Trecho - Millennium Editora

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Trecho - Millennium Editora
Capítulo 1
O local de crime e suas interfaces
Jesus Antonio Velho
Karina Alves Costa
Clayton Tadeu Mota Damasceno
Palavras-chave
Palavras-chave
Local de crime
Local de crime
Vestígio
Vestígio
Indício
Indício
Cadeia
de
custódia
Cadeia de
custódia
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Locais de Crime
Jesus Antonio Velho – Karina Alves Costa – Clayton Tadeu Mota Damasceno
O crime
Conceito de crime
O Crime, em termos jurídicos, é toda conduta típica, antijuridíca (ou ilícita) e culpável, praticada por um ser humano. Segundo o dicionário, crime é:
“sm (lat crimen) 1 Violação dolosa ou culposa da lei penal. 2 Violação das regras que
a sociedade considera indispensáveis à sua existência. 3 Infração moral grave; delito.
Em sentido vulgar, crime é simplesmente um ato que viola uma norma.” (dicionário
Michaelis)
Num sentido formal, crime é uma violação da lei penal.
No conceito material, crime é uma ação ou omissão que se proíbe e se procura evitar, ameaçando-a com pena, porque constitui ofensa (dano ou perigo) a um bem jurídico
individual ou coletivo.
Para a legislação penal, a conduta humana para ser elencada como crime deve ser
tipificada, ou seja deve estar descrita na legislação.
Não será abarcada nesta obra as particularidades para se definir crime e conduta sob
a ótica jurídica; o que se busca é apresentar o crime como sendo um resultado de uma
conduta humana que é prejudicial à sociedade e deve ser esclarecida tendo os elementos de prova encontrados e encaminhados adequadamente a uma corte penal para que
ocorra um julgamento eficaz.
A maneira de se planejar, executar e consumar crimes são diferentes: algumas geram
resultados mais severos; e outros menos severos, algumas danificam bens materiais e
financeiros, outras danificam o corpo humano, ou a saúde mental, assim como a moral
e os costumes de uma sociedade. Por isso para efeito de estudos e conforme a legislação
penal, as condutas consideradas como crimes foram agrupadas segundo o bem jurídico
atingido.
Assim, temos abaixo uma lista sobre alguns dos principais grupos delitivos:
–
Crimes contra a pessoa, por exemplo: homicídio, aborto, lesão corporal,
maus tratos.
–
Crimes contra a honra, por exemplo: injúria, calúnia.
–
Crimes contra o patrimônio, por exemplo: furto e roubo.
–
Crimes contra a dignidade sexual, por exemplo: estupro, assédio sexual.
–
Crimes contra a incolumidade pública, por exemplo: explosão, desmoronamento.
–
Crimes econômicos: estelionato, lavagem de dinheiro.
Capítulo 1 – O Local de Crime e suas Interfaces
Jesus Antonio Velho – Karina Alves Costa – Clayton Tadeu Mota Damasceno
Evolução do crime de homicídio no Brasil
Mesmo não sendo estatisticamente a maior ocorrência criminosa no Brasil, o homicídio é o crime que mais choca a sociedade, pois seu dano é irreversível e o mais violento que se pode tramar contra a vida humana.
Nos últimos 30 anos, o Brasil passou de 13.910 homicídios em 1980 para 49.932
em 2010, um aumento de 259% equivalente a 4,4% de crescimento ao ano, conforme
ilustrado pelo gráfico a seguir.
Figura 1 - Gráfico mostrando a evolução temporal da taxa de homicídio no Brasil.
Durante esses 30 anos o Brasil já ultrapassou a casa de um milhão de vítimas de
homicídio.
Os números são de tal magnitude que fica difícil construir uma imagem mental para
assimilar o seu significado.
WAISELFISZ, 2013 no seu trabalho intitulado Mortes Matadas por Armas de Fogo
no Brasil fez a comparação: as mortes violentas no Brasil com vários conflitos armados acontecidos no mundo na segunda metade do século passado. Veja a tabela a
seguir.
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Locais de Crime
Jesus Antonio Velho – Karina Alves Costa – Clayton Tadeu Mota Damasceno
Tabela 1 – Mortalidade em conflitos armados no mundo.
