livro final - ESEN Viseu

Transcrição

livro final - ESEN Viseu
Escola Secundária de Emídio Navarro - Viseu
Percurso Aquiliniano
24 de Maio de 2008
Ficha Técnica
Título: Percurso Aquiliniano (Maio de 2008)
Projecto: Estudantes do 11º Y (Ensino Secundário Recorrente)
Paginação e Concepção gráfica: Paulo Toipa
Coordenação: Jerónimo Costa e Jorge Bento
Ilustrações: António Borges, Braga da Costa, Leal da Câmara, Júlio Pomar e
Pedro Albuquerque
Fixação de Texto: J. Costa e Paulo Toipa
Revisão: Jerónimo Costa
Impressão e acabamentos: EdenGráfico S.A.
Patrocínios:
Câmara Municipal de Viseu
Câmara Municipal de Sernancelhe
Colaboração:
Escola Secundária de Emídio Navarro
Prefácio
Este é um trabalho final da disciplina de Geografia, com o
expresso contributo das restantes disciplinas. É
efectivamente uma oportunidade para introduzir os
conhecimentos num trabalho que foque uma realidade e
evite aquilo que é mais comum e generalizado.
Assim procurou-se uma temática que além de cumprir
objectivos da disciplina de Geografia e o âmbito do “
Estudo de Caso”, pudesse de alguma forma ser partilhado
por toda a comunidade escolar. Foi assim, e neste
pressuposto, que nos surge o “Percurso Aquiliniano”, uma
jornada, um itinerário, uma construção, um
enriquecimento, enfim.
Digamos que este “percurso” pode ser uma proposta e
uma abertura para que outros percursos se possam realizar
ou inventar.
Este pretende trazer aos participantes um conhecimento
ou uma proximidade maior com um dos escritores
portugueses mais ilustres, e porque tão próximo permite
esta “viagem” pelo seu imaginário / real. Vamos procurar as
fragas, os montes, as plantas, os animais, as pessoas, os
cheiros, os sabores, e muito mais.
Se no final da viagem ficarem com vontade de ler ou reler
Aquilino Ribeiro estão cumpridos os nossos objectivos.
António Jorge Bento
Revisitar Aquilino
A turma Y do 11.º ano do ensino recorrente vai fazer uma
visita de estudo às Terras do Demo e sentir o saber, os sabores e
os ambientes peculiares de Mestre Aquilino, exímio cultor do
idioma pátrio e vulto insigne do luso panteão literário.
A visita de estudo é também pretexto mobilizador para
este grupo de trabalhadores-estudantes e seus professores se
envolverem na concretização do projecto pluridisciplinar da
elaboração do “Roteiro Aquiliniano” corporizado no opúsculo
agora dado à estampa.
O repositório dos textos publicados é prova da expressiva
adesão e louvável cumplicidade que este projecto de
complemento curricular suscitou nos docentes e discentes.
Da viagem ficarão as vivências, o convívio e a recordação
do mundo real e ficcional aquilinianos… O opúsculo é a
memória revisitada sempre que a saudade e a evocação sejam
mais fortes e instiguem o caminheiro a fazer nova viagem…na
imaginação!
Como docente e presidente do Conselho Executivo
associo-me à iniciativa e exprimo o regozijo de constatar que
entre a comunidade escolar da Secundária de Emídio Navarro
grassa a vontade de fazer frutificar o germe da cultura e de
difundir um património cultural e literário que notabiliza a
nossa história, literatura e identidade.
António Cabral
Presidente do Conselho Executivo
Do espaço físico...
Um percurso pressupõe um roteiro.
O nosso foi feito, refeito, "trefeito", e chegou à sua versão
final. Como é evidente, pode ir-se aqui, conhecer-se este
ou aquele lugar, mas concerteza, para visitar um
imaginário Aquiliniano, há pontos fundamentais a saber:
1- Soutosa - Lugar imprescindível. É aqui que
Aquilino passa e escreve grande parte da sua obra. A
sua casa é o seu Mundo. É aqui ao pé de Barrelas que
o escritor passa uma parte significativa da sua vida.
2- Sernancelhe - É o lugar onde tudo começa e o lugar
onde parecem desenrolar-se uma boa parte dos
enredos de Aquilino. São os soitos, as fragas, as
trutas do rio, os bichos, as gentes do imaginário
Aquiliniano. Não se pode falar de Aquilino Ribeiro
sem falar em Sernancelhe, das suas gentes e da sua
paisagem. Tudo aqui nos faz lembrar o escritor e o
seu imaginário.
3- Sr.ª da Lapa - Um lugar essencial. Ele é para o
escritor lugar de juventude, de escola, de
crescimento e educação, bem documentado da sua
vida e obra que não pode ser ignorado.
Por isso vamos visitar a Feira Aquiliniana e tentar
ver hoje aquilo a que Aquilino poderia ter
assistido aquando da sua permanência no
Colégio da Lapa.
4- Lamego - Por aqui andou Aquilino Ribeiro
(estudante) e por aqui andou também uma boa
parte das suas personagens e decorreram alguns
dos seus enredos. Lamego é ponto importante e
lugar a visitar.
5- Viseu - É lugar de partida e lugar de chegada do
nosso roteiro. Há muito de Viseu na obra de
Aquilino Ribeiro, é, concerteza, um lugar de
grande importância na sua vida. Aqui viveu na
juventude; aqui viveu quando regressou do
segundo exílio e por aqui passou em várias e fiéis
tertúlias. Aqui preservou os amigos, também
seus admiradores que o consideravam um mestre
e se ufanavam da sua grandiosa obra.
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* *
Roteiro
Lamego
N
Sernancelhe
Soutosa
Sr.ª da Lapa
Viseu
Escala 1:600000
...ao espaço literário
Casa de Aquilino Ribeiro - Soutosa
Os veros habitantes da aldeia figuram nas páginas dos meus
romances, retocados ou em carne viva, descritos parcialmente
ou na integra, debaixo de uma mascarilha. Os próprios - já
tive a prova - reconhecem-se no leve farricoco. Não vale a
pena, pois, levar o seu retrato ou água-forte mais longe ou
reescrever a crónica dos seus feitos. Esta rememoração é apenas
mais objectiva e concentrada. Porque os trago agora à colação?
Porque estou sozinho a representar e a minha vilegiatura na
aldeia foi mais que um monólogo. Contracenam comigo.
Quando me vim embora, trazia a aldeia nos poros, no sangue
e no cérebro.
Um Escritor Confessa-se
Lembro-me dos feijões vermelhos
com presunto que me dava em sua
casa, à volta destas batidas de 5
léguas, mais saborosos que
caviar.Um dia caímos em casa do
Lucas dos Alhais, pai deste douto
Manuel da Gama, que tinha uma
boa voz de tiple e como tal tomava
parte nos ofícios de corpo presente e missas cantadas, ganhando os honorários
dos padres. Comemos-lhe um frango com arroz - delicia das delicias! - e meio
presunto que teve a santa inocência de nos pôr em frente, julgando-nos
refartos.
