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3 com o• cumpriment-o• cio c .· . . .hO Estadual de Cultura ·..1-\. O BARCO NAUFPJGADO n- Do Autor: Kafka- o Outro (ensaio)- Editora Flama, Porto Alegre , 1970. A Coleira de Peggy (contos)- Editora Movime~to, Porto Alegre, 1972Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Segunda edição em 1976. A publicar: A Maçã Triangular (romance) A Sonda Uretra! (contos) Holdemar Menezes O BARCO NAUFRAGADO Crônicas Edição do GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA 1976 ' • 1 . ESTADO DE SANTA CATARINA6fVINM . ' 111//111, sEcRETARIA Do GovERNo AQut~o·-AC,[ PROGRAMA DE APOIO EDITORIAL Coleção Cultura Catarinense Série Literatura ( Crônica ) GOVERNAR~ ENCURTAR DISTÂNCIAS Pua . Hilda , Robson , Marilda e Holdemar Ftlho Capa de Jorge Kleber Rigueiras 1976 Composto e impresso nas oficinas gráficas da IOESC- Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina S.A. Florianópolis- SC. tJc . ay,../ Ac..e- vo:: 8'·bJ,·o+e ""' ~lvt..., 8MNM:O f}q-v··~ ·ç. o~ tnc... J,?o/:L- "' ti () vo..k t:/.. ~o IN DICE DO QUASE RISO Um caso mais interessante A mudança dos tempos O tarado Um mundo muito parecido O disco voador A ovelha redimida Narciso e o fim do mundo O boi e o toque do tambor A pescaria Com fama de burro Nair e a solução genial A dor ridícula Temores aéreos Do riso e da morte Marginal A entrevista Os delitos do Coronel As desventuras de Curió Capim gordura Dieta para emagrecer Das contra·indicações 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47 49 51 53 55 DA QUASE ANG ÚST IA Todas estas crônicas fo ram publicadas no suplemento Caderno-2 do jornal " O Estado " de Florianópolis. Algumas, em face do tempo decorrido , foram ligeiramente modificadas. H.M. Um século de esperanças O barco naufragado Na crista da maré À procura da face oculta Lá fora existe a luz do sol Para amar também Basta saber olhar Rosas e pombos A menina e os morangos A importância de ser Deus Ao jovem professor Pavana con affetto O jardineiro insensato 59 61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 O BARCO NAUFRPGADO A crônica é uma oportunidade única para se fazer de tudo: poesia, sociologia, religião e besteira. Não prefiro a crônica por outro motivo, senão pela oportunidade de variar, incon trola velmen te. Ney Messias DO QUASE RISO UM CASO MAIS INTERESSANTE O senador, como todo ser humano , tinha o direito de dar seus pulinhos. Quem não o tem e não os dá? O azar do senador foi o carro ter caído e ter morrido, no acidente tão comum, a ex-secretária do seu irmão. Nada mais de importante . O resto vem por conta das especulações sem sentido. Não importa se o senador é casado e tem filhos. Por que não tinha ele o direito de levar uma amiguinha à festa que, agora, dizem suspeita? Qual a constituição que proibe tal modalidade de divertimento? E quem pode provar que a reunião era suspeita, apenas por terem dela participado seis casais não casados? O lastimável , certamente, é o fato de ter a ex-secretária morrido afogada, após o carro do senador haver-se despencado da ponte de madeira, uma pontezinha muito ordinária, muito subdesenvolvida. O resto não apresenta muita importância, nem mesmo para a carreira política do senador. Eu tenho a coragem de afirmar, embora lastime a morte da moça, que é o único ponto doloroso da história, que guardo uma bruta inveja do senador, que a todos demonstrou ser um sujeito de muito bom gosto. Quem deve, se assim achar necessário, reprovar o comportamento do senador é sua esposa. Tal possibilidade, entretanto, é muito polêmica. Tenho um amigo, cidadão de bons precedentes, cujo único defeito que lhe aponta a cara-metade é o seguinte: "Ele é tão vulgar que nunca pensou em me trair" ! Este amigo, de tanto ser ridiculizarizado pela mulher, encheu-se de brios e resolveu mostrar que não era tão vulgar assim. Depois de muitas arremetidas, a pequena, que ainda trabalha numa Secretaria de Estado, acei- 15 tou sair com ele. Só que o meu amigo trocou a Kombi por um Opala vermelho e não mais circula por regiões que possuem animais ruminantes. ' Depois de apanhar a funcionária estadual na Santos Saraiva, na hora marcada, mandou-se por este mundo afora, sem destino, porém em direção de Tijucas. Era, como se vê, o primeiro encontro e, em tais circunstâncias, os roteiros são indefinidos. Depois de fazerem mais de 500 quilômetros entre Biguaçu e São Miguel, indo e vindo no asfalto deserto, resolveram entrar numa rua lateral de Barreiros, mais despovoada ainda do que a estrada federal. Quando tudo parecia demonstrar que o primeiro encontro não seria tão infrutífero assim, e os fatos se encaminhavam para um desenlace inusitado, uma vez que meu amigo certificou-se de que a pequena era prafrentex, destituída de protocolos, aconteceu o inesperado. Como a Kombi estava atracada na encosta de um barranco, uma vaca perdeu o equil1brio e foi se escanchar sobre o teto do veículo, provocando aquele estrondo indescritível e aquele susto inenarrável ao casal amoroso . Ciente da real situação, para evitar maiores complicações, meu amigo resolveu conduzir a garota em casa e regressou, já mais aliviado, às duas da manhã, para ver como sair-se daquela enrascada. A vaca ainda se encontrava confortavelmente instalada em cima do carro , com as pernas pendentes, ruminando naquela tranqüilidade. Todo o esforço gasto em procurar desalojar o animal, puxando-o pelo rabo, de cima da Kombi , foi em vão. Sentou-se no estribo do veículo e enxugou o suor do rosto, enquanto maquinava uma saída para aquela situação verdadeiramente grotesca. Decidiu retornar ao lar, com vaca e tudo. E tocou-se em direção à ponte, sem olhar para os lados, com a alma congelada dentro do corpo pecador. Passou em frente ao quartel, sem mesmo perceber a estupefação do sentinela, que, até hoje, não teve coragem de confessar ao sargento que viu uma vaca em cima de uma Kombi , quando estava de serviço. Quando meteu uma segunda para subir o fim da rua e fazer a curva, o animal deslizou suavemente sobre a capota. Teve ·o último reflexo : pisou violentamente no freio, mas o ruminante não se despencou.na rua deserta, como era do seu desejo e intenção. Então, acelerou a Kombi e penetrou na ponte metálica, sem baixar as luzes do farol , ainda tentando tirar a visibilidade dos carros que vinham em sentido contrário. Deixou o veículo na porta da garagem e foi se deitar. No outro dia haveria de achar uma justificativa para o estranho fenômeno. 16 A MUDANÇA DOS TEMPOS Pensei que ele fosse ficar satisfeito, morrer de alegria. Mas qual! Não era bem aquilo o que ele vinha desejando de há muito. A mãe, que é a confidente dos filhos, já me havia censurado : -O menino gostaria de ganhar um carrinho ... - Na idade dele, defendi-me prontamente, eu não tinha nem bicicleta. - Mas não queria comparar o seu tempo com o de1e, replicou a mãe. Mesmo assim, eu passei a me preocupar com o caso. t verdade! Os tempos são outros! Agora, nos tempos que não são os meus, quando um filho completa 18 anos, sente-se com o direito de receber um automóvel de presente. Quando completei 18 anos, ganhei uma bicicleta de presente e me achei o sujeito mais feliz do mundo. Quantas garotas eu conduzi na garupa da minha Royal, de nacionalidade inglesa, quantas? Meu rapaz, entretanto, criticava-me ao ouvido da mãe, pois não podia entender o m~u compartamento retrógado, uma vez que esperava ganhar um carro de presente . Ao ter ciência das críticas, senti uma revolta ancestral , e até pensei em abordá-lo na hora do almoço e falar-lhe com franqueza, que elas reclamam diálogo : -Olha, senhor meu filho de 18 anos, já sei de tudo. Mas vou te dizer uma coisa, senhor meu filho: eu estou pensando em te empregar no BDE, mesmo que seja como servente. No preciso instante de abrir o diálogo, eu me recordei de um livro de psicologia que havia lido, que versava sobre o relacionamento entre o 17 pai e os ftlhos, e me julguei um tipo desprezível , castrador, gerador de conflitos e neuroses. Tomei a sopa em silêncio. Passados alguns dias, já estava eu lendo Quatro Rodas para ver o preço dos carros usados. Pedi informações a amigos, colegas, conhecidos, motoristas de praça. Todas as manhãs, na hora do café , lia as ofertas de A. Coelho Automóveis, Jendiroba Automóveis, Meyer Veículos, Dipronal, etc, etc. Perdi a minha tranquilidade burguesa. A essa altura, eu já sentia necessidade de dar um carro ao meu ftlho. Não que ele me pedisse, que não é dessas coisas. Ele não pede aquilo que não se acha com o direito de receber. Mas é que passei a andar a pé, uma vez que meu Esplanada não tinha sossego. E, afora isso, os comentários que tive de suportar pela cara, uma vez que meu automóvel estava freqüentando lugares suspeitos, ocorrências pouco cômodas para um homem de minha idade. Por ftm, ftz negócio com um fusca 67, em bom estado de conservação, quatro pneus novos, equipado, com razoável quilometragem. O Fulano Automóveis me garantiu que o carro estava em estado de graça. 3.800 à vista e mais 5 duplicatas de mil, descontáveis em cada mês, com juros módicos de 26%. Quando cheguei com o fusca , na manhã de domingo, meu ftlho ainda estava dormindo, muito embora já fosse quase meio-dia. Acordei-o para dar a estupenda notícia. Ainda foi fazer a barba, tomar banho , pentear a vasta cabeleira, operação que levou muito tempo. Desceu para tomar café. Somente ·após o segundo cigarro saiu para ver o carango. Não pôs muitos defeitos, é verdade, mas achou que a cor não era muito legal, que não tinha toca-fttas, que o velocímetro já marcava 50.000 quilômetros, que os pneus não eram novos, e sim recauchutados. Olhou, olhou, olhou, sem dizer nada. Ligou a chave e se arrancou ladeira acima. Meia hora depois telefonou para mãe , do Estreito. Avisava que ia testar a carroça em Camboriú. E disse mais o debochado: que se não chegasse até as quatro, que eu mandasse o Touring socorrê-lo. Parece que a mãe ftcou meio penalizada, pois lamentou: - Não sei se ele ftcou muito satisfeito. O menino sempre me falava em possuir um Puma ou um Mustang ... 18 O TARADO Não tinha tal aspecto. Cabelos louros , lisos, caídos na testa. Olhos oceânicos, entre o verde e o azul. Longas mãos, pendentes, como as dos retratos de Modigliani. Haviam-me falado, e com detalhes , que este querubim era um tarado, motivo pelo qual tinha sido hospitalizado na clínica de doe?ças mentais. Não dava para crer. Ainda mais que pintava anjos alados e fazia poemas místicos. Encontrei-o com o olhar distante , talvez por trás das colinas, talvez pousados em ilhas polinésicas, que sei eu! E foi ~alando com voz man: sa, educada, de timbre correto . O mais normal das cnaturas com quem, ate então eu havia convivido. ' _ "Você sabe como é difícil explicar as coisas, ainda mais agora que sou uma ftcha cor-de-rosa. Também sou um ~úmero. Tod_os os fatos_d~ minha vida, até mesmo os mais banais, foram deVIdamente registrados. Vuei ftcha e número. Não sei se foi em conseqüência da droga que me aplicaram na veia, mas a verdade é que senti um prazer em contar tudo ao psicólogo, um camarada de óculos de aros de ouro, que usa um : cavanhaque ftn~ na ponta do queixo . Aliás, isso é uma incongruência, pois onde diabos havena de estar o cavanhaque? Maneiras de dizer, sabe? . . • Verdade é que minha ftcha possui indagações ndiculas_. Ate que idade 0 senhor mamou? O que o senhor sentia quando sugava os seiOs de s~a mãe? Com que idade começou a b~ncar co~ as galinhas? Qual _a? sensaçao que 0 senhor sente quando evacua. Diga-me: sao perguntas normais. 19 Está tudo no meu cadastro, e eles dão muita importância a estes dados. E foi com eles que fizeram um diagnóstico e me deram um rótulo. Coisas sem importância, sei eu. Entretanto , eu estou aqui e não sei quando me mandarão ir embora. O que me estarrece são as conclusões. Por exemplo: ao responder à professora, eu disse dois. B que eu não tinha entendido que ela havia perguntado quantos ossos possui o corpo humano . O senhor acha isso importante? Pediram-me que desenhasse uma flor, e eu a desenhei. Sabe o que eles concluíram? Que havia muito erotismo no meu desenho . Só porque eu fiz uma rosa lembrando uma crista de galo . A historia da prima foi um pouco diferente . Não é tão importante como eles afirmam. Meu Deus, quem não teve uma prima em sua vida? Eu nem tinha idade para compreender certas coisas. Nós apenas brincávamos de esconde-esconde . Não sabe como é? Um se esconde para o outro encontrar. Já o caso com minha tia merece uma explicação. Eu sempre avisava: te cobre minha tia, te cobre! E ela se cobria? Ria dos meus cuidados. Ria e se descobria mais ainda. Tenho culpa? Eu tinha apenas 17 anos e ela 26. Compreende? Por alguns momentos, quando a noite cai sobre as coisas, eu admito que eles estão com a razão, que é melhor que eu permaneça aqui mesmo. Lá fora, o mundo está cheio de chagas. Não importa que eles afirmem que eu sou um obsessivo. Compreende"? 20 UM MUNDO MUITO PARECIDO Divisei-o de longe : o mesmo aspecto feliz, o mesmo corpo bem nutrido, plantado na esquina da Felipe Schimidt com a Deodoro. Ainda vacilei em bater-lhe nas costas, mas não poderia ser outra pessoa. Tinha tudo dele. -Alô, Garça! E então, bichim, você não muda nada! B que pelas minhas andanças continuadas, eu sei falar o brasileiro de diversas regiões. O Garça é cearense, mas já correu mundo, não sabendo ainda em que estado ou país sentará suas âncoras. Apesar da caminhadas pela América, Europa e Bahia, o Garça não perdeu o sotaque de Sobral. Mesmo falando inglês, que aprendeu de ouvido, qualquer um pode assegurar, antes do término da primeira frase, que o Garça só pode ter nascido no Ceará. - Garça uma p ... Meu nome é Cisne. Você sabe que não gosto que me chamem de Garça. Eu sou é Cisne mesmo. A penúltima vez que o encontrei, faz anos, foi na esquina da Buenos Aires com a Rio Branco, numa terrível tarde de calor. Estava de partida para os Estados Unidos, e tomaria o avião da meia-noite . - E então, sempre gozando a vida! Para cima e para baixo: viagens, mulheres, boas coisas. E o curso? - Deixei tudo, não sabia? Uma m .. . Ainda tentei , depois da Medicina, a Engenharia. Tudo a mesma porcaria. Um bando de professores ultrapassados. Nem é bom falar, bichim. Olhei o terno S-120 do Cisne, a camisa de seda-pálha, o sapato de duas cores, gravata de bolinhas vermelhas , chapéu de panamá.Era como se estivesse numa rua de Fortaleza. Dinheiro sempre teve o Cisne: bens de família. Gente de cana·vial: usineiros. 