Petite Rafale – Nova poesia quebequense

Transcrição

Petite Rafale – Nova poesia quebequense
ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO
THIAGO MATTOS
DIEGO GRANDO
PETITE
RAFALE
NOVA POESIA QUEBEQUENSE
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
VENDA PROIBIDA
ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO
THIAGO MATTOS
DIEGO GRANDO
2015
WWW.PETITERAFALE.WORDPRESS.COM
P489
Petite rafale : nova poesia quebequense = Petite rafale :
nouvelle poésie québécoise / organizadores Diego Grando e
Thiago Mattos ; tradução Diego Grando e Thiago Mattos. – Rio
de Janeiro : OrganoGrama Livros, 2015. – 80 p.
ISBN 978-85- 66135-11-4.
Bibliotecário responsável: Fernando Pires (CRB10/2096)
1. Literatura canadense – Quebec 2. Poesia I. Grando,
Diego. II. Mattos, Thiago.
CDU 821.133.1(714)=134.3
CDD 841-848:(6)1
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
VENDA PROIBIDA
Para Dominique Boxus,
in memoriam
Para a realização deste projeto, agradecemos especialmente:
a Gaston Bellemare, organizador do Festival International de la Poésie de Trois-Rivières;
Francis Catalano, o primeiro a apoiar e ajudar a desenvolver nossa ideia;
a Lucas Viriato, responsável pela OrganoGrama Livros ;
às editoras que gentilmente cederam os direitos autorais dos poemas aqui traduzidos;
e aos treze autores que aceitaram participar do projeto, tornando esta antologia possível.
SUMÁRIO
Ventos do norte movem moinhos
4
Os poetas
Catherine Harton
David Goudreault
Mahigan Lepage
Marie-Ambrée Gill
Marie-Belle Ouellet
Maude Smith Gagnon
Natasha Kanapé Fontaine
Ouanessa Younsi
Philippe Chagnon
Rose Eliceiry
Simon Boulerice
Simon-Pier Labelle Hogue
Vincent Lambert
8
14
20
26
33
38
44
48
53
59
63
68
74
Os tradutores
Thiago Mattos
Diego Grando
80
80
VENTOS DO NORTE MOVEM MOINHOS
Rajadinha
Foi em outubro de 2013 que nos conhecemos, em razão do Festival Internacional
de Poesia da Trois-Rivières, no Québec. Éramos os dois únicos representantes brasileiros
da 29a edição do festival, fato que tanto nos lisonjeava quanto nos colocava diante da
pergunta: seríamos nós, de algum modo, legítimos representantes da poesia brasileira?
Ou, já que nossa participação havia sido intermediada pelo LOJIQ (Les Offices jeunesse
internationaux du Québec), instituição de fomento ao intercâmbio cultural do Québec com
a juventude latinoamericana e, portanto, condicionada ao fato de termos menos de 35
anos, seríamos nós, ao menos, representantes da jovem poesia brasileira contemporânea?
Quando um “jovem poeta” passa a ser somente “poeta”? O que, afinal, significa pertencer
a uma “jovem poesia”? É ser jovem poeta ou poeta jovem?
Ficamos os 10 dias do festival com essas perguntas na cabeça, enquanto fazíamos
leituras em centros culturais, bares, cafés, restaurantes e casas noturnas, nos mais
variados horários, ladeados por poetas de diferentes nacionalidades, credos e faixas
etárias. As leituras eram bilíngues: primeiro, o poema era lido em francês e, em seguida,
em língua original, fosse ela o português, o finlandês, o árabe, o alemão, o japonês ou o
crioulo. Cada sessão envolvia uma média de cinco poetas, que se alternavam no microfone,
em duas ou três rodadas. Por uma coincidência de percursos universitários e
profissionais, calhou de sermos os únicos poetas do grupo de jovens poetas a ler por si
mesmos seus poemas nos dois idiomas, fato que de algum modo nos levou a um contato
mais estreito com os mediadores das leituras e com os poetas quebequenses com quem
dividimos as leituras.
Entre esses poetas locais, isto é, quebequenses, uma imensa maioria de jovens.
Poetas com um, no máximo dois livros publicados. Seria isso, afinal, ser um “jovem poeta”?
Poemas em jornais, revistas e suplementos literários, vídeos no youtube. Poetas muito
próximos, portanto, da nossa condição. O que significaria, no entanto, ser especificamente
um jovem poeta quebequense? (O poeta quebequense é canadense? A língua quebequense
e a língua francesa são a mesma língua?)
Era flagrante as (por vezes radicais) diferenças entre esses poetas, muito diversos
entre si, mas, em sua maioria, impressionantemente à vontade diante de um microfone:
as fronteiras da poesia quebequense, ou ao menos dessa dificilmente definível nova
poesia quebequense, não se encerram no espaço do livro: apropriam-se da música, do
performático, do teatral, do slam, do ativismo ambiental.
Além disso, são poetas nascidos numa particular situação de bilinguismo, ou, se
quisermos, até de binacionalismo. Divididos entre o Québec (oficialmente uma nação com
língua, cultura e história próprias, tendo autonomia política e econômica especial em
comparação às demais províncias canadenses) e o restante do Canadá (anglófono), esses
poetas, diferentemente dos seus pais e avós, que não raro ignoram a língua inglesa,
4
encaram como natural, ou conveniente, expressar-se em inglês, colocando lado a lado, em
convivência ou tensão, as duas línguas que marcam a presença colonizadora na América
do Norte. Não podemos tampouco esquecer, nesse contexto de multiculturalismo (termo
criado, aliás, no Canadá, e passível de críticas que não cabem nesta introdução) e
multilinguismo (uma convivência de línguas nada pacífica), a presença cada vez mais forte
na poesia quebequense da memória nativa: são os indígenas canadenses, ou seus
descendentes (diretos ou não), que, via poesia, inserem aí uma voz outra, uma língua
outra, que vem diversificar o já diversificado campo poético quebequense.
As perguntas que fazíamos a nós mesmos sobre nosso próprio lugar na chamada
jovem poesia brasileira nos levavam, leitura após leitura, a pensar a poesia quebequense:
seriam esses poetas que com nós dividiam leituras, de algum modo, legítimos
representantes da poesia quebequense? Ou, melhor dizendo, representantes da jovem
poesia quebequense contemporânea? Conscientes da indeterminação dessas respostas é
que, terminado o festival, enquanto viajávamos de Trois-Rivières para Montreal,
começamos a vislumbrar esta antologia que agora se apresenta. Como toda antologia,
precisávamos definir, mesmo que temporariamente, um critério de definição de “jovem
poesia quebequense”. Perdidos em inúmeras possibilidades, acabamos nos decidindo por
critérios mais ortodoxos: assim como no festival se basearam em nossa idade (menos de
35 anos) e na língua em que escrevemos para nos considerarem, evidentemente que com
questionamentos perfeitamente cabíveis, “jovens poetas brasileiros”, definimos a idade
limite de 35 anos e a língua quebequense-francesa como critérios de seleção, buscando,
dentro dessas fronteiras, agregar vozes diversas, inclusive em relação a aspectos
linguísticos (poetas que se reivindicam herdeiros da memória poética e linguística
indígena, por exemplo) e culturais.
O título da antologia também se deve à nossa experiência quebequense de uma
semana e meia: em francês, rafale é um aumento súbito e curto da velocidade do vento.
Rafale, rajada. Fazer algo en rafale significa fazê-lo com rapidez, com a agilidade de um
turbilhão. Em geral, era com uma rodada de leituras en rafale que se encerravam as
sessões: em sequência, com o mínimo possível de intervalo, cada poeta lia um último
poema, de preferência breve. A maior parte dos apresentadores chamava a esse último
momento de petite rafale, rajadinha, expressão que com o passar dos dias foi habitando
nosso vocabulário e nossas conversas.
O que fizemos foi tentar traduzir esse sopro que ouvimos, direto do Québec. E
registrar, en rafale, uma memória que agora compartilhamos.