*
* *
Geografia Sentimental
Comeram-lhe à tripa forra carniça
refogada, cozida, assada, de porco, de
vaca, de chibato, carniça para todos os
paladares. 0 arroz estava de se trocar por
um prato dele a imortalidade, o cabrito,
rechinado no espeto e picadinho do sal,
até fazia cócegas no céu da boca. Quem
bem come bem bebe, acabaram a janta
enfrascados e lerdos como patos na engorda.
Terras do Demo
O castelo bronco, de panos cerrado
derramava sobre Lamego a poeira
nebulosa dum crónicon. A crista de
ameias esboroava, sorvada dos sóis e dos
invernos; e, sobre a manta de farrapos
do casario, dava a impressão dum
sólido esqueleto de Hércules, inteiriçado
Colégio Roseira ( Lamego)
à flor da terra, em jeito de reptar. Torva, sua fisionomia falava; falava ao
Pátio dos Reis, ao torreão da catedral e dizia-lhes: passaremos!
Toda a cidade me dava, melancolicamente, a sensação de ser conduzida pelo
frenesi da morte! Logo à entrada de portas, para quem apeia de Moimenta,
uma calçada arrastava pela ladeira acima cordões de casas em ripas,
corcovadas, esguias, cheias de remendos e de cor. Nos caixilhos, rolhos de
farrapos paravam há dezenas de anos o gume dos invernos. Rapazotes, de
verga ao léu, chafurdavam em torno do pego que ali forma o Balsemão.
Mulheres espiolhavam-se umas às outras na soleira das portas. Todo o bairro
da Ponte me parecia uma judiaria antiga, onde cheirava ao pão ázimo dos
sábados.
A partir de S. Lázaro, as casas de taipa entremeavam com residências
solarengas, de granito. Eu achava-lhes uma grande nobreza nas pedras
trabalhadas à escoda e nos brasões de linhagem extinta.
Meu mestre disse-me um dia que viera à cidade:
- Já reparaste, Libório, no luxo opulento de cantaria que há nestas portas e
nestas janelas? Mormente nas janelas? Não é verdade que se diriam pequenos
arcos de triunfo por onde passa, amiúde, um hospede real?
Via Sinuosa
O Malhadinhas visto, no seu traço indelével,
por Aquilino Ribeiro
D
Pedro Albuquerque
ANADO aquele Malhadinhas
de Barrelas, homem sobre o
meanho, reles de figura, voz tão
untuosa e tal ar de sisudez que nem o
próprio Demo o julgaria capaz de, por
um nonada, crivar à naifa o abdómen
dum cristão. Desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas
pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava j
ale ca curta de montanhaque; sapato de tromba
erguida; faixa preta de seis voltas a aparar as volutas
dobradas da corrente de muita prata—e, Aveiro vai,
Aveiro vem, no ofício de almocreve, os olhos sempre
frios mas sem malícia, apenas as mandíbulas de dogue
a atraiçoar o bom-serás, as suas façanhas deixaram
eco por toda aquela corda de povos que anos e anos
recorreu. Na velhice, o negócio tilintado através de
gerações, as andanças de recoveiro, o ver e aturar
mundo, tinham-no provido de lábia muito pitoresca,
levemente impregnada dum egoísmo pândego e
glorioso. Nas tardes de feira, sentado da banda de fora
do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já
tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal,
desbocava-se a desfiar a sua crónica perante
escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de
ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que
morreu.
[Bertrand, ed. de 1987 p.11 ]
Razões de uma
escolha
O Malhadinhas é, pelos seus condimentos, a obra mais
conhecida de Aquilino Ribeiro. São dele as breves
palavras, colhidas em Manuel Mendes (Aquilino
Ribeiro, A Obra e o Homem, pp 79 e 80, Arcádia,
Lisboa, 1960), de apresentação: Trata-se da vida dum
almocreve, contada por ele próprio, pitoresca e
variada, salvo seja, como a vida de Fernão Mendes
Pinto. O almocreve conta, mas os episódios e as cenas
vão-se projectando no écran sob a forma mais
objectiva e circunstancial, de modo que o monólogo
torna-se um rio de acção, acção rápida, dinâmica e
realista. Em realidade, o que perpassa por debaixo do
franco falar do Malhadinhas é a velha terra de
Barrelas com as suas bisbilhotices, os seus amores
lícitos e ilícitos, as suas cenas de cupidez e valentia,
sangue e arraial […]
Um dos mais expressivos capítulos é, sem dúvida, o V.
Com objectivos meramente didácticos e divulgativos,
a sua reprodução, aqui, tem ainda o ofício de espevitar
o apetite para a leitura integral da obra.
*
* *
O MALHADINHAS
,,
S
capítulo V
OMBRA negra na minha vida era ora e
sempre o Tenente da Cruz, que havia jurado
tirar-me o chiadouro depois que empalmei
Brízida ao pai, pela qual se chorava ainda de morte.
Mais de ano que os meus caminhos andavam
desencontrados de semelhante piranga. Por mor
duma briga em que se envolvera e de que resultara
homem morto, tivera de largar à revelia, e por lá
andou muito tempo a pontos de ninguém mais falar
nele. Vai senão quando apareceu um sábado na feira
de Barrelas, mais farsola que nunca, montado numa
égua pimpona. Teve bons padrinhos o safado, como
não podia deixar de ser, porque, além de rico e
poder abafar a Justiça com gordas peitas, nunca
perderam a simpatia dos fidalgos, ia dizer de nós
todos, estes corredores de valentia e arruaça.
Matam e perdoa-se-lhes se foram destemidos a
matar. Enfim, fosse como fosse, o ladrão voltou à
praça e eu, muito às escondidas da Brízida, pus-me
a afiar a faquinha.
Fiquei com pulga na orelha e bem haja eu. Mais de
um que me dizia, se acertava confessar meus receios:
—O Tenente da Cruz assentou; está homem
cordo. Tem o casamento tratado com a morgada da
Silva.
—A ver vamos. Não me toque ele, que eu não
lhe toco.
Ora?! Vai-se para o mercado de S. Francisco que se
faz no tempo do mosto à sombra do convento da Ordem
Terceira, de que há vinte anos sou irmão pagante, sem
grande esperança de os meus pecados pesarem menos
na balança do Paraíso— que aquilo não é confraria,
mas falperra de cordão — vai-se, ia dizendo, para o
mercado de S. Francisco, e com quem dou eu de cara ao
pisar na feira das bestas? Com o birbantão do Tenente.
