A PESQUISA HISTÓRICA EM CONSTRUÇÃO O CASO DOS

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A PESQUISA HISTÓRICA EM CONSTRUÇÃO O CASO DOS
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A PESQUISA HISTÓRICA EM CONSTRUÇÃO:
O CASO DOS GUARANI MBYA
GT-1
Kalna Mareto Teao
Mestranda em Educação pela UFES
[email protected]
Resumo
Este trabalho busca relatar como ocorre a apropriação e o desenvolvimento da pesquisa
histórica entre os Guarani Mbya do Espírito Santo. A pesquisa tornou-se parte
constitutiva do curso de magistério KUAA-M´BOE= CONHECER/ ENSINAR,
realizado em Santa Catarina (2003-2008). Os relatos dos Guarani apresentam-se
reveladores de sua preocupação em preservar a sua cultura diante do contato entre
sociedade indígena e envolvente. Ao mesmo tempo, essa nova linguagem é incorporada
com elementos do universo Guarani, através da utilização do mito e possibilita que se
situem como sujeitos e protagonistas de sua própria história.
Palavras-chave: Guarani Mbya, formação de professores, pesquisa histórica.
Neste artigo apresentaremos na primeira parte um breve histórico social e
cultural das comunidades Guarani do Espírito Santo, em seguida traçaremos uma
descrição acerca do curso de formação de magistério indígena KUAA-M´BOE=
CONHECER/ ENSINAR, realizado em Santa Catarina (2003-2008) e que envolve as
regiões sul e sudeste. Posteriormente, trabalharemos a pesquisa histórica, não como
exigência de uma atividade do curso de formação, mas sobretudo, a partir de uma
necessidade da realidade cultural e procuraremos estabelecer a apropriação dos Mbya
em relação à pesquisa histórica.
HISTÓRIA DOS GUARANI MBYA DO ESPÍRITO SANTO
Os Guarani Mbya encontram-se situados em Aracruz, município ao norte do
Espírito Santo e distante da capital Vitória cerca de 83 kilômetros. Os Mbya habitam as
três aldeias de Piraquê- Açu, Mboapy Pindo e Tekoa Porã. Esses povos não são
originários do estado, mas se estabeleceram na região após a longa migração que partiu
do Rio Grande do Sul, por volta de 1940, chegando ao estado em meados de 1960.
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Ladeira (1992) classifica esta como uma das últimas migrações dos Mbya. Os
Guarani saíram da região sul forçados pela expulsão de suas terras, pois os fazendeiros
da região desejavam essas áreas para o plantio da erva- mate. O grupo Mbya fora
liderado pela chefe espiritual Tãtãtxi Ywa Reté e sua família. Suas histórias do guata
(caminhada) foram profundamente marcadas pelos conflitos com a sociedade
envolvente e pela posse da terra. Nas narrativas do livro Revelações sobre a terra:
memória viva dos Guarani (Tangerino:1996), os Mbya retratam a trajetória da
migração, contando sobre os caminhos e as dificuldades nos estados do Rio Grande do
Sul, no Paraná, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e no Espírito Santo.
Em todos os estados, os Mbya enfrentaram conflitos em torno da ocupação das
terras pelos mais diversos motivos, como, o trabalho forçado em fazendas, a tentativa de
conversão religiosa, os maus tratos, o preconceito da sociedade envolvente e a
exploração de sua imagem para o turismo no Espírito Santo.
Ao mesmo tempo em que os relatos apresentam uma relação de constante
conflito pela terra, também tornam visíveis as referências à tradição, à cultura, à
religiosidade e às normas de vida em sociedade Guarani. Nas narrativas, as relações
com a sociedade envolvente decorrem, por meio do estabelecimento de alianças para a
sobrevivência e também através dos conflitos interétnicos. Nos relatos, é constante a
preocupação dos Mbya com a perda de sua cultura em contato com a sociedade
envolvente, principalmente no que se refere à língua e à religião.