Esta edição
Nos últimos anos abundam as antologias consagradas à “jovem poesia” das mais
impensáveis “origens” (se origens existem).
Muitos países já publicaram pelo menos uma antologia de “jovens poetas
brasileiros”. No Brasil, já publicamos muitas e muitas antologias de “jovens poetas”, que
costumam ter em comum a publicação impressa, geralmente em pequenas editoras, com
tiragens (dadas as circunstâncias mercadológicas) reduzidas. Com qualquer lógica
5
comercial jogando contra desde a própria concepção desse tipo de projeto, chegar a esse
tipo de resultado é por si só um esforço heroico. Contudo, resolvemos partir nesta
antologia de uma lógica radicalmente não comercial: publicar gratuitamente em ambiente
digital. Não temos nada contra o papel. Pelo contrário. Apenas entendemos que, para este
projeto em questão, o que mais nos interessa é a divulgação desses poetas, sua livre
circulação (ou o mais perto disso) pelo campo literário brasileiro. Como um vento, uma
rafale, que sopra sem fronteira.
Thiago Mattos e Diego Grando,
junho de 2015
SUMÁRIO
www.petiterafale.wordpress.com
6
OS POETAS
7
Catherine Harton
Catherine Harton nasceu em 1983, em Montreal. Publicou três livros de poemas na
editora Poètes de Brousse: Petite fille brochée au ciel (2008), Monomanies (2010) e
Francis Bacon apôtre (2012), livro que lhe rendeu o posto de finalista nos prêmios Émile
Nelligan, Estuaire-Bistro Leméac e Alain Grandbois. Em 2013, recebeu o prêmio FélixAntoine Savard de poesia. No inverno canadense de 2015, publicou seu primeiro livro de
contos. Estuda psicologia na UQAM (Université du Québec à Montréal).
Créditos: Isabelle Lafontaine
SUMÁRIO
8
O primata
Dormir me transpassa. Ainda prefiro a dormência,
a transparência, a febre
Logo antes dos primeiros esboços.
Já faz cinco dias que me dedico a ir além,
eu, o ateliê, os tubos rasgados, fantasmas brutos,
dezenas de garrafas e tantas falhas
para manter a vida, articular, preservar o calor.
Consacro-me ao verde, à relva, a seus cachos de vida,
a derradeira paisagem, nada mais.
Nada mais pois não existo no mundo sem a vertigem,
a sensação de sismo.
Sou pouco palpável à desordem, às suas veias.
Precisamos ter consciência do desastre potencial
que nos espreita a todo momento.
O meu por enquanto é um raio de sol, uma agulha,
uma facaqualquer coisa que me afronte.
Qualquer coisa que obedeça às fotografias, aos deslizamentos,
uma espécie morta.
O quadro é ainda meu primeiro elo com o mundo.
Exercito meu fôlego, a destruição, a pintura.
A única voz do ateliê, Maria Callas.
Sintomas demais ao mesmo tempo. Minha vertigem já não conta.
Há apenas minha semelhança com as cantoras líricas.
Hoje faz seis dias que me dedico à paisagem,
que junto corpo sobre corpo.
Meus cacos de verdor, a vertigem de Van Gogh.
Não chego ao campo.
Parecem rachaduras, veias. Uma ideia morta.
Não é aí onde estou. Ando em círculos, sinto o odor das jaulas.
A paisagem possível que repito como uma litania.
Após o ventre e os galhos, o que resta ? Dou tudo.
Esmago os amarelos, os arabescos da relva.
Alguns golpes na terra. Mas a natureza não se importa,
submeto-me a ela, camada sobre camada.
Procuro entre os campos da Provença, o campo inglês,
alguma coisa, uma vida, uma vastidão, a graça do tempo.
O mundo antes das tempestades. Toda a paz que traz
9
a primavera.
Estou entre meus esboços desperdiçados.
Se observo o interior, o interior me observa.
Minhas reservas se esgotam. Deposito minha cabeça em lugar seguro,
o saber das guerras e a imaginária do sitiado.
Não sou nem primavera nem paz.
Traço novos arabescos, a forma primitiva.
Não mais recuo diante da jaula.
Não me deixarão em paz.
O primata estala seus membros sobre o quadro, sem esboço.
Lentamente, um casulo de torpor, uma divisão do reino, do habitat.
Impõe sua figura lamentativa, quase fantasma, quase assombração.
Não há nem cortina nem raspas. Ele é modelo único, aparição.
Novas vértebras, novo grito.
Eu não queria te esculpir como animal.
Mas te impuseste músculo por músculo, couro temível.
Já faz dez dias que me procuras.
Provocas-me, boca aberta, casca indomável.
Enganaste todas as naturezas mortas. A culpa não é minha.
Suplicas-me, ordenas-me uma alma, uma pulsão.
Esmago uma a uma as cicatrizes para te deixar respirar.
Não há ventre, apenas o duelo da caricatura
insolente, do pesadelo.
Aprendeste a destruir, a urrar muito antes de mim, a destruir,
muito antes de mim.
Sou covarde aproximativo. O quadro de uma vida,
não, não é imaginação.
Não é o esboço. Esgotas-me. É dia,
o sol começa sua primeira incisão.
A mordida de maio. Vinte e um dias na tua dentição de emparedado.
Alinho minhas cores de autômato.
Vinte e dois dias te modelando, fazendo a autópsia dos teus movimentos.
Vinte e dois dias te espiando na minha solidão de ser vivo.
Vinte e dois dias te fazendo urrar na jaula.
Não há sonho, não há sonho.
Tua cara é real. É a minha vez de mercadoria
de suor e sangue.
Não conseguirei.
10
Tens agora um pulso, um odor de perseguido
que é tão teu, um código genético.
Escolheste teu lugar, teu ninho, a culpa não é minha.
Nunca quis te tornar vivo. Cada minuto
é propício a teu acidente de crescimento, teu grito.
Desapareceu o campo, resta apenas a última rachadura,
a excursão do pior.
Esmago alguns tubos pretos. Colmato as janelas,
não mais sol, não mais agulha;
Apenas um odor animal, um longo lamento. Não há mais cama,
biblioteca, cozinha, apenas um único cômodo onde reino
vértebra e fé.
Le primate
Dormir me transperce. Je préfère encore l’engourdissement,
la transparence, la fièvre
Tout juste avant les premières esquisses.
Voilà maintenant cinq jours que je m’exerce au dépassement,
moi, l’atelier, les tubes éventrés, des fantômes bruts,
des dizaines de bouteilles et tout autant de failles
à maintenir en vie, à articuler, à garder au chaud.
Je me consacre au vert, à l’herbe, à ses quelques grappes de vie,
le paysage ultime, rien d’autre.
Rien d’autre car je n’existe pas au monde sans le vertige,
la sensation de séisme.
Je suis à peine palpable au désordre, à ses veines.
Nous avons besoin d’être conscients du désastre potentiel
qui nous guette à tout moment.
Le mien pour le moment est un rayon de soleil, une aiguille,
un couteau quelque chose qui me nargue.
Quelque chose qui obéit aux photographies, aux glissements,
une espèce morte.
Le tableau demeure mon premier lien au monde.
Je m’essaie au souffle, à la destruction, je peux dire peindre.
La seule voix de l’atelier, Maria Callas.
Trop de symptômes à la fois. Mon vertige ne compte plus.
Il n’y a que ma ressemblance aux cantatrices.
11
Six jours maintenant que je m’exerce au paysage,
que j’emprunte corps par-dessus corps.
Mes bribes de verdure, le vertige de Van Gogh.
Je n’arrive pas au champ.
On croirait des crevasses, des veines. Une idée morte.
Je n’y suis pas. Je tourne en rond, perçois l’odeur des cages.
Le paysage possible que je me répète comme une litanie.
Après le ventre et les branches, que reste-t-il ? Je donne tout.
J’écrase les jaunes, les arabesques de l’herbe.