O homem deita-me o rabo de olho e muito na sua
compostura — estou a vê-lo de botas altas à Frederica,
jaleca curta de alamares, um chapéu branco de muita
aba, com um vergalho na cova do braço, alto, garboso,
que era moço alentado e bem-parecido, lá isso era,
meter pelo meio da ciganada e sumir-se-me da vista.
«Hum! —funguei eu — o Diabo feito ermitão! Estás a
pregá-la». Desço para a feira do linho, e ponho-me a
amarrar o machito ao toro dum castanheiro. E
estava eu a dar a laçada, de olhos nos senhores padres que lá iam levados em suas garnachas pretas a
esfolar o geral, pumba ! desce um açoite sobre as ancas
do animal, como se fosse a tornar-lhe o troco de tropelia,
e oiço:
— Estupor, ensinou-te o amo a coicinhar!?
Boi mau em corno cresce. Era o Tenente, pois quem
havia de ser. Sem me bulir, contestei-lhe:
— Que febre lhe faz o machinho?... Olhe que
também lhe dói como a nós.
— Apanhou ele e apanha você...
— E porquê, se não fica mal o perguntar?
— Porque sim! Você é o pedaço dum velhaco...
Dei-lhe salto à garganta mais ligeiro que uma onça —
contava depois o Afrânio — e, em menos dum amém,
estava tombado por terra e eu de joelhos em cima, na arca
do peito... Varreu-se-me a luz dos olhos e já a faca vinha
largada quando atalharam o golpe. Foi o miraculoso
Padre Santo António, pelo braço, já não sei de que bom
burgesso, que se meteu de permeio.
Apartaram-nos... e antes assim. Dorido, envergonhado, mais amarelo que a cera, a sacudir os argaIhos da
roupa, bem embora foi-me jogando:
— Se és homem, ó Malhadas, vem à feira de Lamas, na
quinzena...
— Pois não faltes, que eu não falto! Nem que o
diabo dê estoiro...
E assim foi. Tratei de pôr a vidinha em ordem, e
na véspera de Lamas pedi ao Sr. Abade para me ouvir de
confissão. Ajoelhei-me a seus pés antes de se paramentar
para a missa e varri da alma a ciscalhada e dois tições que
a encardiam. O diabo é que o negócio foi soado por novo
e nunca visto, tratando-se dum bonifrate como eu.
Brízida, já porque tivesse rumores do desafio, já porque
me visse mais sala-murdo do que é meu natural, concluiu
que de alguma empresa grave se tratava e à noitinha
esperluxou-me:
— Para onde é a jornada?
— Para Aveiro, menina! Não reparaste há migalho no céu? Já sabes, vermelho para o mar, aparelha
o burro e vai ao sal. De resto, estão à porta as matanças e
não há pitadinha pelos povos.
— Homem, não sejas trapaceiro. Tu vais mas é à
feira de Lamas encontrar o Tenente da Cruz, com
quem andas despicado...
— Eu?!... Eu?!... Quero lá nada com semelhante
pirata?! Nem a bem nem a mal.
— Lembra-te que tens mulher e filhos...
— Pois é por essas e outras que não quero meças
com ele. Terçã o parta lá longe, que há-de morrer a
dar coices!
Na alva, lavei-me, aprontei-me e fui à cama dizer
adeus à mulher, só adeus, que um cavalo que há-de ir à
guerra nem corra lobo, nem o abane égua, e dar um
beijinho na menina. Assim que vi a inocente a
dormir mais quietinha que um anjo, veio-me um soluço
aos gorgomilos e, sem querer, desabafei:
— Deus sabe se a tornarei a ver !
Que tal disseste ? ! Brízida agarrou-se a mim a chorar:
— Homem da minha alma, que me enganas ! Tu
não vais para Aveiro ? !
— Vou, minha santa, vou.
— Não vais... Vais para Lamas e diz-me o coração que
não voltas...
— Vou para Aveiro... os caminhos são compridos... há
assassinos pelas encruzilhadas.
— Para que dizes: Deus sabe se a tornarei a ver?
— Por isso mesmo... maneira de falar, que a
morte é certa e a hora incerta. Lá reza o prudente:
aos olhos tem a morte quem no corcel passa a ponte.
— Jura lá!
E jurei, pois antes quebrar a palavra por bem-querer
que quebrá-la por cobardia.
A cavalinho no macho, trupe, trupe, foi-me alvorecer
para lá do Vouga, à vista dos carvalhais de Lamas. Estava
uma manhã muito clara, destas manhãs de Outono em que
o sol é como boi touro, mal castigado da aguilhada. Às
duas por três, marra. E, palavra, com o céu aberto, a terra
toda a revessar alegria, é preciso força de ânimo para
caminhar para um precipício. Mas é o que Deus quer e
avante !
Quando cheguei à feira, já andava tudo numa
dobadoira: os cortadores a esquartejar as reses, os ferradores a ferrar, os burros a zurrar, as fidalgas a apreçar
com ar de não presta, no meio duma algazarra de vozes,
um açude de sons, quanto bonda para se avaliar que o
negócio bate o auge. Deito os olhos por largo e quem
avisto eu? O Tenente da Cruz. Estava em grande
relambório com uma tropa fandanga de caras tortas e
maltrapilhos, que ninguém gostaria de ver de noite à
volta de sua casa. Se eu não soubesse quem ele era,
filho de boa família e com os seus teres, homem alto,
desempenado, bem vestido, ia dizer que estava ali o
capitão duma quadrilha do olho vivo, destes que
guardam de assaltos e roubalheira a parte de leão e dão
aos sócios o rebotalho. Diante de tal choldra é que me
deu logo o coração baque que estavam ali para me
chacinar.
— Boa vai ela - pensei eu. — São mais que as mães.
Deixá-lo, quantos mais melhor, menos caem no chão.
Endireitei para a venda da Bicha beber meio
quartilho, e logo os bargantes me saíram a caminho, de
través, mas arreganhando a tacha. Um botava uma
cantiga, que trazia sobrescrito, embora fosse de mal
notada carta, outro sapateava o fado com grande esparrame, avançando e vindo às arrecuas até me tocar,
todos às upas e urros: Viva o Tenente da Cruz! Viva
quem é cavalheiro!
Não me dei por achado por mais que o escabeche fosse
despropositado, e pude de meu passo meter à taverna,
onde, em vez de meio, bebi um quartilho com duas
dentadas de broa. Quando ia a pagar, disse-me a vendeira:
— Ó senhor António não saia lá para fora que o
querem matar. Entre para aquele quarto, que desta
porta para dentro é sagrado.
Apontava-me o interior da moradia e eu perante a sua
lisa franqueza lhe respondi:
— Bem haja, tia Maria, e mais lhe agradeço saber
que não estou em terra de mouros. Mas aqui não há
medo. Muitas vezes um cristão, se defende a vida
mais que uma saca de dinheiro, é porque a vida naturalmente é um depósito. Deus lho confiou, a ele,
só a ele, tem de o restituir.
