A vida através da tela - Colóquio Internacional Televisão e Realidade
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A vida através da tela - Colóquio Internacional Televisão e Realidade
A vida através da tela: a realidade através do telejornal e do documentário. Macelle Khouri Santos1 Melina de la Barrera Ayres2 Universidade Federal de Santa Catarina Mestrado em Jornalismo Contato: [email protected], [email protected] RESUMO: Este artigo pretende discutir a relação que dois produtos audiovisuais estabelecem com a realidade: os documentários e os telejornais. Dentro da perspectiva cinematográfica, o documentário é visto como um espaço de materialização da realidade, que ganha novas configurações ao se transportar para o ambiente televisivo. O telejornal é o produto jornalístico de maior audiência, portanto, a forma como ele se relaciona com a realidade é fundamental para entender, entre outras coisas, como a grande maioria das pessoas vê e entende o mundo ao seu redor. O objetivo do texto é apresentar como cada um desses produtos se vincula com o real, a partir de três elementos básicos – imagem, áudio e atores – e como vem se dando a convergência desses formatos na televisão. Palavras chave: Televisão, telejornal, documentário, realidade. 1 Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Mestranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina. 2 Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidad Católica del Uruguay, Mestranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Bolsista Capes-Cnpq. 1 Introdução Telejornal e documentário são textos-gênero3. Segundo Bakhtin “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (1992, p. 279). Ao analisar o processo de criação literária, Bakhtin afirma que “o autor é orientado pelo conteúdo, ao qual ele dá forma e acabamento por meio de um material determinado [...] A forma depende, de um lado, do conteúdo e, do outro, das particularidades do material e da elaboração que este implica” (1979, p. 206). Como argumenta Meditsch, “a natureza do material determina limites e possibilidades para o seu uso enquanto linguagem [...]” (2001, p. 216). A partir destes parâmetros, pode-se afirmar que o gênero telejornal resulta da confluência do gênero jornalístico com o suporte televisivo/ audiovisual. O conteúdo do telejornal é informativo, jornalístico, e o material é audiovisual, portanto, as possibilidades do seu texto estão determinadas pela linguagem audiovisual. O documentário, por sua vez, consiste no gênero cinematográfico que se dedica a mostrar aspectos ou representações auditivas e visuais de uma determinada realidade. Como afirma Penafria, o maior atributo do gênero documentário “é ser uma porta aberta para o mundo”, possibilitando uma reflexão, a partir de diferentes olhares 3 Segundo Vilches, falar texto-gênero significa analisar o produto enquanto produto pronto. Entendendo que no processo de produção intervieram diversas manipulações tanto no nível da expressão como do conteúdo (1989, p. 75). 2 (1999, p. 85). Olhares, esses, determinados pela linguagem audiovisual e pela gramática cinematográfica4. O suporte audiovisual implica a presença de determinados elementos que, segundo Cebrián, são: a) imagem e som; b) imagem e som combinados de alguma forma e com certa interdependência; c) oferecer uma realidade perceptível pela vista e pelo ouvido, reproduzida por um sistema técnico. O que resultará, portanto, numa realidade recortada, selecionada por limites bem definidos: campo ocupado pela lente da câmara ou ambiente sonoro recolhido por um microfone, etc. (1978, p. 39). No caso do telejornal, o seu conteúdo informativo, jornalístico, determina, de acordo com Vilches, “um sistema de regras - sobre como se produz um texto informativo, como distinguí-lo de outros gêneros, de um tipo de enunciado -“as notícias”- que possuem parentesco entre si” (1989, p. 75, tradução nossa). O telejornal faz parte do gênero informativo/audiovisual, adquirindo algumas configurações particulares. Como afirma Cebrián, “está regulado pelas características e formas da técnica da linguagem audiovisual utilizada” (1992, p. 23-24, tradução nossa). Para Charadeau, o telejornal “é o gênero que integra o maior número de formas televisuais como: anúncios, reportagens, resultados de pesquisas e de investigações, entrevistas, mini-debates, análises