Referências

Transcrição

Referências
ISSN 1983-0874
977198308700 5
Revista da IENH
Volume 03 - N° 03 - Fevereiro de 2009
VISÃO
Ser um pólo educacional de referência no Rio
Grande do Sul pela qualidade, responsabilidade
social e inovação.
MISSÃO
Promover educação de qualidade através da
construção, produção e socialização do saber, com
base nos princípios cristãos, para atuar numa
sociedade em transformação.
VALORES E PRINCÍPIOS
DIGNIDADE: atuação com ética, responsabilidade
social e respeito à pluralidade.
QUALIDADE DE ENSINO: conhecimento, inovação
e empreendedorismo.
REFERENCIAL LUTERANO: vivência cristã, amor e
cooperação.
JUSTIÇA: exercício da cidadania consciente.
VALORIZAÇÃO DAS PESSOAS: integralidade,
comprometimento e qualificação para o
desenvolvimento humano.
AUTO-SUSTENTABILIDADE: criatividade, gestão
integrada e melhoria contínua.
NOSSO FOCO
Educação
Criar espaços permanentes de visibilidade para a produção
científica de profissionais da educação, alunos e comunidade em
geral, tem sido desafio permanente das instituições de ensino
preocupadas com a melhoria constante da educação no cenário
brasileiro.
Com este intuito, a Revista Espaço Dialógico da IENH se
consolida com um conjunto diversificado de temas abordados,
oportunizando a socialização do saber e, principalmente, o incentivo
à pesquisa e à escrita.
Se por um lado o incentivo à formação contínua deve ser uma
tônica permanente nas Instituições, criar espaços de divulgação do
saber motiva a produção e a pesquisa. Provocando desta forma a
interação dialógica do escritor e do leitor.
O resultado objetivo desta corrente está na ampliação do número
dos profissionais em formação, a maior motivação para a pesquisa e
a qualidade do conteúdo dos artigos produzidos.
O ganho deste processo de produção acontece em sala de aula,
com professores mais motivados, alunos mais críticos e uma
conseqüente melhora na qualidade da educação.
DIRETORIA
Presidente
Sílvio Paulo Klein
Administração e Finanças
Afonso Licório Fröhlich - Clarel Selbach
Patrimônio
Márcio Fernando Fritz - Valdir Ivan Laux
Ensino e Relações Comunitárias
Sérgio Mylius e Sandro Rafael Decker
Assuntos Estratégicos
Marcelo Clark Alves - Marcos Sebastião Baum
Vogais
Otair Leite da Silva - Hardy Brandeburg - Leandro
Osmar Heldt Hennemann
Conselho Fiscal
Titulares: Jairo Elenor Reinheimer - Jacson Drews Geraldo dos Santos
Suplentes: Raul Cassel - Carlos Helberto Zwetsch Raul Oscar Hartmann
DIREÇÃO GERAL
Seno Leonhardt
VICE-DIREÇÃO DE EDUCAÇÃO BÁSICA
Déborah Cassel
COORDENAÇÃO DE GESTÃO
Paulo Roberto Prade
Outro objetivo cada vez mais consolidado desta revista está em
propiciar ao leitor temas variados, ampliando o campo de leitura e
conhecimento; e desta forma não limitando a oportunidade a uma
área específica. Considerando assim de suma importância uma visão
holística do cenário educacional e mundial.
Nesta variedade de temas que trata esta revista, desde a
organização universitária até temas específicos da sala de aula da
educação básica, estão todos convidados a apreciar este espaço de
interação e, por outro lado, desafiados a serem produtores de artigos
para as futuras edições, nesta dinâmica permanente do mundo do
conhecimento.
Seno Leonhardt
Diretor Geral da IENH
SUMÁRIO
04 Um breve olhar sobre a importância das narrativas em casa e na escola
07
A autonomia de jovens aprendizes na aquisição de língua inglesa através
de centros de auto-acesso
10
O estudo da organização universitária no âmbito da relação
Universidade-Empresa
14
Os contos de fadas e o palco da vida
17
O brasil cabe em um sítio: um olhar sobre as representações das “entidades”
nacionais nas versões literária e televisiva de Memórias de Emília, de
Monteiro Lobato
23 A avaliação institucional: modalidades e significados
26 Heterogeneidade mostrada e constitutiva: o outro no e do discurso
32 Leitura em sala de aula: um ato enunciativo
Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores.
CONSELHO EDITORIAL
Cezar Miguel Monteiro da Silva
Júlio Cézar Adam
Poliana Fraga
Sabrina Vier
Seno Leonhardt
CORREÇÃO
Edivania da Costa Ramos
EDITORAÇÃO
Assessoria de Comunicação IENH
Revista Espaço Dialógico - v. 03, n. 03, fev. 2009
TIRAGEM
1000 exemplares
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
UM BREVE OLHAR SOBRE A IMPORTÂNCIA DAS
NARRATIVAS EM CASA E NA ESCOLA¹
Cristiane Ely Lemke*
Resumo
Este artigo traz questões sobre o papel da narrativa para o desenvolvimento da linguagem, fazendo uma retrospectiva de
alguns estudos sobre o assunto. Traz à tona a importância das práticas narrativas, tanto em casa quanto na escola, para o
desenvolvimento lingüístico e a ampliação do conhecimento de mundo das crianças.
Palavras-chave:
Narrativa. Discurso. Aquisição de língua.
Introdução
E
ste artigo traz uma revisão teórica, assim como
reflexões acerca do papel da narrativa para o
desenvolvimento da linguagem e também das
identidades. Primeiramente, trataremos sobre a
importância das narrativas para a construção das
identidades. Em seguida, nos voltaremos para o seu papel
no desenvolvimento da linguagem e nas situações de
aprendizagem, trazendo reflexões sobre o papel da escola e
da família nesse âmbito. Finalizaremos, discutindo o que,
além de língua, pode-se aprender através das práticas
narrativas.
1 Narrativas de vida, vidas de narrativa
ESPAÇO DIALÓGICO
04
Nossa vida é, com certeza, construída através de
narrativas. Bruner (1987) faz uma analogia com a famosa
citação de Aristóteles - A arte imita a vida - e diz que “A
narrativa imita a vida e a vida imita a narrativa” (Bruner,
1987, p. 691-2). Assim, nos construímos e criamos nossa
identidade através dos nossos discursos, que, “não
somente refletem ou representam as entidades e relações
sociais, eles as constroem ou constituem” (Fairclough,
1992, apud Moita Lopes, 2001, p. 59). As práticas
narrativas são, de acordo com Moita Lopes (2001), uma
das práticas discursivas mais exploradas nas pesquisas
sobre discurso e identidades sociais, pois nos revelamos
através das narrativas que contamos. Tal afirmação
permite-nos retomar Bruner quando diz que, “nos tornamos
as autobiografias narrativas pelas quais contamos nossas
vidas” (1987, p. 15).
Facilmente percebemos que estamos cercados por
narrativas e que elas constituem parte importante de quem
somos ou de como gostaríamos que os outros nos vissem.
Estamos constantemente narrando e, muitas vezes, nem
nos damos conta disso. Histórias das mais variadas vêm à
tona quando alguém nos conta uma. Quase que de
imediato, lembramo-nos de algo que também gostaríamos
de contar: uma narrativa puxa a outra. E assim, passamos
nossos dias contando histórias sobre nós mesmos, sobre as
pessoas que nos cercam, sobre os acontecimentos ao
nosso redor, entre tantas outras possibilidades.
Destacamos outra vez o fato de que, ao narrarmos,
construímos também nossas identidades. Como diz Bastos,
“nessa atividade de narrar, não apenas transmitimos o
sentido de quem somos, mas também construímos
relações com os outros e com o mundo que nos cerca”
(2005, p. 74). Através das narrativas, vamos fazendo
sentido do mundo e das pessoas, assim como também
vamos estabelecendo relações com quem ouve ou nos
conta a história. Nesse discurso construído ao narrarmos,
quando as pessoas constroem a si mesmas e aos outros,
são também estabelecidas relações de poder, de direitos e
deveres, de controle, pois contar uma história “é também
uma forma de controlar e manipular a realidade e os
interlocutores” (Moita Lopes, 2001, p. 63). Quem tem o
direito de narrar? Por que algumas narrativas são ratificadas
e outras não chegam ao fim? Como tomar o turno para
narrar? São questões que envolvem os direitos e deveres
dos participantes e constroem as identidades das pessoas
envolvidas.
* Titulação: Mestranda em Lingüística Aplicada, Especialista em Língua Inglesa.
Área de atuação: Professora de Língua Inglesa da IENH.
NOTA ¹ Este texto foi escrito a partir de reflexões feitas na disciplina Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem, no Mestrado
em Lingüística Aplicada (UNISINOS). Agradecimentos à professora Dra. Cátia Fronza pela revisão e sugestões.
Como as narrativas estudadas por Labov foram
contadas em situação de entrevistas, surgiu o interesse de
se estudar como se caracterizariam as narrativas
produzidas em situações de interação face-a-face. Foi
então que Sacks (1972) passou a olhar para as narrativas
em fala espontânea, buscando ver como se situam na
seqüência conversacional, refletindo sobre qual o trabalho
exigido no ato de contar uma história, como envolver os
participantes, como obter um turno mais longo para narrar
e, de um modo geral, como se constitui a negociação que
envolve o ato de narrar.
Outros estudos se voltaram para o papel da narrativa
no desenvolvimento da linguagem e nas situações de
aprendizagem. Estudos analisados por Heath (2001)
apontam para as conseqüências dos diferentes tipos de
contato com histórias em diferentes comunidades e o
reflexo disso na escola. A referida pesquisa aponta para o
fato de que “poucos pais estão conscientes do que a
contação de histórias antes de dormir representa como
meio de preparação para os tipos de aprendizagem e
exposição de conhecimentos esperados na escola” (2001,
p. 319. Tradução minha). O relato sobre duas comunidades
bem distintas, Roadville e Trackton, como apresentado pelo
estudo, leva-nos a perceber que as práticas de letramento
desenvolvidas anteriormente à entrada das crianças na
escola têm forte relação com seu desempenho escolar.
Heath (op. cit.) também salienta que a escola, muitas
vezes, valoriza apenas um tipo de prática narrativa (fazendo
perguntas sobre o que está acontecendo, através de whatquestions, por exemplo, sem incentivar os alunos a
refletirem sobre as razões para aquilo estar acontecendo),
deixando de explorar um universo muito rico ao seu dispor,
como o raciocínio crítico.
O padrão apresentado por Heath (op. cit.) sobre as
rotinas de contação de histórias aponta para alguns tipos de
atividade e perguntas freqüentemente feitas por pais e
professores. Uma das práticas que as crianças
normalmente aprendem durante esses momentos são as
atividades de nomeação ou etiquetação (labeling), quando
respondem a perguntas como “O que é isto?”, “Quem é
aquele?”, por exemplo. Outro estágio seria o de whatquestions, em que as crianças respondem a perguntas
referentes ao que está acontecendo na história. Essas
perguntas são também freqüentes na escola. De acordo
com a autora (op. cit.), é importante que as perguntas feitas
possam passar para os estágios de reason-explanation
(explicações sobre o motivo) e affective commentaries
(comentários afetivos), pois permitem que as crianças
sejam incentivadas a pensar no motivo (ou motivos) pelo
qual um determinado acontecimento ocorreu na história e
nas suas conseqüências, em mudanças se um aspecto
fosse modificado ou acontecesse de forma diferente. Além
disso, é necessário, como reforça Heath (op. cit.), motivar
os alunos a refletir sobre sua opinião em relação à história,
já que esses dois últimos estágios são, em muitos casos,
pouco explorados tanto em casa quanto na escola.
Blok (1999) faz um apanhado dos estudos sobre os
efeitos de se ler para as crianças em ambientes
educacionais. Um dos aspectos apresentados por esse
autor diz respeito à interação verbal.
Uma criança desenvolve suas habilidades lingüísticas
através da linguagem que lhe é oferecida. Dois extremos
precisam ser distinguidos: a língua que é dirigida à criança
em uma situação de interação e a língua que a criança
apreende do ambiente, mas que não é diretamente
dirigida a ela. As pesquisas sugerem que a primeira, a
situação de interação, é de maior importância que a
segunda, a língua do ambiente. Para dizer de outra forma,
as interações verbais são a chave para o desenvolvimento
da linguagem (1999, p. 349. Tradução minha.).
O autor coloca, assim, a interação como um elemento
essencial para a aquisição da linguagem, posição da qual
compartilhamos. Ele traz ainda a importância da interação
durante os momentos de contação de histórias e distingue
dois tipos de atividades: “talking with the child” (falando
com a criança) e “talking to the child” (falando para a
criança), nomeando esses estilos como “interactive reading
style” (estilo de leitura interativo) e “passive reading sytle”
(estilo de leitura passivo), respectivamente. O autor,
contudo, manifesta sua preferência pelo primeiro tipo.
Neste tipo de leitura/interação, criam-se também
oportunidades de andaimento, quando o “leitor apóia a
criança na reconstrução do significado, o que ainda não
consegue fazer independentemente” (Blok, 1999, p. 350.
Tradução minha). Quando incentivamos nossos/as filhos/as
e alunos/as a participarem durante a contação de histórias,
estamos possibilitando situações para o desenvolvimento
do raciocínio crítico. Cabe a nós, então, o papel de
instigadores nesse processo para que as perguntas e
comentários direcionados a eles possam ser aprofundados
com o passar do tempo.
Mas não é só língua que se aprende através de
histórias. Os propósitos de se contar uma história são
muitos, como apresentados por Wajnryb (2007). A autora
salienta os valores morais, culturais, didáticos, de
entretenimento, enfim, mostra a história como um meio de
ensinar e aprender. Apresenta também o papel das histórias
05
ESPAÇO DIALÓGICO
Os estudos sobre narrativa vêm sendo amplamente
explorados, tendo como seus principais pesquisadores
Jerome Bruner e William Labov. Labov e Waletzky (1967)
foram responsáveis por estudar a estrutura da narrativa,
explicitando seus componentes. Esse estudo foi produzido
a partir de entrevistas sociolingüísticas, quando o
entrevistado era incentivado a contar histórias, pois os
pesquisadores acreditavam que, ao narrar, os entrevistados
se envolveriam mais com o tópico e não controlariam tanto
sua fala, deixando que esta fluísse mais naturalmente.
como meio de ensinar língua, especificamente uma
segunda língua, já que a língua em si é o material do qual
uma história é feita. No caso da língua estrangeira,
podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo: temos a
chance de ensinar a língua em si e de contribuir com a
aprendizagem de valores, culturas, entre outros aspectos,
através da língua em que a história está sendo contada. A
autora (op. cit.) ainda faz uma relação com as condições de
aprendizagem postuladas por Willis (1996), mostrando que
todas as características essenciais defendidas por esta
autora para a aquisição da linguagem estão presentes em
uma contação de história. Conforme Willis (1996 apud
Wjanryb, 2007, p. 6), “o que é essencial é que o aprendiz
tenha exposição à língua acessível, tenha oportunidade de
usar a língua e tenha a motivação para aprender”. O texto
da história seria o provedor de insumo compreensível, ou
seja, em uma linguagem que esteja ao alcance do aprendiz.
Aqui se insere também o papel do professor, pois deve ser
capaz de levar em consideração o seu interlocutor e fazer os
ajustes necessários para sua compreensão, mas, ao
mesmo tempo, não facilitando demais, evitando que a
tarefa se torne muito simples e sem nenhum desafio.
Wajnryb (op. cit.) levanta a questão sobre contar ou ler a
história, chamando a atenção para o fato de que, ao contar,
podemos fazer esses ajustes necessários, sejam na fala,
através de iniciação de reparo e outros elementos que se
manifestam durante as interações lingüísticas. O uso da
língua, é essencial para a aquisição, também pode ser
desenvolvido durante, antes ou após a contação. Isso não
significa que toda a história precise necessariamente
percorrer esse caminho, uma vez que podemos sim contar
histórias com o intuito de apenas expor crianças e alunos/as
a insumo compreensível. No entanto, a exploração da
história e mesmo a interação que acontece durante a
contação já são oportunidades para se usar a língua. O
último, mas não menos importante elemento apontado por
Willis (op. cit.), a motivação, explica-se por si mesmo. As
histórias captam nossa atenção, fazem-nos viajar por um
mundo de fantasias e estão presentes diariamente em
nossas vidas. A fim de reforçar o que recém destacamos,
voltamo-nos a Wajnryb (2007, p. 8): “usar histórias na sala
de aula é tanto uma maneira natural de ensinar coisas em
geral quanto uma maneira particularmente eficaz de
ensinar língua”.
Considerações finais
Para finalizar, embora muito ainda possa ser dito,
precisamos dizer que, mesmo que os diferentes autores
citados anteriormente pareçam, por vezes, tão distantes
uns dos outros, interconectam-se ao falarem da narrativa
como um evento inerente à vida humana, sob uma
perspectiva de construção de identidades e língua. Que
possamos, como pais e educadores, fazer uso desse
“instrumento” poderoso que se encontra à nossa
disposição para ensinar e, por que não, aprender com
nossos interlocutores, num processo de co-construção da
narrativa.
Referências
BASTOS, Liliana Cabral. Contando estórias
em contextos espontâneos e institucionais:
uma introdução ao estudo da narrativa.
Calidoscópio, v. 3 (2): 74-87, 1995.
BLOK, Henk. Reading to Young Children in
Educational Settings: A Meta-Analysis of
Recent Research. Language Learning: a
journal of research in language studies,
Malden, v. 49, n. 2, p. 343 371, abr./ jun.
1999.
BRUNER, Jerome. “Life as narrative”. Social
Research, n. 54, p. 11-32, 1987.
ESPAÇO DIALÓGICO
06
FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and
Social Change. Cambridge, Polity Press.
1992.
HEATH, Shirley Brice. What no bedtime stories
mean: narrative skills at home and school. In:
DURANTI, A. (Org.) Linguistic Anthropology:
a reader. Oxford: Blackwell. p. 318-342,
2001.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Práticas narrativas
como espaço de construção das identidades
sociais: uma abordagem socioconstrucionista.
In: TELLES RIBEIRO, Branca; COSTA LIMA,
Cristina; e LOPES DANTAS, Maria Tereza (Orgs.).
Narrativa, Identidade e Clínica. Rio de
Janeiro: Edições IPUB/CUCA. p. 55-71, 2001.
LABOV, William e WALETSKY, J. Narrative
Analysis: oral versions of personal experience.
In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and
visual arts. Seattle, University of Washington
Press, p. 12-14, 1967.
SACKS, Harvey. On the analyzability of stories by
children. In: GUMPERTZ, J. e Hymes, D. (Orgs.),
Directions in Sociolinguistics. The
Etnography of Communication. Oxford/ New
York, Basil Blackwell, p. 325-345, 1972.
WILLIS, Jane. A framework for task-based
learning. England: Addison Wesley Longman
Limited, 1996.
WAJNRYB, Ruth. Stories. 2nd ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2007.
A AUTONOMIA DE JOVENS APRENDIZES NA AQUISIÇÃO
DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE CENTROS DE
AUTO-ACESSO
Daniele Blos*
Resumo
Pensando em indivíduo autônomo como “autor do seu próprio mundo” (Pennycook, 1997) e acreditando que a autonomia, vista
como um objetivo educacional, implica um tipo particular de socialização envolvendo o desenvolvimento de atributos e valores que
irão permitir que os indivíduos atuem de forma participativa e ativa na sociedade democrática (Benson, 2007), quer-se, com o
presente artigo, fazer uma revisão bibliográfica de questões pertinentes à conceituação de autonomia na aquisição de uma segunda
língua. Acredita-se que o indivíduo é autônomo por natureza e que essa autonomia pode ser aproveitada por propostas pedagógicas
que a estimule, como, por exemplo, através do auto-acesso.
Palavras-chave:
Autonomia. Auto-acesso. Aquisição. Língua.
M
uito se tem falado sobre a autonomia na
Aquisição de Segunda Língua (ASL) por
aprendizes adultos em diferentes contextos,
dentre eles, o acadêmico (Fernandes, 2005; Nicolaides,
2003). Pouco ainda se fala, nos dias de hoje, sobre a
autonomia na ASL por jovens aprendizes. Esse fato talvez se
deva à conceituação feita por alguns autores, os quais afirmam
que, na aprendizagem autônoma, o aprendiz deve assumir a
responsabilidade de determinar objetivos, conteúdo, ritmo,
método de sua aprendizagem, assim como monitorar seu
progresso e avaliar resultados (HOLEC, 1981, p. 3), ou ainda,
quando afirmam que o desenvolvimento da autonomia
depende do exercício da capacidade de reflexão crítica,
tomada de decisão e ação independente (LITTLE, 1991, p. 4).
Quando se pensa em jovens aprendizes, parece difícil delegálos tamanha responsabilidade e liberdade, porquanto estamos
diante de indivíduos que estão iniciando suas atividades
intelectuais. No entanto, estudando sobre a referida
autonomia, é possível verificar que qualquer pessoa inserida
em contexto educacional específico, pode sim desenvolvê-la e
aplicá-la a sua aprendizagem. Nesse sentido, Nicolaides
discorre que,
Em princípio, todo o ser humano é autônomo, tanto que é
capaz de aprender milhares de tarefas ao longo de sua
vida e acaba por ser capaz de fazê-las um dia sem a ajuda
de outro. Na aprendizagem de línguas não pode ser
diferente; ela se dá por meio da interação social. (2003, p.
180)
Nesse artigo, primeiramente será apresentada uma
revisão teórica acerca do conceito de autonomia e sua
aplicabilidade no contexto educacional das séries iniciais, com
jovens aprendizes. Em seguida, esse conceito será relacionado
com outros conceitos importantes da área da educação, mas
especificamente dentro de um currículo bilíngüe e será
apresentada então uma proposta de como desenvolver a
referida autonomia através de uma proposta pedagógica que
tem tal objetivo. Finalizamos com uma reflexão acerca das
evidências dos benefícios trazidos pelo desenvolvimento da
autonomia à educação.
