Petite Rafale – Nova poesia quebequense
Transcrição
Petite Rafale – Nova poesia quebequense
ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO THIAGO MATTOS DIEGO GRANDO PETITE RAFALE NOVA POESIA QUEBEQUENSE DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO THIAGO MATTOS DIEGO GRANDO 2015 WWW.PETITERAFALE.WORDPRESS.COM P489 Petite rafale : nova poesia quebequense = Petite rafale : nouvelle poésie québécoise / organizadores Diego Grando e Thiago Mattos ; tradução Diego Grando e Thiago Mattos. – Rio de Janeiro : OrganoGrama Livros, 2015. – 80 p. ISBN 978-85- 66135-11-4. Bibliotecário responsável: Fernando Pires (CRB10/2096) 1. Literatura canadense – Quebec 2. Poesia I. Grando, Diego. II. Mattos, Thiago. CDU 821.133.1(714)=134.3 CDD 841-848:(6)1 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA Para Dominique Boxus, in memoriam Para a realização deste projeto, agradecemos especialmente: a Gaston Bellemare, organizador do Festival International de la Poésie de Trois-Rivières; Francis Catalano, o primeiro a apoiar e ajudar a desenvolver nossa ideia; a Lucas Viriato, responsável pela OrganoGrama Livros ; às editoras que gentilmente cederam os direitos autorais dos poemas aqui traduzidos; e aos treze autores que aceitaram participar do projeto, tornando esta antologia possível. SUMÁRIO Ventos do norte movem moinhos 4 Os poetas Catherine Harton David Goudreault Mahigan Lepage Marie-Ambrée Gill Marie-Belle Ouellet Maude Smith Gagnon Natasha Kanapé Fontaine Ouanessa Younsi Philippe Chagnon Rose Eliceiry Simon Boulerice Simon-Pier Labelle Hogue Vincent Lambert 8 14 20 26 33 38 44 48 53 59 63 68 74 Os tradutores Thiago Mattos Diego Grando 80 80 VENTOS DO NORTE MOVEM MOINHOS Rajadinha Foi em outubro de 2013 que nos conhecemos, em razão do Festival Internacional de Poesia da Trois-Rivières, no Québec. Éramos os dois únicos representantes brasileiros da 29a edição do festival, fato que tanto nos lisonjeava quanto nos colocava diante da pergunta: seríamos nós, de algum modo, legítimos representantes da poesia brasileira? Ou, já que nossa participação havia sido intermediada pelo LOJIQ (Les Offices jeunesse internationaux du Québec), instituição de fomento ao intercâmbio cultural do Québec com a juventude latinoamericana e, portanto, condicionada ao fato de termos menos de 35 anos, seríamos nós, ao menos, representantes da jovem poesia brasileira contemporânea? Quando um “jovem poeta” passa a ser somente “poeta”? O que, afinal, significa pertencer a uma “jovem poesia”? É ser jovem poeta ou poeta jovem? Ficamos os 10 dias do festival com essas perguntas na cabeça, enquanto fazíamos leituras em centros culturais, bares, cafés, restaurantes e casas noturnas, nos mais variados horários, ladeados por poetas de diferentes nacionalidades, credos e faixas etárias. As leituras eram bilíngues: primeiro, o poema era lido em francês e, em seguida, em língua original, fosse ela o português, o finlandês, o árabe, o alemão, o japonês ou o crioulo. Cada sessão envolvia uma média de cinco poetas, que se alternavam no microfone, em duas ou três rodadas. Por uma coincidência de percursos universitários e profissionais, calhou de sermos os únicos poetas do grupo de jovens poetas a ler por si mesmos seus poemas nos dois idiomas, fato que de algum modo nos levou a um contato mais estreito com os mediadores das leituras e com os poetas quebequenses com quem dividimos as leituras. Entre esses poetas locais, isto é, quebequenses, uma imensa maioria de jovens. Poetas com um, no máximo dois livros publicados. Seria isso, afinal, ser um “jovem poeta”? Poemas em jornais, revistas e suplementos literários, vídeos no youtube. Poetas muito próximos, portanto, da nossa condição. O que significaria, no entanto, ser especificamente um jovem poeta quebequense? (O poeta quebequense é canadense? A língua quebequense e a língua francesa são a mesma língua?) Era flagrante as (por vezes radicais) diferenças entre esses poetas, muito diversos entre si, mas, em sua maioria, impressionantemente à vontade diante de um microfone: as fronteiras da poesia quebequense, ou ao menos dessa dificilmente definível nova poesia quebequense, não se encerram no espaço do livro: apropriam-se da música, do performático, do teatral, do slam, do ativismo ambiental. Além disso, são poetas nascidos numa particular situação de bilinguismo, ou, se quisermos, até de binacionalismo. Divididos entre o Québec (oficialmente uma nação com língua, cultura e história próprias, tendo autonomia política e econômica especial em comparação às demais províncias canadenses) e o restante do Canadá (anglófono), esses poetas, diferentemente dos seus pais e avós, que não raro ignoram a língua inglesa, 4 encaram como natural, ou conveniente, expressar-se em inglês, colocando lado a lado, em convivência ou tensão, as duas línguas que marcam a presença colonizadora na América do Norte. Não podemos tampouco esquecer, nesse contexto de multiculturalismo (termo criado, aliás, no Canadá, e passível de críticas que não cabem nesta introdução) e multilinguismo (uma convivência de línguas nada pacífica), a presença cada vez mais forte na poesia quebequense da memória nativa: são os indígenas canadenses, ou seus descendentes (diretos ou não), que, via poesia, inserem aí uma voz outra, uma língua outra, que vem diversificar o já diversificado campo poético quebequense. As perguntas que fazíamos a nós mesmos sobre nosso próprio lugar na chamada jovem poesia brasileira nos levavam, leitura após leitura, a pensar a poesia quebequense: seriam esses poetas que com nós dividiam leituras, de algum modo, legítimos representantes da poesia quebequense? Ou, melhor dizendo, representantes da jovem poesia quebequense contemporânea? Conscientes da indeterminação dessas respostas é que, terminado o festival, enquanto viajávamos de Trois-Rivières para Montreal, começamos a vislumbrar esta antologia que agora se apresenta. Como toda antologia, precisávamos definir, mesmo que temporariamente, um critério de definição de “jovem poesia quebequense”. Perdidos em inúmeras possibilidades, acabamos nos decidindo por critérios mais ortodoxos: assim como no festival se basearam em nossa idade (menos de 35 anos) e na língua em que escrevemos para nos considerarem, evidentemente que com questionamentos perfeitamente cabíveis, “jovens poetas brasileiros”, definimos a idade limite de 35 anos e a língua quebequense-francesa como critérios de seleção, buscando, dentro dessas fronteiras, agregar vozes diversas, inclusive em relação a aspectos linguísticos (poetas que se reivindicam herdeiros da memória poética e linguística indígena, por exemplo) e culturais. O título da antologia também se deve à nossa experiência quebequense de uma semana e meia: em francês, rafale é um aumento súbito e curto da velocidade do vento. Rafale, rajada. Fazer algo en rafale significa fazê-lo com rapidez, com a agilidade de um turbilhão. Em geral, era com uma rodada de leituras