É a partir da chegada do grupo migratório Guarani que a FUNAI (Fundação
Nacional do Índio), tem notícias da presença de povos indígenas no Espírito Santo.
Segundo Perota (1981), esse fato é que motiva o reconhecimento da identidade étnica
dos Tupinikim. Em 1967, com a instalação da empresa Aracruz Celulose inicia-se a luta
dos Tupinikim e Guarani pela posse da terra. Somente em 1975, é que a FUNAI
reconhece a presença de povos indígenas no estado. Em 1983, as terras são
homologadas em 4.490 hectares. Atualmente, os Guarani vivem na parte ao sul do
território indígena Tupinikim de Caieiras Velhas e reivindicam a ampliação de suas
terras em 11.009 hectares.
Para os Guarani a questão da posse da terra é complexa, pois nos documentos
oficiais, como os relatórios da FUNAI (1979,1980, 1994), os Mbya são destituídos de
quaisquer direitos de ocupação, pois são considerados povos migratórios. Na imprensa,
são desqualificados como povos paraguaios, estrangeiros e não índios. A nosso ver, essa
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questão da envolve uma reflexão muito mais complexa que envolve as noções de terra e
território para a sua cultura em contraposição à legislação nacional.
A escolha dos Mbya pela região de Caieiras Velhas deve-se a que eles
encontraram condições essenciais ao seu modo de ser, nhandereko, como a existência
de Mata Atlântica, a proximidade em relação ao mar e à localização a leste, sendo essas
condições essenciais ao tekoa, local apropriado à vida guarani.
As principais atividades de subsistência são o artesanato e a agricultura. Poucos
são os que possuem emprego. Geralmente, trabalham como agentes de saúde e
professores. O exercício destas atividades já faz notar traços de alteração da vida
comunitária e diferenciação social.
As três aldeias possuem pouca terra adequada ao cultivo, em virtude do
desmatamento e da produção de eucalipto no entorno da região. Os Guarani negaram-se
a cultivar o eucalipto em suas terras, mas estão ilhados juntamente com os Tupinikim.
Os Mbya possuem duas escolas. A primeira foi fundada em Tekoa Porã, em
1987, e a segunda em Mboapy Pindo, em 2000. Todas as escolas, tanto Tupinikim como
Guarani, inicialmente eram de competência das esferas municipais ou estaduais e
possuíam professores da rede estadual ou da FUNAI. Somente em 1991, a partir do
Decreto Nº 26/91 que transferia a responsabilidade da educação indígena da FUNAI
para o MEC(Ministério da Educação e Cultura), é que se inicia o processo de educação
escolar indígena.
A educação escolar indígena no Espírito Santo conta com a parceria do NISI
(Núcleo Interinstitucional Indígena), a Semed ( Secretaria Municipal de Educação de
Aracruz), a SEDU (Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo), a Pastoral
Indigenista, a FUNAI e o IDEA (Instituto para o Desenvolvimento da Educação de
Adultos).
Em 1994, realizou-se o primeiro seminário de educação indígena, sob a
perspectiva de uma educação popular. Em 1998, o segundo seminário fora realizado
com o intuito de debater as experiências, desafios e possibilidades da educação, bem
como a elaboração de um currículo diferenciado.
De 1996 a 1999, fora realizado o curso de formação de magistério indígena, já
que as comunidades reivindicavam urgentemente a necessidade da atuação de
professores das aldeias. Esse curso funcionava com a parceria da SEDU, Semed e
IDEA. Era estruturado em duas etapas por ano, com disciplinas, como: Ciências
Naturais, Ciências Sociais, Artes, Matemática, Português, Tupi e Guarani. Antes desse
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curso de magistério, existia um trabalho de alfabetização de jovens e adultos da Pastoral
indigenista, junto aos Tupinikim.
Em 1999, a prefeitura municipal de Aracruz realizou o primeiro concurso de
professores indígenas. A partir deste concurso, dois professores Guarani iniciaram seus
trabalhos nas aldeias. Podemos perceber, então, que o processo de escolarização
indígena é muito recente para os Guarani.