1 Referencial teórico
O conceito de autonomia pode ser pensando em três
níveis, a saber: mais geral, na vida do indivíduo, na
aprendizagem e mais especificamente na aprendizagem de
língua. Phil Benson¹ afirma que autonomia diz respeito a
pessoas tomando mais controle de suas vidas, individual e
coletivamente. Já autonomia na aprendizagem trata das
pessoas tomando mais controle de sua aprendizagem dentro e
fora das salas de aula e, finalmente, autonomia na
aprendizagem de língua trata das pessoas tomando mais
controle dos objetivos pelos quais aprendem línguas e as
maneiras como elas as aprendem. Dessa forma, é sim
possível que, desde cedo, as crianças já participem da
tomada de decisão quanto aos objetivos e métodos de
aprendizagem. Parece existir um temor por parte dos
docentes, que por vezes confundem autonomia com
liberdade total, o que pode significar a perda de controle da
situação de aprendizagem por parte do professor. Ainda,
pode haver confusão entre autonomia e independência e
* Titulação: Mestranda em Lingüística Aplicada.
Área de atuação: Professora de Língua Inglesa na IENH.
NOTA ¹ <http://ec.hku.hk/autonomy/what.html> Acesso em: 29 novembro 2007.
07
ESPAÇO DIALÓGICO
Introdução
disso, novamente, alguns professores poderão pensar que
seus jovens alunos não são independentes a ponto de assumir
tal responsabilidade sobre sua aprendizagem. Dickinson
(1993) em seu artigo Learner autonomy: what, why and how?
diz o que autonomia não é. Ela não é uma licença para se
comportar sem restrições, ela não é uma questão de cenário
físico de aprendizagem específico, assim como ajudar os
aprendizes a tornarem-se autônomos não é uma ameaça à
função do professor. Little (1990) também faz restrições sobre
o que autonomia não vem a ser. Ela não é um sinônimo de
auto-instrução, não é limitada ao aprendizado sem professor e
não pressupõe abdicação de responsabilidade por parte do
professor. Tendo em vista essas restrições do que autonomia
não é, parece que fica mais fácil relacioná-la a situações que
envolvam a aprendizagem por jovens/crianças. Da mesma
forma, Nunan (1997) afirma que existem graus de autonomia
e que o potencial do aprendiz para alcançar diferentes graus
depende de sua personalidade, objetivos, filosofia institucional
e contexto cultural. Assim sendo, jovens aprendizes
desenvolverão sua autonomia na ASL em graus diferentes de
adultos e diferentes entre si, pois possuem personalidades e
objetivos diferentes e estão inseridos em diferentes contextos.
À medida que autonomia tornou-se um conceito mais
presente em contextos educacionais, ela começou a interagir
com outros conceitos importantes da área, que incluem
estratégias de aprendizagem, motivação, diferenças
individuais, teoria sociocultural e desenvolvimento do
professor (BENSON, 2007, p. 28). Pensando na interação de
tais conceitos e em um contexto específico de ASL, uma escola
de currículo bilíngüe português/inglês, é possível propor uma
estratégia de aprendizagem abordada por diversos teóricos da
área, que tende a motivar jovens aprendizes por sua
dinamicidade e que respeita as diferenças individuais, pois,
segundo Nunan (1997), proporciona o desenvolvimento da
autonomia em diferentes graus, respeitando as
personalidades e objetivos diferentes de cada aprendiz, mas
dentro de um contexto específico: currículo bilíngüe. A
estratégia em questão são os centros de auto-acesso, assunto
a seguir.
2 Discussão e reflexão
ESPAÇO DIALÓGICO
08
Os centros de auto-acesso (SACs) oferecem
oportunidade de aprendizado da língua que não são possíveis
em lições formais. Nesse momento, oportuno ressaltar o que
se entende por SAC neste artigo. Métodos que auxiliam os
alunos a mover de dependência do professor em direção à
autonomia são descritos em vários termos, dentre eles:
aprendizado autodirecionado, auto-instrução, aprendizado
independente e aprendizado por auto-acesso. Além dessa
gama de terminologias dentre os métodos que proporcionam o
desenvolvimento da autonomia, existem diferentes
entendimentos pelos autores da área sobre a definição de
auto-acesso. O presente artigo não tem por finalidade analisar
exaustivamente tais discussões teóricas, mas sim discorrer
sobre o entendimento do auto-acesso dentro do contexto
proposto, razão pela qual a proposta de auto-acesso a seguir
decorre da oportunidade proporcionada pelo contexto de
currículo bilíngüe em que as crianças/jovens aprendizes estão
em contato com a língua inglesa (segunda língua em questão)
diariamente. Dessa forma, é possível organizar momentos de
auto-acesso para que os aprendizes possam exercitar sua
autonomia e buscar soluções para sua aprendizagem de
língua.
Os centros de auto-acesso podem ser definidos como
práticas didáticas que colaborem para o desenvolvimento de
autonomia. É evidente que a implementação de centros de
auto-acesso não desenvolve necessariamente a autonomia se
não for pensada com tal objetivo. A implementação precisa
envolver os alunos em todas as suas etapas. Também como
Benson (2007) afirma, a autonomia depende dos contextos de
aplicação. Pensa-se que uma escola/um professor que adota o
desenvolvimento da autonomia como filosofia e envolve seus
alunos no processo, terá chances de, através do auto-acesso,
alcançar esse objetivo. De acordo com Gardner & Miller (1999)
auto-acesso é flexível, uma vez que pode ser usado em grande
ou pequena escala, ser conduzido em uma sala de aula, em
um centro dedicado ao auto-acesso ou outros lugares, ser
incorporado dentro de um curso/currículo, ou pode ser usado
por alunos que não estejam freqüentando curso algum, bem
como pode funcionar para diferentes níveis, permite níveis
diferentes de independência, individualização ou grupos.
Ademais, o auto-acesso não é específico para uma cultura ou
idade, podendo beneficiar todos os aprendizes de uma
segunda língua.
Dentro do contexto em questão, a proposta é que autoacesso aconteça em sala de aula, em momentos pré-definidos
e organizados de comum acordo com os aprendizes, dentro do
currículo proposto, nas diferentes séries, proporcionando ao
aluno a possibilidade de escolher entre uma gama de
atividades pré-estabelecidas e organizadas, que possibilitam o
desenvolvimento das diferentes habilidades (escuta, fala,
leitura e escrita) e o trabalho individual ou em grupo. Nesse
sentido:
The choice for learners in a SAC is clear. They select from a
range of materials and decide how long to spend on each;
they also decide whether or not to ask for assistance. It is
worth noting, though, that they can choose from what has
already been purchased for them (Reinders & Lewis,
2008, p. 206)
Reinders & Lewis bem lembram que os aprendizes no SAC
selecionam o material e o tempo dedicado às tarefas, assim
como decidem se precisam ou não de assistência. No entanto,
essa seleção se faz dentre materiais já adquiridos para eles. Na
proposta em questão, alguns materiais são adquiridos e outros
elaborados especificamente para as propostas. Gardner &
Miller (1999) exemplificam algumas propostas para jovens
aprendizes desenvolverem suas habilidades da segunda língua
através de auto-acesso. Para esses jovens, a aprendizagem se
torna divertida, pois, por vezes, podem ser incluídos nesses
centros jogos que proporcionem a interação e reflexão quanto
a tópicos de linguagem. Além disso, os centros proporcionam
prática extra e, quando casados com atividades elaboradas
sob medida para os aprendizes, podem focar aspectos que
necessitam de revisão, mais prática, melhor apropriação,
dentre outros. Nesse caso, o aluno começa desde cedo a
exercitar sua capacidade de detectar dificuldades e trabalhar
para aperfeiçoá-las.
Quando se pensa em aprendizagem de língua estrangeira
(LE) na escola regular, muitas questões vêm à tona: falta de
espaço para LE na grade curricular, grande número de alunos,
(de tal forma que impossibilite propostas individualizadas),
materiais didáticos distantes da realidade, docentes com
preparo acadêmico deficiente (NICOLAIDES, 2003). O
contrário ocorre no currículo bilíngüe, uma vez que tais
restrições inexistem, pois há amplo espaço para LE na grade
curricular, o número de alunos por sala é pré-estabelecido, os
materiais didáticos são selecionados pelos participantes do
ato de ensino / aprendizado (professor), ou por eles elaborados
e há estímulo para a constante formação acadêmica do
docente. Essas condições específicas do contexto favorecem
propostas como auto-acesso. Válido lembrar, ainda, que a
concepção de autonomia perpassa com freqüência os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira
(PCN). Nos PCN (1997), a autonomia é tomada ao mesmo
tempo como capacidade a ser desenvolvida pelos alunos e
como princípio didático geral, orientador das práticas
pedagógicas, sendo esse último concebido como:
[...] uma opção metodológica que considera a atuação do
aluno na construção de seus próprios conhecimentos,
valoriza suas experiências, seus conhecimentos prévios, e
a interação professor-aluno e aluno-aluno, buscando
essencialmente a passagem progressiva de situações em
que o aluno é dirigido por outrem a situações dirigidas pelo
próprio aluno. (1997, p. 94)
Considerações finais
Existem fortes evidências que, cada vez mais, autonomia
é um valor buscado pelo sistema educacional e que pode e
deve ser estimulado desde cedo, já na educação infantil.
Tomando o indivíduo autônomo como “autor do seu próprio
mundo” (Pennycook, 1997), vê-se o desenvolvimento da
autonomia na aprendizagem com um objetivo maior, ou seja,
como um caminho para que a autonomia do indivíduo possa
ser entendida a outras áreas de sua vida. Como Crabbe (1993)
ensina, o indivíduo precisa ser livre para fazer suas próprias
escolhas. Portanto, proporcionar na sala de aula de língua
estrangeira oportunidades para tais escolhas pode colaborar
para que a autonomia seja estendida a outras situações da
vida do aprendiz. Acredita-se que auto-acesso seja uma forma
de fazer isso. Tal metodologia irá, além de contribuir para a
aquisição de LE, proporcionar a autonomia do indivíduo.
É evidente que tais questões necessitam de maior estudo
e discussão, haja vista a amplitude do tema abordado nesse
artigo. Por isso cabe sugerir, como continuidade para
compreensão do assunto, analisar esses momentos de autoacesso com mais detalhe, isto é, buscando entender seus
participantes e as implicações dessa metodologia em sua
aprendizagem, bem como em outras esferas de suas vidas.
Referências
BENSON, Phil. What is autonomy? Disponível
em: <http://ec.hku.hk/autonomy/what.html>
Acesso em: 29 novembro 2007.
CRABBE, David. Fostering autonomy from within
the classroom: the teacher's responsibility. In:
System, vol. 21, n. 4. Great Britain: Pergamon
Press, 1993.
DICKINSON, Leslie. Learner Autonomy: what, why
and how? IN: LEFFA, Vilson. Autonomy in
Language Learning. Porto Alegre: UFRGS,
1993.
FERNANDES, Vera. As crenças e a práxis de
professores de língua inglesa em formação e
o aprendizado autônomo. Porto Alegre, 2005.
aprox. 205 p. Apresentada como tese de
doutorado, UFRGS, 2005.
GARDNER, David & MILLER, Lindsey.
Establishing self-access: from Theory to
Practice. Cambridge: Cambridge University
Press, 1999.
HOLEC, Henri. Autonomy in Foreign Language
Learning. Oxford: Pergamon, 1981.
LITTLE, David. Learner autonomy Definitions,
issues and problems. Dublin: Authentik, 1991.
LITTLE, David. Autonomy in Language Learning.
IN: GATHERCOLE (ed.). Autonomy in Language
Learning. London: CILT, 1990.
NICOLAIDES, Christine S. A busca da
aprendizagem autônoma de língua estrangeira
no contexto acadêmico. Porto Alegre, 2003.
aprox. 205 p. Apresentada como tese de doutorado,
UFRGS, 2003.
NUNAN, David. Designing and adapting materials
to encourage learner autonomy. IN: BENSON,
Phil & VOLLER, Peter (eds). Autonomy and
Independence in Language Learning. London,
Longman, 1997.
Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução aos
parâmetros curriculares nacionais Secretaria de
Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1997.
PENNYCOOK, Allaistar. Cultural Alternatives and
Autonomy. IN: BENSON, Phil & VOLLER, Peter
(eds). Autonomy and Independence in Language
Learning. London, Longman, 1997.
REINDERS, Hayo & LEWIS, Marilyn. Materials
evaluation and teacher autonomy. IN: LAMB, Terry &
REINDERS, Hayo (eds). Learner and Teacher
Autonomy: Concepts, realities and responses.
Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins
Publishing Company, 2008.
09
ESPAÇO DIALÓGICO
BENSON, Phil. State-of-the-art article. Autonomy
in language teaching and learning. In:
Cambridge Journals, Cambridge, vol. 40, 2007.
O ESTUDO DA ORGANIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA
NO ÂMBITO DA RELAÇÃO UNIVERSIDADE-EMPRESA
Dusan Schreiber*
Resumo
As universidades ocupam-se essencialmente de três funções distintas entre si: ensino - pesquisa - extensão. Distintas,
mas complementares, de acordo com as tendências de interdisciplinaridade e de concepção holística dentro do papel que
devem representar na comunidade. Não deixando de perceber a Universidade como uma organização com objetivos a atingir e
de produzir resultados, independente de ser pública ou privada, é pertinente estudar se as estruturas atualmente existentes
nas organizações universitárias atendem a necessidade de interação das três funções de ensino com o mercado. Este estudo
se faz mister em virtude da crescente competitividade entre as instituições de ensino superior no Brasil, face à expansão da
rede de estabelecimentos de ensino superior nos últimos anos, que obrigará as instituições de ensino superior a buscar cada
vez maior qualificação na oferta de produtos e serviços à sociedade. Essa qualificação passa necessariamente pela
qualificação de estruturas organizacionais atuais.
Palavras-chave:
Universidade. Empresa. Inovação.
Introdução
T
radicionalmente, as universidades têm
desempenhado duas funções principais:
formação e treinamento de pessoal qualificado e
geração e aumento do estoque de conhecimento através da
realização de atividades de pesquisa independentes.
A primeira dessas missões não causa controvérsia,
pois se refere à transmissão de conhecimento formal,
transferência e aquisição de habilidades, métodos e
técnicas específicos e, inclusive, estabelecimento de redes
de contatos profissionais que são cruciais para as
atividades empresariais [Pavitt (1997) e Nelson e
Rosenberg (1993)].
Entretanto, a exploração e a aplicação comercial de
resultados das atividades de pesquisa desenvolvidas em
universidades constituem o ponto central da corrente
disputa sobre as funções das Universidades. A orientação
dessas atividades varia consideravelmente (Vedovello,
2001), dependendo dos propósitos da Universidade como
instituição, bem como da disponibilidade de recursos
humanos e materiais - expertise acadêmica, recursos
financeiros, laboratórios e equipamentos que permitam à
instituição alcançar seus objetivos.
ESPAÇO DIALÓGICO
10
Isso não significa, entretanto, que universidades não
possam empreender pesquisas com objetivos mais
pragmáticos. Certas áreas e disciplinas acadêmicas são
explicitamente orientadas para a aplicação, tais como as
engenharias, as ciências dos materiais, as ciências da
computação (Nelson e Rosenberg, 1993). Pesquisas
desenvolvidas por cientistas sociais, vinculadas à gestão,
ao direito, às línguas, também podem provocar um impacto
direto junto ao setor produtivo (Goddard, 1997). Para esse
grupo de disciplinas, pode ocorrer a transferência de ao
menos parte do estoque de conhecimento gerado por meio
de pesquisas acadêmicas, o qual pode ser utilizado pelas
empresas nos seus processos de inovação ou na melhoria
de produtos e processos já existentes e nas técnicas de
gestão.
As empresas, por outro lado, objetivam o aumento dos
lucros, a manutenção e expansão de suas posições de
mercado e desempenho econômico. A atividade de P&D é
um dos possíveis inputs utilizados na busca por soluções
técnicas ou implementação de inovações de produto e/ou
processo. Mesmo em um contexto no qual a inovação tem
se tornado crescentemente dependente da exploração
comercial do conhecimento (Gibbons, 1992), as empresas
geralmente empreendem atividades de pesquisa em bases
de curto prazo e em combinação com outras atividades tais como design, desenvolvimento, testes e produção
[Pavitt (1997) e Nelson e Rosenberg (1993)].
* Titulação: Mestre e Doutorando em Administração, Especialista em Administração Financeira e
Consultoria Empresarial, Graduado em Administração de Empresas - Habilitação Comércio Exterior.
Área de atuação: Atualmente, é Diretor da South Konsult - Consultoria Empresarial Ltda. Na IENH, é
Coordenador de Estágios, Coordenador do Núcleo de Assessoria e Desenvolvimento Empresarial NADE, Coordenador da Assessoria de Relações Institucionais - ARI, Coordenador de Extensão,
Professor da Faculdade e do Centro de Educação Profissional - CEP.
Infelizmente, de acordo com a literatura, a interação
Universidade-empresa é ainda um assunto pouco resolvido
no Brasil (Dagnino, 2003; Vedovello, 2001; Schreiner,
2001). Segundo o Schreiner (2001) as causas do relativo
insucesso devem ser procuradas na nossa história. Ciência
e pesquisa são feitas nas Universidades e em alguns
institutos isolados. A Universidade mais antiga do Brasil
ainda não fez 100 anos. Tanto em Universidades quanto em
institutos, a pesquisa corre majoritariamente por conta das
instituições públicas com financiamentos insuficientes. As
empresas se acostumaram a buscar tecnologia nos países
do primeiro mundo, ignorando o desenvolvimento científico
nacional. Como as empresas não procuram as
Universidades, essas, por sua vez, acostumaram-se a fazer
ciência e pesquisa pela pesquisa apenas. Formam-se
recursos humanos que servem muito bem para pesquisar
novamente nas Universidades, num círculo vicioso infeliz.
Quebrar esse isolamento de Universidades e empresas no
Brasil é o desafio maior.
1 A interação Universidade-empresa
Segundo a Vedovello (2001), a interação
Universidade-empresa, em áreas relacionadas com ciência
e tecnologia, é parte de uma infra-estrutura nacional mais
ampla, envolvendo outras instituições de ensino superior e
pesquisa, tanto públicas quanto privadas, centros de
pesquisa e empresas que estão engajados na geração,
transferência e uso de conhecimento, informação e
tecnologia. Para Dagnino (2003) está ocorrendo um
processo sinérgico de ampliação quantitativa e qualitativa
da relação Universidade-empresa. Isso estaria traduzido na
existência de um crescente número de contratos entre
empresas e Universidades com vistas ao desenvolvimento
de atividades conjuntas (Demo, 1999). Aponta-se,
também, para um processo de ampliação qualitativa da
relação, caracterizada pelo fato de que estariam ocorrendo
atividades com crescente resultado econômico.
As razões que explicariam essa ampliação das
relações Universidade-empresa, segundo Schreiner
(2001), estariam, pelo lado das empresas, em custo
crescente em pesquisa associada ao desenvolvimento de
produtos e serviços necessários para assegurar posições
vantajosas num mercado cada vez mais competitivo; na
necessidade de compartilhar o custo e o risco das
pesquisas pré-competitivas com outras instituições que
dispõem de suporte financeiro governamental; no elevado
ritmo de introdução de inovações no setor produtivo e a
redução do intervalo de tempo que decorre entre a
obtenção dos primeiros resultados de pesquisa e sua
aplicação; no decréscimo dos recursos governamentais
para pesquisa em setores antes profusamente fomentados,
como os relacionados ao complexo industrial militar.
Do lado da Universidade, as motivações principais
seriam a dificuldade crescente para obtenção de recursos
públicos para a pesquisa universitária e a expectativa de
que esses possam ser proporcionados pelo setor privado
em função do maior potencial de aplicação de seus
resultados na produção; interesse da comunidade
acadêmica em legitimar seu trabalho junto à sociedade que
é, em grande medida, a responsável pela manutenção das
instituições universitárias.
Essa ampliação estaria denotando uma maior
eficiência da relação Universidade-empresa-governo, fruto
do estabelecimento daquele novo contrato social entre a
Universidade e seu entorno, o que estaria levando a
Universidade a incorporar as funções de desenvolvimento
econômico às suas já clássicas atividades de ensino e
pesquisa, e a redefinir suas estruturas e funções (Dagnino,
2003). Por serem organizações altamente burocratizadas,
a grande maioria das Universidades é, em geral, avessa à
mudança, à inovação e à criatividade. Como são as
Universidades que se constituem como centros produtores
e transferidores dos conhecimentos e esse se constitui uma
variável fundamentalmente mutável, parece haver
incoerência entre a estrutura das Universidades
(conservadora e centralizadora) e as características do
conhecimento (inovador e transformador). Observa-se,
assim, um grande gap entre a teoria e a prática cotidiana, o
que leva a um significativo prejuízo para a formação dos
futuros profissionais.
2 A caracterização organizacional da Universidade
brasileira
Etzioni (1976) aponta como uma das características
das organizações a existência de um ou mais centros de
poder pela organização. Através desse controle a
organização visa assegurar o cumprimento da lei,
enfatizando a idéia de que toda administração está
fundamentada numa hierarquia de poder. Com relação à
Universidade, a existência de objetivos “amplos, vagos e
pouco definidos” (Baldridge, 1971) e de “objetivos
confusos e preferências inconsistentes” (Cohen e March,
1974) não só diferencia a Universidade das demais
organizações, como revela a complexidade que a permeia.