Quelques coups à la terre. Mais la nature ne s’importe pas,
je la subis couche sur couche.
Je cherche entre les champs de Provence, la campagne anglaise,
quelque chose, une vie, une étendue, la grâce du temps.
Le monde avant les ravages. Toute la paix qu’apporte
le printemps.
Je suis au centre de mes esquisses ratées.
Si j’observe l’intérieur, l’intérieur, m’observe.
Mes réserves s’épuisent. Je dépose ma tête en lieu sûr,
le savoir des guerres et l’imagerie de l’assiégé.
Je ne suis ni printemps ni paix.
Je trace de nouvelles arabesques, la forme primitive.
Je ne recule plus devant la cage.
On ne me laissera pas tranquille.
Le primate étale ses membres sur le tableau, sans esquisse.
Lentement, un cocon de torpeur, une division du règne, de l’habitat.
Il impose sa figure de geignard, à peine fantôme, à peine hantise.
Il n’y a ni rideau ni raclures. Il est à lui seul modèle, apparition.
Nouvelles vertèbres, nouveau cri.
Je ne voulais pas te sculpter en animal.
Mais tu t’es imposé muscle par muscle cuir redoutable.
Voilà maintenant dix jours que tu me cherches.
Tu me nargues, gueule ouverte, coquille indomptable.
Tu as trompé toutes les natures mortes. Je n’y suis pour rien.
Tu me supplies, m’ordonnes une âme, une pulsion.
J’écrase une à une les cicatrices pour te laisser respirer.
Il n’y a pas de ventre, seulement le duel de la caricature
insolente, du cauchemar.
12
Tu as appris à détruire, à hurler bien avant moi, à détruire,
bien avant moi.
Moi, je suis lâche approximatif. Le tableau d’une vie,
non ce n’est pas l’imagination.
Ce n’est pas l’esquisse. Tu m’épuises. Il fait clair,
le soleil commence sa première incision.
La morsure de mai. Vingt et un jours pour ta dentition d’emmuré.
J’aligne mes couleurs d’automate.
Vingt-deux jours à te prétrir, à faire l’autopsie de tes mouvements.
Vingt-deux jours à t’épier dans ma solitude de vivant.
Vingt-deux jours à te faire hurler dans ta cage.
Il n’y a pas de rêve, pas de rêve.
Ta gueule est bien réelle. Me voilà à mon tour marchandise
de sueur et de sang.
Je n’y arriverai pas.
Tu as maintenant un pouls, une odeur de pourchassé
qui t’est propre, un code génétique.
Tu as bien choisi ton lieu, ton nid, je n’y suis pour rien.
Je n’ai jamais cherché à te faire vivant. Chaque minute
est propice à ton accident de croissance, ton hurlement.
Le champ est disparu, il ne reste que l’ultime crevasse,
l’excursion du pire.
J’écrase quelques tubes noirs. Je colmate les fenêtres,
plus de soleil, plus d’aiguille ;
Qu’une odeur animale, une longue plainte. Il n’y a plus de lit,
de bibliothèque, de cuisine, qu’une seule pièce où je règne
vertèbre et foi.
SUMÁRIO
13
David Goudreault
Primeiro quebequense a ganhar a Copa do Mundo de slam, em 2011, em Paris, David
Goudreault utiliza tanto o poema quanto o rap ou o slam. Assistente social de formação,
tenta tornar a palavra acessível, encarando-a como ferramenta de emancipação nas
escolas e centros de detenção do Québec e da França. Por sua produção artística e seu
ativismo social, recebeu a medalha da Assembleia Nacional do Québec. Desde a
primavera de 2014, Goudreault divulga suas músicas no Québec e na França,
apresentando o seu novo álbum La faute au silence, selo Véga Musique.
SUMÁRIO
14
A nobre utilização dos compassos
Queimar tua infância
Como um incenso
Para o ambiente.
Escondida atrás das tuas mutilações
Brandidas com dificuldade levando
A todos os homens todos teu pai
Tendo te ocupado muito ou nunca
Você equilibra as feridas
Na vertigem você se equilibra
Você não se pertence mais
Não mais ousará saltar
Já está tudo tão longe
Menina velha largada
Na irreparável espera
Você recorta uma história
Na carne desencadernada
A infância é uma pedra a ser polida
E manipulada com cuidado
La noble utilisation des compas
Faire brûler ton enfance
Comme un bâton d’encens
Pour l’ambiance
Cachée derrière tes mutilations
Brandies à bout de bras portant
À tous les hommes tous ton père
T’ayant trop ou jamais prise
Tu balances tes plaies
Dans le vertige tu t’en balances
Tu ne t’appartiens plus
Tu n’oseras plus sauter
Tout va trop loin
15
Vieille fille vautrée
Dans l’irréparable attente
Tu te découpes une histoire
Dans ta chair sans reliure
L’enfance est une pierre à polir
À manipuler avec soin
SUMÁRIO
16
Molha
A chuva desaba
Como uma corça
Cúmplice na fuga
Recobre nossos rastros
Descobre a luz
Nas nossas carcaças
Curvadas esmagadas quebradas
Sob umas gotas
Muco do mundo
E corremos sem prazer
Sob um céu cinza tomado de água suja
Debater-se para viver é vão
Até as nuvens morrem
Il mouille
La pluie s’abat
Comme un chevreuil
Complice dans la fuite
Recouvre nos pistes
Découvre la lumière
Dans nos carcasses
Courbées écrasées cassées
Sous quelques gouttelettes
Glaire du monde
Et nous courons sans plaisir
Sous un ciel gris gorgé d’eau sale
Se débattre à vivre est vain
Même les nuages finissent par crever
SUMÁRIO
17
Concentrado
Mais ou menos penoso
Jogar o jogo
Mão direita coxas esquerdas
Histórias paralelas
Agarrar-me às minhas conquistas
Enquanto nosso cadáver
Agoniza no baú
Concentré
De moins en plus pénible
Jouer le jeu
Main droite cuisses gauches
Histoires parallèles
M’acharner sur mes conquêtes
Pendant que notre cadavre
Agonise dans le coffre
SUMÁRIO
18
Intensidade
A cada passo
Um cavalo morto no peito
Recupera o fôlego pelas minhas órbitas
Queimo a vela com maçarico
As duas pontas o centro e as beiradas
Ao contrário já não consigo me ver
No fundo do espelho durmo de conchinha
Na abstinência duvide de você
E na dúvida abstenha-se
Intensité
À chaque pas
Un cheval mort sur la poitrine
Reprend son souffle par mes orbites
Je brûle la chandelle au chalumeau
Par les deux bouts le centre et les bords
À l’envers je n’arrive plus à me voir
Au fond du miroir je dors en cuillère
Dans l’abstinence doute de toi
Et dans le doute abstiens-toi
SUMÁRIO
19
Mahigan Lepage
Mahigan Lepage passou a infância na região da Faspésie e a adolescência em Outaouais e
Bas-Saint-Laurent. Estudou na UQAM (Université du Québec à Montréal) e na
Universidade de Poitiers (França). Publicou Relief (Noroît, prêmio Émile-Nelligan), La
science des lichens (publie.net), Vers l’Ouest e Coulées (publie.net/Mémoire d’Encrier), Le
Twictionnaire des e-dées reçues (obra coletiva, publie.net). Desde 2008, dedica-se ao site
Le dernier des Mahigan, espaço de webliteratura, um dos seus maiores interesses. Dirige
a coleção “publie.monde” na editora publie.net, que mescla edições digitais e edições em
papel. Desde 2012, vive e viaja pela Ásia e América do Sul. Em 2014, lançou Fuites
mineures (Mémoire d’Encrier).
Créditos: Anna Lupien
SUMÁRIO
20
jazem nus sobre o solo da megalópole
3ª viagem | dia 18
13 de novembro de 2013
E imóveis ao extremo,
jazem nus sobre o solo da megalópole.
Há visões demais, que exigem completo pudor de imagem.