21 - Minha vida só mudou quando entrei pra Câmara dos Deputados. -E você agora é deputado? - Não ofende, p ... Deputado nada, coisinha. Entrei foi como taquígrafo, e por concurso, sabe? Aquele cursinho da A.C.M., que você dizia não ter fmalidade. Então, minha vida se modificou completamente. Os deputados me apresentaram a uns caras de negócios. -Parabéns! - Parabéns, uma m... Estou é de saco cheio. Não tenho mais folga. Os caras sempre me aporrinhando para viajar. ~ m~ contou que trabalhava para uma organização de altas joga. das mter~acwnrus. Um furozinho encontrado na lei. Mas tinha que passar, em cada VIagem, um mínimo de três meses nos Estados Unidos. -E você ainda se queixa da vida? - Mas é que enchi. Bom no início , mas enche no fim. E aiRda mais aquela loura de Chicago, uma chata, que se enrabichou por mim, que quer que eu seja o pai da criança. Ora, veja só: milhões de americanos eu eu o pai do_ m~nino! É um negócio muito complicado, que hão adiant; ex~li car. Voce, runda me recordo, sempre foi muito burro. Realmente, não havia mudado em nada. A mesma maneira irreverente de falar. Nem mesmo as roupas eram diferentes: só que a gravata era de bolinhas azuis. -Sim, e agora? Quem te mandou para estes lados? - Ninguém, bichim, ninguém. Ando bestando pelo Sul. Me disseram que era muito bonito, então vim ver. Mas é tudo a mesma coisa. Um mundo parecido. Especialmente as pessoas. Tudo a mesma m ... 22 O DISCO VOADOR Guardei o segredo por muito tempo. O limar não, que é um camarada de língua solta. Após três dias, toda a cidade sabia que nós tínhamos visto um disco-voador, e eram muitos os que vinham tomar o meu depoimento. Isso porque, à época, minha palavra valia mais do que a do llmar. Achei mais prudente negar o acontecimento, que tudo não passava de piada do llmar, que eu, pelo menos, não me havia deparado com disco algum. O llmar, entretanto, já havia sensibilizado os habitantes da ilha, e eu passei por mentiroso, que o povo sempre apreciou aparições. Transcorridos alguns dias, quando eu ainda lutava para negar as fantásticas narrações do llmar, num fim de tarde, na presença de mais de uma centena de pessoas, um disco-voador deu um verdadeiro "show" na praia de Ubatuba. Então, vitoriosamente, o llmar demonstrou a todos de que eu era um deslavado negativista. Daí para cá, milhares de criaturas já viram objetos voadores. Os depoimentos, nos dias que correm, são até de caráter científico. Já fotografaram discos, já passearam neles, já foram seqüestrados por seus tripulantes, já conseguiram pedaços de discos acidentados. A notícia está em todos os jornais e revistas do mundo. Entretanto, o corpo que o llmar me induziu a ver - uma coisa luminosa a se locomover no espaço, em grande velocidade - era bem diferente dos discos que são vistos por outras pessoas: em forma de prato invertido, com janelinhas, girando sobre si mesmo e emitindo luz azulada. O nosso disco tinha forma arredondada, como uma laranja, de luminosidade estrelar, e corria de um lado para outro, como se estivesse muito nervoso. 23 ~ esta a impressão que guardo do disco-voador que eu vi. O limar, para confessar a verdade , teve uma impressão muito diferente. Correto é também lembrar que nós vínhamos de uma.noitada alegre. Minha mu~er estava no Rio com as crianças e nós , limar e eu, resolvemos dar um pulmho em Camboriú, sem hora para regresso . Voltamos alta madrugada, já quase manhã. A estrada federal não estava ainda asfaltada. A reta de Itapema era buraco só. O velho Citroem impulsionado por segunda violenta, saltava por cima de todas as crateras fe~ derais, mas avançava soberbo e confiante de chegar ao destino. Ainda hoje tenho saudade deste velho boêmio , amigo de todas as horas ensinando cavalo_no caminho do pátio da fazenda. Um carro que, de tã~ companheiro, podia, em caso de necessidade, continuar sua marcha sem gasolina, desde que se lhe pusesse cerveja no tanque. . . Quando o Citroem atravessava a ponte de Tijucas, o limar acordou. lruciara o sono no Morro do Encanto e vinha roncando e babando mais ~o _que u~a porca bêbada. Acordou, olhou para o céu estrelado, tomou posiçao e gritou alucinado: - Um disco-voador ! Obrigou-me a parar o carro. Abriu a porta e saiu para a noite clara e fria. - Apaga os faróis, negro, disse ele. Desce e vem ver um discovoador. Ele já nos viu. Talvez queira nos pedir uma informação. Desci e vi o disco que o limar descobrira nos céus de Tijucas. Uma bola vermelha ou alaranjada, não me recordo bem, a brincar de correr sobre umas palmeiras distantes. O limar vibrava, gritava, acenava , dava pulos. Por fim, a luz apagou-se: o disco desapareceu. Guardo até hoje uma dúvida: não sei mesmo se vi o disco-voador qu: o limar, ainda sob a ação do álcool e do sono, me obrigou a ver, na ma: nh~ ~ascente . Re_c_ordo-me com perfeita clareza que, passada a emoção e 0 d:lmo, o Ilmar, Ja acomodado dentro do carro, vomitou abundantemente, VIrou a cabeça para o lado e voltou a roncar com mais intensidade. A OVELHA REDIMIDA Saiu da ponte metálica ainda capengando da perna direita. A camisa vomitada, os cabelos despenteados, os olhos empapuçados, um gosto de ressaca na boca amarga. Vinha da Vila Palrnira, indormido, sofrido, extenuado, com vontade de morrer. Apercebeu-se de que não era mais sábado, sim Domingo de Ramos, ao ouvir o hino religioso. Aproximou-se dos fiéis e reconheceu Cafuá, antigo pistonista da Vila, agora convertido ao Senhor, sargento do Exército da Salvação. Também percebeu que o pistom de Cafuá não estava totalmente convertido: de vez em quando , pelo hábito de anos, profanava as melodias sacras com uma frase de bolero ou de tango. Mas teve que reconhecer que Cafuá já não tinha as faces marcadas pelo vício. Era um novo homem, recomposto,rejuvenescido,até mesmo com dentadura postiça substituindo os velhos dentes escuros e estragados. Cafuá avistou-o e cumprimentou-o discretamente, ao mesmo tempo que procurou esconder-se por trás de uma irmã gorda e baixa, como que tendo receio de enfrentar a figura do pecado. O oficial, alto, louro, de farda garbosa, já havia iniciado a leitura de um capítulo do Evangelho de São Mateus. Somente após ter fechado o Livro Sagrado, foi que o oficial posou os olhos azuis naquele rapaz franzino , de aspecto deplorável, ali postado na primeira fila de fiéis . O Pastor elevou os olhos aos céus e deu graças a Deus por lhe ter enviado, naq~ela manhã gloriosa, uma ovelha perdida. Virou rápido as páginas da Bíblia e leu: "E, tendo-a encontrado, a põe sobre os ombros alegremente; e indo para casa, chama os seus vizinhos , dizendolhes: Congratulai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha". 24 25 E, dirigindo-se ao jovem, tomou-o pelo braço e arrastou-o para o centro da concentração de cristãos. Falou forte: -Ajoelha-te, pecador! Confessa ao Senhor a tua fé! Ainda tentou explicar ao oficial que estava havendo um engano, que apenas, ia passando e viu Cafuá, que se aproximou por simples curiosidade, que não estava em condições de enfrentar o perdão do Senhor. Os fiéis, levados por um comando oculto, estreitaram a roda, e ele se viu sem possibilidade de fuga. O Pastor gritou mais forte: A banda atacou uma marcha de guerra ao pecado. Cem vozes gritaram, ao mesmo tempo: Aleluia! Cafuá, anjo confesso, nem sequer olhou para ele, embora lastimasse o que estava acontecendo. Não teve outro jeito a não ser ajoelhar-se, mesmo com a perna doendo terrivelmente, e repetir a sentença absolutória. Todos os soldados gritaram: Aleluia! A banda rompeu um novo hino frenético agitado em que se destacava o clarim regenerado de Cafuá. E~ seguida, 'o oficial' suspendeu o moço do solo, abraçou-o fraternalmente: - Vai, irmão! Somos, de agora em diante, soldados de Cristo. Aleluia! Os fiéis se afastaram e ele se retirou apressadamente, com a cabeça baixa, sem olhar para ninguém. Ainda proferiu um palavrão, que não foi percebido por nenhum dos presentes. Dirigiu-se à calçada do Departamento de Saúde, sentou-se na escada de marmorite, por trás da estátua de Osvaldo Cruz. Viu-se, logo após, chorando na manhã clara de domingo. Um pranto sentido: de raiva, de dor, de infelicidade, de redenção? 26 NARCISO E O FIM DO MUNDO Olha, eu te digo: nem estava preparado. Apenas fui ler o meu livro e tomar a minha cerveja gelada. Um hábito salutar, como recomendou o meu cardiologista. Tanto é verdade, Chê, que fiquei na parte de cima do clube, afastado, numa mesa de canto. . Apenas resguardei um angulozinho de visão, através dos VIdros sujos de mosca. Minha paisagem começava no trampolim e se estendia ao Veleiros, do outro lado da baía. Mas sabia, evidentemente, que a nesga de praia servia de coradouro para mil mulheres. Sabia, Chê, mas nem estava preocupado com isso. Não Chê eu estava lendo mesmo era "Ninguém escreve ao Coronel". Por aí v~cê ~ode sentir o meu desarmamento de intenções. Um livrinho bom para se ler na praia, ao som da cerveja gelada. Ainda era muito cedo, sei eu. O Eletra da Varig ainda não havia passado. De vez em quando, como é do meu feitio, eu suspendia os olhos do livro, até para economizar as páginas, e os lançava sobre as águas tranquilas. Mas nada disso tem importância, Chê. O que quero dizer é que nem estava pensando tolices. Entretanto, quanto mais rezo, mais o diabo me aparece. Sou um perseguido, Chê. Olha; só fui à janela porque pensei ter ouvido gritos do meu caçula. Porém não era ele que estava gritando. Ele permanecia sentadinho, tomando coca-cola. O diabo, porém, também estava lá, deitado sobre a toalha estampada, de óculos escuros e biquine. Foi nesse preciso instante que senti um soco nas coronárias, assim como um entupimento súbito. Ainda olhei para as janelas do lado, pois eu não queria acreditar que toda aquela entrega era para mim. E era, 27 0 BOI E O TOQUE DO TAMBOR Chê! Daí por diante eu fui ver o garoto várias vezes e, repetidamente, ela me fazia sinal para que eu descesse . Ainda pensei : deve ser uma coleguinha da minha filha ou até mesmo uma das namoradas do meu rapaz .• Mas qual , Chê! Era para mim mesmo . Então tive um ataque de burrice e não mais entendi uma só folha do livro. Até a cerveja descia com dificuldade. Aí, tomei três doses de uísque. Na falta de uma fonte, eu fui ao banheiro do clube. Ali estava Narciso me esperando. Desapareceram os meus cabelos brancos, os meus músculos inftltrados de gordura, minhas enxúndias desoladoras. Cumprira-se o vaticínio mitológico: Eco , ninfa filha do Ar e da Terra, estava doidamente apaixonada por mim. Bati no peito com força, ergui o queixo desafiadoramente e voltei as costas ao espelho. Sei que tais ilusões todos as temos, Chê , e até que nos fazem bem. Mas é que não voltei à mesa de leitura: ganhei as escadas e desci para a pràia.Apossei-medas águas e nadei como um peixe alado. Eco deveria estar encantada com a minha destreza, minha formosura e suavidade! Subi ao trampolim, volteei no ar várias vezes e mergulhei como um biguá. Meu caçula, que sempre foi um grande mentiroso , afirma que eu nadava como um boi cansado, espanando água, e que, ao cair do trampoli·.n, dei com a barriga contra um pedaço de árvore, provocando o riso de todas as pessoas que se encontravam na praia. O mais doloroso, Chê, é que eu acho que foi verdade mesmo. Mas eu podia ter ficado apenas nisso, e tudo estaria bem. Narciso, entretanto, havia-me dominado completamente. Já em terra, desejei fazer a última demonstração: Um salto mortal! Parti da amurada do clube, subi aos céus e ... caí de cabeça. Não ví mais nada, Chê: gritos, risos , Bach tocando órgão, palhaços com guisos nas orelhas, um cheiro de incenso , anjos anunciando o fim do mundo. Agora, Chê, esta posição incômoda, duas vértebras partidas, tomando sopa com canudinho. Esse assunto já deu samba e desenho anim~do .. Isso; ~o m~~ de estudante. Agora, nosso jornal informa, em p~eua pa~na, q ::~~~oridades do De1 pta~t~ 0 es:~~eN:c:::~~ri~~ ~r~~~ã;o~=a~~~a:es e~~ fim, fizeram um re a on comer churrasco. 'd d d ões O desenho animado, se não me engano, sai o a~ pr~ uç . Disney, ganhou muita popularidade. Apresentava um jov~m bOl mm~o del~ cado, que não gostava de novilhas, que não. pastava platomcamente pe os re vados numa deambulação graciosa e suspeita. . . d , Era um boi rotariano , como na perfídia da piada. Lla Fernan o Pessoa Gide Oscar Wide e Walt Whitman. Seu melhor passatempoF, segd~ndo • ' . fl d campo er mana documentação cinematográfica, era cheuar as ores 0 · do era a sua alcunha. d d Depois a verve carioca, porque o assunto estava .na or em o ' . C p t Esse b01 também era dia lançou a música carnavalesca: B01 da ara re a. . . S gorda era artlfic1al: estavam ' suspeito e muito perigosa a sua carne. ua en . . substituindo o cloreto de sódio por hormônios femmmos: Informa a notícia - e a história também aqm se repete - que os . . , . d Agricultura documento compropesquisadores remeteram ao M1msteno a . d 1 . d · · e capixaba to o e e batório sobre a alta periculosidade do ga o rruneu 0 ' d. . al tratado à base de hormônios feminilizantes. . t , · local ou na tra 1C1on Não sei em quem acreditar, se a no ICla . , fi moral da família mineira. David Nasser , em "0 Sexo dos ~dJOfis :dao~rnma-~ , · de gente , 0 assunto e e 1nl ·. . que pelo menos em Minas, em matena , , · d ado parece que o rrunel' pode haver macha e fêmeo. Porem em matena e g ' ro não é tão fanático assim. 