de especialistas, etc.” (2006, p. 227). Conforme este autor, o noticiário nos entrega pronto um mundo construído por ele, apoiando-se na proposta de ‘permitir compreender’ os acontecimentos. No que diz respeito ao documentário, nada obriga que os elementos que o compõem sigam uma ordem determinada. Eles são combinados segundo os objetivos do documentarista, constituindo-se num espaço onde é possível criar, recriar, construir e reconstruir. Para Nichols, “a voz do documentário é a maneira especial de expressar um argumento ou uma perspectiva” (2005, p.73), o que no entender de Penafria, não se restringe a “noticiar, descrever, explicar ou publicitar”, mas tem como ênfase “tratar os seus temas com profundidade” (1999, p.25). 4 Jean Epistein, em 1926, escreveu: “A gramática cinematográfica é específica do cinema”. Citado por Jean-Claude Carrière, em A Linguagem Secreta do Cinema. 3 No que se refere à relação entre realidade, telejornal e documentário, parte-se do pressuposto de que a idéia que temos sobre a realidade é fruto da percepção e, portanto, depende do que experimentamos através dos sentidos. Porém, nem todas as nossas percepções do mundo provêm de uma experiência sensorial direta. Os meios de comunicação, por exemplo, são um dos principais mediadores entre nós e a realidade e, sem dúvida, contribuem com a percepção que temos do mundo ao nosso redor. Este artigo discutirá a relação que o telejornal e o documentário estabelecem com a realidade, buscando desvendar as estratégias dessas relações. O telejornal e a realidade Os dados indicam que 94% dos lares do mundo têm pelo menos um televisor (PUENTE, 1997, p. 12). E é a través desses aparelhos, que todos os dias, os telejornais nos trazem as informações sobre o que acontece no mundo. Os telejornais são, indiscutivelmente, os produtos jornalísticos de maior audiência, não só porque são uma fonte de acesso fácil aos acontecimentos diários, e esse acesso é econômico, mas porque não é necessário ir muito longe para informar-se, basta caminhar até a sala e ligar a televisão. Seguindo o conceito de gênero proposto acima, pode-se dizer que do ponto de vista do conteúdo, os telejornais fazem parte do gênero jornalístico. Fazer parte deste gênero implica, em primeiro lugar, uma inegável ligação com a realidade. Conforme Puente, “sem ela, o jornalismo não existiria. Ali, encontra-se o seu fundamento” (1997, p. 37, tradução nossa). A principal função do jornalismo é dar conta dos acontecimentos diários, no dizer de Gomis, o jornalismo pode entender-se “como um método de interpretação da realidade social” (1991, p. 36). Mas não é qualquer aspecto da realidade, qualquer fato, que pode ser chamado de notícia. Como afirmava Peucer, vários séculos atrás, a matéria dos jornais “são coisas singulares” (1680-2004, p. 21). Portanto, além da íntima relação com a realidade, o jornalismo se caracteriza por cristalizar as informações pelo ângulo da singularidade. Segundo Genro Filho, “o 4 singular é a matéria-prima do jornalismo, a forma pela qual se cristalizam as informações, ou pelo menos, para onde tende essa cristalização [...]” (GENRO FILHO, 1987, p. 78). Em segundo lugar, fazer parte do gênero jornalístico supõe ser uma das principais fontes de informação necessária para à compreensão e organização da realidade5. Alsina adverte que a produção jornalística possui um “papel socialmente legitimado para produzir construções sobre a realidade que são publicamente relevantes” (1996, p.18, tradução nossa). Nesta mesma perspectiva, Vizeu destaca que “os telejornais cumprem uma função de sistematizar, classificar e hierarquizar a realidade. Dessa forma contribuem para uma organização do mundo circundante [...]” (2006, p. 108). Do ponto de vista do material, os telejornais fazem parte do gênero audiovisual e compartilham características do meio televisivo. O suporte audiovisual do telejornal permite que a realidade reconstruída por ele vá além da própria realidade perceptível, alcançando lugares onde não pode chegar o olho humano. Não só porque mostra acontecimentos dos quais não podemos participar, senão porque, nos que estivemos presentes, nos aproxima dos fatos de uma maneira diferente. Conforme Becker, “nos telejornais, a realidade passa a ser produzida em diferentes lugares e situações por diferentes profissionais, por meio da linguagem audiovisual” (2005, p.97). No nível do material, um dos elementos mais importantes da relação entre o telejornal e a realidade é a transmissão simultânea. Franciscato entende a simultaneidade como “o que ocorre ou é feito ao mesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que outra coisa” (2005, p. 124). Este autor acrescenta, ainda, que quando se incorpora a transmissão ao vivo, se quer reproduzir tecnicamente “o tempo presente do instante, propondo ter alcançado duas velocidades: a velocidade do mundo e a velocidade da produção do discurso jornalístico sobre este momento” (2005, p. 240). 