Atualmente são cerca de seis professores Guarani atuando nas duas aldeias,
sendo dois professores concursados e quatro freqüentando o curso de formação de
magistério KUAA-M´BOE= CONHECER/ ENSINAR, realizado em Santa Catarina
(2003-2008).
MAGISTÉRIO INDÍGENA KUAA-M´BOE= CONHECER/ ENSINAR
Em 2001, as lideranças Guarani do litoral sul e sudeste decidiram sobre a
necessidade de um curso de formação especifico. Para atender essa demanda, a FUNAI,
o MEC e os governos estaduais estabeleceram uma relação de parceria e implantaram
Programa de Formação Escolar Guarani da Região Sul e Sudeste do Brasil- Kuaa Mbo'e
= Conhecer / Ensinar.
O Programa de Formação Escolar Guarani da Região Sul e Sudeste do BrasilKuaa Mbo'e = Conhecer / Ensinar, realizado em Santa Catarina (2003-2008) envolve os
Guarani dos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. São cerca de 74 participantes que possuem a escolaridade mínima de
ensino fundamental e que terão formação de nível médio, sendo habilitados ao final do
curso para exercerem o magistério da educação infantil ao ensino fundamental.
Os objetivos do curso são:
Ampliar o acesso e a permanência dos Guarani à educação básica especifica,
diferenciada, bilíngüe e intercultural, levando em conta os anseios e a realidade sóciocultural.
Formar professores-pesquisadores Guarani de sua cultura, alfabetizadores em
sua língua materna e mediadores de um processo de ensino e aprendizagem bilíngüe e
intercultural.
Habilitar professores Guarani para serem autores de seus próprios materiais
didáticos em sua língua materna e em português.
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Oferecer aos alunos das escolas Guarani um ensino que valorize sua cultura e o
conhecimento de outros grupos indígenas e da sociedade não- indígena e
administradores de seus processos educativos - gestão escolar.
O curso de magistério é realizado em forma de etapas presenciais e não
presenciais. As etapas presenciais ocorrem durante dois meses ao ano e contam com
disciplinas como: Língua Guarani, Língua Portuguesa e Literatura, Artes, Geografia,
História e Organização Social Guarani, Antropologia, Sociologia, Matemática, Ciências
(Física, Química, Biologia e Saúde Pública), Didática e a Metodologia de Ensino e de
Pesquisa, Fundamentos e a Legislação da Educação.
As etapas não presenciais consistem em atividades de pesquisa e estágio em
sala de aula, além de cursos de capacitação. Em agosto de 2005, no Espírito Santo, a
SEDU e a Semed, em parceria, realizaram um encontro sobre a elaboração do projeto
político pedagógico para os Guarani. Em julho e agosto de 2006, foi realizado o curso
de língua Guarani em parceria com a SEDU e o MEC, com duração de 40 horas.
No curso presencial de Santa Catarina, os professores de História e
Metodologia da pesquisa trabalham os temas de forma interdisciplinar e no Espírito
Santo, desenvolvo o acompanhamento da pesquisa histórica e prática pedagógica junto
aos Guarani, através de encontros quinzenais.
Construindo a pesquisa histórica
A comunidade estabelece vários critérios para a escolha dos professores e dos
cursistas, como: conhecer bem a escrita, a língua portuguesa e a cultura Guarani, ter
uma formação e, também muitas vezes, os escolhidos possuem um parentesco com a
liderança, fato este que permite alianças e evita futuros conflitos.
O Espírito Santo é o que possui menor número de alunos, contando com sete
participantes, sendo que dois Guarani mudaram de estado, um foi para o Rio de Janeiro
e outro para Santa Catarina. Porém, esses alunos continuam participando do curso, pois
a eles é garantido a permanência desde que se mudem para um dos estados
participantes.
Os cursistas do Espírito Santo apresentam uma escolaridade mínima de ensino
fundamental. Sentem dificuldades na escrita e na leitura do português e principalmente
no entendimento da pesquisa. A meu ver, a pesquisa se constitui como outra linguagem
a ser dominada pelos Guarani, além da sua língua materna e do português.