Essa multiplicidade de objetivos também é geradora
de tensões que atingem todos os membros de uma
11
ESPAÇO DIALÓGICO
Ilustrando esse aspecto, Pavitt (1997) sugere que,
muito embora até um quarto das atividades de pesquisa
desenvolvidas por empresas possa ser classificado como
pesquisa básica ou aplicada, três quartos ou mais se
referem ao desenvolvimento, aos testes e à prototipagem e
relacionam-se com o sistema de produção. Em outras
palavras, trata-se de conhecimento relacionado aos
produtos e processos produtivos específicos que as
empresas esperam comercializar.
organização. Desse modo, se a Universidade for
considerada como uma organização de finalidades
múltiplas (ensino, pesquisa, extensão), pode-se afirmar
que a existência de conflitos no seu interior é inevitável.
Schreiner (2001) acrescenta, ainda, que a
Universidade é uma “organização não só única, mas
intrinsecamente complexa”. Considerando-se que é na
Universidade que o conhecimento é gerado, utilizado e
preservado, podemos defini-la como uma organização
especializada. Esse tipo de organização caracteriza-se pela
ênfase na busca dos seus objetivos, pelo número
significativo de especialistas (docentes) em relação aos não
especialistas e pela relação de autoridade existente entre
eles.
Etzioni (1976) esclarece que o fundamento da
autoridade do especialista é o conhecimento, e a relação
entre a autoridade administrativa e a especializada é muito
influenciada pela proporção e tipo de conhecimento do
especialista. Afirma-se, assim, o conhecimento como fator
determinante nas relações entre os indivíduos de uma
organização.
Na Universidade, a relação entre administradores e
especialistas mostra-se invertida em relação às
organizações não especializadas. Isso decorre do fato de
serem administradores das Universidades responsáveis
pelo gerenciamento das atividades meio, enquanto aos
especialistas cabe a administração das atividades fim,
centradas na criação, aplicação e a manutenção do
conhecimento.
Convém acrescentar que a influência desmedida de
especialistas no processo de tomada de decisão pode se
constituir em obstáculo para a consecução dos objetivos
propostos pela organização, colocando em jogo a
sobrevivência dela. Mas, por outro lado, a influência
igualmente excessiva da administração também contribuirá
para que esses objetivos não sejam atingidos, muitas vezes,
impedindo a prática da liberdade acadêmica - resultado da
criação e institucionalização do conhecimento.
Na Universidade podemos identificar dois centros de
poder: a) o poder acadêmico - baseado no conhecimento e
exercício pelos especialistas; b) poder burocrático baseado nas leis, regulamentos e normas relativas ao
ensino e à gerência econômica e exercido pelos
administradores (FINGER, 1997).
ESPAÇO DIALÓGICO
12
A relação entre esses poderes é problemática, dada a
multiplicidade de interesses dos envolvidos. Assim, se o
interesse do especialista está voltado para a atividade
profissional - vista como fundamental em relação ao
objetivo específico -, o interesse do administrador se
detém, em alguns momentos, em atividades não
específicas como, por exemplo, a obtenção de verbas para
o financiamento dessas atividades, e o seu gerenciamento,
com vistas à aplicação face às necessidades
organizacionais. Em outros momentos, o interesse do
administrador se concentra na implantação de reformas
estruturais e funcionais das organizações, exercendo o
poder político e influenciando o processo de tomada de
decisões.
A questão do poder burocrático, quando situada em
termos de legislação, assume um caráter pouco expressivo,
pois o poder é muito mais complexo do que um conjunto de
leis (Schreiner, 2001) e não pode ser definido como algo
natural, uno, global. Ele está em contínua mutação e se
materializa através de diferentes formas, o que nos leva a
acreditar na existência de práticas ou relações de poder.
Os poderes são exercidos em diferentes níveis e
realidades da estrutura social. Com relação à Universidade,
a articulação entre esses poderes provoca tensões que
interferem no comportamento dos especialistas e
administradores, refletindo-se no processo decisório
dessas organizações.
Considerações finais
Os mecanismos para a interação entre Universidades
e empresas encontram-se à disposição em vários
organismos dos governos federal e estadual, também em
organizações não governamentais que visam apoiar o
desenvolvimento de inovação tecnológica de produtos e
processos. Porém, a disponibilidade das ferramentas
jamais conseguirá atingir o objetivo sem a necessária e
fundamental mobilização da própria comunidade
acadêmica, quanto ao papel do trinômio “ensino, pesquisa
e extensão” na interação com a sociedade, que está cada
vez menos disposta a tolerar o distanciamento do
conhecimento da sua aplicação para produção de bens e
serviços economicamente viáveis. São fundamentais
mudanças da cultura universitária, do papel do professor e
do pesquisador e adequação da estrutura organizacional
universitária, em face ao novo ambiente em que as
Universidades encontram-se inseridas, o qual sofreu
profundas modificações nos últimos anos, com novas
instituições de ensino superior se estabelecendo, com
estratégias bem definidas e agressividade mercadológica,
com foco no cliente (posicionamento vertical).
Para fazer frente a esse novo panorama competitivo, a
Universidade deverá repensar a sua estrutura
organizacional, desde a estratégia da organização no
tocante à atuação no mercado. Também deverá
estabelecer sua diferenciação quanto aos demais
competidores e promover mudanças profundas no seu
tecido organizacional, tanto em nível conceitual (definindo
novas prioridades, como, por exemplo, o relacionamento
com o setor produtivo e oferecendo o know-how), quanto
em formato de pesquisa aplicada, por exemplo, em nível de
extensão tecnológica, em termos de prestação de serviços.
Trata-se de um enorme desafio, considerando-se a
cultura acadêmica historicamente entranhada nas
organizações universitárias por meio de estruturas de
disputas pelo poder, e a tradição de ocupação de cargos de
direção por professores avessos à aproximação com o setor
produtivo. A estrutura altamente burocrática e rígida nos
seus procedimentos e observância às normas internas
também deverão passar pelo questionamento e pela
flexibilização, seguindo o exemplo de empresas privadas
dos setores produtivos, que já passaram por essa fase no
início dos anos 90, por ocasião da abertura econômica.
O presente estudo teve por objetivo analisar o contexto
histórico do sistema universitário no Brasil, que deu origem
e forma à cultura, ao conceito e à estrutura do ensino
universitário atual. Procurou-se vincular a teoria
organizacional ao sistema universitário e à sua estrutura,
com a finalidade de facilitar o entendimento do “modus
operandi” do ambiente universitário e mostrar algumas das
alternativas para a montagem de sua estrutura hierárquica
e funcional, para atender as expectativas na interação com
o setor produtivo e a sociedade como um todo.
Agora é a vez e o momento das instituições de ensino
superior de atender às exigências do mercado e da
sociedade, sob pena de sofrer com a redução do número de
matrículas (no caso de Universidades privadas) e em
pressão política da sociedade para a produção de mudança
de vetor estratégico (no caso de Universidades públicas).
Referências
COHEN, Michael D.; MARCH, James G.;
Leadership and ambiguity. New York:
McGraw Hill, 1974.
DAGNINO, Renato. A relação UniversidadeEmpresa no Brasil e o “Argumento da
Hélice Tripla”, Revista Brasileira de
Inovação/ FINEP, 2003.
DEMO, Pedro. Desafios Modernos da
Educação. Editora Vozes. Petrópolis. 1999
ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas.
5. ed., São Paulo, Pioneira, 1976.
FINGER, Almeri Paulo. Gestão de
Universidades Novas Abordagens. Editora
Universitária Champagnat. Curitiba. 1997
GIBBONS, M. The industrial-academic
research agenda. In: GEIGER, R. L. (Ed.).
Research and higher education - the United
Kingdom and the United States. London:
SHRE/Open University Press, 1992. p. 89100.
GODDARD, J. Universities and regional
development: an overview. Centre for Urban
and Regional Development Studies.
University of Newcastle Upon Tyne. Background
paper to OECD Project on the response of Higher
Education to regional needs, July 1997.
(http://www.campus.ncl.ac.uk/unbs/hylife2/lib/f
iles/JBG3.pdf)
NELSON, R. R., ROSENBERG, N. Technical
innovation and national systems. Paper to
OECD Project on the Response of Higher
Education. Oxford University Press, 1993, p. 321.
PAVITT, K. The objectives of technology
policy. Science and Public Policy, Regional
N e e d s ,
1 9 9 7
( h t t p : / / w w w. n c l . a c . u k / c u r d s / u n i v / i m h e 97.htm).
SCHREINER, Wido H. Desafios para a Interação
Universidade-Empresa, Revista Educação &
Tecnologia - Periódico Técnico-Científico dos
Programas de Pós-Graduação em Tecnologia
dos CEFETs- PR/MG/RJ, Curitiba, 2001.
VEDOVELLO, Conceição. Limites da Interação
entre Universidades e MPMEs de Base
Tecnológica Localizadas em Incubadoras,
Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16,
p. 281-316, dez. 2001.]
13
ESPAÇO DIALÓGICO
BALDRIDGE, J.V. Power and conflict in the
university. London: Wiley, 1971.
OS CONTOS DE FADAS E O PALCO DA VIDA
Isabel Cristina Vetter Lizakoski*
Resumo
O presente estudo aborda a importância dos contos de fadas no desenvolvimento infantil na área social, cognitiva e psicológica.
Aborda a relevância dos pais contarem histórias às crianças, verificando-se que no atual contexto, a mídia e as tecnologias ocupam
espaços de referência na vida das pessoas. Também com base na proposta do processo de desenvolvimento dos projetos
interdisciplinares e na vivência em sala de aula com alunos/as do Curso Normal, o trabalho tem repercussão nas escolas de ensino
fundamental, com crianças de 5 a 10 anos.
Palavras-chave:
Desenvolvimento infantil. Referencial adulto. Identificação com os personagens.
Introdução
A
narrativa dos contos de fadas constitui um espaço
de significação no desenvolvimento da
subjetividade humana. A imaginação, a fantasia e
a ficção acompanham historicamente as pessoas ao longo dos
tempos. Em especial, a obra de Bruno Betthelheim, A
Psicanálise dos Contos de Fadas, relata a vivência de crianças
contemporâneas e a condição de elaborar uma série de
conflitos por meio das histórias dos contos.
circulação de sentimentos de todas as ordens, é relevante para
que as crianças simbolizem seus conflitos e ansiedades por
meio das tramas que os contos possibilitam.
No mundo contemporâneo, os desenhos violentos,
games e demais aportes modernos não canalizam as
dificuldades inerentes ao drama infantil. Ao contrário,
prejudicam, de forma nefasta, a possibilidade de crescimento
sadio.
1 A narração feita na escola
Muitas histórias dos contos de fadas encontram-se na
mídia, com releituras e interpretações que ilustram o meio
contemporâneo. Por mais atraente que pareçam aos nossos
olhos, os filmes não têm o alcance no íntimo da criança como
tem o contador de histórias adulto, principalmente aqueles de
referência afetiva das crianças.
Os elementos simbólicos se fundem quando o pai e a
mãe contam histórias para seus/suas filhos/as, pois, afinal,
constituímo-nos enquanto humanidade por meio das histórias
dos nossos antepassados.
Portanto, a presente reflexão não se limita à educação
familiar, mas estende-se à ampliação das relações sociais da
criança. Nesse aspecto, insere-se a escola, que confere às
crianças a possibilidade de acesso a novos conhecimentos e à
ampliação cultural.
A escuta do mundo infantil na escola, onde diferentes
constituições familiares se apresentam, assim como a
A proposta interdisciplinar sobre os Contos de Fadas
envolve os componentes curriculares de Literatura, Didática de
Língua Portuguesa, Didática Geral e Psicologia.
As alunas do Curso Normal recebem toda orientação
sobre as diversas abordagens da literatura infantil, tais como
narração de histórias, importância das atividades
contextualizadas nos projetos interdisciplinares, organização
do espaço em sala de
aula, biblioteca, hora do
conto, entre outros.
No embasamento
teórico da proposta
interdisciplinar, o estudo
dos textos da obra de
Bruno Bettelheim¹ e
Branca de Neve e os Sete Anões
Diana e Mário Corso²,
favorecem a aprendizagem sobre os inúmeros significados que
ESPAÇO DIALÓGICO
14
* Titulação: Mestre em Educação Comunitária com Infância e Juventude, Pós-graduada em
Psicologia dos Processos Educacionais, Licenciada em Pedagogia - Orientação Educacional.
Área de atuação: Coordenadora do Programa Social da IENH, Professora do Centro de Educação
Profissional - CEP e da Faculdade IENH.
NOTAS
¹ Bettelheim, Bruno. A psicanálise do contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
² Corso, Diana Lichtenstein e Corso, Mário. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
A proposta interdisciplinar dos componentes curriculares
de Literatura, Didática de Língua Portuguesa, Didática Geral e
Psicologia têm a culminância do trabalho com a apresentação
teatral dos contos de
fadas, quando as alunas
organizam o roteiro,
cenário, figurino e
demais detalhes que
envolvem o espetáculo.
Cada grupo escolhe
seu conto e, no dia da
apresentação no
auditório da Escola,
Chapeuzinho Vermelho
os/as convidados/as,
entre eles/elas os familiares, assim como as professoras
envolvidas na atividade, assistem ao espetáculo.
Todas essas atividades contribuem para o momento
seguinte, no qual as alunas do Curso Normal apresentam os
teatros dos Contos de Fadas para as turmas de Educação
Infantil a 4ª série do Ensino Fundamental, nas Escolas
Municipais ou Estaduais. Essa proposta tem como objetivo
proporcionar espaço de interpretação dos contos de fadas no
cotidiano escolar, contribuindo para o desenvolvimento da
criança no mundo infantil.
Em cada local onde o conto é apresentado, as alunas
selecionam uma turma, entre 2ª e 4ª série do ensino
fundamental, formada, na maioria, por crianças carentes.
Essas atividades interdisciplinares são desenvolvidas,
integrando os conteúdos nas áreas de estudo: Comunicação e
Expressão, Estudos Sociais, Ciências, Matemática,
Música/Artes.
Na finalização do projeto interdisciplinar, as alunas do
Curso Normal realizam todas as etapas na produção do teatro
com as crianças e apresentam aos pais e demais
componentes da comunidade escolar à qual as crianças
pertencem.
O material para as apresentações teatrais não pode
representar ônus financeiro para as crianças; portanto, é
importante o uso de sucatas e demais materiais recicláveis.
Após as apresentações, os relatos das vivências dos
grupos demonstram a riqueza da proposta do currículo
interdisciplinar. Nesse
aspecto, professoras e
alunos/as entrelaçam os
conteúdos de vida, entre
a magia e a realidade,
em que o imaginário
tece suas idéias entre
fadas, bruxas e castelos
de papelão. As mentes
A Bela Adormecida
das crianças estão povoadas de puro drama. O drama da vida
exposta entre príncipes e princesas, com anões e varinhas de
condão.
Nos estudos de Betthelheim (1980), as questões
referentes ao mundo infantil e a representação entre a magia e
a realidade estão presentes, quando comenta:
O conto de fadas claramente não se refere ao mundo
exterior, embora possa começar de forma bastante
realista e ter entrelaçados os traços do cotidiano. A
natureza irrealista destes contos (a qual os racionalistas
de mente limitada objetam) é um expediente importante,
porque torna óbvio que a preocupação do conto de fadas
não é uma informação útil sobre o mundo exterior, mas
sobre os processos interiores que ocorrem num indivíduo.
(1980, p. 33 - 34)
Algumas reflexões de um grupo de alunas do Curso
Normal, que desenvolveu a atividade na Escola Municipal
Guilherme Gaelzer Neto, com alunos da 4ª série do Ensino
Fundamental, que conta:
Durante os primeiros ensaios achávamos que não daria
tempo de preparar bem a peça. Parecia que iria sair tudo
errado e que as crianças não iriam conseguir. Estávamos
sempre incentivando e dizendo: “vamos lá, tem que
ensaiar”, mas às vezes, elas ficavam desconcentradas e
desatenciosas. Foi um trabalho difícil, cansativo. [...]
Então, o teatro começou e deu tudo certo, foi lindo. As
famílias se emocionaram, ficaram orgulhosas e felizes de
ver o trabalho de seus pequenos. Aplaudiram, assobiavam
e percebemos os sorrisos desses pais, que lutam para dar
um bom futuro para seus filhos. A maioria das crianças
veio nos dar um beijo de tchau e mostrar seus familiares.
Foi uma experiência muito importante.
O relato representa os sentimentos vividos com a
proposta do teatro e da narração dos contos de fadas. As
palavras das alunas evidenciam preocupação com a agitação e
desconcentração das crianças. Cabe pensar sobre o quanto as
crianças estavam envolvidas, mas também agitadas com os
conteúdos que a história revelava em cada ensaio.
No dia da culminância do projeto, que ocorre em um
sábado pela manhã, todas as crianças compareceram para a
apresentação do teatro, algumas até sem a presença de seus
pais. O resultado foi maravilhoso. As crianças demonstraram
envolvimento e gratidão pela oportunidade de interpretarem o
conto da Chapeuzinho Vermelho, com aplausos da platéia
emocionada.
2 Pais que contam história fazem história
Mas de que maneira os contos de fadas podem auxiliar
uma criança a elaborar seus temores e ansiedades interiores?
Todo ser humano, desde que nasce, traz consigo
sentimentos antagônicos como amor e ódio, agressividade e
solidariedade, rejeição e apego, assim como outros
sentimentos que necessitam ser canalizados na infância.
15
ESPAÇO DIALÓGICO
os contos de fadas têm para as crianças.
Essa função importante está nos papéis dos lobos, fadas,
bruxas, anões, castelos, casas de guloseimas e tantas outras
representações simbólicas das histórias infantis.
etapa para a outra, valorizando as potencialidades pessoais e
também das relações íntimas que se estabelecem ao longo da
vida com outras pessoas.
Quando pais e mães fazem as narrativas dos contos,
mesclam-se nessas representações e, de uma maneira muito
sutil, são cúmplices dos sentimentos das crianças. Essa
reflexão é apresentada por Bettelheim, quando referencia:
Considerações finais
De modo ainda mais significativo, se nós, os pais,
contamos estórias para nossos filhos, podemos dar-lhes o
reasseguramento mais importante: nossa aprovação de
que eles brinquem com a idéia de levar a melhor sobre
esses gigantes. Aqui, ler não é o mesmo que ouvir de
alguém a estória, porque enquanto lê sozinha a criança
pensa que só algum estranho - a pessoa que escreveu a
estória ou arranjo do livro - aprova a retaliação do gigante e
sua frustração. Mas quando os pais contam-lhe a estória,
a criança fica segura de que eles aprovam a retaliação
feita em fantasia à ameaça que o domínio implica. (1980,
p. 36)
As crianças, ao se identificarem com os personagens dos
contos de fadas, canalizam todos aqueles sentimentos ruins,
inadequados socialmente, para a fantasia e imaginação
contida na história.
Todo conto de fadas, com seu enredo repleto de cenas do
mundo de faz-de-conta, constitui um importante elemento
para as fases seguintes de vida. Nesse aspecto, Bettelheim,
coloca:
Só nos tornamos um ser humano completo, realizado em
todas as potencialidades, quando, além de sermos nós
mesmos, somos capazes ao mesmo tempo de sermos nós
mesmos com outro e nos sentimos felizes com isso. A
aquisição deste estado envolve os níveis mais profundos
de nossa personalidade. Como qualquer transformação
que toca o âmago de nosso ser, há perigos que temos de
enfrentar com coragem e problemas presentes que temos
de dominar. A mensagem destas estórias é que demos
abandonar nossas atitudes infantis e adquirir outras
maduras se desejarmos estabelecer o elo íntimo com o
outro, o que promete felicidade permanente para ambos.
(1980, p. 319).
Toda trajetória do conto de fadas, com a passagem por
difíceis provações a serem superadas, conduz para um final
feliz e tem como tema central o amor. A busca pela realização
com o outro mostra que o amor permite a transição de uma
Considerando todas as questões apresentadas sobre a
importância dos contos de fadas no desenvolvimento infantil,
cabe à família e à escola explorarem a grande oportunidade
perpetuada há muitos séculos com conteúdos significativos
dos contos para nossas crianças.
Cabe entender também que a atual literatura
contemporânea explora novos contextos, como trânsito,
ecologia, educação sexual, entre demais temas, que são
importantes por suas úteis abordagens educacionais. No
entanto, por sua utilidade prática, não alcançam as questões
íntimas do universo infantil.
As crianças necessitam contadores de histórias,
referenciais afetivos que lhes possibilitem crescerem e se
sentirem inteiras, preparadas para interagir com o outro,
considerando o amor como fonte de felicidade.
Na atualidade, também existem muitas crianças e jovens
que têm em aberto suas histórias pessoais e dos seus
familiares. Não sabem os nomes dos avôs e das avós, dos tios
e das tias, não conhecem as histórias que entrelaçam suas
origens. No entanto, essas histórias também são referências
importantes para o futuro de crianças e jovens.
O nosso mundo contemporâneo, com velocidade
acelerada e valores descartáveis, desalinhou adultos, jovens e
crianças de seus papéis. Somos seres humanos com
necessidades afetivas, desde o nosso nascimento até o final
dos nossos dias.
Na infância se desenha o adulto e se estimula suas
potencialidades. Portanto, carecemos de adultos com desejo
de ser adulto para que as crianças possam ser crianças e
tenham a possibilidade de viver suas histórias coloridas, numa
terra distante, com fadas e bruxas.
Enfim, a infância só se vive uma vez....
Referências
ESPAÇO DIALÓGICO
16
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos
contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
M O T TA , Fa u s t o . C o n t o s e l e n d a s
interpretados pela psicanálise. Rio de
Janeiro: Vozes, 1984.
CORSO, Diana Lichtenstein e CORSO, Mário.
Fadas no Divã: psicanálise nas histórias
infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
MIRANDA, José Fernando. Estória infantil em
sala de aula. Semiótica de personagens. Porto
Alegre: Sulina, 1978.