Esse rapaz,
deitado na calçada,
nu,
inteiramente nu,
em pleno sol,
num canto da rua,
magro, muito magro,
as costas um esqueleto,
curvado,
as pernas sujas,
os pés sujos,
um testículo caindo,
sobre a coxa magra,
diante de um restaurante,
diante de um táxi,
entre nossos passos,
de pedestres,
combatente desfeito,
imóvel,
jaz,
ao lado,
do ponto de ônibus,
definitivo.
E em volta,
os transeuntes,
que passam,
passam,
sem grito,
nada,
nem um corvo,
de ponto a ponto,
os fluxos,
passam.
A cidade exige,
seu pedaço de carne,
de Shylock,
21
gastamos,
nos desgastamos,
é assim
até quando,
não temos mais nada,
para dar,
nem roupa,
nem carne,
sobre os ossos,
descemos,
lentamente,
até,
o ponto de ônibus.
Eu não podia dizer se era um adolescente ou um adulto. Nesse extremo, não há mais
idade. Tão grande inacabamento, que quase já não somos,
quase não somos ainda.
E me via, a mim, ali deitado como ele,
eu o inacabado,
eu o grande adolescente,
eu o grande corpo branco,
eu me despia,
e me deitava,
sobre o concreto,
sobre o flanco,
encolhido,
e a cidade continuava,
e as buzinas,
berravam,
e as pernas,
se confundiam,
o concreto quente,
sob o quadril,
o ar úmido,
sobre meu sexo,
imóvel,
não esperando nada,
mais nada,
nem do concreto,
nem dos carros,
nem dos movimentos,
nem dos vinte milhões,
de partículas,
na megalópole.
22
Esse corpo não é,
diferente do meu,
carrego comigo,
e você também,
um imóvel,
ao extremo,
menos que número,
menos que um,
morto,
não nascido,
anteprimordial.
Ao fim dessa viagem interior, descemos ao mais ínfimo. Está na hora de voltar. Amanhã,
meu avião decola. Vou sair do solo,
e vou deixar,
lá embaixo,
sobre o concreto,
aquele que jaz,
sobre o solo da megalópole.
gisent nus sur le sol de la mégapole
3e voyage | jour 18
13 novembre 2013
Et à l’extrême les arrêtés,
gisent nus sur le sol de la mégapole.
Il y a des visions de trop, qui demandent une entière pudeur d’image.
Ce jeune homme,
couché sur le trottoir,
nu,
entièrement nu,
en plein soleil,
à un coin de rue,
maigre, très maigre,
le dos un squelette,
courbé,
les jambes sales,
les pieds sales,
un testicule pendant,
sur la cuisse maigre,
devant un restaurant,
devant un taxi,
23
dans nos enjambées,
de piétons,
combattant défait,
arrêté,
gisant,
tout auprès,
de l’arrêt,
définitif.
Et tout autour,
les circulations,
qui continuent,
continuent,
pas de cri,
rien,
pas même un corbeau,
de noeud en noeud,
les flux,
passent.
La ville demande,
sa livre de chair,
de Shylock,
qu’on dépense,
ou qu’on se dépense,
c’est ainsi,
alors quand,
on n’a plus rien,
à donner,
plus de vêtement,
plus de chair même,
sur les os,
on descend,
lentement,
vers,
l’arrêt.
Je ne pouvais pas dire si ce garçon était un adolescent ou un jeune adulte. À cet extrême,
il n’y a plus d’âge. Si grand inachèvement, qu’on n’est presque plus,
presque pas encore.
Et je me voyais, moi, gisant comme lui,
moi l’inachevé,
moi le grand adolescent,
moi le grand corps blanc,
je me déshabillais,
et me couchais,
24
sur le béton,
sur le flanc,
recroquevillé,
et la ville allait,
et les klaxons,
retentissaient,
et les jambes,
m’enjambaient,
le béton chaud,
sous la hanche,
l’air moite,
sur mon sexe,
arrêté,
n’attendant rien,
plus rien,
ni du béton,
ni des autos,
ni des mouvements,
ni des vingt millions,
de particules,
en mégapole.
Ce corps n’est pas,
différent du mien,
je porte en moi,
et vous aussi,
un arrêté,
de l’extrême,
en deçà du nombre,
en deçà du un,
mort,
non-né,
antéprimordial.
Au bout de ce voyage intérieur, on est descendu au plus infime. Il est temps de remonter.
Demain, mon avion décollera. Je quitterai le sol,
et laisserai,
tout en bas,
sur le béton,
de la mégapole,
le gisant.
SUMÁRIO
25
Marie-Ambrée Gill
Marie-Ambrée Gill se divide entre a criação literária e uma pesquisa de mestrado em
Letras. Seu primeiro livro, Béante, é publicado pela editora La Peuplade; seu segundo
livro sai no outono de 2015, também pela La Peuplade. Marie-Ambrée procura dar conta
de fragmentos do mundo com o menor número possível de palavras. Sua escrita mistura
o kitsch com o existencial, caminhando entre as identidades quebequense e autóctone.
SUMÁRIO
26
colher penas
direto nas veias
tudo que se encontrar
enxertar patas de coelho
nos gatos pretos
cueillir des plumes
direct dans les veines
tant qu’à y être
greffer des pattes de lapin
aux chats noirs
SUMÁRIO
27
se todos pudéssemos sobreviver
comendo nossas imagens
sobre cadeiras vazias
lá onde o animal se autodigere
ereto os pés entre os ossos
eu atravesso o interior das carnes
é estranho do lado de dentro
somos todos da mesma cor
si nous pouvions tous survivre
en mangeant nos images
sur des chaises vides
là où l’animal s’autodigère
debout les pieds entre les os
je traverse l’intérieur des chairs
c’est fou en-dedans
on est tous de la même couleur
SUMÁRIO
28
manhãs de infância com a barriga de fora
nos congelávamos para ver tudo embaçado
você se lembra
as membranas fixas não esquecerei mais
a periferia da luz
nas nossas barbatanas inexistentes
matins d’enfance au ventre déballé
on se gelait pour mieux voir flou
t’en souviens-tu
les membranes fixes je n’oublierai plus
la périphérie de l’éclairage
dans nos nageoires manquantes
SUMÁRIO
29
era o verão planando
eu transplantava borboletas
nos nossos amores esvoaçados
para sentir sentir
fluir uma eternidade a mais
sobre as pálpebras malditas do mundo
c’était l’été en vol plané
je transplantais des papillons
sur nos amours envolées
pour sentir sentir
couler une éternité de plus
sur les paupières maudites du monde
SUMÁRIO
30
você é o caos nos meus cabelos
e eu preservo o repertório dos melhores paradoxos
essa noite a lua está cheia
de gente apalpando
tu es le chaos dans mes coiffures
et je tiens le répertoire des meilleurs paradoxes
ce soir la lune est pleine
de monde à palper
SUMÁRIO
31
queria pelos menos
dois três minutos a mais
para escutar tua caixa preta
a boca cheia de ressuscitados
j’aurais voulu au moins
deux trois minutes de plus
à écouter ta boîte noire
la bouche pleine de ressuscités
SUMÁRIO
32
Marie-Belle Ouellet
Nascida na Gaspésie, Marie-Belle Ouellet já participou de vários projetos literários.
Dentre leituras de poesia e revistas literárias, destacam-se: Arcade, Lapsus,
FéminÉtudes. Formada em estudos literários, especializou-se em crítica feminista. Em
2004, recebeu o prêmio Arcade por Nature morte. Em 2006 e em 2013, participou do
Festival de Poésie de Trois-Rivières. Em 2006, publicou o livro Um peu de ciel au bout
d’une corde, pela editora Éditions David. Em 2011, participou da residência de artista da
Maison Félix-Leclerc, em Vaudreuil, experiência que deu origem ao livro Je promets
d’être là. Em 2015, publicou Le son friable de l’étreinte.
