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Este livro foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural
todos os
cachorros são azuis
Rodrigo de Souza Leão
© 2008 Rodrigo de Souza Leão
Sumário
Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Marília Garcia
Valeska de Aguirre
Revisão
Laura Addor
Tudo ficou Van Gogh
9
Deus não: deuses 31
Humphrey Bogart contra Charles Laughton 53
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L476t
Leão, Rodrigo de Souza
Todos os cachorros são azuis / Rodrigo de Souza Leão. - Rio
de Janeiro : 7Letras, 2008.
80p.
Programa PETROBRAS Cultural
ISBN 978-85-7577-519-6
1. Romance brasileiro. I. Título.
08-3576.
CDU
Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Jardim Botânico 600 sl. 307
Rio de Janeiro RJ cep 22461-000
CDD 869.93
821.134.3(81)-3
(21) 2540-0076
[email protected]
www.7letras.com.br
[Do gr. epílogos]
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Para Leonardo Gandolfi,
Franklin Alves Dassie,
Silvana Guimarães
e Iosif Landau
Tudo ficou Van Gogh
Engoli um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema
que me cerca. Havia um eletrodo em minha testa, não
sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os
cavalos estavam galopando. Menos o cavalo-marinho que
nadava no aquário.
Ele tem um problema mental. Será que tem alguma
seqüela? No fundo deste meu mundo, lá no quarto escurecido por doses de Litrisan, veio um psiquiatra e baionetou uma química na minha celha esquerda. Enquanto
outro puxava a minha banha, esticando e esticando para
que não sentisse a injeção de Benzetacil.
Benzeta.
Benzeta.
Uma dor imensa na bunda. Tudo girando ao meu redor e eu girando também. Tiro uma meleca e coloco na
mesa do canto, bem longe da escuridão no quarto. A escuridão é asséptica. Só o pessoal de branco pode freqüentar aquela linha impura. Seguram-me de novo. Recebo
o beijo de minha mãe. Deve ser dia de visita. Acordo e
como uma lasca de goiabada com o sanduíche de atum
que mamãe trouxe para mim. Escuto uma música tão alta
que não entro nos meus pensamentos e estou fora, agora
a cocaína não vai chegar. A conexão foi interrompida.
Mamãe mal chega, mal vai.
Ele continua achando que engoliu um chip.
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Ela diz que tudo começou há uns dez anos, quando
eu achei que havia engolido um grilo.
Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Minha mãe disse isso afagando meus lábios e me dando um beijo na bochecha. Por alguns segundos lembreime de algo que havia acontecido no dia anterior. Eu havia
quebrado toda a casa com uma fúria gigantesca. Nunca
mais tomo Haldol na minha vida.
Foi por você não ter tomado o Haldol que você ficou
assim, diz o chip. E eu começo a falar: Só no Anhembi é
tupi. Só no Anhembi é tupi.
O engolidor de espadas engole uma nesga de fogo por
vez. Tá todo mundo engolindo alguma coisa neste exato
momento. É hora do jantar. Mamãe se foi. A música volta a me colocar fora de mim.
Entro no quarto. Tiro o pau pra fora e começo a bater
uma punheta. Dança da motinha. Dança da motinha. Eu
engoli um grilo quando tinha meus 15 anos de idade. Foi
a primeira vez que consegui conviver comigo mais intensamente. Salvei uma casa do cupim maldito que queria
destruí-la. Eram cupins gigantes. Tenho certeza de que
salvei aquela casa. Tenho certeza de que por alguns segundos fui Jesus Cristo.
Ainda continuo na jaula. A minha boca está fechada
com uma mordaça. Meus pés estão presos.
A música sai de mim e volta, não posso causar mal
nenhum a não ser a mim mesmo. Tudo começou com
um grilo. Havia um grilo naquele primeiro dia. Havia
um gene também. Da mesma forma não, mas de outra
forma. Estou engolindo tudo, o tempo todo. No canto
escuro do quarto, que é onde só vão os ratos. Sou podre.
Porco. Imundo. Sou selvagem.
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Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Olho o jornal e não consigo ler nada. As doses dos
remédios devem estar altas. Porque eu não fiz nem quarenta anos e não consigo ler de perto. Arregaço as mangas da camisa e vou jogar sinuca com o Ruy Chapéu do
lugar, que é um gari da Comlurb, internado por utilizar
a bebida em demasia até em horário de trabalho. Antes,
uma crente faz uma roda e manda que alguém reze. Ninguém ali sabe rezar porra nenhuma. São todas almas sem
paraíso à vista. Eu começo: Pai nosso que estais no céu.
Pelo menos eu sei rezar. A crente disse aleluia. Ela segurou a minha mão. Eu tirei o pau pra fora e não pude jogar
sinuca. Voltei para o cubículo três por quatro, onde me
colocaram para sorrir com baionetadas nas veias. Segura
a banha e estica a banha, e toma mais injeção.
Tudo começou quando engoli um grilo em São João
da Barra. Eu tinha 15 anos de idade. Estava indo ou voltando. Sempre estava indo ou voltando. Só parava pra
voar. Assim eram meus 15 anos, e foi como tudo começou. Nenhuma mulher saiu de mim. Nunca. Fui eu
quem sempre entrou em minha mãe. Lá estava ela bela
e bonita, transando com papai. E eu vi, e era apenas mil
novecentos e setenta. Não foi um trauma. Eu costumava
andar com um cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro
não era gay por ser azul. Só era azul. Também não tinha
as noções de feminino e masculino naquela idade, ou tinha. Na verdade, eu já me masturbava, e papai, com muito jeito, pedia para que eu tirasse a mão do meu pinto.
Lembro-me de uma psiquiatra nos meus verdes 15 anos,
que me dizia que eu era homem porque me masturbava,
não tinha por quê ter crise de identidade. Eu não tinha
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crise de identidade, porque vivia correndo atrás daquela
mulher no horário da sessão. Ela chegou a me ameaçar,
dizendo para o meu pai que se eu continuasse a querer
agarrá-la eu teria que sair da análise. Ela falou que não
agüentava dar conta de mim e reclamou porque eu não
fazia um desenho e não brincava com a massinha. Eu
imitava um golfinho deitado no divã. Meu pau ficava
duro e eu o friccionava o tempo todo, enquanto o golfinho nadava dentro de mim.
Uma vez, virei uma planta por uma hora de sessão. A
mulher pensou que eu estava em estado catatônico. Ela
ficou nervosa. Foi a mesma coisa que fiz com uma namorada, e ela teve a mesma reação. Fiquei sem falar e parado.
Como se tivesse engolido uma baleia. Durante uma hora,
a baleia que estava dentro, estava fora, e eu vivi preso
dentro de um manicômio. Os manicômios são lugares
muito bonitos. São lugares com muitas flores e árvores.
Não fiquei num lugar cinco estrelas, também não fiquei
no pior lugar, mas vi muita coisa quando Alfonso me
dizia que ia para Paracambi. Paracambi é aqui.
Tudo era um pouco ficar calado o tempo todo como
se ninguém merecesse que você falasse algo nobre e importante.
O que todas aquelas pessoas de branco tinham a ver
com o fato de eu estar vomitando sangue? Levaram-me
para o Miguel Couto. Pensaram que eu estava com tuberculose. O Miguel Couto era o hospital referência para casos de dengue. Havia uma epidemia de dengue na cidade.
Havia muitos hipopótamos deitados. Algumas tartarugas
andando de quatro rodas. Passei pela porta do hospício.
Quis me levantar e fugir. O pior: fugir pra onde? Quem
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iria acreditar na idéia de que eu estava com um chip implantado dentro de mim? Havia tanta gente, que se eu
dissesse que o Maracanã em dia de jogo do Flamengo
estava ali não seria nenhum eufemismo.
Botaram tubos em mim e começaram a fazer sucção.
Fui abduzido por extraterrestres.
Eu via uma luz passando pelo meu corpo de menino
de cinco anos e segurei meu cachorro azul. Desmaiei por
alguns segundos. Depois Fronsky estava lá.
Voltaremos para te buscar quando você tiver 18 anos.
Macas por todo o campo. Gente andando com soro
dependurado. Tubos saindo da boca de extropiados. Tudo
ali era Acneton. Da minha veia, tiraram o meu sangue.
Eu agora estava indo tirar uma chapa torácica. Como é
que um cara gordo como eu pode sofrer com algum problema que não seja obesidade? Eu deveria estar num spa,
e não no Miguel Couto com aquela crise de dengue. Uma
samambaia começou a crescer do meu lado, feito um pé
de feijão. Eu fui subindo as escadas, ancorado por dois
médicos fortes e gordos como eu. Havia toda aquela gente pobre, superpobre: aquilo era o Brasil. Uma zona total. Gente caída no chão. Gente chegando morta. Gente
morrendo. Uma fileira de corpos deitados com etiquetas
nos pés. Todos munidos de seus prontuários. E aqueles
médicos tão jovens, que não sabem muito mais do que eu
sei de biologia, fazendo gozação com a sua cara.
