A fotografia dos artistas

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A fotografia dos artistas
'.
A fotografia dos artistas
A fotografia adqlliriu. no
ultimo quarto do scculo XX, um lugar de primeiro pIano na arte contemporanea. Mas, essa fotografia dos artistas tem
P0:.lCOS
pontos em comum (om a fotc'grafia
dos fot6grafos, que continua polari?ada na que~tao da:
repre:!~ntayao: QU ela se esforya para, likralmlilte, re-
prod:.Izir as aparencias (como a fotografia-doCllmento); ou afasta-se delas (como a fotografia-express:1o);
ou deliberadamente as transforma (como a fotografia
artistica) ..
() principal projeto da fotografia dos artistas nao
C reproduzir
0
visivel, mas tamar visivel algul11a coisa
do mundo, alguma coisa que nao
e,
neces~rtrial11en­
te, da ordein do visivel. Ela nao pertence ao dominio
da fotogrufia, mas ao dominio da arte, pois a arte dos
artistas C tao distinta da arte dos fot6grafos q uanto a
fotografia dos artistas
0
e da fotografia dos fot6grafos.
Embora distintas, uma e outra tem em comul11
0
fato de serem evidentemente plurais. Antes de tornar-se material da <lrte conternporanea (desde os altos
1970, Christian Boltanski afirmava "pintar com a fo-
r
~:-.·rWF
~(}r()l,HI\t-·11\
I: ARTt::
I
I II FOTOCRAFIA OOS ARTIST":' I
Para matizar a parcialidade baudelairiana, que liga a fotografia diretamente
tograha"), a fotografia dcscml'enhou. alicrlladamenle. a papd de rcfuga da arte
a peqllena pintura, tao admirada pela multidao pelo
(com a impressionismo), de paradigl11J da arte (com Marcel Duchamp). de fer-
ao gosto trivial do publico.:
ramenla (L! arte Icol11 !'r;llh'is Ila(ol1 r. (I<' modo div('fs(l. com And~' W;lrhn/) e de
seu detalhismo, seria preciso examinar como. na primeira metade do seeuio XiX.
vClor da arte (nas artes conceitual e corporal e na land arr). Preencheu fun~aes
sao fabricados, simultanearnente, um publico e um gosto burgueses, uma pr;\li(;1
utilit;irias, vcicu!ares, ;\lLliiliclS, criliclS e I'ragm;\ticas. N" virada do tcrcciro mi-
pictorial par;; salisfaze-Ios. e uma nova civiliza~ao industrial, da qual a t"owgr;di;\
ICllio, cia talvez v;\ scrvir C0l110 rl'fl'tgio da coisa Ila arte, um3 forma de resistencia
C um dos principais velores e emblemas.: Finalmente. sobra a quest,lo de salKr
dcrradeira iI vasta correllte de
desmalerializa~;-\()
d;1S imagens.
como a fotografia trabalha a pintura na segunda metade do seculo.
Desde seu aparecimento em 1839, e antes mesmo de fazer concorrencia
li,
A fotografia-refugo da artc: 0 impressionislllo
imagens existentes. a fotografia j:i mostra. com foro. que as imagens n,lo v,ll'
J' ,
A pintura il11lJressionista Il;-\() I(li suliciclltcmcllte abordada como I'intura es-
k&.'
~.
escapar ao processo global de
industrializa~ao.
ra, fazendo brotar
ristieas prc,I'rias da fOlografia (par;1 l11elh(lI" rl'sistir a cia) ou por inclinar-se para
inutilidade objetiva. em uma sociedade ollde a
meeaniza~ao
elementos inaeessiveis :-t fotogralia pMa melhor delimital seu proprio terrilario
LIS:
virtuall~~ent('
que.ogo, tambem nesse setor. a
maquina vai rivalizar com a mao. Tal concorrencia a.e profundamente na pintu-
sencialmente trabalhada pela fotogratia. Ou por incorporar as principais caracte-
I\lde-se dizer que a fotografia l'sl;i
:1'
presente nas telas impressionis
sentimento de sua crescentc
0
inadapta~Jo,
produ~ao
ate mcsnlll de su,\
se industrializa, on.:!l' a
e a divis<io do traoalllll sllplantam. de toda parte, 0 artesanato. 0r.1,
o ataque que a fotografia dirige. de faw. contra os I'alores manuais da pintura l'
ao mesmo tempo ati,,, c reieita.:!,\.
ainda mais dolorosamente sentido pdos pintores, por associar-se as profund;\S
NJO se trala, evidenlcmcntc, de enumerar os pin!ores que, mais
Oli
transforma~oes
menos,
que seu oficioj<i sofrera com a
fabrica~ao
industrial e a comerci.\-
utilizaram a fotografia em seus trabalhlls pictoricos. como Aaron Scharf se limita
liza~ao,
a faze-Io em Art
sil1lultan.::amente, do exterior, via fotografia. e do interior, ao extinguir a velha
tll/d
Photography IArte e fotografial. Trala-se, prineipalmcnle. de
tradi~ao
<:Yaminar como 0 paradigma fotogratico perpassa a estelica impressionista, como
a estetica impressionista
e virtual mente
acondicionada em tubo, de suas cores. Logo. a industria afeta a pirHur,I,
fotografica e, por isso mesmo, como a
de preparar as cores, que durante muito tempo desempenhou um papel
importante no aprendizado do ofieio de pintor, na transmissao das receilas de
sociedade industrial trabalha do interior da pintura impressionista.
atdie do mestre para
E em
Quando, em J 863, Manet expae seu quadro Dejeuner Sllr l'herbe [Almoc;:o na
0
aprendiz J
Barbizon, apos as revolu~aes de l848, que mais rapidamente se senti-
relva], a fotografia beneficia-se de uma grande popularidade entre os burgueses,
ram os efeitos do novo modelo industrial na pintura. Porque as cores em tubo,
que "se precipitam, como verdadeiros narcisos", para serem retralados nos eSIU-
facilmente transport<iveis, concorrem para a nova pratica ao ar livre (que pinto-
dios das grandes avenidas. No entanto, esse entusiasmo pela aparencia, de uma
res, como Daubigny, estao em via de invent 'r); porque esses pintores convivem
classe triunfanle e narcisista, tern poucas motivac;:aes artisticas. Pois, para a maio-
com fot6grafos-artistas, cl'mo Gustave Le Gray, que vern trabalhar a seu lade na
ria dos burgueses da eroca, a arte confunde-se, antes de ludo, com a pinlllra: nao
floresla de Fontainebleal! Ao longe das decadas seguintes, as respostas estetieas
a de Manet. mas aqucla dos herdeiros da tradic;:ao c1assica - Meissonier, Flandrin
ou Vernet - ou ados artislas submissos ao "gosto exclusivo do Vcrdadeiro': 0 que
deixa Baudelaire tao desolado, pois, para ele, a fotografia
ea rna is extrema expres-
Rober! Laffont.19ROI, ;'.
I
sao Ja "tolin:" desse publico j>ersuadido de que "a arle C, C s6 pode SCI", a reprodu~ao
exata da
natureza'~'
7,1'
Medem-se os limites da COIl{ cp. i\O lkl<:ndidd por Peter Galassi, segundo a Gual a fOlografia s~ri3 uma inv('n~ao dos pinlores. Eic OUSI r\ I. "/, fOlograha nao e urn bastardo deposilado pela ciencia diante da P0rlJ
Ja artc:. mas UIlI filho kgilil\ll l·,1 IrJdi\;io piCl6ric;'l OciJt'lll'll". cr. Pt'lcr Galassi. "La pl"incurc ('I l'im't'nll()1)
d< la photographic", em Alai .. :.:)'ag & )ear,-Claude Lemagny (orgs.), Ci"vf1Ition d'"" art (Paris: Adam Biro·
Centre Gcorges-Pompidoll, I,WI), p 29.
I
I
Charles Hauddairc, "Salon
dl'
1859. 1.(' public
J1I0dl.,'rlH,' \'t 111
pllOlO~rJphi{''',
t'l1l
O·,II·res WlHplCICS (Paris:
Thierry de Duve. "Le
('.;ldylll
,k
eill.'
lUbe" Je couleur", {Om Rf:>OlUlfIceS du
gurde et traditio" (Nlm<s: jac 1'.1' line Challlbon, 1989), p. 168.
n~adymade,
Duel/amp (litre avaw-
. 11'I\l~:\\Afl:'"
de sua pratica, uma dupJa resisteneia aos efeitos da industriaJizac;ao:
.sc;u
Ol!
I
a perfeiC;ao de
modelos
trans(endentes, enquanlo eLl assombrada pela invisivel presenc;a de lendas e mi-
desenvolvidas pelos impressionistas, depois pelos divisionistas. Globalmcllte, as
110
Altrl~"A:\
de uma beleza idea\, enquall to se esforc;ava para chegar
que as pintores de Barbizon encontram para t:tis desafios vao ser retomadas e
pinlores modernos da segunda parte do seculo XIX vao contrapor,
nos
tos, resumindo, enquanto evo~uia em outra dimensao espac;o-temporal, 0 imrres-
lIIeilllV
sionismo, ao contrario, insere a pintura no aqui e agora, e isso no momento em
imitam ()
que
adversario (no caso, a fotografia) ou mudam de terreno, coJocando a pintura em
0
registro fOlogrMico se beneficia de uma prodigiosa :Jt<",llidade. Ao contrario
da pintura cl<issica, mas em harmonia com
territorios inacessiveis it fotografiiJ.
0
funcionamento da fotografia.
0
im-
pressionismo abre a pintura para aquilo que e percebido :Jqlli e ago.ra, na presenC;:J
da coisil, em detrimento do que e imaginado. invisivel, situado em um Dutro Jugal'
de espac;o e de tempo. 0 im,lgin,\rio dj Jugal' a percepc;iio; 0 passacio ea memori:1,
INCORPORAR A FOTOGRAFtA
a presenc;a; 0
,\ pintura moderna comec;a em Barbizon, quando os pintores abandonam os
arlifkios do atdie em (avor do ar livre, da produc;ao
illiil/./,
grafia e para
no exterior - particularmente em seu ,1lelie instalado, em 1857. num barco que
0
dominio das imagens. Pintar
ao ar livre provoca uma profunda mudanc;a na pi .. leura, po is significa abandonar
o atelic e as convenc;oes de eseob a ele ligadas; tquivale a separar 0 quadro, nsica
e simbolicamente, do atdie, para ancora-Io diretamente no motivo. Isso significa
submeter a pintura
a nova
lei que a fotografia est,,- instaurando: a contiguidade
entre a coisa e sua imagem.
Lugo, esboc;a-se em Barbizon uma reviravolta que, alem de Dcjellller .sur
(,herlll'
(exposto pOI' Manet no Salao dos Indepcndenres de J 863). vai cull1lin:Jr no
illll'rl·ssionisl1lo.; 110 advcnto de uma Ilova pinilira l<io afastada d:J pintllra cl,i%ica
lju,lnto pr()xima do paradigma fotogrM,co. De fato,
0
impressinnisl1lo desvia-se
do illl;lgillario que impcrou na pintur:J durante sl'eu!o,;,
Ir:cj~::ncio :~~c .;~~~, :''''.:~
!Jel e UeJacroix. Enquanto a pintura classica ideaJizava um passado l1litico e le(ia
!ullvorcs a herois pro(anos ou religiosos, enquanro (elebrava :JS sucessivas versoes
fI,j"., 1'. 157.
(;.ll"l.lU l'ifOI1.
IX63. ,'\JI,iSSclllCt' t1l.: IlIl'~j"'lf,r motlt""J(' (!'Mis: G~lIilJl"rd. 1\)\)6).
290
,\I'
OUIJ'<l, ;\ luz C:, par;l a
1\)1'0-
livre:, plll'I,lllt,) l'lll ;'!L'Il,1 l~:::, qUl' os singui:Jriza e os aprl)\il1l;\,
inst:Jntancas, como
coparticipac;ao (um con-
tato fisico) entre 0 motivo e a tela. em eeo ao novo regime de impressao que a fo-
0
impre5sionismo, SU;\ for<;a. sua energia, sua singlllaridade. AlI'avl's
nas imagens. AnteS dl' serl'lll ti'~UI';l:< cln praIa ou mat~ria pict6rica. as fotosr:Jfia~
lurieo prvpriamenle dito).
tografla esta, justamente, em via de imp0.rl:1r par:1
cliches fotogr;ificos, sao imagens de IUl.
de modo inusilado, dt's dc:ixam ,\ luz niltural p~;)Clrar em grande abulld,incia
oposic;ao entre 0 ar livre (rescrvado Jl)S esboc;os) eo atdie (Iugar do tr,lbalho piepos~ibilila Ullla
0
du trab,dho au
no rio Oise. Antes dc muilus oulros, Daubigny rompe a trJdicional
Como alternativa ao atelie, 0 ar linc
0';
proxima: simplesrr.ente visivel, sem
I\gl'n\e quimicu ~);\r;\ uma, L'km':Il\o l'';l~li«l 1);\1';\
tc.' Daubign}' e 0 primeiro a trocar a tunalidade pclJ IlIZ c a trilhalhJr unicamcnlC
a deriva
a reaJidade
pano de fundo.
As telas impressionislas, como
dJ luz do dia; qUiJ11do
cl,l!loram, assim, uma rcsposlil esll'ticil para il c011corrcncia d:1 fOlografia n:1SCe11-
fica
mitico longinquo.
..
"
~
?
'IS
tdas illlpressioilistas, s,io formas de Ill?: distribui\th~S inl'-
ditas do claro e do escuro, do opaco e do transparente, do visto e do nao visto. S,il)
novas visibilidades.~ Ao mudar radical mente
0
lugar e a distribuic;ao da !uz. reno-
Yam, simultaneamcnlc C de man,'ira c\)J]vergente, a arte e as imagens. Juntas, l11;lS
cada uma de seu lado, a fotografia inslantanea e a tela impressionista inventam as
visibilidades modcrnas c sustenl,lm n rt'gime moderno da verdade, fundamentado na captayao de um real restituido ao visivel.
A capt lira, exemplificada pclo registro fotografico il stantaneo, e
0
principal
trac;o que distingue a pintura impressionista da pintur I classica. Enquanto esta
se referia a lUll conjunto de
POSt'S
ctcrnas, de modelos tl.'anscendentes, de formas
previas, a que era nece,;"irio ddr corpo extraindo-:Js do env6lucro do re~l\ - e a
representayao dcvcria adequ,\I'-s,' a eLlS -, a pintuLl impressionisra e a fotograti,l
procedem de maneira diferente: caplam quaisquer instantes, recorlam elementos
notavcis. A transcendl:llcia cedcu lug,H
;1
im:1nencia.
C 0
eterno, ao cremero. 0
impressionismo - essa ane da captac;ao, da rapidez do gesto, de caplurar ac;oes
GillL'S l)~kll1. ...•. FOflt"I:/llt (P.tris: i\lill\lit. 1~~6).1'· to·L
./
I fNTRE
f~)T{)I;~AF1.'
1
r AKTI". I
A FOTOGRAFIA DDS ARTISTAS
1
fugidias, mais do que descrever as coisas, espalhou-se na trilha da fotografia ins-
agir (contra a fotografia) e uma possibilidade de a~ao (com 0 tubo de cor). 0 me-
tantanea, e mais amplamenle, na da modernidade do seculo XIX.
nos industrial (a cor) vem desafiar
0
mais industrial (a fotografia), sem contudo
conseguir frear 0 inelutavel declinio da dimensao artesanal da arte.·
Mas, cm;'·Jr.l ~ua permeabilidadc as quest0e~ modern as situe a pinlUra imprcssionista
0
Mesmo sendo moJdada profundamente pelo processo de industrializa~ao, a
mais perlo possivel da fotografia, frequentemente as sollll;:ocs cs-
tClicas ado tad as, tanto por uma quanto por outra, divergem entre si. Enquanto a
pintura impressionista continua a encarnar a antitese do trabalho industrial que
rnodcrnidade as reaproxima <.10 cerne de problem:i.ticas vizinhas - a captura, a luz,
se generaliza, e que a fotografia estende para
0
dominio das imagens·.
A rentabi-
oar livre, as visibilidadcs, 0 aqui e agora, [) efemero -, sua especificidade material,
lidade, a utilidade e a quan! iddde, 0 trabalho artistico dos impressionistas opoe
social e estetica as scpam. Como se a pintura irnprcssionista se definisse por uma
o inutil e
0
qualitativo. Nao csque~amos que, em 1859, em nome do "gosto pelo
<.Iupla diferencia~ao: diante da pintura c1assica e diante da fotografia instantanea.
Belo",8 Baudelaire arrebanha vc., na mesma critica, a fotografia, os "pintores fracas-
A pintura impressionista se distingue da pintura chissica ao assimilar certas carac-
sados", 0 publico e
teristicas pr6prias da fotografia, procurando, ao mesmo tempo, resistir a seu do-
Ihismo. Com 0 impressionisDlO, deslocam-se os termos da oposi~ao: 0 imagimirio
minio. Assim, 0 impressionismo surge como uma res posta <.Ia pintura a fotografia
baudelairiano cedeu lugar 3 lwrcep~ao, a nostalgia transformou-se em aten~ao ao
(e mais amplamente
rejci~ao,
a sociedadc
"gosto exclusivo pelo Verdadeiro", pela exatidao, pelo deta-
presente, a modernidade ganhou em valores positivos, enquanto a franca host i-
industrial). Em urn jogo de mimetismo e de
a fotografia tera conseguido, em raz:io de sua i10vidade e do seu inusitado
0
;
lidade em rela~ao a fotografl:l se transformou em uma rela~ao mais ambivalente.
