lucere 2010
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA CENTRO DE ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UCAN ANO 6 – Nº 7 DEZEMBRO DE 2010 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA REGRAS DE APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS A Revista Académica da Universidade Católica de Angola – LUCERE – tem como foco essencial a reflexão sobre a realidade social, cultural, histórica e económica de Angola. Os seus domínios particulares de interesses são: Pobreza e distribuição do rendimento. Disparidades regionais internas. Agricultura, desenvolvimento comunitário e reforma agrária. Cultura, desenvolvimento e modernidade. Os aspectos históricos, sociólogos e psicológicos do desenvolvimento. Antropologia cultural e desenvolvimento. Modelos de desenvolvimento económico. Transferência de tecnologia e empreendedorismo. Integração económica regional. Industrialização e modelos de competitividade. Administração, Governação e Transparência. Economia, recursos naturais, ambiente e desenvolvimento sustentável. Planeamento e gestão estratégica macro e microeconómica. Direitos humanos e democracia. População, urbanização e desequilíbrios demográficos. A Revista académica LUCERE aceita artigos teóricos, sobretudo se apresentarem uma abordagem interdisciplinar inovadora. No entanto, a sua prioridade vai para as reflexões empíricas e para os estudos de casos que tenham repercussões sobre os nossos modelos de crescimento, governação e interacção social. A LUCERE aceita, de igual modo, artigos curtos que traduzam experiências ou reflexões pessoais sobre as temáticas anteriores. A Revista Académica da UCAN é, predominantemente, uma publicação em português, mas são aceites artigos em inglês e francês. A política editorial da Revista Académica LUCERE expressa-se pelos seguintes parâmetros: 2 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Os artigos são avaliados pelo Conselho de Redacção e pelo Conselho Cientifico. Os artigos devem ser originais, não se aceitando os que já tiverem sido publicados noutras revistas. Uma vez aceite o artigo, o seu autor não poderá retirá-lo sem a anuência do Conselho de Redacção da Revista. As opiniões expressas pelos autores dos artigos não engajam a Revista. Os artigos devem ser remetidos em suporte informático e acompanhado dum exemplar em papel. Os artigos devem ter no mínimo 15 páginas e no máximo 25 páginas, em formato A4, Times -New Roman, tamanho 12, sem espaços entre os parágrafos e com um espaço para dentro nos parágrafos. Nesta dimensão devem caber um resumo do artigo, uma conclusão e as referências bibliográficas. Os autores dos artigos devem identificar – se no inicio do mesmo com o nome, profissão e eventuais referências académicas. As notas de rodapé devem ser indicadas em cada página e devem ser numeradas em série. As citações devem ser registadas em itálico. As referências bibliográficas devem ser feitas de acordo com a indicação autor data (por exemplo, Dupont 1998,p.10-14). 3 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA MENSAGEM DO 2º. SÍNODO DOS BISPOS E A REINVENÇÃO ÁFRICA Damião A. Franklin Reitor da UCAN I – PRELIMINARES É um tema aliciante, porque muito actual e oportuno, sobretudo neste ano em que vários Estados Africanos celebram os seus cinquenta anos de Independência política. Actual, porque vários povos africanos e por isso vários cidadãos aguardavam a expectativa da independência política com a panaceia para as duas vidas e com andar do tempo veio a frustração senão foi total, pelo menos, em parte, atingiu não uma pequena franja das respectivas sociedades. Oportuno, porque uma das razões do segundo Sínodo era para desbravar o momentoso tema: “África é mas atingida por estes males (cfr.n.4 da MENSAGEM). E rica em recursos humanos e naturais, mas grande parte do nosso povo continua a arrastar-se no meio da pobreza e de misérias, de guerras e conflitos, de crises e desordens. Estas raramente são consequências de desastres naturais, mas devem-se em grande parte a decisões e acções humanas levadas a cabo por pessoas que não se interessam pelo bem comum e muitas vezes numa trágica e criminosa cumplicidade de dirigentes locais com interesses estrangeiros.” Todavia, não é minha intenção esgotar o assunto. Pretendo apresentar algumas pinceladas que ajudem a conscientizar os próprios africanos para que em tantas oportunidades aprendamos a ser protagonistas do nosso presente já vivido e o presente ainda não vivido, o futuro Assim, começarei por delinear alguns aspectos METODOLÓGICOS para uma leitura apropriada dos textos do Magistério da Igreja, seguindo depois a REFLEXÃO TEOLÓGICA, segundo São Paulo sobre Reconciliação. Paz e Justiça (cfr. Mensagem do Sínodo) e finalmente, uma espécie de PLANO ESTRATÉGICO de ACÇÃO que a Mensagem sugere. II – ACENO METODOLÓGICO Com que binóculos devemos ler a MENSAGEM? Porque esta metodologia? Na Igreja Católica, vige bastante, a hermenêutica de continuidade ou reforma e a hermenêutica da descontinuidade ou ruptura. Por exemplo, foi notória a aplicação desde princípio no último Congresso Teológico sobre o Sacerdócio, durante o Ano SACERDOTAL, ano passado. Esta hermenêutica foi recordada por BENTO XVI no seu primeiro discurso á Cúria Romana, na apresentação dos votos de Natal, aos 22.12.05. Na verdade não se põe em causa a continuidade dos princípios mas pode avançar para uma certa descontinuidade de certas práticas históricas destes princípios, na esteira do pronunciamento de João XXIII. 4 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Na abertura do Concílio VATICANO II, aos 11.10.1962 e do discurso de encerramento de Paulo VI, aos 7.12.1965. Por conseguinte, o “depositum Fidei” pode e deve ser salvaguardado, todavia o modo de enuncia-lo pode ser contestado pelos desafios do tempo e do lugar. Os cristãos devem estar prontos para aquele que as razões da respectiva esperança (cfr. 1Pe.3,15) e segundo Bento XVI, é “exactamente neste conjunto de continuidade e diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma. Neste prisma, a MENSAGEM não pode fugir ao mesmo princípio de continuidade e descontinuidade, como supra mencionado. III – Assim, quando a MENSAGEM (II parte) aborda a Reconciliação, a Paz e a Justiça não foge dos parâmetros da Fontes habituais. Senão vejamos: O múnus episcopal leva-nos a considerar tudo á luz da fé”. Nº 7, recordando ainda o protagonismo SECAM – Cristo nossa Paz – 2000. Toda a iniciativa de reconciliação vem de deus, foi amiúde recordado na Assembleia Plenária (cfr. 2 Cor.5,17 – 20). De igual modo a justiça também é obra de Deus, por meio da sua graça justificadora em Cristo…… Por outro lado, continua a MENSAGEM-n.8, partindo de S. Paulo: Deus nos confiou a mensagem da Reconciliação e nos escolheu como embaixadores de Cristo, exortando por nosso intermédio. A Igreja em África, quer como a Família de Deus, quer individualmente a nível dos seus membros crentes, tem o dever de ser instrumento de paz e de reconciliação, segundo o coração de Cristo, nossa paz e reconciliação, desde que ela própria se reconcilie com Deus. Ás suas estratégias neste campo, devem ultrapassar as do mundo, indo para o transcendente, para o mais além” nós vos exortamos em nome de Cristo reconcilia-vos com Deus “ (2Cor.20), isto é, apelamos a todos que se deixem reconciliar com Deus. Só assim poderá abrir caminho a autentica reconciliação entre as pessoas, isto é, sem esta base, dificilmente se combaterá o círculo vicioso da ofensa, das vinganças, à retaliação e para o efeito a perdão é crucial. Na verdade, se nós não antepusermos a água do Baptismo ao sangue humano, tribal, radical, cultural….estas palavras não passarão de” flatus vocis”. “Nemo dat quod non habet”, já diziam os antigos …. Como consequência desta autoconsciência, a Igreja deve ser sal e luz do mundo, para as realidades temporais, socio-económico-culturais-politicas. IV – PLANO ESTRATEGICO DA IGREJA SEGUNDO A MENSAGEM A causa da miséria e pobreza, segundo a mensagem, encontra-se em grande nas decisões e acções humanas com deficit pelo bem comum, pelo desrespeito pela pessoa humana concreta, pelo dever de solidariedade e por vezes numa trágica e criminosa cumplicidade de dirigente mancomunados a interesses estrangeiros, favorecendo o espectro da corrupção e outros desmandos…. (cfr. Nos.5,36-37). A terapia não pode ser a do desespero (n.6). Apelam a esperança e encorajam as iniciativas positivas ….”Por isso, apelamos a todos e a cada um para darem as mão se 5 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA enfrentarem os desafios da reconciliação, da justiça e paz em África. São muitos os que sofrem e morrem, não há tempo a perder (n.6). A África não está abandonada ao fracasso. O nosso destino continua a estar nas nossas mãos… (n.42) Tratai África com respeito, com dignidade (n.32), apelando as grandes potências em consonância com a Encíclica Caritas in Veritate… Os bispos louvam os esforços em prol da emancipação económica da África com existência de um governo…infelizmente aí reside o ponto crítico. Continuam a esperar por uma melhoria geral de Governação geral em África, saudando o caminho de uma autêntica Democracia. (35). A própria Igreja é convidada a arregaçar as mangas. Tanto a igreja Universal (nn.9-13), como a African (14-28). Como não implicar a comunidade Internacional (2933), o próprio Continente Africano (34-37), sem descurar a Colaboração ecuménica (3841). A Igreja Universal, a MENSAGEM a solicitude pastoral do Magistério Pontifício, em questões socio-políticas e sobretudo com o vademecum e recurso material, o compêndio da Doutrina social da Igreja, vivamente recomendável a todos os nossos fieis leigos, especialmente aqueles que desempenham altos cargos nas nossas comunidades (cfr.n.9). Agradecendo a amizade de Sumo Pontífice pela África e africanos, a Mensagem agradece igualmente a FUNDAÇÃO SAHEL, combatendo as de certificações do Sahel, bem como as Representações Pontifícias em 50 dos 53 Países africanos (cfr.n.10). Não faltaram palavras de apreço pela solidariedade dos responsáveis das igrejas irmãs além da costa africana, presentes na aula sinodal, bem como por tudo quanto possam fazer dos respectivos países pelo bem da África. Para isso, seja fortalecida a relação actualmente entre o Conselho das Conferencias Episcopais de Europa (CCEE) e o SECAM e as relações fraternas com Igrejas das Américas (cfr.n.11). Questões atinentes à Emigração merecem atenção, como forma de partilha de dons, levando a interessar-se pelos descendentes de africanos que vivem noutros continentes, especialmente, nas Américas (cfr.12). Como não agradecer a actividade missionaria “ad gentes” par a África de tantos missionários, religiosos e leigos? Não faltaram e não faltam mártires (cfr.n.13). Com efeito, a Igreja em África, existente e actuante desde os seus primórdios, como em Egipto, Etiópia, cuja colaboração com as Igrejas subsaarianas deve ser salientada, através de envio de sacerdotes Fidei Donum e doutros missionários. (cfr.n14). A Igreja em África recepciona o apelo da aula sinodal para uma colaboração Sul-sul, dando-nos as mãos, como trocando impressões (cfr.16). 6 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Outro ponto estratégico da acção é interesse e revitalização de SECAM, instrumento de pastoral orgânica, bem como o COSMAM (Confederação dos Superiores Maiores da África e Madagáscar) – cfr.n.17. Os próprios Bispos se comprometem a exercitar a colegial idade efectiva e afectiva, a comunhão nas suas conferências episcopais, visando também esta colaboração a nível dos mass média (cfr.n.18.), sem descurar a colaboração ecuménica, inclusive com os muçulmanos (cfr.38-41)” servatis servandis” Na verdade, o múnus episcopal seria incompleto se na Agenda prioritária faltasse uma atenção especial a reconciliação, paz e justiça, o que implica interessar-se pelo combate à pobreza, o maior obstáculo no caminho da paz e reconciliação. Daí o papel da formação, mobilizando os seus fieis, de acordo com a sua missão, de os implicar na planificação, formulação, implementação, avaliação da justiça e da paz. Porque não implementar também o micro-credito? (cfr.n.19). Aos sacerdotes, religiosos, pede-se um engajamento “tous azimuts” nos planos de reconciliação, justiça, e paz, sempre em comunhão, envolvendo todas as pessoas e sectores da paróquia: diáconos, religiosos, catequistas, leigos, homens e os jovens (cfr.n.20). Os leigos organizados em pequenas comunidades cristãs, na esteira da Ecclesia in Africa (n.93). Aos leigos se pede o espírito de oração, sim, mas formação religiosa sólida, também, atenção especial às bases da Igreja, como Sagrada Escritura e o CATECISMO da Igreja Católica, o Compendio da Doutrina Social para o tema específico do Sínodo. Não se descure o papel das Universidades CATÓLICAS e Instituições similares, para a formação de um laicado católico bem formado, especialmente de intelectuais capazes de enfrentarem os desafios da hora presente (cfr.nº.22). Um protagonismo especial pede aos homens em cargos públicos, como u exercício de apostolado para o bem comum, deixando de escandalizar o povo e denegrir a imagem da igreja. Citam o exemplo do Presidente Julius Nyerere, cujo processo de beatificação “é um catalisador para muitos dos nossos cristãos na vida pública (cfr.23). Dado, porém, mas não concedido que assim não fosse, o papel das Famílias Cristãs é inadiável; seja na defesa da identidade da família cristã e perseverança nos seus ideias, como também na vigilância em relação a cultura pós – moderna com os seus ideais virulentos sobre a família…… apelam aos governos o seu engajamento neste campo, de fedendo s família, cuja procriação responsável seja respeitada e ajudada …. (cfr.24-27) As epidemias com SIDA podem ser erradicadas pela via que a igreja apregoa, contrariamente aos métodos reducionistas dos profilácticos (cfr.31). Apelam às grandes potências, às multinacionais, no campo de ajudas, a serem mais magnânimos e não a olharem aos seus interesses de lucro fácil e por vezes fomentando desordens bélicas para melhor escoamento do material letal. Afinal, a pobreza assim a aumentar (cfr.32) Como se pode depreender todas estas boas intenções pouco servirão se o próprio africano não despertar, não assumir, em primeira pessoa, o protagonismo e considerarse o actor da sua felicidade, contra a síndroma de dependências (cfr.Instrumentum Laboris nº. 66). Apesar de alguns passos, como a integração regional a nível da União Africana, o Nepad …há uma longa travessia a empreender …(cfr.nºs.34-35). Este Sínodo 7 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA proclama-o claramente, alto e bom som. É tempo de mudar de atitudes para o bem da geração presente e futuras… Á GUISA CONCLUSÃO, podemos inferir que a Mensagem do Sínodo espelha a dinâmica da continuidade da descontinuidade, na medida em que muitas das afirmações feitas já fazem parte do património antropoteológico do Magistério da Igreja, acrescentando o ensinamento social de Bento XVI, nas suas Encíclicas IN SPE SALVI e CARITAS IN VERITATE. Com o efeito, no centro de tudo está diálogo entre homem africano e seu CRIADOR, de cuja vida deseja participar e par tal, se impõe uma mística de centralidade a pessoa humana, como principio, meio e fim de tudo, seja social, político, económico, cultural, neste mundo globalizado…. Luanda, 2 de Novembro de 2010. Referências Vaticano II, Secretariado Nacional de Apostolado de Oração, Braga 1967. CEAST, Mensagem Pastoral – O nosso viver e agir em Cristo – Dimensão Social, 20 de Novembro de 2009. Maurice Cheza, Le Synode Africain, Karthala, Paris 1996. Sachs Jeffrey, The End of Poverty, Penguin Books 2006 Tati R. Crise Africana e processo de democratização em África, Academia Alfonsiana, Roma 1998. Imbamba J. Manuel, Agenda Social: As políticas tendentes à valorização da Pessoa Humana, in Revista Lucere 2004 (UCAN), pp.83-93. 8 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Estratégias comerciais e hegemonias resultantes na economia mundial contemporânea Julien David Zanzala (PhD, Docente da UniPiaget) [email protected] Resumo: O presente artigo pretende compreender as estratégias comerciais desenvolvidas pelos protagonistas do comércio mundial e as hegemonias resultantes, apesar das tentativas da OMC de submeter todas as economias às exigências do comércio livre, para um comércio internacional mais equitativo. Fundamentou-se nas mais recentes análises da economia internacional, geografia económica, integração regional e teoria do comércio internacional. Os resultados da análise apontam um ressurgimento do proteccionismo, contrapondo-se aos princípios da globalização, uma aposta nas alianças estratégicas e na regionalização e uma hegemonia das principais economias do mundo, vastos mercados solventes com um forte avanço tecnológico nos sectores da economia de ponta. Palavras-chave: Economia mundial, Estratégias comerciais, Hegemonias comerciais. Introdução As estratégias comerciais observadas na economia mundial contemporânea, de acordo com De Medeiros (1998), surgem para diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas; estimular os investimentos e as trocas com países terceiros; perturbar os oligopólios existentes, mudando as regras do jogo na luta pela vantagem competitiva; reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo; introduzir-se no mercado internacional, obtendo uma quota crítica; aceder aos canais privilegiados, na linha da segurança concedida pelos acordos comerciais; ultrapassar as decepções e dificuldades encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais; amortecer as tensões políticas e forjar uma cooperação política através do elo comercial; igualizar as vantagens do jogo, entre os principais parceiros comerciais; diminuir a supremacia económica de um parceiro comercial grande e poderoso; lançar a cooperação multilateral. Segundo o mesmo autor, os acontecimentos dos anos 90 que alteraram a estrutura política e económica do planeta, nomeadamente com o desaparecimento da União Soviética e surgimento de novos países que se pretendem viáveis, redefiniram novos espaços. O observador das relações internacionais apercebe-se de uma dinâmica diferente, assente numa extrema mobilidade internacional de factores, com rendimentos de escala crescentes e inseridos em mercados de concorrência imperfeita. Tem sido habitual dividir geopoliticamente o espaço mundial em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Várias são as diferenças entre os dois grupos. Enquanto os indicadores económicos e sociais do primeiro grupo são considerados equilibrados os do segundo grupo piscam vermelho ou são alarmantes. A eficiência das instituições, a distribuição da renda, o nível de renda e o tamanho do mercado interno, a capacidade tecnológica, o padrão de internacionalização da economia, a estrutura financeira e outras tantas características podem ser citadas entre as diferenças. Este facto leva a que muitos indicadores sejam artificialmente sobreavaliados e de difícil comparação. No entanto nenhum espaço económico fica imune a perturbações originárias de outras áreas, ainda que distantes. Daí as constantes recomposições intra-regional, inter-regional e transnacional, com base nas políticas de 9 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA cooperação. Daí também as estratégias comerciais dos governos para favorecer o desenvolvimento de elos económicos internacionais com os países geograficamente vizinhos. A questão que se debate consiste em indagar se estes blocos regionais prejudicam ou não o sistema comercial multilateral. Os objectivos gerais desta comunicação são caracterizar essas estratégias comerciais e identificar as suas principais consequências, que são as hegemonias constituídas no espaço económico mundial. Nos objectivos específicos procura-se apresentar uma síntese do estado actual dos conhecimentos a respeito das estratégias comerciais dos espaços económicos mais relevantes; enquadrar as mesmas estratégias na análise económica de formação de blocos regionais ou de busca de vantagens comparativas; comparar os indicadores básicos dos espaços económicos mais relevantes para compreender melhor as hegemonias constituídas na economia mundial contemporânea. Quadro teórico da análise O arrimo teórico da análise económica das estratégias comerciais e de hegemonias constituídas na economia mundial contemporânea está presente num conjunto de disciplinas tais como a economia internacional e integração regional, a teoria estratégica do comércio internacional, a geografia económica e a teoria da localização que leva ao paradigma das deslocações espaciais da actividade económica, na permanente busca de vantagens comparativas, sempre transitórias. As referidas estratégias incidem sobre a constituição de conjuntos regionais quando procedem de uma vontade política dos governos no sentido de favorecer o desenvolvimento de elos económicos internacionais com países geograficamente vizinhos, ou transnacionais, ligadas à ideia da internacionalização generalizada dos mercados adentro da política livre-cambista. Henri Bourguinat (apud De Medeiros) invoca 3 séries de razões explicativas dessas estratégias. O bloco regional seria, para os pequenos países, uma via de introduzir-se no mercado internacional, através da quota crítica; seria uma via de acesso aos canais privilegiados do “vizinho”, na linha da segurança concedida pelos acordos comerciais; seria, para os grandes países, uma via de ultrapassar as decepções e dificuldades encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais. As disputas no comércio mundial O comércio internacional, principal fonte de divisas nas economias modernas, aparenta-se com frequência, na opinião de Samuelson e Nordhaus (2005), com a perspectiva de um conflito darwiniano de ganho nulo, pela partilha de mercados, de lucros e de recursos vitais. O multilateralismo mundial, cujo símbolo é a Organização Mundial do Comércio, não consegue obstar à aplicação de medidas de salvaguarda, em particular na agricultura ou no sector têxtil. Desde modo, apesar das perspectivas abertas pelas negociações multilaterais, a chave do desenvolvimento reside na capacidade dos diferentes países para desenvolver os seus atractivos e, acima de tudo, para oferecer, de preferência em espaços económicos mais alargados, um potencial de mercado capaz de atrair os investidores. Alves da Rocha (2008) nota, dentre as tendências observadas ao nível do comércio mundial, que ao mesmo tempo que se desenvolve o comércio entre países com níveis semelhantes de desenvolvimento, assiste-se, também, a uma elevada concentração do comércio entre países industrializados e nos produtos transformados, em desfavor das trocas com os países subdesenvolvidos. Assim, os mais importantes protagonistas encontram-se influenciados, em grande medida, por disputas que são muito difíceis de resolver. Por exemplo, muitas empresas ou indústrias 10 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA americanas têm estado envolvidas numa série de disputas com as japonesas. Entre outras coisas, uns acusam os outros de não autorizarem o acesso dos mercados nacionais e fazer dumping, isto é, vender a um preço inferior até talvez abaixo do custo. O que leva uns a tomarem certos tipos de acção de retaliação contra outros países tais como suspender ou retirar concessões comerciais, impor tarifas ou outras restrições às importações dos países envolvidos. O recente ressurgimento do proteccionismo Nas relações comerciais contemporâneas, observa Alves da Rocha (Rocha idem), o livre comércio é mais excepção do que regra, tanto nos países subdesenvolvidos, como nas economias industrializadas. Normalmente, os governos têm tendência a intervir sobre o grau de abertura e liberdade de comércio com o estrangeiro com o objectivo de favorecer o produtor nacional, face a concorrentes mais competitivos e eficientes. Este processo é denominado protecção. Os economistas têm tendência para argumentar que o livre comércio é a política que melhor serve os interesses da sociedade como um todo. Assim, na sua maioria aplaudiram a descida das tarifas na década de 60 e no início da década de 70 e olharam com desaprovação a onda de proteccionismo crescente durante a década de 80. À medida que a Europa Ocidental e o Japão se iam tornando concorrentes mais fortes, muitas indústrias americanas começaram a fazer lobby no sentido de introduzir quotas e tarifas mais altas e de exigir a protecção do governo federal em relação às importações. De acordo com Alves da Rocha (idem), o proteccionismo é ainda uma realidade com a argumentação básica em sua defesa que radica na verificação de falhas no mercado que justificam a intervenção do Estado e da sua política de regulação. Segundo o mesmo autor, os seus defensores advogam o emprego duma política comercial estratégica como medida de protecção à indústria nascente, de redução do desemprego, da substituição das importações e da diminuição dos salários. Existem cinco (5) grandes formas de proteccionismo que importa conhecer: o proteccionismo ofensivo; o proteccionismo defensivo; o proteccionismo orçamental; o proteccionismo para aproveitamento de recursos e o proteccionismo natural. Pese embora o GATT (General Agreement on Tarif and Trade) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) terem encetados esforços de liberalização, os obstáculos tarifários à livre circulação de mercadorias é uma evidência. A protecção pode dar-se por meio de diversos instrumentos de intervenção pública sobre o comércio exterior, no seu conjunto denominados de política comercial. As formas de protecção habitualmente utilizadas são: as quotas de importação; os controlos cambiais (restrições de pagamentos); a proibição de importações; o monopólio estatal; as leis de compra de produtos nacionais; o depósito prévio à importação e as barreiras não tarifárias. Durante a segunda metade dos anos 80, os japoneses efectuaram grandes investimentos além-fronteiras e não deixaram de se manter bastante fechados aos investimentos estrangeiros. As empresas japonesas, entre 1986 e 1991, canalizaram 310 mil milhões de dólares americanos de investimentos para os Estados Unidos, 56 para a Europa, 47 para a Ásia e 40 para América Latina. Simultaneamente, os investimentos directos estrangeiros no Japão não passaram dos 18 mil milhões de dólares. As alianças estratégicas Apesar do seu poderio político, económico e militar os mais importantes protagonistas nem sempre podem ditar leis ao resto do mundo. Porque, na verdade, eles têm uma influência extraordinariamente reduzida sobre as políticas económicas dos outros países. Samuelson e 11 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Nordhaus (idem) afirmam que uma observação minuciosa revela que os países na segunda metade do século XX abandonaram a luta encarniçada e criaram instituições que servem a causa comum do crescimento e da justiça, na arena internacional. Assim, os blocos regionais para facilitar o trânsito de mercadoria, serviços e capitais são hoje em número considerável. A partir dos anos 90, foram vários os acordos assinados ou reactivados. Mesmos os países em desenvolvimento denotam um interesse crescente pela constituição de blocos regionais, pois estão perfeitamente cientes do risco de exclusão que paira sobre eles, se não reforçarem a sua atractividade enquanto mercados (Desgardins e Lemaire;1997). A constituição de conjuntos regionais pode tomar a forma de zonas de comércio livre, uniões aduaneiras ou outro qualquer acordo de comércio preferencial. Na base da institucionalização da regionalização, estão forças políticas enquadradas nos poderes do estado, tendo em vista diminuir obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas. No plano de facto, a regionalização é encarada como um fenómeno económico resultante das mesmas forças microeconómicas que aparecem na globalização, com o objectivo de impelir a área na via do crescimento, estimulando os investimentos e as trocas com países terceiros. A regionalização visa reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo. Com a unificação da Europa, as empresas estão ocupando um mercado mais amplo, fazendo até fusões com empresas de outros países deste bloco. E com essa unificação, também o conceito de cidadania mudou, já que um belga pode fazer um seguro na Itália, um alemão pode comprar um carro inglês do mesmo preço que é praticado neste país e um espanhol pode abrir a filial de sua firma na Holanda. Um porém nesta unificação é que os países que a compôem, devem dar prioridade aos produtos que são fabricados dentro da união, como é o caso da Grã-Bretanha que deixou de comprar lã da Austrália e Nova Zelândia para dar este direito aos italianos e dinamarqueses, mesmo se a preços mais elevados. Com Timbergen, a Teoria da Integração Económica Internacional procura equacionar as maiores vantagens do agrupamento, as quais se podem sintetizar da seguinte maneira: - Aumentos de produção decorrentes da divisão internacional do trabalho e da especialização internacional, função das vantagens compradas; - Aumentos de produção face ao aproveitamento das economias de escala; - Melhoria das razões de troca da área face a países terceiros; - Mudanças forçadas na eficiência, geradas pela pressão concorrencial; - Mudanças induzidas pela integração e decorrentes de avanços tecnológicos, afluxo de capitais e diferentes velocidades de circulação de factores. Em suma, os mercados regionais estão melhor integrados, sobretudo entre países industrializados ou em vias de industrialização, dando, contudo, origem a um certo número de avanços que despertam o interesse da maior parte dos países do mundo. As áreas mais atrasadas podem receber apoio por parte dos outros integrantes para que haja desenvolvimento no espaço económico. Evidências empíricas das hegemonias resultantes das estratégias É útil estabelecer a comparação de situações a fim de visualizar, como síntese, as tendências que forjaram os novos espaços económicos, institucionalizados ou não, sob o pano de fundo da globalização. No quadro a seguir, é perceptível a tendência de maior relevo nas trocas intra-zonas. Mais precisamente, existem espaços económicos que dominam e efectuam cada vez mais trocas internas, Europa (72,8%), Ásia (50,1%) e América do Norte (49,8%), em 2009. O comércio europeu, asiático e norte-americano com África, Médio Oriente e CEI é muito reduzido. 12 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Quadro nº 1: Origem e destino de produtos do comércio mundial em 2009 Destino Origem de América do Norte América Central Europa CEI África produtos e do Sul América do 49,8 8,1 18,1 0,8 1,7 Norte América 28,2 26,5 20,2 1,5 2,8 Central e do Sul Europa 7,4 1,5 72,8 3,7 2,9 CEI 5,1 1,4 57,7 19,2 1,5 África 21,0 3,3 39,1 0,3 9,6 Médio 11,4 0,7 12,3 0,7 3,6 Oriente Ásia 17,8 2,9 18,4 2,5 2,8 Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0) Médio Oriente Ásia 3,0 18,4 2,0 16,8 2,5 3,6 2,5 12,0 7,5 10,9 20,4 55,7 4,5 50,1 Como foi dito, essa regionalização observada é encarada como um fenómeno económico que visa diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas, reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo, e impelir a área na via do crescimento, estimulando os investimentos e as trocas com países terceiros. Para perceber melhor como o comércio mundial é desequilibrado apresenta-se os dois quadros seguintes. Quadro nº 2: Evolução das Exportações mundiais de mercadorias por regiões 1948 1953 1963 1973 1983 1993 América do 28,1% 24,8% 19,9% 17,3% 16,8% 18,0% Norte América do 11,3% 9,7% 6,4% 4,3% 4,4% 3,0% Sul e Central Europa 35,1% 39,4% 47,8% 50,9% 43,5% 45,4% África 7,3% 6,5% 5,7% 4,8% 4,5% 2,5% Médio 2,0% 2,7% 3,2% 4,1% 6,8% 3,5% Oriente Ásia 14,0% 13,4% 12,5% 14,9% 19,1% 26,1% Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0) 2003 15,8% 2008 13,0% 3,0% 3,8% 45,9% 2,4% 4,1% 41,0% 3,5% 6,5% 26,2% 27,7% Quadro nº 3: Evolução das Importações mundiais de mercadorias por regiões 1948 1953 1963 1973 1983 1993 América do 18,5 20,5 16,1 17,2 18,5 21,4 Norte América do 10,4 8,3 6,0 4,4 3,8 3,3 Sul e Central Europa 45,3 43,7 52,0 53,3 44,2 44,6 África 8,1 7,0 5,2 3,9 4,6 2,6 Médio 1,8 2,1 2,3 2,7 6,2 3,3 Oriente Ásia 13,9 15,1 14,1 14,9 18,5 23,6 Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0) 2003 22,5 2008 18,1 2,5 3,7 45,0 2,1 2,7 42,3 2,9 3,6 23,5 26,4 Os quadros acima revelam que as trocas comerciais põem os espaços económicos numa disputa gladiatória assimétrica. Os principais importadores, a Europa e a Ásia, são os principais exportadores, apesar da tendência de África e América do Sul e Central recuperar, nos últimos anos, um pouco dos prejuízos registados nos anos anteriores. O desequilíbrio entre o poder económico e financeiro dos espaços económicos dominantes e o resto do mundo é enorme. Como os vencedores exploraram este desequilíbrio é uma questão essencial bastante discutida nas cimeiras. O poder de comercialização que 13 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA estes têm leva os países exteriores a esses espaços a uma situação difícil. Surgem assim outros blocos comerciais de dimensões mais reduzidas, que apresentam um comércio interno em crescimento. Este jogo prejudica realmente a supressão de barreiras ao comércio mundial. Para terminar, é correcto lembrar com o Dr. Kevin Watkins da Oxfam que “tradicionalmente, o comércio internacional é visto como uma actividade exercida entre nações. Na realidade, os fluxos de comércio são dominados pelas poderosas empresas localizadas esmagadoramente na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão”. A concentração assistida do comércio a nível mundial constitui uma oportunidade para essas poderosas empresas conservarem bases regionais internas enquanto continuam a expansão a nível global. Assim a nova prosperidade global preconizada torna-se uma realidade para uma esfera muito limitada da economia mundial. Com esta reflexão, tornam-se evidentes os limites funcionais das relações económicas e financeiras internacionais tais como preconizadas nos manuais de Economia e ao mesmo tempo das instituições reguladoras dessas relações. No entanto permanece o debate entre os advogados de um comércio livre, impulsionador da actividade económica e criador de riqueza entre as nações e os oponentes que alegam ter sido um factor de crescimento de problemas que o mundo menos precisa: concorrência implacável e interminável, ameaças ao ambiente, propagação desigual do desemprego, crescente poder dos oligopólios transnacionais e alargamento das diferenças entre ricos e pobres, tanto dentro de cada sociedade, como entre as várias sociedades. Referências De Medeiros, E.R. (1998). Blocos Regionais de integração económica no mundo. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Lisboa. Lang, T; Hines, C. (1994). O novo proteccionismo. Protegendo o futuro contra o comércio livre. Instituto Piaget. Rocha, M.J.A (2008). Introdução à economia internacional e integração regional. Universidade Católica de Angola. CEIC. Faculdade de Economia e Gestão. Samuelson, P.A; Nordhaus, W.D. (2005). Macroeconomia. 18ª Edição. McGrawHill, Madrid. Desgardins, B; Lemaire, J.P. (1997). Desenvolvimento internacional da empresa. O novo ambiente internacional. Instituto Piaget. World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0). 14 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA MODUCAN, a policy oriented macro-economic model for Angola Jan Isaksen and Line Skaldebø (The Chr Michelsen Institute, CMI, Norway) Alves da Rocha and Milton Reis (Centro de Estudos e Investigação Cientifica, CEIC, Angola 1. Introduction Two principal features of a macroeconomic model are that it provides a statistical description of a country’s economy based on defined national accounts data and that it contains accounting identities, technical and behavioural equations which when combined with exogenous (determined outside the model) variables may be used to project endogenous (determined inside the model) variables like GDP, inflation, employment etc. It is an important feature of model building that the work that goes into the model imposes discipline on economic analysts and policymakers and offers a systematic opportunity for learning about the economy in ways that encourages realism in policy making. The necessary work with data and mathematics needed for the building process stimulates capacity building in economic policy institutions. The intensive use of national accounts, on which macroeconomic models are based, leads to transparency in economic policy and contributes to better overall governance. In Angola, economic modelling is only in its beginning stages. As far as we are aware the only model with a broad coverage is the MODANG used for a number of years in the Ministry of Planning and the more recent model of the petroleum sector used by the Ministry of Finance. Modelling has until recently not taken place in universities or other research institutions in Angola. This brief article gives an overview of the efforts to establish a macro economic model for Angola that is now underway at CEIC-UCAN. After a brief review of various types of macroeconomic models in Ch. 2, we point to some modeling experiences on the African continent and elsewhere (Ch. 3). Ch. 4 describes important features around the start of the CEIC-CMI cooperation and the idea of a model. Ch. 5 dwells at some length on the definition of desired characteristics of the model to be applied to Angola and Ch. 6 then describes the principal features of a Mundell-Fleming type of model. We end with a short review of the ongoing work and in Ch. 8 a summary of what practical advantages one might expect to draw from the construction and use of of the model. Chapters 1 to 3 of the article draw heavily on a study of macro modeling in Africa by D. Årnesi. 2. Types of macroeconomic models For models used in Africa one may distinguish between two main types. Those that focus on Short and Medium term Stabilization and those dealing with Long term Growth and Poverty Reduction. Each of these may be classified into sub categories. For short and medium purposes key types are the macro-econometric IS-LM, based on established (Keynesian) macroeconomic theory. Such models deal with the effect of short/medium term demand in the economy and are mainly used for guiding fiscal and monetary policy as well as certain other features of public sector policy. Also with a 15 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA short term focus the IMF Financial programming models link targets for growth and inflation with the size of public deficit. Such models are often used as the basis for dialogue with IMF on fiscal and monetary policies For longer term concerns and a wide variety of “what-if” analyses as e.g. structural change issues Computable General Equilibrium (CGE) models may be used. Because of their extremely high data requirements they are not widespread in use in Africa. Also addressing longer term concerns are the World Bank RMSM-type models that has been used to calculate the level of investment, imports and external finance needed to achieve a targeted GDP growth rate. It has been found helpful for guiding the assessment of finance requirement, loans and grant aid. The data requirement is substantial but as used by the World Bank this type of model is often based on “similar countries’” data and coefficients as local data are often not available. 3. Macroeconomic models elsewhere A number of theoretical models for various African countries and for Africa in general have been constructed by academics. Such frameworks tend to be reported on in academic journals or may be found in libraries of doctoral theses. The type of model we are discussing here is actually used for policy analysis by the authorities or policy institutes in various countries and are much more difficult to find information about. The below information is based on Årnes, 2006 and our own experience. Angola's macroeconomic model resides in theMinistery of Planning. It is a macro consistency model with some hundred equations and provides the Angolan government with macroeconomic projections of GDP (global and sectoral level) for the medium term. Zambia has been constructing a model dealing with public financial management, budgeting and economic policy. The model will aim at improving policy planning and “translating” the poverty reduction plan into budget allocations and concrete plans. A macro model in Uganda is similar to the one in Zambia. Ethiopia’s macroeconomic model resides in the Ministry of Finance and Economic Development. The stated objective is to introduce tools that help systematically manage the economy aimed at efficiently utilizing available resources. There is collaboration with the Micro Macro Consultants (MMC) based in the Netherlands In Mozambique a number of models have been developed over the last 8 – 10 years but the Ministry of Finance has not consistently used any of them. The technical assistance programme in the Ministry’s think tank, the Gabinete de Estudos, has consisted of two components, one for economic policy issues and one more academically research oriented models building exercise. In Malawi, the three main policy institutions, Ministry of Economic Planning and Development (MEPD), Ministry of Finance (MoF) and Reserve Bank of Malawi have cooperated to develop a new macroeconomic model. The National Statistical Office (NSO) is also participating. The model, will be truly independent of the IMF and 16 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA offer alternative projections. Developed in cooperation with Statistics Norway it was first used for training, but later for policy purposes. Botswana has since the mid-seventies run a model called MEMBOT as a basis for the annual budgets and medium term National Development Plans (NDPs), including the triennial revision of NDPs. Developed first by the Macro-Unit of the Ministry of Finance, the Botswana Institute for Development Policy Analysis (BIDPA) has later been involved in developing and maintaining the model structure. The model is now about to be complemented by a less complicated structure. Tanzania has its own macroeconomic model that is being updated and used regularly in the policy process. The model is called MACMOD has been in operation for a number of years and was interestingly long operated by the Presidents Office and not the Ministry of Finance. Tanzanian government representatives maintain that the model is extensively used and has a good deal of indirect and direct impact on policy and understanding of developments. In Norway economic models have been used since the 50s. The tradition in Norway is that the Research Department of Statistics Norway builds and maintains models which are used by various departments and which can also be run for any other organisation at a fee. There is a multitude of available models: • Population models – BEFREG - Population and migration model – MOSART - Long term projections, labour force education and social security (dynamisk microsimulation) • Energy market models – NORMOD-T - Simulation of nordic power market – PETRO - dynamic long term model on global petroleum markets • Municipal and regional economy – MAKKO - employment in municipal services – KOMMODE - municipal budget allocation – REGARD - projections of employment, labour force, GDP, investment by region. • Tax models – LOTTE - microsimulation of revenue and distributional effects of changes in the tax system • Macroeconomic models – KVARTS – disaggregated model for short/medium projections and policy analysis based on quarterly data – MODAG – disaggregate model for short/medium projections and policy analysis based on annual data – MSG – general equilibrium model foruse in long term projections of changes on policies in terms of e.g. Taxation, trade, industrial policy, environment and energy. 