— Isto de vinte contra um não me cheira bem —
tornou ela. — Mas já que assim é homem desenganado, o Padre Santo António lhe estenda o seu divino
capote.
Saio para a rua e vejo-me logo cercado pela roda de
caceteiros. Alguns conhecia eu de ginjeira: o
Samarreiro, de Segôes, que evacuava as balas que lhe
metiam no fole como aos caroços das azeitonas; o
Carlos Negrola, de Cota, tantas vezes condenado, que
parecia mesmo um rato das enxovias; o Ranheta, da
Póvoa, com morte de homem às costas; o Pilão,
do Carvalhal, gatuno refinado e incendiário; o Zé Piranga,
de Cinfães, que vivia da vermelhinha e do que zarpava aos
pacóvios, etc. etc.
O Negrola apontou-me ao bando:
— Temos de matar este cão para haver paz no mundo!
— Já dizia o meu avô: de sangue misturado e
de moço refalsado livre-nos Deus — retorqui.—Se
queres mostrar que és tão escarumba por dentro como
és por fora, avança que eu abro-te ao verde...
— Mate-se! — regougou o Tenente.
— Está dito, mate-se! O testamento do pobre escreve-se
na unha do dedo mendinho.
Rapo da foice que trazia na algibeira da véstia, encabo-a
no pau e, depois de me benzer, traço um círculo em terra a
todo o largo:
— Ó rapazes, para dentro deste risco, mando eu;
para fora, já que assim o quereis, mandais vós. Se
alguém perdeu o amor à vida que se afoite! —e postei-me
em posição de varrer.
— Mate-se! Mate-se! — gritavam em redor, mas
passar a linha nem tanto como a grossura dum alfinete.
Erguiam olhos para a foice, viam-na afiada e a
luzir e tinham-lhe respeito. Não é que era o mesmo
que correr à degola!?
— Escache-se-lhe a alma!
— Amigos, é uma só. Deu-ma Deus, para ele a
guardo. Se entendeis que não, botai à frente, e tira-se
prova!
— Mate-se! Mate-se!—e ia crescendo o burburinho e ajuntando-se a feira.
Eu tinha em ponto de mira o Tenente, como o frade
da anedota, contas na mão, olho no ladrão, que já o
toscara por duas vezes a fazer-me o pau: atiro-te, não
te atira à tola. «O primeiro a cair és tu — assentei para
comigo.—Sim, quando houver de me decidir, é por
cima do teu corpo que tenho de passar». Ele parece
que compreendeu. Vi-lhe o olhar embaciado e não sei
que tremura na boca como cristão-velho a rezar àporta-infra.
Trazia pau argolado, um rico pau de marmeleiro
com a choupa e ponteira a luzir, mas os mais estavam
armados a trouxe-mouxe, vara de castanho e até a
haste do carripoto, que cortam nas nossas terras para
estadulhos. Nada mais que por isso acusavam o ar
desenvergonhado de roga. A Justiça mo levaria em
conta. Eu, entrementes, especara, que o Tenente dera
um passo atrás, chamado por um homenzinho que se
pôs a falar-lhe à orelha, e os quadrilheiros moderaram-se na sanha que os movia. Pela feira é que o
alvoroço era cada vez maior e de todos os lados se
viam corrimaças. Acudia o povo e bem se me cortava
o coração. Como romper aquela mó de gente, se houvesse precisão de pular?
Foram-se arrastando os minutos e eu firme à espera do
assalto como um castelo. A minha esperança era que,
acutilando dois ou três, a malta dos tesos tresmalhasse.
Nas pernas me fiava eu. Assim que me pilhasse no
monte que há entre o Carvalhal e Queiriga, monte
maninho onde não medra feto nem canta pássaro, tudo
cascalho afiado como lanças, onde eu queria ver os
ministros esgarrados que de sorte voltavam a fazer mal,
a salvo estava eu dos matadores. A questão toda era dar
o pulo na devida altura e pireza!
Mas: mate-se! mate-se! vejo vir uma cabeça à de cima
do alevante. Sombreada pelo chapéu braguês, só lhe
luziam as suíças e à primeira não conheci quem era.
Vinha apartando o monte à cotovelada e breve rompia
até a fila dos brejoeiros. E então deu-me ura berro que
soou ali como o urro dum leão. Alto como uma torre, tão
forçudo que erguia um carro de tojo se pusesse ombros
ao chedeiro, jaquetão de peles, olhos mansos, mas
destes que despedem chispas com a fúria, quem podia
ser senão o Bernardo do Paço?!
Que há? Que há? — bramou por duas vezes com a
sua voz de trovão.
Que há-de haver, Bernardo?! — respondi eu.
— Um bando de milhafres para espatifar um pardal.
E és sozinho contra tanta gente?
E mais não tenho medo.
Quando isto ouviu, o Bernardo que era a modo dum
alcaide por todo o Vale de Ferreira, tão temido pelo
pulso como pela consideração que gozava, tratou de se
inteirar com este e aquele do que houvera. E quando se
achou esclarecido voltou-se para o Tenente:
— Raios te partam que não tens vergonha nenhuma
na cara estanhada! Um homem, que se preza,
é capaz de tal indecência?!
O Tenente ouriçava-se todo, sem lhe tornar resposta.
— Sabes o que te vale? É ter-me já sentado à tua
mesa. Se não fora isso, havia de te torcer o pescoço
como a um frango. Envergonha-te, Tenente, envergonha-te! Trazeres uma roga destas para um fracachicha !
Em resposta o Tenente contou dos seus agravos, um
dos quais — há que anos isso fora! — era eu ter- lhe
engazupado Brízida. O Bernardo retorquiu-lhe:
— Homem por homem, aí o tens! Lá se avenham.
Agora peitar uma dúzia de bandalhos para dar cabo
dum homem, para mais uma vergôntea, é reles... é
borrares a cara bem borrada!
Em volta, os marmanjos, ou porque não soubessem
com quem estavam a tratar ou porque o ajuste fora
estrafegar-me, conservavam o jeito de arremeter. O
Bernardo alçou o braço:
— Largueza, corja de bigorrilhas !
— Tenha lá mão, senhor!—dizia-lhe o Zé
Piranga.—Não sabe que está aqui um
matador de faca ? Há-de amargar hoje as safadezas
que tem praticado...