29 28 A PESCARIA O fato não teria muita importância se não fosse a minha responsabilidade. Muitos sabem que eu leciono sexologia, daí os inúmeros telefonemas que tenho recebido nos últimos dias. Desejam saber, os aflitos consulentes, se é perigoso ou não comer carne da vaca. De vaca, posso afirmar com a minha autoridade de especialista, não há motivos de temores. Podem comer à vontade. Agora, quanto a boi mineiro ou capixaba, tenho cá minhas dúvidas. Recomendo, enquanto não terminar as minhas pesquisas, um pouco de prudência. Na Alemanha, momentosa ação trabalhista teve repercussão internacional. Homens que trabalhavam em certa indústria de hormônios femininos, produtos destinados à fabricação das "pllulas", apelaram para a Justiça. B que lhes estavam rareando os pelos da barba, muitos já falavam fininho e alguns, poucos na verdade, já usavam cuecas rendadas. Em matéria científica, toda observação é de importância fundamental. Ainda mais quando se registram precedentes merecedores de especulações de causa e efeito. Quanto à fabricação da pllula alemã, os efeitos foram comprovados no Tribunal. Agora, com respeito ao gado mineiro, somente o tempo poderá desmentir as suspeitas. Por outro lado, muitos costureiros que foram impedidos de se apresentar na televisão são vegetarianos. Daí, uma conclusão pavloviana: nem só de carne se alimenta o tigre. Há ervas terrivelmente modificadoras do comportamento. Acho que nem Kinsey sabia disso. De qualquer forma, o assunto não deve merecer especulação exagerada. Em primeiro lugar, nosso boi é gaúcho, procede de terras conhecidas, e até anda armado de tão macho que ele é. Em segundo lugar, não há fiscalização ostensiva nos nossos matadouros: qualquer um pode dar uma olhadinha no jeito da rês, antes do seu sacrifício. Outra verdade, já disse Thoreau, muitos e muitos anos atrás: é que há criaturas que nunca acertam o passo com seus semelhantes, e talvez seja porque escutam o toque de um tambor diferente. E isso nada tem a ver com a alimentação. B uma questão de pura acuidade musical. J · ile com sua batidazinha O motor de centro, construído ~m mnv ~pla em direção à ilha . · canoa sobre a ba1a serena, , b . f esca uma tripulação disposta. enfadonha, lmpu1slOna a do Cação. Um sol suave, uma nsa r t d, na popa com o cabresto do barco O comandante Pepedro, sen a lha da primeira gar, · os dentes uregulares, a ro _ passado as costas, tuou, com . . do a boca com as costas da mao, rafa de batida de limão. Depols, limpan ? ' passou-a ao llmar. animal de seis meses de idade, Eu segurava o cabrito, um ~e~ueno lh 1. guidos amedrontado ·r . lhe do cranlO ' det o balho os an ' . de pequenos chi res a sauaté 0 momento do decom as manobras de embarque. Era o meu ra , _ s já do meio para baixo, eu a sembarque. Quando a garrafa me chegou as ~:o 1 o que quebrava as barras rru·m Pepedro o corecusei alegando não ter ainda tomado ca . lhe s , , 1 sequer o ou para · ' de gelo com um velho marte o, nem mandante, falou: na Ilha do Cação tem res· - Negócio de pi- E nem vai tomar mais. Você pensa ~ue ? I é a pescana meu uma 0 . taurante, bar, hotel, pensa. sso um . ' tende doutor? . d"f t b ? Isso é uma pescana, en ' . quemque é 1 eren e, sa e· força a corda do cabnto, Entendi de pronto e tratei de seg~rar clom d as patas dianteiras soai .t rioso haVla co oca o ' . ue ele udesse mergulhar nas águas uma vez que o anim , m~l 0 cu bre a borda da embarcaçao, e eu recee1 q P C profundas. a maré vazante, a canoa comeQuando penetramos no canal, com d monstrasse potência para çou a ser arrastada de lado, sem que 0 mot~r de itou avisando qualquer vencer a correnteza. O comandante Pepedro am a gr ' 31 30 COM FAMA DE BURRO coisa que não entendi. Quando percebi, a bóia já estava bem próxima, e só tive tempo de dar-lhe com o pe.' O cabrito caiu nágua, e atrás dele o Celso, que logo voltou com 0 bicho debaixo do braço, respirando fundo e soltando um palavrão impublicável. O assoalho da canoa avermelhou-se de um momento para outro. Meu pé sangrava abundantemene, em face dos cortes provocados pelas ostras existentes na bóia. limar me fez o primeiro curativo, lavando os ferimentos com batida de limão, e eu a urrar como um alucinado. Quando desembarcamos, após duas horas de viagem, só eu capengava, com o pé amarrado por uma toalha suja, a tingir de vermelho as areias da pequena praia, mesmo assim rebocando o cabrito mergulhador, que era a minha missão, e eu haveria de cumpri-la com dedicação, até o fim dos meus dias, pois, a essa altura, eu já pensava na morte próxima, por tétano. Foi a vez do Ilmar fazer o fogo, enquanto Celso cortava as lingüiças e o toucinho, e metia os pedaços no espeto cromado. Foi quando me apercebi que ninguém havia trazido material de pesca: nem linha, nem anzol, nem isca, nem nada. Pepedro ainda disse: "Amarra o cabrito na árvore, irmão. ~ para amanhã. Hoje, nós vamos mesmo é na costela". Celso mandou-me tomar uma dose dupla, para a dor do pé não incomodar. limar lembrou que era bom mergulhar os ferimentos em água salgada, para não inflamar. Optei por uma dose tripla. À noite, com luar sobre a baía acolhedora, eles saíram na canoa, costeando a pequena ilha, levando o material de fisca que estava guardado no rancho, e muitas garrafas de cerveja e de vinho. Voltaram de madrugada, falando alto, com as garrafas vazias, sem nada de peixe. Eu ainda não havia dormido. O pé inchando cada vez mais, os mosquitos em revoada sobre meu beliche. Mas permaneci quieto, simulando um sono reparador, enquanto eles se deitavam com roupa e tudo, e logo dormiam pesadamente. Então, minha dor doeu mais ainda. Com dificuldade, abandonei meu catre superior e arrastei-me para fora da cabana. Eu queria morrer, eu que estava só naquela ilha poluída de mosquitos: eu e a minha dor. No horizonte, as luzes da cidade colonial. Dentro da cabana, aqueles miseráveis dormindo, sem dor e sem mosquitos, pesadamente. Abracei-me ao cabrito, também como eu acordado na madrugada deserta, enquanto minhas lágrimas desciam amargamente, e recitei-lhe Jó: "Por que escondes de mim o teu rosto, e por que me consideras o teu inimigo? Quantas iniqüidades e pecados tenho eu?" 'tulo l·sso poderia ser uma carta. Uma carta para o Apesar d o t 1 • · · - · J sé . . m p maiúsculo, poeta, amlgo e umao. o meu prezadlsslmo poeta, poeta c~ . - de ai e mãe nem só de pai e nem Alves Assumpção de Menezes. Nao lrmao P_ ,. roximam só de mãe, mas irmão de muitas coisas essencms, de cmsas que ap os homens de sensibilidade. . . de ser poeta com um nome Podem dizer na verdade: mnguem P0 Al" . orém errada totalmente. las, , assim! Até certo ponto, justa a presunçao, p . horrl'vel Horrível e · "Meu .nome e · ele mesmo implica com o seu nome. . e meu ai estava com longo. José Alves Assumpção ?e Menezes. N~o sel o~ddade" d:nome." ~ cabeça no dia em que me batlzou c_om essa en~rrru poeta tem contra o Mas não fica somente msso a aversao que o 1 nome que lhe deram no instante do batismo. Em outra pasMsagem, e e_pormoc~~ u Alves de enezes sa ra justificar o motivo pelo qual o Menezes o 0 d ) - é orque 0 Menezes "Se não gosto do José (ou do Alves e nao P . d .d d ~só por pregmça e, ao _ . te.nha alguma importância. ~ só por como d1 a e. . . al Também nao e por querer assinar o nome, ter que escrever cmco p avras. d . letreiro lumi· . . mesmo que eseJar um ter nome eufomco, bomto. 1sso sena o , noso na fachada de um mocamb 0 · óf . "Conheci em E, em seguida, o desabafo de form~ apote lCaG . il S' Nome e .. . "dou se) CUJO nome era a. al Recife um psiquiatra (que, 1as, smcl '"elicidade . m homem com uma 1' sobrenome com cinco letras. Como e que u dessa tem coragem de se suicidar! Só burro". usados. 33 32 NAIR E A SOLUÇÃO GENIAL Só burro, mesmo, irmão. Apesar de recifense, psiquiatra, com um nome de cinco letras, Gil Sá não teve forças para suportar nas costas 0 pesado fardo que lhe impuseram carregar, tão pesado quanto as arcadas da ponte Buarque de Macedo. Melhor mesmo, irmão, faria o Gil Sá se continuasse vivendo, a chupar manga-rosa no Pina ou em Tigipió, ou a comer Iagosta no bar do Ovídio, ali em Olinda, com uísque e água de coco. Só sendo burro mesmo, irmão. Concordo. Mas o importante, Menezes, é dizer-lhe que recebi sua última carta, que ela veio reavivar, além de outros momentos, aqueles acontecimentos à margem do nosso congresso de Medicina Legal, o qual, apesar da sua seriedade, não nos dispensou uísque, poesias, seresta e aquela mulher magra, de vestido preto, de olhos felinos, a despertar nossas fibras mais adormecidas. E você continua, irmão: "Com a volta às aulas, já botei na gaveta o meu livro de poesias, ao qual dei um avanço durante as férias, mas que ainda está precisando de muito buril. E, assim, tudo que é do espírito vai sofrendo interrupções, engavetamento, etc. , e assim o tempo vai passando e a gente acaba morrendo com fama de burro ... " Aí eu não concordo, irmão. Não será você, com todo esse taiento, com toda essa exuberância de cultura e sensibilidade, que há de morrer com fama de burro. O essencial você já consegue: levar para o papel essa torrente lírica que lhe consome as entranhas, que o afeta dos laudos periciais e das necrópsias e dá nascimento à arte autêntica que seus amigos conhecem e apreciam. O fundamental, irmão, é a criação, o momento em que o artista se encontra consigo mesmo e constrói a sua ilha submersa. Isso, sim, é o im· portante. Publicar é secundário. Muitos publicaram, e como publicaram! e morreram com fama de burro. Isso, sim, é que é triste. Veja o exemplo legado por Rilke: "Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar. Estar só - como a criança está só quando as pessoas crescidas se agitam, ocupada com coisa que lhe pareça grande e importante." Sim, irmão: tornar-se criança, despir-se dos problemas adultos ou dos adultos, caminhar em direção ao outro ser que reside no nosso in· terior e criar. Quem assim pensa, pode morrer com fama de burro, porém morre perfeitamente realizado. N . -o aparecia nós bolávamos os últimos capítulos Enqu~nto ai r ;oantrato por, nós assinado, aliás mais por eles do da novela rad!Ofomca. O , d· 30 dias um número X de lau. · · que entregassemos, ca a , , . . entrava como assessor tecmco paque por mlm, eXIgia das. Disse mais por eles, vez que eu apenas ra assuntos especializados. , t· d o assunto. Márcio, o nosso perDe há mmto hav1amos esgo a o .d de 45 já havia passado por tudo na VI a. sonagem principal, isso nos anos , dou brigando em terras euro· amos para a guerra e an da Um dramalhão terrível, po' Até mesmo o convoc h · · e encontrou He 1ena casa · péias. v o Itou erm . . . I ente por parte das empregarém muito ouvido, com mUito Ibope, especm m · fazer de Helena dinhas do comércio e da indústria. . f . . Resolvemos , porque o público ouv1J1te quena , , . · 0 egresso de MareiO e 01 mo .d uma adúltera: ela abandonou o man o, apos r · h t Padre Miguel e Bangu. t r 36 capíturar com este numa casm a, en re . Aí o assunto acabou, e ainda tínhamos que en rega de cartas · m escrev 1am centenas . d I , . de Helena los. As ouvintes, entretanto. nos mcentlvava ' . . .t muito bem o a u teno M, . deveria morrer. para a redação da em1ssora, c acel aram t Desde o início, havíamos acertado que arciO_ . . , bl. o final da histona. Entretan o, . ue mais Nós éramos sádicos: iríamos fenr o pu !CO n b" . trouxêmo-lo vivo e herói dos campos da Europa. Pensavamos q ·a Márcio, como num filme de a In . adiante, o marido de Helena lnatarl G . !moço que tiatropelado no Cais do Porto. Havíamos chegado ao Bar da Bram~ Jogo ~poso a_ tínha~os esnha sido no Mercado, peixe à moda da casa. As 20. oras, Ja entre Rio e . , . , I . Márcio morrena mesmo, quemat1zado os 6 ultlmos cap1tu os. .d d ·nda estava co· São Paulo , num desastre de aviação. Isso porque a Cl a e m movida pelo último desastre aéreo. 35 34 A DOR RIDfCULA Tudo certo: o marido de Helena não seria homicida, pois já lhe bastaria a vergonha de carregar pesados chifres. Aí o redator, pois o grupo possuía um redator oficial, comprovou que, mesmo assim, ainda sobraria tempo a preencher. O melhor seria fazer Márcio escapar do pavoroso desastre e mátá-lo noutras circunstâncias. E eu fui ouvido nesse impasse técnico. Admiti ser uma ocorrência possível. Apelei para a lei das probabilidades : bastaria que ele estivesse sentado na cauda do avião. Todos concordaram aliviados. Por fim, chegou o momento de assassinar Márcio. Muita divergência quanto à forma. Era preciso não esquecer que o cara era um herói e, como tal, merecia uma morte digna do seu passado. Resolvemos, então, renovar os chopes e os pratos de batatas fritas, por muitas vezes seguidas. Também foi quando chegou Nair, como sempre atrasada, apresentando-me mil desculpas. Despedimo-nos cordialmente, após trabalho intelectual coletivo tão estafante, cada um sentindo, por isso mesmo, as pernas bambas e a cabeça mais leve. Combinação: aquele que mais rápido sentisse a luz da genialidade, que telefonasse ao redator. Eu fui o escolhido. Nair fazia ponto, aos sábados, no Elite. Chamavam o Elite de gafieira, mas eu acho que nem -tanto assim. Era um clube noturno, situado na Praça da República, ao lado do Pronto Socorro, por cima de uma casa funerária, antes da Faculdade Nacional de Direito. E se Nair não fez de mim·um conhecido sambista, engenho e arte não lhe faltavam: era porque eu tinha as juntas enferrujadas mesmo. Às três da manhã, com mil desculpas, afirmando que se tratava de uma notícia urgentíssima, consegui acalmar a senhoria e fazer que ela me fosse chamar o redator, três pisos acima. - B urgente mesmo? -ela ainda perguntou, em dúvida. -Assunto de vida e morte, madame. Ela também era francesa. Depois de minutos de espera, com voz de sono, o redator disse alô. E eu fui logo falando, antes que ele me dissesse um palavrão. - Encontrei o final! Olha só que coisa genial: O Márcio escapa do desastre aviatório, estás lembrado? Então, ele toma um carro e vem para o Rio . Não: vem de trem, é melhor de trem. Na Central do Brasil, encontra Nair, entre os dois nasce o amor à primeira vista. Vão ao Elite, que já era tarde da noite. Por uma questão de ciúme, o cafta de Nair lhe desfere um tiro bem no precórdio. Ele desce·do Elite para o Pronto Socorro, morre ... Antes que eu concluísse, o redator soltou um palavrão reprimido e desligou o telefone. - orne dele Isso, aliás, não tem muita imAté hoje não se sabe o n :._ I·mportantes. As pessoas se .dade Só os casos sao portância para a Materni . . eros portadores de casos, doenças, pato1otransformam, cada vez mais, em m gias sômato-psíquicas._ . lhar o homem como um todo. CrimiAinda não se ~pre~deu a-~ ele é antes de tudo, sangue e carne, noso ou doente, ajustado as leis ou na , m; covardia: um bloco mal constemor e sonho, sensibilidade e alma, corage truído há dois milhões de ~os. . ente Pesam nas estatísticas, vaB que os casos mteressam VIVam . . gue'm ficou sabendo o · · Daí porque mn lorizam os serviços e os pro fiISsionais. caso do gordo. d do por todos os poros, pedindo O gordo entrou corren o, suan do exibindo . f oindo de um mascara , auxilio, com a aflição de uma cnança u~. . d 1 inocente e mfantil. aqueles olhos azms, e um azu d d . Eu posso compreender, homem tão voluA moça do telefone teve vonta e e _nr: . "h ealmente corruco um até certo ponto, o deseJO da moça. r d ílio na madrugada fria. ·mploran o auxi moso, com uns olhos tao puros, I . . f or Ligeiro entende? A _ B minha mulher, dona. Llgeuo, por av · ' . , . al" no pátio. Acuda-me.1 criança! A cnança pode nascer no taXl, I d - hegou a perceber e chaA moça engoliu o riso que o gor o·~ocs insensível ao nervosisd, deglutiu a saliva gros· mou a velha parteira, sonolenta, de cab~los gnO 0 mo dos maridos de primeira vez, profissiOnal. gor sa, e com ela uma parcela da angústia. . vai demorar muito, disse aveinha aqui e voltar para - Tenha calma, seu Gordo. Ain~a · , · Pode deixar a moc lha parteira. Isso e, apenas o IDICIO. casa. Telefone amanhã. 