digite o título da tese - PPGDS - Programa de Pós
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Universidade Estadual de Montes Claros PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO SOCIAL TRILHAS DE RIOBALDO: FRICÇÕES IDENTITÁRIAS ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO Catarina da Conceição Rodrigues Montes Claros/MG 2006 Universidade |Estadual de Montes Claros Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social TRILHAS DE RIOBALDO: FRICÇÕES IDENTITÁRIAS ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO Catarina da Conceição Rodrigues Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social, da Universidade Estadual de Montes Claros, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Social, aprovada pela Banca Examinadora. Banca Examinadora: Profa. Dra. Maria Helena de Souza Ide Orientadora Prof. Dr. João Batista de Almeida Costa Co-orientador Profa. Dra. Maria do Carmo Veiga - UFMG Profa. Dra. Simone Narciso Lessa - UNIMONTES Montes Claros/MG 2006 Dedico, de maneira especial, a todos que persistem na teimosia poética de acreditar que é possível derrubar cercas e construir pontes entre os seres humanos. AGRADECIMENTOS À minha orientadora Maria Helena de Souza Ide (Bárbara), pelo acompanhamento competente e sereno durante todo o percurso de construção deste trabalho. Ao meu co-orientador, o antropólogo João Batista de Almeida Costa (JOBA), pela competência passional com que pesquisa o sertão norte mineiro, especialmente os quilombolas, e que acabou me fascinando. Aos professores Gilmar, Simone, Dimas, Otávio Dulci, Luís Antônio, Luciene e Sarah Jane, pelo carinho, amizade, exemplo de profissionalismo e parceria na nossa construção do conhecimento neste curso. Ao Valmir Rodrigues (Tito), pesquisador monteazulino, sem o qual seria impossível esse trabalho. Ao Sr. Joaquim Pereira da Silva (in memorian), gurutubano de primeira, por ter consentido em abrir sua vida para este trabalho. Aos Srs. Azemar Francisco Rodrigues e Abílio Fernandes, nativos de Monte Azul, patrimônio vivo da história política norte mineira, pelos relatos fornecidos para a constituição da base de dados deste trabalho. Ao casal amigo – e gurutubano, também – Marizete Aparecida Santos Reis e Edézio Reis, pela amizade e alegria de pertencer a esse povo. A todos os outros entrevistados que me forneceram o material para análise. A Flávio, pela conversa iluminadora que antecedeu o desfecho da dissertação que culminou no insight de criar o conceito de fricção identitária. Ao meu amigo muito especial Robin, motoqueiro da gema, por ter estado presente em momentos cruciais da pesquisa (Janaúba, Monte Azul, Porteirinha, Mato Verde...). Ao meu amigo do coração Prof. João Roberto de Oliveira, por sua sempre boa vontade em socorrer os amigos. À minha professora alfabetizadora Nenzinha Faria, pois sem sua competência profissional e respeito ao ser humano, independente de condição social, eu não teria desenvolvido as habilidades de leitura e escrita que me trouxeram até aqui. Ao prof. Antônio Carlos Martins, pelas sugestões que muito contribuíram com esse trabalho. Ao meu amigo-irmão Herbertz, pelo companheirismo de todos os momentos. Ao meu companheiro de tantos anos, o curitibano Paulo Renato Gomes, pela convivência às vezes áspera que tivemos, mas que muito me ensinou a ser humana. A todos os meus familiares, especialmente meus irmãos, pelo simples fato de existirem. A minha mãe (in memorian), que despertou em mim o interesse, desde criança, em entender minha origem sertaneja. A todos os colegas do Mestrado, especialmente à Beth e Vivian, pela solidariedade e amizade de ambas. A Althiere, pela preciosíssima e inteligente colaboração na reta final do trabalho. Aos meus colegas e amigos do CESEC, especialmente a diretora Marlene, a vice-diretora Jane e as minhas colegas da área de línguas, Aldair, Beatriz, Lourdinha, Gislene, Jacqueline e Berenice, pelo estímulo e colaboração. Ao meu amigo Marcos Antônio, pela amizade, pela força, pelos momentos de descontração e pela interpretação de “Metal contra as nuvens”. A todas as colegas da Equipe Pedagógica (SRE), pelo apoio quando da minha aprovação na seleção para o mestrado. A Cida (aluna do 6º período do Normal Superior em Porteirinha, no 1 º sem./2005), por sua contribuição. A minha amiga-irmã Ramone, pela amizade que dura, mesmo quando estamos seguindo outro caminho. A Paulo de Oliveira (irmão de Rá), gente boa demais, solidário, inteligente e competente, pelo empréstimo do material para estudo. Às professoras Railma e Eli, por terem confiado em mim, através da Carta de Recomendação. Ao meu amigo professor e escritor Adalgimar Gomes, pelo exemplo de vida, dignidade, persistência e esperança constante. À Marcelo, my special friend, pela sua contribuição para o desfecho desse trabalho. Aos companheiros e companheiras de viagem das estradas do sertão norte mineiro. O sertão me produziu, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... o senhor crê minha narração? Guimarães Rosa RESUMO Esta dissertação tem como objetivo discutir a identidade linguístico-discursiva do sertanejo norte mineiro, tendo como contraponto a fala de Riobaldo, personagemnarrador de Grande Sertão: Veredas. A base de dados é constituída por informações historiográficas, literárias, etnográficas, além do trabalho de campo realizado nos municípios de Monte Azul e Janaúba. Para realizar a investigação, recorre-se a teorizações advindas de um campo interdisciplinar: a Antropologia, a Análise do Discurso e a Sociolinguística. Da Antropologia, veio a fundamentação teórica sobre identidade; da Sociolinguística, a reflexão sobre a língua e suas variantes e a Análise do Discurso fundamentou a análise comparativa entre o corpus coletado junto a moradores dos dois municípios investigados e o discurso fictício de Riobaldo. A análise de dados apontou que o discurso fictício do personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas foi construído a partir do conteúdo linguístico- discursivo dos sertanejos norte mineiros. PALAVRAS-CHAVE: Identidade e diferença. Língua. Variação lingüística. Discurso. Sertão. Norte mineiro. ABSTRACT This dissertation has like objective discuss the identity linguistic- discursive of the miner north backwoodsman, having like counterpoint the speech of Riobaldo, personagenarrator of Grande Sertão: Veredas. Based on facts is constituted by information historiographic, literary, ethnographic, beyond the fieldwork carried out us towns of Monte Azul and Janaúba. For it carry out the inquiry, it appealed to theory resulting of an interdisciplinary field: the Anthropology, the Analysis of the Talk and to Sociolingustic. Of the Anthropology, came the theoretical substantiation about identity; of the Sociolinguistics, the reflection about the language and his variants and the Analysis of the Talk substantiated the comparative analysis between the corpus collected next to inhabitants of the two towns investigated and the fictitious talk of Riobaldo. The analysis of facts aims that the fictitious talk of the personage-narrator of Grande Sertão: Veredas was built from the content linguistic- discursive of the miner north backwoodsmen. KEYWORDS: Identity. Difference. Language. Linguistic variations. Talk. Miner north. Backwoods. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fig. 1. Vista lateral da casa do coronel Levy Souza e Silva. Monte Azul - MG. Foto tirada dia 28/01/2006.....................................................................................................105 Fig. 2. Vista frontal da casa do coronel Levy. Monte Azul – MG. Foto tirada no dia 28/01/06 ........................................................................................................................106 Fig. 3. Vista dos arredores da casa do coronel Levy. Ao fundo, a Serra Geral. Foto tirada em 28/01/06. .......................................................................................................107 Fig. 4. Vista interna do quarto do coronel Levy. Foto tirada dia 28/01/06.. ..................108 Fig. 5. Vista interna da casa, em que podem ser vistas as janelas, por onde os jagunços vigiavam a propriedade. Foto tirada dia 28/01/06. ........................................109 Fig. 6. Pôr-do-sol do sertão norte mineiro. Foto tirada em out./05................................110 Fig. 7. Lâmpada de azeite, feita de argila, por quilombolas gurutubanos. Janaúba – MG. Foto tirada em 07/09/05................................................................................................111 Fig. 8. Planta que, supostamente, deu nome à cidade de Janaúba – MG. Foto tirada em 07/09/05.........................................................................................................................112 Fig. 9. Foto do Sr. Joaquim (terceiro da esquerda para a direita), entrevistado, neste trabalho, ao lado de sua esposa. Foto tirada dia 07/09/05...........................................113 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...............................................................................................................11 CAPÍTULO I 1. Identidade e diferença: de quem em relação a quem? 1.1. Sobre o signo identidade.....................................................................................18 1.2. Identidade e diferença: atos de criação linguística..............................................21 1.3. A representação da identidade e da diferença ...................................................25 CAPÍTULO II 2. Identidade e diferença linguística: hierarquização e resistência 2.1. Linguagem e língua.............................................................................................31 2.2. Linguagem e discurso.........................................................................................34 2.3. Língua e representação.......................................................................................36 2.4. Identidade e diferença linguística........................................................................38 CAPÍTULO III 3. Obliteração e resistência: a reescrita da história norte mineira 3.1. Quilombolas gurutubanos e o processo de visibilização....................................45 3.2. Os montes azuis de Tremedal............................................................................50 3.3. Janaúba e Monte Azul: algumas similaridades e diferenças..............................55 CAPÍTULO IV 4. Sertanejos e Jagunços: dois signos e uma identidade? 4.1. Adentrando o espaço sertanejo..........................................................................58 4.2. Sertão polifônico e polissêmico: o olhar roseano e outras interpretações..........60 4.3. O signo sertão no pensamento social brasileiro.................................................65 4.4. Coronelismo e jaguncismo: a dualidade fundante da república brasileira..........67 4.5. Olhares estrangeiros sobre o sertão..................................................................74 4.6. Um olhar de alguém “de dentro”........................................................................76 4.7. Considerações finais desse capítulo................................................................76 CAPÍTULO V 5. Trilhas de Riobaldo: entre o real e o imaginário, a identidade linguística do norte mineiro? 5.1. Realidade e ficção sertanejas: discursos que se cruzam.....................................78 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................94 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................99 11 INTRODUÇÃO Fricção identitária constitui a matéria vertente, por meio da qual é lida, tanto no real quanto no imaginário, as diferenças de identidades entre norte mineiros e mineiros, focalizadas na questão discursiva e sociolingüística, que as situam como alteridades, mútuas, no interior da sociedade dual mineira. Entende-se por fricção identitária a realidade resultante do contato e tensão entre identidades diferentes, apreendidas através do enfoque nas relações vivenciadas por essas identidades. Em relação à categoria fricção, FERREIRA (2000) registra, como: 1) ato ou efeito de friccionar; 2) atrito. Para o vocábulo atrito, especificamente, esse autor denota, como: 1)fricção entre dois corpos; 2) desinteligência, desavença. Esse segundo conceito, atribuído ao vocábulo em questão, informa uma concepção negativa de conflito, que sobressai por trás do não dito: desinteligência ou desavença são atos que acontecem no contexto das relações humanas ou sociais. Quanto ao primeiro, refere-se a um conceito advindo de uma lei da Física e não recebe conotação negativa. É salutar esclarecer, que não compartilhamos com a idéia de que o atrito, a fricção, seja uma ação desinteligente. Ao contrário disso, envolve sempre decisões tomadas com o uso da inteligência. O que cabe perguntar é quem, ou se alguém, se beneficia no locus da fricção, nesse ponto de contato. A categoria fricção, no que concerne à noção de fricção interétnica, foi utilizado por OLIVEIRA (1996) para explicar que o conhecimento do contato interétnico será alcançado de modo mais completo se focalizarmos as relações interétnicas enquanto relações de fricção. Nos estudos desenvolvidos, esse autorpesquisador desvelou a realidade de dominação pelos brancos, vivida pelos índios Tükuna, quando estes passam de uma ordem tribal para uma ordem nacional. OLIVEIRA (id.) focaliza, portanto, a fricção interétnica como o lócus conflitivo onde se processam as adaptações dos índios a novas identidades étnicas, visando o adentramento, que não ocorre na prática, nas benesses do mundo dos brancos. Na situação emergida, os indígenas deixam de ser Tükuna para serem brasileiros. Entretanto, deixam de ser o que eram mas não conseguem ser o que almejam, passando a constituírem uma “espécie diferente de gente”, os caboclos. Nessa 12 situação nova, constróem toda uma teoria de seu lugar social no interior da sociedade nacional, ou seja, o caboclismo. O estudioso dessa questão, constrói, a partir da teoria tükuna, uma teoria sociológica sobre a mesma. Se, aparentemente, a fricção interétnica não diz respeito ao objeto de estudos que culminaram nessa dissertação, ela é importante por permitir cunhar o conceito de fricção identitária. Para se compreender, no escopo do confronto entre dois discursos e duas variantes lingüísticas e, conseqüentemente, de duas identidades culturalmente distintas, como é tratado aqui, é necessário considerar a existência de igualdades e diferenças pois, é a partir delas que, as categorias sociais em jogo, se tornam dessemelhantes e se confrontam. Assim, se faz necessário debruçar sobre as identidades e sobre as diferenças que se chocam, seja numa forma cantábili de falar, ou em outros aspectos que sejam demonstrativos da existência de variações lingüísticodiscursivas ou de diferenças identitárias, sem o que não é possível tratar da fricção identitária, como aqui se pretende trabalhar. Nessa dissertação, informamos que, ao nos apropriarmos da categoria fricção e adicionarmos a ela a categoria identitária, pretendemos ler as relações que se estabelecem entre a identidade linguístico-discursiva do norte mineiro com a sua alteridade, ou seja, os mineiros. Em Minas Gerais, como postula COSTA (2003), compreende-se a existência de uma realidade dual. Toma-se tal dado, como alicerce, para se discutir a questão da fricção identitária e, para tanto, faz-se a opção de se trabalhar com dois contextos diferentes, ou seja, um real e um fictício para, a partir deles, fazer algumas inferências sobre as identidades em fricção. Necessário salientar, que toma-se como dada, a diferença entre a identidade mineira e a identidade norte mineira, por meio da qual os sujeitos portadores de tais identidades se friccionam em suas convivências, principalmente, quando o sujeito norte mineiro diz alguma coisa. Nesse sentido, registra-se a experiência de um escritor montesclarense quando de sua primeira viagem à capital, momento em que deveria ter confirmada a condição de partícipe da identidade mineira. Porém, ao falar algo, é colocado fora da identidade que, crê, o recobre e o faz igual aos belohorizontinos. “Quando a minha avó me levou pela primeira vez para conhecer a capital, muitos be´ da merda me 13 perguntavam se eu era baiano ou pernambucano. ´Vai perguntar a sua mãe seu filho...” (MAURÍCIO, 1995: 33). É a partir de experiência desse tipo, que se pode afirmar estar dada a diferença entre a identidade lingüístico-discursiva de norte mineiros e mineiros. Entretanto, não se debruçará sobre as duas identidades, porque o objetivo aqui não é compreender os conflitos, mas, dado que a identidade mineira e sua variação lingüística já se encontram legitimadas pela ideologia da mineiridade, o que se pretende é colocar em foco a identidade norte mineira e sua variação lingüística. Para tanto, é posto em evidência que, nas diversas situações de interlocução que se processam, na convivência sertaneja e cotidiana com moradores da região norte do Estado de Minas Gerais, chama a atenção a semelhança entre as construções linguístico-discursivas produzidas pelos falantes nativos e aquelas que o escritor mineiro Guimarães Rosa atribuiu aos seus personagens em sua obra Grande Sertão: Veredas, através do personagem-narrador Riobaldo. Por outro lado, da observação empírica e espontânea dessas situações, fluíram as indagações: pelas trilhas linguístico-discursivas dessa narrativa roseana, poderiam ser efetivamente encontradas semelhanças com a identidade linguísticodiscursiva do sertanejo norte mineiro? No confronto entre a fala do nativo e morador desse contexto, nascido nas primeiras décadas do século XX, e a fala fictícia de Riobaldo, poderiam ser evidenciadas essas semelhanças? Sabe-se que uma das características, que tornam a obra roseana tão singular, é justamente a ousadia que o autor teve ao utilizar literariamente a cultura popular, através do registro parcial de sua oralidade. O vocábulo oralidade está sendo empregado como significado de discursos1 orais, construídos pelos sujeitos que se localizam em contextos sócio-históricos e culturais determinados. Com essa afirmativa não se quer desconsiderar, com certeza, a riqueza dos neologismos criados por esse autor, além de outros recursos literários utilizados por ele na construção de sua obra. Entretanto, sem desconsiderar as diferenças que há entre um discurso pensado e construído com recursos próprios da literatura e outro transcrito tal qual a sua produção por sujeitos situados num contexto sócio-histórico e cultural determinado, podem-se perceber semelhanças consideráveis entre o 1 A respeito da concepção de discurso utilizada, nesta dissertação, consultar o Cap. II, seção 02. 14 discurso que constrói a referida obra e a fala de norte mineiros selecionados, como partícipes de categorias sociais, para alicerçar este trabalho. Definiu-se, como objeto de pesquisa, a investigação sobre a fricção identitária e lingüístico-discursiva do norte mineiro, tendo como contraponto o discurso fictício de Riobaldo, personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas. Por ser um objeto interdisciplinar, fez-se necessário buscar a compreensão do mesmo na intersecção de campos teóricos múltiplos. Na discussão do conceito de identidade/diferença, por um lado, e de fricção, por outro, buscou-se amparar, prioritariamente, na Antropologia. O adentramento no conceito de língua e suas variações teve como suporte teórico conhecimentos advindos da Sociolinguística. Entretanto, a Análise do Discurso foi se tornando essencial no decorrer do processo, em todas as suas etapas e, especialmente, na análise e interpretação dos dados. Além disso, optou-se, também, pela conveniência de dialogar brevemente com a Pragmática, através do conceito de atos performativos. Durante o processo de indagação sobre as possíveis semelhanças entre o discurso real dos norte mineiros e o discurso fictício de Riobaldo, chamou a atenção o trabalho de VIGGIANO (1978), que esquadrinhou nos mapas nacionais mais de 250 lugares, entre cidades, povoados, vilas, rios, córregos e outros, citados no livro Grande Sertão: Veredas, ao que ele chamou de Itinerário de Riobaldo Tatarana. Dessa maneira, ele conseguiu evidenciar a tecitura genial entre realidade-ficção, construída por João Guimarães Rosa. A seleção dos locais onde seria levantado o corpus para realizar a investigação teve como uma das referências esses lugares mapeados por ele. A leitura da obra desse autor despertou o desejo de percorrer todo o itinerário de Riobaldo e investigar a riqueza linguístico-discursivo dos sujeitos desses lugares, nos quais vivem e escrevem suas histórias. Como isso não foi possível, dada a precariedade de recursos materiais e limite de tempo para concluir este trabalho, fez-se a escolha por um lugar, o município de Monte Azul que, tendo existência real, é também localizado ficcionalmente no itinerário de Grande Sertão: Veredas 2 conseguindo, portanto, visibilidade nessa obra . 2 Vide citação feita na seção que trata da caracterização desse município. 15 Entretanto, ao se processar a revisão de literatura, evidenciou-se a obliteração de uma das populações tradicionais norte mineiras, os quilombolas. Apesar da evidência de que essa obra roseana, especificamente, tem como pilar a história política e a cultura do norte de Minas, seu autor não registrou a presença secular desse povo. No entanto, muitas das localidades do itinerário de Riobaldo e seus companheiros jagunços, pertencem ao território onde moram há muito tempo os gurutubanos, descendentes dos negros que adentraram há séculos essa região. A constatação da obliteração desse povo, inclusive nessa obra, chamou a atenção para a importância de incluí-los no universo de pesquisa. Afinal de contas, estando entre os moradores mais antigos, são representantes fundantes da cultura sertaneja norte mineira, inclusive em seus aspectos linguístico-discursivos. A partir da tomada de tal decisão, passou-se ao levantamento das diversas localidades que compõem o território gurutubano e optou-se por realizar a coleta de dados junto a quilombolas residentes na zona urbana de Janaúba. Ressalta-se, ainda, que Janaúba, enquanto município, não é mencionada no livro. Entretanto, faz-se referência, entre outros componentes da toponímia local, ao rio Gorutuba e um dos seus afluentes, o Quem-Quem (ROSA, 2001: 302). Para a obtenção de resultados qualitativos e um melhor desempenho no processo de investigação, foi feita uma pesquisa etnográfica nos municípios de Monte Azul e Janaúba, aliada a uma pesquisa bibliográfica que teve como embasamento a obra literária Grande Sertão: Veredas e textos polifônicos com interpretações polissêmicas de tal obra. Para maior abrangência do tema e para permitir a execução de uma pesquisa com maior rigor científico, foi utilizado o método comparativo. A utilização desse método teve como objetivo comparar os dados levantados na pesquisa literária com os dados da pesquisa de campo, respaldando-se nos estudos científicos. A interpretação apoiou-se nos dados levantados tanto na pesquisa teórica quanto na empírica. Dessa forma, para realizar a investigação, foram empregados os seguintes tipos de pesquisa: a bibliográfica e a de campo. A pesquisa bibliográfica caracterizou-se, pela leitura e análise de livros, artigos e ensaios, na busca do suporte teórico sobre o assunto, tendo como base a Sociolinguística, a Análise do Discurso e a Antropologia. A leitura e análise de Grande Sertão: Veredas perpassou 16 todas as etapas da investigação, estando inserida na pesquisa bibliográfica. A pesquisa de campo visou a coleta de dados empíricos. O objetivo em adotar um estudo de campo, na pesquisa, buscou identificar o perfil e um corpus linguístico-discursivo da população-alvo, ou seja, de moradores nativos do sertão norte mineiro. Através desse estudo, buscou-se, também, colher dados sobre o contexto histórico e sócio-cultural em que vive essa população. Os instrumentos que possibilitaram a execução do estudo de campo foram a entrevista e a observação. O universo de pesquisa foi constituído com moradores nativos dos dois municípios investigados, ou seja, Monte Azul e Janaúba. A escolha desses municípios pautou-se pelas razões já expostas. A coleta de dados iniciou-se através da observação e da coleta de relatos orais com moradores nativos, com mais de 60 anos de idade, dos dois municípios, que forneceram informações qualitativas para a pesquisa. Esse público-alvo foi selecionado por ainda conservarem, em seus discursos, a memória e o material linguístico das primeiras décadas do século XX. A unidade de pesquisa que foi adotada restringiu-se, portanto, ao material discursivo e linguístico dos referidos moradores, além do discurso fictício do personagem-narrador Riobaldo, da obra literária roseana Grande Sertão: Veredas. Foram colhidos relatos orais, através de entrevistas, junto a moradores nativos de Monte Azul e Janaúba, com idade variando entre 66 e 92 anos. O mote para a coleta desses relatos variou de acordo com o motivo pelo qual cada um dos municípios foi escolhido. Em Monte Azul, pediu-se aos moradores que relatassem fatos da época do coronelismo-jaguncismo. Os relatos colhidos remetem ao período em que o coronel Lévy Souza e Silva comandou a política na região. Já em Janaúba, especificamente com remanescentes quilombolas, residentes no Bairro Santa Cruz, a conversa que conduziu ao relato oral principiou-se com o pedido de que falassem sobre a história do povo gurutubano. Através dos discursos dos gurutubanos entrevistados, foi possível entrever um pouco da religiosidade e costumes que eles ainda preservam , além da evidência da consciência de pertencimento à sua própria cultura que estes estão desenvolvendo. Tal fato mostra o crescimento da auto-estima e, consequentemente, do processo de visibilização e da defesa do seu território. 