Olha que cara gordo!
Que homem gordo!
Que baleia!
Um dia completei um triatlo e terminei entre os primeiros da minha categoria. Estou gordo agora e dormin13
do como no dia do triatlo. Vivo sedado e cheio de doses
altas de remédio na veia. Tudo para ser invadido por uma
música, tudo pra manter a boa ordem do estado. Somos
a minoria, mas pelo menos eu falo o que quero.
O bom do cachorro azul era que ele não crescia e
não morria. O negócio era eu cuidar para que ele não
envelhecesse. No ano 2000, vou ter 35 anos. Estarei tão
velho que mal saberia disso. Eu escovava a pelúcia do bicho. O cachorro azul era a minha melhor companhia.
E se existisse mesmo um cachorro azul? Seria do grande
caralho ter um. Será que se ele tivesse um filho, nasceria azul também? Se ele pudesse latir e pudesse comer, o
que comeria um cachorro azul? Alimentos de sua cor? E
quando adoecesse, tomaria remédio azul? Muitos remédios são azuis, entre eles o Haldol. Eu tomo Haldol para
não ter nenhuma ilusão de que morrerei louco, um dia,
num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco.
Uma oligofrênica, dos seus setenta anos, uniformizada,
surge diante dos meus olhos e me dá um beijo na boca.
Vejo estrelas cor-de-rosa. Elefantes carregando Rimbaud
na África. Verlaine comendo sua mulher, mas pensando
em Rimbaud. Eu estou pensando em Nastassja Kinski e
seus seios pequeninos em flor. Eu estou no lado escuro e
mal posso me mover, mas dá para eu me masturbar muito devagarinho. Eu gozo e minha mão fica toda branca,
tomada de sêmen. Minha mão vira uma luva branca. Eu
acordo às cinco horas da manhã com o esporro colossal de um enfermeiro. Durmo mal. Acordo mal. Não sei
qual dos dois pesadelos é o pior: acordado ou dormindo.
Saio da jaula. Já estou na jaula há um bom tempo. Quando me tirarão de lá e me deixarão ficar com os outros?
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Entro na fila para tomar um café da manhã. É um café
com leite que tem mais água do que leite e um pão com
uma passada de manteiga na ida. Eu pago para estar neste
lugar, mas só a ida da faca com manteiga no pão está nos
custos. Hoje eu acordei querendo dizer coisas bonitas.
Aproveitei um pouco de tempo que me deixaram livre
do lado de fora e apanhei uma flor no jardim. Levei a flor
para o quartinho. O enfermeiro encrencou com a flor.
Deu-me outro esporro.
Você virou viadinho? Que coisa horrorosa é esta?
Gordo e viado.
Eu só queria ver algo colorido aqui do fundo.
Vou comunicar esta sua vontade a um psiquiatra e ele
falará com você. Eu aqui sou só o enfermeiro. Cuido de
vocês, os enfermos. Meu cachorro azul não tinha nome.
Nada que eu gosto tem nome. Tudo que é perigoso tem
nome. O nome não é dado a alguém para diferenciá-lo.
Senão nenhum nome seria igual. O nome é dado para
você se igualar ou ser diferenciado dos outros. Ele voa.
Ele anda em aeronaves. Ele é o meu cachorro azul. Tem
outra coisa boa em relação aos cachorros de pêlo e osso:
ele não faz cocô e nem xixi pela casa. Tudo o que tenho é o meu cachorro azul. Há muito tempo que eu não
brincava com ele. Até quebrar tudo lá em casa. Tava um
tempão sem olhar pro meu amigo. Sem passar uma escova nele. E se em vez de cachorro fosse um elefante de
verdade meu bicho de estimação? Imagina a quantidade
de merda que iria ficar no meu quarto? Ia dormir na merda. Mas pelo menos teria uma ducha mais forte do que a
lá de casa para tomar banho. Com a tromba ele poderia
me molhar todinho. Um elefante domesticado incomoda
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muita gente. E se eu tivesse dois? Seria um sonho. Eu ia
incomodar meio mundo. Ia fumar uns baseados dentro
do elefante e soltar pela tromba. Porque estes bichos todos sou eu. Menos o cachorro azul. O cachorro azul é da
cor do Haldol. É meu amigo.
Você quer ver algo mais colorido?
Quero.
O que você quer ver?
O sol.
Amanhã iremos à praia e jogaremos bola e devoraremos as joaninhas e afogaremos os tatuís. Vamos viajar
para Ibicuí, para a casa de amigos que serão amigos pela
vida toda. Eu tinha um amigo que estava com Aids, mas
o cara foi forte e agüentou, e eu tenho que agüentar essa
porra toda.
Nós só fazemos eletrochoque com sedação. O doente
não sente nada. Quem sabe levando uns choquinhos ele
volte ao normal? Quem sabe tudo volta ao normal? Vivo
com uma velha de noventa anos. Eu gosto dela. Ela defeca em tudo. É lambona pra caralho. Mas eu gosto da
velha. Um dia a velha danou-se a comer isopor e plástico.
Passou mal e teve que ser internada. Enfermeira! Um grito lancinante vindo do âmago de um dos internos. Por
que não internam as mulheres junto com os homens?
Será que ia virar uma confusão sexual geral? Acho que
louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bolinando. Mas isso ocorre mais nas ruas.
Estou sem o meu cachorro azul aqui, estou despido do
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que sou. Na prática não sou ninguém. Não adianta eu
gritar socorro. Aqui todos estão sendo levados a algum
lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares.
Meu pai aparece num dos dias de visita. Foi ele quem
me internou, mas eu não tenho ódio no coração. Gosto
deste homem. Ele me dá um beijo.
Como você tá, filho?
Quero sair da gaiola.
Ele diz que sairei quando estiver melhor. Movimentome em sua direção e dou um beijo em sua face. Será o
beijo de Judas? Será que trairei meu pai em minha loucura? E se agora viessem dois homens e me crucificassem
e me colocassem de cabeça pra baixo? Será que a cruz ia
agüentar toda a banha?
Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha ficado na gaiolinha.
Minha mãe mentiu-me, dizendo que eu havia ficado na
ala melhor daquela clínica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficavam os casos
sem solução. Mas eu achava que tinha solução. Apenas
algumas pessoas estavam me perseguindo, e se essas pessoas resolvessem dar uma festa para mim naquele dia?
Naquele dia em que a chuva abundava, foi internado o
Temível Louco. Temível Louco, quando pequeno tinha
atitudes psicopáticas. Já havia matado muita gente, segundo rezava a lenda. Temível Louco me deu um beijo na
face direita e deu duas voltas em volta de mim, disse que
seria meu amigo. Isso foi na minha última internação.
Não sei se lembra de mim.
Era hora do almoço e estavam todos os loucos na fila
quando chegou o Temível Louco, que cuspia onde que17
ria, urinava onde queria, defecava onde queria, peitava os
enfermeiros, e só não era líder, porque louco tá cada um
na sua paranóia. Louco não pensa na coletividade.
Eu tinha uma paranóia muito louca. Uma espécie de
compulsão. Toda vez que me davam três remédios, eu
tinha de tomar o quarto. Eu enchia tanto o saco que me
davam quatro logo. Se tomasse três, coisas horríveis podiam acontecer.
O Temível Louco começou a comer tudo o que via.
Mordeu a falangeta de um outro louco. Foi repreendido
por enfermeiros. Todos os enfermeiros eram gordos. Os
que não eram gordos eram fortes.
Eu sempre dava um cigarro para um louco que, na
hora do almoço, dava cabeçada nas paredes. Imagina se
esse doido fosse jogador de futebol. A cabeçada dele ia ser
poderosa. Acostumado a cabecear paredes, ele ia estourar
todas as bolas que cabeceasse. Quem sabe a seleção brasileira não o convocaria?
Toma um cigarro. Fuma o cigarro todo. Vê se não dá
mais cabeçada na parede.
Eu já estava tomando tanto remédio, que estava com
aquela baba elástica bovina e viscosa, como dizia o escritor.
Depois do almoço eu contava as estrelas do céu e não
via nenhuma. Depois do almoço eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que
agradecia por aquela comida com uma boa oração. Só
porque o cara é louco, tem que comer o pior. Lasca de
goiabada. A única coisa boa era a lasca de goiabada. Era o
tipo de goiabada cascão que grudava no dente. Os loucos
comiam. Minha mãe, toda vez que vinha me visitar, me
mandava tomar um banho. Eu tomava um banho onde
os outros tomavam. Era um lugar limpo, que tinha de ser
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limpo toda hora. A cada minuto vinha um louco e cagava
no chão e deixava a merda toda lá. Imagina se houvesse um
louco que fosse uma pomba. Ia sair voando e defecando
por aí. Não ia ter mais careca de vovô, vidro de carro, chapéu ou boné sem merda incrustada. Mas loucos não voam,
fazem sua merda parados. Às vezes se lambuzam todos.