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Embora a questão da escolaridade possa muitas vezes ser considerada como um
fator negativo entre os cursistas e também entre os professores, considero que, ao
contrário, eles possuem um extenso conhecimento da cultura que também deveria ser
considerado como critério relevante para o estabelecimento da qualidade do ensino. Por
isso, também são escolhidos pela comunidade para atuarem em suas funções.
Nas aulas de acompanhamento, realizadas quinzenalmente desde dezembro de
2005, procuramos trabalhar o conceito e as etapas da pesquisa levando em conta a sua
concepção para os não índios e para os Guarani. Inicialmente, trabalhamos o projeto e
agora os alunos encontram-se na parte metodológica e na escrita propriamente dita. O
curso presencial de metodologia da pesquisa prevê como avaliações o desenvolvimento
de um projeto e posteriormente uma monografia.
Acerca da parte metodoló gica, optamos por não efetivar uma leitura exaustiva e
sistematizada acerca da pesquisa histórica, pois os cursistas possuíam escolaridade até o
ensino fundamental, e tal atividade poderia não alcançar os objetivos desejados. De
outro lado, os cursistas são conhecedores da cultura Guarani, possuem contato com as
fontes, são integrados à comunidade e já haviam realizado pesquisa anteriormente.
Nosso intuito foi trabalhar com a metodologia da história oral e da análise
documental. Esta opção deveu-se à necessidade dos Guarani de fazer pesquisa para
retratar a sua própria história, e que desejam escrevê- la, quer seja para trazer à tona
aspectos esquecidos da cultura, quer seja para transformar a pesquisa em material
didático para a escola.
Ao se tornarem pesquisadores de si mesmos, também se situam como sujeitos e
protagonistas de sua própria história, aquela que não se encontra registrada nos livros,
mas que é viva nas lembranças dos mais velhos e que se tornará escrita porque os
Guarani querem registrar outras histórias e novas possibilidades de contá- las. Segundo
Thompson (2002: 22):
“ Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o
conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da
própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que
existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o
mundo exterior; e na produção da história- sejam em livros, museus, rádio ou cinemapode devolver à pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental,
mediante suas próprias palavras.”
Nesse sentido, os Guarani ao realizarem a pesquisa trouxeram como algo
positivo a maior aproximação com os mais velhos das aldeias. Os cursistas consideram
os anciãos as fontes vivas da história da sua comunidade. Além disso, a pesquisa
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possibilitou a mudança da prática da sala de aula dos professores, incluindo os mais
velhos dentro da escola ao falar da tradição e da cultura.
A pesquisa histórica parte da recuperação do passado, que segundo os Guarani
deve ser relembrado para não fazer esquecer a cultura e para que os mais novos o
conheçam. Para Hobsbawm (1998:22):
`Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado
(ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá- lo. O passado é, portanto, uma
dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das
instituições, valores e outros padrões da sociedade humana. O problema para os
historiadores é analisar a natureza desse “sentido do passado” na sociedade e localizar
suas mudanças e transformações.”
O problema fundamental dos Guarani é a questão do resgate da tradição, pois
temem as mudanças em relação ao contato com a sociedade não índia. Isso reflete-se na
escolha dos temas de pesquisa e na formulação de seus objetivos.
Os temas de pesquisa dos Guarani relacionam-se em dois eixos centrais: o
primeiro referente a migração religiosa ao estado, liderada por Tãtãtxi Ywa Reté e o
segundo relacionado às preocupações com as mudanças culturais em função do contato
com a sociedade envolvente. No primeiro eixo temos dois trabalhos e no segundo eixo
cinco, estes a saber: culinária indígena Guarani, os rituais Guarani, território tradicional
Guarani, o contato das línguas portuguesa e Guarani e a preservação do meio ambiente
na visão Guarani.
Os cursistas têm em comum os seguintes objetivos:
Resgatar e preservar a cultura do povo Guarani.