O BRASIL CABE EM UM SÍTIO:
Um olhar sobre as representações das “entidades” nacionais
nas versões literária e televisiva de Memórias de Emília, de
Monteiro Lobato
Luciane Maria Wagner Raupp*
Resumo
A popularidade das obras infanto-juvenis de Lobato, embora tenham sido escritas na primeira metade do século passado,
continua inegável, pois permeia gerações. Isso pode ter se dado, em parte, pela massificação de suas histórias a partir das sucessivas
adaptações televisivas que sofreu. No entanto, a permanência de tais obras no imaginário coletivo brasileiro não se deve apenas a
sua exposição na mídia, que freqüentemente descarta seus objetos. O sucesso reside na representatividade do sítio - espaço
agregador e idílico - como o Brasil idealizado que permeia a nossa cultura. Essas “entidades” brasileiras são percebidas tanto na
versão literária quanto na televisiva, observando-se traços em comum entre elas, embora se tratem de meios de realização
diferentes. Nesse contexto, destaca-se a boneca Emília que, especialmente em suas Memórias, metaforiza traços dos brasileiros.
Palavras-chave:
Monteiro Lobato. Representação. Entidades nacionais. Memórias de Emília.
p. 21) afirma:
Considerações iniciais
I
negavelmente, a produção literária de Monteiro
Lobato direcionada às crianças ocupa lugar de
destaque no panorama da literatura infantil e juvenil
brasileira. Em uma época de ritmo acelerado, de sucessos
instantâneos e fugazes, cabem as perguntas: como obras
escritas na primeira metade do século passado continuam a
fazer sucesso? Esse sucesso é creditado apenas às obras ou
às suas sucessivas adaptações televisivas?
Mesmo se se creditar parte da visibilidade do universo
infantil lobatiano às suas versões televisivas¹, sabe-se que a
televisão é um meio fugaz por excelência, que descarta suas
produções - e os subprodutos a elas relacionados - assim que
saem da grade de programação². Já o fato de O Sítio do PicaPau Amarelo acompanhar o desenvolvimento da televisão
brasileira, cuja primeira transmissão se deu em 18 de
setembro de 1950, sendo veiculado nas décadas de 1950 a
1980 e nos anos 2000³, aponta para o fato de que há
características muito importantes que levam as obras de
Lobato a quebrarem o ciclo de efemeridades televisivas. Cabe,
por isso, destacar a popularidade das personagens lobatianas
e do Sítio do Picapau Amarelo. Acerca disso, Zilberman (2005,
Um escritor é muito popular, quando o mundo que criou
escapa a seu controle, como se as personagens vivessem
independentemente dele. Emília, Dona Benta e Visconde
de Sabugosa, por exemplo, são frutos da imaginação de
Monteiro Lobato, assim como o Sítio do Picapau Amarelo,
onde vivem aqueles seres de fantasia. Hoje, porém,
vende-se a boneca Emília em lojas e supermercados, e o
sítio aparece diariamente na tela dos aparelhos de
televisão.
Todo esse sucesso parece transcender o plano da
representação, seja ela literária ou televisiva. Há um algo a
mais, que passa pela identificação do público brasileiro não só
com as narrativas ambientadas no Sítio, mas principalmente
com os personagens que nele habitam e com o que
representam. Nesse contexto, destaca-se a
representatividade de Emília, a boneca de pano, e do Sítio
como um todo.
Para que se possa analisar o porquê da identificação do
grande público com o universo representado pelo Sítio, para
fins de recorte, escolheu-se um corpus composto pela obra
literária intitulada Memórias de Emília, texto de Lobato datado
de 1936, e dos episódios homônimos exibidos pela Rede
* Titulação: Mestre em Ciências da Comunicação, Especialista em Lingüística do Texto, Graduada
em Letras.
Área de atuação: Professora de Língua Portuguesa e Literatura da IENH - Unidade Fundação
Evangélica, Professora de Comunicação e Expressão da Faculdade IENH.
¹ A primeira adaptação, conforme Camargos (2007), data do início da década de 1950 e foi produzida na extinta TV Tupi por Júlio
Gouveia e Tatiana Belinky, quando o fazer televisivo ainda era uma aventura incipiente no Brasil. A segunda adaptação foi feita
pela rede Bandeirantes, em 1968, que, segundo Amodeo (2003, p. 231), procurava “reproduzir os mesmos episódios da TV
Tupi em videotape”. Devido a um incêndio nos arquivos da Bandeirantes, não há registros dessa segunda temporada televisiva.
Já na segunda metade da década seguinte, substituindo, na grade de programação a produção de inspiração norte-americana
Vila Sésamo, a rede Globo lançou a terceira versão televisiva da obra de Lobato. No período de 2001 a 2007, a Rede Globo
exibiu sua última temporada, que passará a ser reprisada nas manhãs do canal Futura a partir de dezembro de 2008.
² Todavia, não se pode negar a existência do fenômeno do remake, em que produções de sucesso são refilmadas, fazendo
modificações de forma a atualizá-las quanto a diversos aspectos, como utilização de recursos técnicos mais modernos,
linguagem atualizada, figurinos mais modernos, destacando-se as alterações de enredo a fim de também as adequar aos
padrões de comportamento e de consumo da atualidade.
³ Na década de 1990, o seriado produzido pela Rede Globo nos anos 1970 e 1980 foi reprisado pela TV Cultura.
17
ESPAÇO DIALÓGICO
NOTAS
Globo em 2004 e comercializados em DVD4. Não se pretende
aqui, entretanto, esgotar todos os aspectos dessa relação,
tendo em vista as limitações deste artigo.
se comparado com outros, imaginados pela raça humana.
Essa representação idealizada do Sítio aponta para a
idealização do Brasil, como prossegue Zilberman:
1 Entidade nacional
Por último, mas não menos importante: o sítio é brasileiro,
como se fosse uma representação idealizada de nossa
pátria. Em outras palavras, é o Brasil conforme o desejo
de Lobato, um Brasil sonhado, mas sempre um Brasil.
(op. cit., p. 29 e 30).
Conforme Lajolo e Zilberman (2007, p. 56), “está
corporificado no sítio um projeto estético envolvendo a
literatura infantil e uma aspiração política envolvendo o Brasil.”
Trata-se, portanto, de um desejo de construir uma grande
metáfora do Brasil idealizado por Lobato. Essa metáfora é
concretizada tanto através da linguagem empregada - que
rejeitava os cânones gramaticais - quanto da interpolação de
elementos que caracterizam a cultura internacional - seja ela
clássica ou proveniente da indústria cultural que lhe era
contemporânea. Segundo as autoras:
Na versão televisiva de 2004, o cenário corrobora para
realçar essa característica. O ajardinamento realizado nas
locações corresponde aos padrões modernos, transmitindo,
indiretamente, uma impressão de riqueza e modernidade. Até
mesmo a horta onde Rabicó fuça é ajardinada - o que, para um
adulto, pode parecer artificial. Já a casa-sede do sítio - com
dois pisos, ampla, confortável - tem elementos que tramitam
entre o moderno e o antigo (mas não antiquado) - o
computador de Dona Benta é coberto com uma capa de
crochê. Nem o ribeirão escapa: a pedra onde Emília e Narizinho
sentam para pescar parece ser estrategicamente colocada.
Aliás, as tomadas do ribeirão, com águas muito limpas
correndo sobre um fundo de pedras, são muito convidativas e
qualquer um sentiria vontade de estar lá. Certamente, trata-se
de um espaço cuidadosamente montado, representando
idilicamente o meio rural.
Todos esses aspectos assinalam e, simultaneamente,
justificam a porosidade do sítio que, por decorrência,
absorve o que o mundo atual criou de mais interessante e
digno de ser incorporado. Este é o sentido da modernidade
nessa obra, que concilia o nacionalismo com o desejo de
equiparação do sítio (leia-se: Nação) com as grandes
potências ocidentais. (op. cit., p. 58)
Essa intenção de equiparação, ou até mesmo de
superação, pode ser vista em Memórias de Emília, no trecho
do diálogo entre Alice e Narizinho:
A representação da pátria idealizada nas obras de Lobato
é marcada fortemente por uma necessidade de modernização.
Leyla Perrone Moisés (2007) também menciona o
engajamento de Lobato em um projeto de modernizar o país,
rejeitando certas influências européias, especialmente as de
origem francesa. A autora cita as palavras do escritor:
- Que coisa gostosa - murmurou Alice - chupar laranja-lima
ao lado de um anjinho do céu que conta as coisas de lá!
Estou mudando de opinião. Emília. Estou achando que
esse sítio de Dona Benta é ainda mais gostoso que o nosso
Kensington Garden lá de Londres...
- E é mesmo - observou Narizinho. - Não há lugar no
mundo que valha o sítio da vovó. Quem o vê pela primeira
vez, com estas árvores velhas, todo espandorgado, não dá
nada por ele. Mas depois que o conhece não troca nem
pela Califórnia, que é um paraíso. O sítio da vovó é gostoso
como um chinelo velho. (...) Olhe, Alice, se você passar
dois dias aqui conosco, juro que não quer saber mais da
Inglaterra. (Lobato, 2007, p. 38)
Formamos, os escritores, uma elite inteiramente
divorciada da terra, pelo gosto literário, pelas idéias e pela
língua. Somos um grupo de franceses que escrevem em
português. (...) De que maravilhosas coisas não seria
capaz o brasileiro se não fincasse no domínio do pastiche o
inibitório terror à mofa escarninha do francês. O que nos
mata é o francês. Essa obsessão leva uma sociedade que
se diz culta a atitudes ridículas, a macaquices
inacreditáveis. (Lobato, apud Moisés, 2007, p. 75)
O caráter idílico e paradisíaco do Sítio eleva-o a ponto de
não poder ser comparado a nenhum outro lugar, nem à Europa,
destino tão desejado por tantos brasileiros à época da
publicação de Memórias de Emília... Essa dimensão utópica é
reforçada ao se levar em consideração algumas
particularidades, como, por exemplo, os fatos de ninguém
envelhecer ou adoecer, de haver fartura - representada pelos
quitutes de Tia Nastácia - e de Dona Benta respeitar e acolher
opiniões divergentes. Essa visão é reforçada pelas palavras de
Zilberman (2005, p. 29):
ESPAÇO DIALÓGICO
18
Nota-se, no excerto, o repúdio à imitação dos padrões
franceses e o desejo de se criar uma identidade nacional,
avessa às “macaquices”. Essa idéia é reforçada pelas palavras
de Yunes (1983, p. 51):
(...) sua concepção de nacionalismo recusava os modelos
europeus, os “ismos”, cuja série social paralela era diversa
da experiência vivida no Brasil na segunda década, ao
menos em sua perspectiva regionalista. O projeto
lobatiano era a construção da nacionalidade, em oposição
ao espírito demolidor das “artes importadas”.
O sítio é uma espécie de paraíso, mas um paraíso muito
especial: em primeiro lugar, porque, se tem proprietária,
não existe um dono, nem se verifica o exercício do poder
autoritário. Não há dominadores, o que se encontra até no
Jardim do Éden. Ali podem aparecer vilões, mas eles
jamais levam a melhor, e isso é outro ponto a favor do sítio,
NOTAS
Ao contrário do que se pode concluir a partir do excerto, o
nacionalismo que perpassa as suas obras não repudiava o
estrangeiro, “pois não se queria isolar o Brasil da humanidade,
4
TV GLOBO. Memórias de Emília. Coleção Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Som Livre, 2004. DVD
Na sua literatura infantil, Lobato procura dar ambiência
brasileira aos contos de fadas, através do sítio do Pica-Pau
Amarelo. Mergulha na tradição popular oral, inspirando-se
em mitos e imagens de recorrência que fazem parte da
tradição oral de todos os povos; daí sua obra infantil ser ao
mesmo tempo regional e universal. (...) No folclore,
fascina-se com o saci-pererê. Ainda traduz, recria e
adapta os grandes clássicos da literatura infantil. (Pondé,
1983, p. 113)
As palavras de Pondé apontam para o já mencionado
caráter agregador, poroso que é dado ao sítio, metaforizado o
projeto lobatiano de brasilidade. Na literatura infantil, o autor
encontra um instrumento de afirmação dessa nacionalidade,
como uma maneira de conhecer o país, de cristalizar as
histórias da tradição oral, como forma de enraizar traços de
identidade, se não nacionais, pelo menos regionais.
Entretanto, há que se ter um certo cuidado ao empregar o
termo identidade. De acordo com Hall (2006, p. 48, grifo do
autor), “as identidades nacionais não são coisas com as quais
nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior
da representação”, a qual encontra na literatura o seu espaço
por excelência. Ainda sobre a relação entre o conceito de
nação e o de representação, o autor diz que as pessoas não
são apenas cidadãs de uma nação legal e geograficamente
construída, mas da nação que elas têm internalizada, como
uma abstração a partir do que intui pelas diferentes formas de
representação dessa “nacionalidade” na cultura.
Para Hall, portanto, nação não é um conceito dado, mas
construído por uma coletividade. Essa característica aponta
para o caráter subjetivo, volátil, fluido de tal conceito, uma vez
que os resultados dessa construção podem diferenciar-se de
acordo com o contexto sócio-cultural ou até mesmo sofrer
variações idiossincráticas. Devido ao fato de identidade
nacional estar sujeita a fenômenos de variadas ordens, está
em um processo de permanente construção e desconstrução,
o que leva a afirmar que não é possível falar em identidade
nacional na literatura, pois não existirá como algo pronto, mas
em representações.
Já Moisés (2007) afirma, citando Mário de Andrade, que
não é possível nem mesmo usar a palavra “identidade” no
contexto de nação, mas de “entidade”, como se vê no excerto
a seguir:
Atente-se para a expressão “entidade nacional”,
sabiamente utilizada pelo autor em vez da expressão
“identidade nacional”, que se tornaria corrente e
insistente na ensaística brasileira a partir do modernismo.
“Entidade”, na linguagem filosófica, é “um objeto
concreto, mas que não tem unidade ou identidade
materiais”. (Moisés, 2007, p. 191)
A imaterialidade para a qual aponta a concepção de
entidade é o que a faz mais adequada ao contexto em que se
quer empregar, reforçando a sua fluidez. Essa característica
remete-nos para a obra de Zygmunt Bauman, intitulada
Modernidade Líquida, na qual se afirma:
O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma
redistribuição e realocação dos “poderes de derretimento”
da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições
existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das
ações-escolhas possíveis, como os estamentos
hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance
de apelação. Configurações, constelações, padrões de
dependência e interação, tudo isso foi posto a derreter no
cadinho, para depois ser moldado e refeito. (Bauman,
2001, p. 13)
Se, de acordo com o autor, as certezas são “derretidas”,
fluidificadas, se há uma crise de conceitos, os traços que nos
identificam como pertencentes a uma determinada
coletividade, ou seja, as “entidades” nacionais, os traços
identitários, também entram nessa esteira. Essa crise,
portanto, estender-se-á às representações desses traços,
refletindo-se não só na literatura, mas também nas outras
produções culturais. Com isso, é possível afirmar que os traços
identitários nacionais representados no Sítio literário de 1930
não serão, em sua totalidade, os mesmos que encontraremos
no Sítio televisivo dos anos 2000. Analisar as mudanças e as
permanências não significa apenas comparar dois contextos
diversos, mas detectar os traços que, devido à permanência,
mais fortemente nos identificam como brasileiros. Isso é
especialmente caro nos tempos de hoje, em que, segundo
Bauman,
Uma vez que as crenças, os valores estilos foram
“privatizados” descontextualizados ou “desacomodados”,
com lugares de reacomodação que mais parecem quartos
de motel que um lar próprio e permanente -, as
identidades não podem deixar de parecer frágeis e
temporárias, e despidas de todas as defesas, exceto a
habilidade e determinação dos agentes que se aferram a
elas e as protegem da erosão. A volatilidade das
identidades, por assim dizer, encara os habitantes da
modernidade líquida (2001, p. 204).
Em vista dessa volatilidade aludida por Bauman, a busca
pelos traços identitários através das representações literárias
(e, neste caso, também televisivas) encontra justificativa como
um ato de resistência ou mesmo de rebeldia frente ao cenário
fluidificado que se descortina.
19
Essa fluidez certamente não se dá apenas em nível
coletivo: afeta também os indivíduos. Por isso, faz-se
necessário analisar não só a representatividade do Sítio, mas
aqueles que constroem, no interior da obra, esse lugar: as
personagens.
ESPAÇO DIALÓGICO
o que seria um disparate, nem se poderia negar a dívida de
civilização ao estrangeiro” (Pondé, 1983, p. 112). A
divergência de Lobato advinha do fato que o Brasil estava
vivendo um momento histórico e social muito diferente da belle
époque européia, a qual se configurava terreno fértil para o
surgimento dos demolidores movimentos de vanguarda. Seu
objetivo era “tirar o atraso brasileiro, a partir das nossas
potencialidades culturais e econômicas” (Yunes, 1983, p. 51).
Para que esse projeto fosse concretizado:
2 Uma brasileira feita de pano
Como já se mencionou, se o sítio pode ser considerado
como uma grande metáfora do Brasil, onde “em se
imaginando, tudo é possível”, Emília, de certa forma, também
representa traços identitários - estereotipados - do brasileiro. A
identificação com a personagem, aliás, é um dos trunfos da
adaptação televisiva no sentido de conquistar audiência.
Emília destaca-se em relação aos demais habitantes do
Sítio porque, segundo Coelho (2005, p. 143 e 144):
(...) é a única que vive em tensão dialética com os outros.
Todas as demais personagens que formam a constelação
familiar do Sítio do Picapau Amarelo são arquétipos:
Narizinho e Pedrinho - crianças sadias, alegres e sem
problemas, que servem para dar suporte à trama dos
acontecimentos e em geral para servirem de contraponto
à boneca.
Essa característica tencionada de Emília representa, já
desde a década de 1930, a busca pela individuação. Como
boneca de pano, ser muito diferente dos outros, precisava
encontrar seus espaços, mostrar a que veio. Essa busca, nos
anos 2000, é ressignificada, uma vez que a sociedade
fluidificada impele as pessoas a isso, como uma obrigação. Por
esse motivo, a personagem apresenta-se como a melhor
representação, dentre o universo dos personagens do Sítio,
desse indivíduo que precisa constantemente afirmar-se e
reafirmar-se. Conforme afirma Bauman (2001), “a sociedade
moderna existe em sua atividade incessante de
'individualização'” (p. 39), que é entendida pelo autor como a
transformação da “'identidade' humana de um 'dado' em uma
'tarefa' e encarregar os atores de realizar essa tarefa e das
conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua
realização” (p. 40). Entende-se, então, que o indivíduo não
nasce com uma identidade, precisando lançar-se na busca da
resposta à pergunta “quem sou eu?”, aculturando-se,
buscando lugares para acomodação cada vez mais difíceis de
encontrar. Essa situação ambígua é vivida exemplarmente pela
boneca, na sua profunda dualidade. Por isso, mais uma vez se
reitera o caráter representativo da personagem.
Como diz Rosenfeld (2005, p. 21), “é a personagem que
com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a
camada imaginária se adensa e cristaliza”. Nesse sentido de
incorporação dos conteúdos narrativos, Emília é a personagem
que vivifica e condensa o caráter idílico do Sítio. Uma boneca
sem travas na língua, justamente pela sua condição de boneca
e não de gente, não teme as conseqüências de seus atos ou
palavras. Pelo contrário, parece querer provocar, indagar,
questionar a tudo e a todos constantemente.
ESPAÇO DIALÓGICO
20
O fato de Emília ser uma boneca de pano torna ainda
mais interessante a análise. Se, conforme Rosenfeld (idem, p.
23), “é com o surgir de um ser humano que se declara o
caráter fictício (ou não fictício) do texto, por resultar daí a
totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de
qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária”, como
a personagem consegue ser tão verossímil? A resposta a essa
questão passa, obrigatoriamente, não somente pelos
conteúdos profundamente humanos por ela representados
como também pelos traços identitários brasileiros carregados
pela boneca. Essa questão é pertinente tanto à obra literária
quanto à adaptação televisiva, embora haja algumas
diferenças substanciais a serem discutidas.
Na adaptação televisiva dos anos 2000, as
características da irreverência, do egoísmo e da falta de limites
de Emília parecem ser acentuadas se comparadas ao texto
literário da década de 1930. Isso se deve, em parte, ao fato de
que, em cena, a personagem ganha vida através da
interpretação de uma atriz mirim, cujos trejeitos sublinham
fortemente essas características. Enquanto na obra literária
Emília é constituída apenas de palavras no papel, na televisão
é atravessada por uma série de signos. Como diz Gomes
(2005, p. 111), à semelhança do que ocorre com a
personagem cinematográfica,
(...) a cristalização definitiva desta fica condicionada a um
contexto visual (...) Essa circunstância retira do cinema,
arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o
romance comunica suas personagens aos leitores. (...)
Essa definição física quase completa imposta pelo cinema
reduz a quase nada a liberdade do espectador nesse
terreno.
Assim como no cinema, por se tratarem de modos de
realização muito semelhantes, implicando os mesmos
universos sígnicos, a personagem na televisão é dada pronta:
muito pouco sobra à imaginação do espectador para que ele
mesmo construa sobre ela. Emília, na versão dos anos 2000,
tem a compleição física de uma boneca-criança por ser
interpretada por uma menina na faixa etária dos oito anos.
Ocorre um interessante fenômeno: além de ser uma boneca
falando coisas de gente, é uma criança com sentimentos de
adultos (raiva, mágoa, vontade de se vingar, por exemplo), mas
de uma ótica criativamente infantil, de um olhar inaugural e
crítico sobre tudo e todos. Ora Emília assusta com um aterrador
espírito vingativo e maquiavélico, ora surpreende com
angelicais e poéticas associações. Um exemplo claro dessas
associações - que é mantido na adaptação televisiva - é o
modo com o a boneca explica sobre a Terra ao anjinho Flor das
Alturas. É o que se vê no excerto abaixo:
- Mas por que essas tais árvores nunca saem do lugar?
- Porque têm raízes - explicava Emília. - Raiz é o nome das
pernas tortas que elas enfiam pela terra adentro. Bem que
querem andar, as pobres árvores, mas não conseguem. Só
saem do lugarzinho em que nascem quando surge o
machado.