37 36 A mulatinha frágil acompanhou a parteira, e o gordo atrás , com as mãos distendidas , como se quisesse, ele mesmo, partejar o filho , evitando que ele caísse com a cabeça no marmorite encerado. A moça do telefone achou a mulatinha graciosa , pouco deformada pela gravidez, mesmo levando em consideração o ventre pontudo, a postura de quem carrega um grande tambor sobre o abdomem, dentro do qual o filho do gordo dava cambalhotas. Quando a mulatinha desapareceu por trás da porta basculante, o gordo voltou a suar na madrugada fria , e disse que não ia embora, que ia permanecer atento ao nascimento do filho, que não tinha telefone em casa, que não era nem esposo nem pai desnaturados. E sentou-se no banco de azulejos brancos, por baixo do nicho da padroeira das mulheres grávidas. Olhou para a imagem com um menino ao colo .."Desculpe-me, Senhora, mais eu tenho que fumar. Isso me traz tranqüilidade". E acendeu o cigarro, que seria o primeiro de uma série interminável. As horas transcorriam pesadamente, lentas, doloridas. O gordo mudava de lugar constantemente. Sentou-se no banco oposto e falou: "Senhora, fazei com que ele não nasça tão gordo. Eu vos suplico"! A moça do telefone, dessa vez, não conseguiu engolir o riso. Teve que descer as escadas da enfermaria, situada no porão da Maternidade, para que o gordo não visse que ela ria descontroladamente, às vias da histeria. E isso porque, quando o médico de plantão anunciou ao gordo que era homem, que tudo estava bem, o gordo prorrompeu em prantos, balançando ndiculamente os seus 128 quilos, soluçando ao ponto de perder o fôlego. A moça do telefone teve, na ocasião, duas visões. Numa, ela via uma criança desesperada, porque seu picolé havia caído no ralo da rua. Na outra, a recordação de um desenho animado, no qual um hipopótamo, por ter machucado a pata, chorava desesperadamente, como se fosse um ratinho branco. TEMORES AÉREOS Meu companheiro ficou em Curitiba. Somente no aeroporto adquiriu cor nas faces, e falava com alegria e desembaraço, até mesmo com inteligência. Não era mais aquela criatura despersonalizada de minutos antes. t interessante observar-se essa euforia dos que desembarcam das nuvens. Nas minhas mãos, com o aparelho novamente ganhando altura, o cartão com a ponta virada: "Jorge Feliciano, Contador". Ainda nos meus ombros o peso das mãos, agora renovadas de confiança, de Jorge Feliciano, contador. Levara-me ao portão de embarque, tendo ao lado sua mulherzinha, uma coisinha diminuta, esbelta, de profundos olhos negros. Aí eu compreendi porque Jorge Feliciano tinha tanto medo de morrer. Olhei para baixo e reconheci Paranaguá. Lá estava a orla do cais, os pequenos navios ancorados, como se fossem de brinquedos. De perto, naturalmente, eles apresentariam aquela aparência de baleias cansadas de fazer amor, adernados contra a parede de pedra e concreto, manietados por grossas cordas, a âncora fincada no lodo centenário. Eu pensava em muitas coisas, pois as alturas me libertam os pensamentos, embora que de forma· tumultuada. Jorge Feliciano, após a dolorosa travessia da turbulência inesperada, estava em terra firme, ao lado da mulher de olhos de carvão, fazendo planos para o futuro da noite. Uma noite que desejaria ele, por certo, sem auroras precoces. Senti então que eu e o contador Jorge Feliciano não tínhamos nascido para mo~rer no' interior daquele pássaro de alumínio, arrolados no mesmo laudo médico-legal. Se algo acontecesse comigo, Jorge Felic~~no leri_a a notícia no jornal da tarde, sentiria uma contração no estômago e ma vonutar no banheiro com cheiro de desodorante vegetal. 39 38 Tive vontade de dizer ao vizinho em frente que andamos maquilados, que Jorge Feliciano não vê porque vive mergulhado na escuridão dos olhos de sua mulher. E nossa obrigatória maquilagem permite que escondamos sentimentos os mais diversos. Tirada a máscara, todos veriam, como num anúncio luminoso: o medo, os complexos de inferioridade, o ódio que carregamos, o sado-masoquismo existente dentro de nós. Mas eu estava ali; nas alturas , aprisionado no ventre do grande pássaro metálico, represando os meus temores e angústia. A tripulação estava trancada na cabine de comando, em cima da porta o letreiro proibitivo, por trás dela, certamente, a coragem, a segurança. A virtude dos que se trancafiam para alcançar a salvação. Os votos de castidade! Foi quando imaginei, uma vez que as alturas me sublimam, o motor esquerdo em chamas. E mais ainda: que a fumaça começava a sair da cabine de comando e ganhar, silenciosamente, o corpo da ave ferida. Eu não daria sinais de histerismo, de pavor, de pânico. Permaneceria calmamente sentado, e até mesmo acenderia meu charuto baiana contrariando as ordens de segurança. Que bom cair das nuvens com um ch~ruto preso aos dentes! · Mas o que faria a mocinha sofisticada, aquela de colar de vidro, · com cara de mulher de antojo? Gritaria por Santa Bárbara? Cairia no meu colo, desfeita em prantos, como uma gata no cio? Também desejava ver o comportamento daquele senhor de cabelos grisalhos, lentes de intelectuais, postura de proprietário de banco de investimento, que vinha lendo a edição inglesa do Times. Por certo, iria ao mictório esvaziar a bexiga. Muitos ainda pensam que a morte é mais suave com a bexiga vazia, e por isso se esvaem nas horas difíceis. Justamente nesse instante, eu despertei com a redução das turbinas. Fazíamos a curva para a descida em São Paulo. O comissário correu apressado para o meu lado e me perguntou se eu estava passando mal. Apenas lhe disse que não tinha hábito de fumar charuto, aquele maldito presente de Jorge Feliciano. O comissário não acreditou e disse paternalmente: "Calma, estamos chegando". 40 DO R ISO E DA MORTE e o povo precisa rir. um mal o povo ter perdido o riso. o povo, ainda que muitos discutam, é apenas um punhado de gente, de pessoas, de homens. E o homem, segundo os zoologistas, é o único animal que ri. Na Lapa, nos meu velhos tempos, havia um açougue com um nome ftlosófico: O PORCO QUE Rl. Isso, naturalmente, só acontece com porco morto. Homem, entretanto, deve rir enquanto vivo. Em estado.de defunto é mais difícil. Difícil, sim, porém não impossível. Mas homem também chora. Ri e chora. Meu avô chorava muito, mesmo quando estava feliz, com as dentaduras do coração escancaradas. Mas meu avô não era povo: era o dono do latifúndio, do qual me sobrou uma parte, como herança. Porém, quando meu avô morreu, meu tio ficou muito brabo, e até sacou revólver, pois queria que o povo chorasse, e povo todo ria pela morte do meu avô. Eu já saí mais parecido com povo. Defendo que o povo deve rir, e que é um mal ele ter perdido o riso, que não há razão para o povo chorar, se lastimar, se queixar. E, se chora, se se lastima, só pode ser mesmo por subversão. Povo subversivo, sim, não mostra os dentes: sufoca a praga violenta com os dentes cerrados. E isso é muito mau. Um povo que chora inventa bobagens, arquiteta planos. Aliás, pensando melhor, eu não sou povo: nem rio nem choro. Tanto se me faz quanto se me fez: vou levando o barco, sobrevivendo, e muito conformado com isso. Maiacovski, entretanto, é um trágico: "Escuta I por que esconder 0 cadáver? / Faze cair sobre minha cabeça f a avalanche / da terrível palavra I pois cada um dos teus músculos f como um alto falante grita: I Ele está morto, morto, morto"/. Então, eu penso que ele deve ter morrido sem um sorriso nos lábios. Possivelmente morreu de raiva diante da inutilidade. Eu também não sei por que esconder o cadáver. Se ele está morto, morto, mor41 to, então por que não sepultá-lo? Na realidade, isso não diz nada, nem sequer lembra uma tragédia. Quando sepultaram o cadáver do meu avô, o povo riu , mesmo sob as ameaças do meu tio. Assim, a gente chega a pensar que nem sempre a morte é triste . Há pessoas que acham a morte hilariante. Uma vez eu vi uma mulher com uma criança ao colo, rindo alucinadamente. Disseram-me que o caminhão havia passado por cima do filho , quando ele tentava apanhar a bola de borracha. Aí a mãe chegou, apanhou o filho ensangüentado e começou a rir desesperadamente. De vez enquanto eu me recordo da cena patética : a criança amolecida, com os ossos partidos, e a mulher a rir para a multidão assustada . Haverá mesmo uma dor hilariante? Meu tio não quis compreender por que os empregados da fazenda tinham o direito de rir na presença do cadáver do meu avô . Deu dois tiros durante o velório, tendo um deles acertado a lamparina de querosene, e a sala ficou no escuro. fácil imaginar que os agregados se aproveitaram da escuridão e riram mais à vontade. Se meu tio tivesse visto a mulher gargalhando, com o filho morto em seus braços, meu tio tê-la-ia matado. Entretanto, o mundo foi sempre assim. Quando eu era menino, já faz séculos, no circo que chegou, eu vi o palhaço chorando por ter levado um coice de mula manhosa. O palhaço se contorcia de dor, rolava pela arena, pulava sobre o tapete vermelho, e o povo ria ruidosamente, aplaudindo a dor do palhaço. Naquele instante eu nem tinha entendimento para compreender o riso do povo. O certo , porém, é que o homem precisa rir, drenar sua vesícula e esquecer os aborrecimentos. Daí porque o riso deveria ser decretado. Decretado, exigido, fiscalizado. Não fica bem para nós escondermos o riso na presença de ilustres estrangeiros que nos visitam, de ilustres personalidade, convidados oficiais. As pessoas que não riem merecem, na verdade, a suspeita dos organismos de segurança, especialmente se ainda estão vivas. Eu disse, no início, que é mais raro o homem rir em estado de defunto. Difícil, porém não impossível. Certa vez eu vi um morto que ria cinicamente. Tratava-se de um afogado, e os siris lhe haviam comido os lábios, e os dentes estavam expostos, como se ele risse de sua própria desgraça. Tem sido o meu ponto de vista. O povo precisa rir,o decreto tem que ser decretado , o ensino do riso tem que ser ensinado, obrigatoriamente. Povo que não ri , torna-se perigoso, é capaz de fazer levante, e isso é muito chato . MARGINAL e 42 Não sei como arranjou o apelido, que acho meio exagerado, mas é como é conhecido nas rodas de malandragem da Feliciano Nunes Pires. Verdade é que o passado dele não é dos mais recomendáveis, mas até merecer o qualificativo vai uma distância muito grande. Entretanto , há umas ocorrências no seu comportamento que os mais apressados podem diagnosticar como estigmas. Quando apenas tinha cinco anos, os pais foram visitar um amigo na TrindS~de , num dia de domingo. Tudo ia muito bem, até que o recém-nascido do visitado soltou um grito de dor. Correrias, sustos, exclamações. A verdade simples: aquele que ganharia o apelido famoso dera uma dentada no rosto da pobre criancinha. Quando começou a andar, sem me importar muito com a cronologia dos acontecimentos, todos ficavam surpresos com a felicidade que ele tinha de proferir palavras obcenas. Depois de se levantar suspeita contra as empregadas, contra os irmãos mais velhos , até mesmo contra o pobre papagaio , chegou-se à conclusão de que o garoto inventava os palavrões. Foi expulso do Jardim de Infância no 3o. dia de aula. A IrmãDiretora, com muita psicologia, mandou chamar os pais e fê-los acreditar que o menino não necessitava de ensinamentos pré-escolares, que aquele ambiente estava muito abaixo de sua compreensão e inteligência. Tempos depois os pais souberam da verdade. Sem ocupação escolar, descobriu os encantos da rua. Transmitiu os seus conhecimentos filológicos aos companheiros de sua idade e tornou-se o comandante-em-chefe de uma série de diabruras. Não é que não apanhasse. Muito pelo contrário. Levava surras de chamar a atenção dos vizinhos, que se incorporavam numa unânime e contagiosa alegria. 43 Os vizinhos possuíam motivos. Primeiro, porque ele não respeitava idade ou tamanho. Segundo, pelos vidros que ele partia com certeiras pedradas. Seus pais chegaram a ter conta aberta na Vidraçaria Santa Efigênia. Verdade é que muita gente da rua se beneficiou com vidros novos, sem que ficasse provado que a autoria do delito pertencia a Marginal. Aos sete anos de idade, foi matriculado no Colégio das Irmãzinhas. Tudo quanto lhe procuraram ensinar ele já sabia, que precoce sempre foi. Então, perdeu o interesse pela escolinha, ainda mais que tudo lá era no diminutivo. E ele já tinha tamanho de doze: tamanho e safadeza. Um dia ele chegou no gabinete do pai e falou: olha, não agüento aquelas frescuras, aquilo só serve prá menino pequeno. O pai deixou o tempo correr, acreditando numa adaptação, depois de conferenciar com a superiora. Foi um erro: dois meses após estava expulso. Mas saiu de lá com fama de machão. Em primeiro lugar, porque tentou esganar uma menininha muito chata, muito dedo-duro, que a todos denunciava. Em segundo lugar, porque quebrou a valentia do único colega que freqüentava academia de judô. Hoje, quando olho para este meu filho, nem posso acreditar que ele já foi tão levado. Representava a figura do mau escoteiro: duas más ações em cada meia hora. Agora, não, é um mocinho, preparando-se para entrar no ginásio. Mesmo assim, de vez em quando, toma umas atitudes esquisitas. Ontem, por exemplo, para ganhar uma aposta, levou um coice do cavalo do padeiro. Também aquela é uma região em que cavalo nenhum suporta um beliscão. 