en rafale que se encerravam as sessões: em sequência, com o mínimo possível de intervalo, cada poeta lia um último poema, de preferência breve. A maior parte dos apresentadores chamava a esse último momento de petite rafale, rajadinha, expressão que com o passar dos dias foi habitando nosso vocabulário e nossas conversas. O que fizemos foi tentar traduzir esse sopro que ouvimos, direto do Québec. E registrar, en rafale, uma memória que agora compartilhamos. Esta edição Nos últimos anos abundam as antologias consagradas à “jovem poesia” das mais impensáveis “origens” (se origens existem). Muitos países já publicaram pelo menos uma antologia de “jovens poetas brasileiros”. No Brasil, já publicamos muitas e muitas antologias de “jovens poetas”, que costumam ter em comum a publicação impressa, geralmente em pequenas editoras, com tiragens (dadas as circunstâncias mercadológicas) reduzidas. Com qualquer lógica 5 comercial jogando contra desde a própria concepção desse tipo de projeto, chegar a esse tipo de resultado é por si só um esforço heroico. Contudo, resolvemos partir nesta antologia de uma lógica radicalmente não comercial: publicar gratuitamente em ambiente digital. Não temos nada contra o papel. Pelo contrário. Apenas entendemos que, para este projeto em questão, o que mais nos interessa é a divulgação desses poetas, sua livre circulação (ou o mais perto disso) pelo campo literário brasileiro. Como um vento, uma rafale, que sopra sem fronteira. Thiago Mattos e Diego Grando, junho de 2015 SUMÁRIO www.petiterafale.wordpress.com 6 OS POETAS 7 Catherine Harton Catherine Harton nasceu em 1983, em Montreal. Publicou três livros de poemas na editora Poètes de Brousse: Petite fille brochée au ciel (2008), Monomanies (2010) e Francis Bacon apôtre (2012), livro que lhe rendeu o posto de finalista nos prêmios Émile Nelligan, Estuaire-Bistro Leméac e Alain Grandbois. Em 2013, recebeu o prêmio FélixAntoine Savard de poesia. No inverno canadense de 2015, publicou seu primeiro livro de contos. Estuda psicologia na UQAM (Université du Québec à Montréal). Créditos: Isabelle Lafontaine SUMÁRIO 8 O primata Dormir me transpassa. Ainda prefiro a dormência, a transparência, a febre Logo antes dos primeiros esboços. Já faz cinco dias que me dedico a ir além, eu, o ateliê, os tubos rasgados, fantasmas brutos, dezenas de garrafas e tantas falhas para manter a vida, articular, preservar o calor. Consacro-me ao verde, à relva, a seus cachos de vida, a derradeira paisagem, nada mais. Nada mais pois não existo no mundo sem a vertigem, a sensação de sismo. Sou pouco palpável à desordem, às suas veias. Precisamos ter consciência do desastre potencial que nos espreita a todo momento. O meu por enquanto é um raio de sol, uma agulha, uma facaqualquer coisa que me afronte. Qualquer coisa que obedeça às fotografias, aos deslizamentos, uma espécie morta. O quadro é ainda meu primeiro elo com o mundo. Exercito meu fôlego, a destruição, a pintura. A única voz do ateliê, Maria Callas. Sintomas demais ao mesmo tempo. Minha vertigem já não conta. Há apenas minha semelhança com as cantoras líricas. Hoje faz seis dias que me dedico à paisagem, que junto corpo sobre corpo. Meus cacos de verdor, a vertigem de Van Gogh. Não chego ao campo. Parecem rachaduras, veias. Uma ideia morta. Não é aí onde estou. Ando em círculos, sinto o odor das jaulas. A paisagem possível que repito como uma litania. Após o ventre e os galhos, o que resta ? Dou tudo. Esmago os amarelos, os arabescos da relva. Alguns golpes na terra. Mas a natureza não se importa, submeto-me a ela, camada sobre camada. Procuro entre os campos da Provença, o campo inglês, alguma coisa, uma vida, uma vastidão, a graça do tempo. O mundo antes das tempestades. Toda a paz que traz 9 a primavera. Estou entre meus esboços desperdiçados. Se observo o interior, o interior me observa. Minhas reservas se esgotam. Deposito minha cabeça em lugar seguro, o saber das guerras e a imaginária do sitiado. Não sou nem primavera nem paz. Traço novos arabescos, a forma primitiva. Não mais recuo diante da jaula. Não me deixarão em paz. O primata estala seus membros sobre o quadro, sem esboço. Lentamente, um casulo de torpor, uma divisão do reino, do habitat. Impõe sua figura lamentativa, quase fantasma, quase assombração. Não há nem cortina nem raspas. Ele é modelo único, aparição. Novas vértebras, novo grito. Eu não queria te esculpir como animal. Mas te impuseste músculo por músculo, couro temível. Já faz dez dias que me procuras. Provocas-me, boca aberta, casca indomável. Enganaste todas as naturezas mortas. A culpa não é minha. Suplicas-me, ordenas-me uma alma, uma pulsão. Esmago uma a uma as cicatrizes para te deixar respirar. Não há ventre, apenas o duelo da caricatura insolente, do pesadelo. Aprendeste a destruir, a urrar muito antes de mim, a destruir, muito antes de mim. Sou covarde aproximativo. O quadro de uma vida, não, não é imaginação. Não é o esboço. Esgotas-me. É dia, o sol começa sua primeira incisão. A mordida de maio. Vinte e um dias na tua dentição de emparedado. Alinho minhas cores de autômato. Vinte e dois dias te modelando, fazendo a autópsia dos teus movimentos. Vinte e dois dias te espiando na minha solidão de ser vivo. Vinte e dois dias te fazendo urrar na jaula. Não há sonho, não há sonho. Tua cara é real. É a minha vez de mercadoria de suor e sangue. Não conseguirei. 10 Tens agora um pulso, um odor de perseguido que é tão teu, um código genético. Escolheste teu lugar, teu ninho, a culpa não é minha. Nunca quis te tornar vivo. Cada minuto é propício a teu acidente de crescimento, teu grito. Desapareceu o campo, resta apenas a última rachadura, a excursão do pior. Esmago alguns tubos pretos. Colmato as janelas, não mais sol, não mais agulha; Apenas um odor animal, um longo lamento. Não há mais cama, biblioteca, cozinha, apenas um único cômodo onde reino vértebra e fé. Le primate Dormir me transperce. Je préfère encore l’engourdissement, la transparence, la fièvre Tout juste avant les premières esquisses. Voilà maintenant cinq jours que je m’exerce au dépassement, moi, l’atelier, les tubes éventrés, des fantômes bruts, des dizaines de bouteilles et tout autant de failles à maintenir en vie, à articuler, à garder au chaud. Je me consacre au vert, à l’herbe, à ses quelques grappes de vie, le paysage ultime, rien d’autre. Rien d’autre car je n’existe pas au monde sans le vertige, la sensation de séisme. Je suis à peine palpable au désordre, à ses veines. Nous avons besoin d’être conscients du désastre potentiel qui nous guette à tout moment. Le mien pour le moment est un rayon de soleil, une aiguille, un couteau quelque chose qui me nargue. Quelque chose qui obéit aux photographies, aux glissements, une espèce morte. Le tableau demeure mon premier lien au monde. Je m’essaie au souffle, à la destruction, je peux dire peindre. La seule voix de l’atelier, Maria Callas. Trop de symptômes à la fois. Mon vertige ne compte plus. Il n’y a que ma ressemblance aux cantatrices. 