17 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA 4. The start of the CEIC CMI modeling cooperation The cooperation between the CEIC and CMI started in 2006 although contact between CEIC and CMI researchers predate this. The first annual programme in 2007 did not have a focus on macroeconomic issues but included a study of the government budget system as well as some training in statistical methods. Under the preparation of the triennial cooperation programme 2008-2010 both institutions agreed that it would be important to start the construction of a macro model. The lack of or ageing state of home grown models in Angola was one reason for the need of a new model. On the Angolan side an advantage was the prior experience in building as well as running the MODANG. This was not only an advantage in the technical sense. It also meant that CEIC had considerable knowledge of the administrative structures “around” the model itself that is of key importance for the use of quantitative methods and modelling to good effect in practical policy making. A simple macro model was also used for training purposes and a database was being built up to furnish the model with appropriate information. Similar practical experience was found on the CMI side where researchers had been involved in model building and macro policy application in several African countries as well as in Norway. Successful policy modelling with a CMI input e.g. took place in connection with the MEMBOT and the MACMOD as mentioned above. The more recent MACMOD in Tanzania has reportedly had considerable positive indirect impact on Tanzanian economic policies during the last decade. During a period MACMOD has been a training tool and probably boosted self- confidence among Tanzanian government economists in their discussions with IMF and the World Bank. Tanzanian Government representatives emphasize that the increased focus on national planning exercises such as the PRSP has increased the understanding for the usefulness of consistent macroeconomic planning and the use of models as tools. 5. Defining the needs In the project proposal for the MODUCAN macro modeling project which was part of the CEIC-CMI institutional cooperation 2008-2010 the overall objective was to contribute to the use of macro modeling for policy purposes in Angola and thus contribute to sound economic development. More specifically the project aimed to Introduce CEIC and UCAN personnel to the use of national accounts and models for policy research From the existing base at CEIC develop a macro model and build CEICs capacity in national accounts and modeling At an early stage, construct a simple modeling framework for the improvement of economic projections for the Relatório Económico. If desirable from the side of the Ministries of Finance and Planning as well as the Bank of Angola, involve their personnel in the early limited modeling exercise with a view to commence a discussion about the possibility of an Angolan planning model. 18 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Involve the INE in the exercise from the start and thereby provide an impetus for improvement of economic statistics. It was found that CEIC and the Government of Angola would be interested in analysis of the results of public policy at the macro level. Also, it was thought that a medium term model (up to five years) would be most useful although many of the problems of the Angolan economy will have to be considered in the longer term, perhaps as a supplement to the main macro model. The policy analysis character of the desired model would mean, in principle, that the relevant government controlled variables would be exogenous. A main government objective was the non inflationary financing of the government budget. In that connection it would be important to include bond and TB financing as well central bank financing of the treasury and also interest and principal payments on government debt. Analyses of and forecasts for the “true” macro variables, like GDP, total investment, savings and consumption, imports, exports, exchange rates, prices etc are main objectives for a macro model. However, most useable macro models comprise a certain amount of sectoral analysis and forecasting. It was found that some sector models could be built simultaneously with the main model, others more likely as addons, perhaps at a later stage. Firstly, the petroleum sector ought ideally to be divided into three sub-sectors: exploration, production and processing. A link to the petroleum sector model of the Ministry of Finance was proposed. The choice of production sectors for MODUCAN would need to take into account the policies of developing the non-petroleum industries as well as the enormous influence of the petroleum sector. One aim should be to trace the generation of petroleum wealth and the flow of petroleum generated resources through the financial sectors and government. Secondly, the size and diversity of government investment in Angtola justifies an ancillary model on major public sector projects. (Loosely estimated, government investment might be 1/3 of GDP at times.) Thirdly, two key sectors within the government ambit are health and education. It would be of considerable value to go into some detail on government health and education expenditure, particularly if it could be linked to indicators for public service levels and effects in the health and education sectors. Fourthly, non-oil sector production is likely to be of increasing interest in government’s efforts to step up these sectors’ contributions to production and employment. The budgetary effect on prices, exchange rates and the degree of ‘crowding out’ of the private sector are of main importance to diversification. Indeed the key problem in oil ‘soaked’ economies is to diversify. Therefore, growth and development in the non-oil sectors will be important indicators for the realization of diversification objectives through government budget and associated macro policies At the starting point it was not clear what data would be available for a macro model. Both IMF and the World Bank pointed out that much data is lacking and that existing data sources (INE, Bank of Angola and WB/IMF) differ considerably even with regard to key magnitudes like the GDP. In some cases of missing data it will be necessary to “construct” data. 19 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA After a good deal of consideration of the pros and cons of various model frameworks it was suggested that the MODUCAN be built basically on a short to medium term framework, the so called ‘IS-LM Bop’ framework, also called the Mundell-Fleming model. The chapter below will give an overview of the principles of a Mundell-Fleming model. In the actual model built for use in Angola a number of features are however added. An orthodox ‘IS-LM Bop’ framework would seem to have a weakness in ignoring the possibility that developments over a five year period could increase the potential output by having positive effects on technology labour and - not least for Angola - capital. This weakness was amended by including the possibility of an increasing trend in potential output, based on data and forecasts for capital accumulation and the labour market. In addition, analysis of sectoral output as mentioned above would contribute more depth in the macroeconomic projections for the medium/long run. This in turn would pose challenges for consistency since the sectors analysed would not necessarily, in the aggregate, be in line with the results of the core macro model. The experience from the MACMOD in Tanzania which showed that this could be solved by an input output structure was not relevant since I/O data are not available in Angola. The approach would be either to use “synthetic” and coefficients from other countries or an iterative “muddling through” method to equate the macro block output to the relevant aggregates from the sector block. It can, and we believe, will be argued that the Keynesian IS-LM framework is concerned only with short to medium term business cycle fluctuations and how fiscal and monetary policy can be used to handle these. The answer to this is that although developing countries fluctuations in income and production are usually not seen as business cycle phenomena but still have much of the same characteristics. 6. Principal features of the Mundell Fleming model The Keynesian IS-LMii framework is commonly used for analysis of fiscal and monetary policy in the short and medium term. Keynes held that the fall in aggregate demand that caused the downturn often was linked to government fiscal and monetary policy. In the IS-LM model, aggregate demand falls and income and the interest rate adjusts to reach equilibrium. The Mundell Flemming model adds the Balance of Payments curve to the IS/LM model. Equilibrium is reached by adjustments in the exchange rate, the interest rate and incomeiii. The model emphasizes the differences between fixed and floating exchange rates. Equilibrium in the model for demand of goods market is achieved when investments equals savings. The IS curve derives the relationship between interest rates and income in the short run. It specifies a simple negative relationship between investment and the interest rate. A higher interest rate reduces the demand for goods at a given level of income. A higher interest rate also reduces investment demand and the demand for consumption. Higher interest rates reduce demand and lower the level of output where demand equals the quantity produced (supply) and thus creates the IS curve. The name is derived from the fact that in a closed economy investments will be equal to savings. 20 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA The slope of the IS curve determined by the sensitivity of investments to changes in the interest rate, and the sensitivity of GDP to changes in exogenous variables (the spending multiplier). Changes in GDP caused by changes in the interest rate is reflected as movements along the IS curve. Changes in exogenous spending (government spending for example) cause shifts of the IS curve. Equilibrium in the money market is described by the LM curve. The quantity of money demanded (demand for liquidity) increase with income and decrease with the interest rate. Equilibrium in the money market is determined by the demand for liquidity (liquidity preference) and the quantity of money supplied by the central bank. If the money supply is fixed, then a rise in aggregate income (increasing the demand for liquidity) will increase the interest rate at which the demand and supply of money is equal. The LM curve therefore describes a positive relationship between output and the interest rate. The IS – LM diagram can then be depicted as below r LM r0 IS Y0 Y The intersection between the two curves shows the only combination of output and interest rate where both the goods market and the money market are in balance. GDP (Y) is on the horizontal axis while the interest rate (r) is on the vertical axis. For an open economy the IS curve needs to be specified for a specific exchange rate. It still depicts the combination of the interest rate and output that equate total expenditure and production but total expenditure is affected by the exchange rate. When the economy is open and has floating exchange rates an increase in the interest rate will also increase the value of the domestic currency and therefore reduce net exports. Whenever the exchange rate changes, we see a shift in the IS curve. Export represents foreign demand for domestic goods and services. The foreign demand for domestic goods depends among other things on the level of foreign income. Demand also depends on the relative price between foreign and domestic goods. If the price of domestic goods is lower than goods from other markets, foreign demand for domestic goods will be higher. The relative price is reflected in the exchange rate (domestic price for foreign currency). When the exchange rate is flexible an 21 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA appreciation of the exchange rate allows domestic residents to buy the same amount of foreign goods with less domestic currency. A devaluation of domestic currency will have the opposite effect. If the exchange rate increases (devaluation) domestic goods becomes cheaper for foreign consumers and demand will increase. An increase in the exchange rate will also cause imports to fall as imported goods will be more expensive relative to domestically produced goods. If the exchange rate decreases (appreciation) then domestic goods become relatively more expensive and foreign demand will decrease. The country’s exports become more expensive in the international market when the value of the currency increases relative to other currencies internationally. In the case of Angola, the economy is dominated by the petroleum sector, and the banking system functions relatively poorly. This means that demand might be less sensitive to interest rate changes and the slope of the IS curve will be less steep. Also a huge part of investments are made in the petroleum sector, where the decision to invest is linked to profitability in the sector rather than the interest rate. In the formal model these investments will be modelled separately and exogenously and independent of the interest rate. These factors suggest a smaller role played by the interest rate in the Angolan economy. There is currently a low level of domestic production and exports are linked first and foremost to petroleum and other natural resources (diamonds). This particular feature of the Angolan economy is captured in the formal model by allowing a separate term for petroleum sector exports and petroleum sector related import. The Kz is not convertible and set via a “managed” auction within a given band. This means that interest rate and the exchange rate will have smaller effect on output than what we might find in other economies. The effect of trade in financial assets is reflected by the BP curve. The balance of payments curve shows combinations of interest rates and income levels for which the capital account (trade in assets) and current account (trade in goods and services) offset each other. The current account is equivalent to the level of net exports, and it is determined by the domestic level of income, the foreign level of income and the exchange rate. We assume that there is less than perfect capital mobility. The BP curve is drawn for a given exchange rate and a given foreign interest rate. The IS curve shifts right when there is an expansionary fiscal policy change or the exchange rate depreciate. The IS curve shifts left when there is a contradictionary monetary policy change. The LM curve shifts right when there is an expansionary monetary policy change. It shifts to the left when there is a contradictionary monetary policy change.Because the basic version of the model assumes fixed prices, it cannot be used to analyze inflation. When the model was developed in the 1950’s and 1960’s inflation was of little concern. As inflation became important during the late 1960s and 1970s, the model was extended to incorporate aggregate supply. The essential feature of this extension is that higher output leads to a higher price level. The impact from output in prices can operate directly through firms’ price setting decisions, or indirectly through wages. There is not complete nominal flexibility (needed for the AS curve to be upward sloping rather than vertical in the output-price 22 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA level) is due to adjustment costs, imperfect information and contracts. The price level that prevails when output is a t its normal level or “natural rate” can be determined by rational forward looking expectations, by past levels of inflation or both. The aggregate supply curve (AS) has been specified in different ways. The essential relationship though is that there exists a positive relationship between output and the price level. The IS-LM-AS model consists of three equations in three unknowns: the output, the interest rate and the price level. When depicting this relationship graphically we combine the IS and LM curves to obtain a relationship between output and the price level. Given the fixed money supply, a higher price level reduces real money balances. Thus, for a given level of income, the interest rate at which the quantity of money demand equals supply rises. This means that the LM curve shifts upward and the IS and LM curves intercept at a lover level of output. This inverse relationship between the price level and output is known as the aggregate demand curve. The aggregate demand AD and AS curves then determine output and the price level. The aggregate demand curve summarizes the relationship between the price level and the quantity of domestic output demanded by consumers, firms, the government and foreigners. The AD curve can be derived from the IS LM diagram. An increase in the price level P increases money demand. The excess demand for money shifts the LM curve inward, raising r and lowering Y . When P goes down the money demand decreases and brings about an excess supply of money. This means that the LM curve shifts outward and lovers r and increases Y . r LM’( P1 ) LM r1 P1 r0 LM’’( P2 ) r2 P2 IS Y1 Y0 Y2 P0 Y AD Y1 Y0 Y2 Y Any shift in the IS-LM model that is caused by a change in prices is represented as a movement along the AD curve. Any other shifts in the IS or LM curves that increases income will be a shift outward in the AD curve (an increase in G ). Any change in the IS-LM model that reduces income will be an inward shift in the AD curve (a decrease in M s ). The terms of trade and the expected rate of inflation are included in the IS curve. Terms of trade equals the domestic price level minus the world price level minus the exchange rate. This means that if the domestic price level increase, the world price level decrease, or a strengthening of the domestic currency making domestic goods relatively 23 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA more expensive will increase the terms of trade and result in a reduction in the trade balance. Imports increase while exports decrease. The IS curve is stationary only when the terms of trade is constant. For the LM curve, the demand is still determined by real national income and the nominal rate of interest, but the domestic interest rate is also tied to the world interest rate and the expected depreciation of the home currency. The aggregate supply curve now responds to two price indicies, the one of interest to producers and the one of interest to consumers. Employment is constrained by demand for labor. Employment and output increase if the rate of producer price inflation exceedes the rate of growth of nominal wages. The wages will be related to the rate of inflation for consumer prices (part of which are the imported consumables). This means that the terms of trade will play an important role in determining labour and hence output supply. With flexible exchange rates the IS schedule become superfluous. The negative relationship between inflation and output comes from the money market alone. If Y goes up, this will create an excess demand for money but if the world interest rate is fixed and so is the expected depreciation of the home currency, the only variable that can change is inflation in the home country. 7. Steps in MODUCAN development Work on the model has been going on intermittently since late 2008 in Norway and in Angola. An early step was the agreement on the specific structure and variables. Although this step included consideration of the database in order to prevent the use of variables for which data were particularly weak of non-existent, frequent setbacks in the data supply were experienced. In some cases synthetic data had to be used. This did not boost our confidence in the reliability of the results. Ironically, the increase in data availability over the last year has created its own problems. For instance, the detailed trade statistics that have now been published by the INE could not be ignored and therefore some coefficients first estimated on the basis of weaker data had to be re-estimated. It now seems likely that a set of national accounts from 2002 to 2008 will be available shortly. This will in all likelihood mean that a broad range of model coefficients will have to be reconsidered. Estimation of a full range of parameters has been completed. We have used the econometrics package” Stata” for the purpose. One particular problem has of course been that historical data are lacking to a great extent. This will undoubtedly have the effect of weakening the correctness of our coefficients. Before 2002 Angola had periods of triple digit inflation and dramatic changes in nearly all relevant variables the economy. Basing estimates on such data will mean that the economy described by the model will implicitly have on board an assumption that economic structures and mechanisms (partly) are as they were in those days. This means we base the model on a totally different environment than we have today and which we believe will prevail in 24 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA the future. On the other hand, using the less tumultuous data from 2002 onwards will limits the length of data series for estimation giving very large confidence ranges. The model does not use sophisticated modeling software. We have found many advantages in terms of transparency and easy handling by using a simple spreadsheet, which, with the recent development in the capacity of spreadsheets, appears to have computing power enough for our purposes. Most economist will have a good knowledge of spreadsheets so the handling of the model will not need particular training. A bit of additional training in programming Visual Basic should also make it possible to produce nice, tidy and useful user interfaces. The first version of the model is now functioning. The core model is solved by using the matrix calculation functions within the spreadsheet. Step one of the calculation is to solve the system for GDP at constant prices, real interest rate and real exchange rate using matrix algebra. Based on these three endogenous variables with the addition of exogenous and parameters, the spreadsheet will calculate the other endogenous variables. The team now runs a number of tests of the model. Testing is done by making projections for a period for which data exist and then check projections against actuals. Some interesting results have already appeared. For the shorter period the model does appear to predict GDP very well. However the exchange rate and the interest rate often differ from the actuals - for some years considerably. The plan is now to finish the model and produce documentation and user manuals by the end of 2010. We hope that after this, in the next three year period the model can be used intensively in making economic projections. 8. Modeling benefits to come? Although the pace of model building has been much lower than expected, the work done has rendered results. A number of courses in model building and econometrics using Stata have been of benefit to a wide range of economists from CEIC-UCAN and other institutions in Angola. We have noticed increased interests for the modeling exercise both from the INE and the Ministry of Planning. The model building has given incentives to further exploration of the economy. The model building gives incentives to debates on how the economy works and gives input to such debates. The exercise also contributes to build teams across government institutions. By keeping close in touch with relevant government departments we hope to avoid the all too usual syndrome in model building, namely that models are used for a research project only or linked to technical assistance only. 25 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA AS TRANSFORMAÇÕES ECONÓMICAS ESTRUTURAIS EM ANGOLA – UMA ANÁLISE PARA O PERÍODO 1997/2008 Alves da Rocha Professor Associado da Universidade Católica de Angola O tema do crescimento económico de Angola continua a ser dos mais estudados, dentro e fora das fronteiras nacionais. Alguns desses estudos têm procurado descortinar sinais sustentáveis de diversificação da economia, mas o sector petrolífero continua majestático, ainda que com perdas episódicas de importância relativa no PIB. A resolução do conflito militar interno veio propiciar uma situação mais atreita à obtenção de resultados positivos na política económica, em especial nos equilíbrios fundamentais e na reconstrução das bases materiais e humanas para o crescimento económico. A análise do período 1997/2008 revela tratar-se duma sequência importante de crescimento económico real no país e de aplicação duma política económica de mercado. O crescimento económico não foi contínuo ao longo do período em análise, sendo visíveis diferentes períodos em que a variação real anual do PIB se colocou abaixo da sua linha tendencial de crescimento. FONTE: Relatórios Económicos de Angola, CEIC, Universidade Católica de Angola, com base nas informações dos Relatórios de Balanço dos Programas do Governo elaborados pelo Ministério do Planeamento. O ano de 2002 marca, claramente, uma linha divisória no processo de crescimento económico do país, devido à finalização do conflito militar interno e à possibilidade de desviar da guerra uma parte importante dos recursos financeiros petrolíferos – ou obtidos pela facilidade de hipoteca das receitas futuras do petróleo – para aplicações na recuperação das infraestruturas físicas e materiais, muito danificadas pela extensão e violência das operações militares. Porém, entre 2000 e 2002, como que a antecipar-se o final do conflito militar interno e com base nas políticas levadas à prática no contexto dos Planos de 2001 e 2002, a economia angolana apresentou sinais duma mudança significativa nos índices gerais de produtividade, ainda que puxados pela natureza capital-tecnologia intensiva das actividades de extracção mineral. 26 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento. Graças, também, à resolução do conflito militar foi possível ao Governo concentrar as suas acções de política económica em matérias que passaram a fazer mais sentido e a ter outras condições de resolução dos problemas que as afligiram durante a longa noite de guerra. O controlo da inflação começou a ser mais efectivo depois desta data e a estabilização macroeconómica passou a constituir um objectivo com possibilidades de ser atingido. As excelentes condições do mercado internacional – taxas médias anuais de crescimento do PIB elevadas devido aos impulsos emprestados pelas performances chinesas e preço tendencialmente em crescendo do barril do petróleo – ajudaram a manobra de estabilização macroeconómica do Governo angolano a partir de 2002, ao mesmo tempo que a acumulação de receitas fiscais e de reservas em meios de pagamento sobre o exterior permitiu que se iniciasse o ambicioso programa de reconstruir o que tinha sido desfeito pela guerra e de construir o que ela não tinha permitido. FONTE: Instituto Nacional de Estatística. 27 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA No entanto, não foram suficientes 11 anos de crescimento e cerca de 6 anos de relativa estabilização macroeconómica para que os fundamentos económicos do país se alterassem. Com efeito e em termos médios para o período 1997/2008, a estrutura do Produto Interno Bruto permaneceu, essencialmente, a mesma, com as actividades de extracção de petróleo a responderem por cerca de 55% do valor de riqueza anualmente gerado, as receitas fiscais petrolíferas a contribuírem com 80% para as receitas totais do Orçamento Geral do Estado e a indústria transformadora manter a sua importância relativa no PIB em redor dos 4%. . FONTE: Ministério do Planeamento O baixo valor percentual da representatividade da actividade do petróleo em 1998 deveu-se à crise económica mundial, com a procura e o preço do petróleo a evoluirem em baixa. O preço médio do Brent nesse ano foi de 12,7 dólares o barril, a produção angolana de petróleo atingiu a cifra de 738 mil barris de petróleo por dia e as exportações diminuíram 32,6% face aos valores registados em 1997. Provavelmente poucos se lembrarão da crise de pagamentos – internos e externos – que se abateu sobre o país nesta altura e que pressionou o Governo a alterar o Plano de Desenvolvimento 1998-2000, substituíndo-o pela Estratégia de Saída da Crise. 28 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento Fase de crescimento lento 1997/2002 Depois das eleições de Setembro de 1992, o país assistiu ao recrudescimento, sem precedentes, da violência do conflito armado interno, devido, em particular, à rejeição dos seus resultados pela parte da UNITA. O ano de 1995 fica marcado na História de Angola, depois da independência, como o da extensão do conflito armado a todo o território nacional e o da intensificação da violência associada. Até 1997, a actividade económica do país aumentou a sua dependência do petróleo e os sectores agrícola e industrial estavam virtualmente em falência técnica, tal a intensidade da destruição de infraestruturas físicas, da fuga dos campos e da insuficiência de recursos humanos. Com esta base de funcionamento é natural que até 2002 os principais estrangulamentos e as mais básicas carências (humanas, materiais, financeiras, etc.) tivessem favorecido um funcionamento da economia nacional de baixa intensidade e se tivessem mantido os sinais de crise económica e financeira vindos de trás. A transição para a economia de mercado – iniciada com a primeira desvalorização do kwanza em Março de 1991 e num clima de expectativas políticas positivas propiciadas pela esperança de paz e de implantação do processo democrático – faz-se num contexto de grande incerteza, caracterizado pela sucessiva diminuição das receitas fiscais petrolíferas, pelo não funcionamento da economia não petrolífera, pela insegurança de pessoas e bens e pelas difíceis condições de circulação das mercadorias e dos cidadãos. Portanto, esta fase de crescimento da economia angolana foi marcada por taxas relativamente baixas de variação da actividade produtiva e que se podem expressar numa taxa tendencial de cerca de 6%. Só a partir de 2001 é que a actividade de extracção petrolífera começa a apresentar sintomas de reversão da crise dos anos anteriores graças à recuperação da economia mundial. Nesse ano, o PIB petrolífero retrocedeu 1% face a 2000 e as actividades não petrolíferas apresentaram uma taxa de crescimento de 10%, com destaque para os 18% dos sectores primários (agricultura, pecuária, florestas e pescas). 29 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento. Ainda que a indústria transformadora apresentasse um crescimento do seu PIB tendencialmente crescente, não existiam condições para que assumisse uma posição central e estratégica no processo de diversificação da economia angolana. A prestação de serviços mercantis começou a instalar-se a partir de 2000 e a apresentar razoáveis dinâmicas de crescimento. TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%) SECTORES PIBa PIBt PIBs 1998 5,2 4,9 5,0 1999 1,3 7,1 4,4 2000 9,3 8,9 3,4 2001 18,0 9,8 6,0 2002 13,4 10,3 11,6 FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo. A análise da estrutura económica do país mostra que o peso relativo da economia petrolífera se reforçou, quando comparado com o que vigorava em 1998, em prejuízo das actividades mais estruturantes do mercado interno, como a agricultura e a indústria transformadora. 30 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento Durante esta fase de cinco anos, as preocupações centrais do Governo estiveram voltadas para o controlo e gestão do conflito armado interno, no sentido de a mais breve trecho se encontrar uma solução definitiva. No entanto, o crescimento económico e o processo de estabilização macroeconómica foram, igualmente, propósitos que o Governo considerava importantes para a preparação do país para a fase pós-conflito armado. As medidas mais consistentes a favor do controlo do défice fiscal, da redução da inflação, da convergência cambial e de recuperação da confiança no kwanza começaram a ser implementadas a partir de 2000, no âmbito, quer do Plano de Desenvolvimento e Estabilização Económica 1998-2000, quer, especialmente, da Estratégia Geral de Saída da Crise1. As condições internacionais começaram a melhorar – as taxas médias de crescimento do PIB mundial entre 2000 e 2002 foram de 2,1%, 2.4% e 3%, respectivamente2 –, culminando com um preço do barril de petróleo de 23,74 dólares em 2002, praticamente o dobro do registado em 1998. Estas alterações no contexto internacional facilitaram, pela via do aumento das receitas fiscais e em divisas, os objectivos do Governo quanto à preparação do país para a fase seguinte à guerra. A inflação foi uma das matérias da estabilização macroeconómica que logo depois de 2000 começou a mostrar uma tendência de diminuição sustentada. Depois deste ano não mais o índice de preços no consumidor na cidade de Luanda apresentaria valores acima dos dois dígitos. 1 Na medida em que persistiam condições adversas na economia mundial, traduzidas numa reduzida procura de petróleo e num preço do barril que atingiu 12,7 dólares, o Governo entendeu não existirem condições propícias para a implementação do Plano 1998-2000. O Governo foi remodelado, a equipa económica integralmente substituída e elaborado um novo Plano, baseado na Estratégia para a Saída da Crise. 2 International Monetary Fund – World Economic Outlook, September, 2003. 31 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: INE Fase de crescimento rápido 2002/2006 Do ponto de vista político, o acontecimento marcante deste período é a paz. Este facto, igualmente social, representa um ponto de viragem na trajectória da política económica, cujas condições começaram a ser criadas depois de 2000. A finalização do conflito militar interno colocou novos e importantes desafios ao Governo, deixando de fazer sentido as justificações para os insucessos das medidas governativas e alicerçadas na reduzida margem de manobra da política económica e no excesso de consumo dos recursos financeiros pela guerra. O mercado passou a ter enquadramento conceptual na elaboração dos Programas do Governo e as medidas de fomento e incentivo deixaram de ser administrativas, para darem mais atenção aos mecanismos mercantis de alocação dos factores de produção. Durante este período, o Governo conduziu a sua intervenção na economia através do Plano de 2002 e, depois, por dois programas bienais intitulados Programa Geral do Governo 2003-2004 e Programa Geral do Governo 2005-2006. A visão adoptada pelas instituições públicas e por algumas organizações empresariais angolanas privilegiou a componente estratégica da reconstrução económica e do progresso social. A elaboração da Estratégia de Desenvolvimento de Longo Prazo 2000-2025 é a prova de que o urgente – exigido pela guerra – deixou de tirar lugar ao importante e estruturante (determinado pelo crescimento e desenvolvimento). Consideraram-se como pilares desta Estratégia a construção duma competitividade estrutural, o desenvolvimento do sector privado, a promoção do emprego, a valorização dos recursos humanos, a edificação duma sociedade mais justa e a garantia do uso sustentável dos recursos naturais e da preservação do ambiente. O preço médio do barril de petróleo passou de 23,74 dólares em 2002, para 61,5 dólares em 2006, um incremento percentual de 159%3, enquanto a economia mundial se encontrava num período de crescimento de alta intensidade, com taxas de 3,2% em 2003, 4,1% em 2004, 3,5% em 2005 e 4% em 20064. Condições excelentes e propícias ao lançamento das bases materiais para a reconstrução das infraestruturas e o 3 BP statistical review of world energy June 2008. 4 International Monetary Fund – World Economic Outlook September 2005 e World Economic Outlook Update, January 2009. World Bank – Global Economic Prospects, 2009. 32 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA crescimento económico. Portanto, ocorreu uma feliz conjugação dos ambientes interno e externo em favor do crescimento económico de Angola. FONTE: Ministério do Planeamento A precipitada quebra do nível de actividade do sector petrolífero em 2003 – o registo real foi de -2,2% de crescimento – foi devida a factores meramente conjunturais e relacionados com atrasos na entrada em funcionamento de determinados blocos de águas profundas. A taxa tendencial de crescimento deste período foi de quase 14%, mais 9 pontos percentuais do que a registada no período anterior. O destaque, porém, continuou a pertencer ao sector petrolífero, com uma taxa média de crescimento no período a rondar os 14%, mais 1,5 pontos percentuais do que o sector não petrolífero. TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%) SECTORES PIBa PIBt PIBs 2002 13,4 10,3 11,6 2003 11,7 11,9 9,9 2004 14,1 13,5 10,4 2005 17,0 24,9 8,5 2006 9,8 44,7 38,1 FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo. Através das taxas de crescimento anteriores parece adivinhar-se alguns indícios de alterações sectoriais, nomeadamente, em relação à indústria transformadora e aos serviços mercantis. Com efeito, a taxa tendencial de crescimento da indústria transformadora foi de 20,4% e dos serviços de 15,3%. 33 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento No entanto, em termos de pesos relativos, a composição do PIB permaneceu, essencialmente, a mesma. Embora a alteração dos pesos relativos dos sectores no PIB não seja o critério, por excelência, para se avaliar o processo de diversificação duma economia, fornece, todavia, uma indicação de tendência. Portanto, o que de relevante se passou entre 1997 e 2006 foi a manutenção da participação percentual dos sectores de actividade económica não petrolíferos, em particular, a agricultura e a indústria transformadora. FONTE: Ministério do Planeamento Ou seja: as elevadas taxas de crescimento do PIB deveram-se, no essencial, à dinâmica do sector petrolífero e os sectores não petrolíferos deveram o seu excelente comportamento à reduzida base de partida para a aventura do crescimento económico de Angola, tal o grau de destruição em que o conflito militar deixou o país. Os projectos industriais e agrícolas implementados neste período não foram suficientemente estruturantes duma nova ordem económica interna. Do ponto de vista da estabilização macroeconómica, os sucessos foram ainda maiores em matérias como o controlo da inflação, a gestão financeira do Estado – com 34 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA sucessivos excedentes fiscais – e a balança de transacções correntes (em 2005 e 2006 foram registados os maiores excedentes com o exterior, repectivamente, 30,2% e 35,6% do PIB. FONTE: Ministério do Planeamento A atenuação do crescimento (2007/2008) e os sintomas da crise internacional (2009) Durante o período 2007/2008, a política económica do Governo enquadrou-se no Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008 e as condições para a obtenção dos objectivos aí definidos5 – com realce para a consolidação da estabilidade macroeconómica, a reorganização das redes de distribuição (electricidade, água, transportes), o lançamento de indústrias de apoio à reconstrução nacional, a expansão das cadeias produtivas – aparentemente existiam e exprimiam-se pelo excelente ambiente económico interno (taxas elevadas de crescimento em 2005 e 2006, aumento do investimento privado, melhoria significativa da situação das finanças públicas, disponibilidade de linhas de crédito, estruturação, modernização e desenvolvimento do sistema bancário nacional, criação do Banco de Desenvolvimento de Angola e preservação da paz e da reconciliação nacional) e pelo favorável enquadramento externo, caracterizado pelas elevadas taxas de crescimento do comércio internacional (9,8% em 2006, 7,5% em 2007 e 6,2% em 20086) e de variação do PIB mundial (3,4% em média anual no triénio 2006/20087). Contudo, o principal estímulo ao crescimento económico de Angola, no período em referência, continuou a ser dado pelo preço do petróleo no mercado internacional. Entre 2006 e 2008, o preço médio do barril de petróleo registou um incremento de perto de 60%, equivalente a uma variação média anual de 16,7%. Entretanto, os primeiros sinais de antecipação da crise económica mundial começaram a ser visualizados pela redução do ritmo de crescimento do PIB mundial (apenas 2,5% em 2008) e pela quebra no índice de preços das commodities não petrolíferas. A drástica redução do preço do barril de petróleo no último trimestre de 2008 confirmou que a economia mundial entrara em crise dramática e que Angola iria 5 Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008. World Bank – Global Economic Prospects, 2009. 7 World Bank – Global Economic Prospects, 2009. 6 35 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA sofrer os seus efeitos mais nefastos, agravados pela debilidade da estrutura económica nacional e pela reduzida capacidade de absorção de choques externos. As medidas de atenuação dos efeitos desta crise mundial tomadas pelo Governo foram num sentido inverso ao da maior parte das economias do sistema económico internacional, que acentuaram a vertente do aumento das despesas públicas (de investimento, subsídios, transferências, redução de impostos para se estimular a recuperação da produção, etc.). Compreende-se, assim, que depois de 2007, o ritmo de crescimento económico diminuiu, apesar de as taxas de variação do PIB ainda se terem apresentado significativas. A taxa tendencial deste período foi de 17,7%, influenciada pelos 20,9% de 2007. Ao considerar-se a previsão de crescimento para 2009, a taxa tendencial de crescimento baixa para menos de 14%. Em 2008, foi registada uma quebra de 5,5 pontos percentuais em relação à taxa tendencial e de 7,3 pontos percentuais face a 2007. FONTE: Ministério do Planeamento A agricultura e a indústria transformadora ressentiram-se dos efeitos da crise económica internacional, mas os serviços ainda conseguiram melhorar a sua performance face a 2007. De sublinhar que alguns segmentos da indústria transformadora angolana – materiais de construção, alimentação e bebidas e indústrias químicas – patentearam desempenhos interessantes entre 2007 e 2008 mas, no fundamental, continuaram a ser as actividades alimentares e de bebidas a dominarem o panorama manufactureiro nacional (perto de 80% do total). TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%) SECTORES PIBa PIBt PIBs 2004 14,1 13,5 10,4 2005 17,0 24,9 8,5 2006 9,8 44,7 38,1 2007 27,4 32,6 21,8 2008 1,9 11,0 26,9 FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo. No entanto, as tão desejadas alterações estruturais da economia não ocorreram e algumas das variações registadas não passaram de meros episódios no longo percurso do processo de diversificação da estrutura produtiva interna. 36 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA FONTE: Ministério do Planeamento As condições de preservação da estabilização macroeconómica do passado degradaram-se na parte final de 2008, acabando por ferir, significativamente, o seu exitoso percurso anterior. De resto, a resistência da inflação aos dois dígitos traduz a prevalência de diversas imponderabilidades sobre a actividade económica interna e a excessiva dependência das políticas macroeconómicas das receitas do petróleo. As dinâmicas de crescimento registadas entre 1997 e 2008 consequencializaram uma aumento sustentado no rendimento nacional bruto por habitante, colocando-se o seu valor nos 3284 dólares em 2008. A grande questão – de resto, comum a qualquer economia – reside no modo como este rendimento é repartido pelas funções capital e trabalho e pela população esempenhando, neste caso, o Estado um papel primordial na correcção da distribuição da renda feita pelos mecanismos de mercado. Não só pela via da tributação, directa e indirecta, mas, igualmente, pelo montante e natureza das transferências que o Governo entrega à sociedade. 