44 A ENTREVISTA Minha filha, que tem 16 anos e se prepara para deb~tar no corrente ano, foi entrevistada por um colunista soc!al muito ~onhectdo. O fato - 0 teria importância se meu nome não tivesse stdo envolVIdo no bate-papo. Vou tran~crever a conversa, que acabo de ler no Suplemento na Dominical, sem modificar uma só palavra. _Repórter: Por que você não debuto~ no an~ passado? _ Não sei por que. Talvez eu não estivesse atnda preparada, m~ achasse muito infantil. Ou pode ter sido por causa do Velho, meu pat. Repórter: Então você se tornou moça muito rapidamente. Ou é 0 Velho que é quadrado? d · - Olha não sei muito bem. B bem possível que eu tenha a qut, neste correr de ano. Nem sei · Mas , quanto ao Velho, . rido outra concepção não é muito redondo, não. Não digo que seja quadrado. Em algumas cmsas el~ é meio avançado, sabe como é. . . Repórter: Como é? - Bem, ele tá na dele e eu tou na minha. Cm~as d~ dtferença de idade, penso eu. Mas uma coisa eu admiro: ele só tem ~gos JOVens. Quero dizer: só recebe gente moça, prá falar de literatura e ouVIr Jazz. Repórter: Você lê o que o Velho escreve? donu·nt·ca~·s · De umas eu gosto e de outras. nao. • . - Só as cromcas . . - diz que eu .não tenho tdade Ele escreve muito, quase dtanamente, mas a mae para ler tudo quanto o Velho escreve. Tem coisas pesadas, dtz a mae. _ Repórter: E a mãe? 45 . -:- A mãe? Bem, ela não ·escreve. Teve outra formação. Toca mUito bem plano, eu acho. Fez curso no Conservatório, no Rio. A faixa dela é outra: os clássicos, mas toca muito bem, e o Velho também acha. Repórter: E você? . - Bem, eu tou no início. Estudo no clássico, procurando um cammh?. Gostaria de escrever, e talvez consiga. Por enquanto, estudo inglês e frances. Talvez faça psicologia. O Velho não dá palpite, quer apenas que os filhos estudem, orienta, sabe como é. Repórter: E o amor? . - Não tenho experiência, mas sei que um dia ele chegará. Não ando atras dele. Ainda é cedo, acho. Converso com a mãe sobre o assunto e ela tem me orientado. O Velho é gozador e só leva a coisa na brincadeira. Quer ter um neto antes da velhice. Creio que ele tem que esperar um pouco. Repórter: E seus irmãos? . - Só tenho dois. Um pequeno, que só me amola, por causa da 1dad~. O Rob~on é bacana, paca. Vai este ano prá Engenharia. No colégio, as ~e_mnas me dizem que ele é o máximo, mas já tem namorada firme. esquiSltao e fala pouco, mas comigo ele se abre. -Repórter: E o debute? - Est~u me pre~arando. A mãe compreende melhor que 0 V~lho. O Velho vru, mas eu 'smto que ele não dá muita importância a essas co~sas. Mas eu estou na onda. Se o negócio é assim, tem que ser assim, não ad1~ta querer mudar, não acha? Eu sinto que é- uma festa necessária para a menma-moça. Marca a gente, sabe como é. Eu quero é ver a cara do Velho dançando comigo, de "black-tie" e tudo. Repórter: Mais alguma coisa? . - Nem sei. Já disse tudo, acho. A não ser que você aproveite a oportumdade para m?.rdar um forte abraço prás minhas colegas e amigas do debute. Acho que estou satisfeita. e 46 OS DELITOS DO CORONEL Sei porque me contaram. O que vale dizer: não sou testemunha ocular dos acontecimentos. Até nem posso afirmar, com certeza, se sua zona de mando era Piancó ou Pedrângulo. Em primeiro lugar, foi aquele desgosto. Não tanto por parte de Noel. Toda a amargura vinha , e o Coronel não escondia, do genro, rapaz de comportamento censurável naquelas regiões. Certa vez, quando da passagem da caravana política, que, à época, era apelidada de Caravana Cívica, após o jantar, o senador lhe perguntou como iam os filhos, e o Coronel falou com a sinceridade de sempre: - Noel, como o senhor sabe, deu mesmo para padre. Puxou à mãe, que sempre foi de muito rezar. Porém já me acostumei com a decisão dele, pois cada indivíduo tem as suas fraquezas . Leôncio deu para médico: mora na Capital e vai muito bem, embora seja apenas parteiro. Acácia deu para agrônomo: vai mais ou menos, com estas terras sem água. Cecilia, coitada! é que foi infeliz: o marido deu para corno .. . Era assim que o coronel se manifestava sobre a filha adúltera: uma vítima da tolerância do marido. Por várias ocasiões , sem nenhum constrangimento, abordara o genro , criticando as constantes idas de Cec11ia à Capital. Em face da indiferença do genro , o Coronel, num dia de raiva, trocou o nome da fazenda que havia dado ao marido da filha. Rebatizou-a com a alcunha de Amansa-Corno, em contraste com o nome antigo: Santa Felicidade. E não só isso fez o Coronel: encomendou uma caveira de vaca, esmaltou as guampas do troféu com verniz preto e pendurou-o na arcada do portão da propriedade do genro. 47 AS DESVENTURAS DE CURIÚ O segundo delito - era essa a palavra que se usava inadequadamente - em ordem de importância, veio em co~seqüência da enchente. Choveu muitos dias. Chuva grossa, de fazer rio pular fora do leito e invadir terras. Fizeram-se novenas, procissões, promessas e votos de castidade, mas 0 toró continuava a cair sem piedade. Só o Coronel não rezava. Dizia-se um homem duro, de pouca crença. As águas subiam ameaçadoramente pelas paredes do açude. O terror dominou a população. Só o Coronel se mostrava indiferente, pelo menos por fora. Todos sabiam, desde os tempos das sondagens, que se a barragem não suportasse a pressão das águas, uma catástrofe sem igual se abateria sobre imensa região. Mesmo assim, o Coronel permanecia impassível, negando-se ainda a participar de novenas e procissões. Os habitantes, então, equacionaram o problema: estavam assistindo a um desafio entre Deus e o Coronel. Este, certamente, embora poderoso, perderia a batalha, e todos seriam náufragos do grande acontecimento. E resolveram apelar para Noel, o filho padre. Quando padre Noel chegou ao pátio da grande casa colonial, o altar já estava montado e presentes os fiéis. Terminada a cerimônia, foram à presença do Coronel e pediram-lhe que cedesse, pois o paredão estava seriamente ameaçado. O Coronel prometeu fazer alguma coisa, mas não aceitou os termos formulados: ter que comparecer à barragem e lá ajoelhar-se perante todos, informando a Deus que se dava por vencido. Pela madrugada, sem qualquer testemunha ocular, o Coronel dirigiu-se ao açude, conduzindo por baixo da capa um grande objeto. Na hora do almoço o Coronel explicava aos colonos agradecidos, uma vez que as chuvas haviam cessado, e as águas começavam a baixar: - Eu não fiz nada de importante. Apenas levei o meu São José de madeira, coloquei-o em cima do paredão e lhe disse calmamente: "Quero ver agora, meu Santo. Se este troço arrebenta, estamos totalmente desmoralizados. B a tua hora e vez ". o que eu sei, porque ele mesmo me contou,_é que_já foi mu~ta coisa na vida. E, de tudo quanto foi, que as recomendaçoes mrus gratas vem dos tempos de toureiro. Toureiro de circo do interior: as calças justas, o chapéu de aba larga, as moças batendo palmas. . . . . Depois que levou aquela chifrada na ilharga duetta, com mmto sangue, mais susto do que sangue, confessa agora, resolveu ser desafiante de luta livre. O expediente deu certo por muito tempo. Até que lhe apareceu na vida Negro Bitola. Há dias que o circo estendera suas lonas es?ura~adas ~a Praça da Matriz, em São Francisco do Sul. Até aquela da~a mn~uem ~avt~ aceitado os desafios de Curió, que era apresentado como o tmbahvel. Mmto. um gringo do Albatroz, caindo de bêbado, fora sua única vítima. Depois da tremenda surra que o gringo levou, na presença de uma platéia estarrecida, e que só não morreu de apanhar em face da pronta intervenção do delegado, Curió não mais encontrou adversário para uma demonstração de vale-tudo. Naquela noite, quando o apresentador fez o desafio coletivo, ·com sotaque argentino, embora fosse nascido em Joaçaba, afirmando que a Empresa não se responsabilizava pelos danos físicos que, por ventura, sofressem os contendores, Negro Bitola pulou no centro da arena. . Curió confessa triste, empolgou-se com as palmas recebtdas, pois na verdade ~ra o mocinho da luta. Até nem se apercebeu do físico descom~nal do Ne~ro Bitola, Apolo de carvão, um Apolo com ginga ?e marinheiro, músculos de estivador, batendo com os pés no chão, ao ntmo da pequena orquestra. 49 48 O que mais sentiu, disse-me ele, não foi a dor das costelas partidas, dos dentes arrancados, porém, antes de tudo, o riso debochado do Negro Bitola. E ainda mais a suprema desmoralização: quando recuperou os sentidos, estava suspenso pela corda que eleva ao trapézio. Quando deixou o hospital, Negro Bitola já havia embarcado num navio sueco, o circo falira, o único leão morrera de fome, pois, mesmo adquirido pela municipalidade, a Câmara não votara a verba destinada à compra de carne de gato. As atrizes solteiras estavam fazendo vida no Ninho das Garças. Entretanto, confessa resignado, sempre soube fazer boas amizades. Justamente por isso foi devidamente amparado por amigos: arranjou uma vaga de bagrinho no Sindicato da Terrestre. Por outro lado com o tempo, engajou-se na Terceira Divisão, como juiz de futebol. Seu fraco, reconhece, sempre foi a presença do público. Daí porque se apaixonou, de um estalo, pela função de árbitro. Procurava imitar o Armandinho Marques, só que mais requintado: usava boné e luvas brancas. Em campo, fez questão de afirmar, era a autoridade! Tudo ia muito bem até o instante em que foi escolhido para apitar o jogo entre o Paula Ramos e o Rocio Grande. A desgraça veio em decorrência do pênalti assinalado, pois até a metade do segundo tempo as coisas corriam maravilhosamente. . . Mais precisamente: faltando 15 minutos para o término da peleJa, o JOgo estava empatado. Se a partida terminasse com esse resultado o Paula Ramos seria campeão da temporada. ' Por azar, veio a penalidade máxima. Tão clara, tão gritante, que a assistência marcou-a antes dele. Não lamenta tanto o fato de ter acordado no ~ospital de Caridade, porém a circunstância de ter perdido o emprego de bagrinho, bem como por ter sido expulso da Liga. Acontece que o Paula Ramos, para sua desventura, era composto pelo pessoal do Sindicato. Daí, deixou a cidade e foi ser sacristão em Araquari. 50 CAPIM GORDURA Nestes tempos magros, até que é bom que se fale de comida, especialmente pelas contradições que o assunto encerra. Comer ou não comer, eis o dilema de muita gente. E o negócio vem por onda, como todos estão lembrados. Há pouco tempo, quem não dosava o colesterol, pelo menos duas vezes por ano, era um suicida. Agora, depois de tanta tensão, de tanto sacrifício, os cientistas afirmam que o colesterol não mata cousa nenhuma. Vivemos, certamente, num mundo -contraditório. Durante anos, por proibição do meu cardiologista, privei-me da costela gorda, do lombo de porco, da banha suína, da manteiga natural. Tudo isso era perigoso: aumentava o colesterol, este monstro obstruidor das coronárias. Não morri de enfarte, é verdade, mas quase faleci de frustrações, de continências dietéticas. E para que tantos sacrifícios? Descobrem, agora, que tudo estava errado. As gorduras saturadas não elevam o colesterol, não matam ninguém do coração. Assim, a minha dieta, a que me foi imposta, não teve finalidade preventiva. Serviu, isso sim, para me diminuir o ventre, para modificar, pelo menos na aparência, o meu "status" sócio-econômico. E mais ainda: criei rugas, pelancas no pescoço, velhice nos cabelos, calvice precoce. E agora? Contra quem devo eu mover uma ação de indenização pelos estragos sofridos e pelas privações a que me submeteram? E as torturas advindas dos sonhos com comidas condenadas, como exemplo: uma costela graxosa, rodando no espeto, pingando na brasa? Contra quem? 51 O pior, entretanto, talvez esteja por vir, uma vez que sou, no momento um homem espoliado pela subnutrição. O cientista afirma, com a responsabilidade do seu nome, após anos de experiência, que o perigo está em se ter privado das gorduras. Agora, em face de outro informe lido no mesmo semanário médico, meu estado psicológico recebe agravantes, pois o assunto suscita dúvidas. Não sei se volto ao regime livre de .antigamente ou se entro na nova onda, que não é muito cômoda. Explico: dois cientistas americanos e um facultativo do INPS ( com o perdão da má palavra ) afirma que o capim é o alimento do futuro. O raciocínio científico é o seguinte: "se animais de grande porte, como o cavalo e o boi, se alimentam de capim, exclusiva e satisfatoriamente, por que o homem não poderá fazê-lo? A onda, portanto, é comer grama, que engorda, que fornece porte avantajado e resistente, bons músculos para as correrias dos atribulados dias em que vivemos. No México, por exemplo, conclui a notícil', é comum beber-se refresco de alfafa. Não duvido. Reafirmo que a recomendação, embora barata, não é muito cômoda, daí a minha problemática. O difícil não é comer capim: é ter que comê-lo na forma convencional - de paletó, sentado, com faca e garfo, e guardanapo para não manchar a camisa de verde cloroftla. De quatro, como nossos irmãos citados, é que deve ser gostoso: lentamente, subindo as colinas, apanhando uma touceira aqui e outra ali, a brisa batendo por trás. Depois, uma boa sombra. Com o tempo, quem sabe, será possível, após freqüentar o analista, adquirir-se o hábito da ruminação. De qualquer forma, vou tentar a experiência no sítio do J.J. Barreto, lá em Santo Amaro, pois se não conseguir me levantar mais, viro cavalo de estimação e tenho a certeza de que serei bem tratado pelo meu velho amigo. DIETA PARA EMAGRECER Encontrei-o em Camboriú. Um sol de rachar, um mundo de gente, uma fome canina. -Mas é você mesmo, Heliodoro? -Eu mesmo. Nem parece, não é? - ~- Quantos quilos? - Nem sei. E ainda necessito perder mais, por perseguiç~o do doutor. Mais oito quilos. Do contrário, afirma o monstro, só terei mais três anos de vida. Você já viu? Tenho a Ema, os três meninos, os problemas sequer equacionados. Três anos somente! . , Enquanto eu comia as especialidades da casa, no Bar Batunte, produtos do mar, Heliodoro suava, olhava para mim com aqueles olhos de cabra faminta. -E você só vai comer alface? -Também tomate, peixe magro, na brasa, cinqüenta gramas de pão, uma banana de sobremesa. Nada de .álcool, aperitívo, refrigerante. Duro meu velho. Uma dureza! ' - Sim, mas após a perda dos oito quilos, a vida será outra. Poderá comer à vontade. _ Qual o que! Sou mesmo um infeliz. Os exames revelaram: uremia, diabete, esquemia de miocárdio. Não poderei, nunca mais, comer d~ tudo como nos velhos tempos. Acabo mesmo é herbívoro, de quatro, mastlgand~ grama, alfafa, evacuando bolinhas verdes como cabrito. Tá ~erto? Certo, evidentemente, não estava. Nem mesmo que ele tivesse escolhido a minha mesa com aquela cara de fome, aquele olhar de fome, aquele suor de fome. Até deixei de pedir a terceira cerveja, só para não v~r o sofrimento do Heliodoro. Rejeitei a sobremesa: morangos com nata e açucar à beça. 53 52 -Pelo menos, toma um cafezinho. - Nem café nem cigarros. Uma dieta hipotudo. Não agüento mais essa vida. Depois, os sonhos. Nunca mais sonhei com mulher. Só com comida. Sorvete de creme , cuca, pastéis imensos, barris de chope. Compreende? Tirou do bolso da camisa dois vidros de remédio e tomou quatro comprimidos de cada embalag~m. Engoliu-os sem água, com o pescoço para cima, como uma galinha. Quatro para tirar o apetite e quatro para tranqüilizar. Sozinho eu não resisto.~ dose para elefante. - O errado, meu caro , é você frêqüentar restaurante. Assim é mais duro de suportar a dieta . - Um impositivo. O criminoso nunca se afasta do local do delito, não é assim? Uma dependência absoluta. Já me satisfaço só em ver os outros comerem. Foi necessária uma longa aprendizagem. Compreende? -Compreendo. - Por mim, sabe, eu morreria de barriga cheia, soltando arrotos. Mas são as crianças. Não é tanto pela Ema. Se eu morrer, ela se vira. As crianças, entretanto , merecem o sacrifício. Logo que acordei, vieram me dizer que um homem havia sido atingido por um tijolo, ao passar por baixo de . um edifício em construção. Fui ver, assim como quem assiste a um filme de guerra, apenas para matar o tempo. Era Heliodoro. Vio-o deitado, o corpo emagrecido dentro das roupas folgadas, muita gente querendo saber quem era o defunto. Nos lábios, um certo sorisso de ·tranqüilidade. Morreu feliz, parecia. Certamente vinha pensando numa ovelha tostada, rodando sobre a brasa. DAS CONTRA-INDICAÇOES Nunca fui , e nem quero ser, um precursor de verdades. Deus me livre da tentação. Entretanto , acontecem coisas interessantes no campo das descobertas. Só agora os cientistas divulgam que a música faz bem à gente , fato já do conhecimento de civilizações passadas. Trata-se , portanto, de uma notícia científica verdadeiramente banal, com muitos anos de atraso. Quando um homem , antes mesmo de saber que o bambu era oco , tomou a primeira tibia e dela fez uma flauta, foi porque o som tem sua dose imponderável de librium. Os cientistas modernos, porém, estão descobrindo coisas já consagradas pelo uso e costumes. Revelaram recentemente as virtudes da música, e até já se fala de uma nova especialidade: a meloterapia - com formulário musical , indicações e contra-indicações. As indicações são , na verdade, segundo a tabela que tenho nas mãos, muito limitadas: valsas de Chopin para os que sofrem de terrores noturnos; músicas de Mozart para os que necessitam de sedativos ; Bach para os deprimidos. Logo de início, eu discordo dessas indicações. Uma nova degradação foi anunciada: a degradação musical. Um raciocínio simplista : toda vez que o indivíduo vai perdendo o go~to p~la música erudita, substituindo-a por música popular, já aí começa a evJdenciação dos primeiros sintomas da esquizofrenia. Exagerados! Eu em face de longo contacto com o problema, sem querer ser precursor de c~ncepções caducas, poderia fornecer a minha _lista, partindo , entretanto das contra-indicações. ~ assim que consigo mametar as rrunhas quarenta e' duas neuroses, passando por um cidadão altamente equilibrado . 55 54 Mas não é esta a oportunidade para falar das minhas contra-indicações. Em outra ocasião publicarei o meu vade-mecurrÍ. Entretanto, desde agora , quero manifestar-me contra as indicações acima mencionadas. Bach está contra-indicado para os deprimidos; Mozart para os excitados e Chopin para os que sofrem de terrores noturnos. Um exemplo apenas: conheci um religioso que estava deprimido por ter pecado contra a castidade. Trancou-se no quarto , J?"ôS Bach na eletrola: "Do fundo de minha desgraça, venho a vós, Senhor. Tende piedade de mim, oh Senhor Deus! Ardentemente eu aspiro a um fim feliz". Um desavisado , portanto. Quando arrombaram a porta do quarto , o religioso olhava para um ponto fixo no horizonte. Estava morto. O perito criminal recolheu a lata de formicida, o copo e a garrafa de coca-cola. Outro exemplo : tenho um amigo que sofre de terrores noturnos. Agora está melhor. Por indução da mulher, passou a ouvir Chopin: valsas, noturnos, sonatas e prelúdios. Após algumas horas de terapia intensiva, dormia profundamente. Até pensou que estava curado. Na verdade, estava anestesiado. Para ser mais minucioso ·na informação , o método dele era misto: lia Kafka e ouvia Chopin : dois moderadores do apetite sexual. Foi feliz até o dia em que descobriu que a mulher dava abrigo ao guarda-noturno. Vem daí, em face das controvérsias, a necessidade de melhor pesquisa, de uma clara sistematização. Isso até que descubram que a música também dá câncer. 56 DA QUASE ANGúSTIA UM SECULO DE ESPERANÇAS Foi em maio. Como eu poderia esquecer que foi em maio! Quarenta e nove anos completaria em setembro. Olhava os ftlhos, cinco ao todo, e o marido, reunidos na sala transformada em quarto de hospital, e continha as lágrimas, ainda desejando ocultar dos entes queridos, razão única de sua existência, que sentia chegar os seus últimos momentos. Há quantos anos, meu Deus, há quantos anos? Um tempo sem ponteiros, parado na data trágica, repetindo-se todos os dias. Uma ocorrência que ainda não aconteceu: continua acontecendo fepetidamente. Aquela sensação pluridimensional de que nos transmite Camus: "Aujourd'hui maman est mort. Ou peut-être hier, je ne sais pas". E mais ainda: será que morreu? Um mês lindo demais para a chegada da morte. E disso tinham conhecimento os filhos e o marido. E, mais do que todos, ela, com suas lágrimas sufocadas, e aquela tristeza de quem foi destinada a partir antes da hora desejada. Uma tristeza que só ela era capaz de sentir. Uma tristeza além de todas as definições. Em março, quando ainda caminhava, o marido lhe perguntou, no dia do aniversário de casamento: "Lembras-te, querida, que dia marca hoje, para nós, o calendário? "E ele mesmo respondeu: "O dia em que nossos corações se uniram para a vida ... E o dia de núpcias não é, apenas, um dia de alegria.~. também, um século de esperanças ... " A época nem todos sabiam ser aquela a última comemoração. Ou não desejavam saber? Mas ela percebeu e recordou a sua curta caminhada. Ali estavam eles, os ftlhos, frutos do seu amor: Hodson, Holdemar, Holbein, Ezequiel e Ezetilde. Ela repassou, naquele instante, todos os momentos de felicidade ao lado do companheiro, e mesmo os amargos e difíceis. 59 Entretanto, deve ter sentido que o século de esperanças . . . era por demais curto. Mas ainda encontrou energias para sorrir de alegria e felicidade. Olhou para o filho médico, que viera de tão longe, e se sentiu segura, como se nele pudesse estar o milagre desejado. Quando a luz se apagou nos seus olhos, ainda suas mãos se movimentavam para o último gesto de carícia, e foi justamente no rosto do filho médico 1que elas pousaram, ele que, curvado sobre o leito, procurava ouvir-lhe os batimentos cardíacos, como se isso representasse alguma esperança. Naquele segundo de dolorosa despedida, filhos e esposo sentiram que parte do mundo havia ruído em silêncio, que as árvores .não mais voltariam a florir, que os pássaros, na próxima primavera, não mais se entregariam ao amor. O amor havia falecido naquele instante: o amor e as flores. E o que seria do mundo sem amor e sem flores? Se viva fosse, quantos netos teria para lhe beijar a cabeça branca, quantas lágrimas teria chorado durante a caminhada dos filhos? E o que diria aos netos que lhe deu o filho médico, eles que nunca se aperceberam que, anos atrás, o amor e as flores feneceram numa noite de maio? O que lhes diria ela? E ao próprio médico, impotente diante dos seus sofrimentos e da sua agonia? Maio passou, mês em que ela morreu. Setembro chegou, mês do seu nascimento. Um ciclo de recordações amargas, entremeadas de outras tantas recordações ternas, que fazem que cada filho, todos os cinco, retornem à infância por imperiosa necessidade de carinho e ternura. O filho médico, o impostor, aquele que lhe mentiu até os últimos instantes de consciência, hoje tem que esconder (até hoje e até o fim dos seus dias) o pranto de saudade: um pranto que precisa ocultar da mulher e dos filhos. · Sozinho, dentro da noite, porque assim é a vida e assim é a morte. 60 O BARCO NAUFRAGADO Um amigo meu, de Curitiba, em outubro passado, me fez, entre decepcionado e convicto, a seguinte revelação: "Tenho que deixar de escrever. Tenho-me repetido constantemente. Já disse quanto tinha a dizer". No momento em que meu amigo desabafava, no bar do Hotel Presidente, eu não compreendi toda a extensão da afirmativa. Tanto é verda que apanhei um pedaço de mortadela com o palito, rodei os cubos de gelo com o dedo indicador e devo ter feito um sorriso de complacência. Ultimamente, tenho pensado obsessivamente no desabafo doescritor paranaense. Não é que eu tenha a sensação de já ter dito tudo. Muito ·pelo contrário.~ que não tenho tido coragem de dizer. Quantas amarras me prendem, meu Deus! ~ que estou me cansando de contar estorinhas banais, dessas que o leitor, após a última palavra, percebe que eu não afirmei coisa alguma. Que tudo não passou de um jogo de vocábulos. Para encher papel. Para pagar compromissos. Na semana passada, uma universitária, encontrando-se comigo em frente do Besc, saiu-se com essa: "Gostei muito da Balada do Amor Perdido". Quase telefono ao senhor". Naquela manhã do telefonema que não veio, bem que estava precisando de uma palavra de afeto. Mesmo que fosse a mensagem de uma adolescente, talvez ainda imatura para compreender o tremendo potencial de angústia que aquela crônica encerrava. Sem dúvida, devo confessar, é a angústia o meu tema preferido. Sobre ela, talvez, já tenha dito tudo quanto me permitiu a coragem. Uma grande parte, na verdade, sou obrigado a consumir em silêncio, como quem rumina no entardecer da existência, com aquela sensação de ter vindo apenas para receber o desamor. Ou para semear? 61 E desse choque entre a catarse e a repressão , entre dizer ou amealhar, por covardia, por extrema necessidade de não se expor aos comentários perversos, aparece a luta suicida. E o pior da luta é a ausência de auroras, de novos caminhos, de ancoradouros para o barco naufragado . Pior ainda é ter de continuar. Como se fosse objeto, sem sensibilidade e alma, ser de pedra, barro fatal. Trocaria, a essa altura, todos os títulos efêmeros, elaborados pelo homem em momentos de histeria e grandiosidade, pela paz bovina. A paz que vem com a postura universal e biológica. A felicidade que nasce da grama verde, sedosa. O repouso que surge com a sombra e a ruminação. Ao invés disso , ser homem, ser eu mesmo, ter que usar a máscara que me obrigam a conduzir. Como diz Pessoa: "Fiz de mim o que não soube I E o que podia fazer de mim não o fiz I O dominó que vesti era errado I Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti I E perdi-me I Quando quis tirar a máscara I Estava pegada à cara I . Daí, por certo, a impressão que se adquire de já se ter dito tudo , quando não se teve a devida coragem para a revelação exata. Daí a certeza de que , se se disser mais do que o permitido, o grande picadeiro olhará extasiado o palhaço chorando. Multidões a aplaudir o corpo chagado, a perna amputada, a alma desnuda. Também sei que o naufrágio do barco veio das intenções e desejos irrealizados. Também sei que a angústia incontida se alimenta na busca do nada, porque o homem sempre se perde no caminho da procura. E ainda Fernando Pessoa: "Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo I Se as coisas fossem como tu queres, seriam como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida I A querer inventar a máquina de fazer felicidade!". 62 NA CRISTA DA MARE Protesta-se continuadamente. De diversas formas. Cada vez mais violentamente . Os pais contra os filhos , os professores contra os alunos, ~s filhos contra os pais , os alunos contra os professores, os estudantes e operarios contra os governos, os governos contra estes. Protesta-se na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, no Brasil, na Bahia. Literatura de protesto, pintura de protesto, música de protesto, roupas de protesto, cabelos de protesto, atitudes de protesto. Protesta 0 deputado , o promotor, o advogado de defesa, o juiz, os ricos e os pobres. E eu pergunto : que busca o homem moderno na sua caminhada de protesto? E eu respondo: simplesmente a morte do grande medo que traz dentro de si. O grande medo incontido , que se transforma em angústia, e fá-lo . protestar contra algo que ele mesmo não sabe o que é. "O homem moderno é solitário, tem medo e pequena capacidade para amar", diz-no Eric Fromrn . Mas ele é solitário porque tem medo. Não ama porque tem medo . E, mesmo protestando com violência, revela seu grande e incontido medo. É o medo que vem do pai , do filho , do aluno, do professor, do réu, da vítima, do governante , do governador, do meliante, da auto?dade. O medo de Deus, do Exército, da guerra próxima, do câncer em carrunho, das coronárias insuficientes, da morte cada vez mais próxima, do transplante, das secas, das enchentes, do avião . Todas as atividades e esperanças mer~u lhadas no medo . O medo de deixar como está e o medo de reformular. Simplesmente o medo. 63 E, cada vez mais, o homem foge de si mesmo, dos seus seme~an~es, e busca paz no isolamento. A solidão, entretanto, não lhe traz a paz mtenor: M~s é qu7 muitos desconhecem, como afirma Miller, que a paz e a harrnorua so se atmge com a luta interior. "O homem comum não quer pagar o preço por essa especie de paz e harmonia: ele a quer já pronta como ' um temo de roupa feita." Quando o homem procura a religião, percebe que todos os seus deuses morreram: Buda, Baal, Cristo. O homem assassinou os seus deuses. E, em face disso, sente mais medo ainda. E protesta por não se sentir seguro. o. h_omem necessita aceitar que, nos tempos modernos, ele perdeu su.a condr?ao humana e transformou-se em coisa. E como coisa age, como corsa deseJa, como coisa comanda e é comandado. Já havia dito Hesse· "~oje sei mu~to bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que se~ guu pelo cammho que o conduz a si mesmo." . O homem m~derno, porém, não tem tempo para busca da felicrdade. através de uma consciência humanística, que os gregos chamavam de a.tarax:_a. O homem moderno é mais prático. Descobriu que a felicidade intenor nao é um estado, e sim uma pílula! E criou a pr1ula contra a tristeza contra a dor, contra a insônia, a pr1ula para limitar os filhos. A salvação in: tegral pela pílula! B possível qúe as tensões desapareçam, que o medo liberte 0 homem. Pelo menos Brecht fornece a esperança: "Vós, que vireis na crista da maré I em que nos afogamos I pensai I ·quando falardes em nossa fraqueza I também no tempo sombrio I a que escapastes". Amém. A PROCURA DA FACE PERDIDA O tempo corrói a pedra e o metal. Mas cria ele, modela, nos dois elementos, de quando em vez, belas figuras. No ser humano, não. O tempo deteriora, estraga, até mesmo inutiliza. E tudo isso num curto espaço de tempo. Quando vejo uma mulher bonita, vaidosa da sua beleza, muitas vezes o único patrimônio que possui, eu penso na ação danosa do tempo. Ela será, amanhã, uma megera, também domada, submissa, voltada para um passado que passou rapidamente. Todo animal novo é belo: o gato, a onça, o elefante, o galo, o homem. Beleza, portanto, é uma questão de saúde e juventude. Por via de raciocínio, todo ser humano velho é feio, para amargura das mulheres. A beleza, da mesma forma que o amor, tem que ser utilizada na ocasião propícia. Não é como o dinheiro, que se amealha para gastar navelhice . Assim , o problema não está na descoberta do soro da vida, mas do soro da juventude. Quando uma mulher possui mais do que beleza, a chama da arte, por exemplo, mesmo assim ela se desgasta, enruga, sente a tragédia de Dorian Gray. E sofre com isso. Teria acontecido o mesmo com Cecília Meireles? Vejamos o que ela diz: "Eu não tinha este rosto de hoje I assim calmo, assim triste, assim magro I nem estes olhos vazios I nem o lábio amargo I Eu não tinha estas mãos sem força I tão paradas e frias e mortas I Eu não tinha este coração que nem se mostra I Eu não dei por esta mudança I tão simples, tão certa, tão fácil I Em que espelho ficou perdida a minha face"? 