O Bernardo pôs-lhe a mão no toutiço como se faz
a um menino e, meio a brincar, afocinhou-o para a
frente:
— Rapaz, não me moas a paciência! Desaparece-me, que te não deixo osso direito. A roda, quando
os caceteiros isto ouviram e se compenetraram de
que o negócio estava furado, rompeu-se, e cada um
se esgueirou para sua banda. Ficava só o Tenente,
muito amarelo, agora todo engrilado. Um velhote
de barbas até ao peito agarrou-se a ele: Ó filho, tu és
a minha vergonha! Pelos vistos ,queres a minha
morte?! — e tirou-o dali a gaguejar, a cada
encontrão que levava dando dois passos à frente e
um atrás para fazer crer, imagino eu, que só desfiado à força não jogava as cristas comigo. E, modo
ainda de escapulir-se pela porta da fanfarronia, rompeu numa ladração que não percebi bem no meio da
balbúrdia e que se permitia, está-se a ver, sentindo
as costas no seguro. Um tanto à toa, fui-lhe
dizendo:
— Quando quiseres, meu banana, estou às
ordens! Manda dizer em que descampado nos
havemos de encontrar...
— Deixa lá, Malhadinhas, deixa
lá!—arrazoava o Bernardo.—É um canalha.
Por fim o povo punha-se todo à minha banda.
Viva e mais viva, tinham-me armado um
cadafalso, saía o herói da festa. O Bernardo
puxou-me para a venda da Maria Bicha, que
ficava mal se não bebêssemos à sossega. De
mão na mão e de olhos nos olhos, disse-lhe:
— Bernardo, tens aqui um irmão.
E ele respondeu-me:
— Tens aqui outro.
— Prà vida e prà morte!
— Prà vida e prà morte!
E com amigos e amigos dos amigos passou de
almude o briol que ali bebemos.
[Bertrand, ed. de 1987 p. 79 e segs.]
,,
Em torno de Aquilino...
Fiel a si próprio e aos seus princípios, Mestre
Aquilino aparece-nos nos seus livros como
uma força, como uma árvore de grande porte
com as raízes num povo pobre, mas nobre.
Do seu enraizado apego a terra e ao homem, e
da sua obstinação fiel aos costumes e modos de
expressar de certo espaço e de certo falar nele reinante,
Beira serrana e não só, um vasto monumento literário se
ergueu pronto a conquistar, pela nobreza da imaginação,
pela riqueza da sensibilidade e pela beleza da forma,
gerações pelos séculos afora.
Aquilino Ribeiro foi um dos mais admiráveis trabalhadores
da nossa língua, verdadeiramente original e a sua obra está
impregnada pelo hálito forte da terra, pelo viver do povo,
também pelo perpétuo sofrimento dos homens e
representada no vigor de um estilo próprio, enérgico,
autêntico e inconfundível.
…Quando se vai de Barrelas para Moimenta da Beira, logo
adiante de Soutosa, à esquerda, encontra-se Aris. Um dia,
mão chocarreira prepôs a este nome, com um bocado de
carvão, nas placas da estrada, um P. Graças a tal enxerto,
a localidade mais ínfima da Beira tornou-se a cidade mais
orgulhosa do Universo. Fabulosa imaginação a do
alfabeto! Ora esta Paris de duas horas, mercê de tão
poderosa varinha de condão, compõe-se dumas dúzias de
casas encarrapitadas em cima de fragas e entre fragas...
Aquilino Ribeiro – Geografia Sentimental
Ilimitada magia do abecedário! Exclamaríamos nós.
Um simples P, como que servindo de abrigo áquela humilde
sequência de quatro letras e que emanação de ideias e de
emoções! A bilabial e surda consoante transformou todo o
contexto em que permanecia a dita placa. Veio arrancar a Aris
a grafia que timidamente escondia e, ao mesmo tempo
emprestar-lhe os ingredientes próprios da imaginação, da
grandiosidade, do sonho...E o poder das palavras. Por elas e
nelas projectamos os nossos ideais e as nossas vontades e com
elas alicerçamos o nosso saber. Quanto mais perfeito for o
domínio da língua, isto é das palavras: quantos mais
elementos constituírem o nosso léxico; quanto melhor
apreendermos o seu significado; quanto melhor for o
conhecimento das suas regras, tanto mais eficaz será a
expressão do nosso pensamento e, então aí, tornar-nos-emos
especiais, como elementos intrínsecos do mundo que nos
envolve.
Foi sempre esse o objectivo que animou as nossas horas de
convivência, partilhadas ao longo de vários meses: trabalhar
para uma correcta utilização da nossa língua, tanto no plano
oral como no da escrita. É com orgulho que manifestamos a
convicção de, cada um de nós, com seus meios próprios, ter
contribuído para a sua defesa e valorização, elegendo-a como
objecto de estudo e como meio de aceder a outro
conhecimento.
Certa de que saímos mais enriquecidos, resta-me, pois,
desejar a todos um bom uso do bem adquirido e que, de algum
modo, ele venha a servir o desenvolvimento intelectual,
cultural e social de cada um.
Lúcia de Fátima Almeida Fonseca
Professora de Português
Aquilino através dos Textos
Em tempos de adversidade, entre o risco e a
opressão – mesmo a do Estado – passear os olhos
pela ficção aquiliniana, revigora o espírito de
resistência e semeia, de novo, a confiança activa
com que o criador do Malhadinhas sempre
enfrentou os combates.
Iremos, então, pela liberdade, valor que
Aquilino não alija, seja a circunstância o que for. Em O
Soldado que vai à Guerra traça o paralelo querendo-se
livre como o vento que ninguém tolhe de correr, livre como
o pássaro que vai para onde lhe puxa a asa, livre como o
gato montês, que tanto dorme como caça, como brinca no
brejo natal. Ou ainda A montanha criou o rebelde crónico
e lobo sem coleira. Nada de tutelas. Da novela
Antecipação, em Maria Benigna, acrescenta: liberdade
essa coisa que se não vê, mas se concretiza em ligeireza,
confiança, autonomia mental, tonicidade de alma e que se
respira como um segundo oxigénio.
O lugar de onde somos:
Aquilino foi, a seu modo, um cidadão do mundo e um
navegante, tantas vezes por necessidade. Um casamento
na Alemanha e outro em Paris, estabelecido na Galiza e
em Abraveses descobrindo o Brasil ou passeando por
Londres, a banca de escritor por companhia, ao invés de
lhe formatarem a memória com os sítios onde se acolheu,
mais vivamente se sentia o homem da serra, onde
precisava de regressar uma e outra vez para se alimentar
dos sons e dos cheiros que a sua chã guardava para si e o
seu labor reclamava. É possível que eu tenha, sempre na
minha frente, um bocado da terra onde nasci, desabafava.
Uma certa ideia de escola:
O Colégio da Lapa, protótipo de uma escola
rigorista, até no clima, dotado de largos
corredores, assim talhados para serem recreio
de Inverno, despertou, em Aquilino, reflexões
que alguns alunos, hoje, gostariam de acolher e
alguns professores não desdenhariam. Diz o
Mestre em Uma Luz ao Longe (1949): A natureza, em relação ao
meu entendimento, sempre teve que dizer mais que as pessoas e
até os livros. Ainda hoje estou em julgar que lucrava mais a
minha formação com um passeio pela serra do que com uma
semana de aulas. Em cima do cavalo que tragava as léguas, eu ia
entretido com o arraial interior, em que acudiam a lançar-se,
renovando-o, todas as coisas e loisas do caminho. O seu primeiro
dia no Colégio descreve-o assim ainda em Uma Luz ao Longe:
No recreio da tarde, uma revoada de rapazinhos, pouco mais ou
menos da minha idade, precipitou-se pela camarata, vindos uns
das aulas, outros da sala de estudo. Em breve acheí-me no meio
deles como em pleno arraial. (...) Cá está o novo!