Ensiná-la na escola, aos mais jovens e àqueles que não a conhecem mais.
Transformar a pesquisa sobre a cultura Guarani em material didático a ser
utilizado na escola.
Entender as transformações da cultura Guarani em contato com a sociedade
envolvente.
Bittencourt (1994), aponta aspectos norteadores para o ensino de história
destinado às populações indígenas, que a meu ver, também são essenciais para o
entendimento da pesquisa histórica dos Guarani, como a identidade étnica, a função da
pesquisa, as relações da sociedade índia e a envolvente, a questão do tempo e do espaço.
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Todos esses aspectos encontram-se inter-relacionados. A questão da identidade
étnica associado às situações de contato com a sociedade envolvente reflete-se
constantemente, tanto nos temas de pesquisa e os objetivos dos Guarani, quanto nas
falas dos cursistas, dos mais velhos, das lideranças indígenas e da comunidade,
principalmente no que se refere à língua e à religião.
Na pesquisa histórica trabalhamos inicialmente a questão das fontes e do tempo
histórico. Vimos as diversas fontes orais, escritas, materiais e iconográficas. Quanto ao
tempo, percebi que o marco zero dos Guarani é a migração da líder xamânica Tãtãtxi
Ywa Reté ao estado. Para eles, o período da migração decorreu antes do contato com os
portugueses. Aliás, é muito freqüente, além da atribuição djuruá e brancos, a
denominação portugueses à sociedade envolvente. Isso é muito significativo visto que
se atribui ao não índio hoje o mesmo papel dos colonizadores de outrora.
A partir da constatação de que o tempo para os Guarani não é linear como o da
sociedade envolvente, procuramos estabelecer uma comparação entre a concepção e
contagem do tempo da sociedade Guarani e da não índia. Tal tarefa necessita uma maior
reflexão teórica acerca do tema proposto. Partimos das expressões que eles mais
utilizam em seu cotidiano, como: Ara Ymã - ano velho/inverno, Ara pyau - ano
novo/verão, Ymã gware- antigamente, Aymã- hoje e Are'i -pouco tempo. A partir dessas
expressões, traçamos um paralelo com o tempo da sociedade não índia, para podermos
chegar a uma linguagem a ser entendida tanto na escrita como oralmente.
Para Borges (2002:106), o tempo Guarani Mbya deve ser pensado em relação à
cosmovisão, aos mitos, aos tempos socioeconômicos e às novas temporalidades
advindas das situações de contato, como a educação escolar e às novas práticas
curativas dos postos de saúde.
Borges, assim como Hobsbawm, nos afirma que o tempo serve para situar o
sujeito nas sociedades, atuando como elemento formador das instituições e dos valores.
Borges ainda acrescenta que o tempo imaginário ou social pressupõe a unidade da
sociedade, sem o qual encontraria-se em estado de dispersão contínua. Borges
(2002:109) classifica o tempo instituído em: tempo físico e social (corpo), tempo da
linguagem, o tempo dos rituais, o tempo psicológico, o tempo da pesca, caça ou
colheita, o tempo do sagrado e do profano.
A questão do contato dos Guarani com a sociedade envolvente torna-se latente
e reveladora de conflitos, em vários casos, mas citaremos um exemplo em particular.
Observemos a seguir o relato de uma cursista sobre os rituais pós-parto:
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“ A criança depois que nasce não pode pegar vento antes de um mês e não pode
molhar na chuva. A criança só pode sair do quarto depois de oito dias. quando a criança
fizer o primeiro passeio, a mãe tem que levar o pó de cinza junto para marcar o
caminho. No passeio, não pode passar em encruzilhada, tem que seguir o caminho reto
para o espírito da criança não se perder, tem que andar com a gente. O espírito das
crianças anda com a gente. O pai e a mãe não podem fazer serviço pesado até um mês.
Não pode também comer alimento com olho grande e boca pequena (peixe e caça)
porque senão a criança fica igual ao bichinho. O pai não pode amarrar o cordão, não
pode montar armadilha e a mulher não pode usar brinco, cordão e pulseira, senão
amarra o cordão (umbilical) da criança.”
Esse depoimento nos revelou que além do resguardo da mulher com a prática
de uma série de tabus alimentares, o homem também não poderia exercer atividades
consideradas pesadas e deveria ficar um mês sem trabalhar. Outro cursista mencionou
que nos dias de hoje é difícil seguir a tradição, pois ele tem que trabalhar na escola
como professor. Outra alteração da vida tradicional, foi mencionada por uma aluna que
teve seu filho no hospital, próximo à uma encruzilhada, sendo portanto impraticável
para ela essas regras. A depoente era parteira e reclamou que atualmente a maioria das
mulheres da aldeia prefere ter seus filhos nos hospitais.
O fato de pesquisar a cultura e a tradição não significa a reincorporação
imediata dos antigos hábitos e costumes, mas leva a uma profunda reflexão das
transformações pelas quais passam os Guarani em contato com a sociedade envolvente e
nos revelam os momentos em que este contato apresenta-se conflituoso. Este conflito
não é imperativo da simples escolha entre uma cultura ou outra, mas decorre do contato
e da interferência de instituições não índias, como a escola e o hospital. Estas
instituições são exteriores ao modo de vida daquela comunidade, mas ao mesmo tempo,
fazem parte do seu cotidiano e representam muitas vezes, a própria possibilidade de
sobrevivência, como a escola que garante o sustento à família do professor e o hospital
que pode possibilitar a cura para doenças dos não índios que chegam às aldeias.
As pesquisas sobre a temática indígena devem incluir além dos embates entre o
tradicional e o moderno e as reflexões sobre a cultura, os aspectos políticos, econômicos
e sociais. No caso do professor, a alteração dos costumes e da tradição não decorre
apenas da escolha das culturas, mas de um processo no qual se insere àquela
comunidade, que é a inclusão de novos grupos sociais, como o professor, o agente de
saúde, dentre outros, causando a mudança da vida em sociedade com o estabelecimento
de hierarquias. E em que medida, o professor ocupa ou não uma posição privilegiada na
aldeia que leve a um conflito de poder com uma liderança política? Em vários
momentos, os caciques reforçam o fato de que os mais novos lhes devem obediência, ao
mesmo tempo devem seguir as normas da vida em sociedade, como não ingerir bebidas
alcoólicas, não freqüentar bailes e forrós, ou quaisquer hábitos de uma cultura externa à
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sua. A referência ao cumprimento das regras sociais decorre da necessidade de
reafirmação da identidade étnica diante das situações de contato.
Para Cunha (1987:116), é em épocas de mudanças, que os indígenas
apresentam resistência, reforçando o apego a traços culturais para a preservação da
sociedade e da identidade étnica. Nesse sentido também convergem Bazco (1985:308),
e Girardet (1987:21), quando afirmam que os mitos se constituem como respostas dadas
pelas sociedades aos fenômenos de ruptura ou de mutação, crise de ordem política,
econômica ou social.
As sociedades indígenas utilizam a tradição como meio de afirmação da
identidade em momentos de transformação social. Para Giddens (1997:80), a tradição
articula-se a memória coletiva, possui guardiães e envolve o controle do tempo. A
memória coletiva articula o passado ao presente. Esse passado não é fossilizado, mas
constantemente reinventado e reconstruído tendo como base o presente. A tradição
ocorre através das práticas culturais e é utilizada como forma de organização também
do tempo futuro.
A relação identidade étnica, tradição e tempo estão entrelaçadas na linguagem
utilizada pelos Guarani que é o mito. Comumente os caciques e os mais velhos contam
histórias que refletem momentos de crise e de desobediência das regras sociais, com o
intuito de estabelecer a reflexão sobre um sentimento de pertença e de coesão social.