17 A análise e interpretação dos dados coletados evidenciou que o conteúdo discursivo-linguístico de norte mineiros mais antigos ainda preserva características das primeiras décadas do século XX. Essa afirmação foi corroborada ao se fazer o contraponto entre os discursos reais desses norte mineiros e o discurso fictício do personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas. Finalizando essa introdução, e com o objetivo de facilitar a leitura da dissertação, far-se-á um breve comentário sobre a tecitura da mesma. Como já foi evidenciado, realizou-se uma incursão por campos teóricos interdisciplinares, para compreender as categorias fundamentais deste trabalho. Assim, construiu-se o primeiro capítulo a partir da discussão sobre identidade e diferença, aliando-a a categorias como representação e classificação e situando-as como atos de criação linguística. O segundo capítulo tem como objetivo discutir a questão linguística. Inicia-se pelos conceitos de linguagem, língua e suas variações. A seguir, relacionase linguagem e discurso; língua e representação; culminando com um breve adentramento na discussão sobre identidade e diferença linguística. O capítulo terceiro trata de aspectos históricos e sócio-culturais do lócus e dos sujeitos que compõem o universo selecionado para coleta de dados empíricos. No capítulo quatro, a discussão perpassa as categorias sertanejos, jagunços, buscando verificar se há uma identidade comum entre elas. Faz-se isso, a partir de breve adentramento no pensamento social; no olhar dos viajantes estrangeiros e de obras que estudam esse olhar e, ainda, no olhar dos próprios sertanejo, ou seja, os de dentro. Por fim, no quinto e último capítulo faz-se a análise dos dados, confrontando o discurso real de norte mineiros com o discurso fictício de Riobaldo. 18 CAPÍTULO I Identidade e diferença: de quem em relação a quem? “As minas sem os gerais será apenas um retrato na parede a mostrar a Minas Gerais seu passado de glórias e nada mais.” Costa (2003) 1 Sobre o signo identidade Identidade é um conceito amplamente discutido nos dias atuais. MERCER postula que quase todo mundo fala agora sobre identidade. A identidade só se torna um problema quando está em crise, quando algo que se supõe ser fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza (MERCER, 1990: 4). Concordando com essa autora, pode-se afirmar que a crise da identidade é posta pelo desmonte das definições iluministas da sociedade contemporânea, cuja característica fundamental é a articulação da oposição global local. O global se constitui com um caráter universal, enquanto que o local tem a marca da singularidade. Pela dinâmica de tal processo, a identidade do sujeito pósmoderno é fragmentada, multifacetada, mutante, conectada a diferentes situações cotidianas. Como sintetiza HALL, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 1997: 14). CASTELS (2000) afirma que a identidade é a fonte de significado e experiência de um povo. Posto dessa forma, tem-se a impressão de que a identidade é um pacote cultural com existência própria e que deve ser incorporado 19 pelos sujeitos. Entretanto, a identidade é uma construção processual e coletiva de significados. Ao mesmo tempo em que é coletiva, inclui também o processo de individuação e autoconstrução por parte dos sujeitos. Ao mesmo tempo em que cada sujeito é um fio de uma rede social, também se inter-relaciona com os outros, mas constitui uma unidade em si; tem uma posição e uma forma singulares dentro dele.3 A identidade se constitui na antinomia. Ao mesmo tempo em que é um processo interativo, compartilhado com outros atores sociais, precisa da alteridade, do outro, do espelho. A identidade e a diferença são interdependentes. Só é possível a alguém, a uma comunidade ou a um povo estabelecer as diferenças simbólicas e sociais por meio dos sistemas classificatórios4. Esses sistemas tornam possível a divisão e percepção da alteridade, entre, por exemplo, eu e o outro; nós e eles; norte mineiros e mineiros5 Os sistemas classificatórios delimitam as paisagens culturais e distinguem as diferenças. WOODWARD (2000) afirma que a diferença é aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo distinções. Cada cultura constrói seu próprio sistema de classificação do mundo. É através, dessa construção, que é possível dar sentido e significação ao que nos rodeia. Cultura, na perspectiva geertziana, pode ser lida como a vivência, em comum, desses processos compartilhados de significação do mundo. LÉVI-STRAUSS (apud WOODWARD, 2000:42) utiliza o exemplo da comida para ilustrar processos de classificação. A cozinha, além de ser o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura, é também uma linguagem por meio da qual falamos sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo. Aquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual vivemos. Podem-se tirar conclusões, através da comida, sobre mudanças temporais e interculturais, de classes sociais a que as pessoas pertencem, assim como sua posição religiosa e étnica. A dimensão política também está presente no consumo de alimentos. No 3 ELIAS (1994), parte da imagem da rede-objeto, mesmo considerando-a rígida e inadequada, como metáfora de rede humana. Na rede-objeto muitos fios se entrelaçam uns aos outros para formar a totalidade. Entretanto, a rede só se torna compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. 4 WOODWARD (2000), afirma que um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles; eu/outro. 5 COSTA (2003) 20 momento atual, o boicote a alimentos de determinados países, como manifestação contra suas atitudes políticas, pode ser um exemplo dessa argumentação. Para o antropólogo LÉVI-STRAUSS (id.), a comida é portadora de significados simbólicos que se alicerçam na forma como a sociedade classifica os alimentos em oposições binárias, ou seja, comestíveis e não-comestíveis. Através de tal análise, ele argumenta como essas oposições produzem e mantém a ordem social. Pode-se afirmar que uma das formas de classificação se estrutura em oposições binárias. As relações de identidade e diferença organizam-se, na maioria das vezes, em torno dessas oposições. Para SILVA (2000), fixar uma identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. (...) A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. (SILVA, 2000: 83. Grifos meus). Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados, conforme é discutido por Bourdieu (2003). E a problematização dos binarismos é o cerne do questionamento das relações de poder. Ao trabalhar com a hierarquização entre dois grupos de uma comunidade da periferia urbana, Winston Parva, ELIAS & SCOTSON (2000) afirmam que, apesar de não haver diferenças de classe social nem de ascendência étnica, de nacionalidade ou de “cor” entre os moradores, os membros de um deles julgavam-se superiores aos membros do outro. Na mesma área, residiam dois grupos de trabalhadores com suas famílias. A superioridade de poder, que um grupo atribuía a si mesmo, baseava-se no alto grau de coesão entre suas famílias, a quem ELIAS & SCOTSON adjetivaram de estabilished. A ativação do potencial coesivo pelos estabelecidos, através do controle social, fazia com que mantivessem a posse do poder local, isto é; os cargos importantes das organizações locais, como o conselho, a escola ou o clube, deles excluindo os membros do outro grupo, classificados pelos pesquisadores como outsiders. Estes, por falta de coesão interna, não conseguiam se organizar para a disputa de poder. Além disso, o grupo que mantinha o topo da hierarquia, em Winston Parva, atribuía ao outro grupo características ruins. Em contrapartida, os 21 membros modelavam sua auto-imagem pela qualidade nômica do grupo. Para os dois autores, era fácil perceber, nesse contexto, que a possibilidade de um grupo afixar em outro um rótulo de inferioridade humana e fazê-lo prevalecer era função de uma figuração específica que os dois grupos formavam entre si. [...] A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes. (...) Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. (ELIAS & SCOTSON, 2000: 23). A estigmatização do grupo outsider estava vinculada à evitação entre os membros dos grupos para não “manchar” a imagem de superioridade do grupo estabelecido. Os grupos dominantes, com uma elevada superioridade de forças, atribuem a si mesmos, como coletividades, e também àqueles que os integram, como as famílias e os indivíduos, um carisma grupal característico. Todos os insiders a esse grupo compartilham desse carisma mas, para isso, precisam pagar alto preço, ou seja, a submissão às normas específicas do grupo e a sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos afetos, para não se poluírem. Os membros dos grupos outsiders são vistos como transgressores das normas vigentes pelos membros do grupo estabelecido. O contato mais íntimo com eles é tido como indesejável, pelo fato de fazer pairar, sobre os membros do grupo estabelecido, a ameaça a uma quebra das normas e tabus que constituem o arcabouço de sua superioridade e de seu carisma. Assim, os outsiders são excluídos da convivência cotidiana e festiva com os estabelecidos. A identidade do outsider é demarcada, negativamente, em relação à identidade daquele que estabeleceu positivamente a identidade local, pela construção de semelhanças e diferenças. 1.2 Identidade e diferença: atos de criação lingüística Os termos identidade e diferença são vistos por SILVA (2000) como criaturas da linguagem. Isso significa que ambos não pertencem à natureza, não são essências existentes fora do homem. Tanto a identidade quanto a diferença são produzidas no contexto das relações sociais e culturais. São atos de criação 22 lingüística porque é pelo discurso oral ou escrito que, tanto uma quanto outra, são instituídas. Sendo criaturas da linguagem, as identidades lingüísticas, assim como as culturais, se inserem em cadeias de significação ou diferenciação semântica, construídas a partir da afirmação e da negação, isto é; ser isto significa não ser aquilo e assim por diante. Por exemplo, COSTA (2003) evidencia que o norte mineiro não é mineiro, dada a diferenciação cultural entre ambos. Ao mesmo tempo, também não é baiano mas, por ser norte mineiro e viver na fronteira simbólica entre identidade mineira e identidade baiana, é pejorativamente adjetivado de baianeiro. 6 Para esse autor, a sociedade mineira é dual. Há duas formações sociais, econômicas e culturais distintas, que se articulam e fundamentam essa sociedade e que é considerada, pelos construtores da ideologia da mineiridade, como a síntese da nação brasileira. Argumenta, ainda, que a força do vínculo que une os mineiros e os baianeiros numa antinomia, se quebrada, será fator de emergência de uma outra realidade, em todos os níveis da vida social de uma nação e de um povo. Pois Minas Gerais não é o coração do Brasil sem o norte sertanejo, eis aí a força do vínculo que une mineiros e baianeiros. É essa condição de síntese da nação que torna plausível compreender o lugar simbólico do estado no conjunto das unidades da federação e rompê-la é transferir para o passado a existência da própria nação como pensada e enunciada no discurso nacional brasileiro. As minas sem os gerais será apenas um retrato na parede a mostrar a Minas Gerais seu passado de glórias e nada mais. (COSTA, 2003: 301302). Não obstante, o entre-lugar7 do norte mineiro, sua sociedade processou a construção de um sistema classificatório cultural e identitário, distinto ao dos mineiros e ao dos baianos. Tomemos, como exemplo, o adjetivo mineiro. O 6 Essa discussão é desenvolvida por João Batista de Almeida Costa em sua tese de doutoramento e é retomada em um artigo sobre o tema: COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: englobamento, exclusão e resistência. Brasília: Instituto de Ciências Sociais; Departamento de Antropologia/UNB, 2003. Tese de Doutorado. SOCIEDADE E CULTURA. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2002- Semestral. ISNN 14158566. 7 O conceito de entre-lugar foi criado e desenvolvido por BHABHA (1998). O entre-lugar é um espaço intersticial, fronteiriço entre culturas, cuja temporalidade não se fixa no passado nem no presente. De acordo com Bhabha, o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. 23 reconhecimento de seu sentido só será possível se ele for contrastado com outros adjetivos de uma cadeia conceitual oposta. Assim, pode-se concluir que “ser mineiro” é “não ser paulista”, “nem carioca”, “nem capixaba” e assim por diante. E o que é ser norte mineiro? É só não ser do sul de Minas, nem do noroeste ou oeste do estado? Evidentemente, o signo é uma forma abreviada de dizer muitas coisas diferentes e referentes a aspectos culturais, sociais, políticos, econômicos, psicológicos etc., assim como a própria língua é também um sistema de diferenças. Identidade e diferença são, pois, signos e, como tais, não podem ser compreendidos fora dos sistemas de significação. Pertencem ao mundo cultural e aos sistemas simbólicos que os compõem. No entanto, a compreensão tanto de um quanto do outro extrapola os aspectos meramente lingüísticos, mesmo porque a própria linguagem é instável. O signo apenas representa algo, ele não é a coisa representada.8 Assim, o signo como parte mínima da língua, constitui-se, em seu processo de significação, como algo incerto, vacilante, por ser uma construção social historicamente datada. Sendo também signos, a identidade e a diferença são marcadas pela instabilidade e pela indeterminação. Dessa forma, a identidade de ser norte mineiro só poderá ser compreendida dentro de um processo de produção simbólica e discursiva. Tal signo não comporta nenhum referente fixo ou natural, não é anterior à linguagem e nem tem existência fora dela. Seu entendimento só é possível quando o mesmo é relacionado a uma cadeia de significação formada por outras identidades, as quais, por sua vez, também não são fixas, naturais ou predeterminadas. A produção simbólica e discursiva da identidade e da diferença localiza-se em um contexto social e cultural. Dessa maneira, sua definição, tanto simbólica quanto lingüística, são perpassadas pelas relações de poder existentes no campo da sua produção. Isto significa que, por um lado, elas são arbitrárias e, por 8 SAUSSURRE (1996) considera a língua como um sistema de signos formado pela “união do sentido e da imagem acústica”. Para ele, sentido é a mesma coisa que conceito ou idéia, isto é, a representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos. A representação é condicionada pela formação sócio-cultural que nos cerca desde o berço. Sendo conceito o sinônimo de significado, a parte inteligível, sua contraparte é o significante, que é sua parte sensível. Significante e significado são, portanto, interdependentes e inseparáveis. Faz-se necessária a advertência de que o signo une sempre um significante a um conceito, a uma idéia, e não a uma coisa. Assim, o significado não é uma coisa, mas uma representação psíquica da coisa. 24 outro, elas são impostas, porque não há convivência harmônica nem democrática em um campo hierárquico. Constituem a afirmação da identidade a demarcação de fronteiras, a separação e a distinção, atitudes que afirmam e reafirmam relações de poder. A enunciação nós e eles está para além da classificação de categorias gramaticais. Esses pronomes indicam posições-de-sujeito e evidenciam relações de poder. Os sistemas classificatórios tanto determinam a identidade e a diferença quanto são determinados por estas. Tome-se, como exemplo, a língua, que é uma das normas impostas para fixar uma identidade nacional. Além dela, impõe-se a construção de símbolos como hinos, bandeiras, brasões e mitos fundadores. Os mitos fundadores remetem a um momento crucial do passado, em que algo foi utilizado como base para a construção de uma identidade. Como exemplo, pode-se citar a figura do bandeirismo, para os paulistas, a descoberta de ouro para os mineiros e o mito maior, que é a própria narrativa de Descoberta do Brasil. Problematizar as classificações possibilita refletir sobre o binarismo lingüístico. Os países dominantes, como ocorreu no Brasil, impuseram sobre os dominados sua língua, às vezes como a única e comum, excluindo do cenário aquelas que eram faladas, antes da sua chegada, pelos povos que foram dominados. A classificação binária, nesse caso, pode-se afirmar que situa, de um lado, a língua dos dominantes e, de outro, agrupa a(s) língua(s) dos dominados. Considera-se, ainda, que mesmo que a própria língua dos colonizadores tenha sofrido variações com o tempo, apenas uma das variantes desta passou a ser considerada como a norma, o padrão. O que difere dessa norma é considerado outsider pelos estabelecidos e banido para fora dos discursos que detém o poder lingüístico. Concluindo essa seção, pode-se afirmar que a identidade e a diferença são forjadas no interior de sistemas de significação. Esses sistemas são construídos, fundamentalmente, por meio das oposições binárias. Dentro desse processo classificatório, é crucial o papel das estruturas lingüísticas e discursivas, sem as quais não seria possível representar o que é identidade e o que é diferença. De acordo com a teoria cultural, a identidade e a diferença são dependentes da representação. Mas, o que é representação? 25 1.3 A representação da identidade e da diferença BOURDIEU (2003) advoga que a língua, o dialeto ou o sotaque são objeto de representações mentais, quer dizer, são atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos e as coisas são representações objectais apontando, como exemplos, os emblemas, bandeiras, insígnias. As representações sociais orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais, de acordo com JODELET (2001). Da mesma forma, elas intervêm em processos variados, tais como a difusão e assimilação dos conhecimentos, o desenvolvimento individual e coletivo, a definição das identidades pessoais e sociais, a expressão dos grupos e as transformações sociais. A representação é um ato de pensamento através do qual um sujeito se reporta a um objeto. Dessa forma, a representação é social e também mental, uma vez que ela substitui o objeto, torna-o presente quando ele está ausente ou distante (JODELET, id.). Outra característica da representação, é que esta é uma construção que envolve sujeitos ativos e interativos. Na verdade, o conceito de representação, fundado por Durkheim, abriu-se a múltiplas interpretações. Para a filosofia ocidental, historicamente, tal palavra esteve ligada a formas de presentificar o real, de apreendê-lo, através dos sistemas de significação. A representação se realiza, nessa concepção, em duas dimensões: objectais e mentais, ou seja, externamente, por meio de signos, como a pintura e a própria linguagem e internamente, por meio da consciência. Os pós-estruturalistas, os chamados filósofos da diferença, questionam essa idéia de representação por conceberem a linguagem e todo sistema de classificação como estruturas instáveis. De acordo com SILVA (2000: 9091), entre esses filósofos está Stuart Hall, que retoma o conceito de representação, em sua dimensão de significante, de sistema de signos, considerando apenas sua marca material e descartando os aspectos mentais ou interiores. Nesse contexto, considera-se possível representar por meio de pintura, fotografia, filme, texto, expressão oral, enfim, através de marcas visíveis, exteriores. 26 Para os pós-estruturalistas, a representação não presentifica o real, não o retém. Como qualquer sistema de significação, a representação é apenas uma forma de atribuir sentido. Os sistemas lingüísticos e culturais são representacionais e caracterizam-se pela indeterminação e a ligação às relações de poder (SILVA, id.). E é exatamente por meio da representação que essas relações são processadas. Desse modo, questionar a identidade e a diferença significa questionar os sistemas de representação que lhes dão suporte. [...] remeter a identidade e a diferença aos processos discursivos e lingüísticos que as produzem pode significar [..] simplesmente fixá-las, se nos limitarmos a compreender a representação de uma forma puramente descritiva. SILVA (2000: 92). A partir de tal afirmativa, pode-se apreender que, assim como não há ingenuidade no que se refere à identidade, também não há ingenuidade quanto ao seu questionamento. Não se questiona no vazio, seja espacial, temporal ou cultural. O processo de discussão sobre a identidade insere-se dentro de uma discussão sobre as relações de poder. Se o discurso escamoteia tal evidência, provavelmente seu objetivo é a manutenção de determinada realidade. Nesse contexto insere-se, também, o conceito de performatividade, cuja discussão pode contribuir para a superação da ênfase na identidade como descrição para uma idéia de movimento e transformação. O conceito de performatividade foi inicialmente formulado por AUSTIN (1997), que nomeia como performativos, verbos como jurar, batizar, declarar. A simples enunciação desses verbos é capaz de instaurar uma nova realidade. Desse modo, a linguagem não se limita a proposições descritivas de ações, situações ou estado de coisas. Ela tem uma outra categoria de proposições que são aquelas que fazem com que algo aconteça. Um exemplo de proposição performativa é a tradicional Eu vos declaro marido e mulher. A eficácia do discurso performativo que pretende fazer sobrevir o que ele anuncia na própria enunciação, é proporcional à autoridade daquele que o enuncia (BOURDIEU, 2003). Assim, sentenças como O Vale do Jequitinhonha é o vale da miséria e O norte de Minas é a região mais pobre de Minas, tornam-se performativas, constroem realidades sociais devido à autoridade de quem as profere como, por exemplo, a mídia televisiva. A negatividade atribuída a essas duas 27 regiões é reforçada pela repetição desses enunciados performativos. Atos lingüísticos performativos criam a realidade enunciada. Entretanto, argumenta BUTLER (apud Silva, 2000: 95), essa mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos lingüísticos performativos que reforçam as identidades existentes pode significar também a possibilidade da interrupção das identidades hegemônicas. A repetição pode ser interrompida. Ainda de acordo com ela, é essa possibilidade de interromper o processo de recorte e colagem, de efetuar uma parada no processo de citacionalidade que caracteriza os atos performativos que reforçam as diferenças instauradas, que torna possível pensar na produção de novas e renovadas identidades. (BUTLER, apud SILVA, 2000: 93. Grifos no original) As práticas sociais, lingüísticas e culturais certamente tendem a reproduzir um certo estado de coisas, mas isso não se dá sem resistência, porque os sujeitos podem ser sujeitos a, ou sujeitos de. Quando se fala em poder como instrumento de coação e dominação, é preciso compreender que ele nunca é exercido sem resistência. Além disso, o poder não é simplesmente algo possuído por uns poucos e exercido monoliticamente sobre aqueles que são desprovidos de poder. É preciso compreender que o discurso é tanto um instrumento de reprodução quanto de mudança social, como informa FAIRCLOUGH (2001). Há, portanto, a possibilidade de romper com o processo de construção de significados através dos atos performativos. Isto porque a linguagem é dialeticamente constitutiva e constituída de e pelas práticas sociais. Esse é um entendimento importante num contexto social e histórico em que sabemos que o próprio conceito de identidade encontra-se sob rasura, de acordo com a perspectiva desconstrutivista. Sob rasura estão os conceitos que já não são suficientes para ajudar a pensar sobre determinado assunto mas que ainda não foram dialeticamente superados. Sendo assim, ainda são utilizados, porém em processo de desconstrução, a partir do paradigma no qual foram gerados. Isso situa o ato de pensar “no limite”, “no intervalo”, como uma espécie de escrita dupla. Por meio dessa escrita dupla, precisamente estratificada, deslocada e deslocadora, devemos também marcar o intervalo entre a inversão que torna baixo aquilo que era alto (...) e a emergência de um novo 28 „conceito‟ que não se deixa mais – que jamais se deixou subsumir pelo regime anterior. (DERRIDA, apud HALL, 2000: 104) Discutir o conceito de identidade, portanto, é operar num campo teórico que se encontra em crise, porque a própria sociedade contemporânea encontra-se em crise. Não há modelos rígidos para serem seguidos, como havia no modernismo e nem mesmo é possível pensar a identidade a partir de classe social, como propõe HALL (2000). Isto porque, no interior das classes, há reivindicações diferentes, que podem ser pensadas para além das classes sociais em si: o racismo, o movimento de gays e lésbicas, a questão de gênero, o combate ao preconceito lingüístico e tantas outras, cada uma com suas particularidades. Outro aspecto importante é a identidade nacional, pela força que tem e por sua importância nos estudos que se referem à questão lingüística. Desde o nosso nascimento, somos introduzidos em determinada cultura nacional, composta por símbolos, língua em comum, eventos históricos, cenários, estórias, imagens, panoramas, rituais nacionais e mito fundacional. Não somos naturalmente brasileiros, ou iraquianos, ou argentinos, ou de qualquer outra nacionalidade. Somos produzidos culturalmente assim. As identidades culturais nacionais são uma invenção da modernidade, conforme ANDERSON (1989). A lealdade e a identificação que hoje se tem com a nação, na era pré-moderna, ou em culturas mais antigas, era dirigida à tribo, religião, enfim, à organização social na qual se vivia. Concordando com ANDERSON (id.), HALL afirma que a nação é uma comunidade imaginada9. Para esse autor as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre „a nação‟, sentidos com os quais podemos nos identificar, constróem identidades. Esses sentidos estão contidos nas 9 Para ANDERSON (1989), a nação é uma comunidade imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão. Como comunidade imaginada, a nação é limitada, porque possui fronteiras finitas; é soberana, porque o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente instituído; e é comunidade, porque é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal, não obstante a desigualdade e exploração que prevalecem em todas as nações. 