5 Por realidade Berger e Luckmann entendem: “A qualidade própria dos fenômenos que reconhecemos como independentes da nossa própria vontade (não podemos fazê-los desaparecer) e definir o ‘conhecimento’ como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas” (1995, p. 13). 5 No telejornalismo, como destaca Vilches, “no ‘agora as notícias’ de cada dia o que importa é o ‘agora’” (1989, p. 136, tradução nossa). A possibilidade de transmitir simultaneamente ao acontecimento, não só faz do telejornal um dos produtos jornalísticos mais atuais, mas confere aos fatos maior peso do que sua gravação para posterior emissão. Ver, ao vivo, pela TV, as imagens de um grande acidente que acabou de acontecer, não tem o mesmo impacto que ver as imagens desse acidente no dia seguinte. Diariamente, o telejornal se vale de diversos recursos que lhe permitem reconstruir a realidade. Este trabalho se centra em três tipos de recursos: Recursos da imagem, Recursos sonoros e os Atores, os quais serão analisados a seguir. Recursos de imagem A imagem é definida por um plano, um enquadramento. No dizer de Baggaley e Duck, “a unidade básica da imagem visual é o plano, dentro do qual se dá informação” (1979, p. 56). No telejornal, o plano mais utilizado é o Plano Médio. É importante observar este “recorte”, pois escolher um plano implica sempre destacar uma coisa e deixar algo fora. A escolha do plano não é casual, como argumenta Hall6 cada plano possui uma significação, e o Plano Médio no caso do telejornalismo representa a suposta distância pessoal entre o âncora e o telespectador. Mas a imagem não limita-se a um plano, ela é bem mais do que isso. A imagem possui diversas funções, dentre elas, segundo Charadeau, destacam-se três: designação, figuração e visualização. Na concepção deste autor, a designação supõe mostrar o mundo diretamente, “[...] em sua realidade perceptiva como um ‘estar-aí’ presente, convertendo-se num ‘objeto mostrado’ [...] essa função põe em cena efeitos de autenticidade” (2006, p. 225). Esta autenticidade dá à imagem um estatuto de verdade, ‘se está ali, se estão me 6 Edward Hall propõe uma classificação do espaço e suas significações. Segundo o autor os enquadramentos associam-se a diversas categorias: distância intima (Plano de Detalhe), distância pessoal próxima (Close-up), distância pessoal distante (Plano Médio), distância social próxima (Plano Americano), distância social distante (Plano Conjunto), e distância pública (Plano Geral). 6 mostrando que aquilo aconteceu, então é verdade’, a imagem, portanto, é uma prova. Outro aspecto importante a ser destacado é que a informação visual passada pela imagem independe do conhecimento de um idioma ou da escrita, como afirma Paternostro, “a TV mostra e o telespectador vê” (1987, p. 64). A figuração funda-se na reconstrução “do mundo no que ele ‘foi’, não perceptível de imediato, mas representável por simulação, naquilo que o torna possivelmente verdadeiro” (CHARADEAU, 2006, p. 225). A visualização baseia-se na representação, “através de um determinado suporte e de um determinado sistema de codificação, uma organização do mundo não visível a olho nu (através de representações gráficas, closes ou imagens virtuais)” (CHARADEAU, 2006, p. 226). Neste sentido, vale a pena destacar a função imprescindível que os videogafismos – por exemplo: títulos, créditos e todo tipo de textos escritos, gráficos, mapas e selos – cumprem no telejornalismo, pois eles não só contribuem com a identidade do telejornal, mas também enriquecem o conteúdo das notícias e, muitas vezes, facilitam a explicação de um fato (MACHADO, 2005). Como argumenta Becker, A imagem conquista o seu status de verdade, porque mostra um real não questionável, nem