37 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA CONCLUSÕES A resolução do conflito militar que afectou a economia e a sociedade angolanas foi o ponto de partida para as transformações estruturais ocorridas desde então. Evidentemente que alguma coisa tinha de acontecer. Não era possível aguentar uma situação de atropelamento dos equilíbrios económicos fundamentais e de degradação das condições de vida da população. A reposição dos macroeconomic fundamentals (défice fiscal, convergência cambial, reservas internacionais, défice externo, inflação, dívida pública) em níveis aceitáveis e internacionalmente recomendáveis era uma imposição do novo período de paz. E foi nesse sentido que o Governo angolano, logo no decorrer de 2000, começou a preparar as políticas macroeconómicas, cujos resultados foram importantes para a recuperação da economia, através de taxas muito elevadas de variação do Produto Interno Bruto. Outro vector relevante para a reconfiguração da economia nacional é o da construção e reabilitação das infraestruturas económicas e sociais. As primeiras têm sido um factor importante de incentivo ao funcionamento do sector produtivo e à difusão do crescimento económico pelo território nacional. As segundas perfilam-se como indispensáveis para uma maior socialização da educação, saúde, habitação e serviços diversos de saneamento. No entanto: Permanece a excessiva dependência dos sectores de enclave, pouco entrosados com o resto da economia, essencialmente virados para o mercado internacional e potenciadores de desigualdades na distribuição do rendimento nacional. O peso dos sectores estruturantes duma nova ordem económica interna – indústria, agricultura, sistema financeiro e tecnologias de informação – ainda é pequeno, apesar das elevadas taxas de crescimento dos respectivos valores acrescentados. 38 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA O intenso crescimento económico ainda não se transformou em desenvolvimento, muito menos em progresso, devido ao modelo de repartição da renda que prevalece e ao qual só acedem as franjas sociais ligadas ao poder político. Grande parte da população continua a não ter acesso à habitação, ao fornecimento de água e electricidade em condições normais e aos serviços de saneamento. A prova é dada pelo caos que recorrentemente a chuva provoca nas periferias dos grandes centros urbanos, com saliência para Luanda. As transformações económicas e sociais estruturantes e sustentáveis são um processo de longo prazo, que exige boas políticas de desenvolvimento, resguardo dos equilíbrios macroeconómicos fundamentais, transparência e burocracia competitiva. 39 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA BASE IV DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO A CLÁUSULA DA CONFLITUALIDADE António Fernandes da Costa Faculdade de Ciências Humanas da UCAN 1. Introdução A base IV do acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990, na qual surgem inseridas as disposições que consagram a queda ortográfica das consoantes sem realização fonética, ou seja, a eliminação das consoantes mudas, é certamente aquela que mais polémica tem gerado entre os analistas e destinatários do acordo. Confrontamo-nos com um tema susceptível de ser abordado sob diversos ângulos. A nossa perspectiva, neste trabalho, será meramente linguística e centrar-se-á apenas numa cláusula. Não nos ocuparemos, por exemplo, de considerações de natureza política, diplomática ou económica relacionadas com o tema, o que não significa que as assumamos como considerações de somenos importância. Reservamo-las, simplesmente, para outras vozes mais autorizadas. As disposições inseridas na base IV chegam a ser vistas por uma certa crítica de oposição ao acordo, como uma ameaça à identidade da língua. A contestação chega a atingir proporções radicais, procurando-se excluir toda a possibilidade de diálogo: “Minha pátria é a língua portuguesa”, sentenciam muitos críticos contestatários. O recurso a este veredicto pessoano, em que os conceitos de pátria e língua se cruzam numa equivalência metonímica, mais não significa do que fechar as portas a um debate possível. Na verdade, a contestação de Fernando Pessoa à reforma ortográfica de 1911, que até se caracterizou pela unilateralidade, circunscreveu-se entre as mais radicais da época. No auge da contestação, Fernando Pessoa lançou aquele que seria o mote final da sua argumentação contra qualquer cedência a uma reforma da ortografia da língua portuguesa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Hoje, observa-se a reiteração do mesmo estribilho pessoano, em nome da rejeição do acordo ortográfico de 1990. 40 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Contudo, a reforma ortográfica de 1911, apesar de uma forte contestação de uma determinada intelectualidade da época, prosseguiu o caminho traçado. O que se escrevia abysmo, lyrio, syntaxe, estylo passou a escrever-se abismo, lírio, sintaxe, estilo, sem o ípsilon, abandonando-se a memória emocional de uma ortografia etimológica, sem que a língua tivesse sido chamuscada. Que isto sirva apenas para um exemplo. 2. Os argumentos contra o acordo Se há pontos do acordo ortográfico de 1990 que têm mais a ver com a consolidação de certas matérias já autorizadas, no acordo ortográfico de 1943 ou de 1945, a base IV está entre aquelas que introduzem alterações concretas e significativas na ortografia da língua portuguesa. Referimo-nos especificamente à ortografia consagrada no português padrão, em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa. Há consoantes sem realização fonética que continuam a ser representadas graficamente, na norma ortográfica portuguesa e africana, por razões de natureza etimológica, por razões ligadas à genética das palavras. Portanto, os motivos da sua conservação são ditados, acima de tudo, por determinantes ligadas à memória etimológica e, certamente, a razões de carácter emocional. Assistimos à reiteração da argumentação usada contra a reforma ortográfica de 1911. Como é sabido, na norma ortográfica brasileira as consoantes mudas há bastante tempo que não são representadas ortograficamente. A base IV do acordo ortográfico de 1990 consagra, portanto, a supressão dessas consoantes, na norma padrão portuguesa e africana, com vista a uma uniformização da ortografia. E é aqui que reside o pomo da discórdia. No conjunto da argumentação utilizada pelos arquitectos do acordo, na justificação desta unificação estão a valorização da componente fonética, na pronúncia das palavras, que permite um ensino e uma aprendizagem mais simplificados da língua, a internacionalização da língua e a circulação do livro e outros elementos culturais, entre os países da CPLP. Para os críticos discordantes deste acordo ortográfico, as consoantes mudas têm uma dupla função, que não podem deixar de exercer. Não só contribuem para a legitimação da etimologia da palavra, conforme ficou explícito, como garantem a creditação fónica das vogais precedentes que, por via da sua presença, são abertas. 41 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Proceder à supressão dessas consoantes levaria a uma espécie de caos, não só no que respeita à perpetuação da história das palavras, como também no que diz respeito à representação fonética das vogais precedentes. Assistiríamos, portanto, à degradação do valor fonético das palavras e, consequentemente, à degenerescência da língua portuguesa, à degenerescência da sua identidade. Para uma melhor explicitação da argumentação das vozes discordantes, se na palavra recepção, o fonema vocálico e, que precede a consoante p, é realizada como uma vogal definida pelo traço fónico +BAIXO, ou seja, soa como uma vogal aberta, esta vogal deixará de exibir o valor fonético que se lhe atribui, caso se observe a queda ortográfica do fonema consonântico. Isto levaria a que a palavra fosse representada ortograficamente receção, acabando a vogal e por se transformar numa vogal definida por um traço fónico +ALTO, reconvertendo-se numa vogal átona. Apresentamos apenas uma ilustração. Poderíamos multiplicar os exemplos. A supressão das consoantes mudas é uma questão já versada no acordo ortográfico de 1945, mas de forma ambivalente: “[…] eliminação das consoantes interiores cc, cç, ct, pc, pç, pt, quando invariavelmente mudas e de sua manutenção, quando pronunciadas em um país e não no outro ou quando têm valor fonético e/ou valor de tradição ortográfica e similaridade com outras línguas românicas”. A ambivalência com que se formula, em 1945, esta cláusula, leva a uma consequência que perdura até hoje, a manutenção a que se assiste dos grafemas consonânticos mudos, na norma padrão euro-africana. Como se observa, a questão das consoantes mudas não é colocada, pela primeira vez, no acordo ortográfico de 1990, pois constitui uma preocupação que já vem de trás. O acordo de 1990 pretende pôr cobro a esta ambivalência, procedendo à unificação desta divergência entre a ortografia praticada, por um lado, no Brasil e a praticada, por outro lado, em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa. A base IV, sendo a mais rejeitada pelos críticos que se opõem ao acordo, conforme ficou explícito atrás, acaba por ser também aquela que é a responsável pela rejeição de todo o acordo por parte dos referidos críticos. Pois, além dos argumentos acima transcritos, há um de natureza política e, quiçá, de natureza económica, segundo o qual se considera que o Brasil beneficia mais com o acordo em causa do que Portugal, porque lhe atribuirá maior protagonismo, na penetração nos países africanos. Uma vez que o Brasil já não representa ortograficamente as consoantes mudas, eliminando-as, 42 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA considera-se que o presente acordo está desenhado em função dos interesses do Brasil. Só serve o Brasil. Em princípio, a análise deste tipo de preocupações não faz parte da nossa abordagem. A nossa perspectiva é meramente linguística, conforme referimos atrás. Por isso, importa tecer alguns comentários sobre os argumentos de natureza linguística, fundados na história da língua, ou seja, na salvaguarda da origem etimológica da palavra, e no papel atribuído às consoantes mudas, na creditação do timbre aberto das vogais que com elas coexistem na mesma estrutura lexical, precedendo-as. 3. A história da língua e o acordo ortográfico No contexto do acordo ortográfico, a história da língua será encarada apenas numa perspectiva parcial, pois corresponderá unicamente à história da palavra. E o que se entende por história de uma palavra? Na nossa modesta opinião, achamos que a história de uma palavra não reside em algo inatingível, impenetrável, algo insusceptível de visualização, algo de místico. Com todo o respeito, pensamos que a história de uma palavra consiste, em primeiro lugar, na ligação dessa palavra ao étimo de que provém ou ao derivante de que deriva e, em segundo lugar, consiste na trajectória evolutiva dessa palavra, perante o étimo ou o derivante. Se nos for concedida alguma liberdade, apresentamos aqui a história da palavra filho, apenas para um exemplo. Provém do étimo latino filiu(m). Quanto à trajectória evolutiva que a caracteriza, verifica-se a queda do l intervocálico, dado que as consoantes sonoras na evolução das palavras do latim ao português tenderam a cair ou a vocalizar-se. Esta transformação conduziu ao surgimento de duas vogais em hiato, fiiu, que foram eliminadas, mediante a intromissão de uma consoante entre elas. Esta é a história que tem sido descrita pelos historiadores da língua sobre a origem etimológica e a trajectória evolutiva da palavra filho, não nos apresentando, por isso, nada de transcendente, de impenetrável, nada de mítico. Apesar da transformação que a palavra filho sofreu, caracterizando-se, de certo modo, por uma estrutura que não é de todo idêntica à do seu étimo latino filiu(m), não se perdeu de vista o elo da sua origem etimológica, nem se perdeu de vista o respectivo 43 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA trajecto evolutivo. A quase totalidade das palavras sofre uma transformação estrutural, ao evoluir do latim ao português arcaico e não foi por este facto que se perdeu o elo da respectiva história, a possibilidade de descrição do respectivo percurso evolutivo. Analogamente, pensamos que não se perderá de vista a origem etimológica ou o percurso evolutivo de palavras como acção, concepção, recepção, na sequência da eliminação, na escrita, das consoantes c e p, respectivamente, quando estas já nem sequer existem, enquanto estruturas com realização fonética, constituindo estruturas sem pronúncia, tendo emudecido, há muito. Se nós compararmos estas palavras com as correspondentes das outras línguas românicas teremos, em francês: action conception reception. Em espanhol, teremos: actión conceptión receptión. O que se constata? Constata-se que as palavras correspondentes, na língua portuguesa, sofreram uma mais acentuada transformação, ao evoluíram do latim, do que as suas congéneres, na língua francesa, espanhola, pois provieram umas e outras dos étimos latinos: actione(m) conceptione(m) receptione(m). Repare-se que, nas outras línguas românicas citadas, os fonemas consonânticos p e c, das palavras em referência, continuam a ser pronunciados, tal como o eram, no latim clássico. Em português, emudeceram. Na fonética das palavras, estas consoantes já não existem, na língua portuguesa. Existem apenas no desenho ortográfico das palavras. 44 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Com essa transformação visível das palavras em causa, na língua portuguesa, não se perdeu de vista o respectivo trajecto evolutivo até hoje. Não será, certamente, com a supressão de consoantes, que já nem se pronunciam, já não existem na fonética das palavras, que só existem no desenho ortográfico, que se vai perder de vista a sua história e de outras similares que se caracterizam pela mesma ortografia. Pois, continuaremos a ter pleno conhecimento dos étimos de que provêm e do processo evolutivo que as tipifica. A história das palavras em causa poderá ser acompanhada, tal como tem sido a da totalidade das palavras da língua portuguesa. Quanto à tese fundada no papel das consoantes em causa, na definição do timbre das vogais que imediatamente as precedem, os críticos discordantes do acordo anunciam um enfraquecimento antecipado dessas vogais, na sequência da queda ortográfica das consoantes mudas. Pois, pretendem fazer crer que a eliminação gráfica dessas consoantes sem realização fonética, corresponderá, ipso factu e irremediavelmente, à redução do timbre das vogais, que as precedem. A depreciação sonora dessas ocorrerá de forma imediata, no seu entender. Pensamos que a tese da antevisão dessa depreciação do timbre das vogais adjacentes às consoantes em referência é linguisticamente insustentável. 4. O vocalismo pré-tónico e as consoantes mudas Essas vogais cujo timbre menos reduzido é supostamente creditado pelas consoantes mudas ocorrem em sílabas pré-tónicas e em sílabas tónicas. Nesta conformidade, o tema em análise tem especial incidência no vocalismo pré-tónico e no vocalismo tónico. Embora existam vogais pós-tónicas abertas, como na palavra agradável e noutras, não há notícia de ocorrência de vogais abertas pós-tónicas creditadas por consoantes mudas, na língua portuguesa. Portanto, apresentando-se esta questão substancialmente associada ao vocalismo pré-tónico e tónico, é no âmbito destes dois quadrantes linguísticos que deverá ser estudada. Não se pode negar o facto de que, no domínio da norma padrão euro-africana, o vocalismo pré-tónico é fortemente dominado pelo vocalismo átono, ou seja, pelo vocalismo dominado pela redução sonora. De acordo com os foneticistas da língua portuguesa, esta tendência afigura-se como a regra geral. 45 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Contudo, também reconhecem os mesmos foneticistas que existem excepções à regra geral do vocalismo átono, como afirma Mira Mateus: […] estão incluídas verdadeiras excepções à regra geral do vocalismo átono, cuja causa é histórica e não analisável a nível sincrónico. Assim, estas palavras estão marcadas no nível lexical, nas respectivas formas de base, como não sujeitas à regra geral, e como tal são aprendidas pelos falantes.iii Existem palavras com vogais fonologicamente menos reduzidas, ou seja, com vogais definidas como abertas, em sílabas pré-tónicas, sem que esse traço fonológico seja legitimado por consoantes mudas. Essas vogais continuam a ser abertas, no português padrão euro-africano, sem que o respectivo valor fonológico seja posto em causa. São as excepções de que fala Mira Mateus e outros foneticistas, ao se referirem à regra geral do vocalismo átono. Tomemos, como ilustração da matéria, a lista de palavras agrupadas nos dois conjuntos que se seguem. Na primeira série, agrupamos um conjunto de palavras em que figuram consoantes mudas. Na segunda série, agrupamos palavras sem o desenho ortográfico de consoantes mudas: a) acção; concepção; recepção; b). aquecer; aquecimento; corar; esquecer; esquecimento; ganhar; normal; normalmente; padeiro; pregar (sermão); economia; 46 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA ortodoxia. profilaxia As palavras seleccionadas, nestes dois conjuntos, apresentam uma característica, em comum. Em todas elas figuram segmentos vocálicos pré-tónicos abertos. A diferença consiste em que nas palavras do primeiro conjunto figura a representação ortográfica de consoantes mudas, que supostamente legitimam o timbre menos reduzido das vogais precedentes e, no segundo conjunto, as vogais são abertas, sem que tal propriedade fónica seja legitimada por consoantes mudas: em ac, na palavra acção; em cep, na palavra concepção; em cep, na palavra recepção; em que nas palavras aquecer e aquecimento; em co, na palavra corar; em que nas palavras esquecer e esquecimento; em ga, na palavra ganhar; em no nas palavras normal e normalmente; em pa, na palavra padeiro; em pre, na palavra pregar (sermão); em co, na palavra economia; em or, do, em to, na palavra ortodoxia; em pro, na palavra profilaxia. Estes são apenas alguns exemplos. Podíamos multiplicá-los, mas pensamos que se torna desnecessário. No primeiro grupo, as vogais abertas aparecem ladeadas por consoantes mudas. No segundo grupo, apesar de as vogais serem caracterizadas por uma localização prétónica, como as vogais do grupo anterior, essas vogais também são abertas, no português padrão euro-africano, apresentando-se sós, isto é, sem que o referido traço fónico apareça submetido a uma pretensa legitimação de consoantes mudas. 47 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A que conclusão nos leva esta coincidência? À conclusão de que a ocorrência de uma consoante muda não constitui uma condicionante, sine qua non, para a abertura de uma vogal pré-tónica. Portanto, não vemos a razão pela qual os críticos discordantes do acordo antecipam a vulnerabilidade sonora das vogais ladeadas por consoantes mudas, consoantes já sem existência fonética, caso estas sejam eliminadas ortograficamente. Como vemos, o fenómeno da ocorrência de vogais abertas pré-tónicas não é estranho à língua portuguesa. Não será, pela primeira vez, que surgirão vogais prétónicas abertas, caso as consoantes mudas sejam eliminadas ortograficamente, mediante a implementação do acordo ortográfico. Antes desta eliminação, as vogais abertas prétónicas já ocorrem, no domínio da língua portuguesa. Na palavra ortodoxia, somos confrontados até com três segmentos vocálicos pré-tónicos caracterizados por um timbre aberto, sem que nenhum deles seja ladeado ou legitimado por qualquer consoante muda. Depois da ilustração sobre a relação entre o vocalismo pré-tónico e uma provável queda gráfica das consoantes sem realização fonética, passemos à análise da relação entre o vocalismo tónica e a suposta eliminação. 5. O vocalismo tónico e as consoantes mudas Tomemos, como exemplificação deste estudo, as palavras seguintes agrupadas em três séries: afecto; directo; predilecto; tecto; carácter; didáctico; sintáctico. 48 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA bela; cela; feto; meta (linha de chegada); rosa; seta; sola; vela; caderno; desenho; porta. Como se verifica, em todos os exemplos, ocorrem em posição tónica da palavra vogais definidas por um timbre menos reduzido, ou seja, vogais abertas: em fec na palavra afecto; em rec na palavra directo; em lec na palavra predilecto; em tec na palavra tecto. em rác na palavra carácter; em dác na palavra didáctico; em tác na palavra sintáctico; em be na palavra bela; em ce na palavra cela; em fe na palavra feto; em me na palavra meta (linha de chegada); em ro na palavra rosa; em se na palavra seta; em so na palavra sola; 49 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA em ve na palavra vela; em de na palavra caderno; em se na palavra desenho; em por na palavra porta; No primeiro agrupamento desta ilustração de palavras, as vogais tónicas abertas aparecem ladeadas por consoantes mudas que, supostamente, legitimam o timbre menos reduzido que as caracteriza; no segundo agrupamento, incluímos palavras cujas vogais tónicas, além de serem graficamente acentuadas (o acento gráfico, neste caso, serve para marcar a abertura da vogal), são ainda ladeadas por consoantes mudas; e, finalmente, uma terceira série de palavras em que as vogais tónicas, apesar de serem abertas, se apresentam sem acentuação gráfica e sem consoantes mudas, em contiguidade, susceptíveis de legitimarem a referida propriedade fónica. Perante estes exemplos, verifica-se que a abertura da vogal, em posição tónica, não depende de consoantes mudas. Pensamos que estas podem ser dispensadas, sem que tais vogais sofram qualquer alteração, quanto à propriedade fonológica que as caracteriza. Apresentamos apenas alguns exemplos, mas são numerosas as palavras, na língua portuguesa, nesta condição. Apregoar a vulnerabilidade sonora dessas vogais, na sequência da supressão ortográfica das consoantes mudas, é apenas uma antecipação de um fenómeno cuja hipótese de verificação não tem qualquer fundamento linguístico. A segunda série de palavras, nas quais as vogais se apresentam graficamente acentuadas e ainda ladeadas por consoantes mudas, constitui um caso flagrante, quanto à redundância, na validação do mesmo traço fonológico, a validação do timbre vocálico menos reduzido das vogais tónicas em causa. Se, no primeiro caso, a consoante muda já nos parece dispensável, esta consoante, sem realização fonética, será muito mais dispensável e sem consequência para uma vogal que já é tónica e que é ainda graficamente acentuada, como se verifica. Quanto à história, pensamos que a supressão ortográfica da consoante muda não irá afectar nunca a possibilidade de visualização do percurso evolutivo da palavra e muito menos a sua origem genética, conforme ficou explícito, atrás. Da história dos acordos ortográficos, buscamos uma outra ilustração dos factos linguísticos que descrevemos. Este exemplo parece ter constituído o único instante feliz da história dos acordos ortográficos, no passado. No limiar dos anos 70, decidiu-se 50 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA eliminar o acento gráfico grave, nos advérbios de modo em mente e de certos diminutivos graficamente acentuados. Até aí, os advérbios de modo em mente e certos diminutivos derivados de nomes graficamente acentuados, eram representados com um acento gráfico grave. Exemplo: agradável – agradàvelmente; amável – amàvelmente; café – cafèzinho; pé – pèzinho; só – sòzinho. Que finalidade tinha a aplicação do acento gráfico grave, nestes advérbios de modo e diminutivos? A finalidade residia justamente na necessidade de manutenção do valor fonológico das vogais que constituíam segmentos vocálicos abertos, na estrutura subjacente dos advérbios e dos nomes, em referência: em dà, na palavra agradavelmente; em mà, na palavra amavelmente; em fè, na palavra cafezinho; em pè, na palavra pèzinho. Até essa data em que era aplicado o acento gráfico grave, presumia-se, certamente, que a eliminação deste acento provocaria o enfraquecimento do timbre das vogais abertas, na estrutura subjacente. Ora, o acento gráfico foi eliminado, nesses advérbios de modo e diminutivos derivados de certos nomes a que nos referimos e até hoje, décadas depois, essas vogais, que são vogais pré-tónicas, nos derivados em que surgem, continuam abertas, na norma padrão euro-africana. Em agradavelmente, amavelmente e outras estruturas congéneres, temos até duas vogais pré-tónicas abertas: em da e em vel e em ma e vel, respectivamente; como mais uma vez se observa, nenhuma delas se apresenta ladeada de qualquer consoante muda que legitime o respectivo timbre de abertura. Não entendemos por que razão se apregoa que a queda ortográfica das consoantes mudas provocará, ipso factu, um fechamento das vogais implicadas que as 51 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA precedem, se tal enfraquecimento ainda não aconteceu, nos múltiplos casos concretos que serviram de ilustração ao presente trabalho. Outros aspectos poderão ser reveladores da incongruência decorrente da conservação das consoantes mudas. Consideremos outro grupo de palavras: reflecte reflectia reflicto reflicta Neste conjunto de palavras do mesmo paradigma, somos confrontados com palavras em que as respectivas vogais tónicas se apresentam ladeadas de uma consoante muda, uma questão que já foi abordada atrás. Mas voltemos a considerá-la neste caso específico, para terminarmos. Em reflecte/reflectia, temos a tónica em ec e em reflicto/reflicta, temos a tónica em ic. De acordo com as vozes que se opõem ao acordo, admitamos que, no primeiro caso, em ec, a consoante muda legitime a abertura da vogal tónica. No segundo caso, em ic, qual será o papel desempenhado pela consoante muda, sendo o i uma vogal +ALTA, ou seja, uma vogal fechada por natureza, não funcionando com uma segunda alternância sonora? Conclusão Se é verdade que os argumentos dos arquitectos do acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990 só podem ser entendidos numa perspectiva relativista, também se infere, pelo que ficou dito, que se torna difícil, senão impossível, conceber um acordo ortográfico inatacável e que agrade a gregos e a troianos - repare-se que se descobre aqui na sílaba tro da palavra troianos mais um segmento vocálico aberto, na norma padrão euro-africana, sem que tal propriedade fonológica seja creditada por uma consoante muda. Se o vocalismo menos reduzido tónico e até o vocalismo pré-tónico menos reduzido já existe, numa multiplicidade de casos não creditados por consoantes mudas, a tese do enfraquecimento do timbre das vogais supostamente legitimado por consoantes mudas, na sequência da queda ortográfica destas, é linguisticamente insustentável. 52 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Bibliografia CASTELEIRO, João Malaca e Pedro Dinis Correia, Actual – o novo acordo ortográfico, Texto Editores, Lisboa, 2008. MATEUS, Maria Mira et aliae, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho, Lisboa, 2003. 53 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Stability in international contracts for hydrocarbons exploration and some of the associated General Principles of Law: from myth to reality Nélia Dias Pós-Graduada em Direito da Comunicação e Direito do Pteróleo e Gás Mestre em Direito Civil The so–called stabilized contractual relationship: classical ideas and myth in contracts for petroleum exploration There are several types of contracts through which one or more parties, generally foreign and private, decide to invest in the oil and gas business. These international contracts may be: a simple traditional concession, a PSA, service (or pure) contracts, with or without risk clauses, joint ventures, lease contracts, hybrid or others. The main difference between these is the fact that, on one side, we have one or more private investors and, on the other, the state (government), a state-owned agency or a governmental company. We can foresee rights and obligations where there are rights granted by the state for the exploration, use and destination of the hydrocarbons. Also, these are contracts that, due to its nature, imply the establishment of a long-lasting legal relationship. One of “weapons” very much in use to protect the private investment from governmental and legislative changes has been the stabilization clause. Before investing, however, it is commonly accepted that the private investor proceeds to the due diligence, in order to become acquainted with the local law. When such clauses are foreseen in the state’s legal system , these dispositions are considered to be favorable in terms of attracting investment (1). They also include the economical hazards the foreign investor must bear. PETER CAMERON (2) chooses to differentiate the classical from the modern. A first notion of these clauses (3) consists in a disposition which ostensibly forbids or mentions the consequences of the revision of an existing legislation, decrees, dispatches or other unilateral revisions of the host state. These refer to the contract signed with this state or to new legislation, regulations, decrees and/or dispatches which will determine a revision in the legal relationship formerly defined between the host state and the international investor. Or, still, they essentially dictate that legislative changes that 54 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA affect a project unfavorably do not apply. Formerly, these dispositions were meant to protect the investor from political hazards (4) of a specific nature (5) and they were a way of attempting to introduce external legal sources in the contract (6). According to FIONA MARSHALL and DEBORAH MURPHY (7) these dispositions acquired a high profile resulting from their inclusion in the contract between the consortium of oil companies and the states that were involved in the polemic Baku-Tsibilisi-Ceyhan (BTC). Through this clause the host state accepts voluntarily that its legislative and administrative powers will not be able to change one-sidedly or even annul the contractual conditions agreed with the investor. However, the risk of a one-sided alteration is always present, depending heavily on the will of the governments, which may only see things in terms of compensation. With this agreement we see a strengthening of the roman adage Pacta sunt servanda (8) (agreements must be kept(9)), protecting the private investor before the sovereignty of the host state over the natural resources. These dispositions, strongly rooted in the private interest, have been expressively repudiated by some doctrines and jurisprudence, claiming that the same preclude the prevailing principle of public interest (10), without forgetting the terms of casus fortuitus or the abnormal change of circumstances. This remarkable paradigm, embedded in the Aristotelian thesis of the virtue of keeping one’s promises, must be compensated, in this seat, in terms of international law, specifically by the VCLT (Art. 26). These clauses are also meant to define that legal security is a conditio sine qua non of this type of agreements, aiming at the return of private investment (including in areas as sensitive as fiscal law, environment (11), work, import and export, property rights, among others). Although these clauses are designated as above, their content may vary according to authors and writing techniques. We can differentiate the freezing clauses, which solidify the law of the host state for the entire duration of the project. Within these clauses, ANDREA SHEMBERG cit. separates between full freezing clauses (which aim at freezing all laws for the entire duration of the project) and limited freezing clauses (which aim at protecting the investor in a more restricted frame of reference). Other authors (12) choose to speak in terms of stabilization clauses in stricto sensu or of traditional stabilization, meaning the said freezing, consistency (13) and intangibility clauses. Here we find the prohibition to alter or annul one-sidedly 55 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA contractually defined regulations, the supremacy of the contract as special law before general law (legislation), predicting and defending the contract against subsequent legislation contrary to previously agreed terms, including administrative dispatches and similar decisions, and the incorporation of a given law in the contract signed with the host state. For example, the establishment of a new royalty or of new taxes results in changes to the concession contract whenever taxes were previously agreed upon. In this case, and given the specificity of the contract, the written or tacit consent of the investor is necessary (preferentially written) (Art. 39 of the VCLT). Complementing this, the parties must adjust the form by which it is indispensible the consent of both parties in case of abrogation or modification of the contract, or to provide a non-modification, if in the present; if in the future, to prevent the one-sided non-change or extinction of the contract. The Principle of good-will or good faith precludes implicitly the faculty of unilaterally changing or extinguishing the agreement made by both parties. In both negotiations (preliminary or definitive) and the writing of the agreement, the parties must proceed with the utmost and reciprocal loyalty and trust in the intention of fulfilling the contract (subjective good faith) and according to socially accepted standards (objective good faith). In this dimension one must consider that this rule does not prevent the unilateral extinction of the contract, but it demands the payment of a just compensation in case it is extinct. If both parties choose the international law applicable to the agreement, that allows the use of arguments from the Public International Law, the structural Principles of the law and the Principle of good faith, recurring to international arbitration (14). What is the legal and functional value of these clauses? For some, they must be seen as the limits of non-alienation of state prerogatives or as self-limitation of its legislative competences. Maxime when it is the prediction that expressly prohibits nationalization or expropriation (15) of the investor’s assets. As referred by DAVID ALEXANDER and STEVEN HUNSICKER, investors are exposed to risks of expropriation by governments, namely in the form of the modern “creeping expropriations” where the financial advantages of the state are dilated or the control of the government over the investor’s assets is amplified. However, we believe here that the NOC may play a crucial role, namely in the fiscal stabilization of contracts. It is only necessary to make a readjustment by paying additional taxes from their share of the profits or in their royalty, if it is a PSA, or to reimburse IOC directly. By this we mean indirect 56 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA expropriation. According to some interpretations of the courts, in order to validate a complaint based on that ground, it is necessary that the investor relinquishes control over the operations or the value of the deal is annulled, maxime cases Sempra vs. Argentina (16), PSEG vs Turkey (17) and Eastern Sugar vs. Czech (18). According to Public International Law, no state may renounce to its prerogative of sovereignty (19), for it is through it that the state attains the prosecution of public interest. Therefore, if the investment agreement falls in the public domain or in the domain of administrative law, it must be treated in the terms of the legal framework of the host state. As ABBA KOLO and THOMAS WÄLDE wrote, that is why governments would see these agreements not as mere commercial contracts, but as genuine instruments of public policies of which their economic development depends. Note that every stabilization clause that contradicts peremptory norms of International Law (ius cogens) may not produce the legal effects intended by the investor. This parameter of sovereignty includes the power of the state over its natural resources to the point that it is considered that the right of exploration of such resources is absolutely inalienable or negotiable (20). Fiscal issues are a sensitive matter. According to SILVANA TORDO (21), we may speak of flexible, neutral and stable fiscal clauses. A supple fiscal regime allows the government to take an adequate part of the rent according to given conditions of profitability. It possesses the advantage of establishing a flexible structure and it is permanently stable. A neutral regime does not promote nor demote investment and it is considered an efficient and impartial system. A stable regime is a regime which does not vary over a given temporal cycle nor it is foreseen that it will vary. About the relevance of the latter, see LUÍS CEZAR P. QUINTANS (22). The violation of the stabilization clause: some de facto and legal consequences for the investment contract One of the legal remedies available may, especially, be the option for the mechanisms of contractual resolution of existing conflicts and will have its fundaments in private investment law (when applicable) which sometimes allow the appeal to a neutral court of arbitration. The parties involved may also choose an agreement (23), appealing to international arbitration (24). Most litigations between a state and an 57 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA investor are dealt with by ICSID, UNICITRAL or by arbitration courts ad hoc. In such a situation it may be necessary to investigate, case by case, as previous question, on the possibility of appealing to national or international arbitration court, since it is a concession, because some legal systems consider the existence of a principle of unavailability of public interest . If the contract possesses a stability disposition any measure concerning social security may be considered an expropriation (25) which must be duly compensated (Methanex Corporation vs United States of America). The host Government (26) may not invoke its prerogative of sovereignty in order to exclude matters referring to the contract under the jurisdiction of arbitration court. Here, the arbiter may determine that even though international law recognizes the right of the government to nationalize or expropriate it does not mean that the government is not obliged to honor its commitments or pay the just compensations to the private investor (27). Besides, it suffices to consider the imposition of specific fiscal obligations, previously inexistent, and that may alter the balanced economic structure existent to the date of contract execution. Here experience and practice have shown that it is preferable to allege the violation of the principle of justice and equity in arbitration court than to indirectly expropriate an investor. The introduction of such a clause in the contract will have direct consequences in court as a violation of the paradigm of just and equitable treatment in what concerns promotion of equitable foreign investment (as was the case of Siemens vs. Argentina (28), PSEG vs. Turkey (29), Enron vs. Argentina (30), MCI Power Group vs. Equador (31) and Parkerings-Compagniet AS vs. Lithuania (32). Moreover, this concept is of the highest relevance since the pre-decisions of the investor are rooted in certain commercial presuppositions, which the host state must not ignore. It is commonly known that one of the elements integrating any paradigm of justice and equity (and consequently of protection against arbitrary or discriminatory treatment) means that the host state has the exact obligation to respect the so-called legitimate expectations (33) of the investors when they actually decide to invest. But here it is necessary to define whether we stand before a mere expectation (a simple hope to eventually acquire the right), or of an acquired right which informs a non limited reality. This paradigm must act in consonance with the principle of non-discrimination in the treatment of investors, as discussed in the case Parkerings vs. Lithuania. It is worthy to note the principle of security in juridical relations and the obligatory subjection of states and individuals to the Democratic Rule-of-Law State 58 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA referred to by JORGE REINALDO VANOSSI (34). In these democratic states, behavior of government must be exemplary, included in the good governance, rooted in the ideals of transparency, protection of legitimate expectations of the investor, freedom, due process, good faith, and with a constant concern for public interest. Therefore, a new law must only be enforced in the future, according to LEON FREJDA SZKLAROWSKY (35): “(…) any legislative reform or imposition of the state must bear in consideration the fundamental guarantees and rights.” Another essential legal paradigm is the principle of public order, internal or international, as advocated by GABBA (36). All norms are grounded in criteria of public order, thus making clear that the retroactive effect is an act that generates effects contrary to the purpose of Law, which is the realization of harmony, justice and social peace. These beneficial principles cannot be realized without the corresponding stability. That is why such guarantee may be classified, as said by Count GRANIER , as the “very moral of legislation”. Therefore, we might inclusively, at least in theory, frame acquired rights as a norm of public order. However, the doctrine is not unanimous. It is important to be aware of the concept of public law as one that preserves the common good, avoiding confusions with others (which only apparently deal with public interest. If the international investment contract possesses one of the substantive paradigms (37) of International Investment Law, informed in the so-called “umbrella clauses” (38), a violation by the host state in an investment contract must be seen as a genuine breach of contract. Courts have had diverging opinions, v.g., whether a typical BIT clause, referring the observance of obligations, may transform the proven violation of contract in a pact or Treaty infraction. It seems that whenever a Host State violates the rights guaranteed by the BITs to the foreign investor it is breaching norms of customary international law as well as the obligations derived from a treaty that was signed with the state the investor is from (note that Switzerland, the Netherlands, the United Kingdom and Germany usually include such a clause in BITs, whereas France, Australia and Japan only include this disposition in a minority of contracts). These clauses are usually drafted like this: “Each party must observe any obligation it has incurred in considering the investment.” It is supposed that there are presently over 2500 BITs and of these 40% have such a prevision.(39) There is a wide margin for a certain interpretative 59 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA uncertainty, more or less comprehensive, as to what is the meaning of the phrase “any obligation”. In a given interpretation, more generous, the idea is to convert every commitment of the host state in an international obligation as if it were derived from the violation of a treaty. We adhere to this wider understanding, even though we know that this thesis presents several frailties (Eureko vs. Poland). Among other possible inclinations, this orientation allows the investor the right to bring to the table any contractual divergences with the host state in an international court of arbitration as well as in state judicial courts. The first approach of a court regarding this “umbrella” disposition had a much more restrictive view. In SGS vs. Paquistan the court ruled that interpretation in that sense was not possible, since that clause aimed at converting the obligation in a commitment similar to the one of an international treaty. The case of El Paso vs. Argentina was somewhere between the two extremes, but pending towards a narrower view of this matter. The substantially moralizing effect of the insertion of a stability clause in hydrocarbons exploration Nowadays, the idea of the importance and function of a clause of this nature is not linear. Some consider that is has no functionality in international law since it forbids any interference (arbitrary or illegal) of a Host State regarding an investment contract. Others understand that these would have a merely financial role, allowing compensations for the investor. Others still consider that they might confer some kind of secondary protection even in those situations where international law already provides some protection to the investor. We believe that beyond the edifying effect and of the contractual justice they represent their insertion is fundamental whenever certain states do not intend to honor their commitments until the end of the project even though we know that “paper accepts everything”. As far as international law goes, we know it is valid, even though the majority of problems are derived from the interpretation courts or arbiters make of it. That is because we can reference the existence of international treaties and conventions which advocate the stability of contracts. This doctrine of internationalization may aid the investor contributing with a financial solution that may remedy the expropriation, since 60 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA to repel it would be difficult and problem-ridden. Or the investor may not have a strong enough stability clause in the contract signed with the government or derived from his license. Or still the introduced clause may apply to a very restricted area, remaining limited maxime to the fiscal elements. There may also be situations where the investor needs, from time to time, of government approvals of a discretionary nature, so they can begin or expand their activity. Or the government-designed objectives may be very vague, leaving loopholes in a contract totally subject to unilateral changes by the government. Even if the investor tries to foresee every situation, the government may ignore the contractual stipulations assumed and impose whatever alteration it may see fit. In our opinion, it should be written into law in these instruments that its terms are legally binding for both parties, regardless of subsequent commitments, negotiations or extension of contracts, except if both parties, by mutual agreement, express in writing their will to change the meaning of said contracts. The future of stabilization clauses in the new hydrocarbons contracts: From classical stability to recent contractual balance How can investors minimize their risks? They can pay higher attention to the option of the applicable law. They may decide to introduce a very well-clad clause that simultaneously comprehends a provision that tolerates the renegotiation of contract and predicts the cases of force majeure or an abnormal alteration of circumstances. These are not incompatible. But private parties involved in negotiations do not usually include renegotiation (40). This hesitation may have to do with considering that they are making the contractual relationship unpredictable or increasing the costs of the transaction or, still, making the contract nonobligatory (41). Another defense of the investor is materialized in the selection of the law (42). Most agreements would choose the internal law. However, this may mean less impartiality or worse preparation of the state court to judge these litigations. If both parties choose national law then this will be the law applied, although questions referring to nationalization or compensation fall under the jurisdiction of international law, as far as the responsibility of the state go. In some developing countries it is considered that the interpretation of a concession contract is a matter of domestic law. We do not believe this is the right interpretation. Other countries invoke the already 61 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA mentioned theses of the internationalization of contracts, meaning that once a sovereign state assumes a commitment with a private investor, it cannot change unilaterally the terms of contract. Contract may be changed only with mutual consent. The parties may choose to apply only any given international law. That includes enormous difficulties since, as it is commonly known, international norms aim at regulating relationships among states. This is a prominent question, to decide which law to apply in case of conflict. In these conjunctures, the cases will commonly be resolved recurring to international arbitration. In case both parties choose to apply a law from a third state that will be the law applicable to the contract. Whatever the choice may be, and according to the advice of certain doctrine, it seems indispensible to us that the parties transpose to the contract a strong appeal to the law or to international general principles (43); if not, we may be before a case where the stabilization clause may lose all of its functionality. As far as international arbitration goes, we may find innumerous arbitral resolutions that comprehend this matter, namely Lena Goldfields, LTD, vs USSR, Sapphire International Petroleum LTD vs National Iranian Oil Company, Saudi Arabia vs. Arabian American Oil Company. The same occurred in the so called Libyan Nationalization cases, alluding to three situations where the clauses we here analyze prevailed and the nationalization carried out by the Libyan government constituted a breach in International Law. Finally, we have the case Government of Koweit vs. American Independent Oil. From another angle, it is fundamental to mention that in many conjunctures certain norms or Principles of Commercial Law do not exist. Presently, the mention of these clauses is meant to improve their legitimacy and applicability (44) in more recent investment contracts. Nowadays there is great mention of economic equilibrium clauses, economic stability clauses or economic or financial equilibrium clauses. In short, the primordial issue is that we are dealing with two laws or interests in open collision, one of law and public interest and the other of private interest. Where they disagree, we can conclude, in face of the elements here mentioned, that the public interest is manifestly predominant, even though it provides adequate and reasonable monetary compensations. We have seen that in contracts of hydrocarbon exploration that there is urgent need to appeal to international law since dispositions of stabilization may lose all their 62 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA practical functionality due to the proven present interpretive inconsistency of international courts of arbitration. Next, another angle which seems substantial has to do with the circumstance that those who negotiate and draft this type of contracts must have the greatest care in their writing, be it in preliminary drafting phase or in the final writings in order to ensure the actual utility of these dispositions. According to some authors, lessons learned by negotiators are as follow: the dispositions must always be put in the clearest of writings, saying exactly what is forbidden. And in the absence of international legislation that may standardize foreign investment (which is an aim) as well as of a court exclusively devoted to these matters, we are left with courts of arbitration which cannot offer the security that foreign investments need. We return to the age-old enigma of strength, or of its absence, in International Law. Therefore, in some international settings it is by far preferable to choose a global treaty on investment and to establish an international court of this nature that may ensure a standardized formulation, interpretation and application of the law according to the paradigms of investment protection. This problem of lack of strength of these clauses may have grown worse due to the fact that investors do not possess the same “negotiation superiority” they had in the former era of concessions. Another outcome might be the reduction of the duration of oil investment contracts. To conclude, it seems fundamental to us that both parties introduce a clause of economic equilibrium in their oil investment contracts and agree to a BIT or a MAI. It is a cautious position that frankly benefits the party. If not, we will allow new loopholes to emerge, and there will be new forms of getting round (v.g. indirect expropriation) or to “soften” the juridical effects that were intended with the introduction of a stabilization clause in contracts and the latter loses all reason of existence. Or else we could easily be tempted to say that these clauses have no actual function at all. Which we don’t agree. Luanda, 9th July 2010 NOTES (1) SHEMBERG, ANDREA, Stabilization Clauses and Human Rights, International Finance Corporation World Bank Group, UN, 27-05-2009, pages viii and 10-11. 63 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (2) Cameron mentions that relevant jurisprudence in the application of stability clauses may be divided into two categories. (3) MANIRUZZAMAN, A. F M. Stabilization in investment contracts and change of rules in host countries: Tools for Oil and Gas Investors, London, on 26.02.2007. (4) COALE, MARGARITA T.B., Stabilization clauses in international petroleum transactions, EMEKA J.’WOKORO, Anchoring Stabilization Clauses in International Petroleum Contracts, 2009, accessible in http://works.bepress.com/emeka_wokoro/1/. PAUL E. COMEAUX e N. STEPFAN KINSELLA, Reducing Political Risk in Developing Countries: Bilateral Investment Treaties, Stabilization Clauses, and MIGA &OPIC Investment Insurance, New York Law School Journal of International and Comparative law, 1994. BRUNO LEONI, Freedom and the Law, 3rd amplified edition, Indianapolis, Liberty Fund, 1991. (5) BLAKE, CASSELS AND GRAYDON LLP, Addressing risk in international Petroleum agreements, 07.01.2006, http://blakes.com/english/view_printer_bulletin.asp?ID=110 (6) PATE, THOMAS J, Evaluating Stabilization Clauses in Venezuela’s Strategic Association Agreements for Heavy- Crude Extraction in the Orinoco Belt: the Return of a Forgotten Contractual Risk Reduction Mechanism for the Petroleum Industry. (7) MARSHALL, FIONA e DEBORAH MURPHY, Climate Change and International Investment Agreements: Obstacles or Opportunities- Draft for discussion, published by the International Institute for Sustainable Development, 2009, pages 34 and 35. (8) YANNACA-SMALL, KATIA, Interpretation of the Umbrella Clause in Investment Agreements, OECD, Working papers on international investment, number 2006/03, October 2006. (9) RODRIGUES, SÍLVIO, Notes taken from the class of Post-Graduation and Gas on 21.04.2009, Faculdade de Direito Agostinho Neto, Luanda and Art. 1.3 of the UNIDROIT convention. (10) Different from a petroleum contract of 1999 in Azerbaijan. 64 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (11) VERHOOSEL, GAETAN, Foreign Direct Investment and Legal Constraints on Domestic Environmental Policies; Striking a “Reasonable” Balance Between Stability and Change, article published in Law and Policy in International Business, Vol. 29, 1998, (12) CAMERON, PETER, Stabilization in Investment Contracts and changes of Rules in host countries: Tools for Oil and Gas investors, cit., page 7. (13) NWKOLO, AMAECHI, Is there a legal and functional value for the stabilization clause in international petroleum agreements, http://www.dundee.ac.uk/cepmlp/car/html/car8_article27.pdf. (14) ASMUS, DAVID, JAY ALEXANDER and STEVE HUNSICKER, The Developed and Developing World – a look at legal issues facing the industry, Oil and Gas Financial Journal, July, 2006, page 41. (15) JOFFE, GEORGE, PAUL STEVENS, TONY GEORGE, JONATAN LUX and CAROL SEARLE, Expropriation of oil and Gas Investments: Historical, Legal and Economic Perspectives in a New Age of Resource Nationalism, The Journal of World Energy Law and Business, 2, number 1, pages 3-23. (16) ICSID, nº ARB/02/16 (Argentina- USs BIT), Award, 28.09.2007. (17) ICSID, nº ARB/02/05, Award, 19.01.2007. (18) Case nº 088/2004 (Czech Republic-Norway BIT), Final Award, 12.04.2007. (19) CAMERON, PETER D., Property Rights and Sovereign Rights: The case of North Sea Oil, Academic Press, 1983. (20) KOLO, ABBA and THOMAS WALDE, Renegotiation and Contract Adaptation in International Investments Projects- Applicable Legal Principle and Industry Practices, Journal of World Investment, Volume 1, July 2000, Number 1. (21) A. DAES, ERICA IRENE, in the National Native Title Conference, in Adelaide, on 03.06.2004, http://www.hreoc.gov.au/about/media/speeches/social_justice/natual_resources.html ALFREDO RUY BARBOSA, A natureza jurídica da concessão para a exploração de petróleo e gás natural, Temas de Direito do Petróleo e do Gás Natural II, organized by PAULO VALOIS PIRES, Lúmen Juris Publisher, Rio de Janeiro, 2005, pages 1-23. (22) TORDO, SILVANA, Fiscal Systems for Hydrocarbons – Design issues, World Bank Working Paper, no. 123, cit., pages 14-15. 65 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (23) QUINTANS, LUÍS CEZAR P., A cláusula de estabilidade tributária nos contratos publico-privados, Jus Navigandi, Teresina, Year 9, no. 561. (24) SCHEUER, CHRISTOPH, Consent to Arbitration, TDM, 2, Nº. 5, November 2005. (25) ORTINO, FREDERICO, Latest developments in investor- state dispute, IIA Monitor n° 1 (2008) International Investment Agreements, United Nations Conference on Trade and Development, Geneva, TODD WEILER, International Investment Law and arbitration, Leading cases from ICSID, NAFTA, Bilateral Treaties and Customary International Law, Cameron May Ltd. International Law and Policy, 2005, England. (26). SCHEUER, CHRISTOPH H, The concept of expropriation under the ECT and other Investment Protection Treaties, TDM, 2, No.5, November 2005, pages 105169. (27) YANNACA-SMALL, CATHERINE, Indirect Expropriation and the Right to Regulate in international Investment Law, OECD, Working Papers on international investment, No. 2004/4, September 2004, pages 3-4. (28) PRYLES, MICHAEL, Lost Profit and Capital Investments, 2008, page 1, http://www.arbitration-icca.org/articles.html?author=Michael_Pryles&sort=author, ROBERT J. INCOLLINGO, Liability: Where does is come from and where does it end?, http://www.irinfo.org/articles/article_2_2004_incolingo.html. (29) ICSID no. ARB/03/28 (Argentina Germany BIT), Award, 6.02.2007. (30) ICSID no. ARB/02/5, Award, 19.01.2007. (31) ICSID no. ARB/01/3 (Argentina- United States BIT), Award, 22.05.2007. 66 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (32) M.C.I. Power Group L.C. and New Turbine, Inc vs. Equador, ISCID Case no. ARB/03/6 (Equador – United States BIT), Award, 31.07. (33) ICSID no. ARB/05/08 (Lithuania Norway BIT), Award, 11.09.2007. (34) GABBA, CARLO FRANCESCO, Teoria della retroattività delle leggi, I, 3rd edition, Torino 1891-99, page 19, TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O direito adquirido e a republicização do Estado, Multidisciplinary study, Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, São Paulo, no. 10, page 68, 2000 in http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109 (35) quoted by CHARLLES ROCHA, Direito adquirido e estabilidade, November 1995, libertas, informative agency of UFPI, 1, no.1, 01.11.1996 in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp/id=378. (36) SZKLAROWSKY, LEON FREJDA, Irretroatividade da lei, Jus navigandi, Teresina, 7, no. 66, June 2003, in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4190 (37) GRANIER( 1815) quoted by TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O direito adquirido e a republicização do Estado, cit.., page 68, 2000 in http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109. (38) DOLZER, RUDOLF and CHRISTOPH SCREUER, Principles of International Investment Law, February 2008, Oxford University Press. (39) MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of Investment-State Tribunals: Lessons for Treaty Negotiators, Issues in International Investment Law, Background Papers for the Developing Country Investment Negotiators’ Forum, Singapore, 1st and 2nd October 2007, THOMAS WÄLDE, The umbrella clause in investment arbitration- A comment on original intentions and recent cases, The Journal of world Investment and Trade, 6, no. 2, April 2005, Geneva and A.C. SINCLAIR, The origins of the umbrella Clause in the International Law Investment Protection”, Arbitration International 2004, Volume 20, 4, pages 411-434. 67 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (40) GILL, GEARING e BIRT, Contractual Claims and Bilateral Investment treaties: A comparative Review of the SGS Cases (20040 21:5 J. Int Arb. 307), corroborated by MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of InvestmentState Tribunals: Lessons for Treaty Negotiators, cit., especially page 6 (vide comments on pages 8-11) in <http://www.iisd.org/investment/capacity/dci_forum_2007.asp>. (41) BROWN, ROLAND, Contract stability in international petroleum operations, The CTC Reporter, Number 29, Spring 1990, page 57. (42) YUKIO GOTANDA, JONH, Renegotiation and adaptation clauses in Investment Contracts, revisited, Vanderbilt Journal of Transnational Law, Volume 36, 2003, pages 1461-1473. (43) MANIRUZZAMAN, A.F.M., State Contracts in Contemporary International Law: Monist versus Dualist Controversies, European Journal of International Law, volume 12, number 2, 2001, pages 309-328. (44) P. SUBEDI, SURYA, International Investment Law: Reconciling Policy and Principle, Hart Publishing Ltd, Oxford and Portland, 2008. 68 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Análise de correlação versus regressão linear? Uma lição básica para jovens investigadores das Ciências Sociais João E. Van Dunem Professor na Universidade Católica de Angola Introdução O título do artigo que o leitor tem em mãos é sugestivo quanto ao seu teor e público-alvo. Tomando como ponto de partida a aprendizagem das técnicas empregues em toda a parte para quantificar a força da relação entre fenómenos socioeconómicos, aos olhos de qualquer jovem investigador das ciências sociais pode afigurar-se tentador questionar se a opção pela análise de correlação torna a regressão linear inútil ou viceversa. Ao fim ao cabo, merecem estes dois instrumentos que os métodos estatísticos proporcionam ao tratamento da informação ser tratados como instrumentos alternativos? Este ensaio ambiciona pois, entre outras coisas, oferecer ao leitor uma resposta convincente a esta interrogação. Iremos deixar bem patente que a resposta favorece um não: quer isso dizer que não devemos subestimar nem um nem outro método de análise. Antes pelo contrário, é essencial encarar ambos os métodos como instrumentos de análise indissociáveis, que se entrosam numa lógica de complementaridade. Ora, é justamente isso que procuraremos pôr aqui em prática, com uma lição sobre como fazer o estudo formal do grau de associação entre duas variáveis pertencentes à esfera das ciências sociais. Na perspectiva do leitor, esta lição tem a vantagem de ser breve e de fácil abordagem. Iremos passar em revista alguns conceitos chave como a co-variância da amostra e o coeficiente de correlação, demonstrar de que forma os dois conceitos estão relacionados entre si e, finalmente, introduzir aquilo que em métodos estatísticos é conhecido como o método de regressão linear. Trata-se de uma abordagem que será realizada em três etapas e em que o exemplo escolhido é hipotético, apresentando dados meramente fictícios sobre as vendas de um certo produto alvo e seus respectivos anúncios televisivos na véspera. Talvez seja oportuno insistir que qualquer investigador sério e empenhado que se dedique ao estudo de problemas relacionados com as ciências sociais tem a obrigação de estar familiarizado com estes conceitos. 1. Etapa nº 1: A Co-variância e o Coeficiente de Correlação Podem ser variadas as situações, no âmbito das ciências sociais, em que um investigador ou analista procura apurar o grau de associação entre duas variáveis. Importa pois frisar que, em tais casos, a análise de correlação pode ser um instrumento de enorme utilidade. O ponto fundamental que devemos reter no que toca a este método de análise é que não permite aferir nada sobre causalidade (ou seja, estabelecer o sentido da relação de causa e efeito), e deste modo, apenas proporciona ao analista um esclarecimento sobre a força da relação entre duas variáveis. Além disso, é preciso não 69 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA desprezar o facto da análise de correlação só ser eficaz no contexto de relações lineares, não sendo portanto apropriada para detectar relações entre variáveis cuja natureza não seja do tipo linear. Concentremo-nos, em primeira instância, na co-variância, uma das duas noções usadas por excelência em análise de correlação. A fórmula para a co-variância da amostra é dada pela seguinte expressão: (A) Nota: A fórmula para a co-variância da população (de tamanho N) é a seguinte: (B) Nas fórmulas para (A) e (B) apresentadas acima, note-se que cada observação X tem como par uma observação Y correspondente. A soma dos produtos dos desvios de X e Y em relação às médias respectivas é, assim, dividida por N ou n - 1, consoante estejamos a lidar com uma população ou amostra. De forma a facilitar um melhor entendimento sobre a aplicação destes conceitos estatísticos, prestemos atenção a um exemplo concreto. Assume-se que a variável X indica o número de spots comerciais que vão para o ar num canal de Televisão numa sexta-feira à noite. Y representa as vendas (em milhares de Kwanzas) do produto alvo no dia seguinte, ou seja, Sábado. Tabela 1. Cálculos para o valor da co-variância da amostra ( 2 5 1 3 4 1 5 24 28 22 26 25 24 26 ∑ = 21 ∑ = 175 -1 2 -2 0 1 -2 2 4 25 1 9 16 1 25 ∑=0 ∑ = 81 -1 3 -3 1 0 -1 1 ∑=0 48 140 22 78 100 24 130 ∑ = 542 A partir deste exemplo, utilizando os dados da tabela 1, )( 1 6 6 0 0 2 2 ) ∑ = 17 e . Usando (A), obtemos então: = O termo da co-variância aparentemente indica uma relação positiva e forte entre os anúncios comerciais e as vendas. Nesta fase, convém contudo acolher este resultado com alguma prudência. A magnitude do termo da co-variância pode facilmente induzir em erro visto que o seu valor é influenciado pelas unidades de medida escolhidas. Por 70 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA exemplo, se a variável X é medida em termos do número de anúncios e a variável Y medida em termos de centenas de Kwanzas, a medida da co-variância será sensível a estas novas unidades. De facto, é possível constatar que quanto mais pequenas forem as unidades, maior será o valor da co-variância quando objectivamente não existe nenhuma diferença na relação subjacente. É inevitável, portanto, reconhecer que este termo da co-variância não é robusto a variações nas unidades de medida e por isso necessita de ser corrigido ou, como é hábito dizer-se na gíria mais técnica, “estandardizado”. Para tal, faz-se apelo ao conceito do coeficiente de correlação de Pearson, definido para dados numa amostra pela fórmula seguinte: (C) onde = coeficiente de correlação da amostra, desvio-padrão de X na amostra, = co-variância da amostra, = = desvio-padrão de Y na amostra. Aviso: O coeficiente de correlação de Pearson para dados de uma população de tamanho N é dado pela expressão: onde = coeficiente de correlação da população, = desvio-padrão de X na população, = co-variância da população, = desvio-padrão de Y na população. (C) é geralmente referido como o coeficiente de correlação de Pearson da amostra. Este instrumento estatístico é calculado dividindo a co-variância da amostra pelo produto do desvio-padrão de X e do desvio-padrão de Y. É possível usar os dados da tabela 1 para efectuar o cálculo do coeficiente de correlação. O desvio-padrão de X e o desvio-padrão de Y vão ser dados pelas expressões: = = 1.7321 = = 1.9149 O coeficiente de correlação de Pearson pode, finalmente, ser calculado com a seguinte fórmula: = = 0.854 O coeficiente de correlação pode situar-se entre -1 e +1. Um coeficiente de correlação de uma amostra precisamente igual a +1, implica que todos os pontos de um conjunto de dados localizam-se numa recta com declive positivo. No caso do coeficiente de correlação ser exactamente igual a -1, todos os pontos localizam-se numa 71 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA recta de declive negativo. Neste caso específico, o valor estimado para o coeficiente de correlação de 0.854 sugere uma relação muito forte, positiva e linear entre os anúncios de televisão à Sexta e as vendas ao Sábado. O coeficiente de correlação é seguramente um indicador estatístico que suscita interesse já que pode ser usado para estudar inter-relações lineares entre variáveis embora, em última análise, não deixe de ser um instrumento quantitativo questionável em alguns aspectos do estudo das variáveis em questão. Primeiro, não existe possibilidade de se retirar conclusões quanto à causalidade (qual das variáveis exerce influencia sobre a outra?); segundo, a sua aplicabilidade está reservada para relações cuja forma é estritamente linear, não podendo assim servir para detectar relações não lineares; terceiro, a possibilidade para se testar outras hipóteses sobre o coeficiente de correlação para além deste ser igual a 0 é bastante limitada. 2. Etapa nº 2: Análise de Regressão Simples A etapa anterior, a análise de correlação, permite pôr em prática um método estatístico com o qual é possível conhecer o grau de associação linear entre duas variáveis. Ora, a análise de regressão pretende ser mais ambiciosa, indo mais longe e procurando determinar a relação funcional (natureza e forma), entre duas (ou eventualmente mais) variáveis. A análise de regressão baseia-se na formulação de um modelo matemático que supostamente permitiria representar o comportamento do fenómeno sob estudo. O modelo de regressão mais básico é o modelo de regressão simples que é um modelo de regressão linear com duas variáveis: uma das variáveis é prevista através do uso de uma outra e será necessário recorrer à teoria para determinar a direcção da causalidade, um requisito que não era necessário quando estudámos a análise de correlação. A variável que é prevista tem o nome de variável dependente ou variável explicada e é convencionalmente designada por Y. A outra variável, por costume designada por X, é conhecida como variável independente ou variável explicativa. O método de regressão simples baseia-se na escolha da recta que melhor se adequa linearmente aos dados. Para exemplificar o uso da análise de regressão, vamos agora utilizar os mesmos dados da tabela 1. A equação para uma recta é dada pela expressão seguinte: Y= mX+c onde m é o declive da recta e c é a intercepção da recta. Consideremos no diagrama de dispersão abaixo os dados sobre anúncios de TV (X) e as vendas correspondentes (Y). A relação positiva entre as duas variáveis é bem patente. O objectivo da análise de regressão linear é, no fundo, descobrir a recta que melhor descreve os dados observados. 72 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Os modelos matemáticos podem ser determinísticos ou probabilísticos. Desde logo, convém prestar aqui um esclarecimento relativamente a estes dois termos. Os modelos determinísticos visam produzir um resultado exacto para um determinado input. O modelo probabilístico, ao invés, consiste numa equação, recuperando de novo o nosso exemplo, que procurará relacionar as vendas ao Sábado com a publicidade à 6ª feira e que não irá produzir uma previsão exacta das vendas ao Sábado. Isto acontece mercê da existência de outros factores importantes envolvidos na explicação das vendas, contudo negligenciados pela relação matemática. Desta forma, o modelo probabilístico irá certamente gerar previsões com uma componente de erro. O modelo probabilístico de regressão para uma determinada população pode exprimir-se da seguinte forma: A componente representa a parte determinística do modelo probabilístico enquanto a componente representa a parte aleatória do modelo. A verdade, porém, é que a análise de regressão usa tipicamente dados de uma amostra e não de uma população o que leva a que α e β não sejam facilmente alcançáveis e devam ser estimados a partir das estatísticas e , estas sim resultantes da amostra. Sendo assim, podemos re-escrever: 73 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Em análise de regressão, assume-se um número importante de pressupostos sobre o termo , termo incluído na recta de regressão da população. São eles: a) (o valor esperado de é igual a 0, logo a média é 0) b) (o valor esperado de ao quadrado é uma constante) c) onde ≠ (a co-variância entre é igual a 0; isto é, as componentes residuais na regressão da população são totalmente independentes, temporalmente ou espacialmente) d) (as componentes residuais na regressão da população têm uma distribuição normal com média de 0 e variância constante; este pressuposto está conforme os 2 primeiros pressupostos mas com a introdução explicita do pressuposto da normalidade) Não faz parte dos objectivos do artigo explorar estes pressupostos. Contudo, convém lembrar que se os distúrbios violarem qualquer um destes pressupostos, as consequências para os valores estimados do modelo de regressão poderão ser prejudiciais. Por exemplo, se o pressuposto de normalidade for violado, poderá ser um sinal da existência de valores extremos (“outliers”), o que por si exige uma investigação mais aprofundada. Voltemos agora ao assunto da estimação. Os valores para e podem ser obtidos com o método dos mínimos quadrados. A recta “ajustada”, representada pela intercepção e pelo declive é a recta que minimiza a soma dos erros ao quadrado. Um erro em análise de regressão é o desvio vertical do valor observado de Y em relação ao valor de Y estimado pela intercepção e pelo desvio . Uma vez que os erros, os desvios entre os valores observados e os valores ajustados podem ser positivos ou negativos, vamos elevá-los ao quadrado para assegurar que estes não se cancelam entre si. O valor Y estimado pela recta de regressão, ou seja, pela intercepção ɑ e pelo declive b vai ser dado por: Os valores previstos de Y são previstos através da recta de regressão. O resíduo ou erro é simplesmente a diferença entre o valor de Y e o valor previsto de Y e pode ser definido pela expressão . Chegamos finalmente à soma dos erros ao quadrado, definida por: pois 74 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Há vários métodos para estimar os coeficientes da recta de regressão e . Um deles, bastante divulgado devido às suas propriedades, consiste em minimizar a soma dos erros ao quadrado (SEQ). Como devemos proceder? É simples, basta usar a diferenciação parcial da SEQ com respeito a e . Para maior simplicidade, vamos suprimir nas derivações seguintes os subscritos . A. Escrever a derivativa parcial de SEQ com respeito a e e igualá-la a 0. (condição de primeira ordem) (condição de primeira ordem) Estas duas equações constituem em conjunto aquilo que em métodos quantitativos se conhece por condições de primeira ordem. Como temos 2 equações e 2 incógnitas ( e estas equações podem ser solucionadas! B. Vejamos de seguida a primeira equação. Se multiplicarmos por –( ) obtemos: =0 sendo que Procurando uma expressão para C. Temos deste modo uma expressão para a intercepção da recta Olhemos agora para a segunda equação. Multipliquemos então a equação por –( ): Expandindo, obtemos: Substituindo a expressão encontrada para na equação: Multiplicando por -1 e rearranjando a equação, temos: Estamos agora mais perto de encontrar uma solução para : 75 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA É possível demonstrar que E também que: Deste modo, uma alternativa à fórmula anteriormente encontrada para o declive da recta é: Embora esta nova fórmula seja sem dúvida alguma mais compacta, a fórmula anterior é mais fácil para efeitos de implementação do cálculo. Se aproveitarmos os dados reportados na tabela 1, podemos facilmente encontrar valores para estimar o declive e a intercepção da recta. Se o leitor reparar com atenção, há duas colunas que não foram utilizadas em cálculos anteriores e que contribuem para calcular o coeficiente . Sendo assim: Naturalmente, agora é mais fácil encontrar o valor para a intercepção : Em suma, a estimativa para a intercepção com a aplicação do método dos mínimos quadrados é igual a 22.18 e a estimativa para o coeficiente do declive da recta é 0.94. Como interpretar estes coeficientes? A interpretação para é simples: é o nível autónomo de vendas que ocorrem mesmo sem publicidade televisiva. No caso da interpretação para o outro coeficiente, indica o efeito de um anúncio extra no volume das vendas. Assim, um aumento à 6ª feira para mais um anúncio aumenta o volume de vendas em 0.94 Kwanzas × 1000, ou seja, 940 Kwanzas. 3. Etapa nº3: O Coeficiente de Determinação (R²) Ninguém pode negar que o método dos quadrados mínimos possibilita uma aproximação linear à relação entre as variáveis X e Y, como se viu através do exemplo utilizado neste artigo. Mas a grande questão que se coloca diante de nós neste momento e que vai merecer tratamento nesta terceira etapa consiste em saber até que ponto esta aproximação poderá ser considerada boa. Já definimos SEQ no ponto anterior. 76 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A esta quantidade mensurável dá-se muitas vezes a denominação de componente inexplicada. Além do mais, é possível aproveitar a nuvem de pontos e medir uma outra quantidade, a soma total dos quadrados (ou, em alternativa, soma do quadrado dos desvios totais), adiante designada por SQT, em que a preocupação doravante seria apenas quantificar a soma das distâncias entre as observações de Y e o valor da média de Y (e não Y previsto pela regressão), previamente elevadas ao quadrado. O leitor atento terá presumivelmente dado conta que esta medida, divida pelo número de observações, resultará no cálculo da variância: Finalmente, a partir da nuvem de pontos, podemos chegar a uma medida idêntica que permita quantificar a parte da variação de Y em relação à média de Y que pode ser explicada pela variável X. A esta medida, que podemos considerar a componente explicada pela regressão, chamaremos de variação explicada de Y (VEY). Assim fazendo, é possível apresentar uma particularidade na relação entre as três quantidades, SEQ, SQT e VEY: SQT = VEY + SEQ Sem grande dificuldade, pode-se calcular então as previsões para as sete observações do nosso exemplo (usando a recta de regressão), medir a diferença entre os valores actuais e previstos pela recta de regressão e, por fim, estimar o valor de SEQ. A tabela seguinte reúne resumidamente os cálculos efectuados. 77 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Tabela 2. Os cálculos de SEQ e SQT X Y Previsão de Y Y – Previsão de Y (Y – Previsão de Y)² 2 24 24.06 -0.06 0.0036 1 5 28 26.88 1.12 1.2544 9 1 22 23.12 -1.12 1.2544 9 3 26 25.00 1.00 1.0000 1 4 25 25.94 -0.94 0.8836 0 1 24 23.12 0.88 0.7744 1 5 26 26.88 -0.88 0.7744 1 Σ = 21 Σ = 175 Σ = 5.976 Σ = 22 A partir dos resultados apresentados na tabela acima, SEQ é igual a 5.976, SQT é igual a 22 e VEY (22 – 5.976) é igual a 16.024. Verifica-se, pois, que estamos agora numa posição privilegiada para avaliar a qualidade do ajustamento da recta de regressão. O coeficiente de determinação (R²), definido como a proporção da variação de Y que pode ser atribuída à variação da variável X, é precisamente a medida principal para esclarecer este tipo de questões. No caso do coeficiente de determinação atingir um valor elevado, não só a qualidade do ajustamento será boa como também a proporção da variação de Y explicada pela variável X será significativa. O coeficiente de determinação é definido pela expressão: Em jeito de balanço, pode-se concluir que cerca de 73% da variação nas vendas pode ser explicada pela variação em publicidade. Mais curioso ainda: é possível demonstrar que o coeficiente de correlação calculado na primeira etapa, quando elevado ao quadrado, é aproximadamente idêntico ao valor estimado para o coeficiente de determinação. O valor do coeficiente de correlação encontrado é igual a 0.854 e depois de o elevarmos ao quadrado é igual a 0.729. Diante da evidência aparente de uma relação causal entre vendas e publicidade, deve-se no entanto acautelar o leitor contra a grave tentação de se falar em causalidade em contextos em que o método de análise 78 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA posto à disposição do investigador circunscreve-se àquele que foi apresentado na primeira etapa do presente artigo. 4. Observação final Este ensaio tem uma simples finalidade: sintetizar alguns princípios básicos para uma abordagem quantitativa do grau de relação entre dois fenómenos, sejam eles de natureza social ou económica. Fazendo recurso a uma linguagem acessível, o ensaio é concebido para corresponder eficazmente às necessidades das novas gerações de estudantes angolanos das ciências sociais e humanas, prestes a vir a desempenhar funções de alta responsabilidade enquanto economistas, gestores ou investigadores em Angola. Devemos sempre encarar os factos como eles se apresentam. Para alcançar a verdade dos factos, é preciso analisá-los com método e rigor científico, sem qualquer tipo de rodeios ou tendenciosidade: tudo se joga no reconhecimento da importância de dispormos de instrumentos práticos como aqueles que aqui vimos que, em última análise, possam permitir uma tomada de consciência da realidade em que vivemos. Referências R L Thomas – Modern Econometrics (Addison Wesley) Jack Johnston, John Din Nardo – Econometric Methods (McGraw Hill) 79 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA DA IMPORTÂNCIA DA UTILIZAÇÃO DE CULTIVARES DE QUALIDADE E DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA J.M. Peres do Amaral Eng.º Agrónomo I. DO PESO DAS BOAS CULTIVARES NA PRODUÇÃO AGRÍCOLA A produção agrícola compensadora é condicionada por determinados princípios que não actuam isolados, mas de modo interdependente, que se conjugam numa lei dita dos factores limitantes. Segundo esta lei, o mais baixo nível de um factor impede o efeito positivo de todos os demais, ainda que estes abundem. Em escritos anteriores discorremos sobre dois factores fundamentais no condicionamento da produção e da produtividade agrícola: a fertilidade do solo e as disponibilidades hídricas. No presente artigo trataremos de uma terceira questão básica para o aumento da produção e melhoria dos rendimentos unitários, e que é, também ela, um factor restritivo do desenvolvimento agrícola: a qualidade das sementes e propágulos usados no cultivo. O reconhecimento do peso das boas cultivares na produção agrícola vem de longe. Em 1600, Oliver de Serres já afirmava que “a escolha de boas sementes é um dos factores mais importantes para a produção de cereais, porque colheita mais que miserável se pode esperar de sementes de má qualidade”. As exigências que se põem relativamente à qualidade das cultivares utilizadas na cultura colocam-se, no geral, no quadro dos seguintes quesitos: i) Produtividade, traduzida na aptidão para proporcionar um rendimento elevado, quando colocada em meio conveniente e lhe são dispensadas as melhores técnicas culturais. ii) Regularidade de rendimento, aplicada à capacidade de atenuação das oscilações nas condições do meio, e que confere uma certa aptidão de adaptação da cultivar à relação clima x solo, ao meio biológico e às técnicas culturais. iii) Qualidade do produto, referida esta característica, actualmente e cada vez mais, ao meio biológico e às técnicas culturais. Cada cultivar é, portanto, caracterizada pela sua produtividade, pela expressão da sua adaptabilidade, e pela qualidade da produção que fornece. A cultivar ideal não existe, porque impossível reunir num só individuo os inúmeros atributos atrás compendiados. Não sendo possível dispor de uma cultivar muito produtiva, fornecedora de um produto de grande qualidade e, simultaneamente, 80 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA resistente às adversidades do meio e a todos os inimigos, a melhor cultivar será a que proporciona o melhor rendimento médio de um produto de qualidade. A observação da produtividade actual das principais culturas praticadas no País leva à conclusão que todas, tanto alimentares como comerciais, apresentam índices muito baixos, relativamente ao que se verifica noutros países africanos, alguns com condições naturais menos favoráveis. Entre os principais factores que limitam as produções dessas culturas, para além da problemática da fertilização dos solos e nutrição das plantas e da disponibilidade de água, coloca-se sem dúvida, a questão da utilização de sementes e propágulos de qualidade, certificados, problema, em geral, com maior incidência nos cereais (milho, massango, massambala, arroz, trigo), hortofrutícolas, batata, mandioca e algodão. II. DOS PROCESSOS DE MELHORAMENTO DE PLANTAS O homem sempre perseguiu o objectivo da obtenção de plantas de qualidade, tendo em vista a utilização de cultivares adaptadas aos diferentes sistemas agrícolas, com maiores e melhores produções e com menos custos. O emprego de cultivares importadas – diferentes das existentes em determinada região – por razões de volume da produção, da geração de bens de qualidade, ou de resistência a pragas e doenças locais, é frequente e tão assíduo que não há, praticamente, país algum que não lance mão desse recurso. Isto pode considerar-se, já por si, como uma prática de melhoramento. Mas pese embora a existência de uma extensa bibliografia descrevendo inúmeras experiências com cultivares exóticas, levadas a cabo em diversas partes do globo, que permite inferências sobre espécies e variedades a eleger, a opção final a favor desta ou daquela tem que apoiar-se em resultados de uma experimentação “in loco”, o que, como é evidente, impõe uma série de averiguações de ordem agronómica e carrega diversas contingências. Outra forma de incrementar o emprego de melhores cultivares, também já muito generalizada, é a do recurso a material local geneticamente melhorado, que se revela mais eficiente e capaz de tirar maior proveito das condições e factores de produção disponíveis. O melhoramento genético utiliza a biotecnologia, campo de actividade em que diversas áreas científicas e tecnológicas se interligam para conseguir, por exemplo, o aumento da produtividade, a melhoria da qualidade, o maior tempo de conservação dos produtos, a resistência às pragas, doenças e infestantes. A técnica tradicional do melhoramento genético recorre à hibridação compreendendo o cruzamento entre entidades genéticas diferentes, tais como: espécies, variedades, proveniências e linhas seleccionadas. Trata-se de um procedimento moroso, nem sempre permitindo uma previsão do produto final e que não garante que as características de interesse se revelem integralmente da forma desejada. Uma intervenção relativamente recente da biotecnologia na agricultura consiste na produção de plantas geneticamente modificadas (variedades geneticamente modificadas – V.G.M.). A informação genética nestas V.G.M. resulta de alterações de uma forma que não ocorre na natureza por meio de recombinação natural. Através da manipulação do ácido desoxirribonucleico (DNA) introduz-se um fragmento genómico de interesse num hospedeiro adequado, tornando possível combinar sequências de DNA de animais e plantas ou destes com microorganismos. 