29 estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 1997: 55. Grifos no original). O pertencimento à cultura nacional está no nosso senso comum e é construído através de estratégias representacionais. Entre essas estratégias, HALL (1997) cita a narrativa da nação; a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade; na própria invenção da tradição; no mito fundacional; na idéia de povo ou folk puro, original. Entretanto, essa construção não é fixa. O mito fundacional é uma história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo „real‟, mas de um tempo „mítico‟. No Brasil, o mito fundacional é a narrativa da chegada dos portugueses, ou seja, a carta de Pero Vaz de Caminha, acrescida da narrativa da Proclamação da Independência, registrada na abertura do Hino Nacional Brasileiro e, atualmente, a condição multicultural da sociedade brasileira, como definido pela Constituição Federal de 1988. Por localizar-se dentro do quadro de discussão sobre identidade, mencionaram-se aqui alguns aspectos do mito fundacional da sociedade brasileira, embora não seja objeto do presente trabalho entrar numa análise aprofundada desta temática. Discutiu-se, nessa seção, alguns aspectos relativos tanto à identidade quanto à diferença, uma vez que as duas são interdependentes: só é possível classificar quem é o estabelecido, a partir da análise do seu oposto, o outsider. As duas categorias são também atos de criação lingüística, discursiva. Tanto a identidade quanto a diferença são produzidas no contexto de relações de poder, que se replicam nos aspectos culturais e sociais de uma dada sociedade. A afirmação da identidade se processa no estabelecimento da outridade, da diferença, na separação, na distinção e no estabelecimento da hierarquização. Em relação à língua portuguesa, por exemplo, a referência identitária, para muitos, ainda é o dialeto falado do outro lado do Atlântico, pelos descendentes dos colonizadores portugueses. No conjunto da língua portuguesa, o dialeto de Portugal está no topo da hierarquia. Quando o recorte de falantes nativos da última flor do lácio, como foi chamada por Camões, é o conjunto dos não-portugueses , o 30 Português Não Padrão10 (PNP) é considerado a alteridade, o erro que precisa ser corrigido. A quem interessa a manutenção dessa tradicional identidade lingüística que é porta-voz da cultura de apenas um fragmento da sociedade brasileira? Antes disso, que concepções de língua podem ser incluídas nesse texto? O próximo capítulo foi organizado com o objetivo de refletir sobre esses questionamentos. 10 BAGNO (2003) considera o PNP (Português Não Padrão) como o conjunto das variantes linguísticas, da Língua Portuguesa, que são faladas cotidianamente pelas camadas populares. 31 .CAPÍTULO II Identidade e diferença lingüística: hierarquização e resistência 2.1 Linguagem e Língua A discussão sobre linguagem insere-se em um campo interdisciplinar, que abrange campos teóricos como a Análise de Discurso, a Antropologia e a Sociolingüística, entre outros. Essas ciências, não obstante suas especificidades, têm como objeto de estudo a linguagem humana e por isso diferem da Semiologia ou Semiótica. O campo científico da Semiologia abarca, além da linguagem humana e verbal, a linguagem dos animais e de todo e qualquer sistema de comunicação convencional. Neste capítulo, discute-se as concepções de linguagem humana e língua, fundamentando-se em contribuições advindas da Análise do Discurso e Sociolingüística. Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, como postulado por BAKHTIN (2003). O caráter e as formas de uso da linguagem são tão variados quanto são os campos de atuação humana. São características da linguagem humana a dinamicidade, ou seja, a transformação incessante. Seu processo de transformação é ininterrupto e interativo. Há uma inconstante interação entre a linguagem e os seus usuários. Ao mesmo tempo em que a linguagem é modificada por aqueles que a utilizam, ela também os modifica. A linguagem nunca está pronta e acabada, ela é sempre um processo em construção. A concepção de linguagem utilizada aqui descarta o seu entendimento como um código preexistente ao sujeito, que deverá ser apropriado por ele para que possa comunicar-se. Entende-se a linguagem, portanto, como um processo de construção ativo e interativo. Sendo interativo, inclui mais de um participante, ou seja, o sujeito está vinculado ao seu co-partícipe, o outro , como afirma BUIN (2002). Os pesquisadores KOCH & MARCUSCHI (apud BUIN, 2002), argumentam que a língua é o trabalho cognitivo e a atividade social que pressupõe negociação. Para tais autores, a negociação se processa entre o sujeito e a alteridade, sendo ambos 32 altamente ativos. É necessário esclarecer que o termo sujeito está sendo utilizado na concepção de que há interação e construção na comunicação lingüística. Para TRAVAGLIA (1996), os usuários da língua interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e falam e ouvem nesses lugares, de acordo com formações imaginárias que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais. A proferição de um ato de linguagem define necessariamente uma relação de lugares de ambas as partes, um pedido de reconhecimento do lugar que cada um vê lhe ser atribuído, conforme argumenta MAINGUENEAU (1997). Dessa forma, o diálogo em sentido amplo é que caracteriza a linguagem, construída a partir dos lugares sociais em comunicação por meio dos sujeitos. A dialogicidade da linguagem foi inicialmente discutida por BAKHTIN (1986). Para ele, o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. E mais do que isso: o próprio homem e a vida são marcados pelo princípio dialógico. O diálogo pressupõe a presença do eu e do outro. A alteridade define o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro. BAKHTIN (2003), não faz distinção entre os conceitos de texto, discurso e enunciado. Ora ele utiliza um ora utiliza outro. De acordo com BARROS (2000), a preocupação bakhtiniana é com a diversidade de vozes, das línguas e dos tipos discursivos: de gênero, de profissão, de camada social, de idade e de região. Esses elementos são fundamentais quando se estuda a comunicação verbal. A respeito de texto, BAKHTIN (id.) o define como objeto significante ou de significação. Para esse autor, o texto é também produto de criação ideológica ou de uma enunciação contextualizada histórica, social e culturalmente. Além disso, o texto, falado ou escrito, é constituído dialogicamente, a partir de duas diferentes concepções: pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos. O dialogismo portanto, para Bakhtin, permeia a comunicação humana. No entanto, nem sempre esse diálogo permanente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade, é simétrico e harmonioso. Através dos discursos, confrontam-se valores sociais. BARROS (2000), discutindo Bakhtin, distingue dialogismo e polifonia. Reserva o termo dialogismo para o princípio dialógico que constitui a linguagem 33 humana e todo discurso e emprega a palavra polifonia para caracterizar o texto em que são percebidas muitas vozes textualizadas pelo autor. Ao texto polifônico, opõese o texto monofônico, que esconde os diálogos que o constituem. Assim, diálogo é condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos conforme as estratégias discursivas empregadas. A monofonia e a polifonia, na concepção de BARROS (2000), distinguem os dois grandes tipos de discursos, quais sejam os discursos autoritários e os discursos poéticos. O discurso autoritário esconde os diálogos, fazendo-se verdade única, absoluta e incontestável. Para contestá-lo é preciso contrapor a ele um outro discurso, responder a ele, polemizar. O discurso poético é aquele que produz efeitos de polifonia, aquele que expõe, que mostra ou que deixa escutar o dialogismo que o constitui, as vozes contraditórias dos conflitos sociais. O princípio dialógico é tão marcante na obra bakhtiniana, que ela mesma é um exemplo disso. Seu discurso teórico, extremamente polifônico, tem estado presente nas diversas áreas de conhecimento que, de uma forma ou outra, tratam da questão da linguagem. Ele é utilizado para corroborar idéias ou para ser confrontado. Outro exemplo interessante de discursos polifônicos é a interpretação do livro Grande Sertão: Veredas. Ela se constitui como um conjunto de leituras realizadas por inúmeros pesquisadores das ciências humanas e sociais que têm estabelecido diálogo entre si e com a obra roseana. Finalizando essa seção, registra-se a síntese de linguagem verbal, construção exclusivamente humana, como produto de interação entre interlocutores, contextualizada histórico-sócio-culturalmente. Ainda que o locutor tenha como intenção produzir discursos autoritários ou textos monofônicos, a linguagem supõe, sempre, a presença do eu e do outro. Nesse sentido, o princípio dialógico permeia a comunicação humana. Na próxima seção discutir-se-á algumas concepções de discurso, sendo este o principal recurso utilizado para registrar e expressar necessidades, desejos, ordens, pedidos, sugestões, etc. 34 2.2 Linguagem e discurso Como foi afirmado anteriormente, BAKHTIN (id.) não fez distinção entre os termos enunciado, discurso e texto. Porém, é necessário pontuar algumas considerações a respeito de discurso, pela importância que tal termo tem dentro da discussão, tanto na esfera da língua em si, quanto na questão da identidade e da diferença e, principalmente, porque a metodologia utilizada, nessa dissertação, apóia-se, inclusive, na Análise de Discurso. A Análise de Discurso é um campo teórico que trata do discurso. Essa palavra, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é, assim palavra em movimento, prática de linguagem. Na Análise do Discurso, o que se busca é a compreensão da língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da história (ORLANDI, 2001). Para essa autora, o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade, ou seja, considera os processos e as condições de produção da linguagem, analisando a relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer. Para atingir tal objetivo, articulam-se, particularmente, conhecimentos advindos tanto do campo das Ciências Sociais quanto os do domínio da Linguística, porém, não se prende nem a um nem ao outro. Afirma, ainda, que em Análise de Discurso não se trabalha a língua fechada nela mesma, como o faz a Linguística, mas com o discurso, que é um objeto sócio-histórico, e nem se trabalha com a história e a sociedade como se elas fossem independentes do fato do que elas significam. Estando na confluência entre esses dois campos teóricos, a Análise do Discurso critica tanto a prática de um quanto do outro, refletindo sobre a maneira como a ideologia se manifesta na língua. Assim, ORLANDI (2000) argumenta que esse campo do conhecimento parte da idéia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, para trabalhar a relação língua-discurso-ideologia. ORLANDI (id.), numa conceituação que une ciência e poesia, define que saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institucional que estabiliza, 35 cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que é o que torna possível o diferente, a ruptura, o outro. Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem, de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que não se dizem. De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem; de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem (ORLANDI, 2000: 10) BENVENISTE (1995), também propõe que o discurso é a própria linguagem posta em ação. Para esse autor, discurso é a língua em sua integridade concreta e viva. A constituição do discurso se dá a partir da interação entre os protagonistas eu e tu, locutor e interlocutor e é localizada social e historicamente. Apesar de concordar com o princípio dialógico que o constitui, FOUCAULT (1996), afirma que o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas o objeto por que e pelo que se luta, ou seja, o poder que queremos apoderar. Não há aí nenhuma ingenuidade. A mesma interpretação é dada por FAIRCLOUGH (2001), para quem o discurso é um modo de prática política e ideológica: como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas; como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. O discurso como prática política é não apenas um local de luta pelo poder, mas também um marco delimitador na luta de poder (FAIRCLOUGH, 2001: 94). E, ainda de acordo com a análise foucaultiana, no campo discursivo existem procedimentos de exclusão, sendo o mais evidente a interdição: não se pode dizer tudo, não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Se o discurso é interditado em sua produção, também é limitado em sua interpretação. Por outro lado, ORLANDI (2000) argumenta que toda formação social tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas: há modos de se interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade, há especialistas, há um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar, tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc. 36 2.3 Língua e representação Para dar cabo do argumento desenvolvido nesta dissertação, é necessário considerar a relação entre língua e representação. Para RAJAGOPALAN (2003) a tese do representacionismo é, ao mesmo tempo, uma lamentação e uma expressão de desejo. Desse modo, pode-se dizer que é lamentação porque afirma a incapacidade dos seres humanos de apreenderem o mundo tal qual ele é, sem qualquer intermediação. É expressão de desejo por esconder o sonho de poder „enxergar‟ o mundo e comunicar-se com as outras mentes humanas sem barreira, sem intermediação da língua. Para esse autor, ao invés da representação, o que se deseja é a apresentação, o acesso direto tanto às outras mentes quanto à compreensão do mundo. Pode-se comparar a representação lingüística com a representação política. De democracia, ideal político perseguido pelo ocidente, o exemplo ainda é o da Grécia Antiga. Embora não englobasse as mulheres e escravos, aquele que detinha o título de cidadão não tinha intermediário. Era ele mesmo quem se apresentava, se fazia presente entre seus pares, de forma direta. RAJAGOPALAN (2003: 23) argumenta que o signo democracia comporta atualmente a representação que nem sempre é legitimadora dos interesses populares Ainda de acordo com esse autor, da mesma forma como a representação política nem sempre é transparente, o mesmo acontece com a representação lingüística. Entretanto, afirma que se exige transparência na conduta dos políticos, assim como procuramos fazer com que o uso da linguagem seja também claro, direto, literal, enfim, transparente. A representação política e a representação lingüística são, portanto, duas faces de uma mesma moeda. Para RAJAGOPALAN (2003) ao falar uma língua, ao nos engajarmos na atividade lingüística, estaríamos, todos nós, nos comprometendo politicamente e participando de uma atividade eminentemente política. Por outro lado, (...) toda atividade política também passaria pela questão da linguagem, seria uma atividade de ordem inescapavelmente discursiva (RAJAGOPALAN, 2003: 32-33). 37 Como atividade política, a representação lingüística envolve escolhas que, por sua vez, pressupõe a existência de uma escala de valores, de hierarquia. O falante tece seu discurso com base nesses valores, cuja hierarquia não é fruto de uma construção individual, mas, sim, coletiva. As escolhas que envolvem a representação lingüística podem estar diretamente conectadas ao objetivo de superar os obstáculos e atingir uma comunicação satisfatória. No entanto, justamente por ser política, nem sempre esse objetivo é atingido porque pode não haver simetria nos campos hierárquicos de valores do locutor e de seu interlocutor. Sendo política, a representação lingüística é também ideológica, entendendo ideologia como conceitua FAIRCLOUGH (2001), ou seja, são os significados gerados em relações de poder, como dimensão do exercício pelo poder e da luta pelo poder. Assim, pode-se concluir que a representação lingüística, sendo também política e ideológica, envolve interesses nem sempre comuns entre locutor e interlocutor, ainda que haja uma alternância de papéis entre ambos. Como exemplo, pode-se citar o contexto que por ora nos interessa, ou seja, de mineiros e norte mineiros. A representação lingüística relativa ao norte de Minas, construída externamente pelos mineiros, tem construído uma imagem dessa região como um espaço fora de lugar, ou seja, para além da representação lingüística mineira. Entretanto, essa representação linguístico-político-ideológica não é, como se pode inferir através de COSTA (2003) 11 , aquela que os norte mineiros constróem para sua região. Embora adjetivados como baianeiros pelos mineiros, devido ao seu idioleto, esses sujeitos são conscientes de sua posição inferiorizada na interioridade de Minas Gerais, ao longo do tempo construíram para si mesmos um sentimento de regionalidade, afirmado por meio do orgulho por serem norte mineiros [...] E esse orgulho enunciado – um dos mecanismos de resistência baianeira -, também é base para a construção da abjeção dos mineiros em suas relações com os norte mineiros. (COSTA, 2003: 302-303. Grifo no original). Assim, através da análise transcrita acima e construída por esse autor a partir de dados empíricos, é possível visualizar o embate político-ideológico que perpassa as representações lingüísticas. 11 Esse autor desenvolve outra ordem de discussão em seu trabalho, ou seja, o lugar do norte de Minas em Minas Gerais. 38 2.4. Identidade e diferença lingüística O sistema de dominação, no que concerne à língua, opera através da imposição de uma única variante da língua como padrão para a afirmação de uma identidade, que pode ser compreendida por meio da produção de discursos, sejam orais ou escritos. As variações não padrão, porque fogem à norma, são banidas para a margem, passando a ser consideradas a outridade lingüística. Nesse sentido, a imposição de uma identidade lingüística, através do discurso monofônico da unidade lingüística que considera errada a fala dos que se desviam da norma padrão, gera o contra-discurso, produzido pelos estudiosos que estão pesquisando e provando que as variantes lingüísticas populares são tão unidades lingüísticas quanto aquela. BAGNO (2004), argumenta que a luta contra as mais variadas formas de preconceito é cada vez mais forte nos dias de hoje. No entanto, essa luta não tem atingido um tipo de preconceito muito comum na sociedade brasileira, que é justamente o lingüístico. Existem alguns mitos que ajudam a manter esse preconceito. O principal mito é o de que a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente. No Brasil, ainda existem mais de duzentas línguas faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações indígenas e quilombolas. Quanto a estes, pode-se citar, como exemplo, a Língua dos Negros da Tabatinga.12 Além disso, muitas comunidades de descendentes dos imigrantes que, a partir do final do século XIX, chegaram ao país para substituir, no novo sistema produtivo, os escravos, mantiveram vivas as línguas de seus ancestrais: italianos, japoneses, alemães, coreanos, etc. Apesar dos falantes dessas outras línguas 12 QUEIROZ (1998), identificou no município de Bom Despacho/MG/Brasil, a Língua dos Negros da Costa ou a Língua dos Negros da Tabatinga. Tal língua continua sendo utilizada pelos descendentes adultos dos escravos que habitaram essa região mineira e constitui-se em uma espécie de código secreto que garante a preservação de um certo tipo de troca de informações no interior do grupo, do qual todo estranho é excluído. O léxico dessa língua sobrevivente é constituído, fundamentalmente, de vocábulos de: provável origem africana; formados a partir de palavras „africanas‟ acrescidas de sufixo português; criações lexicais que se podem explicar pela onomatopéia; palavras de origem portuguesa, que se aproximam de vocábulos dicionarizados; palavras portuguesas correntes na região, ou mesmo fora dela, no Brasil. Além dos aspectos lexicais, a pesquisadora identificou outros de origem fonética e morfossintática. Para maiores detalhes, é interessante consultar sua obra. 39 serem minoria, mesmo assim não se pode afirmar que há unidade na língua falada no país, devido às variações da mesma. BORTONI-RICARDO (apud BAGNO, 2004), alerta para que não se confunda a idéia de monolingüismo com homogeneidade lingüística. O fato de, no Brasil, a língua portuguesa ser a língua falada pela imensa maioria da população não implica, automaticamente, que ela seja um bloco compacto, coeso e homogêneo. Esse é também o entendimento de COUTO (1994), ao argumentar que qualquer pessoa com razoável nível de informação sabe que a língua efetivamente usada pelos brasileiros apresenta diversas diferenciações – ou variações – as quais resultam do contato da língua com o contexto social, cultural, geográfico e econômico em que, tanto ela quanto seus usuários, estão inseridos. Quanto mais complexo for o contexto, mais diferenciada a língua será. Dessa maneira, se existe unidade na variedade e variedade na unidade da língua, a homogeneidade absoluta é um ideal nunca alcançado. Não existe comunidade que se sirva de um registro apenas; pelo contrário, constata-se que os indivíduos não falam exatamente igual em todas as ocasiões. Além disso, os membros de uma comunidade são co-autores da variante lingüística que utilizam. Ao inserir a discussão sobre variação linguística, é fundamental registrar o conceito de comunidades de fala ou comunidades linguísticas 13, criado por LABOV (1972), que entende que tais comunidades podem ser constituídas tanto por pequenos grupos que mantém contato face a face, quanto por nações modernas, formadas a partir de pequenas sub-regiões ou, também, por associações ocupacionais ou outros, desde que mostrem peculiaridades linguísticas que justifiquem estudo especial. Ao estudar as variações linguísticas, é preciso notar o contexto onde a língua é utilizada, demonstrar elementos da estrutura linguística implicando na variação sistemática refletida tanto na mudança através do tempo quanto nos processos sociais extralinguísticos. As variações lingüísticas, comuns em qualquer língua, são analisados a partir de duas perspectivas, ou seja, a diacrônica e a 13 MONTEIRO (2000), afirma que diferentes concepções de língua, dialeto, variedade, bilinguísmo, fronteiras, suas funções, padronização etc, dificultam a conceituação de comunidade linguística ou de fala. 40 sincrônica. A primeira considera a mudança da língua através do tempo e a segunda leva em consideração o processo atual de mudança dessa língua. À medida que se recua no tempo, constatam-se diferenças de grandes proporções na língua, como pode ser comprovado ao se fazer a análise de textos escritos em diferentes períodos da história. Transcrevo, a seguir, um poema: No mundo nom me sei parelha/ mentre me for como me vai/ca já moiro por vós – e ai!