inventado ou criado, como na ficção, mas constatável. As imagens de arquivo ou de cinegrafistas amadores são sempre identificadas para não imprimir qualquer dúvida quanto à credibilidade do telejornal. Até mesmo as imagens virtuais criadas por computadores, que reproduzem cenas violentas do cotidiano social, buscam criar efeito do real (2005, p. 70) Recursos sonoros Apesar de que, como afirma Paternostro, “só se faz TV com imagem” (1987, p. 72), no telejornalismo os recursos sonoros são fundamentais na reconstrução da realidade. O que seria uma matéria sem palavras, sem som ambiente e até sem música? As imagens são centrais, mas na maioria dos casos, por si só não bastam. O som desempenha uma função essencial no telejornalismo, pois ele é um elemento de organização e contextualização. Cada um dos recursos sonoros possui uma função específica: o som ambiente possibilita a reconstrução do contexto, do background. Uma entrevista feita na rua 7 não é o mesmo que uma entrevista feita numa escola, ou num escritório, e poder mostrar estas diferenças é fundamental para que o telejornalismo reconstrua a realidade. A música geralmente é utilizada em situações específicas, como por exemplo, as principais jogadas de uma partida de futebol. A música dá dinamismo e ritmo às matérias e, em alguns casos, também pode ser utilizada para gerar emoções no telespectador. Dos diversos recursos sonoros, a voz ou palavra oral é a mais utilizada. Como destaca Becker, no telejornal, palavra e imagem trabalham unidos “para favorecer a compreensão, mas não basta ver, é preciso que alguém nos diga o que estamos vendo. O texto falado conduz e alinha as imagens, som, ruídos, gráficos e vinhetas” (2005, p. 71). Mas este texto falado não está composto somente pelo que dizem os jornalistas na frente da câmera ou em off, também fazem parte deste texto os diversos depoimentos recolhidos pelos repórteres. Estes depoimentos, ou trechos dos depoimentos dos entrevistados, como argumenta Becker, [...] geram um efeito de verdade. [...] Os entrevistados aparecem no vídeo apenas para confirmarem, justificarem e provarem que é real aquilo que o texto enuncia e normalmente, não trazem nenhuma informação nova, enriquecedora, definitiva, mas são imprescindíveis como instrumentos de autenticação de que é dito (2005, p. 72). A palavra e a construção do texto também são fundamentais para reconstruir a realidade. Para tanto, como destaca Vizeu, o texto no telejornalismo utiliza os verbos no tempo presente indicativo, como se os fatos estivessem acontecendo naquele instante (2005a, p. 157). Os atores Os atores são todas aquelas pessoas que trabalham para produzir o telejornal, independentemente de que apareçam ou não diante das câmeras. Neste trabalho, se destacam somente os atores que aparecem diante das câmeras, pois eles são os rostos visíveis de toda a equipe, aqueles que os telespectadores conhecem e, de certa forma, se relacionam. Eles são: os âncoras, repórteres e especialistas. 8 O âncora é o primeiro rosto, a primeira ‘cara visível’ que o telespectador vê no telejornal, ele é quem dá as boas-vindas. Mas a sua função não é somente essa, ele é um mediador entre a realidade e o espectador, portanto, o âncora cumpre a função de guia, ao abordar e mostrar as notícias; a função de organizador, ao passar a palavra aos repórteres que estão na rua; a função de moderador, ao realizar entrevistas no estúdio e dialogar com os especialistas (CHARADEAU, 2006). Como afirma Charadeau, o apresentador é o pólo organizador (2006, p. 230). Os repórteres são jornalistas que tem como principal função recolher as informações, produzi-las, etc. O jornalista é, de acordo com Vizeu, “o elo fundamental do processo jornalístico” (2005a, p.57). No telejornalismo, a função do repórter foi mudando com o passar do tempo. No começo, ele “não tinha outra função além de segurar o microfone e fazer perguntas que quase nunca iam ao ar” (SQUIRRA, 1995, p. 80). Atualmente a situação é bem diferente, sua função não se reduz à técnica, ele trabalha com “representações ideológicas, palavras, informações, dados, opiniões e atitudes que são as que a empresa adota” (VIZEU, 2005a, p. 58). Hoje, o jornalista não só tem uma participação ativa, mas um lugar central na produção da matéria. Os comentaristas são profissionais especializados em determinada área. Sua