País/Conflito
Natureza do Conflito
Período
Anos de duração
N. de mortes
Mortes / ano
Brasil
Mortes por armas de fogo
2010
1
38.892
38.892
Chechênia/ Rússia
Movimento emancipatório/ étnico
1994-1996
2
50.000
25.000
Etiópia - Eritréia
Disputa territorial
1998-2000
2
50.000
25.000
Guatemala
Guerra Civil
1970-1994
24
400.000
16.667
Algeria
Guerra Civil
1992-1999
7
70.000
10.000
Guerra do Golfo
Disputa territorial
1990-1991
1
10.000
10.000
El Salvador
Guerra Civil
1980-1992
12
80.000
6.667
Armênia -Azerbaijão
Disputa territorial
1988-1994
6
30.000
5.000
Nicarágua
Guerra Civil
1972-1979
7
30.000
4.286
Timor Leste
Independência
1974-2000
26
100.000
3.846
Kurdos
Disputa territorial/ movimento
emancipatório
1961-2000
39
120.000
3.076
Angola
Independência
1961-1974
13
39.000
3.000
Angola
Guerra Civil/UNITA
1975-2002
27
550.000
20.370
Moçambique
Independência/ Guerra Civil
1962-1975
13
35.000
2.692
Israel - Palestina
Disputa territorial/ religiosa
1947-2000
53
125.000
2.358
Sirilanka
Guerra civil
1978-2000
22
50.000
2.273
Israel - Egito
Disputa territorial
1967-1970
3
6.400
2.133
Guerra das Malvinas
Disputa territorial
1982
1
2.000
2.000
Somália
Guerra civil
1982-2000
18
30.000
1.666
Camboja
Guerra Civil/ Disputa territorial
1979-1997
18
25.000
1.388
Peru
Guerra civil/ Guerrilha
1981-2000
19
25.000
1.316
Colômbia
Guerra civil/ Guerrilha
1964-2000
36
45.000
1.250
Cachemira
Movimento emancipatório
1947-2000
53
65.000
1.226
Irlanda do Norte
Guerra Civil/ movimento
1968-1994
26
3.100
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A sensação de insegurança no Brasil não é sem fundamento. Somos, de fato, um
dos países mais violentos da América Latina, que por sua vez é a região mais violenta do
globo. A situação seria ainda pior se fossem comparados os números isolados de algumas
cidades e regiões metropolitanas, onde há o dobro de crimes da média nacional. São Paulo, por exemplo, já ultrapassou alguns notórios campeões da desordem, como a capital
da Colômbia, Bogotá.
Mesmo sendo impossível avaliar o valor da perda da vida de uma pessoa vítima de
um homicídio, especialmente para amigos e familiares, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, de um ponto de vista puramente monetário, realizou um cálculo que dá
uma idéia do impacto financeiro do crime no Brasil. Segundo essa estimativa, que leva
em conta prejuízos materiais, tratamentos médicos e horas de trabalho perdidas, o crime
rouba cerca de 10% do PIB nacional, o que dá mais de 100 bilhões de reais por ano.
Como se pode melhorar essa situação, ou seja, como inibir o crime no Brasil? Por
que alguns lugares, como no nosso país, reúnem mais pessoas dedicadas a infringir a lei?
Capítulo 1 – O Local de Crime e suas Interfaces
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Mesmo não sendo uma resposta simples e direta, algumas indicações podem ser obtidas
da análise de como combatemos a criminalidade.
Teoria dos controles
Segundo uma das principais correntes da criminologia, um dos fatores que evitam
que um indivíduo pratique uma conduta criminosa é o medo da punição, ou seja, o controle formal que a sociedade exerce sobre cada indivíduo. Quanto mais forte for a mensagem, e a sensação, de que a punição será exercida para a conduta criminosa, menor será
o cometimento de crimes. É a essência do recado do jurista italiano Cesare Becaria, que
no século XVIII proferiu a célebre frase: “O que inibe o crime não é o tamanho da pena,
mas a certeza da punição”. Entretanto, pode se verificar que mesmo em países com
sistemas legais exemplares, as chances de que todos os crimes sejam punidos não são
grandes suficientes para, sozinhas, causarem a sua redução, o que faz com que sejam introduzidas penas rigorosas como forma de desencorajar um potencial criminoso.Os dois
fatores em conjunto, ou seja, a maior probabilidade da punição e a aplicação de penas
substanciais buscam promover a sensação da punição e o “controle” sobre os indivíduos
para a prática de ações criminosas.