Os Guarani Mbya costumam narrar as memórias da migração de Tãtãtxi ao
Espírito Santo. Como dito anteriormente, o marco zero para os Guarani foi o guata da
líder xamânica. Também podemos considerar como narrativa mítica de origem dos
Mbya no estado. Ciccarone (2001:15) alerta sobre o fato de que os Guarani ao narrar a
migração e suas histórias realizavam uma reflexão da vida em sociedade, com intuito de
encontrar alternativas para o futuro, ao mesmo tempo em que negociavam e traduziam
as versões oficiais da migração, manipulando-as e recriando-as. Garlet (1997:19) afirma
que o recurso à utilização do mito permite aos Guarani a possibilidade de recriar sua
história, reformular sua noção de território e incorporar fatos, locais e personagens
históricos, além de elementos do tempo presente. Segundo o autor, o mito para os
Guarani procura compreender, explicar e dar conta da situação de contato interétnico.
A nosso ver, a utilização do mito como linguagem abriga em si múltiplas
possibilidades de interpretação e constitui-se enquanto fonte para se compreender a
história, a sociedade, a filosofia, a religião e o modo de ser de um povo. Quando
dizemos modo de ser de um povo, nos remetemos à questão de que o mito é
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incorporado na construção social de um grupo, diariamente, através dos gestos, do
comportamento, das práticas culturais, da história e da reafirmação da identidade étnica.
A pesquisa histórica deve ser considerada em dois aspectos relevantes como o
papel da pesquisa e do pesquisador e a interdisciplinaridade. Nesse sentido, o cacique
Guarani da aldeia de Mboapy Pindo, questionou a visão dos antropólogos acerca da
Terra sem Males, pois para estes, o paraíso mítico consiste em encontrar um local
próximo ao mar e a leste. Para a liderança política, os cientistas não vão entender o que
os Guarani sentem em relação a essa crença, pois não vivem o mito. Como nos afirma
Girardet, (1987) o mito só pode ser entendido pela sociedade que o constitui. Todas as
tentativas de compreensão do mito, acabam por reduzi- lo ao seu significado mais
amplo. Para o cacique, a Terra sem males consiste em primeiro encontrar o local
apropriado à vida Guarani, ou seja, o tekoa, e a partir disso, é no tekoa e através do
respeito às normas de vida em sociedade que os Mbya conseguirão atingir o paraíso
mítico.
Observamos nesse discurso, a apropriação da pesquisa como uma prática de
questionamento do que vem sido dito no universo acadêmico e na proposição de uma
visão indígena, isto é, o próprio índio quer contar a sua história e à sua maneira. Aqui o
papel da pesquisa torna-se redimensionado. O índio é ao mesmo tempo, o sujeito
investigado e a investigar, ou seja, o antropólogo de si mesmo. Os Guarani colocam-se
como os construtores de sua própria história, se apropriando da linguagem científica,
criticando-a e incorporando elementos de seu universo cultural, como a linguagem
mítica.
Quanto à interdisciplinaridade, vejamos um relato de um cursista acerca da
preservação da natureza na visão Guarani.
“ Antigamente, os Guarani tinham ma is facilidade de preservar a natureza antes da
chegada de português, porque não tinha coisas do djuruá. Os Guarani antigamente
cuidava muito bem da natureza. Os Guarani eram muito mais religioso e respeitoso uns
aos outros e obedeciam o pajé. Então por isso quando eles vão fazer alguma coisa ou
vão buscar alguma coisa do mato primeiramente tem que se comunicar com o pajé se
pode fazer alguma atividade ao amanhecer, aí o pajé já sabe o que dizer, se pode ir ou
não. Porque o pajé reza todas as noites não só de noite, de dia também e reza por todos
nós. (...) Quando uma pessoa vai ao rio tem que ir com todo o respeito, quando chega ao
rio tem que pedir para ele, porque o rio tem vida, o rio é igual a nós. A pessoa que vai
pegar a água de qualquer jeito ele não pode passar a tarde.”
Podemos observar a referência a um passado de preservação da natureza e dos
costumes Guarani em oposição a um presente conflituoso após o contato com os djuruá.