11 Six jours maintenant que je m’exerce au paysage, que j’emprunte corps par-dessus corps. Mes bribes de verdure, le vertige de Van Gogh. Je n’arrive pas au champ. On croirait des crevasses, des veines. Une idée morte. Je n’y suis pas. Je tourne en rond, perçois l’odeur des cages. Le paysage possible que je me répète comme une litanie. Après le ventre et les branches, que reste-t-il ? Je donne tout. J’écrase les jaunes, les arabesques de l’herbe. Quelques coups à la terre. Mais la nature ne s’importe pas, je la subis couche sur couche. Je cherche entre les champs de Provence, la campagne anglaise, quelque chose, une vie, une étendue, la grâce du temps. Le monde avant les ravages. Toute la paix qu’apporte le printemps. Je suis au centre de mes esquisses ratées. Si j’observe l’intérieur, l’intérieur, m’observe. Mes réserves s’épuisent. Je dépose ma tête en lieu sûr, le savoir des guerres et l’imagerie de l’assiégé. Je ne suis ni printemps ni paix. Je trace de nouvelles arabesques, la forme primitive. Je ne recule plus devant la cage. On ne me laissera pas tranquille. Le primate étale ses membres sur le tableau, sans esquisse. Lentement, un cocon de torpeur, une division du règne, de l’habitat. Il impose sa figure de geignard, à peine fantôme, à peine hantise. Il n’y a ni rideau ni raclures. Il est à lui seul modèle, apparition. Nouvelles vertèbres, nouveau cri. Je ne voulais pas te sculpter en animal. Mais tu t’es imposé muscle par muscle cuir redoutable. Voilà maintenant dix jours que tu me cherches. Tu me nargues, gueule ouverte, coquille indomptable. Tu as trompé toutes les natures mortes. Je n’y suis pour rien. Tu me supplies, m’ordonnes une âme, une pulsion. J’écrase une à une les cicatrices pour te laisser respirer. Il n’y a pas de ventre, seulement le duel de la caricature insolente, du cauchemar. 12 Tu as appris à détruire, à hurler bien avant moi, à détruire, bien avant moi. Moi, je suis lâche approximatif. Le tableau d’une vie, non ce n’est pas l’imagination. Ce n’est pas l’esquisse. Tu m’épuises. Il fait clair, le soleil commence sa première incision. La morsure de mai. Vingt et un jours pour ta dentition d’emmuré. J’aligne mes couleurs d’automate. Vingt-deux jours à te prétrir, à faire l’autopsie de tes mouvements. Vingt-deux jours à t’épier dans ma solitude de vivant. Vingt-deux jours à te faire hurler dans ta cage. Il n’y a pas de rêve, pas de rêve. Ta gueule est bien réelle. Me voilà à mon tour marchandise de sueur et de sang. Je n’y arriverai pas. Tu as maintenant un pouls, une odeur de pourchassé qui t’est propre, un code génétique. Tu as bien choisi ton lieu, ton nid, je n’y suis pour rien. Je n’ai jamais cherché à te faire vivant. Chaque minute est propice à ton accident de croissance, ton hurlement. Le champ est disparu, il ne reste que l’ultime crevasse, l’excursion du pire. J’écrase quelques tubes noirs. Je colmate les fenêtres, plus de soleil, plus d’aiguille ; Qu’une odeur animale, une longue plainte. Il n’y a plus de lit, de bibliothèque, de cuisine, qu’une seule pièce où je règne vertèbre et foi. SUMÁRIO 13 David Goudreault Primeiro quebequense a ganhar a Copa do Mundo de slam, em 2011, em Paris, David Goudreault utiliza tanto o poema quanto o rap ou o slam. Assistente social de formação, tenta tornar a palavra acessível, encarando-a como ferramenta de emancipação nas escolas e centros de detenção do Québec e da França. Por sua produção artística e seu ativismo social, recebeu a medalha da Assembleia Nacional do Québec. Desde a primavera de 2014, Goudreault divulga suas músicas no Québec e na França, apresentando o seu novo álbum La faute au silence, selo Véga Musique. SUMÁRIO 14 A nobre utilização dos compassos Queimar tua infância Como um incenso Para o ambiente. Escondida atrás das tuas mutilações Brandidas com dificuldade levando A todos os homens todos teu pai Tendo te ocupado muito ou nunca Você equilibra as feridas Na vertigem você se equilibra Você não se pertence mais Não mais ousará saltar Já está tudo tão longe Menina velha largada Na irreparável espera Você recorta uma história Na carne desencadernada A infância é uma pedra a ser polida E manipulada com cuidado La noble utilisation des compas Faire brûler ton enfance Comme un bâton d’encens Pour l’ambiance Cachée derrière tes mutilations Brandies à bout de bras portant À tous les hommes tous ton père T’ayant trop ou jamais prise Tu balances tes plaies Dans le vertige tu t’en balances Tu ne t’appartiens plus Tu n’oseras plus sauter Tout va trop loin 15 Vieille fille vautrée Dans l’irréparable attente Tu te découpes une histoire Dans ta chair sans reliure L’enfance est une pierre à polir À manipuler avec soin SUMÁRIO 16 Molha A chuva desaba Como uma corça Cúmplice na fuga Recobre nossos rastros Descobre a luz Nas nossas carcaças Curvadas esmagadas quebradas Sob umas gotas Muco do mundo E corremos sem prazer Sob um céu cinza tomado de água suja Debater-se para viver é vão Até as nuvens morrem Il mouille La pluie s’abat Comme un chevreuil Complice dans la fuite Recouvre nos pistes Découvre la lumière Dans nos carcasses Courbées écrasées cassées Sous quelques gouttelettes Glaire du monde Et nous courons sans plaisir Sous un ciel gris gorgé d’eau sale Se débattre à vivre est vain Même les nuages finissent par crever SUMÁRIO 17 Concentrado Mais ou menos penoso Jogar o jogo Mão direita coxas esquerdas Histórias paralelas Agarrar-me às minhas conquistas Enquanto nosso cadáver Agoniza no baú Concentré De moins en plus pénible Jouer le jeu Main droite cuisses gauches Histoires parallèles M’acharner sur mes conquêtes Pendant que notre cadavre Agonise dans le coffre SUMÁRIO 18 Intensidade A cada passo Um cavalo morto no peito Recupera o fôlego pelas minhas órbitas Queimo a vela com maçarico As duas pontas o centro e as beiradas Ao contrário já não consigo me ver No fundo do espelho durmo de conchinha Na abstinência duvide de você E na dúvida abstenha-se Intensité À chaque pas Un cheval mort sur la poitrine Reprend son souffle par mes orbites Je brûle la chandelle au chalumeau Par les deux bouts le centre et les bords À l’envers je n’arrive plus à me voir Au fond du miroir je dors en cuillère Dans l’abstinence doute de toi Et dans le doute abstiens-toi SUMÁRIO 19 Mahigan Lepage Mahigan Lepage passou a infância na região da Faspésie e a adolescência em Outaouais e Bas-Saint-Laurent. Estudou na UQAM (Université du Québec à Montréal) e na Universidade de Poitiers (França). Publicou Relief (Noroît, prêmio Émile-Nelligan), La science des lichens (publie.net), Vers l’Ouest e Coulées (publie.net/Mémoire d’Encrier), Le Twictionnaire des e-dées reçues (obra coletiva, publie.net). Desde 2008, dedica-se ao site Le dernier des Mahigan, espaço de webliteratura, um dos seus maiores interesses. Dirige a coleção “publie.monde” na editora publie.net, que mescla edições digitais e edições em papel. Desde 2012, vive e viaja