que não estivesse ligado à religião, e, se fosse para
permanecer do modo que estava a Teiniaguá não surgiria
como ―antítese‖ ao sacristão. Esse novo mostra que é
possível romper com as estruturas atuais em que se está
vivendo, sem que seja necessário voltar para trás ou
abandonar toda a tradição, para se chegar a algo novo.
Isolado, o sacristão pode refletir melhor naquelasua situação
e na proposta apresentada. O cerro, conforme já foi
apresentado, é um lugar metafísico, onde cada um faz a
experiência de encontro consigo mesmo.
Resta ainda uma dúvida quanto ao modelo de ética
seguido por Blau: ao devolver a moeda ao santão, ele foi
ético, e, quanto a isso não há dúvida. EleBlau se deu conta de
que a atitude correta a ser feita neste caso seria devolver a
moeda, mas por qual princípio ele se norteou: o teleológico
ou o deontológico? Podem ser feitas duas análises: se ele
seguiu o primeiro princípio, o fator decisivo de sua atitude
foi o fato de ele ter perdido os amigos, pois sua ação é
movida por um ―querer recuperar‖ os mesmosamigos
perdidos. O fim almejado é alcançar a felicidade e aesta
126
felicidade depende dos amigos, que fazem o gaúcho ser feliz.
De nada adianta ser rico, mas não ter amigos com quem
partilhar a vida, o chimarrão,… Contudo, se Blau agiu
coagido pelo imperativo categórico kantiano (independente
de conhecê-lo teoricamente), ele apenas agiu, porque devia
agir assim: todo o homem que age eticamente, deve devolver
a moeda e ―eu não ia querer que me dessem uma moeda que
após algum tempo sumisse‖. Ou seja, Blau ia querer que sua
atitude particular se tornasse lei universal baseada no dever.
Contudo, através do texto, nada fica subentendido quanto ao
princípio ético seguido por eleBlau. É a partir dessa crise, de
possuir a onça encantada, pela qualor que
Blau passou, que se encontra o projeto para sua identidade
procurada desde o início da história. Blau é, acima de tudo,
alguém ético, seu projeto consiste na honestidade, e, talvez,
seja essa a sua crise: como ser honesto no contexto
capitalista? Nesse ambiente de competição que é o
capitalismo, há o evidente desejo de superar a situação de
pobreza, qual o mais importante: ser rico a qualquer custo,
ou ser pobre, mas contar com amigos? Parece que Blau opta
pela segunda alternativa. Não importa se ele foi honesto para
com seus amigos ou apenas para consigo mesmo. Importa
127
sua honestidade que é colocada em prática independente das
adversidades encontrada.
128
Referências bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1996.
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:
Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: L&PM, 1982.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário
Aurélio. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GRANADA, D. Daniel. Supersticiones del Río de la Plata.
Montevideo: A. Barreiro y Ramos, 1896.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Lendas
do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia
Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
129
130
4 - DA CAVERNA PLATÔNICA À CAVERNA
SIMONIANA:
UMA
LEITURA
DA
CRISE
DE
IDENTIDADE ÉTICA DO GAÚCHO
Mauro Henrique Franzkowiak Martins 70
1. Um Platão unitivo
Na reconstrução das interpretações de Platão, é
necessário descobrir quais foram os paradigmas 71 que
constituíram a base de sustentação das pesquisas. De acordo
com Giovanni Reale, os paradigmas essenciais para uma
melhor interpretação de Platão, do século IV a.C. até hoje,
podem ser resumidos em quatro grandes blocos:
a) O paradigma originário, nascido com Platão e
consagrado pelos seus discípulos diretos e desenvolvido na
70
Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa
Simoniano. ISF/UCPEL.
71
Os paradigmas demonstram as convicções e concepções que
constituem os pontos firmes da ciência num determinado momento e que
fornecem os modelos para a formulação dos problemas e das soluções
para aqueles que trabalham nas pesquisas. G. Reale utiliza em sentido
analógico e considera o paradigma como uma unidade de medida
fundamental nas pesquisas científicas. Ele o utiliza, a exemplo de Kuhn,
como uma unidade modeladora. Quando um paradigma entra em crise,
se encerra-se com o surgimento de um novo paradigma e, assim, a
conseqüente batalha pela sua aceitação.
131
primeira Academia. Sua natureza é teorética e centra-se nas
doutrinas não-escritas.
b) O paradigma neoplatônico, também de natureza
teorética,
centra-se
prioritariamente
nos
escritos,
interpretados numa ótica alegórica. Absorve elementos
basilares das doutrinas não-escritas e desenvolve-se
teoreticamente de modo muito notável.
c)
O
paradigma,
lançado
sobretudo
por
Schleiermacher, centrado na preeminência quase absoluta
atribuída aos escritos, excluindo ou limitando fortemente o
significado e a importância das doutrinas não-escritas.
d) O paradigma proposto pela escola platônica de
Tübingen, que coloca, em primeiro plano, as doutrinas
não-escritas junto com os escritos platônicos, e as apresenta
como necessárias para a adequada compreensão dos próprios
escritos, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de
vista doutrinal. Os escritos de Platão não oferecem ―todo
Platão‖.
A doutrina esotérica mostra de forma mais completa
as sínteses de Platão. Aqui aparece uma síntese final, que
não seria entendida por principiantes e por aqueles que
estavam de fora. Esta doutrina é oferecida para os iniciados,
132
na forma de diálogo vivo (cara a cara). Aqui aparece a
dialética com teses, antíteses e sínteses.
Esta doutrina se chama-se de doutrina não-escrita. A
escola de Tübingen irá colocá-la em primeiro plano de sua
pesquisa, para assim, elaborar uma releitura de Platão. Aí é
que o estudo desta leitura de Platão se torna de suma
importância, pois só desse modo se conseguiu chegar à
grande síntese. Os pólos se conciliam e a alegoria da caverna
pode ser lida de forma completa.
2. A caverna platônica
Ao ler a alegoria da caverna platônica, percebe-se
que há um limite à visão desses prisioneiros. E este limite
não se reduz apenas aos objetos. Eles estão limitados a
verem somente suas próprias sombras, pois suas cabeças
estão imóveis.
―Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham
visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras
projectadas pelo fogo na parede da caverna?‖ (Rep., 515a)72.
Cabe destacar, também, que as vozes ouvidas pelos
prisioneiros são atribuídas às sombras que eles viam
projetadas no fundo da caverna:
133
―E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo?
Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles
não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que
passava?‖ (Rep., 515b).
Ao sair da caverna, o ex-prisioneiro se encontraria
numa ascensão gradual, ou seja, subir o caminho rude e
íngreme (Rep., 515e). De início, iria contemplar o fogo, as
imagens dos homens e objetos – inclusive de si mesmos –
que seriam projetadas na água. Após, passaria a contemplar
os próprios objetos, a luz das estrelas, a Lua e por fim, o Sol.
Percebe-se, neste processo, que se contemplariam os
objetos, os outros homens e a si mesmos. Estas são as três
dimensões para perfazer o caminho de ascensão da alma ao
mundo inteligível. Porém, só no limite do cognoscível é que
se poderá ter a Idéia do Bem.
O processo de ascensão os leva a darem-se conta de
sua própria condição de prisioneiros. Desta forma, as trevas
já não representam a simples ignorância, mas a ingenuidade.
Agora se percebe que a sombra não é mais a realidade, que
distingue entre aparência e realidade.
Prosseguindo sua ascensão, este prisioneiro deve
voltar à caverna. O ter compaixão (Rep., 518b) faz com
72
A partir deste momento, usaremos a abreviação ―Rep‖ para a obra:
PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira). 3ª ed.
Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1949.
134
queque ele sinta a necessidade da voltar, ao ver os outros na
própria condição anterior, mesmo agora, ficando cego pela
falta de luminosidade no interior do local. etorne a caverna
ao ver os outros na sua própria condição anterior. Esta
compaixão faz com que sinta a necessidade de retorno,
mesmo, agora, ficando cego pela falta de luminosidade
dentro da caverna. O processo deixa de ser solitário: Desse
modo, a intersubjetividade surge como condição do
desenvolvimento da subjetividade (Sardi, 1995, p.84). Os
prisioneiros soltos, são curados de sua ignorância, mas p.
Para isto, o educador deve receber o consentimento do
educando.
3. A caverna simoniana
Diante da obra de J. Simões Lopes Netodeste
escritor, percebe-se que oO verdadeiro objetivo de Simões
Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é uma invenção de um
personagem e a observação da situação-limite em que se
encontra (Chaves, 1982, p. 82). O personagem Blau Nunes
vai em busca de um boi barroso por um percurso geográfico,
que não tem início nem chegada pré-determinados. O
percurso geográfico, num primeiro momento, representa a
travessia psicológica do próprio Blau em busca de si mesmo,
135
travessia esta que está sujeita a avanços e recuos. Esta
travessia, necessariamente, culmina num processo de
autoconhecimento e afirmação da identidade. O ingresso na
salamanca onde reside a Teiniaguá, agora, representa a
travessia em busca de si mesmo.
O ingresso na salamanca torna-se um momento
decisivo para Blau, pois representa a tentativa de ultrapassar
a condição problemática em que se encontra, buscando os
valores éticos. A situação do gaúcho pobre, na crise de seus
valores éticos, se contrapõe à busca do poder e das riquezas,
que a salamanca e a Teiniaguá representam. O ingresso na
furna encantada tem como função subtrair Blau ao mundo
humano, para coloca-lo na solidão, num combate do qual
deverá alcançar o conhecimento duma zona interdita (o reino
encantado da Teiniaguá) e a revelação de sua própria
identidade, que conduz à posse de si mesmo. A função da
Teiniaguá é uma representação da ruptura entre a humana
existência humana e o conjunto de valores éticos a que aspira
o gaúcho pobre – Blau Nunes.
4. Da caverna platônica a caverna simoniana: análise
da crise de identidade ética do gaúcho
136
Fazendo uma relação com estas duas alegorias, foram
destacados alguns elementos desses textos que expressem as
semelhanças e as diferenças principais dos personagens e
esclarece pontos que revelem, também, o conhecimento
teórico-prático (alegoria da caverna), ligando-o com a nossa
identidade gaúcha (A Salamanca do Jarau).
Qual é a identidade ética que Blau irá assumir? Não é
o objetivo deste trabalho apresentar as características ou
desenvolver a identidade ética de Blau, mas apenas mostrar
o aspecto metodológico que rege a interpretação da lenda
simoniana, isto é, a teoria do Bem elaborada pelo escola de
Tübingen.
Os dois textos possuem características semelhantes: a
narrativa de ambos envolve uma caverna que está em nível
diferente ao dos personagens. Portanto, percebe-se que os
dois textos nos mostram um processo, um caminho a ser
percorrido pelos personagens inseridos no contexto da
alegoria e da lenda. E este caminho culmina numa
elaboração de uma consciência intersubjetiva. Assim como
na caverna platônica há um duplo movimento (subir e
descer) ético-cognitivo, também na lenda A Salamanca do
Jarau há um duplo movimento de busca de identidade ética,
137
quando o personagem percebe a sua crise interior com a crise
externa, crise do pampa gaúcho.
O personagem simoniano se depara com projetos
éticos, na lenda A Salamanca do Jarau, que são projetosos
quais são ambíguos.
O primeiro é representado pelo
sacristão. O sacristão, na lenda, apresenta-se em três fases
diferentes: Numa primeira fase, ele é o sacristão da igreja de
São Tomé. Ali, ele representa a cristandade colonial, dentro
de uma instituição (São Tomé). Era eu que cuidava dos
altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S.
Tomé (...) Eu era o sacristão (Lopes Neto, 1988, p.145).
Nesta fase, o sacristão entra em oposição com a instituição
em que está inserido. Ele vai contra os princípios éticos da
instituição: ...e a minha alma de cristão foi saindo de mim,
como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor
que vai apodrecendo... (Neto, 1988, p.148). É uma fase de
mudança na vida do sacristão, onde ele deixa de viver um
projeto ético colonial, para viver um outro projeto,
representado pela Teiniaguá.
Na segunda fase, o sacristão está fora da sociedade.
Já não está mais na instituição. Ele assume um projeto
ascético, vive no cerro do Jarau como um eremita, na sua
138
solidão, com face tristonha. Agora está fora do institucional,
ele é um vulto de face branca e tristonha.
Enfim, na terceira fase, o sacristão assume o projeto
de Teiniaguá e se une a ela. Aí há uma metamorfose: o vulto
de face branca e tristonha volta a se tornar a figura do
sacristão dantes, que, agora, se transforma-se num guasca
desempenado, inicia sua viagem com a princesa moura.
(...)... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à
figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num
guasca desempenado ... (Lopes Neto, 1988, p. 163).
O sacristão representa uma identidade ética da
cristandade, que se baseia numa moral dualista, de desprezo
ao corpo e ao prazer, tendo valor as asceses espirituais.
Aquilo que não faz parte desta moral, é um mal condenável.
Si a cruz do teu rosário não me esconjurar... (Lopes Neto,
1988, p.148)
O segundo projeto é representado pela Teiniaguá,
que
revela
o
novo,
expressando
um
projeto
latino-americano. A Teiniaguá é um personagem híbrido,
ora simboliza a condenação, ora simboliza a libertação.
A Teiniaguá simboliza uma identidade ética unitiva,
em queva. Nesta identidade, não há uma dualidade entre
139
corpo x alma. Esta identidade conduz a uma unidade sem
exclusões, ou seja, tudo converge para uma única direção.
...do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e
sábia, que nunca mais será vencida... (Lopes Neto, 1988,
p.148)
Relacionando com a filosofia platônica, encontra-se,
no primeiro projeto, uma identidade ética dualista, como se
depara lendo Platão de forma dualista, ou seja, há separação
de Bem x mal, de corpo x alma. No segundo projeto,
Teiniaguá representa uma identidade ética unitiva, que
conduz todos os pólos a uma unidade, como na teoria sobre o
Bem de Platão.
A ética da cristandade colonial é dualista,. Ela
separa, por exemplo, corpo e alma, ou bem e mal. No
entanto, este modelo é superado na união do projeto do
sacristão com o da Teiniaguá. Ora, encontra-se na filosofia
platônica, à luz das doutrinas não-escritas, uma ética que
conduz aà unidade. Da mesma forma, é possível fazer uma
leitura
da
Salamanca
do
Jarau, em
que
se
realiza uma identidade ética unitiva. Deixa-se em aberto,
porém, se Blau Nunes assume esta nova identidade
ética resultante da união dos dois personagens. Cabe
destacar, contudo, que há uma inquietante busca por uma
140
identidade, representada na figura de "campear o boi
barroso".
A uUnidade de Platão pode ser aplicada na união dos
dois projetos que estão diante de Blau Nunes. A partir da
união dos pólos, se chega-se a uma uUnidade, sem excluir. A
síntese vai surgir na formação da ―nova gente‖.
Diante disso, destacam-se alguns elementos para
aplicar à filosofia platônica. Eis cinco pontos principais.
1) Blau está inserido na oposição destes projetos
éticos, porém, a ética de cristandade está em crise. Daí, a
crise de identidade ética do gaúcho Blau. Por isso, ele sai em
busca de seu boi barroso, mesmo sem saber se era possível
encontráa-lo. Blau Nunes vai ao cerro do Jarau e recusa
qualquer recompensa, tanto da Teiniaguá como do sacristão.
Esta rejeição leva à destruição da furna, ou seja, o
encantamento desaparece.
Com a união de Teiniaguá e do sacristão, ocorre a
síntese dos dois projetos. Blau Nunes presencia essa união e
a formação de uma grande síntese: Teiniaguá e o sacristão
formam um único projeto. Surge uma nova gente. O
sacristão, agora, assume a personalidade do guasca
desempenado, o que faz com que a crise de identidade do
Blau seja resolvida.
141
Nota-se então que, assim como a filosofia platônica
converge para uma unidade, uma síntese de opostos, sem
exclusões, a lenda A Salamanca do Jarau ilustra esta
filosofia desta forma, através destes dois personagens. Há
uma unidade entre os dois projetos.
2)
A
segunda
aplicação
é
o
processo
da
intersubjetividade: Elemento de grande importância nos dois
textos. Os dois personagens estão comprometidos com a
mudança. O personagem platônico, ao passar pelo processo
do conhecimento, sente a necessidade de libertar os outros
que estão na caverna, resgatando da ignorância os que ainda
estão presos aà ela. O personagem simoniano, ao buscar sua
própria identidade, representa não só a sua identidade
pessoal denominada Blau Nunes, mas sim, o gaúcho Blau
Nunes, representando todo o conjunto ético-cultural do
gaúcho que está em crise. É aí que se encontra o resgate da
cultura, através de
uma consciência intersubjetiva, sem
excluir nada, mas conduzindo tudo para a unidade.
É esta consciência intersubjetiva, provocada pelo
autoconhecimento dos personagens, que é a responsável pela
mudança e reconstrução da sociedade. O personagem de
Platão expressa a busca pela verdade, mas uma verdade para
todos, representada no retorno à caverna . O personagem
142
Blau Nunes manifesta a busca de sua identidade, fundada
numa ética do presente que se encontra em crise. Ambos se
julgam co-responsáveis pela sociedade em que vivem.
3) A terceira aplicação é elaborada, a partir
da
conduta que os personagens assumem para chegar ao
conhecimento. Os dois personagens precisam encontrar um
caminho que os leve ao conhecimento. O
personagem
platônico percorre um caminho, passo a passo, iniciando
pelas sombras, depois pelos reflexos nas águas, pelos astros
e enfim, pelo Sol. O personagem simoniano sobe o cerro do
Jarau e realiza as sete provas, dialoga com a Teiniaguá.
Ganha a moeda, retorna, para devolvêe-la. Ao fazer isso,
acontece a destruição da furna e o encantamento acaba.
Então acontece a união entre o sacristão e a Teiniaguá e
surge a síntese: o sacristão é um gaúcho guasca. Nasce aqui
uma ―nova gente‖, que também é uma nova identidade
cultural. Fica em aberto qual é esta identidade.
4) O contexto histórico dos dois textos é um
momento de crise. Platão, em sua juventude, testemunhou
as guerras de Peloponeso, a derrocada de Atenas e, no início
do século IV a.C,
o enfraquecimento de Esparta e a
decadência do conjunto das cidades gregas. A totalidade de
suas obras vem espelhar esta situação. Na República, Platão
143
descreve o projeto de uma cidade modelo, ou seja, como se
deve administrar uma cidade que leve em conta todos os
cidadãos.
J. S. Lopes Neto escreve sobre a mudança que
acontece no pampa no princípio do séc. XX. Com a chegada
da industrialização e da mecanização, é abandonado o
trabalho nas charqueadas. Com a crise do charque e das
fazendas, o gaúcho perde a sua identidade.
Assim como Platão procura conduzir as cidades gregas ao
conhecimento, J.S. Lopes Neto procura ilustrar o resgate da
identidade gaúcha também numa época de crise econômica.
5) O acesso ao verdadeiro conhecimento e da
identidade do gaúcho não se realiza de forma fácil, pois é
necessário superar a crise. Os dois processos são longos, e
são representados pelos caminhos a subir. Platão diz,
claramente, que é preciso subir o caminho íngreme que
conduz ao conhecimento. J.S. Lopes Neto ilustra o caminho
da subida para o cerro ou a subida para a furna encantada.
Assim, com caminhos a subir e provas a realizar,
sucede simultaneamente o conhecimento e a identidade.
Platão, pela dialética, chega ao Bem. J. S. Lopes Neto pelo
auto-conhecimento, chega à nova gente.
144
Em ambos os
casos,
realiza-se
uma
síntese.
Estas
provocam
as
transformações tanto no indivíduo como na sociedade.
Para concluir, pode-se dizer que esta busca pelo
conhecimento não é algo solitário, mas tem um caráter
intersubjetivo. Esses elementos que foram destacados,
servem para ilustrar que o verdadeiro conhecimento é aquele
que conduz o homem à transformação da sociedade onde
está. A busca pelo conhecimento é a formação de uma
consciência intersubjetiva ético-cognitiva que se expressa
na afirmação da identidade ético-cultural regional, aberta ao
universal.
145
Referências Bibliográficas:
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:
Regionalismo & Literatura. Porto Alegre : Mercado Aberto,
1982.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos e Lendas
do Sul.Edição crítica com introduções, variantes, notas,
glossário por Aurélio Buarque de Hollanda e nota de
Augusto Meyer. Posfácio de Carlos Reverbel. Col.
Província, v. 1, 5ª ed., Porto Alegre : Ed. Globo, 1957.
________________________. Contos gauchescos. Lendas
do Sul.Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia
Chiappini. Rio de Janeiro : Presença, 1988.
PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha
Pereira). 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian,
1949.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão.
São Paulo : Loyola, 1997.
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da
Filosofia.(Vol. 1) São Paulo : Paulinas, 1990.
SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e Dialética em Platão.
Porto Alegre : EDIPUCRS, 1995.
146
5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA
DO JARAU
Péterson Figueiredo 73
INTRODUÇÃO
O presente trabalho de hermenêutica da situação
econômica na lenda ―Salamanca do Jarau‖ do autor João
Simões Lopes Neto tem, como objetivo primeiro,
diagnosticar e tomar um panorama do contexto geográfico e
econômico da época vivida pelo autor, quando escreve a
lenda. Também foram observadas as as conseqüências
econômicas que levaram, o autor, escrever o induziram a
escrevê-laesta lenda. AE será feita a análise do papel do
personagem Blau Nunes, personagem este criado por Simões
Lopes Neto. No livro Simões Lopes Neto: Regionalismo e
literatura de Flávio Loureiro Chaves, cita que objetivo
verdadeiro de Simões na lenda [...] é a invenção de uma
personagem e a observação da situação-limite em que se
encontra.
Num segundo momento, o trabalho tem o objetivo de
verificar dentro da lenda a visão econômica e toda a
73
Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa
Simoniano. ISF/UCPEL.
147
trajetória do personagem Blau. Por fim destacar as principais
idéias e a contribuição que causou para a literatura e a
própria filosofia atual.
1 - Situação econômica na época de João Simões
Lopes Neto
Na lenda Salamanca do Jarau, Simões resalta em
várias passagens à situação econômica. Neste contexto
econômico é constatado com o personagem Blau o
descontentamento com a pobreza e as conseqüências
enfrentadas por ele. A confirmação desta pobreza está em
destaque:
―No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso
das suas cousas. No atraso das suas cousas, desde o dia em que
topou-cara a cara! Com o caipora num campestre da serra
grande, pra lá, muito longe, no Botucarai...‖(Lopes Neto, 1988,
141, 15-20).
A análise agora é da situação econômica da época de
Simões Lopes Neto, meados de 1913, ano em que o autor
escreve a lenda.
O período analisado é chamado de República Velha
(1890-1930). Neste período, o Rio Grande do Sul tem uma
economia voltada de forma específica para a agropecuária.
Neste período aA economia é de transformação e mudança,
148
passando de uma economia escravocrata para uma economia
assalariada, . Assim surgindo, assim,e na sua base da
economia o sistema capitalista. A entrada deste sistema em
nosso estado o exemplo do estado de São Paulo, com o café
trouxe e o acúumulo de capital, fenômeno até o momento
desconhecido. Isso faz com que reproduza efeitos, atingindo
vários âmbitos, permitindo um crescimento necessário na
estrutura do RS,estado. Estrutura esta tais como estradas de
ferros, equipamentos nos portos, desenvolvimento bancário,
etc. Na instalação do período da República Velha, a base da
economia era voltada para o interior dentro do estado. Com a
fabricação do charque e a criação de gado, atividades
primordiais para a região o Estado, começou a fluir e
consolidar uma economia exportadora regional.
Em 1913, a estrutura utilizada no estado era
deficiente e encontrava-se em desigualdade com o modo que
era aplicado no Prata. Isso faz com que aA má aplicação de
tecnologia, e usando métodos já ultrapassados faz , que o
charque perca qualidade e o preço alto, não chegando a ser
lançado no mercado interno brasileiro. Outro fator negativo
era a matéria-prima e altas taxas que o governo cobrava
sobre a importação do sal, principal item para a fabricação
149
do charque. Começava então uma crise na economia do
estado,o e se alastrando-se por vários anos.
No panorama geral da situação econômica da época,
decadente e de crises atingindo o pampa, fez quetudo levou
Simões a reproduzir,iu-se através do escrito da lenda, um
pouco desta situação vigente.
Em debate no grupo de pesquisa, ficou salientado que
Simões não atingiu nunca sucesso como escritor e
empresário. SAssim Simões sempre foi um fracassado e, nos
últimos anos de suas vida,s passou na pobreza, recebendo
favores e ajuda financeira de amigos. Suas obras somente
ganharam destaquecadas e valor literário, após sua morte.
2 - A situação econômica na parte interna da lenda
Salamanca do Jarau
Já nas primeiras linhas da lenda observamos que o
narrador cita que o personagem que percorrera toda a lenda
era em primeiro lugar pobre:
[...] ―um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte,
mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o fação afiado... e
nesse dia andava campeando um boi barroso‖ (Lopes Neto, 140,
2-5).
150
O narrador coloca toda a situação do personagem
Blau e a identificação do espaço geográfico. EBlau era um
gaúcho que tinha em sua personalidade uma valentiavalente,
um espírito dominanteador e trabalhador. Sob este olhar da
personalidade de Blau nada corria bem em sua vida
econômica e sua situação de pobreza era alargada com o
tempo. Na característica do personagem remonta toda uma
situação do gaúcho da época de Simões Lopes Neto.
NestCom a narrativa, Blau sai ao encontro de uma
solução para o problema vivido em sua vidaem que vive:, a
pobreza. Durante Ao caminho, faz uma reflexão a respeito
dada pobreza e encontra-se com um vulto que era o santão da
salamanca do Jarau. Neste encontro, Blau é indagado sobre o
conhecimento da furna. O diálogo entre ele o santão dáa a
intenção de uma saída para os seus problemas enfrentados
por Blau.
No segundo capítulo da lenda, é citado o discurso de
Blau, que relembrando-se de que sua avó contava a história
da furna que se localizava no Cerro do Jarau. Neste capítulo,
ocupa-se em total tempo com a narração da história do Cerro
do Jarau, que avó contava para seu neto Blau. . A sua avó
contava que lá na furna se encontrava-se uma velha fada que
possuidora deía um condão mágico que foraera trazido para
151
ada América. Blau, ao lembrar-se da história, temsente a
iluminação e a confiança deinfluência também de ali na
furna conseguir resolver o problema de sua pobreza. EPois
entrando na furna, conseguiria o ―condão mágico‖ e, assim,
resolveria sua situação de pobrezadificuldade.
No terceiro capítulo, encontra lê-se a narração do
vulto de face branca e tristonha, . Vulto este que se intitula
como sacristão da Igreja de São Tomé, nas antigas reduções
jesuíticas do rio Uruguai. A história inicia com o
aparecimento da Teiniaguá que sai de uma lagoa e é
aprisionada pelo sacristão. O relacionamento do sacristão e
padres faz que se condenea o sacristão, ao descobrir que ele
tinha prendido a Teiniaguá, que era mulher. E, condenado à
morte, acontece um milagre aos olhos de todos: Teiniaguá
liberta o sacristão num toque mágico e os padres e o povo
que assistia, nada puderam fazer. Ao ser libertado, ele
refugia-se na caverna do cerro do Jarau. ENeste local passa a
ser um lugar de riquezas de todas as outras salamancas. O
vulto neste contexto todo sente-se arrependido de suas ações
e, tendo toda a riqueza, é condenado a não viver livre e
desfrutá-lasar no meio dos homens. Pelo fato de oo
personagem Blau ter cumprimentado o vulto de face branca
e tristonha (sacristão) de uma forma cristã e como filho de
152
Deus e não como um condenado e maldito, este o. O vulto
convida, em recompensa aem ingressar na salamanca do
Jarau. Os capítulos IV, V e VI continuam a relatar a história
do sacristão com o Blau.
Agora centro o trabalho nos capítulos seguintes.
Quem nestes capítulos retoma a narração ée o narrador
Simões. Ele contanarra a entrada do personagem Blau, e a
passagem pelas setes provas e o encontro com a Teiniaguá
que, em recompensa, oferece sete poderes em pagamento
pelas provas. Num poder que ela oferece e a riqueza. NMas
no fundo, Blau queria a Teiniaguá e, não conseguindo,
rejeita as suas ofertas dela e retorna ao exterior da furna.
Neste contexto, o sacristão (santão) entrega uma onça de
ouro.
―Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente,
que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão
mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre
de uma em uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em
lembrança de mim‖ (Lopes Neto, 1988, 158).
Aqui nesta citação fica claro que Blau era pobre e que
a oportunidade foi oferecida para ele. Primeiro pela
Teiniaguá pela passagem das provas. Esta primeira ele
rejeita; segundo, pelo sacristão, a onça de ouro. Neste
segundo caso, aceitou a oferta.
153
Inicia o momento de usar a onça e começa a gastar e
comprar desenfreado, e não pagando de onça em onça, uma
de cada vez, como tinha recebido a recomendação. Sua
riqueza aumentou e ele tomou de poder e sentiu que estava
ficando rico e não mais sentindo aquele Blau pobre e
humilde. Mas logo chegou o problema: que ao pagar as suas
coisas com a onça, os que recebiam guardavam e num
instante sumia.
Isso constata a ambição de Blau para a riqueza, e ao
cair em si e ver que aquilo era apenas ilusão e algo mágico,
busca retornar ao cerro do Jarau e devolver a onça de ouro ao
sacristão. Ao chegar na entrada do cerro, saúda o sacristão e
joga a onça aos seus pés. N que no mesmo instante ée
quebrado todo o encantamento da Teiniaguá e Blau aceita
sua condição de pobre.
―Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito
uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de
rédea e d´espacito foi baixando a encosta do cerro, com o
coração aliviado e retinindo como si dentro dele cantasse o
passarinho verde... E agora, estava certo de que era pobre como
dantes, porem que comeria em paz o seu churrasco... e em paz o
seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...‖(Lopes
Neto, 1988, 163, 32-38).
Assim fica confirmado e que o personagem Blau
Nunes toma toda a consciência de sua pobreza. N e no início
da lenda ele a declara; sua pobreza no final da mesma dáa a
154
clarezaexplicação necessária para confirmar que Blau
continua pobre e abdica de toda a fortuna oferecida. Riqueza
esta fruto da mágica e da ilusão de ser herói um dia.
―Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou
duzentos anos, que tanto se contam desde o tempo das Sete
Missões, em que estas cousas principiaram‖ (Lopes Neto, 1988,
164, 1-4).
CONCLUSÃO
Ao término do trabalho chego a conclusão de que a
situação econômica da época, em 1913, sua vida e a criação
do personagem Blau Nunes levaram Simões Lopes Neto a
transmitir e colocar na lenda Salamanca do Jarau sua
história pessoal e a sua circunstância político-social.
A análise da economia no início do séc XIX,
contribuiu para localizar o sentido do autor em criar o
personagem Blau, citando como um gaúcho pobre à procura
de algo melhor para a vida e, por fim, a tomada de
consciência de ser um gaúcho pobre, mas feliz com sua
liberdade. Assim retorna no final da lenda a aceitação de sua
situação de pobreza. O autor não prossegue descrevendo a
continuidade de Blau, e somente cita a situação dele como
pobre gaúcho.
155
Referências Bibliográficas:
CHAVES, Flavio Loureiro. Simões Lopes Neto:
Regionalismo e Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982.
DACANAL, Jose Hildebrando. RS: Economia e Política. 2ª.
ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do
Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini.
Rio de Janeiro: Presença, 1988.
156
6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM
SIMBÓLICA
Agemir Bavaresco 74
A lenda A Salamanca do Jarau (Lopes Neto, 1988,
140; daqui em diante nós citaremos este texto com a sigla
―S‖, a página e a linha correspondente da edição crítica
estabelecida por Ligia Chiappini) é composta de 10 cenas.
No entender de Flávio L. Chaves, tratam-se de 10 capítulos
que podem ser organizados em 4 partes. O critério para
estruturá-las é o discurso: 1ª parte - O discurso do narrador
(cap. I); 2ª parte - O discurso de Blau (cap. II); 3ª parte - O
discurso do guardião (caps. III, IV, V e VI); 4ª parte - A
retomada do discurso do narrador (caps. VII, VIII, IX e X).
Vê-se que a 1ª e a 4ª partes pertencem a Simões Lopes Neto,
enquanto que a 2ª e 3ª conta-se a lenda da Teiniaguá e a
origem do cerro. A personagem central é Blau e sua aventura
pelo pampa gaúcho. Simões Lopes Neto apropria-se da
lenda, apresentando-a em conto na forma de uma narração
(Chaves, 1982, 77-79).
74
Professor da UCPel. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano
ISF/UCPEL.
157
Há três narradores: um é nomeado na terceira pessoa,
o qual apresenta e organiza a narrativa; o segundo é Blau
Nunes que vive uma crise de identidade e está em busca do
seu destino, daí estar campeando o boi barroso; e o último é o
sacristão. Na verdade os três narradores apresentam três
versões narrativas que se complementam como numa
conversa. Blau conta a história que ouviu de sua ―avó
charrua‖, enquanto que o sacristão e a Teiniaguá são
personagens da lenda primitiva. É importante notar que
Teiniaguá, a mulher-lagartixa, não tem voz diretamente, ela
só fala através do sacristão. O texto tem dois tempos: um
primordial, o do começo, o da instalação da primeira
narrativa; e outro histórico corresponde ao de Blau Nunes
conversando com o santão (cf. Lopes Neto, 1999, 32).
Tomar-se-á a lenda, capítulo por capítulo, com a
finalidade de fazer uma reconstrução do itinerário da
aprendizagem feita pelos personagens através dos símbolos
no próprio desenrolar da narração. O objetivo é elaborar um
roteiro didático de leitura que aponte, ao mesmo tempo, os
principais temas, problemas e vertentes interpretativas, as
quais serão retomadas e desenvolvidas ao longo da pesquisa.
Segue-se a divisão em quatro partes adotada por F. Chaves,
158
porém, segundo o critério de quatro símbolos principais que
estruturam a lenda.
Constata-se um jogo de oposição simbólico em
vários níveis do texto simoniano: entre os símbolos cristãos
(a Cruz e o rosário) e o islamismo (a meia-lua dos mouros);
entre os símbolos telúricos (terra, fogo, água e ar) que se
rebelam e se aliam com a Teiniaguá, para salvar o sacristão
da condenação da morte, e o milagre do Santíssimo e a Cruz
que acalmam e dominam as forças da natureza. E; entre o
povo beato que acompanha o cortejo, sustenta o coro e a
cerimônia de condenação e as vozes dos índios, do povo
autóctone esbravejando para que libertassem o sacristão; a
oposição na interpretação da Teiniaguá: do ponto de vista da
cristandade colonial, ela ―é bicho imundo, mulher moura,
falsa, sedutora e feiticeira‖, enquanto que a versão popular
vê nela uma simpática lagartixa, luminosa e hesitante, uma
linda mulher, terna e apaixonada, nem agressiva e nem
diabólica. Enfim, a oposição em nível da estrutura narrativa
entre Deus e o Diabo. Uma leitura apressada pode cair na
tentação de ir no desfecho e afirmar a vitória de Deus sobre o
Diabo. Porém, Isso, porém, ignoraria o jogo das oposições
simbólicas, com a repetição das palavras, frases, expressões,
da fala poética que supera uma leitura retilínea. Ao contrário,
159
a leitura simbólica é dialética, pois considera a relação entre
magia e religião, mito e história, Diabo e Deus, poesia e
prosa, segundo a ambigüidade dos símbolos (cf. Chiappini,
1988, 224-227).
6.1 - O símbolo do boi barroso: festa, trabalho e utopia
Cap. I - ―Campeando um boi barroso‖ ou aprender a
ir ―no rastro‖
―E no tranquito andava, olhando para o
fundo das sangas,
para o alto das coxilhas, ao comprido
das canhadas‖(S, 140,6).
O verbo campear (6 vezes: S, 140, 1-11; 141,34)
marca o início do capítulo. Campear é, num primeiro
sentido, procurar o gado. Trata-se da busca de um ―boi
encantado, que aparecia, porém nunca era encontrado por
muito procurado que fosse‖ (Lopes Neto, 1988, nota 4, 165).
Num segundo sentido, é algo metafísico ou uma entidade
ideal que inspira o caminhar de Blau: ele ia ―campeando e
cantando‖. O símbolo do boi barroso compreende-se pelo
ato de campear que significa procurar algo de imediato e
concreto, e também buscar algo que não pode ser apanhado
ou apreendido definitivamente, permanecendo, portanto,
160
uma utopia. Considerando este duplo sentido, neste capítulo
campear o boi barroso significa o seguinte:
a) Aprendendo o trabalho enquanto festa: No início
da lenda cita-se a poesia do boi barroso. Segundo Simões
Lopes, trata-se ―duma antiga dança camponesa, cuja música
era ornada de versos que eram cantados durante o folguedo‖
(id. nota 4). Esta poesia ese encontra-se originalmente no
Cancioneiro Guasca, porém, na lenda sofreu leves
modificações, por exemplo, no primeiro verso acrescenta-se
a palavra: bonito. Embora o boi barroso sendo ―logo
reconhecido‖, ele sempre acaba escapando e nunca é preso,
ou seja, ele não se deixa apresarropriar. O gaúcho, ao
campear o boi barroso, une trabalho, lazer, poesia e música
numa atmosfera festiva.
b)
Aprendendo
a
buscar
as
causas
do
empobrecimento: Blau constata que a época do trabalho
como festa terminou, pois se dá-se conta de ―sua pobreza, no
atraso das suas cousas‖. A organização produtiva da fazenda
e a industrialização do charque, na virada do século XIX e no
início do século XX, entra em declínio. AsComo
conseqüências
distoresulta
são
o
empobrecimento
econômico e a perda das habilidades tradicionais do peão.
Blau reconhece no ―agora‖ de sua situação presente, o que
161
ele era antes e o que ele não é mais: ele perdeu todas as
habilidades (valente, domador e plantador) e busca uma
causa de seu empobrecimento: teria sido o encontro com o
Caipora (S, 141,18)? O azar (S,141,21)? Por que todas ―as
cousas corriam-lhe mal‖? O certo é que ―um gaúcho pobre,
Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando sem topar coo
boi barroso‖ (S, 141, 33-35), pois não há mais trabalho e
nem festa.
c) Aprender a mudar de rastro: Blau enquanto estava
campeando o boi barroso, encontroua-se com o santão - ―um
vulto de face tristonha‖ - que lhe diz que ―o boi barroso anda
cumprindo o seu fadário‖ (S, 142,15). Então, Blau ouve a
orientação do santão e dirige-se para a entrada da salamanca
do cerro do Jarau. Aqui, ocorre uma mudança do rastro
físico, para o rastro da própria memória, ou seja, o que sua
avó charrua, lhe contara a respeito da lenda da salamanca.
Blau aprende uma tríplice mudança: do rastro do boi barroso
utópico, para o lugar geográfico da salamanca, e enfim, para
a memória histórica pessoal-familiar.
O ato de campear segue o movimento de passagem
do exterior (o boi barroso, o cerro) para o interior (a memória
oral da lenda). Blau aprende a conhecer que ―um homem é
para outro homem‖ (S, 142, 10), isto é, a antropologia
162
simoniana começa com o reconhecimento do outro: Blau, o
gaúcho descendente de índia charrua, encontra o santão.
Neste primeiro capítulo, aprender é ―ir no rastro‖ da
utopia (o boi encantado), da cultura popular (a dança, a
música, a poesia, a festa), das causas dos problemas (o
empobrecimento) e do reconhecimento do outro.
6.2 - O símbolo da Teiniaguá: religiões, culturas e etnias
Cap. II - O outro (espanhóis e mouros), ―a gente
pampeana‖ e a Teiniaguá
―...porque o sonho não tem lindeiros
nem tapumes‖ (S, 144,20)
O discurso de Blau introduz a origem da lenda na
cidade de Salamanca na Espanha e nomeia duas etnias: ―os
tais mouros e mais outros espanhóis‖.
a) A guerra de religiões ou de duas culturas - oriente
X ocidente: Há uma luta, na Espanha, entre o catolicismo e o
islamismo. Estes últimos são vencidos pelos católicos, daí
serem obrigados a ―ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita‖.
Os mouros, ―fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram
dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro,
prata, pedras finas‖ (S, 143,2).
163
b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como
era essa ―gente nativa‖? ―Era gente sem cobiça de riquezas,
que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã
despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre
abertas e fazedoras‖ (S, 143,19-22). A gente pampeana da
campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus
que cobiçam riquezas.
Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã,
―do tupi-guarani: diabo Vermelho‖ (S, nota 5, 165) e Tupã:
para os tupis é o trovão, que os missionários jesuítas
designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo,
enquanto o segundo é o doador generoso de bens.
c) A metamorfose da fada moura: Teiniaguá surge do
sopro de Anhangá-pitã que, através do condão mágico lhe
tira a cabeça e implanta em seu lugar uma pedra
transparente, ―vermelha como brasa‖. Então, Anhangá-pitã
carrega teinianguá ―sobre a correnteza do Uruguai, até as
suas nascentes‖. Porém, ele ―só não tomou tenência que a
Teiniaguá era mulher‖, porque se trata de um personagem
híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da
lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única
identidade, pois ela carrega em si o ser híbrido
mulher-lagartixa; a pluralidade étnica: moura e índia; a
164
diferença etária velha e jovem. Ela compreende o máximo de
contradições
e
a
capacidade
de
metamorfosear-se,
permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de
reconhecer sua identidade.
Neste
capítulo,
apresentam-se
algumas
etnias
fundadoras da identidade do gaúcho: os europeus e os índios.
Além desstes, somam-se, sabemos pela história, os
portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resultado da
miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho
não se forma pela exclusão. A ―gente pampeana‖ forma-se
pela inclusão de um conjunto étnico.
6.3 - O símbolo da cruz: cristandade colonial 75,
165
rebeldia e soberania do amor
O
projeto
construído segundo
da
cristandade
colonial
é
J. Zanotelli da seguinte maneira:
Primeiramente, o estado de cristandade é o resultado da
fusão do Império Romano indo-europeu com o cristianismo
semita (a partir de 313, Constantino e o Edito de Milão), que
se torna a matriz etiológica; depois, esta matriz causal de
nossa cultura é exportada e imposta para a América Latina,
África e Ásia sob a forma colonialista, ou seja, destruindo as
outras culturas. ―A Igreja cristã adota a estrutura, as
instituições, a burocracia e, em parte, a ideologia do Império
Romano como suas. Disto resultou o Estado de Cristandade‖
(Zanotelli, 1998, 85). Daí, que ―é imprescindível estudar as
culturas ameríndias, pré-semitas, para não perdermos a
memória e a identidade americana, por outro lado não se
entendem as culturas, e a identidade americana, sem
localizar
a
América
Latina
no
quadro
geral
de
desdobramento do Estado de Cristandade muitas vezes
confundido com Cristianismo e com a Civilização
Ocidental‖ (id. p. 9).
Cap. III - ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém
166
viu‖
―Tudo o que volteia no ar tem seu dia
de aquietar-se no chão‖ (S, 144,36)
O discurso do guardião do cerro (o santão) começa
repetindo a frase que afirma a dificuldade de Anhangá-pitã
em reconhecer quem é Teiniaguá: ―Não tomou tenência que
a Teiniaguá era mulher‖. A mesma frase se repete-se três
vezes: nos capítulos II, III e X. Essa ambigüidade da
Teiniaguá vai marcar toda a narração, do começo ao fim, até
a última frase da lenda. Se Anhangá-pitã é incapaz de
reconhecê-la, o sacristão vive o desafio de construir uma
nova identidade na companhia dela. a) O drama do sacristão:
Este desempenha a sua função na Igreja de São Tomé. Ele é
atravessado pelo conflito entre a carne e o espírito, pois é
uma pessoa ―banhada na água benta‖ e vive povoado de
―pensamentos maus‖.
b) ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu‖: O
sacristão saiu às escondidas da igreja e viu o milagre da
lagoa borbulhando. Dela emergiu a Teiniaguá que foi
apanhada pelo sacristão e levada para o seu quarto dentro de
uma guampa. A conversa que se ouvia era: que ―quem
prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do
mundo‖ (S, 146,28). O sacristão sonha com castelos e
167
palácios, campos sem fim, ouro e prata: ―Tudo isto eu podia
ter, porque era o dono da teiniaguá‖. Enfim, ele volta a em si,
após o toque do sino da igreja e vai buscar comida para a
Teiniaguá. E e eis que, ao voltar para o quarto, a fim de
alimentar a lagartixa, uma surpresa: ela se transformara
numa mulher: ―Bonita, linda, bela, na minha frente estava
uma moça‖ (S, 147,35).
A frase: ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém
viu‖, repete-se três vezes neste capítulo, referindo-se ao
sacristão em três situações diferentes: ao sair da igreja, na
volta ao quarto, quando estava com Teiniaguá e ao toque do
sino para a oração da tarde. Podem-se enunciar três hipóteses
sobre o sentido deste aforisma: 1) O sacristão pretende fugir
do sistema de cristandade colonial: ―Eu saí da igreja [...],
sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando,
como levado‖ (S, 145,12s); 2) O sacristão infringe a
disciplina da igreja, por isso não quer ser notado: ―corri para
o meu quarto, na casa-grande dos santos padres, por detrás
da igreja‖ (S, 146,23); 3) Enfim, ele descumpre com a sua
função e não quer ser percebido: ―Pela primeira vez não fui
eu que toquei [o sino]; seria um dos padres, na minha falta‖
(S, 147,23).
168
Há neste aforisma duas partes: a primeira, ―todo o
povo sesteava‖, isto é, ninguém percebe o que está
acontecendo, todos estão dormindo. Enquanto, issto, o
sacristão sai, volta à igreja e introduz uma nova identidade
no interior do círculo eclesiástico: um personagem híbrido, a
mulher-lagartixa. A segunda, ―por isso ninguém viu‖, ou
seja, ninguém enxerga que há uma nova realidade no interior
da comunidade. Esta não vê a perda da identidade, ou
melhor, que está se operando uma mudança. O sacristão está
refazendo a sua identidade, no contato com Teiniaguá,
personagem coletivo, que representa a ―nova gente‖.
Cap. IV: A Teiniaguá dos tesouros e a princesa
moura: prazer e condenação
―Serás o meu par, para do sangue de nós ambos
nascer uma nova gente,
guapa e sábia, que nunca mais
será vencida‖(S,148,19)
Este é um capítulo central da lenda, pois descreve a
contradição entre o sistema de cristandade colonial, a
resistência face ao mesmo e o esboço do projeto de constituir
uma ―nova gente‖.
Teiniaguá revela ao sacristão sua dupla face: ―A
Teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também
princesa moura‖. Ela detém o conhecimento das riquezas e,
169
ao mesmo tempo, é uma ―mulher jovem, formosa‖ pronta
para formar um par com o sacristão.
A princesa lhe oferece riquezas de todo o tipo. Não as
riquezas que ela tem, mas que ela sabe; ele terá tudo,
inclusive seu corpo ―rijo e não tocado‖. A troca do ter por
saber desmaterializa os tesouros e lhes dá aquela dimensão
de símbolo da essência divina, e do conhecimento que se
costuma associar aos tesouros ocultos, os quais só a busca
perigosa permite atingir (Chiappini, 1988, 203).
a) A cruz e a meia-lua, promessa e condição: ―Serás o
meu par, si a cruz do teu rosário me não esconjurar‖ (S,
148,17), afirma, duas vezes, Teiniaguá. O problema é que a
doutrina católica, proibia, na época, o casamento com
muçulmanos e quem o fizesse, sofreria penas da Igreja. Os
muçulmanos eram considerados pagãos: ―Sobre a cabeça da
moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis‖ (S,
148,23). Essa condição ―si a cruz do teu rosário‖ será o
grande obstáculo para que a promessa se realize.
b) O sonho de uma nova cultura expressa-se no
desejo de constituir um par do qual nascerá ―uma nova gente,
guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá
todas as riquezas‖ (S, 148,19). Teiniaguá reconhece no
170
sacristão alguém que não a buscou com ―olhos cobiçosos‖ e
nem a procurou com ganância. Por isso, ela foi ao seu
encontro. Se o sacristão abandona o duplo interesse colonial:
riqueza e sedução, Teiniaguá, de seu lado, declara-se como
sendo ―a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do
mundo‖ (S,148,1). A rosa é
o símbolo da perfeição, mas também do amor, das
riquezas imateriais, das forças ocultas da alma, da verdade
que é preciso descobrir depois de muito esforço, porque
soterrada nas grutas profundas do eu. Essa conjugação da
rosa aos tesouros reforça a imaterialidade dos mesmos. A
rosa está ligada às águas primordiais; os tesouros à terra mãe
(Chiappini, 1988, 211).
c) Transgressão, profanação e o amor da moura: O
sacristão tem consciência de que se vai se distanciando das
exigências postas pela cristandade: ―E a minha alma de
cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço,
como o aroma sai da flor que vai apodrecendo‖ (S, 148,35).
De um lado, o rito matrimonial católico impede que o
sacristão case com a moura; de outro, a moral católica, no
sexto mandamento diz: ―Não pecar contra a castidade‖, o
que o proíbe de ter relações com ela. Diante desta dupla
171
transgressão religiosa, o sacristão sentia remorso:
―E
crivado de pecados mortais, doía quando o padre lançava a
bênção sobre a gente ajoelhada‖ (S, 148,40). Mesmo assim,
ele afirma que ―cada noite era meu ninho o regaço da
moura‖.
Além destas transgressões, o sacristão comete uma
profanação do cálice sagrado. ―Uma noite ela quis misturar o
mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício‖. Então
o sacristão busca ―no altar o copo de ouro [o cálice]
consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores‖.
Assim, os dois usaram o cálice ―de boca para boca, por
lábios incendiados o passamos... e embebedados caímos,
abraçados‖ (S, 149,1-5).
A propósito o Cân. 1171 afirma: ―As coisas sagradas,
que foram destinadas pela dedicação ou bênção ao culto
divino, sejam tratadas com reverência, e não se empreguem
para uso profano ou não próprio a elas‖. Por isso a
profanação implica punição, conforme recomenda o Cân.