Os não índios aqui são identificados como djuruá e também como portugueses. Outra
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questão a ser observada é a inter-relação entre a religião e a natureza. Para ir à região da
mata ou do rio, primeiramente os Guarani devem recorrer ao pajé que se configura
como o chefe religioso e a autoridade da aldeia, que detém o conhecimento da tradição e
da cultura.
Considerações finais
A pesquisa histórica possibilita o resgate de antigas tradições e de aspectos
culturais dos Guarani Mbya. Ao mesmo tempo, configura-se reveladora de conflitos
existentes através do contato da sociedade ind ígena com a envolvente. O exercício das
práticas culturais não decorre de uma simples escolha entre a cultura guarani ou não
índia, mas resulta da complexidade das relações sociais, econômicas, políticas e
culturais.
Entretanto, a pesquisa histórica ao se constituir como outra forma de linguagem
a ser dominada pelos cursistas, também é apropriada de acordo com o seu universo
cultural e ressignificada por eles. Essa apropriação decorre da utilização de uma
narrativa mítica explicativa da cultura Guarani, do questionamento de estudos anteriores
não indígenas e a afirmação de sujeitos e protagonistas de sua própria história ao
exercerem a prática da pesquisa.
Referências Bibliográficas
Documentos:
O Programa de Formação Escolar Guarani da Região Sul e Sudeste do Brasil- Kuaa
Mbo'e = Conhecer / Ensinar, realizado em Santa Catarina. Síntese da proposta políticopedagógica. Secretaria de Estado da educação, ciência e tecnologia de Santa Catarina.
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No Espírito Santo, existem cerca de 2346 indígenas aldeados, sendo 2109 da etnia
Tupinikim e 239 Guarani, ambos os grupos situados no município de Aracruz. Segundo
dados da Funai de 2005, a população da aldeia de Tekoa Porã compreende 20 famílias e
69 habitantes, a aldeia de Piraquê-Açu possui sete famílias e 29 habitantes e a aldeia de
Mboapy Pindo, a mais numerosa, possui 28 famílias e 141 habitantes.
A luta pela terra indígena no Espírito Santo remonta desde 1967, com a implantação da
empresa Aracruz Celulose ao estado e permanece até os dias atuais. A primeira fase da
luta durou de 1967 a 1983, que abrange a chegada da empresa até a demarcação das
terras em 4.490 hectares. A segunda fase ocorreu de 1993 a 1998, que corresponde ao
encaminhamento da revisão pela ampliação de terras à assinatura do termo de
ajustamento de conduta, com a empresa. E a terceira fase inicia-se em 2005, com a
realização da assembléia das duas etnias para reivindicar a ampliação dos 11.009
hectares. O Termo de ajustamento de conduta foi assinado pelos índios Tupinikim e
Guarani com a empresa Aracruz Celulose em 02 de abril de 1998. Neste documento, a
empresa cederia uma quantia de dez milhões e duzentos e sessenta mil reais às
comunidades indígenas num prazo de vinte anos. Além disso, a empresa permitiria que
os índios explorassem os eucaliptos. Ainda, a empresa seria responsável pelo
pagamento das contas de água e energia elétrica até o valor de sete mil e novecentos e
oitenta reais ao ano, além de subsidiar projetos destinados à agricultura.
Garlet (1997) ao apresentar uma discussão acerca da migração Guarani, prefere utilizar
o termo deslocamentos, pois possui maior amplitude devido os Mbya buscarem
parentes, casamentos, caminhos já percorridos pelos antepassados. Ele afirma que as
pressões interétnicas, causadoras dos deslocamentos, promovem um movimento de
desterritorialização e reterritorialização, isto é, com a ação de fazendeiros ou não índios,
os Guarani retiram-se de suas aldeias e procuram novas regiões, reconfigurando, assim,
seu território. Para Ladeira (2001: 89), o conceito de território não é próprio das
sociedades indígenas, mas estabelecido pelo Estado, através do exercício de estratégias
e do controle do poder político, construídas historicamente.
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