Minha mãe me trazia o sanduíche de atum que eu devorava como se fosse filé mignon. Eu tinha saudade de casa.
Mãe, quando eu vou sair daqui? Vou sair pior do que
entrei?
Se ameaçar, a gente fica mais tempo. Por que você só
fica na penumbra deste cubículo?
Um dia vinha minha mãe e no outro vinha o meu
pai. Parecia que eles tinham a consciência pesada por ter
me internado.
Eu quebrei a cristaleira.
Eu quebrei os copos de vidro todos.
Mas consegui livrar a casa dos maus espíritos.
Lá vem a turma me aplicar as injeções. Eles puxam a
banha e dão a Benzetacil.
Benzeta.
Benzeta.
Eu quero uma injeção de Benzetacil. Benzetacil por
conta de uma ferida que tenho na perna. Preciso perder
50 quilos. Uma enfermeira disse que eu era até bonitinho, mas precisava perder uns quilinhos. Eu podia fazer
o programa das Casas da Banha. Vou dançar o chachachá. Casas da Banha. Era um porco. Suíno. Sujo. Não
tinha noção do que era degradante. Mas um dia, sem
dúvida, ia criar alguma espécie de biodegradado, remover
minhas impurezas e ficar limpinho. Limpo por fora. Por
dentro estaria sempre com aquelas marcas que os animais
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deixam, das mordidas. Com os hematomas na alma. Estaria sempre me procurando e encontrando pedaços aqui
e acolá. Temível Louco passou ao fundo. Ele já estava fora
do cubículo dele.
Quando vão me tirar daqui, enfermeira?
A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda
liberdade é andar pelo hospício. Liberdade, só fora do
hospício. Mas a liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo.
Eu podendo sair por aí com Rimbaud e Baudelaire. Viajando pra Angra dos Reis.
Rimbaud matou uma onça que circundava o meu
corpo outro dia, de noite. Outro dia, de dia, comemos
junto a gororoba do hospício. Eu e Rimbaud. Ele está
internado devido a drogas. Ele manca um pouco. Deve
ter seus quarenta anos. Cheguei a perguntar por que escreveu tão pouco. Ele me disse que detestava escrever. Eu
gosto é de sentir o vento sobre os meus cabelos. Há brisas
perigosas para um cara franzino como Rimbaud, mas ele
é um cara safo, sabe se livrar das adversidades. Logo estará recebendo alta.
De volta ao cubículo e às injeções. Eles não confiam
mais em mim. Só me dão remédios via injeção. Acham que
eu vou cuspir o remédio ou malocar em algum lugar. Que
raiva têm de mim esses médicos? Vêm cinco me segurar.
Eu me debato como uma baleia. Mas depois fico quieto.
Depois me aquieto. E quase não sinto devido a tanto que
puxam a banha. Eu quase nem sinto a dor das injeções.
Abriu um belo arco-íris que só eu via através de uma
janela ao longe, bem ao longe. Aquele dia eu chorei por
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estar sozinho. Chorei por não ter um emprego. Chorei
por não ter uma mulher. Chorei por não ter filhos. Chorei por não ter uma família. Chorei por ter 37 anos de
idade e viver ainda como um adolescente.
Por que você está chorando, Gordo? Eu choro pelos
gordos do mundo, pelos que querem comer agora uma
torta de maçã, um brigadeiro. Mas não têm dinheiro pra
comprar todas as guloseimas do mundo. Eu mesmo choro
porque queria te comer. Oh filho da puta! Te comer assado. Ia fazer que nem os canibais e ia comer gente. Mas eu
prefiro não ser tão doido e comer açúcar. Bomba de chocolate, mil-folhas, sorvete de flocos, cocada, pé-de-moleque. Ia virar a Dona Redonda e estourar de tão gordo.
A única hora em que eu saía do cubículo era no horário das refeições. Mas tinha um enfermeiro que não tirava
o olho da turma nenhum minuto. Imagina se eu fosse
um funcionário do hospício? Deve ser muito difícil lidar
com toda aquela clientela, com gente de todo tipo. Com
caras da zona sul e com garis da Comlurb. Com velhinhos oligofrênicos e com Procuradores-Gerais da República senil. Os loucos mesmo devem ser os mais fáceis de
ser cuidados. Todas as vezes, eu desacreditava em Deus.
Se havia um lugar como o hospício, era sinal de que Deus
não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem
estava dentro daquele pequeno inferno.
Eu era menino ainda e estava no clube me divertindo
na piscina, quando vi uma criança pequena, menor do
que eu, quase um recém-nascido, se afogando. Eu fiquei
impactado pela cena e demorei a salvar a criança. Fiquei
ali parado. Abobado. Veio outro guri. Foi mais rápido,
pegou a criança que se afogava e tirou-a da piscina. Fize21
ram uma festa para o herói. Uma festa que era pra mim.
Fiquei quieto no canto. Percebi neste dia que uns nascem
pra ser heróis, outros nascem pra ser seres comuns. Eu
estava condenado a ser um ser comum. Jamais seria um
super-homem.
Eu voltava pro cubículo. De bom só a goiabada e a
bundinha da enfermeira. Às vezes eu vou dormir e fico
pensando na enfermeira da noite. Ia gozar só de botar
meu corpo sobre o dela. Só de poder sentir sua carne
sob a minha. A primeira vez que fiz sexo foi com um
javali. Seguraram o bicho pelas patas e falaram penetre.
Eu penetrei quinze centímetros dentro do bicho e aí o
soltaram. Eu gozava justamente porque o javali pulava
e pulava. O cu do bicho era espinhoso. Doía meu pênis.
Como doía meu pênis! Depois de muito tempo o bicho
ficou cansado. Gozei seis vezes direto. Acendi um baseado,
ele foi pra outra esquina, e eu fiquei ali chapado. Eu usei
muitas drogas na adolescência. Uma vez, quando tomei
um chá de cogumelo, fui parar nas cisternas da casa, batendo um papo filosófico com o meu eu. O pior é que eu
encontrava respostas. Nem sabia que tinha um eu superior. Arriscava umas perguntas sobre o futuro e o eu me
dizia tudo. Só que depois da ação do chá de cogumelo
não me lembro de nada que o eu disse.
Um Papa Mike entrou armado.
Eu ouvia os tiros da ação. Andava de um lado pro
outro. Minha adrenalina aumentava na madrugada. A
madrugada começava com aqueles tirambaços. Será que
alguém está ferido?
Ontem, mãe, deram tiros aqui dentro. Conta pra mim o
que houve? Conta pra mim? Você sabe que eu sou curioso.
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Se isso ocorresse eu te tiraria daqui na hora, meu filho.
Você está aqui para melhorar. Parar de destruir a casa de
mamãe e ponto.
Na verdade, tinham matado um cara lá dentro. Um
policial militar atirou no outro com uma arma branca.
Temível Louco estava envolvido.
Todo dia antes de dormir eu rezava a ave-maria. Todo
o dia eu pedia a Deus que me tirasse dali o mais rápido
possível e que o mais rápido possível fosse o dia seguinte.
Depois eu não acreditava nem em Deus e nem na Ave
Maria, mas eu rezava. Não custava nada rezar. Não pagava nada pra pedir. Algum cristão, num dia de domingo,
aparecia bem perto da minha cela e deixava um folhetinho. Eu olhava e lia quando as doses não eram altas e
me deixavam ler, depois rasgava o papel. Meu Deus! Os
crentes estão ganhando o mundo. Até aqui eles vinham
para angariar os fodidos. A religião virou uma sacanagem
do caralho. Acho que sabiam que havia muitos alcoólatras lá dentro. A religião não é só o ópio do povo. Mas é
o que mantém o povo feliz. Triste do povo que precisa da
religião para se apoiar. É pior do que um louco que tem
cura, mas precisará sempre de um apoio de outra pessoa
para ser feliz. É melhor ser louco incurável.
Temível Louco comia a comida dele com a mão. Dizem que ele matou gente e tudo. Sei que nos dias de visita
ninguém nunca veio ver Temível.
As pombas voavam no céu, prontas para defecar em
alguma cabeça ou algum vidro de carro. Lembro-me de
uma vez em que um doente mental levou formicida para
dar às pombas. O resultado foi aquele rastro de pombas
pelo chão. Mortas. Todas elas.
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Havia um louco ali que era homem, mas se vestia de
mulher. Gostava de dar cabeçadas na parede e vivia tremendo. Outra, lembrava a minha avó por parte de mãe,
sempre muito elegante. Outra, ainda, tinha hábito muito
estranho: enchia um copo inteiro de café e outro de leite
e tomava cada um sem misturar. Não era coisa de gente
louca. Uma vez cheguei perto dela e ela falou de Heráclito e Parmênides com um sotaque espanhol. Era chilena.
Criei uma ficção na minha cabeça de que lutara por Allende e perdera como todos os chilenos. Fora perseguida
política. Recebeu os maus-tratos do estado. Foi torturada
e acabou num hospício do Brasil. Ela era professora de
sociologia. Com certeza, devia ter filhos que não sabiam
de seu paradeiro e viviam de lugar em lugar procurando
a mãe. Quantas coisas os governos fazem para destruir
a vida dos que incomodam. Incomodar parece ser condição de bom funcionário estatal. Ver as maracutaias e
não fazer nada, ver o povo perdendo força, o povo sem
dinheiro perdendo dinheiro, pagando salários altos aos
burocratas...
De súbito, ouvi berros. Desespero. Alguns internos
estavam fazendo arremesso de oligofrênicos. Pegavam e
jogavam oligofrênicos pra cima e numa vala também. Internos menos loucos comandavam o evento. Sim, aquilo
era um evento. Uma espécie de ritual.
Eu continuava com a minha paranóia e com o meu
chip implantado dentro de mim. Tinha engolido um grilo aos 15 anos. E com seis, fui visitado por extraterrestres
que me buscariam em casa aos 18. Já havia passado dez
anos e os extraterrestres não vieram me buscar. Fronsky
não veio me buscar. O chip é para a cia e a kgb me do24
minarem. Sou importante, porque sei peidar sem sentir
o próprio cheiro. Desenvolvi uma técnica de filtragem.
Brincadeira à parte, sempre me senti um ser perseguido.
Ando nas ruas sempre olhando pra trás e de vez em quando saio em desabalada correria. Uma vez meu psiquiatra pegou o ônibus comigo, só pra provar que não havia
problema nenhum em andar de ônibus no Rio, na zona
sul. Morreu em 2000 paus, mais o relógio. O ônibus foi
assaltado.
Pegaram uma interna e arremessaram. Os doidos tavam arremessando todo mundo que aparecia na frente
deles. Jogavam num barranco. A pessoa podia se machucar, mas os outros loucos riam e queriam mais. Formavam uma fila para ser arremessados barranco abaixo.
A noite chegava e com ela vinha o pior: a trilha sonora. O hospício ficava do lado da favela. Era funk a noite
toda e o dia inteiro. Lacraia, lacraia, lacraia. Vai, Serginho. Dormir ouvindo aquele lixo... Aos berros!
Eu achava que ali havia uma porta muito estranha de
onde as pessoas não mais voltavam. Entravam por aquela
porta e sumiam. Ficava de olho. Há dois dias que a chilena havia entrado e sumido.
Eu vou pra Paracambi. Se você não comer, vai pro
Caju.
Não agüentava mais ficar no cubículo. Estava sofrendo com problemas nas articulações. Nenhum louco
merece aquele tratamento. Sei que no meu caso era um
castigo por ter quebrado a casa toda. Era algo que funcionava como castigo de criança.
Já tive que escrever 200 vezes, detestando o professor de
matemática, “eu gosto do professor de matemática”. Agora
o copiar e o colar do computador acabou com o castigo.
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Quando vinha o sol, ia pingando um a um cada funcionário. O hospício cheio. Estava superlotado. Era domingo, dia de visita. Havia horário para visita diária e dia
de visita universal, que era o domingo. Eu ainda estava
com o meu chip, que às vezes me incomodava fisicamente. Pensava até que ponto o meu chip era um derivado do
grilo de antes. Tinha momentos de lucidez. Eram poucos, mas tinha. As drogas usadas às vezes têm ação sobre
o organismo. Mas tem gente que não melhora nem com
remédios. Pra que serve internação então? Pra reunir o
entulho humano.
Quando o hospício estava cheio, era a hora de ficar
quieto. Qualquer coisa e você poderia ser amarrado à
cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte. Muitos alcoólatras viviam amarrados devido à síndrome de
abstinência. O grande mal das clínicas é que elas misturam os doentes.
Tinha vontade de comer o bolo da vovó. Mas eu não
tinha mais vovó. Muito menos o bolo da vovó. O que
havia era uma paçoca de fubá, muito sem gosto. Mas que
todo mundo comia arregalando os olhos. A comida de
hospício era aquela comida feita pra duzentas pessoas por
vez. Era Matrix. Não tinha tempero. Era muito ruim mesmo. Mas fica até chato reclamar, quando tem tanta gente
passando fome e quando tinha gente dentro do hospício
que achava aquilo a oitava maravilha do mundo.
Hoje não teve goiabada.
Eu estava ali há dez dias. Há dez dias que comia mal.
Pelo menos ia emagrecer. Tinha saudade da comida de
casa. Quando não tinha goiabada não havia nada de que
gostasse. Mesmo que grudasse nos dentes, era boa. Lem26
brava infância. Lembrava o nordeste. Eu queria comer
uma maçã. Há muito tempo não tinha uma maçã. Fruta
ali era banana. Eu queria maçã, abacate. Estava seco por
uma vitamina de abacate.
Entrou uma barata no cubículo. Tive que matá-la
com a mão. Não havia outro instrumento ao meu alcance. Os cubículos são feitos pra pessoa que está dentro não
ferir ninguém, mas também não se ferir. Pra não me ferir
não havia nada no cubículo. No começo da internação
às vezes ficamos amarrado. Cada um tem um tratamento
que varia de acordo com a sua periculosidade.
Há muito que não se fazia mais a operação de lobotomia. As práticas de eletrochoque só eram ministradas
com sedação. Havia a luta antimanicomial. Mas onde
pôr as pessoas que não têm família e são casos perdidos?
Eu tinha medo do futuro. Talvez fosse aquele mesmo,
conviver com todo o tipo de gente. Gente sã, gente doida,
policial, gari. Não tinha nada contra os garis, eles eram
muito limpos e sempre queriam fazer uma faxina. Mas o
dia inteiro preso, vendo tudo de longe. Era triste. Caiu
um toró. Chovia. Ficava mais triste. Eu não me lembrava
de um amor. A última vez que fora amado, ela disse que
não me amava. Tinha se apaixonado pela loucura que há
em mim. O louco às vezes é muito sedutor. Sentia saudade de ler um bom livro num dia de frio, num dia de calor
também. Sentia vontade de ler um Henry Miller.
Havia muitos morros em volta do hospício. Em vinte
anos tudo estaria tomado pela favela. O morro ia comendo o morro, e cada vez mais existia menos lugar verde
e mais telhado e casas insalubres. Naquele cubículo era
sempre inverno. Sempre fazia frio. Eu não me incomoda27
va, gosto de frio. A gente não tem que tirar a camisa. Nenhum gordo gosta de tirar a camisa. Mostrar as banhas
não é o melhor programa para um gordo.
Detesto espelho. Espelho só serve pra mostrar como a
gente piora com o tempo. A primeira coisa que quebrei lá
em casa foi o espelho. Nem me importei com os sete anos
de azar. Depois fui pras bebidas e, tomado de uma loucura
inconteste, fui jogando, uma a uma, as garrafas de uísque
no solo. Ficou um lugar perigoso. Um mar de cacos de
vidro. Algumas coisas não quebraram, como o vidro da
grande mesa da sala, que se mostrou indestrutível. Um enfeite da mesa também era inquebrável. Havia coisas que se
derretiam só de tocar, que se autodestruíam com um afago, e outras que se mantinham impávidas. Meu pai veio e
pediu para que eu parasse. Eu não parava. Minha sobrinha
pequena gritava. Meu irmão gritava. Minha mãe gritava.
Minha irmã gritava. A empregada lá de casa gritava.
Não, isso não!
Isso eu quebro e vou quebrar mais. Eu quebro. Eu
quebro. Quebro.
Chegou a polícia e me algemou.
Levaram-me pro Pinel.
Por que você quebrou?
Quebrei, porque sou feito de cacos e quando os cacos
me convidam, desordeno tudo. Tudo estava muito calmo. Menos eu. Engoli um chip. Bebi um chope na rua e
botaram um chip dentro do chope. Engoli o chip que faz
com que eu faça tudo isso, até o que não quero.
Mas eu só podia me ferir com tantos cacos, ainda
mais andando descalço pelos cacos.
Você vai ser removido para a Clínica. Nós estamos
superlotados.
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Eu não quero ir pra Clínica e nem ficar aqui.
E comecei a quebrar o consultório do médico, até vir
um enfermeiro com uma baioneta.
Por que você não morre?
Há tanta gente velha aqui.
Um dia ainda sobrevivo pra mostrar todo este jogo
sujo.
Fui pra perto do Cristo. Da minha cela dá pra ver o
Cristo. Colocaram-me lá pra ver se eu morro um pouco
de vergonha por não crer em Deus. Havia borboletas por
todo lado. O hospício era um lugar cheio de flores lindas,
mas podre por dentro. O modelo hospício tinha que ser
mudado. Mas como a minha família me agüentaria quebrando tudo? Nas horas em que me vem uma pertinência
maior, vem a pergunta: o que eles poderiam fazer? No
dia da crise não se pode fazer nada. E o que fazer pra não
entrar em crise?
Você é um caso perdido. Você é um idiota, você é gordo e escroto. Você só fala isso, porque estou amarrado.
Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado.
A ambulância dourada. As enfermeiras douradas tocando-me com suas mãos douradas.
Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta
bic azul, os trogloditas dos enfermeiros.
Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei.
Pra que isso, Rimbaud? Deixa que detestem a gente.
Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a
vida entre agora pelos poros. Não se mate, irmão. Se você
morrer, não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim. Rimbaud, tudo vai ficar da cor que quiser. Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
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Tudo ficou verde da cor dos olhos do meu irmão Bruno e da cor-do-mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.
Tudo ficou Van Gogh. A luz das coisas foi modificada.
Enfim, me deram uns óculos. Mas com os óculos eu
só via as pessoas por dentro.
Deus não: deuses
Foi como mergulhar. Finalmente, me tiraram do cubículo. Eu passeava agora como igual entre os iguais. Alguns
me olhavam com medo. Outros me pediam um cigarro.
Se você um dia for visitar um hospício, leve um cigarro.
Todo mundo fuma. Imagina aquela turminha fumando
uma tora, uma bazuca das boas.
Eu me sentia livre como uma borboleta dando o seu
primeiro vôo. Eu sabia que aquele era o primeiro passo
para sair daquele lugar.
Rimbaud aparecia e me mostrava alguns novos amigos...
Peter Perfeito gostava de andar de mãos dadas com Clark
Kent. O Demolidor beijava o Batman. Havia amor livre
naquelas brincadeiras de homenzinhos de Rimbaud.
Rimbaud, pára de brincar com homenzinhos.
Foda-se você, que não sabe brincar. Meu negócio é
brincar. Eu brinco. Brinco. E brinco.
Rimbaud tirou do bolso um boneco do Coringa e me
disse, você tem o sorriso do Coringa. Não sei se você é
uma alucinação minha ou se sou uma alucinação sua.
Puxei para os meus pulmões o ar da liberdade e deixei
Rimbaud falando sozinho.
Talvez eu não tenha andado tanto assim na noite escura. Foram só uns três quilômetros no breu e o que ele
viu foi um ritual de magia negra. Depois engoliu este
grilo. O grilo que engoli é o mesmo chip de hoje.
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Ele é doente mental, esquizofrênico. Tem distúrbio
delirante, tem delírios persecutórios. Ninguém acredita
numa pessoa com distúrbio delirante e delírios persecutórios. Aquela pessoa pode estar sendo perseguida realmente e ninguém acreditar na história dela.
Rimbaud e seus bonecos. O Falcom está fodendo a
Barbie.
Sai, Rimbaud. Enquanto você não virar adulto, não
falo mais com você.
Eu brinco. Brinco. E brinco.
Estendi minha mão para Temível Louco. Temível fez
que não me viu. Fui atrás dele.
Por que você não quer me cumprimentar?
Você é papai. E papai bate em mim.
Descobri, então, que devia ser parecido ou lembrar
o pai de Temível. Ele tinha medo de seu pai, conseqüentemente, tinha medo de mim. Fiquei contente. O cara
temido por todos tinha medo de mim. Logo eu, apenas
uma gelatina.
Peguei um dos bonecos do Rimbaud e esfreguei na
cara dele. Não vê que isso é coisa de criança?
Eu quero ser criança. Eu sou Rimbaud.
Graças às injeções de Benzetacil, estava curado da erisipela. Passaram a fornecer-me a medicação via oral. Eu
cuspia tudinho. Escondia entre a língua, abria o ralo e
jogava fora.
Colocaram-me no quarto com mais dois. Rimbaud,
você dorme no chão. Só que os outros dois não agüentaram dormir comigo. É que eu roncava muito. Voltei a fumar e depois parei. Vomitava muito. O resultado foi que
fiquei um tempo sozinho num quarto com três camas.
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Eu já tive vontade de ir pra cama com minha tia. Mas
nunca pude. Já quis comer a prima. E prima é manjar
dos deuses. É a coisa mais bela que Deus pôs no mundo.
Minha tia era mulherão. Tinha um metro e setenta e cinco. Grandes coxas e bunda. Nunca tive vontade de comer
minha irmã. Era tão chata que nem dava pra sentir tesão.
Um bando de formigas foi saindo uma a uma de seu
formigueiro. Formaram um exército poderoso, entraram
no meu quarto e levaram Rimbaud. Formigas são mais
nojentas que baratas. Rimbaud berrava e esperneava e
ninguém fazia nada. Fui atrás do cortejo. Parecia um desenho animado. Fui entrando mata adentro. Rimbaud foi
posto em pé por dois curandeiros e quando foram cortar
seu braço, dei um grito de ataque Sioux, que aprendi nos
filmes de Daniel Boone. Todos correram. Não foi a primeira vez que ajudei Rimbaud. Ele não sabe sair de suas
encrencas sozinho. Tenho sempre que intervir para salválo. Sou o seu super-herói.
O bom era que eu passava os dias sozinhos no quarto.
Eu e Rimbaud passávamos as tardes jogando pôquer.
Rimbaud não estava acostumado às modernidades.
Era um cara vindo de outra época. Tinha que aprender
tudo. Nunca mais escrevera um poema. Mas era um bom
companheiro para as horas perdidas e para o pôquer.
Depois de um tempo, veio um depressivo para o meu
quarto. Ele dormia o dia inteiro. Dormia com a mão estendida no chão. A mão parecia uma cobra, uma naja que
às vezes crescia e vinha atacar a mim e a Rimbaud.
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Vocês devem estar se perguntando se meu relacionamento com Rimbaud era sexual. Apesar de saber que
Rimbaud era apaixonado por mim, eu não dava muita
corda, para não ferir o coração do poeta. Afinal, eu só
queria amizade de homens. Rimbaud se comportava
muito bem e jamais saía do meu lado. Era um amigo fiel,
um escudeiro.
Ele gostava de flores. De vez em quando, estávamos cingidos de flores. De vez em quando, andávamos nus. Eu gordo e ele bem magro. Fazíamos a dupla o gordo e o magro.
Um dia, salvei uma casa de seus cupins malditos, algo
sobrenatural. Os cupins estavam incrustados em tudo.
Deixei cupins apenas nos chifres do diabo. O resto dos
lugares ficaram livres dos cupins. Eu já manifestava ter
poderes aos 15 anos de idade. Era um verdadeiro emanador de poderes transcendentes. Havia engolido um grilo
que se movimentava no meu pulmão.
Que engoliu grilo que nada!
Você está louco. Cruz credo, você precisa ser tratado.
Ele está ótimo. Precisa é de umas boas porradas.
E apanhei de tamburete.
Foi a última vez que apanhei, depois que cheguei ao
Rio. Apanhei pelo vexame.
Isso é coisa de homem, achar que foi pego por um
grilo? Você é que é um grilo falante.
Eu ainda não era amigo de Rimbaud. Se ele já fosse
meu amigo não deixaria eu apanhar tanto.
Tinha um outro amigo, o Baudelaire, que aparecia
só de vez em quando. Mas com ele era outra história.
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Nem eu pedindo e ligando para ele, nem deixando recado, Baudelaire atendia. Ele tinha um gênio danado. Mau
humor. Mas naquela tarde ambos estavam lá, Rimbaud
e Baudelaire, conversando sobre poesia e vida moderna.
E de repente ela passou por mim. Veio de branco, toda
de branco, perfumada e linda. Branca tipo porcelana. Fui
invadido pela música,
“ela vem toda de branco, toda molhada e despenteada
que maravilha que é o meu amor”
Jorge Ben me pegava pelas mãos. E eu olhava aquela
mulher de jaleco passar. Rimbaud e Baudelaire sumiram.
Mas então Rimbaud voltou com uma margarida na cabeça, colocada no ouvido esquerdo, e dançou e dançou.
Ri com ele e ri dele. Rimbaud me divertia. Muitas pessoas devem se perguntar se Rimbaud teve culpa de eu ter
quebrado toda a casa. Claro que foi Rimbaud quem me
deu a idéia.
Quebra tudo. Mostra que você é homem.
Eu não virei mais homem por ter quebrado minha
casa. Este Rimbaud às vezes me põe numa furada. Fico
tempos sem vê-lo, mas ele sempre volta.
Parei de levar baionetada. Comecei o medicamento
oral. A medicação oral é fácil de ser burlada. Sei quais os
remédios que tomo. Cuspo sempre no ralo os que não
quero. O ideal para coibir isso seria medicamentos efervescentes. Os oligofrênicos não têm consciência nenhuma, tomam os remédios direitinho.
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Hora de ver televisão. A hora em que a Família Adams
se reunia. Os doidos todos se reuniam para ver novela.
Um sargento, um gari da Comlurb, outros oligofrênicos
e um que de dois em dois minutos dava uma cabeçada
na parede.
Já falei pra esse doutorzinho que ele vai quebrar a cabeça. Vai ter um derrame sério. Eu blsjdsomdkm0ooooeeirrrriruuuuruuiirrriiirii.