- Que animal é esse?
- Machado é o mudador de árvores, muda a forma delas,
fazendo que o tronco e os galhos fiquem curtinhos. Mudalhes até o nome. Árvore machadada deixa de ser árvore.
Passa a ser lenha. Le-nha. Repita.(Lobato, 2007, p. 19)
Outro ponto que merece atenção é o fato de a
caracterização da boneca, na televisão, não corresponder ao
que se descreve nas obras de Lobato. É o que se pode ver no
seguinte trecho das Memórias:
- Bem, nasci, fui enchida de macela que todos entendem e
fiquei no mundo feita uma boba, de olhos parados, como
qualquer boneca. E feia. Dizem que fui feia que nem uma
bruxa. Meus olhos Tia Nastácia os fez de linha preta. Meus
pés eram abertos para fora, como pés de caixeirinho de
venda. (...) Depois fui melhorando. Hoje piso para dentro.
Também fui melhorando no resto. Tia Nastácia foi me
consertando, e Narizinho também. (Lobato, 2007, p. 15).
Ao que parece, a versão televisiva também tratou de
seguir a mesma lógica e continuar o processo de
melhoramento físico de Emília. Nas versões dos anos 70 e 80,
Emília era interpretada por personagens adultas, com vestidos
de chita e maquiagem carregada. Já nos anos 2000, a
substituição por uma atriz infantil conferiu graciosidade à
personagem. O figurino, com cores contrastantes, de acordo
com a moda, e combinando com o cabelo, em nada lembra o
vestido de chita, feito de uma saia velha de Tia Nastácia. Essa
dissonância leva a reflexões acerca de uma certa
desconfiguração da personagem, para torná-la mais
comercial, podendo ser vendidas réplicas da boneca na
indústria que foi gerada no bojo do sucesso da série 5 . Em uma
época em que a boneca Barbie, que representa o culto à
beleza e a formas impossíveis, ainda reina absoluta entre as
meninas, uma boneca feia e feita de chita não faria sucesso
nem na televisão, nem nas prateleiras das lojas de brinquedos.
No entanto, por mais que Emília, na versão dos anos
2000, tenha sofrido “barbierizações” no sentido de torná-la
mais comercialmente viável, ela continua representando
conteúdos que apontam para traços identitários, não só para o
público infantil, mas para o brasileiro como um todo.
O fato de ter nascido em um sítio, sido feita de chita e
preenchida com macela aponta para as raízes agrárias e
humildes da população brasileira. A superação dessa condição
por meios mágicos é algo que leva o público à identificação.
Ela, por isso, de certa forma, incorpora a esperança dos
brasileiros de superação e encarna a idéia estereotipada do
NOTA
5
brasileiro como aquele que nunca perde as esperanças - nem
que tenham sido depositadas em uma solução mágica. Ela
também transita entre duas classes sociais: feita pelas mãos
da empregada, mas propriedade da neta da patroa. Esse livre
trânsito entre as classes também faz parte do imaginário sobre
o Brasil e os brasileiros, embora se verifique que, na prática, as
coisas não funcionem dessa maneira. Aliás, no Sítio - espaço
idílico - não há divisão rígida de classes. A única pessoa que
trabalha é a Tia Nastácia - cujas atividades são retratadas mais
como “obras de arte culinária” do que como trabalho
propriamente dito - e todos vivem em boas condições, com
saúde, moradia, boa alimentação.
Em Reinações de Narizinho, Emília se casa com o
Marquês de Rabicó apenas para ter o título de nobreza. Mesmo
achando o porquinho o mais desprezível dos seres, casa-se,
com incentivo de Narizinho, para ser “marquesa”. Essa
questão de valorização de títulos de nobreza, herança de nossa
colonização por Portugal e da transferência da corte para as
nossas terras, perpassa o imaginário do brasileiro, que não se
cansa de eleger, nos dias de hoje, desfeito o regime
monárquico desde o século XIX, reis e rainhas em todos os
ramos de atividades. Desse modo, nota-se que Emília, mais
uma vez, consegue personificar um dos desejos do imaginário.
Outro ponto que Emília consegue mostrar-se como bemsucedida reside na sua espontaneidade e na sua irreverência.
Talvez essa seja uma característica desejada não apenas por
brasileiros, mas uma vontade universal: afinal, quem não
gostaria de dizer o que pensa sem ter que arcar com as
conseqüências? Essa impunidade de Emília deve-se a
diferentes fatores. Como ela é uma boneca, está livre das
sanções a que estão sujeitos os humanos. O elemento adulto,
que deveria impor limites, é uma avó - popularmente chamada
de mãe-com-açúcar - que é extremamente permissiva, como
se tivesse desistido de admoestar tanto a boneca quanto os
próprios netos. Somando-se a esses dois fatores, se a Emília
fosse imposto algum tipo de punição por algo que tivesse feito
ou falado, devido as suas características de engenhosidade e
criatividade, certamente acharia uma solução para o
problema, saindo igualmente impune da situação. É a
personificação de uma “lei” posterior à Lobato, mas que já
ronda a nação desde sua ocupação pelos portugueses: levar
vantagem em tudo.
Algumas características negativas de Emília também
geram empatia, pois conferem verossimilhança à personagem,
rompendo com o caráter maniqueísta que geralmente permeia
as narrativas televisivas. Além disso, tais predicados também
compõem o imaginário sobre o caráter do brasileiro, segundo o
qual se diz que “gosta de levar vantagem em tudo” - o clichê da
“lei de Gérson”. Nesse ponto, mesmo que de forma
inconsciente, mais uma vez, nota-se uma razão para a empatia
do público (leitor ou espectador) com a personagem.
Além de serem comercializadas réplicas da boneca Emília, uma série de produtos voltados ao público infantil foi lançada, desde
materiais escolares com a estampa dos personagens, passando por produtos para festas infantis até uma linha de produtos de
higiene pessoal da marca Natura. Esta última, com o fim da exibição da série em 2007, foi retirada de comercialização.
21
ESPAÇO DIALÓGICO
Explicações como a que se vê no excerto anterior,
dotadas de uma lógica infantil, revestem a personagem de
características como criatividade, engenhosidade e de certo
humor. A ambivalência de Emília - que não é totalmente má
nem totalmente boa - dota a personagem de um profundo
caráter humano. Frente ao público infantil, a relação de
empatia estabelece-se com facilidade devido a essas
características. Além disso, a identificação também é
garantida pelo fato de Emília constituir-se a própria
personificação de uma geração que cada vez menos conhece
limites para as suas vontades.
No entanto, apesar de ser chamada de sem coração por
Visconde, ao final de suas memórias, a boneca procura
redimir-se, dizendo que tem um coração lindo e passa a
expressar sua admiração pelos demais habitantes do Sítio sem deixar, contudo, de tecer breves comentários que
quebrem o tom elogioso. Nesse ponto da narrativa literária que foi conservada, na forma da fala da personagem, na
versão televisiva - nota-se que ela realmente tem bons
sentimentos. Apesar de suas excentricidades e de ser tão
voluntariosa, acaba reconhecendo nos outros os valores que
lhes cabem e que são importantes para ela.
Esse
posicionamento, extremamente simpático e empático, mais
uma vez aponta para o imaginário acerca do povo brasileiro - o
clichê do grande coração brasileiro.
Como se sabe, a Emília que se vê na literatura não
representará os mesmos conteúdos na versão televisiva. O
mesmo ocorre com a representatividade do Sítio. A fim de dar
conta dessa diferença, a análise aqui proposta parte da
premissa que o texto literário não é um evento isolado,
ensimesmado. Tampouco a série televisiva o é. Como afirma
Bakhtin (1988, p. 33), “a vida não se encontra só fora da arte,
mas também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu
peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro que seja”. A
partir dessa afirmação, pode-se compreender que o momento
histórico, as condições de produção e os imperativos do meio
de divulgação - como busca pela audiência - exercem
influência não apenas sobre o que é produzido no campo
literário ou no televisivo, mas também sobre o modo como
essas produções são recebidas. Desse modo, não é possível
que haja separação entre o estudo da obra em si, em sua
imanência, e do contexto social em que se insere. Segundo
Bakhtin, que vê a linguagem como a manifestação das
ideologias, as relações que aqui se quer estabelecer devem
levar em conta o processo de permanente incorporação de
outras vozes no discurso.
Considerações finais
A análise aqui empreendida, tendo em vista as limitações
de espaço, está longe de ser exaustiva, contemplando todos
os aspectos da relação entre texto literário e adaptação
televisiva e as representações de “entidades” nacionais.
Tampouco se explorou profundamente o corpus apresentado.
O que se pretendeu foi lançar luz sobre a questão das
representações do Brasil e dos brasileiros em um contexto de
“modernidade líquida”, de fluidificação de conceitos e de
territórios cujas fronteiras estão cada vez mais elásticas.
Muito há que se aprofundar nessa relação, porém, há
algumas certezas a serem pontuadas. Se o Sítio sobrevive à
globalização, à fluidificação e à volatilidade tanto do meio
televisivo e se, no campo literário, resiste à inadequação de
sua linguagem original, é porque os conteúdos nele
representados transcendem a sua época, constituindo-se em
uma referência para a movediça cultura nacional. Há algo de
profundamente humano na boneca de pano.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de
literatura e estética: a teoria do
romance. São Paulo: UNESP/Hucitec,
1988.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2001.
ESPAÇO DIALÓGICO
22
LOBATO, Monteiro. Memórias de Emília.
São Paulo: Globo, 2007
MOISÉS, Leyla Perrone. Vira e mexe,
nacionalismo: paradoxos do nacionalismo
literário. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
CAMARGOS, Márcia. Juca e Joyce:
memórias da neta de Monteiro Lobato.
Depoimento a Márcia Camargos. São
Paulo: Moderna, 2007.
PONDÉ, Glória Maria Fialho. A herança de
Lobato.
IN: ZILBERMAN, Regina. (org)
Atualidade de Monteiro Lobato. Uma
revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1983.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura
Infantil: teoria, análise, didática. 7.ed.
São Paulo: Moderna, 2005.
TV GLOBO. Memórias de Emília. Coleção
Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Som Livre,
2004. DVD
GOMES, Paulo Emílio. A personagem
cinematográfica.
IN: CÂNDIDO,
Antônio(org). A personagem de ficção.
11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
YUNES, Eliana. Lobato e os modernistas. IN:
ZILBERMAN, Regina. (org) Atualidade de
Monteiro Lobato. Uma revisão crítica. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1983.
HALL, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a
literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina.
Literatura infantil brasileira. História e
histórias. 6. Ed. São Paulo: Ática, 2007.
A AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL:
Modalidades e significados
Maria Celina Melchior*
Resumo
Na qualificação da Educação se pressupõe a avaliação institucional nas diferentes modalidades. Para identificar a
situação, no momento inicial do processo é preciso conhecer a instituição, assim, a avaliação viabiliza o diagnóstico, cujo
resultado subsidia o planejamento quanto às condições, humanas, físicas e contextuais. No decorrer do processo, em cada
etapa e no desenvolvimento de cada ação, deve haver o acompanhamento sistemático com a avaliação formativa, que
permite identificar o que está sendo alcançado e encaminhar as correções necessárias para alcançar os melhores resultados.
E no final do processo fazer avaliação cumulativa com a função de controle, para verificar o alcance dos objetivos de forma
global e apresentar os resultados do desempenho da instituição naquele período.
Palavras-chave:
Avaliação: diagnóstico. Acompanhamento. Controle.
A ação avaliativa auxilia o sujeito a progredir em sua
tarefa sem substituí-lo, retransmitindo-lhe informações
que poderão ser usadas para organizar sua própria
progressão. “Quando se avaliam instituições
educacionais, o que está em causa é uma produção de
qualidade e não produtos de qualidade” (Maar, 1984, p.
73). A exigência de qualidade é real e necessária porque
a instituição de ensino, para cumprir o seu papel efetivo,
precisa gozar de representatividade social e intelectual. A
avaliação pode fazer mais do que medir qualidade. Em
primeiro lugar, diz Bonniol (2001), ela ajuda a promovê-
la. E ela pode fazer isso se abandonar os caminhos já
trilhados, ou a avaliação usada, apenas, como forma de
controle, feita sempre no fim do processo. Quando o
objetivo da avaliação é melhorar o resultado, ela precisa
ser feita durante todo o processo, relacionada às fases
do desenvolvimento das ações e com a modalidade
adequada à finalidade a que se propõe.
Quando é realizada mais no início - com função
diagnóstica - pode auxiliar no planejamento e na
orientação das estratégias de desenvolvimento, sem
esquecer que o diagnóstico é referente àquele
momento. Através da avaliação com a finalidade de
diagnosticar a situação atual, no caso da avaliação
institucional, é possível:
 identificar as condições tanto físicas como
matérias e humanas. No início do processo
avaliativo, a equipe de avaliadores, especialmente
se é de fora, tem que fazer uma imersão na
instituição, para conhecer as condições físicas,
relação espaço X necessidades, recursos humanos
que atuam X clientela atendida;
 conhecer o projeto institucional, suas metas e
objetivos. Ao analisar o projeto, vai ser verificado,
por exemplo, se o diagnóstico que nele consta está
adequado à situação identificada pelo grupo, se há
adequação dos objetivos e metas às condições
*Titulação: Mestre em Educação.
Área de atuação: Atualmente é Avaliadora Institucional do INEP/ SINAES/ MEC, Professora da Faculdade
IENH. Faz pesquisas sobre avaliação escolar, publicou quatro livros sobre o assunto, além de diversos
artigos em revistas de educação. Em 2004 lançou o livro: Avaliação Institucional da Escola Básica.
23
ESPAÇO DIALÓGICO
A
o falar em avaliação, invariavelmente se
pensa em avaliação da aprendizagem, que
continua em foco. Nunca se escreveu e se
falou tanto sobre o assunto como nas duas últimas
décadas. No entanto, na prática da escola, ela ainda é
feita com um fim em si mesma, presa a uma lógica
classificatória que, em geral, não tem como objetivo o
processo de desenvolvimento, mas a apresentação de
um resultado. Dessa forma, é importante a discussão
sobre o papel que a avaliação desempenha, a função
que cumpre conforme suas diferentes modalidades.
Assim como mudar de perspectiva, não basta avaliar o
aluno, nem mesmo o aluno e o professor, é preciso
avaliar toda a instituição escolar, pois há muitas outras
variáveis que interferem nos processos educativos que
se desenvolvem numa instituição educacional.
institucionais, entre outros tópicos relevantes;
 identificar as estratégias previstas assim como se o
andamento delas está adequado às metas e
objetivos previstos. Na avaliação dos projetos e
estratégias, inicialmente, analisa-se a sua
adequação ao projeto institucional, se estão sendo
desenvolvidos conforme o tempo estipulado. Em
caso negativo, é importante saber as causas da
falta de atendimento aos propósitos iniciais ou os
tempos previstos.
A organização da avaliação é feita a partir do
conhecimento do que existe na instituição. Para fazer um
diagnóstico adequado, é necessário ter uma visão do
todo da instituição. Quando o diagnóstico é bem feito,
ele fornece subsídios para as outras modalidades de
avaliação. Assim, se faz necessária a elaboração de
relatórios, tanto para a divulgação dos resultados como
para serem utilizados no planejamento da etapa
seguinte do processo. Essa etapa da avaliação é muito
importante, mas não é suficiente; é preciso avaliar
durante o desenvolvimento do processo e, durante todo
o tempo, são feitos novos diagnósticos.
A avaliação de forma contínua - com função
formativa - torna-se um componente do projeto e se
desenvolve normalmente, como uma atividade que faz
parte do processo. À medida que são desenvolvidas as
diferentes ações, realizam-se avaliações e fazem-se
discussões para concluir sobre as correções
necessárias. Essa regulação não pode ser vista como
controle, mas entendida como forma de perceber o que
precisa ser superado, para manter ou alterar o rumo a
seguir, restabelecendo o equilíbrio. Coll (1997) diz que a
avaliação processual ou formativa tem a finalidade de
auxiliar nas interferências e correções ao longo do
processo.
ESPAÇO DIALÓGICO
24
A continuidade da avaliação é expressa na forma de
pensar o trabalho a ser feito, enquanto ele é feito e
depois de feito. Não se pretende mais que o critério seja
uma norma a ser respeitada, mas que se torne uma
ferramenta de trabalho que possa ser melhorada,
regulada e que evolua conforme a descoberta das
noções que permita manipular. Seus efeitos positivos
sobre os avaliados são mais imediatos, e ela está ligada,
principalmente, aos objetivos de sucesso e qualificação.
Refere-se a todos os desempenhos de avaliação,
escritos ou orais, pois seria falso acreditar que uma
atitude avaliadora intervém apenas nos encontros
avaliativos. Ela é permanente no intercâmbio oral
durante os processos, em todas as atividades que são
avaliadas de forma mais ou menos implícita.
Referindo-se à avaliação formativa, Bonniol (2001)
diz que ela é realizada como parte do desenvolvimento
do programa, tendo como função auxiliar seu
aperfeiçoamento, devendo ser feita pelos próprios
participantes do processo com o objetivo de reconstruir o
que não funciona adequadamente. É provável que haja
uma diferença, mesmo que seja na atitude do avaliador
quando se trata de avaliação para qualificar. O autor
enfatiza que a avaliação faz mais do que medir o desvio e
o erro; ela pode permitir evitá-lo, analisar quando ele
ocorre e retificá-lo. E, na vez seguinte, operar para
superá-lo.
Essa modalidade de avaliação exige uma postura
coerente do avaliador desde a organização do projeto,
durante o processo de desenvolvimento até a
comunicação dos resultados. Nesse caso, a ação revela
a postura investigadora do avaliador que procura captar o
movimento em sua complexidade, identificando os
progressos a partir de onde estava o projeto, o programa
ou pessoa que está sendo avaliado, em pequenas e
sucessivas etapas.
As avaliações formativas são feitas durante o
processo e os resultados voltam de imediato aos
avaliados, juntamente com os encaminhamentos de
momentos de encontro entre avaliador e avaliado, para
refletirem, discutirem e concluírem sobre as correções,
quando for o caso. Assim, nessa modalidade, a ênfase
está na orientação para as correções e não nos
resultados. O autor diz que a função de regulação da
avaliação formativa tenta dar sentido ao objeto avaliado
e inseri-lo em uma dinâmica de mudança; portanto, ela
se insere no tempo, acompanha os processos e envolve
os diferentes atores da situação.
Para favorecer a função de regulação da avaliação
em uma perspectiva de qualificação, é preciso haver um
trabalho de explicitação: avaliador e avaliados devem
conhecer essa função. As normas necessitam ser
transparentes e legíveis, mesmo assim podem não ser
apreendidas pela maioria dos sujeitos avaliados. Assim,
se faz necessário transformá-las em critérios e esses
ficarem claros para todos os envolvidos no processo.
Pode-se desenvolver, nos avaliados, a capacidade de
percebê-las e adquirir seu domínio para serem bemsucedidos e alimentar seu projeto de qualificação.
Coll (1997) diz que a avaliação está a serviço do
projeto educacional, é parte integrante dele e partilha
seus princípios fundamentais. Ao fazer essa afirmação, o
autor está se referindo à avaliação feita no início e
durante o processo, com as funções de identificar o
ponto inicial e ajustar a ajuda às características dos
avaliados por meio de aproximações sucessivas. Lembra
ainda que as pessoas são diferentes e que, portanto, são
importantes ajustes diferenciados, de acordo com as
necessidades de cada um.
A avaliação, quando é feita com função formativa,
não tem um momento específico para ser realizada. Ela
vai sendo feita no decorrer do processo, durante todo o
tempo. Também não é feita para cumprir a norma, mas
para reorientar o processo. Portanto, seus dados ficam
registrados, assim como o que tem de mudar.
Exemplificando, um grupo está desenvolvendo um
projeto; ele não vai ser analisado só no final, mas em
cada encontro de trabalho com o avaliador ou, de forma
autônoma, pelo próprio grupo, fazendo uma análise de
como está se desenvolvendo, o que está bem e o que
tem de mudar e, também, quem vai fazer as mudanças.
As conclusões são registradas e voltam para o próximo
encontro para prestação de contas, e assim,
sucessivamente, até o final do projeto. Espera-se que
isso seja feito com transparência, sem angústia ou
trauma, como uma atividade que faz parte do processo
em que todos os envolvidos querem o sucesso. Se isso
for feito sistematicamente, desenvolve-se, na
instituição, um ambiente avaliativo e atitude de reflexão
e auto-reflexão sobre as ações, evitando chegar ao fim
com deficiências, muitas vezes irreparáveis.
Além da avaliação com função diagnóstica e
formativa, também é importante avaliar no final do
processo - com função cumulativa - para verificar se os
objetivos foram alcançados. É um momento de
prestação de contas, tanto para o avaliado como para a
instituição, feita no final de uma etapa ou do processo.
De acordo com Melchior (2003), outra função dessa
modalidade de avaliação é determinar o grau em que
foram conseguidas as intenções do projeto. Em geral, é
desenvolvida por agentes externos ao programa,
buscando comparar os efeitos alcançados com as
necessidades dos consumidores, gerando uma
valoração sobre o produto oferecido em relação aos
demais.
Todo avaliador, como diz Bonniol (2001), tem
sempre dois rótulos: o de examinador que quantifica os
resultados e o de corretor que permite a realização da
correção. Parece-nos primordial não confundir essas
duas funções. A primeira envolve uma tomada de
consciência e um reajuste dos critérios de notação,
assim como uma maior coerência entre os
desempenhos, os objetivos e as tarefas de controle. A
segunda está relacionada à política de qualificador. Essa
questão liga avaliação e qualidade, assim como
avaliação e objetivos. Percebe-se como se unem noções
de avaliação e qualidade, da mesma forma que o
instrumento liga-se ao objeto ao qual se refere: a
qualidade é o valor que a avaliação constata ou deveria
constatar. Também se verifica como, nessa concepção
habitual, a avaliação e os objetivos estão ligados. Os
objetivos estipulam os resultados a serem alcançados; a
avaliação constata se foram atingidos. Assim, a
avaliação do produto, ou com ênfase nos resultados,
geralmente é a mais utilizada.