pela Ásia e América do Sul. Em 2014, lançou Fuites mineures (Mémoire d’Encrier). Créditos: Anna Lupien SUMÁRIO 20 jazem nus sobre o solo da megalópole 3ª viagem | dia 18 13 de novembro de 2013 E imóveis ao extremo, jazem nus sobre o solo da megalópole. Há visões demais, que exigem completo pudor de imagem. Esse rapaz, deitado na calçada, nu, inteiramente nu, em pleno sol, num canto da rua, magro, muito magro, as costas um esqueleto, curvado, as pernas sujas, os pés sujos, um testículo caindo, sobre a coxa magra, diante de um restaurante, diante de um táxi, entre nossos passos, de pedestres, combatente desfeito, imóvel, jaz, ao lado, do ponto de ônibus, definitivo. E em volta, os transeuntes, que passam, passam, sem grito, nada, nem um corvo, de ponto a ponto, os fluxos, passam. A cidade exige, seu pedaço de carne, de Shylock, 21 gastamos, nos desgastamos, é assim até quando, não temos mais nada, para dar, nem roupa, nem carne, sobre os ossos, descemos, lentamente, até, o ponto de ônibus. Eu não podia dizer se era um adolescente ou um adulto. Nesse extremo, não há mais idade. Tão grande inacabamento, que quase já não somos, quase não somos ainda. E me via, a mim, ali deitado como ele, eu o inacabado, eu o grande adolescente, eu o grande corpo branco, eu me despia, e me deitava, sobre o concreto, sobre o flanco, encolhido, e a cidade continuava, e as buzinas, berravam, e as pernas, se confundiam, o concreto quente, sob o quadril, o ar úmido, sobre meu sexo, imóvel, não esperando nada, mais nada, nem do concreto, nem dos carros, nem dos movimentos, nem dos vinte milhões, de partículas, na megalópole. 22 Esse corpo não é, diferente do meu, carrego comigo, e você também, um imóvel, ao extremo, menos que número, menos que um, morto, não nascido, anteprimordial. Ao fim dessa viagem interior, descemos ao mais ínfimo. Está na hora de voltar. Amanhã, meu avião decola. Vou sair do solo, e vou deixar, lá embaixo, sobre o concreto, aquele que jaz, sobre o solo da megalópole. gisent nus sur le sol de la mégapole 3e voyage | jour 18 13 novembre 2013 Et à l’extrême les arrêtés, gisent nus sur le sol de la mégapole. Il y a des visions de trop, qui demandent une entière pudeur d’image. Ce jeune homme, couché sur le trottoir, nu, entièrement nu, en plein soleil, à un coin de rue, maigre, très maigre, le dos un squelette, courbé, les jambes sales, les pieds sales, un testicule pendant, sur la cuisse maigre, devant un restaurant, devant un taxi, 23 dans nos enjambées, de piétons, combattant défait, arrêté, gisant, tout auprès, de l’arrêt, définitif. Et tout autour, les circulations, qui continuent, continuent, pas de cri, rien, pas même un corbeau, de noeud en noeud, les flux, passent. La ville demande, sa livre de chair, de Shylock, qu’on dépense, ou qu’on se dépense, c’est ainsi, alors quand, on n’a plus rien, à donner, plus de vêtement, plus de chair même, sur les os, on descend, lentement, vers, l’arrêt. Je ne pouvais pas dire si ce garçon était un adolescent ou un jeune adulte. À cet extrême, il n’y a plus d’âge. Si grand inachèvement, qu’on n’est presque plus, presque pas encore. Et je me voyais, moi, gisant comme lui, moi l’inachevé, moi le grand adolescent, moi le grand corps blanc, je me déshabillais, et me couchais, 24 sur le béton, sur le flanc, recroquevillé, et la ville allait, et les klaxons, retentissaient, et les jambes, m’enjambaient, le béton chaud, sous la hanche, l’air moite, sur mon sexe, arrêté, n’attendant rien, plus rien, ni du béton, ni des autos, ni des mouvements, ni des vingt millions, de particules, en mégapole. Ce corps n’est pas, différent du mien, je porte en moi, et vous aussi, un arrêté, de l’extrême, en deçà du nombre, en deçà du un, mort, non-né, antéprimordial. Au bout de ce voyage intérieur, on est descendu au plus infime. Il est temps de remonter. Demain, mon avion décollera. Je quitterai le sol, et laisserai, tout en bas, sur le béton, de la mégapole, le gisant. SUMÁRIO 25 Marie-Ambrée Gill Marie-Ambrée Gill se divide entre a criação literária e uma pesquisa de mestrado em Letras. Seu primeiro livro, Béante, é publicado pela editora La Peuplade; seu segundo livro sai no outono de 2015, também pela La Peuplade. Marie-Ambrée procura dar conta de fragmentos do mundo com o menor número possível de palavras. Sua escrita mistura o kitsch com o existencial, caminhando entre as identidades quebequense e autóctone. SUMÁRIO 26 colher penas direto nas veias tudo que se encontrar enxertar patas de coelho nos gatos pretos cueillir des plumes direct dans les veines tant qu’à y être greffer des pattes de lapin aux chats noirs SUMÁRIO 27 se todos pudéssemos sobreviver comendo nossas imagens sobre cadeiras vazias lá onde o animal se autodigere ereto os pés entre os ossos eu atravesso o interior das carnes é estranho do lado de dentro somos todos da mesma cor si nous pouvions tous survivre en mangeant nos images sur des chaises vides là où l’animal s’autodigère debout les pieds entre les os je traverse l’intérieur des chairs c’est fou en-dedans on est tous de la même couleur SUMÁRIO 28 manhãs de infância com a barriga de fora nos congelávamos para ver tudo embaçado você se lembra as membranas fixas não esquecerei mais a periferia da luz nas nossas barbatanas inexistentes matins d’enfance au ventre déballé on se gelait pour mieux voir flou t’en souviens-tu les membranes fixes je n’oublierai plus la périphérie de l’éclairage dans nos nageoires manquantes SUMÁRIO 29 era o verão planando eu transplantava borboletas nos nossos amores esvoaçados para sentir sentir fluir uma eternidade a mais sobre as pálpebras malditas do mundo c’était l’été en vol plané je transplantais des papillons sur nos amours envolées pour sentir sentir couler une éternité de plus sur les paupières maudites du monde SUMÁRIO 30 você é o caos nos meus cabelos e eu preservo o repertório dos melhores paradoxos essa noite a lua está cheia de gente apalpando tu es le chaos dans mes coiffures et je tiens le répertoire des meilleurs paradoxes ce soir la lune est pleine de monde à palper SUMÁRIO 31 queria pelos menos dois três minutos a mais para escutar tua caixa preta a boca cheia de ressuscitados j’aurais voulu au moins deux trois minutes de plus à écouter ta boîte noire la bouche pleine de ressuscités SUMÁRIO 32 Marie-Belle Ouellet Nascida na Gaspésie, Marie-Belle Ouellet já participou de vários projetos literários. Dentre leituras de poesia e revistas literárias, destacam-se: Arcade, Lapsus, FéminÉtudes. Formada em estudos literários, especializou-se em crítica feminista. Em 2004, recebeu o prêmio Arcade por Nature morte. Em 2006 e em 2013, participou do Festival de Poésie de Trois-Rivières. Em 2006, publicou o livro Um peu de ciel au bout d’une corde, pela editora Éditions David. Em 2011, participou da residência de artista da Maison Félix-Leclerc, em Vaudreuil, experiência que deu origem ao livro Je promets d’être là. Em 2015, publicou Le son friable de