função é comentar e/ou esclarecer alguns fatos abordados, em determinadas matérias. Em alguns telejornais, os âncoras cumprem também a função de comentaristas. No Brasil, por exemplo, Boris Cassoy cumpre as duas funções, mas atualmente o mais comum é que comentários e informações sejam abordadas por profissionais diferentes. Desta forma, cada vez mais, se incorporam à equipe dos telejornais, especialistas em esportes, política internacional, cultura, etc. Por último, vale a pena citar Paternostro, que resume bem os conceitos acima tratados: “A TV joga pesado no momento em que ela combina a utilização simultânea de dois sentidos do ser humano: a visão e a audição, com imediatísmo e alcance. É com essa estrutura armada que a TV envolve a telespectador, carregando-o para ‘dentro’ da notícia” (1987, p. 35). 9 O documentário e a realidade No contexto cinematográfico, ao contrário da ficção, é o documentário que se encarrega de nos mostrar o mundo. “Uma história sobre um mundo imaginário, não é mais que uma história. Uma história sobre o mundo real é um argumento” (PENAFRIA, 1999, p.26). Essa explicação sintetiza a tradição do filme documental, que segundo Nichols, “está profundamente enraizada na capacidade de ele nos transmitir uma impressão de autenticidade” (2005, p.20). E o que faz tão forte essa impressão é o fato de que esses filmes nos apresentam uma realidade que existe fora das imagens, um mundo reconhecível e palpável, enquanto a obra de caráter ficcional nos transporta para um mundo por ela construído. E a maneira como se representa esse mundo histórico está intrinsecamente relacionada com a opção que o documentarista faz para combinar os elementos imagéticos e sonoros que vão compor o filme. Essas possibilidades de trabalhar as informações recolhidas através dos recursos audiovisuais determinam os tipos de documentários, enquanto prática fílmica. Entre as diversas classificações, quatro se destacam: exposição, observação, interação e reflexão7. A principal característica do documentário de exposição é a presença de um narrador que, por meio de sua voz em off, vai conduzindo a apresentação dos fatos e estabelecendo o enquadramento da narrativa. No caso do filme de observação, o compromisso está em não intervir nos acontecimentos, de recolher imagens de uma realidade que se apresentam de maneira natural e espontânea diante da câmera. E, embora, o equipamento não se torne invisível, ele é, presumidamente, esquecido pelas pessoas que, dessa forma, não alteram suas atitudes e expressões. Em oposição ao modelo observativo está o interativo, no qual o documentarista se faz presente fisicamente. Nesse tipo de filme, a idéia de realidade resulta do que vemos a partir da interação entre o cineasta e os personagens. Já o documentário reflexivo procura expor o seu próprio processo de construção, voltando o foco para a relação entre o diretor e o espectador. 7 Embora alguns autores apontem para outras classificações, as quatro apresentadas são consenso em Nichols e Penafria. 10 A relação que o documentário estabelece com a realidade perpassa, essencialmente, pelas escolhas que o cineasta faz no que concerne ao tema e ao modelo, bem como pelas significações que esse gênero fílmico ganha enquanto fazer cinematográfico. Como afirma V. Pudovkin, “o material do diretor de cinema não consiste dos processos reais que acontecem no espaço e tempos reais, e sim daqueles pedaços de celulóide nos quais esses processos foram registrados” (In: XAVIER, 1983, p. 67). Para melhor compreender essa relação, é importante falar dos recursos imagéticos e sonoros, assim como dos atores que compõem o filme documentário. Recursos de imagem A imagem é o elemento básico da linguagem cinematográfica. De acordo com Martin, o registro que a câmera faz da realidade constitui uma percepção objetiva, que faz “o valor probatório do documento filmado um princípio irrefutável”, ainda que exista a possibilidade de manipulação das imagens (2003, p.20). Mas a apreensão da representação fílmica decorre de duas características materiais que a imagem fílmica possui: ser bidimensional e delimitada por um quadro. Segundo Aumont, o espectador, ao se deparar com essa imagem plana e limitada, faz uma analogia com o espaço real em que vive. A intensidade com que essa analogia é vivenciada “provoca uma impressão de realidade específica do cinema, que se manifesta principalmente na ilusão de movimento e na ilusão de profundidade” (1995, p.20-21). A ilusão de movimento é responsável pelo encantamento e fascínio característicos do cinema, sintetizados pelo cineasta francês, Jean-Luc Godard, na afirmação: “O cinema é a realidade 24 vezes por segundo”.8 Já a ilusão de profundidade é um recurso fílmico que, recorrendo às técnicas de perspectiva e profundidade de campo, conferem beleza plástica às cenas. Como afirma Vernet, “a impressão de realidade sentida pelo espectador quando da visão de um filme deve-se, 8 Godard faz referência à característica essencial da projeção cinematográfica que é a de exibir 24 fotogramas de imagem por segundo. A persistência da retina humana é que permite ver esses fotogramas como uma imagem única. 11 em primeiro lugar, à riqueza perceptiva dos materiais fílmicos, da imagem e do som” (In: AUMONT et al., p.148). O documentário, portanto, traz, por meio de suas imagens, uma reprodução do real que, dinamizada pela criatividade do cineasta, afeta nossos sentimentos, ganhando os mais diversos significados. Esse potencial criativo, associado às possibilidades técnicas dos equipamentos de filmagem e às estratégias de montagem, resulta numa influência direta na forma de apresentação do conteúdo fílmico. Os planos, ângulos e enquadramentos, assim como as cores e recursos de iluminação, conferem sentidos às imagens captadas in loco, da mesma forma que a ordenação das cenas e seqüências re-significam a história contada. Esse contexto também se aplica aos documentários que fazem uso de imagens de arquivo, e até mesmo àqueles chamados filmes de montagem, que utilizam apenas esse tipo de material para construção da narrativa. Por isso, é tão importante aprender a ler um filme, “a decifrar o sentido das imagens”, “a compreender as sutilezas da linguagem cinematográfica” (MARTIN, 2003, p. 27). Recursos sonoros Como em todo produto audiovisual, os recursos sonoros têm uma influência direta na construção narrativa e nas significações da história contada pelo documentário. Segundo Michel Chion, o som no cinema é “vococentrista” e “verbocentrista” (1993, p.17) já que a palavra e os diálogos são os elementos essenciais dos filmes, sobretudo, daqueles de caráter documental. Martin reforça essa teoria ao afirmar que a fala, além de sentido, é também “tonalidade humana”, que tem sua “vocação realista” condicionada pelo fato de ser ela “um elemento de identificação dos personagens da mesma forma que a roupa, a cor da pele ou o comportamento em geral” (2003, p. 176177). Essa ênfase às falas, diálogos e depoimentos é ainda maior nos documentários, já que o relato é a questão chave na maior parte desses filmes. Outro recurso sonoro fundamental para o cinema é a música. Na definição de Chion, “a música expressa diretamente a sua participação na emoção da cena, 12 adaptando o ritmo e o tom”, de acordo com “os códigos culturais da tristeza, da alegria, da emoção e do movimento” (1993, p.19, tradução nossa). No documentário, a música pode apresentar-se de duas maneiras: como trilha sonora ou como um marcador, em momentos específicos da narrativa. Nas palavras do autor, é a música “que faz surgir a trama mecânica desta tapeçaria emocional e sensorial” que é o filme (1993, p.20, tradução nossa). O silêncio e o ruído são também recursos sonoros fundamentais para o documentário. O primeiro pode se fazer presente pela interrupção da fala de um personagem, pela ausência de algo ou alguém ou pela suspensão do fundo musical. O ruído que, de modo geral, não se apresenta nos filmes ficcionais, se constitui importante elemento significativo na narrativa documental, sobretudo quando se trata de cenas gravadas in loco, em que a ambiência sonora do local é fator de extrema importância para o realismo das cenas. Os atores No contexto do cinema ficcional, o termo atores é utilizado para o ator enquanto profissional das artes cênicas. Como o nosso foco é o cinema documental, utilizaremos essa designação para nos referir ao documentarista e aos personagens. Quanto aos personagens, esses se apresentam, no filme, como si próprios, não representam nenhum papel e, presumidamente, agem com naturalidade e expõem sua visão de mundo por meio de falas e entrevistas não programadas. São essas vozes que vão