,
A visao de mundo dos pintores e ados atores burgueses da economia e da pro-
poder figurativo, desterritorializar a pintura e ~lllpUrra-~" para novos terrirorios.
dUyao modernas aproximaram-se significativamente, mas sem se confundir. Em
termos baudelairianos, a industria e a arte conrinuam a "odiar-se· com urn 6dio
DESAFIAR A FOTOGRAFIA
instintivo",9 seguindo outros objetivos, e adotando outras formas.
o esplendor das cores distingue claramente a pintura impressionista da fotografia, que
e monocromatica, e da
f: pela fei<;ao de nao acabamento que
0
impressionismo mais se distingue
da produ<;ao industrial, da pintura submissa a "reprodu~ao exata da natureza"
pintura classica, que mistura cores visando a
as telas
imilar 0 tom das coisas. No esteira de Delacroix, que queria liberar a paleta roman-
e, sobretudo, da fotografia. A pincelada e os tra<;os esbo~ados conferem
tica das cores terrosas e sombrias, os pintores impressionistas utilizam largamente
impressionistas urn aspecto inacabado, totalmente estranho as linhas nitidamen-
as cores puras, mesmo antes de Georges Seurat, a parti-Hle'-1886, com Un diman-
te desenhadas das pinturas realistas, as superficies lisas e as arestas afiadas dos
ch, d'ete al'ile de La Grande-Jatte [Urn domingo de verao na ilha da Grande- latte],
produtos industriais, assim como
a sutileza
dos detalhes das fotografias - parti-
realizar "obras pintadas unicamente com cores puras, separadas, equilibradas', e
cularmente em cliches obtidos a partir de negativos de vidro. Antes dos impressio-
mesclando-se opticamente, segundo urn metodo raciona!,:7 0 ncoimpressionis-
nistas, sao os membros da escola moderna da paisagem, de Daubigny a Rousseau
a
e Boudin, que introduzem na pintura valores opostos aos valores tradicionais,
mo vern, assim, radicalizar as pesquisas dos impressionistas em
dire~ao a
luz e
como os defendidos por Baudelaire, segundo
cor, alcm de desafiar a fotografia. Tal resposta, que se dirige igualmente a indus-
0
qual urn quadro<e caracteriza
imagens, tem, paradoxalmente, a industria como condi~ao de pos-
pelo acabamento e pela "solidez",JO isto e, pela composi~ao, pelo "acabamento" e
<ihiliriade. Pois as cores, que durante seculos foram moidas artesanalmentc pel os
pela "perfei~ao do detalhe". Em i859, Baudelaire cienuncia a~;jiio que. nas reias tic
trjaJiza~ao das
I
pln!ores, cada vez mais sao fabricadas industrialmente e difundidas em tubos.
Para os pintores, a
industrializa~ao
Daubignye de Boudin, parea ser, para ele, apenas "estudos", "notas", "pedacinhos
da natureza", esboyos produzidos ao ar livre, segundo urn "metodo de c6pia ime-
torna-se, ao mesmo tempo, uma razao para
-I
•
I'Jul Signac, O'Eugelle Dclaooix
J ')(}(J·/9'.JO.
flll
llt'o-ill/flrt"ssiolll/iSl1Ir.
{"Ill
•
Ch;lrll.'S I-l:trrison & Paul Wood, Art en thc!orie,
U"c wllh%g;c (I' cd. 1992. Paris: liaNn. 1997).,,_ 41
'0
Charles Baudelaire. "Salon de 1859", cit..}>. 748.
/bid.• p. 749.
Charles Baudelaire. "I.e paysogr. Solon de 1859". em Cb,vw compMt<'. cit., pp. 775·780.
.\.~
19J
I
diata'~ Tudo,
t:NT~t
t(lll)l.MAt'A [Aillf.
I
sucede um modele plano, sem profundidade, sem rna gem, sem unidade, sem
menos verdadeiros quadros. Desse modo, ele nao consegue ver 0 que
limite, que foge par todos os lados, cuja forma edada pe
a nova pintura esta em via de inventar, que a separa tanto da fotografia quanto da
1
pintura impressionista.
A pintura impressionista mantem. assim, rela<;:6es contradit6rias com a foto-
pintura chissica.
A agudeza dos detalhes, supostos testemunhos de mestria do oficio de pintar
grafia - que, na verdade, nao utiliza, mas impregna-se deb e, ao mesmo tempo, a
au da p"ianc;:a descritiva da fotografia, assegura - aos quadros como as provas-
desafia. A fotografia figura, cnt<!o, como adversario, ou como Outro absoluto, qUt:
uma mesma aparencia, tanto de perto quanto de longe. Apesar de suas diferenc;:as
d.: lamanlto, a (olOgrafia e 0 quaJro tradiciollal suscitam um olhar perscrutadLlr
a pintura imita para melhor resistir a ela. Urn Outro que fascina e aterroriza, que
confundc; (HI scja, quc dcstnri\orialil.a. 1\lgulllas I!t'cadas mais tardc, no iniLio do
semclhantc, que sc liga aos detalhe" e que age a uma distilllcia determinada. A
I'illiura impressionisl;l, ao conlrario, CcOlltcml'lada cm llln cOllslalllc vaivclll do
seculo XX, com Marcel Duchamp, J fotografia desempenha urn papel diferente,
indirc\o mas alivo: II dl' l'aradi~m;1 da 'IrtC.
e"pectador: para mais perto da tela, para admirar 0 trabalho pict6rico, e rna is afasIJdo dcla, para dcscobrir a figura. Enqualllo as lin has e 0 aSI',:cto bcm-acabado
A f()togr~ fia -parad iglll;l th arlL': ivlarct'l Ducha 111 p
visal11 a n:produzir 0 real, a trama do" lrac;:os csboc;:aclos c das pinccladas dc corl'S
justal'0stas sabre a tcla constitui uma especie cle quadro virtual (inacabado) que
5C
Elllbora Marcel l)uch;\lllp n,io tenh;l praticado a fotografia, utilizou-a drias
al ualiza (se perfaz) apenas no decorrer de um processo de leitura mais proximo
wzes - com a colaboraC;:;io de Alfred Stieglitz e, sobretudo, de Man
Ra~:
-, mas
0
e men os instr:.::-nental do
da produc;:ao do que da recepc;:ao do real. 0 nao acabamento ex prime, de fato, uma
Jugar fundamental que a rotogratia ocupa em sua oL)ra
concerc;:ao nova das relac;:6es entre 0 quadro e 0 real, uma crise da representac;:ao
tradi..:ional, bern como confere ao espectador um pape! novo. Enquanto 0 espec-
que paradigmatico. Embora as
os tra<;:os mais caracleristicos do processo fotogdfico para a arte. Em outra" pa·
tador da fotografia recebe, como
lavras, em principio, a fotogratia e.>ta presente na arte de Duchamp, mas sem as
0
da pintura dassica, uma forma acabada, os
relldl'-l1Inde
nao sejal" fotograficos, eles imfJvrtam
espectadores das telas impressionislas c divisionistas inserem-se em um processo
formas nem a materia fotogr<1fica. Ap6s 0 impressionismo, a obra de Duchamp
ativo de atualiza~o, que age na conjunc;:ao de urn elemento material (a tela) e de
procede a uma nova atualiza<;:fo, e mais evidente, dos principios fundamentais da
fotografia no ambito da arte 1lI0dema.
um jogo dinamico do corI'o e do olho.
/
Do Fifre [Tocador de pifaro 1de Manet ll 11 serie Nympheas [Ninfeias] de Monet,
a supressao da perspectiva, isto
e, 0 advento da "planicidade", uma das principais
A
ESCOLHA
ideias reguladoras da pintura modema, constitui outro desafio lanc;:ado a fotografia, que, ao contnlrio, leva a pcrspcctiva..classica a..Ldtil11~ grau, mecanizando-a.
Enquanto a perspectiva serve para criar a ilusao de urn ;:nodelo exterior, a super-
Se
0
advento da fotograli,1
IHOVOCOU
um choque entre os artistas, nao foi por
receio a uma concorrencia c1ireta, po is ela nao tinha condic;:ao de suplantar a pintura, mas por abrir a possibiiifiade de um outro funcionamento da arte. Pela primeira vez, sem duvida, e em benetkio da maquina, uma imagem rompia com 0
fkie plana se evidencia atraves das cores, das linhas e da" pinceladas, e impoe-se II
rnedida que 0 trabalho pict6rico tende a prevaleca sobre a func;:iio referencial da
pintura. Esse advento da "planicidade" leva, na pintura, a abolir 0 ponto de fuga
e a dissolver 0 centro e os limites, num momenta em que a fotografia promo\'c
len to e minucioso trabalho da mao: 0 artesanato cedia 0 passe a industria. Pela
r'!'il1leira vez, 0 contata fisiw n;io mais se fazia entre artista e tela, mas, fora dis-
o enquadramento que, ao contnirio, reforc;:a as margens e os limites da imagens.
so, entre uma coisa e uma superficie fotossensivel. 0 que a fotografia ameac;:a e a
'J" 1
Ao mundo centralizado, unitario e delimitado da fotografia e da pintura cl<lssica,
fabricac;:ao manual e artesanal da imagem, em prol da sele<;:ao, seguida do registro
qufmico. Enquanto, tradicionalmente, como a pr6prio Marcel Duchamp assina-
II
....
fo um jo\'em musical ... J sabreposto a um fundo cinza monocromo: sem terreno, sem art scm perspectiva: 0
infdiz ~13 colado contra um muro quimerico."
cr, Paul Mantz, "Les O:'uvrcs de Mane!", em L~ Temps, Paris,
16·1·188~.
294
295
I ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE 1
I A FOTOGRAFtA DOS ARTISTAS I
la, "a palavra 'arte' significa fazer e, por pouco, fner com as maos",12 a fotografia
melhor, qualquer coisa pode tornar-se material de arte, desde que inserida em
cria as condi<;:oes para uma arte de urn novo tipo, lima arte tecnoi6gica. na qual 0
um proct'di:1.ellt0 artistico. A afte torna-se uma questao de procedimento, e de
saber-fazer se atenuaria em urn saber-enquadrar.
cren<;:a.
Com a fotografia, criar nao
t;
mais fabricar. mas escolher, ou melhor, enqua-
drar. Ai, dessa maneira, as modalidades da escoilla estetica estao redefinidas. A
cscolha total e continua, em vigor no pnKesso picl6rico,
e substituida, na
o REGISTRO
fOloA alquimia simb6lica pr6pria do rearlY-lIIade encontra cco na quimica foto-
grafia, por urn direito total 11 escolha no mOlllento do enquadramcnto, seguida
E como dizer
gu~ 0 ready-marie e, como a fotografia, inseparavel de um
de uma impossibilidade de cscolha no 1lI0menio do registro. Foi por causa desscs
graflca.
limites que os pintores e os criticos do seculo XIX, em nome da classica teoria
processo de registro. Em ressonancia ao registro fotografico das coisas por meio
dos sacrificios, negaram it fotografia toda e qualquer pretensao artfstica. "A arte
da luz e dos sais de prata,
0
ready-made introduz, na arte,
0
principia do registro
0
do objeto atravts de urn local institucional, que 0 atribui a um autor e 0 comunica
que n:io Ihe convcm", observa GlIsla\,<, Planche. "0 sol rrocede de outro Illodo:
ao publico. I ' 0 museu, 0 Salao ou a Academia sempre desempenharam, evidente-
nao deve transcrever
que ela ve, mas cscolher
0
0
que Ihe cOI1\'em e repudiar
ell' toca em tudo que ilumina c transcreve tudo elll que tocou; nao omite nada,
mente, um pJpel de registro e de difus:io das obras. Com, ready-made, a novida-
nao sacrifica nada, pois age scm vontadc, scm designio preconcebido"'" Com a
de reside, entretanto, no fato de a institui<;:ao nao estar si! .lplesmente registrando
maquina-fotografia, as escolhas
situ;\1ll a illonlanle do processo, no llIomenlo
obras j:\ C\ll1Stituidas, mas eslar constituindo como obra .lualquer coisa escolhida
rccorte espa<;:o-temporal selecionado e, em seguida, auto-
pelo artist?. 0 registro quimico e tao necessario it fotografia quanto 0 registro
do enquadramento:
0
Sl:
institucional e indispensavei ao rearly-made. Depois da fotografia, que introduziu
llIal ica men Ie registrado.
o paradigma do registro no c1omlnio Lias imagens,
Com os ready-made, Marcel Duchamp introduz na arte esse principio funda-
0
readY-illude estende-o
;1
arte
mental de sele<;:ao-registro, pr6prio da fotografia, mas contrario ao funcionamen-
moderna. Desde
to da pintura. Fotografia e ready-made, que tern em comum tratar as coisas como
materiais, distinguem-se, todavia, por seus modos de a<;:3o sobre elas: a fotografia
quer e, no ambito da fotografia, convertida em imagem e, no ambito do ready-made, convertida em obra.
e, no entan-
Ora, esse modo de fazer obras convertendo qualquer coisa em tal, isto e, fora
quadro e resultado de um len to processo manual de fabri-
de qualquer "ideia de fabrica<;:ao", IS e seguido por uma profunda modifica<;:ao do
ca<;:ao e e produto da transforma<;:ao de materiais elementares (as cores) em objeto
papel do artista. Sl.ta a<;:ao nao consiste mais em fabricar, porem em encontrar
singular, os ready-made partem, como a fotografia, de coisas completamente fei-
uma coisa, sdeciona-la, registra-la em uma institui<;:3o (urn museu), e tentar di-
copia,o ready-made corta. A distancia entre 0 ready-made eo quadro
to, maior. Enquanto
0
0
momento em que foi escolhida e registrada, uma coisa qual-
las, as vezes ordinarias (uma roda de bicicleta, urn urinol, um porta-garrafas, etc.),
rigir para ela a aten<;:ao de um cOlljunto de atores - autores, criticos, editores,
para converte-ias em obras de arte, ao linal de um duplo processo de sele<;:iio (pelo
vendedores, c1ientes, etc. Sem mais que a um artesao, que as fabrica,
artista) e de registro (pela institui<;:ao artistica). A transforma<;:ao material levada
assemelha a urn magico, que transforma coisas em obras-ready-made. Ora, como
a cleri() peiu
pllll,lf
dj iusar. l:"~~
n
.'''WI.''-lllflrlC, a lima transforma<;:50 simb6lica,
a uma conversao. Tudo nao e arte, mas tudo pode transformar-se em ane, ou
"
Marcd Duehamp. "Entreliens illedils .vee Georges Charbollnier" (R,dio-Television foran,ais< - RTF. 19(1).
Thierry d~ Duvc:, R;!>()"unc/.'J dlJ rt'nJyt1l£lc/t', ciL , p. 23,
artista-magicv dependc mcno, lie suas qualidad: s pessoais, de suas produ<;iks, u(
~m
It
Gustave Planche, -Le paysage el 1<5 p'YS.1giSles". em Revue des V<ux-Molldes, Paris. 15-6-1857. apud Andre
I~
I{ouill~,
"
p.
Ln plrotographic
("II
Franu,
texlt!$
et ((', . .rova5e5.
Z6~.
296
'.Wl'
ftnlhologir. /816·187/ (Paris: Macula, 1989).
artista se
mostram os estudos de MaInl Mauss sobre a magia,'6 a eficiencia da al;JO do
seus instrumentos, ou de
"
0
SU8~,
opera<;:oes, do que do "grupo magico", no caso, do
Thierry de Dlive. Rl!sollalices dlt r.\,drmade, ciL, p. 19.
Marcel Duchamp. Uuchllmp du 5;gn-, f, ril5, org. Michd Sanouil,lt:t (Paris: Flammarion, J975), p. 36.
Marcel Mauss, UEsquisse d'une Ih.;,,, ie gen.rale de la magic" (1902), em Sociologie er anthropologie (Paris:
Quadrige/PUF, 1993).
297
I·' ,OTOGRAFIA DOS ARTISTAS I
conjunto de atores do mundo da arte. Em resumo, ao contr<lrio do artista-artesao,
tempo, causa e efeito - de \lma atenuac;:ao do olhar lanc;:ado sobre elas. Em term os
u artisla-magico·nao mais ocupa u":ciltlwda obra: Na esteira dafolOgrafia; que
duchampianos, 0 olhar cedcli lugar aO "atraso":
marginalizou a mao em prol de uma maquina 6ptico-quimica, 0 ready-made de-
lugar de quadro ou pintura': 19
lega a produc;:ao da obra a L.l1a maquina institucional. Do mesmo modo que a
governa as imagens da CpOCJ industrial - a fotografia primeirainente, 0 ready-made em seguida.
fotografia foi qualificada como imagclll scm homem,
0
ready-made deprecia, no
e preciso "empl.::gaj· 'atraso' no
Ap6s a epoca do olhar e da pintura, e 0 atraso que
Como explicar isso? Diferellle do desenho, da gravura, ou da pintura, a maqui-
artista, as 110c;:oes de talento, de intcrioridJ<.!l: e de motivac;:ao. 0 artisla tende a
na-fotografia nao permite
nao ser mais do que uma das engrenagens - 0 publico e os atores do l11undo da
0
acesso 3 imagem durante sua produc;:ao, tampouco
artc sao as outras - de uma enorme maguina de produzir obras. Alias, Duchamp
imediatamente apos a captura. Um cliche e sempre obtido em adiamento. atra-
insistc no fato de que "0 artista nao e 0 unico a realizar 0 ate de criac;:ao, po is 0 es-
sado. Pois 0 disparo do obturador nao leva a uma coisa visivel - leva a nada, ou
pectador (... 1 acrescenta sua propria contribuic;:ao ao processo criativo".17 De uma
quase nada: uma imagem latente. invisivel. Uma promessa de imagem. uma ima-
mal'cira mais concisa: "Sao os espeeladores gue fazem
gem virtyaJ, gue se atualiza apenas no final do tratamento quimico (a revela<;ao).
Com
0
0
quadro".'"
Des~eri~odo, 0 fotografo esta condenado a nunca poder ve" juntos, a eoisa ~ sua
fim da "ideia de fabricH;ao, J fotografia, e depois 0 readY-lIIade, mar-
ginaliza 0 produtor (0 oficio,
paradigmas
d~
escolha
0
saber-faw', a subjetividade) em beneficio dos
(0 el1(OI~lro, a
imagem: a contiguidade fisica deles
coincidencia, 0 aeaso), do registro (a con-
Com
0
e acompanhada por uma disjunc;:ao do olhar.
instantaneo. essa disjunc;:ao se aprofunda ainda mais,
~~~
atiE;:;;" () POOlto
tiguidade. a c;;ptur::, a maquina), c: da recepc;:ao (0 espectador). E em detrimcnto.
extremo, onde 0 olhar lanc;:ado sobre a coisa e eliminado. onde s6 a posteriori -
igualmente, do olhar.
com atraso - 0 fotografo descobre 0 que captou. 0 registro substituiu 0 olhar. "A
o OLHAR [REGARD], 0
Benjamin, para quem a camara "nos inicia ao inconsciente optico, como a psicanalise, ao inconsciente pulsioral':20
natureza que fala
AfRASO [RETARD]"
Em razao do cantato fisico quc, Ilcccssarialllcntc, a fotografia assegura entre a
Fundamentalmente, na fOlografia, em particular na fotografia instantanea, a
coisa e sua imagem, 0 olhar nao tem mais 0 mesmo grau de necessidade apresent,ldo Ila pintura. No limite. a fotografia tornaria ° nlhar facultativo. Essa propost<l,
noc;:ao de "atraso" entra na artc com os ready-made. que abrem a relac;:ao tradicional entre 0 quadro e 0 artista a um terceiro parceiro: 0 espectador. Proclamando que "sao os espcctadores que fazeill as quadros".21 Marcel Duchamp assin:d:1
que pode parecer absurda na metade do seculo Xl>-, ganha credibilidade ao longo
dos anos, particularmente com
0
a camara e diferenlc daquela que f<ll<l aus olho;: observa \'·alter
impulso do instantaneo, cujo poder expressivo
maliciosamente 0 papel central que desempenham, ao lado do artista.