No final da etapa, são considerados os dados
daquele momento, mas, em relação ao diagnóstico
inicial e ao processo, em todo seu percurso. O momento
final da avaliação só tem sentido se ela for realizada
como conseqüência lógica do processo como um todo.
Assim, a avaliação cumulativa tem por objetivo verificar o
todo do processo.
Sintetizando, a avaliação formativa, fazendo parte
da avaliação cumulativa, permite verificar não só a
coincidência entre o prescrito no programa e o real
desenvolvimento, mas também o mais importante:
como se desenvolveu o processo. Nesse momento, são
considerados os dados do diagnóstico e as diferentes
avaliações ocorridas durante aquela etapa, assim como
as reformulações feitas a partir delas. A avaliação
cumulativa, feita por avaliadores de fora da instituição, é
importante para os avaliados terem informações sobre
os resultados de seu desempenho, a partir de
avaliadores externos ao processo. E para a instituição
decidir sobre a continuação do processo, pois sendo esta
uma modalidade mais abrangente e global, facilita a
visualização da instituição como um todo, assim como
de cada parte inserida neste todo.
Referências
MAAR, Wolfrang L. Universidade competência e
democracia. O poder e o saber. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1984.
COLL, César. Os conteúdos na reforma:
ensino e aprendizagem de conceitos,
procedimentos e atitudes. Porto Alegre:
ARTMED, 1998.
MELCHIOR, M. C. Da avaliação dos saberes a
construção de competências. 2. ed. Porto
Alegre: Premier, 2008.
HARGREAVES, A. EARL, L. RYAN, J. Educação
para mudanças: recriando a escola para
adolescentes. Porto Alegre: ARTMED, 2001.
_______________. Avaliação Institucional da
Escola Básica. Porto Alegre: Premier, 2004.
25
ESPAÇO DIALÓGICO
BONNIOL, Jean Jacques. Modelos de
avaliação: textos fundamentais. Porto Alegre:
ARTMED, 2001.
HETEROGENEIDADE MOSTRADA E CONSTITUTIVA:
o outro no e do discurso
Rosane Maria Maitelli*
Resumo
Este artigo apresenta alguns enfoques teóricos acerca da descrição das formas da heterogeneidade mostrada no
discurso direto e indireto, e aquela constitutiva do discurso inscrevendo o sujeito em sua linearidade com o outro.
Discutiremos alguns aspectos do dialogismo e da polifonia, principalmente em torno de Bakhtin (1895-1975), o
pensador russo que fascina as ciências humanas, em seus inúmeros estudos sobre a linguagem e, por meio desta, o
sujeito, suas relações com a sociedade, a estética e a ética, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. A partir de
estudos de Authier-Revuz, abordamos alguns enfoques da heterogeneidade constitutiva do discurso sob a visão da
psicanálise. Pretendemos evidenciar uma análise teórica e uma compreensão da inscrição do sujeito na linguagem que
desvende ou que revele determinadas relações, possibilitando questionarmo-nos, enquanto professores, para
adotarmos uma prática mais próxima à realidade dos nossos alunos.
Palavras-chave:
Heterogeneidade. Linguagem. Discurso. Dialogismo. Polifonia.
Considerações iniciais
M
ovida por algumas questões, enquanto
educadora, pretendo analisar e
evidenciar alguns aspectos teóricos
acerca do discurso, enfatizando uma análise que revele
ou desvende algumas relações que possibilitem
subsídios para um entendimento sobre como se constitui
e se desenvolve a construção de sentidos discursivos a
partir da inscrição do sujeito na linguagem.
Será apresentada uma abordagem teórica, sob um
enfoque mais pragmático e com alguns conceitos sobre
a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade
constituída do discurso inscrevendo o sujeito em sua
linearidade com o outro.
1 Heterogeneidade mostrada
ESPAÇO DIALÓGICO
26
O sujeito é uma unidade discursiva; fora do discurso
nós não existimos, e o discurso é a forma como o sujeito
é tomado na linguagem. Sob tal aspecto vale
evidenciarmos quais seriam as formas de
heterogeneidade sob as quais o sujeito se apresenta na
linguagem.
Segundo Authier-Revuz (2004), um outro ato de
enunciação é revelado sob as formas sintáticas do
discurso indireto e do discurso direto. No discurso
indireto o locutor aparece como um tradutor, remetendo
a um outro para dar sentido ao que ele relata, mas
fazendo uso de suas próprias palavras, enquanto que, no
discurso direto, as palavras do outro ocupam o tempo e o
espaço recortado na citação da frase, apresentando um
locutor 'porta-voz.'. “No fio do discurso que, real e
materialmente, um locutor único produz, um certo
número de formas, lingüisticamente detectáveis no nível
da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade,
o outro” (Authier, 2004, p. 12).
Uma das formas de heterogeneidade mais
complexas que a autora apresenta são as formas
marcadas da conotação automímica. O locutor usa e
mostra as palavras inscritas no fio de seu discurso.
Temos alguns exemplos dessa heterogeneidade explícita
que são o uso das aspas, do itálico, da entonação e/ ou
por alguma forma de comentário. Quanto às fórmulas de
comentário, é bastante interessante analisar que se
tratam de alguns elementos que o locutor combina
dentro de seu discurso e que constituem uma espécie de
metadiscurso explícito, que “se inserem no fio do
discurso como marcas de uma atividade de controle-
*Titulação: Especialista em Processos de Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem,
Licenciada em Letras - Português/ Inglês, Bacharel em Comunicação Social
Área de atuação: Professora do Colégio Estadual Dr. Wolfram Metzler.
Um outro tipo de heterogeneidade pode se inscrever
na linha do discurso: o das outras palavras, sob as
palavras, nas palavras.
Bakhtin (1997), afirma que as relações do discurso
com a enunciação, com o contexto sócio-histórico ou
com o 'outro' são relações entre discursos-enunciados.
“(...) Todorov, a partir da sugestão de Kristeva, prefere
usar o termo intertextualidade para os 'diálogos entre
discursos' e reserva a palavra dialogismo para os
'diálogos entre interlocutores'” (Barros, 2001, p. 33 34).
O dialogismo tal como foi acima concebido define o
texto como um “um tecido de muitas vozes”, ou de
muitos textos ou discursos, que se entre-cruzam, se
completam, respondem umas às outras ou polemizam
entre si no interior do texto. Ou seja, deve-se distinguir
o dialogismo interno ao discurso, que o define como tal
e em que se reproduzem os diálogos com outros
discursos, das relações que se podem estabelecer
externamente entre os textos (Barros, 2001, p. 34).
Koch (2000) trata da intertextualidade citando
Barthes (1974):
O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa
reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de
textos, que existiram ou existem ao redor do texto
considerado e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto
é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em
níveis variáveis, sob formas mais ou menos
reconhecíveis. Isto significa que todo texto é um objeto
heterogêneo que, revela uma relação radical de seu
interior com seu exterior; e, desse exterior,
evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão
origem, que o predeterminam, com os quais dialoga,
que retoma. A que alude, ou a que se opõe (Barthes
apud Koch, 2000, p. 46).
A autora esclarece que a intertextualidade pode ser
explícita ou implícita. A intertextualidade é explícita,
quando há citação da fonte do intertexto, temos como
exemplo o discurso relatado, as citações e referências;
as resenhas, os resumos, e traduções; as retomadas do
texto de outrem para encadear sobre ele ou questionálo, a conversação. A intertextualidade implícita ocorre
sem citação expressa na fonte, dando oportunidade ao
interlocutor de recuperá-la na memória, construindo,
assim, o sentido do texto, como na paródia, em certos
tipos de paráfrase e de ironia.
C o n f o r m e a p r e s e n t a Ko c h ( 2 0 0 0 ) , n a
intertextualidade, como na polifonia, o Eu se constitui
em relação ao Eu do Outro pelo qual também é
constituído. Assim, na intertextualidade, a alteridade é
atestada necessariamente pela presença de um
intertexto:
(...) ou a fonte é explicitamente mencionada no texto
que o incorpora ou o seu produtor está presente, em
situações de comunicação oral; ou, ainda, trata-se de
provérbios, frases feitas, expressões esteriotipadas ou
formulaicas, de autoria anônima (Koch, 2000, p. 57),
porém sempre fazem parte de um conjunto de
informações partilhado por uma comunidade de fala.
Em se tratando de polifonia, basta que a alteridade
seja encenada, isto é, incorporam-se ao texto vozes de
enunciadores reais ou virtuais, que representam
perspectivas, pontos de vista diversos com os quais o
locutor se identifica ou não.
O conceito de polifonia recobre o de intertextualidade,
isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de
polifonia, não sendo, porém, verdadeira a recíproca: há
casos de polifonia que não podem ser vistos como
manifestações de intertextualidade (Koch, 2000, p.
57).
2 Dialogismo de Bakhtin
Fiorin (2001) afirma que “o princípio unificador da
obra de Bakhtin é a concepção dialógica da linguagem”
(2001, p. 127). Para Bakhtin, a língua no seu uso real
tem a propriedade de ser dialógica, e essas relações
dialógicas não se dão apenas no diálogo face a face, mas
existe uma dialogização interna da palavra, que é
perpassada pela palavra do outro. Assim, ao construir
um discurso, o enunciador leva em conta o discurso de
outrem, que está presente no seu, sendo que várias
vozes se farão presentes.
Segundo Fiorin (2001), esse dialogismo apresentase na polifonia, no discurso direto, indireto e indireto livre
na bivocalidade, etc.
Apesar de mostrar com clareza que as relações
dialógicas estão sempre presentes na linguagem,
Bakhtin ocupou-se muito mais da análise dos
discursos em que elas se mostram do que daqueles em
que elas não se manifestam por marcas lingüísticas.
Assim, estudou mais o que, em certo momento de sua
obra, chamou o romance polifônico do que
monofônico, estudou mais o discurso carnavalesco do
que o discurso oficial a partir do qual se construía,
assim por diante (2001, p. 128).
De acordo com Fiorin (2001), um discurso é
constituído de vários campos, o religioso, o político, o
27
ESPAÇO DIALÓGICO
regulagem do processo de comunicação” (Authier,
2004, p. 14).
filosófico, entre outros, e cada um é formado de vários
espaços, que são os interdiscursos. Logo, todo
enunciado de um discurso se constitui de uma relação
polêmica com o outro: é o discurso segundo que se
constitui a partir do discurso primeiro e esse é o outro
daquele. “Essas relações conflituais permitem entender
elaborações e reelaborações discursivas, dominâncias e
apagamentos discursivos, etc." (Fiorin, 2001, p. 133).
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno
próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural
de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos
até o objeto, em todas as direções, o discurso se
encontra com o discurso de outrem e não pode deixar
de participar, com ele, de uma interação viva e tensa.
Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira
palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado,
somente este Adão podia realmente evitar por
completo esta mútua orientação dialógica do discurso
alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto
e histórico, isso não é possível: só em certa medida
convencionalmente é que pode dela se afastar
(Bakhtin apud Fiorin, 2001, p. 127).
Segundo Barros (2001), para Bakhtin, o dialogismo
é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do
sentido do discurso, sendo que esse não é individual,
pois se constrói como um diálogo entre discursos,
mantendo relações com outros discursos. “Bakhtin
aponta no enunciado-discurso dois aspectos: o que vem
da língua e o que vem do contexto” (2001, p. 33). O
enunciado aparece como produto de uma enunciação ou
de um contexto histórico, social, cultural.
ESPAÇO DIALÓGICO
28
Barros (2001) também apresenta a questão do
dialogismo e da polifonia, ou seja, a do ocultamento ou
não do dialogismo discursivo. Nos escritos de Bakhtin,
muitas vezes, temos essa relação entre dialogismo e
polifonia utilizada como sinônimos. A autora comenta
alguns de seus trabalhos anteriores (1994) quando
distingue dialogismo e polifonia, reservando o termo
dialogismo para “o princípio dialógico constitutivo da
linguagem e de todo discurso e empregando a palavra
polifonia para caracterizar um certo tipo de texto, aquele
em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são
percebidas muitas vozes, por oposição aos textos
monofônicos que escondem os diálogos que os
constituem” (2001, p. 36). Para Barros (2001), temos,
então, dois tipos de textos: os polifônicos e os
monofônicos, conforme as estratégias discursivas
empregadas. Nos textos polifônicos, os diálogos entre os
discursos deixam-se ver e nos monofônicos eles se
ocultam como se fossem uma só voz. Para a autora,
polifonia e monofonia seriam uma questão de efeitos de
sentido.
Em outros trabalhos, a autora considera polifonia e
monofonia distinguindo dois tipos de discursos, os
discursos autoritários e os poéticos.
Nos discursos autoritários abafam-se as vozes,
escondem-se os diálogos e o discurso se faz discurso
da verdade única, absoluta e inconfundível. A única
forma de contestar tais discursos é recuperar
externamente a polêmica escondida, os confrontos
sociais, ou seja, contrapor ao discurso autoritário um
outro discurso, responder a ele, com ele dialogar,
polemizar. O discurso poético, por sua vez, é aquele
que expõe, que mostra ou que deixa escutar o
dialogismo que o constitui, a heterologia discursiva, as
vozes contraditórias ds conflitos sociais (BARROS,
2001, p. 36).
Conforme Barros (2001), todo discurso que
apresentar as características de polifonia mencionadas
será um discurso poético, incluindo aí, poesia, pintura,
prosa, dança, etc. A autora esclarece que, para Bakhtin,
não há discurso monofônico na literatura, nem mesmo
na poesia lírica.
Para Bakhtin (1997), “o discurso citado é o discurso
no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao
mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma
enunciação sobre a enunciação” (1997, p. 144). O
teórico russo afirma que a fala é apenas o conteúdo do
discurso; o tema; porém, o discurso do outro constitui
mais do que o tema do discurso, pois pode entrar no
tema e na construção sintática, como uma unidade
integral da construção. Podemos dizer que o discurso
citado mantém sua autonomia estrutural e semântica,
sem alterar a trama lingüística do contexto que o
integrou.
Se a enunciação citada for tratada só como um
tema do discurso, apenas pode ser caracterizada
superficialmente, porque, para penetrar no seu
conteúdo é preciso integrá-lo na construção do discurso,
mas, “quando passa à unidade estrutural do discurso
narrativo, no qual se integra por si, a enunciação citada
passa a construir ao mesmo tempo um tema do discurso
narrativo” (Bakhtin, 1997, p. 144).
O autor também coloca que a língua é o reflexo das
relações sociais estáveis dos falantes, e não das
hesitações subjetivo-psicológicas, sempre apresentando
um objetivo específico conforme a língua, a época ou os
grupos sociais. Bakhtin acrescenta que:
toda a essência da apreensão apreciativa da
enunciação de outrem, tudo o que pode ser
ideologicamente significativo tem sua expressão no
discurso interior. Aquele que apreende a enunciação
de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas
ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a
sua atividade mental, o que se pode chamar o 'fundo
preceptivo', é mentalizado para ele pelo discurso
interior e é por aí que se opera a junção com o discurso
interior que se efetua a apreensão da enunciação de
outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a
orientação ativa do falante (BAKHTIN, 1997, p. 147).
Conforme Bakhtin (1997) unem-se, então, o
discurso citado e o contexto narrativo por relações
dinâmicas, complexas e tensas. Sua compreensão fica
impossível se não considerarmos essas relações. O
discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo
devem ser o objeto verdadeiro de uma pesquisa. E eles
só têm existência real através dessas inter-relações,
nunca de maneira isolada. “O discurso citado e o
contexto de transmissão são somente os termos de uma
inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez,
reflete a dinâmica da inter-relação social dos indivíduos
na comunicação ideológica verbal” (1997, p. 148).
construído como sendo o de outrem atinge uma
sobriedade e uma plasticidade máximas (Bakhtin,
1997, p. 150).
Bakhtin apresenta uma segunda orientação da
dinâmica da inter-relação da enunciação e do discurso
citado, cuja tendência é minorar os contornos exteriores
nítidos da palavra de outro. Neste caso, a língua
elaborará meios sutis, para deixar o autor infiltrar suas
réplicas e seus comentários no discurso de outro. O
contexto narrativo desfaz a estrutura compacta e
fechada do discurso citado, por absorvê-lo, fazendo
desaparecer suas fronteiras. Os aspectos diferentes da
enunciação podem ser sutilmente postos em evidência e
é, então, apreendido o seu sentido objetivo e todas as
particularidades lingüísticas da sua realização verbal.
“Podemos chamar este estilo de transmissão do
discurso de outrem o estilo pictórico” (1997, p. 150).
3 Heterogeneidade constitutiva
Pode ser que o discurso de outrem seja recebido como
um único bloco de comportamento social, como uma
tomada de posição inanalisável do falante - e nesse
caso apenas o 'o quê' do discurso é apreendido,
enquanto o 'como' fica fora do campo de compreensão
(Bakhtin, 1997, p. 149).
Segundo Bakhtin (1997), entram aí o grau de
firmeza ideológica, o grau de autoridade e de
dogmatismo acompanhando a apreensão do discurso.
Podemos chamar essa primeira orientação na qual se
move o dinamismo da interorientação entre discurso
narrativo e o discurso citado, o estilo linear (der lineare
Stil) de citação do discurso de outrem (tomando o
termo emprestado do crítico de arte Wolfflin). A
tendência principal do estilo linear é criar contornos
exteriores nítidos à volta do discurso citado,
correspondendo a uma franqueza do falar individual
interno. Nos casos em que existe uma completa
homogeneidade estilística de todo o texto (o autor e
suas personagens falam a mesma língua), o discurso
O que a psicanálise analisa, nessa rede de
oposições, é o lugar dado ao outro; “um outro que não é
nem duplo de frente a frente, nem mesmo o 'diferente',
mas um outro que atravessa constitutivamente o um. É o
principal fundador - ou que deveria ser reconhecido
como tal - da subjetividade, da crítica literária, das
ciências humanas em geral” (Authier, 2004, p. 25).
Conforme Authier (2004), existe um ponto limite
entre a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade
constitutiva; uma relação que, por limiares e
continuidade, vai além das formas mostradas, onde se
esgota a descrição lingüística. Esse ponto é a
constatação de que o outro é sempre onipresente e está
em toda parte.
Nem estágio de decomposição, nem luminoso
horizonte de ultrapassagem; para a descrição
lingüística da forma de heterogeneidade mostrada, a
consideração da heterogeneidade constitutiva é, a
meu ver, uma ancoragem, necessária, no exterior do
lingüístico (...) Os trabalhos de Bakhtin estão
fundamentalmente inscritos no campo semiótico e
literário; a psicanálise tem por objeto o inconsciente
(Authier, 2004, p. 22).
Através das palavras do outro o eu é inscrito na
linguagem; a começar pelo próprio nome, que passa
pela boca da mãe, com sua entonação, pois quem
inscreve o bebê na linguagem é a mãe.
Segundo Jerusalinsky (1999), daquilo que o bebê
faz, a mãe supõe uma significação. Se chorar é porque
está com fome, frio, e assim por diante. A mãe precisa
29
ESPAÇO DIALÓGICO
O autor apresenta duas orientações principais para
verificarmos em que direção pode se desenvolver a
dinâmica da inter-relação entre o discurso narrativo e o
discurso citado. A primeira diz respeito à tendência
fundamental da reação ativa ao discurso de outro quanto
à conservação da sua integridade e autenticidade, pois a
língua pode delimitar o discurso citado com fronteiras
nítidas e estáveis, isolando-o e protegendo-o de
infiltrações, consolidando as características lingüísticas
individuais. Aqui, podemos verificar até que ponto uma
comunidade lingüística mantém a apreensão social do
discurso de outrem, quanto às expressões, às
particularidades ou estilísticas do discurso, são
realmente percebidas e compreendidas.
dar essa significação para que ele seja inserido na
linguagem. Falando o bebê, ela o inscreve; portanto, as
mães são interpretativas em relação ao que ocorre com
seu bebê. O choro, por exemplo, é significante que a mãe
transforma no momento que fala o bebê, permitindo-nos
pensar que os bebês estão no campo da linguagem,
embora ainda não falem. O choro é o significante lido e
compreendido pela mãe que fala o seu bebê.
“Todo o humano forma parte da linguagem, está
inscrito no universo simbólico, que determina a um
sujeito com tal. Assim fica incluído na cultura e, portanto,
excluído do reino natural animal” (Levin, 1999, p. 68) e a
linguagem pré-existe como estrutura ao sujeito.
Assim, tudo que dissermos, em qualquer lugar ou
circunstância, vai encontrar algo já existente, dito
previamente, de forma a se escutar e se localizar de
determinada maneira em determinada posição/lugar, e é
isso que mudará o sentido do que dizemos.
Jerusalinsky ainda afirma que o ser humano
depende da linguagem, pois essa é que o difere dos
outros animais. Falamos através de uma cadeia
significantes. No dizer do sujeito se antecipa um efeito
que vai causar no Outro, e em função dessa antecipação,
que se produz, inconscientemente, em seu dizer, vai
mudando, articulando o que diz.
O fazer de uma criança normal é um fazer que consulta
o Outro, portanto é um fazer no campo do significante.
Não é um simples acional, é um acionar onde o ato
vem a posteriori de uma seqüência construída, e de
consultar o Outro com seu olhar (1999, p. 58 - 59).
Falando em termos educativos, conforme o autor,
não podemos esquecer, também, que, para que a
criança aprenda, é preciso que ali haja silêncio, um
espaço, uma pausa, e a criança tome deste vazio, para
então, preenchê-lo com sua própria versão.
(...) há sempre um sujeito que requer que se faça um
vazio de saber, para que possa buscar seu próprio
saber, ou sua versão própria, acerca deste saber do
Outro. (...) Quando o saber médico, psicológico ou o
saber educativo tampam com um saber técnico o que
essa criança quer saber, fechamos, a partir da técnica,
todo o espaço da subjetividade que nessa criança está
se constituindo (Jerusalensky, 1999, p. 62).
ESPAÇO DIALÓGICO
30
O silêncio dessa criança, então, fará sintoma no seu
corpo e ela não falará nada, não se manifestando no
simbólico, no dizer, mas manifestando-se no seu corpo.
Portanto, o sujeito é o efeito da linguagem.
O outro é um lugar estranho, de onde emana todo o
discurso: lugar da família, da lei, do pai, na teoria
freudiana, elo da história e das posições sociais, lugar
a que é remetida toda subjetividade; dizer que o
inconsciente é o discurso do Outro é reafirmar, de
maneira determinista, que um discurso livre não existe
e é dar-lhe a lei (Clement apud Authier, 2004, p. 64).
Authier (2004) considera que “o ponto de vista do
discurso atravessado pelo inconsciente articula-se a
posições sobre o sujeito, o sujeito falante (nosso locutor)
e finalmente, a partir do campo exterior da 'lingüisteria' à
lingüística (2004, p. 62).
Segundo a autora não há um discurso próprio do
inconsciente, pois o inconsciente age no discurso
normal. “A instância dinâmica (do inconsciente) é
provocar a báscula pela qual um discurso volta a um
outro por deslocamento do lugar em que o efeito
significante se produz (Lacan apud Authier, 2004, p.
52)”.
O sujeito é resultado de uma complexidade, nada é
isolado, nem dividido. É pleno, logo o seu discurso não
pode se reduzir ao explícito e sim a um Outro de cada um
de nós mesmos que se mesclou ao outro de tantos.
Nosso inconsciente não é outro discurso, mas registro de
várias vozes, ao mesmo tempo.
Considerações finais
Para a psicanálise é função materna a inscrição do
sujeito na linguagem. Esse sujeito que é uma unidade
discursiva que fora do discurso não existe, pois o
discurso é a forma como o sujeito é tomado na
linguagem.
Segundo Authier-Revuz (2004), um outro ato de
enunciação é revelado sob as formas sintáticas, quanto
ao discurso direto e indireto. No discurso indireto o
locutor aparece como um tradutor, remetendo a um
outro para dar sentido ao que ele relata, mas fazendo uso
de suas próprias palavras, enquanto, no discurso direto,
as palavras do outro ocupam o tempo e o espaço
recortado na citação da frase, apresentando um locutor
‘porta-voz’.
Bakhtin (1997), afirma que as relações do discurso
com a enunciação, com o contexto sócio-histórico ou
com o 'outro' são relações entre discursos-enunciados.
Conforme o autor, a língua tem a propriedade de ser
dialógica e essas relações dialógicas se dão, além do
diálogo face a face, como na dialogização interna da
palavra que perpassa pela palavra do outro. São várias
vozes num mesmo discurso que se entrelaçam com
outras vozes. Unem-se o discurso citado e o contexto
narrativo por relações dinâmicas, complexas e tensas.
Sua compreensão fica impossível se não considerarmos
essas relações.
O teórico russo afirma que a fala é apenas o
conteúdo do discurso; o tema; porém, o discurso do
outro constitui mais do que o tema do discurso, pois
pode entrar no tema e na construção sintática, como
uma unidade integral da construção.
O que a psicanálise analisa nessa rede de oposições
é o lugar dado ao outro; “um outro que não é nem duplo
de frente a frente, nem mesmo o 'diferente', mas um
outro que atravessa constitutivamente o um. É o
principal fundador ou que deveria ser reconhecido como
tal da subjetividade, da crítica literária, das ciências
humanas em geral” (Authier, 2004, p. 25).
Portanto, existe um ponto limite entre a
heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade
constitutiva; uma relação que, por limiares e
continuidade, vai além das formas mostradas, em que se
esgota a descrição lingüística. Esse ponto é a
constatação de que o Outro é sempre onipresente e está
em toda parte.
Em termos educativos, não podemos esquecer que,
para que a criança aprenda é preciso que ali haja
silêncio, um espaço, uma pausa, e que a criança tome
desse vazio, para, então, preenchê-lo com sua própria
versão.
Numa sala de aula, a cada atividade proposta, temse a capacidade de apreender e aguçar o imaginário do
educando, engrandecendo suas experiências e
tornando-o co-autor da aprendizagem. Precisamos aqui,
entender por aprendizagem a compreensão e as
relações que o educando consegue estabelecer, por
exemplo, numa interpretação textual, quando o
educador/ professor permite sua manifestação,
concede-lhe a pausa, o tempo para manifestar-se.
Enfim, esse grandioso processo que transporta o
educando para um mundo antes desconhecido. Uma
troca que se dá a partir das relações com esse grande
Outro e com os outros. Um sujeito que se constitui pela e
através da linguagem, sob todas as formas de
heterogeneidade.
É importante salientar que as formas de
heterogeneidade mostradas não são um espelho, no
discurso, da heterogeneidade constitutiva do discurso.
Não há um discurso próprio do inconsciente, pois o
inconsciente age no discurso normal.
Quanto à inscrição do sujeito, lembremos que
através das palavras do outro o eu é inscrito na
linguagem; a começar pelo meu nome, que passa pela
boca da mãe, com sua entonação, pois quem inscreve o
bebê na linguagem é a mãe.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. 8.ed. São Paulo: SP. HUCITEC.
1997.
BARROS, D. P. & FIORIN, J. L. (org.) Dialogismo,
Polifonia, Intertextualidade: Em torno de
Bakhtin. São Paulo: SP. Edusp, 1999.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José
Luiz, MACHADO, Irene A.; in: FARACO, Carlos
Alberto; TEZZA, Cristovão; CASTRO Gilberto de.
(org) Diálogos com Bakhtin. 3. ed. Curitiba:
Paraná. UFPR, 2001.
CORIAT. Centro Lydia. Escritos da Criança. 2. ed.
Porto Alegre: RS.
J E R U S A L I N S K Y, A l f r e d o . P s i c a n á l i s e
desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes e
Offícios, 1999.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a
construção de sentidos. SP: Contexto, 2000.
31
ESPAÇO DIALÓGICO
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade
mostrada e heterogeneidade constitutiva:
elementos para abordagem do outro nos
discursos. Porto Alegre: EDIPUC/RS, 2004.
LEITURA EM SALA DE AULA:
um ato enunciativo
Sabrina Vier*
Resumo
Partindo do pressuposto de que a leitura é um ato enunciativo, fundamentado no referencial teórico de Benveniste,
Bakhtin e Ducrot, é proposto o trabalho com a canção “Subúrbio”, de Chico Buarque. No ato da leitura, temos uma cena
intersubjetiva: o enunciador que é o autor da canção, abre a possibilidade ao leitor de ser co-enunciador, co-autor da
canção. No diálogo autor/sujeito-leitor, o sentido é produzido ativamente no aqui-agora em que se dá a leitura. O texto,
nessa perspectiva, abre a possibilidade para diferentes leituras, mas não para qualquer leitura. O papel do professor não
é o de encaminhar leituras em sala de aula, mas convidar o aluno a participar do diálogo enunciador/co-enunciador,
observando e analisando como o texto diz o que diz: o sentido dado pelo sistema da língua, reiterável, e o sentido dado
pela enunciação, sempre mutável e adaptável, porque o sujeito está aí implicado.
Palavras-chave:
Enunciação. Gênero canção. Sujeito.
Considerações iniciais
E
ste é um texto sobre a leitura em sala de
aula.
Houve um tempo em que ler era buscar de maneira
objetiva o significado contido nas palavras presentes no
texto. Dascal (2006) denomina esse modelo de leitura
de criptográfico. “Independentemente de quão difícil ou
prolongada seja a busca do significado, existe no fundo
um fato que permite avaliar objetivamente o resultado:
ou você descobre o significado, ou não” (ibid, p. 218). O
sentido estava na decodificação do código escrito.
Com a descoberta de teorias da interação, o sentido
passou a estar no leitor. Todo e qualquer sentido, desde
que produzido pelo leitor, seria possível. Dascal (2006)
chama esse modelo de leitura de hermenêutico: leitores
diferentes, cada um com seus valores e história de vida,
construiriam, de maneiras diferentes, significados para o
mesmo código.
ESPAÇO DIALÓGICO
32
O autor afirma que os dois modelos de leitura, por
motivos completamente diferentes, têm uma
conseqüência similar: ambos negligenciam ou
miniminizam o papel do enunciador do texto (Dascal,
2006).
Ao enfatizar somente o código ou o leitor, o
professor está esquecendo que o texto é produzido com
intenções comunicativas. Nele, a linguagem é posta em
ato por um sujeito que tem algo a dizer.
Ao possibilitar a leitura em sala de aula, é
imprescindível que o professor aponte marcas
lingüísticas que levem a pensar como o texto diz o que
diz. A leitura não está no texto nem no aluno. O sentido
em leitura é produzido na ação de dirigir o olhar para o
fato do enunciador ter dito o que disse.
1 Leitura como ato enunciativo
A leitura é um fenômeno complexo e, conforme
Teixeira (2005), não se esgota em um olhar. Vista como
ato enunciativo, a leitura produz uma relação
intersubjetiva sempre inédita: “a pessoa que interpreta
um enunciado reconstrói seu sentido a partir de
indicações nele presentes, mas nada garante que o que
ela reconstrói coincida com as representações do
enunciador” (Flores e Teixeira, 2005, p. 8).
*Titulação: Mestre em Lingüística Aplicada, Especialista em Estudos
Lingüísticos do Texto.
Área de atuação: Professora de Língua Portuguesa na IENH.
Não há um domínio absoluto sobre o sentido, pois o
sentido não é dado pelo texto, ele é produzido por aquele
que lê, no aqui-agora em que se dá a leitura e que é um
momento sempre novo, irrepetível. A partir de tal
perspectiva, segundo Teixeira (2005), devemos
reconhecer que há algo de subjetivo nessa relação texto
e sujeito-leitor (aluno e professor).
É importante não confundirmos o fato de não haver
uma leitura prevista para o texto com o fato de ser
possível produzir qualquer leitura a partir de um texto.
Teixeira (2005, p. 201) afirma que a leitura “está sujeita
às convenções lingüísticas, às restrições de gênero, aos
pontos de ancoragem discursiva que orientam a
expectativa do leitor, delimitam a interpretação e a
impedem de se perder em qualquer direção”.
depende muito mais do contexto comunicativo e da
cultura do que da própria palavra (Marchuschi, 2002).
A canção popular, gênero da esfera artística,
segundo Costa (2000), é um gênero híbrido, de caráter
semiótico, resultante de dois tipos de linguagem: a
verbal e a musical (ritmo e melodia). A canção não é
exclusivamente texto verbal, nem peça melódica: é, sim,
uma junção das duas materialidades.
É, afinal, um dispositivo enunciativo e devem-se
levar em conta elementos relativos à produção,
circulação e recepção:
Há que se considerar a contribuição dos músicos e
técnicos, a existência do arranjo e do
acompanhamento vocal e instrumental, da produção
discursiva periférica (encarte), das linguagens que
acompanham essa produção (pintura, desenho, artes
plásticas, fotografia, etc.). Há também que se observar
a realidade do disco. A disposição das canções
contidas ali (Costa, 2000, p. 120-21).
O texto a ser lido é de autoria de Chico Buarque e foi
escrito em 2006. Trata-se de Subúrbio.
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral
Fala, Piedade
Casas sem cor
Ruas de pó, cidade
Que não se pinta
Que é sem vaidade
2 A canção popular como objeto de leitura
16
17
18
19
20
21
22
23
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Desbanca a outra
A tal que abusa
De ser tão maravilhosa
A canção popular é um gênero discursivo. É
importante não confundir gênero com tipologia textual.
Gênero é um evento lingüístico, mas não pode ser
definido por características lingüísticas: caracteriza-se
enquanto atividade sócio-discursiva. Quando
denominamos um gênero, não denominamos uma
forma lingüística e sim uma forma enunciativa que
24
25
26
27
28
29
30
31
Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas
Fala, Maré
Em enunciação, o sujeito-leitor está sempre em
contato com o que é da ordem da língua enquanto
sistema, o repetível, e o que é da ordem da enunciação,
o irrepetível. Por exemplo: pensando o pronome “eu”, é
da ordem do repetível o fato de sempre designar aquele
que fala e da ordem do irrepetível o fato de ter sempre
uma referência diferente a cada instância em que é
enunciado. E é entre o repetível e o irrepetível que o
sentido é produzido em enunciação.
Não cabe ao sujeito-leitor, o aluno e o professor,
conforme Teixeira e Di Fanti (2006), “descobrir o que o
autor quis dizer”, mas, sim, a partir da leitura de marcas
lingüísticas, atribuir respostas ou “contrapalavras” ao
dizer do outro.
Apresentarei aqui uma possibilidade de leitura para
uma canção de Chico Buarque.
33
ESPAÇO DIALÓGICO
Conceber a leitura como um fenômeno enunciativo
é concebê-la “como um ato do sujeito-leitor, mediante o
qual ele estabelece uma relação com o texto para
produzir sentido no momento da leitura” (Teixeira, 2005,
p. 200). O sujeito-leitor, aqui o aluno e o professor,
transforma-se em co-enunciador, pois produz sentidos a
partir de sua história de vida, seus valores, sua cultura.
32
33
34
35
36
37
38
39
Fala, Madureira
Fala, Pavuna
Fala, Inhaúma
Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz
Nos arredores
Carrega a tua cruz
E os teus tambores
outra foto do autor. Este está cabisbaixo e parece estar
saindo de um lugar. O encarte também contém mapas e
fotos da equipe que participou da gravação de Carioca.
Junto à letra de Subúrbio, encontramos uma foto de
Chico Buarque de braços cruzados sob outro mapa do
centro da cidade. A arte do encarte aponta para o diálogo
proposto pelo disco: abordar o Rio de Janeiro.
40
41
42
43
44
45
46
47
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Fala no pé
Dá uma idéia
Naquela que te sombreia
O produtor musical e o responsável pelos arranjos e
regência de todas as faixas do cd é Luiz Cláudio Ramos.
Para Chico Buarque, a parceria com o produtor neste
disco “foi muito boa, pois como o produtor cria os
arranjos a partir do violão, isso torna seu trabalho mais
próximo ao meu” (Desconstrução, 2006).
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda
Perdido em ti
Eu ando em roda
É pau, é pedra
É fim de linha
É lenha, é fogo, é foda
Segundo Chico Buarque (Desconstrução, 2006), “é
mais fácil de discutir minúcias e detalhes, harmonias e
tal sendo o mesmo instrumento”. Quando sai da
harmonia², da melodia³ e da letra4, os passos seguintes
são do produtor. É o produtor quem decide quem será
chamado para tocar a música. Chico Buarque afirma que
até pode dar alguns palpites, mas quem é o responsável
pelo trabalho final da música é o produtor.
58
59
60
61
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Encantado, Bangu
Fala, Realengo...
62
63
64
65
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Meriti, Nova Iguaçu
Fala, Paciência...
Subúrbio tem a duração de três minutos e vinte
segundos e é um choro-canção.
O choro é um gênero musical com mais de 130
anos de existência. Os primeiros conjuntos de choro
surgiram por volta de 1880, no Rio de Janeiro, nascidos
no bairro Cidade Nova e nos quintais dos subúrbios
cariocas (Roschel, 2007).
Organizo a leitura em três momentos
complementares: (1) compreensão extralingüística:
produção, circulação e recepção; (2) compreensão do
gênero canção: composição e tema; e (3) compreensão
do estilo: marcas lingüísticas.
ESPAÇO DIALÓGICO
34
(1) Carioca (2006) é a obra musical mais recente de
Chico Buarque¹. A capa que traz o compact disc
(doravante cd) traz o nome do autor, sua foto e o título
Carioca. A foto é colorida e compreende o rosto do autor.
Sobreposto à foto, há um mapa das ruas do Rio de
Janeiro, mais especificamente, do centro da cidade. No
verso, encontramos uma foto do tórax do autor, o
restante do mapa e os títulos das doze canções do cd.
Dentro da capa, encontramos outro mapa do centro e
NOTAS
Segundo Diniz (2003), uma das principais
discussões sobre o choro é se deve ou não ter letra. Os
“chorões” têm opiniões diversas, já que o gênero é
puramente instrumental, mas há exemplos de
compositores passados e presentes que se atrevem a
produzir letras para alguns choros, como é o caso de
Chico Buarque. Subúrbio é um exemplo de chorocanção: o gênero musical com letra.
(2) Em sua construção composicional, Subúrbio
apresenta enunciados que se repetem. Essa é uma
característica recorrente do gênero canção (cf. Teixeira e
Di Fanti, 2006). “Lá” (linhas 1, 4, 24, 29 e 48), “não”
(linha 1, 2, 3, 4, 14, 24, 27, 28 e 48) e “fala” (linhas 20,
31, 32, 33, 34, 44, 45, 48, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64
¹ O disco anterior é As cidades, de 1998.
² “Conjunto de sons dispostos em ordem simultânea - concepção vertical de música. [...] É a arte e a ciência dos acordes e suas
combinações” [grifo do autor] (Med, 1996, p. 11 e 271).
³ “Conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva - concepção horizontal de música - [...] que obedece um sentido lógico [grifo
do autor] (Med, 1996, p. 11 e 271).
4
Texto verbal da canção (Costa, 2002).
Quanto ao gênero musical 5 , encontramos em
Subúrbio um compasso quaternário. A instrumentação
utilizada por Luiz Cláudio Ramos, típica do choro, é
composta de violão, baixo acústico, pandeiro, piano
acústico, clarinete, flauta e violoncelo.
Nas cinco primeiras partes, há intercalação entre
frases 6 mais melódicas e frases mais recitativas, onde o
canto imita a fala. Quando da presença dos verbos “fala” e
“dança”, as partes são recitadas.
Na primeira parte da letra, das linhas 5 a 6 e 12 a 15
há notas próximas, o que gera certa tensão na música.
Quando da palavra “mapa” (linha 4), temos uma
acentuação musical que se caracteriza por um salto de
intervalo7 ascendente na música. Em “labirinto” (linha 5),
a sílaba “la” apresenta também uma entonação musical.
Na sílaba “de” de “vaidade” (linha 15), há a nota mais
grave da primeira parte. E na sílaba “cho” de “chorocanção” (linha 16), a nota mais aguda da segunda parte.
Há entre o grave e o agudo, entre a primeira e a segunda
partes, um acorde musical que também aparece na letra:
“Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção” (linha 16). Ao
cantar “choro-canção”, entra o som de um clarinete,
instrumento típico do choro, pois seu som é malandro e
insinuante.
Na terceira parte, quando o cantor entoa “moças”,
linha 24, entra o som de um violoncelo, instrumento que
mais se aproxima da voz humana; seu som é sensual.
Quando da palavra “turista”, repete-se a acentuação
musical. Em “res” de “tambores” (linha 39), há a nota
mais grave da terceira parte e em “cho” de “choro-canção”
(linha 40), a nota mais aguda da quarta parte: há
novamente um acorde, como no texto da letra (linha 40).
Em “choro-canção”, sai o clarinete e entra uma flauta. A
flauta também é um instrumento típico do choro, seu som
é mais delicado.
NOTAS
Nas sexta e sétima partes, há intervalos musicais
repetidos insistentemente. Há a presença simultânea
do clarinete e da flauta. Os trechos são melódicos. Ao
encerrar a sétima parte, o cantor entoa um “falô” que
não aparece na letra.
A temática, quanto à letra, contempla aspectos
relativos ao subúrbio do Rio de Janeiro. Alguns itens
lexicais orientam nessa direção: os nomes de bairros e
de uma favela 8 (Penha, Irajá, Olaria, Acari, Vigário
Geral, Piedade, Maré, Madureira, Pavuna, Inhaúma,
Cordovil, Pilares, Penha, Irajá, Encantado, Bangu,
Realengo, Maré, Madureira, Meriti, Nova Iguaçu e
Paciência) e os estilos musicais (choro, funk, rock,
forró, pagode, reggae, hip-hop, samba e rap). Quanto
ao gênero musical, a escolha do choro também aponta
para o subúrbio do Rio de Janeiro, tendo em vista que
foi aí que surgiu esse gênero musical.
Segundo Palleno (2005), etimologicamente a
palavra “subúrbio” significa o espaço que cerca uma
cidade, mas esse sentido tem sido deturpado,
especialmente no Rio de Janeiro. "A palavra subúrbio,
no Rio, é muito mal resolvida e ganhou uma conotação
muito forte de classe, até meio pejorativa" (Fernandes,
apud Palleno, 2005).
(3) Para a análise do estilo, busco apoio nos
estudos de Ducrot (1987) sobre enunciado negativo,
Benveniste (1989, 1995) sobre a inversibilidade que
assegura a subjetividade e Bakhtin (2003) sobre
exotopia.
Segundo Flores e Teixeira (2005), a semântica
argumentativa de Ducrot está relacionada com a
enunciação na medida em que considera tanto a
presença de diferentes vozes (polifonia 9 ) quanto a
evocação de princípios argumentativos que numa
situação x dão a direção de como um dado enunciado
deve ser lido.
Ler, a partir da teoria de Ducrot, é observar como,
no enunciado, configura-se o jogo polifônico, o
entrecruzamento de diferentes perspectivas, pontos de
vista, a partir dos quais o locutor fala, enuncia-se.
Dentre as marcas lingüísticas da canção, interessamme, aqui, os enunciados negativos.
Para a análise do gênero musical, conto com a valiosa colaboração do músico Marcelo Felipe Vier, violinista da Orquestra
Sinfônica da Universidade de Caxias do Sul.
“Frase é uma unidade musical com sentido de conclusão” (Med, 1996, p. 335).
7
“Intervalo é a diferença de altura entre dois sons” (Med, 1996, p. 60).