81 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA O desenvolvimento de culturas geneticamente modificadas operou-se com alguma rapidez, mas assiste-se, ultimamente, a uma certa oposição social, que clama pela adopção do princípio da precaução em virtude de dúvidas que se põem quer no que respeita à preservação da natureza e meio ambiente como no que se refere à saúde. III. DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA O melhoramento de plantas em Angola teve início, praticamente, nos séculos XV / XVI, dinamizado pelos religiosos empenhados no estabelecimento de Missões e pelos colonos que, tentados pela actividade agrícola, trouxeram e mandaram vir da sua terra sementes e estacas. Desde cereais às fruteiras e hortícolas, passando pelas oleaginosas, plantas forrageiras e produtoras de fibra, missionários e colonos experimentaram o cultivo de formas que lhes eram familiares. O estabelecimento de explorações agrícolas de maior ou de menor dimensão levou ao aumento das importações de sementes e propágulos, muitas vezes induzido pelo insucesso de algumas formas lançadas no cultivo. Da Europa, da América do Norte e do Sul, da Ásia, vieram sementes e propágulos de inúmeras cultivares para Angola, e, assim, ainda que empiricamente, se contribuiu, sem dúvida, para o melhoramento. Mas o recurso a forma importadas, se bem que processo cómodo e, de certo modo, económico, nunca se mostrou capaz de contornar o inconveniente, de ocorrência frequente, de resultados muito falíveis. Na verdade, não é de todo expectável que sementes e propágulos importados mostrem plasticidade bastante para uma inteira adaptação a condições diferentes daquelas em que e para que foram criados ou produzidos. Foi essa conclusão que acabou por conduzir à decisão do desenvolvimento de projectos locais de melhoramento de plantas e reprodução de sementes para a agricultura angolana. A primeira tentativa estruturada de melhoramento de plantas no território foi realizada por volta de 1920, pelo Engº Seromenho Romão, na intenção de resolver a problemática do “trigo das chuvas”, que consistia no facto das searas desenvolvidas durante a quadra pluviosa serem frequentemente devastadas por violentas epidemias de ferrugem. Mas foi nos anos 30, porém, que o melhoramento e reprodução de sementes e plantas registou progressos palpáveis, graças ao desenvolvimento de um trabalho persistente e com carácter de continuidade, modelado por determinações estabelecidas em regulamentos. No quadro das Bases Orgânicas dos Serviços de Agricultura da Colónia, fixadas em 1927, foi aprovado, em 1934, o “Regulamento das Estações de Melhoramento e Reprodução de Sementes e Fruteiras dos Planaltos de Angola”, que visava, fundamentalmente, a produção em larga escala “de sementes seleccionadas, de enxertos, plantas enxertadas e de cavalos frutícolas e de plantas de café arábica”, para distribuição gratuita aos agricultores. A este objectivo aliava-se o da melhoria e multiplicação de diversas plantas consideradas de interesse agrícola, tais como, as forrageiras, as de sombra e abrigo, as fibrosas, as oleaginosas e as destinadas a siderações. Para além dos objectivos referidos, pretendia-se que as Estações abrigassem Escolas Práticas destinadas à preparação de capatazes e monitores agrícolas indígenas, e que servissem de modelo a núcleos de colonização europeia a instalar em redor. Ao abrigo do Regulamento citado foram criadas as Estações de Sementes do Cuíma (no planalto do Huambo), de Malanje e da Huíla (Humpata). Simultaneamente, e 82 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA com vista ao alcance dos objectivos expressos, beneficiaram-se as Estações Experimentais do Algodão (Catete) e do Café (Cazengo), já existentes. Em 1936, em termos de material melhorado, e gratuitamente, a Estação do Cuíma distribuiu cerca de 26 toneladas de sementes, a de Malanje 45 toneladas de sementes e, aproximadamente, 9.000 plantas, e a da Huíla 1 tonelada de semente e cerca de 12.000 plantas (de fruteiras). Sem retirar o valor e o mérito das iniciativas relatadas, foi, contudo, a Junta de Exportação dos Cereais das Colónias que desempenhou um papel determinante no melhoramento sob bases técnico-cientificas mais elevadas, pelo menos que diz respeito aos cereais. No princípio dos anos 40, sob financiamento da Junta, com colaboração dos Serviços de Agricultura e sob a direcção do Eng.º Agrónomo Saraiva Vieira, começaram a ser dados passos determinados no melhoramento do trigo, do milho, e de culturas que, com estes cereais, poderiam intervir na rotação. Numa perspectiva de trabalho persistente e da viabilidade deste ramo de investigação, instalaram-se, em 1942, algumas colecções vindas de Elvas (Portugal), da Estação de Melhoramento de Plantas. A colecção incluía 1.800 formas de trigo, cerca de 400 de aveia, 300 de cevadas, aproximadamente, e um pequeno número de forragens. Desde início, o programa de melhoramento de trigo visou a obtenção de formas resistentes às ferrugens – Puccinia graminis tritici Eriks & Henn. e Puccinia triticina Eriks – causadoras de prejuízos elevados, por vezes totais, e que colocavam em dúvida a viabilidade do cultivo do “trigo das chuvas” nos planaltos angolanos. De 1940 a 1944, os trabalhos centraram-se, principalmente, em estudos de adaptação e lançamento na cultura de algumas variedades, designadamente as Kruger, Kota x Webster e 3606 Kénya. Realizaram-se, também, no período, alguns cruzamentos no propósito de melhorar a espiga do Kruger, utilizando-se como genitores alguns trigos italianos de grande densidade de espiga. Relativamente ao milho, o trabalho de melhoramento centrou-se, até 1944, na selecção massal rigorosa da variedade angolana branco redondo, a mais carecida de intervenção, porquanto a interferência de milhos dentados e amarelos obstava o aparecimento no mercado de lotes sem mistura. A aveia mereceu, entre 1940 e 1944, pouca atenção: algumas observações das colecções, e uma selecção natural de certa utilidade, determinada por um virulento ataque de puccinea coronata. No que respeita à cevada, cujo programa de melhoramento objectivava a obtenção de variedades produtoras de elevados teores de malte, os trabalhos realizados até 1944 limitaram-se ao estudo da colecção e a esporádicos enriquecimentos do número de formas que a compunham. No domínio das forragens, em que se perseguia a eleição de formas rústicas bastante produtivas capazes de garantir alimentação verde no cacimbo, de 1940 a 1944 os trabalhos repartiram-se entre o estudo das colecções, o seu enriquecimento com novas formas anuais e permanentes, a realização de ensaios comparativos de produção segundo esquemas estatísticos, e a apreciação do comportamento de alguns capins, em talhões submetidos a pastagem directa, tidos como prometedores – designadamente dos géneros MELLINIS, PANICUM e PASPALUM. A soja foi, também, até 1944, objecto de algumas observações e de ensaios comparativos de produção. 83 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Em 1944, a Junta de Exploração dos Cereais das Colónias resolveu adquirir os terrenos da Chianga, nas vizinhanças da cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo, e instalar aí uma “Estação de Melhoramento de Plantas”. Em 1945 visitou Angola o Professor Engenheiro Domingos Rosado Victória Pires, então Director da Estação de Melhoramento de Plantas de Elvas (Portugal), para observação dos trabalhos sobre o melhoramento de cereais, iniciados em 1942, pelos Serviços Técnicos da Junta de Exportação dos Cereais das Colónias. Na sequência dessa visita e de solicitação que lhe foi feita, o Professor Victória Pires traçou um Plano de Trabalhos visando o Melhoramento de Cereais de Auto-Fecundação (Trigos, Cevadas, Aveia e Arroz) e de Fecundação Cruzada (Milho e Centeio), de Forragens e, ainda, Estudos de Adaptação e Multiplicação, de Afolhamentos, e Ensaios de natureza agronómica. A esfera de acção da Estação de Melhoramento de Plantas de Angola viu-se limitada a partir dos anos 50, até 1961, por insuficiência de meios humanos e materiais. A actividade desenvolvida passou a centrar-se na manutenção das colecções, em estudos de tecnologia de fertilização em solos do Planalto Central angolano, e, principalmente, em trabalho de lançamento de novas cultivares de trigo e de melhoramento do trigo e do milho. Relativamente ao trigo, prosseguiu-se com o programa visando a obtenção de formas de valor cultural perante as variações das populações de raças de ferrugem, em consequência de fenómenos de mutação, hibridação e pela introdução de esporos carreados pelas correntes aéreas; em relação ao milho, deu-se continuidade ao melhoramento e à produção de sementes das variedades do Branco Redondo e do Amarelo Maria e a trabalhos de auto-fecundação para a produção de híbridos. Em 1962 é criado o Instituto de Investigação Agronómica de Angola (IIAA), ficando a sede e os principais laboratórios instalados na Chianga (na propriedade que era pertença da Junta de Exportação de Cereais das Colónias, onde se instalara a Estação de Melhoramento de Plantas), e tendo adstrita uma rede de mais de 12 Centros de Estudos Regionais. A estrutura da Instituição compreendia, fundamentalmente, 7 Departamentos Especializados: Mesologia e Fertilidade do Solo, Biologia Agrícola, Agricultura, Estudos Florestais e Tecnologia Florestal, Sanidade Vegetal, Engenharia e Tecnologia Agrícolas e Economia, Sociologia e Planeamento Agrícolas. O programa de actividade distribuía-se por 21 projectos de investigação planificada sobre grandes temas, entre os quais 4 no domínio do Melhoramento Genético e Cultural: Projectos de Melhoramento de Trigo, do Milho, da Palmeira de Dendém e do Cafeeiro. O projecto de Melhoramento do Trigo tinha como objectivo a criação e a eleição de melhoras formas cultivadas de trigo, guiadas fundamentalmente pela resistência às doenças e por um ciclo vegetativo de resposta às condições ecológicas de Angola, e, complementarmente, atendendo às questões de produtividade, da qualidade para a panificação, da resistência à acama, desgrana e a acidentes de diversa natureza. Em, síntese, o método de melhoramento adoptado constava do uso da hibridação artificial, estudo e selecção das descendências durante as gerações heterozigóticas, e o estudo detalhado, em ensaios de campo, do material homozigótico achado prometedor. No inicio dos anos setenta foram lançados na cultura quatro trigos produzidos pelo Instituto de Investigação Agronómica de Angola – IIAA: Maia do Vale, Saraiva Vieira, Bairrão e Pinto. O melhoramento do milho perseguia os objectivos já antes traçados no tempo da Estação de Melhoramento de Plantas da Junta de Exportação de Cereais das Colónias: 84 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA a) Obtenção de milhos com maior capacidade produtiva e bem adaptados às várias zonas de cultura, através do melhoramento das variedades locais de polinização livre (criação de variedades sintéticas) e da consecução de boas linhas auto fecundadas e seu uso em programas de milhos híbridos; b) Obtenção de formas de milho resistentes ao Helminthosporium Turcicum Pass., problema preocupante em diversas regiões do País importantes no contexto da produção e consumo do milho. O melhoramento da palmeira dendém – Elaeis Guineensis, Jacq. – seguia um paradigma que atendia os aspectos da quantidade e qualidade do óleo produzido e o aperfeiçoamento das técnicas culturais, e pretendia beneficiar duas zonas principais do território: a da média altitude e a faixa litoral. No domínio do melhoramento genético, o objectivo incidia no cruzamento do tipo DURAxPISIFERA, com vista à obtenção de sementes híbridas de TENERA, mais ricas em polpa e capazes de uma maior produção de óleo, e à sua difusão na cultura. No que se refere ao melhoramento da técnica cultural, o projecto perseguia o afinamento dos métodos de forçagem de sementes e o estudo e a difusão dos melhores procedimentos culturais e tecnológicos. Quanto ao Programa do Café, o objectivo perseguido era o melhoramento genético e cultural do cafeeiro. O melhoramento genético privilegiava o C. arábica, em virtude da sua grande susceptibilidade ao ataque de pragas e doenças e do seu maior valor comercial. O IIAA criou algumas variedades que se revelaram de elevada produtividade e resistentes à “ferrugem alaranjada”, provocada pela H. vastratix, Bark & Br. O melhoramento do arroz e do feijão passou, durante os últimos anos do período colonial, a ser objecto de alguns procedimentos preliminares por parte do Instituto dos Cerais. Em matéria de arroz procedeu-se a selecções massais sistemáticas e à multiplicação e distribuição de duas cultivares angolanas de muito interesse comercial, mas altamente degeneradas por uma utilização repetida – o Ruivo de Angola e o Cristal de Angola, ambas do tipo carolino – e à introdução no cultivo de duas variedades do tipo agulha, procedentes de Moçambique: Faia e Chibiça. Relativamente ao feijão, também sob à orientação do Instituto dos Cerais, buscou-se a selecção e difusão de variedades cuja cultura já se praticava em Angola, e tinham certo valor comercial enquanto produto de exportação, designadamente de branco grado, raiado grado, calembe ou verdinho e manteiga. Para além dos programas referidos, integrados na acção do Instituto de Investigação Agronómica de Angola, a instituição desenvolvia, também, alguns outros dedicados aos estudos florestais, apícolas e piscícolas, que não podem deixar de ser considerados sob a óptica de melhoramento. Os estudos relativos à floresta abrangiam a introdução e adaptação de espécies exóticas, selecção de proveniências, selecção de indivíduos, ensaios de descendência de clones seleccionados, processos de condução técnica/exploração, aproveitamento de espécies florestais autóctones, e os estudos laboratoriais visando inovações na tecnologia do lenho. Numa síntese do que tem sido o Melhoramento de Plantas após a Independência, poder-se-á dizer o seguinte: 85 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Até 1992, realizaram-se algumas acções nos domínios do melhoramento genético do milho e da adaptação de diferentes variedades de feijão, amendoim e trigo, sob a orientação de alguns técnicos expatriados. Há o registo da ineficiência dessa colaboração, considerada, posteriormente, como um processo incorrecto de cooperar no plano científico. No final de 1993, foi proposto um novo sistema nacional de investigação, assente em Programas de Investigação subdivididos por grupos de culturas. Foram criados, inicialmente, 4 Programas de Investigação: dos Cerais, de Raízes e Tubérculos, de Leguminosas e de Hortofrutícolas. Com o decorrer do tempo estes programas de investigação ganharam uma abrangência nacional e passaram a abarcar um mais vasto leque de culturas. O Programa Nacional de Investigação de Cerais passou a incorporar as questões relativas às culturas do milho, massambala, massango, trigo, arroz, centeio e cevada; o Programa Nacional de Investigação de Raízes e Tubérculos passou a integrar as culturas da mandioca, batata doce, batata comum *, inhame e taro; o Programa Nacional de Investigação de Leguminosas passou a contemplar as culturas do feijão, amendoim e soja; e o Programa Nacional de Investigação de Hortícolas e Frutícolas passou a privilegiar o tomate, cebola, pepino, pimento, gindungo e quiabo, e as culturas da banana, manga e citrinos. A informação recolhida dá conta que a actividade científica no domínio de tais programas tem sido bastante restrita por razões que se prendem com a disponibilidade de investigadores/especialistas e com a falta de meios para dinamização das infraestruturas de apoio à investigação (Estações, Postos e Campos Experimentais) Relativamente a resultados alcançados no domínio do Melhoramento, a informação disponível refere a criação, sobretudo sob financiamento de algumas entidades estrangeiras, de algumas variedades de milho, e estudos visando a introdução de formas de feijão – também de milho – , de variedades diversas de mandioca, batata doce e de batata comum, e de variedades de tomateiros com interesse para o cultivo no País. Cremos que os trabalhos realizados não se referem, na sua maior parte, a melhoramento genético, mas sim à introdução, multiplicação e distribuição de novos clones e variedades e à multiplicação de algumas espécies. Certamente que estes programas de adaptação/multiplicação terão limitações no seu cumprimento, pois é notória a falta de pessoal científico qualificado, capaz de constituir a massa crítica necessária e preencher as exigências dos trabalhos de condução da experimentação que se intenta realizar. Para além disso, a maior limitação de tais programas reside no facto de não resolverem a contento o problema das plantas necessárias para as condições agroecológicas de Angola. Veja-se, por exemplo, a problemática do trigo relativamente à ferrugem: os trigos tidos como altamente resistentes em determinado país e em determinado tempo, mostram-se totalmente susceptíveis quando cultivados noutro país, e noutro tempo, dado que as raças fisiológicas de uma espécie de ferrugem variam de região para região e novas e mais virulentas raças fisiológicas de Puccineas surgem com o decorrer dos anos. * Em Angola, a batata comum – também chamada de inglesa ou europeia – , é hoje habitual e impropriamente designada, mesmo em documentos oficiais, por batata rena . Isto decorre da corruptela “ reino” (Reino referido a Portugal, no tempo da monarquia, de onde os primeiros colonos recebiam o tubérculo para a sua alimentação, e assim o designavam por batata do reino para destrinçar de 86 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA outros tubérculos ou mesmo rizomas tuberosos então cultivados e consumidos na Colónia). IV. CONCLUSÕES Um dos requisitos para que os agricultores possam alcançar maiores e melhores produções é o da utilização de sementes e propágulos de qualidade. Pese embora a inserção no Plano de Acção do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural e das Pescas de um Programa Nacional de Produção de Sementes e Propágulos, cujo objectivo é o da satisfação das necessidades nacionais em sementes e material de propagação vegetativa, a introdução de novas espécies e variedades, o controlo da qualidade varietal e sanitária do material distribuído, o estabelecimento e a certificação de uma rede de multiplicadores de sementes e viveiristas, a realidade é que o País continua a registar uma enorme fragilidade em tal domínio. Seja por recurso a procedimentos tradicionais, seja pela via de manipulações técnicas mais complexas, o desenvolvimento de programas que levem à utilização de variedades melhoradas, certificadas do ponto de vista genético e sanitário, adaptadas a diversas condições, é determinante para os agricultores poderem obter maiores e melhores produções por unidade de superfície cultivada. Dado que a agricultura angolana se serve, principalmente, de cultivares procedentes do exterior, afigura-se conveniente caminhar no sentido do melhoramento e da produção local de sementes e propágulos próprios para as variadas condições do País, e da sua certificação do ponto de vista genético e sanitário. A investigação agrária angolana deverá, portanto, preparar-se de modo a poder recorrer às modernas tecnologias de melhoramento de plantas, salientando-se, contudo, que, neste domínio, haverá que graduar as pretensões, dado que a complexidade de alguns domínios da pesquisa na área da biotecnologia requerem recursos humanos e materiais de que o País só gradativamente poderá dispor. Importa não desvalorizar o cunho eminentemente científico do trabalho dirigido para uma agricultura de baixa utilização de factores. A procura de novas cultivares susceptíveis de proporcionar bons rendimentos sem grande onerosidade dos factores a empregar é um dos desafios que o País deve encarar. Referências ALMEIDA, A. Pereira: “Uma contribuição para o melhoramento cultural Elaeis guinnensis Jacq. em Angola”. Nova Lisboa, Instituto de Investigação Agronómica de Angola, 1966. III + 73p. ALVES, J. Bento: “Estação de melhoramento e reprodução de sementes e fruteiras dos planaltos de Angola”. Activid. Econ. 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Ang., Luanda, 3, 1950, p.16-25 90 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA ASIMILADOS E CRIOULOS: MESTRES E APRENDIZES OU COMO O PASSADO DE PRESENTIFICA Elizabeth Ceita Vera Cruz Professora da Universidade Católica de Angola Resumo Este texto tem como objectivo desmitificar a ideia-feita relativamente à passividade dos africanos no concernente à situação colonial. Para o atestar e, no caso dos angolanos, socorremo-nos da categoria de assimilado e da de crioulo e mais propriamente do seu papel (de alguns, bem entendido) no âmbito das associações. A partir da situação colonial, entender como os tentáculos da mesma se fazem sentir na Angola de hoje. Palavras-chave assimilados crioulos indígenas colonização alienação encarnação associações I – Preâmbulo Se é certo que a política colonial portuguesa teve na assimilação o seu ponto alto constituindo, deste modo, a pedra de toque da arquitectura colonial, não é menos certo que o Estatuto do Indigenato foi o seu corolário por ter estatuído e instituído a categoria de assimilado ao indígenaiii. Foi com base na legislação que a discriminação foi legitimada, uma política impregnada de ambiguidades e paradoxos sendo que, aqui, importa salientar o impacto da mesma junto das gentes. Apesar de a política colonial, com todas as suas matizes, ter sido uma imposição dos colonizados junto dos colonizadores, importa desmitificar a enraizada ideia de que, os colonizados, terão sido um elemento passivo em todo este processo. Dito de outro modo, que os colonizados, 91 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA alguns, também eles, não somente terão “colaborado” de forma activaiii como, em outros tantos casos, terão utilizado essa “colaboração” como estratégia em seu proveito. Sim, porque no concernente ao papel de resistentes e ao seu contributo na luta de libertação nacional, melhor ou pior, ele é conhecido. Ora, quanto aos aspectos menos abordados, mas nem por isso menos importantes, aspectos dir-se-ia subterrâneos por não se ousar discuti-los mas que foram um elemento incontornável na história de uma boa parte dos sécs. XIX e XX de Angola, aspectos que, ainda hoje, enformam e perturbam a sociedade angolana, são estes aspectos a trave mestra deste texto. E porque a cristalização destes elementos minam o espectro social, uma reflexão em torno das estratégias de sobrevivência, de adaptação, mas também de assumpção de um “novo estilo e uma nova visão do mundo” emergem. O colonizado apropriou-se da língua, é sabido, mas apropriou-se, também, do discurso e de algumas práticas. Entre os conceitos de papel e o de identidade O que define o conceito de papeliii, mais do que a posição social ocupada pelo actor social, são as expectativas e as características individuais dos actores, é o que é esperado, são as expectativas geradas por essa teia, mais precisamente pela posição social. Desde logo porque é a sociedade que determina os papéis gerando expectativas que subjazem aos referidos papéis. Assim, temos que não existe papel sem acção, do mesmo modo que não existe acção sem papel. A incorporação do papel por parte do actor, dos múltiplos papéis associados às suas múltiplas funções, não significa, em última análise, que os actores se identifiquem necessariamente com os mesmos. No palco da vida, o actor social é um protagonista que não escolhe propriamente os papéis que desempenha, mas que é por eles e consequentemente pela sociedade, escolhido – o indivíduo representa. O papel tem uma concepção normativa e é ela – a norma – que faz com que se possa inferir que este é um dos estádios, é uma das componentes da(s) identidade(s), se por identidade se entender «o emaranhado que constitui o ser, o estar e o sentir dos indivíduos, na confluência do individual e do social». Para Martuccelli (2002: 216 e seg.), o papel tem duas representações, a saber: a encarnação e o distanciamento. Enquanto no primeiro o social, a sociedade e a socialização, uma vez interiorizados, passam a constituir uma fonte de satisfação sendo que estes indivíduos que encarnam os papéis pretendem, em geral, ter direito a uma consideração maior, superior à dos outros, no segundo o indivíduo é mais tolerante, 92 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA mais permissivo, menos autoritário. Estas diferentes maneiras de habitar (Id., ibd: 218) os papéis sociais «dão aos indivíduos um sentimento de superioridade subjectiva muito particular» (Id., ibd.: 220). O papel surge, assim, como uma armadura, uma máscara, funcionando como uma forma de resistência (Id., Ibd.: 221) – acrescente-se, que, a leitura de Martuccelli parece sugerir que é o distanciamento aquele onde a máscara é, assume um papel de relevo já que, na encarnação, o indivíduo deixa de ser um “fingidor”, assumindo e sentindo-se bem na sua nova pele. A identidade, ainda que tenha elementos comuns ao papel – tal é o caso dos diferentes palcos em que o indivíduo se movimenta, do político ao social, passando pelo cultural (entre tantos outros) –, congrega uma dimensão individual relevante, pois ela «permite garantir a permanência do indivíduo no tempo, o que faz com que, independentemente das mudanças, ele, o indivíduo, é sempre o mesmo», pois «l’identité est ce qui permet dans un seul et même mouvement à la fois de souligner la singularité d’un individue et de nous rendre, au sein d’une culture ou d’une société données, semblables à certains autres» (Id., Ibd.:343). Parece ser consensual, pelo menos a este nível, que quando se fala de identidade(s), fala-se de uma dimensão em construção, fluida. E, se por um lado ela é marcada pela diferença, por outro é relacional (Woodward:2003), ainda que, “na linguagem do senso comum, a identificação seja construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal” (Hall: 2003, 106). A leitura de autores como Hall, Hunting, entre outros, estabelece que: i) a diferença é o elemento fundador das identidades; ii) é a alteridade que consubstancia as identidades; iii) as identidades são plurais. Seja ela individual, colectiva ou nacional, o discurso da identidade é um discurso que contém, na sua tessitura, a exclusão – por ser seu elemento primacial – do outro em relação ao mesmo. A questão da identidade só se coloca no confronto, e é face a ameaça da exclusão, é na altercação que paira a identidade. Por isso ela é construída, por isso se refaz, se reconstrói. É neste jogo de sedução, nesta guerra aberta, neste permanente conflito que o discurso das identidades lança as sementes da altercação, podendo tornar-se, na célebre expressão de Amin Maalouf, «identidades assassinas». 93 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Porque o espaço do papel é um espaço iminentemente social, o espaço da identidade parece comprometido se considerado o seu aspecto psico-individual. Parece, pois, poder avançar-se com a seguinte tese: o indivíduo «revela a sua “identidade”», no que ela tem de mais intrínseco, no espaço de liberdade que o papel permite. Este espaço de liberdade que é um atributo da identidade e que esta conquista no seu confronto com o papel é que faz, da identidade, um elemento primacial do indivíduo. O assimilado: uma identidade assassina? E porque as identidades remetem para a problemática do poder – o espaço da(s) identidade(s), ainda que discursivamente plural, é avaro no que tange à dimensão psicoindividual. As estratégias que se podem considerar de resistência, mas também de adaptação (e de assumpção, como se verá mais adiante) dos assimilados angolanos (certamente válidas para assimilados de outras geografias), inscrevem-se no quadro de um período e contexto político e ideológico: o colonial. Para o presente caso, e retomando a tese de Martuccelli, associamos o assimilado angolano à encarnação e ao distanciamento, fixando-nos no primeiro, a encarnação, mercê do seu papel enquanto aliado do poder colonialiii. Se o pensamento é socialmente condicionado, como defende Mannheim, tese que vem na linha de Marx, não é menos verdade que o inverso também pode ser verdadeiro, como defende Weber. Parece poder afirmar-se, para já, que se num primeiro momento e em todas as sociedades existe de facto um condicionamento social do pensamento, num segundo, quando os papéis e os valoresiii são intuídos e instituídos, o peso da estrutura como que se esbate mercê da “adjudicação”dos valores pelos indivíduos e pela sociedade. É neste palco no qual se degladiam os actores e as instituições, os actores e o poder político, que se pode observar o papel das associações na Angola colonial. E é nesse palco que surge o assimilado, uma categoria que é criada precisamente com o propósito de encarnar não somente os papéis mas, também, os valores coloniais. As Associações em Angola: resistência e ambiguidades No seu trabalho sobre “Movimentos Associativos na África Negra”, o Prof. Silva Cunha destaca três tipos de associações, a saber: associações místico-religiosas, associações com fins materialistas ou cooperativistas e associações com fins políticos (Cunha: 1956). 94 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Segundo o autor, as duas primeiras já existiam nas “sociedades negras primitivas”(Id., Ibid.: 7) e se as segundas tinham carácter profissional, as primeiras tinham ou tiveram, primitivamente, um carácter político. No período colonial, outras foram surgindo «de base étnica, que tentam agrupar com fins de previdência e assistência imediatos todos os elementos da mesma tribo» (Id., Ibid.: 8). As associações com fins políticos, produto da Europa, são constituídas por “partidos políticos de negros”(Id., Ibid.: 8) entretanto formados em África. Para Silva Cunha, os factores que estão na origem dos movimentos sociais estudados são: «a) transformação em curso dos sistemas económicos tradicionais; b) a perda de crenças religiosas sem que lhes corresponda a convenção real e profunda às religiões ensinadas pelos colonizadores; c) a transformação da sociedade familiar e a sua crescente instabilidade; d) a destruição das estruturas políticas; e) os obstáculos opostos à integração dos nativos nas sociedades dos colonos; f) o desejo de compensar a falta de segurança individual, proveniente da perda das crenças tradicionais e da destruição das estruturas familiar e tribal; g) o desejo de compensar uma situação de inferioridade social» (Ibid.: 48-50). Diferentes são os tipos de associações existentes, que podem ir dos sindicatos e cooperativas, passando pelas associações (em geral) e pelos grupos informais. Para além da natureza específica de cada uma delas, falar-se de associações no período anterior ao 25 de Abril de 1974 e mais exactamente da independência, significa desde logo a ausência de sindicatos, pela carga não só reivindicativa como política que lhes estava subjacente. Assim, restam os outros três tipos, sendo que as cooperativas, à semelhança dos sindicatos, tinham como objectivo o progresso material e laboral, mas também cultural e educativo, enquanto os grupos formais são normalmente considerados voláteis, tendo uma natureza efémera e muito restrita, (cabe neste grupo tudo o que não se enquadre nos já referidos). Quanto às associações, estas têm objectivos essencialmente culturais, suficientemente vastos onde é possível inscrever igualmente a educação. No presente caso, interessam-nos as associações mercê do papel que as mesmas tiveram ao longo do período colonial. É assim que, no que diz respeito às associações que são objecto deste texto, o destaque vai para a Liga Nacional Africana porquanto a mesma acabou por plasmar as reivindicações dos nativos angolanos no que diz respeito 95 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA à sua identidade, por via do progresso material e laboral, cultural e educativo, não deixando de parte o carácter recreativo de que também se revestia, como se pode perceber através de leitura da Revista Angola, órgão da Liga. Mas as sociedades populares angolanas descritas por Óscar Ribas, ainda que com (um) carácter embrionário ou, dir-se-ia, mais “popular” relativamente ao da Liga, não deixaram de ser importantes (e não somente na tomada de consciência dos nativos), na medida em que estas representaram e tipificaram a sociedade dicotomizada que era a angolana (e todas as outras colonizadas), motivo/razão da criação e sucesso das mesmas. O pendor identitário marcou indelevelmente a trajectória das mesmas e, deste modo, a questão nacionalista, mas o seu discurso não está isento de ambiguidades. A emergência das elites nativas: tradição e modernidade As sociedades populares angolanas «São três, os tipos que caracterizam as sociedades populares angolanas. Em Luanda, onde, pelo seu maior desenvolvimento cultural, mais se acentua o associativismo nativo, instituíram-se as seguintes espécies de associação: recreativoespirituais, espirituais e materialistas» (Óscar Ribas: 1965: 27). Assim começa Óscar Ribas a obra sobre associativismo e recreio, “Izomba”, onde o autor traça uma panorâmica das mesmas, através da caracterização e descrição dos seus objectivos e associados. Como se pode desde logo entender, estas associações (sociedades populares angolanas) foram constituídas essencialmente por e para nativos, apesar de não ter «apenas gente negra mas também mestiça. Até europeus, na falta dos clubes actuais, nela se comprazeram» (Id., Ibid.: 27). No que diz respeito às sociedades recreativas, paralelamente à assistência prestada, «dedicavam-se estas sociedades à dança» (Id., Ibid.: 27), sendo que estas associações estavam organizadas segundo um regulamento interno, onde as sanções assumiam papel de destaque, pois era geralmente a «coibição de dançar» (Ibid.: 29), a alma mater das associações recreativas e dos seus associados, o elemento aglutinador das mesmas. Mas, se por um lado as sanções eram reguladoras, o aspecto aglutinador, já referido, constituía sem sombra de dúvida um dos pilares da mesma – é preciso não esquecer que era/foram as (nas) associações que de um modo mais ou mesmo directo 96 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA participaram na emergência e cristalização de uma elite urbana angolana, elite essa que por via destas mesmas associações acabavam por divulgar e durante um tempo puderam preservar (Id., Ibid.: 29) os valores da “sociedade e cultura nativa” – tal é o caso do género musical, a massemba, das músicas em quimbundo e da indumentária feminina. A lista das várias associações (recreativo-espirituais), dá disso conta – emergência de uma elite nativa (entenda-se negra e mestiçaiii) – através da referência a alguns dos seus fundadores, boa parte, deles, funcionários públicos. A mais antiga das associações, referida por Ribas, data de 1900 (sociedade dos Quipacas), indo as datas até 1945. Relativamente às sociedades espirituais, a referência mais antiga é de 1925, e talvez a mais célebre a “Tristeza Carmona, Alegria Craveiro Lopes”(Id., Ibid.: 34), cuja promotora foi a não menos célebre Maria Esquerquenha, popularizada numa música de Teta Lando. Ainda segundo Ribas, de entre as sociedades mutualistas que se encontram até aos anos 40 do século XX, as mais antigas remontam ao século XIX (por volta de 1880). Quanto às sociedades assistenciais, estas eram exclusivamente femininas. Talvez, por isso, a assistência das mesmas era «espiritual: visitas a doentes, (...), condolências a família, celebração da missa de sufrágio» (Ibid.: 30). A importância disso reflecte-se não só na assistência, mas igualmente e sobretudo, no presente caso, nas manifestações rituais que acompanhavam estas celebrações. Para ele, de as descrições de Óscar Ribas permitirem que se ateste da existência de diferentes tipos de associações, aquilo para que Izomba também aponta é sobretudo para a importância que as referidas associações tinham para as populações (e não somente para os seus associados). O facto de existirem associações se não somente de nativos, entenda-se negros, quase exclusivamente de nativos e o facto de assumirem a necessidade de preservar os valores da sociedade e da cultura nativa – e, desta forma, a sua existência – permite aquilatar não somente que se estava em presença de uma sociedade segregada como, também, da existência de uma elite nativa. A Liga Nacional Africana: esboço de uma trajectória Se as três faces da Liga são a social, a educativa e a recreativa, a leitura de «Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva» cujo primeiro número 97 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA remonta a 1930, permite que se fique com uma visão não só de quem eram os seus sócios, mas também de quem representava a Liga Nacional Africana, quais os seus objectivos (este último claramente exposto pelo Cónego Manuel das Neves, Presidente em exercício da Liga aquando do seu XVII aniversário, onde o mesmo prometia, na sua alocução, «outras realizações em curso para melhoria não só da vida associativa como intelectual dos africanos cujos interesses a “Liga” se propôs defender». Os sócios da Liga nacional Africana contavam-se entre a elite de Angola – entre brancos, negros e mestiços. Funcionários públicos na sua grande maioria, os mesmos eram cultores do saber, em que pontuavam as artes e a literatura. Ainda que oficialmente defensores da mãe pátria (portuguesa, bem entendido) – ou talvez por isso mesmo –, é possível entrever-se no seu discurso sobretudo o amor pela sua terra, Angola, pelo seu chão. É assim que a linguagem, ainda que colonial – ideologicamente preconceituosa, em que a colectividade (a Liga) surge como constituindo um mundo à parte –, reflecte preocupações que dizem respeito ao progresso da colónia (Angola) e das suas gentes (os indígenas), de que boa parte era originária. À palavra nativo e/ou indígena, associava-se estoutra: a dos deserdados. Expediente ou não, o certo é que os artigos mais incisivos são de um modo geral assinados com pseudónimo. Tais são os casos de “Lumenção” e “Abafejo”, onde a valorização dos indígenas assume especial destaque, sendo que a revista vai, ao longo dos tempos, assumindo mais claramente o seu “sentido de missão”, por exemplo quando reclama a necessidade duma imprensa “nossa”, e onde se diz a dado momento do artigo que «é lamentável averiguar-se que entre nós, primitivos e ingénuos, haja quem, obcecadamente, queira inculcar certas ideias exigindo que elas sejam encaradas e resolvidas pelos outros da maneira como eles as encaram, sem atender a factores de vária ordem e aos “prós” e “contras” a que tais ideias estão, geralmente, subordinadas. (...) Colaboremos, pois, com ela para a realização da ideia que preconizamos – a Imprensa Angolana». A partir de meados da década de 50 e ao longo da década seguinte, o tom do discurso foi-se rarefazendo, passando de algum modo a literatura – na página dedicada à poesia e aos poetas angolanos e mesmo a alguma prosa – a ser a via da acusação, do libelo, da resistência. A isso não é alheio o início da luta armada, a revogação do Estatuto do Indigenatoiii e, naturalmente, como correlato, a censura e o cerco cada vez mais apertado que entretanto se vai fazendo sentir. Aquilo que parece um paradoxo – de 98 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA paradoxos foi a colonização feita – a aparente institucionalização da cidadania igual para todos, acabou por ser a via por excelência da operacionalidade do garrote entretanto imposto. As ambiguidades e contradições que dão título a este trabalho, que mais não são e espelham as ambiguidades e contradições do discurso colonial, encontram eco no discurso dos próprios colonizados. A revista da “Liga” expressa bem estas ambiguidades e contradições, se não da sua linha política, da de alguns dos seus associados – o uso das expressões indígena e assimilado (o mesmo que gentio e nativo), a referência a si próprios enquanto civilizados, instruídos, em oposição à grande massa dos indígenas, trabalhadores braçais, sem instrução, é bem disso exemploiii. São precisamente esses civilizados que, não obstante o seu libelo em prol de melhores condições de vida para os indígenas, aqueles que encarnam o papel mais do que de assimilados, de cidadãos portugueses exemplares. Também eles, objecto de discriminação e, talvez (também) por isso, a sua revolta que se traduzia na defesa dos “indígenas”, explicando-se deste modo o discurso ambíguo. É claro que, sempre se pode dizer que esses discursos correspondem a um tempo-espaço que acabou por ser determinante para a natureza dos mesmos, mas não é menos verdade que estas ambiguidades e contradições plasmaram a mentalidade de muitos angolanos, de tal modo que, ainda hoje é possível encontrar-se por via da cristalização das mesmas mentalidades no que se poderá considerar e chamar, alienação. Passado e presente: do discurso às práticas assimilacionistas Segundo Adriano Moreira, o estado de indígena definia-se em face de três coordenadas: o território, a raça e a cultura. Assim, indígena era todo o indivíduo nascido nos territórios portugueses de África, negro e primitivo (não civilizado), daí o poder concluir-se que era toda a população negra. Mas os legisladores sabiam que precisavam de uns quantos negros que lhes fossem fiéis e que lhes dariam estabilidade e credibilidade junto da grande massa dos negros, sem esquecer a comunidade internacional. Por isso, “criou” o assimilado, do mesmo modo que “criou” o mestiço/mulatoiii. Afinal, quem era o assimilado? Juridicamente, o assimilado era o negro, convertido em semi-branco (semi-branco porque, para muitos colonialistas, os assimilados e os destribalizados eram arremedos grotescos e, por conseguinte, nunca 99 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA poderiam ser equiparados a brancos não somente por causa da cor da pele que era a marca distintiva por excelência e da qual não se podiam livrar, mas também porque, por muito que se esforçassem, os negros, ainda que assimilados, nunca poderiam ser equiparados aos brancos). O assimilado era negro, sim, que teria abraçado os valores ocidentais – da instrução (ter no mínimo a 4ªclasse, o que era uma boutade considerando que a esmagadora maioria dos brancos portugueses eram iletrados, analfabetos) que passava pelo domínio da língua portuguesa, passando pela posse de habitação “condigna” e adopção de práticas consideradas válidas, civilizadas (como a posse e o uso de mesa, cadeiras e talheres), à indumentária, múltiplos foram os novos papéis e valores que fizeram do assimilado um “distanciado” ou um “encarnado” (Martucelli). Àqueles que “encarnaram” o papel, que o assumiram na íntegra, não se pode chamar, como faz Martuccelli, resistentes. Estes serão, antes, os alienados iii que, entre outras práticas e comportamentos eram: i) aqueles que tinham vergonha de compreender, saber e falar uma língua de Angola, um dialecto, como então se dizia; ii) aqueles que, mestiços, tinham vergonha das suas mães negras; iii) aqueles que tudo faziam para ter pronúncia portuguesa, apagando todos os vestígios da sua “pretitude”; iv) aqueles que consideravam que o casamento com um indivíduo de tez clara – quanto mais claro, melhor! – era sinónimo de apuramento da raça; v) aqueles ainda, para quem, comer funje era “coisa de preto” ou um exotismo; vi) aqueles para quem, o uso de tranças e de indumentária não ocidental – os célebres “panos” – era desprestigiante; vii) aqueles que consideravam que só os cabelos lisos, desfrisados, assim podiam ser chamados – os demais eram as “quindumbas”, as carapinhas; viii) aqueles, ainda, para quem, quanto maior o número de brancos que fizessem parte das suas relações, em melhor conta se tinham e pensavam ser tidosiii. Entre assimilados e crioulos: a (re)encarnação Vestígios deste discurso e práticas encontramo-los, ainda hoje, no quotidiano, com excepção da gastronomia, esta sim a única a ganhar foro de cidadania com a independência. Os papéis reproduzem-se, tais como as sociedades. A(s) identidade(s), por serem espaços de liberdade conquistados (aos papéis), permitem aferir que, no caso angolano, o presente ainda se encontra refém, ancorado no passado. A liberdade, esta, encontra-se ainda condicionada e, nessa medida, a(s) identidade(s) 100 dos angolanos também se LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA encontram minadas das teias do passado. Um exemplo claro e recente (do pósindependência) é a apologia, por parte de uma elite, relativa à existência de uma cultura crioula em Angola. Uma cultura sediada no passado e que se terá estendido pelo presente. Ora, os defensores da existência de uma cultura crioula em Angola, ontem e hoje, reivindicam-na e revêem-se, no presente, certamente com o que consideram serem os “valores crioulos”iii que mais não são do que os associados aos assimilados. É assim que, não será de estranhar o seguinte exemplo paradigmático: o da língua. Quem e quantos são os jovens que falam as línguas nacionais (para além do português)? Num inquérito realizado junto de jovens universitários em Luanda (2006), inquérito esse cujas conclusões se encontram a ser apuradas, num universo de 172 inquiridos, cerca de 65% dos inquiridos só fala português – e mais, a maioria dos que dizem falar as outras línguas nacionais são oriundos das províncias do Uíge, do Huambo. Isto é, os luandenses são aqueles em que o deficit é claro. As (possíveis) explicações serão múltiplas, mas afigura-se como uma das mais plausíveis o impacto da política colonial e mais especificamente em Luanda – os mais velhos passaram o testemunho aos seus filhos: a língua portuguesa é que é «língua de gente». Sem outro inquérito em que nos possamos apoiar, registe-se, por via da observação, o facto de, pelo menos nos espaços urbanos, a maioria das mulheres usar indumentária ocidental – é sobretudo no Norte de Angola, nas províncias de Cabinda, Zaire e Uíge, porventura mercê da geografia e da própria história de que a influência dos Congos será o exemplo mais próximo, que se assiste ao maior número de mulheres com indumentária não ocidental. Quanto ao cabelo e se bem que o as tranças continuem a ter um peso considerável na beleza feminina, são os cabelos longos, é a tiçagem que se encontra na linha da frente (uma das manifestações de modernidade). De aprendizes a mestres, os assimilados de ontem, a cultura assimilacionista, encontra uma revitalização, dir-se-ia inesperada, nos dias de hoje. O passado presentifica-se por via das reproduções das práticas do passado, das suas actualizações, estilizações, como é o caso do mito da mulher “mulata” que, segundo alguns “desabafos” e notas de imprensa, é uma realidade hoje, em Angola, muito especialmente na área profissional (o critério é claramente da empresa – instituições e empresas que têm uma taxa de empregabilidade de mulheres mestiças muito elevada, se comparada com as mulheres negras). 