1376: ―Quem profana coisa sagrada, móvel ou imóvel, seja
punido com justa pena‖ (Código Direito Canônico, 2001).
e) Condenação, tortura e resistência: O sacristão é
flagrado ―pelos santos padres‖ e condenado por razões de
direito (profanação), de doutrina moral (6º mandamento) e
172
disciplina (não cumpre com suas funções),
vigente no
sistema de cristandade colonial, que tinha na religião
inquisitorial um meio privilegiado de manutenção do
controle sobre ―a nova gente‖. ―Afrontei o arrocho da
tortura‖, ―fui sentenciado a morrer‖, ―o povo clamando a
morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖.
Mesmo , assim, o sacristão resiste e não confessa ―quem era
ela e que era linda‖ e ―por senha da vontade a boca não
falou‖.
f) Teiniaguá é a causa da condenação: A
discriminação do projeto de cristandade colonial enquadra-a
dentro de diversos estereótipos: o fato de ser mulher moura
(―onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas
uma estrela‖- S, 149, 10), feiticeira ou ―bruxa‖ (S, 148,31).
Estas qualificações eram típicas da Inquisição para
argumentar em favor de um processo de condenação, isto é,
a aproximação com alguém que praticasse feitiçaria.
Embora, existam as várias transgressões cometidas pelo
sacristão, a causa fundamental, porém, ainda é devida aà
aproximação com Teiniaguá: ―Condenado fui por ter dado
passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher
moura, falsa, sedutora e feiticeira‖ (S, 149, 25s). A mesma
frase é repetida no capítulo seguinte, porém, nomeando a
173
causa moral da condenação: ―por ter tido amores com
mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira..‖ (S, 151,3). Esta
versão, permite que se identifique Teiniaguá, como sendo a
origem do mal (a figura de Eva). Porém, como se verá existe
uma segunda interpretação que afirma o papel ―salvador‖ da
mesma (a figura de Maria).
Este capítulo se conclui-se com a contradição entre
dois desejos presentes no sacristão, que são na verdade os
dois interesses principais do projeto colonial: a riqueza e a
sedução. O sacristão vive ―dois amargos desesperos: si das
riquezas, que eu queria só pra mim, si do seu amor, que eu
não queria que fosse sinão meu, inteiro e todo‖ (S, 149, 21s).
Face a esse dilema a qual projeto ele irá aderir?
Cap. V: Saudade, agonia e adeus: uma outra
antropologia
―...chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá
encantada, dentro do meu sofrer
floreteou uma réstia de saudade do seu
cativo e soberano amor‖(S,149,35)
Tudo está pronto para o desfecho final: o
garroteamento do sacristão. O cenário é descrito de uma
forma dramática. Ele está amarrado diante do carrasco e está
só com teiniaguá no pensamento, presente na ―saudade do
amor‖.
174
a) Saudade: Esta palavra é repetida, neste capítulo,
quatro vezes com sentido diferente. Um termo, ou quase um
conceito, que implica memória do passado e esperança para
o futuro. A saudade não é fixação patológica, ou melancolia,
mas paixão de utopia. Estas são as passagens:
- ―Saudade do seu cativo e soberano amor‖ (S, 149,37):
O sacristão resiste preso ―como uma raiz que não quer
morrer‖, porque é a experiência do amor de Teiniaguá lhe dá
poder (―soberano amor‖) para resistir ao momento da agonia
mortal.
- ―Saudade parece que saiu para fora‖ (S, 150,1): Não se
trata apenas do passado, mas a saudade é futuro, pois
―ponteou para algum rumo‖.
- ―Ao encontro doutra saudade‖ (S, 150,3), ou seja, ao
encontro de Teiniaguá que também é constituída pela
saudade. Eles estão juntos na reciprocidade da saudade.
- ―A lágrima do adeus que a saudade destilara‖ (S, 151, 4):
O gotejar lento da lágrima supera, profundamente, a dor no
amor. Como a destilação processa uma substância
elevando-a para um outro nível de realidade, assim, a
saudade destila este momento de agonia mortal, superando-a
através da saudade amorosa.
175
b) ―A lágrima do adeus‖: Forma-se ao redor do
sacristão todo o cortejo para a execução da pena, na presença
de autoridades religiosas (os santos padres), civis (alcaide),
militares (soldados) e o povo (chinas, piás, índios velhos). A
cerimônia religiosa segue o rito da bênção, o sino dobra a
finados, enquanto se
encomenda a alma. Em meio à
cerimônia, o sacristão, derrama a lágrima do adeus por
Teiniaguá (S,149,36), que a ―saudade destilara‖.
c) A solidão do sacristão e o amor de Teiniaguá ou o
sagrado e o profano: ―Fiquei sozinho, abandonado ouvindo
[...] com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso de
teiniaguá‖ (S, 151, 30). Durante toda a cerimônia de
―encomendação da alma‖, o sacristão está fisicamente só,
porém, está sempre acompanhado de Teiniaguá (S, 151,32s).
Há um vínculo invisível entre ambos: ―por essa força que
nos ligava sem ser vista‖. Essa força amorosa é descrita
plasticamente na união do sensível com o pensamento,
culminando numa síntese antropológica prazerosa entre o
humano e o divino:
- O ouvido: ―ouvir as ladainhas, mas com os ouvidos do
pensamento ouvir o chamado carinhoso de teiniaguá‖.
176
- A visão: ―os olhos viam a consolação da graça de Maria
puríssima; mas, os olhos do pensamento viam o riso mimoso
da teiniaguá‖.
- O olfato: ―o nariz tomava o faro do incenso perfumando
as santidades; mas o faro do pensamento sorvia a essência
das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava‖.
Dá-se a passagem unitiva entre o sacristão e
Teiniaguá, sem mais fazer referência ao religioso, denotando
que há uma afirmação da identidade humana.
- O paladar: ―a língua está seca de agonia, mas a língua do
pensamento saboreava os beijos de teiniaguá‖.
- O tato: ―o tato das minhas mãos tocava manilhas de
ferro, mas o tato do pensamento roçava pelo corpo da
encantada" (S,151, 30-44).
Aqui, ocorre a superação da religião inquisitorial
espanhola legitimadora do projeto colonial. A religião
católica ainda sob a influência da lógica da inquisiiçãotorial
é dualista (separa corpo e alma), discriminadora (a mulher é
―bicho imundo‖ e causa de pecado), e prega uma moral que
despreza o corpo, o prazer e a afetividade. No entanto, esse
capítulo aponta para outra antropologia, em que a categoria
da saudade amorosa valoriza o corpo de forma unitiva (os
177
cinco sentidos e o pensamento), representado na figura do
sacristão e de Teiniaguá:
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres,
esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa
moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada
da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor,
tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros
se não viram(S, 150,25-29).
d) O caos, a sanga e o caminho para o Cerro do Jarau:
Enquanto, ocorria a cerimônia de ―encomendação da alma‖
do sacristão, de repente a lagoa provocou um estrondo,
abriu-se a terra, começou a correr uma sanga que
desembocou no rio Uruguai. E do meio da água lamacenta da
sanga ―todos viram a Teiniaguá de cabeça de pedra
transparente‖. O próprio Simões Lopes Neto assim se refere
numa nota explicativa: ―Existe no arrabalde de S. Tomé a
famosa sanga, que o populacho de origem índia ainda hoje
aponta como prova do acontecimento e poder da teiniaguá
encantada‖ (S, 165, nota 9, 41-41). Houve um alvoroço, pois
um terremoto quase destruiu a Missão de São Tomé. Passado
este fenômeno, pairou um grande silêncio, um ―milagre se
fez: ―o Santíssimo perpassou a altura das cousas‖ e ―ventos,
178
fogo, urubus e estrondo se humilharam, fenecendo,
dominados‖ (S, 151,26). O vento neste momento, é ―o sopro
do Verbo, o sopro do Deus cristão, que tem o poder de
ordenar o caos primitivo, com a energia luminosa‖
(Chiappini, 1988, 212).
Então, o sacristão afirma que Teiniaguá o ―enfeitiçou
de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de
mulher, que vale mais que destino de homem‖. Este amor o
liberta-o de um duplo peso: o físico (―dores nos ossos e nas
carnes, sem peso de ferros no corpo) e o moral (―sem peso de
remorsos na alma‖). Assim, ―salvo pelaor teiniaguá‖ parte
―para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas
de todas as salamancas dos outros lugares‖ (S, 152,11).
Cap. VI - Palavra mágica ou imperativo ético: ―Alma
forte, coração sereno‖
―Mas, governa o pensamento e segura a língua:
o pensamento dos homens é que
os leva acima do mundo, e a sua língua
é que os amesquinha‖ (S, 153,40).
Com este capítulo se conclui-se a terceira parte da
lenda. O sacristão está no cerro do Jarau há duzentos anos.
Ele é como um ser imortal, pois não dorme, não tem fome e
sede, nem dor e nem riso. Conhece todas as riquezas que
179
estão dentro do mesmo, porém, está ―enfarado de ter tanto e
de não poder gozar nada entre os homens‖. Superou todas as
inclinações para o mal. Sua função é acompanhar os homens
que ―quiserem contratar a sorte‖ na salamanca do Jarau. (S,
152, 15-37). Eis que Blau se apresenta, e o sacristão lhe
expõe o imperativo para entrar no cerro e o que ele promete é
garantido pela Teiniaguá: ―Esses que toparam, tiveram o que
pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não
desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá!‖ (S, 153,
5).
a) O imperativo ético do sujeito moderno ocidental:
O aforisma ―alma forte, coração sereno‖ aparece cinco vezes
neste capítulo e mais quatro vezes no sétimo. Alguns
entendem esta frase como uma fórmula mágica que
―funcionaria quase como um ―abra-cadabra‖ (Chiappini,
1988,212). Propõe-se aqui, porém, uma outra interpretação.
Trata-se, neste capítulo, de um imperativo ético,
porque o santão se refere-se ao modo de ser e agir de todo
aquele que deseja entrar na caverna: ―quem isso tem, entra
na Salamanca‖ (S,153,25); ―Si entrares assim, si te portares
lá dentro assim, podes então querer e serás servido!‖
(S,153,37). O sentido deste aforisma é dado pelo próprio
sacristão: ―alma forte‖ é saber governar o pensamento, pois é
180
este que eleva a pessoa acima do mundo; ―coração sereno‖ é
segurar a língua, pois esta é que amesquinha o ser humano
(cf. S, 153,40). Então, a ―alma forte‖ é ter a capacidade do
domínio do pensamento para superar toda fraqueza; e o
―coração sereno‖ é a capacidade de dominar a vontade que
se expressa na linguagem. Enfim, trata-se da síntese
ocidental do agir ético: governo da razão e serenidade da
vontade. Mais ainda, expressa o sujeito transcendental
moderno kantiano, pois é através do pensamento, ou da
consciência que ele se põe acima do objeto.
b) Blau, o guasca diferente: O sacristão compara
Blau com todos os que foram até então ao cerro. Os últimos
―vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dos
ódios‖; enquanto, ―tu foste o único que veio sem pensar e o
único que me saudou como filho de Deus‖ (S, 153,10). O
sacristão revela que Blau foi o primeiro a saudá-lo como
cristão e que na terceira saudação o encantamento cessará,
isto é, ―a salamanca desaparecerá‖.
Na terceira parte da lenda, o sacristão aprende a sair
do sistema de cristandade colonial. Unindo-se a Teiniaguá
aos poucos vai transgredindo normas e experimenta um
outro valor: o da soberania do amor.
181
182
6.4 - O símbolo da caverna: provas e metamorfoses
da
gauchidade
Cap. VII - Provas, escolhas e negação: o nada e o
tudo
―Pois que em sete poderes te não fartas,
nada de te darei. Vai-te‖.
―Eu te queria a ti, porque
tu és tudo‖(S,158,10).
A quarta e última parte começa com o discurso do
narrador. Este capítulo é o mais longo de todos. Pode ser
divido em duas partes: as sete provas e as sete escolhas e
negações.
Quase todo o capítulo é dedicado, agora, a instruir
Blau para essa travessia dentro da gruta, à procura da
Teiniaguá, mas também dentro de si mesmo, à procura da
sua identidade, dos seus avessos, das forças que movem a
sua vida, e que estão nele e fora dele, possíveis e impossíveis
de serem vislumbradas por olhos humanos (Chiappini, 1988,
210).
1ª Parte: As sete provas- Lígia Chiappini compreende
o número sete como sendo o símbolo da perfeição e a
―expressão da ordem completa, de um ciclo‖ (1988, 215).
183
Blau Nunes resolve entrar na caverna e enfrenta as sete
provas, através de perigosos corredores. Elas tem o mesmo
roteiro: começam com a frase ―Blau Nunes foi andando‖; e
no momento de passar pelo obstáculo, no final da prova,
repete-se a frase: ―E ele meteu o peito e passou‖; uma vez
ultrapassado o obstáculo, da 1ª a 5ª provas, existem mãos
carinhosas e invisíveis que o acompanham e estimulam a
passar adiante; essas mãos são como ―espíritos benéficos a
auxiliá-lo no caminho‖ (Chiappini, 1988,217); também
repete-se na 1ª, 3ª e 5ª provas a frase já conhecida no capítulo
anterior: ―alma forte, coração sereno‖.
Blau defronta-se em cada prova com personagens
diferentes: 1ª prova- passa no meio de espadas empunhadas
por homens lutando: ―As armas simbolizam as forças do
espírito em luta contra forças inferiores‖ (Chiappini,
1988,215); 2ª prova- passa entre animais ferozes tais como
jaguares e pumas: ―São tradicionalmente guardiães‖ (id.
215); 3ª prova- passa entre as caveiras e esqueletos:
―Imagem da morte, mas também, vaso da vida e do
pensamento‖ (id. 216); 4ª prova- passa no meio do fogo,
água, vapor e o vento: ―Os quatro elementos amalgamados,
como forças terrestres e celestes que se fundem‖ (id. 216) ;
5ª prova- passa pela serpente (Boicininga, Mboitatá): ―É
184
ambivalente. É protetora das fontes de vida e símbolo da
imortalidade, dos bens superiores simbolizados pelos
tesouros ocultos. Mas também é o princípio do mal, do
inerente ao terreno‖ (id. 216); 6ª prova- passa no meio de
moças com ar malicioso e sedutor. Elas são as ninfas que
criam ―uma atmosfera erótica‖, porém, estão numa espécie
de ―paraíso natural‖ (id. 216); 7ª prova- passa no meio de
anões que provocam risos: Estes ―simbolizam também as
forças inconscientes, como todos os gnomos e duendes. Para
Jung são guardiães do inconsciente‖ (id., 217).
Após passar as sete provas, o sacristão conduz Blau
diante de Teiniaguá, disfarçada em uma velha que com o
condão mágico lhe diz: ―Por sete provas que passaste, sete
escolhas dar-te-ei‖ (S,157,17). Ela está detrás de um
cortinado de escamas de peixe-dourado. ―O peixe é um
animal freqüentemente ligado ao sagrado e as escamas
simbolizam proteção; a água e o mundo subterrâneo‖
(Chiappini, 1988, 217). A atmosfera é de fato revestida de
uma aura sagrada.
2ª Parte: Blau diante das sete escolhas- 1ª: ser jogador
de cartas para ganhar qualquer jogo (cartas, cavalos, osso,
rifa etc.); 2ª: ser cantor e tocador de viola para conquistar as
mulheres; 3ª: ser curandeiro, isto é, conhecer a arte de curar
185
com plantas ou provocar males usando simpatias e agir sobre
os outros através de magias; 4ª: ser lutador para não errar
golpe de tiro, lança ou faca contra o inimigo; 5ª: ser político
ou o poder de todos lhe obedecerem; 6ª: ser estancieiro para
ser rico de campo e gado; 7ª: ser artista em geral para praticar
a pintura, a poesia, a escritura, a música, a escultura etc.
a) O nada e o tudo- a primazia do amor: Diante das
sete ofertas, Blau responde categoricamente: Não! Na
verdade, trata-se da negação de sete poderes. Ele os recusa,
porque o fundamental para ele era Teiniaguá encantada: ―Eu
te queria a ti, porque tu és tudo [...] que atino que existe fora
de mim, em volta de mim, superior a mim. Eu te queria a ti,
teiniaguá encantada‖ (S, 158,15). Por isso, Blau pensa no
que lhe fora oferecido e está ―desanimado e penaroso‖. Ele
―não lograra nada por querer tudo‖, isto é, tinha dito não a
todas as ofertas, na esperança que lhe fosse oferecido o
―tudo‖: Teiniaguá encantada. Para Chiappini, o tudo é ―o ser,
o centro da vida, e eis por que ele nada obtém da Teiniaguá,
pois isso só conseguiria regressando ao útero materno,
reintegrando-se à grande mãe, refundindo-se na unidade
primordial de que a história, entretanto, o distanciou numa
viagem sem volta‖ (Chiappini, 1988,220). Blau sai da gruta
186
e recebe um prêmio de consolação: a onça que se reproduz
ao infinito.
b) A contradição- a onça mágica: Pronto para partir
com seu cavalo, Blau depara-se com o sacristão que lhe diz:
―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno,
tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem
segurar a língua‖ (S, 158,37). De fato, Blau durante as sete
provas teve a alma forte e o coração sereno, mas no
momento das escolhas, não aplicou este princípio, porque o
seu pensamento e coração estavam em Teiniaguá. Porém, o
sacristão não condena este modo de agir: ―Não te direi si
bem fizeste ou mal‖. Blau tem como primazia o amor de
Teiniaguá, acima de toda sorte de poder. No entanto, a
contradição nasce, de uma parte, entre o nada querer das sete
escolhas, e, de outra, aceitar do sacristão a moeda de ouro
que lhe dá todo o poder.
187
Cap. VIII - ―Acreditou na onça encantada‖
―Mistério para o próprio Blau... muito rico...
muito rico... mas todo o dinheiro
que ele recebia [...] todo desaparecia como
desfeito em ar (S, 161,20).
Este capítulo se organiza-se em três dias de prova
para verificar se de fato a ―onça encantada‖ funcionava no
mercado:
1º dia: A prova do prometido - ―... foi pensando nas
cousas que carecia e que ira comprar‖. Blau começa a usar a
onça, para suprir as necessidades pessoais mais imediatas,
tais como, roupas, uma adaga, esporas e rebenque. De fato, a
onça mágica funcionava conforme o prometido: ―Ela te dará
tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e
nunca mais que uma por vez‖ (S, 159,1). Ele gastou três
onças.
2º dia: Neste dia, ele compra, ―só peças inteiras‖ e
gasta quinze onças.
3º dia: No último dia, ele compra trinta cavalos e
gasta quarenta e cinco onças.
a) A fama da fortuna: Começando a comprar o mais
necessário, Blau foi aumentando o gasto proporcionalmente
e enfim, a nova moeda foi testada: ―Depois desses três dias
de prova, Blau acreditou na onça encantada‖ (S, 160,41).
188
Agora, Blau aventura-se em grandes negócios, ―arrendou um
campo e comprou o gado, pra mais de mil cabeças,
aquerenciado‖ (S,160,42). No entanto, todos começaram a
ficar intrigados com o fenômeno desta onça mágica, até o
próprio Blau. ―Começou a correr a fama da sua fortuna‖ e
ninguém conseguia explicar como um ―gaúcho despilchado
de, ontem, pobre‖, agora tinha tanto dinheiro para negociar.
b) Mistério da riqueza: Nem o próprio Blau
conseguia entender o seu enriquecimento. ―Mistério para o
próprio Blau... muito rico... muito rico‖. Há um duplo fato:
Nunca faltaram moedas, sempre teve o que precisasse,
porém, ―todo o dinheiro que ele recebia, que lhe pagavam,
todo desaparecia‖, todas as moedas ―evaporavam-se, como
água em tijolo quente‖ (S,161,25).
Aqui, se lembramos da biografia de Simões, e do dinheiro
que sempre lhe fugiu das mãos, temos a tentação de associar
essa onça furada ao Capital, que se reproduz, separando os
homens dos outros homens, como que amaldiçoados por
algum demônio que os faz escravos do dinheiro (Chiappini,
1988, 221).
189
Cap. IX - Riqueza e solidão ou pobreza e companhia
―Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza
desta onça, [...] porque
separa o dono dos outros donos
de onças‖(S,162,35).
Blau enriquece, porém, entra em crise, porque sofre
um ―cerco de isolamento‖.
a) Dinheiro maldito: Blau ―comprava e pagava à
vista, é certo‖, porém, o problema é que ―todos com quem
tratava e recebiam de suas onças‖, depois faziam maus
negócios e perdiam ―exatamente a quantia igual à de suas
mãos recebida‖ (S,161,30). O fato começou a se espalhar e
isto foi associado a alguma ―mandinga arrumada na
salamanca do Jarau‖.
b) Distanciamento e solidão: Blau passa a ―ser
tratado de longe, como um chimarrão rabioso‖. Trata-se de
um tríplice ―cerco de isolamento‖: Da peonada que se afasta
de sua companhia; dos negociantes que não mais comerciam
com ele; e dos andantes que cortam campo para não se
abrigar nos seus galpões. Blau está completamente só: ―Já
não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito
mateava, rodeado dos cachorros‖ (S, 162,15).
c) A opção pela companhia: Blau pensa sobre sua
solidão e decide ―acabar com aquele cerco de isolamento‖ e
volta ao cerro, para devolver a onça de ouro ao santão
190
dizendo: ―Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza
desta onça. Adeus!‖ (S,162,35).
d) A implosão do cerro: Blau cumprimenta, por três
vezes, o santão com a tradicional saudação cristã―Laus‘sus‘Cris‖ (Louvado seja Jesus Cristo): a primeira vez,
foi na ida ao cerro do Jarau (S,142,15); depois, ao retornar ao
cerro para devolver a onça de ouro (162,30); e, enfim, no ato
de despedida, a expressão é modificada (―Fica-te com Deus,
sacristão‖, 162,35), porém, o que interessa é falar o ―Nome
Santo‖. Assim, ficou quebrado o encantamento, ―e neste
mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava
no Nome Santo, ouviu-se um imenso estouro‖ (S,162,45). O
cerro do Jarau ficou destruído com todos os tesouros e, ao
mesmo tempo, deste caos surge uma nova realidade.
O número [a saudação por três vezes] é simbólico dessa
união do céu e da terra, do material e do espiritual que se
processa na gestação do gaúcho que assimila a civilização
branca e cristã mas também integra o índio das origens e,
através da Península Ibérica, o mouro (Chiappini, 1988,
211).
Entre a agonia da solidão e a felicidade da
companhia, Blau opta por esta última. A insatisfação da
191
riqueza não responde àa sua identidade, pois esta o condena
a viver separado dos outros, estado este, que o leva quase à
melancolia. Ele vive o dilema de estar preso à identidade do
passado e àa crise no presente, pois a tradição não responde
mais à situação presente. A identidade originária é
mítico-folclórica, em que a contribuição indígena colabora
com a utopia do projeto de uma comunidade solidária. A
idealização do gaúcho revolucionário, tem seu acento na
tradição do gaúcho ser originário do índio e do camponês. A
roda do chimarrão é a representação desta pobreza
mitificada, no sentido de elele ser desprendido de interesses
e riquezas. Blau face àa encruzilhada que se colocava, opta
pela pobreza, isto é, segundo a tradição indígena.
A implosão do cerro, pode ser compreendida como o
fim do sistema de cristandade colonial e também da
identidade da estância tradicional, daí a impressão de um
estado caótico em que tudo se derrete: ―o cerro do Jarau
apagou-se num desgoverno, como uma tropa de gado alçado,
que espirra e se desmancha como água passada em regador‖
(S, 163, 5). Com isso, abre-se a possibilidade de recriação de
novos projetos de identidade: nova ética , nova religião,
novas etnias.
192
Cap. X - Memória e travessia para o futuro
―Aquele par novo, de mãos dadas como namorados
foi descendo a pendente do
coxilhão, para uma cruzada de ventura,
em viagem de alegria‖(S,163,30).
―Blau Nunes também [...] foi baixando a encosta
do cerro, com o coração aliviado e
retinindo como si dentro dele cantasse
o passarinho verde‖ (S,163,35).
No último capítulo, Simões Lopes Neto, lança um
olhar histórico retrospectivo e mostra os possíveis projetos
identitários para o futuro.
a) A visão do passado: Blau vê o interior do cerro
como se fosse um ―vidro transparente‖ e enxerga ―o que lá
dentro se passava‖ (S,163,13), ao enfrentar as sete provas
com os seus respectivos personagens. Trata-se de uma
memória do passado.
b) As metamorfoses do novo: Na descrição da lenda
há dois personagens que passam por sucessivas mudanças- o
santão e a Teiniaguá. Primeiro, Simões Lopes lembra as três
mudanças de Teiniaguá: 1ª) De ―fada velha‖ ou ―fada moura,
em teiniaguá‖ (S,143,30).; 2ª) De ―teiniaguá na princesa
moura‖ (S,147,1). ; 3ª) De ―moura numa tapuia formosa‖
(S,163,20). Nas passagens de um estado para outro, não se
constata um personagem puro,
mas híbrido como
mostraremos abaixo. O resultado de todas as transformações
193
é uma ―tapuia formosa‖, uma mestiça de índio, isto é, uma
nova etnia.
Depois, descreve as mudanças do sacristão: 1ª) De
―vulto de face branca e tristonha‖ junto a salamanca do cerro
- o santão - (S, cap. I, 142) ―para à figura de sacristão de S.
Tomé‖ (S, cap. III, 145).; 2ª) De sacristão para santão, ―o
vulto de face branca e tristonha‖ (S, cap. VII, 158) para virar
um ―guasca desempenado‖ (S, cap. X, 163). Aqui, também o
resultado de todas as metamorfoses, através das quais
passou, o santão é um gaúcho forte, desenvolto e valente.
Tanto Teiniaguá como o santão/sacristão têm suas origens
européias. No entanto, ambos após passaram por várias
metamorfoses, inculturam-se e assumem uma nova
identidade formando o tipo gaúcho, que é um conjunto
cultural de etnias, religiões e éticas.
c) Uma nova identidade: O sacristão e a Teiniaguá,
são duas personagens ―vindas do tempo antigo e de lugar
distante‖, conforme a nota do próprio Simões Lopes Neto, o
tempo é por volta de ―1650, em que se formou-se a lenda‖ e
o lugar é a região das Missões sobre o rio Uruguai (cf. S,
165, nota 11). Os dois unem-se e formam um ―par novo, de
mãos dadas como namorados‖, abandonam o exílio do cerro
do Jarau e partem para ―uma cruzada de ventura, em viagem
194
de alegria, a caminho do repouso‖ (S, 163,30). O novo par
começa uma nova travessia, pois a identidade construída é
dinâmica, daí uma dupla afirmação de movimento: cruzada e
viagem.
d) E agora, em paz: Blau deixa, também, o cerro e
―estava certo de que era pobre como dantes‖, isto é, após
passar pelas diversas provas e travessias renunciara a todas
as formas de enriquecimento. Não assumiu nenhum tipo de
projeto que lhe foi apresentado: nem o da cristandade
colonial e nem o da estância tradicional, mas continua fiel
aos costumes, pois ―comeria em paz o seu churrasco; e em
paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua
vida!‖(S, 163,36). Por quatro vezes repete-se ―em paz‖, para
afirmar a reconciliação que Blau alcançara após realizar a
travessia no tempo e no espaço pampeanos. ―Em paz‖, com a
nova identidade, já realizada no ―par novo‖: o sacristão e a
Teiniaguá. ―Em paz‖, com o novo projeto de identidade
híbrida. ―Em paz‖, com a aprendizagem de ser gaúcho.
Na última parte da lenda, a aprendizagem de Blau
enfrentapassa pelas provas e no confronto de projetos. Em
meio a todas essas metamorfoses ele aprende que a
identidade do gaúcho é um projeto inclusivo de muitas
etnias, religiões, culturas e éticas.
195
Há em Simões Lopes Neto uma valorização dos
símbolos. Ora, a linguagem mítica é a mais apropriada para
expressar o símbolo. De fato, Daniel Granada ao escrever
sobre as tradições latino-americanas oscila entre a ficção e o
ensaio erudito. Decididamente, a opção de Simões será
aderir empaticamente ao mito desdenhando as explicações
realistas ou eruditas (algumas remetidas a notas). Tal adesão
ao mito, para ser verossímil, precisava ser expressa por uma
prosa poética. Por isso, ele se demora a explorar alguns
motivos, apenas mencionados por Granada (Chiappini,
1988,198).
De fato, só é possível compreender a Salamanca do
Jarau, a partir deste princípio hermenêutico simbólico. O
autor trabalha com os símbolos dentro de um horizonte
mitológico. Compreendendo-se os símbolos, pode-se
compreender a linguagem simoniana, daí a proposta de
leitura ndeste estudo, organizar as partes da lenda, segundo
os símbolos que a compõem.
Uma leitura que se ativesse a excluir um ou outro
símbolo ou personagem, correria o risco de ser uma
interpretação
Anahangá-pitã
maniqueísta.
e
Tupã
Deus
no
196
ou
combate
o
Diabo,
cotidiano
ou
dos
personagens. São mitos, superstições, símbolos que
unificam os opostos. Mais ainda, há uma luta entre ―as forças
de um mundo demoníaco (feminino, tenebroso, mas também
luminoso, reprimido, inconsciente) e as forças diurnas
(luminosas, mas também tenebrosas) de um mundo
masculino, divino, dominante e consciente‖ (id. p. 224).
Referências Bibliográficas:
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:
Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982.
CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Leitura e
história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. São Paulo: Loyola,
2001.
LOPES NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos.
Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia
Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
ZANOTELLI, Jandir João. América Latina. Raízes
sócio-político-culturais. Pelotas: EDUCAT, 1998.
197
7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES
TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO
Luís Borges 76
―He tentado al Señor pidienlole um prodigio,
um milagro patente, cerrados los
ojos al milagro vivo del universo
y al milagro de mi mudanza‖
(Miguel de Unamuno, in Diário Íntimo)
Ao cotejarmos o elemento ―milagre‖ nos contos
Natal na barca (1958), de Lígia Fagundes Telles (1923), e O
menininho do presépio (1913), de Simões Lopes Neto
(1865-1916), é possível constatar que ambos, tanto pela
estrutura do tecido diegético quanto pelo olhar do narrador, e
principalmente pelo desfecho, provocam no leitor a
inquietação e a dúvida a respeito da natureza e da existência
dos milagres.
Milagre
é
uma
palavra
derivada
do
latim
(miraculum), que, em sentido lato, significa ―acontecimento
maravilhoso‖ 77. Na Bíblia, todavia, utiliza-se num sentido
mais restrito, significando um ato de Deus, que de um modo
visível, subverte o curso das causas conhecidas para
76
Professor de Literatura Brasileira e membro do Grupo de Pesquisa
Simoniano do ISF/UCPEL.
77
Cf. BUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed.
Vida, 1997, p. 289.
198
manifestar Seu Poder ou Sua Vontade, de modo a que tudo
se cumpra segundo o Seu Plano.
Diversas palavras em hebraico (Mopheth, Péle, Oth)
se traduzem no Antigo Testamento por milagre, maravilha
ou sinal. ONo Novo Testamento utiliza -se a palavra
Dunamis para designar78 milagre e Simeion (poder) também
com a mesma significação 79 . Os milagres de Jesus são
descritos pela palavra erga, que quer dizer, literalmente,
―obras‖80. Aparece também o vocábulo terata81, num sentido
mais adequado e próximo a milagre, significando
―prodígios‖82.
O Milagre poderia ser entendido então como a
intervenção divina em face da impotência humana perante o
sofrimento e a morte? Ele seria fruto da imaginação e do
mito ou consistiria na conjugação desses dois aspectos?
Mais que o simples estabelecimento da dúvida, que
deixa espaço para a decisão do leitor, nos contos de Lígia
Fagundes Telles e João Simões Lopes, parece haver a
sugestão de um entrelaçamento entre a vida natural e
sobrenatural, fornecendo à existência um ―entre‖, um
78
Idem, ibidem.
Idem.
Idem.
81
Idem.
79
80
199
encantatório poder poético imanente à celebração da vida,
tão expressivamente representada pelo Natal.
O conto de Lígia Fagundes Telles trata da viagem de
uma mulher numa barca, no dia de Natal, onde ela encontra
uma mãe e seu filho doente. Em verdade, a barca é um
símbolo utilizado quase universalmente para representar a
viagem, não uma viagem qualquer, mas a travessia realizada
seja pelos vivos, seja pelos mortos. Essa imagem aparece na
arte e na literatura do Antigo Egito
83
e nos textos
mitológicos e em alguns épicos da velha Irlanda84.
Em Lígia Fagundes Telles, a estrutura do texto se
afigura linear e singela. Encerra, todavia, uma profunda
ternura, uma mensagem de fé e esperança. A idéia da barca
faz-nos lembrar inclusive da peça de Gil Vicente (aprox.
1470-1536), Auto da barca do Inferno:
Fidalgo - Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?
Diabo - Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
Assim cá vos contentai.
Pois já que a morte passastes,
Haveis de passar o rio.
Fidalgo - Não há aqui outro navio?
Diabo - Não, Senhor, que este freteastes,
82
Idem.
Cf. CHEVALIER, Jean e GHEEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 121.
84
Idem, ibidem.
83
200
E primeiro que expirastes 85
Me deste logo sinal.
Fidalgo - Que sinal foi esse tal?
Diabo - Do que vós vos contentates.
Fidalgo - A estoutra barca me vou.
Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houla! Hou!
Pardeus, aviado estou!
Quanto a isto é já pior...
Que gericocins 86, salvanor 87!
Cuidam cá que eu sou grou 88?
Na linguagem arrogante e caricata do Fidalgo,
percebe-se a surpresa perante a barca que lhe espera. A isso o
diabo lhe responde com a assertiva de que a embarcação que
lhe foi destinada, foi obra de sua própria escolha. Conclui-se,
pois, que o dramaturgo português quer demonstrar através
desse diálogo, que a barca da vida e da ação moral estão
ligadas à barca da morte e do destino eterno, que pode ser a
danação ou a felicidade.
Comparemos com o timbre da expressão, guardadas
as distâncias de época e gênero, em Lígia Fagundes Telles:
―Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um
cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num
85
. A frase pode ser entendida como ―tudo tem o seu tempo‖.
. Significa: homenzarrão.
. Significa: fiquei a pular.
88
.Significa: forma de pedir socorro, que era corrente na península
ibérica.
86
87
201
antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo,
estávamos vivos. E era Natal.‖89
Examinemos brevemente essa passagem.
A narradora sente-se descontente, ao ver-se naquela
―barca carcomida‖. Fuma um cigarro como um sinal de
desprezo ou protesto, talvez como um sinal a quem ninguém
atenta. No entanto, estão todos numa mesma viagem, vivos e
mortos, que escolhem o seu destino de acordo com sua
responsabilidade ético-moral. É dessa liberdade, que nasce a
esperança mesmo em situações que parecem perdidas e
desanimadoras: Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
Na diegese do conto Natal na barca, aparece uma
mulher pobre que traz consigo uma criança com cerca de um
ano. Ela havia perdido outro bebê e tinha sido abandonada
pelo marido: ―A senhora é conformada‖, declara a
personagem-narradora. A explicação para sua resignação foi
saber da felicidade de seu filhinho no Paraíso, brincando no
jardim com o Menino Jesus, logo ele que gostava tanto de
mágica. E concluindo, falou:
―Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu
encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que
acordei rindo também, com o sol batendo em mim.‖ 90
89
TELLES, Lygia Fagundes. Para gostar de ler. Vol. 9. Contos. 3a. ed.
São Paulo Ática, 1988, p.68.
90
TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 71.
202
Nessa passagem, a autora remete-nos a outro
arquétipo universal: a idéia de Paraíso. As obras de arte e as
experiências oníricas, sejam elas os êxtases dos santos, os
estados de inconsciência do sono ou processos induzidos por
drogas, estão repletas de representações inspiradas naquilo
que se costuma chamar a nostalgia do Paraíso91 . Mírcea
Eliade explica que
―o desejo de nos encontrarmos sempre e sem esforços no
coração do mundo da realidade e da sacralidade, e em suma, o
desejo de superar de uma maneira natural a condição humana e
de recuperar a condição divina; um cristão diria: a condição
anterior à queda.‖92
O narrador reflete que havia encontrado ali o segredo
da fé que removia montanhas. Novamente podemos
perguntar: foi realmente Deus que concedeu à mulher um
―indulto de Natal‖, ou foi apenas uma defesa de seu
inconsciente contra a dor da perda? Tanto faz, porque o
verdadeiro milagre é, apesar das adversidades, não desistir
da felicidade e da crença na vida.
A narrativa mostra com simplicidade a grandeza de
uma mãe que confia fielmente num Deus fiel. É essa
fidelidade que inspira a superação da dor e da morte. A
91
Cf. CHEVALIER, J. e CHEERBRANT, ob. cit., p. 684. Para mais
alguns detalhes vide: BORGES, Luís . O retorno do paraíso. In Diário
Popular, 13 e 27-03-1994.
92
Mírcea Eliade apud CHEVALIER e CHEERBRANT, p. 684.
203
narradora não aparece como personagem religiosa, ao
contrário, mostra-se céptica e provavelmente atravessa um
momento difícil, conforme permite deduzir o começo do
conto: Não quero nem devo lembrar por que me encontrava
naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva.
93
A narradora ao constatar a criança (supostamente)
morta no colo da mãe, pressente a derrota e a decepção de
uma fé que ―removia montanhas‖. Ela toca a água, sente o
rio gelado e escuro. O rio, o curso da vida, a barca, o mundo
em que habitamos. A barca leva os vivos e os mortos. Afinal,
qual realidade separa uns dos outros? A realidade metafísica,
a saudade, as lembranças? Quem o saberá?
Ao relatar suas desgraças, a mulher, mãe da criança
doente, recorda a morte de seu primeiro filho, que gostava de
mágicas. O menino caiu do muro dizendo ―vou voar - e
voou. A mulher mostra uma fé, ao mesmo tempo, resignada
e ativa. A narradora explicita sua covardia diante dos laços
humanos, do triste espetáculo da dor alheia, que tão
humanamente fraternalmente nos uneirmana a toda
93
TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 67.
204
humanidade. Ela quer fugir desse drama, prefere suportar a
água gelada do rio em trevas.
O final do conto Natal na barca é
emblemático:
―Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para olhar
o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e
quente. Verde e quente .‖94
Do mesmo modo que a simbologia da barca, a
imagem do rio também encontra representação em muitas
culturas. Relaciona-se, em geral, com a fertilidade, a morte
ou a renovação. A simbologia do rio se acha mais enraizada
na mitologia tradicional da China, da Índia, dos gregos e da
Palestina.
Na China, o rio com sua viagem em direção ao
oceano, significa a busca do ser humano ao seu retorno ao
indiferenciado, ao Nirvana. Para os chineses o simbolismo
do rio possuía ainda certa importância nos ritos de
casamento. Os casais jovens costumavam realizá-lo no
equinócio da primavera: era uma verdadeira travessia do
ano, a passagem das estações, e a do yin ao yang; era
igualmente a purificação preparatória à fecundidade e à
renovação .95
94
95
TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit. , 72.
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., pp. 780-81.
205
Entre os gregos antigos, os rios eram objeto de culto.
Tinham-nos como filhos de Netuno e pais das ninfas.
Ofereciam-lhes sacrifícios, afogando em suas águas, touros e
cavalos. Não se podia atravessá-los senão depois de ritos de
purificação e preces. Os rios inspiravam veneração e
temor96. A teogonia de Hesíodo afirma:
―Não deveis atravessar jamais as águas dos rios de eterno curso,
antes de ter rpronunciado uma prece, com os olhos fixos nas
correntes magníficas, e antes de ter mergulhado vossas mãos nas
águas agradáveis e límpidas. Aquele que atravessar um rio sem
purificar as mãos do mal que as maçula, atrairá para si a cólera
dos deuses, que lhe enviarão depois castigos terríveis‖ 97.
Na edição de Diels 98 da obra de Heráclito, no
fragmento 12, lê-se:
―Aqueles que entram nos mesmos rios recebem as correntes de
muitas e muitas águas, e as almas exalam-se das substâncias
úmidas‖.
Platão, no Crátilo, utiliza-se de uma fórmula mais
breve, às vezes, também atribuída a Heráclito, dizendo que
não conseguiríamos entrar duas vezes no mesmo rio.
Na Índia, o rio Ganga ou Ganges é o elemento
purificador que flui da cabeleira de Shiva. Já na Palestina,
pela tradição judaica, o rio representa a fonte das graças e
das influências celestes. Esse rio que vem do alto desce na
96
97
98
Idem, ibidem.
Hesíodo apud CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 781.
Idem.
206
vertical, conforme o eixo do mundo, depois, expande-se
horizontalmente, a partir do centro, no sentido das quatro
direções cardeais, chegando até as extremidades do mundo,
que são os quatro rios do paraíso terrestre99.
O próprio Filho de Deus, Jesus, é batizado no rio
Jordão, onde Deus fala com Ele e o Espírito Santo se
manifesta:
―Naquele tempo, veio Jesus da Galiléia ao Jordão até João, a fim
de ser batizado por ele. Mas João tentava dissuadi-lo, dizendo:
―Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a
mim?‖
―Jesus então respondeu-lhe: ―Deixa estar por enquanto, pois
assim nos convém cumprir toda a justiça‖. E João consentiu.
―Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se
abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba
e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos céus
dizia: ―Este é o meu Filho Amado, em quem me comprazo‖. (Mt
3,13-17) 100
É nítida, pois, a associação que Lígia Fagundes
Telles faz entre a barca, o rio e o mistério da vida, cheia de
milagres ou, pelo menos, surpresas capazes de devolver o
encantamento e o calor da existência, através da perene
renovação da esperança: o rio verde e quente.
Em João Simões Lopes Neto, a tragédia e o
pessimismo são a marca registrada de sua literatura. O conto
99
Idem.
207
O menininho do presépio como fazendo parte de uma
segunda série dos Contos gauchescos (1912), foi publicado
em 25-12-1913, no jornal ―A Opinião Pública‖, entretanto,
apresenta uma característica bem diversa: o happy-end, tão
escasso na escritura lopesnetina.
O Rapsodo Bárbaro recorre a um procedimento que
lhe é comum, colhe no folclore, nas lendas ou nos arquétipos
universais da humanidade, simbologias para construir suas
histórias. É o caso de O menininho do presépio. De um lado,
está a especificidade do Natal, como um tempo de realização
de desejos e apaziguamento dos homens. De outro, porém, a
despeito de oo menininho ser Jesus, ele também espelha uma
imagem universal de inocência: a criança. Nesse sentido, a
infância é o estado anterior ao pecado, portanto, o estado
edêmico, capaz de absolver a tragédia e o adultério.
A idéia de infância como representação de pureza é
uma cosnstante nos ensinamentos evangélicos e emde toda
uma parte da mística cristã como, por exemplo, O caminho
de Infância, de Santa Teresa do Menino Jesus.
Na tradição cristã, os anjos são muitas vezes
representados como crianças, em sinal de pureza e inocência.
100
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e
Paulus, 1995.
208
Vale lembrar também a seguinte passagem bíblica:
―Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasse;
vendo isso, os discípulos as repreendiam. Jesus, porém,
chamou-as, dizendo: ―Deixai virem a mim as criancinhas e não
as impeçais, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade, vos
digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma
criancinha, não entrará nele.‖(Lc 18, 15-17) 101
Simões Lopes Neto aproveita-se dessa simbologia,
para dar-lhe um tom ambíguo. No conflito entre Mal e Bem,
finalizando com a vitória do Bem, que através da inarredável
determinação do amor, é purificado. Em esse Se esse amor
resultae de uma transgressão à lei moral, acaba sendo
desculpabilizado - como acontece com as crianças - de sua
origem pecaminosa102. De outro lado, há um acento tanto
estranho, ao retratar a figura deitada no presépio.
―Fazia a modo de uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo
grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns
ALIMAIS entre boizinhos e ovelhas, de brinquedo e outros
enfeites, e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que
pareciam reis e pro caso dum, que era negro retinto, era o mais
empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio estava
então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles,
acamado numas palhinanhas de milhã e uns musgos e umas
penugnes estava o Minininho Jesus, ruivito103 e rosado, nuzinho
101
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e
Paulus, 1995.
102
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 302.
103
Idem.
209
em pelo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por
mostrar as vergoinhas do seu corpinho de inocente .‖104
É interessante observar o detalhe que Simões Lopes
Neto traz ao descrever o Minininho Jesus: ruivo. O ruivo é
uma cor que se situa entre o vermelho e o ocre. Ele lembra o
fogo, a chama, daí a expressão roux ardent. Em vez de
representar o fogo purificador do amor celeste, ele
cracteriza-se por simbolizar o fogo impuro, que queima
incendeia sob a terra, o fogo do inferno105.
Entre
os
egípcios,
Set-Tifão,
o
deus
da
concupiscência devastadora, era representado como sendo
ruivo, e Plutarco conta que, em algumas de suas festas, a
exaltação era tanta, que se chegava a jogar os homens ruivos
na lama. A tradição cristã rezava que Judas, o traidor, tinha
os cabelos ruivos106.
Em resumo, o ruivo evoca o fogo dos instintos
luxuriosos, a paixão que consome o ser físico e espiritual .107
Quererá o autor do conto O menininho do presépio
sub-repticiamente levar-nos a uma ambivalência sobre a
104
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.
Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:
Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 283.
105
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 792.
106
Idem, ibidem.
107
Idem.
210
natureza dos milagres? Tal observação pode ser confirmada
pela frase final do conto:
- Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por
causa do Menininho que... Si o diabinho é tão
milagroso!...108
Nessa direção, pelo menos, duas interpretações são
possíveis. De um lado, pode significar que Deus afirma.
sSeu poder,
mesmo em circunstâncias aparentemente
pecaminosas, isto é, até mesmo utilizando-se das mãos do
demônio. De outro lado, porém, pode confirmar a visão
pessimista da natureza humana, capaz de corromper as
coisas mais puras e santas. Dessa maneira, o amor humano,
guiado pelo instinto natural, se transveste de dedicação
espiritual. Deus então, com pena desses seres incapazes de
elevarem-se para além dessa lei natural que governa todos os
seres, permite-lhes a transgressão para evitar um mal maior a infelicidade geral. No fundo, para o Simões de O
menininho do presépio, o único pecado é a infelicidade.
A força telúrica do amor do cadete Vieira e Nhã
Velinda fica plasmada com clareza na cena do beijo, que
―derrubou todas as negaças, como uma represa de açude
211
aluída é derrubada por uma muita descida de águas...‖109. Aí,
a enumeração das forças naturais, mais os absolve que os
condena. Isto é corroborado, se atentarmos para a ―descida
das águas‖, que simbolizam não só a fúria do instinto, a
atração, a força do desejo, mas, principalmente, a indicação
do elemento purificador.
De um certo modo, numa acepção naturalista de
teologia, talvez ele esteja certo, pois somente o homem feliz,
conforme exige a simplicidade do campeiro, cuja lida, em
certo sentido, é uma imitação da luta dos animais pela
sobrevivência, pode conhecer a Deus. Este aspecto pode
tomar, às vezes, um caráter de ―teologia da prosperidade‖ ou
de um viés agostiniano. Isto é, a natureza corrompida do
homem só pode ser purificada pela misericórdia de Deus, e
os sinais dessa misericórdia são percebidos através das
graças que ele alcança.
A própria linguagem empregada por Simões Lopes
Neto auxilia a manter o clima de mistério inerente aos
milagres. A beleza estilística desse conto, a princípio
ofuscada por um certo truncamento da narrativa (admitido
108
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.
Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:
Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 284.
109
Idem, p. 283.
212
no texto pelo narrador), deriva da tensão entre uma oralidade
mais acentuada do que aquela presente, em geral, nos Contos
gauchescos e o pleno controle no desenrolar do texto que,
por sua vez, proporciona o perfeito equilíbrio da linguagem
literária: Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas
não „stou, não; vancê escuite110.
No conto simoniano, a filha de Miguelão, boa como
uma santa e bonita como uma princesa, é nhã Velinda,
obrigada a casar com um mouro, velhaco, sem eira nem
beira, mal encarado, meio corcunda, que tinha um lanho
grande entre a orelha e a nuca. O casal destoava, como um
jerivá velho e um cacho em flor.
Nhã Velinda chora, é muito infeliz. O cadete Vieira,
moço mulherengo, dado a noitadas e brigas, ama-a de
verdade:
―Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu
coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas,
perdia o entono de todo o seu jeito, ele todo ele vivia só nos
olhos quando atentava na formosura do seu rosto .‖111
Na festa natalina, em queonde todo o povo se reunia
para cantar o terço, há o resvalo, o pecado, o instinto da
carne, quase a idolatria. É interessante observar que em João
110
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.
Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:
Presença; Brasília: INL, 1988, p. 282.
213
Simões Lopes Neto tanto a percepção do Mal quanto da
Divindade acontecese dá através de um revelador diálogo
telúrico-cósmico.
Em O menininho do presépio, diferentemente do que
acontece, por exemplo, em Trezentas onças, o diálogo
homem/Deus, mediado pela natureza, o Mal, o pecado
(nesse caso, o adultério) está intrinsecamente ligado, de uma
maneira ambígua, à pureza do amor, mostrando a dupla
essência e o perpétuo dilema do homem.
Simões deixa claro que nhã Velinda é jovem,
inexperiente e infeliz - condições de absolvição - e que o
cadete Vieira, ―gostava da moça numa paixão de verdade,
diferente de quantas calaveiradas estava avezado a fazer‖,
isto é, o amor atua como elemento regenerador. O Mal está
deslocado para a figura do marido e do Miguelão. O marido
a maltratava, para ele, ela só significava o que se podia
―amanusear da tábua do pescoço até as ancas‖.
Quando os protagonistas trocam o beijo - uma bicota
é perigo de respeito!112 - cumpre-se o milagre de duas vidas
vazias que encontram a felicidade. A cena é descrita
maravilhosamente:
111
112
Idem.
Idem, p. 283.
214
―As mãos se encontraram... e num de-repente, num silêncio,
num tirão das suas almas, na pressa e no lusco-fusco, perto da
gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas famintas se
encontraram (...) e um beijo, um beijo, que jurou pelos dois, para
toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma
repesa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de
águas...‖113
Note-se que mesmo em toda a força carnal que a
descrição encerra, não há qualquer sinal de condenação ou
censura, pois o amor, o verdadeiro amor, o amor humano no
sentido mais puro de sua condição redentora se une ao amor
divino, fonte de toda alegria e esperança.
O casal é flagrado pelo Miguelão que vai ―xeretear ao
genro a atossicá-lo, mussitando-lhe maldades‖114.
No entrevero do ataque do marido traído, a imagem
do menininho, que jazia no presépio - personificação do
lugar onde as forças telúricas do pampa (a terra, os animais,
as estrelas, a lida do campeiro), se fundem com a força
cósmica de Deus -, rola para o seio da moça (do mesmo
modo como estava acomodada a criança doente no conto
Natal na barca), tão à vontade ―como um dono na sua casa‖,
e aí, no regaço delicado ficou. Simões está quase a nos dizer,
noutras palavras, que a morada de Deus é o peito dos
113
114
Idem
LOPES NETO, João Simões. op. cit. p. 283.
215
homens, é aí que está o Natal. Nesse momento o facão
matador serenou e o agressor partiu.
A escolha do facão, do objeto cortante, refere-se à
simbologia geral, que também se aplica ao conto simoniano:
o princípio ativo que modifica a matéria passiva115. Se, de
uma parte, o marido traído age para punir o casal, este
último, embora pareça também agir, optando pela
transgressão, está apenas cumprindo seu Destino, a
fatalidade do amor. A faca é também, freqüentemente,
associada à idéia de execução, de morte, vingança ou
sacrifício.
Segundo a tradição judaico-cristã, o Amor-redenção
exige sacrifício. O sacrifício é um símbolo de renúncia aos
vínculos terrestres por amor ao espírito da divindade. Em
quase todas as culturas encontramos histórias de filhos ou
filhas imolados. Na Bíblia, um dos exemplos mais
conhecidos é o caso de Abraão e Isaac:
―Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu
filho Isaac, tendo ele mesmo tomado nas mãos o fogo e o cutelo,
e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e
disse: ―Meu pai!‖ Ele respondeu: ―Sim, meu filho!‖
- ―Eis o fogo e a lenha‖, retornou ele, ―mas onde está o cordeiro
para o holocausto?‖ Abraão respondeu: ―É Deus quem proverá o
115
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANTE, Alain. Dicionário de
símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: 1994, p. 414.
216
cordeiro para o holocausto, meu filho‘, e foram-se os dois
juntos.
Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abraão
construiu o algar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho e o
colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão
e apanhou o cutelo para imolr seu filho.
Mas o anjo de Iaweh o chamou do céu e disse: ―Eis-me aqui!‖ O
anjo disse: ―Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças
nenhum mal!‖ Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste
teu filho, teu único. Abraão ergueu os olhos e viu um cordeiro,
preso pelos chifres num arbusto; Abraão foi pegar o cordeiro e o
ofereceu em holocausto em lugar de seu filho‖ (Gn 22,6-13) 116.
O sentido do sacrifício, entretanto, pode ser
pervertido, como é o caso de Agamenon sacrificando
Ifigênia 117 , em que a obediência aos oráculos dissimula
outros motivos e, em particular, a vaidade de obter
vingança118.
Lembremos a simbologia do sumiço do rebanho de
novilhos (o sacrifício dos animais encaminha o protagonista
para a redenção), fato aparentemente negativo, mas que
trouxe o cadete Vieira para aquelas bandas.
O narrador relata que o mal encarado, mouro,
portanto, não-cristão e feio como o diabo, foi morto numa
116
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e
Paulus, 1995.
117
Para maiores detalhes vide: BRANDÃO, Junito. Dicionário
mítico-etimológico. V. 1, Petrópolis: Vozes, 1991, pp. 36-39 e 599-601.
118
Vide CHEVALIER e GHEERBRANT, op. cit. p. 794-796 e
BUCKLAND, A R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida,
1997, p. 388-390.
217
bolinchada de carreiras119. Aqui também pode-se depreender
a idéia de sacrifício como expiação do pecador, conforme a
severa advertência bíblica: Porque o salário do pecado é a
morte, e a graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus,
nosso Senhor (Rm 6,23) 120.
Estava
dado
o
sacrifício
em
honra
ao
Amor-redenção, não mais na estrita linha da tradição
judaico-cristã, onde o sacrifício do amor é dado por um
cordeiro imaculado. Simões inova, concebendo o holocausto
como realização da Justiça, do sagrado direito humano à
felicidade.
O mistério do milagre está referido na expressão:
Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os
telhados dos ricos!...121 Aponta com isso que Deus deixa
nascer o sol sobre bons e maus, que todos podem mudar seu
destino, curar seu coração. Há também o Mal, que fere e
espreita, não apenas como natureza própria da condição
humana, mas também como expressão de liberdade. É a
partir da liberdade que se fundamenta a relação com um
Deus, que nada exige para Salvação, senão o sincero e
119
LOPES NETO, João Simões, op. cit. p. 284.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e
Paulus, 1995.
121
Idem. p. 282.
120
218
teimoso desejo de ser feliz. Basta sua opção e luta, para que
os braços de um Deus que também se fez homem, e, nessa
medida, coloca-se como conhecedor do sofrimento, estejam
perpetuamente abertos para receber os homens em Seu seio,
quiçá, realizando um milagre, que é a violação das leis
naturais, criadas pelo próprio Deus. Sob esse prisma, Deus
trai a Si mesmo - peca, portanto? Não. Acima do império das
leis da natureza está a necessidade do Amor. O amor é
subversivo, mesmo para Deus.
O Mal que habita no homem - sempre tão
essencialmente arraigado, conforme se nos aparece em Boi
Velho - assume em O menininho do presépio, apesar de suas
ambigüidades, um caráter hermenêutico eminentemente
cristão, revelando a face oculta da Mão Divina, que insere o
pecado humano no contexto da redenção. Somente onde há
renovação
(Encarnação/Natal)
há
possibilidade
de
Ressurreição (vitória sobre a morte e o sofrimento).
Nos contos: Natal na barca, de Lígia Fagundes
Telles, e O menininho do presépio, de João Simões Lopes
Neto, estabelece-se uma tensão, um conflito entre a
dilacerada natureza humana, na luta eterna entre Bem e Mal,
e os descaminhos desse mesmo homem na busca da
felicidade. O encontro da felicidade é o verdadeiro milagre.
219
Resultado de contradições internas ou externas o
conflito simboliza a possibilidade da passagem de um
contrário a outro, significando, de um lado, o relativismo
ético-moral, e, de outro, o perdão que Deus, em Sua
misericórdia, reserva para o pecador.
Na Bíblia, o perdão dos pecados é representado de
diversas maneiras. O pecado é coberto (Sl 32,1; 85,2); não é
atribuído (Sl 32,2); é apagado (Is 43,25), um ponto de justiça
em conformidade com os desígnios divinos, confessandod
que somos pecadores (1 Jo 1,9); um ato perfeito da
misericórdia de Deus (Sl 103,2-3; 1 Jo 1,7). O ato de perdoar
é decisivo e nunca será revogado por Deus (Mq 7,19).
O milagre em ambos os contos é questionado em sua
natureza sobrenatural, pois facilmente o texto permite dar
aos acontecimentos explicações naturais. De outro lado, o
encanto e o mistério do Natal envolvem as narrativas numa
atmosfera onde a dúvida é a própria anuência para com um
certo sentido mais amplo de fato extraordinário e
inexplicável: a renovação e a purificação das atitudes e dos
sentimentos humanos como manifestação de verdadeiro e
perene milagre.
A felicidade é sinônimo de libertação do passado, da
amargura, da covardia, do sofrimento e da morte. O milagre
220
de Natal significa um amanhecer consolatório e esperançoso.
O milagre em Natal na barca, de Lígia Fagundes Telles, não
é que a criança tenha voltado à vida (talvez nem tivesse
morrido);, dao mesmao forma,modo em O menininho do
presépio, de João Simões Lopes Neto, o milagre não se
constitui em que a imagem deitada nas palhinhas de milhãã
tenha saltado dali e defendido a moça, antes, o milagre está
plasmado nasem que pessoas que jaziam na infelicidade,
estavam mortas em vida, mas, pela força renovadora do
Amor, puderam olhar a existência de outra maneira.
221
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Sociedade Bíblica
Internacional e Paulus, 1995.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. V. 1,
Petrópolis: Vozes, 1991.
BORGES, Luís. O retorno do paraíso. Diário Popular,
Pelotas, 13 e 27-03-1994.
BRUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São
Paulo: Ed. Vida, 1997.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias
religiosas. São Paulo: Zahar, 1983.
LOPES NETO, João Simões. O menininho do presépio. In:
Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo.
Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença;
Brasília: INL, 1988.
TELLES, Lígia Fagundes. Natal na barca. In: Para gostar de
ler. V. 9 - contos. 3ª ed., São Paulo: Ática, 1988.
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno & Farsa de Inês
Pereira. Notas organizadas por Mário Auriemma Higa.
Porto Alegre: Zero Hora e Klick editora, 1998.
222
223
8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES
LOPES NETO
Cláudia Antunes 122
João Simões Lopes Neto iniciou a carreira que o
projetaria como importante escritor no jornalismo. Eram os
anos de 1888 e o jovem Simões contava então com 23 anos.
Começou o ofício como colaborador do periódico pelotense
A Pátria, conduzido pelo tio Ismael Simões Lopes,
proprietário
do
jornal.
Ali,
desenvolveu
atividades
jornalísticas já marcadas por um toque literário.
Durante dois anos, de 1888
123
a 1890, com
interrupções, o escritor expressou com humor e ironia suas
impressões dos acontecimentos da cidade na coluna Balas de
Estalo, assinada com diversos pseudônimos, em formato de
triolet. Com essa coluna, o jovem Simões despertou a
atenção da cidade. Manteve ainda as sessões Tesoura
Hilariante (1891), no mesmo jornal e, a partir de 1892,
passou a colaborar no jornal Diário Popular.
122
Doutoranda em Letras/PUCRS.
Adão Monquelat fornece a data correta do início da coluna Balas de
Estalo no livro Novos textos simonianos. Pelotas: Confraria Cultural e
123
224
Em 1895, ano do falecimento do tio Ismael Simões
Lopes e do pai Catão Bonifácio, a coluna foi retomada nas
páginas do jornal Diário Popular, ainda em forma de triolet.
Depois, o formato da coluna mudou para a prosa, com o
mesmo espírito, mas aproximando-se mais da crônica
jornalística. As Balas de Estalo, no Diário Popular,ar
prosseguiram até o mês de setembro, assinadas com o
pseudônimo de Serafim Bemol.
Simões tinha trinta anos, quando criou no Diário
duas seções: A Semana Passada (Revistinha), publicada aos
sábados, em 1895, lembrando textos teatrais, e Semaninha,
em cujo espaço retratava acontecimentos locais, no mesmo
ano.
No final da vida, Simões publicou ainda a editoria
Diárias, no Correio Mercantil, entre 1914 e 1915. O jornal A
Opinião Pública apresenta ainda dois trabalhos seus:
―Inquéritos em Contraste‖, entre 1913 e 1914, e ―Temas
Gastos‖, de 13 de janeiro de 1916 a 5 de maio do mesmo ano.
Suas atividades no jornal continuaram até um dia antes de
sua morte, em 14 de junho de 1916. Tinha 51 anos.
Científica Prometheu/Livraria Lobo da Costa, 1991. (Série Letras
Pelotenses). p. 16.
225
O jovem ousado dos primeiros tempos do jornal A
Pátria estenderia suas experiências para o teatro. Carlos
Reverbel situa o início no teatro em 1893, baseado nos
anúncios dos jornais da época. Simões, então com 27 anos,
casado há um ano com Francisca Meireles Simões Lopes —
vulgo Dona Velha — lançava-se, ao mesmo tempo, a
empreendimentos industriais e teatrais. A estréia seria com a
revista O Boato, apresentada em 1893 e publicada em 1894,
seguida de Os Bacharéis, ―comédia-opereta em três atos‖,
encenada em 1893 e reencenada e editada em 1914, e A
mixórdia, ―revista cômico-burlesca‖, encenada em 1896. A
partir daí, Simões passou a produzir suas peças sozinho,
tendo recebido, desde as primeiras apresentações, o
reconhecimento da imprensa e do público. No teatro, Simões
consolidou a fama, iniciada com os ―triolets‖, de
personalidade artística destacada na cidade.
Também em 1893, as páginas do Correio Mercantil
estamparam, em formato de folhetim, o texto de ficção
urbana A Mandinga. Dividido em quinze capítulos, o texto
foi publicado entre os dias 15 de outubro e 14 de dezembro,
nas edições de quinta-feira e domingo. O sucesso do
empreendimento aparece registrado na apresentação do
último capítulo.
226
Em 1912, com 47 anos e dois livros publicados —
Cancioneiro guasca (1910) e Contos gauchescos (1912) —
Simões estava com problemas financeiros. Nessa época,
passou a fazer parte do quadro de funcionários de dois
jornais: Correio Mercantil — em que chegou a ser diretor,
em 1914, e A Opinião Pública — como secretário de
redação, onde permaneceu até a morte, em 1916.
Como jornalista exerceu as funções de cronista,
redator, editorialista, folhetinista, secretário de redação e
diretor. As atividades jornalísticas conviveram lado a lado
com os projetos teatrais e os planos literários.
Paralelamente ao trabalho com as letras, João Simões
realizou vários empreendimentos comerciais e comunitários.
Trabalhou em cartório, como despachante geral, como
publicitário, criando anúncios criativos para seus próprios
negócios e para terceiros através da Mensageria Davi.
Montou uma fábrica de extração de mel, uma destilaria e
uma vidraçaria. Tentou extrair prata em Santa Catarina,
comercializou o Café Cruzeiro, explorou a comercialização
de peixe salgado, criou os famosos cigarros Marca Diabo e o
carrapaticida Tabacina (premiado em 1910).
Ao mesmo tempo, foi Capitão da Guarda Nacional e
professor particular. Criou o Clube de Ciclismo, a entidade
227
tradicionalista União Gaúcha, a Sociedade Protetora dos
Animais e o Clube Caixeiral. Idealizou a Festa das Árvores,
exerceu cargos na Maçonaria, no Conselho Municipal, na
Biblioteca Pública Pelotense e na Academia de Letras do Rio
Grande do Sul, ocupando a cadeira n.º 20, em 1910. Foi o
incentivador das comemorações do Centenário de Pelotas
(quando editou uma revista), mobilizou os estudantes,
promoveu atividades assistenciais e propôs uma reforma
ortográfica, rejeitada pelo então Conselho de Instrução
Pública.
Sofreu muitas derrotas: teve negados os pedidos para
canalizar com recursos próprios o Arroio Santa Bárbara e
para fabricar fósforos. Foi prejudicado por uma campanha
contra os cigarros Marca Diabo, não pôode competir com o
preço da concorrência no empreendimento do Café Cruzeiro,
que era de melhor qualidade; foi roubado pelo sócio na
exploração da mina de prata. A cada empreendimento
frustrado, perdia uma propriedade, utilizada para o
pagamento das dívidas.
Embora exaustiva, sabemos que essa lista não dá
conta da totalidade das atividades do capitão — ―homem dos
sete instrumentos‖ -— como bem disse Faber Júnior,
contemporâneo de Simões, ao traçar o perfil do escritor nas
228
páginas do Correio Mercantil, no mês de seu aniversário, em
1901. Infelizmente, seus esforços se perderam, acumulados
em uma sucessão de fracassos que lhe rendeu a fama de
caipora e azarado, ao mesmo tempo em que dilapidou seu
patrimônio, fazendo com que ele sobrevivesse apenas do
escasso salário do jornal e da publicação dos três livros,
editados em vida, pela Livraria Universal.
Se teve fracasso nos negócios, o mesmo não ocorreu
em relação às letras -— primeiro como jornalista e
dramaturgo e, depois, como escritor regionalista. Além do
talento natural que, aos poucos, iria se desenvolver-se,
Pelotas exerceu fator condicionante na sua obra. Na época do
escritor, a cidade contava com intensa atividade cultural
distribuída entre saraus literários e musicais, teatros,
biblioteca, livrarias, tipografias, revistas segmentadas de
vários assuntos, almanaques e jornais.
As livrarias encarregavam-se da distribuição das
publicações nacionais e estrangeiras. Se existia tanta oferta
de literatura, é porque é porque era grande o público leitor,
transformando o texto literário em objeto de consumo. Ainda
mais, se levarmos em consideração fenômeno comum à
literatura de massa: o gênero folhetim.
229
O interior do Rio Grande do Sul seguiu o mesmo
caminho dos primeiros jornais franceses que, a partir de
1836, começaram a colocar histórias de ficção nos rodapés
dos jornais como forma de atrair o público leitor. Com o
sucesso dos folhetins nas publicações nacionais e
estrangeiras, as folhas locais logo procuraram aderir a esse
modelo.
O espaço do rodapé do jornal acabou reservado para
a publicação de folhetins, em textos completos, ou em
capítulos. Era bastante comum escritores publicarem suas
obras primeiro em revistas e jornais, testando a aprovação do
público, para só depois saírem no formato de livro. Com
Simões Lopes Neto não foi diferente. Ele já havia publicado
A mandinga em 1893, ―O negrinho do pastoreio‖, em 1906,
A ―Mboitatá‖, em 1909; em 1912 foi a vez dos Contos
gauchescos. O conto ―O negro Bonifácio‖, integrante dos
Contos gauchescos, foi publicado na Revista da Academia
de Letras do Rio Grande do Sul, na edição de dezembro de
1911 a abril de 1912. Os Casos do Romualdo, descobertos
por Carlos Reverbel, foram publicados inicialmente em 1914
no Correio Mercantil, em formato de folhetim.
Os Contos gauchescos vieram a público nas edições
de quinta-feira e domingo do Diário Popular, com texto
230
completo, que, às vezes, ocupava também o verso da folha,
no rodapé da página dois. Ao todo foram doze contos
publicados anteriores à edição em livro, pela Livraria
Universal, em setembro de 1912. Se levarmos em
consideração os outros autores que foram veiculados no
Diário e em outros jornais do mesmo período, como o
francês Michel Zevaco (escritor característico da terceira
fase do folhetim, entre 1875 e 1900), além de vários
escritores menores traduzidos do francês e de brasileiros,
como Lima Barreto e João do Rio, podemos concluir que
esse espaço era bastante concorrido. Logo, a julgar pelo
número de vezes que os Contos saíram, o autor deve ter
alcançado algum sucesso.
Mais tarde, o Diário Popular publica o anúncio do
lançamento do livro, em 11 de setembro de 1912. O mesmo
ocorre com outros jornais de Pelotas, Rio Grande e Porto
Alegre, no período de setembro/outubro desse ano, todos
eles acusando o recebimento do livro editado por Guilherme
Echenique & C. e elogiando a obra e o autor. Pode-se supor
que Guilherme Echenique, um dos donos da Livraria
Universal, enviou o volume aos principais jornais do Rio
Grande do Sul, como estratégia de lançamento, manobra que
deu certo. Entre os jornais que pudemos apurar, foram
231
publicadas notas de divulgação em Pelotas no Diário
Popular, Correio Mercantil, A Opinião Pública e A Reação;
O Tempo e Ecos do Sul, em Rio Grande, e A Federação e
Correio do Povo, em Porto Alegre.
Na crítica publicada no Diário Popular, em 2 de
novembro de 1912, assinada por Coelho da Costa 124 —
portanto, anterior à crítica de Antônio de Mariz, publicada
no Correio do Povo, em 1913, em Porto Alegre — o poeta
pelotense saúda o livro ―ansiosamente esperado da pena
magistral de João Simões‖. E afirma: ―Já de há muito é
conhecido e festejado, em nosso meio literário125, o nome
desse patrício ilustre, que tão nobres serviços tem prestado à
literatura rio-grandense, de que é, incontestavelmente, um
dos luminares‖. O crítico prossegue tecendo longas
considerações a respeito do livro e do tema regionalista
abordado pelo autor.
Para avaliar o reconhecimento que o autor atingiu
com as suas obras, podemos examinar os comentários ao
lançamento do livro Contos gauchescos e as notícias
referentes ao seu falecimento nos jornais Diário Popular
(Pelotas), Correio Mercantil (Pelotas), A Federação (Porto
124
Januário Coelho da Costa (D. Pedrito, RS, 24/10/1887 – Pelotas, RS,
8/11/1949). Advogado, poeta, cronista e jornalista.
232
Alegre), Ecos do Sul (Rio Grande), O tempo (Rio Grande), A
reação (Porto Alegre) e Correio do Povo (Porto Alegre).
O jornal Ecos do Sul, de Rio Grande, um dia após a
morte do escritor, publica o conto ―Trezentas onças‖, em
formato de folhetim, com a seguinte inscrição: ―Damos a
seguir uma produção literária do saudoso jornalista
pelotense sr. João Simões Lopes Neto, falecido quarta-4ª
feira última. Pertence ela ao seu livro CONTOS
GAUCHESCOS‖. 126 Segue abaixo uma foto em formato
oval do escritor e o conto.
Essa, provavelmente, seria a primeira vez em que um
dos Contos gauchescos sairia em jornal após o lançamento
do livro. A partir daíDepois, os Contos e as Lendas de
Simões
sairiam
estampadosapareceriam
em
diversas
publicações, de dentro e fora do Estado, a ponto de a Globo,
detentora
125
126
dos
Grifo nosso. Diário Popular. Pelotas, 2 nov. 1912. p. 1.
Ecos do Sul. Rio Grande, 17 de jun. 1916, p. 1.
233
direitos
autorais do escritor desde 1926, começar a cobrar pelas
publicações, para repassar os rendimentos à viúva, dona
Francisca, que viveu até os 95 anos, ao lado da filha adotiva
Firmina, em constantes dificuldades financeiras.
Apenas o jornal A Opinião Pública, de quem o
escritor era funcionário, não o homenageou com a devida
importância. Carlos Reverbel destaca a falta de prestígio que
Simões recebeu neste necrológio e, a partir daíapós, conclui
que o regionalista foi ignorado em seu tempo como escritor:
―Foi este o melhor necrológio de João Simões Lopes Neto,
publicado na imprensa de sua cidade, em que pesem diversas
impropriedades e outras tantas incorreções, entre elas histórias
como a de que fundara a Biblioteca Ppública Pelotense (aberta
quando ele tinha 10 anos) e a de que fora acadêmico de Direito e
Engenharia. Observa-se, entretanto, o principal: a julgar-se
pelos termos deste necrológio, escrito quando ele recém fechara
os olhos, o seu nome não teria ficado na história literária do Rio
Grande do Sul. O modo pelo qual os contemporâneos
apreciavam o que ele dizia, fazia e escrevia não confere com o
julgamento da posteridade a respeito de seus verdadeiros
merecimentos.‖127
Muitos críticos fizeram o mesmo julgamento.
Acreditamos, contudo, que Simões Lopes foi reconhecido
em seu tempo, dentro e fora do Estado. Só não foi mais,
porque na época a comunicação era difícil e as novidades
234
espalhavam-se lentamente. O mercado editorial, antes da
Livraria do Globo, era incipiente e precário. A própria
decisão da Globo de adquirir os direitos do escritor, em
1926, já demonstra que Simões possuía alguma importância.
Em Pelotas ele foi reconhecido, como atestam os
jornais, como teatrólogo e jornalista; em Porto Alegre, era
membro da Academia de Letras do Rio Grande do Sul e
viajava algumas vezes pelo Estado, para proferirapresentar
suas conferências. Fora do Rio Grande do Sul, foi amigo de
Coelho Neto e contava ainda com o apoio de Alcides Maya,
que residia no Rio de Janeiro e era membro da Academia
Brasileira de Letras. Após sua morte, em 1916, não tardou a
ser acolhido pelos grandes nomes da crítica brasileira, como
João Pinto da Silva, considerado em sua época o crítico mais
importante do Rio Grande do Sul, Moysés Vellinho,
Augusto Meyer, Aurélio Buarque de Holanda, Sílvio Júlio,
Manoelito de Ornellas e Darcy Azambuja, além do estudo
minucioso de Carlos Reverbel.
Nos primeiros anos que se seguiram àdepois de sua
morte, do autor houve manifestações representativas da
crítica. Em 1918, Olavo Bilac comenta em uma conferência
127
REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda Nacional. Porto Alegre:
UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 280.
235
a lenda ―O negrinho do pastoreio‖, o que atesta o prestígio
que Simões havia alcançado. O discurso de Bilac foi editado
em 1924 e publicado no Rio de Janeiro, sob o título Últimas
conferências e discursos.128 Também em 1918 o nome de
Simões aparece citado na Bibliografia do conto brasileiro,
editada pela Biblioteca Nacional.129
Os estudos de Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer
e Aurélio Buarque de Holanda constituíram um divisor de
águas na história da recepção do autor de Contos gauchescos
e de Lendas do Sul. A partir daíDaí em diante, o escritor
gaúcho foi várias vezes revisitado. Nos anos 70, os estudos
sobre Simões Lopes ocupam a Academia, com novos nomes
como Regina Zilberman, Ana Mariza Filipouski, Luis
Arthur Nunes, Maria da Glória Bordini, Flávio Loureiro
Chaves, Lígia Chiappini e Antônio Hohlfeldt, entre outros.
A crítica sai dos jornais e migra para a universidade,
e o escritor passa a ser encarado a partir do viés dos
pesquisadores. Em todos os momentos Simões Lopes Neto
sempre responde às novas visões — sejam as de cunho
determinista e impressionista dos primeiros tempos,
128
BILAC, Olavo. O negrinho do pastoreio. In: Últimas conferências e
discursos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1924.
236
passando à abordagem regionalista e estilística e chegando
aos estudos estruturalistas e narrativos.
