Untitled - Jornal de Poesia

Transcrição

Untitled - Jornal de Poesia
© Blacktown Hospital Bed 23, Floriano Martins, 2008, 2013
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BLACKTOWN HOSPITAL BED 23
2008
Como um tambor a voz daquela mulher repetia a palavra nurse no leito vizinho
ao meu. A cortina que nos separava já de todo vencida pela insistência de sua
evocação. Impossível que a enfermeira não a escutasse. A voz retorcendo a
palavra de tal modo que assumia uma abusada floração de sentidos e timbres
sombrios. A noite multiplicada em cenas e vozes dilacerou a dimensão daquele
hospital em Sidney. Este é o poema escrito em nome de todas elas.
1.
Põe a mão na água.
Meu coração está profundo,
e a cama soa como o martelo de um deus.
Eu sei o caminho.
O chão disfarçado com olhos de chumbo.
O rádio longe tossindo desastres climáticos.
Oh por favor, põe a mão na água.
Traga os lagos de volta.
Eu não tive tempo de rever todos os planos.
Eu sei o caminho, porém os mapas não me reconhecem.
Põe a mão no fogo.
Eu quero dormir no fogo.
Por favor, cubra meus olhos com cinzas.
Brilho brilho brilho, meu céu quer seu cachimbo.
Eu tenho uma imensa chaga, porém meu corpo se arrasta lento.
Identifico as línguas em que me falas.
Todo o meu cansaço se agita.
Meu coração está voltando.
Põe a mão na água, na maldita água.
Eu sei o caminho.
Eu sei.
2.
Com o céu dobrado em quatro peles,
desce pelos requintes de uma dor que se repete:
música de exaustão,
limite de trabalhos corrosivos,
sem que houvesse aprendido a soletrar o mundo razoável.
Desce acrescentando um rio em cada contração,
um lar de gemidos renomeados pela ânsia.
Eu sei como livrar-me do feitiço.
A estranha mulher a ler no fogo o livro por ser escrito.
A cama desgovernada nos lábios da noite.
Ela em súplicas: ela em lágrimas: ela em mim.
Eu sei como livrar-me.
Um sonho agendado ao pé da aflição.
Eu quero o meu terço de areia,
o mato crescendo por dentro dos truques abandonados.
Ela em quatro peles deslacrando enigmas.
Eu beijo a terra seca, a árvore queimada.
Meu nome se perde em suas vísceras.
O feitiço está escrito em algum lugar.
Com seu ofício de dobrar-me,
a dor não pára de cuspir um milagre áspero de fendas.
3.
Ela me diz os nomes que eu não deveria ouvir,
talvez para que eu saiba por onde começar a morrer.
E me traduz um delírio aos bagaços em meio à dor incessante.
Masca as mesmas palavras que talvez sejam uma só.
Eu não sei como chamá-la.
A cama desliza por uma savana de cadáveres.
Tantos seres iguais a nós que nos desconhecemos.
Um verbo suspenso extravia os demais.
Multidão a repetir-se em uma acústica de desmaios.
Minha carne se desfaz profundamente.
Sou o nome que me usa para afastar-me de mim.
Sequer dorme um instante para que eu reze em silêncio.
Necessito um abismo com que estancar a dor.
Respiro areias escaldantes,
terra inflamada com acordes fatais,
costelas empilhadas como facas.
Esmero de cortes de um pulmão a outro.
Ela me diz as façanhas que devo decifrar,
a hora provável em que o medo entra em declínio.
Eu não estou bem certo de entendê-la.
Não a escuto nem sei quantas são.
O hospital com seus corredores prolongados dentro de mim.
O meu peito queimando umas últimas árvores.
4.
Uma outra dor vem confundir-se com a tua,
por entre migalhas da escuridão
e pequenos golpes na memória de minhas visões.
Não te cansas de rasgar o ventre do mesmo mantra.
O peixe dilacerado em sua agonia de mar e areia.
Mundo em que me crias o mesmo em que me matas.
O anel que tu me deste, o amor que tu me tinhas.
Descrevo a sede para que não retornes a este quadrante.
A espinha de sal que me atravessa a voz:
era branca era branca a tua nudez indisfarçável.
A tua nudez de sal e sombras esvoaçantes da quimera.
Planos de Deus brotando do relógio na parede.
Apenas teus gemidos refletem sobre eles,
e minha dor apaixonada pela morfina.
5.
Noite decomposta na versão inverossímil
de seus acidentes vasculares.
Se dormes, petrificas.
Reúno tuas divergências em meu ser.
Presságios contra a escrita da aflição.
Espalho teus artifícios por toda a pele.
Se respiras, me despedaço.
Não quero morrer em teus braços.
Olhos mascados pelo delírio,
os rios da febre em caudalosa alegoria.
Grunhidos entalhados em minha face.
Fogo de línguas, uma única palavra
expandindo-se em mil dizeres.
Não há repouso em teu mistério interminável.
Guardo contigo o método de meu desespero.
Não quero morrer não quero um só instante.
No privilégio de tuas chamas projetadas,
na chaga incessante de uma altíssima dor.
Sombras tropeçando em gemidos.