l’étreinte. Créditos: Stéphane Larivière SUMÁRIO 33 O que possuo me escapa Escrevemos porque sonhamos dividir com o outro, nosso semelhante, o que só pode pertencer a nós mesmos. Louise Dupré substituo o silêncio dos teus lábios nossos corpos se apagam apesar do frio que deteriora sob a água aprendo a renascer fixo nossos restos entre tuas pálpebras e de nós eu vivo estendo uma a uma nossas lembranças entre os lençóis brancos da tua pele Ce que je possède m'échappe On écrit parce qu'on rêve de partager avec l'autre, son semblable, ce qui n'appartiendra jamais qu'à soi. Louise Dupré je substitue le silence de tes lèvres nos corps s'éteignent malgré le froid qui abîme sous l'eau j'apprends à renaître je fixe nos restes entre tes paupières et de nous je vis j'étends un à un nos souvenirs entre les draps blancs de ta peau SUMÁRIO 34 incendeio a memória que carrega a vertigem das tuas palavras meus rios são estradas inacabadas que você retoma sempre j'embrase la mémoire qui porte le vertige de tes mots mes rivières sont des routes inachevées que tu reprends sans cesse SUMÁRIO 35 cascalhos enchendo a boca tu desenhas as sombras coloridas da infância jogo longe os corações das maçãs escurecidos pelas tuas lágrimas estendo o dedo para o sol os olhos semicerrados os espectros se alinham escarram sua solidão des cailloux plein la bouche tu dessines les ombres colorées de l'enfance je jette au loin les cœurs de pommes noircis par tes larmes je tends le doigt vers le sol les yeux mi-clos les spectres s'alignent crachent leur solitude SUMÁRIO 36 sentimos o odor das velhas coisas abandono a criança às vezes esse muro trincado vê nossas vidas se movendo no outro escuta na esmagadura do mar há nossos rostos nus apago as poeiras entre os corredores emerjo da chuva sozinha às vezes enfrento as correntezas e a lua se fixa no teu olhar às vezes não há nada além da neve que fica nous sentons l'odeur de vieilles choses j'abandonne l'enfant parfois ce mur craquelé voit nos vies se mouvoir dans l'autre écoute dans l'écrasement de la mer il y a nos visages nus j'efface les poussières entre les corridors j'émerge de la pluie seule parfois je remonte les courants et la lune se fixe dans ton regard parfois il n'y a rien d'autre que la neige qui se fige SUMÁRIO 37 Maude Smith Gagnon Nascida em Basse-Côte-Nord, Maude Smith Gagnon estudou na UQAM (Université du Québec à Montréal). Seu primeiro livro de poemas, Une tonne d’air, recebeu o prêmio Émile-Nelligan, em 2006. Seu livro Um drap. Une place recebeu o prêmio Gouverneur Générale de poesia de língua francesa em 2012. SUMÁRIO 38 7 de junho Sobre o solo perto da grande construção, um linóleo velho, uma pilha de madeira e poças de água que o vento espalha. Grandes horas vazias se abrem diante de mim, e, não necessariamente para preenchê-las, observo Serge arrumando o pátio. Há alguns dias ele não consegue encontrar seu lenço. No lugar, enrolou no pescoço um pano de prato. Você não me escreve muito. O tempo aqui está acinzentado. O mesmo céu de ontem, apenas mais baixo. Não o olho por muito tempo. 7 juin Sur le sol pres de la grande batisse, un vieux prelart, une pile de bois et des flaques d'eau que le vent etire. De grandes heures vides s'ouvrent devant moi et, pas necessairement pour les combler, j'observe Serge faire du rangement dans la cour. Depuis quelques jours il ne trouve plus son foulard. À la place, il a noue autour de son cou un linge a vaisselle. Tu ne m'ecris pas beaucoup. Le temps ici est gris clair. Meme ciel qu’hier, mais plus bas. Je ne le regarde pas tres longtemps. SUMÁRIO 39 18 de junho Chove sobre o mar. E as ondas, ao crescer, afastam a caixa de suco de laranja que tento puxar com um pedaço de pau. 18 juin Il pleut sur la mer. Et les vagues, en se gonflant, eloignent le carton de jus d'orange que j’essaye d'attraper avec un long baton. SUMÁRIO 40 14 de agosto As árvores se curvam, se erguem, depois novamente se curvam. Caminho segurando na mão um papel que peguei em algum lugar. Meus traços na areia se enchem de água. 14 aout Les arbres se penchent, se redressent, puis se penchent a nouveau. Je marche en gardant dans ma main un papier ramasse quelque part. Mes traces dans le sable se remplissent d'eau. SUMÁRIO 41 27 de junho Queria te falar desse momento. Era por volta de meio-dia. Estava sentada na cozinha, o queixo apoiado na mão. Observava a mesa e seu desenho turquesa, minha mochila, a xícara marrom, as manchas de chá, o papel celofane amassado. Nada disso, exceto o turquesa da mesa, ocupava um lugar central no meu campo de visão. O contorno dos objetos permanecia embaçado. Durante longos minutos (um ou dois, na verdade, mas é fácil dizer isso agora), fixei essa porção insignificante do meu universo, como se estivesse hiptonizada, incapaz de me anular, mesmo que fosse tão simples levantar a cabeça, olhar para fora, dizer qualquer coisa – “está um cheiro ruim aqui”, por exemplo, o que era verdade – ou fazer qualquer outra coisa. Não sei por que te escrevo tudo isso. O ar desta manhã está úmido. Minhas unhas estão sujas. Não preciso que me ache interessante, não hoje. 27 juin J'aimerais te parler de ce moment. C'etait aux environs de midi. J'etais assise dans la cuisine, le menton appuye dans le creux de la main. J'observais la table et son lavis turquoise, mon sac a dos, la tasse brune, les cernes de the, le papier cellophane froisse. Rien de tout cela, excepte le turquoise de la table, n'occupait une place centrale dans mon champ de vison. Le contour des objets demeurait en partie flou. Durant de tres longues minutes (une ou deux en realite, mais c'est facile de dire ça maintenant) j'ai fixe cette portion insignifiante de mon univers, comme hypnotisee, incapable de m'y soustraire alors qu'il aurait ete si simple de relever la tete, de regarder dehors, de dire n'importe quoi – « ça sent mauvais » par exemple, ce qui etait vrai – ou de passer a autre chose. Je ne sais pas pourquoi je t’ecris tout cela. L’air depuis ce matin est humide. Mes ongles sont sales. Je n’ai pas besoin que tu me trouves interessante, pas aujourd’hui. SUMÁRIO 42 10 de maio Duas lampadas presas ao mesmo fio estao penduradas sobre a cama. O comodo ainda tem um pouco de claridade. Na tigela entre minhas pernas, pesco uma uva estragada. 