/mia senhor branca e vermelha/queredes que vos retraia/quando vos eu vi em saia! / mau dia me levantei,/que vos enton non vi fea! Esse não é o português falado por nós, trata-se de um poema escrito na língua portuguesa do século XII, que é considerado o primeiro texto conhecido da Literatura Portuguesa. Seu autor é o poeta Pai Soares de Taveirós. Como podemos ver pelo poema acima, a língua portuguesa sofreu transformações ao longo do tempo. Com certeza, até um português ou uma portuguesa com mais de um século de vida, teria dificuldade de compreender, sem ajuda, esse poema, tantas foram as mudanças semânticas, morfológicas e fonológicas que aconteceram na língua lusitana desde que o autor o escreveu. Essa é a perspectiva diacrônica de leitura de uma língua. No entanto, nem é preciso recuar tanto no tempo para observar as mudanças que acontecem na língua. Na década de sessenta do século XX, mulher jovem e bonita era chamada de broto ou brotinho; na década de oitenta do mesmo século, era gatinha. Neste início de milênio, certo cantor fez sucesso chamando as mulheres de cachorras. Enquanto os adultos consideravam inadequada tal forma de expressão, a juventude, inclusive parte da feminina, aprovava. Aliás, o vocabulário criado pelos mais jovens sempre causa controvérsia com as gerações anteriores. Sem entrar em uma análise sociológica que tal letra de música merece, adianto que apenas foi citada como exemplo de variação lingüística, numa perspectiva também diacrônica. É fácil concluir que a língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada no início da colonização e é diferente, também, da língua que será falada no futuro. Isto acontece porque a língua, retomando o que já foi dito, é dinâmica, está sempre mudando. 41 Quanto às variações ou variedades sincrônicas da língua, ou seja, aquelas que são observadas ao fazer-se um recorte do tempo atual, são as geográficas, de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução. Dentre as variedades geográficas, incluem-se as diferenças observadas quando se comparam os falantes nativos dos diversos países que se diz falar uma mesma língua, além daquelas observadas dentro do mesmo país, de uma região para outra e também em relação à zona rural e zona urbana. No Brasil, há diferenciação lingüística entre as regiões e mesmo dentro de cada região. É o caso, por exemplo, da Região Sudeste, na qual é perfeitamente possível se distinguirem cariocas, paulistas, capixabas e mineiros. E entre os mineiros? Minas, já se disse, são muitas. Até na língua? Não é o que parece o tratamento dado aos norte mineiros quando conversam com outros mineiros. De modo geral, não se constituiu como grupo estabelecido – ou grupos – os descendentes dos primeiros habitantes do norte de minas, ou seja, dos índios e quilombolas14. Apesar da sua anterioridade em relação aos brancos, foram considerados outsiders e banidos para fora da comunidade imaginada das minas gerais. Esse banimento é inclusive lingüístico, podendo ser comprovado pela forma como são tratados os norte mineiros no momento em que se fazem locutores diante dos estabelecidos identitária e simbolicamente como mineiros. Pelas especificidades na formação histórica e sócio-cultural dessa região do Estado de Minas Gerais, que nem mina de ouro nem mineiro teve mas, sim, bastante gado, fazendeiro e vaqueiro, isto é; depois dos índios e dos quilombolas, a fala dos seus nativos só podia ser diferente. Entretanto, para os mineiros, o sotaque peculiar, a forma cantábili de falar dos norte mineiros, tão bem representada pelos sujeitos que são tomados como base para construir esta interpretação da identidade lingüística norte mineira, ou seja, constituem-se uma alteridade, tratados como os capiaus. Há relatos de norte mineiros que afirmam terem sofrido discriminação lingüística, quando se fizeram locutores diante de interlocutores mineiros de outras 14 Vide COSTA (2005). 42 regiões do estado15. É o caso, por exemplo, da autora deste texto, indagada certa vez, por um nativo da cidade de Poços de Caldas, se a mesma era baiana, devido ao sotaque. A pergunta foi feita em meio a risos, de forma irônica, o que configurou uma demonstração de preconceito e menosprezo pela variante lingüística norte mineira. No entanto, na perspectiva desse estudo, tal atitude apenas mostrou o desconhecimento de que as variedades lingüísticas existem também dentro do mesmo estado, como é o caso de Minas, ou até dentro de uma mesma cidade, de um bairro para outro. BAGNO (2003), para quem as diferenças lingüísticas observadas entre o português falado no Brasil e o português falado além-mar podem ser, a) fonéticas: no modo de pronunciar os sons da língua, b) sintáticas: no modo de organizar as frases, as orações e as partes que as compõem, c) lexicais: palavras que existem lá e não existem cá, d) semânticas: no significado das palavras (em Portugal, cuecas significam o mesmo que as calcinhas brasileiras) e, por último, as diferenças no uso da língua. Essas diferenças lingüísticas entre os países são conseqüência da enorme distância física entre os seus falantes nativos. No caso da língua portuguesa, estes estão espalhados por quatro continentes: América Latina, Europa, África e Ásia. O que os sociolingüistas contestam é que tanto as diferenças lingüísticas determinadas pelo fator geográfico quanto aquelas determinadas por outros fatores sejam motivo de hierarquização e discriminação. Falar diferente não significa ser inferior. Quer dizer: falar diferente de quem? Quem ou o quê é a identidade lingüística para que se compare e encontre a alteridade? É a chamada Norma Padrão, Dialeto Padrão e que recebe ainda o nome de Português Padrão ou Língua Culta16. Quais são os falantes desse fragmento padronizado da língua? Por que essa é a variedade determinada como modelo e não outra? Quem determina que uma variante lingüística deve representar a língua e ser, portanto, a identidade imposta a todos? 14 Neste sentido, vide, por exemplo, o relato de MAURÍCIO (1955: 33) quando de sua chegada em Belo Horizonte. 16 BAGNO (1993), utiliza o termo Português Padrão ao se referir à variante linguística falada pela classe dominante, entendida aqui não só como aqueles que detém o poder econômico mas, também, os que detém altos níveis de escolaridade. É importante pontuar que esse lingüista afirma que não existe uma variedade-padrão da língua, porque variedade implica seres humanos que usam essa variedade. Quando se fala em padrão, não se leva em conta a língua viva e os sujeitos que a utilizam cotidianamente. 43 É preciso destacar que a norma padrão é aquele modelo ideal de língua que é usado, em situações formais, pelas autoridades, órgãos oficiais, professores universitários, escritores e jornalistas, ensinado e aprendido na escola. Essa norma recebe um grande investimento para a sua preservação. Tal investimento é feito pelos gramáticos, que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela e que servem, ao mesmo tempo, para prescrever essas regras, isto é; impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso, que eles consideram correto, da língua. De acordo com BAGNO (2003), os dicionaristas tentam definir os significados para as palavras que compõem esse padrão. A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial, a maneira única de escrever, imposta por decreto-lei. Ela também impede o uso excessivo de palavras de origem estrangeira. Os autores de livros escolares preparam seus manuais pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma-padrão. Esse trabalho de padronização constitui o que BAGNO (id.) chama de investimento, e que é interpretado como busca da manutenção da assimetria lingüística entre aqueles que detém o poder e o restante da população. Faz-se necessário ressaltar que, tanto a língua quanto a identidade, se localizam num contexto social. Como já foi afirmado anteriormente nesta dissertação, ambas são construídas a partir de relações de poder. Não há nada de ingênuo nessas relações. Por isso é que, entre tantas variedades que a língua apresenta, a que é tida como norma, como padrão é aquela que simboliza o universo daqueles que de uma forma ou outra dominam a sociedade: a classe economicamente mais alta, os detentores dos cargos públicos mais prestigiados socialmente, como exemplo o de juízes e afins, os professores universitários, os jornalistas, a mídia de maneira geral e os gramáticos, que nem sempre são pesquisadores da língua. A língua é o principal meio de construção e, principalmente, de externalização de significados. Como criação humana, a língua insere-se no patrimônio cultural de uma coletividade. Assim como a cultura, quanto mais complexo for o contexto, mais complexa, isto é; mais diversificada será a língua. Podemos afirmar que, ao impor apenas uma variante cultural ou uma variante lingüística como a certa, a norma a ser seguida, excluindo ou marginalizando o 44 diferente, procura-se decretar o fim da criatividade, da originalidade, que é uma característica básica do ser humano. Entretanto, conseguir esse intento não é tarefa assim tão fácil para aqueles que o almejam. Se assim fosse, a chamada norma padrão teria suprimido as outras variedades lingüísticas, uma vez que ela reina absoluta nos livros didáticos, portanto, na escola, e na mídia televisiva que atinge, no Brasil, uma parcela muito maior da população do que aquela que freqüenta a escola. No entanto, séculos de autoritarismo, que excluíram muitas das línguas indígenas e também as línguas trazidas pelos escravos africanos, conseguem manter oficialmente como a identidade lingüística um dos subconjuntos dos fatos da língua, ou seja, aquele que representa uma parcela ínfima da população, mas que é a que detém o poder. Não obstante, pesquisas sociolingüísticas, assim como muitas realizadas em outras áreas do conhecimento, estão cumprindo o papel de dar visibilidade àqueles que foram obliterados nesse processo. A literatura também tem sua contribuição nesse processo de visibilização. A obra de Guimarães Rosa é um exemplo disso. Esse escritor utilizou, na composição dos discursos dos personagens do livro Grande Sertão: Veredas, a variante lingüística utilizada pelos sertanejos norte mineiros da primeira metade do século XX. Elementos sintáticos, semânticos, lexicais e fonéticos/fonológicos semelhantes aos encontrados na narrativa do personagem-protagonista Riobaldo são, ainda, recorrentes, na fala de moradores do norte de Minas, principalmente na zona rural. As variações de significação, encontradas no campo semântico que se referem ao diabo, por exemplo, não foram construções do autor, fazem parte do imaginário popular e do universo lingüístico norte mineiros. É preciso ressaltar que não é desconsiderada, neste estudo, a presença dos inúmeros neologismos em sua obra. Entretanto, a comparação entre um corpus lingüístico-discursivo colhido junto a nativos norte mineiros, residentes no Vale do Gurutuba, com a fala de Riobaldo Tatarana, poderá confirmar o que foi exposto acima. Entretanto, isso será considerado no próximo capítulo. 45 CAPÍTULO III OBLITERAÇÃO E RESISTÊNCIA: A REESCRITA DA HISTÓRIA NORTE MINEIRA Noite da Jaíba dá de uma asada, uma pancada só. (...) De tantos matos baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. (ROSA, 2001:219) Eu tinha vindo ali para ali, para o sertão do Norte, como todos uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmo notar que vinha – mas prezado, precisão de agenciar um resto melhor para a minha vida. (ROSA, 2001:299) 3.1 QUILOMBOLAS GURUTUBANOS E O PROCESSO DE VISIBILIZAÇÃO Fugindo da exploração de todo tipo que sofriam, os negros adentraram a antiga mata da Jahyba17, assim definida, conforme assinala COSTA (2003), pelo bandeirante Matias Cardoso quando chegou à região nos idos dos seiscentos. Através de metodologia antropológica, Costa desvela a existência inviabilizada de um território negro ampliado18, conforme postulou em seu trabalho sobre a comunidade negra de Brejo dos Crioulos19, considerada por quilombolas como um dos mais antigos quilombos norte mineiros. 17 Concordando com COSTA (2005), utilizo, também, a grafia dos bandeirantes, com o mesmo objetivo do referido autor, ou seja, distinguir o antigo território em relação ao atual município norte mineiro denominado Jaíba. 18 Com o conceito de território negro ampliado, COSTA (2005) informa a existência de um conjunto de localidades articuladas entre si, por meio de uma rede de relações sociais: de parentesco, compadrio, econômicas, culturais ou políticas. 19 Costa (1999) , desenvolveu uma pesquisa etnográfica na comunidade negra de Brejo dos Crioulos, localizada no município de São João da Ponte, norte do estado de Minas Gerais, Brasil. Através da análise de ritos religiosos, esse antropólogo adentra a realidade histórico-cultural dos povos negros 46 A invisibilidade das comunidades negras era tão marcante, que até mesmo Guimarães Rosa, com todo o conhecimento que revelou ter sobre o norte de Minas, através do estriamento literário da sua realidade geográfica, política, social, especialmente no aspecto lingüístico-discursivo, pela qual, conforme interpreta Bolle (2000), ele inventa o Brasil, registra pela boca de Riobaldo o vazio das brabas terras do Rio Verde Grande, desde a Jaíba20 até a Serra Branca (ROSA, 2001: 81. Grifo meu) 21. Há, nesse ocultamento dos negros, três possibilidades: o real desconhecimento do autor a respeito dos quilombolas, suas fontes de informação serem secundárias e, finalmente, a postura política de ignorá-los, uma vez que não eram protagonistas no palco coronelista-jaguncista que constrói sua narração. De toda maneira, é possível tomar o livro Grande Sertão: Veredas como um documento histórico. Apesar da genial maquiagem literária construída pelo autor, há que se considerar a importância que tem essa breve informação sobre a invisibilidade dos negros no cenário do norte de Minas. A ocupação negra não consta na documentação colonial, conforme assinala COSTA (2005), porque o objetivo das bandeiras paulistas em relação aos quilombos era o de exterminá-los. Tal ocupação localizou-se, principalmente, mas não exclusivamente, no interior da densa floresta de caatinga arbórea, com milhares de lagoas no vale do rio que, posteriormente, passou a ser denominado Verde Grande (COSTA, id.). Esse autor registra que os quilombos foram localizados a partir de duas dinâmicas distintas. Por um lado, os escravos fugidos não queriam nenhum contato com a sociedade escravocrata e, para tanto, percorreram o território que viria a ser brasileiro em busca de lugares que fossem áreas que os índios não habitassem. Por outro lado, os escravos fugidos queriam manter alguma forma de contato com a sociedade escravocrata, mas que povoaram e povoam o sertão norte mineiro e contribui sobremaneira para o processo de viabilização não só dessa comunidade, como também de outras que se localizam em outros municípios da região. Esse pesquisador continua desenvolvendo seu trabalho sobre os quilombolas da região norte mineira/brasileira, tendo publicado recentemente mais dois artigos sobre esse tema na Revista Grande Sertão, v. 1, nº 2 e 3. 20 Grafia adotada pelo autor de Grande Sertão: Veredas (ROSA , 2001: 48) É importante registrar que, apesar de informar a invisibilidade dos negros nesse trecho específico do sertão norte mineiro, Riobaldo diz ao seu interlocutor que convém a este visitar o povoado dos pretos localizada em Vargem-da-Cria. Ele informa que os negros desse lugar “bateavam ouro em faisqueiras (...) e ainda sabem cantar gabos em sua língua da Costa” (ROSA, 2001: 48). É uma menção ligeira, sem maiores detalhes. Não é feita referência alguma a como e por que tais pretos ali chegaram. De toda maneira, tal menção constitui-se em um salutar convite à pesquisa. 21 47 buscavam áreas que os portugueses e seus descendentes recusavam por alguma razão, mesmo que estivessem próximas às povoações. (...) Nesses locais, os africanos e seus descendentes constituíram pequenas comunidades com algum tipo de produção agrícola, pecuária, extrativista, mineratória e, em poucas, como praça de guerra. As diversas comunidades mantinham entre si vínculos sociais para proteção do território negro. Esses vínculos estruturavam redes de parentesco no interior de quilombos, também chamados de mocambos ou calhambos. (COSTA, 2005: 14). Além dessas características, COSTA (2005) postula que os negros aquilombados desenvolveram, juntamente com os indígenas, uma sociedade multicultural e multiétnica, organizada pelos princípios de solidariedade e reciprocidade. A competição e a concorrência entre grupamentos étnicos distintos não existiam. De acordo com esse autor, consolidou-se na área média da bacia do Rio São Francisco uma sociedade de encontros e de liberdade. (COSTA, 2005: 1415). A perseguição a esses dois grupos étnicos iniciou-se com a chegada da bandeira paulista comandada por Mathias Cardoso de Almeida. COSTA (id.) denomina esse momento como evento fundante da sociedade pastoril, situada no atual norte de Minas. Como bandeira, essa era um grupo social organizado por parentesco e compadrio, cujos membros se vinculavam por relações de solidariedade e reciprocidade, constituindo-se como um corpo de guerra contra sociedades indígenas e grupos quilombolas que se recusavam ao aprisionamento (COSTA, ib.). A bandeira se fixou às margens do São Francisco, fundando fazendas de criação de gado. A partir de então, os membros da bandeira, que instituem os currais do São Francisco, sobrepõem a lógica branca que se apóia na apropriação privada de uma terra à lógica não-branca de utilização coletiva de uma área, dando início a um novo processo de territorialização (COSTA, 2005. Grifos no original). Entretanto, a lógica não-branca não foi capaz de desarticular a lógica indígena e quilombola de ocupação, baseada na liberdade, solidariedade e reciprocidade, assim como na articulação de povos distintos e culturas diferenciadas que compunham o mosaico sócio-cultural sertanejo (COSTA, id.). A lógica não-branca de ocupação territorial, no sertão norte mineiro, vivenciada secularmente pelos quilombolas e indígenas, resistiu até à expansão da 48 fronteira agrícola nacional, a partir dos anos 1960. Esse processo inicia-se, contudo, nos anos 1950, quando o saneamento vai livrando o território negro da malária. Inicia-se a expropriação da terra gurutubana pelos fazendeiros e doutores oriundos de outras regiões, que introduzem o pastoreio e o algodão têxtil em substituição ao arbóreo, com fins comerciais. A partir de então, os quilombolas viram-se acantoados em pequenos espaços de terra, devido à expropriação de seus territórios, forçados pela nova lógica de produção a modificar seus costumes seculares de convivência sócioambiental. Com o aumento das famílias e a escassez de recursos, proliferou a migração, entendida por eles, naquele momento, como única forma de garantia da sobrevivência. Assim, desligados parcialmente dos seus modos tradicionais de vida, passaram a viver precariamente entre as franjas da tradição e da modernidade, nas periferias de cidades regionais e nacionais. Vivencia-se, atualmente, no sertão norte mineiro, como de resto em todo o país, a luta dessas comunidades pelo seu direito à vida, pautada na manutenção e/ou resgate do seu modo de vida tradicional. Entidades como o CAA 22, a Associação Quilombola do Gurutuba e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha são parceiros fundamentais dessa população. Além disso, COSTA (2005), registra que diversos pesquisadores das instituições de ensino superior existentes no norte de Minas se debruçam sobre temáticas vinculadas às comunidades negras, tanto do ponto de vista histórico quanto lingüístico, cultural, social, político, agronômico, ambiental, etc. Dessa forma, uma outra história, aquela dos subalternos, tem vindo à luz, graças à perspectiva antropológica de abordagem, pela memória e pelo parentesco, da vida social das camadas populares no país, o que possibilitou fazer emergir, no cenário regional, uma realidade até então desconhecida. (COSTA, 2005, p.17). É importante registrar o orgulho do Sr. Joaquim Pereira da Silva 23, 66 anos de idade, nativo e morador de Janaúba/MG, ao afirmar sua identidade em entrevista realizada durante a pesquisa que fundamenta esta dissertação. Ao ser indagado se sentia orgulho em ser gurutubano, inicialmente ele diz que não, devido ao fato de que o vocábulo orgulho tem, em seu meio social, uma conotação negativa. Quando 22 CENTRO DE AGRICULTURA ALTERNATIVA, entidade que vem desenvolvendo seu trabalho há mais de 10 anos e que tem sede na cidade de Montes Claros/MG. 23 In memorian. No dia da entrevista, ele tinha 66 anos de idade. 49 outra gurutubana presente à entrevista, a Sra. Marizete Aparecida Santos Reis, conhecedora do léxico de seu povo, substitui a palavra orgulho por alegria, o Sr. Joaquim se entusiasma: Alegria! Alegria, tenho alegria, tenho.Tenho alegria de amar nós, o que nós todos somo gurutubano. Tenho alegria de amar todos que num são gurutubano. Tenho alegria de amar otros que vêm de fora do gurutubano, nós abraçamos (...).24 É possível entrever, em seu discurso, que a assunção da identidade gurutubana não o leva à exclusão da alteridade. Pelo contrário, ele afirma que tem alegria em amar os outros que vêm de fora e abraça-os, isto é; os acolhe em seu meio social com muito carinho, com solidariedade, apesar da brutalidade com que chegaram ao seu mundus. A abertura para o outro, para o além, é uma característica do norte mineiro, quilombola ou não, como membro de uma sociedade em fronteira, conforme definido por COSTA (2003), e que pode ser constatada claramente na enunciação do Sr. Joaquim. Essa mesma abertura está implícita na voz de Riobaldo, o personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas, quando ele afirma que toda a vida gostou demais de estrangeiro (ROSA, 2001: 131). Continuando a entrevista, pergunta-se a ele o que é ser gurutubano e ele então declara: ser gurutubano é pur causa da parte do Rio da Gurutuba. Quem beba da água do Rio da Gurutuba é gurutubano. E nós nasceu bebeno da água do Rio da Gurutuba, e tamo cunzinhano o que vem da água da Gurutuba. Somo gurutubano! [...] Nós foi ali pra São Paulo e nós grita: Sou gurutubano! E num perco a minha razão. Otros xinga e nós “Oba! Palma de novo! [...] Sou gurutubano do pé rachado de tanto trabalhar. [...] Porque sou gurutubano e sou a favor do gurutubano, sou a favor da gurutubana [...] Sr. JOAQUIM, 2005. Nesse ato declaratório de pertencimento, está implícita a defesa do seu direito à terra, aos elementos culturais, enfim, à forma de vida herdada dos seus antepassados e atualizada, nas fímbrias da modernidade, pelos atuais gurutubanos. Tal ato mostra que os quilombolas são agentes do seu processo de visibilização e buscam reverter a condição social que lhes foi imposta. 24 Relato oral do SR. JOAQUIM PEREIRA DA SILVA, colhido no dia 07/09/2005, através de entrevista, em sua residência à Rua Mato Grosso, 1084, Bairro Sta. Cruz/Janaúba – MG, inserindo-se no trabalho de campo realizado para fundamentar essa dissertação. 50 51 3.2 Os montes azuis de Tremedal O azul intenso com que a Serra Geral premia os moradores e visitantes da atual cidade de Monte Azul esconde uma história de lutas políticas assentadas em uma divisão social entre brancos, vivendo ao pé da Serra do Espinhaço e os negros vivendo no interior do vale verdegrandense, bem como, no coronelismo. É uma história que precisa ser pesquisada e registrada, dada sua importância não só para os nativos locais como também para o entendimento de uma longa etapa da própria história brasileira. Isso pode ser constatado ao ler os escassos registros já feitos pela população local. Além disso, em um local privilegiado pela natureza, encontra-se ainda, em razoável estado de conservação, uma casa25 que era propriedade do coronel Levy Souza e Silva que, de acordo com moradores locais, foi recordista na manutenção do poder: 32 anos! A casa foi construída no alto de um morro cuja vista se descortina em todas as direções. Da janela do segundo pavimento ou até mesmo da varanda localizada no térreo, é possível ver o que se passa nos arredores, a uma distância considerável. Construída com arquitetura rústica, resistente, tem vários quartos, sala, cozinha, no primeiro pavimento. No segundo, foram construídos dois quartos, com janelas viradas para todas as direções. Um pedaço de madeira que atravessa o meio de cada janela revela o lugar onde os jagunços apoiavam suas armas para atacar ou defender. Em um desses dois quartos, de cuja janela enxerga-se um longo recorte azul da Serra Geral, há um pequeno buraco no piso por onde era possível espiar quem adentrasse a sala localizada no térreo, ou mesmo introduzir a ponta de uma arma, se isso fosse necessário. Essa casa e o deslumbrante cenário do qual ela faz parte, com toda uma história a ser resgatada, localiza-se ao leste da sede de “Tremedal26, chamada hoje 25 Fotos da frente e da lateral direita da casa encontram-se anexadas a essa dissertação. Os moradores de Monte Azul, quando indagados sobre o significado do signo Tremedal, antigo nome desse município, nenhum deles soube informar. Talvez o mesmo tenha se esvaído da memória linguística local. Entretanto, em ROSA (2001: 83), encontramos: “Arre, os tremedais; já viu algum? O chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem não sabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, cavalama. Seja sem espera, quando já estão no meio, aquilo sucrepa: 26 52 Monte-Azul” (ROSA, 2001: 80). Tremedal era parte da capitania da Bahia, estando ao longo da extensa faixa de terra que integrava os domínios do Conde da Ponte, fundada por Antônio Guedes de Brito, o qual criava fazendas com colonos e escravos e arrendava outras. A tradição oral menciona, como primeiros povoadores, a ex-escrava Maria Rosária, mulher muito ousada para seu tempo, conforme está registrado no Centro de Cultura da cidade, e o português Pompeu, além de outros que se fixaram pelas vizinhanças. De acordo com antigos moradores, muitas meninas índias foram agarradas a dente de cachorro, segundo a expressão popular, domesticadas e tiveram filhos com os primeiros exploradores, constituindo numerosa prole27. Depois do fracasso das capitanias hereditárias, o rei de Portugal resolveu adotar o sistema de sesmarias. Tal medida visava a colonização mais rápida do interior brasileiro. O rei português fez concessões de sesmarias, seguindo o critério de beneficiar alguns potentados, como o abastado Garcia D‟Ávila, fundador da Casa da Torre. A imensa faixa de terras da margem direita do Rio São Francisco, compreendida desde o Morro do Chapéu, nas margens do rio São Francisco próximo a Bom Jesus da Lapa, na Bahia, até a nascente do Rio das Velhas, em Minas Gerais, com largura nunca inferior a 30 léguas, ou seja, 180 quilômetros, constituía os latifúndios da Casa da Ponte. A famosa sesmaria de 160 léguas, a Casa da Ponte, estendia-se do Morro do Chapéu ao Rio Vaihum e ficava compreendida entre o curso do Rio São Francisco e uma linha que, correndo pelas cabeceiras dos rios Salitre, Jacuípe, Paraguaçu, Contas e Brumado, além de cortar os rios Santo Antônio e Gavião, ia até as cabeceiras do Rio Pardo. Essa sesmaria foi dada a Antônio Guedes de Brito que, de acordo com COSTA (2005), fizera parte de uma Junta Governante da Capitania da Bahia e do Governo Geral do Brasil, assumindo depois o compromisso de lutar contra indígenas e quilombolas que vinham atacando a zona açucareira do recôncavo baiano. Posteriormente, já com o título de Conde da Ponte, depois de arrendar parte de suas terras a alguns fazendeiros, resolveu vendê-las, dando pega a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca, rebole ocultado um semifundo, de brejão engulidor...”. 27 Nos estudos dos quilombos dessa região, essa categoria apanhada a dente de cachorro, é recorrente. Entretanto, conforme informação em CARVALHO (1996), pode-se afirmar não se tratar de indígenas, mas de quilombolas vivendo em situação semelhante à dos índios, no interior do Território Negro da Jahyba. 53 preferência àqueles que já as ocupavam. A ex-escrava Maria Rosária comprou parte dessas terras e doou um terreno para a construção da matriz em devoção à Nossa Senhora das Graças. Ao ser transformada em município, a povoação recebe a denominação de Boa Vista do Tremedal, voltando a se chamar apenas Tremedal a partir de 1923. O atual nome de Monte Azul ocorreu por sugestão do Coronel Levy, em homenagem à tonalidade das serras que circundam a cidade. O coronelismo comandou a política desse município durante mais de 60 anos. Chefes políticos sucederam-se no poder, o qual era expandido para além dos atuais limites municipais, que abrangiam Porteirinha, Espinosa e Mato Verde que se emanciparam, simultaneamente, em 1953. Os dois principais coronéis foram Donato Gonçalves Dias e Levy Souza e Silva, sendo que este deteve o poder local de 1930 a 1962. O coronel Levy era um exímio orador e arregimentava amigos e inimigos na mesma proporção. Após servir no Grupo de Oficiais Revolucionários, que apoiou a Revolução de 1930 e cuja tarefa era guarnecer a divisa de Minas Gerais com a Bahia, ele ocupava o cargo de vice-presidente da Câmara Municipal quando foi nomeado pelo governador mineiro Olegário Maciel para assumir a prefeitura. Na disputa pelo poder político, formavam-se bandos de jagunços comandados pelos coronéis que viviam em guerra. No meio desses bandos, destacaram-se nomes como o de Arabel Souza Gomes, que veio de Mato Verde. Arabel tinha o mesmo estilo de vida e a mesma maneira de manter o poder que o coronel Levy, sendo este último mais poderoso. Ambos mantinham uma relação de amizade e respeito mútuo, no entanto, intriga a população até os dias atuais o seu assassinato, que aconteceu de forma extremamente violenta e misteriosa, de acordo com relatos de moradores locais. Em 1947, apareceu na cidade um tenente que veio da capital para prendêlo, porém, Arabel não se rendeu. O coronel Levy, que estava em Belo Horizonte na ocasião, mandou um recado oferecendo-se como mediador da questão, dizendo que resolveria tudo e que ele poderia se apresentar. Confiando na palavra do coronel, Arabel entregou-se e foi levado para a fazenda de Francisco Teles de Menezes, 54 onde ficou desaparecido por três dias. Ao tomar conhecimento do fato, Levy retornou da viagem e, liderando seus jagunços, foi em busca dele. Como assinalam os moradores, o detalhe curioso é que o coronel, ao chegar à fazenda, foi direto ao local onde se encontrava o corpo de Arabel. Este estava dentro de uma cisterna, de cabeça para baixo, com uma corda amarrada ao pescoço, braços e pernas. Em seu corpo havia marcas de torturas, com unhas e orelhas arrancadas, olhos furados e castrado. Por ser o dono da propriedade onde foi encontrado o corpo, Francisco Teles foi acusado do crime e preso, mas até hoje não se sabe realmente quem foi o culpado. A história de Arabel é um exemplo do que acontecia na disputa violenta pelo poder entre os coronéis e seus bandos. Nesse sistema, não havia possibilidade de conciliação, de diálogo. Quem ameaçava era literalmente eliminado. A população era instada à obediência através do medo. O terror do castigo físico, ou até mesmo do assassinato, foi posteriormente substituído pelo terror psicológico, conseguido através da exclusão dos adversários e de seus familiares de, por exemplo, empregos municipais. Essa estratégia de manutenção do poder ainda é bastante presente em vários municípios norte mineiros, não constituindo um “privilégio” apenas de Monte Azul. 55 3.3 Janaúba e Monte Azul: algumas similaridades e diferenças A estrutura do poder local nesses municípios norte mineiros construiu-se a partir de certas práticas como o mandonismo, o nepotismo, a falta de prestação de contas à sociedade, o autoritarismo, o empreguismo, a invasão da dimensão do público pelo privado por sua apropriação, o assistencialismo e a corrupção. Toda mudança, principalmente econômica, ao longo da história, surgiu por fatores ou decisões exógenas. Para exemplificar, pode-se citar a cultura do algodão, que foi implantada e expandida em Monte Azul tanto quanto em Janaúba, através de uma lógica econômica que não incluiu o modo de vida das populações locais. Estes dois municípios situam-se na microregião da Serra Geral e se posicionam ao norte e ao sul, respectivamente. A respeito de Janaúba, fundada nos anos 1940 com a implantação de ferrovia no vale verde grandense e uma estação ferroviária próximo a uma gameleira, onde os negros da Jahyba comercializavam suas produções, pode-se afirmar que tal lógica ignorou os conhecimentos acumulados secularmente pelos gurutubanos, devido à implantação pela CODEVASF de um projeto de irrigação destinado, prioritariamente, para agricultura comercial. Com o declínio dessa cultura, restou a miséria de uma população à deriva do seu próprio destino. O caminho seguido por cada um desses dois municípios, após o declínio do algodão não foi similar. Em Janaúba, a implantação dos projetos de irrigação têm elevado a arrecadação municipal de impostos, especialmente do ICMS, cujo valor vem subindo a cada ano, conforme se pode ver no quadro abaixo: ARRECADAÇÃO MUNICIPAL DE JANAÚBA - 2000 - 2003 Anos ICMS Outro TOTAL 2000 1.663.147 2.128.086 3.791.233 2001 2.165.437 2.399.837 4.565.274 2002 2.650.082 2.988.216 5.638.298 2003 3.055.849 3.145.218 6.201.067 Fonte: Secretaria de Estado da Fazenda 56 Se o aumento na arrecadação de impostos tem implicado melhoria na qualidade de vida de toda a população, os dados relativos à arrecadação de ICMS, não permitem afirmar ou negar com certeza tal entendimento. Entretanto, o trabalho desenvolvido por entidades como o CAA, STR de Porteirinha e a Associação Quilombola do Gurutuba, já mencionados anteriormente, dão conta de que são caóticas as condições de vida dos quilombolas28. Conclui-se que, se houve melhoria na qualidade de vida, ainda não atingiu toda a população. Já no município de Monte Azul, após o declínio do algodão não houve nenhum tipo de investimento que dinamizasse a produção local. Pelo contrário, o que aconteceu foi a retirada do trem de passageiros que propiciava o escoamento da produção tradicional, duro golpe vivido pela população local, segundo relatam os moradores. Muitos ainda sonham com o retorno do mesmo, pois a sua passagem era a oportunidade de aumentar as vendas dos produtos locais, o que garantia a sobrevivência de parte da população. Entretanto, quem vai atualmente a esse município, observa in loco que algo está mudando. Proliferam pequenas indústrias de confecções de roupas, o que vem atraindo moradores das cidades vizinhas, até mesmo do vizinho Estado da Bahia. Além disso, qualquer bom observador consegue perceber o grande potencial que esse município tem: o turístico. Entretanto, ainda não há exploração – talvez, nem mesmo discussão! – desse potencial. Conforme foi descrito anteriormente, a cidade localiza-se em um local privilegiado pela natureza, circundado pela exuberante Serra Geral. Outro fator turístico pode vir a ser a sua própria história, de base coronelista, se for vinculada à obra roseana. Finalizando este capítulo, vimos que as duas cidades norte mineiras, selecionadas para realização da pesquisa de campo, com a finalidade de coletar o corpus linguístico-discursivo, apresentam alguns aspectos similares, no que concerne à prática política de seus representantes. Quanto à trajetória econômica, um breve olhar evidencia algumas diferenças, a partir da queda do algodão 28 Para maiores detalhes, consultar o projeto “Estratégias de Reconstrução Agroalimentar no semiárido mineiro e Execução de Programa de Segurança Alimentar e Nutricional em Comunidades Negras do Vale do Gorutuba”, elaborado pela Associação Quilombola do Gurutuba em parceria com o CAA/Montes Claros e STR de Porteirinha (2003). 57 industrial, devido ao fato de, em Janaúba, terem sido implantados os grande projetos de irrigação, sendo que o mesmo não ocorreu em Monte Azul. Entretanto, o que é fundamental registrar, devido ao objeto deste trabalho, são os sujeitos que vivem nesses lugares, por serem eles os portadores da memória linguístico-discursiva, a qual contém a chave sócio-cultural e histórica do norte de Minas e, portanto, sua identidade. 58 CAPÍTULO IV Sertanejos e jagunços: dois signos e uma identidade? Ser chefe de jagunço era isso. Ser o que não dava realce – qualquer um podia, fazendeiro com posses, mão em políticas. O sertão tudo não aceita? (ROSA, 2001:503) 4.1 Adentrando o espaço sertanejo A paisagem nacional é composta por dois espaços distintos, que se imbricam e se opõem um ao outro. Para VIDAL e SOUZA (1998) estes dois espaços são o litoral e sertão, que conformam geograficamente a Pátria Brasileira. Essa autora, baseando-se em leituras advindas do pensamento social brasileiro, afirma que o litoral, como lugar de cultura, de civilização e do Estado, se opõe ao sertão, como lugar de natureza, de selvageria e não estruturação do Estado. Nesse capítulo, discute-se uma face dessa dualidade fundante da Pátria Brasileira, ou seja, o sertão. Para isso, adentra-se em representações provenientes de campos discursivos múltiplos, quer seja, a ciência e a literatura. De acordo com ALMEIDA (2003), o conhecimento das representações das pessoas, possibilita a captação de toda a riqueza de valores que dão sentido aos espaços vividos por elas e possibilita entender a maneira pela qual modelam as paisagens e nelas afirmam suas convicções e suas esperanças. Para essa autora, a construção discursiva sobre o sertão espelha a maneira como ele é pensado e uma maneira específica de ver o mundo. O olhar, o ato de contemplar a natureza, não é uma atitude natural. Pelo contrário, ele é resultante de uma instituição da cultura que inventou essa contemplação e lhe deu uma significação e valor. Ora, partindo do pressuposto de que as culturas são diversas, no tempo e no espaço, a contemplação reveste-se, pois, dessa pluralidade do olhar. (ALMEIDA, 2003: 71. Grifos da autora). 59 Isto posto, é hora de empreender a busca. Inicia-se pela significação que o significante sertão previamente traz à pesquisadora. O foco de interesse remete ao espaço sertão norte mineiro. Portanto, é dele que se parte. Uma das suas principais características é a sua singularidade. Ele difere de outras porções do sertão brasileiro porque não é apenas mais um pedaço do país-continente que se projetou interior afora, distanciando-se do mar. Ideológica e simbolicamente, o sertão norte mineiro pertence e não pertence à Minas Gerais. Esse pertencimento é oficial, mas não é cultural. Também no aspecto econômico e social há muita diferença em relação às demais regiões do estado. Esta região já foi um locus de produção pecuária, cujos currais abasteciam o recôncavo baiano, Salvador e as minas gerais29. Diversos povos indígenas habitaram esse pedaço de solo sertanejo e muitos deles vieram na movimentação de seus membros durante a ocupação colonial. Os Acaroá, por exemplo, vieram de Goiás no século XVII e se estabeleceram às margens dos rios Paracatu e Urucuia, entre outros. Para esse território vieram, também, povos africanos e seus descendentes, os quais constituíram quilombos. Aos povos indígenas e quilombolas, somaram-se os bandeirantes que adentraram a região com o objetivo de aprear índios e exterminar os quilombos (COSTA, 2005). A diversidade da formação do território sertanejo, em seus primórdios pertencente às capitanias da Bahia e de Pernambuco e que foi anexado posteriormente ao que se tornaria o estado de Minas Gerais (COSTA, id.), vista sob diferentes aspectos, em relação às minas gerais, acrescido do isolamento político, originou uma cultura singular em relação ao restante desse estado 30. Dentro do aspecto cultural, interessa-nos destacar a diferenciação lingüístico-discursiva em relação aos falantes da língua herdada dos colonizadores que povoaram o território das minas. Os sertanejos criaram signos lingüísticos para atender à sua necessidade de representação de mundo, os quais foram incorporados ao que foi captado por eles da língua de Camões. Com isso, eles construíram sua própria ferramenta de comunicação que, nas fronteiras simbólicas mineiras, constitui-se sua alteridade e 29 Vide COSTA (2005) 30 Vide DIEGUES JÚNIOR (1960). 60 tratada às vezes como chacota. Em Minas Gerais, os norte sertanejos são representados como bárbaros, rudes, subdesenvolvidos. Entretanto, há que se ressaltar que nenhuma variação lingüística é superiora à outra. Todas elas são as múltiplas faces de uma mesma moeda chamada língua. É interessante reforçar que a presença dos negros na região norte de Minas era um fato desconhecido para Guimarães Rosa. A obliteração dessa população se deve, pode-se crer, ao fato de que as informações, que subsidiaram a construção da obra utilizada neste trabalho, foram coletadas por ele junto aos membros da elite regional, que foram seus colegas de estudo no Colégio Arnaldo e que também desconheciam a ocupação negra do vale do rio Verde Grande, apesar da existência, na Revista do Arquivo Público Mineiro, da Chrografia do Município de Boa Vista de Tremendal, de Antonino da Silva Neves, publicada em 1908. É evidente a importância de Grande Sertão: Veredas, como já está registrado nesta dissertação, até para o conhecimento da história cultural, em seus diferentes aspectos, do sertão norte mineiro. Entretanto, sente-se a lacuna deixada pelo não registro da presença do quilombolas, moradores seculares desse território, portadores de uma identidade cultural que evidencia maneiras próprias de representação do mundo, de relacionamento com os outros e com o meio ambiente. Portadores, enfim, de um conhecimento e de outras lógicas de sobrevivência, diferentes daquelas que se constituíram nas minas gerais. Essas lógicas de sobrevivência serviram, inclusive, para preservação do ecossistema local, o qual passou a ser depredado pela lógica capitalista a partir da década de 1960. 4.2. Sertão polifônico e polissêmico: o olhar roseano e outras interpretações Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. (ROSA, 2001: 116) Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se faz mandador – todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada!(ROSA, 2001: 128) 61 Adentrando no universo sertão, passa-se a algumas reflexões feitas pelo escritor maior da literatura mineira, através do seu famoso personagem-ex-jagunço e narrador Riobaldo, que tinha sido Tatarana e, posteriormente, Urutu Branco (ROSA, 2001: 560). Para quem teve pais nascidos, nas primeiras décadas do século XX em pleno sertão norte mineiro, aqui já estão expostos signos, da maior importância para o entendimento do conceito de sertão, quando se tenta empreender sua compreensão na perspectiva de quem o conhece por dentro. Os signos jagunço, tatarana e urutu já dariam um mote para discussão, sendo o segundo e o terceiro representativos de dois animais temidos pelos sertanejos: a lagarta de “fogo”, cujo contato causa queimaduras na pele e febre alta e a cobra que voa em direção a quem vai atacar. Sobre o jaguncismo, ainda estão vivos na memória dos mais velhos muitos relatos de fatos acontecidos na região, associados à violência política, principalmente. No livro Grande Sertão: Veredas, o personagem-narrador, ex-jagunço e fazendeiro, Riobaldo relata a um interlocutor, cuja voz não aparece em nenhum momento do enredo31, a sua saga e, ao mesmo tempo, faz reflexões que evidenciam os elementos fundantes de sua cultura: o misticismo, sua afetividade em relação às mulheres – especialmente aquela que só se revelaria mulher após a morte: Diadorim - com as quais conviveu; aos seus amigos e, principalmente, em relação ao meio ambiente sertanejo (ROSA, 2001). Através do seu relato e das suas reflexões, ele pinta magistralmente, na ficção, um cenário do mundo real. Acompanhando sua narrativa permeada de trechos argumentativos, enxergamos a diversidade física do norte de Minas. Passamos por veredas, campos gerais, chapadões, o rio São Francisco e seus afluentes, Urucuia, das Velhas, Verde Grande, Jequitaí, outros menores e inúmeros córregos. Evidenciando que o sertão não se confina ao território norte mineiro, o autor leva o leitor ao sertão baiano e, posteriormente, ao território goiano. De acordo com VIGGIANO (1978), são citados mais de 250 lugares, entre rios, córregos, veredas, vilas, povoados, cidades, serras, chapadas, dos quais ele mostra que fazem parte da toponímia da região ficcionalizada. Como sertaneja, é 31 BOLLE (2000) argumenta que a obra roseana constitui-se como um diálogo entre o autor e Euclides da Cunha, no qual ele procura mostrar, ao autor de Os Sertões, sua visão distinta sobre o sertão. 62 possível contrapor à leitura desse autor, pois ele localiza lugares geograficamente distanciados como se estivessem vizinhos entre si. Do Liso do Sussuarão, local da travessia mais assustadora da saga, situada ficcionalmente entre o limite norte do Norte de Minas com a Bahia, não se comprovou existência real, embora sua descrição remeta ao Liso da Campina, existente na região da tri-junção entre Minas, Goiás e Bahia. No campo do misticismo, o que mais chama a atenção de Riobaldo é a possibilidade do estabelecimento de pacto com o demônio, em cuja existência ele afirma não acreditar. Porém, no decorrer da narrativa ele faz incursões sobre o assunto todo o tempo, como se tivesse arrependimento por um possível pacto feito outrora com o diabo, ao mesmo tempo em que mostra incerteza se isso realmente aconteceu. À medida que vai narrando e refletindo, ele cita os inúmeros signos representativos do imaginário sertanejo em relação a tal entidade. Entre eles, podese citar: Capiroto (ROSA, 2001: 24) Que-Diga (p. 24), Rincha-Mãe, Outro (p.56), Danador (p.62), Demo (p. 154), Que-Não-Fala (p. 423), Coisa-Má (p. 424), Figura (p. 425), Arrenegado (p.426), Maligno (p.426), Tristonho (p. 427), Pai-do-Mal (p.434), Tendeiro (p.434), Pai da Mentira (p.435), Bode Preto (p.436), Morcegão (p.436), Das-Trevas (p.446), Barzabú (446), Sujo (p.507). A presença dele é tão importante que o coloca no centro do conflito entre Diadorim e Hermógenes, sub-titulando a obra, o demônio na rua no meio do redemunho (id., p.174; 437; 611)32. Sobre o signo sertão propriamente dito, infere-se das reflexões feitas pelo personagem que, para seu criador, o significado oscila entre o mundo real e o mundo psíquico. No início do romance, Riobaldo explica ao seu interlocutor sobre tiros que este havia ouvido e conclui dizendo: O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar casa com morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. (...) Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o 32 De acordo com uma crença popular, quando forma-se um redemoinho, se alguém dobrar as pernas, abaixar o corpo e olhar entre elas, verá o ser, representante do que, na concepção popular, é errado, mal e que povoa e assombra o imaginário sertanejo. A cena da morte de Diadorim é uma metáfora dessa imagem do redemoinho porque Riobaldo, com todo seu misticismo, entrevê a ação daquele que ele confirma-e-nega em toda sua narrativa ficcional. 63 que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte. (ROSA, 2001: 23-24). Nesta significação atribuída ao signo sertão, Guimarães Rosa confunde o leitor ao apresentar a configuração de um espaço real e finalizar com uma conceituação que remete a um entendimento para além do meramente físico: o sertão está em toda parte (ROSA, 2001: 24). Qual é o significado que está atrelado ao significante sertão nesse momento? Sutilmente, faz-se um desafio ao leitor para que tire suas próprias conclusões, afinal, pão ou pães, é questão de opiniães (ROSA, id.). O autor parece brincar com as palavras. Em cima de tal conceito, registre-se que já foram desenvolvidos inúmeros trabalhos científicos. CÂNDIDO (1995), entende que o sertão roseano tem endereço físico comprovado, apesar de sua faceta simbólica: (...) o livro de Guimarães Rosa é meticulosamente plantado na realidade física, histórica e social do Norte de Minas, que ele elevou à sensibilidade do leitor brasileiro como nova província, antes não elevada à categoria de objeto estético. Hoje, o mundo do São Francisco mineiro, dos campos gerais, dos chapadões e várzeas, existe na sensibilidade de todos e mostra a unidade do sertão brasileiro, imaginando a fisionomia social de zonas que imaginávamos separadas. De certo, já não é sensível por lá a realidade do jaguncismo, como a descreveu e transfigurou Grande Sertão: Veredas. Em todo o caso, é bastante recente para ser colhida de maneira quase direta pelo romancista (CÂNDIDO,1995, p.177) Para VIANNA & CARVALHO (2002), essa obra-prima da literatura brasileira, entre muitas outras possibilidades, pode ser entendida como a surda tentativa de iluminar uma visão do Brasil e convertê-la em palavras, por meio da contemplação espantada de um mundo arcaico, longínquo, fechado sobre si mesmo, supostamente imóvel e mítico – o sertão. Entendendo que o núcleo central do romance consegue realizar o trabalho de recriar, literariamente, os pontos de tensão e ancoragem entre uma configuração histórica bem determinada – as relações sociais e de poder consolidadas ao longo dos primeiros 50 anos da República brasileira, especialmente durante a República velha – e as tentativas de transformação de uma comunidade territorial, lingüística, étnica ou religiosa numa república, vale dizer, numa forma de vida política duradoura, um espaço de interação de homens capazes de deliberarem livremente e em conjunto sobre questões que dizem respeito a um destino comum (VIANNA & CARVALHO, 2002: 157). 