0
publico
o jovem Jacques-Henri Lartigue revela, em 1913, no momenta mesmo em que
eo conjunto dos atores do campo artistico. Ele utiliza, desse modo.literalmente,
Marcel Duchamp inscreve seus primeiros ready-made: Roue de bicyclette [Roda de
o "principio diaI6gico", teorizado por Mikhail Bakhtin~. semiotico sovietico da
literatura e do romancc 22
bicicleta] c Trois stoppngcs-eta/oIl5 [Tn's pad roes de cerzidura].
Essa especie de derrota do olhar se acenlua no entreguerras 11 medida que aument<l a banalizac;:ao da imagem. com a difusao das fOlografias de imprensa e as
de amadores. Como sc a proliferaC;:iio das imagells fosse inseparavel - ao mesmo
:.j
M:lrce! Duch:lIl1p, '1.:1 mari(:(.'
cil.,
:0
~·1Jlu:1 Uuchalllp. -I." pr()(.:n~u~ crl',lli(" (llJ~i J,
"
,,°111 !)lldlfl/II/ l r/II :.:;glll'. ~il., p. 18~.
~1 .. cd Ouch.mv, "Alpha (Il/CR!)'ique. Regud<urs" (IY57). em
11.1\111,al.tl4.."
no,,,,,} pu'","f.hn': f1);I~ u It'f1I1UlIl"," (hq;.lri;llll.lj~ I't'rh) do ~nllido pn-'"'nJido por l)u<:II:1I1I11 StTiil
lIO:-'~ giria ligatla a -1."OIb.l\·~r': i.sw
1.\ Jll;11l Jt.' "pruh:b,: lalllUL'1I1
Inn
1.\
Sigllill(Jdu th.' "fic;\( Vt,:Jadv': (N. J-:.)
nu par
Sl'S
(t:libalaires. ml~m(' (Ia boile ",,:rte)': em Dllclwrtlp rill .'Igm',
Waller Benjamin, "L'oeuvre d'art
a l'epoque de sa
reproduction meC3nisee~ em ferirs frall,ais (Paris: Galli-
mud,1991),p.163.
Ducl"""p clll sigll<, cit., p. 247.
() ~ubtillJlo (('mete II urn trocadilho "p.raflco-(onico" de Marcel Duchamp. e. em portllgues, ja es(a consagrada a
llli:"l·.1
v. 41.
~:
"
Marcc!Duchamp, Alpha (Il/CRllli'!"c·. Rq;:lI<kurs'~ cil., p. H7.
"
Ver MikhaIl Bakhtine, Le marxisme <I la philosophie du tallgage (Paris: Minuil, IY77): Mikhai"l Ilakhline.
Esthttiquc cf t},.!orir du roma" (Puis: G311il1l3rd. 1978); e TzvdilO Todorov. Mikhnrl Bnkhrine. It· p,j"cipt'
dioJ(}~ifJltI· (!',Iris: S"."uil. 191\).
"I
I
I A FOTOc..;RAfl .... DOS ARTlSTA$ I
I
ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE
pclas praticas, 1II0villlcntos artislicos, artistas, obras. E bJJizam a evoJu<;:ao da urte
Com a modernidade, a afirma<;ao do publico e 0 aumento da divisao do trabaIho
110
Cl'~ltcmporanea ocidental durante a segunda metade do seculo
ccn:iri6 da arte COnscguem a soLrcrania quc benefiLiava 0 artista em rnao
do seu saber-fazel', seu ofieio, seu olhar. A partir dai,
0
xx.
artista - seu "carimbo", seu
olhar - nao cmais a unica garantia do valor artistico. Ap6s ter-se apoiado, durante
A fotografia-ferl Jmenta da arte
muito tempo, no artista e no quadro, tal valor tern de ser construido (com atraSO e
Na esteira de uma longa tradi<;ao, e a arte contempora.nea a primeira a requisi-
aleatoriamente) no cenario da arte. Fazel' arte nao consiste mais em fabricar (artesanalmente) quadros, mas em Jan<;ar, no mercado simb61ico, coisas ou pro pastas
tar a fotografia na qualidadc de ferramenta. Artes de Baudelaire, que recomenda-
t a lei da oferta e da procura, e a lei do novo
va alojar a fotografia em scu pape! de "humi!de serva da arte", 0 pintoI' e fot6grafo
mercado artistico. E, como em todos os mercados, 0 valor dos produtos nao coin-
Louis-Camille d'Olivier funda, em 1853, a Sociedade Fotogratica, especializada na
esteticas dirigidas a "espectadores".
cide necessariamente com suas qualidades intrinsecas. 0 trabalho da mao,
"ca-
produ<;ao de nus para artislas. No inieio de 1860, Alexandre Quinet igualmente
rimbo",o oficio, 0 olhar do artista ("Eu queria me afastar do "carimbo" e de toda
com(T(;ializa series de nus, cuja recomenda<;ao "Estudo natural, autorizado sem
essa pintura retiniana",ll declarara Duchamp) tem menos importancia do que a
exposi<;ao na vitrine", inscri ta em cada urn deles, den uncia sua dupla destina<;ao
aten<;ao - incerta, ocasional e volatil - do publico, dos "contempladores". Logo,
0
no contcxto da epoca: tanto para os artistas, quanto para os amadores de imagens
valor artistico chega alrasaoo: nao mais no momento da produ<;ao (0 tempo cia
levianas. ~.1ais diretament<.' no inicio dos an os 1870,0 "fot6grafo da Escola de
obra e do artista), mas no segundo tem!'J0, da circula<;:ao (0 do publico). 0 valor
Belas-Artes de Paris", Ma r';Lllli, propoe urn catalogo importante, de "academias
0
das regras artesanais do oficio e liberado pelos ready-made e pela a fotografia,
para artistas", .:omposto ,ias principais poses de mulheres, e tambem de homens
sendo transportado para leis rna is volatcis da escolha, do acaso, da economia de
e de crian<;as, vigentes na pintura chissica da epoca. Ao contra~io cias imagens de
mercado.
Olivier e de Vallou de Villeneuve, as de Marconi sacrificam ostensivamente os
Se 0 trabalho de Marcel Duchamp pode, para a grande maioria, ser considera-
efeitos esteticos a sua tunl;ao: tornar as poses as rna is claras possiveis para cor-
do como uma atualiza<;:ao (sem a fotografia) do paradigma fotografico no seio da
responder as demandas dos artistas ou as orienta<;6es dos programas de ensino.
arte contemporanea, algumas obras particulares - Fountain [Fonte I (1917), Rrose
Seitlvy [R6sea Eavida;
I (1920), Belle HCIleine
r (1921), etc. -
Para colocar a fotografia ainda mais a servi<;o dos pintores, Jean-Louis Igot realiza,
[Bela Halito], Eau de voilette [Agua
em 1880, quadros de provas, compostos de oito ou dezesseis diferentes cliches de
utilizam efetivamente a fotografia como ferramenta.
corpos nus, ou de partes co corpo: bustos, pes ou maos. Tamb~m ai, a finalidade e
Essa func;ao de ferramenta e apenas uma das vers6es das rela<;:6es entre a fotogra-
evitar que os artistas reCOl ram a loca<;ao de urn modele vivo, muitas vezes onero-
fia e a arte.
sa. H Muitos serao os pintores que vao continual' a utilizar a fotog~afia dessa forma,
de veuzinho
Seja como paradigma, ou como poder recusado, a fotografia excrceu uma a<;:ao
como urn documento zimples e passivo, 0 mais transparente passive!.
tao real quanto indireta sobre a art~: aquela de uma potencia virtua!' A atualiza<;:ao
da fotografia na arte, sua presen<;:a efetiva, diretamente visivel, s6 se fez progressivamente, de vanos mOdOs C eli!
','";';!' ctdl'dS:
FRANCIS BACON: PINTAR CONTRA OS CLICH~S
prinlc.;!I.J, ellquallto silllpies ferramenta;
depois, enquanto vetor; e, finalmente, enquanto material da arte contemporanea.
Essas etapas - que se sucederam e sobrepuseram sem sc eliminar - distinguem-se
Na segunda metade do secul0 XX, Francis Baeon serve-se igualmente da fo-
j
.;,..
tografia como ferramenta, mas de uma maneira particular, bern rna is complexa
e sofisticada. Sua rela<;:ao com a fOlOgrafia nao e simplesmente pratiea e neutra,
"
Maced Ouch.mp, ap"d Calvin Tomkins, 71" Bride ,,,,d
,1<, Bacl<dors (Nova York: Viking,
1968), p. 24; c,
mas passional: e lima rela<;:ao de fascinio e de menosprezo, como testemunha seu
umbtm, Thierry de Ouve. Rtsoaan= d" readymade. cit .. p. 156.
Em frances Rrose Siu"'y permite lamb<m a Jeilur. "Eros e a vida~ Nos litul n , das obras, Ouohamp fallcoca·
<JilhOs'homof6nicos com Belle Helene I Bela Helenal • Eau de Toilklle IAglla de CoJ6nial· IN.E.I
JOO
"
Andre Rouille, Le corp'
</ 'Ot<
i",age. Photographic dll XIX' ,;hle (Paris: Conlcejour, (986). pp. 48-51.
JOt
I [NTRE
h)TOC~AfIA t: ANTE)
1;\ FOTl)CRAFJA DOS ..... RTISTA$ I
Finalmente, vemos s6 elas, que subslituem as coisas. Jl Se Bacon confessa leI' sido
aldie, cujo chao e juncado de provas fotograficas, ao mesmo tempo onipresenles
"sempre perseguido" I'd as imagens fotograficas, nao
c pisiJteadas pelo artista e seus visilanles.
-';
,,',-
A fOlografia participa profundamenle do universo visual de Bacon, que, frequrnlemenle, se serve dos clichcs de Muybridge como rle "um
e pOl' se:i ;medialismo, seu
conteudo de verdade, ou sua lransparencia em rela<;:ao as coisas; e, ao conlrario,
~I
dicion;\rio",~; para
cle aponla, devido
a sua "ligeira
dc:fasag,el~l
rela\~
em
a vulgala
) ao fato, que me remete
analisar os movimentos do eorro humano; que estuda os quadros anligos via fo-
mais viulenlamenle ao faw".!' Em oposi\<1o
lograllas; que declara "buscar nas revislas,
afirma, assim, que a eapacidade da fotografia de lransmitir 0 real nao se baseia cm
de fUlebol e de
boxeadores",~·
0
tempo lodo, fOlografias de jogadores
mas lalllbclll de animais; e que prefere pintar seus
relratas usando fOlografias, e nao diretalllente em presen<;:a de seus mode/os. 13a-
sua suposta adercncia
retralo~'
ell' gostaria
de pinlar - George Dyer, Isabel Rawslhorne, Lucian Freud, Henrietta Moraes, etc.
A!Cm disso, Bacon considera que
lransformado com
lografia
0
0
exercieio da pintura foi profundamente
aparecimento da fotografia. Na realidade, ele torna a fo-
aml-'jdlli(~nlC ",pon~avcl
coisas e aos fatns, mas em uma inelul;\vel deLlsagem que
selllpn: a scpara deks. t l1essa lkfas:tgel11' e 11.10 pOI' adacneia, que a lotograli:\
\
con nao s6 utiliza, permanentemcnle, fotografias ja exislenles, mas lambem manda IOlografar (muilas vczcs por John Deakin) pessoas cujo
:IS
la leoria do indice, Bacon
pode captar
0
real. E gra\as a tal defasagem - que permile ao olhar e ao pensa-
mcnlo Illovimcnlar-sc enlre as provas fotogdficas - que Bacon diz deseobrir
'.'
;.~ ...
I
0
real nelas, mais do quc nas eoisas enos proprios fatos.;'
A 110<;:30 de defasagcm rcmele
I
j
no\;io de deforma\ao que Bacon eoloca no
centro de sua pratica pieloriea, e de sua concep<;:ao de semelhan<;:a. A seus olhos, a
pelas difer.:n<;:as existentes entre sua maneira
fotografia esta condenada a ficlr aquem da arte, pOl' permitir apenas uma "Iigeird
de pinlar, baseada na neforma<;:ao, e a maneira de Degas, que 'linda podia sim-
defasagem em rela<;:ao ao fato", enquanto a arte, ao conlrario, deve radicalmcnle
plificar, porque "na epoca de Degas a fotografia nao era lao aperfei<;:oada como
"deformar a coisa e afasta-Ia da aparencia", de maneira que chegue. pOl' essa desse-
alualmente".l~ Us
melhan<;:a cOl1struida, a uma profunda semelhan<;:a.!S Derivar livremente a partir
"SCI'
aperfei<;:oamentos tecnicos da fOlografia obrigam os pintores a
cada vez mais inventivos" e a pintura a redefinir-se, a "mergulhar em alguma
coisa de mais elementar e fundamental':l9
Para Bacon, a fOlografia
iSIO
e mais do que
dos modeJos, deformar a eoisa, afaslar-se da aparencia: todos esses procedimenlos
e, em "reinventar 0 realismo".JD
sao alheios a fotografia, po is, por mais fascinante que ela seja, continua limitada,
uma simples ferramenla de lrabalho,
assim, ao eSlrilo dominio l'n'-piC/orico. Se Bacon
e, efelivamente, perseguido pela
mais do que uma forya motora da hist6ria da arte, e urn meio de vel'. Ele diz: "
fotografia, ele a mantem, en lao, no papel subalterno de uma ferramenta, it mar-
"Nao olhamos I uma coisaj somenle de mancira dircta, mas tambcm alravcs da
gem da arte. E chega a elaborar mesmo uma anlitese da arte, na qual ele apoia
cmboscada ja feita pela fOlografia e pelo filme".Jl Nosso olhar sobre as coisas nao
lodo
e nem direlo nem puro, mas cheio de uma miriade de fotografias e de imagens
de filmes - e seria precise acrescentar as imagens, cada vez mais numerosas e
dirigida para a inleligencia, uma "forma nao iluslrativa", atingindo a sensibilidade. J6 Em termos deleuziancs: "A pintura deve arrancar a figura do figurativo".J:
f<lpidas, da televisao, dos videogames, ou da internet. Ora, essas fotografias e es-
Isso passa por uma luta obslinada contra os cliches, que obstruem tanto a tela
0
seu procedimento pid6rico que visa a extrair de uma "forma iluslraliva",
sas imagens lecnol6gicas saturam nosso olhar, a ponto de conseguirem tel' uma
existencia pr6pria, nao mais ser somente meios de vel', mas ser aquilo que vemos.
)~
.\)
"
David Sylvesler, [nlreri,1IS avec FralUis Bacon (Genebra: Skira, 1~96), p. 36.
"
"
"
Ibid., p. J 24.
Ibid.. p.44.
Ibid., p. 186.
Ibid., p. 7 J.
Ibid., p. J86.
Ibid., p. 36.
N
~
"
).
Gilles Ddeulc. Fmr.~·;.; ~',;..:~).;. <.-,.
" ' ' ' \ ,;;" ' .. \;:mO{111I: : j;;,:(~.: L;,J. Difrt'ccn(e, 1981), p. 59 .
David Sylvester. Enrrel;cll:' m'l't". :,.,I·:(i) Bth"till. ,;iL. r. 36.
"Grayas
a imagcm fotografica. (\\orr.: que me: ponho 3
percurrt'f a imagt'm
t:
descubro
0
que penso set sua
realidade. muito mais do que vdo ao olhar para a coisa." Cf. David S}'lvester. Entretiens avec Francis Bacon,
cil., p. 36.
H
Michel Leiris, a prop6sito de FrJllcis Uacon, (ab d~ "scm(,)h..ll1~a na dcssemelhanl;a': Cf David S)'IV(,SIt'r,
Entretiens avr.c Fra1lcis Bacon, cit.. p. 10.
"
J1
Ibid., p. 62.
Gilles Delculc, Fral/ris Bacon. LI
logirille
dl.' /(/
SeIl50(;01l, CiL,
.103
p. I J .
1 A rOTOCRAFIA DOS ARTISTAS I
1 EI'TRE rOTOCRAfIA E ARTE 1
quanta
se;:;ara
0
0
Gilles Deleuze assinala que, de modo contrario a evidencias admitidas apressa-
oiliar do pintor; isso se baseia na consciencia, aguda, da c1ivagem que
damente.o pintoI' moderno nunca se encontra diante de uma superficie branca.
figurativo, ou 0 iJustrativo, da figura nao ilustrativa.
A obsessao de Bacon em rela¢o 11 fotogratia confirma a tensao entre
0
Exatamente
"ilus-
trativu" e 0 "nao ilustrativo" que atravessa toda a sua obra; ela encontra suas interrogac;:6es - acerca do "misterio da pintura", da "maneira como a aparencia pode
ser restituida" - nao no modo da ilustrac;:ao, com a fotografia, mas no modo nao
ilustrativo, "de maneira tal que
0
misterio da aparencia seja captado no misterio
o
,.