10 mai Deux ampoules rattachees au meme fil pendent au-dessus du lit. La piece reçoit encore un peu de clarte. Dans le bol pose entre mes jambes, je pige un raisin mou. SUMÁRIO 43 Natasha Kanapé Fontaine Natasha Kanapé Fontaine é poeta, pintora, atriz e militante dos direitos indígenas. Ela própria, aliás, nasceu em Pessamit, comunidade Innu situada no Québec. Desde 2012, dedica-se ao slam. Publicou dois livros de poemas (N’entre pas dans mon âme avec tes chaussures, editora Mémoire d’Encrier, e Manifeste Assi, também pela Mémoire d’Encrier). Em 2013, recebeu, pelo seu primeiro livro, o prêmio da Société des Écrivains francophones d’Àmérique. Pelo segundo, foi finalista do prêmio Émile-Nelligan, em 2015. Atualmente vive em Montreal. SUMÁRIO 44 Se eu não sou a Terra Diga-me quem sou eu se eu não sou a Terra. Se meu corpo não é território. Se o território não é meu corpo. Diga-me quem sou eu se eu não tenho a Terra. Se meu corpo não é o instrumento do território. Se o território não tem acordes. Diga-me quem sou eu se eu não sou o poema da Terra. Se meu corpo não tem palavras. Se o território foi forçado a se calar. Diga-me quem sou eu se eu não tenho a voz da Terra. Se meu corpo não mais emite nenhum ruído. O território não pode mais cantar. Diga-me quem sou eu se eu não sou o canto da Terra. Se meu corpo não tem nenhuma vibração. Se o território não mais emite nenhum som. É outro aquele das máquinas e das barragens e das minas e do petróleo que corre sobre meu corpo. Si je ne suis pas la Terre Dites-moi qui je suis si je ne suis pas la Terre. Si mon corps n’est pas territoire. Si le territoire n’est pas mon corps. Dites-moi qui je suis si je n’ai pas la Terre. Si mon corps n’est pas l’instrument du territoire. Si le territoire n’a pas d’accords. Dites-moi qui je suis si je suis pas le poème de la Terre. Si mon corps n’a pas de mots. Si le territoire a dû être forcé de se taire. Dites-moi qui je suis si je n’ai pas la voix de la Terre. Si mon corps n’émet plus aucun bruit. Si le territoire ne peut plus chanter. Dites-moi qui je suis si je ne suis pas le chant de la Terre. Si mon corps n’a aucune vibration. Si le territoire n’émet plus aucun son. Autre celui des machines et des barrages et des mines et du pétrole qui coule sur mon corps. SUMÁRIO 45 Innu auass venho procurar teus olhos escuros Innu auass o nome do tambor o canto das andorinhas venho procurar teus olhos azuis Innu auass o estrondo das montanhas a pele do céu o makusham sobre teu casaco de pano o bannock sobre teu vestidinho quadriculado percebes com teu olhar verde Innu auass a garganta tremulante do velho homem de madeira dá aos meus olhos a aurora branca do inverno dá aos meus olhos o amor alegre do retorno a esperança do meu hoje aqui em volta querem erguer minas ali na frente querem escavar rios escuros logo atrás arrancar famílias inteiras de coníferas e traçar estradas de torres elétricas Innu auass o universo é grande para o amor a festa está viva sob as tendas teu coração pensa no tambor tu te decretas guardião das lendas tu me contas todas elas venho procurar teus olhos negros Innu auass meus olhos de criança innu tu te tornas meu avô e minha avó Innu auass minha infância reacende em ti tudo é um círculo Innu auass je viens chercher tes yeux bruns Innu auass le nom du tambour 46 le chant des hirondelles je viens chercher tes yeux bleus Innu auass le grondement des montagnes la fourrure du ciel le makusham sur ton manteau de toile la bannique sur ta petite robe en carreaux tu perçois de ton regard vert Innu auass la gorge tremblante du vieil homme de bois donne à mes yeux l’aube blanc de l’hiver donne à mes yeux l’amour joyeux du retour l’espoir de mon aujourd’hui alors qu’autour on voudrait élever les mines qu’au devant on creuse les fleuves noirs derrière l’on rase les familles entières de conifères l’on trace des routes aux pylônes électriques Innu auass l’univers est grand pour l’amour la fête est vive sous les tentes ton coeur réfléchis au tambour tu te décides gardien des légendes tu me les racontes je viens chercher tes yeux noirs Innu auass mes yeux à moi d’enfant innu tu deviens mon grand-père et ma grand-mère Innu auass mon enfance revit en toi tout est un cercle SUMÁRIO 47 Ouanessa Younsi Ouanessa Younsi é poeta, psiquiatra e faz um mestrado em Filosofia. Em 2011, publicou seu primeiro livro de poemas, Prendre langue, pela editora Mémoire d’Encrier. Seu segundo livro, Emprunter aux oiseaux, foi lançado na primavera de 2014, também pela Mémoire d’Encrier. Participa de leituras de poesia, obras coletivas e revistas, além de se dedicar ao seu site pessoal ouanessayounsi.com. SUMÁRIO 48 te apresento minha sobrinha se não sou mais tua neta quem sou eu *** *** é você, mamãe isso começa com um clamor isso evolui para um murmúrio isso termina em mudez as orgias sem casca quando expiramos o tumulto reaparece vaso quebrado o amor muda de nome mas não de rosto *** não sou louca o asilo afunda seus pulsos de inseto no teu sexo quem disse proibido alimentar as estrelas quem cedeu o amor aos canibais 49 *** teu olhar dá para a janela a janela para o firmamento o firmamento para tua cabeça tua cabeça para meu busto como uma trégua *** o erg liberta a ilha liga o ouro desatina a árvore repara as raízes. je vous présente ma nièce si je ne suis plus ta petite-fille qui suis-je *** 50 *** c’est-tu maman ça commence par une clameur ça évolue en murmure ça s’éteint en mutisme les orgies sans pelure lorsqu’on expire le tumulte réapparaît vase brisé l’amour change de nom mais pas de visage *** je ne suis pas folle l’asile enfonce ses poings d’insecte dans ton sexe qui a dit défense de nourrir les étoiles qui a cédé l’amour aux cannibales *** ton regard sur la fenêtre la fenêtre sur le firmament le firmament sur ta tête 51 ta tête sur mon buste comme une trêve *** l’erg délivre l’île relie l’or égare l’arbre répare les racines. SUMÁRIO 52 Philippe Chagnon Philippe Chagnon nasceu em Saint-Hyacinthe, em 1986. Graças à música, interessa-se desde muito novo pelo mundo da arte. Estuda contrabaixo em Drummondville e, em seguida, muda-se para Montreal, onde começa a estudar (sem concluir) filosofia. Desde a publicação do seu primeiro livro, Cœur Tatekout, pela Éditions de l’Écrou, Chagnon experimenta variadas formas de escritura. SUMÁRIO 53 Eu disse pra ela eu te amo ela ouviu tô com calor Tiramos a roupa assim mesmo. Je lui ai dit je t’aime elle a entendu j’ai chaud On s’est déshabillé pareil. SUMÁRIO 54 Não lavei a louça ela tá puta escrevi um poema ela não tá nem aí Escrevi um poema sobre a louça que não lavei ela me beija e aí depois já não tá puta. J’ai pas fait la vaisselle elle est en crisse j’ai écrit un poème elle s’en fout J’ai écrit un poème sur la vaisselle que j’ai pas faite elle m’embrasse pis la suite c’tait fou en crisse. SUMÁRIO 55 A gente diz antes você era assim ou assado só que agora sei lá você era assado ou assim antes Mas depois Você vai ser assim Mas era principalmente assado. On dit avant t’étais comme si ou comme ça pis maintenant je sais pas t’étais comme ça ou comme si avant Pis après Tu seras comme si Mais t’étais surtout comme ça. SUMÁRIO 56 Me pergunto o que Picasso teria desenhado nos seus strudels. Je me demande ce que Picasso aurait dessiné sur ses strudels. SUMÁRIO 57 A manhã é longa porque você me disse “nada de vinho enquanto ainda tiver gosto de cereal na boca” Vou escovar os dentes. L’avant-midi est longue car tu m’as dit «pas de vin tant qu’on a encore le goût des céréales dans la bouche» Je vais aller me brosser les dents. SUMÁRIO 58 Rose Eliceiry Nascida na cidade do Québec, Rose Eliceiry mora atualmente em Montreal. Nos últimos 