O que ocorreu, no entanto, foi uma confusão entre a
fama de derrotado nos negócios, que passou a ser transferida
a todas as atividades de Simões, inclusive à literatura.
Contudo, acreditamos que a recepção é da obra e não, da
biografia. Outro fator importante para indicar o sucesso
editorial de Simões é o grande número de edições que
existem de seus livros, atravessando o século em diversos
formatos — periódico, livro, internet — em editoras de todo
país.
Da mesma forma, Cancioneiro guasca foi editado
pela Livraria Universal em três momentos — 1910, 1917 e
1928, indicativo de que o livro vendia. A segunda edição
afirma textualmente em seu prefácio que o autor era
conhecido em todo país. Considerando o número reduzido
das primeiras edições dos livros de Simões Lopes Neto —
cerca de 200 exemplares e a referência dada à popularidade
que o autor atingiu, citadas em jornais e nos livros de João
Pinto da Silva, em Fisionomia dos novos (1922) e em
História literária do Rio Grande do Sul (1924) , acreditamos
129
GOMES, Celuta Moreira; AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia
do conto brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1918, p.
237
que Simões Lopes Neto ele é um exemplo de permanência
na literatura brasileira.
Nos jornais pelotenses podem ser encontradas ainda
hoje as páginas da vida do escritor. Lá estão divulgados os
lançamentos e a publicidade de seus negócios e anunciados
alguns fracassos, como a falência e a venda de
estabelecimentos e a oferta da venda do seu espólio, por
parte da viúva, após a morte de Simões, sem que
aparecessem interessados. Os jornais divulgaram ainda a
palavra do escritor gaúcho, às vezes com humor, outras com
irritação, muitas com preocupação cívica e histórica.
Registraram os sucessos das peças teatrais e as primeiras
experiências com a literatura, com textos como Contos
gauchescos, algumas das Lendas e Casos do Romualdo,
entre outros.
De maneira abrangente, analisando a vida, a obra e a
recepção de Simões Lopes Neto, é possível concluir que ele
nunca parou de escrever. De fato, até atingir a maturidade
artística, por volta dos quarenta anos, sua produção
intelectual foi intensa e realizou-se de formas variadas:
―triolets‖, conferências, ensaios, artigos, peças de teatro.
Quando seu talento literário se manifestou-se, realizou
242-243.
238
vários trabalhos ao mesmo tempo — literatura, história,
jornalismo, negócios, atividades de cidadão. Soube manejar
com a mesma habilidade a comédia e o drama, o pitoresco e
o trágico, sempre pontuados por toques de lirismo, motivos
que garantiram que sua literatura alcançasse a popularidade,
sendo reproduzida, desde o início, em diversas publicações.
Do mesmo modo, a crítica nunca deixou de falar sobre ele, e
a cada nova abordagem, sua obra provou que tinha fôlego.
Considerações finais
Ao nos aproximarmos da ficção de Simões Lopes
Neto, deparamo-nos com um movimento de idas e vindas na
história desse escritor gaúcho. No decorrer do estudo,
mergulhamos no universo simoniano, através da obra
publicada nas primeiras edições em livros e, depois,
reeditada, continuamente.
Da mesma maneira, acompanhamos os anúncios
publicitários, os textos jornalísticos e literários e as críticas
publicadas em antigos jornais do início do século; estudamos
a valorização atual do autor, através de extensa fortuna
crítica,
em
livros
e
periódicos.
Pudemos,
ainda,
aprofundarmo-nos um pouco mais na obra e na vida do
escritor, por meio de pesquisas em documentos raros,
239
localizados em arquivos públicos e particulares, e de
depoimentos valiosos de seus apreciadores.
Aos poucos, Simões foi se revelando-se, e outros
dados referentes à recepção de sua obra permitiram a
formação de novas hipóteses acerca do reconhecimento da
obra do escritordo seu trabalho literário. Tendo em vista o
material encontrado nos jornais rio-grandenses do início do
século — a crítica pioneira do poeta Coelho da Costa, os
registros do lançamento do livro Contos gauchescos e as
referências ao sucesso de Simões nos obituários de vários
jornais, quando de sua morte, em 1916 — acreditamos que
Simões Lopes Netoele foi reconhecido em vida pela crítica e
pelo público leitor.
Em outro ponto da obra Um capitão da Guarda
Nacional, Reverbel fala sobre a recepção de Simões, citando
o comentário de João Pinto da Silva, de 1922, — ―J. Simões
Lopes Neto, indiscutivelmente o mais fiel e, por isso, o mais
popular dos nossos regionalistas, o ‗conteur‘ amado da nossa
gente dolorosa e rude da campanha.‖130. O biógrafo refere
acerca da popularidade do escritor:
―A observação de João Pinto da Silva, apontando Simões Lopes,
naquelas alturas, como ―o mais popular dos nossos
130
SILVA, João Pinto. Fisionomia de “novos”. São Paulo: Monteiro
Lobato & Co., 1922. p. 146.
240
regionalistas‖, tem inteira procedência. Contrariamente ao que
acontecia com Alcides Maya, cujos livros eram lidos por uma
elite, por causa da barreira verbal, os ―Contos gauchescos‖ eram
deletreados até mesmo pela gente simples da campanha, pouco
chegada aos livros.‖131
E mais adiante, comentando a tiragem reduzida dos
Contos gauchescos, reflete sobre o sucesso do escritor junto
ao público leitor:
Seja como for, o livro teve penetração popular e
conseguiu certo número de leitores. E quando já se haviaNo
momento em que esgotado, após a morte do autor, suas
páginas começaram a ser reproduzidas, com surpreendente
regularidade, em diversas publicações. De modo geral, tais
transcrições não eram feitas em revistas ou periódicos
literários, mas em publicações de caráter popular, como
almanaques e órgãos dedicados a assuntos rurais. Desta
forma, mesmo depois de esgotada, a obra se mantinha viva
junto ao público.132
Depois do falecimento de Simões, os contos
passaram a ser publicados isoladamente em periódicos
diversos. No ano da morte do escritor, a revista Seleta, do
Rio de Janeiro, publica ―Contrabandista‖.
131
133
No ano
REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda nacional. Porto Alegre:
UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 284.
132
Idem, p. 285.
133
Revista Seleta, Rio de Janeiro, 22 jun. 1916, Ano II, n. 25.
241
seguinte, a revista A Estância, órgão da União dos Criadores
do Rio Grande do Sul, editada em Porto Alegre, transcreveu
―Artigos de fé do gaúcho‖. 134 Em 1918, foi a vez do
Almanaque do Globo publicar ―Contrabandista‖ 135 e, em
1922, o mesmo conto apareceria no Almanaque do
Agricultor Rio-Grandense. Também o Almanaque do
Correio do Povo traria, em diversas ocasiões, contos e
lendas do escritor gaúcho.
Além dos comentários de Olavo Bilac, em 1918, e da
referência da Biblioteca Nacional, merecem destaque as
críticas de João Pinto da Silva, valorizando a popularidade
de Simões na História Literária do Rio Grande do Sul.
Nessa ocasião, o crítico salientou a importância de Simões
Lopes
no
Regionalismo
gaúcho,
impondo-se
―decisivamente, à curiosidade e à admiração da crítica‖, com
―os seus lindos Contos gauchescos‖.136
134
A Estância. Porto Alegre, jan. 1917, ano V, n. 1, p. 21-22.
Almanaque do Globo. Porto Alegre, 1918, p. 169-173.
SILVA, João Pinto. História literária do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Globo, 1924. p. 155-162.
135
136
242
Ainda no ano de 1922, Moysés Vellinho
comenta no jornal Correio do Povo, sob o psedônimo de
Afonso Arinos, o trabalho de Simões Lopes, relacionando-o
a Alcides Maya, com o título ―Sobre um acerto‖. 137 No ano
seguinte, apresenta novo artigo traçando um paralelo entre
os dois autores, intitulado ―Alma Bárbara‖.138
Em 1925, Roque Calage cita Simões Lopes na
conferência ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖, no
jornal Diário de Notícias, em Porto Alegre.
139
Essas
referências saíram antes da primeira edição da Globo de
Contos gauchescos e Lendas do Sul, indicando que o escritor
já despertava o interesse da crítica, ultrapassando as
fronteiras municipais.
Quando a Globo lançou o livro, em agosto de 1926,
as manifestações de reconhecimento ao trabalho do autor só
aumentaram. Nesse ano, o Correio do Povo publicou duas
críticas significativas para a história da recepção simoniana:
as de Augusto Meyer140 e Darcy Azambuja.141 Em 1933, o
137
VELLINHO, Moysés. ―Sobre um acerto‖. Correio do Povo, Porto
Alegre, 7 set. 1922.
138
VELLINHO, Moysés. ―Alma bárbara‖. Correio do Povo, Porto
Alegre, 23 set. 1923.
139
CALAGE, Roque. ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖. Diário
de Notícias. Porto Alegre, 2 ago. 1925, p. 3.
140
MEYER, Augusto. ―O grande Simões Lopes‖. Correio do Povo,
Porto Alegre, 26 ago. 1926.
243
crítico Agripino Grieco expressa o reconhecimento à obra de
Simões, incluindo-a na sua Evolução da prosa brasileira,
enfatizando principalmente a importância das lendas ―A
Salamanca do Jarau‖ e ―O negrinho do pastoreio‖. 142 Do
mesmo modo, a presença do escritor gaúcho na coletânea,
organizada por Edgar Cavalheiro e Almiro Rolmes Barbosa,
As obras-primas do conto brasileiro, editada pela Martins,
em São Paulo, coloca Simões no nível dos grandes contistas
brasileiros.143
Para finalizar, é importante salientar ainda o valor da
Revista do Brasil na valorização do autor gaúcho. Dirigida
em sua segunda fase, por Otávio Tarquínio de Souza e
Rodrigo Melo Franco Andrade, de 1938 a 1943, a Revista do
Brasil publicou diversos contos de Simões, aproximando o
escritor pelotense de Aurélio Buarque de Holanda e Lúcia
Miguel
Pereira
—
141
dois
nomes
AZAMBUJA, Darcy. ―Contos gauchescos‖. Correio do Povo, Porto
Alegre, 29 ago. 1926.
142
GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1933. p. 131-132.
143
BARBOSA, Almiro Rolmes; CAVALHEIRO, Edgar (Orgs.) As
obras primas do conto brasileiro. São Paulo: Martins, 1943.
244
fundamentais para o ressurgimento da ficção simoniana, a
partir da edição crítica da Globo, em 1949, que fez com que a
recepção da obra adquirisse novo fôlego.
A pesquisa nos arquivos e coleções que fomentam os
estudos nas fontes primárias, foi fundamental para esse
trabalho, bem como o estudo da extensa fortuna crítica do
autor. Mais uma vez, a obra de Simões Lopes Neto continua
respondendo às novas visões dos leitores e pesquisadores, a
partir docomeçar pelo material obtido empelo contato com
as fontes primárias. Nos jornais é possível perceber o vaivém
de textos que circundam a atividade literária. A obra
constitui o produto final, mas ela dispõe de uma história,
dada pela sua trajetória das fontes à recepção.
A história editorial dos Contos gauchescos indica a
capacidade de permanência da obra, que atravessou o século
XX, atingindo o ano de 2001 com nova edição pela Globo. O
interesse
dos
editores
pela
obra
de
Simões
e,
conseqüentemente, do público leitor, demonstra que o
escritor gaúcho continua atendendo às expectativas dos
leitores, mantendo-se atual.
245
9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO
JARAU DE J. S. LOPES NETO
Oscar Brisolara 144
Este estudo parte das concepções da Teoria da
Enunciação de orientação francesa, que concebe ser todo o
discurso habitado por discursos outros do passado. Esses
discursos não estão apenas no nível da memória, mas
constituem o próprio discurso presente.
A lingüista francesa Jacqueline Authier-Revuz trata
da heterogeneidade que é, justamente, a presença do outro no
discurso. A autora apresenta duas formas de dessa
heterogeneidade:
a
heterogeneidade
mostrada
e
a
heterogeneidade constitutiva.
A heterogeneidade mostrada é aquela que tem
marcas no discurso. É o caso das citações e suas marcas
como as aspas, o itálico, ou as glosas, ou sejam, os
comentários que se fazem ao discurso do outro, ou ainda as
formas do discurso direto, discurso indireto e discurso
indireto livre. Essas são formas que as línguas têm para
marcar a presença do discurso do outro no texto.
144
Professor da UCPel.
246
Authier afirma:
―No fio do discurso que, de fato, um locutor único produz
materialmente, um certo número de formas de lingüisticamente
apreensíveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, na
linearidade, o outro.
―É o outro do discurso relatado: as formas sintáticas do discurso
indireto e do discurso direto, de maneira unívoca, no quadro da
frase, um outro ato de enunciação. No discurso indireto, o
locutor se faz tradutor: usando suas próprias palavras, ele remete
a um outro como fonte do ―sentido‖ dos propósitos que ele
relata. No discurso direto são as próprias palavras do outro que
ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado na frase,
da citação, o locutor assumindo-se como simples porta-voz.
Nessas duas modalidades diferentes, o locutor dá lugar
explicitamente em seu discurso ao discurso do outro‖
(Authier-Revuz, 1982, p. 92).
Ainda falando sobre a heterogeneidade mostrada, ela
se refere a outra forma de o autor marcar a presença do
discurso de outro locutor no seu discurso. A essa forma ela
denomina de conotação autonímica. Explicita esse tipo de
marcação como segue:
―Uma forma mais complexa de heterogeneidade aparece nas
diversas formas marcadas da conotação autonímica: o locutor
faz uso de palavras inscritas no fio do seu discurso e, ao mesmo
tempo, mostra-as. Dessa maneira, sua figura normal de usuário
das palavras acompanha-se, momentaneamente, de outra figura,
a de observador das palavras utilizadas; e o fragmento assim
designado – marcado por aspas, palavras em itálico, uma
entonação e/ou qualquer forma de comentário – recebe, em
relação ao resto do discurso, um outro estatuto" (Authier-Revuz,
1982, p. 94).
Ela apresenta como manifestação da heterogeneidade
as formas de comentário, glosa que o locutor inclui no seu
discurso. A glosa pode ser uma nota explicativa de palavra
247
ou termo, comentário, interpretação, nota ou crítica, censura;
também pode ser anotação marginal ou interlinear, uma nota
de rodapé. São sempre freqüentemente manifestações da
presença do outro no discurso marcadas pelo locutor.
Formas dessa a presença do outro no discurso podem
ser ainda a ironia, a antífrase, a imitação, a alusão, a
reminiscência e toda e qualquer maneira de referir-se com
formas marcadas a esse discurso.
Porém a autora francesa refere-se a outra forma mais
radical da presença do outro no discurso: a heterogeneidade
constitutiva do discurso. Afirma: O outro está sempre
presente em tudo (Authier-Revuz, 1982, p. 98). Ela
acrescenta que a heterogeneidade constitutiva é uma
ancoragem para a heterogeneidade mostrada do discurso.
Desenvolve sua argumentação em relação à sempre
necessária presença do outro no discurso baseada em duas
fontes: o dialogismo do Círculo de Bakhtin e a psicanálise a
partir da releitura de Freud por Lacan.
De Bakhtin, toma o dialogismo, de modo especial
como o autor apresenta em Marxismo e Filosofia da
Linguagem. Busca o lugar dado ao outro dentro da
perspectiva dialógica, mas um outro que não é nem o duplo
de um face a face, nem mesmo o diferente, mas sim, um
248
outro que atravessa constitutivamente o um. Atravessar
constitutivamente
o
um
consiste
em
fazer
parte
necessariamente dele.
Para haver dialogismo, há, inevitavelmente, de haver
o outro. Esse é princípio fundador da subjetividade e da
linguagem. Só existe o um,
porque há o outro. Só há
linguagem em função desse outro que está sempre presente
no um. A presença do outro é necessária a todo o discurso. A
própria palavra que o sujeito julga sua, já vem habitada por
outras vozes, outras visões e definições.
É necessário incluir aqui também a imagem do
interlocutor. Todo discurso tem uma orientação. Diz
Authier:
―Deve-se dizer que todo discurso é compreendido nos termos do
diálogo interno em que se instaura entre este discurso e aquele
próprio do receptor, o interlocutor compreende o discurso
através do seu próprio. Visando à compreensão de seu
interlocutor, o locutor integra, então, a produção de seu discurso
uma imagem de outro discurso, aquele que ele empresta a seu
interlocutor.‖ (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 114).
Tomando de Saussure a concepção de eixo
paradigmático, pode-se dizer que o discurso dialoga com o
interlocutor, orienta-se para um interlocutor, somente que
esse o apreende também a partir de seu patamar. O mesmo
discurso pode evocar no interlocutor, pelas relações
249
paradigmáticas, leituras que o locutor não pode comandar. O
enunciado de um locutor pode produzir leituras diversas
daquelas pretendidas pelo locutor- –enunciador.
Para a psicanálise, a heterogeneidade tem outra
perspectiva. Essa não tem a linguagem como objeto, mas sim
o inconsciente. Em relação a essa temática, diz a lingüista
francesa:
―É através de um olhar exterior à lingüística, pousado sobre a
linguagem, a palavra, o sujeito falante que, para a psicanálise
constitui um material e não um objeto próprio, que esta pode lhe
dizer respeito ao contrário da imagem de um sujeito ―pleno‖ que
seria a causa primeira e autônoma de uma fala homogênea que
diz respeito a um sujeito dividido (o que não significa nem
desdobrado, nem compartimentado). Sua posição é aquela de
uma fala heterogênea‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 117).
Sendo assim, a psicanálise, olhando a linguagem, vai
buscar o recalque, ou seja, os conflitos esquecidos que atuam
sobre o sujeito, sem que ele tenha consciência disso, mas que
têm efeitos sobre sua vida presente.
Falando do inconsciente, diz Lacan:
O inconsciente é esta parte do discurso concreto enquanto
transindividual, que falta à disposição do sujeito para
estabelecer a continuidade do seu discurso consciente (...) O
inconsciente é aquele capítulo da minha história que é
marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o
capítulo censurado (Lacan, 1953, p. 136).
250
A psicanálise faz um trabalho de regressão através da
linguagem, para recuperar esses perdidos, esses conflitos do
passado que atuam no presente. Não é um retorno de fato. O
processo de análise é uma espécie de espelho onde o sujeito
se enxerga. É no significante que o analista busca um
significado oculto.
A psicanálise, como Bakhtin, também chega à
conclusão de que o discurso é sempre polifônico. Esse
significado oculto não é monolítico, como afirma Lacan:
O inconsciente não a mensagem, mesmo estranha, mesmo
cifrada, que alguém se esforça para ler num velho
pergaminho, é um outro texto, escrito embaixo, que se deve
ler por transparência ou com ajuda de algum revelador
(Lacan, 1953, p. 129).
É como um palimpsesto em que alguém apagou um
texto e escreveu outro no mesmo pergaminho. O trabalho de
busca, em ambos os casos, é o mesmo. O pergaminho é o
significante em que devo, por trás do significado da
superfície, procurar o significado apagado.
De forma semelhante, é na materialidade da língua
que é possível reconhecer a escritura polifônica do discurso.
Assim, como é somente através da fala que se pode acessar
251
os conhecimentos formais que o indivíduo tem da língua,
assim também o inconsciente
é acessível através das
manifestações dos significantes que o sujeito produtor do
discurso usa.
Passa-se, a partir daí, à noção de sujeito que
[...] ―não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que
lhe serviria para ―traduzir‖ em palavras um sentido do qual seria
a fonte consciente‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 127).
Esse sujeito não é nem a fonte, nem a origem do que
diz. Ele é habitado por outros discursos do passado, que não
estão no nível do seu consciente, mas que estão presentes no
seu inconsciente e agem no seu discurso presente.
Esse sujeito é, portanto, efeito de linguagem. E ainda
mais, é um sujeito dividido, como afirma Clément, citado
por Authier:
―O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por este
efeito ele não é a causa dele mesmo, ele carrega nele a verve da
causa que o divide. Pois sua causa é o significante sem o qual
não haveria nenhum sujeito na realidade‖ (Authier-Revuz, 1982,
p. 128).
Esse sujeito clivado, dividido, é descrito por Lacan
da seguinte maneira:
―O homem não é em sua psique o resultado conclusivo de uma
divisão em duas vertentes. A consciência não é a face visível
dum subconsciente oculto, nem o inconsciente a estrutura
profunda, não revelada, de um consciente brilhante. A relação
não se estabelece nesses termos, mas toma ares geográficos de
um percurso sem locais, nem inverso, donde o sujeito se enuncia
252
sem saber o que diz em uma palavra que diz muito sobre este
saber‖ (Lacan, apud Authier-Revuz, 1982, p. 128).
Não se trata também de um sujeito compartimentado
em que haja um espaço, um compartimento para o
consciente e outro para o inconsciente. Não um sujeito
dividido à maneira de um objeto concreto que pode ser
fracionado em diferentes partes e que unidas formam um
todo. Essa divisão não é também um acidente traumatizante,
cuja unidade desejada pudesse ser recuperada ao modo de
um aparelho restaurado.
Essa abordagem nos permite-nos concluir que o
outro está na essência da linguagem. Ela somente existe em
função dele e. Ela está voltada para ele. Isso também nos
permite encaminhar nosso raciocínio para a análise da lenda
A Salamanca do Jarau de João Simões Lopes Neto.
Ora, se todo o discurso é habitado por discursos
outros do passado, esse também o é, ainda mais por se tratar
de um texto que aborda uma lenda que está na base da
formação cultural do Rio Grande do Sul.
O discurso cuja presença se pretende-se mostrar
neste estudo é o discurso clássico grego, mais precisamente
aquele presente na obra clássica de Homero, em sua grande
obra, a Ilíada. Além desse, abordar-se-á também a presença
253
de outros discursos como o das culturas européia, árabe e
indígena que são importantes formadores da cultura local.
É necessário salientar que a própria obra do aedo
grego também é habitada por outros discursos pelo mesmo
processo aqui apresentado. O grande herói da Ilíada é
Aquiles. Esse jovem rei que participou da Guerra de Tróia
era filho de Peleu, rei da Tessália, e da deusa Tétis, como
quer a mitologia clássica grega.
Uma narrativa tradicional na mitologia grega é a do
casamento de Peleu, um homem, e Tétis, uma deusa,
ocorrido no Olimpo, morada dos deuses. A esse consórcio
todos os deuses foram convidados, exceto Éris, deusa da
discórdia, não convidada por razões óbvias.
A deusa Éris chega no final da festa com uma maçã
de ouro que põe sobre a mesa com a seguinte inscrição: 
, ou seja, para a mais bela. Esse ato provocou uma
grande confusão, cada deusa desejando para si a maçã.
Zeus, o deus supremo do Olimpo, organiza uma
escolha prévia, da qual resulta a seleção de três deusas: Hera,
esposa do próprio Zeus; Palas Atenéia, deusa da sabedoria; e
Afrodite, deusa do amor.
Coube a Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de
Tróia, a decisão sobre a primazsia em beleza entre as deusas
254
olímpicas. As deusas fizeram, cada uma por sua vez, um
trabalho de subversão para convencer o jovem de apenas
vinte anos a escolhê-la como a mais bela.
Hera promete torná-lo o mais poderoso rei de toda
terra. Palas, afirma que, se for ela a escolhida, torná-lo-á o
homem mais sábio do mundo. E Afrodite promete-lhe a
mulher mais bela do mundo.
Aos vinte anos, Páris escolhe Afrodite. A deusa
cumpre a promessa, entregando-lhe Helena, esposa de
Menelau, rei de Corinto, que foge com ele para pátria do
jovem. Esse fato vai originar a guerra de Tróia, conforme
afirma também a mitologia grega,.
que
Essa mitologia sempre remete à realidade humana.
Esse mito, em particular, parece referir-se às tentações
humanas. Hera seria, dessa forma, a metáfora do poder;
Palas, a do saber; e Afrodite, a do prazer. Essas, segundo a
proposta da presente narrativa, parecem ser as três grandes
tentações do homem: o poder, o saber e o prazer.
É lógico que seria impossível rastrear na lenda de
Simões Lopes Neto, aliás parte da tradição da literatura oral
do Rio Grande do Sul, a presença de todos o discursos
subjacentes ao texto do autor pelotense. Porém, alguns traços
255
do discurso mitológico grego parece estarem evidentes no
mito gaúcho.
A lenda A Salamanca do Jarau narra a história
ocorrida com Blau Nunes, narrador da obra, quando parte em
busca de um boi barroso, que fugira. Numa economia
baseada fundamentalmente na pecuária, a posse do boi é o
ideal do homem, ainda mais numa situação em que o boi
fazia parte, muitas vezes, da grande manada sem dono,
formada após a expulsão dos jesuítas e derrocada das
missões.
Assim, o boi barroso é tema de muitas cançonetas
populares da época. Como Simões Lopes foi compilador
dessas canções numa obra intitulada Cancioneiro Guasca, é
claro que tinha conhecimento desse tema.
Prova disso é a citação feita pelo autor, logo no início
da lenda, de uma canção do boi barroso que faz parte do
Cancioneiro Guasca cuja primeira estrofe transcrevo abaixo
―Meu bonito boi barroso.
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido‖.
(Lopes Neto, 1965, p. 133).