Créditos: Stéphane Larivière
SUMÁRIO
33
O que possuo me escapa
Escrevemos porque sonhamos dividir com o outro, nosso semelhante, o que só pode
pertencer a nós mesmos.
Louise Dupré
substituo o silêncio dos teus lábios
nossos corpos se apagam
apesar do frio
que deteriora sob a água
aprendo a renascer
fixo nossos restos entre tuas pálpebras
e de nós eu vivo
estendo uma a uma
nossas lembranças
entre os lençóis brancos da tua pele
Ce que je possède m'échappe
On écrit parce qu'on rêve de partager avec l'autre, son semblable, ce qui n'appartiendra
jamais qu'à soi.
Louise Dupré
je substitue le silence de tes lèvres
nos corps s'éteignent
malgré le froid
qui abîme sous l'eau
j'apprends à renaître
je fixe nos restes entre tes paupières
et de nous je vis
j'étends un à un
nos souvenirs
entre les draps blancs de ta peau
SUMÁRIO
34
incendeio a memória
que carrega
a vertigem das tuas palavras
meus rios são estradas inacabadas
que você retoma sempre
j'embrase la mémoire
qui porte
le vertige de tes mots
mes rivières sont des routes inachevées
que tu reprends sans cesse
SUMÁRIO
35
cascalhos enchendo a boca
tu desenhas as sombras coloridas da infância
jogo longe os corações das maçãs
escurecidos pelas tuas lágrimas
estendo o dedo para o sol
os olhos semicerrados
os espectros se alinham
escarram sua solidão
des cailloux plein la bouche
tu dessines les ombres colorées de l'enfance
je jette au loin les cœurs de pommes
noircis par tes larmes
je tends le doigt vers le sol
les yeux mi-clos
les spectres s'alignent
crachent leur solitude
SUMÁRIO
36
sentimos o odor das velhas coisas
abandono a criança
às vezes
esse muro trincado
vê nossas vidas se movendo no outro
escuta
na esmagadura do mar
há nossos rostos nus
apago as poeiras
entre os corredores
emerjo da chuva
sozinha
às vezes
enfrento as correntezas
e a lua se fixa no teu olhar
às vezes não há nada além
da neve que fica
nous sentons l'odeur de vieilles choses
j'abandonne l'enfant
parfois
ce mur craquelé
voit nos vies se mouvoir dans l'autre
écoute
dans l'écrasement de la mer
il y a nos visages nus
j'efface les poussières
entre les corridors
j'émerge de la pluie
seule
parfois
je remonte les courants
et la lune se fixe dans ton regard
parfois il n'y a rien d'autre
que la neige qui se fige
SUMÁRIO
37
Maude Smith Gagnon
Nascida em Basse-Côte-Nord, Maude Smith Gagnon estudou na UQAM (Université du
Québec à Montréal). Seu primeiro livro de poemas, Une tonne d’air, recebeu o prêmio
Émile-Nelligan, em 2006. Seu livro Um drap. Une place recebeu o prêmio Gouverneur
Générale de poesia de língua francesa em 2012.
SUMÁRIO
38
7 de junho
Sobre o solo perto da grande construção, um linóleo velho, uma pilha de madeira e poças
de água que o vento espalha. Grandes horas vazias se abrem diante de mim, e, não
necessariamente para preenchê-las, observo Serge arrumando o pátio. Há alguns dias ele
não consegue encontrar seu lenço. No lugar, enrolou no pescoço um pano de prato. Você
não me escreve muito. O tempo aqui está acinzentado. O mesmo céu de ontem, apenas
mais baixo. Não o olho por muito tempo.
7 juin
Sur le sol pres de la grande batisse, un vieux prelart, une pile de bois et des flaques d'eau
que le vent etire. De grandes heures vides s'ouvrent devant moi et, pas necessairement
pour les combler, j'observe Serge faire du rangement dans la cour. Depuis quelques jours
il ne trouve plus son foulard. À la place, il a noue autour de son cou un linge a vaisselle.
Tu ne m'ecris pas beaucoup. Le temps ici est gris clair. Meme ciel qu’hier, mais plus bas.
Je ne le regarde pas tres longtemps.
SUMÁRIO
39
18 de junho
Chove sobre o mar. E as ondas, ao crescer, afastam a caixa de suco de laranja que tento
puxar com um pedaço de pau.
18 juin
Il pleut sur la mer. Et les vagues, en se gonflant, eloignent le carton de jus d'orange que
j’essaye d'attraper avec un long baton.
SUMÁRIO
40
14 de agosto
As árvores se curvam, se erguem, depois novamente se curvam. Caminho segurando na
mão um papel que peguei em algum lugar. Meus traços na areia se enchem de água.
14 aout
Les arbres se penchent, se redressent, puis se penchent a nouveau. Je marche en gardant
dans ma main un papier ramasse quelque part. Mes traces dans le sable se remplissent
d'eau.
SUMÁRIO
41
27 de junho
Queria te falar desse momento. Era por volta de meio-dia. Estava sentada na cozinha, o
queixo apoiado na mão. Observava a mesa e seu desenho turquesa, minha mochila, a
xícara marrom, as manchas de chá, o papel celofane amassado. Nada disso, exceto o
turquesa da mesa, ocupava um lugar central no meu campo de visão. O contorno dos
objetos permanecia embaçado. Durante longos minutos (um ou dois, na verdade, mas é
fácil dizer isso agora), fixei essa porção insignificante do meu universo, como se estivesse
hiptonizada, incapaz de me anular, mesmo que fosse tão simples levantar a cabeça, olhar
para fora, dizer qualquer coisa – “está um cheiro ruim aqui”, por exemplo, o que era
verdade – ou fazer qualquer outra coisa. Não sei por que te escrevo tudo isso. O ar desta
manhã está úmido. Minhas unhas estão sujas. Não preciso que me ache interessante, não
hoje.
27 juin
J'aimerais te parler de ce moment. C'etait aux environs de midi. J'etais assise dans la
cuisine, le menton appuye dans le creux de la main. J'observais la table et son lavis
turquoise, mon sac a dos, la tasse brune, les cernes de the, le papier cellophane froisse.
Rien de tout cela, excepte le turquoise de la table, n'occupait une place centrale dans
mon champ de vison. Le contour des objets demeurait en partie flou. Durant de tres
longues minutes (une ou deux en realite, mais c'est facile de dire ça maintenant) j'ai fixe
cette portion insignifiante de mon univers, comme hypnotisee, incapable de m'y
soustraire alors qu'il aurait ete si simple de relever la tete, de regarder dehors, de dire
n'importe quoi – « ça sent mauvais » par exemple, ce qui etait vrai – ou de passer a autre
chose. Je ne sais pas pourquoi je t’ecris tout cela. L’air depuis ce matin est humide. Mes
ongles sont sales. Je n’ai pas besoin que tu me trouves interessante, pas aujourd’hui.
SUMÁRIO
42
10 de maio
Duas lampadas presas ao mesmo fio estao penduradas sobre a cama. O comodo ainda tem
um pouco de claridade. Na tigela entre minhas pernas, pesco uma uva estragada.
10 mai
Deux ampoules rattachees au meme fil pendent au-dessus du lit. La piece reçoit encore
un peu de clarte. Dans le bol pose entre mes jambes, je pige un raisin mou.
SUMÁRIO
43
Natasha Kanapé Fontaine
Natasha Kanapé Fontaine é poeta, pintora, atriz e militante dos direitos indígenas. Ela
própria, aliás, nasceu em Pessamit, comunidade Innu situada no Québec. Desde 2012,
dedica-se ao slam. Publicou dois livros de poemas (N’entre pas dans mon âme avec tes
chaussures, editora Mémoire d’Encrier, e Manifeste Assi, também pela Mémoire
d’Encrier). Em 2013, recebeu, pelo seu primeiro livro, o prêmio da Société des Écrivains
francophones d’Àmérique. Pelo segundo, foi finalista do prêmio Émile-Nelligan, em
2015. Atualmente vive em Montreal.
SUMÁRIO
44
Se eu não sou a Terra
Diga-me quem sou eu se eu não sou a Terra. Se meu corpo não é território. Se o
território não é meu corpo. Diga-me quem sou eu se eu não tenho a Terra. Se meu corpo
não é o instrumento do território. Se o território não tem acordes. Diga-me quem sou eu
se eu não sou o poema da Terra. Se meu corpo não tem palavras. Se o território foi
forçado a se calar.