Para isso é preciso que as instituições envolvidas no processo de apuração, julgamento e aplicação das penas atuem de forma eficiente e eficaz. Quanto mais eficazes,
mais forte será o sentimento de punição e justiça.
As instituições de combate à criminalidade atuam de forma independente, porém a
eficácia do resultado final depende da harmonia do conjunto. Se um elo dessa corrente
for fraco, será ele que determinará a força final dessa corrente de ações que busca promover a justiça.
Neste aspecto, será abordado neste livro como se pode aumentar a força de um destes elos, a Perícia Criminal e, especialmente a Perícia em Locais de Crime.
O papel central da Perícia Criminal na
resolução de crimes: desafios a vencer
A ciência de um modo geral se apresenta como intérprete da natureza. Quando aplicada a-plicada à perícia criminal ela se coloca como reveladora da “verdade dos fatos”,
produzindo a prova científica no contexto do processo penal.
Não é de causar estranheza, seja pela confiança na ciência, utilizada pelos peritos, seja
pela falta de credibilidade das provas subjetivas (testemunho e confissão), que a Associação
Nacional dos Peritos Criminais Federais escolheu como seu slogan a frase: “A Perícia Prova”.
O tema do XIX Congresso Nacional de Criminalística, realizado em 2007 foi “Perícia
Criminal: garantia do indivíduo, direito à verdade”, e em sua apresentação afirmou-se
categoricamente que “o devido processo legal exige a perícia criminal na apuração de
fatos supostamente delitivos que deixam vestígios”.
Ter uma perícia eficaz e eficiente é, portanto, uma garantia ao indivíduo de que os
processos penais serão conduzidos com base num suporte fático, rígido e científico que
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Locais de Crime
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conduza a alegações verdadeiras e ao esclarecimento da verdade. Neste escopo a legislação brasileira impede que a defesa, a acusação e mesmo o juiz possam obstá-la.
O exame pericial ao mesmo tempo em que fornece um respaldo de grande credibilidade ao veredito a ser dado pelo juiz, é um conjunto de procedimentos técnicos
dominados por especialistas (peritos), que primeiro §: que têm que ser (ou, ao menos,
deveriam) melhor compreendidos e interpretados por operadores do Direito. Essa compreensão muitas vezes não ocorre e o impacto dessa lacuna pode representar um problema para a promoção da justiça. É lamentável que são raros os cursos de direito, no Brasil,
que apresentam a disciplina de Criminalística/Ciências Forenses em sua grade curricular.
Ao não se compreender claramente o papel da perícia, também se nega a ela os recursos necessários para que possa desempenhar eficientemente seu papel. Nos últimos
anos ocorreu uma grande melhora neste quadro, mas estamos ainda muito distantes de
uma condição que possa ser considerada razoável ou boa.
A carência de recursos materiais e de capacitação profissional do corpo funcional
afeta diretamente a eficácia dos procedimentos periciais. Estando dentro ou fora da polícia, a perícia deve receber os recursos financeiros e administrativos suficientes que lhe
confira a autonomia requerida para realizar sua missão. As restrições financeiras implicam em laboratórios mal aparelhados, peritos mal remunerados e desatualizados (exceto
aqueles que por esforço individual e amor à profissão buscam se desenvolver com seus
próprios recursos) e mesmo ainda à falta de material básico para realização de exames
periciais.
A falta de uma perícia aparelhada, bem remunerada e treinada, gera um elo frágil na
obten-ção das provas necessárias a um julgamento justo, enfraquecendo assim o processo de aplicação da justiça. Verifica-se esta situação ao se analisar as notícias de inúmeros
julgamentos que acabam em impunidade dos réus por falta de provas consistentes. Infelizmente o resultado é o aumento da “sen-sação de impunidade”.
Dois Casos, uma Perícia: O caso Naves x O caso Nardoni
Capítulo 1 – O Local de Crime e suas Interfaces
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O caso dos Irmãos Naves é considerado um dos maiores erros do judiciário brasileiro. Aconteceu na cidade mineira de Araguari, em 1937. Os irmãos Naves (Sebastião, de 32
anos de idade, e Joaquim, 25, mostrados na figura 2) eram trabalhadores que compravam
e vendiam cereais.
Joaquim Naves era sócio de Benedito Caetano. Este comprara, com auxílio material
de seu pai, grande quantidade de arroz, trazendo-o para Araguari, mas com os preços
em queda, Benedito viu-se obrigado a vender sua safra com expressiva perda, contraindo
ainda mais dívidas, sobrando-lhe ao final, vultosa importância em dinheiro, que, no entanto, não daria para cobrir o que devia ao res-tante dos credores.