64 Na narrativa do ex-jagunço e fazendeiro Riobaldo, o que se percebe é a manutenção do respeito à autoridade de um chefe pelos jagunços, o qual tem poder de decisão sobre o destino de seus comandados. Não há lugar para argumentação e opiniões contrárias e nem para mais de uma liderança simultânea. Há um poder hierarquizado, em que às vezes o bando de jagunços se divide em bandos menores, de acordo com a estratégia de guerra contra bandos rivais, mas sempre permanece a autoridade do chefe superior. O contexto político é colocado aparentemente de forma sutil na saga dos jagunços. Nesse sentido, é representativa a trajetória do fazendeiro Zé Bebelo que tinha clara pretensão de tornar-se deputado. Visando atingir seu objetivo, primeiro ele forma uma frente de combate aos jagunços e, posteriormente, torna-se chefe deles também. Alternam-se os papéis na dualidade jaguncismo-coronelismo. VIANNA & CARVALHO (2002), argumentam que o criador de Riobaldo Tatarana apresenta o sertão de maneira caótica, lugar onde há apenas destruição, miséria. Na verdade, não é a isso que o livro nos remete. A sensibilidade de Guimarães Rosa é aguçada, sim, e é atenta ao drama dos que vivem epidemias, fome e pobreza, como se pode apreender no trecho em que Riobaldo encontra os catrumanos e no medo destes em relação à peste que assolava os moradores da localidade de Sucruíu. Entretanto, a sensibilidade de Rosa descreve, também, o belo e multifacetado ambiente do sertão, com toda a exuberância de suas águas abundantes em muitos trechos, sua fauna, com destaque para os pássaros, e a flora. É, na verdade, um mapeamento descritivo que, com a avassaladora destruição que vem acontecendo, vai adquirindo cada vez mais importância, porque pode ser utilizado, talvez, como ponto de partida para muitos estudos ambientais sobre o cenário real supracitado. Mas isso é uma outra história... O importante, aqui, é que o olhar roseano não viu só desolação no Norte sertanejo. E só quem é nativo – ou se faz nativo pode ver o norte de Minas com tal olhar. Só quem é nativo é capaz de atribuir significados inclusive afirmativos ao significante sertão, porque o conhece por dentro. Para alguns, o sertão de Riobaldo Tatarana não é o norte mineiro, em si. Isso, por exemplo, é o que postula BOLLE (2000). Esse autor considera que, assim 65 como Os Sertões, de Euclides da Cunha, também Grande Sertão: Veredas é um retrato do Brasil. Porém, Euclides narra a guerra como uma seqüência de acontecimentos, enquanto que Guimarães Rosa focaliza os discursos que falam da guerra (BOLLE, 2000: 182). Mais adiante, voltarei a focalizar alguns aspectos analisados por esse autor. 4. 3 o signo sertão no pensamento social brasileiro Há uma tendência no pensamento social brasileiro, desde a segunda metade do século XIX, a relacionar o sertão – entendido como construção simbólica - e, consequentemente, o sertanejo, à construção da identidade nacional brasileira: Quando se tratou de buscar uma essência da brasilidade, inquestionavelmente o sertão foi a ela associado e aparece como uma idéia tão antiga quanto a própria nação. Evidentemente este fenômeno não ficou adstrito ao pensamento social; todos nós, brasileiros, desde crianças nos bancos escolares somos bombardeados por esse imaginário. Está presente na música, nas artes plásticas, no cinema, na literatura, de tal modo que, pode-se dizer, é um elemento fundamental na construção da memória nacional. (GUILLEN, 2002: 106. Grifos no original.). A narrativa romanceada do sertão brasileiro engloba figuras reais e, ao mesmo tempo, simbólicas, como a do vaqueiro e do jagunço, além das imagens de uma terra vasta e precariamente habitada e ignota, com um povo e uma cultura peculiar. Assim, essa narrativa permeia a literatura romântica, através de escritores como José de Alencar, autor de O sertanejo. Tal personagem, na ótica romântica, é visto como homem heróico. Posteriormente, influenciados pelo cientificismo, é que se estabeleceu outra representação dessas duas categorias. De acordo com GUILLEN (2000: 109), Euclides da Cunha sintetiza o sentimento paradoxal acerca do sertão: ao mesmo tempo em que era apresentado como o lugar onde “o Brasil era mais Brasil”, também se constituía num problema para a nacionalidade, na medida em que o sertanejo era o outro, a alteridade, em relação à população litorânea, civilizada 33. 33 A dualidade brasileira: sertão e litoral. A região litorânea era considerada como a região civilizada; já o sertão representava a barbárie. A esse respeito, vide VIDAL e SOUZA (1998), citada na abertura deste capítulo. 66 Capistrano de Abreu (apud GUILLEN, 2000), estudioso da história brasileira, discutiu o processo de abrasileiramento dessa sociedade. Segundo ele, é de São Paulo que parte o primeiro movimento para a conquista do sertão. De São Paulo para a Amazônia e desta para o nordeste via Maranhão, seguindo o Parnaíba até sua nascente e daí para o São Francisco. Iniciou-se, nesse trajeto, a criação de gado, acompanhando o curso do São Francisco e povoando novas terras. Na ótica de Capistrano de Abreu (apud GUILLEN, 2000: 119), a civilização nordestina se funda e se estrutura a partir das relações engendradas na criação do gado, adentrando pelo cotidiano, conformando o universo sertanejo, produzindo uma cultura material própria baseada, por sua vez, numa relação com a natureza. Essa nova civilização distancia-se da metrópole, desenvolvendo um orgulho nativista, com condutas sociais expressas por valores locais e uma ética própria. Na obra do referido autor, há uma preponderância do papel do índio na formação do povo e na construção da identidade nacional. Por esse motivo, é muito discreta a presença do escravo africano. Discordamos da posição do autor quanto ao norte de Minas. O conhecimento atual sobre o passado e a realidade regionais evidenciam a presença, crucial, de africanos e seus descendentes. É importante ressaltar que a obliteração da presença e da atuação do negro, tanto na formação do povo quanto na construção do espaço sertanejo, é um fato marcante não apenas na obra de Capistrano de Abreu. Na verdade, perpassa o trabalho de autores que, de alguma forma, pensaram o sertão. Como exemplo, poder-se-ia citar o próprio Euclides da Cunha, que pouca importância dá ao negro. Um exemplo disso é o vocabulário sertanejo de origem tapuia, que ele destaca. Se o cruzamento dos índios com os negros originou o cafuzo que, de acordo com ele, seria a base dos sertanejos de Canudos, por que houve, na obra dele, um apagamento da herança vernacular das línguas africanas? Terá sido por total desconhecimento que ele não registrou algum fragmento dessas línguas? E quanto ao escritor João Guimarães Rosa que, em sua obra, através da fala de seu personagem-narrador Riobaldo, deixa entrever seu entendimento de que a Jaíba era vazia? (ROSA, 2001: 81). Apesar de todo o conhecimento do sertão, em suas dimensões, como já foi registrado anteriormente, ele talvez não tenha tido 67 oportunidade de saber que, na Jahyba, além dos índios, já moravam quilombolas34 antes da chegada dos bandeirantes paulistas. Essa sua visão parece ter se alimentado nas memórias de uma viagem de ANJOS (1963) pela região jahybana, sobre a qual ele afirma que nada viu, além de solidão, a floresta densa e o calor escaldante. Muitas são as discussões já feitas sobre a importância do sertão no imaginário brasileiro, como síntese, fronteira, alma do Brasil e, consequentemente, pilar da formação da identidade nacional. Entretanto, ainda há muito para ser questionado e discutido. Um dos exemplos é justamente o papel dos escravos e exescravos no contexto sertanejo, com destaque para o atual norte de Minas. Esse é um assunto que foge ao escopo do presente trabalho, mas que precisa ser considerado por estudiosos de diferentes áreas. O olhar de Euclides da Cunha é o olhar do outro, ainda que sensibilizado e, dentro de seu próprio país. Acostumado à vida costeira, atribui ao significante sertão significados que remetem à concepção de atraso secular em relação ao Brasil que ele conhecia. Para ele, os sertanejos uma outra raça, adaptados à vida rude que levavam. As peculiaridades da natureza e a cultura dos sertanejos vistos por Euclides apresentam uma identidade territorial específica sertaneja. VENTURA (2000) afirma que Euclides da Cunha descreveu o sertão baiano como paisagem fantástica ou maravilhosa, que paralisa o observador, tomado por um misto de terror e êxtase, de desilusão e deslumbramento, recorrendo a uma imagem: o deserto. Era um território ainda não explorado pela ciência, que os viajantes evitavam, os cartógrafos omitiam dos mapas, isolado geograficamente e escassamente povoado. 4.4 coronelismo e jaguncismo: a dualidade fundante da república brasileira Como falar sobre o sertão sem tratar dos conceitos de coronelismo e jaguncismo? E como discutir tais conceitos sem a autoridade de Vítor Nunes Leal 34 Em COSTA (2000) encontramos o registro de que a extensa região denominada outrora de Mata da Jaíba teve sua ocupação, povoamento, prioritariamente vinculada a quilombos e, após 1940, aos afazendamentos das elites regionais. 68 (1997) e de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976); o precursor do modernismo Euclides da Cunha (2001), ainda que tenhamos ressalvas em relação ao seu pensamento; a originalidade de Guimarães Rosa (2001) e a competência analítica de Willie Bolle (2000)? Em Coronelismo, enxada e voto, escrito na primeira metade do século XX, LEAL (1997) não faz menção direta aos termos jagunço ou jaguncismo. Porém, sendo o coronelismo sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil. (LEAL, 1997: 40) Ainda de acordo com esse autor, desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema coronelista. Entre outras características ou atos afins, destacam-se o mandonismo35, o filhotismo36, o falseamento do voto37, a desorganização dos serviços públicos locais38. O coronelismo foi um fenômeno político dos pequenos municípios que, talvez, ainda guarde resquícios até os dias de hoje em alguns recantos do país. Durante a colônia, as dificuldades que encontrou Portugal em dominar e povoar um país do tamanho do Brasil, fizeram com que se fomentasse o poder e a independência dos senhores rurais que dominavam esses pequenos centros (QUEIROZ, 1976: 19). Essa estrutura política se manteve durante o império e abertamente dirigiu os destinos do país durante a Primeira República (QUEIROZ, 1976). 35 Mandonismo expressa-se na prática arbitrária de decisão sobre a vida de todas as pessoas que circundam o coronel de uma determinada localidade. 36 O filhotismo é o termo usado para identificar as práticas herdadas, pelos filhos ou até mesmo pelos afilhados políticos, dos coronéis. 37 Não se votava com autonomia e liberdade, condição necessária em um processo democrático. Os escassos eleitores eram induzidos ou até mesmo obrigados a votar nos candidatos impostos pelo coronel. 38 Com cargos ocupados por afilhados políticos dos coronéis, o que se via era a desorganização dos serviços públicos locais. Nem sempre aqueles que ocupavam esses cargos tinham sequer formação profissional e técnica para isso, o que culminava em uma prestação inadequada de serviços aos seus usuários. 69 O principal aspecto do coronelismo é o da liderança, que nem sempre é exercida pelos chefes políticos municipais. Na maioria das vezes, estes são parentes ou aliados políticos dos coronéis, uma vez que a estrutura de poder político coronelista tem suas raízes fincadas na família patriarcal que, de acordo com QUEIROZ (id.), estando em decadência em Portugal, encontrou no Brasil as condições para revigorar e perdurar: latifúndio e escravidão, que tornavam o chefe de família senhor sobre grande extensão de terra e sobre grande quantidade de gente. QUEIROZ (ibid.) descreve que o grupo familial não se limitava então aos pais, filhos, agregados e escravos; era muito maior, pois devido aos casamentos entre parentes, os troncos das famílias eram geralmente primos entre si, e, relacionados, formavam um sistema poderoso para a dominação política e econômica, para a aquisição e manutenção de prestígio e status. O indivíduo que não se achava preso e integrado numa família, muito dificilmente conseguia prosperar e adquirir seu lugar ao sol (QUEIROZ, 1976: 45. Grifos no original). Outra característica, fundamental, do mandonismo para essa autora era a vinculação entre a família extensa do coronel e seus interesses locais: O brasileiro típico, o homem bom, era o homem da família, do seu grupo familial, de sua aldeia. A autonomia do latifúndio, autosuficiente, juntamente com a liderança do chefe de família, desenvolveram o espírito local; e a política municipal girava, toda ela, em torno desses interesses locais de vários municípios.(QUEIROZ, id., ibid.). Do choque de interesses entre grupos familiares rivais, desenvolvemse lutas terríveis, situação que, em alguns locais do Brasil, como registra QUEIROZ (id.), perdura desde a fase colonial até os nossos dias. Nessa disputa, aliam-se os interesses privados aos interesses públicos, como é o caso de rivalidades entre Câmaras Municipais lideradas por coronéis diferentes, que levavam ao desmembramento de um território em dois municípios. Quanto à forma como eram recebidos os forasteiros, um exemplo localizado no norte de Minas é o que aconteceu com o fazendeiro-industrial Alfredo Dolabela (AMORIM, 2000) no município de Bocaiúva. Mesmo bemsucedido em seu latifúndio onde cultivava algodão, café, cana-de-açúcar, ainda assim não obteve aceitação por parte dos políticos do município. Para alcançar 70 seus objetivos, primeiro tornou-se presidente municipal do Partido Republicano e criou sua própria oligarquia, conseguindo nomear o prefeito Flamínio Freire e o próprio irmão Juvenal Dolabela vereador. Pelo que relata AMORIM (2000: 64), Dolabela impôs aos políticos uma tamanha violência que os líderes locais não viram outra alternativa a não ser deixar a cidade. O caso do forasteiro Dolabela, entretanto, é certamente um exemplo que não contempla a situação de forasteiros pobres que chegaram aos redutos coronelistas. Obviamente, sem poder econômico, além de não conseguirem se integrar aos grupos familiares, eles não tinham como participar da política local, ficando à margem de tudo. Como já foi discutido em QUEIROZ (1976), essa situação se repetia por praticamente todo o país. Outro dado importante se refere à maneira como, a partir do séc. XIX, eram eleitos os deputados e ao comportamento destes pós-eleição. De acordo com QUEIROZ (id.), a partir de então, passou-se à diferenciação de uma classe encarregada da política, que se destacara da classe dos proprietários rurais, que a sustentava. Essa diferenciação deu lugar ao fenômeno do absenteísmo político. Os políticos graduados, ou seja, deputados e senadores, residiam na capital e raramente retornavam a seu latifúndio, o qual era administrado pelos familiares que lá permaneciam. QUEIROZ (ibid.), registra que o absenteísmo era possível porque os políticos graduados da capital eram eles mesmos proprietários rurais; podiam não dirigir mais pessoalmente suas plantações, fazendo-o por intermédio de um parente ou de um administrador de confiança; mas suas posses vinham da terra, seus interesses eram os mesmos do coronel que o escolhia seu representante. Ao lado do absenteísmo político, havia já o absenteísmo do proprietário agrícola. O político era, então, um prolongamento do proprietário rural na cidade e na Côrte; a este prolongamento do proprietário, correspondeu a cidade como um prolongamento da fazenda. (QUEIROZ, 1976). Outras vezes, do município pulava-se para outra esfera de poder com um cargo de deputado estadual ou federal (LEAL, 1997), só retornando ao feudo político para visitar parentes, descansar ou para fins partidários. E, como já foi afirmado 71 anteriormente, a política coronelista confundia o público e o privado, com preponderância dos interesses do grupo familiar sobre os interesses coletivos 39. Outro registro que se faz é que, de acordo com Leal (1997), nem sempre os proprietários rurais eram abastados e prósperos. Muitas vezes, encontravam-se em dificuldades econômicas. Apesar disso, os roceiros40 que viviam em suas terras o vêem como homem rico, ainda que não o fosse, pois o relativo conforto em que ele vivia era inacessível ao trabalhador rural. Mesmo os pequenos proprietários rurais, frequentemente, tinham que trabalhar para o coronel . NUNES (1997) afirma, ainda, que despojados de tudo, sem acesso à informação e, na maioria das vezes, analfabetos, os trabalhadores rurais e pequenos proprietários não tinham consciência do seu direito a uma vida melhor e, portanto, não lutavam por ela. O que se presencia é que, no plano político, ele luta com o coronel e pelo coronel. Assim, os votos de cabresto são resultantes, em sua maioria, da organização fundiária brasileira. O que resta dessa estrutura não é objetivo desse trabalho analisar, apesar de sua presença anacrônica e ineficaz, porque impõe atraso à sociedade brasileira e que ainda persiste no sertão norte mineiro41. Por ora, o que importa é refletir que os votos que abasteciam esse sistema eram, muitas vezes, conseguidos através da força bruta, proveniente daqueles que se utilizavam de jagunços. O jaguncismo é, assim, a outra face do coronelismo. Os jagunços provêm, em sua maioria, de vaqueiros e outros trabalhadores rurais, mas não se resumem a isso. Se levarmos em consideração que a saga de Grande Sertão: Veredas é baseada em fatos reais, como se pode ver em o sertão rosiano em forma de labirinto é o resgate do sertão de Canudos – não como cópia daquela cidade empírica, mas como recriação, em outra perspectiva, do Brasil avesso à modernização oficial (BOLLE, 2000: 175). 39 Neste sentido, AGUIAR (2002), estudando o coronelismo em São João da Ponte, mostra a apropriação pela família Campos de todos os espaços públicos: a prefeitura, o cartório, a coletoria e a delegacia, sendo que esta é a estrutura administrativa mínima do Estado, nos municípios brasileiros. 40 Termo utilizado por LEAL (1997) para designar as pessoas que moravam nos latifúndios dos coronéis. 41 A Historiografia registra que a prática coronelista, enquanto tal, não perdurou no Brasil ao longo das primeiras décadas do séc. XX. Entretanto, há que se registrar que o sertão norte mineiro só agora começa a ser desvelado, inclusive historicamente, devido ao isolamento secular em relação às minas gerais. 72 Esse autor enquadra esse romance na série Retratos do Brasil. Nele, os coronéis, às vezes, se tornam jagunços e, como ocorre com o narrador-protagonista, pode acontecer o inverso. Herdando do pai-padrinho Selorico Mendes uma de suas fazendas, o ex-jagunço Riobaldo–Tatarana–Urutu Branco42, torna-se o fazendeiro Riobaldo e mantêm em suas terras muitos dos ex-companheiros de bando, para que possam protegê-lo em uma eventualidade. Se adotarmos a análise feita por BOLLE (2000), podemos afirmar que Guimarães Rosa dialoga com Euclides da Cunha e um dos principais exemplos é concernente à sua visão do jagunço. Enquanto o autor de Os Sertões enquadra o vaqueiro dentro do sistema jagunço, Rosa amplia suas origens. Desse modo, há na narrativa de Grande Sertão: Veredas o personagem Zé Bebelo que, além de fazendeiro e ter um certo acesso à cultura dominante, aspira ao cargo de deputado. Outro personagem ex-fazendeiro é Medeiro Vaz, que se desfaz de todos os bens para incorporar-se ao jaguncismo. A simbiose coronel-jagunço é evidente em várias partes da narrativa, podendo-se mencionar, ainda, a figura do próprio pai bastardo de Riobaldo, seu padrinho Selorico Mendes. Este não aparece oficialmente entre os jagunços, mas demonstra grande apreço por eles e os protege43. Inclusive, é ele quem desperta a admiração de Riobaldo pelo pai de Diadorim, Joca Ramiro, que é o chefe de um dos bandos. BOLLE (2000) registra também que conforme explica a autora [Walnice Galvão], com base em Oliveira Viana, a jagunçagem, enquanto exercício privado e organizado da violência, longe de ser uma exceção, é uma instituição do direito público costumeiro no Brasil. A jagunçagem representa um regime autoritário de dominação, em que os fazendeiros arregimentam seus subordinados para defesa de sua propriedade e perseguição de suas ambições políticas. O latifúndio com seu exército particular de jagunços constitui a unidade mínima44 do poder no país. [...] os detentores do poder no sertão e na cidade acabam sendo os mesmos (BOLLE, 2000: 185). Em Grande Sertão: Veredas, encontramos inúmeras reflexões sobre o ser jagunço. Entre elas, pode-se citar: 42 A mudança de nomes simboliza a evolução do poder de Riobaldo dentro do bando. (ROSA, 2001) ROSA (2001) mostra, assim, que o jaguncismo encontra-se apoiado na estrutura social sertaneja, visando a sua manutenção e preservação. 44 O latifúndio, metaforicamente, representa a célula de onde seu proprietário, protegido pelos jagunços, articula e sustenta, juntamente com seus iguais, que se espalham por todo o país, toda a estrutura política, que vai do município ao poder central. 43 73 Ah, o bom costume do jagunço. Assim que é vida assoprada, vivida por cima. Um jagunceando, nem vê, nem repara na pobreza de todos, cisco. (ROSA: 2001: 88) Falo o dito do jagunço: que eles mesmos não conseguiam saber se tinham algum medo; mas, em morte, nenhum deles pensava. O senhor xinga e jura, é por sangue alheio. (id., p. 567) (...) jagunço nunca dilata. (ibid., p.567) Em BOLLE (id.) encontramos que, através da estrutura textual de Grande Sertão: Veredas, o narrador-protagonista interage com o leitor, partilhando com ele a aprendizagem e reaprendizagem do significado da palavra jagunço no contexto político, social e econômico do Brasil. Nos trechos do discurso narrativo ficcional, citados acima, Riobaldo reflete sobre as atitudes e comportamentos do jagunço. Na primeira das enunciações citadas acima, o narrador mostra o descompromisso do jagunço com a realidade e, nos outros dois exemplos, esse descompromisso se estende até para com sua própria vida. Entretanto, esse não é o entendimento de QUEIROZ (1976) que, ao analisar vários casos em que se usou o termo jagunço em seu sentido genérico, verificou que o mesmo tem o significado de defensor valente de um chefe. Como defensor de um chefe de parentela; defensor de um messias; defensor de um coronel político; defensor de um proprietário legal ou fraudulento de terras, enfim, é sempre subordinado a alguém. Em todos os casos, têm os jagunços uma posição social inferior, em todos os casos servem a um grupo superior. Nessa seção, buscou-se discutir os signos coronelismo e jaguncismo como uma dualidade que vem co-existindo ao longo da história do Brasil. O signo coronel, com a conotação política, que lhe era atribuída, caiu em desuso com a perda da hegemonia dos pequenos municípios em relação ao governo central. Entretanto, o signo jagunço ainda se mantém. QUEIROZ (1976), afirma que são hoje chamados jagunços os mercenários que, aliciados por um proprietário legal de terras ou um grileiro, atacam moradores e posseiros, a fim de desalojá-los, mantendo, por meios violentos, uma posse real ou fraudulenta, contra a posse de fato daqueles que vivem do seu trabalho, porém não possuindo títulos de propriedade da terra. O termo incorporou-se ao conjunto que diz respeito à especulação imobiliária rural. [...] As lutas anteriores a que se associara o termo tinham sido lutas pela dominação sócio-política de uma localidade ou de uma região; e lutas pela defesa de um chefe religioso-político. A luta agora é econômica tão-somente, visando assegurar a propriedade legítima ou espúria de um grande 74 fazendeiro ou de uma empresa rural. Nesta luta, os jagunços se engajam sempre como mercenários; a luta se torna para eles um meio de vida, poder-se-ia dizer que se profissionalizaram. (QUEIROZ, 1976: 226-227. Grifos no original). 