101 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Entre tantos estudos e investigações de que Angola carece, a importância, necessidade e urgência de uma investigação para uma melhor compreensão dos mecanismos de reprodução dos valores (dos coloniais aos “pós-coloniais”) e os impactos dos mesmos na sociedade angolana, hoje, é um imperativo. Referências: Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva. CUNHA, J. M. da Silva (1956), Movimentos associativos na África negra, Lisboa, JIU. MARTUCCELI, Danilo (2002), Grammaires de l’individu, Éditions Gallimard. RIBAS, Óscar (1965), Izomba: associativismo e recreio, Luanda, Tipografia Angolana. SILVA, Tomaz (org), Stuart Hall e Kathryn Woodward (2003 [2000]), Identidade e Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais, 2ª ed., Petrópolis, Ed. Vozes. VERA CRUZ, Elizabeth Ceita (2006), O Estatuto do Indigenato. Angola. A legalização da discriminação na colonização portuguesa, Luanda, Edições Chá de Caxinde. 102 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA O SISTEMA DE GOVERNO NA NOVA CONSTITUIÇÃO Nelson Pestana (PhD), Investigador-coordenador, no Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola Este artigo resultado da minha participação no ciclo de palestras sobre a nova Constituição, promovido pelo Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia, onde palestrei sobre o sistema de governo, no nosso país, a luz dessa nova Constituição de 2010. Se atendermos ao facto do quase-debate constituinte se ter polarizado precisamente em torno do sistema de governo, esta comunicação podia ser vista como um prolongamento deferido desse momento, já que o processo constituinte (e o debate que lhe era correlato) foi abruptamente interrompido pela proposta constitucional do Presidente da República que acabou por ser consagrada. Esta polarização deveu-se a duas ordens de razões: a primeira factual, a inesperada quebra da unanimidade existente, pela proposta de dois principais partidos políticos angolanos ao apresentarem-se como defensores de um sistema presidencial. A segunda, psicossocial, pelos receios da sociedade civil para quem essa inesperada conversão ao presidencialismo poderia representar uma redução substantiva das liberdades públicas e uma descaracterização (quiçá, subversão) do Estado Democrático de Direito, consagrado na Constituição de 1992. Esta lei fundamental, como é consabido, consagrava o sistema de governo semi-presidencial e nada levava a crer que isso fosse mudar, já que todos os partidos políticos reiteraram, nos seus programas eleitorais, essa escolha. Malgrado o processo político de que resultou esta Constituição, outorgada pelo Presidente da República, não deixa de ser interessante interrogamo-nos sobre “o sistema de governo na nova Constituição” e verificarmos assim se os sobreditos receios de descaracterização ou subversão do regime democrático tinham razão de ser. Segundo os inventores da actual Constituição 2010, o sistema de governo que dela ressalta é uma mescla de elementos do sistema presidencial com elementos do sistema parlamentar, o que deu origem a uma nova categoria, a juntar as demais já existentes, designada “Presidencialismo Parlamentar”. Este sistema teria como característica a existência de um executivo unipessoal forte associado a um parlamento colaborante, como resultado do sistema de eleição conjunta dos dois órgãos, nas chamadas “eleições gerais”, que permitem uma convergência entre o Presidente da República e o partido maioritário, no parlamento. Importa pois verificar se a actual Constituição comporta uma tal leitura a partir do confronto das suas características com os traços fundadores desses dois sistemas de governo dos regimes democráticos mais antigos do mundo moderno (a Inglaterra e os Estados Unidos). Para evitar suspeições sobre uma eventual partidarização do debate, que se quer, nesta sede, estritamente académico, a nossa análise não leva em consideração aspectos extra-constitucionais. É feita um pouco em termos de “teoria pura do direito” (Kelsen), isto é, fazendo abstracção da conjectura, da contextualização histórica, política e social, da praxis de poder, operando apenas a partir da análise hermenêutica da Constituição 2010. A nossa análise baseia-se, primeiro, na recensão crítica dos traços característicos dos paradigmas constitucionais de que esta Constituição se reclama (os sistemas 103 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Presidencial e Parlamentar). Depois alicerça-se na percepção da filosofia de base subjacente à Constituição de 2010, através do confronto de duas teorias (contratualistas) sobre a sociabilidade humana e de três paradigmas da autoridade. Finalmente, a análise escora-se na economia interna do texto constitucional (sobre a sua gramática e o seu sentido teleológico, como sistema) e sobre a comparação do sistema de governo que dela ressalta com outro plasmado na constituição bonapartista de 1808,como paradigma histórico dos sistemas autoritários. Para o fazer temos dois momentos: um de precisão teórico-conceitual, onde vamos apurar os conceitos operatórios e teorias de que nos socorremos, e outro de análise hermenêutica, tirando, por fim, uma conclusão, Conceitos operatórios Os conceitos operatórios que pretendo apurar são os de “ sistema de governo”, sistema presidencial e sistema parlamentar. O sistema de governo é entendido como sendo a forma como o poder político é repartido pelos órgãos de soberania, e a maneira como estes se relacionam, no interior do Estado. Nos regimes democráticos e representativos os sistemas de governo dividem-se em parlamentar e presidencial, havendo, desde 1918, (com a experiência da República de Weimer) uma forma mista; o dito sistema semi-presidencial que procura combinar elementos do sistema parlamentar com elementos do sistema presidencial. Este sistema misto tem duas versões, uma dita “forte” e outra, “fraca”, consoante a dominante é o Presidente da República (Alemanha de Weimer, Finlândia, França) ou o Primeiro-Ministro (Islândia, Irlanda, Áustria, Portugal). Esta dicotomia (e as formas mistas) não se aplicam aos regimes autoritários, pois aquelas categorias baseiam-se no princípio da separação e equilíbrio de poderes dos órgãos de soberania, enquanto que os regimes autoritários baseiam-se na fusão de poderes e na obediência a uma mesma e única linha de comando no aparelho do Estado, normalmente personificado num individuo que é apresentado como ícone do seu próprio regime. a. Sistema Parlamentar O sistema parlamentar foi adoptou pela Grã-Bretanha, desde cedo, logo a seguir a revolução constitucional, como sistema político representativo (a duas câmaras) para assegurar os interesses de todos actores envolvidos e salvaguardar a monarquia que passou a submeter-se à Nação mas conservou os seus poderes de representação interna e externa. Mas, se o Monarca continuava a reinar, deixava de governar. A função executiva passava para um Gabinete, saído da representação nacional e liderado por um Primeiro-Ministro, politicamente responsável perante o Parlamento. O monarca conserva o poder de dissolução, como mecanismo de garantia de eficácia do sistema, em caso de crise. b. Sistema Presidencial Depois de cerca de 10 anos de experiência de uma confederação (1776 a 1787), os Estados Unidos adoptam uma Constituição para a Federação (1787). Recusando o sistema parlamentar britânico, optaram por um sistema mais forte que permitisse a emergência à cabeça dos poderes públicos de uma personalidade liderante que representaria e defenderia os interesses do país. Ao mesmo tempo, os constituintes 104 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA norte-americanos, inspirados na filosofia dos Lumières, queriam adoptar uma estrita e equilibrada separação de poderes entre o legislativo, o executivo e o judicial. A ideia era a de separar os poderes, especializando-os, mas também impor uma necessária colaboração entre eles, permitindo a eficácia do regime político. Uma eficácia fundada na independência recíproca dos três poderes e na certeza de poderem exercer as suas funções até ao fim dos seus mandatos, sem a interferência de qualquer um deles. O sistema de governo presidencial repousa assim na existência de dois poderes fortes independentes e colaborantes: o Congresso e o Presidente da República. O Congresso dispõe completamente do poder legislativo, sem nenhuma interferência do Presidente da República, quer como Chefe de Estado, quer como detentor do poder executivo (salvo o poder de veto, que é limitado e reversível). O Congresso detém o poder constituinte, o poder legislativo e de aprovação do Orçamento Geral do Estado. Detém também o poder de declarar a guerra ou a paz e (o Senado) de rectificação dos tratados internacionais. Por seu lado, o Presidente da República dispõe completamente do poder executivo e da administração para realizar a sua política, sem nenhuma interferência do Congresso. O PR é o “patrão” da política interna, pois ele é irresponsável politicamente, perante o Congresso (salvo o caso excepcional de “impeachment”). A sua responsabilidade é diante da Nação que lhe conferiu mandato em eleições e o torna ainda mais independente. Esta independência é-lhe garantida também pela equipa de que dispõe o Gabinete Presidencial (White House Office) e outros órgãos subsidiários. O Presidente da República é também o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas o que lhe permite, em situação de guerra, conduzir operações militares. É também ele que orienta a política externa, assumindo-se como o chefe da diplomacia, na medida que negoceia tratados, mas somente o Senado pode ratifica-los e nenhum embaixador é nomeado pelo Presidente da República sem o consentimento do Senado. Por outro lado, somente o Congresso pode “regular o comércio com as nações estrangeiras”. Assim, o Presidente da República americano, sendo uma figura central da política do país, partilha estes poderes com o Congresso. Uma partilha de poderes de maneira a garantir um equilíbrio institucional, garantido por múltiplos sistemas de controlo recíproco, para que “o poder pare o poder”, como dizia Montesquieu, no seu célebre livro “O Espírito das Leis”. Este sistema de “pesos e contrapesos” (check and balances) é um dos fundamentos do sistema presidencial americano. A partilha de poderes é também garantida, tratando-se de um Estado Federal, nas relações entre a federação e os Estados federados, nas relações entre estes e as colectividades territoriais. A garantia das liberdades públicas é também assegurada pela existência de ampla liberdade de expressão, imprensa, manifestação e associação, pela existência de um forte espaço público e pelo dinamismo da escolha política, mesmo no interior dos partidos políticos, com as chamadas primárias. Análise hermenêutica da Constituição 2010 Há basicamente duas grandes correntes sobre a sociabilidade humana: naturalista (Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e outros) e contratualista (Hobbes, Rousseau e outros). Tanto os jus naturalistas, quanto os contratualistas, reconhecem a necessidade da instituição de uma ordem que permita ao homem-indivíduo e ao homem-comunidade o desenvolvimento da sua arte de vida, de sua liberdade física e criativa. A diferença é que os primeiros dizem que o princípio de organização da sociabilidade humana é 105 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA conforme a natureza, enquanto os segundos defendem que este princípio é o resultado de uma convenção. * A filosofia da Constituição de 2010 Malgrado alguns dos parágrafos do seu preâmbulo, não creio que se possa ter dúvidas sobre o carácter contratualista da Constituição de 2010, já que esta é tida como o resultado da vontade deliberada do “Povo de Angola” de “construir uma sociedade fundada” num conjunto de valores, com vista à realização de um projecto de vida comum (preâmbulo da Constituição de 2010). Assim sendo, para apurar a filosofia de base da nova Constituição, dispenso os naturalistas e apenas me debruço sobre os contratualistas, escolhendo dois autores paradigmáticos e opostos: Thomas Hobbes, no seu livro Leviatão, cujo subtítulo é bastante expressivo do seu conteúdo, “tratado da matéria, da forma e do poder da Republica eclesiástica e civil” (1651) e Jean-Jacques Rousseau, na sua celebríssima obra, Do Contrato Social (1762), cujo subtítulo é também muito eloquente: “princípios de Direito político”. Thomas Hobbes parte da ideia de que a vida humana fora da polis é impossível, devido a maldade do Homem. A ideia inicial segundo a qual o medo da morte está na origem da comunidade política atravessa toda a obra de Hobbes. Para ele o Estado é instituído para afastar o perigo de morte violenta. O “estado de natureza” é o lugar da guerra de todos contra todos. Esta proposição de Hobbes parte de uma antropologia geral em que o Homem é apresentado como um ser de desejo que procura sempre adquirir ascendente sobre os outros, i. e., que procura poder sobre os seus semelhantes. É a partir desta premissa, segundo a qual o Homem é uma presa da paixão de potência que se deve perceber a descrição antropológica do Leviatão. O estado de “natureza” é o lugar da igualdade e é esta igualdade fundamental que permite a cada ser desejar o que melhor lhe parecer que é a causa da guerra de todos contra todos. Pois se cada um faz o que os seus desejos determinam haverá sempre conflito de desejos incontrolados. E, por isso, é inevitável que “a luta seja o estatuto da igualdade, sendo a guerra o estatuto da própria natureza”. A guerra aparece não como uma batalha efectiva mas antes de mais como uma disposição da natureza humana que resulta do seu desejo de potência. Neste sentido filosófico, a Paz aparece como simples negação, como um momento provisório e fugaz de suspensão da guerra efectiva. E, por isso, tornar a Paz positivamente pensável e historicamente real é o projecto do Leviatão (do Estado). Para isso, Hobbes reconsidera o estatuto da política. Esta existe já no estado de natureza, na medida que este se apresenta como uma luta até a morte que tem sua origem no desejo de potência imanente a condição humana, no desejo de subsistir, na liberdade de todo homem de agir a favor da conservação da sua própria vida. Mas, se a conservação de nós próprios, “lei eminentemente natural”, conduz a perda violenta da vida, no acto mesmo de a defender, torna-se razoável para os homens que era preciso escapar a esse funesto estado de natureza. Torna-se necessário aos homens dotarem-se de uma lei comum, por todos desejada e a que todos obedecem pois nela encontram protecção das suas vidas e bens, e, logo, a garantia dos seus desejos. Somente uma lei positiva, inteiramente humana (porque querida pelos homens) pode assim satisfazer a própria lei natural que os empurra para a auto-conservação. Assim a “natureza” sendo sempre um primus torna-se um momento negativo porque lhe falta uma lei comum. É esta lei comum, e somente ela, que é capaz de definir uma norma do bem e do mal, do justo e do injusto, 106 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA uma norma geral da equidade. Este tipo de norma não existe na “natureza”. Esta apenas conhece o desejo, i. e., a força e a potência. Para Hobbes, o desejo e as demais paixões humanas não são pecados. Não há falta – e a respectiva interdição – senão quando uma norma positiva (admitida por todos e a todos imposta) determina uma conduta como falta ou interdita determinada acção. A existência segundo a natureza aparece, a contrário, como necessidade de recorrer a uma outra norma que não seja a do desejo ou de potência. É na vida política que se resolve a contradição da vida natural. A política tem pois um papel de pacificação das relações sociais. Por isso, Hobbes remodela o conceito de “natureza”, e fá-lo em dois tempos: primeiro, estabelece uma distinção entre Direito natural (jus naturalis) e Lei da natureza (lex naturalis) que se opõem, da mesma maneira que a liberdade se opõe a coerção (submissão). É esta distinção capital, ligada ao conceito de soberania, que torna possível uma teoria geral do pacto social. Contrato social que é a origem do estado de sociedade pois é este pacto que permite ao Homem passar do estado de natureza - onde se encontra entregue aos seus sentimentos primários – ao estado civil. Segundo, estabelece um pacto social que permite substituir o reino mortal, propriamente dito, da natureza pelo reino pacificado da política. Enquanto o pensamento político grego via na natureza (Phusis) o laço que torna possível a comunidade política, Hobbes vê nela a sua negação. A ordem natural é a ordem das paixões, do livre desejo, é o estado de guerra permanente, não podendo, por isto, fundar um estado político, i. e., um estado de paz. Se para o pensamento antigo era preciso viver segundo a lei natural, para Hobbes é preciso pensar a sociedade política não como o resultado da “natureza” (Aristóteles) mas como resultante de uma convenção. Assim, o que o pacto social primeiramente vai instituir é o abandono da morte à natureza. Mas, isto só é possível na condição expressa de cada um renunciar ao seu direito natural, de tal maneira que do engajamento tomado mutuamente, resulte uma “pessoa” (individual ou colectiva) na qual repousa o exercício da soberania. O pacto ligando os homens, primeiramente, entre si e, depois, ao soberano é, diz Thomas Hobbes, “mais do que um consentimento ou um acordo, trata-se de uma verdadeira unidade de todos os homens numa só que é como se cada homem devesse dizer a todo homem: eu autorizo este homem ou esta assembleia de homens, e eu lhes transmito o meu direito de me governar a mim mesmo, na condição de que tu lhe transmitas teu direito e autorizes todas as suas acções na mesma pessoa, realizado por convenção de cada um com o outro, da mesma maneira. Isto realizado, a multitude assim unida numa só pessoa, é chamado Estado (Common-wealth), em latim Civitas. Este é o nascimento desse grande Leviatão, ou melhor (para falar com mais deferência) de esse deus mortal, ao qual nós devemos, sob o deus imortal, nossa paz e nossa protecção” [capítulo XVII]. Esta instituição artificial da soberania, por contrato ou convenção, leva os sujeitos a obediência da “lei civil”. Hobbes entende por “lei civil” o corpo de leis positivas em vigor no Estado de que um indivíduo é membro. Esta teoria do contrato social ganhou, com Jean-Jacques Rousseau, um desenvolvimento ulterior, em termos de “soberania do povo”. Rousseau também tem no centro da sua doutrina a ideia de contrato mas, neste caso, o contrato não é entre uma comunidade e o Príncipe mas entre todos os membros da comunidade que formando uma assembleia se constituem em soberano. O Contrato Social foi escrito para fundar essa nova legitimidade baseada essencialmente na soberania do povo. Para ele o soberano é o povo e por isso a sua construção teórica vai no sentido de fundar a autoridade legítima no povo. Para Rousseau a “natureza” não pode jamais servir de fundamento à autoridade: “natureza” e “autoridade” são termos contraditórios. Para ele nem um “deus”, nem uma natureza podem ser invocados para fundamentar a autoridade. 107 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Não há autoridade legítima que não venha dos homens. Para o autor do Contrato Social, a sociedade civil, face ao estado de natureza, é uma decadência na desgraça mas uma vez começado o processo de civilização, a cooperação organizada torna-se indispensável. Ao perderem a “liberdade natural”, os homens, querendo reencontra-la na sociedade civil, engajam-se mutuamente a respeitar a lei que eles escolhem para si próprios. Sem que ninguém ceda a sua liberdade a um outro, a dependência torna-se impossível. É preciso pois, segundo Rousseau, encontrar um fundamento tal que cada um cuide de ser livre, apesar de submetido a autoridade. E, como a melhor solução, a garantia mais segura para esse propósito é cada um obedecer a si mesmo, então o povo aplica a si próprio uma lei que aparece como a expressão do interesse geral. O povo, tal como o monarca, pode ser soberano no Estado. E, esta soberania do povo, deve ser estabelecida por uma convenção, por um contrato, i. e., por acto voluntário e livre de todos, pois “renunciar a sua liberdade, diz Rousseau, é renunciar a sua qualidade de homem, aos direitos da humanidade, mesmo aos seus deveres” (I, 4). Rousseau, baseado na distinção de Jean Bodin (1529-1596) entre soberania e governo, introduz uma inovação que é a noção de “vontade geral”. Noção capital na teoria rousseauista de povo, pois “a vontade geral”, é a vontade do povo. A vontade geral exprime o pensamento do povo na medida que exprime o universal. Porque quando o povo pensa ele pensa o universal, i. e., a liberdade na forma de universalidade. Sendo a vontade do povo uma vontade geral, não é difícil compreender porque o poder se pode transmitir mas nunca a vontade. Esta distinção do poder, susceptível de ser representado, e a vontade, inalienável, (i. e., a distinção entre a soberania do Estado e a sua realização, o seu “exercício” pelo “Governo”) é a distinção fundadora da soberania, nos termos em que Jean-Jacques Rousseau a apresenta no Contrato Social (1762), na sequência do que havia teorizado Jean Bodin, no seu Seis Livros da Republica (1576). Por isso, no Estado rousseauista, em que o soberano é o povo, este não pode transmitir a sua vontade mas tão-somente delegar o poder dela resultante. Sendo também que a vontade do Estado, que é expressa pela Lei, não pode ser senão a vontade do povo. Caso assim não o seja, o Estado é um poder tirânico. O poder não é senão uma comissão derivada do princípio original: a vontade do povo, a soberania. O direito natural clássico submete a lei positiva ao Direito natural, fundando assim uma política por natureza. Hobbes submete a lei natural ao direito positivo do soberano, i. e., limita a liberdade natural à lei civil. Esta submissão é a formulação teórica, juridico-política da dominação tal qual ela é praticada pelo Estado moderno. Hobbes, não somente reverte as posições antigas do problema político mas “constrói” também uma outra “natureza” que justifica a obediência à lei civil e revela o Estado (“deus mortal”, como lhe chama o próprio Hobbes) como um ser artificial, fruto da razão dos homens. Em suma, Rousseau vai a contra-corrente de todas as teorias que defendem a hipótese de uma sociabilidade que baseie a vida social e política na natureza. Rousseau é anti-Aristóteles porque recusa a hipótese de uma sociabilidade natural mas é sobretudo anti-Hobbes pois recusa frontalmente a teoria do “estado de natureza” do filósofo inglês, na qual não vê lógica. Para Rousseau, a partir do momento que o Homem deixa de ser o “bom selvagem” (um ser individual, auto-suficiente e feliz) e passa a viver em sociedade (numa situação de conflito de interesses, onde as desgraças se multiplicam) tem necessidade de encontrar um artifício coercivo como instrumento de sobrevivência à guerra (à morte). Por isto, o contrato social, em Rousseau, é um contrato de cada um com todos os outros membros da sociedade, pois o 108 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Povo, ao ser desapossado do poder legislativo, torna-se escravo. O rousseauismo político é o pensamento que mantém o princípio da soberania como forma do Estado histórico que coloca no centro da sociabilidade humana o Direito, tido como a expressão da vontade geral e meio de regulação racional das relações sociais consentidas. * O papel central do Direito na sociedade moderna O Direito, como sistema de normas abstractas que se impõe a todos, inclusive ao superior hierárquico que obedece também ele à ordem impessoal da Lei, aparece como uma das formas de controlo social, a par de outras e para suprir à insuficiência dessas outras formas, como a religião, a moral, a ética e as convenções sociais. O Direito aparece como o meio de controlo social mais eficaz por poder ser aplicado coactivamente com recurso a órgãos especializados de controlo social, como são a administração, a polícia, e o sistema judiciário. Por isto, é que a norma de Direito é um dever-ser que seres racionais aceitam colectivamente como garantia da paz civil e da liberdade de cada um, em vista da realização de uma ideia de justiça. Lacordaire dizia que “lá onde a liberdade oprime, a Lei liberta”. É esta noção ideal de liberdade e justiça que faz a crença no Direito e justifica a sua utilidade. Mas, o Direito é um dever-ser não pela força da consciência (como na moral) mas pela força da coerção física legítima. Aquela violência que é exercida em nome do bem comum e da paz civil por uma autoridade a quem a colectividade reconhece essa função. Por isso, o Direito, como dizia Miguel Reale, é uma unidade constituída do “facto”, do “valor” e da “norma”. O Direito nasce do “facto” (político, económico, social) “jus ex facto oritur” mas é portador de um valor cultural e materializa-se numa norma coerciva. João Baptista Machado considera que “o Direito enquanto postula eficácia ou vigência social, depende da coação, mas também pode dizer-se que depende da força. Na sua origem, porque ele é hoje ditado por uma autoridade social (o Parlamento, o Governo) que tem por detrás de si o poder político, isto é, o poder do Estado. Na sua aplicação efectiva, porque a efectivação da sanção é garantida pela existência e actuação de uma instância organizada e integrada no aparelho de Estado”iii. Mas como dizia JeanJacques Rousseau, “ainda o mais poderoso de todos os homens, não será suficientemente poderoso, se não souber converter o seu poder em Direito e a obediência dos outros em dever” (Contrato Social, p.). Para este autor a autoridade deve afirmar-se como sendo “uma autoridade que não é uma autoridade”, isto é, uma autoridade que não é autoritária, que não se afirma pelas virtudes de uma força exterior à comunidade mas pela força do seu consentimento. E, por isto, quanto mais esta autoridade for assente na coesão da vontade social, menos terá necessidade de cooptar a realidade para o seu projecto quer pela violência física, quer ideológica. * Os tipos de autoridade O Direito corresponde à uma autoridade baseada na razão e na lei. Mas não é a única forma de autoridade que se conhece. Max Weber distingue três tipos de autoridade: tradicional, carismática e burocrática. Estas formas de autoridade podendo, nos nossos dias, coexistir, são compreendidas como formas diferentes de institucionalização da sociedade e, particularmente, do poder político na sociedade. 109 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A autoridade tradicional assenta na convicção colectiva do carácter sagrado da tradição e na correlata legitimidade do exercício de poder por aqueles que a representam, pelo que a autoridade é transmitida por herança. É a autoridade própria das sociedades onde não há diferenciação entre as estruturas administrativas e as demais estruturas, nem um processo de secularização entre o poder político e o poder religioso, não havendo, por isto, uma separação nítida entre a esfera da autoridade e a esfera particular, entre a esfera pública submetida à autoridade e a esfera privada; a esfera da competência privada do indivíduo. A autoridade carismática nasce da pretensão de um chefe em impor a sua autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral e baseia-se na força simbólica do chefe. Este impõe a sua autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral que se fundamenta na submissão do grupo, da comunidade às suas virtudes (heróica ou exemplar) tidas como fora do comum. O chefe impõe-se e submete os outros às suas ordens em razão, segundo Maurice Duverger, “do carácter naturalmente emocional da entrega ao chefe em quem se confia”. O carisma aparece pois como irracional e afectivo. O chefe carismático deve pois suscitar o entusiasmo pelas promessas, pela excitação das emoções, das paixões, recorrendo, geralmente, à demagogia como método de sedução. E quando os meios de convicção são escassos o chefe carismático utiliza o seu prestígio e o papel que desempenha na estabilidade da organização para defender o seu poder pessoal (ditatorial). Já que o chefe carismático é, em regra, tido como um ícone e se presta e alimenta o culto da personalidade para perenizar a sua utilidade simbólica e prática, logrando o consentimento dos seus seguidores. Por isso, normalmente, o chefe carismático apoia-se num grupo carismático central, estabelecendo uma hierarquia do carisma, em que somente o carisma do chefe é pessoal, sendo o dos demais abstracto e “institucional”. O grupo central carismático aparece também como um instrumento do chefe para reforçar o seu poder; utilizando a inveja e acicatando as rivalidades, no seu seio, o chefe aparece como sendo o único capaz de fazer “a síntese entre os interesses e rivalidades presentes. Por outro lado, o chefe dirige o grupo central carismático manipulando o desejo e a ambição de todos de fazer parte da elite, jogando com as suas rivalidades também ao nível das várias mediações corporativas e da base popular com a qual desenvolve uma relação mística e demagógica. A autoridade burocrática deriva de dois processos histórico-sociais determinados: um de diferenciação entre a esfera política e a económica e outro de secularização entre o político e o religioso, onde a autoridade é atribuída a instituições especializadas, geralmente designadas por administração burocrática A autoridade burocrática (legal ou racional) fundamenta-se na “ordem impessoal da Lei” pois ela deriva de dois processos de diferenciação e de secularização. É própria de uma sociedade onde a autoridade é atribuída a instituições especializadas, designadas por administração burocrática. Esta autoridade repousa na crença na Lei, na existência do Direito como sistema de normas reguladoras das relações sociais e limitador do exercício do poder. Por isto, a figura típica desta forma de autoridade é o funcionário, isto é, um agente que agindo em nome do Estado (poder secular) obedece a regras legais e procura fazer obedecer os outros a essas (ou outras) regras. Neste sentido, a relação de obediência, na base de um conjunto de regras abstractas e universais que se impõem a todos (incluindo os superiores hierárquicos, por exemplo, o Presidente da República deve obediência à Constituição) não é entre pessoas; não se obedece a um indivíduo mas a regras. Esta obediência não pode assim fazer-se senão em relação aquilo que a 110 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Lei prescreve e pressupõe uma autoridade constituída de órgãos administrativos que aplicam a lei, i. e., uma função pública que seja continua e que obedeça ela própria a regras anteriormente estabelecidas. Tipos de Dominação segundo Max Weber (in Dominique Colas, Sociologie politique, Paris, PUF, 1994, p. 122) VARIÁVEIS AUTORIDADE Carismática Tradicional Racional Base de dominação Convicção no carácter sagrado da tradição Reconhecimento da “empatia” Obediência à Lei Faculdade utilizada Respeito Emoção Razão Designação do líder Senhor Chefe Superior hierárquico (funcionário) Designação dos dominados Servidores (associados ou súbditos) Partidários Cidadãos Recursos Taxas Impostos Regime político típico Monarquia absoluta Espólio /Dom Ditadura Plebiscitária Democracia parlamentar Tipo de Revolução Revolução tradicionalista Revolução radical -- i. A gramática do texto constitucional Os regimes democráticos são organizados segundo o princípio da separação de poderes (legislativo, executivo e judicial) a fim de evitar a sua concentração numa só pessoa. Algumas constituições privilegiam a estrita separação dos poderes, outras, consagrando essa separação, permitem, a níveis distintos, meios de controlo de uns em relação a outros. O poder legislativo, órgão colegial, representativo da Nação, é geralmente exercido por um parlamento, formado por deputados eleitos pelos cidadãos e dispõe do poder de editar a lei e de controlo do executivo. O poder executivo que pode ser exercido por órgão colegial ou unipessoal, materializa as leis em acção governativa e conduz a política nacional para dar satisfação as necessidades da comunidade. Para este fim dispõe de poder regulamentar e da administração e das forças de defesa e segurança. O poder judicial é o órgão de soberania que se encarrega de aplicar a lei para fazer cumprir a ordem estabelecida, para 111 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA decidir sobre conflitos entre o Estado e os particulares, ou entre particulares. A sua independência é fundamental pois é a garantia da sua imparcialidade. É, normalmente, a Constituição que define as suas competências e garante a sua independência. Esta define também a organização dos poderes públicos locais, distinguindo as competências do Estado (central) e das colectividades territoriais. Na Constituição angolana interessa-nos, para fins de determinação do sistema de governo, apreciar a divisão e equilíbrio de poderes entre os dois órgãos de soberania: o legislativo e o executivo. A parte da Constituição que trata dessa relação é o Título IV. Este refere-se à “Organização do Poder do Estado”, que surge na organização interna da Constituição, depois de outros três primeiros títulos sobre os (I) “Princípios fundamentais”, (II) os “Direitos e Deveres Fundamentais”, e (III) a “Organização Económica, Financeira e Fiscal”. O título IV estrutura-se com um primeiro capítulo dedicado aos “princípios gerais”, em que se definem os órgãos de soberania da República de Angola, como sendo o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais (artigo 105º), a forma de designação do Presidente da República e dos Deputados (artigo 106º) e a administração eleitoral (artigo 107º) – e pela enumeração sucessiva das atribuições e competências dos órgãos de soberania, tendo à cabeça o poder executivo (capítulo II), seguido do “poder legislativo” (capítulo. III) e do “poder judicial” (capítulo IV), o que pode, desde já, indiciar uma prevalência do executivo sobre o legislativo. Nesta sede, o Presidente da República, para além de Chefe de Estado, a quem cabem poderes de representação da Nação, no plano interno e externo, é definido como “o titular do Poder Executivo e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas” (artigo 108º, 1). Por isto, ao Presidente da República cabem competências como “Chefe de Estado” (artigo 119º), como “Titular do Poder Executivo” (artigo.120º), como “Comandante-em-Chefe (artigo 122º) e mais detalhadamente sobre matérias das “relações internacionais” (artigo 121º) e de “segurança nacional” (artigo 123º), sendo ele que “define a política geral do Estado” (artigo 120º, alínea a) e a administra em todo o território, através de órgãos consultivos (Conselho da República, Conselho de Ministros, Conselho de Segurança Nacional…) (artigo 134º ss), e estruturas governativas auxiliares centrais (Vice-Presidente, Ministros de Estado e Ministros) (artigo 108º, nº 2)iii e locais (Governadores e Vice-Governadores provinciais) que ele próprio escolhe e nomeia (artigo 119, alínea k). Mas, para além deste poder executivo e regulamentar (artigo 120º, alínea h), o Presidente da República - não sendo responsável politicamente pelos seus actosiii, nem perante a Assembleia Nacional, nem perante a Nação, que não o elege - goza também de poder legislativo: poder legislativo próprio que exerce através de “decretos legislativos presidenciais provisórios” (artigo 126º) e poder legislativo delegado (“autorizado”), que exerce através de “decretos legislativos presidenciais” autorizados (artigo 125º, nº 2) pela Assembleia Nacional, em matérias de reserva relativa desta. No mais, conta ainda com a força de pressão de que dispõe, em relação a actividade legislativa da Assembleia Nacional, através da sua iniciativa legislativa (artigo 167º, nº 1) e, sobretudo, por força do mecanismo de veto (artigo 124º, nº 2) que lhe é concedido ao promulgar as leis. A Assembleia Nacional é definida como “o parlamento de Angola”, “representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e 112 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA exerce o poder legislativo” (artigo 141º). Nesta condição, as suas competências são divididas em três domínios: competências no domínio político e legislativo (artigo 161º), em que sobressaem a aprovação das alterações à Constituição, de leis sobre todas as matérias, do Orçamento Geral do Estado, dos Tratados Internacionais, a concessão de autorizações legislativas ao Presidente da República, a proposição de referendos e o pronunciamento e sobre a declaração de guerra ou paz, do estado de sítio ou de emergência. Competência de controlo e fiscalização (artigo 162º), nomeadamente de analisar a Conta Geral do Estado e de autorizar o Executivo a contrair ou conceder empréstimos e de efectuar outras operações de crédito. E, ainda, “competências em relação a outros órgãos” (artigo 163º), como seja, eleger juízes para o Tribunal Constitucional, juristas para os Conselhos Superiores de Magistratura Judicial ou do Ministério Público, membros do Conselho Nacional Eleitoral e de outros órgãos. No domínio legislativo as suas competências são divididas em competências com reserva absoluta (artigo 164º) e competências com reserva relativa (artigo 165º). São da competência da Assembleia Nacional, com reserva absoluta, as questões ligadas à nacionalidade, aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, às eleições, ao estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, do poder local e de demais órgãos constitucionais. Tal como o regime de referendo, do estado de guerra, de sítio e de emergência. O estabelecimento das bases da organização e funcionamento do poder local, da participação dos cidadãos e das autoridades tradicionais no seu exercício, da organização dos Tribunais, da defesa nacional, das forças armadas e de segurança pública e dos serviços de informação, bem como do estatuto dos magistrados e do Ministério Público, a tipificação dos crimes, a definição das penas e medidas de segurança e as bases do processo criminal. As competências da Assembleia Nacional, com reserva relativa, são aquelas que podem ser concedidas ao Executivo para este legislar sobre elas, como seja, estatuto da função pública, “incluindo as garantias dos administrados [que deveriam ser entendidos como direitos fundamentais], estatuto dos funcionários públicos e responsabilidade civil da Administração Pública”, estatuto dos institutos, empresas e associações públicos, bases do sistema financeiro, bancário e monetário, do sistema nacional de planeamento, de ensino, de saúde, de segurança social, do ordenamento do território, do equilíbrio ambiental, do património cultural, do regime geral de transmissão e concessão da terra, de exploração dos recursos naturais e da alienação do património do Estado. Definição dos sectores de reserva do Estado, no domínio da economia e regime dos bens do domínio público, de requisição e da expropriação por utilidade pública, criação de impostos e sistema fiscal, regime geral de taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas e também o regime geral do serviço militar, da punição das infracções disciplinares e de mera ordenação social e respectivo processo. É evidente que nesta Constituição de 2010, o legislativo perde poder de controlo e de fiscalização, perde poder de aprovação de actos do executivo (como seja o Plano Nacional) e são restringidas (em volume e importância) as matérias submetidas à reserva absoluta do parlamento. Por exemplo, as matérias sobre a economia nacional saíram das competências, com reserva absoluta, da Assembleia Nacional e passaram para as competências do Presidente da República, enquanto titular do poder executivo. Alguns dos anteriores poderes da Assembleia Nacional, de aprovação de acções do Presidente da República, são agora transformados em poderes de pronúncia, como acontece com a declaração do estado de emergência (art. 161, al. h) e a declaração de guerra ou feitura da paz (art. 161, al. i). Outros anteriores poderes de aprovação são 113 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA transformados num poder de análise, como acontece em relação à Conta Geral do Estado. A Assembleia Nacional torna-se assim uma mera câmara legislativa sem quase nenhum papel como órgão político de controlo do executivo. Mesmo como câmara legislativa vê os seus poderes reduzidos a favor do Presidente da República que para além da sua “iniciativa legislativa” (artigo 167º, 1), do seu poder de veto (artigo 124º, 2) partilha a função legislativa através dos sobreditos “decretos legislativos presidenciais provisórios” e de “decretos legislativos presidenciais” autorizados. Sistema consular bonapartista A nova Constituição estabelece uma evidente concentração de poderes no Presidente da República que dirige pessoalmente todos os níveis de poderes. Para além de que sendo titular do executivo, por força do sistema de “eleições gerais”, é sempre o chefe da maioria parlamentar, sem nenhuma responsabilidade política diante da representação nacional e detém um poder de dissolução dissimulado numa dita “autodemissão política do Presidente da República” (artigo 128º). O sistema de governo instituído por esta Constituição desrespeita o princípio da separação de poderes e consagra uma pirâmide de comando único, no vértice da qual se encontra o Presidente da República em quem se concentram todos os poderes. Este facto, leva-me a pensar nos sistemas autoritários, historicamente conhecidos e, em particular, no exemplo histórico de poder executivo forte que foge ao modelo democrático e aos seus sistemas de governo e configura um sistema autoritário: o sistema consular bonapartista, consagrado pela a Constituição francesa do Ano VIII (1796), após o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte. Esta Constituição que é, antes de mais, um texto técnico que define principalmente os poderes do Primeiro Cônsul, marca uma ruptura com a constituição democrática anterior, saída da Revolução Francesa (1789) e dá lugar a um poder pessoal, mantendo a ilusão da democracia. Os poderes do primeiro cônsul são consideráveis, enquanto os outros dois cônsules têm apenas poderes consultivos. A diferença, que se justifica pela distância de duzentos anos que separam as duas constituições, é que a constituição angolana tem um longo e bem elaborado catálogo de direitos, enquanto naquela constituição francesa não encontramos declaração de direitos e das liberdades, embora alguns direitos sejam afirmados em disposições gerais, como o direito da inviolabilidade do domicílio, a segurança das pessoas e o direito de petição. O sufrágio universal (masculino) é instaurado mas não permite a expressão dos cidadãos. Em verdade, tal como acontece na nova constituição angolana, em relação a eleição presidencial que foi suprimida, também na constituição bonapartista, as eleições foram suprimidas, os cidadãos deixaram de eleger os seus representantes e limitavam-se a apresentar listas de notáveis. A partir destas listas eram nomeados ou eleitos pelo Governo ou pelo Senado para cônsules ou funcionários, no espírito da máxima de Sieyes, segundo a qual “a confiança vem de baixo, mas o poder vem de cima”. I. Conclusão A actual Constituição angolana, segundo os detentores do poder, fecha um ciclo que teria iniciado em 1991-1992 com as duas sucessivas revisões constitucionais de Março de 1991 e de Setembro de 1992 que inauguraram um processo de transição para 114 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA a democracia, ao