Os irmãos Naves, constatando o desaparecimento, e sabedores de que Benedito
portava grande importância em dinheiro, comunicam o fato à Polícia, que imediatamente
inicia as investigações.
O caso foi atribuído ao Delegado de Polícia Francisco Vieira dos Santos, que protagonizaria um dos mais vergonhosos e conhecidos erros judiciários da história brasileira.
Iniciou as investiga-ções e não demorou a formular a convicção sujetiva de que eram os
irmãos Naves os responsáveis diretos pela morte de Benedito.
A partir de então iniciou-se uma trágica, prolongada e triste trajetória na vida de
Sebastião e Joaquim Naves. Joaquim e Sebastião foram levados a um campo aberto, amarrados a árvores e tiveram seus corpos untados com mel para serem atacados por abelhas
e formigas e outros tipos de animais, ouvindo tiros e ameaças constantes de morte. Submetidos a torturas as mais cruéis possíveis, privados de alimentação e visitas, os irmãos
Naves resistiram até o esgotamento de suas forças físicas e morais, assinando de forma
forçada uma “confissão” formal do crime.
Realizado o julgamento, os irmãos Naves são condenados a cumprirem 25 anos e 6
meses de reclusão. Após cumprirem 8 anos e 3 meses de pena, obtêm livramento condicional, em agosto de 1946, por comportamento prisional exemplar.
De 1948 em diante, Sebastião Naves inicia a busca pela prova de sua inocência. Era
preciso encontrar o rastro de Benedito, o que vem a ocorrer, por sorte do destino, em
julho de 1952, quando Benedito, após ocultar-se em terras longínquas, retorna à casa
dos pais em Nova Ponte, sendo reco-nhecido por um primo de Sebastião Naves.
O caso passou a ser nacionalmente conhecido. A imprensa o divulgou com o merecido des-taque. A mesma população que, influenciada pela autoridade do delegado,
inicialmente aceitava como certa a culpa dos irmãos Naves, revoltou-se com o ocorrido,
tentando, inclusive, linchar o Benedito que esteve desaparecido. Em revisão criminal, os
irmãos Naves foram finalmente inocen-tados, em 1953.
Qual foi o grande erro de todo o processo criminal? Toda a investigação baseou-se
numa convicção de culpa sem provas materiais. Ao condenar duas pessoas por um assassinato baseado em confissões e em elementos meramente circunstanciais gerou-se um dos
mais graves erros jurídicos de nosso país. Não houve sequer a comprovação da materialidade do crime.
Geralmente pensa-se em perícia para encontrar as provas materiais que sirvam para
incriminar os culpados, o que é verdadeiro, porém o foco da perícia é analisar os elementos materiais com vistas a desvendar o que ocorreu, ou seja, determinar a verdade dos
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Locais de Crime
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fatos – o que, se tivesse sido realizado no caso citado serviria para inocentar dois seres
humanos injustamente condenados. A tortura a que foram submetidos os irmãos Naves
foi presenciada por outras pessoas, à época, e diziam que eles “pareciam” culpados.
Toda a tortura a que foram submetidos os irmãos Naves não foi impedida e mesmo
algumas pessoas entrevistadas à época disseram que eles “pareciam” culpados.
CURIOSIDADE
O caso Naves foi tema de um filme brasileiro de 1967, do gênero drama, intitulado “O
caso dos irmãos Naves”, baseado no livro de João Alamy Filho, que foi o advogado
dos irmãos.
Seguindo ainda o raciocínio da importância da perícia, tem-se um outro caso histórico – o da menina Isabella Nardoni assassinada pelo pai e pela madrasta em 2008.
O episódio marcou história pelos meios de prova preponderantemente considerados,
pela materialidade dos fatos que emergiu do trabalho pericial. Não houve testemunhas
presenciais, e tajmpouco, elementos circunstanciais. As provas materiais, periciais, assumiram papel chave na apuração do ocorrido. Foi taxativa e indu-bitável. Mesmo contra
o senso coletivo de que um pai jamais participaria do assassinato de sua filha, as provas
periciais demonstraram a conduta criminosa do casal Nardoni.
Na noite de 29 de março de 2008, a menina Isabella Oliveira Nardoni, 5 anos, foi encontrada caída no jardim do Edifício London no distrito da Vila Guilherme, em São Paulo, onde morava o pai, Alexandre Nardoni, 29, a madrasta, Anna Carolina Trotta Peixoto
Jatobá, 24, e dois irmãos. Isabella foi encontrada em parada cardiorrespiratória. Chegou
a ser socorrida pelos bombeiros, mas não resistiu e morreu a caminho do hospital.
Logo após a constatação da morte, o pai de Isabella e a madrasta foram levados ao
9º DP (Carandiru) para prestar depoimento. O pai afirmou que, naquela noite, chegou
ao edifício de carro, com a mulher e os três filhos dormindo. Levou Isabella para o apartamento, colocou-a na cama e a deixou dormindo, com o abajur ligado, para voltar à
garagem e ajudar a mulher a subir com os dois filhos do casal.
Conforme a versão de Nardoni, quando ele voltou ao apartamento, percebeu que
a luz do quarto ao lado do de Isabella, onde dormiam os irmãos dela, estava acesa; que
a grade de proteção da janela tinha um buraco; e que a menina havia desaparecido. Em
seguida, ele disse ter percebido que o corpo da menina estava no jardim.
Naquela ocasião, Nardoni disse suspeitar que a filha tivesse sido atirada do sexto
andar do prédio por algum desafeto seu.
Este é um caso que poderia ter tido um desfecho diferente se a história do pai não
pudesse ter sido demolida pelas Ciências Forenses.
Sem a existência de provas testemunhais e de uma confissão, a investigação partiu
da análise das provas materiais visando encontrar elementos que pudessem determinar
o que ocorreu.
Com o andamento da investigação foi levantada a hipótese de participação dos pais
e então, para confrontar a versão dos réus de que havia uma terceira pessoa na cena do
crime, foram realizadas diversas perícias.
Capítulo 1 – O Local de Crime e suas Interfaces
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As provas irrefutáveis que lastrearam a condenação vieram do trabalho de qualidade
realizado pela perícia criminal nos vestígios encontrados no local de crime – romanticamente chamados pelos peritos de “testemunhas que não mentem”.
Por meio da análise dos vestígios encontrados no local de crime, manchas de sangue, perfurações presentes na camiseta de Alexandre Nardoni provocadas pela tela de
proteção do apartamento, lesões presentes na vítima, dentre outros, foi estabelecida a
dinâmica dos acontecimentos e a autoria da ação criminosa. Foi também demonstrado
que que houve tentativa de adulteração da cena.
Após cinco dias de julgamento, o juiz Maurício Fossen fez o pronunciamento, transmitido ao vivo por diversas redes de televisão. O júri considerou o casal culpado por
homicídio triplamente qualificado: pela asfixia, considerado meio cruel, sem ter tido
chance de defesa; por estar inconsci-ente ao cair da janela, e por alteração do local do
crime. Alexandre Nardoni foi condenado a 31 a-nos, 1 mês e 10 dias - pelo agravante de
ser pai de Isabella – e Anna Carolina Jatobá, a 26 anos e 8 meses, em regime fechado.
Se o mesmo rigor técnico e científico pudesse ter sido aplicado ao caso dos irmãos
Naves, o desfecho teria sido diferente.
PARA SABER MAIS
No livro “A Prova é a Testemunha”, a escritora e pesquisadora de crimes violentos Ilana Casoy - mostra como a perícia criminal conseguiu provar a culpa do casal Anna
Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni, e estabelecer a dinâmica do assassinato da
menina Isabella.
Local de crime – conceitos básicos
Definição de local de crime
O local de crime é o palco principal onde, em geral, se inicia o do trabalho da perícia
criminal, representa o berço de geração dos vestígios produzidos no fato em apuração.
De acordo com Kehdy, 1959: “Local de crime é toda área onde tenha ocorrido um
fato que assuma a configuração de infração penal e que, portanto, exija providências
da polícia.”
Ou ainda de acordo com Rabello, 1996: “Local de Crime - é a porção do espaçocompreendida num raio que, tendo por origem o ponto no qual é constatado o fato,
se estenda de modo a abranger todos os lugares em que, aparente, necessária ou
presumivelmente,hajam sido praticados, pelo criminoso, ou criminosos, os atos materiais, preliminares ou posteriores à consumação do delito e com estes diretamente
relacionados”.