Se te esvais, me aprimoras.
6.
Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.
7.
Teus gemidos se arrastam por todo meu corpo.
Querem me dizer algo e parecem sofrer com isto.
Como o curso premonitório de um rio que se esgota,
banha-me a terra quente de teu canto inevitável.
O que oculta tua sede hostil em sua perda de ritos.
Teus gemidos projetam suas chamas em meu sexo.
Por um momento a tudo renunciamos,
e coincidimos em praticamente todas as vertigens.
Sei que brincas comigo e tolero a desordem dessa parábola.
Queimas as cartas de meu desejo temeroso
e invades as atribuições de um gozo que confunde-se com a dor
que salta de um porto a outro de minha vigília.
Por um momento parecemos estar vivos.
Teus gemidos dão instruções ao meu orgasmo.
A memória é árdua e concentra-se em seus erros.
Vislumbro tuas carnes murchas,
e percebo que nunca soube como te chamas.
No entanto, me explodes como uma invenção inconclusa.
8.
Do outro lado da cama ainda me ouvias.
Quem somos quem fala quantos já fomos.
Pequenos anjos negros desfigurados pela deriva.
Variações de uma mesma agonia acumulada.
A minha vida em tuas mãos.
Eu vi chegar o primeiro barco de refugiados.
A divindade enlouquecida em suas minúcias.
A outra face da morfina, o limite do horror.
Cada palavra me dói como uma doutrina escarnecida.
Uma dor perplexa que toca o fogo e queima teus olhos.
A cama ancorada no céu de cinzas aflitas.
Teus planos desfeitos minhas cartas relidas.
Entramos no assombro um do outro,
com a astúcia do caos, a malícia do acaso.
Talvez não tenhamos mais para onde ir,
e tudo se agrave porque relutamos em aceitá-lo.
9.
Rios de fogo por dentro do corpo.
Escritura de sangue escavando a memória.
Eu fui buscar o abismo esquecido em teu ventre.
Mundo em que tudo se dissipa e nenhum equilíbrio.
Pernas como archotes iluminando os vãos do desejo.
Eu queimo por ti e tu me açoitas com um papiro de urgências.
A hora aterrorizante das injeções.
Língua incendiada por palavras inaceitáveis.
Deus que me reduz a uma torrente de dores.
Em me perco sempre onde quer que te busque.
Vasculho em meu sexo um conforto impreciso.
A noite se dilui como uma sopa de gemidos.
Alguém me tire daqui.
Eu não quero eu não posso morrer antes de mim.
10.
A noite se estreita ao percorrer minha alma.
Nos olhos dela a ferida inflamada,
a chaga de horas com que me decifras.
Umas vozes dentro, outras bem fora, ausentes inomináveis.
Os mortos dizendo fogo, a dor coberta de cinzas.
Ventríloquo enfermo que não reconhece a si mesmo,
eu bebo em teu sangue a fábula da morfina.
Esta noite foi composta no pudor de tuas coxas,
para que insistas estou louco jamais voltarei aqui.
Quem dirá em mim, como um retrato resumido,
o quanto te amei enquanto te repetias?
Tua voz acumulando virtudes.
Eu me declaro um homem acabado sem que me digas quem fui.
Não é possível, eu sei, e, no entanto, me tens por um fio.
Recorda-me de uma vez só para que eu não sofra tanto.
11.
Eu vou embora daqui.
Com mil chamas vertiginosas
redigindo a queda de teus seios em minhas mãos.
Antes que tua doce blasfêmia iluda a morte.
Deixo contigo o bisturi inútil e a máscara da insônia.
O futuro concebido como uma colheita de verbos irregulares.
A luz no corpo por todos os ângulos do breu.
Tuas vozes deixadas para trás como árvores no espelho.
Livros que indagam a duração da vida de quem os escreve.
Livro-me do estupor das sombras, da carne trêmula, da fiação de horrores.
Não fico mais aqui.
Eu sei onde cabes: no bolso sem fundo do espírito,
no piso cego desse corredor sem fim.
Despeço-me de tua solidão esfomeada,
e das virtudes todas do delírio com seus sortilégios confiscados.
12.
Quem sabe seja este um último disfarce de tua heresia.
A tua voz me alimenta e perdura em mim,
como jamais pude conceber o enigma da noite em seu eco
ou mesmo deduzir suas versões sempre à espreita
enquanto a dor se esvaía em meu pulmão.
Deus instrui seus vícios a não me darem sossego.
Mãos que naufragam no escuro à tua procura.
O corpo hostil com seus tumores consumados.
Eu sei o quanto me atormentas.
As sombras que gemem no céu, a luz quebrada no olhar,
os ramos da morfina em seu cativeiro de abismos.
Como um antídoto vencido, o assombro sem nos reconhecer.
Eu sei o caminho.
A água rasgada com seus peixes de veneno.
A pedra do sangue [eu sei] nervuras ao relento.
Em nome do pai soletra o verbo da terra queimada.
Tua voz não me deixa concluir nada.
Eu sei como pressentes o que não se extingue.
A sede monstruosa, a porta que não se abre.
Não podíamos nunca ter ido tão longe,
e não soubemos ao certo de onde voltávamos