65 64 . ~ r~ferência que a poetisa faz à face perdida, nós vamos encontra-la na angustia de Izabelle, tão bem retratada por Remarque. Izabelle confessa a Rudolf que perdeu sua antiga face, talvez na superfície dos inúmeros espelhos em que _se olhou: "Será que fui raspada pelos espelhos como um pedaço de made1ra sob a plaina de um carpinteiro? Que resta de mim"? As mulheres sáb~as, portanto, são aquelas que não se martiriz~ com a formosura desaparecida, são aquelas que não procuram no cristal o rosto de ontem, as li~as da .belez~ gasta pelo esmeril do tempo. A ~abedona, POIS, esta na não procura da face inexistente Envelhecer com resignação sabe d . · . ' n o que o presente e sempre uma realidade dolorosa, que o que fOI bom ficou no passado . LA FORA EXISTE A LUZ DO SOL .nh . Evitar, assim, o desespero de Izabelle: "Como poderei recuperar a rru a Image ? Oh · · . m. , Jamais.poderei recuperá-Ia. Ela se perdeu. Perdeu-se! C ons~rruu-se co~o uma estatua que já não tem rosto. Onde está o meu rosto: Onde esta o meu primeiro rosto? O anterior a todos os espelhos? O antenor ao tempo em que eles começaram a roubar-me'' r . Lá fora onde? A afirmação é de Alexandre Solzhenitsyn, Prêmio Nobel de 1970. Quantos russos já receberam, no setor da literatura, a partir de 1901, o cobiçado prêmio? Que eu me recorde, poucos; Bunin, em 1933; Pasternak, em 1958 e Sholokov, em 1965. Ouvi dizer que outros russos, também ilustres, já foram laureados com o prêmio de Física. Quem foram eles? Ninguém sabe. Mas todos se lembram de Gabriela Mistral, de Hesse, de Pirandelo, de Miguel Astúrias, de Gide, Martin du Gard, Elliot, Mauriac, Lagervist , Camus, tantos outros imortais. Os jornais também anunciam que Solzhenitsyn é um escritor "maldito", mais combatido pelo sistema do que Pasternack. E mais ainda: que o leitor russo não leu ainda "Pavilhão dos Cancerosos" e "Primeiro Círculo", os dois principais romances do escritor, ora premiado com o NobeL O que é necessário que se diga, especialmente aos jovens, é que na pátria de Solzhenitsyn, no campo da criação artística, não existe a luz do soL Prevalece a vontade do Estado sobre qualquer manifestação criativa. Solzhenitsyn, herói da Segunda Guerra Mundial, portador de ferimentos honrosos, ganhador de medalhas nacionais, tíllllbém amargou oito anos de trabalhos forçados, por determinação do Pai do Povo: Stalin. E por que? Porque não aceitou o bridão do Estado nas suas criações artísticas, porque não se entregou às maquinações do regime. Em conseqüência, como tantos outros, foi expulso da União dos Escritores. Esta mesma instituição que agora, declara "imprópria" a concessão do prêmio a Solzhenitsyn, uma vez que suas principais obras foram ilegalmente publicadas no Ocidente. 66 67 PARA AMAR TAMBEM E por que não o deixaram publicar, legalmente, em terras soviéticas? Solzhenitsyn, que é uma criatura profundamente doente, lutando há anos contra o Regime e o Câncer, afirma: "Seus relógios estão atrasados. Fechem as cortinas de que tanto gostam, pois vocês nem sequer suspeitam que lá fora existe a luz do sol". Mas tem sido esse o destino do homem de arte. Do artista que não se deixa engajar nas fileiras dos poderosos, dos que comandam pela força e pela intolerância, para quem as palavras e as idéias são terríveis armas de desagregação do poder político. O poeta Nei Cuclós fala da angústia do artista: "Nascemos para ser assassinados I Somos uma espécie de fim de tarde". E quem são os físicos russos que conquistaram o Prêmio Nobel? Que fizeram eles para que a vida se torne mais bela, mais livre, mais humana? Que importância tem para o mundo o efeito Gerenkov? Quem já ouviu falar nisso, além dos físicos? O que importa afirmar é que, embora os países total!tários persigam seus artistas, como perigosos pertubadores da ordem constituída, as gerações se recordam muito mais deles do que dos físicos. E ainda mais : os artistas são a medida mesma de todas as civilizações, passadas e presentes. A proibição para que Solzhenitsyn viaje a Estocolmo , a pressão para que ele "abjure" o prêmio merecido e a perseguição que terá de suportar, não terão muito significado. Puskin, Liermontov, Gogol, Turguieniev, Tolstoi, Dostoievski, Gorki, Techekhov, e tantos outros, não receberam prêmios internacionais, da importância de um Nobel. Quem permaneceu no coração do povo soviético além dos seus verdadeiros artistas? Onde os matemáticos, os físicos, os políticos, os militares frente à eternidade dos autores russos? Quem maior do que Borodin, Rimsky-Korskov, Tchaikovsky, Rachimanino, Stravinsky, Prokofieff, Mussorgsky, Glinka, e tantos outros criadores de beleza? A verdade é muito simples: o artista é o verdadeiro herói do seu povo. As civilizações só se perpetuaram através das artes. Tem sido assim e o será sempre. Mesmo que não queiram. , de nascer e o tempo de morrer, de plantru: e de coRa o tempo Um tempo para muitas cmsas. Para , t b 'm um tempo para. " o deseja Erich Maria Remarque. lher. Como h a, am e , amar também. "A time t~ love , com tortuosas as horas destinadas ao amor. ra a destruição dos mais Entretanto, sao pouca~ e d tecnolog1a do preparo pa Vivemos nos tempos a A '. ilização tecnológica proscreve o amor. ctv O b Orwell Zusman e Marcuse, e nobres sentimentos do homem. Disso já se ocupavam Frorrun, Weber, s orn, , tantos outros pensadores do momento. dem como de um momento Daí porque os chefes não compreen '.d de aceitou um 'tun·o como diria Guimarães Rosa, a moct a . l'd Para outro, num. ·a ali , seu verdadeuo 1 er. • desconhecido pstcan sta como . o uerem Desejam esquecer TanaTempo para amar. Os JOVen~ q altar de Vênus e Afrodite. Mas to. Estão à procura de Eros, curvados :~la:e~or como perigoso. encontram empecilhos. Resolveram _ro. importante: aprender a matar. Para muitos há uma rrussao mats "d de suprema da sociedade e . t r que a necess1 a al todo jovem é obrigado a filiarAntes de tudo, apren der a ma a ' ser implantada em 1984 (G. Orwell), na qu se à Liga Juvenil Anti-Sexo. . . amor será um ato político. O Num futuro não mUltO distante,? ebera' os conhecimen. tor O 1ovem rec amor será um ato subverstvo e corrup . ·t, . do ódio sobre o amor, da tos da destruição, da delação. Teremos a Vl ona agressividade sobre o sexo. terá que se engajar rio serviço roiPrimeiro, aos 18 anos, 0 moç~ . . . ·go impregnar-se de des. ' . 0 hipotettco uurru . sua vida é propriedade do Partido, litar. Preparar-se para exte~:U treza e de conhecimentos belictstas, pots do Estado, do Grande Chefe. 69 68 BASTA SABER OLHAR Já atravessamos momentos contraditórios. Somente aos 18 anos é que a lei permite ao jovem o encontro com o amor. Nessa idade , ele pode freqüentar cinema, teatro , buates, hotéis, enfim, participar dos perigos do amor. Assim mesmo , sob intensa vigilância. Permite-se a venda de álcool, de fumo, mas a vigilância permanece nas portarias dos hotéis. Zusman denuncia: "Condena-se à morte o soldado que , na guerra, pratica uma violência sexual; sabe-se, porém, que nada lhe aconteceria se em vez de relação sexual tivesse ele morto sua vítima". Os "hippies" lançaram uma campanha pacifista: "make love , not war". Foram simplesmente classificados de dementes. O amor não poderá ser colocado acima da agressividade. Em nome de uma moral defunta, superada, ainda são perseguidos os casais que se acariciam nas praças públicas, até mesmo nas praias e colinas desertas. Existem academias de boxe , de judô, de caratê , de capoeira, as quais são freqüentadas por crianças de baixa idade, num estímulo à agressividade. Onde as academias de amor? O amor, entretanto, é um sentimento mais forte e vence os condicionamentos. Embora os jovens sejam treiuados para a guerra, embora tentem manietar seus impulsos eróticos, embora se ponha no ombro de cada um , um fuzil - metralhadora, eles ainda possuem forças para o grito de paz: "make love, not war"! g preciso não esquecer uma verdade : somos cultores de Tânato. Os jovens, porém, apesar de tudo e de todos, aceitam a maçã ofertada por Vênus. Fui ver a exposição de Walter Wendhausen, catarinense radicado no Rio, cognominado de "o romântico da sucata". Antes, devo esclarecer, havia lido sua entrevista no "O Estado", edição de domingo. E mais tarde: duas apreciações técnicas sobre a pintura do artista catarinense, ambas escritas por gente que se diz entender de arte moderna. Haviam-me impressionado as palavras de Walter Wendhausen: "Tenho particular atração pelo que está gasto, destruído, por casarões em ruínas, rodas enferrujadas, pregos, latões, aros de bicicleta. O mundo aí está com tudo o que possui de belo para ser visto : basta saber olhar". Não encontrei beleza na sucata recomposta de Wendhausen, desculpem-me aqu~les críticos de arte que só sabem elogiar, mesmo sem penetrar, talvez por falta de capacidade, no substrato psicológico da obra artística. Sua arte Walter é antes de mais nada, um sentimento de culpa. Você agora, quer, i~conscie~t~mente, recompor o mundo que ajudou a destruir. Você foi o voluntário da Segunda Grande Guerra e ajudou a destruir o mundo. Agora, por um mecanismo compensatório, aproveita-se dos mesmos elementos oriundos da destruição (molas, pregos, pinos, eixos, rodas, casas bombardeadas) e tenta a recomposição das paisagens devastadas pela fúria dos homens. Verdade é que eu sou um elemento intoxicado de tanto ler Brecht: "Realmente, eu vivo num tempo sombrio. A inocente palavra é um despropósito. Uma fonte sem ruga denota insensibilidade. Quem está rindo é só porque Não recebeu ainda a notícia terrível". 71 70 Acontece que já recebi a notícia terrível, e, ·ao olhar cidades destruídas, não consigo ver o que há de belo nas coisas desmoronadas. Inconscientemente, você sabe disso, tanto que tenta uma recomposição com as peças deixadas pelo vandalismo. Uma força mais forte impede que você pinte flores coloridas, o riso das crianças, os lagos tranqüilos, os casais deitados na relva orvalhada, os barcos cansados do amor e da esperança. Exato, também, é que pertenço à geração que fugiu da guerra e, por isso, a paz que aí existe não faz sentido. Aliás, para ser honesto, esta conclusão não é minha, que sou homem de asas podadas, mas do poeta português Couto Vianna: "A minha geração fugiu à guerra Por isso a paz que traz não tem tem sentido." Mas não é nada disso, Walter. Nem você mesmo tem consciência do que representa sua arte, que para muitos parecerá estranha, inconsequente, pois nela não vemos bois gordos pastando, casas à beira do rio provinciano, pinheirais nos últimos suspiros da derrubada, vales férteis onde jovens passeiam de bicicleta, manhãs de domingo na Lagoa da Conceição. Tudo o mais que disseram sobre sua pintura não faz sentido. Nestes tempos de psicologia, o que vale é a mensagem inconsciente, aquilo que parte da imposição interior. O que existe de belo na sua pintura são os elementos apresentados para a reconstrução, e não o retrato da vida decomposta. ROSAS E POMBOS A notícia informa: "Ontem, na Praça Wenceslav, as metralhadoDuas , vores · Os pombos revoaram ras cortaram as copas das ar . assustados. , . aves tombaram feridas na calçada. Uma velha deixa o abngo precano e~ q~: se encontra e as recolhe' Colocando-as cuidadosamente em sua ces a compras". · · É o que manda dizer o correspondente mternacmn al do "Jornal do Brasil". Sim, dois pombos feridos, em Praga, na Praça Wenceslav, pelas N- há tropas da União Soviética. Sim a importância da notícia está na morte das aves. ao . . , . 1- cia do homem contra seu semelhante. Basta que veJamats espanto na VIO en . , . d Sai on de outras partes mos os jornais: nas ruas de Chicago, _de Hanm, e : d~solação ao informais do universo criado por Deus. Dal o fato ter causa o mante. . d tiroteio uma velha O que choca, portanto, é que, no meiO o , em sua deixe seu abrigo e apanhe dois pombos metralhados, e os coloque esto de carinho e de amor. ue isso não aconteça tão cesta de compras, num g Se os pombos fossem homens -. ~ q f . granadas e a mor' hoque constrmnam UZlS e '. das árvores, porém no cedo - teriam suas tropas de c te deles seria mais freqüente, não mais sobre as copas d . de missa rotineira, vêm da asfalto das grândes cidades. Tais considerações, neste o~go. , desaparecida adolescência, t ho de poema escnto naJa recordação de um rec ' ·olentadas pelo homem. que não fala de pombos, mas das rosas VI 72 73 "Rosa que para ser rosa não sabe filosofia A MENINA E OS MORANGOS Nem sabe que é simplesmente rosa. Porque, se soubesse, seria simplesmente ho E pe · . mem, nsana e mvestigaria e deduziria e analisaria E formaria batalhões de rosas Para destruir todas as rosas do mundo Todas as rosas florescentes nas aurora; " Nenhuma informação de que lh . m reco eu os JOVens feridos na mesma praça os J. ovens que a ' penas apareceram para grita 1 l'b d continuar a construir sua pátria d r pe a I er ade de nares. , segun o as normas de suas tradições miJeSomente no dia 24 de a o t ·~ s do, no mesmo logradouro público, na mesma cidade européia foram cinqüenta rapazes e os,feridos ~~cn Ica dos, mortos definitivamente, mais de . : . ram ca astrados em mais de trezentos .. Nmguem mforma quem socorreu os mortos ~ 'd fato de homen~ matarem é apenas a repetição do cotidiano.e en os, pOis o O Importante, talvez não seja ore 1him t d ou jovens violentados. O import~te é antes dceot d en o lhe rosas, pombos , u o, reco er as armas .,.. e t en der a mao ao semelhant d · ·c e ste espero. e e IZer: vem, eu estou aqui neste ancoradouro 74 Apenas um poente vermelho ensangüentando o horizonte. Não via a ponte, mas sabia que ela ficava para aquele lado. Era como se alguém houvesse incendiado o mundo. Em criança, na longínqua província, muitas vezes assistira à parturição da madrugada: rubras auroras. Dezenove anos de idade, ainda imberbe, já trazia sobre os ombros o peso da condenação: 20 anos! Uma longa reclusão a cumprir, por dois homicídios: dois homens sacrificados sobre a poeira do caminho da vida. Nem mesmo sabe descrever os fatos com segurança. Se houve tiros, não se recorda. Apenas, envolvido pelo tumulto, ouviu vozes distantes, um planeta rodando, o demônio impulsionando o cabo da faca assassina. Depois, a marcha implacável da Justiça: detenção, denúncia, pronúncia, julgamento, condenação e reclusão. Um tempo enorme a se arrastarlentamente. Olhava o poente, com sua roupa de penitenciário, amparando o queixo no cabo da enxada. Pensaria ele em outros momentos, em outras circunstâncias, em outros horizontes agonizantes? Quem poderá responder, se, ao exame especializado, foi rotulado como oligofrênico! E o diagnóstico devia estar correto. Um rapaz de dezenove anos, que se diverte a jogar pedras em pessoas que participam de um casamento ao ar livre, só pode ser mesmo débil mental. Bem que poderia, como os demais, estar festejando o sacrifício da virgem nubente. Pode um oligofrênico entender o caráter do delito, o dano causado, o significado da condenação? Nem ele pensava nisso, nem eu entendo do assunto. Sou apenas um fotógrafo de comportamento, um homem com sensibilidade para registrar os fatos. 