Nesse conceito, estão compreendidos, naturalmente, os crimes de qualquer espécie, bem como todo fato que, não constituindo crime, deva chegar ao conhecimento da
Polícia, a fim de ser convenientemente esclarecido.
Assim, um local onde tenha ocorrido um homicídio, suicídio, acidente, incêndio,
explosão, furto qualificado, atropelamento, colisão de veículos, etc., recebe a denomina-
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Locais de Crime
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ção genérica de “local do crime” ou “local do fato”, porque se torna necessário elucidar
as circunstâncias em que o mesmo se passou. A figura 3 exemplifica diferentes tipos de
locais de crime.
A
B
C
D
Figura 3 - Locais de crime: A - Local de crime
contra a vida; B - Local de crime contra o
patrimônio; C - Local de crime de laboratório
clandestino de drogas de abuso e D - Local de
crime contra o meio ambiente.
O Local como fonte de Informação
Num local de crime podem ser obtidas diversas informações a respeito do que ali
ocorreu, e da autoria da conduta questionada. Essas informações apresentam variados
graus de disponibilidade, podendo se apresentar de maneira explícita ou não.
Geralmente, os operadores do Direito: juízes, promotores e advogados, vinculados
a determinada ação penal não tiveram acesso à cena de crime. Suas convicções serão
construídas com os elementos que a investigação e a perícia elaborarem.
Essa é a principal razão pela qual, numa análise de uma cena de crime deve-se procurar obter a maior quantidade possível de informações. São essas informações que lastrearão o conhecimento dos fatos ocorridos, sua dinâmica e configuração.
Capítulo 1 – O Local de Crime e suas Interfaces
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A recenticidade dos fatos e a oportunidade, por vezes única, do adequado tratamento do local demandam um imperioso cuidado e planejamento da abordagem de uma
cena de crime.
Frequentemente a análise de informações contraditórias demanda, de parte dos
investigado-res envolvidos o uso do bom senso e de sua discricionariedade enquanto
agentes públicos.
Basicamente, existem dois tipos de informações disponíveis em uma cena de crime:
as sub-jetivas, representadas pelo conhecimento de alguém sobre o fato, e aquelas denominadas objetivas, que são oriundas da análise dos vestígios materiais.
Informações subjetivas
Denominam-se informações subjetivas aquelas decorrentes do conhecimento dos
fatos por parte de pessoas que viram ou, de alguma maneira, tomaram conhecimento
do acontecido. Esse tipo de informação é de ordem interpretativa e de cunho pessoal,
podendo até mesmo não refletir a verdade. Frequentemente são incompletas, abarcando
apenas uma parte do fato.
Pesquisas demonstram que nem sempre vemos corretamente o ocorrido. Enxergamos uma parte da realidade, ou seja, a nossa interpretação subjetiva da realidade. Nossa
percepção e nosso julgamento dos fatos são construídos com base em dados da nossa
experiência anterior com fatos similares e, se um fato “novo”, diferente se apresenta, a
mente busca encaixá-lo na matriz de conhecimentos anteriores e, quando não o encontra, procura construir um apanhado de elementos similares disponíveis. Essa é a principal razão pela qual julgamos erroneamente e com base em estereótipos.
Na prática, esse tipo de informação pode vir a contribuir no sentido de formar uma
ade-quada reconstrução mental do ocorrido, facilitando as diversas etapas de investigação do local. No entanto, muita cautela deve ser exercida, pois não se tratam de informações calcadas em dados concretos e absolutos, mas, de registros de como determinada
pessoa interpretou o fato ocorrido.
Se adicionarmos a essa cautela as razões de desconfiança necessárias, quando suspeitamos que as informações podem ser mentirosas ou construídas de maneira proposital, teremos avançado na ponderação das informações subjetivas.
De forma alguma queremos ser interpretados como contrários às informações subjetivas. Acreditamos muito em seu valor e damos indicações aos investigadores para procurá-las exausti-vamente em um local de crime.
O que fazemos é alertar para o fato de que os dados podem ser ilusórios ou forjados,
ou seja, ilusórios nos fazendo perder um tempo precioso seguindo uma história mirabolante que não levará a nada, ou ainda, forjados para nos desviar do caminho correto.
Indicamos a todos os investigadores que busquem validar as informações subjetivas
com a existência de elementos materiais que comprovem a história ou versão. Essa será
a garantia de não sermos enganados ou iludidos.