0
uposto:
pintor tern muita coisa em sua cabc\a, em volta iele ou no atelie. Ora, tudo
.~
aquilo que esta em sua cabe\a ou em volta dele ja esta na tela, mais ou menos virtu-
~.
almente, mais ou menos atualmente, antes de come~ar seu trabalho. Tudo isso esta
"
prcsente na tela, na qualidade de imagens, atuais ou virtuais. Emb9ra nao tenha
da fcitura':JS Tal postura, para a qual a aparencia e urn misterio, apoia-se em urn
de preencher uma superficie branca,
"metodo il6gico de fabricac;:ao" das obras. Aquilo que, para Bacon, significa, de um
0
pintor precisa, antes, esvaziar, desobstruir,
limpar. Logo, ele nao pinta para reproduzir na tela urn ob.ieto funcionando como
lado, escolher a pintura contra <J fotografia e, de outro, colocar 0 acaso e os aciden-
modelo; ell' pinta sobre imagens que .ia esliio
tes no centro do ate de pintar. Pintar, "capturar 0 misterio da realidade", consiste,
cionamento vai subverter as
assim .- a partir das coisas e dos corpos, Oll mais frequentemente, a partir de foto-
o
gratias -, em deformar, distorcer, desmanrelar as <Jparencias,3''' e em "derivar"'" do
rela~6es
Ij,
para prodU2ir uma tela cujo fun-
de modelo e de copia."
caminho est rei to, improdvcl e sernpre doloroso qlle Bacon nao cessa de
mundo racional e provavel das figurac;:6es para a mundo irracional e il11provavel,
cias liguras (nao ilustrativas). Para !.lacon, pintar, t' Jerivar do tigurativo para a
trac;:ar - da "forma ilustrativa" para a "forma nao ilustraliva" - confunde-se de
fato com lim proccsso (it- d('pur;\~~i() ,ia tela e do olh<Jr; com uma extr<J~jo das
figura. Se a fotogratia (0 figurati\'o por excelencia) colabora muitas vezes com
aparencias, fora da ganga espessa e opaca de uma multidao de cliches: ilustra-
o processo pict6rico, este s6 se realiza ao liberar-se radicalmente cia fotogratia.
lYocs fotognltic<Js, l1<Jrrao;-oes jOr:1al[sticas, ficc;:oes cinematograficas, atualidadcs
Assim, com Bacon, a fotografia e duplamente uma ferramenta: como elemento
televisivas, ideias preconcebidas, percepc;:6es auromaticas, Jembranc;:as, fantasmas,
ativo no processo de produc;:ao da obra, e como avesso absoluto e coadjuvante da
pintura.
As deformac;:6es sao proporcionais 11 "diticuldade de pintar"." Elas testemu-
I)
etc. Mas, nos cliches (i1ustrativos e narrativos) com apa!
~ncias
puras (tais como
Bacon os concebe), 0 caminho nao e reto, passa distant' das coisas - nem copia
nem registro nem iJustrac;:ao, ele e, ao contrario. "urn meio para que a aparencia
nham os esforc;:os necessarios para frustrar a fugacidade das aparencias "que
possa estar la, mas refeita a partir de outras formas':'5 de maneira completamente
nao cessam de flutuar';41 para captar seus misterios e para vencer as "ideias
artificial. A semelhanc;:a nao esta diretamente no extrema da literalidade<6 e da ra-
preconcebidas"4J que as deturpam. Mas, as desarticulac;:6es formais sao sobretudo
cionalidade, mas toma forma, sobretudo, no decorrer dos percursos indiretos do
os vestigios cia aspereza da luta que Bacon dirige contra os cliches (os estere6tipos
visuais e discursivos). 0 trac;:o distintivo de sua postura estetica, ao mesmo tempo
artifice, nos meandros irresoluveis da irracionalidade, das fahkias e incertezas do
de fascinio e repudio em relac;:ao a fotogratia, consiste em atingir a figura alem do
flgurativo, do ilustrativo, do narrativo: pintar conlr<J os cliches. Oportunamcl1tc,
'.
D~vid Sylvester, E"tret;cm ava Francis Bacon, cil., p, III .
..
liJid..I'I'.124·126.
.. Ibid., p. 44.
" Ibid., p. 108.
" Ibid., 1'. 126.
H
Francis Bacon: "Exisltrn ideias
acaso e dos acidentes. A semelhanc;:a e pictorica, nao fotografica~ Abrir as coisas,
livrar as aparencias dos cliches que as recobrem, atingir uma concepc;:ao renovad<J
da semelhanc;:a; resumindo, "reinventar 0 realismo".47
A cocrencia dessa quest,io artistica (cm que a fOlogratia ocupa urn lugar de fato
bern modesto) parece basear-se em pelo menos quatro principios. n mais eviden-
H
U
preconc~bidas quanto
ao que
e ou devcria ser a aparencia"; OU: "A maneira
40
como ~ (cnta (utr surgir a apa(~ncia I~~ ~ queslJo pumanente do que. vcrdadeiramenll', a aparencia ~". cr.
DJviJ Sylvrs(a. En,ret;e"s av~( Francis Bacon, cie, pp. I II e 124.
J04
"
Gilles Deleuze, Francis Bacon. LA logiqlic de In sensation, cit., p. 57.
David Sylvester. EJJtrL~tit"ffS a~'rc fnwcis Bacoll, ciL, p. 113.
Francis Bacon: "1550 qll(" rompo 0 ll.'Il1pO (000. t"SS3 Iitt:ralidadt:': Cf. David Sylvesler.
Bacon. cit., p. t 29.
[bid., p. 186.
JOS
Efltrctj(l1S QVt'C
Frcl1lcis
I I::~TKt: f\lT\lt;KAFIA t-: .... KTf.
I
I A 'Ol"OGRAFIA DOS ARTISTAS I
res, suas ferramentas, seus procedimentos. "Uma fabrica': ele decIara. "e um local
te e, naturalmente, 0 principio de "desmembramento constante da imagem",'8 que
e seguido pelo principio de artificialidade, segundo
0
ql;al UI~I ~e~lismo renovado
onde se constroem coisas.
t a.i que eu fa<;o ou constmo minhas obras. Em meu
sllpoe "uma nova maneira de encerrar a realidade em qualquer coisa de comple-
trabalho artistico, a pintura ii mao levaria muito tempo e, de qualquer maneira,
lamente [artificial]':" Bacon acredita ainda em outro principio:
nao e de n0ssa epoca. Os melo:; mecanicos sao atuais. Empregando-os, posso levar
0
de que "qllase
sempre as imagens acidentais s,io as mais rcais':~o Enfim, com ele, a semelhan<;a
e sempre improvavel, s6
a arte a muito mais gente. A <lite deveria ser para todo mundo':SJ
As fronteiras ficam nitid.' llIente tra<;adas: de um lado, a fabrica; os meios mc-
possivel em silua<;ao extrema de perda, pelo artista, de
seu uom[nio, em llllla CSpCCil' dc desprcndimcnlll Clll rcla<;ao aos alllomalismos
canicos, a constru<;ao. a rapida, a difusao de massa; do outro,
inseridos nos seus gestos, em urn esquecimento de seu saber-fazer: "Eu quero fa-
lentidao, a unicidade. 0 llIodelo fordista da produ<;ao industrial em serie e do
zer parecido, mas nao sei como faze-Io parecido"/' repete frequentemente Bacon.
consumo de massa rege a cria<;ao artistica. Dentro dessa concepyao de arte, a fotografia desempenha um pare! principal e inedito:
Ate suas ultimas obras, do infcio dos anos 1990, Francis Bacon mantem com a
0
0
aIelie, a mao, a
de ferramenta essencial de
fOlografia uma rela<;ao mais passional. e de (crt;] maneira mais paradigmatica do
uma a<;ao de despictorializa<;ao da arte. Com a ajuda da fotografia e de procedi-
que pratica. No momenta em que sua notvriedade j,i estj bem eSlabelecida, ele
mentos fotomecanicos, como a serigrafia, Warhol mina os valorc:s can6nicos da
assiste, no inicio dos anos 1960, 3 cnorme desordem que Andy Warhol introduz
cullura erudila em prol dos valores can6nicos da cultura de massa.
nas rela<;oes tradicionais entre a fOlOgralia~' :';nl;;:' rom a Pop Art, e rarticu-
No inicio dos anos 1960, quando Warhol se impoe no cenario artistico ameri-
larmente com Andy Warhol. <1 fOlOgrafia torna-se, de fat,), ferramcnta principal da
cano, a fotografia de imprensa e um dos grandes vetores da cultura popular, ados
pintura. Enquanto nos quadros de Bacon a fotografia e virtual e r.egativamente
noticiarios policiais, das rubricas "celebridade" e das pUblicida,des, que sempre
ativ", ela esta positivamentc prescntc n(;s qllac!ms de Warhol. que dela empresta
terao a considera<;ao de Warhol. Assim, ele come<;a a pintar, em aqilico, uma pri-
seus temas, suas formas e seus processos. Enquanto Hawn pinta contra a foto-
meira pagina consideraveJmente ampliada do New York Post (1961), uma do Daily
grafia, Warhol pinta ostensivamente com ela: "ao querer ser Iele proprio J uma
News (1962), e sobretudo aquela do New York Mirror que, em 4 dejunho, e in lei-
maquina"S2 e ao promover uma verdadeira despictorializa<;ao da arte.
ramente consagrada a um acidente de aviao. Nessa ocasiao, Warhol faz uma dupIa escolha: tecnica, ao utiJizar serigrafia fotografica sobre tela; e iconografica, ao
extrair da imprensa fotografias de figuras e de cenas as mais emblematicas e mais
A MAQUINA-WARHOL: "OESPICTORIALlZAR" A ARTE
cotidianas da cultura popular americana - estrelas do cinema, do show-busillt:s~
Suas obras, suas praticas artisticas, suas concep<;oes da cultura, tudo opoe Bacon a Warhol. Igualmente seus atelies. Pelo proprio nome, a celebre "Factory" de
e da politica (Elvis Presley, Marilyn Monroe, Jackie Kennedy, depois, Liz Taylor e
'.
Warhol esta no polo oposto aos atelies de Bacon, cujos caos indescritiveis apa-
Marlon Brando);
0
noticiario policial (acidentes rodoviarios, suicidios, intoxica-
<;oes alimentares, calastrofes, rebelioes); uma longa serie de cadeiras eletricas, e
recem como metaforas de um profundo investimenlO individual no ate de pin-
tambem urn conjunto de "Fugitivos muito procurados': apresentados sob a forma
tar. Diferenlemente de Bacon, que se situa inleirJI lcnle do lado da grande arte,
de duplos relratos de policia, de f"ce e de perfil, granulados peia forte reticula dos
\'hrhol procur<t literalmcnte contamina-Ia com a cultura de massa - seus valo-
jornais que os divulgaram. A "celebridade" eo noticiario policial, a face brilhante
e a face sombria sao, na epoca, os do is grandes generos .i~ oociedade 3menC\n;1
..
Ibid .. p. 124 .
•'"
Ibid., p. 189. Bacon. dt.:' inicio. diz "arbitrario': e Sf,;' corrigc; "Ell ciiss<..' 'aroildrio', Illas penso quc 'artificial' leria
do espetaculo. As estrelas e 0 submundo, os reflexos da felicidade e as severidades
sion melhor".
'>I,j
I);lvid SylveSIl'f, l;'",rt't;ellS aw( Fr//I/{';s lJilCOI" rir., p. I HC,.
"
Ibid.• p. 15H.
~J
And)' Warhol, "\\'hal is Pop Art? Interviews with Eight Painters. Part '" (rllln'vista com Gene S\"eIlSOIl, em
1\, I NfW~. Nov.l Yl)rk.
n'
do destino,
0
sonho e
0
horror: no espayo (ate entao rotegido) da grande arte,
l1( NJugh(~ r...tovift,.'s': cnlrevisl;J .)In Douglas Arango. em Alvvir: TV
Secre,s. jun. tic 1967, t1plullh.'l1j;lI1lin UUdlloh, Alldy \V(lrhoJ. Rbrospr:c(il-'r:, cat:11ogo (Paris: Centre: Gt"orgt's-Pompidou. 1990), p. 40.
HAndy ",rarhal, "UIJJl~rgrOlllltl Films: I\rt
Uti\'.
de I~(131. \~m Charlt:s J larrison &. Palll \\'ulld. Arlt'" tJIi'nr;r. cil.. pp. 806·810.
JUh
J07
I
ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE
I A FOTOGRAFIA DOS ARTISTAS I
I
Em razao de encontrar-se a mecaniza~ao no centro do procedimento artislico
Warhol introduz eSlereotipos da imprensa sensacionalista. E isso. servindo-se da
fOlografi<l. vista que seus quadros sao lodos. ou quase, reprodu~oes serigrafadas
je Warhol, as imagens tccIlol6gicas - a fotografia. suas versoes na midia impres-
de fOlografias dOl imprensa sensacionalisla. A que permite inverter em vibrac;:ao a
sa e suas reprodu~6es serigraficas na tela - ocupam urn lugar muito importance
:-lorna realidade de uma exislencia bastanle comum. A que oferece
em seu trabalho. Seu objetivo C. explicitamenle. passar da mao para a serigrafia
o incrivel,
0
0
excepcional,
(especialmente fotografica), a fim de produzir suas telas
e>.:traordinario, para conjurar a monotonia de uma vida trislemenle
a mao tomari3 muito tempo" -
0
mais rapidamente pos-
banal. A que contribui, lalvez, atraves do maravilhoso ou do horrivel, para reen-
sivel - "a pintura
cantar existencias sem esperanc;-a, para libera-las (de maneira ilusoria) da suroa
industrial de massa, que sob seus olhos conhece uma ascensao sem precedente.
domina~ao do
cotidiano.
~.
"as
e de moldar a arte na produc;:ao
meios mecanicos sao de hoje". proclama ele - isso que e verdadeiro para a
A sociedade do espelaculo e tam bern a sociedade do fetichismo dOl mercadoria,
industria, logo, deve ser tam bern para a arte. A essa postura, sacrilega do ponto
dos produtos em serie e pecuniarios, que constiluem a outra faceta tematica dOl
de vista das concep~oes herdadas de varias dec"das de expressionismo abslra-
obra de Warhol. Em 1960, elc realiza uma serie em acrilico sabre tela inteiramente'
to. Warhol vai dar um grandv i Ilcrcmento. Assim,
consagrada a objetos emblematicos dOl sociedadc de consumo: Tele a 199 dollars
a mistica
010
culto da cria~ao piclorica.
do geslo expressi\'ll, ao dogma da originalidade e da invenlividade.
a
[teve a 199 dolaresJ, Water Heater (aquecedor de agua), Drills 7.88 (furadeiras a
venerac;:ao do talento do arlisla. \'\'arhol opoe (apoiando-se na fOlografia e seus
7,88 dolares), 3-D Vacuum (aspirador de po 3-D), elc. Sao imagens em preto e
derivados) a mecanizac;-ao, ~ 1"'I1f,hilid~~~ (" a di\:isao do lrabalho. Tudo isso. que
branco, reprodu~oes ampliadas de anuncios publicitarios publicados em jornais,
seu trabaJho atualiza com
uma especie de hino
a mercadoria, a essa alian~a (a partir dai, consagrada) enlre
U\l1;;
grande eloq;Jencia. Warhol nao para de explicitar
em suas entrevislas, ao comeillar os efeitos do usa da serigrafia em sua pinlura. A
a coisa e seu pre~o de venda. Em 1962, promove urn longo desfile dos principais
divisao do trabalho: "Que q~~~lquer outro pudesse fazer todas as minhas pinluras
icones da America: de urn lado, as notas de urn, dois e dez doJares; de outra, as
em meu lugar";;'
latas da sopa Campbell's e as garrafas de Coca-Cola. Warhol nao e, cvidentemen-
que pintei 0 quadro ou um outro qualquer"; a recusa da criativid~de: "Hoje, eu
0
anoninnlo, a despersonaliza~ao: "Que n3.o se saiba se fui eu
te,o primeiro artista a representar produtos da sociedade de consumo. Em 1954,
nao invento"; a nega~ao do estilo: "0 estiJo nao e realmente importante"; e, evi-
Jasper Johns iniciava uma serie de pinturas em encaustica da bandeira americana,
dentemente, a famosa figura. do artista-maquina, exatamente oposta
a figura
do
a insignia suprema do american way aflife. As combine paintings e as telas, de Ro-
artista-artesao no gesto e na pincelada expressivos: "Quero ser uma maquina, e
bert Rauschenberg, abundam em quantidade de signos e emblemas da sociedade
sei que tudo
0
que fac;:o COIllO uma maquina
e, exatamente, 0
que quero fazer': A
de consumo, assim como de tecnicas diferentes: a frotagem,' os objetos achados,
partir do modelo da maquina e dOl produc;:ao industrial, e com a ajuda do carater
a pintura nao figurativa,
mecinico de suas ferramentas artisticas (a fotografia e a serigrafi<iJ~'Warhol mina
0
desenho e tecnicas de reproduc;:ao como a serigrafia e
a fotografia. Todos os artistas pop dos anos 1960 - Roy Lichtenslein, Claes Oldenburg, James Rosenquist, etc. - tambem
0
fizeram, mas nunca tao radicalmente
quanto Warhol. Nenhum outro insere a cullura de massa tao fortemente na cuItura ef'ldita: naturalmente seus temas e, tambem, seus valores. Em particuIJr
J
..
os valores da pinlura-pimura, encarnados pelo expressionismo abstrato: sua pintUfa (mecanica) contra a pintura (expressionismo) de certa maneira leva a efeito,
no inicio dos anos 1960, uma despictorializac;:ao da arte.
Mesmo sua maneira de pintar, de acrescentar com a mao a cor na tela, e med-
:roc
canizac;:ao,o seriado, a reprodutibilidade, e isso gra~as a uma utiliza~ao 010 mesmo
nica, toralmente indiferente aexpressividade do gesto, assim como
tempo intensa e coerente da fotografia e das tecnicas fotomedinicas.
Marilyn sao. altern ada mente, lurquesa, dourada, vermelha, etc., e a cor arbitraria
010
realismo. As
ultrapassa os tra~ados dos motivos serigrafados. Muitas vezes - Blue Liz as Cleopa00 franets frottage, "esfregar", "designa uma leeniea de decalque. pda qual se lira uma impressao direta de
urn motive, de urna textura au irnagem em relevo. medianle a eoloca<yjo de urna folha de papd sabre de e, a
scguir. csfregando de mancira suave c precisa com urn crayon au I3pis macid'. Cf. Luiz Fernando Marcondcs,
. Dieionario de termos artlsticos (Rio de Janeiro: Pinakotheke. 1998). p. 130. (N. T.)
30B
tra [Liz azul como Cleopatra] (1963), Orange Car Crash Fourteen Times [Acidente
"
Andy Warhol, "What is Pop Art''', cit.
.\09
I t:~TRr fOrU<,;RAFIA E AKTE
I
I
A FOTOGRAFIA DOS ARTISTAS
I
de carro laranja catorze vezes] (1963), Five Deaths on Red Grol/lld [Cinco mor-
"por exemplo, a lata de sopa e nada mais. Quando alguem quiser uma, bem, faze-
los sobre fundo vermelho I (1962), Mal/ve Disaster [)I~sastre malva I (1963), etc.
mos lima outra.
.
.
- lima cor unica recobre uniform<:JIl<:nte a lela.
Nv~
pc qualCJuer
maneira, fazemos sempre
'!
mesmapintura, tenha
ela um ar diferente ou nao".;;
Como Andy Warhol. tambclll Tom Wcsselmann e James RO$enCJuist, no dc-
dipticos onde um dos dois
paneis e desprovido de imagem - Silver Vi~a~ter I r'esastre prateado I (19631, Bille
Elec/ric Chair ICadeira e1etrica azul I (19631, elc. -, essa maneira de colorir remele
correr dos anos 1960, utilizaram amplamente a fotografia no processo pict6rico.
ao monocromo do neoplasticisJllo ou do expressionismo abstrato. Warhol, toda-
Embora eles ainda dOlllincm
via, elimina as esc6rias metafisicas ligadas ao monocromo reiterando um Illesmo
tistas pop, como Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein, novos artistas surgem e VaG
motivo em quadros de cor dif<:rt'nlc, que Icmbram as tecnicas de ofscte, ond<: as
igualmente se scrvir da fcrramenta:fotografia, mas segllldo modalidades radical-
nuanc;:as da imagem final sao obtidas pela illlpressao sucessiva de quatro cores pu-
mente diferentes. Claro, sao os artistas da arte conceitu; t, assim como aqueles da
ras. Quanto aos quadros serigraficos sem cores, como AII/bl/lallce Disaster IDesas-
land art e da arte corporal.
t re de ambulancia 1(1963), esses relacionam
0
0
ccnario artistico americano ao lado de outros ar-
ate pict6rico ao t rabalho mecimico,
unico, de transferir UllJa fotogratia da midia impressa para a tela. A mecanizac;:ao,
isto C, a aholic;:ao do autor. do gesto, da expressao, nao se Iimita somente
A fotografia-vetor da arte
a pin-
Enqllanto a fotografia, na qualidade de ferramenta, esta materialmente ausen-
tura. \"'arhol vai mais longe, utilizando a fotografl<l da maneira Illais n 1l"";"ica
possivcl. Primeiro, escolhendo cliches .ia existentes, em sua maioria ja pubkados
te das obras de Francis Bacon, enquanto, mesmo com Andy Warhol, ela
Ila illlprensa, ja tcndo passado pcla a<;;10 dos proc<:dimcntos lipogdficos. D<:pois,
lima etapa (ou
atribuindo um grande interessc
a totogratia Illecanica -
0
c apenas
opcrador) de um proccsso artistico, enquanto seu papel de ferra-
menta a mantem aquem das obras, com a arte conceitua!, a lalld art e a arte cor-
em sua primeira serie de
poralmudam a situac;:ao,
aurorretratos, em 1964 - e ;', fotogralia de policia, com os treze dipticos face-perfil
0
papel e a visibilidade da fotografia. Esses movimentos
possibiJitam a acesso da fotografia ao campo da arte contemporanea, mas rara-
de Most Wallted Men [Fugitivos mais procurados) (1964).
Finalmente, a obra de Warhol ainda se aproxima da fotografia, e afasta-se da
mente sozinha, e sim em presen<;:a de outros eltmentos nao fotognlficos: mapas,
pintura-pintura, pelo seu carater sistematicamente serial. A partir de 1962, sua
produ<;ao se estrutura inteiramente em series: os d6lares, as pinturas "Para fazer
textos, esquemas, objetos.
Essa posi<;:ao acess6ria da fotografia equivale a trata-Ia, cada vez mais, tanto
voce mesmo", as "Latas de sopa Campbell's", as "Garrafas de Coca-Cola", as "Ma-
no plano material, como no tecnico ou plastico, como pura constatayao, como
rylin'; as "Lyz'; as "Elvis", as "Giocondas': as "Jackie': os "Acidcntes de carro", as
um documento trivial, como urn veiculo neutro, como um registro automatico,
"Desastres': etc. Nao se trata de temas que as pintores reiteram mais au menos
como uma coisa banal em meio a outras, como um simples instrumento: como
c uma ocorrencia
um vetor. As imagens sao ger;\lmente de pequeno formato, muitas vezes em preto
fortemcnte ligada as outras por uma identidade de formas. Ao contnirio da gran-
e branco, sem cuidado particular na composic;:ao, nem mesmo no ajuste. Como se
livremente de uma tela para outra, mas d<: series ondc cada tela
de arte, que dedica urn verdadeiro culto
a unicidade -
e a aparencia - das obras,
.:~
isso significasse que
0
essenci:l1 da obra se encontra em outro lugar, que a fotogra-
a outra, serial. Como a fOlografia, como
fia nao passa de um aeesso,'j(), se nao negligenciavel, pelo menos secunda rio. Pela
" "·'·I::;r::,u. como JS mcrcucoriJs, como os objetos representados. A obra que
sua leveL \ e sua fraea con:;iq.encia material, pelo minima investimenlo m~nuu:
adota a 16gica do produto industrial, de uma certa maneira, permite introduzir os
que exige, pelo afastamenr) I que supoe) do individuo, pelo deficit de legitim ida-
grandes magazines no museu, a territ6rio da cultura de massa no da cultura eru-
de que tradicionalmente a ;,feta, e pelo tratamento formal particular a que esta
a obra de Warhol e, de uma extremidade
dita. f: igualmente a lei da repeti<;:ao, que tende a abolir a lei da singularidade, da
diferclI<;a.O modelo de produ<;ao sob cllcomcnda subsritui a mfstica da cria<;;lo:
"Lamentei nao ter continua<;lp a pi" 'ar sempre a m~sma pintura': declara Warhol,
310
~~
Barry nlindcrm3l\, "~'1ud\,.'rn Myll\,;
all
11l{t:rvil'w wilh Andy \"'3rhol", em Arts Magazille. 56 (2): 144-147.out.
de 1981, aplid Benjamin Buchlor.. "',dy War/wi. RerrDspectivc, cit., p. 47.
311
I ENTRE fOT(>C"flA E ARTE
I
1·\ FOTOGRAFIA DOS ARTISTAS
I
sub met ida, a fotografia vem, no caso, satisfazer a um fen6meno artistico funda-
celebres) preceitos:" 1. 0 artista pode realizar a pec;:a; 2. A pec;:a pode ser realizada
mental:
pOf qualquer urn; 3. A pec;:a niio precisa necessariamente ser realizada." A desma-
0
declinio do objeto em prol das Jtltudes e dos processos (a es,e respeito,
sao emblematicas as exposi~6es QlIand les attitudes deviennent formes [Quando as
terializac;:ao certamente nao significa
atitlldes se tornam formasl e }-J"ppellillg 0~ FII/XIIS, organizadas por Harald Szee-
mas
mann, em Berna
~
em Colonia, ern 1969 e ern 1970),
0
0
desaparecimento total d0 objeto na arte,
declinio de sua hegemonia e a rejei~ao ao culto a ele dedicado. Mesmo que
raramente a obra se reduza apenas a uma pura ideia sem corpo, a partir dai fica
estabelecido que a obra niio e mais determinada completamente por sua materialidade, que nunca coincide exatamente com uma coisa: a obra semp,e excede as
o CONCEITO: ARTE A RESPEITO DA ARTE\6
coisas, que sao apenas atualiza~6es contingentes.
'lUary 5-3 J, considerada como a primeira
exposi~ao de
exposi~iio
c Lawrence Weiner, cia
e assim
arte conceitllal. Idealizada
a obra, semp,e virtual, "alem da experiencia perceptiva direta", e suas multiplas
anunciada: "0 objects /0 painters / 0 swlptllres /
J
Joseph Kosuth / / Lawrence Wei-
Iler / 32 lVorks / I exilibirioll /2000 Ciltalogs / 44£.52st Nova York / 5-3/ January
J969/ (2/2)
288-5031 Seth Siege/allb': Ou seja, quatro artistas que niio se conside-
ram nem pintores nem escultores, trabalhos (works) que niio siio nem obras nem
ohjetos,;) cat,Hogos que, de fato, constituem
0
li~iio dos ar-
tistas conceituais, ao terem concebido uma arte que exemplifica as rela~oes entre
por Seth Siegelaub, corn os artistas Robert Barry, Douglas Huebler, joseph Kosuth
4 artiSlS / / Robert Barry / / DOl/glas HlIcbler /
E, talvez, a grande
Ja-
Bern no inicio de janeiro de 1969, C inaugurada em Nova York a
epicc ltra do evento.
atualizac;:oes possiveis: "A aparencia
d~
lima obra continua secunda ria", observJ
ainda Sol LeWitt. "Pouco impona a forma definitiva, deve come<;-ar por uma ideia.
t. 0
pracesso de concepc;:iio e de rcaliz;)~ao que engaja
Ieee sobre
0
0
artisla': 0 processo preva-
produto acabado, a ideia sobre a coisa.
Pouco mais de um ano antes da abenura da
exrosi~jo
Jal/uary 5-3/, Sol LeWitt.
no numera de veriio de 1967 da revista Art/arum, tra~, entao, as grandes It:lhas de
uma arte conceitual "rna is destinacla ao pensamento do que it vista ou it afetividade':
Assim se afirma uma nova concep~iio de arte e de exposi~iio, distante tanto
Urna arte do espirito, mais do que uma arte do corpo. Uma arte que busca, deIiberd-
da Pop Art quanto do expressionismo abstrato. Como Douglas Huebler, os ar-
damente, reduzir "a cor, a superncie, a textura e a forma, [que] apenas acentuam os
tistas conceituais situam seus trabalhos "alem da experiencia percept iva direta",
aspectos fisicos da obra". 0 atual, 0 corporal, 0 material, 0 sensivel siio, assim, ataca-
e constroem suas obras em torno de urn "sistema de documenta~iio": fotografias,
dos, com a convic~iio de que uma grande aten~iio dada;
mapa~, desenhos e linguagem descritiva. Ao colocar a documenta~iio no lugar da
o lade do expressivo e prejudica, proporcionalmente, a ( lmpreensao da ideia. Mas,
percep~iio
por ser dincil abolir total mente a rnaterialidade da obra, por ter a ideia necessidade
a vista,
de encarnar-se para se afirmar, 0 artista conceitual, em vez de se desviar da materia-
para uma arte "conceitual", mais destinada ao "pensamento".58 Mas a distiincia em
a coisa,
na arte - a "desmatcrializa~iio da arte" _,59 e reivindicada ainda
mais nitidamente por Lawrence Weiner, que lan~a, no catalogo, os seus (agora,
lidade da obra, "convcrte-a em uma ideia". Assim,
Em . . ntn:vista corn Michele De Angelus, Bruce l"aullliln e:mprcga
J
txprcssao "urna arle que ralava de artc",
'i
....
Sol LeWiu, "Paragraphs on Collct.'pluJI Arl", t.:'111 Arl[onll", S (IO):79-H3. Nova York, vcrJ.o de 1967, '1J'llui
"
Charles Harrison & Paul Wood, Arl e" Ih"o';e, cit., PI'. 910-913.
Lucy Rowland Lippard, Six Yea,,; Ihe Demala;a/;,al;o" o[lheArl Objeetfrom 1%610 1971 (Berkeley: Univer~llr IlfCaliforniJ Press, 1973).
)t2
artista nao fica completamcnte
0
desafio de ter de achar
como "emprega-la de maneira paradoxal", de ter de inventar uma arte fundamen-
t.
para cumprir esse aporisma que
a!lwns artistas conceituais utilizam a fotografia, seguindo fielmente Sol LeWitt, para
Cf. llruce Nauman, Bruce ,"·aumall. I"'ngeltexte 1966·,096, calalogo (Paris: Centre Georges·Pomridou,
I'J'J7). p. 122.
jean-Marc Poinsot. "Oelli d'expusi'iull". em Art (t)IIa'p'lId I. Art & ltlllguJ:t·. Hoberl Harry. HamIl' Dar~oVt''''
00 Kawara, /o<eph KO'Ulh, Roberl Mo,',;, ulwrence Wei"e'. (atalogo (Bordeaux: CAPC-Musee d'Art ConlemporJin, 1988), p. 13.
0
liberado da materialidade da obra, mas confronta-se com
tada na "maior economia de meios" possive!.
S#>
"nsico" leva a obra para
e da expressiio, eJes consideram passar raJicalmcnte, como ja havia
sugericlo Sol LeWitt, de uma arte "percept iva", essencialmente destinada
rcla<;-ao
0
yuem
e possivel "cnuih;i~r iJeias com algarismos, fotografias, paJavras, com
que se queira, pois a forma nao
tudo
importa'~
A arte conceitual, desse modo, introduz a fotografia na artecontemporanea
de maneira negativa, "paradoxal".
A revelia. Se os artistas conceituais a utiJizam,
e porque sua materialidade c seu runcionamentG a situam exatarnt'nte no oposto
a esses valores pict6ricos tr: :Iicionais, que eles rejeitam, e aos quais
313
0
expressio-
I ENTRE
ftlT(,l(,K/\I:IA f. ARTE
I"
I
nismo abstrato restituiu urn novo vigor. Utilizar a fotografia, isto
fazer artistico para uma maquina,
e uma
maneir~ ,~(:
e, transferir 0
aderir ao programa "Pa-
ragraphs on Conceptual Art" IParagrafos sobre a arte conceitual],"o em que Sol
LeWitt enuncia os grandes principios de uma nova pratica artistica. Esta consistiria em "amorda~ar 0 afeto': em liberar-se "do oficio no sentido artesanal do
termo ",em consl'd erar a execu~ao como "uma coisa superficial", e em rccusar que \
"a materialidade prevale~a sobre a ideia". Resumindo, a pratica artistica voltaria a
optar pelo pensamento e pelo modele documental, contra
0
expressionismo c 0
artesanato na arte. No cenario artistico anglo-americano do final dos anos 1960,
expor provas fotograficas e, entao, uma maneira de defender uma nova versao da
artt', ao mesmo tempo desencarnada e analitica. E, do mesmo modo, abrir, timida mas significativamcnte, as cime:ras da vanguarda artistica para a fotogral1a t'
inaugurar uma dinamica que vai conduzi-Ia a ocupar, no decorrer das decadas
scguintcs, um lugar procmincntc. Pdo fato de essa inl rodu~;10 no campo da arlc
56 ter podido ser realizada gra~as as ressonancias tcnues, porem reais, entre a fotografia e a arte conceilual, faz, deSla, mais do que uma precursora, uma condi<;:;io
de possibilidade de uma nova alian~a entre arte c fotografia.
Entretanto, raramente a fotografia
e mobilizada sozinha, nunca por ela mes-
rna, 'nilS somente porque suas propriedades entram em ressonancia com 0 procedimcnto estetico dos artistas conceituais. Pelo menos assim cles creem, pois
suas analises
rela~ao
agu~das
da arte se revelam, ao contrario, mais do que sumarias em
a fotografia, que, conformes a doxologia, eles consideram como um sim-
ples vetor, tao neutro, impessoaJ e transparente quanto mecanico. A seus olhos, a
fotografia e puro documento, nao merecendo nenhuma aten<;:ao tccnica e formal
particular, e seu pape! serve apenas de contraponto visual aos textos, esquemas,
mapas ou coisas que elcs justapOem para constituir as "propostas". (A "proposta"
conceitual substitui a "obra" tradicional, como a justaposi~ao quer abolir a composi<;:ao pict6rica.)
Joseph Kosuth concehe. a;:';!l1. Ulll,l serie dt' trabalhos partindo do principio
de O/le l/I/d Three Chair) \ I ')0:>1. L'III yUL U)/I\'II'L'III (1111 uL)clO llllJ CISO, lllll;! C\deira), uma fotoc6pia ampliada da defini<;:ao (tirada de urn dicionario) da palavra
ucadeira", e uma fotografia da cadeira (feila no pr6prio local da apresenta<;:ao e
impressa na escala I: I). Assim, justapondo um ohjeto, uma fotografia e um texto,
colocando
314
real, a linguager~ e as imagens no mesmo plano, Kosuth aplica, no
campo daar,te, um metodn texpcrimentado (por seus valores didaticos e tauto16gicos) no comercio e em nluseus cientificos. E, ainda para atacar as rcgras do
campo tradicional da arte, l'!c substitui a justaposi~ao pela composi<;:ao: Don Judd
qualificava a composi<;:ao colno "filosofia do velho mundo"; Kosuth, por sua vez,
explica que ela "supae a COilSt ru<;:ao abusiva de um espa~o magi~o interior", herdado das "antigas praticas r"'ligiosas da pintura".61 A utiliza<;:ao da fotografia por
Kosuth se faz menDs por go,'lo do que em razao de presumidas convergcncias com
seus pr6prios principios eskticos: a substitui<;:ao da composi~a6tradicional pelo
registro (de uma cena), depois da justaposi~ao (dos cliches su<;essivos). Com a
fotografia, a diferen~a cede lugar a repeti<;:ao, bem pr6xima da no~ao de "tautologia", que Kosuth defende. Akm de sel' canlter desencarnado, encontra-se ai uma
das grandes preocupar,oes dOl vanguarda conceitual do final dos anos 1960: "Fazer
uma obra de arte que nao scja nem escultura (no chao) nem pintura (na parede)".
Mas
0
interesse principal da fotografia
e contrihuir de maneira decisiva com
o carater processllal de trabalhos conccituais, como aile alld Three Chairs, com
o carater das "propostas" (em transforma<;:ao) mais do que com as "obras" (terminadas). Em aile and Three Chai;-s,
0
cliche devia estar conforine, em todos os
pontos (inclusive no tamanho), com a cadeira: "a que se via ao olhar
0
objeto".
declara Kosuth, "devia ser identico ao que se 'via ao olhar a fotografia; era precisC',
entao, lirar uma nova foto toda vez que a peya se encontrava exposta em um novo
meio': Tal condi<;:ao -
a primeira vista, an6dina -
confere seu caniter processual
a esse trabalho, cuja forma muda de uma exposi<;:ao a outra, mas cujo principio
continua identico. Ao contrario das obras-objetos imutaveis que, durante muito
tempo, a arte produziu para
0
olhar, os artistas conceituais concebem propostas,
sempre em transforma~ao, sem forma material fixa, feitas para 0 pensamento. "0
pr6prio trabalho nao se reduLia aquilo que se via. Se fosse possivel modificar 0 local,o objeto, 3 foto, sem modificar 0 pr6prio trabal ho, isso significaria ser possivel
ter uma obra de arte que fosse esla ideia de obra de arte, cujos componentcs formais eram insignificanlcs." A \1I"Op("la conccilllal, no entanto, nao e sem forma.
como os preceitos de Lawrence Weiner fariam crer, mas "sua forma nao passa de
uma ferramenta a servi<;:o cia ideia".
61
.. Soll.eWitt. "Paragraphs on Cunceplual Art", cir.
0
f'OTlH;H.Al-"J.\ DOS ARTISTAS 1
Joseph Kosuth, "L'art CUllll1lC
idee' commc id~('''. elltrcvisla com Jeanne
l,cit.,pp.I01-I07.
