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O menino e os sortilégios: apontamentos sobre a presença da Primeira Guerra na obra de Maurice Ravel (1914 – 1930) The Child and the Spells: notes on the presence of the War in the work of Maurice Ravel (1914 - 1930) El niño y los sortilegios: notas sobre la presencia de la guerra en la obra de Maurice Ravel (1914 - 1930) Leandro Couto Carreia Ricon* Resumo Doutorando e Mestre em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ), na linha de Poder e Discurso. Especialista em História Social pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Graduado em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Professor palestrante dos cursos de pós-graduação da Universidade Candido Mendes (UCAM) no polo Petrópolis (Tríade - Estudos Jurídicos) na disciplina de Metodologia da Pesquisa Científica. Colaborador do Centro Universitário Conservatório brasileiro de Música (CBM-CeU) nas disciplinas de História da Música (Séculos XVII - Tempo Presente), na pós-graduação em História da Arte e na revista Pesquisa e Música (www. pesquisaemusica.com - ISSN 1981-0180). Membro do Conselho Editorial da revista Veredas da História (www.veredasdahistoria.com - ISSN 19824238) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador da Universidade de Pernambuco por meio do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina, na linha de História do Tempo Presente. Foi coordenador do Laboratório de História Social da Universidade Católica de Petrópolis. Interessado em pesquisas acerca de Teoria e Filosofia da História, Historiografia e da relação música-sociedade, a partir do Século XVIII. E-mail: [email protected] * O cenário artístico-musical francês, no término do Século XIX e primeiro quartel do Século XX foi dominado por debates entre os tradicionalistas e os inovadores. Nessa conjuntura cultural, o impressionismo enquanto forma musical surge e se estabelece no cenário da Belle Époque. O trabalho que se segue busca, nesse sentido, analisar a produção musical de Maurice Ravel (1875–1937), e relacioná-lo com o contexto e com a temática da Primeira Guerra. Assim sendo, averigua determinadas obras desse músico, que também lutou durante o conflito, e que, marcadamente, sofreram influência desse conflito. Palavras-chave: Maurice Ravel. Música Francesa. Primeira Guerra Mundial. Recebido em 01/03/2014 - Aprovado em 30/07/2014 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.14n.2.4579 380 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 Poucos compositores possuíram uma presença política tão ativa quanto o francês Joseph-Maurice Ravel. Nascido em 1875, acabou inserindo em sua produção artística, muitas vezes de forma indireta, as características dos debates políticos e culturais de seu momento. Essas características mostram-se nítidas quando tratamos, por exemplo, do impressionismo como sendo o movimento artístico vigente na França durante a transição do Século XIX para o XX, período de formação desse compositor. Segundo Ernst Fischer, “o impressionismo surgiu como uma revolta contra a arte oficial acadêmica, baseada em um classicismo esvaziado” (FISCHER, 1971, p. 83). Após esse período impressionista, no entanto, o classicismo se renovou em Ravel, conseguindo se reestabelecer. Buscando superar não apenas o classicismo como também as representações e os excessos de sentimentalismo do romantismo, alguns pintores procuraram “fundir”, por meio de contrastes específicos, o centro da pintura com o seu segundo plano e, a partir dessa possibilidade, esses artistas plásticos, primeiros impressionistas, acabaram por influenciar outros ramos artísticos, incluindo literatura e música. Nesse sentido, o impressionismo atingiu a música, a partir do simbolismo literário, outrora influenciado pela pintura. Logo, a principal marca dessa estética é a busca pela música como um conjunto sonoro e não o somatório de determinados fatores, como a melodia e a harmonia. Tendendo ao atonalismo, característica que marcou a música até o início do Século XX, os músicos impressionistas buscaram, portanto, uma ampliação artística. O ponto de partida da produção de Maurice Ravel é marcado pelo impressionismo, amplamente estruturado e divulgado na belle époque francesa por Claude Debussy, enquanto possibilidade estética-composicional. Esses dois autores, todavia, se separariam durante suas trajetórias de vida1. Ravel, inicialmente influenciado pela obra do próprio Debussy, vai, todavia, se afastando dessa possibilidade impressionista para, enfim, criar sua maneira particular de escrita. Essa criação de singularidade é, sem sombra de dúvidas, marcada pelas modificações políticas e culturais da Europa que possuem como núcleo, no início do Século, a Primeira Guerra Mundial. Nesse tom, conforme atestou Otto Maria Carpeaux, Ravel não foi exatamente um homem da belle époque, mas, sim, seu contemporâneo (CARPEAUX, 1977). Enquanto inovou no período anterior à guerra, principalmente com Jeux d’Eau (1901) e Gaspard de la Nuit (1908), obras pianísticas ainda de caráter impressionista, durante o conflito Ravel, um típico cidadão da Terceira República, revanchista pela Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), que, assim como seus contemporâneos, culpava os germânicos pelo início do conflito, voltou-se aos clássicos. Logo, as obras do período da guerra acabaram por se afastar das inovações anteriormente propostas para adotarem formas e técnicas do passado resgatando o classicismo francês e firmando um realismo composicional. Portanto, a Primeira Guerra se transformaria, em certa medida, no ponto geracional para uma nova maneira de se olhar para a produção musical na França no caso desse compositor. 381 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 Ravel, contudo, não era um caso isolado e a produção – artística e intelectual, uma vez que, esses indivíduos publicavam constantemente artigos em periódicos – da grande maioria de compositores franceses da década de 1910, tais como Camille Saint-Saëns, Gabriel Fauré e Vincent d’Indy além dos próprios Debussy e Ravel, seria influenciada pelas dinâmicas políticas do período. As necessidades de defesa da pátria e de reafirmação do nacionalismo enquanto um sentimento de pertencimento a um grupo localizado e imaginariamente criado (GUIBERNAU I BEDRUM, 1997) eram constantes. Na música, as interpretações se dividiam: enquanto alguns compositores permaneceriam defendendo as inovações estéticas como forma de luta e propagação de seus ideais, outros procurariam um retorno àquilo tido como clássico e tradicional. Logicamente devemos levar em conta que a composição de novas obras e mesmo artigos durante o conflito míngua assim como as atividades artísticas em todo o continente europeu e, com isso, Paris acabaria perdendo o seu título de capital cultural da Europa. A obra de Maurice Ravel, inserida nessas circunstâncias de modificação intelectual-artística promovida pelas beligerâncias, oferece uma clara possibilidade de análise. O seu Trio para Piano, Violino e Violoncelo, suas Três Canções para Coro Misto, a sua suíte para piano Le Tombeau de Couperin, sua obra orquestral La Valse e seu Concerto para Piano para Mão Esquerda acabariam sendo obras de referência ao período amplamente divulgadas até nosso tempo presente.2 Dessa forma, analisar essas obras e o que levou a suas respectivas composições além da historicidade dessas perante a Primeira Guerra, faz-se necessário para a melhor compreensão das próprias obras e do ambiente artístico-musical francês da época. Filho de Pierre Joseph Ravel franco-suíço e Marie Delouart, francesa descendente de uma tradicional família espanhola da região basca, os Delouart, Maurice nasceu em Ciboure, na região basca da França. Essa influência basca marcaria o início da produção do compositor que, no começo da segunda década do Século XX, se lançaria a experimentações musicais, mesclando as possibilidades de escrita artística francesa com o folclore basco herdado da mãe. Em 1914, mais especificamente entre março e agosto, o compositor lançar-se-ia ao estudo das possibilidades composicionais de um Trio, peça que, tradicionalmente, e Ravel segue essa característica, é composta para piano, violino e violoncelo. A pesquisa acerca do modelo basco de música e a própria escrita desta peça já demonstram plenas características do nacionalismo representativo na música francesa do início do Século XX: desde a derrota para a Prússia em 1871, que levaria à unificação alemã, os franceses desenvolveram amplas pesquisas acerca de toda a pluralidade musical de seu território. Assim, comum era a um compositor cosmopolita reconhecer as possibilidades musicais de todas as outras regiões do Estado francês. Não fugindo a esta regra, Ravel, em sua cidade natal, reveria suas origens e se utilizaria de elementos desta cultura musical, principalmente a rítmica, para a composição de seu único Trio. Nesse momento de tensão política e buscando resgatar as possibilidades tradi- 382 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 cionais para a sua escrita musical durante a guerra, Ravel escolhe pela precisão e pelo rigor formal, tradicionais do classicismo francês, como frente ao próprio instante político conturbado desse início de século e ao modelo estético impressionista utilizado outrora por ele mesmo. Partindo disso, podemos perceber, por exemplo, a utilização da formação do Trio de forma tradicional, ou seja, piano, violino e violoncelo, em um momento no qual já aconteciam novas possibilidades de arranjo deste gênero – o próprio Debussy escreveria, em 1915, uma sonata para três instrumentos se utilizando de flauta, viola e harpa. Outro ponto de resgate clássico deste Trio é o fato de que Ravel também dividiria essa peça em quatro partes, movimentos, no momento em que passa a ser comum a esse gênero a escrita em uma única parte de forma direta além, é claro, de se utilizar de possibilidades tonais no momento de expansão do atonalismo. Portanto, quando a guerra se inicia em 28 de julho, Ravel está no final da composição da obra e já em 8 de agosto do mesmo ano decide se alistar no exército francês que declarara guerra em 1º de agosto, mesmo mantendo o medo de deixar sua mãe em Ciboure sozinha, conforme atesta a correspondência desse período trocada com seu único irmão Édouard, três anos mais jovem do que o compositor (BENEDETTI, 2012, p. 43-44) e que também se alistaria no mesmo momento. Essa vontade de alistamento que se transformaria em verdadeira obsessão para o compositor acabou levando-o a considerar o próprio Trio que estava em fase final de criação como obra póstuma (BENEDETTI, 2012, p. 45-46) A partir do momento em que decide se alistar, procura a representação do exército na região de Bayonne, ainda na fronteira com a Espanha. Nessa região, passa pelos exames médicos que o vetariam do serviço militar. A proibição residia em dois pontos: Ravel era baixo e magro demais para o trabalho, mesmo conjunto de motivos usados anos antes para a dispensa. Após essa negativa, Ravel escreveria em outubro sua última carta antes de retornar a Paris endereçada ao crítico, compositor e musicólogo francês Alexis Roland-Manuel, seu aluno e amigo pessoal, aquele que seria um de seus primeiros biógrafos: Mas eu sei bem, meu caro amigo, que trabalho para a pátria fazendo música! Disseram-me o suficiente, há dois meses, para me convencer; primeiro para impedir de me apresentar, e depois para me consolar de meu fracasso. Não me impediram, e não me consolo. Será necessário esperar para agir (BENEDETTI, 2012, p. 49). Essa última epístola nos mostra um Ravel consciente de seu papel de intelectual no panorama francês, todavia demonstra também a ideologia da ‘necessidade de lutar’ pela defesa de sua nação. Esse nacionalismo exacerbado, apoiado e divulgado pela própria administração de Raymond Poincaré acabaria adaptado pela própria obra do compositor. Por sua vez, o Trio, marcado pelo rigor na forma, característica de várias das peças de Ravel, se não de todas escritas no período de guerra, por fim, teria sua première em 28 de janeiro de 1915 em um concerto, o único daquele ano, promovido pela Societé Musicale Indépendante.3 Esse grupo de intelectuais que formariam essa Sociedade Musical, reunidos a partir de 1909, por no- 383 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 mes como Gabriel Fauré, Charles Koechlin e pelo próprio Ravel, visava defender a criação musical francesa no crescente contexto nacionalista e revanchista francês. O concerto no qual ocorreu a apresentação deste Trio, financiado por essa que era uma das mais destacadas sociedades musicais da França, aconteceria na Salle Gaveau, uma das mais relevantes casas de música da Europa no início do Século XX e que, devido ao período de guerra, apenas voltaria a realizar recitais e concertos em meados de 1917. Apesar de apresentado publicamente apenas uma vez durante o período beligerante, atingiu um rápido sucesso de crítica e de apropriações sociais imediatamente se transformando em referência para o público nacionalista francês, convertendo-se, assim, em um símbolo anti-germânico. Outras peças, no entanto, seriam de mais fácil execução e atingiriam um nível de nacionalismo mais direto: utilizariam-se de letra e não apenas de uma estruturação instrumental. Esse é o caso de três canções escritas no período de guerra e que obteriam fama nacional dois anos antes do término do conflito. Entre dezembro de 1914 e fevereiro de 1915, Ravel ansiava ser admitido no exército francês. Nesse momento comporia Trois chansons pour choeur mixte sans accompagnement (Três canções para coro misto sem acompanhamento). Esse pequeno conjunto de três peças, suas únicas nesse modelo, foram dedicadas cada uma a um colaborador do compositor em sua tentativa de ingressar na guerra como soldado, sendo nitidamente influenciadas pelas notícias constantes da morte de amigos e outros artistas. Dessa forma, a primeira obra dessa coletânea que é marcada por características do simbolismo francês, Nicolette, foi dedicada ao poeta Tristan Klingsor, seu amigo pessoal (KLINGSOR, 1939); a segunda, primeira na ordem de escrita, Trois beaux oiseaux du paradis, teve dedicatória a Paul Painlevé, matemático e político francês com forte influência na aeronáutica, que chegaria a ocupar por duas vezes o cargo de primeiro-ministro da França – entre setembro e novembro de 1917 e, na segunda vez, entre abril e novembro de 1925; a terceira, Ronde, foi dedicada a Sophie Clemenceau, cunhada de Georges Clemenceau que havia sido primeiro-ministro da França entre 1906 e 1909 – e que seria, novamente, como sucessor de Painlevé, entre 1917 e 1920. Devemos, a partir disso, analisar o panorama de composição de canções para a sociedade francesa. As músicas letradas ocupavam, devido a sua acessibilidade ao público não especializado, um lugar central na produção francesa durante a década de 1910. E mais: diferentemente de outros momentos, os próprios compositores eram, também, os autores das letras utilizadas em suas canções, característica incomum até hoje. No período em questão, a elaboração de letra e música “refletiu a necessidade desses [compositores] de exprimir verbalmente o sentimento de nacionalismo, de impotência e de revolta contra os horrores da Guerra” (BENEDETTI, 2007, p. 25). Debussy, por exemplo, escreveu, em dezembro de 1915, Noël des enfants que n’ont plus de maisons [Natal das crianças que não tem casa]. Nessa obra, retratou as crianças atingidas pela guerra. Mas mais do que isso, retratou, acima de tudo, a culpa dos germânicos, responsáveis por destruírem o lar e até as petit 384 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 lit [caminhas] das crianças. Assim, as crianças pedem ao Noël para nunca mais visitar os inimigos responsáveis por tantas mortes, clamando por vingança por todas as tragédias ocorridas nas nações invadidas, como a Bélgica, a Sérvia, a Polônia e, logicamente, a própria França. Essa peça, escrita originalmente para voz e piano, foi a última nesse estilo, escrita por Debussy.Nela reina a simplicidade composicional. Tal simplicidade Doux et Triste, Doce e Triste conforme indica o compositor na própria partitura, já demonstra claramente a apatia perante a guerra. Ravel seguira esse mesmo caminho em suas composições vocais de guerra. Escrevendo a letra e a música das Três Canções para Coro Misto, demonstrava os seus sentimentos em relação ao conflito, reafirmando seu nacionalismo. Dessas três canções que tiveram as suas letras influenciadas pelo simbolismo de autores como Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Stephanie Marlamé a segunda, Trois beaux oiseaux du paradis [Três belas aves do paraíso], merece destaque. Foi a que se firmou no panorama e conseguiu se estabelecer nas salas de música contemporâneas. Diferentemente das letras das outras duas canções, notadamente irônicas, essa segunda nos diz, em tom patriótico: Três belas aves do paraíso (Meu amigo está na guerra) Três belas aves do paraíso Já passaram por aqui. A primeira era mais azul que o céu, (Meu amigo está na guerra) A segunda era da cor da neve, A terceira vermelho forte. Belas avezinhas do Paraíso, (Meu amigo está na guerra) Belas avezinhas do Paraíso O que trazem para cá? Eu trago um olhar azul. (Seu amigo está na guerra) E eu, com bela fronte cor de neve, Um beijo, ainda mais puro. Vermelha ave do Paraíso, (Meu amigo está na guerra) Vermelha ave do Paraíso, O que você traz? Um bonito coração todo vermelho... (Seu amigo está na guerra) Ah, eu sinto meu coração esfriando... Tome-o também. (RAVEL, 1916, tradução nossa) Escrita em fá menor, demonstra traços característicos do nacionalismo corrente como, por exemplo, a utilização das três aves nas cores azul, branco e vermelho, as cores da bandeira nacional da França. A obra também marca a morte dos companheiros inseridos diretamente no conflito. Com essas mortes, o coração nacional francês vai se esfriando, morrendo, e a própria luta pela pátria, representada nas aves, acaba sendo a responsável por destruir o coração dos soldados. Um último ponto interessante nessa peça é o trecho “eu trago um olhar azul”. Os franceses, no geral, não possuem olhos claros e o termo ‘olho azul’ passou a ser utilizado, na transição do Século XIX para o XX, para se referir especificamente aos germânicos e a seu ideal expansionista identificado 385 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 na Guerra Franco-Prussiana e na assinatura da própria Entente Cordiale, em 1904, entre França e Reino Unido para se resguardarem dos ideais territorialistas germânicos. A publicação dessa obra aconteceria em 1916, todavia a estreia apenas ocorreria em 11 de outubro de 1917, na presença do compositor, com um coro reunido pela mezzo-soprano Jane Bathori e seu marido, o tenor belga Pierre-Émile Engel, contando ainda com a direção do pianista Louis Aubert, amigo do compositor, no Théatre du Vieux-Colombier. Nessa peça simples e de claras possibilidades interpretativas, o autor buscou um resgate da sobriedade das composições clássicas, afastando-se, assim, das próprias inovações criativas que tivera em momentos anteriores em prol da defesa da pátria e da divulgação do nacionalismo francês. Tristan Klingsor, dedicatário da primeira canção, escreveria sobre esta música e mais especificamente sobre o Ravel letrista do período de guerra: Ele deu a si mesmo o mais puro do seu coração com três músicas. Não estou falando apenas de música, agradável arranjo de vozes ou encaminhamento melódico - desta vez muito perto da popular, quero dizer, os próprios textos. (...) Ele matematicamente orquestra mantendo a criatividade de uma criança grande. O folclore ressuscitado nos poemas de Ravel, com a sua familiaridade, sua estranheza, suas reconciliações singulares são únicos (KLINGSOR, 1939, p. 133, tradução nossa). Finalmente, no dia 10 de março de 1915, pouco tempo após a conclusão das Três canções, Maurice Ravel seria incorporado ao exército de defesa da França. Seria levado para o nordeste francês, próximo a Verdum, local de variadas batalhas de trincheiras, em março do ano seguinte. Não na aviação, tal qual seu irmão Édouard conseguiria e como tentava desde o início do conflito, argumentando em prol de seu peso e altura reduzidos de forma favorável, mas como motorista de caminhão para o transporte de material bélico e veículos de resgate. Essa efetivação nas armas contou, afinal, com a ajuda de sua própria produção artística e se, em sua primeira tentativa de servir, afirmou-se que ele seria melhor compondo para a nação, a própria composição dessas três canções ajudaram efetivamente a sua colocação no exército: Léon Leclère, dedicatária da primeira peça da obra com o nome de Tristan Klingsor e autor da elogiosa crítica apresentada anteriormente, foi o responsável por interceder juntamente a militares franceses pela inserção do compositor nas tropas combatentes. A guerra real, contudo, era deveras diferente do que Ravel imaginara e em pouco tempo o compositor começa a se questionar sobre a sua posição no interior desse conflito. Suas cartas desse período atestariam todas as sensações e emoções vividas não só por esse compositor, mas, sim, por todos os indivíduos envoltos no conflito que, muitas vezes, não conheciam as reais causas imperialistas da beligerância (HOBSHAWM, 2008; HOWARD, 2010). Ravel ficaria ininterruptamente alguns meses no fronte, conseguindo, após esse tempo, uma ordem de descanso, cumprida em Paris. Esse curto intervalo é marcado, no entanto, por um evento triste na vida pessoal do compositor: em 5 de janeiro de 1917 sua mãe morreria. Ainda nesse período de descanso, é convidado a entrar em uma das variadas sociedades musicais francesas, a Ligue Nationale pour la 386 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 défense de la musique française [Liga nacional pela defesa da música francesa], grupo artístico ultranacionalista (JAMES, 1987). Ravel nega o pedido, explicando que continua sendo um intelectual e um artista independente (BERNADETTI, 2012, p. 62-64). A coragem intelectual e independência artística, no entanto, são vistas como uma posição impopular nesses debates acalorados e o compositor passa a ser hostilizado por vários músicos, notadamente por Vicent d’Indy e Camille Saint-Saëns.4 Retornando do curto descanso em Paris, Ravel é reformado em março de 1917, devido a sua condição física, que se deteriorara rapidamente, e também psicológica, devido à morte da mãe. Dessa forma, o compositor poderia voltar a sua obra e, assim, retoma a sua produção, inclusive com peças que deixara inacabadas. Mesmo com todos os reveses o compositor, afastado da “gloriosa luta” (RAVEL APUD CHALUPT, 1956, p. 117), ainda procurou a divulgação nacional, agora ao piano. Para tal, retomou a escrita de uma série de peças, uma suíte: Le Tombeau de Couperin [O túmulo de Couperin]. Apesar de possuir uma curta produção pianística, esse conjunto de obras de caráter barroco acabou se consolidando no repertório contemporâneo e ainda é comum ser ouvida nas salas de concerto. Vale, contudo, compreender o motivo da forma utilizada por Ravel nessa peça. Após a derrota na Guerra Franco-Prussiana, em território francês, o sentimento de revanchismo foi colidido com o retorno a toda uma cultura artística do Século XVII e XVIII. Incluindo o próprio impressionismo como um movimento plenamente francês sofreu, em certa medida, essa influência. Ou seja, se no Sécu- lo XIX o cenário artístico-musical francês era dominado por compositores germânicos, no último quartel do século, fez-se necessário um retorno daquilo considerado plenamente nacional. As primeiras obras que buscavam resgatar as composições francesas do Século XVII e XVIII por meio de reapropriações temáticas foram as obras de Gabriel Fauré e de Debussy. O primeiro, ao escrever em 1887 uma Pavane em fá sustenido menor (Op. 50), resgatou os ritmos e estruturas antigas para fazer reviver essa dança espanhola comum na França do Século XVII. Debussy, por sua vez, escreveu, em 1905, sua Hommage à Rameau [Homenagem a Rameau] e, em 1915, uma Sonata para piano e violoncelo – em ambas as peças, encontramos os ritmos constantemente utilizados por Jean-Philippe Rameau, relevante músico e teórico da música francês do Século XVIII. Amiúde, esses autores, aos quais Ravel se juntaria, buscaram, influenciados pelo seu tempo, resgatar a música francesa esquecida no Século XIX recriando e firmando, assim, uma escola nacional. Dentre esses autores, Rameau e François Couperin, atingiriam destaque,5 esse último, na própria obra de Ravel. No início da guerra, Ravel percebeu a situação de seus amigos franceses indo à guerra e retomou um antigo projeto: homenagear François Couperin (1668-1733) e, ao mesmo tempo, seus amigos mobilizados. Assim sendo, iniciou a composição de uma suíte, Le tombeau de Couperin. Logo, devemos pensar que, apesar do termo tombeau significar, literalmente, túmulo, sepultura, Ravel se utilizou desse de forma ampliada, já que esse termo se firmou, entre os Séculos XVII e XVIII, como sendo uma obra escrita em 387 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 memória de algum indivíduo. Dessa forma, Ravel realizou uma dupla homenagem: a Couperin e a seus amigos mortos em batalha. Para tal homenagem, a obra, iniciada em Ciboure em julho de 1914 e finalizada em novembro de 1917, em Paris, seguiu a forma de escrita comum no Século XVIII francês, a suíte. Comum nos Séculos XVII e XVIII, a suíte é uma obra composta de várias pequenas partes, estas geral e originalmente, baseadas em danças tradicionais das mais diversas partes da Europa. Nesse sentido, esse conjunto de peças, que conclui a obra pianística de Ravel, tem a estrutura das danças, a completa indicação de execução e o rigor da forma de uma suíte barroca criando, assim, a necessidade de clareza durante a interpretação6. Para a edificação de sua suíte, escreveria seis peças e as dedicaria a seus amigos mortos em combate: uma fuga, uma furlana, um rigaudon, um minueto, uma tocata, além de uma peça introdutória, um prelúdio. A primeira peça que Ravel escreveu para a sua suíte foi um prelúdio, um movimento preliminar amplamente explorado entre os séculos XVIII e XIX que funciona como uma introdução para vários estilos de obras. A partir de meados do século XIX, todavia, acabou se consolidando como uma peça curta com valor independente a outras (GROVE, v. 3, 1904, p. 809). Ravel dedicou esta primeira obra, escrita em mi menor, ao primeiro-tenente Jacques Charlot, morto em março de 1915 em campo de batalha com 30 anos. Charlot foi músico e amigo próximo do compositor, sendo o responsável, cinco anos antes de sua morte, pela redução para piano da peça Ma Mère l’Oye [Mamãe Ganso], escrita, originalmente, para piano a quatro mãos. Esse músico francês teve uma carreira relevante próximo a seu tio: Jacques Durand, dono de uma das principais casas de edição de partituras da França no período, a Casa Durand, responsável, inclusive, pela edição de Le Tombeau de Couperin.7 A segunda peça constituinte dessa obra é uma fuga, “um movimento musical no qual um determinado número de partes ou vozes se combinam para desenvolver um tema de forma cumulativa” (GROVE, v. 2, 1904, p. 114) e imitativa. Essa forma musical polifônica, assim como o prelúdio e todas as demais partes da suíte foram amplamente exploradas no século XVIII. Dedicada ao segundo-tenente Jean Cruppi, morto no início da guerra, essa obra em mi menor, se consolidou como uma das mais conhecidas do grupo composto pelas seis peças. A família Cruppi era extremamente próxima a Ravel: a mãe do dedicatário, Louise Cremieux, também foi musicista, transformando-se em uma das principais incentivadoras da carreira de Maurice. A influência dessa na carreira do compositor foi tão acentuada que Ravel lhe dedicou duas obras: Noel de jouet, (1905) escrita para voz e piano – ela era cantora – e sua ópera L’Heure Espagnole, de 1911.8 Seu marido, Jean Cruppi, foi um influente político – deputado por 25 anos – da Terceira República Francesa e um dos homens que tentou auxiliar Ravel em seu projeto patriótico de se inserir no exército. Para a terceira homenagem, Ravel escolheu uma furlana. Dança típica dos gondoleiros venezianos surgida na transição do Século XVI para o XVII (GROVE, v. 2, 1904, p. 98), a furlana de Ravel foi dedicada ao também primeiro-tenente Gabriel Deluc (1883 – 388 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 1916) e assim como as duas peças anteriores, essa obra também é em mi menor, tom reconhecido na obra ravelina como de pesar. Nascido na terra de Ravel, Deluc, de quem Ravel se aproximou entre os anos de 1911 e 1912 e discutiu acerca da composição de seu balé Daphnis et Chloé, se consolidou como um famoso pintor na capital francesa até sua morte no fronte de Souain (JEANPIERRE, 1974). Fato importante de se marcar é que a ideia de se escrever uma furlana já se apresentava em Ravel desde 1913 e partes dessa obra, a maior do ciclo, já estavam prontas no final de 1914. Nesse sentido, devemos compreender essa dedicatória de forma retroativa e adaptada. A peça seguinte, em dó maior, Ravel dedicaria a dois irmãos, colegas seus de infância (BENEDETTI, 2007): Pierre, nascido em 1878 e Pascal Gaudin, nascido em 1883. Mortos no mesmo ataque em 1914 – o primeiro dia em que participavam na guerra – eram membros do 49º regimento de infantaria. Para esses amigos antigos Ravel dedicou um rigaudon, uma dança viva que se originou provavelmente entre a região da Provença e do Languedoc do período de Luís XIII e que, surgindo em ambiente popular, atingiria rapidamente a nobreza, chegando a ser extremamente comum em outros territórios, como a Inglaterra (GROVE, v. 4, 1904, p. 100). Ravel escolheu especificamente essa dança também como uma homenagem à família Gaudin – evidente é a proximidade sonora entre o nome da dança e o nome da própria família (ROUSSEAU-PLOTTO, 2004). A quinta peça, a com a maior parcela de ornamentação barroca, é um minueto. Essa obra Ravel dedicou a Jean Dreyfus, enteado da Sra. Fernand Dreyfus, amiga pessoal do compositor e que acabou ocupando o lugar de mãe do compositor quando esse perdeu a sua (RAVEL, 1986). Ravel conheceu essa família através de Roland-Manuel que, por sua vez, era filho do primeiro casamento da sra. Dreyfus. Durante o conflito, Ravel manteve intensa correspondência, quase diária, com essa família. O compositor viveu algum tempo na casa dos Dreyfus em Ruão logo após ser desmobilizado e acabou estando presente quando da morte de Jean Dreyfus já no final da guerra. Dessa forma, dedicou-lhe essa peça dançante em sol maior de origem ítalo-francesa, famosa com Lully, um dos compositores preferidos de Luís XIV (GROVE, v. 3, 1904, p. 213). No centro da peça o compositor inseriu uma musete, dança francesa extremamente popular, originalmente escrita para uma espécie de gaita de foles, uma cornemuse (GROVE, v. 3, 1904, p. 323). Para a conclusão da suíte, Ravel escreveu uma toccata, ‘uma peça escrita em estilo livre e idiomático, geralmente para teclado e em várias seções, incorporando elementos de virtuosismo destinados a valorizar o ‘toucher’ do instrumentista (ARNOLD, 1986, p.818). Escrita em mi maior, o compositor dedicaria essa obra ao capitão Joseph de Marliave, importante musicólogo francês casado com a pianista Marguerite Long, uma das mais relevantes intérpretes do início do século passado, morto no início da guerra. A própria pianista, em seu livro sobre Maurice Ravel, marcaria a relevância dessa obra para o seu próprio repertório de intérprete (LONG, 1973, p. 146). Essa obra é singular dentre as seis compostas: enquanto as cinco peças iniciais tendem à própria interpretação 389 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 cravística, ou seja, possuem características não pianísticas, a sexta obra é plenamente pianística. Daí, inclusive a dedicatória. A homenagem não se restringiria à música e para a capa da primeira edição da partitura dessa suíte, ocorrida em 1918 pela Durand Éditions Musicales, Ravel desenhou uma urna funerária em uma nítida referência ao caráter lúgubre da obra. A estreia da peça, baseada nos movimentos geralmente utilizados por Couperin no Século XVIII, aconteceria em 11 de abril de 1919 na Sala Gaveau de Paris, contando com a interpretação de Marguerite Long, viúva do dedicatário da última peça,9 em um concerto organizado pela Societé Musicale Independente, grupo originalmente idealizado pelo compositor. Ravel, presente na premier pôde, então, acompanhar a acolhida que a peça teve dentro do establishment musical francês (ORENSTEIN, 1991, p. 72-73). A guerra findara, a produção do período também, todavia as impressões do conflito remanesceriam no compositor (ROUSSEAU-PLOTTO, 2004). Ao término do conflito, autores como Arnold Schoenberg, Erik Satie e Igor Stravinsky se firmaram no cenário artístico-musical internacional. Na França, os músicos ultranacionalistas acabariam perdendo força e, logo após a guerra, a própria música germânica, principalmente com Beethoven e Wagner, voltou a ser plenamente executada em território francês. Essa retomada de música estrangeira nota-se em Ravel, por exemplo, com a composição de sua La Valse, um poema coreográfico para orquestra terminado em 1920. Essa obra, pensada por Ravel anos antes, constituía-se como uma homenagem à valsa vienense, todavia, o contexto político não permitiu a homenagem à cultura musical dos inimigos. O próprio compositor afirmaria acerca da obra: Alguns podem encontrar nela uma paródia, até mesmo uma caricatura, outros verão uma alusão trágica – o fim do Segundo Império, a situação de Viena após a guerra, etc... Esta dança pode parecer trágica, entre outras emoções. Mas só se deve ver aquilo que a música expressa: uma progressão de sonoridades (Ravel, letter to Maurice Emmanuel, In: ORENSTEIN, 1991, 229). Ou seja, Ravel diminuiu a representação da guerra nessa obra. Todavia, o que ocorre, nitidamente, é a impossibilidade de se escrever essa peça no momento de idealização: anos antes da guerra, num panorama de reafirmação do nacionalismo musical francês identificado com o impressionismo debussyano. Devemos lembrar que La Valse, além de versar sobre um tema germânico, é escrita de forma nitidamente expressionista – a percepção estética germânica em resposta ao impressionismo francês. A década de 1920 também manteria as recordações da guerra e em 16 de janeiro de 1920 Ravel seria indicado a receber a Legião de Honra, um dos principais títulos distintivos da França. Contudo, o compositor negaria a honraria por se tratar de uma comenda de guerra (LONG, 1973, p. 168). Apesar de negar a distinção, toda a sua música, pelo menos na interpretação do povo francês, a aceitou, conforme afirmaria o compositor Erik Satie (SATIE, 1920). Mas não apenas nas honrarias essa década lembraria a guerra, afinal, nesse período, em 1928, Ravel também receberia o seu doutorado em música pela Universidade de Oxford, a música ainda permaneceria impregnada desse triste even- 390 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 to na vida do compositor. Além dessas honrarias Ravel iria singularizar cada vez mais a sua obra, ou seja, buscaria, com a liberdade estilística gerada pelo pós-guerra, seu propre itinéraire, seu caminho individual. E esse caminho singular se mostraria em outra música referente ao conflito encerrado anos antes. Seria um concerto. Um concerto para piano – apenas para uma mão, à esquerda. Durante a guerra Ravel lutou contra os germânicos em Verdum, entretanto o compositor tinha muitos companheiros nas artes do outro lado do fronte. Dentre esses colegas, um se destacaria: Paul Wittgeinstein (1887 – 1961). Irmão do filósofo Ludwig, Paul perdeu seu braço direito em uma batalha entre os germânicos e os russos ocorrida na região da Polônia. Após o término do conflito e reestabelecimento de relações entre os países, a sua história começou a ser amplamente divulgada e um grupo de alemães começou a pedir a composição de músicas específicas para a mão esquerda. Seu caso acabou ficando tão conhecido na Europa que autores como o inglês Benjamin Britten, os alemães Paul Hindemith e Richard Strauss e o russo Sergei Prokofiev também escreveriam peças para a sua execução. A primeira apresentação dessa obra composta em nove meses, entre 1929 e 1930, ocorreu em 5 de janeiro de 1932, em Viena, tendo Wittgenstein, o dedicatário da música, como solista e a Orquestra Sinfônica de Viena regida por Robert Heger, encontrando uma boa acolhida, tanto pela história do pianista, quanto pela obra (ORENSTEIN, 1989). Apesar de Ravel, por compromissos artísticos, não ter conseguido comparecer a essa apresentação, o compositor não ficou satisfeito com o tratamento dado por Wittgenstein à obra – o pianista não seguiu as indicações de execução feitas pelo compositor. Com isso, Ravel vetou a primeira apresentação da peça em Paris com a interpretação de Wittgenstein. Assim, a primeira exibição na capital francesa não contaria com a execução do pianista germânico e sim do francês Jacques Février. Outro ponto também faria a música se aproximar do quadro social (DUVIGNAUD, 1971) do imediato pós-guerra. O compositor afirmaria que a grande novidade da obra é que a partir de 1919, num mundo razoavelmente pacificado e mais aberto, às presenças estrangeiras, já seria possível se utilizar de elementos plenamente não nacionais na composição. Assim, o Concerto para Mão Esquerda em ré maior tem um grande número de elementos de jazz, uma das principais influências que Ravel assimilaria juntamente com o expressionismo alemão no imediato pós-guerra (ORENSTEIN, 1989). Eric Salzman afirmou que “a maior parte das [...] obras de Ravel de antes da guerra, culminando no balé Daphnis et Chloé (1909-1911) acham-se muito mais claramente relacionada a Debussy” (SALZMAN, 1970, p. 71). Essa é a ‘fase impressionista’ desse autor, se é que podemos afirmar que exista uma.10 Com o aproximar da guerra, sua arte vai se individualizando e transformando em classicista, realista. Ou seja, enquanto o movimento impressionista é revoltado contra o esvaziamento do classicismo, Ravel ressignifica esse mesmo classicismo, se afastando, assim, do impressionismo, formando, então, um neoclassicismo. Podemos perceber essa guinada nas obras do perío- 391 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 380-394 do de guerra que, a maior parte das vezes, se relacionam com as práticas musicais do Século XVIII. Isso é, esse autor, morto em 1937, procurou os elementos artísticos franceses do passado, como é o caso de suas Três Canções e da suíte Le tombeau de Couperin, para defender a música nacional francesa, plenamente ofuscada pelo germanismo do século anterior. Esse retorno exprime a força da tradição como forma de recriação de uma identidade