Ninguém entende o que você fala. Louco burro. Eu
vou pra Paracambi, se você morrer, vai pro Caju.
Quero sair desse lugar, quero ir embora pra Pasárgada.
Sabe a Ana? Vai matar o Marcos. O Olivier vai voltar
pro Marcos. O Pereira termina com a Maju. A Lina vai
acabar com o Maciel. Ernesto vai bater no Parado.
Era a tv falando de novela.
Eu sou o samba. Eu sou Jesus Cristo. Eu sou tudo e
nada. Sou louco legal. Eparrei, Iansã! Ogum bolum ai iê.
Rimbaud dançava ao som do rap do lixeiro da
Comlurb. Ele estava lá se desintoxicando.
Vê, meu filho. Você tá aqui pra se desintoxicar. Seu
filho não vai querer te ver assim.
Eu babava.
Eu me ilhava em mim. Enquanto todos viam tevê,
eu jogava paciência com Rimbaud no quarto vazio. Rimbaud me olhava. Tentava me tirar a concentração.
Olhei o horizonte. O céu veio se abrindo. Por que o
azul do céu é tão azul aqui no hospício? Por que são mais
azuis os dias?
A natureza é tão linda e lembra um cemitério.
De maca entra pela primeira vez e vai para um quarto
o Procurador-Geral da República.
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Senhor, há uma série de agentes da kgb circundando
o local.
Ele está velho, com 75 anos. Já é um pouco de senilidade.
Meu irmão veio me ver e lembrou o filho dele mais
novo, o Erbert!
É você, Erbert? Venha falar com seu pai! Os agentes
da cia estão em volta do recinto. Estamos todos sendo
monitorados.
Por que todos os loucos têm paranóias iguais? Sempre
estão sendo seguidos por um agente secreto. A cia quase
sempre está envolvida. O meu caso mesmo (ter engolido
um chip) só foi possível graças à cia e à kgb.
Dentro de mim a ação do chip era estranha e aos poucos eu vinha entendendo o seu funcionamento. Quem
me ajudava nisso era Rimbaud.
Ele verificava a minha pressão com um aparelho que
ele mesmo inventava. Eram formas estranhas de se verificar
a pressão.
Ele tinha uma medicina toda própria. Fazia alguma
espécie de curandeirismo. Rimbaud me disse que quem
curou o meu problema na perna fora ele. No entanto,
Rimbaud era manco. Ele dizia, quando eu duvidava, que
o poder dele era para os outros e não podia ser usado em
si próprio.
O menino parou, olhou para o seu pai.
Pai, onde você está morando? Você mora aqui em casa?
Meu pai era médico. Passava dias fazendo plantão.
Depois que eu falei aquilo com ele, passou a dar menos
plantões. Meu pai sempre foi um bom homem, muito
calmo e tranqüilo.
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Eu fazia muita confusão no colégio. Havia sido expulso de quatro colégios. Estava com 16 anos, na quinta série. Avisaram-me que eu tinha que fazer o supletivo
com os adultos, de noite. Meu pai chorou tanto.
Foi isso durante toda minha vida: fazer meu pai chorar.
Um americano foi internado na clínica. O cara tinha
sido combatente no Vietnã.
Mother fucker. Fire in the line zone, gritava.
Fire, gritava.
O sargento logo se enturmou com o americano.
Rimbaud fazia uma dança chamada a Dança do Pelicano Azul. Era uma dança cheia de meneios com todas as
partes do corpo. Diz ele que aprendeu na África. Mas será
que havia pelicano na África? Ele era livre pra dizer o que
quisesse. Aliás, todos nós somos, mas se é verdade ou não,
aí são outros quinhentos. A verdade pode ser uma invenção tão malfeita e, ainda assim, convencer todo mundo.
Basta usar da força. Ou abusar da crendice.
Eu já defequei em mim mesmo. Já mijei na cama no
primeiro dia do hospício para não sair de onde estava. Esta é
uma vida cheia de atos abjetos. Uma vida cheia de medos.
Nunca comi merda. Nem sou dado a rituais macabros
de existência. Sou um louco light, versão diet. Apesar de
o meu problema com o chip ser punk demais.
Quando era criança, queria ser bombeiro. Tinha roupa, carrinho e tudo. Tinha um sorriso tão feliz, que nunca mais tive. O sorriso encardido pelo tempo naquelas
fotos-pôster. Vivia feliz como Rimbaud. Hoje penso em
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tudo o que faço e tenho noção quando faço merda: quando me fazem engolir um chip e eu quebro toda a casa.
Esta é a cagada que fiz. Com quantos anos se é feliz? Só
se é feliz no passado. Estou sozinho no quarto. Ninguém
vem me visitar há algum tempo. Não fiz mal a nenhuma
pessoa para estar preso. O único prejudicado com minhas
atitudes sou eu mesmo.
Mentira! Sua mãe vai ter um prejuízo com as coisas
que quebrou.
Tudo bijuteria.
Até a cristaleira da sua avó.
Por que fiz isso? Essa culpa não sai de mim... Ter derrubado uma porta. Uma porta caquética. Por que eles
chamaram a polícia? Hoje em dia é a polícia que vem
buscar. Bati boca com os policiais, fiz eles entenderem que
era um chip. Havia um que nem sabia o que era chip.
Queria era passar a algema na minha mão.
Com 15 anos, tive o meu primeiro ataque, aos 36
ainda estou tendo problemas. Qual será o próximo problema? Sou um problema ambulante.
Chove e choro. Choro e chove. O som do funk estuprando os tímpanos.
Vai, Serginho.
Imagino que estou fora deste lugar, eu promoveria
uma puta festa lá em casa. Rimbaud apareceu. Onde estou em seus pensamentos?
Está brincando com Baudelaire.
Detesto Baudelaire. Ele tem um jeito de velho. É
muito formal. Eu quero estar com você. Não vai me dizer
que está apaixonado.
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Eu vivia distante. Naqueles dias de adolescência.
Peguei um ônibus sozinho de Campos pra São João da
Barra. Peguei o ônibus errado. Só. Sozinho. O resultado
é que fiquei andando por três horas no meio de um matagal. Não podia viajar, porque fazia merda. Viajei certa
vez para o Rio Grande do Sul e dormi fora da casa do
meu amigo gaúcho. Fui parar na polícia, acusando o meu
amigo de nada. A polícia não me levou a sério. Este é
mais um louco. Os pais devem penar. Olha só que história sem pé nem cabeça! Pode andar por aí. Vai lá até o
final e volta.
Uma mariola. Quem quer uma mariola? Uma mariola. Quem quer uma mariola? Quem quer comprar uma
mariola?
O sol era um sorvete de manga. Havia calor pra ir à
praia. E todos ali queimando feito sardinhas na frigideira.
Sorando. Suando.
Ouvi um berro lá de dentro. Corri para ver e Temível
estava emborcado num canto do seu quarto. Quem matara Temível Louco? Foi você. Ele tinha medo de você. Você
vai ser crucificado. Temível tivera um ataque cardíaco.
Ninguém viu. Mas tinha um louco que repetia que era eu
o culpado. Foram infiltrados entre nós detetives A e detetives B para ver quem matou Temível. Eu era inteligente e
já tinha sacado que os polícias estavam infiltrados.
Os dias passavam e as noites eram calmas. Todo mundo dormia bem. Acordados apenas eu e Rimbaud. Será
que alguém matou Temível? Tem muita gente aqui. Ele
não se dava com ninguém. Era um louco de jogar pedra,
como diria mamãe.
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Hoje chegaremos a Cabo Frio. Daqui a duas horas,
em Búzios. Mataram um menino em Búzios. Tão dizendo que foi seu tio. Seu tio é viado, mas não anda com
criança. Ele nunca botou a mão em um de vocês.
Eu estava no trabalho e ouvi minha mãe mandar eu
ir embora pra casa. Eu sabia que meu avô estava mal de
saúde. Vovô morreu naquele dia.
O que é a morte, mãe?
A morte é uma novela da Globo, filho.
Temível passava numa cadeira. Era tão gordo que não
dava numa maca.
Como uma poia dessa pode ser o Temível Louco?
Acho que só chamando o Batman pra resolver aquele
problema.
Foi morto hoje no hospício da cidade o cidadão Temível Louco. O mesmo que atazanou a população do
município por 15 anos. Para alguns, foi enforcado. Para
outros, teve um ataque cardíaco.
Desliga a tevê. É isso o dia todo.
Outro grito de terror. Roubaram-me alguns folhetinhos crentes e mais mil dólares. Eu começava a desconfiar de minha sombra. Será que Rimbaud está envolvido?
Ele não gostava de tevê. Estou com medo de Rimbaud.
Estou com um puta medo de Rimbaud.
Seu tio é viado (hahahaha...). Cuidado, que ele pode
comer a sua bunda.
Não fala isso, senão vai piorar a situação de seu tio.
Aqui a cidade é pequena.
Deve ter sido alguém de fora que comeu o garotinho.