8
Os bairros são do norte e oeste do Rio de Janeiro. A favela é Maré.
9 A noção de polifonia em Ducrot ancora-se no pressuposto de que o sentido de um enunciado é constituído pela superposição de
vários discursos, cujos supostos responsáveis podem ser diferentes do responsável pelo enunciado (Ducrot, 1987).
5
6
35
ESPAÇO DIALÓGICO
e 65) aparecem em diferentes combinações. A letra é
dividida em sete partes, sendo que em seis há uma
intercalação entre “lá” (linhas 1, 24 e 48) e um verbo no
imperativo (“vai”, linha 16, “vai”, linha 40 e “fala”, linha
58). Na última parte, a sétima, há novamente um verbo no
imperativo, “fala” (linha 62). Essa organização introduz e
recupera o tema da canção: há um lugar, o subúrbio, de
que se fala e uma ordem que se deseja dar: vai e fala.
Segundo Ducrot (1987, p. 202), “a maior parte dos
enunciados negativos [...] faz aparecer em sua
enunciação o choque de duas atitudes antagônicas,
uma, positiva, imputada a um enunciador E1, a outra,
10
que é uma recusa da primeira, imputada a E2”. Para o
autor, em uma negação contém uma afirmação. Para
comprovar tal afirmação, Ducrot (1987) sugere o
emprego da expressão ao contrário, encadeado a um
enunciado negativo. Por exemplo, ao enunciado “Pedro
não é gentil”, podemos encadear “ao contrário, ele é
insuportável”. O segundo enunciado, como se pode
perceber, é contrário ao ponto de vista positivo que o
primeiro nega e veicula ao mesmo tempo. O autor
salienta que essa possibilidade de encadeamento é
excluída se o primeiro enunciado é positivo. Não se terá
nunca “Pedro é gentil. Ao contrário, ele é adorável”. O
“enunciador tem uma presença e um estatuto diferente
no enunciado positivo e no enunciado negativo” (Ducrot,
1987, p. 203).
11
O lugar do enunciador já está marcado na frase no
momento em que se interpreta o enunciado negativo: há
uma oposição não a um locutor, mas a um enunciador, a
um ponto de vista.
O que é afirmado pertence ao “aqui”; o que é
negado a “lá”.
aspecto, recorro ao estudo sobre a subjetividade na
linguagem de Benveniste.
Pensar a leitura como ato enunciativo, a partir da
teoria de Benveniste, é trabalhar o modo como se diz, ou
seja, como o sujeito marca-se, representa-se no seu
dizer. Dentre as marcas lingüísticas da canção,
interessam-me, aqui, os pronomes pessoais.
Segundo Benveniste (1995), os pronomes pessoais
fora do discurso efetivo são formas vazias, que não
podem ser ligadas nem a um objeto nem a um conceito.
O pronome recebe sua realidade e sua substância
somente do discurso.
A partir do pronome “eu”, o locutor enuncia sua
posição no discurso, propondo-se como sujeito e
revelando a subjetividade na linguagem. “É 'ego' que diz
ego. Encontramos aí o fundamento da 'subjetividade' que
se determina pelo status lingüístico de pessoa” [grifo do
autor] (Benveniste, 1995, p. 286).
Na letra da canção, o locutor enuncia sua posição
no discurso a partir do pronome pessoal na linha 54: “Eu
ando em roda”. A posição do “eu” é marcada em
contraste: “Perdido em ti/ Eu ando em roda” (linhas 53 e
54). Segundo Benveniste,
Podemos encontrar marcas do enunciador na
afirmação contida na negação, pois a negação aponta
para a presença de uma outra voz, o ausente que é
afirmado. Para alguém estar “lá”, alguém precisa estar
“aqui”. Olhando para “tu” que está “lá”, o enunciador
marca o seu lugar, “aqui”.
A consciência de si mesmo só é possível se
experimentada por contraste. Eu não emprego eu a
não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha
alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é
constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade
que eu me torne tu na alocução daquele que por sua
vez se designa por eu [grifos do autor] (1995, p. 286).
Pode-se afirmar, a partir da análise realizada até
agora, que a canção coloca em oposição dois lugares
distintos: “lá” e “aqui”. E que lugares são esses?
A linguagem é condição de existência do homem e
como tal ela é sempre referida ao outro, ou seja, na
linguagem se vê a intersubjetividade como condição da
subjetividade.
“Lá” e “aqui” são expressões dêiticas. Os dêiticos
organizam o espaço a partir de um ponto central (ego)
(Benveniste, 1989). Uma vez que o título aponta para o
subúrbio podemos produzir a seguinte leitura: o “eu” faz
referência a um “aqui”; logo, o “eu” está fora do
subúrbio, que é “lá”.
Há um diálogo proposto por “eu”: dialogar com “tu”
a respeito de “ela”, “a tal que abusa/ de ser tão
maravilhosa” (linhas 22 e 23).
O que o enunciador deseja falar ao subúrbio?
Recorremos a Bakhtin para pensarmos esse diálogo.
E a quem “eu” e “tu” fazem referência? Nesse
ESPAÇO DIALÓGICO
36
NOTAS
10
Para Ducrot, há diferença entre sujeito falante, locutor e enunciador. Sujeito falante é o elemento da experiência, ou seja, o ser
empírico e responsável pela realização física do enunciado. O locutor é aquele que se responsabiliza pela produção do
enunciado, constituindo-se como um ser discursivo. O enunciador é a fonte dos diferentes pontos de vista, às vezes opostos aos
do locutor, presentes no enunciado (Ducrot, 1987).
11 “A teoria criada por Ducrot denomina frase a entidade lingüística abstrata, teórica, uma sucessão de símbolos fora de qualquer
situação de discurso, e enunciado o segmento do discurso, a ocorrência particular da frase, o fenômeno empírico, observável
que não se repete” (Barbisan, 2004, p. 73).
Dentre os conceitos propostos por Bakhtin, o de
exotopia aqui nos interessa.
A exotopia diz respeito à criação estética e expressa
a diferença e a tensão entre dois olhares, entre dois
pontos de vista; na canção, o olhar do subúrbio e o olhar
do enunciador.
Segundo Amorim (2006), a exotopia designa uma
relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do
sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que,
estando de fora da experiência do primeiro, tenta
mostrar o que vê do olhar do outro. O olhar deste último
consiste em dois movimentos: tentar captar o olhar do
outro, tentar entender o que o outro vê, como o outro vê;
e retornar ao seu lugar, que é, na canção,
necessariamente exterior à vivência do subúrbio, para
sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus
valores, sua perspectiva, sua problemática (Amorim,
2006).
Na canção, o retratado, o subúrbio, é aquele que
vive cada instante de sua vida como inacabado, como
devir incessante. Seu olhar está voltado para um
horizonte sem fim. O sentido da vida para aquele que vive
é o próprio viver.
No âmbito da cultura, a exotopia é o motor mais
potente da compreensão. Uma cultura estrangeira não
se revela em sua completude e em sua profundidade que
através do olhar de uma outra cultura [e ela não se revela
nunca em toda sua plenitude, pois outras culturas virão e
poderão ver e compreender mais ainda]. [...] Face a uma
cultura estrangeira, colocamos perguntas novas que ela
mesma não se colocava. Procuramos nelas uma
resposta a essas questões que são as nossas, e a cultura
estrangeira nos responde, nos desvelando seus aspectos
novos, suas profundidades novas de sentido. Se não
colocamos nossas próprias questões, nos desligamos de
uma compreensão ativa de tudo que é outro e
estrangeiro [trata-se, bem entendido, de questões
NOTA
12
sérias, verdadeiras] [grifo do autor] (Bakhtin, apud
Amorim, 2006, p. 100).
Encontramos na canção um olhar exotópico: o
enunciador tenta entender o ponto de vista do subúrbio,
mas não se funde com ele. Mais do que o objeto em si, o
que se vê são os múltiplos olhares possíveis sobre um
objeto: “lá” é apresentado de diversas maneiras a partir
do que não tem (conforme leitura a partir de Ducrot) em
relação ao centro urbano (“a tal que abusa/ de ser tão
maravilhosa”, linhas 22 e 23).
O enunciador intercala o olhar exotópico com
diversos verbos no imperativo: “fala” (linhas 7, 8, 9, 10,
11, 20, 31, 32, 33, 34, 44, 45, 58, 59, 60, 61, 62, 63,
64 e 65), “vai” (linhas 16 e 40), “faz” (linhas 16 e 40),
“traz” (linhas 17 e 41), “dança” (linhas 18 e 42),
“desbanca” (linha 21), “espelha” (linha 36), “carrega”
(linha 38) e “dá” (linha 46).
Conforme Benveniste, o imperativo12 é utilizado, de
alguma forma, para influenciar o comportamento do
alocutário. Pensamos que além de olhar o subúrbio, o
enunciador quer convocá-lo a uma posição, isto é, à
ocupação de um lugar.
Dentre os trinta e dois verbos no imperativo, “fala”
aparece vinte vezes. Falar remete à interação, e em
lingüística da enunciação, remete à inversibilidade de
“eu” e “tu”.
Ao usar “fala”, o enunciador está intimando o “tu” a
falar, e quando “tu” falar, necessariamente precisará
ocupar a casa vazia do “eu”. “Falar consiste,
inicialmente, em trocar, antes de mais nada, a
capacidade de utilizar o 'eu' [...]. Falar é usar 'eu', e usar
'eu' é reconhecer-se mutuamente o direito à fala [...]”
(Dufour, 2000, p. 76).
O que está em jogo na fala intersubjetiva é uma
troca, uma troca de posição entre dois protagonistas.
“Ocupar a posição 'eu' no discurso é reconhecer-se um
direito no espaço simbólico” (Teixeira, 2005, p. 203).
O enunciador além de olhar o subúrbio, intima o
“tu”, que “lá” está, a participar do espaço simbólico do
Rio de Janeiro.
Considerações finais
O imperativo compõe uma das formas que o autor denomina de intimação: ordens, apelos que implicam uma relação viva e
imediata do enunciador ao outro (Benveniste, 1989).
37
ESPAÇO DIALÓGICO
Ler, a partir da teoria de Bahktin, é compreender
que a enunciação é de natureza social
(Bakhtin/Voloshinov, 2002) e que “os eventos estão
sempre correlacionados com a situação social mais
imediata e com o meio social mais amplo, ambos se
entrecruzando em cada evento e tendo aí papel
condicionador dos atos do dizer e de sua significação”
(Faraco, 2006, p. 106).
Neste texto, buscou-se refletir acerca da leitura em
sala de aula como ato enunciativo. Com o exercício de
análise da canção Subúrbio, de Chico Buarque, procurei
demonstrar que é a partir de marcas lingüísticas,
tomadas na enunciação concreta, que se produz o
sentido.
No ato da leitura, temos uma cena intersubjetiva: o
enunciador que é o autor da canção abre a possibilidade
ao leitor de ser co-enunciador, co-autor da canção. No
diálogo autor/sujeito-leitor, o sentido é produzido
ativamente no aqui-agora em que se dá a leitura.
O papel do professor não é o de encaminhar leituras
em sala de aula, mas convidar o aluno a participar do
diálogo enunciador/co-enunciador observando e
analisando como o texto diz o que diz: o sentido dado
pela estrutura da língua, o repetível, e o sentido dado
pela enunciação, irrepetível, porque o sujeito está aí
implicado.
É importante que o leitor apreenda os mecanismos
lingüísticos indicadores do lugar do enunciador, das
posições assumidas por ele em relação ao tema e às
outras vozes discursivas, dos objetivos e da orientação
argumentativa articuladas ao texto e das
particularidades do gênero em relação às coerções
próprias da esfera de produção, circulação e recepção de
enunciados (Teixeira, 2005).
Convidando o aluno a ser co-enunciador, o
professor está convidando-o a preencher as formas “eu”
e “tu”, convidando-o a ser sujeito.
Referências
AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In:
BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitoschave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95114.
BARBISAN, L. B. Língua e fala: conceitos
produtivos de teorias enunciativas. Letras de
Hoje. Porto Alegre. v. 39, n. 4, p. 67-78, dez.
2004.
BENVENISTE, E. [1966] Problemas de
lingüística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes,
1995.
______. [1974] Problemas de lingüística
geral II. 4. ed. Campinas: Pontes, 1989.
CARIOCA. Produção musical Luiz Cláudio
Ramos. Produção Executiva Vinícius França.
Manaus: Biscoito Fino, 2006. 1 cd (36 min.,
aprox.).
COSTA, N. B. da. As letras e a letra: o
gênero canção na mídia literária. In:
DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA,
M. A. (orgs.). Gêneros textuais & ensino. 2.
ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 10521.
DASCAL, M. Interpretação e
compreensão. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2006.
ESPAÇO DIALÓGICO
38
DESCONSTRUÇÃO. Documentário. Direção
Bruno Natal. Produção musical Luiz Cláudio
Ramos. Produção Executiva Vinícius França.
Manaus: Biscoito Fino, 2006. 1 dvd (60
min.), son., color.
DINIZ, André. Almanaque do choro: história
do chorinho, o que ouvir, o que ler. Rio de
Janeiro: JZE, 2003.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas:
Pontes, 1987.
DUFOUR, D-R. Os mistérios da trindade. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
FLORES, V.; TEIXEIRA, M. Introdução à
Lingüística da Enunciação. São Paulo:
Contexto, 2005.
MARCHUSCHI, L. A. Gêneros textuais:
definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;
MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.).
Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.
MED, B. Teoria da música. 4. ed. Brasília:
Musimed, 1996.
PALLONE, Simone. Diferenciando subúrbio
de periferia. Ciência e Cultura, Abr/Jun 2005,
vol. 57, n. 2, p. 11-11.
ROSCHEL, R. Choro: o que é?. Disponível em:
<http://www.saibamusica.com.br/modules.php
?name=News&file=article&sid=46>. Acesso
em: 20 jun. 2007.
TEIXEIRA, M. É possível a leitura?. Nonada:
leitura em revista. ano 8. n. 8. Porto Alegre:
Unirriter, nov. 2005. p. 195-204.
_____; DI FANTI, M. da G. O texto como objeto
de ensino: um olhar enunciativo. In: GOMES, L.
da S.; GOMES, N. M. T. (orgs.). Aprendizagem
de língua e literatura: gêneros & vivências de
linguagem. Porto Alegre: Uniritter, 2006. p. 95146.
TORES/AS
U
A
S
À
/
S
O
A
INSTRUÇÕES
Exemp
lo
Referê s de
ncias:
A Revista Espaço Dialógico é uma publicação da
Instituição Evangélica de Novo Hamburgo - IENH.
Os artigos deverão ser redigidos em português, em 3ª pessoa. Um artigo é
um texto que relata uma pesquisa científica feita com uma amostra de dados e/
ou com uma revisão bibliográfica. Tem, geralmente, as seguintes partes:
* Elementos pré-textuais: título, autoria e titulação, resumo (apresentação
concisa de todos os pontos relevantes do trabalho: problema de pesquisa +
pressuposto teórico + corpus de estudo e método + descrição + resultados. O
espaço destinado ao resumo corresponde a um texto de 50 a 150 palavras) e
palavras-chave;
* Elementos textuais: introdução (questão de pesquisa, caracterização de
um problema e justificativa; síntese do que será feito e do foco que será dado ao
longo do texto); referencial teórico (revisão da literatura, o que já se escreveu
sobre o tema e o que será utilizado/ levado em conta no artigo); corpus de estudo
e método (se houver); observação/ descrição do que foi encontrado (se houver
materiais e métodos); discussão e reflexão dos resultados (reflexão acerca do
que se viu a partir da descrição do corpus: pondere, critique, sintetize, aponte
prós e contras, faça implicações/ relações com o objetivo e a questão de
pesquisa); conclusões (considerações finais com respostas para as questões
colocadas na introdução) e referências que foram citadas.
ARTIGOS DE PERIÓDICOS
COMO surgiu o Origami? Mundo Estranho, São
Paulo, v. 1, n. 9, p. 26-27, nov. 2002.
GOULART, Tânia. O grande Rillo. Jornal NH, Novo
Hamburgo, n. 9261, 5 ago. 2004. ABC do Gaúcho,
p. 39.
ARTIGOS DE PUBLICAÇÕES RELATIVAS A EVENTOS
No todo:
SIMPÓSIO DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO VALE DOS
SINOS E CAÍ, 20., 2002, Novo Hamburgo. Anais...
Novo Hamburgo: IENH, 2003.
Artigos dentro de anais:
MEDEIROS, Paulo Fernando. A Dislexia infantil:
práticas de aprendizado. In: SIMPÓSIO DE
EDUCAÇÃO INFANTIL DO VALE DOS SINOS E CAÍ,
20., 2002, Novo Hamburgo. Anais... Novo
Hamburgo: IENH, 2003. p. 35-39.
Os trabalhos poderão ser enviados eletronicamente para o endereço
[email protected]. No caso de conterem imagens, estas deverão ser
submetidas em tamanho original, em arquivos separados (JPG), não inseridas no
texto e com resolução mínima de 300 dpi. Deve ser indicado no decorrer do texto
o local aproximado onde deve ser inserida a imagem, bem como o seu título e
fonte.
LIVROS
A publicação dos artigos está sujeita à aprovação prévia do Conselho
Editorial. Este poderá realizar ajustes/ revisões nos textos, se necessário.
CAPÍTULOS DE LIVROS
O texto original deverá conter no mínimo 10000 e no máximo 15000
caracteres na seguinte ordem:
" título;
" nome do/a autor/a, titulação e área de atuação;
" resumo acompanhado de no mínimo três palavras-chave, separadas por
ponto final;
" texto completo do artigo, escrito em Arial 12 pt e com espaçamento 1,5;
" referências (material efetivamente citado no texto)/ obras consultadas
(utilizadas pelo autor, mas não citadas no texto).
As citações no interior do texto devem obedecer à norma NBR 10520 da
ABNT.
As referências/ obras consultadas devem obedecer a norma NBR 6023 da
ABNT, sendo listadas ao final do texto, em ordem alfabética, em 12 pt, com
espaçamento 01 entre linhas, com 01 espaço em branco entre cada referência/
obra consultada.
Próxima edição:
Serão recebidos artigos até o dia 31 de maio de 2009.
Instituição Evangélica de Novo Hamburgo
Conselho Editorial da Revista Espaço Dialógico
Rua Frederico Mentz, 526 - Bairro Hamburgo Velho
CEP 93525-360 - Novo Hamburgo/ RS, Brasil
e-mail: [email protected]
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 6. ed. Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1987.
Caso seja uma obra com vários autores:
MARTINS, Altair. Primeira experiência. In: KIEFER,
Charles (Org.). O livro dos homens. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 2000. p. 29-44.
Caso seja um capítulo na obra de um único autor:
RAMOS, Graciliano. Da saída do sertão. In: ______.
Vidas secas. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1987.
cap. 5.
DISSERTAÇÕES E TESES
GEVEHR, Daniel Luciano. Fanáticos, violentos e
ferozes liderados por Jacobina endiabrada: as
representações anti-muckers em "O Ferrabraz"
(1949-1960). São Leopoldo, 2003. aprox. 200p.
Apresentada como dissertação de mestrado,
Universidade do Vale do Sinos, 2003.
SITES
CAVALCANTE, Elisabete. Aprendendo a lidar com
a frustração. [S.l.]: Somos Todos Um, [2004].
D i s p o n í v e l
e m :
<http://vidanova.terra.com.br/conteudo/conteu
do.asp?id=3575>. Acesso em: 6 ago. 2004.
EM dia com Alcides Maya. Jornal da Universidade,
Porto Alegre, v. 6, n. 70, abr./ maio 2004. Disponível
em: <http:ufrgs.br/jornal/maio2004/index.htm>.
Acesso em: 6 ago. 2004.
ARTIGOS
4 Um breve olhar sobre a importância das narrativas em casa e na escola
4 A autonomia de jovens aprendizes na aquisição de língua inglesa através
de centros de auto-acesso
4 O estudo da organização universitária no âmbito da relação
Universidade-Empresa
4 Os contos de fadas e o palco da vida
4 O brasil cabe em um sítio: um olhar sobre as representações das
“entidades” nacionais nas versões literária e televisiva de Memórias de
Emília, de Monteiro Lobato
4 A avaliação institucional: modalidades e significados
4 Heterogeneidade mostrada e constitutiva: o outro no e do discurso
4 Leitura em sala de aula: um ato enunciativo
UNIDADE PINDORAMA
UNIDADE OSWALDO CRUZ
Educação Infantil (Níveis 2 ao 5), Ensino Fundamental 8 anos
(3ª a 5ª série) e Ensino Fundamental 9 anos (1ª, 2ª e 3ª série)
Espaço Brincar e Criar (Níveis 2 ao 5 - manhã)
Educação Infantil (Níveis 2 ao 5), Ensino Fundamental 8 anos
(3ª a 5ª série) e Ensino Fundamental 9 anos (1ª, 2ª e 3ª série)
CURRÍCULO BILÍNGÜE - português/ inglês
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL e
CURRÍCULO BILÍNGÜE - português/ inglês
(51) 3594 8050 - [email protected]
(51) 3594 8040 - [email protected]
UNIDADE FUNDAÇÃO EVANGÉLICA
Ensino Fundamental 8 anos (6ª a 8ª/ 9ª série) e Ensino Médio
IENH IDIOMAS
CENTRO DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL - CEP
FACULDADE IENH
Inglês, Alemão e Espanhol
Curso Normal - Formação de Professores (noturno)
Nível Técnico: Administração, Comércio Exterior,
Informática, Logística, Marketing
[email protected]
(51) 3594 3022 - [email protected]
Bacharelado em Administração
Turmas a partir de 08 anos!
[email protected]
UNIDADE IGREJINHA
CENTRO DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL - CEP
Nível Técnico: Design de Móveis, Informática
(51) 3545 6967 - [email protected]
www.ienh.com.br
Linhas de formação em Comércio Exterior
ou Gestão de Varejo

Documentos relacionados