Na busca desse boi, Blau mete-se pelas estradas e
encontra o santão da salamanca do cerro. (Idem, ibidem
256
p.135), personagem lendário que fora amante de Teiniaguá,
princesa encantada de origem árabe. Por indicação do
santão, seguiu morro acima, sempre na busca do boi barroso.
Entrou na caverna do cerro do Jarau. Diz o texto da lenda:
―Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por
causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo
que era escuro...
Andou mais, num corredor dumas braças; mais ainda; sete
corredores nasciam deste.
Blau Nunes foi andando‖ (Idem, ibidem, p. 153).
E foi andando e diante dele se puseram sete provas:
Primeira prova: Mãos de gente, sem gente que ele
visse, batiam-lhe no ombro (Idem, ibidem, p 154).
Segunda prova: ... sentiu ruído de ferros que se
chocavam, tinir de muitas espadas (idem, ibidem, p. 154).
Terceira prova: ... homens peleavam de morte (idem,
ibidem, p. 154), ... Blau meteu o peito entre o espinheiro das
espadas, o fino das pontas, ... sem olhar para os lados, ...
escutando porém os choros gemidos dos peleadores (Idem,
ibidem, p. 154),
Quarta prova: mãos mais leves batiam-lhe no ombro,
como carinhosas e satisfeitas (Idem, ibidem, p. 154)
Quinta prova: ... saltaram-lhe aos quatro lados
jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente... E ele
meteu o peito e passou (Idem, ibidem, p. 154),
257
Sexta prova:...caveiras soltas, dentes branqueando,
buracos de olhos...(Idem, ibidem, p. 155); .
Sétima prova: ... aí dentro de um jogo de um jogo de
línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenhas
de nhanduvai... outra vez meteu o peito e passou, sentindo o
mormaço das labaredas (Idem, ibidem, p. 156).
São todas situações que perturbariam um homem
comum, especialmente levando em consideração que se
passaram nas profundezas de uma caverna, no início da
noite. Porém, Blau passou, sem se perturbar, por todas elas.
Passadas as provas, Blau sem se abalar segue o seu
caminho e encontra uma velha assim descrita:
―Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe dourado,
havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta
transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma
velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de
caduca.
―E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava a
tangia, e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se
deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre
linheira. (...) E disse:
- Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei...‖(Idem,
ibidem, p. 157-58).
258
E vêm então as sete ofertas que são:
1) a sorte no jogo;
2) a arte de cantar e com ela conseguir o amor das
mulheres;
3) o dom de curar e de impor males através das
ervas;
4) a habilidade nas armas;
5) o poder sobre os outros;
6) a riqueza;
7) a arte da pintura e da poesia.
A todas essas tentações Blau resiste. Pensou e não
disse:
- Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és
tudo (Idem, ibidem, p. 159).
As tentações de Blau são as mesmas de Páris.
Constituem a presença do discurso grego clássico no
discurso da lenda, transformado na linguagem desse texto. A
sorte no jogo, a habilidade nas armas, o poder sobre os outros
e a riqueza reduzem-se à primeira tentação do herói troiano,
ou seja, o poder. A arte de cantar, o dom de curar e a arte da
pintura e da poesia correspondem à tentação de Palas, ou
seja, o saber que inclui também a arte. Porém, o prazer não
259
lhe é oferecido, no entanto, é o que ele deseja e que se
manifesta, quando ele afirma que desejaquer a Teiniaguá.
A grande diferença entre a lenda rio-grandense e o
mito grego consiste no fato de a Páris ter sido ofertado o
prazer na metáfora de Afrodite, que lhe oferece e concede
Helena, a própria concretização do prazer carnal, enquanto
que a Blau sequer lhe é oferecida essa possibilidade. É ele
que manifesta esse desejo, que lhe é negado.
Em troca, recebe a onça de ouro que se multiplica
indefinidamente, proporcionando-lhe uma imensidão de
bens materiais. Em lugar de seu desejo de satisfação carnal, a
terceira tentação de Páris, lhe é concedida a primeira oferta
do mito grego, pois o dinheiro está intimamente relacionado
ao poder. Porém, enquanto Páris desfruta de Helena e por um
tempo é feliz, Blau não consegue a princesa Teiniaguá. O
poder do dinheiro torna-o infeliz e solitário e ele acaba
declinando desse bem e voltando à miséria primitiva.
A presença do ideal grego de realização e em nossa
cultura fica patente: primeiramente, na procura do boi
barroso,
manifesta-se como metáfora do sonho de ter.
Depois nas ofertas de Teiniaguá, manifestando o sonho do
poder e do saber, e a própria oferta do santão que concede ao
peão gaúcho a onça de ouro que se multiplica, concretizando
260
o sonho do poder. E, por fim, o desejo do prazer,
manifestado no pedido de Blau pela princesa árabe
encantada, a Teiniaguá.
O número sete presente tanto nas provas pelas quais
passa Blau dentro da caverna, (a caverna também se divide
em sete) quanto nas ofertas da velha maga manifesta outra
constante na numerologia de origem oriental. São sete os
sacramentos cristãos, sete são também as virtudes teologais e
os pecados capitais. Ora, sete, na mesma numerologia, é o
resultado da soma de três e quatro. Nessa numerologia, três
constitui a perfeição divina. É o indivisível, o imortal,
enquanto que quatro é o divisível, o mortal, portanto, a
perfeição humana.
O resultado da soma de ambos constitui a soma da
perfeição divina com a perfeição humana já marcadamente
presentes na mitologia grega. Assim, Aquiles, o herói da
Ilíada de Homero, constitui um exemplo disso. Na voz do
próprio aedo grego, o guerreiro é apresentado como peleio
Aquiles (Homero, 1976, p 75), isto é, filho de Peleu, rei
lendário da Tessália. Por outro lado, o poeta grego apresenta
a mãe de Aquiles como a bracinívea Tétis (Idem, ibidem, p.
83).
261
Assim, Aquiles é filho de Peleu, homem, rei nobre;
mas também de Tétis, deusa, amante e protegida de Zeus.
Aquiles é humano-divino. Também o herói romano da
Eneida, Enéias, é filho de Anquises, pastor troiano, homem,
portanto; e Vênus, a deusa grega do amor. Jesus Cristo é o
exemplo cristão dessa dualidade. É filho do Espírito Santo,
Deus, com a Virgem Maria, mulher, humana. Portanto, sete
é apenas a manifestação numerológica dessa dualidade.
Outra manifestação da cultura européia nao lenda é a
presença, primeiramente do conflito entre as culturas árabe e
a cristã. Depois, a manifestação forte da presença árabe em
nossa cultura regional, ocasionada pelos séculos de
dominação árabe sobre a península ibérica, ingrediente
marcante na literatura de seus povos.
Porém, tTrata-se, porém, da visão cristã em que o
árabe é apresentado como mau. A própria Teiniaguá aqui se
alia a Anhangá-pitã, divindade do mal na mitologia tupi,
correspondente ao satanás do cristianismo.
Ao mesmo tempo em que ela é apresentada como má,
aliada à divindade do mal, por ele transformada, no final da
lenda torna-se a mulher primitiva do Rio Grande, formando,
com santão, um casal de peões. Diz a lenda:
262
―Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na
teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... e a moura numa
tapuia formosa; ...e logo o vulto da face branca e tristonha
tornou a figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez,
num guasca desempenado...
E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida
das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar
distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o
senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como
namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a
pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e
amornada de sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de
bibis roxas, de malmequeres brancos, como uma concha
convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria,
a caminho do repouso‖ (Lopes Neto, 1965, p. 166).
Nesse final de narrativa, o autor deixa clara a
concepção de que a cultura rio-grandense é uma soma da
cultura cristã, da cultura árabe e da cultura indígena. O casal
formado pelo sacristão e pela princesa árabe vem a constituir
o gaúcho primitivo que originou o nosso povo. Na última
lenda da trilogia, O Negrinho do Pastoreio, vai aparecer
também o componente africano da formação do gaúcho.
Pode-se constatar, ainda, a presença de uma
concepção de mulher muito forte na cultura européia.
Teiniaguá é a personificação feminina, em que a mulher,
aliada ao demônio (Anhangá-pitã), representa um apelo
irresistível ao pobre sacristão, índio europeizado.
Ele abandona a civilização, tal como é representada
na missão, desfruta das riquezas da salamanca e do amor
263
carnal de Teiniaguá, a um tempo lagartixa e mulher: animal e
ser humano.
A história de Blau é paralela à do sacristão: ele
também, na busca do boi barroso, embrenha-se no Jarau,
encontra-se com o sacristão, supera as sete provas da furna e
conquista a onça de ouro encantada. Com ela chega à
riqueza, porém a solidão não lhe permite a conquista da
felicidade.
Ambos precisam de uma libertação. O sacristão,
estando diante de duas propostas: uma que apontava para
Deus, os padres, a civilização cristã; outra para o diabo, para
a mulher, para a carne, para o paganismo; optou pela
segunda.
Blau, pobre peão, conquista a riqueza; porém, todos
os que com ele negociam tudo perdem. Isso Leva-o ao
isolamento e à conseqüente infelicidade.
Como se dará a redenção de ambos? Blau devolve a
moeda e com ela a fortuna e recebe como prêmio a
felicidade. O sacristão é libertado pela tríplice saudação
cristã de Blau. O homem é o instrumento da libertação do
outro homem, sempre através da religião, da saudação cristã.
O sacristão transforma-se com Teiniaguá, num casal de
agricultores.
264
As metamorfoses da princesa árabe, em lagartixa, em
moça bonita, em velha carquincha, em tapuia formosa; do
índio em sacristão, em vulto de face branca e tristonha, em
guasca desempenado, e, por fim ambos em casal de
agricultores são metáforas que trazem para o presente esses
discursos outros do passado para o presente, e são vozes das
culturas subjacentes à nossa cultura.
Na lenda, os conflitos são resolvidos. O mundo
cristão e transcendente faz concessões às tendências naturais
do ser humano, no momento em que punha em risco a
própria sobrevivência.
A mulher, princesa árabe, metáfora do mal e do
erotismo,
que
perturba
e
corrompe
o
macho,
metamorfoseia-se em agricultora, metáfora da mulher
comportada, que pauta seu comportamento pela obediência
aos preceitos da moral cristã.
No seu conjunto, a lenda é metáfora do processo de
civilização do Rio Grande do Sul, marcando um
desenvolvimento
que
levará
à
industrialização,
domesticando a natureza e , com ela, os homens: o lago que
ferve transforma-se em sangão pacífico, sob a invocação dos
padres; e o casal rebelde torna-se casal comportado.
265
Assim, a lenda, traz, nos discursos do presente, os
discursos do passado, desde a cultura grega clássica,
passando pela européia, pela cristã, pela árabe, pela
indígena, formando o discurso polissêmico da cultura
contemporânea.
Referências Bibliográficas:
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e
heterogeneidade constitutiva: elementos para a abordagem
do outro no discurso. Paris: D.R.L. A. V., 1982.
HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1976.
LOPES NETO, João. Simões.. Lendas do Sul. Porto Alegre:
Globo, 1965.
266
267
10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO
SIMÕES LOPES NETO
Zênia de Leon 145
Pelotas há muito deixara o primitivismo dos campos, para se
tornar uma cidade evoluída, e acreditamos que ante os olhos
atentos de Simões Lopes, ela deveria dar mais um passo à
frente: o do civismo. Na verdade, vinha já recebendo os
insuflares
republicanos
e
abolicionistas
desde
os
memoráveis tempos farroupilhas, idéias passadas no ardor
dos nossos heróis, ou pelos sopros europeus, de Coimbra e
Paris, através dos estudantes da elite econômica pelotense
em em especializações no exterior. O civismo estava
reservado no íntimo dos cidadãos, recessivo em todos os
pelotenses, e, bastou o clamor de Simões para que ele
aflorasse como resposta.
Com os cumprimentos a todos, gostaria de agradecer
a gentileza dos organizadores por terem se lembrarem-sedo
da minha pessoa para falar sobre O civismo na vida e na obra
de
145
João
Simões
Lopes
Escritora e pesquisadora.
268
Neto,
quando
tenho
apenas trabalhos feitos sobre a História de Pelotas, de modo
geral, notadamente sobre o patrimônio arquitetônico
pelotense, sem a especificidade de Simões Lopes Neto.,
Assime havendo tantos compondo uma legião de elite, de
especialistas no assunto, crendo dever-se tal convite à
generosidade dos organizadores deste simpósio, o que
humildemente agradeço.
Também gostaria de parabenizar a Universidade
Católica de Pelotas pela criação, dentro de seu contexto
educacional, de mais um Núcleo de Estudos Simonianos na
cidade, o que vem somente somar, criando oportunidade de
expansão
sabedoria:
do conhecimento da obra do escritor. Diz a
que ―deva-se criar sempre mais entidades
culturais: mais escolas, mais universidades, mais jornais,
mais clubes literários, mais academias de letras‖, e eu diria
ainda: mais centros de estudo como este, pois assim mais
―estaremos caminhando para a libertação cultural sem
freios‖, palavras de Teófilo Galvão em seu livro: A educação
como Processo de Libertação. E Simões Lopes Neto merece
que lhe dediquemos sempre o extremo das nossas atenções
Usando da honrosa oportunidade de participar deste
Simpósio, iniciaria dizendo que João Simões Lopes Neto
emprega em suas obras o senso telúrico, o amor acendrado às
269
coisas gaúchas, o que não deixa a menor dúvida, pois é esse
senso telúrico e esse acendrado amor às coisas gaúchas que o
caracterizam como escritor regionalista gaúcho, aliás, aquele
que eternizou de maneira mais autêntica os aspectos
regionais do Rio Grande do Sul através da literatura.
Entretanto, há, na vida e na obra de João Simões Lopes Neto,
dois pontos antagônicos que se sobressaem, ou sejam: o
sentido rural e telúrico e o nacionalismo.
Então, para falar em civismo na vida e na obra de
João Simões Lopes Neto, fica um questionamento: O que lhe
despertou a idéia do civismo? Que forças o fizeram atalhar
mais uma vez, dos tantos atalhos que teve na vida, desde os
empreendimentos com pequenas indústrias e empreitadas
mal sucedidas, para entrar na ala da compreensão do ser
humano que leva a conhecer e olhar a Pátria com o respeito
que ela merece?
Levado pelo sentimento ufanista nacional de seus
contemporâneos Afonso Celso, Coelho Neto e Olavo Bilac,
foi aliando ao espírito local o sentimento nacionalista. Esta é
apenas uma conjectura minha. O civismo em João Simões
Lopes Neto, então, se manifesta-se nas Conferências; em
projetos de comemoração pública do 1 º Centenário da
cidade; no apoio à criação da Revista do 1º Centenário da
270
cidade de Pelotas, na qual foi seu redator, pesquisador,
editor, enfim, aquele que assumiu incondicionalmente sua
publicação; no apoio e participação efetiva no Tiro de
Guerra, fundado em Pelotas 9 de agosto de 1913; na
publicação
da
Coleção
Brasiliana,
como
fator
de
contribuição ao fortalecimento do amor pátrio, também na
fundação da União Gaúcha, no cultuar do regional, pelo que
representava na época, no resguardo das fronteiras
brasileiras,
serviço
militar,
educação,
enfim,
desenvolvimento nacional como um todo.
É que ele, e aqui está apenas um aspecto de seu
perfil psicológico, assume a posição de defensor das coisas
pátrias, também por ver certo desprezo ao que é brasileiro e,
ao contrário, por reconhecer valor nas coisas brasileiras, fato
mais ou menos despercebido num tempo em que valia mais o
europeu, vendo entristecido, diluídas, as preferências pelo
nacional.
Outro fator detectado, acredito, por ser simpático ao
positivismo e à prática maçomn, haver ingressado na Guarda
Nacional da Comarca de Pelotas (nomeado tenente em
1894),
em fase inicial de organização, e o cargo de
secretário da unidade. Teve, aí, por certo tempo, uma ―vida
de caserna‖ onde assumiu o seu papel militar e, como tal,
271
enquadrou-se num civismo obrigatório e consciente. Diz
Carlos Reverbel que o seu batalhão, o 3º Batalhão- ficou
aquartelado em Pelotas, mesmo porque a sua missão
precípua era guarnecer a praça. Como essa cidade não foi
atacada, nem sequer ameaçada diretamente pelos maragatos,
a unidade de João Simões Lopes Neto não chegou ―a sentir o
cheiro da pólvora‖.
É nesse batalhão que vemos João Simões Lopes
Netonosso escritor empenhar-se numa campanha cívica,
mesmo que antes tenha ridicularizado a Guarda Nacional,
chegando a dizer o seguinte: ―Eu tive campos, vendi-os;
freqüentei uma academia, não me formei; mas sem terras e
sem diploma, continuo a ser...um capitão da guarda
Nacional‖. (capitão por decreto em 1901). Em 1906 foi
considerado- o evangelizador do civismo rio-grandense 146.
João Simões Lopes Neto formou seus conceitos
sobre civismo nas práticas de leituras, observações gerais, no
Tiro de Guerra, ndos estudos para conferências e usou a
imprensa e a ―Coleção Brasiliana‖ para transmitir aos seus
patrícios os seus ensinamentos cívicos como meio de
146
Cf. Almanaque de Pelotas, 1918, p.166.
272
reavivar o sentimento pátrio que via tão enfraquecido.
Simões Lopes Neto teve este despertar dez anos antes
que Olavo Bilac encetasse sua campanha cívica no Brasil,
principalmente motivando o serviço militar obrigatório e
fundando a Liga de Defesa Nacional. Entendia ele que o
sentimento local estava extinguindo o sentimento pátrio. E
as causas disso, num país já naquele tempo, de
multiplicidade cultural e étnica, devido àa grande extensão
territorial, àas dificuldades de comunicação, àas distâncias,
àas etnias, ao clima. A história, a geografia, os costumes, os
tipos físicos, agrupavam indivíduos em suas regiões e fazia
com que houvessem apenas cariocas, paulistas, paranaenses,
cearenses, gaúchos etc., menos ou poucos, brasileiros. A
unidade nacional estava sendo prejudicada e, o único
remédio, segundo Simões Lopes, seria a ―Educação Cívica‖.
Percebe-se uma tênue mas inicial atenção ao civismo
em Simões Lopes Neto quando na segunda fase das Balas de
Estalo, em 1889- ainda no jornal A pátria, ao incluir nos
triolés a temática do cotidiano- política. Pelotas, motivada
pela vários intelectuais que viviam em São Paulo, foi
influenciada para a causa republicana e abolicionista.
Centralizando uma reflexão sobre o início da carreira de
João Simões Lopes vamos encontrá-lo na sua primeira
273
publicação, em 1888. NFoi no jornal A Pátria, que era de seu
tio Ismael Simões Lopes, publicou de um poema em
português a que deu o título Rève, em francês. Note-se que
ele estudou no Colégio Francês de Aristides Guidoni, (tendo
sido colega dos irmãos Gonçalves Chaves) . Mais tarde,
vamos encontrar outro título em francês em uma das suas
crônicas, série que fez no jornal A Pátria - O Rio Grande (à Vol d‘ Oiseau). Bem mais tardePosteriormente, ele iria se
rebelar-se contra a preferência ao estrangeirismo.
São sutilezas na vida do escritor que nos revelam,
pouco a pouco, a trajetória do espírito norteador de toda uma
campanha em favor do que é nosso.
A própria fundação da União Gaúcha, - 09 de
setembro de 1899- liderada por João Simões Lopes Neto, é
um realce ao civismo. Embora mesmo que revivendo as
tradições gaúchas no contexto nacional que, desde 1950 leva
o nome do escritor. Foi na, tanto que é dentro da União
Gaúcha que, em 7 de setembro de 1903, se criou-se o ―Tiro
de Guerra 31‖, uma entidade eminentemente cívica, sob a
presidência do Dr. Ildefonso Simões Lopes., em Nacuja ata
de fundação, constavam as palavras: ―‖ Ligados pelo mesmo
desejo de paz, porém deliberadamente solidários ante o culto
cívico da integridade, da ordem e do progresso da Pátria,
274
resolvemos fundar e declaramos fundada a Sociedade de
Tiro Brasileiro de Pelotas, sob os moldes e para os fins da ‖
Confederação do Tiro Brasileiro‖. Festivamente instalada
em 12 de outubro daquele ano de 1908, ela iria desenvolver
importante atividade cívica e ter o privilégio de possuir a
primeira linha de tiro do Brasil. João Simões Lopes chegou a
ser presidente da entidade e discursou algumas vezes em
ocasiões especiais, na Biblioteca Pública, com muito ardor,
indo repetir sua conferência-la, ampliada nas cidades de
Bagé, São Gabriel, Santa Maria, Rio Grande e Porto
Alegre, na Academia Rio-grandense de Letras. Acredito
que foi aí neste aspecto que se concentra mais
acendradamente o espírito de civismo em João Simões
Lopes Neto.
Poderia transcrever para os leitores algumas dessas
conferêencias, mas é claro que não o farei para não cansá-los
mas posso citar alguns trechos interessantes. Neles,
lembrava os autores de livros que forneceram subsídios na
sua formação cívica, como: Melo Moraes, Sílvio Romero,
Rodrigo Otávio, Fagundes Varela, Manoel Bonfim e mais
alguns mestres . Também fazia indicação de livros dizendo
que todos os brasileiros os deviam conhecê-loser e estimar -
275
Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso Júnior;
Educação Nacional, de José Veríssimo.
Barbosa Lessa, em seu livro Nativismo, comenta a
leitura das conferências de Simões Lopes, da seguinte
maneira: ―Dos ensinamentos colhidos na leitura das
conferências proferidas pelo capitão Simões Lopes, aprendi
dois mandamentos capitais: Se me é lícito comparar o livro
dos livros – a Bíblia – com os ensinamentos assimilados da
referida conferência, diria que são os seguintes: o primeiro –
amai a Pátria sobre todas as coisas e o segundo semelhante a
esta – é – sede de um espírito nacionalista inquebrantável ,
capaz de resistir a todas as procelas. Destes dois
mandamentos dependem todas as leis e educadores‖. O
nosso capitão, sobre o amor pátrio, na referida conferência,
disse o seguinte:
―Mau patriota, desleal cidadão fora aquele que, não
sei sob que falso pejo, entendesse menos amar à Pátria,
dissimulando-se os erros, cuja emenda está exigindo sejam
divulgados e conhecidos. Não! A pátria quer ser amada sem
reservas, mesmo com os senões e faltas dos seus filhos e das
suas instituições. As virtudes, os vícios de um país, não são
senão os vícios e as virtudes de seus filhos. A pátria, essa, na
sua figura ideal e amada, paira acima dos nossos erros e das
276
nossas paixões; e atacar a inópia dos que a constituem ainda
é estremecê-la no final desejo de a ver não só objeto do nosso
amor, mas fonte do nosso orgulho, pira do nosso entusiasmo.
―O sol que no alto do céu profundo, às vezes , se vela
num manto de brumas, não deixa, por isso, descer o mesmo
maravilhoso foco de luz, de vida e de calor.
―Assim, esta bendita Pátria predestinada a tão
fecunda, como que em espontânea revolta, rompe contra as
causas acidentais do entravamento e lampeja para o futuro
fachos de intensa claridade, de esperança e de conforto.
―O amor àa Pátria alenta-se e vigora-se pelo
conhecimento desse passado e do presente e da fé no seu
futuro.
―O homem morre, as gerações se sucedem, mas a
Pátria fica e sobrevive e segue avante, e mais e sempre,
librada na saudade dos que tombaram e na aspiração dos que
surgem‖.
Sobre o espírito nacionalista proferiu ainda as
seguintes palavras:
―Nenhum povo hoje pode ser grande, sem esse
sentimento. Nenhuma nação pode ser forte, sem nele
apoiar-se. É ele o mais sólido elo da nacionalidade e o mais
forte estímulo dos cidadãos.‖
277
Das causas, além daquelas às quais já nos referimos,
tais sejam: diferenças climáticas, culturais, étnicas, existiam
falhas nos livros de leitura que deveriam ser reformados,‖
cumpre que ele, o livro, seja brasileiro pelo assunto, pelos
pontos reproduzidos, pela história, pela tradição, pelo
sentimento nacional que o anime e faça estimar‖.
―Seria de inigualável triunfo o do escritor brasileiro,
patriota e iluminado, que pudesse vencer o dificultoso
problema de fazer um livro de leitura primário, adaptável e
ajeitado a tão diversos meios de ser e de existir, no nosso
país‖.
Simões Lopes
pronunciou a sua primeira
conferencia sobre educação cívica, na Biblioteca Pública
Pelotense, em 14 de julho de 1904. A mesma trazia como
sub-título- Terra Gaúcha.
―Pois bem, no fim dos tempos, no turbilhão
desencadeado das fatalidades, a nação, o povo brasileiro,
tenha de aniquilar-se e perecer, seja nascido de ventre
brasileiro, o último, filho, cidadão soldado, para lançar mão
decidida do pavilhão auri-verde -sagrada imagem da pátria
que se afunda, e nele envolto e nele amortalhado penetre os
umbrais da eternidade, sem deixar ao vencedor mais que a
278
lembrança de um povo que sucumbe, mas não sobreviveu
para o escárneo, nem a submissão.
―Mas até lá, que a terra do ― Cruzeiro‖, no cenáculo
da pátria universal, possa repetir e sustentar o hino da plaga
lusitana; que na tuba da fama, a voz do passado ressoe no
futuro: que o verso camoneano, que foi epopéia para
Portugal, seja profecia para o Brasil, sempre, quando e onde.