315
,iegcl (7-4·1970). em Art cOrlceptllcl
I r.:-;TRl: f<,lTO(;KAFIA F. ARTE
I
I
A fOTOCR .... fIA DOS AR1'ISTAS
rente possive!. f. nesse niveJ zero, onde a fotografia
Por meio da fotografia, a arte conceitual procede a uma verdadeira reviravolta
I
e rebaixada ao seu mecanismo.
da natureza daquilo que C apresent;ldo: cnquanto as obras tradici0nais s'io coisas
onde suas imagens ainda nao se beneficiam do direito de reconhecimento e de
visuais, com suas materias e suas formas conquistadas, as propostas conceituais
existencia aut6noma, que os artislas das vanguardas abrcm-lhe a porta do mundn
s;io 'ltualiza<;oes contingentes. aqui e agora. de prindpins ou de problemas cuja
da arte. Seria necessario precisar que essa porta nao
cxistcncia e apenas virtual. Passa-se, assim,
da arte, pois
COIll
a arle conceilUal, da ordem das
sllhstancias para a ordem dos eventos. Essa tcrminologia (emprestada de Bergson
0
e, de modo nenhum, a porta
uso que os artistas enUio fazem da fotografia nao a leva, nem um
pouco, a depender da arte?
c de Deleuze) nao (az parte, ccrtamente, daquda utilizaJa pelos artistas concciI uais,
em particular os da Art & Langage. mais pr6ximos de Thomas Kuhn ou de
o CORPO, A NATVREZA: ENTRE ATUALlZA y ,4,O E ATUAyAO
V/ittgenstein. Ela testemunha, entretanto. a radicalidade da postura desses artislas, qualificada por Kosuth de "arte como ideia como ideia': No polo oposto ao
Se sao as potencialidades tautologicas da fotografia que retem os artistas con-
{ormalismo, que considera a arte como um conjunto de problemas formais, sub-
ceituais, sao sobretudo suas capacidades de transmissao que atraem aqueles da
metcndo a arte a um permanente "perigo de reinGl<;aO", a f6rmula de Kosuth sig-
land art, da arte corporal ou da performance. No decorrer da segunda metade dos
nifica que a ideia, au
anos 1960, com sua artt, esses artistas americ nos e emopeus que ado tam
0
conccito, constitui a pr6pria obra (e a "arte como ideia"),
1
mas sugere, sooretuJu. yue u process\) criativv deve consistir em transformar a
ou
ideia mesmo da arte (e ;; repetic;:ao "arte co;no ideia como ideia). Dentro dessa
de seus valores canonicos e de sells lugares tradicionais (a galeria,
0
corpo
territorio como material, procedem a uma contestac;ao da arte, a uma critica
0
0
museu). Mas
perspectiva,o artista tern como papel "questior.ar a Ilatureza da arte",1>l as obras de
emancipar-se do cenariu (cchado da arte nao significa, nem por isso, romper to-
arte sao "propostas analiticas': e a arte e uma tautologia: "A arte e a definic;ao da
taJmente com ela. Tamb~Jll e, paradoxalmente, para recolocar suas ac;6es centrifu-
artc': Atinge-se, assim, um ponto limite, onde a arte nao tern mais corpo, onde "0
gas sob a protec;ao da arte que muitos artistas da vanguarda utilizam a fotografia.
arlista, enquanto analista, nao e mais afetado pelas propostas materia is das coisas':
Esse papel ambivalente, el:l
A arte conceitual, que negligenciava a forma, a materia e a composiC;ao, e que
entre a
pensava sustentar uma concepc;ao de artc tao nova quanto provocadora, permitiu
a~ao
e a coisa, enl.re
0
mantcm ao situar-se entre a atualizaC;ao e a atuac;ao,
0
exterior e 0 interior dos lugares da arte.
Na esteira do antiformalismo dos happenings americanos do final dos an os
afotografia transpor uma etapa suplementar dentro da arte, abrindo-Ihe as portas
1950, desenvolve-se
das mais consagradas galerias e museus, mas continuando a considera-Ja como
Austria, com os gestualistas vienenses (Hermann Nitsch, Otto Muehl, Gunther
urn simples meio, submetendo-a 16gicas totalmente diferentes das suas.
Ulll
vasto movimento de arte corporal, primeiramente na
Brus e Rudolf Scwarz-Kogler), e, depois, nos Estados Unidos, com Bruce Nauman,
Esse questionamento da arte modernista e dos valores burgueses na arte nao e
Vito Acconci, Chris Burden ou Dennis Oppenheim. Depois de 1968,0 movimen-
e acompanhado, na
to ganha a Europa ocidcntal com Michel Journiac, Gina Pane,·Jurgen Klauke, Urs
isolado. Tal procedimento anaJitico da arte a respeito da arte
virada dos anos 1970, nos Estados Unidos e depois na Europa, por outros proce-
Luthi e Luciano Castelli. Apoiando suas praticas no carpo e na' vida, esses artistas
a natureza (e a land art), ou ao corpo
introduzem em suas obras valores radicalmente distintos daqueles que domina-
dimentos vanguardistas que agregam a arte
e
a vida (e a arte corporal). Apesar de suas diferenc;as,
muitas vezes profundas,
todas essas vanguardas, em graus diferentes, apoderam-se da fotOgl afia. Todas
se servem dela como simples vetor, cujas qualidades se esgotam em sua funC;ao
ninima de registrar, reproduzir, e transmitir da maneira mais neulra t transpa-
U
Joseph KOSUlh. "Art afler Philosophy I,ll & Ill", em Studio ["'emmiollal. 178 (915-917): 134·137; 160-161;
212·213, Londecs. UUI.·del. de 1969. apl/d Ch,r1es IlJrrison & P,ul Wand, Art til I[,~or;e. (iI., pp. 916·927.
ram
0
camlJo da arte
DC'
Dos-guerra. em particular com 0 expressionismo abstrato
americano. Como os iJappellJIIgs
uv -:;:nario nO\'<i-iurquino, descritos em 1961 por
Allan Kaprow, a arte corporal extrai grande parte de sua singularidade artistica
do "contexto, lugar de wncepC;ao e de representac;ao":6J a galeria
"
esubstituida por
All,n Kapro w • "us happenings sur 1, scene new·yorkaise" (1961), em Carr er la vit co4ondll', org. )df Kelle,"
(Paris: Centre Georges-Pompidoll. 1996), p. 48.
317
Io/ts, subsolos. lojas vazias ondc "grupos minllsclJlos de visitantes sao rnesclados
especie de insuticiencia tigurativa que a fotografia parecc. para os artistas, compa-
de algurna forma ao even to". A improvisayao colo:a ..,s pelfor.mallces sob a sobe-
. tivelcQm aconentc de dcsillatcrializayao, ou de deso!,.:elivay.io, que.movime.ll.la a
rania do acaso, do e(emero, do even to:
0
arte na virada dos anos 1970. Quanto as galerias, ao contrario, Cpara satisfazer
que diCere das peyas de teatro, que sao
a
sernpre escritas antecipadamente, e, sobretudo, cias praticas (entao dorninantes)
demanda de uma reobjelivayao da ane que elas a acolht'm em seu interior. Diallte
de Pollock, no minirnalismo, quc sao orientadas para a fabricayao de objetos.
de processos invendaveis, uma fOlografia, por mais inconsistente e mediocre que
"0 periodo de 1968 a 1972", lernbra Vito Acconci, "foi particuJarmente produliva, mas nao havia muita preocup,\(;,io quanlo aos resullados dcssa
produ~.io.
seja, por rna is conlr<lria a valores artisticos consagrados. aos olhos dos IIlnrchnlld,
0
de artc ela adquire
0
I'eso do mais s61ido objeto. Em todo caso, e dotada cia ex-
resultado era considerado urna especie de subproduto. Era, rna is, uma preocupa-
trema virtude de converter a arte-processo em coisa que c possivel mostrar, ne-
~.io
gociar, trocar. A fotografia
cm agitar scmprc"."·' Todavia, Acconci prossegue, "algumas pessoas qucriam
e, assim, aceita nos campo'
da arte corporal e da In"d
conscrvar urn trayo do conjunto do meu trabalho. Nao se tratava de objetos, po-
nrt para suprir um deficit de objetos: ser bem mais
rt'm de processos. Tratava-sc dcsse pensamento do processo".fi; Par tim, faz urna
quc nenhum objeto, tal poderia ser a razao (econor lio) da aventura (esletica)
rcflcxao mais geral sobre
da (otogratia."' A <lne (orporai e a /1/11'/
0
fossa que separa a arle viva do IllcrcaJo Je artc: "As
I
m quase-objeto de arte do
scr\'Cm-se Ja fOlOgratia como dc um
lIrt
gakrias queriam que tudo ticasse exposto sempre sobre um pcdestal".i>fi Acconci
velor destinado a religar dois polos que, na situayiio particular da cpoca, se opoem
t'lluncia, ai, algumas das condiyocs que favoreceram, na epoca, a illlroduyao Ja
(ortcn"''''''' ()
j' .. , "''50 '.';)
,ois;)," ,·t!uali7:l.;:<io e a atua~iio OLi, segundo a lermino-
(ologralla na artc - condiyoes que, C prcciso ressallar. provelll do campo cia arte,
logia de Robert Smithson, 0 Sile (/ a lugar I da obra) eo NOl!site ([ 0 nao lugar I da
nenhurna delas do campo da fotogratia. De fato, parece quc os artistas recorrem
galeria)"" - assim wnw repetiyoes da
a fOlografia
do :ltua!.
quando
0
processo prevalece sobre
0
objclo; quando se cOlltesla a
"bra acabada, fetichista, agradavelmente deleitavel; quando urn forte movimento de desrnaterializayao perpassa a arte; quando, em resumo, a obra-mercadoria
vacila. Nenhuma confusao
e, no
dialelic~
do alhures e do daqui, do virtual e
No final dos anos 1960, a fotografia une-se ao
~adicalismo
cie artis:as como
Dan Graham, que "tentava contornar 0 sistema das galerias';70 sair do isolamento
cntanto, possivel: a fotografia-objeto e apenas
imposto pelas "paredes brancas da hisl6ria d3 arte", e procurava "qualquer coisa
a doxologia acerca de seu
que nao se possa colecionar. que possa disseminar-se em condiy6es de difusao
pretenso poder figurativo, e rnais pela impotencia da fotografia do que por sua
massiva. e nao nas de uma coleyiio". Passar do uno ao multiplo, romper 0 fetich is-
um "subproduto" da obra-processo. E, contrariarnente
capacidadc de dar conta do processo que Acconci a utiliza. Embora sempre recuse
mo da arte (a coleyao) em prol da difusao: essas aspirayoes compartilhadas pOl'
a filmagem de suas performances, aceita que elas sejam fOlografadas: "Pelo menos,
amplos setores da vanguarda, em particular os da arte corporal e dOl land art, s,io
lom uma fotogratia", ele comenta, "a impossibilidade em perceber a lotalidade do
condiy6es grayas as quais se lorna possivel
trabalho esta c1aramente signiticada. Se houver uma descriyao verbal, se houver
ainda uma outra condi.,:_io. t!e(orrente cia as, .:nsiio do consumo e das midias de
uma fotografia. Cevidente que se trata apenas de uma referencia ao trabalho, e
massa: a vontade dos anises de se "Iivrar da ideia de qualidade"71 em beneficio da
nao do trabalho. Em compensayao,
quantidade, da rapidC/., dc' produto barato. A partir do momenta em que os artis-
assunlo"67 Logo,
~
0
tilllle manlcm uma certa ilusao sobre esse
c por julBar se que cia soh.' ~~ ~!rr. dt,~_!1 c1
P
J~R!eri~
., cle lImil
tas nao se mostram
mai~
0
usa da fotografia na arte. Mas existe
r,rcocupados com os resultados maleriais de suas
a~oes
Li7.a Bear & Willoughby Sharp, "l", !lody Art & Avalanche: New Yurk", 1968-1972 (perguntJslrespOSlJS a Vito
M "A insti(Ui~ao da 3rte e liio I riblll; ria de objetos que podem ser comprados e vendidos, que nao espero que cIa
Acconci, maio de 1996), em Cart au corps. U corps expose de Mall Ray Ii lias jOllrs, catalogo (MJrsclhJ: Musces
faya esfon;os particuiJr..:s pal'.l Ul.l.1 Jrte que St' op(lnha aos sistemas dominanres." Cf. Lucy Lippard, Si.'( rl'(lr5:
the Demateriohsatioll of ,Ite II,' flbi,''-' (Nov" York: Praeger. 1973). "pHd ChJdes HarrisOl' & Paul Wood. Art
en thea ric, cit., p. 972.
1\)
de Marseille-IRMN, 1996), p. III.
S)'lviC' Mokhuri. "DJn Graham ct Vito An:onci au corps
~
I ~95), em L'art au corps, cit., p. 139.
Lil.a £kar & Willoughby Sharp, "Le Body Art & AVdlanche: New York", cit., p. III.
tit'S
rev lit'S" (cntrevista
..: Sylvie Mokhlari, "OJn Graham ("I VilO Acconci au corps des revues", cie, p. 139.
318
COIll Vilo Accol1ci,
30·11·
.,
Ver adiJnl'. J pJrtir JJ p. :123.
10
Sylvie Mokhtari, "Dall Grah>!1
Ibid., p. 131.
11
~I VilO
Acconci
au corps
319
des
revues", cit., p. 127.
I ENTRE FOTOGRAFIA E ARTF I
I
A FOTOGRAFIA DOS ARTISTAS
I
arlisticas, que cles nao rna is procuram preservj-Ios e recusam a no~ao de qual ida-
para 0 aparelho fotogr~fico, passando, assim, da 16gica e da temporalidade do
dc tradicianalmellte ligada aos objctos de anc, llada mais porle realI1lentc excluir
espetaculo p~ra aquclas dOl fotografla. 7J A m;\quin"a impladveI"~· J sucessora dos
a fotografia da pan6plia dc seus meios artisticos. E mais ainda porque 0 periodo
corpos infinitamente reativos dos espectadores. Nos Estados Vnidos, em 1966,
l'S!;!
abcrto para
mu(a~ocs
c para
0
cc!ctisI1lo. Dc falo, "nos ,J1111S GO," 0bscrv'l 13ru-
Bruce Nauman fOlografa seus gestos (Finger TOllch wilh Mirrors) e seu corpo n;lS
ce Nauman, "nao lhes pcdfamos que se limitasscm a um [lI1ica I/Ieaium. UtilizJr
difcrenlcs 1ll3lcriais ou passar da fotl'grafla ;'\
era nenhum problema".71
POI'
d'lIl~a,
fun<;oes mais
d.l/wrfonl/(I/Icc ao viLko, n.lo
correr de sua boca
artistas da vanguarda e suas galcrias abrem a campo da arte contemponinea para
transforma~oes e
- scntar, ouvir, olhar - antes de realizJr, busto nu, seu
celebre Sclf-Porlrrlit (/s (/ POIlI/Ii/il/ Il\utorretrato
razoes bern diferentes, as vezes mesmo opostas, os
a fotografia, e isso em urn momenta dificil, de profundas
elemenl~rcs
UI~l
COIllO
fontel (1967), deixanrlo es-
!11ete de jgUJ. Par mais qlle as illlagens sejam neutras, isso
nao Ihes confere um carMer documental. Ao contra rio, elas obedecem a uma du-
de
pia
inten~ao
artistica: prestar uma homenagem a Fonlaine, de Marcel Duchamp,
importantcs questionamentos sobre seus valores tradicionais. Nesse periodo de
e ilustrar a frase "0 verdadeiro artista e uma surpreendente fonte luminosa". Em
trJnsi~ao,
seguida, pJra
de ruptura, a fotografia desempenha um duplo papel: em
rela~ao
aos
0
holograma Making Faces (1970), Nauman realiza estudos fotogra-
artistas, ela se ajusta ao carater processuJI da arte corporal e da lal/a-art; quanto
ficos em que manipula seu roslO ate iguala-Io a um material artistico infinitamcn-
as galerias, ela contribui para a conlinuiJade e para a muta~ao de um mercado em
te maleavel e chegar a uma visao ir6nica e torturada do autorretrato.
cOllfronto com olnas que
° crillCl1l1 c () Cllni"riWI1l.
Como Acconci, Chris Burden dliliza a fotografia estando bem consciente de
Dentro desse contcxto, a mais eiementar fun<;ao da fotografia e registrar as
'1,(leS-proccssos sobrl'
0
COI·P()
lHI sohre
0
seus limites figurativos, C:c sua incapacidade de dar conta das performance; de
ICr!·C1lO, transform.l-Lis em imagens-
maneira pertinente. Sem ilusl'les acerca da conrlabilidade documentaria da foto-
-objetos, c transpona-Ias para os locais da arte, de onde elas foram afastadas du-
grarla, Burden nao Ihe canna a t<H~fa de estabelecer ,ozinha uma liga~;i0 dircta
rante seu desenvo!villlcnlo. 0 gcstualis!OI viellcnsc I-!crll101nn Nitsch lIliliza apenas
entre a at\laliza~30 e a at\la~Jo. Ao contrjrio, sernpre a integra em 11l0ntagens
a fotogralia para documer:tar seus grandes IlI/ppenil/gs hlasfematorios, escatologi-
on de urn cliche escolhido cuidadosamente pelo sell poder evocador ou significan-
cos e sexuais, tal como Michel Journiac, que, em sua Messe pour
corps (Missa
te convive com outros ohjetos e tex!os. Na performance Tram-Fixed (Transfixado,
com hostias ern forma
23 de abril de 1974), um cliche apresenla Burden crucificzdo na mala traseira de
de )inguiya, feitas com seu proprio sangue. Tomadas sem precauyoes tecnicas ou
urn Volkswagen. 0 cliche eacompanhado de uma ve'·darleira reliquia - um par de
esteticas, as imagens sao de qualidade mediocre, e pobres em informayoes. Apenas
pregos - e do seguinte texto:
para urn corpo I (1969), convida a assistencia a
corn~ngJr
lWl
atestam que dcterminada a~ao acollteccu, mas scm realmente informar sobre elJ.
Alem de uma corriqueira falta de dominio tecnico da ferramenta-fotografia pelos
Em uma pequena garagem da avenida Speedway, subi no para-choqlle traseiro de
artistas ou sua en {(wrage, essas provas fotograficas, muitJs vezes precarias, tem,
urn Volkswagen. Apoiei minhas coslas na parte traseira do carro, abrindo meus bra-
<;os sobre 0 leto. Os pregos foram enflados alraves das palmas das minhas maos no
como sugere Acconci, 0 grande merito de evitar qualquer confusao possivel entre
leto do carro. A porta da garagem foi aberta e a carro deslocado quase ate a avenida
a obra (a a~ao) e sua reprodu~jo, e de conservar a obra elll sua pureza virtual de
Specd\\'J;·. C· :~:2::~ C:-' "~e::- " ::2J ... ~Ioci(~adt' ,1'If:lnle dois minutos, grirJndo em
;lcaso, de efcmero e de even to.
A partir de 1965,0 gestualista Rudolf Schwarzkogler confere
meu lugar. Dais minlllos rna,s tarde, foi desligado e
a fotografla lima
!)
illlCJvir elll 1'1'J!>lico e rescrv;l sllas O1<;oes SOlllente
Bruce Nauman, "I~j}mprl' Ie- silrncl'" (enl revi .;;tJ
<alalugo (Paris:
<..:.cll((l'
CJrro empurrado de valla
para a garagclll, c fccholl-se a porta.""
funyao complctamente diferente daquela de simplesmente transmitir uma a<;ao.
r: a {'poG] elll qllc ell' par;1 de
0
(0111
Joall SlOlOll). rill fj,uc('
Cc:orgl's-Pulllpiduu, l'JlJ71. p. 107.
)10
Nillll1lf1l1.
Il11axcltcxle
J 9(16- J 9Y6,
i.'llff 'Ill t"(JfpS, ,,: il. , PII,
71
Robert Fkck,
"
Citado par Timothy Martin. "Trois hommes el un bebe aveC Ourdtn, Kelley Cl MacCarthy, balancer Ie canal
de sJuyetagc"1 em ]e;Jn dl..' Loisy (arg.), Hars lim;res. Cart ella V;I: /952-/99. :Paris: Centre Georges.PompidUll. 1994), 1'. 270.
"L';ll(jOlltlisll11' vil,,'/)Jlois",
t'll}
321
75-87.
, ENTRE FOTOGRAFIA F ART[
I
I ,
Ao dissociar nitidamente OS evenlos> OS enunciados e as visibiJidaues> Burden
se distil)guc de .extensas correntesda literalura fotugrafica que> dllral1t~ muito
tcmpo> prcconizaram
o
FOTOGRHIA VOS ARTISTAS
I
lugar artistieamente secundario da fotografia-vetor e a distcincia, entre a
. vbra (proeesso) eo mostrado pelos cliches (objetos), apareeem ostensivamente
(total) isomorfismo entre as coisas> as imagens e as pa-
nas negligencias tecnicas e esteticas: as fotografias sao sempre de pequeno forma-
brras - ilusao que aJimenta especialmenle a famasa disputa enlre reporleres e a
to> as tomadas geralmente desprovidas de pesquisa Oll de originalidade formal> as
0
imprensa> cujas legendas sao acusadas de trair as imagens e os tatos. Ora> 0 visivel
c irredutivcl ao enuncijvel; hj
uma disjun~ao entre eles: HE> se
0
enunciado tern
um objcto, C Ulll objeto discursivo que the eproprio> que nao c isomorfo 010 objeto
visivel':,oi-
famo~iperfor11lallce
composi~oes
geralmente banais, e as tiragens (impressos) frequentemente vitimas
de urn dO!11inio rudimentar do procedimento. Al~m disso, raramente as fotos sao
c:presentadas sozinhas> mas acompanhadas de outras fotos (em Gina Pane> por
exemplo), objetos (em Chris Burden» e quase sempre acompanhadas de textos>
Shoot [Disparo 1(1974» durante a qual Chris Burden
se deixou atingir por ullla bala de revolver> so conhecemos a fotografia que apre-
em leiautes destinados a atualizar 0 entorno espacial e temporal da obra. Entre os
scnla 0 arlista com um filete de sangue escorrendo do ferimento no bra<;:o. Essa
da natureza. Para SiteiNonsite (1968» Robert Smithson extraiu> de um sitio geo-
obra, cuja violencia Ihe valeu uma enorme repercussao, foi> para 0 anista> fazer a
logico (Site), pedac,:os de rochas de mica ou de ardosia, que fiearam expostos em
cxpcriencia mcntal de sua confronta<;:ao <om este dado bluto: "Voce sabc que as
uma galeria (Nollsile), em bacias geometricamente dispostas, Jcompanhadas de
7h30 voce vai estar cm um recinto e que um sujeito vai atirar em voce n.,(, .\hs essa
mapas e de fotograJias
Da
expericncia pessoal c inscparavd das pleocupa~oes propriamente an[sticas: "Era
alguma coisa rclativa ao tempo"> explica Burden. "Era quase instantaneo. Era 0 que
eu gostava nesta pe~a. Antes de eia acontecer> ela nao existia. De rcpente> um sujeito aperta 0 gatilho e> em uma fra.;:ao de segundo> eu havia feito uma escultura."
Uma ac;:ao de escultura, dirigida para 0 material> e nao uma representa~ao teatral
artistas da land art> esses leiautes reunem fotografias> mapas> pianos e elementos
afix;:c;;~
:la fl-.;;-;:!e, para localizJr 0 lug'lL
Robert Smithson c> sem dl\vida> 0 artista que melhor problematizou> em seus
escritos e em sua obra> a dialetiea da
as do Site e do NOI/:;ite,
d
atualiza~ao
atua~ao>
que ele eruza com
presen~a,
do aberto e do fe-
e da
diale,ica da ausencia e da
chado> do exterior e do interior ou> ainda> do conjunto e do fragmento. Smithson
observa:
orientada para os espectadores. Alcm de sua temporaJidade> essa performance.
-escultura tem a particularidade de ser eminentemente fotognifica. A fotografia c>
ao mesmo tempo, paradigma e um dos materiais> com 0 tempo e 0 eorpu.
o campo de convergencias entre Site e nonsite e feilo de uma sequencia de acasos> e
A fotografia ja ocupa uma func;:ao parecida> de material e de paradigrna> em
Reading Position for Second Degree Burn (1970» performance ao 10:Jgo cia qual
momento> as duas vertentes da dialelica. As duas verttntes est30, ao mesmotempo,
presentes e ausenles. Coloca-sr a terra eo solo extraido do Site na arte (Nonsite) ao
Dennis Oppenheim> busto nu> expoe-se 010 sol com um livro sobre
inves de colocar a arte no solo
0
uma via dupla feita de signos> de fotografias e de mapas que perlencem> no mesmo
peito. Apos
I... ) Coisas em duas e Ires dimens6es trocam seus
muitas horas> 0 Iivro c retirado, deixando apareeer urn retangulo braneo sobee sua
respectivos lugares no campo das convergencias. 0 que se eSla em grande escala fica
pele avermelhada. Estritamente faJando> sua sensibiJidade it luz faz da pele lima
pequeno e G que esta em pequena escala fica em grande escala. Urn ponto no mapa
superficie fotografica negativa> que traduz em nuances eseuras as parte, expostas ao sol e. em superficies claras, os setores do carpo pfOtegidos jc :;,_,;. ,\
se amplia ate as dimens6es de uma massa de terra. Uma massa de terra se reduz a
gem de Gvpenheim> que aparece como uma fotografia (anaI6gica) de fotograJia
(cutanea), eonjuga novamente as funyoes de vetor> de material e de paradigma
artisticos.
"
Gilles Delcuzc. FaIlCi/II/f. cie., p. 68.
76
PalJvras de Chris UunJcll. Cr. Jim Moisan, "llorder Crossing"/enirevisia Com Chris UurdCld, em Hig"
1/' S, lllar. de 1979, p. ~,nplld Timothy Marl'n, "Trois hommcs el un b<'bt': cie.. p. 271.
... .'.1orm<ll/a,
322
/;a.
urn ponto. 0 Site reflete 0 Nonsite (espelho) ou eo contrario?"
Suas a~6es no deserto Mojave> as paisagens de New Jersey ou> ainda> do Grande
Lago Salgado> onde ele realiza Spiral fetty> consagram menos a ruptura de Smithson com 0 mundo da arte> com a galeria> do que a abertura de seu atelie para as
"
Rouerl Smithson, "Spiral JClly", em Robert $n1;f;1S01l. Le paysage enrropiqlle. 1960·1973. catalogo (Marsdha:
Mus<" de Marseille-IK.\1N. 1994). p. 209.
'",,, ...:~,
323
I ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE 1
.dimensoes
danatu~e~a ..Suas
( A FOTOCRAFIA DOS ARTISTAS
obras SitelNonsite (1968) e Spiral Jetty (1970) de-
nunciam "a perda do oficio e a
q~ed~d'o atelie';'" e Co;lt~stam' a est'etica moder-
nista, mais do que alirmam uma recusa ao mercado da ane. Suas obra5 se situam.
de fata, na interface do alelie abeno e da galeria fechada: Spiral Jetty foi, ao mesmo
I
dos dois lados da Sunset Strip. 0 mais celebre trecho da Sunset Boulevard. 0 livro
se compoe. na reali'dade; de'uma longa lira dobrada com0
llIll
acorddo.. sobre a
qual se e3tendem dois panoramas fotognilicos impress os. frente e verso. um em
cima.o outro em baixo. so Ruscha publica tambem Some Los Angeles Apartments
(1965). Nine Swimming Pools and:l Broken Glass (1968), A Few Palm Trees (1971),
tempo, uma earthwork em um lago de Utah e urn lilme apre3t:ntado em uma galeria de Nova York.
e Thirty-Four Parking Lots in Los Angeles (1967): a e>.:trema modestia do projeto
A estetica modernista, Robert Smithson opoe uma estctica da entropia. mar-
grafico e da impressao, a total neutralidade das imagens e a profunda banalidade
cada por uma (orte consciencia do tempo e da obsolescencia. por uma viva sensa<;ao do inexonlvel processo de desintegra<;:ao oas estruturas. de decomposi<;:ao
dos temas. tudo colabora para sugerir
dura do nada.
o
das formas, do deslocamento dos lugares: " 0 espirilo humano e a .Terra estao
0
vazio. a onipresen<;:a da mesmice. a dita-
uso que Smith faz da fotogralia ultrapassa. todavia.
0
registro dos sinais
constantemente em via de erosao", afirma Smitnson. "Desabamento. deslizamento
visiveis da entropia e seu papel de vetor entre lugares e nao lugares. para deixar
de terra, i1valanche, tudo isto se produz no interior dos limites quebradi<;:os do
tal entropia visivel. 81 A dimensao temporal das deteriora<;:6es e do desgaste en-
c~rebro".N Na arte. a ferrugem. "associada ao receio de esquecimenco. de inativi-
tr6picos e traduzida, principalmente. pela confronta<;:ao das versoes em positivo
dade. de entropia. de ruina", vem inverter a ideologia tecnol6gica do perlil de a<;:o,
e em negativo dos cliches de urn mesmo local. A inversao dos valores quebra a
metal duro e rude, feliche de artistas modernistas como David Smith ::>u Anthony
evidencia documental, atribui ao cliche uma consistencia temporal e confere-Ihe.
Caro. Fora da arte, as devasta<;:oes da enlropia se medem nas paisagen:; p6s-indus-
sobretudo, uma dimcnsao dramatica. ate mesmo apocaliptica. 8: Smithson aplica
triais de fabricas e de minas abandonadas. como aquelas rcunidas. em 1967. em
esse procedimento na maioria de suas earthworks: em Concrete Pour (Despejo de
The Monuments ofPassaic. uma serie de 24 peque;)os cliches quadrados. em preto
concreto. 1969), t:m Partially Buried Woodshed (Barraco de madeira parcialmente
e branco. Os monumentos de Passaic. nos arredores de New Jersey, na verdade
enterrado, 1970). em Spiral Jetty (Quebra-mar espiral. 1970), em Broken Circle!
sao antimonumentos: guindastes, canaliza<;:oes. um estaciofJamento. uma pedrei-
Spiral Hill (Circulo partido/Colina Espiral. 1971), etc.
ra abandonada. uma parede com gralites. terrenos baldios, as margens devastadas
Nessas obras. esbo<;:a-se urn outro uso para a fotografia -
0
de material da arle
de urn rio. etc.. sem nenhum ser humano. Em Passaic, a ordem e a racionalidade
contemporanea - e afirma-se uma nova versao da arte: a de uma arte-fotografia
da sociedade industrial fraclssaram no caos e na catastrofe. <is estruturas e os sis-
baseada numa alian<;:a plenamente assumida, inedita. e durante muito tempo inconcebivel. entre a arte e a fotografia.
ter.las sucumbiram na desintegra<;:ao.
Smithson estabelece a5 constata<;:oes de: desintegra<;:ao entr6pica com a ajuda
da Instamatic. que utiliza sistematicamente a partir de 1966. Seus trabalhos. como
A fotografia-material da arte
The Monuments of Passaic. estao. alias. em ressonancia com os pequenos !ivros-invent;\rio" de Edward Ruscha, que fotografa de maneira rna is neutra e an6nima
po"slvei La !-'""lv; Jl: ~d~o;jna entre Oklahoma e Los Ar,geJes (Twenty-Six Gasoline
Statiolls, 1963). Urn outro livro-inventario. de 62 paginas. EvelY Building on the
Sunset Strip. rccenseia. em 1966. todos os predios, ruas e cruzamentos situ:ldos
i1
"SOlido do C0l1fin.1mcnto do atclie, 0 anisl3, em arta medida, escapa is armadilhat do of:cio e J. eSCf<tvidao
da erialividadc." cr. I(ODOri Smilhson, "Une sCdimcnlalion de I'espril: Earih Projeels",
Kobert Smithson.
.,11
Lc pay,ag< <ntropiqu<, /960-1973, eil:, p. 19S.
.. Ihid., p. 192.
Sera preciso, no entanto. esperar a virada dos anos 1980 para a fotogralia tornar-se urn dos principais materiais cia arte
cal. pois a diferen<;:a entre
co~tempor<inea.
Essa e\'olu<,:iiu
e radi-
vetor e 0 material nao e de grau. mas de natureza. A
.. Yves·A1ain Bois & Rosalilld Krauss, L'informe. Mode d'emplci" (Paris, Centre Georgcs-Pompidou, 1996),
p.247.
"
"
321
0
Uma das entrevislas de Robert Smithson intituJa·se "L'entropie rendue visible". Cf. Robert Smithscn. Lt
peysage entropique, / 960- / 973, eil:, pp. 216-219.
James Lingwood, "L'entropologue", em Robert Smithson. Lt paysage entropique, 1960-t973, eil:, pp. 28-36.
325
I ENTH FOTOGKAFIA E ARTE I
( A FOTOGRAflA DOS ARTISTAS
I
arte corporal, a land art ou a arte conceitual, sem dlivida, abriram de maneira de-
lacionada a vida da epoca': SJ em plena agitac;:ao. Pois os dadaistas nao consideram
. cisiva as portas das galerias e dos museus de arte contemporanea I?ara a fotografia,
a arte como um meio de evasao nas asas encantadas do sonho ou do belo, mas
mas lais movimenlos the davam, na realidade, apenas uma posic;:au secunciaria de
velor destinado a alualizar, no "nao lugar" da arte, obras
efi~meras
e processUJis,
como a expressao dcsse presente exorbitante. em que, segundo Raoul Hausmann.
"0
homem e uma maquina, a cultura esta em farrapos, a educac;:ao e presumida, 0
concebidas fora dela, em um "lugar" sempre singular. Essa posic;:ao secund:iria, em
espirito e brutal, a imbecilidade e a media, e 0 exercito nosso mestre''.104 Eevidente
que as fotografias sao explicitamente diferenciadas das obras as quais elas reme-
que, desse ponto de vista, as belas cores e as belas formas aparecem como uma
"vigarice burguesa", diante da qual e preciso urgentemente "procurar novos con-
tem, traduzia-se por uma frequente mediocridade tecnica e formal das provas. Tal
conteslac;:ao deliberada dos artislas a qualidade das provas combinava com uma
teudos expressos por novos materiais".s; Tal e 0 pard das fotomontagens: publi-
dupla postura: de um lado, mostrar que
cidades, fotografias ou fragmentos de jornais, recortados combinados e colados.
0
trabalho artistico sc situava em lugar
distinto daquele dos cliches apresentados; do outro, refor<;ar a fronteira que separa os valores da arte dos valores da fotografia, para evitar qualquer assimila<;ao
entre eles.
pensamento
Enquanlo fcrramenta c velor, a fOlografia era entao lJtilizada sem ser especialmente trabalhada:
Ao contrario de Dada, que faz uso da fotomontagem com
0
tralamento precario das provas equivalla a uma rejei~ao
0
intuito geral de
chocar. protestar, de "romper com as frases, as convenc;:6es e as hipocrisias do
como
0
burgues",~6
os arlistas Laszlo Moholv-l\agy e Raoul Hausmann, bem
historiador de arte Franz Roh, nos anos 1910, consideram a fotomonta-
gem como uma forma importante do realismo modt>rno. Apc-<
~~
desconstni<;6es
do saber-f3Zer fotograflco. AlCfil disso, muitas vezes os cliches eram combinados
dadaistas. eles atribuem a fotomontagem 0 papel construtivo de conciliar compo-
com outros elementos (mapas, desennos, coisas, elc.). No estagio da fotografia-
si<;ao livre e estrita imitac;:ao. duas caracteristicas heterogeneas da arte modema. s7
-material da arte, ao contra rio, as imagens sao habitualmente expostas sozinhas,
Alem do mais. a fOlomontagem mostra 0 imenso i!1leress':' em estender, para 0 tra-
sem elementos cxtrafotograficos, e ao fim de um trabalho
~s?ecifico.
muitas vezes
balho artistico, a noc;:ao, dominante na epoca, de montagem. Do cinema a musica,
importanle. Enquanto a maioria dos cliches expostos nos anos 1970 nao eram
da radio ao teatro, a montagem governa as pesquisas esteticas sob a influencia de
realizados pelos proprios artistas. a partir dos anos 1980 isso muda: os <.:tistas cio-
diretores e teoricos sovieticos do cinema.88 mas tambem com a generalizac;:ao das
minam perfeitamente
concep~6es
0
procedimento. muitas vezes as imagens sao de excelente
da engenharia e a ascensao industrial. Muda tambem 0 papel do artis-
qualidade tecnica e. as vezes, de tamanho monumental. A fotografia sup!antou
ta que reune imagens ja prontas para compo-las livremente. Nao mais criar neces-
sua antiga func;:ao subalterna de ferramtnta ou de vetar, para tornar-se urn com-
sariamente as imagens que reline provoca a perda do status romantico de criador
ponente central das obras: 0 seu material.
absoluto (do artista) em prol daqueJe, moderno, de montador. Segundo MoholyNagy. essas mudanc;:as do processo criativo incitam a "transformar 0 procedimen-
Na verdade. 0 movimento que. a partir dos anos 1980. transforma a fotografia
em um dos principais materia is da arte contemporimea amplia uma situac;:ao de
meio seculo antes: a das vanguardas dos anos 1920, cujos fOlogramas t fotomolltagens conferiam a fotografia
0
pape! de material artistico.