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Meu tio era um gaiato. Ele gostava de tomar café.
Gostava de tomar o café de graça. Ele almoçava em boteco. Em boteco bem xumbrega, desses com ovo rosa e
Malzbier. Comia a comida vagarosamente. Pagava pela
comida. Conversava com todo mundo do boteco. Ficava
amigo do pessoal. Adorava uma boa piada.
Você tá com a cara manchada.
Onde?
Ele apontava para o rosto do cidadão.
Vá ao banheiro limpar isso, rapaz!
O cara saía e ia ao banheiro. Meu tio aproveitava e tomava o café do cara e se mandava. Fez isso muitas vezes.
Um dia, numa das cinco vezes em que fez refeições em
boteco, no quinto golpe, o café estava quente demais. Ele
demorou. Veio o cara e deu-lhe uma porrada. Ele apanhou tanto, que nunca mais repetiu a sacanagem.
Meu tio tinha dinheiro, mas fazia isso pela adrenalina.
Muita gente faz coisa só pela adrenalina.
Rimbaud andava sobre o muro.
Sai daí, seu filho-da-puta. Cuidado.
Fui para o quarto para não ver minha adrenalina crescer.
Rimbaud logo veio atrás de mim.
Estou só. Este mundo é assim. Cadê o Baudelaire?
Está jogando sinuca.
É tão triste ter como amigos duas alucinações. Uma
que está comigo quase todo o tempo e a outra, que me
aparece de vez em quando. Sai Rimbaud, você é só uma
alucinação.
Os médicos da clínica tratavam as pessoas no varejo.
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Você vai tomar choques, mas é com sedação.
Pai, eu faço tudo para melhorar.
O choque com sedação não provoca aquela tradicional contração muscular. O resultado é o mais próximo de
um tique nervoso.
Rimbaud me apareceu e disse que tudo ia correr bem.
A noite chegou e fazia frio neste dia. A vontade era
a de acender uma fogueira no hospício. Uma grande fogueira. Mas os agentes B estavam trabalhando no caso da
morte de Temível Louco.
Por que Temível Louco temia você?
Sei lá. Eu tinha que dar uma de louco. E fazia muito
bem quando queria. Não tente dar uma de mais louco do
que é na verdade.
Devia temer minha voz.
Sua voz não tem nada. Nem grave é.
Mas devia parecer com a voz do pai.
Explicação insuficiente. Você conhecia Temível Louco
lá de fora?
Aquele interrogatório era foda. Eu era incapaz de fazer
mal a uma mosca. Quanto mais matar.
Fale com Rimbaud. Fale com Baudelaire.
Vamos fazer uma fogueira. Tá cheio de louco aqui.
Você é louco?
Fui dormir.
O louco que tinha uma naja nas mãos não estava mais
lá, havia recebido alta. O quarto estava livre. Bati uma
punheta pensando na enfermeira mais gostosa. Aquela do
ela vem de branco. Depois ouvi o sino para os remédios.
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O sino ecoava estridente pelos sete cantos do hospício. A
turminha ia se encontrando.
Há dias que eu não via Rimbaud. Baudelaire também
havia sumido. Era melhor ficar sem eles.
Sentia falta do meu quarto. Do meu cachorro azul. Eu
nunca havia dormido fora de casa, na casa de amigos.
Na casa de meu amigo, vi o Esper na televisão. Comi
almôndega. Eu não tinha problemas pra comer. Sempre
comi de tudo. Dormi no chão.
Quando meu primo ia lá em casa, meu avô dizia:
Dê a cama pra teu primo dormir.
Não dou. Teu primo quer que você vá trabalhar em
Brasília.
Só se for de Brasília. Tenho que me formar primeiro.
Daí eles morreram naquele acidente aéreo.
Foi você. Você estava perto. Ele tinha medo de você.
Não fui eu.
Rimbaud surgiu rebolando e cantando Light my fire.
Foi você quem matou ele. Foi você. Você matou Temível
Louco.
Passei a conviver com mais aquela paranóia na cabeça.
Não sabia mais se tinha alguma participação na morte de
Temível. Rimbaud dizia que sim.
Não beijei a primeira garota que amei. Fui beijar outra menina pra aprender e só depois beijar de um modo
melhor a que eu amava. A que eu amava viu e me deu o
pé na bunda.
O café na mesa. Torradas. Geléia. Nescau. Queijo
prato. Mesa de casa com toalha nova.
Pão com uma ida de manteiga. Mesa do hospício.
Mais três pms internados.
Meu quarto (até então eu estava sozinho) vai ficar superlotado.
Três da manhã. Acordei e fui mijar. Vi no escuro um
pm se esfregando no outro. No dia seguinte nem me lembrava mais disso.
Se há algo que incomoda alguém é um karaokê. Era
todo mundo querendo cantar a toda hora. O oligofrênico
cabeceava Andança e Festa do Sol. Por que estes karaokês
são feitos com música que todo mundo sabe cantar?
Compraram um karaokê e colocaram na sala de tevê.
Era um tal de cantar pra maluco dançar. O sargento se
achava o Frank Sinatra. Cantava Altemar Dutra. Cantava
mal. Meu ouvido não era penico. O gari da Comlurb
cantava Boemia. Cada qual com seu cada um.
Os agentes B ainda estavam em cima de mim. Chateavam-me com aquele negócio de eu ter matado Temível.
Rimbaud berrava nos meus tímpanos: você matou.
Eu não acreditava em meu amigo. Jamais fizera mal a
uma mosca. Tratava as moscas muito bem. Pegava-as,
guardava em saquinhos plásticos e soltava em outro ambiente em que não estavam.
Fui pro quarto. Estava vazio e repleto de bichos de
luz. Eram tantos, que tive que desligar a luz. Os bichos
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vieram pra cima de mim. Fui tomar banho. Será que havia um assassino entre nós? Nesse caso eu poderia estar
correndo algum risco. Falei com meu pai que eu estava correndo risco. Ele falou de meu tratamento. Disse
que os policiais B estavam proibindo qualquer alta. Eu
especulei que aquilo poderia ocasionar mais transtornos
psicóticos nos psicóticos. Meu pai falou que se há um
assassino, tem de ser preso.
Em sete dias devem definir tudo, meu filho. Agüente
mais um pouco.
Ou eu saio morto, ou eu saio pior.
Eu não ia ficar lá tomando uma hora de banho. O assassino podia vir na encolha, como no Psicose de Hitchcock.
A origem da loucura em mim não deve vir do meu
pai e nem da minha mãe. Mas o gene com certeza é da
família de meu pai. Minha avó tem uma mania de perseguição horrível. Acha que meu pai não gosta dela. Acha
que deveríamos pagar o aluguel pra ela.
A turma toda fazia uma fila indiana para entrar e almoçar almôndegas com arroz e feijão. O problema não
era o nome da comida, era como a comida era feita. Em
grande quantidade. Como para animais. A educação na
mesa não podia ser exigida naquele lugar.
Os policiais B estão atrás de você.
De mim e todo mundo aqui. Mas eu não matei ninguém. Eu sei que não matou.
Eu estava com você, falou Baudelaire. Você podia dizer isso pro Rimbaud.
Muitos elefantes andando em círculo. Cada um segurando o rabo do outro.
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Eu não sabia mais a quem apelar pra não ser esmagado na parede pelos policiais B. Eles agiam com certa
agressividade verbal que eu não gostava. Talvez fosse o
tom de voz.
A família quer saber quem matou Temível Louco.
A família dele nunca veio vê-lo. Apenas o depositaram
aqui.
Você tem raiva da sua família?
Tenho raiva de todos eles.
Pelo que sei eles vêm todos os dias te ver. Você guarda
mágoa?
O que isso tem a ver com a morte de Temível Louco?
Achamos que só alguém muito bem estruturado poderia
matar Temível. Temível Louco não era um louco qualquer.
A noite chegava e eu, enfim, iria para o meu quarto curtir uma viagem a Porto de Galinhas. Aumentava o
som do walkman. Botava rock na rádio e foda-se estar ali.
Rimbaud aparecia como um malabarista, com tochas
de fogo nas mãos. Rebolava com aquilo nas mãos. Comia
o fogo. Cuspia o fogo. Era um dragão humano. Mas eu
já estava melhorando e sabia que Rimbaud era uma alucinação que vinha pra me atazanar. Não posso negar que
ele me divertia um pouco.
Eu quero um Jack. Eu não vou beber. Depois do show
que fiz pra você, você não vai me dar um Daniel’s.
Resolvi não responder a Rimbaud. Você não ia falar
comigo. Você não consegue viver sem minhas aprovações.
É verdade que as alucinações são coisas negativas. Mas
bem que poderiam ser doutrinadas para ser positivas.
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Não faça isso. É errado.
Mas como ir pela cabeça delas?
O vento corta a faca do meio-dia. Zaratustra deve
estar andando pela floresta. Como voar parado? Existe
amor ao meio-dia? Quando ela passa por mim, babo.