75 Ele, entendendo ou não , ali estava, por trás da cerca de arame farpado , a cultivar morangos. Foi a tarefa que lhe deram , possivelmente bem escolhida, pois seus frutos apresentavam beleza e esplendor. Se sofria, eu não sei, pois para o sofrimento há necessidade de uma certa dose de sensibilidade. Nem mesmo sei se realmente tomava conhecimento de que o dia morria em espasmos vermelhos, como um ganso manietado pelo longo pescoço. Entretanto, a criança ele percebeu. Vinha da escola vespertina e trazia os livros pendurados por uma correia de plástico azul. Uma menininha de oito anos, regressando do b-a-bá primário. Embora oligofrênico, como afirma o laudo especializado, ainda lhe restava na mente uma nesga de ternura. Sentiu que a garotinha gostaria de receber alguns morangos. O pedido estava claramente visível nos seus olhos oceânicos. Foi o seu segundo crime, o primeiro depois de sua entrada na Penitenciária. O guarda fotografou o delito, televisou ao diretor a falta imperdoável e ele foi recolhido ao cubículo por oito dias. O guardião do regulamento, disseram-me depois, cumpriu com o seu dever. O diretor, por força regimental, também cumpriu com o seu dever. B que os morangos eram de propriedade do Estado! Vivemos, certamente, num mundo com regulamentos em demasia. Se eu fosse autoridade, se tudo dependesse de mim, confesso que daria uma medalha de ouro a cada ser humano que ainda é capaz de oferecer morangos, mesmo que da propriedade do Estado, a uma criança que retoma da escola, especialmente quando o poente é vermelho e amor desce sobre todas as causas criadas por Deus. A IMPORTÂNCIA DE SER DEUS Não faz muito tempo era um deus único: Cristian Barnard. Um deus que , num dia de tédio, resolveu brincar de transplantar corações. _D_m deus que, brincando com a vida e a_ morte, pro~urava, antes de tudo, a glona. Um deus que veio da Africa, da Ctdade do Cabo , para g~ar as manchetes dos jornais e revistas. E não só isso: para p~ovocar prundos em muitas mulheres da alta sociedade, até então tidas e h_avtdas como honestas. Um deus audacioso , simpático, risonho, freqüentador de boates, e até mesmo de academias científicas. Um deus moderno. Um deus, que, no Brasil, soube utilizar-se dos segredos da convicção. . . Um deus também piedoso, que se julga mensageuo do Pru, como 0 Filho anteriormente crucificado. Ele mesmo afirmou ao Cardeal da Guanabara: "Rezo pelas minhas operações. As preces nos ajudam a trabalhar com segurança e tranqüilidade. Sem fé não há confiança". . E como instrumento do Deus-Pai, de mãos santificadas, con~essa que a habilidade profissional vem com a religião e a fé, qu~d~ todo ct~r gião sabe que a habilidade manual ou técnica é uma decorrencta do tremamenta repetido e disciplinado. . Barnard, como se pode depreender , rezou mtensamente pelo s~. cesso das cirurgias realizadas em w·1sh ansk e e Blat'berg • embora não tenha ,Sido atendido como desejava. Não está registrado, entretanto, q~e tambem orou como a mesma sinceridade, pela alma dos doadores: Deruse e Haup. Ou não havia-necessidade? d Mesmo com os protestos surgidos, poucos, na verdade, o eus . . dades apare ceram na face da terra, todas risonho fez seguidores. Outras dtvm . armadas de afiados bisturis e disputam, agora, o troféu de quem faz mrus em menos tempo. 76 77 Feliz~ent~ a farra está próxima do fim . A disputa pela glória , pela fam~ sen~acwnal!sta, e~ face dos péssimos resultados da cirurgia, foi por .demais efemera. Os prundos nacionalistas vão desaparecendo com a histarruna do bom senso. AO JOVEM PROFESSOR Graças a Deus que Barnard sentou razão dentro da cabe a vaidosa. Ele ~ seus apressados seguidores. Já podemos sofrer 0 nosso at;opelamento, ate co~ perda da consciência, sem 0 receio de que nos encaminhem para ~m- ~ospital que transplanta corações. Nossa família continuará a ser propnetar1a do nosso corpo sem vida. Barnard deveria ler o poema de Drumond: "E agora José? E t, se_m mulher I está sem discurso I está sem carinho 1já não pod~ beb~r / · ~ nao pode fumar I cuspir já não pode I e tudo acabou I e tudo fugiu 1e tud~ mofou I A festa acabou I a luz apagou I o povo sumiu I a noite esfriou I E agora, José?" Certo eu não sei se está, professor. Em todas as verdades que me ensinaram houve sempre uma dose de mentira ou , pelo menos , de dúvida . O certo é que se o homem aceitar , integralmente , as verdades que lhe são impostas compulsoriamente, ele deixa de ser homem : vira robô. O velho Russel , até com o auxílio da matemática, nos falou , em dias ainda recentes , da relatividade das verdades e da falência das paixões. Alguém já disse que a paixão é a medida de convicção racional de quem a expressa. Teria sido Kant? O problema não se resolve em procurar saber quem é o mais entendido. Isso não levaria a caminho algum. Até porque a pletora de saber é prejudicial. Sabe você o que dizia Bergson sobre o tema? "o muito conhecimento leva ao ceticismo; os mais devotados do primeiro momento são os mais prováveis apóstatas , como os mais precoces pecadores se tornam santos na velhice". Vejo em você um devoto do primeiro instante . Se não receber como injúria, eu aconselho: não encontre a verdade , que é a estagnação. Busque-a , isso sim. E verá como existem muitas verdades. Que ela varia no tempo e no espaço. E que, em algumas ocasiões, é decorrente de cultura, que vem sem a gente perseguir, com a idade. Por outro lado , quem sou eu para contestar , intempestivamente , um fato científico? Contesto-o racionalmente. Sou, antes de tudo , um homem de ciência. Foi, sem o querer, o meu destino . Mas o velho Russel , como de outras oportunidades, dá a última palavra: "Disponho-me também a admitir qualquer resultado científico bem documentado , não como certamente verdadeiro , mas bastante suscetível de servir de base para a ação racional". 78 79 PAVANA CON AFFETTO Também sei que, para muitos, a ciência é o deus moderno. Se você analisar, sem paixão verá que a situação da ciência, nos dias de hoje, é a mesma da religião, no meados do século XIX. Aliás, até que não são palavras minhas, mas de Horrodin: "Science is God". O que você necessita perceber, professor, é que a crônica, assim como a novela, o conto, o romance, também é ficção. O cronista fala, quase sempre, do cotidiano, do trivial, do terra-terra, do dia-a-dia. Com profundidade ou irreverência, com o otimismo ou com pessimismo. Formas e estilos diferentes, para não cansar. ~ também ele um operário da comunicação. Em primeiro lugar, com as devidas reservas, eu acredito no processo de comunicação, que nem é ciência nem arte. Mas tudo é muito relativo, sabe? Quando Feidípedes percorreu 255 km de Atenas a Esparta, para solicitar ajuda contra o invassor persa, teria a invasão sido evitada, se houvesse um meio rápido de comunicação? Temos, nos dias de hoje, além do estafeta que leva a mensagem, o correio, o telégrafo, o telefone, a radiotelegrafia, a radiodifusão, a televisão, as mais modernas comunicações eletrônicas. Nem por isso os países pequenos evitam que os grandes invadam suas _fronteiras. A comunicação científica e artística não tem servido para o homem tornar-se melhor, para divulgar o amor, a concórdia, a paz por todos desejada. Ela também difunde o que é mau: a corrupção dos costumes, o incentivo ao vício, os processos de subversão da ordem. Finalmente, quero lhe dizer que não sou mais um trêfego, porém, apenas um ser racional. Aceito o mundo como ele é, e nele vivo como homem normal: um misto de santo e demônio. E, além de tudo, tenho a mais profunda admiração pelos jovens. Admiração, e não inveja. Como nas palavras de Goethe: "Tendo graças a Deus da minha mocidade não ter coincidido com um mundo tão exaurido". 80 \ \ I \ \ . t' cia A ausência . ue tem isso de 1mpor an . saEles não acredüam. E o q f t . nem os presentes nem o~ pas, . . - muda a veracidade dos a os. e o sexo. E o ma1s traglde crédüo nao . d ' estão redescobrindo o amor ue são prá frente. · as novas, q les cmta os. am que estão criando cms .1 ue eles estão aprendos . Mas e , co é que eles, pens anos atrás nós fazíamos ~qU1, o q -o lhes podemos Ha quantos . ta? o p1or e que na · f onto con0 que 1mpor · ? Vinte vinte e cmco, . go motocicleta, ugas, p ' den do · • ·á haVla caran • d , r te de amar. xemdizer que, no nosso tempo, J , 1 Nada foi acrescenta o a a , 1 ponto e vlfgu a. lh dissermos, por e de não é verdade? Se es po servido de traponto, vlfgu a e Você compreen , . . fl r vermelha, o cor hora batendo na d Gomes Frelfe. a o plo, as coisas do 'rarto ;or nascendo de nós, a _vedlha ~::arão que nós soo "d Será que eles am a a 1 J·arro, a madruga a, ·u germ os ... porta, P.orque ouVl? você nas tardes de 1 ririam se soubessem que ,. no velho mos uns quadrados . Verdade é que e es de estilo, tocava para ~m, d numa banqueta .nh dispos1çao. domingo, senta a . B h Vivaldi segundo a rm a A ite o momento, Pleyel, Grieg, Chopm:, ::emon", lá 'no Morro da ~rca? :~ndi~o passando E aquele r o luar na mata metropolitana, ~ car Será que eles já a música a champanha, destino ao Pão de Açu . ' cabeças,com por cima das, nossas? . alucinógenos, afroforam tão pra frente. ·t'vamos de misturas, bolinhas, . ência e silêncio. E não necess1 a il'ncio de conVlV "dade e s e ' ? . , Apenas de oporturu t do mundo. . b. d1s1acos. un·portava O res O c· emas pra1as, 1· · Que nos · amor m • d Ó Apenas de n s 01S. ditam que já haVla o . h téis ilhas, barMas eles nao acre 1 . ão apartamentos, o , ailes telefone, te eVlS , quinis, contactos, b ' 81 \ \ I I I \ I \ I \ cos, veleiros e deseJ·o semp re renovado Q sa bem, mas calculam que o . uantos anos tem o amor? Ele pertencem. amor apareceu no decorrer da ' - s nã"o . geraçao a que Sun, esses meninos ima ·nam , . caux, de Madeleine, de Alt . gi ~ue nos VIvemos nas grutas d La nos ensinar coisas sobre o am~r'i, e que ~ao suficientemente moderno: sEles nem sabem cro..t md requtem para eles, sabe? para é t • 1 a os' que o e erno. Que existe a partida a de . . amor também morre, que nã"o rando para os lados opostos , spedida, o desencontro, o destino em · purSerá que eles entendem . o que dtsse o poeta: "Vivemos de b leza I De silêncio e beleza I r ilh estrada perfumada por um cru:e".amos uma estrada incerta e traiçoeira I~ O JARDINEIRO INSENSATO Tenho lido, ultimamente, muita coisa que destila ódio. Pelo menos, é a impressão que me dá nos primeiros momentos. Outras vezes , intoxicado com a leitura de psicólogos, até nem sei mais fazer diferença entre o ódio e o amor. Freud, o homem que penetrou no interior da alma, e de lá retirou toneladas de excrementos, acreditou que os dois sentimentos, amor e ódio, convertem-se facilmente. Ou mais precisamente: o ódio gera a angústia, mas, se bem trabalhado, pode se converter em amor. E o amor não gera angústia? Pensando melhor, o que sinto fluir das páginas que tenho lido ultimamente não é ódio, e sim angústia .. Verdade é que o mestre de Viena afirma que há entre os dois um perfeito relacionamento de causa e efeito. Quem sabe! Há outros que declaram que o ódio não é tão prejudicial assim, ainda mais que ele sempre esteve a um passo do amor e, em determinadas circunstâncias, até se confundem, formam um ser univitelino. Drumond, por exemplo, confessou: "Porém meu ódio é o melhor de mim I com ele me salvo I e dou a poucos uma esperança". Aos novos que, erradamente, acreditam em mim e me trazem trabalhos para ler, em grande parte carregados de angústia, eu digo serenamente : conservem, com a Graça de Deus e o passar dos anos, a angústia que conduzem nas costas, embora possa ela parecer muito pesada. Digo-lhe, também, que não deve merecer preocupação a etiologia do estado, que não advém apenas do ódio ( e se viesse que importância teria? ), porém da constante luta entre o ~r civilizado e o meio no qual luta 82 83 para sobreviver. Não esquecer que o indivíduo de sensibilidade, com especial razão, está obrigado a sufocar seus desejos de amor, de liberdade , de vingan. ça, de posse , de luta contra os padrões da sociedade estabelecida. Não é menos verdade que a angústia leva à solidão e ao sofrimento. E o que tem isso? Ambos, se bem trabalhados , também geram energias criadoras, que é a meta de quem deseja produzir. Angústia e solidão, por outro lado , não levam obrigatoriamente, ao suicídio. Rilke , em carta a um amigo , aconselhava: "Mas não se importe. Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar. Aplique os seus pensamentos ao mundo que traz dentro de si e dê o nome que entender a esses pensamentos". Também é verdadeiro que vivemos num mundo de forte repressão, que atua no indivíduo como uma força negativa, agravando seu estado de angústia, e a criatura se defende levando o conflito gerado à esfera do inconsciente , para não sofrer ou estourar. Aí, a meu ver, reside o perigo. Reprimir violentamente a angústia, ·Conduzi-la ao escaninho do inconsciente , representa um perigoso processo de castração emocional. Estaremos, como o jardineiro insensato, cultivando a flor do mal. Melhor mesmo, segundo penso , é sublinhar a nossa angústia. Não acorrentá-la na casa do cachorro, no fundo do quintal. Transformar esta energia em estímulos criadores. Se temos que cultivar o ódio; se ele gera a angústia, paciência. Façamos como Drumond: criemos belezas, dando a poucos uma esperança. 84