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Locais de Crime
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Informações oriundas de vestígios – Objetivas
Como toda conduta humana deixa atrás de si um rastro material, só o que se precisa
fazer é encontrá-lo. Essa afirmação é clara, porém, praticá-la não é simples. O rastro material da conduta nem sempre é claro e tangível. Muitas vezes requer o uso de recursos da
tecnologia e procedimentos nem sempre disponíveis. Neste aspecto o principal trabalho
do perito é encontrar o rastro, analisá-lo e por fim contextualizá-lo com o fato gerando
as provas materiais necessárias.
Como testemunhas mudas de um crime, os vestígios materiais são a fonte objetiva
de infor-mações, pois sua análise é mais precisa e segura, porque baseada em princípios
técnico-científicos consagrados e não em interpretações subjetivas. Em muitos casos, parte dos vestígios pode ser guardada como contraprova visando a dirimir questionamentos
futuros. Aliás, este é o procedimento padrão: o de se preservar, sempre que possível,
vestígios para análises futuras.
O QUE DIZ A LEI:
Art. 170 do CPP – Nas perícias de laboratório, os peritos guardarão material suficiente
para a eventualidade de nova perícia. Sempre que conveniente, os laudos serão ilustrados com provas fotográficas, ou microfotográficas, desenhos ou esquemas.
Este conhecimento de locais de crime não é novo. Já em 1934 o cientista forense
Edmond Locard, ao elaborar o princípio da transferência, nos trouxe a informação de que
existe sempre a troca de vestígios entre os agentes delituosos e o ambiente. O criminoso
deixa algo seu no local, ou leva algo do local consigo. Tal conceito é ilustrado pelo texto
abaixo:
“Onde quer pise, onde quer que toque ou o que deixe, mesmo que inconscientemente,
irá servir como testemunha silenciosa. Não somente suas digitais ou suas pegadas, mas
seus fios de cabelo, as fibras de suas roupas, as partículas de vidro que quebrou, as marcas de ferramenta que deixou, a tinta que arranhou, o sangue ou o sêmen que depositou,
todos estes materiais serão testemunhas silenciosas contra ele. Isto é uma evidência que
não falha. Isto é uma evidência que não é duvidosa, como o depoimento nervoso de uma
testemunha ou a própria ausência desta. Estas são evidências concretas e factuais. Evidencias deste tipo não se confundem. Elas não mentem e também nunca estão ausentes.
Somente sua interpretação pode gerar erros. Somente a falha humana em achá-las, em
estudá-las,e em entendê-las poderá diminuir o seu valor probatório”. Paul L. Kirk, 1953.
UM POUCO DE HISTÓRIA
UM POUCO DE HISTÓRIA
Edmond Locard (1877 – 1966) foi um dos pioneiros no
desenvolvimento
Ciências
Forenses.
Eledos
formulou
o princípio
Edmond Locarddas
(1877
– 1966)
foi um
pioneiros
no desenvolvimento das Cibásico
criminalística:
"Todo contato
deixa básico
uma marca",
que
ênciasdaForenses.
Ele formulou
o princípio
da criminalística:
“Todo contato
ficou
como que
o princípio
de Troca de
Locard.
Locard de Troca de Locard.
deixaconhecido
uma marca”,
ficou conhecido
como
o princípio
estudou
Direito emeLyon,
tornando-se
assistente de o assistente de AleLocardMedicina
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Direito
em Lyon,o tornando-se
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criminologista
e professor.
Alexandre
Lacassagne, criminologista
e professor.
Em Em
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ele ele começou fundar
seu próprio
Ele
produziu
monumental
trabalho de sete
começou
fundarlaboratório
seu própriocriminal.
laboratório
criminal.
Ele um
produziu
um
volumes, chamado
de Criminalistique
e, emTraité
1918,de
descreveu doze pontos
monumental
trabalho Traité
de sete
volumes, chamado
característicos
a identificação
de impressões
digitais. Edmond Locard conCriminalistique
e, para
em 1918,
descreveu doze
pontos característicos
tinuou
a sua pesquisa
até a sua
morte,Edmond
em 1966.
para
a com
identificação
de impressões
digitais.
Locard
continuou com a sua pesquisa até a sua morte, em 1966.
Fonte: http://fdaf.org/jtissot/jt_locard.htm
Fonte: http://fdaf.org/jtissot/jt_locard.htm