(...) Éramos entre cinquenta a sessenta rapazinhos, e no recreio
fazíamos guerras assanhadas e quebrávamos denodadamente a
pinha uns aos outros como nunca. Pulmões lavados pelos mil
metros de altitude, comíamos carne de cabra de manhã, ao meiodia e à noite; e apanhávamos palmatoadas pela medida grande,
louvado seja Deus, a qualquer hora.
Ontem, como hoje...
Quem o seguir na vida airada desde a Granja, sempre em contínua
dispersão, casório, amorios, romagens e viajatas, sem falar nos
infinitos tombos […], admirar-se-ia como pôde habilitar-se para
disciplinas que, por muito perfunctória que fosse a sua inteligência,
algumas noções haviam de requerer do examinando para não
fazer de todo figura de asno, […]. É possível que todas as
matérias em questão fossem pegadas com cuspo […]. Mesmo
assim, esta facilidade em inteirar-se de conhecimentos que
noutros exigiriam um calcorreado e vagaroso passo de boi a
puxar à nora, abona a sua fina e extraordinária massa cerebral.
Podemos admitir que semelhantes provas, graduadas por uma
baixa escala pedagógica, correspondessem ao que são hoje os
exames para adultos. O problema ao presente não é que os
analfabetos deixem em realidade de sê-lo, mas que, mercê duma
formalidade que se salta a pés juntos, forneçam número às
estatísticas. Mesmo assim, não deixa de representar um estímulo
louvável. Também se apurou que tantas vezes os candidatos não
faziam exames nenhuns. Graças a uma espórtula dada por baixo
de capa, o escriba da secretaria, em geral manga de alpaca
encalacrado da vida e mal pago, ia-se aos registos e fazia do
filho-família ignaro um bacharel em humanidades e até duma
bestiaga de barbas um doutor.
Seja como for, Camilo três dias depois, com as respectivas
certidões em punho, requeria na Escola Médico-Cirúrgica
matrícula de anatomia, que desta cadeira consistia o primeiro
ano, conjuntamente com a de química, frequentada em qualquer
estabelecimento, segundo a organização de 1836.
O Romance de Camilo (ilustrado), pp. 125 e 126, Lx., 1957
E o espírito visionário do Programa das Novas
Oportunidades, em prosa rimada, como Aquilino gostava de
lhe chamar, com todos os condimentos, no Livro de
Marianinha - a neta para quem o escreveu - :
Atão era pastor
E tinha um cão sem orelhas,
Que guardava as ovelhas,
Chamado Medor.
[Depois de muitas contrariedades, entrou fundo na pobreza.
Para debelar o seu mal, “deitou-se a Coimbra…]
Ofereceu-se na Sé pra sacristão...
Não sabia o latim-latão.
Agora, Antão, só doutor.
Mas não fora ele minhoto,
que a saltar vence o gafanhoto,
ajustou-se como pajem,
ou moço de equipagem
dum lente de matemática,
que também lia dogmática,
exemplar coimbrão da docência.
Aí, à força de ouvir o portento,
mascar, remascar ciência,
acabou, aluno cem por cento,
sendo ele quem redigia as sebentas
que carregavam duas jumentas.
Quando o mestre dar aulas não podia
de cama com uremia,
catarro ou indigestão,
ele substituía o sabichão.
E mal o mestre entrou na glória,
para reger suas cadeiras,
a chamá-lo o magnífico reitor D. Zagalo,
já que de sua egrégia memória
era o infuso detentor.
O Livro de Marianinha, (1967) p. 90 e segs
Jcosta
Professor de Filosofia
Aquilino...
É a mais viva aula de Historia!
Republicano, de perfil social único: luta e participa.
A sua exuberância vocabular é apenas pano de fundo.
Homem de acção, na actividade conspirativa, na
conjura revolucionária.
Num jogo desigual de cá e lá:
Acção, prisão, evasão,
Exílio e retorno... Sempre!
Inimigo do regime, mas bom escritor – dirá Salazar
Que bem lhe assenta a ironia!
Julgado, condenado à revelia...
Ter-se-á sentido mal amado?
Ainda é tempo.
Façamos eco das homenagens e condecorações que não tardaram;
Eco da sua escrita e da sua mais pura crença na vitalidade humana.
Basta marcar encontro, lê-lo em devaneio;
Descobri-lo num novo olhar;
E a certeza de não estarmos sós,
E que no mundo aquiliniano... estamos lá todos!
Bem-vindo à nossa aula de Historia!
Maria Eufémia Santos
Professora de História
Aquilino Ribeiro
É, na minha opinião, o escritor
beirão com maior destaque a nível
nacional e internacional. Desde muito
novo começou a escrever ficção e
alguns desses livros, servindo os seus ideais
republicanos, eram críticas mordazes às figuras do
regime monárquico, dando destaque ao rei D. Carlos.
Além de crítico do regime monárquico, tendo
colaborado na revolução para a implementação da
republica, foi também, posteriormente, um dos críticos
do regime de Salazar, tendo-lhe valido por isso
algumas idas à prisão, entre elas à do Fontelo em Viseu.
Muitos dos seus romances retratam a região de
onde era originário, da qual nunca se desligou.
Devido ao seu grande prestígio como escritor
foi apresentada a sua candidatura ao Nobel da
literatura.
Acácio Rodrigues
Professor de Matemática
Linguagem e estilo
A linguagem de Aquilino Ribeiro
caracteriza-se por uma riqueza lexicológica rara,
maior do que a de Camilo, e pelo uso de
construções frásicas de raiz popular envernizadas
com certo preciosismo, cheias de provincianismos, que seria pena
perder. É por isso que muitos dizem que não se pode ler sem um bom
dicionário na mão.
Mas Aquilino foi sobretudo um estilista e, por isso, a sua
linguagem, vernácula e sem estrangeirismos, é arejada,
transbordante de graça, às vezes condimentada nos diálogos com
expressões entre grotescas e satíricas. Assim inicia o almocreve
Malhadinhas o seu longo monólogo:
«Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a
porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de
guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos
terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra — eu cá
nunca me avistei com ele — mas a verdade é que a neve vinha
com os Santos, e as cerejas, quando largam do ovo os perdigotos.
Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem
mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer.
Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado
sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje
não os conheço. E, quanto mais cismo, mais dou razão ao
Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o
grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa
lua, o que nem sempre assucedia: — Tempos virão em que o
governarão as terras vãs e os filhos das barregãs.»
Esmeraldina de Paiva
Professora de Francês
Uma viagem por terras de Aquilino Ribeiro
Ler Aquilino Ribeiro é, para mim,
um regresso ao tempo da juventude,
ao convívio com pessoas, situações e
locais que marcaram, de algum modo,
o meu desenvolvimento como ser
humano. Recordo o entusiasmo e admiração com que
lia a sua obra, páginas e páginas que, de uma maneira
excepcional e com as palavras exactas, descreviam,
tão bem, cenas, situações e pessoas que saltavam da
ficção para o meu mundo real e faziam parte do
quotidiano desse meu apertado mundo: o mundo
rural, o mundo das coisas simples...
*
* *
não tinham
... as tendeiras
mãos a medir nas
barracas de lona. Vendia-se ali de tudo, berimbaus,
bonecros que alçam as pernas para os ombros,
guizos ásperos para adormecer meninos, bons
canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e
linhas para quem quiser coser. Diante de tanta
lindeza, as moças arrelampavam… A filha da
senhora Preciosa com a mão direita servia o povo,
com a outra fazia pular o nené que lhe arranjou um
fidalgote de Penso:
- Ó rico, riquinho, riquiquinho! A corneta custa oito
vinténs, freguês, por ser para quem é.
In Terras do Demo - Aquilino Ribeiro
Etelvina Rodrigues
Professora de Inglês
Nas Terras do Demo, 95 anos após Jardim das
Tormentas.
Vivemos em tempo de modas, com
o efémero presentificado numa amplitude
que cobre todos os domínios do hodierno.
Contudo, seria ligeiro, senão
leviano, considerarmos o reganho de interesse pela obra
de Aquilino Ribeiro integrado nesses parâmetros
facilitadores e passageiros.
Muito pelo contrário, poucos escritores
portugueses contemporâneos, ou até de tempos idos,
têm vindo a ser objecto, não só, de tantas e tão variadas
reedições (mesmo no estrangeiro), como também, de
torrencial bibliografia passiva, ou até de tão merecidas
quanto tardias homenagens.
E tal constatação apenas evidencia que o Mestre
da Nave não é um escritor datado, não se baliza nem
esgota numa sincronia literária, mas bem pelo
contrário, se redimensiona numa crescente actualidade
e, numa redescoberta de uma escrita que, à época,
estaria talvez além do tempo, e que, durante algumas
décadas, de prolífica produção, das primícias, em 1913,
com Jardim das Tormentas, até à publicação póstuma,
em 1974, de Um escritor confessa-se, pareceu confinarse a um limbo elitista, pela antipatia do Estado Novo e
pela prevalência de outras estéticas, hoje menos
lembradas.
E se neste específico contexto de Escola –
Ensino/Aprendizagem, é banal os discentes serem
guiados pelos docentes, enquadrados em visitas de
estudo com determinados conteúdos programáticos,
aqui, salienta-se o processo inverso, em que os alunos
da noite, trabalhadores-estudantes de seu estatuto,
decidem, por manifesta vontade própria, interesse
pessoal e cultural, visitar as Terras do Demo, assim
imortalizadas por Aquilino, e calcorrear por seus
passos os andurriais de outrora, por ele descritos em
tantas centenas de magistrais páginas.
Mais que não seja, esta acção é paradigma e
inequívoca prova da tese aqui enunciada: Aquilino
Ribeiro, cada vez mais, na pluralidade de valências e
abrangências da sua obra, é um Homem de Letras a
redescobrir, a revisitar, inesgotável e incansavelmente,
até e mesmo, além da universalidade, na telúrica busca
das nossas raízes beiroas.
E quando são os próprios alunos a terem disso a
presciência, todos nos devemos congratular, desde os
próprios aos incondicionais aquilinianos, daqueles
relevando o substantivo critério e capacidade
demonstrados na exequibilidade das suas opções
culturais, assim como o gerar das sinergias (em bom
rigor), para o êxito da sua concretização, destes
salvaguardando o profícuo trabalho feito,
nomeadamente o desenvolvido pela Confraria
Aquiliniana e pelo CEAR.
Paulo Neto.
Viseu, 24 de Abril de 2008.
“Queremos ser os poetas da nossa própria
vida,
e, primeiro, nas menores coisas.”
Nietzsche
Aquilino Ribeiro: Vida e Obra
A memória é a trave mestra da nossa identidade. Sem
memória viveremos num labirinto onde nós próprios,
retomando Camus, nos acharemos estranhos estrangeiros.
A globalização a que todos assistimos, sem remédio,
fazendo-nos cidadãos do mundo, vai-nos empurrando
inexoravelmente para o apertado binómio consumo, logo
existo; como se a nossa vida se pautasse pelo vicioso e inútil
arrastar da pedra, revisitando Sísifo diariamente. Viver
exige necessariamente outros temperos que lhe dão sentido
e os livros, mestres silenciosos, são um dos melhores
condimentos, a par das belas artes, da música e da dança.
Escritores e leitores desenvolvem a cumplicidade feita de
tempo, mesclada de história, onde os valores se cruzam
numa viagem que ajuda a crescer, a crescer por dentro. São
estas experiências, através dos livros, que tantas vezes
mudam o rumo das nossas vidas.
O Escritor no seu labirinto
Aquilino Ribeiro nasceu em 1885, em Setembro, a 13,
número mágico que há-de marcar a sua vida e
principalmente a estrutura dos seus livros, escritos, alguns,
em 13 capítulos. Carregal de Tabosa, em Sernancelhe,
acolhe-o por nascimento. Foi baptizado na igreja dos
Alhais, no vizinho concelho de Vila Nova de Paiva,
conhecida, na altura pela velha Barrelas. Como o pai era
padre no Carregal, mandava a decência que a criança fosse
baptizada noutra freguesia e noutro concelho.
Desde muito cedo, depois de se convencer que perdera, em
definitivo, entre o Colégio da Lapa e o seminário de Beja, a
vocação sacerdotal, rumou a Lisboa. Esclarecido no Latim e
noutras línguas para além da língua pátria que, como nenhum
outro, dominou na sua mais pura vertente etimológica. Dono de
um consistente saber que foi granjeando também pelo colégio
Roseira, de Lamego e pelas lições de filosofia, em Viseu, rumou
a Lisboa, ciente que a sua bagagem cultural o havia de subtrair
às fragas inóspitas onde o futuro pouco mais lhe reservaria do
que uma leira para se mirrar, ou um rebanho para lhe apurar o
cálculo. Ao contrário de Einstein a quem um professor, cujo nome
não lembramos, lhe vaticinou fraco futuro por não ser entendido
em matemática, Aquilino viu-se reconhecido pelos seus mestres
que lhe gabavam o estro literário e a desenvoltura com a escrita.