consagrar direitos de cidadania a todos os angolanos, o pluralismo político e a separação de poderes próprios de um “Estado Democrático de Direito”. Para os partidários desta Constituição, esta forma de governo, a atribuição exclusiva da autoridade do Estado ao Presidente da República, subalternizando a representação nacional, é a resposta à instabilidade política e a garantia de uma “estabilidade extraordinária”, assente no Presidente da República, como instituição chave do sistema, a quem cabe o papel determinante na direcção e “comando único” da política nacional. Para estes, esta forma de governo, conjugada a um largo catálogo enumerativo de direitos e liberdades fundamentais pode ainda ser, pela sua aparência, apresentada como uma forma democrática de governo. No entanto, ao conferir ao Presidente da República plenos poderes, justificados pelos seus promotores como resultado do dinamismo social, da evolução do pensamento político do partido no poder, como necessários para garantir o desenvolvimento do país, a Constituição de 2010 fecha um ciclo: um ciclo de restauração autoritária que sempre coexistiu com a ordem formal do “Estado Democrático de Direito” que estava consagrado na Lei Constitucional de 1992 (Setembro). É justo que se entenda a democracia como uma invenção permanente, que ela não obrigue à adopção de um modelo, de um tipo concreto de organização do poder de Estado mas não se pode ignorar que ela corresponde a um conteúdo determinado, a um quadro de valores preciso e que um regime político em que não há partilha de poder, nem separação de poderes, no qual todos os poderes estão concentrados num indivíduo (autocracia) ou num grupo (oligarquia) é qualificado como uma ditadura, como um regime autoritário, sendo tendencialmente um regime arbitrário e coercivo. A grande diferença entre os regimes democráticos e os regimes autoritários é que no primeiro observa-se um poder e uma autoridade partilhados, através da separação de poderes, enquanto no segundo caso o poder e a autoridade está concentrada numa pessoa ou grupo restrito de pessoas, obedecendo a uma mesma linha de comando único. Daí decorre também uma diferença fundamental em relação a existência, em democracia, de um espaço público, onde todos os actores sociais têm a possibilidade de participar livremente para contribuir para uma melhor gestão da res publica, tendo a oposição, não somente esta possibilidade mas também um estatuto próprio que é tido como importante para o desenvolvimento do país, enquanto nos regimes autoritários a participação é canalizada através de corpos intermédios e visa tão-somente clarificar as escolhas do Chefe. Nas democracias antigas, sempre que os poderes dos órgãos representativos, por razões ponderáveis, eram suspensos e transferidos para uma pessoa, considerava-se que se vivia em ditadura. Na República romana, a ditadura era entendida como a magistratura excepcional em que todos os poderes eram atribuídos a um homem só, por um mandato estritamente limitado. A situação de ditadura estabelecida pela Constituição, na parte referente a “organização do poder de Estado” (Titulo IV), em franca contradição com as declarações de princípios fundamentais, do Título I, onde é consagrado o “Estado Democrático de Direito, baseado na “soberania do povo”, em linha directa com uma filosofia de base rousseauista, não se apresenta como de transição, mas tem a pretensão de ser eficaz e desenvolvimentista e, por isto, pretende ser uma ditadura “de lei”, sem que esta seja a expressão da vontade geral mas a expressão da soberania do chefe (o poder de Um, segundo a concepção filosófica de poder de Hobbes) que procura projecção numa classe alta e média-alta que pelo engodo da igualdade e da participação corporativa, de inspiração hegeliana, ceda a liberdade a favor do chefe, e satisfeitos os seus interesses pela eficácia da administração, se torne, 115 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA juntamente com extractos das camadas baixas, beneficiárias do clientelismo corporativo e alimentadas pelo populismo político, o seu sustentáculo e lhe permitam uma reprodução sem ter que recorrer aos actuais mecanismos mais repressivos e fraudulentos. Conforma-se pois um poder que se apresenta como legal e racional, cujo fundamento é apresentado como sendo a lei – tida como obrigatória para todos – mas que investe fortemente nos mecanismos de funcionamento da autoridade carismática ou mesmo tradicional. Referências COLAS, Dominique, 1994, Sociologie politique, Paris, PUF. HOBBES, Thomas, O Leviatão, MACHADO, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador REALE, Miguel, ROUSSEAU, Jean-Jacques, O Contrato Social, REPÚBLICA de Angola, 2010, Constituição, Luanda, Imprensa Nacional de Angola. REPÚBLICA de Angola, 1992, Lei de Constitucional, Lobito, Escolar Editora. WEBER, MAX, 116 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Os CACSs na esteira da governação local: um olhar sobre o município do Bailundo José Maria Katiavala, Sociólogo e Director da Unidade de Projectos da ADRA. Introdução A problemática da desconcentração e descentralização vem preenchendo cada vez mais o debate político em Angola, mobilizando instituições do Estado, partidos políticos e organizações da sociedade civil, no quadro da promoção da governação local que favoreça a participação activa dos cidadãos na vida pública. No centro deste debate, a análise do funcionamento dos Conselhos de Auscultação e Concertação Social (CACSs) em implantação nos municípios desde 2008, ao abrigo das reformas operadas na Administração Local do Estado, tem suscitado enorme interesse e mesmo entusiasmo, particularmente no seio de militantes e activistas de organizações da sociedade civil. O presente artigo resulta da participação do autor, como assistente para o município do Bailundo, na província do Huambo, no Projecto de Pesquisa sobre os CACSs, de iniciativa do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola, desenvolvido entre 2009 e 2010, em parceria com o CMI (Christian Michael Institut) da Noruega e a ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente). As reflexões e análises que a seguir se apresentam, para além dos contactos mantidos com alguns membros do CACS do Bailundo, no quadro da pesquisa, resultam também do envolvimento do autor no debate sobre a descentralização e desenvolvimento local em Angola no interior da ADRA, organização a que está ligado há mais de 10 anos e que no seu trabalho de intervenção social em 22 municípios do país tem contribuído para efectivação desse processo. Contudo, eventuais juízos de valor emitidos ao longo do texto não engajam necessariamente a ADRA, sendo, sim, da inteira responsabilidade do autor. O artigo começa com uma breve contextualização do processo da desconcentração e descentralização em Angola com incidência nos principais eventos ocorridos no país nos últimos 10 anos. Segue depois a análise concreta da implantação do CACS no município do Bailundo com foco na composição, reuniões, representatividade e dinâmica de participação, terminando-se com algumas reflexões mais gerais sobre os desafios que se colocam aos CACSs na esteira da governação local. O contexto geral do processo de desconcentração e descentralização em Angola Nos últimos tempos a problemática da desconcentração e descentralização passou a ser objecto de discussão em Angola, no quadro de um processo mais amplo de reformas políticas, institucionais, sociais e económicas iniciadas no limiar da década de 90 com a adopção da democracia multipartidária e da economia de mercado. Com efeito, vale a pena destacar as principais referências que marcam as iniciativas voltadas para a promoção da desconcentração descentralização em Angola. 117 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A primeira referência data de 1999 com a aprovação do Decreto nº 17/99 de 29 de Outubro que depois veio a ser complementado pelo decreto executivo nº29/00 de 19 de Maio que estabeleceu o paradigma dos governos provinciais e das administrações municipais e comunais. A implementação deste diploma legal permitiu reforçar a capacidade institucional dos governos provinciais, conferindo-lhes maior autonomia na execução de programas públicos, tendo, por isso, sido considerado por especialistas como o “rosto” do início do processo de desconcentração em Angola, um processo que ainda “não atingiu, na plenitude, os efeitos desejados em virtude de a mesma não ter sido acompanhada da transferência de recursos organizacionais, particularmente financeiros e humanos”, segundo constata o Estudo sobre a Macro- Estrutura da Administração Local realizado pelo Governo Angolano em 2002 com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, embora recentemente se registem melhorias com o estabelecimento de unidades orçamentais nos municípios, conforme se analisa mais adiante. A implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização Administrativa, a partir de 2001, é a segunda maior iniciativa de destaque levada a cabo pelas autoridades angolanas, impulsionadas pela necessidade de reformar o funcionamento do aparelho do Estado, tornando-o mais próximo dos cidadãos. Concebido e posto em marcha ainda no período de guerra civil, o referido plano estabeleceu, no essencial, o princípio da transferência gradual das funções do Governo Central para a Administração Local, num primeiro momento, perspectivando-se, a médio prazo, a institucionalização de um poder local autárquico. Entretanto, em paralelo ao Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização Administrativa surgiram outras iniciativas, principalmente no âmbito da implementação de projectos de apoio ao desenvolvimento das comunidades locais promovidos por ONGs nacionais e estrangeiras com apoio de agências internacionais, como são os casos da União Europeia e do Banco Mundial. A União Europeia, através do Programa de Apoio à Reconstrução (PAR) apoiou, entre 2003 e 2005, projectos em alguns municípios das províncias do Huambo, Benguela, Bié e Huíla que introduziram uma inovação, no contexto das intervenções de desenvolvimento comunitário em Angola, ao adoptar a estratégia de constituição dos chamados Quadros de Concertação Municipal (QCM) com ramificações nas comunas, integrando responsáveis da Administração Local, autoridades tradicionais, associações de camponeses, líderes religiosos e outros segmentos das comunidades. Os QCM configuravam, por assim dizer, um potencial para a promoção da cultura do diálogo entre os detentores do poder político a nível dos municípios e comunas e os representantes das comunidades, mas este desejo não foi plenamente realizado, ao fim de quase três anos de implementação da experiência; é que as expectativas geradas pela criação dos QCM não foram satisfeitas por falta de um mecanismo financeiro para a implementação dos projectos identificados e elaborados após a realização de longos diagnósticos municipais, numa altura em que as necessidades de reconstrução de infra-estruturas e as carências materiais das comunidades eram enormes. Isso acabou, por esvaziar o conteúdo dos QCM e, obviamente desmobilizou as Administrações Municipais e as populações. Todavia, alguns analistas que vêm acompanhando o processo de desconcentração e descentralização em Angola, questionam se nessa altura havia por parte do Governo um efectivo compromisso político de tornar a iniciativa dos QCM num instrumento político de promoção da governação local. De qualquer modo, a experiência dos QCM constituiu um importante contributo conceptual no que toca à promoção da cultura do diálogo no seio das Administrações Municipais, vindo posteriormente a inspirar um 118 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA conjunto de iniciativas que despoletaram um pouco por todo país nos últimos cinco anos. A dinamização de fóruns municipais pelo Fundo de Apoio Social (FAS) é outra iniciativa que perfila nas tentativas de estimular a participação social no quadro da governação local. Agência do Governo, criada em 1994, para apoiar a implementação de projectos voltados à melhoria do acesso aos serviços sociais básicos pelas populações mais carentes, o FAS adoptou a estratégia de constituição de fóruns municipais com a pretensão de promover uma governação participativa nos municípios. As ONGs nacionais e estrangeiras também têm vindo a incorporar nas suas estratégias de intervenção, a componente do apoio à descentralização nos municípios, defendendo a bandeira da participação, da inclusão social e da cidadania. Do leque de ONGs envolvidas na implementação de projectos de apoio à descentralização, a ADRA, a DW, a Care International e a Save The Children são as mais activas, com intervenções centradas no reforço da capacidade organizativa das organizações comunitárias de base para que se tornem actores fundamentais da governação local. No caso da ADRA, o seu interesse na promoção da governação local remonta desde meados dos anos 90 dentro do debate sobre o desenvolvimento local no seio da organização, a partir da experiência do município pastoril dos Gambos, na província da Huíla, onde a dado momento o trabalho realizado com as comunidades locais viu-se confrontado com uma actuação junto das instituições do Estado no município, na perspectiva de assegurar a sustentabilidade das acções de desenvolvimento comunitário, então em curso na região. A aprovação do Decreto nº02/07 de 3 de Janeiro que estabeleceu o quadro das atribuições e competências e regime jurídico de organização e funcionamento dos Governos Provinciais, das Administrações Municipais e Comunais veio a conferir um novo impulso à implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização e às várias iniciativas das organizações da sociedade civil. Este diploma cuja elaboração resultou de estudos e reflexões sobre a estrutura e funcionamento da Administração Local do Estado e da contribuição das ONGs e agências internacionais engajadas em projectos de promoção da governação local trouxe, na opinião de analistas e militantes da sociedade civil angolana, dois significativos ganhos para o processo de desconcentração e descentralização em Angola. O primeiro ganho a relevar é, sem dúvida, a constituição dos Conselhos de Auscultação e Concertação Social (CACS) nas províncias, municípios e comunas, um importante avanço na institucionalização do diálogo entre as Administrações Locais do Estado e as comunidades, como pressuposto crucial para a existência de uma governação local que se pretende democrática, como vêm advogando, nos últimos anos as organizações da sociedade civil, na esteira do debate mais amplo sobre a democratização da sociedade angolana. Conforme estabelece o decreto, o CACS, a todos os níveis, tem por finalidade apoiar os órgãos da Administração Local do Estado na apreciação e tomada de medidas de natureza política, económica e social, em sintonia com o princípio da participação e colegialidade, um dos vários previstos no diploma, que devem reger a organização e funcionamento da Administração Local do Estado. Contudo, na prática, o caminho a percorrer para que os CACS sejam espaços privilegiados de participação democrática dos cidadãos na governação local, é ainda longo. Volvidos dois anos após a implantação dos CACS, o seu funcionamento, na maior parte dos casos, está muito dependente da abertura e visão de cada líder do município. O segundo ganho tem que ver com o estabelecimento das unidades orçamentais nos municípios, tendo-se seleccionado numa primeira fase 68 municípios. Em 2008, o 119 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Governo Central aprovou uma linha de financiamento para os municípios, criando o Fundo de Apoio à Gestão Municipal (FUGEM) através do decreto nº 8/08 de 24 de Abril, instrumento de “suporte ao exercício das competências das administrações municipais, decorrentes do Decreto-Lei nº2/07. De acordo com o referido decreto, o FUGEM “tem por finalidade dotar as administrações municipais com recursos financeiros adequados a uma rápida e eficaz intervenção na resolução dos problemas urgentes que afectam as populações”. O quadro jurídico decorrente da entrada em vigor da nova Constituição trouxe novos elementos para a descentralização e a promoção da governação local, ao aprofundar a questão do poder local, principalmente no que toca à institucionalização das autarquias locais, gerando uma certa expectativa em relação à realização de eleições municipais nos próximos tempos. Em face deste novo quadro constitucional foi criada a Lei da Organização e do Funcionamento dos Órgãos de Administração Local do Estado (Lei nº 17/10 de 29 de Julho) que foi praticamente uma adaptação do Decreto Lei nº 2/07 com a introdução de alguns elementos novos, sendo de relevar a integração dos partidos políticos com assento parlamentar nos CACS. A implantação do CACS no Bailundo: a representatividade em questão O Bailundo foi dos primeiros municípios da província do Huambo a constituir formalmente o CACS no início de 2008, um ano após a entrada em vigor do Decreto nº02/07. O Bailundo fez parte dos 68 municípios abrangidos pela fase experimental de desconcentração financeira e isso terá funcionado como factor de motivação para a dinamização do CACS municipal, na medida em que a mobilização dos diferentes actores sociais do município, tendo em vista a sua integração neste espaço decorreu na expectativa de existirem recursos para responder às demandas das comunidades locais. Nas linhas que se seguem debruçamo-nos sobre os aspectos essenciais que marcam a dinâmica do CACS no Bailundo, dando ênfase aos limites e desafios que esta experiência configura no que toca à democratização da governação local. Antes, porém, são apresentadas algumas informações gerais sobre o município. Informações gerais sobre o município O município do Bailundo ocupa uma superfície de 7.065 quilómetros quadrados, representando 20 % do território da província do Huambo. Tem uma população estimada em 237.160 habitantes distribuídos em cinco comunas: Sede, Luvemba, Lunge, Bimbi e Hengue. É dos municípios mais populosos da província depois do Huambo e Caála. Á semelhança de outros municípios do interior do país, o Bailundo ficou muito afectado durante o período de guerra civil, principalmente na sua última fase, entre finais de 1998 e princípios de 2002 quando se transformou num dos principais palcos de confrontos militares entre o exército nacional e as forças militares da UNITA. Com o fim da guerra, o município do Bailundo tem conhecido várias intervenções de programas públicos, o que está a permitir a recuperação gradual das suas infra-estruturas sociais e económicas. Nos últimos três anos o Governo central implementou no município projectos de reabilitação de estradas e dos edifícios da Administração Municipal, o que contribuiu significativamente para a melhoria das ligações com a capital provincial e outras localidades de Angola; antes, a ligação entre Bailundo e a cidade do Huambo, por exemplo, era feita quase em três horas e hoje faz120 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA se apenas em uma hora. O edifício da Administração está completamente reabilitado e equipado com mobiliário moderno, telecomunicações e outros meios. Em 2008, no quadro da desconcentração financeira, Bailundo beneficiou dos cinco milhões de dólares. Esta medida permitiu alargar as acções de reabilitação para as outras comunas, com destaque para os edifícios administrativos, escolas e postos de saúde. O que dizer sobre o CACS? Composição Segundo o figurino que o Decreto nº02/07 estabelece e agora reforçado pela Lei nº 17/10 de 29 de Julho com a incorporação de novos actores, com destaque para os partidos políticos representados na Assembleia Nacional, o CACS integra, todos os membros da Administração Municipal (administrador e o seu adjunto, administradores comunais e chefes de repartições), representantes das autoridades tradicionais, do sector empresarial público e privado, das associações de camponeses, das igrejas reconhecidas por lei e das ONGs. No Bailundo, a composição inicial do CACS foi de 30 membros, tendo mais tarde aumentado para 40. Um aspecto a reter é que o Bailundo não esperou pela Lei nº 17/10 para alargar o número de conselheiros; de acordo com um entrevistado, a dada altura sentiu-se a necessidade de envolver mais representantes, como foi o caso dos partidos políticos, do aumento de sobas e da integração de todas as igrejas representadas no município e reconhecidas por lei. No caso particular das igrejas, inicialmente estavam representadas apenas a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Congregacional de Angola, as duas mais influentes no município, o que terá criado alguma indignação nos círculos de outras denominações cristãs. Contudo, a escolha de representantes dos diferentes segmentos para os CACS tem suscitado algum debate, tudo porque na maior parte dos casos, os critérios de selecção não existem ou são pouco claros. Um dos aspectos mais cruciais que se levanta quando se analisa a composição dos CACS é como, por exemplo, equacionar a representação das autoridades tradicionais. No caso do Bailundo, a situação ficou, de algum modo resolvida, fazendo recurso a figura do Rei Ekuikui IV como representante das autoridades tradicionais, ao lado de dois sobas grandes. Porém, na prática, o rei tem apenas uma função simbólica, tendo pouco contacto com a vida quotidiana das comunidades. Comentando sobre este assunto da representação das autoridades tradicionais nos CACS, o responsável do Gabinete de Apoio e Controlo das Administrações Municipais e Comunais do Huambo, afirmou ser um aspecto problemático porque “cada autoridade tradicional é autónoma”. Provavelmente esta é uma situação que poderá ser solucionada quando se imprimir maior dinâmica ao funcionamento dos CACS ao nível das comunas. Reuniões Desde a sua constituição, o CACS municipal do Bailundo realizou sete sessões, das quais uma extraordinária. Em 2008, o CACS reuniu-se por quatro vezes e esse foi o ano “mais produtivo”, porquanto a dinâmica de implementação do Plano de Intervenção Municipal dava conteúdo de trabalho e substância à actividade da Administração 121 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Municipal e impunha-se a necessidade de manter informado este órgão sobre o grau de realização dos projectos e aplicação dos recursos alocados ao município. Em 2009, o funcionamento do CACS abrandou e foram realizadas apenas duas reuniões das quatro previstas, de acordo com o que estipulava o Decreto nº02/07 no artigo 54º ponto 6 segundo o qual “ O Conselho Municipal de Auscultação e Concertação Social reúne-se ordinariamente de três em três meses e extraordinariamente sempre que o Administrador o convocar. São apontadas três razões fundamentais que estão na base do funcionamento irregular do CACS municipal do Bailundo em 2009. Em primeiro lugar, a crise financeira levou o Governo a reduzir drasticamente os apoios financeiros previstos para os municípios, sendo que grande parte dos projectos que haviam sido elaborados pela Administração Municipal não foram implementados, o que, por arrasto, condicionou o funcionamento do CACS. É que sem projectos concretos em marcha não havia muitos motivos para reunir os membros. Em segundo lugar, Bailundo viveu um período de cerca de sete meses, sem Administrador Municipal, depois da anterior titular ter tomado posse na Assembleia Nacional, integrada no grupo de deputados do MPLA pelo círculo provincial do Huambo, após a realização das eleições legislativas de Setembro de 2008. Além disso, o município também não tinha um Administrador Adjunto em funções, em virtude de a pessoa que exercia o cargo ter sido dispensada, por problemas de saúde. Deste modo, não havia no município, uma figura com competência legal para convocar o CACS, mas ainda assim foram realizadas duas sessões, uma das quais dedicada à análise do Plano de Intervenção Municipal para 2010. Em terceiro lugar, assinale-se a interferência das estruturas governamentais a nível provincial no funcionamento da Administração Municipal que muitas vezes vê-se forçada a pôr de lado a sua programação normal de actividades para dar resposta às orientações superiores. Um destacado membro da Administração Municipal do Bailundo caracterizou tal interferência nos seguintes termos:“Às vezes acontece que os convites já foram distribuídos, os membros mobilizados e aparece uma convocatória dirigida ao Administrador, às 17 horas, para participar no dia seguinte numa reunião do Governo Provincial, exactamente na mesma altura em que foi programada a sessão do CACS. E como é ele que tem que presidir o CACS adia-se a sessão.” Na senda da mesma reflexão, o referido membro critica o facto de o Governo Provincial prestar pouca atenção ao funcionamento dos CACSs a nível dos municípios:“O Governo não solicita a prestação de contas sobre o funcionamento dos CACSs. Tem de haver maior coordenação do Governo Provincial com a Administração Municipal.” Este depoimento é indicador de que as estruturas centrais não têm dado a devida importância política aos CACS enquanto espaços privilegiados para a promoção de uma governação local democrática, fundada na construção do diálogo entre governantes e governados. Isso explica, em parte, as dificuldades que vêm sendo vividas, um pouco por todo país no processo de implantação dos CACS. Uma maior intervenção das estruturas centrais no apoio às Administrações Municipais na dinamização do funcionamento dos CACS, afigura-se, de resto, como um dos desafios a encarar no futuro, prestando assistência técnica e metodológica para que estes espaços cumpram com os propósitos para os quais foram previstos na estrutura orgânica dos órgãos da Administração Local do Estado. Em 2010 até a data da realização das últimas entrevistas com os membros da Administração Municipal, apenas tinha sido realizada uma sessão do CACS. A entrada em vigor da nova constituição e o subsequente processo de adaptação da legislação ordinária sobre a Administração Local do Estado e de outros sectores da vida nacional 122 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA criou um certo ambiente de indefinição no funcionamento das instituições e, no caso das Administrações Municipais esta situação acabou por condicionar também a realização das sessões do CACS. Daí que no Bailundo a primeira sessão do CACS tivesse somente ocorrido no mês de Agosto, durante a qual os conselheiros tomaram conhecimento do processo de elaboração do Programa Municipal Integrado de Desenvolvimento Rural Integrado e Combate à Pobreza, uma iniciativa da Casa Civil da Presidência da República que veio a substituir os Planos de Intervenção Municipal. Representatividade Ao abordamos a composição do CACS fizemos alguma referência sobre a questão da representação, particularmente no que diz respeito às autoridades tradicionais e tal como sublinhamos, no Bailundo houve um alargamento de membros, antes mesmo das últimas reformas legais operadas com a entrada em vigor da Lei 17/10 de 29 de Julho. Com a referida lei, a composição do CACS foi alargada, integrando agora representantes de partidos políticos com assento parlamentar e do Conselho da Juventude. Com efeito, lendo a relação nominal de membros do CACS Municipal do Bailundo a que tivemos acesso, datada de 20 de Maio de 2010, o aspecto da representatividade suscitou-nos algumas preocupações. Primeiro é que os membros da Administração Municipal estão em maioria, representando 35%, seguindo-se o sector empresarial com 20%, as igrejas com 12,5% e as ONGs com 10%; as autoridades tradicionais e as associações de camponeses representam 7,5% e 5% respectivamente. Os partidos políticos representam 5% dos membros do CACS que integra ainda um médico que dirige o Hospital Municipal do Bailundo e o representante dos registos (5%). Um dado a reter aqui é que num município predominantemente rural, a representatividade das autoridades tradicionais e das associações de camponeses, entidades mais próximas das comunidades locais, é bastante limitada e isso pode ter reflexos, por exemplo, no momento de decidir sobre os investimentos no município. O segundo aspecto a considerar é que analisando, sociologicamente, a composição do CACS em termos de representatividade percebe-se que é a “classe dirigente” do município que domina o espaço, acabando por ter um peso significativo no processo de tomada de decisões. As classes populares não estão suficientemente representadas no CACS, tomando em consideração o reduzido número de autoridades tradicionais e membros de associações de camponeses no CACS. Este é de resto, um dos limites dos CACS quando vistos na perspectiva da promoção da participação popular na governação local. Há aqui um desafio no sentido de se buscar outros mecanismos de participação social fora dos CACS mas que sirvam de seu complemento. A experiência nos países da América Latina, principalmente do Brasil, de criação de conselhos populares, e entre nós, as comissões de bairros, poderia ser uma alternativa para contornar esta limitação dos CACSs. Não se trata aqui de transformar o CACS numa assembleia popular, mas é um imperativo democrático desenvolver formas inovadoras de participação directa dos cidadãos na vida pública. Uma nota sobre os partidos políticos. Já referimos acima que no Bailundo, o CACS foi alargado, mesmo antes das alterações registadas recentemente com a nova lei. A incorporação dos partidos políticos que, em alguns sectores da sociedade civil angolana foi vista com algumas reservas, por se recear transportar as disputas políticas para o interior dos CACS, foi referida positivamente por alguns entrevistados. O representante da UNITA considerou ser uma oportunidade para colocarem as suas 123 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA opiniões e críticas sobre a governação no município, lamentando, no entanto, o facto de as sugestões do seu partido não estarem a ser consideradas pela Administração Municipal. Para o Administrador Municipal, a entrada de representantes de partidos políticos no CACS constitui um ensaio para a implantação das autarquias locais, conforme estabelece a nova constituição. Ao terminar estas considerações sobre a problemática da representatividade no CACS gostaríamos de observar a questão relativa ao género. É que o CACS é esmagadoramente dominado por homens, havendo apenas duas mulheres (5%), uma quota bastante diminuta, tendo em conta os compromissos internacionais assumidos pelo país relativamente à promoção da igualdade de género nos diferentes sectores da vida nacional. Não pretendemos advogar aqui uma elevação das mulheres no CACS a qualquer preço, mas simplesmente alertar que este é um aspecto que deve merecer atenção dos responsáveis das Administrações Municipais. Participação na tomada de decisões O CACS não constitui um órgão deliberativo, segundo está estabelecido no anterior decreto e na actual lei, na medida em que apenas é ouvido pela Administração Municipal em matérias de natureza social, económica, política e cultura com incidência directa na vida das populações. Visto neste espírito da lei, o CACS corre o risco de ser utilizado simplesmente como espaço de legitimação social de decisões já tomadas pelos tecnocratas e dirigentes da Administração. No entanto, a concertação tem implicações práticas na tomada de decisões. Implica dialogar, conciliar pontos de vista e interesses, enfim exige um envolvimento activo dos actores e não uma mera participação simbólica. No Bailundo ocorreram dois factos que merecem ser destacados. Na segunda sessão do CACS realizada em Março de 2008, os membros propuseram à Administração Municipal a revisão da proposta do Plano de Intervenção Municipal com base nas contribuições dos participantes, tendo sido criado, para o efeito, um grupo de trabalho composto por técnicos da Administração Municipal e das ONGs que intervêm no município; a sugestão foi transformada em decisão e o grupo acabou por ser constituído e trabalhou durante dois dias na revisão da proposta que viria a ser submetida a apreciação final, numa sessão extraordinária convocada a propósito. Num outro desenvolvimento, conta-se que o CACS influenciou a Administração Municipal a contemplar também as pequenas empresas do município no processo de adjudicação de obras para favorecer a economia local. Além disso, esta ideia foi também motivada pelo facto de algumas empresas de fora não honrarem com os seus compromissos, apresentam orçamentos muito elevados e não são patriotas, conforme desabafa, o Administrador Municipal Adjunto:“ Só é possível atingir-se o desenvolvimento com o sentido de compromisso. Alguns empreiteiros só olham para os objectivos económicos, não apresentam facturas patrióticas, os valores que apresentam são muito exorbitantes.” Estes dois factos, embora não possam ser tomados como uma regularidade, demonstram, em nosso entender, que o CACS pode ter um papel mais interventivo na tomada de decisões sobre a vida do município, sobretudo no que toca a execução dos projectos, fiscalizar e exercer o controlo social sobre os actos da Administração Municipal. Entretanto, a questão da participação nos CACSs deve ser encarada como um processo de construção. A sua efectivação plena requer tempo e investimento em acções 124 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA de capacitação que permitam aumentar as habilidades e competências dos conselheiros no domínio do diálogo e concertação. Neste sentido, parece-nos importante compreender que a evolução da dinâmica participativa no interior dos CACS conformará diferentes situações em função do grau de interacção que se estabelecer entre as Administrações Locais e os restantes segmentos da sociedade que os integram. Para ilustrar melhor esta constatação vamos recorrer a grelha dos níveis de participação concebida pelo sociólogo latino-americano Juan Bordenave e que a ADRA adoptou como modelo teórico para analisar as dinâmicas de participação no âmbito dos projectos de desenvolvimento comunitário que promove e que pode ser adaptada para a compreensão do processo de participação no interior dos CACSs. A referida grelha estabelece quatro níveis de participação, conforme se apresenta no quadro a seguir. Nível Informação Caracterização A Administração toma as decisões sobre os programas e os projectos e apenas informa aos restantes membros do CACSs A Administração continua ser o maior protagonista na tomada de decisões, mas procura ter em conta as opiniões dos restantes membros do CACSs Há uma ampla discussão entre a Administração e os restantes membros dos CACSs no processo de tomada de decisões. É um nível de participação que pode originar tensões e conflitos e tornar difícil a tomada de decisões e por isso requer muita negociação É o grau mais elevado de participação sendo que os restantes membros dos CACSs tornam-se em principais protagonistas do processo de tomada de decisões. Aqui o papel da Administração é fundamentalmente de assessoria e apoio Consulta Co-gestão Autogestão Um dos aspectos principais que é preciso reter deste modelo teórico é que a promoção da participação no quadro do funcionamento dos CACSs dever ser encarada também como um processo de aprendizagem que implica uma pedagogia própria que prepare as pessoas para o exercício da cidadania. A experiência do trabalho da ADRA com as comunidades mostra que o nível de cogestão é muito difícil de alcançar num período inferior a cinco anos (Pacheco, 2006). Analisando a situação concreta do Bailundo, à luz deste quadro de referência teórico, podemos aferir que o nível de participação no CACS situa-se entre a informação e a consulta, apoiando-nos nas observações feitas durante as sessões dedicadas à análise da proposta do Plano de Intervenção Municipal a que tivemos a oportunidade de assistir em que a sugestão apresentada pelos conselheiros permitiu a revisão da referida proposta através da criação de um grupo técnico. 125 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA O CACS e o Plano de Intervenção Municipal Durante o ano de 2008, período em que CACS mais se reuniu, a elaboração do Plano de Intervenção Municipal e a análise do seu grau de implementação dominaram as sessões. No momento da sua elaboração, conforme já abordamos acima, por sugestão dos conselheiros, a Administração Municipal decidiu criar um grupo de trabalho para o ajustamento da proposta inicialmente apresentada pela sua área de estudos e planeamento. Esta foi uma iniciativa interessante que marcou a diferença com outros municípios da província do Huambo beneficiados pelo pacote de financiamento do Governo Central que não procuraram desenvolver um mecanismo de consulta aos membros dos CACSs. Nas sessões que se seguiram, os conselheiros centraram as suas atenções na implementação do plano, chegando mesmo, em alguns casos, a exigir a prestação de informações detalhadas sobre a aplicação dos fundos. Questionado sobre este assunto, um responsável eclesiástico pronunciou-se nos seguintes termos:“Os gestores têm demonstrado transparência. Nas reuniões quando nós exigimos mostram os balancetes. Nas inaugurações mostram aquilo que se gastou.” Com efeito, a gestão dos fundos alocados para a implementação dos Planos de Intervenção Municipal tem levantado algumas inquietações, conhecidas que são as práticas de corrupção enraizadas na nossa sociedade, em particular nas instituições do Estado. O próprio Tribunal de Contas revela no seu Relatório Anual de Actividades de 2009, citado pelo Jornal de Angola, na sua edição de 30 de Dezembro de 2009, que “ na sua generalidade a gestão dos administradores municipais tem sido catastrófica e danosa”. De acordo com a fonte, “os inquéritos e auditorias feitos concluíram que o Fundo de Gestão Municipal está ao livre arbítrio dos administradores, na medida em que o Ministério das Finanças deposita em contas de bancos comerciais indicadas pelos administradores que detêm a co-titulariddade e em alguns casos titulares únicos dessas contas.”. Questionado sobre esta revelação do Tribunal de Contas, um quadro superior da Administração Municipal do Bailundo afirmou que esta está pronta a se submeter a uma auditoria independente que analise os procedimentos utilizados na aplicação dos recursos atribuídos ao município no âmbito do FUGEM. Reflexões finais: os CACS e os desafios da democratização da governação local A implantação dos CACS nos municípios marca uma importante fase da reforma da Administração Local do Estado em Angola iniciada na década de 90. Contudo, a experiência do Bailundo evidencia existirem ainda desafios a enfrentar para que os CACS estejam efectivamente na vanguarda da promoção da governação local entendida como processo de interacção permanente do poder público com os diferentes segmentos da sociedade. O primeiro desafio é o da representatividade. Este aspecto carece de aprofundamento tendo em conta os limites que os CACS apresentam a este respeito, sendo imprescindível outros mecanismos complementares de participação directa dos cidadãos na vida do município que viabilizem o controlo social da acção governativa dos órgãos da Administração Local do Estado. Olhando para a realidade do CACS do Bailundo faz algum sentido pensar numa representatividade mais proporcional, sem pôr em causa o papel protagonista dos membros da Administração Municipal. A experiência de constituição de fóruns desenvolvida em alguns municípios do país é uma referência importante nesta perspectiva. 126 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Em segundo lugar coloca-se o desafio da articulação entre os diferentes actores sociais, ou seja precisam de estabelecer plataformas de diálogo, tendo em vista a construção de propostas de agendas que sirvam de base de interacção com as Administrações Municipais através dos CACS, conferindo maior qualidade na participação e contribuir para a democratização da própria governação local. Em terceiro lugar há um desafio da educação para a participação junto das comunidades locais no sentido da apropriação dos CACS enquanto recurso político privilegiado para a apresentação das suas demandas e reivindicações. Este aspecto é particularmente importante num contexto como o do nosso país, onde as sequelas do colonialismo e da guerra civil são ainda bem presentes e tendem a criar uma cultura de medo e distanciamento do debate sobre a governação. Em quarto lugar, nos parece que o maior desafio diz respeito à informação. É que é impossível falar-se de participação sem existir informação sobre os actos de governação, transmitida de forma transparente. As exigências colocadas por alguns membros do CACS do Bailundo relativamente à prestação de contas sobre o grau de implementação do Plano de Intervenção Municipal e a distribuição atempada da documentação a apreciar nas sessões do órgão são manifestação desta relevância da informação para a participação, pilar fundamental para a efectivação de uma governação local democrática. Finalmente, a institucionalização do poder local autárquico prevista na nova constituição é uma janela aberta para o aprofundamento da democratização da Administração Local do Estado, submetendo o poder político ao controlo social dos cidadãos através do incentivo da participação popular nos municípios. Nesta perspectiva a criação das autarquias afigura-se como o fundamento da governação local pois que são instrumentos privilegiados para assegurar a participação dos cidadãos na formação de decisões e deliberações que lhes dizem respeito (Sá, 2000). A constituição dos CACSs representa um passo nessa direcção e por isso é importante que o seu funcionamento pleno se transforme num compromisso ético da classe política do país. Referências 1. Teixeira, Alfredo, Pacheco, Fernando e Fontes Pereira, Virgílio. Estudo sobre a Macro-estrutura da Administração Local (Contribuição para a descentralização), in “Desconcentração e Descentralização em Angola,Volume II”. Ministério da Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Fevereiro 2007. 2. Ministério da Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. A Descentralização em Angola. Textos de análise e Legislação de base. Março 2002. 3. ADRA. Desenvolvimento Local e Ambiente: A experiência da ADRA e o caso do município dos Gambos. Comunicação apresentada ao Seminário “As ONGs dos países de língua oficial portuguesa na luta contra a pobreza pelo bem-estar e cidadania”. ACEP, Lisboa, Setembro de 1999. 127 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA 4. Decreto-Lei nº 2/07 de 3 de Janeiro do Conselho de Ministros publicado no Diário da República, Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2007, I Série-N.º 2. 5. LEI DA ORGANIZAÇÃO E DO FUNCIONAMENTO DOS ORGÃOS DE ADMINISTRAÇÃO LOCAL DO ESTADO (Lei n.º 17/10 de 29 de Julho) publicada no Diário da República, Quinta-feira, 29 de Julho de 2010, I Série-Nº. 142. 6. Pacheco, Fernando. Algumas Reflexões sobre Desenvolvimento Comunitário. Luanda, Outubro de 2003. 7. Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Municipais. Relatório do Seminário sobre “PODER LOCAL PARTICIPAÇÃO POPULAR CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA”. Belo Horizonte, Brasil, Fevereiro de 1994. 8. SÁ, LUÍS DE. INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS AUTARQUIAS. Universidade Aberta, Lisboa, 2000. 