4.5 Olhares estrangeiros sobre o sertão As viagens empreendidas por estrangeiros, principalmente, ingleses, franceses, alemães, Brasil a dentro, no século XIX, atenderam a diferentes interesses pessoais ou até comerciais de seus países de origem. LEITE (1996) pontua que, como interesses de ordem pessoal que incentivaram esses estrangeiros a realizarem as viagens, encontra-se o desejo de completar estudos e pesquisas já iniciadas na Europa, tendo em vista uma área específica do conhecimento; interesses de ordem profissional e econômica; diversão, turismo e lazer ou o exercício e a pregação da fé religiosa. Quanto ao governo do país de origem, Havia um clima de incentivo e receptividade a esse tipo de empreendimento não apenas porque contribuía para o desenvolvimento científico nacional, mas principalmente porque fornecia informações preciosas sobre as potencialidades exploráveis dos países visitados. Nesse sentido, contribuiu mais diretamente, seja financiando as viagens, seja comprando, posteriormente, as coleções de espécies botânicas e zoológicas para seus museus e permitindo ampla divulgação das obras. (LEITE, 1996: 63). Pode-se concluir que os viajantes, apesar das adversidades encontradas em suas viagens, vinham bem amparados de seus países, o que facilitava o trabalho a ser feito. O principal destino dos viajantes, no Brasil, era o território mineiro. Quanto ao trajeto, com exceção de Saint-Hilaire – em sua última viagem –, Spix, Martius e Avé-Lallement, os viajantes chegaram a Minas Gerais através do Rio de Janeiro, seguindo para Vila Rica, atual Ouro Preto e que era a capital mineira na época, passando praticamente pelos mesmos caminhos. LEITE (1996) informa que Vila Rica serviu, quando menos, de ponto obrigatório de parada para reabastecimento e contatos necessários ao prosseguimento da jornada. Pelo que LEITE (id.) assinala, dos viajantes, os que chegaram ao norte e nordeste de Minas, buscando os vales do São Francisco e do Jequitinhonha, foram: 75 Saint-Hilaire, em sua 1ª viagem, sendo que dos registros feitos por ele, constam, entre outras, as atuais cidades de Januária, Montes Claros (que, na época, chamava-se Formigas), Bocaiúva (que na época era Bonfim), Rio Pardo e Diamantina (que ainda era denominada Tejuco); Johann Emanuel Pohl que também esteve, entre outras localidades, em Bonfim (atual Bocaiúva), Pirapora, Paracatu e São Miguel dos Índios ou São Pedro do Jequitinhonha; Richard Burton passou pelas localidades de Tejuco, Pirapora, Barra do Guaicuí, São Romão e Januária; Comte de Suzannet esteve em Tejuco, Grão Mogol e Araçuaí; George Gardner que também esteve em Bonfim (Bocaiúva), Formigas (Montes Claros), São Romão, Diamantina (Tejuco) e Três Barras. Há outros autores não citados por essa autora, como SPIX e MARTIUS (1976), WELLS (1886) e BERNARDEZ (s/d). O olhar desses estrangeiros apresentou a natureza sertaneja ora com atributos paradisíacos, ora como infernal (ALMEIDA, 2003). Assim, ao mesmo tempo em que o signo sertão é apresentado como sinônimo de um lugar inóspito onde a vida é difícil, por se tratar de terra pouco povoada, é, ao mesmo tempo, habitado por gente brava e destemida. Saint-Hilaire (apud ALMEIDA, 2003) é um desses viajantes que percorrem o sertão e, ao voltar para a Europa, esforça-se para se fazer entender utilizando referenciais de sua própria cultura. Utilizando-se de comparações e metáforas, ele apresenta o sertão a partir das imagens propiciadas pelos jardins europeus. Além das belezas sertanejas, Saint-Hilaire se sensibiliza com as agruras, dificuldades e a monotonia vividas pelos sertanejos. O sertão apresentava características próprias, distintas das sociedades capitalistas e industrializadas, escravas do tempo. A cultura espelhava o estilo de vida próprio do sertanejo. Como nem todos os viajantes estrangeiros tiveram a percepção de Saint-Hilaire, as imagens que estes levaram para os próprios brasileiros de outras partes do país fizeram com que o signo sertão remetesse a uma idéia de letargia social, monotonia, solidão. Porém, o mais nocivo foi a crença de que a natureza tropical devia ser tratada como um espaço de intervenção social para a implantação de nova sociabilidade (ALMEIDA, 2003). 76 4.6 Um olhar de alguém “de dentro” O sertão descrito por quem nasceu em suas entranhas adquire outra dimensão. Afinal, é o olhar de quem fala do seu próprio lugar, da sua própria vivência. Rachel de Queiroz enquadra-se aqui. De acordo com ALMEIDA (id.), a autora de O Quinze, como sertaneja, tem uma identidade social vinculada à base territorial nordestina, de práticas culturais compartilhadas, de pertencimento à uma rede de relações com o espaço e de referenciais simbólicos. QUEIROZ (1994 [1955]), em sua crônica “Sertão, sertanejos”, conta causos, mencionando os costumes, os mitos e as crenças do sertão e dos sertanejos. Nessa crônica, ela admite a multiplicidade do caráter sertanejo, que oscila entre o herói e o jagunço; o vaqueiro e o bandido; a esperteza, a capacidade de inventar e de mentir e a capacidade de sobreviver como os bichos da caatinga. Rachel de Queiroz registra tipos distintos de sertanejos é sertanejo só os do campo, da cidade não; e, o sertanejo nordestino parece ser mais seco, mais sofrido, mais perto do índio que ele, aliás, ainda é. E o homem do sertão de Minas, o homem roseano, é ao mesmo tempo introspectivo e falador, um imaginativo que procura expressar sua filosofia de vida, suas ternuras, seus ressentimentos, seu sentimento do mundo. (QUEIROZ, 1994 [1955]). Os de dentro, quando têm oportunidade de expressar seu conhecimento do contexto em que vivem, mostram a riqueza cultural, a diversidade e riqueza do ambiente em que vivem. Ambiente que está sendo devastado e devorado pelos ignorantes locais e espertos estrangeiros, haja vista a biopirataria. 4.7 Considerações finais desse capítulo O signo sertão, como qualquer signo, apresenta sua faceta significante, que é única dentro de qualquer variação da língua portuguesa, e uma multiplicidade de significados, dependendo de quem o percebe. Ao de fora, ainda que esse seja de outra parte do território brasileiro, o sertão pode ser percebido apenas como sofrimento, pobreza, estagnação, monotonia, seca, precariedade de tudo. 77 Mas quem é sertanejo - e discordando de Raquel de Queiroz, acrescento a esse grupo aqueles que vivem em contextos urbanos que se formaram nas regiões classificadas historicamente como sertão – sabe as grandes riquezas naturais e culturais do seu meio. O sertanejo, realmente, é forte, muito forte. E sua força principal é sua cultura, sendo seu traço mais peculiar a expressão lingüística, concretizada através do discurso, como acontece com todos os povos, em qualquer lugar do mundo. Mas essa força não é explícita nem é dada. É uma conquista que precisa ser feita, cotidianamente. 78 CAPÍTULO V Trilhas de Riobaldo: entre o real e o imaginário, a identidade linguística do norte mineiro? O senhor...Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. (ROSA , 2001: 39) 5.1 Realidade e ficção sertanejas: discursos que se cruzam Como já ficou evidenciado na introdução desta dissertação, a pesquisa realizada teve um caráter interdisciplinar, envolvendo conhecimentos advindos de fontes científicas que têm em comum a discussão sobre a linguagem humana, ou seja, da Análise de Discurso, da Sociolingüística e da Antropologia. Tal discussão, evidentemente, difere de acordo com o objeto principal de cada uma dessas ciências. Assim, o objeto da Antropologia não é a linguagem, mas, estando essa inserida dentro da cultura, faz parte, também, da pesquisa etnográfica. A Análise do Discurso, tanto quanto a Sociolingüística, lida diretamente com a linguagem humana, sendo que cada uma tem suas próprias especificidades. No empreendimento desse trabalho, foi preciso utilizar metodologia também interdisciplinar, ou seja, alicerçada nessas ciências. Desse modo, tanto na coleta quanto na análise dos dados foram utilizados elementos metodológicos de cada uma delas. Para realizar a análise, utilizaram-se trechos dos relatos orais, ou seja, discursos proferidos pelos senhores Joaquim Pereira da Silva 45 (in memorian), nativo e morador de Janaúba/MG; Azemar Francisco Rodrigues (87 anos) e Abílio 45 In memorian. Como já foi registrado anteriormente, no dia em que foi realizada a gravação do relato oral, o Sr. Joaquim tinha 66 anos de idade. Fica registrado, para conhecimento dos familiares e amigos do mesmo, o agradecimento por sua colaboração no empreendimento deste trabalho. 79 Fernandes (92 anos), nativos e moradores de Monte Azul/MG. Juntamente com esses discursos reais, utilizaram-se trechos do discurso fictício de Riobaldo, para fazer o contraponto. A análise inicia-se com a transcrição de um trecho do discurso do Sr. Joaquim, no qual ele relata a morte que teve aos 19 anos de idade. Nesse momento, a amiga dele, Marizete, interroga-o e ele vai respondendo: Sr Joaquim: Aí, [...] fui tocano, fui tocano. Medo, eu num tinha nada. Eu rompia de fora a fora, corage eu tinha dimais da conta. Aí, depois, foi nada. Cum pôco, os anjo vêi me buscá eu, aí a históra é bunita. Vêi pá buscá eu, mim chamô pá ir [...] os anjim do céu. Marizete: Falou assim pro sinhô? Sr Joaquim: Falô pá mim assim [...]: “Eu vô dá prazo de 15 dia para você tê o arrependimento. Se ocê num arrependê, nóis viemo te buscá. Se você tivé arrependimento da matéra, cê faz premessa cum Bom Jesus qui ocê vai vivê cum saúde na matéra!” “Ah, não, eu quero ir, eu quero ir. Eu já vivi 17 ano, eu quero ir.” Ih! Pronto! Cabô, eu fiquei. “Oh, fio, quando chegá mais próximo, você vai tê arrrependimento. Cê pode fazê sua premessa.” Então, tá. Eu fui. Quando foi outro dia, (...) os anjo vêi mim buscá e eu tô fazeno premessa pra mode vivê na matéra. “Oh, meu Bom Jesus da Lapa, se mim desse de vivê na matéra, cum meus 19 ano, eu ia cumpri a premessa [...].” Quando foi quinze dia, bá-tá-tá! Ai, agora [...], quando for 12 hora no ponto, os anjim vem me buscá. Quando foi as 12 hora, eu tava assim [...] eu caí morto (Grito). Pegou eu uns hômi fortão, grande. “Oh, meu pai do céu, tem (...) de mim!” Quando foi duas hora, as muié cumeçô a chorá. Quando chegô a hora escureceno, eu já tinha metido os pé, já tinha levantado, louvado o Sinhô Bom Jesus! Aí, eu já tava atrás de uma feijoada! Marizete: Quando o sinhô caiu, o sinhô desmaiou, que qui foi que o sinhô sentiu? Joaquim: Nada! É purque os anjo veio, matô, morreu. Marizete: Pois é, quando o sr. morreu assim, o sr. num sintiu nada não? Joaquim: Nada! Catarina: Quantas horas o sr. ficou morto? Joaquim: Uma base dumas treis hora. Catarina: Quem estava perto do sr., viu que o sr. não estava respirando? Joaquim: Tava morto, viu que eu tava morto. Quando foi de noite, eu já tinha levantado. 80 Marizete: Mas antes o sr. já tinha avisado que ia morrer, né? Joaquim: É, eu tinha avisado. Eu avisei meu povo que... Marizete: O sr. faz oração desde pequeninim? Joaquim: Desde pequeninim. Marizete: O sr. gosta de fazê oração? Joaquim: Gosto de fazê oração. Satanás, nenhum. É o que eu falei: o dia que eu morrê, Jesus falar “Fio, cê volta pra trás”, eu falo “Sr. Jesus, o Sr. num me quis, Satanás também não me quer”. (...) Risos [...] Trabaiei, trabaiei, trabaiei e nunca mais sinti nem uma dor de cabeça. Nessa sua narrativa, o Sr. Joaquim retorna ao tempo em que tinha dezessete anos de idade. Segundo ele, por essa época, aconteceu que os anjinhos do céu vieram buscá-lo, ou seja, ele iria morrer. Entretanto, tais entidades lhe disseram que, caso arrependesse de possíveis erros, continuaria vivo. De início, o entrevistado fica entusiasmado com a possibilidade de partir com os anjos, mas depois se arrepende e faz promessa46 para o Bom Jesus da Lapa47 para continuar vivo. A promessa foi cumprida quando completou dezenove anos, como ele relata na continuidade da entrevista. O discurso do entrevistado traz, em si, uma das marcas principais do imaginário sertanejo, que é o misticismo religioso. As representações religiosas quase adquirem, em sua enunciação, uma consistência real. Pode-se apreender, em sua fala, os seguintes efeitos de sentido: para ele, há as entidades representativas do bem, que o ajudam a resolver problemas, e a representação máxima do mal, a que ele nomeia como Satanás. No não-dito, está implícita a sua vontade e possibilidade de guiar o próprio destino, com a ajuda de um intermediário também sobrenatural, mediante a celebração de um trato. 46 Faz parte do misticismo propagado entre os católicos, o costume de realizar promessas com as entidades religiosas de que, caso sejam atendidos em seus pedidos, cumprirão algum tipo de acordo celebrado entre eles e a entidade em quem deposita fé. 47 Bom Jesus da Lapa é uma entidade religiosa de forte apelo no imaginário popular do sertanejo norte mineiro. O templo principal dessa entidade localiza-se no estado da Bahia/Brasil, em uma cidade que recebe o mesmo nome do santo. Essa cidade recebe, todos os anos, especialmente entre os meses de agosto e setembro, milhares de turistas religiosos de vários pontos do país, inclusive do sertão norte mineiro. 81 Observando do ponto de vista da memória discursiva, tratada como interdiscurso48, definido como todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas49 que determinam o que dizemos (Orlandi, 2001:31), pode-se perceber que o relato do entrevistado remete a construções discursivas utilizadas, cotidianamente, no meio popular do sertão norte mineiro, para atribuir significado à realidade. As construções, especificamente apreendidas em sua fala, são de cunho místico, religioso, repassadas de geração em geração, cujo cerne encontra-se no predomínio da ideologia católica na formação cultural brasileira50. No discurso fictício de Riobaldo, personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas, percebe-se, também, a presença dessas construções. Para argumentar sobre essa afirmação, utilizaremos um trecho da narrativa roseana, como paráfrase do discurso produzido pelo Sr. Joaquim, este localizado numa situação concreta, inserido fisicamente no sertão norte mineiro, na cidade de Janaúba. Apesar de ter sido estruturado por Guimarães Rosa, em um tempo cronológico anterior ao momento do relato do Sr. Joaquim, a fala de Riobaldo é aqui apontada como constituída em um processo parafrástico51 do discurso dos nativos sertanejos. Isso não quer dizer, entretanto, o desconhecimento do caráter polissêmico52 e literário da narrativa de Riobaldo, o qual é construído, inclusive, com o uso das figuras de linguagem. Riobaldo e grande parte de seus companheiros jagunços, fictícios como ele, são personagens representativos da cultura norte mineira, não obstante as inúmeras análises desenvolvidas a partir da narrativa de Grande Sertão: Veredas, da qual ele 48 ORLANDI (2001) afirma que, para que as palavras tenham sentido, é preciso que elas já façam sentido previamente. Informa, também, sobre o efeito do interdiscurso, que é preciso que o que é dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o anonimato, possa fazer sentido nas palavras do locutor. 49 PÊCHEUX (apud ORLANDI, 2001), informa que se pode distinguir dois tipos de esquecimento no discurso: um que é da ordem da enunciação, isto é; ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer podia ser outro. Este é um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele. O outro esquecimento é o ideológico, da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento, temos a ilusão de sermos a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. 50 Vide ARANHA (1996) sobre a influência dos jesuítas na formação cultural brasileira. 51 ORLANDI (2001: 36): Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. [...] Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. 52 ORLANDI (2001: 36): Na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco. 82 é o porta-voz53. Faz-se necessário esclarecer que, fazer a afirmação de que os personagens foram construídos dessa forma, não exclui a possibilidade de que seu conteúdo extrapole as fronteiras imaginárias do norte de Minas e de outro tanto do sertão, ou seja, parte da Bahia e Goiás, registrados literariamente nessa obra. Do conteúdo discursivo de Riobaldo, interessa utilizar, nesse momento, um dos trechos em que o ex-jagunço fictício tece sua narrativa entremeada de argumentos dissertativos, interagindo com um interlocutor ausente, como fica claro em Rosa (2001) o senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco com o compadre meu Quelemém; mas ele quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigindo. E para o dito volto. (ROSA, 2001: 214) Em sua fala, o personagem-narrador evidencia uma cultura pautada no misticismo característico dos sertanejos norte mineiros, como pode ser constatado em o Hermógenes era positivo pactário. Desde todo o tempo se tinha sabido daquilo. A terra dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía gados e fazendas, para lá do Alto Carinhanha, e no Rio do Borá, e no Rio das Fêmeas, nos gerais da Bahia. E, veja, por que sinais se conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? – “Ah, que essas coisas são por um prazo...Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz com alma?...”O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue certo: que foi de um homem são e justo, sangrado sem razão...”. Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos (ROSA, 2001: 424-425. Grifos no original). Nesse ponto da narrativa, Riobaldo relata ao seu interlocutor sobre uma conversa tida com o personagem-jagunço Lacrau, a respeito do pacto que Hermógenes teria feito com o diabo. No parágrafo seguinte, ele argumenta que o 53 A esse respeito, vide, por exemplo, BOLLE (2000); VIANA & CARVALHO (2002); STARLING (2002) 83 medo, que todos acabavam tendo do Hermógenes, era que gerava essas histórias (ROSA, 2001: 425). De acordo com ele, o fato fazia fato (ROSA, id.), ou seja, o medo dos sertanejos em relação a Hermógenes, chefe de um dos bandos de jagunços, é que fazia com que criassem a história de que ele teria feito pacto com o diabo. Ao fazer essa afirmativa, Riobaldo passa a impressão de que não acredita em tal possibilidade. Assim também acontece quando ele diz (ROSA, 2001: 26), explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si só, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Com essa fala, Riobaldo afirma a imanência do capiroto e nega sua transcendência, indo contra a existência física de uma entidade do mal. Entretanto, o que se percebe, no conjunto da narrativa, é o seu conflito diante da existência ou não do sobrenatural: Ah, medo tenho não é de ver a morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. (ROSA, 2001: 76) No esforço que faz para interagir com seu interlocutor, Riobaldo organiza confusas explicações para a cultura mística herdada do seu meio social. No trecho acima, o personagem-narrador constrói sua argumentação com orações adversativas, pautadas no uso de oposições binárias, as quais remetem ao conceito de identidade e diferença: é contrapondo à representação de uma idéia que ele explica outra. Para negar a existência do demônio, ele se utiliza de imagens contrárias, de antíteses. Em alguns momentos, ele se trai, como acontece em me diga o senhor: por que, naquela hora extrema, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece – vivo no momento (ROSA, 2001: 212). Nesse momento, ele se refere ao pacto feito nas Veredas Mortas/Veredas Tortas (id., ibid.). Afinal, com que diabo ele fez o pacto? Com o imanente? Com o transcendente? Toda sua dúvida, pode-se acreditar, vincula-se a essas duas dimensões da manifestação do sagrado. 84 Assim, a semelhança essencial entre o conteúdo discursivo do Sr. Joaquim, enquanto sujeito inserido na cultura norte mineira, e o discurso fictício de Riobaldo, refere-se à necessidade do conhecimento místico para explicar a realidade. Se fosse possível aplicar a técnica de flash back na vida real e, ao mesmo tempo, quebrar as barreiras entre a ficção e a realidade, poder-se-ia colocar frente a frente, como companheiros, Riobaldo e o Sr. Joaquim. Certamente, eles teriam muito o que conversar e se entenderiam bem. Isso ocorreria assim, justamente por serem ambos frutos de uma mesma cultura, a sertaneja norte mineira e suas enunciações terem como chão uma mesma formação discursiva. A diferença entre eles é apenas a de que um, o Sr. Joaquim, teve existência concreta, atuou na construção de sua própria história; e o outro, o personagem-narrador Riobaldo, apesar de sua astúcia, é fruto da imaginação, ainda que seja uma imaginação pautada na realidade norte mineira, provavelmente do século XX. Pode-se concluir isso quando se verifica que, no discurso dos representantes de Monte Azul, o Sr. Azemar e o Sr. Abílio, também há semelhança em relação ao discurso de Riobaldo. O conteúdo discursivo dos dois monteazulinos é diferente do conteúdo do discurso do gurutubano Sr. Joaquim, devido ao fato de que o relato partiu de um tema diferente. Foi solicitado a esses dois entrevistados que relatassem fatos que aconteceram no tempo do coronelismo-jaguncismo em Monte Azul. E dando continuidade à análise comparativa, partir-se-á, agora, dos relatos dos senhores monteazulinos, para depois adentrar, novamente, no espaço fictício de Grande Sertão: Veredas. Transcrever-se-á, primeiramente, um trecho da entrevista concedida pelo Sr. Azemar Francisco Rodrigues: P54- Primeiro, o sr. vai identificar o nome do senhor. E - Azemar Francisco Rodrigues 54 Para facilitar a reprodução gráfica da entrevista, será utilizado o símbolo P para pesquisador (na pessoa de Valmir Rodrigues dos Santos, assessorado pela autora deste texto); e E para Entrevistado. Agradeço a parceria do monteazulinos Valmir Rodrigues dos Santos, pesquisador voluntário e amigo, sem a qual não teria sido possível chegar aos senhores que foram entrevistados, cujos relatos constituem, juntamente com o do gurutubano Sr. Joaquim, o corpus selecionado do trabalho de campo, para ser submetido à análise. 85 P -O sr. tem quantos anos? E - Oitenta e sete, mais tá cum mês e pouco pra compretá 88. P - O sr. nasceu em Monte Azul? E – Eu nasci no Angical, cidade de Monte Azul. Meus documento é do dia 14, qui meu pai deixou, mais eu nasci dia 04 de julho de 1917. E aí, ao chegar os nove, dez ano de idade, meus avô falava o que tava acunteceno cum Donato e Chico Tele e eu, minino, ôvia. P – Certo. Isso aí era 02 bando, né? E – É. P – Era dois bando de cangacero, né? Que ficava brigano, é... O Donato é que tava brigano pelo poder, pra ficar no poder. E – É, pelo poder. P – E o Chico Tele queria tomá o podê. E – Chico Tele não quiria tomá o podê. Tele era um homi direito, mais muito valente. Então, alguém contou para mim que Chico Tele teve os pais dele, morô vizinho cum meu avô. O pai dele chamava Pedro Tele. Meu pai... E era o professô, ensinava leitura pro povo na época. Meu pai era minino. E depois, Francisco Teles de Menezes, falado Chico Tele, foi pra poliça lá naquela cidade que era a capital de Minas... P – Que era capital de Minas? Diamantina? E – Ouro Preto. E veio para Tremedal como sargento. E ficou aí. O chefe daqui era Donato e ele era unido com Donato. Mas... me falou alguém, como subrinho de Donato, Migué Dom, que... Migué Dom não falô, mas outros falaro... que Donato falô: “Ocê sai da poliça, dêxa de ser sargento e eu lhe dô, eu lhe arrumo a Coletoria Estadual procê trabaiá”. Existia naquele tempo, a Coletoria Estadual e ele foi trabaiá. Mais acunteceu que Donato, naquele custume dos coronéis antigo, duas pessoa que tava vingano, um rico cum outro moreno, pobre, preto. E Donato quis dá a questão e foi falá cum coletô Chico Teles e foi fazê a transferença, dano o direito para o rico. Aí, o Chico Teles, conheceno das lei e da natureza de sê direito, falô: “Eu num posso fazê isso.” Aí, encrencô, encrencô... E Donato increspô mais ele, certamente cumeçô a persigui. E aí ele fez a política contra o Donato. E argumas pessoa impurtunô ele e ele fez a política cum algumas pessoa da cidade, cumu João Gome, tio do Levi, acumpanho Chico Tele. Inclusive, Levy Souza e Silva era moço novo, 15, 16 ano, a tendência de valentia, né? Acompanhô o tio que criô, qui ... (pausa). Os pais morrero e eles ficaro criança. E aí, Donato atacava Chico Tele para podê acabá cum ele pá ficá no podê; Chico Tele teve a sorte de Donato não matá ele. Eu, como criança, ainda criança, ôvi falá 86 dele. Veio, num sei daonde, um delegado regional e cumbinô cum Donato e foi na casa de Chico Tele ... (...). Chamô Chico Tele, dizendo que Donato que mandô para reconciliá e acabá cum a cunfusão. Mais aí, as pessoa que tava cum Chico Tele, certamente num era bobo, disse: “Cê teve cum Donato”. Por não haver necessidade, para atender aos objetivos do presente trabalho, de se transcrever todo o relato, far-se-á um recorte do mesmo, passando, então, para o trecho em que o entrevistado narra o assassinato de Arabel Gomes: E – Chico Tele cumeçô a fazê política contra Levi. E já existia Arabelo, no Mato Verde, junto cum outro cumpanhero lá. E Levi... P – Arabel era companheiro de Chico Tele... E – Arabelo era pessoa de Porteirinha e manifestô muita valentia de fazê coisa que num pricisava. P – Ele tinha um bando, né? E – Em Porteirinha. E tinha um hômi muito pirigoso que morreu aqui no tempo de Donato e pirsiguia Levi e quiria matá Levi. E esse homi Arabelo matô ele. Veio pra aqui, daqui foi pra Mato Verde. (...) A poliça foi no Mato Verde e prendeu Arabelo e trouxe pra cadeia aqui. E depois, diz, foi tirado da cadeia meia noite e levô pra fazenda de Chico Tele e lá a poliça matô ele. P – Amarrou ele, né? Dentro da cisterna, né? E – Sabe o que é nó de porco? P – Sei. E – Tinha uma corda no pescoço dele. Dependurô. O soldado ... dizem! Um soldado puxô de lá, outro de cá, mais antes de morrê, aquele majô Lorival foi imbora cum aquela poliça e veio outro, aspirante. Depois, Levi chegô de avião e panhô o povo dele aí e foi direto lá na cisterna. Tirou e levô pra praça. Foi 03 de outubro? P – 12. E – 12 de outubro, em frente o cemitério. E diz que lá cortaro, tiraro os rim, tava podre. E sepultô. A partir desse ponto da entrevista, o Sr. Azemar prossegue relatando algumas peripécias de Arabel, personagem real da história da microrregião sertaneja que compreende, atualmente, os municípios de Monte Azul, Mato Verde, Bonito de 87 Minas, Porteirinha e Espinosa, no norte de Minas Gerais, Brasil. Percebe-se, ao dialogar com moradores antigos de Monte Azul que, como é comum acontecer em casos de assassinatos cujos responsáveis não são claramente identificados, tal personagem tornou-se quase uma lenda local. Para alguns, ele é herói, para outros, bandido. A avaliação do seu caráter parece estar relacionada ao grupo político ao qual quem avalia esteve ligado. Prosseguindo o registro de parte dos discursos dos entrevistados monteazulinos, para análise comparativa com o discurso de Riobaldo, passa-se ao relato do Sr. Abílio. Foi selecionado o trecho em que esse entrevistado narra uma briga entre bandos de jagunços, ocorrida em Monte Azul. P – Aí, eu queria que o sr. contasse, também, essa história aí, cumé que foi que tinha um bando que tava brigando um cum outro e tinha uma turma lá em cima da igreja. E – É, na torre da igreja... P – Conta aí, cumé que foi a briga... E – A briga cumeçô foi na praça aí. Dia de Sábado. Então, tinha um delegado que tinha aí que tava quereno formá de Donato mais finado Chico Tele. Formou a briga aí, mandaro um delegado formado averiguá eles, ajeitá eles. P – Eles tava brigano por causa de quê? E – Uá, política. Cada um queria tomá o podê. P – O Chico Teles era oposição. Donato é que tava no podê, né? E – Então, moço. Então foi dia de Sábado, foi... O delegado entrô na casa de Quinca Tele, Henrique Teles. Essa casinha onde tá o prédio... Então, tava aí, morava aí... O povo achô que ele tava pro lado de Donato e mataro o delegado lá dentro. Quando mataro o delegado, a poliça, a cadeia era aí mesmo. O sargento falou: “Ó, falaro que mataro o delegado agora. Mete fogo nesse povo aí”. O sargento era o sargento Aprijo. Meteu bala. Quando meteu bala, eles também metero fogo na poliça. Encerrou o pau aí. O sargento falô: “Pode levantá que eles quebraro o braço aqui”, o sargento, sargento Aprijo. Então, a poliça avançou. Zé Novais, um soldado valente aí, meteu o fogo no... Matô (...) Tiraro o revólve dele. O revólve quebrou um fuso, um negóço do revólve na mão dele (risos). 88 P – Nessa época, foi uma briga danada, né? E – Aí agora, começou, durou treis dia e treis noite. P – E morreu muita gente, assim? E – Quá, num morreu quase ninguém, não. Foi só atirano à toa. Nesse tempo, morreu só esses dois aí. P – Esses três dias, o povo ficou tudo dentro de casa, né? E – É, sem água, sem nada, num pudia sair. O povo lá em casa...nós morava nessa casinha de Alice, aí, onde que fica essa casinha de Alice. Aí mamãe falava, “num vai panhá água na bica, não, que a água tá invenenada, pôs veneno pá matá o povo”. Então, nós foi lá no rio onde tinha uns coquero, moço, nós brincava no areião. Fui desceno essa rua aí, fui lá no rio (...). Furaro a lata na minha cabeça. O tiro veio: Tin... Eu fui catano a água, tornaro atirá na lata na minha cabeça (...). Eu passei ligêro, cheguei em casa e... mamãe bebeu água, todo mundo bebeu. Moço, mas eu num esquici mar nunca. Mês perto de agosto, foi que deu uma luzinha d’água, todo mundo encheu os pote, sinão ia morrê muita gente. Bala tava freveno aí. Bala pra todo canto... Dentro do mercado, moço, o povo endoidô lá. Lá mesmo tinha um irmão do finado Tonim, meu padrasto, que tinha vindo vendê uma farinha lá. Largou lá, moço, ficou treis dias lá, ninguém mexeu cum nada. P – Tinha muito cangacero de um lado e do outro? E – Tudo intrincherado dento da casa. A poliça atirano de um lado, eles atirano do outro, nesse canto aí. Eles atirava pra lá e eles atirava pra cá. P – Eu falo assim, esses cangacero brigava direto, constantemente tinha briga? Confusão? E – De vez em quando tinha briga, mais era eles mesmo lá, uns cuns outro. Nesse tempo, eles ficou tudo intrincherado. Ninguém via nada, não. Só via bala zoano. Entre essa briga dos bandos de jagunços monteazulinos com a polícia local e a jagunçagem roseana, as semelhanças não são meras coincidências55. A narrativa fictícia do ex-jagunço e fazendeiro Riobaldo é tão parecida com os fatos 55 Um dos confrontos entre jagunços e polícia, descrito na saga de Riobaldo, situa-se nas proximidades de Monte Azul (ROSA, 2001: 81-85). 89 acontecidos em Monte Azul, que só com esforço é possível distinguir o limite entre a realidade e a ficção. Para exemplificar essa afirmativa, registra-se, também, um trecho da saga dos jagunços roseanos. Com a palavra, Riobaldo, ex-Tatarana: Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. [...]passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! – nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: [...] A ser que aqueles dias e noites se entupiram emendados, num ataranto, servindo para a terrível coisa, só. Aí era um tempo no tempo. A gente povoava um alvo encoberto, confinado. [...] Se deram não sei quantos mil tiros: isso nas minhas orelhas aumentou – o que azoava e zinia, pipocava, proprial, estralejava. Assentes o reboco e os vedos, as linhas e telhas da antiga casarona alheia, era o que a gente antepunha defesa. [...] Mas, então, a soldadesca tinha vindo, alcançada, estavam chegando? Era. Era! Remexendo um rebuliço, de nós todos, mesmo porque os mais não conheciam aquele motivo, de nada não soubessem o tencionado. Os praças? O tiroteio deles, pegando os hermógenes de supetão, de surpresa bruta, de retaguarda. Os tiros, que eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... a bala: bá!... – desfechavam com metralhadora. (ROSA, 2001: 361-372. Grifos no original ). Nesse trecho de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo narra a luta ocorrida, como já se sabe, ficcionalmente, na Fazenda dos Tucanos, entre o bando de jagunços liderado por Zé Bebelo e o bando de Hermógenes e Ricardão. No decorrer da luta, entra em cena os soldados, os quais para ali se dirigiram com o objetivo de destruir os jagunços. É interessante registrar a observação feita por Riobaldo, na qual ele deixa entrever uma identidade entre os bandos rivais e uma diferença destes em relação à soldadesca. A cena é a seguinte: um homem, Rodrigues Peludo, do bando de Ricardão e Hermógenes, levanta a bandeira branca em nome dos companheiros e se dirige, com toda confiança, em direção ao bando de Zé Bebelo, sendo que este último responde com outro gesto de igual teor. Conforme relata Riobaldo (ROSA, 2001: 375): no assim, eles obedeceram, tanto um, tanto o outro. Mas estavam muito armados. Momentos que foram, eu louvei a coragem calma daqueles dois, que de qualquer longe recanto um soldado talvez estivesse em poder de derrubar por belprazer. Porque os soldados não pertenciam nessa cerimônia. (ROSA, 2001: 375) 90 Nota-se que os jagunços, ainda que adversários, tinham confiança uns nos outros em determinadas situações, pelo fato de terem regras em comum, terem uma identidade comum. Entretanto, não tinham o mesmo sentimento em relação aos soldados, por serem as regras destes diversas das regras daqueles. Os soldados não respeitariam a bandeira branca, por serem eles a alteridade naquele contexto. Estavam lá como inimigos dos dois bandos. Em Monte Azul, de acordo com o relato dos srs. Azemar e Abílio, os fatos se passaram de maneira às vezes semelhante e às vezes diversa da narrativa fictícia de Riobaldo. Na antiga Tremedal, também há confronto entre os bandos. Entretanto, as regras não são as mesmas dos jagunços da ficção, devido ao fato de que estes não são donos da sua própria vontade, obedecem ordens dos coronéis. Assim, impera o conflito, até às últimas conseqüências, entre aqueles que disputam o poder. O grande exemplo é o assassinato não esclarecido de Arabel, como já registrado anteriormente. Se as regras são diferentes, qual é a semelhança? A similaridade está, por exemplo, na luta real, com duração de três dias entre bandos de jagunços e a polícia, e que causou pânico em toda a população, a qual ficou trancafiada em suas casas. Para dar continuidade à análise, retoma-se o contraponto entre o discurso do quilombola gurutubano sr. Joaquim e o discurso do personagem-narrador Riobaldo, ex-Tatarana. A análise empreendida deixa pistas: a semelhança de conteúdo entre o discurso real dos entrevistados e o discurso fictício de Riobaldo. Da boca do representante do povo secularmente estabelecido no norte de Minas, os quilombolas gurutubanos, sai o discurso que evidencia um lado fundamental da cultura sertaneja: o misticismo, a crença no sobrenatural, no poder que as forças invisíveis têm sobre sua própria existência. Nas páginas de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo anuncia ao mundo sua cultura assentada no misticismo e em valores sertanejos. O personagem-narrador pontua toda sua narrativa com reflexões sobre a não-existência transcendente de uma entidade representativa do mal. Entretanto, ele evidencia seu dilema por não ter certeza do que afirma ou nega. No dito ou no não-dito, no não-assumido publicamente, ele denuncia sua origem calcada no sertão norte mineiro. 91 Para evidenciar ainda mais essa afirmação, far-se-á, também, uma breve análise comparativa de alguns aspectos morfossintáticos e semânticos, detectados tanto na fala dos norte mineiros entrevistados quanto na fala de Riobaldo. Pode-se afirmar que os elementos lingüísticos que compõem ambos os discursos analisados nesse trabalho, sejam os reais, seja o fictício, localizam-se em um mesmo contexto cultural: o norte mineiro. Para compor a fala dos seus personagens, o autor de Grande Sertão: Veredas utilizou-se, além de recursos literários como, por exemplo, as figuras de linguagem, entre outros, de elementos lingüísticos presentes na fala de sertanejos nativos norte mineiros, nascidos nas primeiras décadas do século XX. É possível constatar tal afirmação, comparando-se um corpus extraído do relato oral de um dos entrevistados, o Sr. Joaquim, com alguns fragmentos do livro supracitado. Essa comparação terá como base algumas construções semânticodiscursivas e morfossintáticas. Extrai-se, do discurso do Sr. Joaquim, o seguinte fragmento: Gosto de fazê oração. Satanás, nenhum. É o que eu falei: o dia que eu morre, Jesus falar “Fio, cê volta pra trás”, eu falo “Sr. Jesus, o senhor num me quis, Satanás também não me quer” (...) Risos (...) Trabaiei, trabaiei, trabaiei e nunca mais sinti nem uma dor de cabeça.(Sr. Joaquim)56 Reforçando que, sem desconsiderar as diferenças que há entre um discurso pensado à luz da poesia e outro transcrito tal qual a oralidade, podemos perceber semelhanças consideráveis entre alguns trechos do conteúdo narrativo de “Grande Sertão: Veredas” e o discurso do senhor Joaquim. A análise comparativa entre os dois comprova a hipótese de que o discurso de Riobaldo é o discurso de um autêntico norte mineiro. Essas semelhanças vão desde as peculiaridades gramaticais, morfológicas e sintáticas, facilmente identificáveis, às peculiaridades semântico-discursivas, que só são mais claramente percebidas pela intuição do leitor/falante. Quando o sr. Joaquim diz Gosto de fazê oração. Satanás, nenhum., o que temos é a essência do trecho narrado por Riobaldo “Deus é paciência. O contrário, é o diabo”(p.33). Assim como vemos a separação entre o bem e o mal, do imaginário coletivo, no discurso literário, também a vemos na transcrição da fala do sr. Joaquim. 56 Trecho da entrevista , já mencionada anteriormente, realizada com o gurutubano Sr. Joaquim, na cidade de Janaúba/MG, no dia 07/09/2005. 92 Ambos os sertanejos separam a idéia do diabo e de Deus e as deixam lado a lado. Essa mesma idéia é ainda mais clara no trecho: Estremeço. Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. [...] Tendo Deus, é mais fácil se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. (ROSA, 2001: 76) Interessante ressaltar o discurso de cunho barroco das duas falas aqui abordadas. O senhor Joaquim “negocia” com Jesus um lugar no céu depois da morte, com ironia e deboche: Falei “Sr. Jesus, o senhor num me quis, Satanás também não me quer”. [...] Risos [...], como faz Riobaldo ao expor sua fé dentro da própria crença no diabo: “À fé, que fiz. Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei” (p. 570). Saindo do plano do discurso, mas pensando em sua estrutura, percebe-se também a presença de uma linguagem predominantemente fática seduzindo o interlocutor: “é o que eu falei”, da fala do senhor Joaquim e o “Hem? hem? O que mais penso, texto e explico”.(p. 32) “E Zé Bebelo perguntou, impondo ordem de resposta: que mandatela eles traziam?” (p.375). Nesse trecho percebemos ainda uma livre transição entre discurso direto e indireto mas, com clareza no que diz respeito à identificação das vozes por parte do leitor. O mesmo acontece na fala do senhor Joaquim: é o que eu falei: o dia que eu morrê, Jesus falar “Fio, cê volta pra trás”, eu falo “Sr. Jesus, o senhor num me quis, Satanás também não me quer. Alma dele estava um breu. Mostrava. E, agora, pegava (p.30). A presença da pontuação, na construção roseana, impõe a um tempo um ritmo próprio e mesmo uma organização sintática original e única em nossa literatura, mas o interessante é observar que encontramos, salvas as diferenças já apontadas, pertinentes ao fato de ser o discurso do senhor Joaquim uma transcrição, um ritmo bastante próximo. Percebe-se, no trecho acima exposto, como aparece a expressão “Mostrava”. Essa expressão se refere a um termo de um outro período, o que faz parecer que falta algo, é um meio termo entre o deslocamento de um termo sintático, ou desorganização da ordem canônica da língua, e uma elipse ambígua. Ambígua 93 porque alguns falantes podem intuir que se mostrava a alma ou o breu da alma, e ainda podem outros leitores não perceber tal elipse. O mesmo vale para Gosto de fazê oração. Satanás, nenhum, da fala do Senhor Joaquim. Que inferências podemos fazer de Satanás, nenhum? A expressão, como a de Rosa, há pouco comentada, traz um referente impreciso e também aparece isolada dos outros períodos, a julgar pela entonação. A elipse pode aparecer numa interpretação do tipo: satanás não é nenhum, ou ninguém. Mas, certamente, haverá falantes que não perceberão tal elipse. Assim, podemos afirmar que, na análise desse corpus coletado na fala do sr. Joaquim, já podemos ver quão próximo está a sua fala e a de Riobaldo, no que se refere à construção morfossintática, à organização canônica que acaba por definir a organização do pensamento e, principalmente, no que se refere ao discurso, mostrando assim a identidade de Riobaldo como a de um genuíno norte mineiro. 94 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas trilhas lingüístico-discursivas de Riobaldo, personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas, há semelhanças com a identidade lingüístico- discursiva do sertanejo norte mineiro? No confronto entre a fala do nativo e morador desse contexto, nascido nas primeiras décadas do século XX, e a fala fictícia de Riobaldo, poderiam ser evidenciadas essas semelhanças? Na busca de respostas para essas indagações, esta dissertação teve como objetivo contrapor a fala de Riobaldo com a fala de moradores do sertão norte mineiro, para verificar a possibilidade de identidade entre ambas. Definiu-se, assim, como objeto de pesquisa, a identidade lingüísticodiscursiva do norte mineiro, tendo como contraponto o discurso fictício de Riobaldo. Por ser um objeto interdisciplinar, fez-se necessário buscar a compreensão do mesmo na intersecção de campos teóricos múltiplos, ou seja, da Antropologia, da Sociolingüística e da Análise do Discurso. A construção do arcabouço teórico pautou-se pela discussão dos conceitos de identidade, língua e discurso. Quanto à identidade, concluiu-se que, trabalhar com esse conceito, é operar com um termo que se encontra sob rasura, devido à crise posta pelo desmonte da sociedade contemporânea, cuja característica fundamental se assenta na articulação da oposição global-local, ou seja, na universalidade e na singularidade. Nesta dissertação, a consideração de tal realidade a respeito do campo teórico da identidade, evidenciou que o mesmo não é algo posto, fixo, imutável, inquestionável. Pelo contrário, trabalhou-se com a perspectiva de que as identidades são fragmentadas, múltiplas, cambiantes, multifacetadas, por serem produtos de significação e representação culturais múltiplos. Entretanto, essa evidência não impossibilitou a discussão da identidade lingüístico-discursiva, no contexto do sertão norte mineiro, viabilizada na interface de campos teóricos que investigam, cada um a partir de suas próprias especificidades, a linguagem humana. Esse empreendimento interfacetado possibilitou a visualização de que a identidade, cujo processo de construção acontece sempre em um espaço 95 complexo e múltiplo, alia-se a outros conceitos, como a representação e os sistemas classificatórios. Além disso, a identidade só existe a partir da diferença, da alteridade: não existe o eu sem seu espelho, sem o outro. E é interessante recordar, também, que tanto a identidade quanto a diferença são atos de criação lingüística. Recortando-se, dentro do campo discursivo sobre identidade, sua faceta cultural e, dentro desta, a lingüístico-discursiva, percebe-se que ambos os termos se situam dentro de cadeias de significação ou diferenciação semânticas. Ao trabalhar com esses campos, vê-se que eles são constituídos a partir de sistemas classificatórios, cujo exemplo são as oposições binárias. Estas, inclusive, possibilitam a compreensão de diferenças entre pares opositivos, sendo exemplo o caso dos mineiros e norte mineiros. Em Minas Gerais, há uma realidade cultural dual. De um lado, está a cultura mineira, com sua origem na exploração do ouro. Do outro, está a cultura do norte sertanejo. Nessa região, denominada outrora de Currais do São Francisco, a base de sua cultura deu-se a partir do amálgama secular entre quilombolas, índios, bandeirantes, vaqueiros, fazendeiros. A riqueza cultural dessa região, que inclui entre seus vários municípios Janaúba e Monte Azul, escolhidos para o trabalho de campo, como já foi exposto anteriormente, vem conquistando o interesse de pesquisadores. Essa riqueza se manifesta, também, no conteúdo lingüístico-discursivo dos norte mineiros. No entanto, para os outsiders mineiros prevalece a ilusão de sua superioridade, inclusive lingüístico-discursiva. Para eles, no norte sertanejo está a alteridade falante do português que apresenta erro lingüístico e fere seus ouvidos de mineiros. Ainda que cada região comporte suas próprias peculiaridades culturais, inseridas aí, obviamente, as lingüísticas e discursivas, podendo-se tomar, como exemplo, a pronúncia do r pós-vocálico pelos moradores de Poços de Caldas, não se conjectura que a fala dos nativos ou residentes em locais mais ricos economicamente possa ser a alteridade. Pelo contrário, falantes nativos de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte se consideram como a referência da identidade lingüística do país. Os mineiros que falam variações lingüísticas semelhantes àquelas dos nativos de tais cidades, manifestam que está no norte mineiro a diferença lingüística em relação às minas gerais. Desse modo, pode-se 96 concluir que, no contexto cultural dual da sociedade mineira, há fricção entre as identidades lingüísticas e culturais dos mineiros e norte mineiros. Sendo que a discussão sobre identidade e, consequentemente, sobre diferença, situa-se sempre em um contexto sócio-histórico; não acontece de forma ingênua e envolve relações de poder, há que se concluir que a classificação binária de certo e errado, no que tange às variações lingüístico- discursivas em Minas Gerais, está a serviço da manutenção de uma realidade que interessa a apenas um lado: o dos mineiros. A pretensa superioridade dos mineiros tem servido, historicamente, por exemplo, para que os recursos financeiros do estado sejam investidos, quase totalmente, em seus municípios, o que gerou a disparidade na qualidade de vida entre as minas e o norte de Minas. Nesse cenário de desigualdades sócio-econômicas seculares, surgiu uma obra que se tornaria um clássico da literatura mundial. Grande Sertão: Veredas, que abre as portas da história política e cultural do sertão norte mineiro para todo o mundo. Sem dúvida alguma, o que mais tem chamado a atenção dos leitorespesquisadores dessa obra, é a singularidade de sua construção. Com um discurso pautado no imaginário e religiosidade popular, Rosa deu voz ao seu maior personagem, o fazendeiro ex-jagunço Riobaldo, para que este narrasse suas peripécias e as de seus companheiros. Para dar veracidade à sua história, o narrador lança mão, entre outros recursos, da variante lingüísticodiscursiva falada no sertão norte mineiro de então, ou seja, no auge do coronelismo, com o léxico, construções sintáticas e outros aspectos gramaticais que a caracterizam. A análise empreendida, no contexto dessa dissertação, confrontou trechos de discursos orais de nativos do sertão norte mineiro, com idade entre 66 e 92 anos de idade, moradores das cidades de Janaúba e Monte Azul, com trechos da narrativa de Grande Sertão: Veredas. O resultado dessa análise aponta para a convergência entre os dois discursos, ou seja, o real, colhido junto aos entrevistados, e o fictício, registrado na fala literária do personagem-narrador Riobaldo. De um representante dos quilombolas gurutubanos, uma das populações tradicionais norte mineiras, mas que foi obliterada até mesmo por Guimarães Rosa, 97 a surpresa: em seu discurso, gravado em entrevista no dia 07 de setembro de 2005, em sua residência no Bairro Santa Cruz, município de Janaúba, portanto, em pleno século XXI, a presença de um elemento fundante do discurso de Riobaldo, ou seja, o misticismo religioso. Relatando algum problema de saúde que teve ainda na adolescência, aos 17 anos, ele afirma que entidades religiosas, anjos, o teriam vindo buscar. Além dessa referência mística, ele fala também de acordo (promessa) que fez com o Senhor Bom Jesus da Lapa, para curá-lo, e de um possível corpo fechado que teria, o que remete ao possível pacto de Riobaldo Tatarana com a entidade do mal, cujo campo semântico é vasto na narrativa. Do discurso do Sr. Joaquim foi retirado, para análise, o conteúdo místico, dada a quase obviedade de semelhança entre o mesmo e o discurso de Riobaldo. Este passa grande parte da obra negando a existência daquele ou daquilo de quem ele registra tantos nomes retirados da cultura popular. Nos discursos dos monteazulinos entrevistados, o conteúdo aponta para a possibilidade referencial da saga dos jagunços de Grande Sertão: Veredas, por ter sido a arena política, durante muito tempo, onde lutaram, até com derramamento de sangue, grupos liderados por coronéis locais. Desse modo, ambos os discursos apontam, cada um à sua maneira, para a possibilidade de que Riobaldo represente a identidade lingüístico-discursiva do sertão norte mineiro, considerando o período cronológico localizado nas primeiras décadas do século XX, quando o coronelismo imperava livre em Monte Azul e arredores. É importante registrar que a análise do discurso, especialmente do Sr. Joaquim, em tendo como contraponto o discurso de Riobaldo, não se deteve apenas no aspecto do misticismo. Foi empreendida, também, uma breve análise morfossintática, na qual foram constatadas semelhanças em relação à construção do discurso de Riobaldo. Enfim, pode-se afirmar que ambas apontam para o fato de que o discurso textualizado de Riobaldo tem suas raízes fincadas em elementos lingüístico-discursivos ainda presentes na variante lingüística utilizada por norte mineiros. Aqui a discussão acaba? Aqui, a discussão acabada? Aqui a pesquisa não acaba, porque o véu da identidade lingüístico-discursiva do sertanejo norte mineiro apenas começou a ser levantado. O presente trabalho é um convite para o adentramento na pesquisa desse componente cultural do contexto sertanejo norte 98 mineiro. Sem dúvida alguma, a cultura e a história política dessa região, imortalizadas literariamente no discurso de Riobaldo, nas páginas de Grande Sertão: Veredas, projetam o próprio Brasil para além de suas fronteiras. E reforça ainda mais a tese de COSTA (2002): Minas Gerais é o coração do Brasil e não existe Minas sem seu Norte sertanejo. Devido à importância do objeto dessa dissertação, ou seja, a identidade lingüístico- discursiva do norte mineiro, inserida no conjunto dos estudos científicos que estão desvelando, tanto histórica quanto culturalmente, essa porção do território sertanejo, recomenda-se outros estudos que favoreçam o aprofundamento e uma melhor compreensão desse objeto. Entende-se que é pertinente, na realização de tais estudos, a utilização do conceito que originou-se no processo de construção do presente trabalho, quer seja, o de fricção identitária, para elucidar, por exemplo, como se processam as relações linguístico-discursivas entre os componentes da dualidade cultural mineiros e norte mineiros. 99 BIBLIOGRAFIA AGUIAR, Cynara Silde Mesquita Veloso de. Coronelismo em São João da Ponte – 1946-1996. Montes Claros: UNIMONTES, 2002. ALMEIDA, Maria Geralda de & RATTS, Alecsandro JP. (orgs). Em busca do poético do sertão: um estudo das representações. In: Geografia: Leituras Culturais. Goiânia: Ed. Alternativa, 2003.p. 71-86. AMORIM, João Roberto Drumond. Oligarquias, Coronelismo, Caciques e Populistas. Montes Claros: Unimontes, 2000. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. ANJOS, Cyro dos. Explorações no Tempo: Memórias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. 2 ed. 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Pôr-do-sol do sertão norte mineiro: o entardecer encantado do norte de Minas. Foto tirada dia 28/01/2008. 111 Fig. 7. Lâmpada de azeite, feita de argila, por quilombolas gurutubanos. Janaúba/MG. Foto tirada em 07/09/2005. 112 Fig. 8. Planta que, supostamente, deu nome à cidade de Janaúba. Foto tirada em 07/09/2005 113 Fig. 9. Foto do Sr. Joaquim (terceiro da esquerda para a direita), entrevistado, neste trabalho, ao lado de sua esposa. Foto tirada no dia 07/09/2005.