Foram os dadaistas alemaes - Gc--rg Grosz, John Heartfield, Raoul Hausmann
a fotom0na pintura, da qual dellunciavam a Jbstrac;:ao crescente, 0
e Hannah Hbch - quem, no final dos anos 1910. primeiro recorreu
tagem. em uma reac;:ao
vazio conceitual, a ruptura corn a realidade. Apos a sangria da Grande Guerra. a
pintura deve. segundo des, sofrer "uma transformac;:ao radical para manter-se rc-
326
Raoul Hausmann, "Photomontage, a bi, z", Colonia. maio de 1931 . .'pud Olivier Lugon, Ln photographie (1/
Allemaglle. Anthologie er textes (1919-1939) (Nimes: Jacqueline Chambon, 1997), p. 231.
.. Adolf Behne, "Dada", Feci/"it, Bedim, 9·7·1920, em Olivier Lugon. La phocographie ell Alleml/glle. cit., p. 215.
"
RJ0lii llau.)ma':lll, "Ph0l0m0I1t:l~e, Il bi5 zn, (iL, p. 231.
.. Adolf Behne, "Dada", ciL. p. 214.
" Franz Roh, "L'expressilm propre de la nature (art et photographie)", em Nael/-expressio"i",lUs, Magischer
Reali,mus. Problemc ria neueseeu europiii,dlell Malerei I P6s-express;onismo, Realismo magiro. Problemas
da nova pintura europeial (Leipzig: Klinkhardt & Biermann, 19251. apud Olivier Lugon. La phNographie <II
Allemaglle, cit., p. 222.
.. 0 diretor Vsevolod Poudovkme, em 1926, propee uma teoria de montagem cinematografica em La mis< e"
scene et I'ecriture cinematograpJziques. Dziga Vertov realiz3 L'homme a10 camera, tm 1929. La grtvt, de ~rgu(1
Ei"nstein, data de 1924;,0 EJlCo'lra,ado Potfll,kim, de 19~5.
327
I
eNTRE FOTOGRAFIA E ARTE
I
I
to fotografico de registro em uma atividade artistica dcliberada":89 enquanto
0
... fot6grafo n:gistra. as aparenciasdas coisas; oan::;ta fotomontador "constroi uma
fia, em que
0
A FOTOGRAFIA DOS ARTlSTAS
I
verdadeiro leva a fama de manter-se na superficie das coisas e de
oferc-ct>r-se dirdamente (e naturalmente) ao registro, o regime de verdade pr6prio
nova unidade fotografica com a ajuda de fotos dadas ou es.::olhidas". Registrar ou
da fotomontagem tern como base a infracyao,
construir, partir de coisas ou de cliches fotograficos preexistentes, utilizar um "pa-
a arte. Opondo os dois regimes, Bertold Brecht nota que "uma foto das usinas
relho fotografico ou cola e tesouras, buscar a verdade na superficie das coisas ou
Krupp ou da AEG [Allgemeine Elektricitats-Gesellschaft - Companhia Geral de
0
desvio, a construc,:ao,
0
artifice -
pelo vies das construcyoes artificiais (montagens), cis algumas caracteristicas que
Eletricidade] nao reve!a grande coisa sobre essas instituicyoes", antes de acrescentar
distingucm a fotografia da fOlomontagem. Enquanto
fotogra-
que "e preciso, assim, de fato. construir alguma coisa, alguma coisa de artificial,
fim, para os artistas, ao contdrio, e urn malerial artistico a ser n:.anipulado,
de fabricado".9J Como Cesar Domela e a maioria dos adeptos da fotomontagem,
fos,
0
0
cliche e, para
llS
Brecht distingue a fotografia, que descreveria "objetos reais", da fotomontagem,
recortado, colado, reunido.
Para John Heartfield ou Raoul Hausmann, na Alemar,ha, e para EI Lissitzky ou
Alexander Rodchenko, na Uniao Sovietica, em uma perspectiva revolucionaria.
a fotomontagem contribui para tornar visiveis
situacyo~s
que encarnaria uma ideia,9< urn sentido latente, construido com a ajuda de procedimentos hibridos, manuais e fotograficos, da fotomontagem.
Com
sociais e puliticas que
0
fotograma, as vanguardas' dos anos 1920 servem-se da fotografia de
se:iam fotograficamente inapresentavels. Na Francya e na Betgica. os surrealislas
outra maneira, como urn material artistico. Desde 1919,0 pintor alemao Chris-
Pierre Boucher, Georges Hugnet, E.L.T. Mesens e Max Ernst, ao contrario, vcem
tian Schad faz experiencias com
na fotomontagem uma "irrupcyao magistral do irracional".w E em razao de sua
artista americano Man Ray, e em seguida, no ana seguinte, por Moholy-Nagy. 0
0
fotograma, seguido, em 1921, pelo fot6grafo e
capacidade (que a fotografia desconhece) de inserir-se em uma cultura de emi-
fotograma, como sabemos. e uma imagem fotografica, uma silhueta luminosa de
gracyao sistematica. de autorizar "0 encontro furtuito de duas realidades distantes
objelos, obtida em laboratorio. sem maquina fotografica, colocando diretamente
em um plano nao coincidente", que a fotomontagem se beneficia do favoritis-
os objetos em cima do pape! sensivel, expondo-o depois a luz. A fotomontagem,
mo dos surrealistas. Quanto a Laszlo Moholy-Nagy. ele quer romper com a foto-
que parte de cliches ja prontos, herda da fotografia sua maneira e seu mimetismo
montagem dadaista, a seu ver muito confusa, para extrair "urn sentido claro"91 da
optico, mas renuncia ao registro e apresencya das coisas; 0 fotograma e urn registro
complexidade dos eventos. Segundo ele, 0 poder da fotomontagem reside em sua
realizado sem sistema optico, uma marca luminosa sem mirnetismo. ~ uma espe-
capacidade de oferecer uma "representacyao da simultaneidade",de mostrar "si~u­
cie de imagem natural. produzida somente pela luz, sem ac,:ao da mao nem da ma-
a~oes
condensadas", de permitir "0 aparecimento do sentido latente".
Seja em nome da revolucyao, do irracional ou da simultaneidade, a efiGicia
quina. A fotomontagem e construcyao manual de imagens sem coisas, enquanto 0
fotograma e registro puramente quimico de coisas,semobedecerasuas formas. -
da fotomontagem baseia-se em suas relacyoes contradit6rias, de proximidade e
Segundo Moholy-Nagy, que divide a fotografia em dmis partes-heterogeneas
de distfmcia em relacyao a fotografia. Combinando uma materia fotografica (de
- sistema optico e camada fotossensivel-, e na camada fotossensivel que residem
captura) e um principio aberto de construcyao livle. a fotomontagem beneficia-se
as potencialidades
da intensidade da impressao sem sofrer os limites do registro. Seguramente, pOl'
pOI' "explorar com fins cri~.tivos 0 essencial do procedimento fotografico: a capacidade do suporte de ser fotossemivel".95 Aos olhos dos artistas, a possibiJidade da
liberar-se d::
co~;:~:: !0.~1"" foto~dhca
e :.Jut' " fotomontagem
foi uma pratica de
artistica~
da fotografia. POl' essa razao, 0 fotograma e exaltado
artista (e de pubJicllario) mals do que de tot6grato!l Ao contrario da fotograe1aborar a fOlomontagem~
"
Bertolt Brecht, Berloll Beech" Dreigruschenbuch (0 livro da Opera de tre. vinlens de Bertold Brecht) (Frankfurt am Main: Suhrkamp. (960). p. 93.
Baque, Ducuments de la modernitt (Nimes: 'acqueline Chamnon, 1993), pp. 115-118.
..
cesar Domela, "Les photomonlages", cil., p. IH.
UszJ6 Moholy-Nagy, "Pholographie. mise en forme de lalulniire", cil.. pp. 152-157.
Segundo 0 artiSlJ holandes Cesar Domela, U(oi 0 artistJ -' e roao 0 fOlogra[o - que conseguiu c01lCeber e
"
Uszl6 Moholy-Nagy, "Nouvelles methodes en photographic" (1928). em Pei"'ure photographic, film er aUlres
terits sur la pllOlographie, cit.. pp. 158-164.
film er aUlres terits sur la phorographie (Nimcs: Jacquelir.e Cham bon, 1993), p. 152.
.. Max Ernsl, "Au-del; de la peinture, gu'est-'" que Ie collage''', en Cahiers d'Art, n" 6-7,1937, npud Don,inique
"
91
cr. cesar Domela, "Les pholomonlages" (1932). em Domefa, 65 ans d'abSlTaetion
(Grenoble: Musee de Grenoble, I98'l). apud Dominique Baque, Documents de 10 modemilt, cil.. p. 113.
.. L1sz16 Moholy-Nagy. "PhotOGraphie, mi<e en forme de la lumiere" (jan. de 1928). em Peinrure phorographic,
~28
329
I ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE
I
I A FOTOGRAFIA DOS ARTISTAS I
fOlografia de se liberal', gra~as ao fOlograma, das imposi~6es da mimese acre-lhe
cria~ao
abstra~ao.
0 fotogrcma e, assim,
vista como "pintura feita com a luz",% como uma supera~ao da fotografia (uti-
enormeme.fl.te as vias. da
pura ... :l.te a
de expressao ou de reprodu~ao do que uma ferramenta de percep~ao, uma pr6tese
.1/isual, permitindo um aumento sem precedentes das capacidades s.cnsoJ.iais.do_ ..
homem':99
litaria) pOl' uma arte nova e verdadeira: a "arte da imagem luminosa abstrata".
dire~6es,
Vcr em todas as
liberal'
0
olhar moderno do juga da perspectiva e
110holy-Nagy afirma dispor, com 0 suporte fotossen,;ivel, da mesn.;. soberania
tambem da onda impressionista e pictorialista, aumental' sua mobilidade no es-
artistica proporcionada pela tela e pelos pin-:eis: "Ai, a composi~ao do efeiw lumi-
pa~o, eis 0 essencial do programa da Nova Visao. Nas imagens, isso se manifesta
noso e soberana, cOllforme apenas aos desejos do criador, independentemente das
pOl' uma profusao de tomadas obliquas ou descentradas, de plongees [camara alta]
restri~6es
e cOlltraplollgees lcamara baixa] audaciosas, cuja expcessao emblematica e a moda
e contingencias impostas pelo objeto".~: Libeando a Juz de seu vinculo
com as coisas,
0
fotograma transforma a copia fotografica em arte. Levado pelo
seu entusiasmo, Moholy-Nagy chega a profetiz:lf que 0 fotcgrama anuncia uma
nO\'a era da
cria~ao
artistica: aquela em que a pintura manual com telas, pinceis
e substilncias coloridas ceded
0
lugar aos afres(os luminosos; aquela em que os
das vistas aereas.
cabe~a,
Composi~6es
geometricas sem
dire~ao,
scm eixo, sem pe nem
elas traduzem essa liberdade inusitada dos pontos de vista elevados, como
que suspensos, subtraidos as leis da gravidade e da perspectiva. 1OO Alem de ser uma
corrente estetica, a Nova Visao e uma nova pratica do vel'.
E uma maquina e nao
° lugar das academias de pinlura. Quanto aos surrealistas,
somente uma maquina 6ptica, mas urn combinado de engrenagens e de processa-
para ,:.:.,; 0 l'viv5i'am" e uma nlaneira de tra:1sfigurar as aparencias, de jogar COI7l
mentos, de posturas (principalmente corporais), de pontos de vista, de distilnci,K
reconcilia~6es
etc., que evidenciam, que tornam visivel, que mostram alguma coisa de diferente,
atelies de luz ocuparao
os contrastes, as transparcncias e as o!Jacidades, de experimental'
insolitas, suscetivcis dc desvendar urn
pou~o
que, das
do miSlerio das coisas.
coi~as,
extraem novas evidencias, novas visibilidades. lOl Mesmo se, ai, a
fotografia for considerada urn meio para aumentar as performances tecnic:1s do
Fotomontagcns e fotograrnas sao inseparaveis das novas maneiras de vel', es-
olho, ela coloca em jogo nao s6 a vista, mas tam bern os corpos, assim como as
pecialmente na Alemanha, cnde a Nova Visao, uma fotografia de artistas, se opoe,
coisas e os estados de coisas pr6prios da situa~o da Alemanha na metade dos
anos 1920. Raoul Hausmann, pOl' exemplo, considera a fotografia como urn meio
a montante e a jusante, a dois movimentos de arte fotognifica:
Nova Objetividade.
Enquanto
0
0
pictorialismo e a
de ampliar as capacidades sensoriais do homem, de libera-Io da visao desencar-
pictorialismo domina a fotografia de arte, submetendo-a ao mo-
delo pictorico, Laszlo Moholy-Nagy publica, em 1925, seu Malerei Fotografie Film
(Pintura, fotografia, filme),98 que marca 0 nascimento da Nova Visao e do movimento modernista alemao. A diferenc;:a em
rela~ao
ao pictorialismo e ainJa mais
nada, herdada do Renascimento, e permitir-Ihe atingir a "visao natural", forma
de harmonia entre
0
corpo e supostos principios fisiol6gicos fundamentais. Essa
reavalia~ao
do corpo na fotografia da Nova Visao intervem precisamente no momento em que, na Alemanha, 0 esporte se beneficia de uma audiencia crescente.
forte, po is ultrapassa a estetica para chegar a urn plano quase fisiol6gico. Com a .
Nova Visao, explica atualmente Olivi::r Lugon, 0 procedimento fotografico servi-
E confirma que a pratica do vel' nao implica somente 0 olho, porem todo 0 corpo.
ria menos para "erial' obras de arte no sentido tradicional do termo, do que para
traduzem 0 otimismo intenso, pr6prio da modernidade, da cren~a no nascimento
de urn nov(' h,-,Itlem. ~~~im como 0 advento de ul7la epoca modema, objetiva e
aperfei~oar
e ampliar uma visao humana muito jimitada. Seria menos ur,) meio
Alem da representa~ao de determinado corpo ou determinada coisa, os cliches
racional, annpoda cia era impressionista
.. Erwin Quedenfeldt, "Le (Durnant", em Der Pholograph, n'" fi e I, 1928, apurl Olivier Lugon, La oholOgraphic
ell Allemaglle, cil., r. 99.
.. UszJ6 Moholy-Nag)', "l"ouvc:les melhoJcs ell photographic" (jan. de i92~), em Pei",u," pholographie. film
el allIres t'crits wr 1.0 pholographie, cit., p. 163.
" 0 lexto da obra foi publicado pela editor. J.cqudine Cnambon (cole~o Rayon ph'Ho) COr.1 conjunlo dos
e>eritos de Moholy-Nagy sabre. fOlOgrafia. 0 ja cilado Peill/llre photographie, film el autres cents 'ur [n ;Jhl!'
°
lo~mphif'.
piccorialista. As tomadas audaciosa-
mente obliquas e descentradas, ate entao banidas por sua grande proximidade
com a prcitica do amador, tornam-se emblematicas da nova estetica: as praticas
"
'00
101
330
t
Olivier lugon. La photographie.,. Allelllagnc, cit., p. 31.
Ibid" pp. 127-133.
Gilles Deleuze, Foucault, cit., pp. 64·65.
331
. -,.i..,I,.. •. ;;:
. ENTJo.E f0TOGRAFIA I:: "RTE
(
I
\-,
I
I
com00 fotograma, a sobreimpressao ou a prova negativa, cuja existcncia era apenas marginal, ganham grande destaque, pela maneira camo liberam os objelos de
sua m<iterialidade, e por co!oca-Ios em uma especie de imponder<ibilidade e de
abstra~ao;
as chapas de raios X, as m:::crofotoGrafias, as lomadas astronomicas au
aereas, que eram expulsas do dom inio da arte, sao publicadas e expostas ao lade
de provas intencionalmente artisticas. 101
A Nova Visao redistribui
0
vista e 0 nilo visto
(0
nao visto nao e 0 invisivel, mas
o pouco importa:lte); redefine 0 legitimo e 0 ilegitimo nas formas; reavalia certas
praticas c desconsidera outras (principalmente as do pictorialismo); redesenha
o territorio da arte e reconsidera 0 stutus de algumas imagens (em particular as
da ciencia); inverte a hierarquia estabelecida pelo pictorialismo entre a tecnica
e a mao. Tantas
transforma~oes
luz. Mohl)ly-Nagy n50 concebc
culminam no novo papel desempenhado pel a
,1
coisas, mas como urn material de
fotografia C0l110 um meio de
produ~5.o
reprodll~ao
de obras artisticas. Para de,
0
das
mate·
rial composto de luz e de superficies sen,i'cis prev";,,ce, em sellS t()[ograntas, ate
abollr rotalmcnte 0 aparclho c a 6ptica. Moholy-Nagy e um dos primcir'1s
~rtistas
a utiliza conscientemente a luz e a materia fotografica como material anlstico.
r
Alem disso, a nova pratica do vcr que elt inaugura e 0 uso que faz da fotografia sao
inseparaveis de uma dupla
reavalia~ao, a
do carpo e a da Juz, que, alias, vai resul-
tar no famoso Modulateur espace-Iurniere [ModuJador espa~o-Iuz]. Eexatamente
por distribuir os corpos e modular a luz de maneira singular que a Nova Visao e
uma maquin2.;
e nisso qut ela produz novas visibilidades, que abre as caisas, que
mostra alguma coisa de diferente. Ela se distingue tanto da ITIaquina do picrorialismo quanto da maquina da Nova Objetividade, que propoem, cada uma, outras
disposi~oes de
coisas, isto
carpos, oulros percursos e
fun~oes
da luz, outras rela<;:oes com as
e, outras farmas, outras imagens.
Alem de suas oiferen<;:as, as prat:cas de imagens das fotomonlagens e dos fotogramas, assil11 como
sid~rar,
0
conjunto da Nova Visaa, tern em comum
0
fato de con-
pela primeira vez, a fotograna como UITI verdadeiro material artistico.
:,qlla1ment", clas preligur<ll11 a <Ilian~a entre a arte e a fotografia que vai cOllstituir-se sessenta anos mais tarde, ap6s profundas
mudan~as
intervenienles no mun-
do, na, ;magens e na ane, e que \'ao redennir radicalmente 0 lugar e a papel da
fotografia.
10:
OliVler LUgoll, La pilolUj;raphit:
Ct'
AllcH/agnt', (it., pp. 31-32.
))2