Diga-me quem sou eu se eu não tenho a voz da Terra. Se meu corpo não mais emite
nenhum ruído. O território não pode mais cantar. Diga-me quem sou eu se eu não sou o
canto da Terra. Se meu corpo não tem nenhuma vibração. Se o território não mais emite
nenhum som. É outro aquele das máquinas e das barragens e das minas e do petróleo
que corre sobre meu corpo.
Si je ne suis pas la Terre
Dites-moi qui je suis si je ne suis pas la Terre. Si mon corps n’est pas territoire. Si le
territoire n’est pas mon corps. Dites-moi qui je suis si je n’ai pas la Terre. Si mon corps
n’est pas l’instrument du territoire. Si le territoire n’a pas d’accords. Dites-moi qui je suis
si je suis pas le poème de la Terre. Si mon corps n’a pas de mots. Si le territoire a dû être
forcé de se taire.
Dites-moi qui je suis si je n’ai pas la voix de la Terre. Si mon corps n’émet plus aucun
bruit. Si le territoire ne peut plus chanter. Dites-moi qui je suis si je ne suis pas le chant
de la Terre. Si mon corps n’a aucune vibration. Si le territoire n’émet plus aucun son.
Autre celui des machines et des barrages et des mines et du pétrole qui coule sur mon
corps.
SUMÁRIO
45
Innu auass
venho procurar teus olhos escuros Innu auass
o nome do tambor
o canto das andorinhas
venho procurar teus olhos azuis Innu auass
o estrondo das montanhas
a pele do céu
o makusham sobre teu casaco de pano
o bannock sobre teu vestidinho quadriculado
percebes com teu olhar verde Innu auass
a garganta tremulante do velho homem de madeira
dá aos meus olhos a aurora branca do inverno
dá aos meus olhos o amor alegre do retorno
a esperança do meu hoje
aqui em volta querem erguer minas
ali na frente querem escavar rios escuros
logo atrás arrancar famílias inteiras de coníferas
e traçar estradas de torres elétricas
Innu auass
o universo é grande para o amor
a festa está viva sob as tendas
teu coração
pensa no tambor
tu te decretas guardião das lendas
tu me contas todas elas
venho procurar teus olhos negros Innu auass
meus olhos de criança innu
tu te tornas meu avô
e minha avó
Innu auass
minha infância reacende em ti
tudo é um círculo
Innu auass
je viens chercher tes yeux bruns Innu auass
le nom du tambour
46
le chant des hirondelles
je viens chercher tes yeux bleus Innu auass
le grondement des montagnes
la fourrure du ciel
le makusham sur ton manteau de toile
la bannique sur ta petite robe en carreaux
tu perçois de ton regard vert Innu auass
la gorge tremblante du vieil homme de bois
donne à mes yeux l’aube blanc de l’hiver
donne à mes yeux l’amour joyeux du retour
l’espoir de mon aujourd’hui
alors qu’autour on voudrait élever les mines
qu’au devant on creuse les fleuves noirs
derrière l’on rase les familles entières de conifères
l’on trace des routes aux pylônes électriques
Innu auass
l’univers est grand pour l’amour
la fête est vive sous les tentes
ton coeur
réfléchis au tambour
tu te décides gardien des légendes
tu me les racontes
je viens chercher tes yeux noirs Innu auass
mes yeux à moi d’enfant innu
tu deviens mon grand-père
et ma grand-mère
Innu auass
mon enfance revit en toi
tout est un cercle
SUMÁRIO
47
Ouanessa Younsi
Ouanessa Younsi é poeta, psiquiatra e faz um mestrado em Filosofia. Em 2011, publicou
seu primeiro livro de poemas, Prendre langue, pela editora Mémoire d’Encrier. Seu
segundo livro, Emprunter aux oiseaux, foi lançado na primavera de 2014, também pela
Mémoire d’Encrier. Participa de leituras de poesia, obras coletivas e revistas, além de se
dedicar ao seu site pessoal ouanessayounsi.com.
SUMÁRIO
48
te apresento
minha sobrinha
se não sou mais
tua neta
quem sou eu
***
***
é você, mamãe
isso começa com um clamor
isso evolui para um murmúrio
isso termina em mudez
as orgias
sem casca
quando expiramos
o tumulto reaparece
vaso quebrado
o amor muda de nome
mas não de rosto
***
não sou louca
o asilo afunda
seus pulsos de inseto
no teu sexo
quem disse
proibido alimentar
as estrelas
quem cedeu
o amor
aos canibais
49
***
teu olhar dá
para a janela
a janela
para o firmamento
o firmamento
para tua cabeça
tua cabeça
para meu busto
como uma trégua
***
o erg
liberta
a ilha
liga
o ouro
desatina
a árvore
repara
as raízes.
je vous présente
ma nièce
si je ne suis plus
ta petite-fille
qui suis-je
***
50
***
c’est-tu maman
ça commence par une clameur
ça évolue en murmure
ça s’éteint en mutisme
les orgies
sans pelure
lorsqu’on expire
le tumulte réapparaît
vase brisé
l’amour change de nom
mais pas de visage
***
je ne suis pas folle
l’asile enfonce
ses poings d’insecte
dans ton sexe
qui a dit
défense de nourrir
les étoiles
qui a cédé
l’amour
aux cannibales
***
ton regard
sur la fenêtre
la fenêtre
sur le firmament
le firmament
sur ta tête
51
ta tête
sur mon buste
comme une trêve
***
l’erg
délivre
l’île
relie
l’or
égare
l’arbre
répare
les racines.
SUMÁRIO
52
Philippe Chagnon
Philippe Chagnon nasceu em Saint-Hyacinthe, em 1986. Graças à música, interessa-se
desde muito novo pelo mundo da arte. Estuda contrabaixo em Drummondville e, em
seguida, muda-se para Montreal, onde começa a estudar (sem concluir) filosofia. Desde a
publicação do seu primeiro livro, Cœur Tatekout, pela Éditions de l’Écrou, Chagnon
experimenta variadas formas de escritura.
SUMÁRIO
53
Eu disse pra ela
eu te amo
ela ouviu
tô com calor
Tiramos a roupa assim mesmo.
Je lui ai dit
je t’aime
elle a entendu
j’ai chaud
On s’est déshabillé pareil.
SUMÁRIO
54
Não lavei a louça
ela tá puta
escrevi um poema
ela não tá nem aí
Escrevi um poema
sobre a louça
que não lavei
ela me beija
e aí depois já não tá puta.
J’ai pas fait la vaisselle
elle est en crisse
j’ai écrit un poème
elle s’en fout
J’ai écrit un poème
sur la vaisselle
que j’ai pas faite
elle m’embrasse
pis la suite
c’tait fou en crisse.
SUMÁRIO
55
A gente diz
antes você era
assim ou assado
só que agora
sei lá
você era assado ou assim
antes
Mas depois
Você vai ser assim
Mas era principalmente
assado.
On dit
avant t’étais
comme si ou comme ça
pis maintenant
je sais pas
t’étais comme ça ou comme si
avant
Pis après
Tu seras comme si
Mais t’étais surtout
comme ça.
SUMÁRIO
56
Me pergunto
o que Picasso teria desenhado
nos seus strudels.
Je me demande
ce que Picasso aurait dessiné
sur ses strudels.
SUMÁRIO
57
A manhã é longa
porque você me disse
“nada de vinho enquanto ainda tiver gosto
de cereal na boca”
Vou escovar os dentes.
L’avant-midi est longue
car tu m’as dit
«pas de vin tant qu’on a encore le goût
des céréales dans la bouche»
Je vais aller me brosser les dents.
SUMÁRIO
58
Rose Eliceiry
Nascida na cidade do Québec, Rose Eliceiry mora atualmente em Montreal. Nos últimos
10 anos, participou de inúmeras leituras de poesia, no Québec e na Europa. Dentre esses
eventos, destacam-se o Festival Internation de Poésie de Trois-Rivières, Herrobiko
Festibala (França), Festival de Poésie de Namur (Bélgica) e FRYE Festival (Canadá). Em
2011, publicou Hommes et chiens confondus, pela editora Éditions de l’Écrou, recebendo
o prêmio Félix-Leclerc de poesia. Trabalha atualmente em um segundo livro, a sair em
breve.
SUMÁRIO
59
Sorri
por costume
um pouco também porque não havia outra coisa a fazer
lá
entre a porta
e o cabideiro
permanece uma imagem
desossando lentamente
um natimorto
de que nos livramos
tudo é intercambiável
a eternidade é indiferente a nós
não mais habito
minha origem
J’ai souri
par habitude
un peu aussi car il n’y avait rien d’autre à faire
là
entre la porte
et le porte-manteau
reste une image
à désosser lentement
un enfant mort-né
dont on se débarrasse
tout est interchangeable
l’éternité se fout de nous
je n’habite plus
mon origine
SUMÁRIO
60
aonde vai então a noite
quando o dia não tem culpa
e a lua
está enfaixada como um cavalo
tua face misturada à minha
focinho que exaure minha bochecha
quantas vezes fechar as pálpebras
quantas vezes fechar a porta
quantas vezes o esplendor
dobrado de palavras
que não querem mais nada dizer
e tudo passa
porque tudo passa
où s’en va donc la nuit
quand le jour n’y est pour rien
et que la lune
est bandée comme un cheval
ta face emmêlée dans la mienne
museau qui harasse ma joue
combien de fois clore les paupières
combien de fois fermer la porte
combien de fois la splendeur
doublée de mots
qui ne veulent plus rien dire
et que tout passe
parce que tout passe
SUMÁRIO
61
não sou eu que ando
são as ruas que descem as ladeiras
na contramão
me acolhem no caminho
minhas origens se corroem entre si
me movo para o centro do infinito
então não me movo.
ce n’est pas moi qui marche
ce sont les rues qui dévalent les pentes
à contresens
me recueillent au détour
mes origines se rongent entre elles
je bouge au centre de l’infini
donc je ne bouge pas.
SUMÁRIO
62
Simon Boulerice
Simon Boulerice é ator, diretor e assistente de direção artística do teatro L’Àrrière
Scène, em Beloeil, pequena cidade próxima a Montreal. Escreveu uma dezena de peças
de teatro, das quais PIG e Martine à la plage receberam o prêmio do público Gala des
Cochons d’Or. Também publicou romances (como Javotte, prêmio Lecteurs Émergents
de l’Àbitibi, 2013), livros infanto-juvenis (como Edgar Paillettes, prêmio Libraires
Jeunesse, 2014) e três livros de poesia (como Saigner des dents, prêmio Alphonse-Piché,
2009). Em 2014, reencenou o espetáculo Tout ce que vous n’avez pas vu à la télé (prêmio
de texto do ano Jeunes Critique de la Montérégie, 2014).
SUMÁRIO
63
adoramos ver um pai
procurando a mão do filho
quando o trem chega na estação
somos contra
quase categoricamente
utilizar a tesoura da cozinha
para aparar os pelos pubianos
temos decididamente o coração
no lugar certo
nous aimons voir un parent
chercher la main de son enfant
quand le métro entre en gare
nous nous opposons
presque catégoriquement
à utiliser les ciseaux de cuisine
pour nous coiffer le pubis
nous avons décidément le cœur
à la bonne place
SUMÁRIO
64
fazemos projetos de carreira
viraremos produtores de filmes pornô
filmes na íntegra
com amor e desejo
filmes de ternura
com ereções naturais e garotas felizes
garotas que se sentem seguras
que querem estar ali
naqueles braços
garotas com seios normais
bocas normais
caras capazes de dizer eu te amo
depois de ejacular
nous faisons des projets de carrière
nous deviendrons producteurs de films XXX
des films complets
avec de l’amour mêlé au désir
des films de tendresse
avec des érections naturelles et des filles heureuses
des filles qui se sentent en sécurité
qui ont envie d’être là
dans ces bras-là
des filles avec des seins normaux
des bouches normales
des gars capables de dire je t’aime
après avoir éjaculé
SUMÁRIO
65
você espirra no braço
teus vírus na dobra do braço
bem onde gosto de apoiar a cabeça à noite
falo tua língua
tenho tua saliva atravessada no coração
bebi tudo
pelas tuas costas
falsifico teu curriculum vitae
me acrescento na tua formação tuas apitidões teus interesses
faço parte de você
põe isso na cabeça
minha escolaridade te aprofunda
carrego na voz
tua palava de bom agouro
minha boca engoliu a tua
te cito como respiro
tu éternues dans ton coude
tes virus dans le pli du bras
là où j’aime poser la tête le soir
je parle ta langue
j’ai ta salive au travers du cœur
j’ai tout bu
dans ton dos
je falsifie ton curriculum vitae
m’ajoute dans ta formation tes aptitudes tes intérêts
je fais partie de toi
mets ça dans ta pipe
ma scolarité s’arrête à t’approfondir
je porte dans ma voix
ta parole de bonne augure
ma bouche a avalé la tienne
je te cite comme je respire
SUMÁRIO
66
vamos no Exército da Salvação
roubar os mais desprovidos
uma criança testa o som
de uma flauta usada
choramos
sobre suas marcas de herpes
não somos melhores
lavamos nossas próteses dentárias
com a saliva dos animais domésticos
a purificação não virá
azar
estamos todos perdidos
mostremos a língua nas ruas
procuremos lábios para arpoar
nada
desertaram-nos
nous allons à l’Àrmée du Salut
voler les plus démunis
un enfant teste le son
d’une flûte usagée
nous pleurons
sur ses projets de feux sauvages
nous ne sommes pas mieux
nous lavons nos prothèses dentaires
avec la salive de nos animaux domestiques
la purification ne viendra pas
tant pis
nous sommes tous perdus
sortons la langue dans les rues
cherchons des lèvres à harponner
rien
on nous a désertés
SUMÁRIO
67
Simon-Pier Labelle-Hogue
Simon-Pier Labelle-Hogue trabalha e mora em Montreal, onde faz um doutorado em
língua e literatura francesas na Universidade McGill. Em 2011, publicou o livro
Morfologia do lobo (editora Poètes de Brousse). Além de publicar artigos sobre
sociologia e literatura, redes literárias e a contracultura quebequense, prepara
atualmente um segundo livro, Défilements (Poètes de Brousse, a sair em 2016), e um
livro de poemas para crianças.
SUMÁRIO
68
O lobo se torna bípede
o vento sobre o rosto
garra abatida
o animal não sente mais as cordas
não acreditando nem nos sóis decapitados
nem na fissão dos esporos
que o invisibilizam
ele mergulha sua pele nos unguentos
se escorifica
divide os sistemas com os bucaneiros
e se deforma por sutura e coagulação
o lobo se erode
as ervas germinam nos sulcos
onde ontem o fogo terminava seu cadastro
o peso do arreamento
deixa o lobo em equilíbrio
Le loup devient bipède
le vent sur son visage
griffe abattue
l’animal ne sent plus les cordes
ne croyant ni les soleils décapités
ni la fission des spores
qui l’invisiblent
il noie sa peau dans les onguents
se scorifie
répartit les stèmes entre les boucaniers
et se déforme par suture et coagulation
le loup s’érode
les herbes germent dans les sillons
là où le feu hier finissait son cadastre
le poids du harnachement
69
garde le loup en equilibre
SUMÁRIO
70
Reprodução do lobo
as ordens não me dizem nada
acordo
os braços sobre meu corpo
em cruz
e gelo nos pulmões
o lobo que me olha pela janela
e eu que não me mexo mais
Reproduction du loup
les ordres ne me disent rien
je me réveille
les bras sur mon corps
en croix
et de la glace dans les poumons
le loup qui me regarde par la fenêtre
et moi qui ne bouge plus
SUMÁRIO
71
O último texto
no repique dos caules
e na fratura dos vidros
sobre os tamboretes
dois homens trocam um olhar vago
e riem
a cabeça queimando de alegria
entre lampejos
a noite se afasta
em pedaços de embriaguez
colados aos vapores da aurora batida
o caçador dorme
o rosto afundado nos manuscritos
e o lobo desloca a base da sua gangrena
em busca de um condutor
põe a mão sobre o revólver
que afrouxa
olha uma última vez os troncos
pela janela
e toma a direção da emergência
contornando os edifícios
Dernier texte
dans le carillonnement des tiges
et le bris des verres
sur les tabourets
deux hommes échangent un regard flou
et rient
la tête en feu de joie
parmi les éclairs
la nuit se détache
en morceaux d’ébriété
à même les vapeurs de l’aube battue
le chasseur dort
le visage enfoncé dans les manuscrits
72
et le loup déplace le socle de sa gangrène
à la recherche d’un conducteur
il met la main sur le tromblon
qui se relâche
regarde une dernière fois les collets
par la fenêtre
et prend la direction des urgences
en contournant les édifices
SUMÁRIO
73
Vincent Lambert
Vincent Lambert nasceu em Saint-Narcisse-de-Beaurivage, região sul do Québec.
Publicou dois livros de poemas, Paysages récents (editora Lézard Amoureux, 2005) e La
fin des temps par un témoin oculaire (editora L'Hexagone, 2013), assim como ensaios
sobre literatura, principalmente na revista Contre-jour. A editora Nota Bene prepara a
publicação da sua tese de doutorado, L'Âge de l'irréalité. Solitude et empaysagement au
Canada français (1860-1930).
SUMÁRIO
74
Absconditus
Tudo muda, e nada acontece.
Estamos entre dois mundos entre
duas estações entre duas histórias entre duas
frases
paradas.
Olha só – ouvimos o que vemos.
Precisaria de um piano para interpretar essa chuva!
Tem um por aqui – dá para perceber
em volta dos quadros respirar
sob as portas...
mas o pianista está sentado na multidão
as mãos retraídas no sobretudo que nunca quis usar.
Ele se ignora e
todo mundo se olha.
Absconditus
Tout change, et rien ne se passe.
Nous sommes entre deux mondes entre
deux saisons entre deux histoires entre deux
phrases
arrêtés.
Tiens – on entend ce qu’on voit.
Il faudrait un piano pour interpréter cette pluie !
Il y en a un – ça se sent
autour des tableaux respirer
sous les portes…
mais le pianiste est assis dans la foule
les mains rétractées dans le manteau qu’il n’a jamais voulu porter.
Il s’ignore et
tout le monde se regarde.
SUMÁRIO
75
O interlúdio infinito
Estava mudando de roupa à noite
e você me surpreendeu, nu
entre dois espelhos.
Não esconderei.
Vou te mostrar
tal qual você é.
(Vai ser engraçado
mas você não vai rir, não ainda.)
A verdade é que
você não é teu corpo não mais
que é em vida, você tem
um corpo.
A verdade é que você
tem todos, e a vida?
é você
é você.
O
que – ali agora
me lê
eu poema e tudo o que
atrás do teu ombro, os móveis, as plantas
o sabe.
Não tenho nome para te dizer tenho
apenas verbos, e sem descanso
me escrevem, te escrevem.
L'interlude infinie
Je me changeais dans la nuit
et tu m’as surpris, tout nu
entre deux miroirs.
Je ne me cacherai pas.
Je vais te montrer
tel que tu es.
(Ce sera vraiment très très drôle
mais tu ne riras pas, pas encore.)
La vérité c’est que
tu n’es pas ton corps pas plus
que tu n’es en vie, tu as
un corps.
76
La vérité c’est que tu
les as tous, et la vie ?
c’est toi
c’est toi.
Ce
qui – là maintenant
me lit
moi poème et tout ce qui
derrière ton épaule, les meubles, les plantes
le sait.
Je n’ai pas de nom pour te dire je n’ai
que verbes, et sans repos
on m’écrit, on t’écrit.
SUMÁRIO
77
O odre
Durante uma sesta num fim de tarde, tombo para fora do meu corpo. É preciso que eu
saiba. Vou até o espelho do banheiro verificar se tenho os olhos abertos.
Estão fechados. A pele do meu antebraço reluz como um choupo – mais azul talvez.
Na cozinha: meu pai percorreu todo esse caminho para tocar nos cabelos da minha
mulher. Curiosamente, não sinto nada, nem ciúme nem vergonha. Estão longe do outro
lado de um trilho de metrô, não me veem tão perto vagando como fumaça
na direção de uma fresta. Pareço aspirado pelo coração no campo gravitacional do
micro-ondas em que pisca
uma hora flutuante de números quadrados, 88:88. Deve ter faltado luz... mas não é a
hora que me imanta, é o display, terra fértil
e quando me aproximo para ver a profundidade
ele fica colorido.
Meu amigo, sem saber você vivia no vermelho, verde tamizado – aqui está o odre de
florescências, o remoinho
plásmico onde o mundo como se percebe cozinha brandamente.
A íris de que falava Abraham de Vermeil.
Deixo-me entrar, procuro discernir quem então reacendeu atrás de mim, faço ainda as
más perguntas. E a cor fica com a cor da água.
L’outre
Pendant une sieste en fin d’après-midi, je trébuche hors de mon corps. Il faut que je
sache. Je vais au miroir de la salle de bain vérifier si j’ai les yeux ouverts.
Ils sont fermés. La peau de mes avant-bras chatoie comme à travers un tremble – en plus
bleu peut-être.
Dans la cuisine : mon père a fait tout ce chemin pour toucher aux cheveux de ma femme.
Curieusement je ne ressens rien, ni jalousie ni honte. Ils sont loin de l’autre côté d’une
allée de métro, ne me voient pas tout près qui dérive comme une fumée
vers un entrebâillement. Je semble aspiré par le cœur dans le champs gravitationnel du
micro-ondes où clignote
une heure flottante aux chiffres carrés, 88:88. L’électricité a dû manquer… mais ce n’est
pas l’heure qui m’aimante, c’est l’écran, son terreau noir
et comme je m’approche pour tester sa profondeur
il se multicolore.
Mon ami, sans savoir tu vivais dans du rouge, du vert tamisés – voici l’outre aux
fluorescences, le remous
plasmique où le monde tel qu’on le sent mijote.
L’iris dont parlait Àbraham de Vermeil.
Je me laisse entrer, je cherche à discerner qui donc a rallumé derrière, je pose encore les
mauvaises questions. Et la couleur prend la couleur de l’eau.
SUMÁRIO
78
OS TRADUTORES
79
Thiago Mattos é poeta, nascido em Petrópolis – RJ. Publicou Teu pai com uma pistola
(Confraria do Vento, 2012) e Casa devastada (Confraria do Vento, 2014), além de poemas
em revistas e jornais. É tradutor, professor e doutorando em Letras na USP, com artigos
publicados em periódicos nacionais e internacionais.
Diego Grando é poeta, nascido em Porto Alegre, 1981. Publicou Sétima do singular (Não
Editora, 2012) e Desencantado carrossel (Não Editora, 2008), o livreto "25 Rua do
Templo" (Não Editora, 2010) e também poemas em antologias, revistas e jornais. É
professor de literatura e doutorando em Letras na UFRGS.
SUMÁRIO
80
ISBN 978-85-66135-11-4
2015
WWW.PETITERAFALE.WORDPRESS.COM
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
VENDA PROIBIDA

Documentos relacionados