compor, prioritariamente, o documentário. No caso dos filmes que utilizam a reconstituição de fatos como recurso narrativo, há a participação de atores que representam os personagens numa determinada situação passada. O cineasta, talvez, seja o personagem principal do filme documental, uma vez que é ele quem determina o que vai ser filmado e a forma como irá fazê-lo. Como ressalta Penafria, “o registro de imagens e sons do mundo não reflete, por si só, o valor do gênero. É necessário aliá-lo à organização dos mesmos” (1999, p.107). É por meio dessa organização que o documentarista vai revelar ao espectador o mundo, fazendo-o pensar sobre ele. 13 Como foi apresentado anteriormente, o grau de manifestação do cineasta dentro do filme depende do modelo pelo qual ele optou. No entanto, mesmo nos documentários de exposição e observação, o espectador percebe a presença da mão que dirige a história que lhe está sendo apresentada. De acordo com Vieira de Melo, o documentário “é um gênero essencialmente autoral, sendo absolutamente necessário e esperado que o diretor exerça o seu ponto de vista sobre a história que narra. É impossível ao documentarista apagar-se” (VIEIRA DE MELO, 2002, p.9). A autora reforça, ainda, que esse caráter autoral do gênero documentário se traduz pela “relação estabelecida entre o ponto de vista e a maneira como a tese defendida pelo documentarista se materializa no filme” (Idem., p.11). Algumas aproximações Perceber a realidade sempre implica em escolhas. Da mesma forma, ao escrevemos um artigo, precisamos delimitar o recorte a ser trabalhado. Por isso, optamos por tecer algumas aproximações e apresentar algumas diferenças na maneira como o telejornal e o documentário se relacionam com a realidade, no contexto televisivo. Embora tratem os fatos de maneiras distintas, já que a parcialidade é bem vinda no documentário, ao contrário do jornalismo, ambos se apresentam para o telespectador como uma ponte de ligação com a realidade. No entanto, é preciso perceber que o espectador lida diferentemente com o telejornal e o documentário. Por isso, essa aproximação entre documentário e televisão implica em mudanças na técnica, na linguagem, no conteúdo e na forma do filme, para que essa ponte com a realidade seja preservada. Segundo Carrière, a televisão diminui “o poder de convencimento do objeto filmado” (1995, p.68). Isso faz com que o documentário feito para a TV utilize uma linguagem muito mais próxima do telejornalismo. Teixeira, no livro Documentário no Brasil, recorre a Matos9 para mostrar que, entre as 9 Francisco Elinaldo Teixeira cita o artigo “Impressões de Amsterdam”, escrito por Carlos Alberto Matos sobre a 10ª edição (1997) do International Documentary FilmFestival Amsterdam, que é considerado o mais importante festival de documentários do mundo. 14 tendências atuais do documentarismo brasileiro está a produção com linguagem televisiva. O texto que afirma ser a televisão “o principal mercado e um dos parceiros na produção de documentários”, aponta, como mudanças estruturais, a utilização de recursos tais como: “colagem fragmentada, ritmo acelerado, duração em torno de 50 minutos e seus múltiplos, alternância homogênea de depoimentos, material de arquivo e cenas reconstituídas” (2004, p.58). Outro fator que tem caracterizado aproximação entre documentário e TV é a produção de docudramas ou documentário dramatizado, que se constitui num filme baseado numa história real, mas que recorre à ficção para reconstruir esse relato. Considerado por Penafria como um material que “fica a meio caminho entre o documentário e o filme de ficção” (1999, p. 29), este modelo, segundo Mico10, tem sido muito utilizado nas TVs, “especialmente nos programas com uma forte vocação informativa ou jornalística, na televisão da era digital”. Telejornal e documentário possuem diversas características comuns, a primeira delas é fato de terem a realidade como material primordial de trabalho. Em segundo lugar, ambos utilizam o audiovisual como suporte e, consequentemente, utilizam a imagem como comprovante de verdade, o som como apoio para recriar o background, e os trechos de entrevistas ou depoimentos como condutores da “história”. Mas apesar destas aproximações, algumas diferenças entre documentário e telejornal são marcantes. A realidade, no documentário, é reconstruída através do olhar do cineasta, e o espectador percebe a presença da mão que dirige a história. No telejornalismo, os jornalistas, de certa forma, também colocam o seu olhar ao reconstruir um fato, porém, o ideal é que o telespectador não perceba esse olhar, o fato deve ser apresentado como se estivesse acontecendo naquele momento, como se estivesse se desenrolando diante dos olhos do espectador. A realidade reconstruída pelo documentário é assumidamente subjetiva, a realidade reconstruída pelo telejornal buscar ser o mais objetiva possível. 