128 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA “CARIDADE NA VERDADE” UMA SINFONIA TEOLÓGICA Frei Luís de França op. Professor na Universidade Católica de Angola É de todos conhecido o gosto de Bento XVI pela música, pelo que não se achará despropositado apresentar a sua encíclica Caridade na Verdade como uma sinfonia teológica. De facto o papa Bento XVI compôs o seu texto à maneira dos músicos, como facilmente o reconheceria Mozart seu músico favorito. Com efeito todo o texto é escrito ao ritmo de um compasso que se repete como um estribilho ou uma coda. Caridade na Verdade é o mote desta sinfonia. Todas as vezes que Bento XVI termina a abordagem de um assunto quer seja o desenvolvimento, a finança, ou a ecologia, ele faz questão de dizer como é que essa temática deve ser enquadrada no seu paradigma – caridade na verdade. “A Caridade na Verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (§1) “Há a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada por S. Paulo da – veritas in caritate – (Ef 4:15), mas também na direcção inversa e complementar da - caritas in veritate. (§2). é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral. Lembro dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum (§6). Caritas in veritate “O amor na verdade – caritas in veritate – é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. (§6) Ao terminar o segundo capítulo sobre o – O Desenvolvimento Humano no nosso Tempo - Bento XVI repete o compasso ao dizer: “Por isso, a caridade na verdade coloca diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela – civilização do amor – cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura.” (§33) 129 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA E o terceiro capítulo começa de novo com a invocação do mote como se verifica ao transcrever as palavras iniciais do mesmo: A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade. Já está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade, ao mesmo tempo manifesta. Sendo dom de Deus absolutamente gratuito, irrompe, na nossa vida como algo não devido, que transcende qualquer norma de justiça” (§ 34) É na explanação sobre as formas de compreender o mercado, para além de uma visão exclusivamente economicista que Bento XVI mais insiste nas virtudes da relação caridade e na verdade. “O princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade. (§ 36) A caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendem ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo” (§38) Opções de um título Esta é maior encíclica social de toda história da Igreja. O papa trata de todos os assuntos que se relacionam com a vida económica e financeira das sociedades actuais e dos Estados. Defende o mercado e a liberdade individual, mas denuncia o capitalismo selvagem apelando para os valores éticos que devem guiar a economia e a política. Pronuncia-se pela necessidade de o Estado recuperar um papel activo sobretudo por causa da necessidade de regulação dos mercados. Caridade na Verdade é uma profunda reflexão ou se quisermos uma meditação sobre os princípios do Evangelho aplicados à economia. Com efeito, o Evangelho, nos diz, que o fundamental nesta vida é o amarmo-nos uns aos outros como Deus nos amou. Como viver isto na economia, no mundo dos negócios e no mundo do mercado livre? Bento XVI vai lembrar que no mundo real em que vivemos não podem existir dois mundos. Ou seja, haveria o mundo da religião e o mundo da economia. O papa, diz-nos que a economia não é neutra e que ao viver as questões económicas temos, de pôr aí o evangelho. Daí que a ideia central desta encíclica seja a fusão da espiritualidade com a acção social tendo como pano de fundo o desenvolvimento integral do homem. Este conceito do “desenvolvimento humano integral” é usado 22 vezes ao longo do texto. É a ideia chave que atravessa todo o texto. Querendo comemorar os 40 anos da publicação da encíclica Populorum Progressio editada em 1967 pelo papa Paulo VI, o actual papa propõe que aquela encíclica tome o lugar da Rerum Novarum cuja publicação em 1891 assinalou o nascimento da Doutrina Social da Igreja. As suas palavras não poderiam ser mais claras quanto a essa intenção, 130 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA “Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçados para os actualizar nos dias que correm. Este processo de actualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como « a Rerum Novarum da época contemporânea », que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação”. (§8) A crise financeira mundial e os atrasos de uma encíclica O papa Bento XVI nunca escondeu que o atraso na publicação desta encíclica se ficou a dever à enorme crise que se abateu sobre o mundo da finança e da economia a partir de 2007. Inscrevendo-se nas práticas habituais das chancelarias do Vaticano, o novel papa fez saber quase a partir do momento da sua eleição, em 2005, de que desejava publicar em 2007, uma encíclica comemorativa dos 40 anos da publicação da encíclica Populorum Progressio. Mas isso não aconteceu em 2007, e no avião que em Março de 2009, o conduziu ao continente africano, e nomeadamente a Angola, o papa foi questionado sobre esse atraso. Sua resposta não podia ser mais clara: “Bento XVI admitiu que o atraso na publicação da sua tão esperada encíclica social tem que ver com a dificuldade em encontrar uma resposta credível para a crise financeira global “iii Por outro lado em 26 de Fevereiro, ainda em Roma, o papa também fez saber que não estava escrevendo a encíclica sozinho e acrescentou: “ durante este longo tempo de espera verifiquei como é difícil falar com competência, sobre estes assuntos, já que a realidade económica senão for abordada com competência não será credível”. Mas desde logo afirmou que a encíclica denunciaria – o pecado humano da ganância – já que esse foi o erro fundamental que causou o colapso de alguns grandes bancos americanos e por efeito de ricochete provocou uma crise global. Temos de fazer uma denúncia razoável e racional dos erros, sem moralismos, mas com raciocínios concretos que tornem compreensíveis os mecanismos da economia actual.....grandes moralismos nada ajudam se não estiverem apoiados em conhecimentos substantivos da realidade”iii Com tantas ressalvas sobre as consequências da crise financeira não admira que o papa Bento XVI, ao publicar finalmente a sua encíclica tenha fustigado os responsáveis da crise com palavras nada doces. 131 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Finanças e especuladores na Caridade na Verdade Nunca nenhum texto da doutrina social da Igreja tinha até então dado tanto relevo às questões financeiras como acontecerá neste texto de 29 de Junho de 2009. Ao longo do texto, e por mais de 12 vezes o papa alerta, denuncia, corrige, apela a uma outra visão do mundo financeiro ao serviço da economia global. Respiguemos algumas dessas referências: “As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade”. (§ 21) “É preciso que as finanças enquanto tais — com estruturas e modalidades de funcionamento necessariamente renovadas depois da sua má utilização que prejudicou a economia real — voltem a ser um instrumento que tenha em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento. Enquanto instrumentos, a economia e as finanças em toda a respectiva extensão, e não apenas em alguns dos seus sectores, devem ser utilizadas de modo ético a fim de criar as condições adequadas para o desenvolvimento do homem e dos povos. É certamente útil, se não mesmo indispensável em certas circunstâncias, dar vida a iniciativas financeiras nas quais predomine a dimensão humanitária. Isto, porém, não deve fazer esquecer que o inteiro sistema financeiro deve ser orientado para dar apoio a um verdadeiro desenvolvimento. Sobretudo, é necessário que não se contraponha o intuito de fazer o bem ao da efectiva capacidade de produzir bens. Os operadores das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua actividade, para não abusarem de instrumentos sofisticados que possam atraiçoar os investidores. O desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos povos, se a humanidade pensa que se pode recriar valendo-se dos «prodígios» da tecnologia. Analogamente, o progresso económico revela-se fictício e danoso quando se abandona aos «prodígios» das finanças para apoiar incrementos artificiais e consumistas. Perante esta pretensão prometeica, devemos robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária, mas tornada verdadeiramente humana pelo reconhecimento do bem que a precede”. (§67) 132 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A Universidade de Bolonha e o ensino papal Sabe-se que a Universidade de Bolonha teve grande influência na redacção desta encíclica. Nessa universidade do norte da Itália, desenvolvem-se há vários anos estudos sobre a economia civil, e sobre a sociologia da relação. Áreas que como veremos mais à frente serão muito referenciadas em algumas aplicações propostas pelo pensamento papal na área económica e empresarial. Ao mesmo tempo, alguns comentadores chamaram a atenção para a forma positiva como Bento XVI aceitou, na elaboração desta encíclica integrar o chamado diálogo da teologia, ou seja do pensamento eclesial, com as contribuições das ciências humanas. A busca da verdade que é uma das tónicas desta encíclica leva a Igreja a aceitar, a verdade venha ela donde vier, como o teólogo Ratzinger, hoje papa Bento XVI, lembrou numa passagem do parágrafo nono do seu texto: “A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos” (§9) Se tivermos presente que em grande parte do século XX a teologia mais oficial da Igreja, nomeadamente a chamada teologia da escola romana, manteve sempre uma grande reserva para com a contribuição das ciências humanas no labor teológico, não podemos deixar de nos surpreender, e pela positiva, com a frontalidade com que Bento XVI se exprimiu no seu texto Caridade na Verdade. Na panóplia de temas abordados na área da economia iremos sublinhar as considerações que a encíclica faz sobre as concepções e as dinâmicas do mercado enquanto espaço e instrumento da economia mundial, e seguidamente se abordará a questão muito inovadora da diversidade de tipologias empresariais. O mercado e as suas lógicas Se João Paulo II – nomeadamente na enciclica Centesimus Annus - já tinha exposto longamente como é que a doutrina social da Igreja encara o mercado enquanto instrumento global da economia, este papa introduz leituras inovadoras ao apelar para a gratuitidade como um elemento que deve também ter lugar nas lógicas do mercado. Alguns economistas criticaram este apelo do texto papal lembrando as análises de Adam Smith para quem a busca do interesse pessoal é o único motor do agir económico. Bento XVI desafia essa visão, que segundo ele é limitada, e avança com aquilo que ele próprio chama a lógica do dom. Esta lógica seria como que o modo do conceito cristão de fraternidade se tornar operatório na área económica. Deste modo, Bento XVI 133 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA recusa que a lógica mercantil possa ser a única dinâmica do mercado. No termo do parágrafo 34, Bento XVI sintetiza o seu pensamento do seguinte modo: “Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”. (§34) Esta introdução da fraternidade na vida económica corrente é para o papa uma necessidade para contrariar a condição humana e que como sabemos segundo a doutrina cristã está marcada pelo mal chamado pecado original. Esta é uam reflexão onde o saber teológico procura cruzar com a ciência económica como se depreende da leitura atenta da citação seguinte: “A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimilo em termos de fé — do pecado das origens. (§34) E Bento XVI continuando na sua linha de pensamento reforça ainda a visão teológica destas realidades humanas ao concluir o seguinte: “Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor” (§34) Reafirmados estes princípios da antropologia cristã, o papa vai dissertar sobre a concepção do mercado como instrumento fundamental da economia actual, mas fazendo propostas inovadoras. O mercado e os seus limites Invocando de novo os ensinamentos do seu predecessor de João Paulo II na Centesiumus Annus (1991), o actual papa lembra que a doutrina social da Igreja, sempre defendeu a teoria do mercado livre, mas lembra que não há mercado em estado puro e que o mercado supõe um clima de confiança. 134 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA “Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas princípios egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.”. (§36) Ao querer exemplificar uma dessas situações danosas Bento XVI refere que; “O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade.” (§39). Para alguns comentadores da imprensa internacional esta é uma das afirmações mais radicais que o papa emitiu ao longo de toda a encíclica. Noutra passagem da encíclica expõe aquilo que poderíamos considerar, a definição mais completa de mercado, produzida até hoje e segundo a Doutrina Social da Igreja “O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. (§35) As lógicas e as dinâmicas do mercado De acordo com muitos pensadores e economistas contemporâneos – Bento XVI – aceita aquela afirmação segundo a qual hoje não há alternativa à economia de mercado mas adianta que o mercado tem de ser diversificado nas suas dinâmicas, e nas suas lógicas de funcionamento “O mercado tem interesse em promover emancipação, mas, para o fazer verdadeiramente, não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas possibilidades; tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as gerar.” (§36) A lógica mercantil “A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e 135 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição”. (§36) Dar sem receber nada em troca materialmente falando é o que se designa como um dom. É esse comportamento, par além do contratual aquilo que Bento XVI vai propor: A lógica do dom “Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.” (§34) Mas o mais notável nesta exposição é a confiança que Bento XVI coloca nestas perspectivas enquanto propostas que podem efectivamente concorrer para democracia económica assim como para a vitalidade do próprio mercado As duas lógicas são necessárias para a vitalidade do mercado “A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo cada decisão económica tem consequências de carácter moral. Tudo isto encontra confirmação também nas ciências sociais e nas tendências da economia actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir; hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais, a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local. Por isso, os cânones da justiça devem ser respeitados desde o início enquanto se desenrola o processo económico, e não depois ou marginalmente. Além disso, é preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem 136 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente possível” (§37) Inovações empresariais e a civilização da economia Como é de norma um papa não deve referir num documento de carácter universal as situações e as realizações concretas, neste caso, na área da economia e das empresas. Mas quando afirma como o faz no parágrafo 46 do seu texto: “ Nestas últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla área intermédia” podemos admitir que Bento XVI esta suficientemente bem informado sobre todas as formas de organizações sociais e económicas hoje largamente designadas como fazendo parte do “terceiro sector”. Bento XVI quer evocar para além das empresas tradicionais, isto é, daquelas exclusivamente voltadas para o lucro profit as que se designam como non-profit , ou sejam, as organizações não lucrativas. É um universo bem conhecido e descrito nas sociedades economicamente mais desenvolvidas como fez, por exemplo, Peter Drucker relativamente a situação dessa área no seu país. Mas Bento XVI vai mais longe ao referir as empresas de comunhão. Certamente, que aqui pensava nos “parques empresariais” criados pelo movimento católico dos Focolaris. Hoje mais de mil empresas em todo o mundo, incluindo algumas em países africanos, regem-se pela lógica do dom sem se apartarem da regra fundamental do mercado – isto é – trabalhar para obter lucro. iii Conhecedor de todo este universo empresarial, Bento XVI, valorizao ao falar das novas tipologias empresariais Tipologias empresariais “Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo.” (§ 38) Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresa, muito para além da simples distinção entre «privado» e «público». Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se ao serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito empresarial. Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias de empresariado, com transferência de competências do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice-versa, do sector público para o âmbito 137 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA próprio da sociedade civil, do mundo das economias avançadas para aquele dos países em vias de desenvolvimento”. (§41) E tudo leva a crer que Bento XVI, sem o querer referir, também, conhece a extraordinária inovação lançada há poucos anos pelo prémio Nobel Muhammad Yunus ao criar o chamado “negócio social”. A maior multinacional do mundo fabricante de iogurtes associou-se a empresário Yunus para criar uma empresa de iogurtes que hoje fornece milhões desse produto às crianças das aldeias pobres do Bangladesh. Legitimando todas essas iniciativas corporizadas hoje em verdadeiras alternativas económicas ao sistema económico dominante, o papa advoga que as empresas de comunhão, e outras com a mesma dinâmica, concorrem para um mercado mais competitivo e humano.iii Economia civil e de comunhão para um mundo mais humano e competitivo Bento XVI informado da pluralidade de formas empresariais antigas – como as cooperativas, as mutualidades, as fundações - assim como das novas formas empresariais como sejam – as empresas de comunhão ou os negócios sociais – tem toda a razão em manifestar a sua confiança na dinamização que esta pluralidade de tipologias empresariais pode trazer ao mercado, como o diz ao terminar o paragrafo dedicado a este assunto: O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encontrem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada tirar à importância e utilidade económica e social das formas tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita dos deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simultaneamente mais competitivo” (§ 46) Desenvolvimento dos Povos, Direitos e Deveres, Ambiente Este é o título abrangente do capítulo IV desta encíclica. Contudo sendo esta uma encíclica evocadora da Populorum Progressio - a encíclica do desenvolvimento por excelência - segundo alguns seria de esperar que Bento XVI fosse mais longe e mesmo mais percutante na crítica ao modelo económico dominante. Assim se exprimiu o bispo latino-americano Pedro Casaldáliga. “ Impõe-se também uma recusa crítica ao suposto triunfo do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em lado nenhum esse triunfo, se nos referirmos à imensa maioria da humanidade. Acrescendo que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si, frente às contradições internas. Mas, mesmo que esse triunfo do egoísmo estrutural se tivesse dado, seria um fracasso ético da família humana, pois estar-se-ia a evidenciar, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto outra vez, como única possível, a ética dos lobos.iii 138 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Bento XVI tentou dizê-lo mas talvez sem a força que seria necessário face à gravidade da situação mundial. Numa ou noutra passagem do texto papal são criticadas afirmações que a doutrina social da Igreja não pode deixar de recusar como, por exemplo, quando Bento XVI retomando o ensino do seu antecessor João Paulo II recorda o seguinte: “Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenha realmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo” (§35) ou quando mais à frente diz: “considerar o aumento da população como a primeira causa do subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico” (§44) Reconheça-se também que ao correr do texto algumas vezes se faz menção da necessidade de repensar a economia “é necessária uma profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins”(…) “ é necessário pôr um travão á cobiça insaciável que suscita lutas e divisões, moderando a obsessão de possuir, para nos tornarmos disponíveis à partilha e ao acolhimento. “ (§32) Este capitulo IV termina com uma longa explanação sobre o relacionamento do homem com o meio ambiente levando o papa a utilizar expressões pouco comuns como seja a “ecologia humana” ou “estado de saúde ecológica do planeta” . São abordadas as questões actuais á volta da energia, e das responsabilidades para com as futuras gerações “os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e as justiça entre as gerações” (§48). E Bento XVI evoca de passagem as temáticas dos “novos estilos de vida” que João Paulo II já tinha introduzido na doutrina social da Igreja ao escrever em 1991 a Centesimus Annus. “As modalidades com que o homem trata o ambiente influem sobre as modalidades com que trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade actual a uma séria revisão do seu estilo de vida”. (§51) Mas mais uma vez faltou aqui uma certa ousadia profética que questionasse radicalmente o desenvolvimento sem limites. Esta encíclica continua a inscrever-se, ainda que o seu fio condutor seja o desenvolvimento humano integral, no horizonte do desenvolvimento sem limites. Não se colocou a questão do “decrescimento” como forma de mudar os estilos de vida. Parece que continuamos instalados na ideia de um progresso ilimitado. Pergunta-se, será possível um desenvolvimento sem limites num mudo limitado? O actual modelo de desenvolvimento não é universalizável. O que acontecerá quando, por exemplo, os quase três mil milhões de chineses e indianos quiserem e obtiverem os padrões de vida e consumo ocidentais. Se por um lado é necessário e urgente promover o desenvolvimento dos países mais pobres, pois tem direito ao desenvolvimento, esse desenvolvimento é problemático porque o planeta não aguenta ecologicamente falando. Esta encíclica social tão elaborada, levantou estas e outras questões, mas não apontou caminhos para uma mudança que tem mesmo de ser radical. Num recente encontro sobre esta encíclica promovido pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz na cidade de Accra no Gana, monsenhor António Frontiero avançava na linha desta preocupação a seguinte ideia: “depois daquilo que o papa expôs na abertura do segundo capítulo da encíclica sobre o desenvolvimento humano no nosso tempo, talvez que aquilo que hoje seja necessário seja uma Carta de Responsabilidades. Ou seja um documento que informe as pessoas sobre as suas responsabilidades para com os outros e os encoraje a se comprometerem em comportamentos construtores de cidadania. Por outro lado, também é necessário corrigir a tendência segundo a qual o bem comum não seria mais de que um dos princípios do pensamento social católico. Ora é preciso 139 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA insistir, que o princípio católico do bem comum está enraizado numa antropologia da pessoa humana e que como tal diz respeito à moral social e pessoal de todos”.iii Uma ousada concepção do homem Depois desta longa exposição sobre as questões económicas e financeiras, Bento XVI desenvolve no Capítulo V, intitulado – Colaboração da Família Humana - uma das propostas mais profundas e originais do seu texto. Para lá das questões correntes do desenvolvimento Bento XVI procura uma fundamentação teológica para o que ele vai chamar a relacionalidade. Aqui se encontra seguramente a contribuição dos estudos feitos na Universidade de Bolonha como se referiu acima Fundamental para esta nova forma de compreensão alargada do conceito de “desenvolvimento integral do homem” é a relacionalidade, ou seja, o reconhecimento da nossa natureza inata para a relação social e suas consequências. Esta focalização nas relações humanas enquanto chave para uma unidade global é santificada pela comparação directa com a doutrina católica sobre a Trindade, tal como Bento XVI o desenvolveu nos parágrafos 53 e 54 que citamos a seguir em alguns extractos mais significativos: “A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado: esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros” (§53) “Observava Paulo VI que « o mundo sofre por falta de convicções » A afirmação quer exprimir não apenas uma constatação, mas sobretudo um voto: serve um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as implicações do facto de sermos uma família; a interacção entre os povos da terra chama-nos a este ímpeto, para que a integração se verifique sob o signo da solidariedade, e não da marginalização. Tal pensamento obriga a um aprofundamento crítico e axiológico da categoria da relação. Trata-se de uma tarefa que não pode ser desempenhada só pelas ciências sociais, mas requer a contribuição de ciências como a metafísica e a teologia para ver lucidamente a dignidade transcendente do homem”. “ (§53) procura definir as condições para aquilo que se designa como o “desenvolvimento de todo o homem e de todos os homens”, e sustenta, defende que isso deve estar baseado numa avaliação mais profunda e critica da categoria de relação. A opção pela relacionalidade significa cortar com o individualismo das Luzes, que hoje, e particularmente, em certos meios universitários, ainda permanece muito influente sobretudo na área das ciências sociais. Numa dessas escolas de pensamento promove-se o “homo economicus”, ou seja a concepção privilegiado pelos economistas neo-liberais. Desta forma de conceber o ser humano resulta num indivíduo solitário, que não está verdadeiramente socializado mas antes preocupado unicamente com a maximização das suas preferências com o fim de se tornar cada vez melhor, e cada vez mais um homem de sucesso. Uma outra escola ou corrente de pensamento é a do “homo sociologicus”, isto é, o homem organizado - socializado, onde tudo é dado pela sociedade. Quer isto faça dele Caridade na Verdade 140 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA uma criatura sociologicamente normalizada, ou um pos-modernista bem realizado, acabará por ser um criatura das circunstâncias, um relativista que nada partilha com a humanidade enquanto família universal, e logo incapaz de solidariedade com essa família. Porque o “homo economicus” é antropocêntrico, e o “homo sociologicus” é sociocentrico nestas concepções ou visões não há lugar para a transcendência. Bento XVI assume a mais recente corrente de pensamento antropológica a do “homo relatus” – o homem da relação. E no texto dos referidos parágrafos diz o que entende por homem de relação e qual o seu fundamento: “De natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações interpessoais: quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem se valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com Deus, pelo que estas relações são de importância fundamental. Isto vale também para os povos; por isso é muito útil para o seu desenvolvimento uma visão metafísica da relação entre as pessoas. A tal respeito, a razão encontra inspiração e orientação na revelação cristã, segundo a qual a comunidade dos homens não absorve em si a pessoa aniquilando a sua autonomia, como acontece nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais porque a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro todo. ………………………………………………………………………………………… O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana, que se constrói na solidariedade tendo por base os valores fundamentais da justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina. A Trindade é absoluta unidade, enquanto as três Pessoas divinas são pura relação. A transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a ligação de uma com a outra total, porque constituem uma unidade e unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta realidade de comunhão: «para que sejam um como Nós somos um» (Jo 17, 22). A Igreja é sinal e instrumento desta unidade. As próprias relações entre os homens, ao longo da história, só podem ganhar com a referência a este Modelo divino. De modo particular compreende-se, à luz do mistério revelado da Trindade, que a verdadeira abertura não significa dispersão centrífuga, mas profunda compenetração. O mesmo resulta das experiências humanas comuns do amor e da verdade. (§54) Alguns críticos disseram que esta encíclica era muito longa, o que é verdade, e que por vezes tinha repetições, o que também é verdade. Como se sugeriu no início deste texto a encíclica Caridade na Verdade pode ser entendida como uma sinfonia, e quase que se poderia dizer que a quatro mãos, como em certos concertos para dois pianos. Mas, se a música, que foi arte primeira, tem por fim elevar o espírito, esta longa sinfonia consegue levar-nos das praias batidas pelos ventos das tormentas financeiras às alturas dos melhores ideais de fraternidade e de realização humana. Assumindo, e fazendo reflectir sobre o que há de mais dinâmico no mundo contemporâneo, o papa Bento XVI deixa avisos à navegação sobretudo para os seus 141 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA fiéis que são os membros da Igreja católica. Termino com dois dos seus avisos que espero possa ressoar em nossos corações: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos.” “Os modelos económicos sózinhos não conseguirão resolver a injustiça que esta crise revelou. A Justiça só acontece se existirem Homens Justos. Luanda, 7 de Fevereiro de 2011 142 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Recensão crítica “Desigualdades e Assimetrias Regionais em Angola – Os Factores de Competitividade territorial” Manuel Alves da Rocha Edições do CEIC-UCAN Luanda, 2010 No dia internacional do professor e em que fazia 100 anos que a República foi proclamada no espaço de língua portuguesa, foi lançado, na sala Magna da Universidade Católica de Angola, mais um livro de Manuel Alves da Rocha, economista e professor desta instituição. O título deste livro é ele próprio todo um programa: “Desigualdades e assimetrias regionais em Angola - factores de competitividade territorial”. Trata-se de um estudo de caso sobre uma realidade que está à vista de todos, mesmo do observador mais desatento mas que não tem merecido uma atitude pró-activa, nem mesmo reactiva dos poderes públicos, quer a nível estratégico, quer da política economia (seja macro ou micro), quer ainda da promoção do desenvolvimento empresarial (p. 11). Mas, o desenvolvimento de uma política de equilíbrio regional é necessária e carece de uma vigilância permanente em relação a política de planeamento (ascendente e descendente) pois como é consabido o crescimento económico, presidido pela “mão invisível”, é gerador de desigualdades provocadas pela “natural” procura de uma afectação racional e eficiente dos recursos e factores de produção. Por isto, este estudo justifica-se como sendo “uma primeira abordagem da regionalização em Angola, da localização das infra-estruturas e do estado actual do debate e reflexão teórica sobre a economia regional” (p. 19). O corpus de análise do estudo serviu-se apenas de informação oficial, o que permite afastar suspeições e fazem das justas conclusões do estudo, mais do que considerações críticas, verdadeiras evidências dificilmente refutáveis. De entre os documentos utilizados preponderam o “Recenseamento Geral de Empresas e Estabelecimentos” e as “Estatísticas do Ficheiro de Unidades Empresariais 2003-2006”, publicado pelo INE, em 2008. Outros documentos e publicações utilizados no estudo foram: o Orçamento Geral do Estado (para 2003, 2006 e 2007), os programas gerais do Governo e seus respectivos “Relatórios de Balanço” (nomeadamente os de 2003-2004, 2005-2006 e de 2007-2008), o Plano Nacional de 2009 e o de 2010-2011, os relatórios do MAPESS sobre o emprego; o Programa de Investimentos Públicos e respectivos relatórios de execução, de 2006 e 2007 e alguma informação contida no jornal oficioso que é o “Jornal de Angola”. Tendo como período de análise, o de 2000/2007, o estudo pretende perceber as dinâmicas de transformação ocorridas em relação a progressão ou regressão das desigualdades, dos índices de concentração, da relação entre assimetrias regionais e os movimentos migratórios, no país, particularmente o êxodo em direcção ao litoral, com maior incidência para a capital que provocou a macrocefalia de Luanda, onde se 143 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA concentra mais de 70% do rendimento nacional, 75% da produção industrial, 65% da actividade comercial. Para proceder a sua análise, o autor dividiu o país em cinco regiões: Região Luanda/Bengo (províncias Luanda e Bengo); Região Norte (províncias Cabinda, Zaire, Uíge e Kuanza-Norte); Região Centro/Leste (Malanje, Lunda-Norte, Lunda-Sul, Moxico e KuandoKubango); Região Centro/Oeste (Kuanza-Sul, Bié, Huambo, Benguela e Namibe); Região Sul (Huíla e Cunene). Esta agregação das províncias, nas cinco regiões, foi determinada por razões de contiguidade geográfica a que se juntaram os critérios da existência de recursos naturais iguais e da interacção do desenvolvimento com a reconciliação nacional pela via interétnica. Porque a contiguidade territorial facilita o lançamento de obras de recuperação de infra-estruturas de incidência interterritorial, favorecendo, por exemplo, as vias secundárias e terciárias de comunicação. A dotação de recursos naturais permite configurar vantagens comparativas, levando em consideração a similitude de estádios de desenvolvimento económico e social actual e a reconciliação nacional não pode ser efectiva se todos os angolanos não participarem e beneficiarem do desenvolvimento. A partir daqui o livro faz uma avaliação geral da política pública de crescimento económico mas também, e por meio dela, uma denúncia social, uma proposta epistemológica e uma proposta de boa governação. Uma avaliação geral da política pública de crescimento económico Para fazer a sua avaliação da política pública de crescimento económico, o autor parte da ideia de que era expectável que a independência trouxesse a consolidação das importantes performances económicas conseguidas pela potência colonial nos anos 1960 e 1970. No entanto, devido a vários factores conjugados, deu-se uma deterioração da economia e a um desaproveitamento das oportunidades e potencialidades de desenvolvimento, instalando-se um grande desequilíbrio nos sectores produtivos, com uma progressiva desindustrialização do país e uma cada vez maior dependência do crescimento do sector minério (com predominância do petróleo e dos diamantes, sendo as rochas ornamentais pouco expressivas e o ferro, o cobre, o magnésio, o ouro, a prata e os fosfatos abandonados). O que provocou uma evidente degradação da capacidade produtiva herdada da potência colonial ou adquirida, sem critério, durante o período de voluntarismo colectivista. O meio rural, não tendo sido objecto de uma política de reformas e desenvolvimento, depois das mal-sucedidas iniciativas de colectivização das médias e pequenas propriedades e de estatização das grandes empresas agrícolas, foi votado ao abandono, permitindo uma progressão da guerra que trouxe ainda uma maior destruição. Os números, referidos neste estudo, mostram de forma implacável que os primeiros 25 anos de independência não houve praticamente crescimento económico suficiente para distribuir pelo interior do país. Entre 1990 e 2000, o PIB registou uma taxa média de crescimento (a preços de 1995) de 0,7%. Este panorama provocou a degradação das condições de vida da população e a instalação de uma vulnerabilidade estrutural das famílias angolanas, fazendo emergir a pobreza como estrutural, com indicadores da ordem dos 68% para a pobreza e de 25% para a pobreza extrema. 144 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA A partir de 2002, grandes investimentos foram dirigidos para as infra-estruturas da economia e do desenvolvimento social mas a sua concentração em Luanda e no litoral, levou a uma série de incongruências regionais e provinciais e afastou muitas zonas, total ou parcialmente, dos benefícios do crescimento económico e da atenção dos agentes públicos. Situação agravada pelo facto de que os empresários privados tem evitado investir onde as externalidades são inexistentes, a preparação da mão-de-obra fraca e o poder de compra é baixo. As demonstrações são muitas, no interior do livro, mas basta a título de exemplo, olhar para os quadros sobre a estrutura regional dos investimentos públicos (vertical e horizontal) (gráficos das páginas 101 e 103) para constatarmos as assimetrias regionais. 2003 Sectores Sociais Infra-estruturas Economia Real Sectores Institucionais Defesa e Segurança Governo Provincial Total 2006 Sectores Sociais Infra-estruturas Economia Real Sectores Institucionais Defesa e Segurança Governos Provinciais Total 2007 Sectores Sociais Infra-estruturas Economia Real Sectores Institucionais Defesa e Segurança Governo Provincial Total 2003 Sectores Sociais Infraestruturas Economia Real Sectores Institucionais Desfesa e Segurança Governos Provinciais Total 2006 Sectores Sociais Infraestruturas Economia Real ESTRUTURA REGIONAL VERTICAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS Luanda/Bengo Norte Centro leste Centro oeste Sul Total 14,4 0,0 4,8 3,4 0,0 6,9 24,2 6,7 2,8 10,9 0,0 13,4 6,9 1,7 1,1 6,1 6,1 4,7 16,7 1,9 1,4 4,3 6,4 8,4 3,6 0,0 0,0 0,9 0,0 1,6 34,3 89,7 89,9 74,4 87,5 65,1 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 5,9 74,9 1,4 8,4 0,2 9,2 100,0 16,6 21,7 0,0 2,2 0,0 59,5 100,0 18,6 60,1 0,9 1,9 0,0 18,5 100,0 12,4 79,8 1,3 0,4 0,0 6,0 100,0 25,5 12,5 45,3 69,2 10,2 1,8 2,2 3,1 0,0 0,0 16,8 13,3 100,0 100,0 9,5 38,4 1,5 14,4 0,1 36,1 100,0 1,6 40,4 3,5 2,1 0,0 52,3 100,0 12,8 43,6 7,5 1,6 0,0 34,5 100,0 7,4 63,1 4,4 14,0 0,1 10,9 100,0 6,6 7,5 38,7 48,5 13,9 4,4 24,2 11,3 0,0 0,0 16,6 28,1 100,0 100,0 ESTRUTURA HORIZONTAL REGIONAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS Luanda/Bengo Norte Centro leste Centro oeste Sul 82,9 0,0 8,6 8,5 0,0 71,1 12,2 2,6 14,1 0,0 57,8 8,8 3,0 22,3 8,2 78,6 5,7 2,1 8,8 4,9 89,6 0,0 0,0 10,4 0,0 20,8 33,9 17,1 19,7 8,5 39,4 24,6 12,4 17,3 6,3 13,4 30,8 22,3 10,8 2,5 0,0 145 15,7 9,1 5,0 45,6 52,9 33,4 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 14,4 100,0 4,6 100,0 39,3 100,0 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA Sectores Institucionais Desfesa e Segurança Governos Provinciais Total 2007 Sectores Sociais Infra-estruturas Economia Real Sectores Institucionais Defesa e Segurança Governo Provincial Total 76,6 100,0 19,7 28,5 5,9 0,0 36,2 8,1 6,4 0,0 14,6 10,5 6,2 0,0 20,6 45,9 4,9 0,0 8,8 7,0 100,0 100,0 100,0 100,0 13,4 21,9 9,3 35,2 44,7 35,5 27,7 10,8 14,6 13,9 3,2 0,0 32,5 17,5 15,7 10,1 19,0 1,6 0,0 13,7 11,2 45,6 48,2 37,0 45,9 55,3 14,4 37,1 14,4 5,3 20,7 14,1 0,0 3,9 6,6 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Como aí se diz Luanda/Bengo é a região que mais beneficia de investimentos nas infra-estruturas. Os investimentos sociais nas regiões não ultrapassam os 9% do total de investimentos públicos. Pior ainda são os investimentos para criar condições de estruturação e crescimento da agricultura, da indústria e serviços vários (comércio e transportes) que não ultrapassam os 4%. Uma denúncia social Por isto, se a estabilização económica é o esteio do crescimento económico, ela não é um fim em si mesmo. Se a associação, com êxito, destes dois factores e a atitude de recusa de modelos impostos pelo FMI tornou Angola um caso especial, também o paradoxo da abundância cativa o olhar do outro, pois o crescimento económico feito sem diversificação da economia, sem disseminação pelo território e com a sua concentração numa minoria da população - representando dois produtos de exportação, 0,18% do território nacional e 5% da população - contribuiu para uma “estratificação social indecente e imoral”, num país em que continuam a existir situações de fome endémica, em muitas zonas, por inexistência de acessibilidade material. Sendo pois “a elevada taxa de pobreza”, está é, do ponto de vista social, talvez, a maior ofensa que o país independente e com extraordinárias potencialidades de crescimento pode fazer aos seus cidadãos” (p. 26). Uma proposta epistemológica Uma proposta epistemológica para a academia e outra para o poder político. À académica é sugerido fazer da redução das desigualdades regionais (quiçá sociais) um novo caso de estudo. Para o poder político, propõe que a política de regionalização do desenvolvimento, promotora da modernização das estruturas produtivas e da melhoria das condições de vida das populações, seja uma condição sine quo non da reconciliação nacional, seja um dos chamados “ganhos da paz” (p. 27). Uma proposta de boa governação Sendo assim, a prioridade em matéria de desenvolvimento regional são (1) os eixos de transporte rodoviário e ferroviário, (2) a igualização relativa das condições de acesso à repartição do rendimento nacional (p. 25) de maneira que as dissemelhanças regionais se confinem às vantagens comparativas de cada província, às diferenças 146 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA culturais e históricas e aos acidentes geográficos. Ou seja, a disseminação do crescimento económico é o desafio actual. O desafio da governação é tornar outras províncias e regiões do país suficientemente atractivas para constituírem um dique de retenção das populações através do investimento na educação e formação profissional e no incentivo ao crescimento económico dirigido para o interior do país. Para o autor, pensar o desenvolvimento económico e, mais ainda, programá-lo obriga a não perder de vista a ideia (quase trivial) de que é preciso valorizar o potencial humano do país, integrando-o num vasto esquema de trocas de conhecimento e dos bens produzidos, associando-o ao estabelecimento de novas estruturas económicas e sociais; implica entender o desenvolvimento económico, intenso e ordenado, como resultado da “criação, nas regiões mais favoráveis ou aptas, de infra-estruturas e de incentivos que tornem viáveis a implementação de um número crescente de indústrias e outras actividades económicas que possam conduzir a um melhor aproveitamento e transformação das riquezas naturais, nomeadamente nos domínios dos recursos agropecuários, silvícolas e das pescas dessas regiões (p. 28). Ou seja, uma “nova visão estratégica do desenvolvimento regional, em Angola, deve ser encarada numa perspectiva de crescimento equilibrado entre os sectores da pecuária, florestas, pescas e indústria transformadora, dando a possibilidades de todas as províncias (e regiões) participarem, com a criação de pólos de desenvolvimento regional. Esta nova visão estratégica de desenvolvimento regional não pode ignorar a potencialidade de formas participadas de gestão da res pública, através da implementação de uma política de descentralização que permita realização prática do que está consignado na nova Constituição sobre o Poder Local (artº. 213 e ss) que define as Autarquias Locais, representativas das populações das “circunscrições do território nacional” como “a organização democrática do Estado ao nível local”. Conclusão Este livro, que não vale pelo número de páginas mas pela qualidade do seu conteúdo, é um trabalho de investigação aplicada absolutamente necessário ao harmonioso desenvolvimento do país e é também, seguramente, para lá do que já ficou dito, um contributo para o enriquecimento da nossa massa crítica nacional. (A propósito, deixem fazer um parênteses, para vos dizer que há dias fui ofendido moralmente e publicamente condenado ao ostracismo e ao silêncio obsequioso, por um deputado do regime, porque gostava muito de criticar. A minha resposta foi lapidar: sem crítica não há academia e eu sou um académico. É claro que tive que explicar a esse deputado, e aos demais, que a crítica não é sinonimo de falar mal. Não é “falar mal do executivo” – na expressão actualmente muito usada porque está em curso a cultura pagã de deificar o chefe, apresentando-o como omnisciente e até omnipresente que é a ele que cabe decidir tudo. Fecho o parênteses). A crítica, neste livro, é entendida como um exercício da dialéctica da superação; um exercício simultaneamente de avaliação da situação actual e de construção de uma nova existência. A crítica tem assim uma função criativa de possibilidades de acção e de aspectos alternativos que agem sobre o que existe de contínuo, frágil e imutável na história, na política, na economia, nas relações sociais tendo por escopo a análise da sociedade existente. Paulo Freire, pai da pedagogia da libertação e um dos promotores do programa nacional angolano de alfabetização, defendia que “somente uma teoria crítica pode resultar na libertação do ser humano” porque “não existe transformação 147 LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA da realidade sem libertação do ser humano” [Paulo Freire, O projecto da modernidade do Brasil, Papirus, 1994, p. 44]. A crítica não é pois, uma banalidade, uma coscuvilhice, mas é sim um meio de libertação do ser humano. Poderíamos pois dizer que este livro de Alves da Rocha é a crónica da “Angola Desfavorecida” - um país que vai mal apesar das aparências. Nelson Pestana 148