Cesse tudo o que a antiga musa canta, que outro valor mais
alto se levanta!‖
Um
aspecto,
nacionalismo,
de
levantado
enfraquecimento
por
Simões
do
Lopes
nosso
de
enfraquecimento do nosso nacionalismo foi a falta de culto
às nossas tradições. ―Práticas e usanças estão sendo
esquecidas‖, dizia ele. ―Hábitos de família, costumes
tradicionais, características desprezadas, resvalam para um
lamentável abandono. Estamos, sim, é falsificando,
deturpados, pelo convencionalismo ingrato, intencionado
por
uma
gravidade,
doentia,
de
importação,
mal
encaminhada e mal havida‖. ‗Não temos cânticos
patrióticos, nem sabemos cantar; ou trauteamos abrejeira
cançoneta estrangeira ou enlanguecemos na serenata ao
violão‖.
279
Assim ia ele, em suas conferências, denunciando,
chamando atenção para aspectos até então ainda não
observados. Além da precariedade do jornalismo da época,
da legislação que mereceria reparos, criticando o Congresso,
; falou na deturpação das finalidades dos feriados nacionais e
até reproduzimos algumas de suas palavras em referência:
―Enquanto
outros
povos
festejam
solene
e
ruidosamente as suas grandes datas nacionais,as nossas caem
no olvido e no abandono; o povo vai-se tornando
desinteressado na comemoração que elas lembram e numa
embrulhada confusão de feriados e dias santos- só
aproveitamos daí a folga de um dia ou meio dia de trabalho –
para ir à pesca ou ao bilhar. O nosso país ée o país dos
feriados (já naquele tempo! observação nossa), os dias úteis
minguam, sem ainda haver estabelecido conduta geral neste
sentido. Se um grupo de patriotas mantém e proclama a
necessidade das comemorações cívicas e as realiza, no dia
em que delas não cuida, de outra parte não lhe vem o
incentivo. Ainda não instituímos as grandes festas públicas,
como as manobras militares e as civis de ginástica, de tiro, de
remo, a coincidir com as nossas datas nacionais, a fim de
radicá-las ao ânimo e ligar a sua tradição a esses grandes
280
espetáculos, que devem ser como escolas populares, por
exemplo.
―O nosso 21 de abril, o 7 de setembro, o 15 de
novembro, se diluem na memória do povo e não é a
ingratidão que isso faz: é a falta de educação cívica‖.
Recordar é viver, e o povo que fecha o coração e a memória à
relembrança das suas grandes datas históricas- é digno de
lástima‖.
Simões comenta também as falhas cometidas durante
a execução do Hino Nacional, o respeito aos monumentos,
enquadrando- as como falta de civismo.
As conferências cívicas de João Simões Lopes Neto
tinham como objetivo a denúncia de que a unidade nacional
estava ameaçada e ―começou a extinguir, com seu brado, a
onda de desânimo que pelo país afora avassalava as almas‖.
Ele apontou as causas e indicou o remédio para debelar o
mal.
Com referência à Revista do Centenário que, como
dissemos, foi criada numa reunião de diretoria na Biblioteca
Pública, no ano de 1911, onde se propunha-se a confecção
edição de um livro com o qual se comemorasse o Centenário
da cidade. e que Mas, pelo exíguo tempo, optou-se por
fazerpela publicação de uma revista. Simões Lopes assumiu,
281
incondicionalmente, a sua execuçãoelaboração. Foi ele o
pesquisador e o captador de recursos, quer dizer, o
publicitário. Imprimiu Despertou tanto entusiasmo que ela
foi publicadasaiu, mesmo com os maiores sacrifícios, num
projeto ousado, onde eleem que foi seu organizador e editor.
O centenário da cidade somente aconteceria ano seguinte.
Simões Lopes escreve oito números, sendo que os números
sete sai acoplado aoe
número oito saem acoplados. A
explicação vem com a desculpa verdadeira de que os dois
números haviam saído com atraso, depois da comemoração
em 1912, devido
a uma doença comde demorada
convalescença de que ele havia sido acometido. Ele já
andava doente e pouco de vida lhe restaria a partir dali, fato
não percebido pelos íntimos.
A revista Centenária é, entretanto, o seu primeiro
projeto jornalístico. Um projeto ousado que, tendo surgidou
em 1912, quando a mente de Simões Lopes, impregnada de
entusiasmo, apresentou-afê-la como medida preparatória às
comemorações ao 1 º Centenário da cidade. Com acendrado
amor às nossas tradições e denodo dedicação às coisas
nacionais, também amor a cidade natal.
282
É nesse clima que ele se revela-se, segundo palavras
de seu amigo Pinto da Rocha‖ a alma e o movimento, e em
torno de seu nome, girou o espírito local‖.
Pelotas chegara ao seu centenário como cidade
progressista- comércio e indústria bastante desenvolvidos,
imprensa atuante (sete jornais diários em circulação), nomes
ilustres na comunidade. João Simões Lopes Neto pretendeu
publicar um livro para a impressão da obra em homenagem à
cidade centenária. ―E, para não mostrar-se alheio à
comemoração que agitara, que prometera, sobre a criação da
freguesia de São Francisco de Paula, teve de limitar-se à
publicação de uma revista efêmera, de pouco alcance, que,
com custoapesar de muito gasto e por poucos meses, pode,
atabalhoadamente, agüentar sobre os ombros. E não fez o
que queria e era capaz de fazer‖.
Uma coisa lhe assomou promissora: a criação da
Semana Centenária, que seria comemorada anualmente.
Da Revista Centenária,
foi o seu redator, e
organizador , e seu publicitário, o que. Cconseguiu contratar
a propaganda para sua edição. Assumiu a tarefa sozinho. Já
nesta data, o escritor encontra-se empobrecido, morando na
casa do cunhado e ingressa
apenas como redator
remunerado do jornal A Opinião Pública.
283
Os festejos do centenário da cidade são realizados
depois de uma conclamação bombástica pelo jornal Opinião
Pública, no qual chama estudantes a participar de maneira
alegre. Mas ele se encontra uma pessoa em declínio físico e
desiludido. Nas crônicas da época, percebe-se um Simões
amargurado, lutando com sacrifico para fazer publicar seus
artigos no jornal diariamente. Ainda prepara a Semana
Centenária que ele não quer deixar morrer.
No Opinião Pública, publica Os Casos do Romualdo.
No fim da vida, em 1913, volta ao Correio Mercantil,
desta vez como diretor, uma oportunidade que merecia, mas
um pouco tarde. Iria publicar editoriais magníficos( mantém
editoriaismantidos com a missão de sustentar a candidatura
de Ramiro Barcellos); mantém conserva a coluna literária e
artística, aos domingos, transformando o jornal Correio
Mercantil num grande jornal. Termina o ciclo no Correio
Mercantil em 1915.
Retorna ao jornal Opinião Pública, como um simples
redator e ainda produz a coluna – Temas Gastos, em que
retrata a sua fase decadente, pois Simões se achava -se muito
doente. Em 14 de junho de 1916 vem a falecer de úlcera.
VBem,
voltando
aos
preparativos
para
asàs
comemorações da Centenária, lemos nas páginas do jornal
284
Opinião Pública a conclamação feita pelo jornal mesmo é
realmente eivada de entusiasmo, incitante, que realmente
contagiou a todos:‖ Pelotas é, atualmente, o segundo centro
didático do estado. Aqui já é numerosa a corte de estudantes.
Mantém cinco escolas superiores; a de Agronomia e
Veterinária; a de Comércio; a de Odontologia, a de
Farmácia; a de Agrimensura, estando em organização a de
Direito; dos
ginásios, Gonzaga e Pelotense, cursos
secundários em vários institutos e colégios; escolas
primárias públicas e particulares, em muitas dezenas; tem
todas as aulas, o elemento feminino tem comparecido a
disputar a competência técnica. Entre vós, oradores, poetas,
quem desenha...‖ Assim ia ele impondo entusiasmo às
comemorações, inflamando a juventude a festejar o
centenário da cidade.
Na Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas, Simões
Lopes Neto pode colocar todo seu sentimento cívico fazendo
chamamento aos estudantes para os festejos, principalmente,
as bandas de música e até comprometendo as confeitarias
que já naquela época, em 1911, eram numerosas. Imaginou
ele estender uma enorme mesa de doces em frente à
Prefeitura, num comprimento de cem metros e ali colocar
doces recolhidos por estudantes nas casas comerciais do
285
ramo, em tons de humor sadio, bem ao gosto da época, com
sugestões de visitas ao intendente, às redações dos jornais.
―A postos, estudantada! A Centenária está aí! Que se
nomeie comissões. Essa comissão, de gravata flamante, flor
ao peito e cartolas...fósseis, vai aos jornais: no Diário
Popular, engrossa o Cunha Ramos e o Paradeda; no Correio
Mercantil, pega no bico do Souza Lobo e do Caldas; na
Tribuna, chalereia o Manoel Veríssimo, o Demerval; na A
Redação, acha bonito o Trebi e elegante o Fróis; aqui na
Opinião Pública, diz que o Gomes da Silva tem estatura de
Adamastor, o Vilarinho a força de Sanção; e ainda no O
Arauto, compara-o ao Times...e na A Cavação,com todo o
caradurismo, jura que o faeton do Carlitos é mesmo muito
sinart... E, no meio de toda essa conversa fiada, a comissão
vai atirando barro à parede, isto é, pedindo auxilio de letra de
forma, uns pós de boa vontade, umas pitadas de bom
humor‖. Assim, segue-se a conclamação ainda sugerindo
cortejos e paradas em lugares próprios e discursos, merenda
coletiva ao longo da praça e uma grande polonese que
terminaria no átrio da Biblioteca Pública Pelotense. Uma
autêntica festa pública, sem a organização governamental,
encabeçada por um idealista e cultor do amor às suas raízes,
ao chão citadino e realizada pelo povo ordeiro, contagiado
286
pelo entusiasmo de um civismo que brotava pelo fervor de
um intelectual.
A Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas foi um marco
importante para o conhecimento de nossas origens,
participando com ela, do sentimento de amor á pátria. Na
revista constam dados sobre Pelotas- origens, vultos ilustres,
acontecimentos
importantes,
economia,
charqueadas,
comércio, indústria, trabalhos de pesquisa sobre Canguçu,
edilidade, curiosidades históricas etc. Com ela, favoreceu ao
conhecimento, ao culto de nossa história e dos valores locais.
Um dos empreendimentos que mais evidenciam os
propósitos cívicos de João Simões Lopes Neto, é a criação
da ―Coleção Brasiliana‖ de cartões postais, feita para
transmitir aos seus patrícios os seus ensinamentos cívicos
com a finalidade de reavivar o sentimento nacionalista que
julgava enfraquecidos.
Tendo sido um autodidata na formação cívica,
valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na
Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o
sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento
do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é, até
hoje, para quem pode guardar. Retorna ao jornal Opinião
Pública como um simples redator e ainda produz a coluna
287
–Temas Gastos, que retrata a sua fase decadente, pois
Simões se achava-se muito doente e, em 1916, vem a falecer
de úlcera.
Tendo sido um autodidata na formação cívica,
valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na
Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o
sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento
do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é até hoje,
para quem pode guardar ou colecionar, pois representa um
patrimônio do conhecimento. Seriam 12 séries de 25 cartões
postais cada série, todos eles com motivos nacionais, um
autêntico manual que vulgariza fatos brasileiros. Somente
duas séries vieram á lume, confeccionadas na litografia do
artista gráfico francês, estabelecido em Pelotas, Eduardo
Chapon, o mesmo que imprimiu a revista A Ventarola. A
qualidade gráfica impressiona pela perfeição de linhas e
cores. Um cabeçalho diz: ―Colleção Brasiliana de
vulgarização de fastos da história nacional- em 12 séries de
25 gravuras- realizada por João Simões Lopes Neto‖. Estes
dizeres se encontram-se no frontispício do cartão, dispostos
em duas faixas que se entrecruzam. Na primeira série,
bandeiras nacionais, brasão da República, selos, moedas,
notas, medalhas, comendas, topes cívicos, toques de
288
clarinetas militares com pautas musicais, foto do obelisco à
república no Areal, espadas, detalhes de cabo de espadas,
com seus significados. Na segunda série, gravuras de
escravos, índios, fotos de pinturas da 1 ª Missa no Brasil;
Grito do Ipiranga; monumentos, etc.
Sobre a importância da ―Coleção Brasiliana‖, assim
constou do catálogo da Livraria Americana em Pelotas:
―O assunto da ―Coleção Brasiliana‖ é todo nacional
e, portanto, patriótico. Dá cópia fiel dos emblemas da
soberania nacional, de todos os monumentos públicos,
estátuas, etc. e reprodução de quadros célebres de combates
e de atos solenes notáveis, desde a época colonial até os
nossos dias, túmulos, grandes invenções, obras de arte,
objetos, lugares, documentos, cenas históricas, tudo
explicado de formaem notícia concisa e clara. Nenhuma
coleção neste gênero existe no país, nos próprios livros de
instrução pública não se encontram ilustrações da ― Coleção
Brasiliana‖, algumas das quais são absolutamente inéditas e
documentais.
Quem manusear esta coleção verá e aprenderá coisas
que desconhecia, e outras de que formava idéia errônea e terá
uma verdadeira lição de educação cívica‖.
Conclusão
289
Pelo que dissemos, e pelo que ainda muito se dirá
num trabalho mais profundo que não este, limitado para
vinte minutos de exposição, Simões Lopes Neto foi um
grande pesquisador, pelo observado nas fontes de dados
buscadoscolhidos, além de grande cultor das tradições
gaúchas- linguajar, vestimenta, natureza, enfim, usos e
costumes regionais. N; como no uso de expressiva
linguagem literária, notabilizando-se como dos maiores
escritores brasileiros, além de tantas manifestações culturais,
era possuidor de grande sentimento cívico que pretendeu
passar aos seus contemporâneos e pósteros, nas formas
expostas aqui.
Agradeço a oportunidade de conviver com os ilustres
companheiros neste Simpósio, e agradeço a paciência do
auditório, escutando sobre um tema nada poético, que até
fugiu um pouco do assunto central do Simpósio, mas foi
escolhido pelos seus organizadores, e procurei me
desincumbir de maneira a agradá-los, não sei se consegui,
mas foi feito com esse objetivo.
290
Referências Bibliográficas:
MOREIRA, Ângelo Pires. A outra face de João Simões
Lopes Neto. 1v. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.
_____________________. O civismo e o espírito militar na
obra de João Simões Lopes Neto. Pelotas: UFPEL, 1999.
REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacional.
Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981.
HOHLFELDT, Antônio. João Simões Lopes Neto. Porto
Alegre: Ed. Tchê, 1985.
LESSA, Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM, 1985.
LOPES NETO, João Simões. Revista do 1º Centenário de
Pelotas. Editada mensalmente de outubro de 1911 a maio de
1912. Saíram oito números, sendo os dois últimos
aglutinados.
LOPES NETO, João Simões. Educação Cívica.
Conferências. Pelotas: Anais da Biblioteca Pública, 1904.
291
SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO
Mário Mattos147
I
Nestes três dias, nos defrontamos-nos com um
variado e atrativo elenco de palestrantes.
No dia 4, com apresentação de Paula Mascarenhas, o
palestrante Luís Augusto Fischer descerrou rico panorama
de quesitos polêmicos e, por isso mesmo, instigantes sobre a
carreira literária
de João Simões Lopes Neto e suas
repercussões na literatura gaúcha e brasileira. Nas
comunicações, com a
coordenação de Ivone Leda do
Amaral, Eduardo Arriada
revelou aspetos inéditos de
pesquisa histórica das Lendas
do Sul, especialmente A
Salamanca do Jarau e O Negrinho do Pastoreio. Pelo Grupo
de Pesquisa Simoniana da UCPEL e discorrendo sobre
Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca do Jarau,
atuaram: Eduardo de Oliveira, que analisou as transgressões
éticas dos personagens Blau e Santão e subseqüente
reconstrução de identidades. Mauro Henrique Martins, que
estabeleceu
paralelo
entre
147
a
Caverna
em
A
Escritor e Coordenador do Núcleo de Estudos Simonianos do
IHGPEL.
292
República de Platão e a furna da Salamanca, caracterizando a
travessia como processo de autoconhecimento. Blau e
Santão, com projetos inicialmente ambíguos vão até a
solução das crises de identidade, em que Teiniaguá intervém
como agente de ruptura. E, finalmente, Peterson Pedro de
Figueiredo, que
lançou olhar histórico sobre a lenda,
fundamentando a relação entre a crise de Blau e a situação
econômico-financeira do Rio Grande no começo do século
XX.
No dia 5, com apresentação de Jandir João Zanotelli,
o palestrante Agemir Bavaresco em sua Análise Filosófica
da Salamanca do Jarau, interpretou com ineditismo os
arquétipos significativos dos personagens e seus destinos na travessia da caverna e demais episódios . Observou que
Simões numa leitura plural, desconstrói
imagens - a
ocidental, do herói e a colonial, da mulher - tendendo a
fundamentar
uma
cultura
gaúcha
de
hibridismo
latino-americano, com a marca ética da Resistência
Autônoma. Nas comunicações, com a coordenação de Carla
Gastaud, Luís Borges comparou Natal na barca de Lígia
Fagundes Teles a O Menininho do Presépio, de J. S. Lopes
Neto. Defendeu a validade do recurso ao milagre, na
293
literatura de ficção, quando subordinado à sugestão de
sentimentos humanistas, como o amor.
No dia 6, com apresentação de Hilda Simões Lopes, a
palestrante Cláudia Antunes em O Reconhecimento em Vida
de J. S. Lopes, revelou as pesquisas
feitas em fontes
primárias. Inicialmente buscara apurar o modo como Simões
escrevia. Depois, em decorrência da necessidade de medir a
recepção obtida por suas obras, foi levada a relacionar
também aspetos da fortuna crítica do escritor. Pesquisa ainda
em aberto e de singular interesse. Nas comunicações, com a
coordenação de
Civismo e a
Álvaro Barcelos,
Zênia de Leon, em
Revista do Centenário de Pelotas, leu
compilação feita sobre as preocupações cívicas de Simões
Lopes, concluindo que as mesmas denotam patriotismo,
não necessariamente espírito militar. Oscar Brisolara, em
Análise discursiva da Salamanca do Jarau de J.S. Lopes
Neto, buscou relacionar
arquétipos da mitologia grega,
vendo na lenda de Simões Lopes, situações análogas, que
sugeririam um lastro comum ancestral, a condicionar
subconscientemente a inspiração do autor.
294
II
Com o presente Simpósio, o Grupo de Pesquisa
Simoniano
inicia
um
rico e vigoroso diálogo de
interatividade entre Filosofia e Literatura. Embora sejam
dois discursos diferentes, Filosofia e Literatura têm muito a
ver entre si como disciplinas. Ao aproximar-se da Literatura,
a Filosofia dá um chão firme à sua especulação. Por outro
lado, a procura da verdade simbólica e psicológica nos
personagens e nas situações, contribui para a revitalização da
criação literária.
O dia a dia trazido pelas imagens e notícias da TV,
atesta uma angustiante demanda à filosofia: por exemplo, os
crimes chocantes, abalando a estrutura familiar, cujas causas
não se esgotam na toxicomania. Tais problemas não serão
respondidos apenas com debates na TV, onde o próprio
público, ao apoiar a pena de morte, evidencia enquadrar-se
na psique de uma sociedade doente, ou no mínimo,
despreparada para debater em alto nível. É aí que Literatura
e Filosofia precisam dar-se as mãos. Recentemente, li na
Folha de São Paulo, artigo mostrando que a literatura
européia e, particularmente, a alemã do após guerra, insiste
com sucesso na tecla de exorcizar a irracionalidade como
295
principal
responsável pela exacerbação da violência
humana. No século 19, Dostoievski, com seu personagem, o
estudante Raskolnikov, já abordava em Crime e Castigo a
situação limite do assassínio. A verdade psicológica do
personagem nos
valeu por tratados de interpretação
filosófica.
Como
coordenador
do
Núcleo
de
Estudos
Simonianos do IHGPEL, saúdo a feliz iniciativa do Instituto
Superior de Filosofia em criar de forma autônoma e original,
este Grupo de Pesquisa para estudar um autor como o
pelotense João Simões Lopes Neto, cujo projeto literário, ao
lado da excepcional linguagem poética, tem o arrojo de
entrar nas furnas da alma e nas situações limite das paixões
humanas, dando-nos a chave para chegar mais perto do
entendimento, até de fatos da realidade presente. Nossa
época está necessitada de novos personagens e novas obras
literárias de profundidade. Quem sabe ainda teremos novos
escritores, de formação filosófica?
Não podemos deixar de mencionar a valorização do
evento pelas contribuições de cunho artístico: No dia 4, a
apresentação teatral do grupo Tribo da Lua, encenou trecho
inicial da Salamanca do Jarau,
que nos
deixou funda
impressão pela autenticidade e talento da interpretação. A
296
exposição de história em quadrinhos do artista plástico Saulo
Morales, com esplêndidos desenhos da Salamanca do Jarau
no recinto do evento. No dia 5, a declamação por Mário
Mattos
do
poema
Jarau
de
Nós
Outros,
com
acompanhamento ao violão do acad. Fernando Luís Gallo.
No dia 6, o número musical a cargo de Fernando Luis Gallo
e seus companheiros; e as originais estatuetas da Teiniaguá,
concepção do arquiteto Serafim Pinho Dias, e execução pelo
arquiteto Cláudio Pinto Nunes, através da maquetaria da
UCPEL.
Com humildade, mas
justo orgulho de
seu
pioneirismo de quase 8 anos – atividade regular desde o
começo de 1995, com dois Seminários realizados, em 1996 e
2000 – O Núcleo de Estudos Simonianos do IHGPEL
congratula-se com o grupo co-irmão da UCPEL, cujos frutos
podemos verificar nas pertinentes comunicações acima
resumidas e, principalmente, no todo deste histórico evento.
Fazemos votos de que, na esteira do exemplo, surjam novos
e novos círculos de leitura simoniana, nas instituições
artísticas, culturais e educacionais de nossa Pelotas.
297
ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO LENDAS DO SUL
Data: 04,05 e 06 de dezembro de 2002
Local: Campus I da UCPEL - Sala-auditório 406C
Local de Inscrições: Livraria MONQUELAT
Rua Gen. Telles, 558 - Fone 225 15 14 (Horário comercial)
Dia 04 (quarta-feira)
- 19h. - Apresentação: Fragmento da montagem da
Salamanca do Jarau (Grupo Teatral Tribo da Lua/Pelotas)
-19h20min. - Abertura oficial
-19h30min. - Palestra: Lendas do Sul - Prof. Dr. Luis
Augusto Fischer (UFRGS)
-Apresentadora: Profa. Paula Mascarenhas (Instituto J. S.
Lopes Neto)
-20h30min.- Debate e- Intervalo
-21h - Comunicações:
-Prof. Ms. Eduardo Arriada (FAE/UFPEL): Aspectos
históricos das Lendas do Sul;
-Acad. Eduardo Santos Oliveira, Acad. Mauro Martins,
Acad. Peterson Figueiredo (Grupo de pesquisa simoniano da
UCPEL): Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca
do Jarau de J. S. Lopes Neto
-Coordenadora - Profa. Ms. Ivone Leda do Amaral
(IHGPEL/NES)
-22h15min. - Encerramento
298
Formatados: Marcadores e
numeração
Dia 05 (quinta-feira)
-19h - Programa artístico: Declamação
poesia Escritor
Formatados: Marcadores e
numeração
Mário B. de Mattos
-19h20min - Palestra: Prof. Dr. Agemir Bavaresco (Grupo
Pesquisa Simoniano /UCPEL) - Análise filosófica da
Salamanca do Jarau
-Apresentador: Prof. Dr. Jandir J. Zanotelli (Academia
Sul-brasileira de Letras)
-20h20min. - Debate e- Intervalo
-20h45min. - Comunicações:
-Prof. Carlos F. Sica Diniz (Pesquisador): Novos aspectos
biográficos de J. S. Lopes Neto
-Prof. Ms. Luis Borges(GPS/UCPEL): O milagre do Natal
em Lygia Fagundes Telles e J. S. Lopes Neto
-Coordenadora - Profa. Dra. Renata Requião (Secretária
Municipal de Cultura/Pelotas)
-22h15min. - Encerramento
Dia 06 (sexta-feira)
19h - Programa artístico: Músico Acad. Luís Fernando Gallo
-19h20min. - Palestra: Dnda. Cláudia Antunes (PUCRS) Reconhecimento em vida de J.S. Lopes Neto
299
Formatados: Marcadores e
numeração
-Apresentadora: Profa. Hilda Simões Lopes (Instituto J. S.
Lopes Neto)
-20h20min. - Debate e Intervalo
-20h45min - Comunicações:
-Pesquisadora Zênia de Leon (Academia Pelotense de
Letras): Civismo e a Revista do Centenário de Pelotas
-Prof. Drndo. Oscar Brisolara (UCPEL): Análise discursiva
da Salamanca do Jarau de J. S. Lopes Neto
-Coordenador: Prof. Álvaro Barcellos (Soc. Mário Quintana
de Poesia)
-22h. - Encerramento oficial e síntese conclusiva: Escritor
Mário Barboza de Mattos (IHGPEL/NES)
-
300
-
301

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