Papai veio sozinho hoje. Disse que meu irmão quer
vir me ver. Meu irmão é mais doente do que eu. Tenho
pena de meu pai. Carregar esses dois fardos. Meu irmão é
bipolar de humor. Sofre por ser triste. Sofre muito. Meu
pai estudou psiquiatria por causa dele, depois, por causa
de mim. Meu pai era pediatra. Agora é psiquiatra.
Eu queria ter feito minha formação em Cambridge.
Poderia ajudar mais os meus filhos.
Meu pai chorou. Todos choramos.
Vejo Rimbaud desde os 23 anos. Baudelaire apareceu
mais tarde.
Eu não podia nem ouvir alguém dizer boa-noite. Se
alguém dissesse boa-noite tinha que ouvir isso mais três
vezes.
Minha vida no mundo das cores era um inferno. Eu
só vestia calça azul-marinho e camisa branca. Não vestia
preto nem usava roupa de grife.
As roupas andavam sozinhas. Sozinhas e fantasmagoricamente andavam em volta da fogueira. Algumas roupas se jogavam no fogo. Faziam uma algazarra na noite.
Esquizofrênicos com distúrbio delirante não têm palavra. Guardam um ódio à doença muito grande. Ninguém
dá valor ao que falam. Eu não podia dizer pra ninguém
que Rimbaud achava que eu tinha matado Temível Louco. Baudelaire não. Ele sabia que eu não tinha feito nada.
Fronsky ficou de vir me buscar quando eu tinha 18
anos e até agora não apareceu em seu disco voador. Di48
zem que é loucura ver discos voadores. Depois do Haldol
muito pouca gente vê santo ou óvni.
Havia uma fera que rugia na minha barriga. Pedia
comida. Veio lanche e tinha bolo. Era um bolo. Os loucos todos em fila. O Procurador-Geral da República e o
drogado brigavam pela caneca de café com leite.
Eu vou pra Paracambi. Se você não comer, vai pro
Caju.
O banheiro estava sujo pra cacete. Aquele frio horrendo.
Noite de cair neve. Caía neve do céu. Era Califórnia. Califórnia me deu um beijo. Trouxe os remédios.
Califórnia era o nome da terapeuta que fazia uma dinâmica de grupo uma vez por semana. Os únicos que não
participavam eram os oligofrênicos. Eu contei a história
de Garnizé, que não só era gay, mas também tinha um
filho gay. Os dois estavam com Aids.
Tira a mão dos meus peitinhos.
Pow! Bang! O pau começou a quebrar entre Louco
Nerd e Alcoólatra Cabelos Brancos.
O pau começou a brochar.
Tira a mão dos meus peitinhos. Tira a mão. Tira.
Pow! Bang! Os dois rolavam pelo chão. Vieram dois
enfermeiros monstros de gordos e fortes e separaram os
dois. Louco Nerd foi amarrado na cama.
Todos estão vendo tevê. Ninguém pisca. De dois em
dois minutos ouve-se o som da cabeça de um oligofrênico na parede. A parede já estava abaulada.
O jogo do Brasil. Libera pra gente ver o jogo.
Vocês podem ver até dez horas.
Rimbaud passa correndo e vai para o quarto. Eu estou vendo o jogo. O Brasil joga bem. Gol.
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Fomos dormir tarde. Papai veio dormir em casa hoje.
Mamãe fez um bolo de laranja. Uma delícia. Toda sextafeira tem bolo.
Seguraram-me e botaram a camisa-de-força.
Agora cada um vai fazer um desenho. Fiz um Cristo
crucificado. Agora cada um vai mostrar o seu desenho.
O meu desenho é o céu e o mar. É quando o céu se
encontra com o mar no infinito.
No meu há um colibri pondo o pólen em cada estrela
da noite.
Você e o seu desenho.
É como eu me sinto, um ser crucificado. Antigamente,
todo mundo que era diferente ou representava algum perigo era crucificado. Hoje em dia fica em lugares como
hospício, que é a melhor forma de não melhorar.
Os policiais B chegaram perto de mim. Vieram numa
de amiguinhos.
Tudo bem, não foi você, nos desculpe. Somos animais noturnos. Imagens e sons estranhos nos instigam.
Aqui há o grito que é a forma de se comunicar. Há um
enigma por detrás de cada louco.
O homem dentro do leite caixinha tipo B deu um
tapa num outro dentro de uma garrafa de xampu Colorama. Era um tipo de garoto diferente, ele gostava de ir
com a mãe às compras. Sempre sobrava um docinho na
minha mão pelo bom comportamento.
Era como eles faziam no hospício: quando todos se
comportavam bem, endorfina neles: goiabada. Como se
pode sentir falta de um lugar de onde ninguém vem, pra
onde só se vai? No hospício só chegam pessoas.
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Senta ao meu lado a Senhora de Todos os Gritos.
Ninguém sabe por que ou por quem ela grita. Dizem que
perdeu um amor e ficou assim, possuída pelo grito. É um
grito uterino. Uma coisa horrorosa. Destrói os tímpanos
da gente. Ela come com vagar o boi ralado, como se aquilo fosse filé mignon. Utiliza os talheres com precisão. É
dona de uma etiqueta. Deixa a goiabada e dá um berro.
Com a mão esquerda tira uma meleca e coloca na mesa.
Algumas pessoas ali não são loucas, são apenas velhas,
senis, e parecem viver em outro tempo. É o caso de Lembra-Vovó. Lembra-Vovó anda muito bem vestida num
tailler. É uma senhora de fino trato. Anda maquiada, bem
conservada nos seus 70 anos.
Não existe muito papo. Conversa boba. Aqui tudo é
na base do grito ou do eu vou pra Paracambi, quem não
comer, vai pro Caju.
O que é a solidão? É viver sem obsessões. Mas na vida
às vezes a gente tem que escolher entre esmurrar a ponta
de uma faca ou se deixar queimar no fogo.
Qual o pior?
Um homem vestido de gelatina deu um beijo dentro
da garrafa de Coca-Cola.
Você não deve escrever sobre hospício.
Não. Todo mundo tem um hospício perto. Ou é a
sua bolsa que é um hospício. Ou a sua casa. Ou ainda a
carteira de dinheiro. Muita coisa pode ser um hospício.
Não falo de desorganização, falo de hospícios mesmo.
Rimbaud apareceu vestido de índio apache. Disse
que eu estava virando o general Custer.
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Havia muitas flores em toda clínica. Era um lugar
bonito. Por isso que digo que hospícios são lugares tão
bonitos que lembram os cemitérios. Aqueles cemitérios
onde há enormes jardins.
Rimbaud gostava de brincar com fogo. Acendia velas. Baudelaire gostava do escuro. Mas não gostava de
briga e muitas vezes sumia quando Rimbaud aparecia.
Rimbaud era meu amigo de todo o tempo. Um verdadeiro
porra-louca.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Então viajei para Disney e dei porrada no Pluto, metralhei o Mickey Mouse. Tudo porque eu gostava do Nacional Kid e dos Incas Venezianos. A violência é tão fascinante e nossa vida tão normal. Falo de um tipo específico
de violência. Tudo pode ser violento. Mesmo Deus.
Deus não: deuses.
Tenho rituais. Acendo um cigarro atrás do outro e
deixo que se fumem. Deixo que os deuses fumem cada
um o seu cigarro. Às vezes acendo todos ao mesmo tempo.
Meus deuses fumam comigo. Fica uma bagunça, orgia
de fumaça. E Rimbaud dança. Baudelaire foge. Sorrio.
Imagina se fossem baseados? Os deuses todos doidões
iriam sair feito capetas para a vida. Entrariam deuses e
sairiam demônios.
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Humphrey Bogart contra Charles Laughton
Policias B decidem sair do hospício. Não chegam à conclusão. O que é uma conclusão? É a certeza de perder
defesas. Alguém abre uma garrafa de Coca-Cola. Alguém
busca uma receita de felicidade. Alguma enguia em minha testa atesta que o eletrochoque é pra voltar ao normal.
Mas será que eu quero o meu normal de volta? Não sei
bem sobre o grilo e o cachorro azul. São somente animais
azuis. Azul também é a cor dos olhos dela. Lembra-Vovó
vem e me abraça. Quer dançar um tango, mas eu não sei
dançar tão devagar. Meu papo é outro. Acugêlê banzai!
Já estive no Japão. Era um lugar diferente. Bem parecido com um hospício. Cheio de gente. Às vezes, quando
me lembro do Japão, me vem a recordação de Temível
Louco. Era um cara legal. Havia matado seis pessoas. Estrangulado. Estuprado. Era um cara estranho, mas delicado comigo. Como já disse, ele tinha medo da minha
voz quando eu falava num tom mais grave e forte. Temível gostava de jogar xadrez consigo mesmo. Quem tinha
matado Temível Louco? Era um mistério que ecoava no
pouco silêncio que existia num lugar como aquele. Quero botar no silêncio minha voz.
Na minha voz, um grito.
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