Em Lisboa, começou por visitar os jornais e, mesmo antes dos
livros, foi cultivando o verbo em crónicas e ensaios que a
imprensa acolhia com a expectativa que se devota aos
principiantes que antes de se firmarem no reconhecimento, não
passam de promessas. Mas um homem não é apenas o que se
adivinha entre o aparo da caneta e a folha que espera ver-se
impregnada de ideias expressas em texto, não! Aquilino foi um
dos artífices da República, amante da liberdade, conspirou
contra a monarquia, denunciando os seus vícios e as suas
arbitrariedades. Entre a carbonária e a maçonaria, pautou o seu
fulgor juvenil, vendo-se por isso, desde muito cedo, a contas com
a justiça, por via do seu zelo revolucionário. Foi então preso e
logo maquinou que havia de fugir, tão cedo quanto possível, e
assim aconteceu. Aquilino não era homem para se intimidar com
as grades, nem pássaro habituado a gaiolas e assim que
vislumbrou uma nesga, agarrou a liberdade e foi dela usufruir
para Paris. Irrequieto, insatisfeito, insaciável, cedo descobriu a
Sorbonne e, em 1910, cursava Filosofia e, não fora a guerra,
certamente haveria de se apropriar do diploma. Perdeu-se de
amores por uma germânica, que consigo estudava na
universidade, com quem viria a casar, em 1913, na Alemanha.
1913 é também o ano da publicação do seu primeiro livro: Jardim
das Tormentas, que a crítica, nem sempre pródiga com os que
começam, acolhe com entusiasmo.
Em 1914 nasce o primeiro filho. A guerra na Europa e as
saudades do seu rincão natal, esquecidas que foram as
razões da sua primeira prisão e fuga, trazem-no de volta a
Portugal, com a licenciatura por terminar. Em 1915 é
colocado como professor no Liceu Camões e, em 1919, entra
para a Biblioteca Nacional, a convite de Raul Proença.
Convive com o chamado Grupo da Biblioteca onde se
encontram, entre outros, Jaime Cortesão e o próprio Raul
Proença. Pública Terras do Demo, obra emblemática que,
desde então, funcionará como acrónimo, característico de
uma certa Beira, inóspita e ao mesmo tempo afável; rude e ao
mesmo tempo gentil; canhestra e ainda assim caprichada;
farta de tudo, principalmente do que a terra dá com muito suor
e o que o tempo não se esquece de acrescentar em
intempérie, para não falar no desleixo e abandono com que a
grande capital do império bafejava (e ainda bafeja) a
província.
Em 1927, fruto do seu intrínseco espírito de homem de letras
e de revolucionário convicto, entra na revolta de 7 de
Fevereiro e, uma vez mais, para escapar à prisão, foge para
França. No ano seguinte, morre a sua primeira mulher e, em
1928, envolve-se na revolta de Pinhel. É preso, passando a
residir, contra a sua vontade, a expensas do Estado, no
Presídio do Fontelo, em Viseu. No dia da festa da Sra. da
Lapa, a 15 de Agosto, farto de ser um fardo para o erário
público, evade-se picarescamente, do Presídio do Fontelo.
Uma grafonola, porque era dia de festa em Sernancelhe, e
um ruidoso grupo de amigos que o foi visitar à prisão, fizeram
tal festa e tanto barulho que Aquilino conseguiu, uma vez
mais, evadir-se com sucesso. Regressa a Paris, lugar
recorrente de um exílio de novo aberto no seu caminho. Aí
encontra Bernardino Machado, antigo presidente da
República, vivendo também as agruras do exílio. Uma das
suas filhas, Jerónima Dantas Machado, há-de ser a sua
segunda mulher.
Em 1930 nasce o seu segundo filho, o nosso conhecido Eng.º
Aquilino Ribeiro Machado, primeiro edil eleito da Câmara de
Lisboa depois do 25 de Abril.
Em 1932 volta
clandestinamente a Portugal. Em 1933 recebe o prémio
Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, pela
sua obra As Três Mulheres de Sansão. Em 1935 é eleito sócio
correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Em
1946, publica Aldeia Terra Gente e Bichos; em 1951,
Geografia Sentimental. Em 1952 faz uma viagem ao Brasil,
onde é homenageado por escritores e artistas, na Academia
Brasileira. Em 1957 publica aquela que muitos consideram a
sua obra-prima: A Casa Grande de Romarigães. Em 1958
participa na campanha eleitoral de Humberto Delegado e
publica uma das suas obras mais emblemáticas, também
pela polémica que originou, Quando os Lobos Uivam. O Livro
foi proibido e deu origem a um libelo de que resultou a
também célebre defesa jurídica de Aquilino, a cargo do
advogado Heliodoro Caldeira, e a súmula da acusação foi
publicada no Brasil, em 1960, pela Editora Liberdade e
Cultura, de São Paulo, pela mão e com prefácio do grande
poeta da Presença Adolfo Casais Monteiro, então ali exilado,
com o impressivo título de Quando os Lobos julgam, a Justiça
uiva, tendo circulado clandestinamente em Portugal. Em
1960 é proposto para o Prémio Nobel de Literatura. Em 1961
vai a Londres e a Paris. Em 1962 nasce-lhe a primeira neta,
Marianinha, para quem, à semelhança do que acontecera
com os seus dois filhos, escreve o livro com o mesmo nome:
Marianinha. Os outros foram o Romance da Raposa e Arca
de Noé, 3ª Classe. Em 1963 é homenageado em várias
cidades do país, em virtude dos seus cinquenta anos de vida
literária. Morre nesse mesmo ano de 1963, a 27 de Maio. Por
suprema ironia a Comissão de Censura, em nota aos jornais,
informava “não ser mais permitido falar das homenagens que
lhe estavam a ser prestadas.” Em 1972, é publicado
postumamente o livro de memórias Um Escritor Confessa-se.
Está feito o percurso breve da sua obra, que é também a
mescla da sua vida.
Jcosta
Professor de Filosofia
Aos meus alunos do 11º Y
Dizia Aquilino Ribeiro que
alcança quem não cansa e é neste
espírito que escrevo este texto.
Quem se esforça, mesmo muitas
vezes à custa de grandes
sacrifícios, vai concerteza ver
frutos. Quem, ao contrário, de uma sociedade
cada vez mais facilitista, sai do seu trabalho e
vai para a escola, tem mérito. Em tempos onde
se pensa ter tudo, e se quer tudo duma forma
rápida, estar na escola em vez de estar com a
família ou a descansar, é de reconhecer. É por
isto tudo, e também pela amizade que já nos
une, a todos, que posso dizer que foi um
privilégio termos cruzado as nossas vidas.
António Jorge Bento
Professor de Geografia
Pedro Albuquerque
O Almocreve de Barrelas