10 anos, participou de inúmeras leituras de poesia, no Québec e na Europa. Dentre esses eventos, destacam-se o Festival Internation de Poésie de Trois-Rivières, Herrobiko Festibala (França), Festival de Poésie de Namur (Bélgica) e FRYE Festival (Canadá). Em 2011, publicou Hommes et chiens confondus, pela editora Éditions de l’Écrou, recebendo o prêmio Félix-Leclerc de poesia. Trabalha atualmente em um segundo livro, a sair em breve. SUMÁRIO 59 Sorri por costume um pouco também porque não havia outra coisa a fazer lá entre a porta e o cabideiro permanece uma imagem desossando lentamente um natimorto de que nos livramos tudo é intercambiável a eternidade é indiferente a nós não mais habito minha origem J’ai souri par habitude un peu aussi car il n’y avait rien d’autre à faire là entre la porte et le porte-manteau reste une image à désosser lentement un enfant mort-né dont on se débarrasse tout est interchangeable l’éternité se fout de nous je n’habite plus mon origine SUMÁRIO 60 aonde vai então a noite quando o dia não tem culpa e a lua está enfaixada como um cavalo tua face misturada à minha focinho que exaure minha bochecha quantas vezes fechar as pálpebras quantas vezes fechar a porta quantas vezes o esplendor dobrado de palavras que não querem mais nada dizer e tudo passa porque tudo passa où s’en va donc la nuit quand le jour n’y est pour rien et que la lune est bandée comme un cheval ta face emmêlée dans la mienne museau qui harasse ma joue combien de fois clore les paupières combien de fois fermer la porte combien de fois la splendeur doublée de mots qui ne veulent plus rien dire et que tout passe parce que tout passe SUMÁRIO 61 não sou eu que ando são as ruas que descem as ladeiras na contramão me acolhem no caminho minhas origens se corroem entre si me movo para o centro do infinito então não me movo. ce n’est pas moi qui marche ce sont les rues qui dévalent les pentes à contresens me recueillent au détour mes origines se rongent entre elles je bouge au centre de l’infini donc je ne bouge pas. SUMÁRIO 62 Simon Boulerice Simon Boulerice é ator, diretor e assistente de direção artística do teatro L’Àrrière Scène, em Beloeil, pequena cidade próxima a Montreal. Escreveu uma dezena de peças de teatro, das quais PIG e Martine à la plage receberam o prêmio do público Gala des Cochons d’Or. Também publicou romances (como Javotte, prêmio Lecteurs Émergents de l’Àbitibi, 2013), livros infanto-juvenis (como Edgar Paillettes, prêmio Libraires Jeunesse, 2014) e três livros de poesia (como Saigner des dents, prêmio Alphonse-Piché, 2009). Em 2014, reencenou o espetáculo Tout ce que vous n’avez pas vu à la télé (prêmio de texto do ano Jeunes Critique de la Montérégie, 2014). SUMÁRIO 63 adoramos ver um pai procurando a mão do filho quando o trem chega na estação somos contra quase categoricamente utilizar a tesoura da cozinha para aparar os pelos pubianos temos decididamente o coração no lugar certo nous aimons voir un parent chercher la main de son enfant quand le métro entre en gare nous nous opposons presque catégoriquement à utiliser les ciseaux de cuisine pour nous coiffer le pubis nous avons décidément le cœur à la bonne place SUMÁRIO 64 fazemos projetos de carreira viraremos produtores de filmes pornô filmes na íntegra com amor e desejo filmes de ternura com ereções naturais e garotas felizes garotas que se sentem seguras que querem estar ali naqueles braços garotas com seios normais bocas normais caras capazes de dizer eu te amo depois de ejacular nous faisons des projets de carrière nous deviendrons producteurs de films XXX des films complets avec de l’amour mêlé au désir des films de tendresse avec des érections naturelles et des filles heureuses des filles qui se sentent en sécurité qui ont envie d’être là dans ces bras-là des filles avec des seins normaux des bouches normales des gars capables de dire je t’aime après avoir éjaculé SUMÁRIO 65 você espirra no braço teus vírus na dobra do braço bem onde gosto de apoiar a cabeça à noite falo tua língua tenho tua saliva atravessada no coração bebi tudo pelas tuas costas falsifico teu curriculum vitae me acrescento na tua formação tuas apitidões teus interesses faço parte de você põe isso na cabeça minha escolaridade te aprofunda carrego na voz tua palava de bom agouro minha boca engoliu a tua te cito como respiro tu éternues dans ton coude tes virus dans le pli du bras là où j’aime poser la tête le soir je parle ta langue j’ai ta salive au travers du cœur j’ai tout bu dans ton dos je falsifie ton curriculum vitae m’ajoute dans ta formation tes aptitudes tes intérêts je fais partie de toi mets ça dans ta pipe ma scolarité s’arrête à t’approfondir je porte dans ma voix ta parole de bonne augure ma bouche a avalé la tienne je te cite comme je respire SUMÁRIO 66 vamos no Exército da Salvação roubar os mais desprovidos uma criança testa o som de uma flauta usada choramos sobre suas marcas de herpes não somos melhores lavamos nossas próteses dentárias com a saliva dos animais domésticos a purificação não virá azar estamos todos perdidos mostremos a língua nas ruas procuremos lábios para arpoar nada desertaram-nos nous allons à l’Àrmée du Salut voler les plus démunis un enfant teste le son d’une flûte usagée nous pleurons sur ses projets de feux sauvages nous ne sommes pas mieux nous lavons nos prothèses dentaires avec la salive de nos animaux domestiques la purification ne viendra pas tant pis nous sommes tous perdus sortons la langue dans les rues cherchons des lèvres à harponner rien on nous a désertés SUMÁRIO 67 Simon-Pier Labelle-Hogue Simon-Pier Labelle-Hogue trabalha e mora em Montreal, onde faz um doutorado em língua e literatura francesas na Universidade McGill. Em 2011, publicou o livro Morfologia do lobo (editora Poètes de Brousse). Além de publicar artigos sobre sociologia e literatura, redes literárias e a contracultura quebequense, prepara atualmente um segundo livro, Défilements (Poètes de Brousse, a sair em 2016), e um livro de poemas para crianças. SUMÁRIO 68 O lobo se torna bípede o vento sobre o rosto garra abatida o animal não sente mais as cordas não acreditando nem nos sóis decapitados nem na fissão dos esporos que o invisibilizam ele mergulha sua pele nos unguentos se escorifica divide os sistemas com os bucaneiros e se deforma por sutura e coagulação o lobo se erode as ervas germinam nos sulcos onde ontem o fogo terminava seu cadastro o peso do arreamento deixa o lobo em equilíbrio Le loup devient bipède le vent sur son visage griffe abattue l’animal ne sent plus les cordes ne croyant ni les soleils décapités ni la fission des spores qui l’invisiblent il noie sa peau dans les onguents se scorifie répartit les stèmes entre les boucaniers et se déforme par suture et coagulation le loup s’érode les herbes germent dans les sillons là où le feu hier finissait son cadastre le poids du harnachement 69 garde le loup en equilibre SUMÁRIO 70 Reprodução do lobo as ordens não