10 Retirado do artigo: Docudramas en la televisión digital: periodismo, simulación y mentiras. Disponível em www.bocc.ubi.pt. (Tradução nossa). 15 A subjetividade do documentário se evidencia em todo o seu processo de produção, desde a captação das imagens, fazendo uso dos recursos de câmera e iluminação, até a montagem, quando muitos dos filmes nos trazem uma observação, descrição ou evocação poética de situações ou interações. Como afirma Nichols, por meio de suas representações, os filmes documentais “tentam enriquecer nossa compreensão de aspectos do mundo histórico”, “eliminando a certeza com a complexidade ou a dúvida” (2005, p.207). O telejornalismo busca mostrar sua objetividade quando, por exemplo, utiliza depoimentos diversos e muitas vezes com opiniões opostas, quando elabora textos no presente do indicativo, quando separa informação de opinião, quando utiliza a imagem como comprovante de verdade. Estas diferenças entre o telejornal e o documentário na relação com a realidade se dão basicamente porque, apesar de trabalharem com ela, o objetivo de ambos os produtos é diferente. O documentário tem uma finalidade especialmente criativa. É através da criatividade que o cineasta reconstrói a história, buscando afetar os sentimentos dos espectadores. No telejornalismo, o foco é a notícia, o fato, e o objetivo central é reconstruir esse fato do modo mais fiel possível. Isto não quer dizer que não exista criatividade, mas ela não é um fim. Esta diferença nota-se claramente no uso das imagens. No documentário, por exemplo, é muito comum modificar as cores das cenas ou recorrer a recursos de iluminação. Já no telejornalismo, estes recursos não são utilizados, pois sua finalidade é informativa. Outra diferença importante entre documentário e telejornal é que, este último, apoiado em diversos recursos técnicos, tem a possibilidade de transmitir simultaneamente essa realidade, o que permite sugerir, como argumenta Fechine, “que os fatos estão se fazendo no momento em que estão sendo transmitidos” (2008, p. 149). A relação de simultaneidade que o telejornal tem com a realidade não está presente em nenhum outro produto audiovisual. Essa ausência completa e total da possibilidade de transmissão simultânea confere ao documentário, por sua vez, a possibilidade de aprofundamento das questões, apresentando as causas e os possíveis desdobramentos, aspectos que 16 contribuem para reforçar a sua relação com a realidade. Esse percurso de investigação faz do filme documental um produto audiovisual alicerçado, não apenas na apresentação dos fatos, mas no confronto do documentarista com esses fatos. Vale a pena destacar, por fim, que tanto o telejornal quanto o documentário reconstroem a realidade, por meio da linguagem audiovisual, e contribuem para criar a imagem que se tem dessa mesma realidade. Como também fazem parte dela, o recorte que nos é apresentado por ambos os produtos é resultado das leituras feitas por seus produtores, os quais reconstroem essa realidade com menor (telejornal) ou maior (documentário) interferência dos seus pontos de vista. E ao (tele) espectador cabe a interpretação desses recortes, a partir da sua interação com a própria realidade. 17 Bibliografia AUMONT, Jaques et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995. ALSINA, Rodrigo. La construcción social de la noticia. Buenos Aires: Paidós, 1996. BAGGALEY, J.P. & DUCK, S.W. Análisis del Mensaje Televisivo. Barcelona: Gustavo Gili, 1979. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BECKER, Beatriz. A linguagem do telejornal: Um estudo da cobertura dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: E-papers, 2005. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. CEBRIÁN, Mariano. Géneros informativos audiovisuales. 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