artística-musical francesa e a necessidade nacional de proteção de um patrimônio histórico-artístico. As obras do pós-guerra que ainda teriam, muitas vezes, temática ou influência do evento, entretanto, esclarecem melhor as posições intelectuais desse compositor. Sabendo-se útil à nação enquanto intelectual divulgador da cultura-artística francesa, Ravel não desistiu de procurar servir às armas. Porém, ao percebermos a postura do autor perante a aceitação de técnicas como as do expressionismo em La Valse, ritmos tais quais os de jazz no Concerto para a Mão Esquerda em Ré Menor e quaisquer outras características da música, reparamos o seu não radicalismo, diferente de outros autores do período. Ravel ampliou o conceito de tonalidade, ampliou os ritmos de seu tempo e foi atraído por nacionalismos exteriores, tudo isso mantendo a coerência necessária para defender sua pátria durante o conflito e, apesar de não conseguir influenciar o desenvolvimento das ideias artísticas de seus contemporâneos, influenciou, como poucos, o terreno da imaginação musical popular (SALZMAN, 1970, p. 72). Tal qual a sua fantasia lírica em duas partes L’enfant et lês sortilèges [O menino e os sortilégios], escrita entre 1917 e 1925, é composta de uma mescla de tradicionalismo francês do Século XVIII, notadamente o enredo, e influências estrangeiras do XX (HAREWOOD, 1997, p. 700), como é o caso do foxtrote no decorrer da peça, Ravel, sob o feitiço da guerra conseguiu ter uma vida artística em duas partes: a interpretação momentânea do conflito em seu nacionalismo e, posteriormente, a abertura artística aos estrangeirismos. Abstract The French musical scene, at the end of the nineteenth century and first quarter of the twentieth century was dominated by debates between traditionalists and innovators. In this cultural context, the Impressionism in music emerges and establishes. In this sense, the essay analyzing the musical production of Maurice Ravel (1875-1937), and relate it to the context and theme of World War. Therefore, investigate certain works of this musician, who also fought during the conflict, and that, remarkably, were influenced by this conflict. Keywords: Maurice Ravel. French Music. First World War. Resumen La escena del arte musical francesa, a finales del siglo XIX y primer cuarto del siglo XX estaba dominada por los debates entre los tradicionalistas y los innovadores. En este contexto cultural, lo impressionismo como forma musical surge y se 392 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 380-394 establece en la Belle Époque. El siguiente artículo pretende analizar la producción musical de Maurice Ravel, y relacionarlo con el contexto y con el tema de la guerra. Por lo tanto, constate ciertas obras de este músico, que también luchó durante el conflicto, y que, sorprendentemente, fueron influenciadas por este conflicto. Além da clareza, vale ressaltarmos o caráter virtuosístico desta coletânea. 7 Charlot acabou se fazendo tão relevante no período, que o próprio Debussy dedicou-lhe o segundo movimento da obra para dois pianos En Blanc et Noir em 1915, escrevendo na dedicatória: ‘Ao tenente Jacques Charlot, morto em ação em 1915, 3 de março’ (DEUBSSY, 1915). 8 Louise seria a responsável por conseguir a primeira apresentação desta ópera em 1919. 9 A pianista Ravel dedicou seu Concerto para Piano em Sol Maior (1931). 10 Acerca do impressionismo de Maurice Ravel, Tomás Marco afirmou: ‘A comparação mais acertada é aquela que equipara sua arte com o impressionismo da mesma forma que em Cezanne se manifesta o impressionismo pictórico’ (p. 37) 6 Palabras clave: Maurice Ravel. Música Francesa. Primera Guerra Mundial. Notas Podemos lembrar, como traço de individualidade a influência da obra extremamente poética de Frederic Chopin na obra de Debussy e a escrita exata e técnica de Franz Liszt na forma de composição de Ravel. Assim, Ravel encontrou um dinamismo que Debussy desconhecera – propositalmente, muitas vezes. Além do mais, podemos lembrar a orquestração precisa encaminhada por Ravel amplamente superior àquela concebida por Debussy (SALAZAR, 1944). 2 As obras aqui analisadas estão ordenadas, segundo a primeira apresentação de cada já que as composições são feitas, muitas vezes, de forma concomitante. 3 Para uma aprofundada e pertinente discussão acerca das Sociedades Musicais Francesas, cf.: BERNADETTI, 2011. 4 Saint-Saëns (1835 – 1921) ficou por todo o restante de sua vida conhecido como sendo o mais reacionário artista francês do período. Chegou a criticar o próprio nacionalismo de Debussy, considerado por ele, não autêntico – além de defender a proibição de música não francesa em território francês durante a Primeira Guerra Mundial. Malgrado esta proibição não obter êxito, a militância deste compositor, entre outros, fez com que o cenário artístico francês reduzisse o nível de execução de música germânica o que acabou dando impulso à música de outros países, como Rússia e Espanha no restante da Europa através desta divulgação francesa. 5 O próprio Debussy escreveria um artigo, no final de 1912, no qual discute a necessidade de se resgatar as peças escritas pelos franceses entre os séculos XVII e XVIII. 1 Referências Partituras DEBUSSY, Claude. Hommage à Rameau. In : Images (1ere série). Paris: A. Durand, 1905. ______. Sonate pour piano et violoncelo. Paris: Durand & Cie., 1915. ______. En blanc et noir. Paris: Durand et Cie., 1915. ______. Noël des enfants qui n’ont plus de maisons. Paris: Durand, 1916. 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