me dizem nada acordo os braços sobre meu corpo em cruz e gelo nos pulmões o lobo que me olha pela janela e eu que não me mexo mais Reproduction du loup les ordres ne me disent rien je me réveille les bras sur mon corps en croix et de la glace dans les poumons le loup qui me regarde par la fenêtre et moi qui ne bouge plus SUMÁRIO 71 O último texto no repique dos caules e na fratura dos vidros sobre os tamboretes dois homens trocam um olhar vago e riem a cabeça queimando de alegria entre lampejos a noite se afasta em pedaços de embriaguez colados aos vapores da aurora batida o caçador dorme o rosto afundado nos manuscritos e o lobo desloca a base da sua gangrena em busca de um condutor põe a mão sobre o revólver que afrouxa olha uma última vez os troncos pela janela e toma a direção da emergência contornando os edifícios Dernier texte dans le carillonnement des tiges et le bris des verres sur les tabourets deux hommes échangent un regard flou et rient la tête en feu de joie parmi les éclairs la nuit se détache en morceaux d’ébriété à même les vapeurs de l’aube battue le chasseur dort le visage enfoncé dans les manuscrits 72 et le loup déplace le socle de sa gangrène à la recherche d’un conducteur il met la main sur le tromblon qui se relâche regarde une dernière fois les collets par la fenêtre et prend la direction des urgences en contournant les édifices SUMÁRIO 73 Vincent Lambert Vincent Lambert nasceu em Saint-Narcisse-de-Beaurivage, região sul do Québec. Publicou dois livros de poemas, Paysages récents (editora Lézard Amoureux, 2005) e La fin des temps par un témoin oculaire (editora L'Hexagone, 2013), assim como ensaios sobre literatura, principalmente na revista Contre-jour. A editora Nota Bene prepara a publicação da sua tese de doutorado, L'Âge de l'irréalité. Solitude et empaysagement au Canada français (1860-1930). SUMÁRIO 74 Absconditus Tudo muda, e nada acontece. Estamos entre dois mundos entre duas estações entre duas histórias entre duas frases paradas. Olha só – ouvimos o que vemos. Precisaria de um piano para interpretar essa chuva! Tem um por aqui – dá para perceber em volta dos quadros respirar sob as portas... mas o pianista está sentado na multidão as mãos retraídas no sobretudo que nunca quis usar. Ele se ignora e todo mundo se olha. Absconditus Tout change, et rien ne se passe. Nous sommes entre deux mondes entre deux saisons entre deux histoires entre deux phrases arrêtés. Tiens – on entend ce qu’on voit. Il faudrait un piano pour interpréter cette pluie ! Il y en a un – ça se sent autour des tableaux respirer sous les portes… mais le pianiste est assis dans la foule les mains rétractées dans le manteau qu’il n’a jamais voulu porter. Il s’ignore et tout le monde se regarde. SUMÁRIO 75 O interlúdio infinito Estava mudando de roupa à noite e você me surpreendeu, nu entre dois espelhos. Não esconderei. Vou te mostrar tal qual você é. (Vai ser engraçado mas você não vai rir, não ainda.) A verdade é que você não é teu corpo não mais que é em vida, você tem um corpo. A verdade é que você tem todos, e a vida? é você é você. O que – ali agora me lê eu poema e tudo o que atrás do teu ombro, os móveis, as plantas o sabe. Não tenho nome para te dizer tenho apenas verbos, e sem descanso me escrevem, te escrevem. L'interlude infinie Je me changeais dans la nuit et tu m’as surpris, tout nu entre deux miroirs. Je ne me cacherai pas. Je vais te montrer tel que tu es. (Ce sera vraiment très très drôle mais tu ne riras pas, pas encore.) La vérité c’est que tu n’es pas ton corps pas plus que tu n’es en vie, tu as un corps. 76 La vérité c’est que tu les as tous, et la vie ? c’est toi c’est toi. Ce qui – là maintenant me lit moi poème et tout ce qui derrière ton épaule, les meubles, les plantes le sait. Je n’ai pas de nom pour te dire je n’ai que verbes, et sans repos on m’écrit, on t’écrit. SUMÁRIO 77 O odre Durante uma sesta num fim de tarde, tombo para fora do meu corpo. É preciso que eu saiba. Vou até o espelho do banheiro verificar se tenho os olhos abertos. Estão fechados. A pele do meu antebraço reluz como um choupo – mais azul talvez. Na cozinha: meu pai percorreu todo esse caminho para tocar nos cabelos da minha mulher. Curiosamente, não sinto nada, nem ciúme nem vergonha. Estão longe do outro lado de um trilho de metrô, não me veem tão perto vagando como fumaça na direção de uma fresta. Pareço aspirado pelo coração no campo gravitacional do micro-ondas em que pisca uma hora flutuante de números quadrados, 88:88. Deve ter faltado luz... mas não é a hora que me imanta, é o display, terra fértil e quando me aproximo para ver a profundidade ele fica colorido. Meu amigo, sem saber você vivia no vermelho, verde tamizado – aqui está o odre de florescências, o remoinho plásmico onde o mundo como se percebe cozinha brandamente. A íris de que falava Abraham de Vermeil. Deixo-me entrar, procuro discernir quem então reacendeu atrás de mim, faço ainda as más perguntas. E a cor fica com a cor da água. L’outre Pendant une sieste en fin d’après-midi, je trébuche hors de mon corps. Il faut que je sache. Je vais au miroir de la salle de bain vérifier si j’ai les yeux ouverts. Ils sont fermés. La peau de mes avant-bras chatoie comme à travers un tremble – en plus bleu peut-être. Dans la cuisine : mon père a fait tout ce chemin pour toucher aux cheveux de ma femme. Curieusement je ne ressens rien, ni jalousie ni honte. Ils sont loin de l’autre côté d’une allée de métro, ne me voient pas tout près qui dérive comme une fumée vers un entrebâillement. Je semble aspiré par le cœur dans le champs gravitationnel du micro-ondes où clignote une heure flottante aux chiffres carrés, 88:88. L’électricité a dû manquer… mais ce n’est pas l’heure qui m’aimante, c’est l’écran, son terreau noir et comme je m’approche pour tester sa profondeur il se multicolore. Mon ami, sans savoir tu vivais dans du rouge, du vert tamisés – voici l’outre aux fluorescences, le remous plasmique où le monde tel qu’on le sent mijote. L’iris dont parlait Àbraham de Vermeil. Je me laisse entrer, je cherche à discerner qui donc a rallumé derrière, je pose encore les mauvaises questions. Et la couleur prend la couleur de l’eau. SUMÁRIO 78 OS TRADUTORES 79 Thiago Mattos é poeta, nascido em Petrópolis – RJ. Publicou Teu pai com uma pistola (Confraria do Vento, 2012) e Casa devastada (Confraria do Vento, 2014), além de poemas em revistas e jornais. É tradutor, professor e doutorando em Letras na USP, com artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Diego Grando é poeta, nascido em Porto Alegre, 1981. Publicou Sétima do singular (Não Editora, 2012) e Desencantado carrossel (Não Editora, 2008), o livreto "25 Rua do Templo" (Não Editora, 2010) e também poemas em antologias, revistas e jornais. É professor de literatura e doutorando em Letras na UFRGS. SUMÁRIO 80 ISBN 978-85-66135-11-4 2015 WWW.PETITERAFALE.WORDPRESS.COM DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA