Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina, de Jonathan
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Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina, de Jonathan
Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina, de Jonathan Safran Foer Matheus Philippe de Faria Santos UFMG, Graduando RESUMO: O escritor norte-americano Jonathan Safran Foer, nascido em 1977, cujo avô sobreviveu ao massacre de um shtetl, indo, posteriormente, a se estabelecer nos Estados Unidos, viaja à Ucrânia na tentativa de lançar luz sobre o passado de sua família. Essa tentativa de reconciliação com o passado é transformada em uma narrativa ficcional que evidencia uma forma contemporânea narrativa sobre a Shoah em que ficção e realidade se misturam. O escritor, com o romance Tudo se ilumina, se inscreve assim na tradição de escritores que fizeram da Shoah matéria de sua ficção. O texto marcado pela mistura estilos e fragmentação narrativa exibe uma escrita lacunar que atinge o seu ápice na configuração do texto em verbetes evidenciando uma forma de escrita enciclopédica que atesta a impossibilidade narrativa da Shoah. Palavras-chave: romance; Enciclopédia; Shoah. ABSTRACT: The American writer Jonathan Safran Foer, born in 1977, whose grandfather survived the massacre of a shtetl, going later to settle in the United States, travel to Ukraine in an attempt to shed light on the past of your family. This attempt at reconciliation with the past is transformed into a fictional narrative, which shows a contemporary narrative about the Shoah in which fiction and reality mingle. The writer, with the novel Tudo se ilumina up, sign up so in the tradition of writers who have made the Shoah concerning his fiction. The text marked by mixing styles and narrative fragmentation displays a written objection that reaches its apex in the configuration text in articles showing a form of encyclopedic writing attesting the impossibility narrative of the Shoah. Keywords: novel; Encyclopedia; Shoah. 634 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 Empreendi o exame das coisas que você me aconselhou, e – também como você me aconselhou a fazer – fatiguei o dicionário com que você me presenteou, quando minhas palavras pareciam fracas demais, ou inadequadas. Jonathan Safran Foer Na porção oriental da Europa, tal como na Ucrânia, a vida judaica se desenvolveu, muitas vezes, em shtetls, as pequenas aldeias. Aos judeus era proibido residir nos grandes centros, nas cidades organizadas pelo Estado. Essas comunidades, muitas das quais tiveram sua destruição completa e sua ausência ou imprecisa localização em mapas oficiais dos países em que se constituíram, serviam de refúgio para a população judaica que vivia cercada por um raivoso antissemitismo antes mesmo que a onda de ódio perpetrada pelo nazi/fascismo se desenvolvesse e se alastrasse. Paul Johnson, em História dos judeus, chama a atenção para a violência que foi impetrada contra os judeus a partir de 1648: Em Tulchin, os soldados poloneses entregaram os judeus aos cossacos em troca de suas próprias vidas. Em Tarnapol, a guarnição recursou-se a permitir que os judeus entrassem. Em Bar, a fortaleza caiu e todos os judeus foram massacrados. Em Nimrov, os cossacos entraram na fortaleza vestindo as roupas dos poloneses; e “mataram cerca de 6.000 almas na cidade”, segundo a crônica judaica; “eles afogaram várias centenas na água e usaram toda espécie de tormentos cruéis”. Na sinagoga, usaram as facas rituais para matar judeus, depois queimaram a construção, dilaceraram os livros sagrados e os pisotearam, e fizeram as capas de couro para sandálias (JOHNSON, 1995, p. 2690270). Vários escritores, vítimas diretas ou indiretas desses conflitos, publicaram uma diversidade de textos, dando testemunho da violência contra os judeus. Bashevis Singer, por exemplo, em muitos de seus contos e romances, deixa vislumbrar esse mundo assaltado pelo medo e pelo horror. A ficção, especialmente, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, também faz testemunho de um tempo marcado por uma espécie de terror e por uma constante sensação de impossibilidade narrativa. Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina,..., p. 633-640 635 Na atualidade, Jonathan Safran Foer, com o romance Tudo se ilumina, se inscreve na tradição de escritores que fizeram da Shoah matéria de sua ficção. O personagem Rabino Venerável no Livro de Antecedentes, do qual todo aluno aprendia sobre Trachimbrod, dá o tom da narrativa: “E se devemos lutar por um futuro melhor, não precisaríamos estar familiarizados e conciliados com o nosso passado?”. O escritor norte-americano, nascido em 1977, cujo avô sobreviveu ao massacre de um shtetl, indo, posteriormente, a se estabelecer nos Estados Unidos, viaja à Ucrânia na tentativa de lançar luz sobre o passado de sua família. Essa tentativa de reconciliação com o passado é transformada em uma narrativa ficcional que evidencia uma forma contemporânea de narrar a Shoah. Nessa perspectiva, ficção e realidade se misturam, se mesclam e perdem as fronteiras. A jornada do escritor, romanceada em Tudo se ilumina (FOER 2005), conta com a ajuda de Alex, um jovem ucraniano que tenta ser um bom tradutor, mas com pouco domínio do inglês, invariavelmente, erra produzindo efeitos de linguagem que produzem um efeito de ironia e humor. Além de Alex, essa comicidade está presente, também, na figura do avô desse estranho tradutor, que alega ser cego e por isso necessita de uma cadela-guia chamada de Sammy Davis Junior Júnior, mas é plenamente capaz de dirigir um carro. As poucas pistas que o personagem Jonathan possui para seguir são uma fotografia de seu avô junto a uma mulher que seria sua salvadora, e um nome de mulher, Augustine, escrito atrás da imagem. Além disso, há, ainda, o nome do que teria sido o shtetl, a saber, Trachimbrod. Sobreposta à viagem a Ucrânia, além da busca pela personagem da fotografia, que desvelaria o passado do avô, e seu próprio, a investigação que o protagonista realiza de si e do outro, espelha, com requinte, a estrutura narrativa do romance, que poderia ser traduzida pela afirmativa de Ricardo Piglia: “Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar?”. Às vezes, as duas coisas, é preciso ressaltar. Sob essa dupla sentença, Tudo se ilumina, ao contrário, parece apontar para o fato de que “nem tudo se ilumina”, na narrativa ou na vida. Ao transformar sua viagem à Ucrânia em uma narrativa ficcional, Foer recria a história de seus antepassados a partir do shtetl de Trachimbrod. Para tanto, em seu jogo ficcional, mistura estilos, fragmenta a narração e exibe uma escrita lacunar que atinge o seu ápice na configuração do texto em verbetes. Isso ocorre, principalmente, na 636 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 referência a um “Livro de Antecedentes” e na narrativa de Alex sobre o encontro com a suposta Augustine, a provável salvadora do avô do protagonista. Isso se dá, particularmente, quando o guia e tradutor descreve o que restou de Trachimbrod. As ruínas da aldeia judaica são descritas, no enunciado, por um narrador que, a partir de uma coleção de cacos ou ruínas, tenta exaurir todo o conhecimento sobre o shtetl e as pessoas que lá viviam. Essa coleção, no entanto, revela a incapacidade de abranger a multiplicidade de tudo o que se perdeu com a Shoah. Tais características evidenciam, na enunciação, uma espécie de escrita enciclopédica que, no entanto, denunciam a falência do empreendimento de recuperar o passado tal qual ele se constituía. A enciclopédia, criada no Iluminismo com o intento de abarcar o conhecimento do mundo, logo tornou evidente o fracasso de seus idealizadores. O ideário de exatidão, consistência e ordem dos enciclopedistas, a contrapelo dos saberes místicos e religiosos, mostra-se cada vez mais, marcado pela multiplicidade de vozes, uma vez que se tornou cada vez mais difícil a um só homem possuir todo o conhecimento sobre qualquer matéria. Os parâmetros iniciais do que seria uma escrita enciclopédica tradicional, ou seja, uma narrativa que busque contornar a complexidade do mundo, são contudo, implodidos no romance de Foer. Italo Calvino, defende o conceito do que seria uma enciclopédia aberta, na conferência sobre multiplicidade em Seis propostas para o próximo milênio (CALVINO, 1990, p. 115). Para Calvino, ela “não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice” diferentemente de uma enciclopédia nascida da “pretensão de exaurir o conhecimento do mundo encerrando-o num círculo” (CALVINO, 1990, p. 131). Na literatura contemporânea, os chamados “romances enciclopédicos” se formariam, então, a partir de “uma confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos de interpretação, maneiras de pensar, estilo de expressão” (CALVINO, 1990, p. 131), em uma rede de conexões entre os fatos, pessoas e coisas do mundo. A escrita ficcional contemporânea sobre a Shoah, cujo romance Tudo se ilumina, seria um paradigma, permite aos escritores, como Foer, por exemplo, ampliar os limites da linguagem, o que parece levar o leitor ao que Umberto Eco chamou de “vertigem”, ou seja, a um romance marcado pela multiplicidade de vozes, que busca narrar, de um modo fragmentário e lacunar, uma experiência-limite que tenderia a apontar Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina,..., p. 633-640 637 para a narrativa a partir da noção de infinito. Essa seria, pois, uma forma possível de abarcar o espólio do horror que advém da Shoah. Na busca por Agustine, Jonathan, Alex e o avô de Alex, encontram uma mulher idosa que, de início, afirma não reconhecer as pessoas da fotografia. Porém, Alex, desconfiado, continua insistindo na pergunta até que a mulher, em prantos, revela ter esperado por esse momento por muito tempo e ser ela o que sobrou de Trachimbrod. Convidados a entrar no casebre da mulher, que Alex desconfia ser Augustine, eles se deparam com uma enorme coleção de restos. No local onde se situava o shtetl nada restara, toda a Trachimbrod, no entanto, estava numa coleção de ruínas que se configura como uma enciclopédia de restos e escombros. Alex assim descreve a casa: Não era similar a qualquer casa que eu houvesse visto, e acho que eu não apelidaria aquilo de casa. Se você quer saber eu apelidaria aquilo, apelidaria de dois-quartos. Um dos quartos tinha uma cama, uma escrivaninha pequena, uma cômoda e muitas coisas do chão até o teto, incluindo pilhas de mais roupas e centenas de sapatos de diferentes tamanhos e estilos. Eu não conseguia ver a parede por trás de todas as fotografias. Parecia que elas eram de muitas famílias diferentes, embora desse para reconhecer que algumas daquelas pessoas estavam em mais de uma ou duas. A roupa, os sapatos e as fotografias me fizeram raciocinar que deveria haver pelo menos cem pessoas morando naquele quarto. O outro quarto também era muito populoso. Havia muitas caixas, que transbordavam de artigos. Tinham coisas escritas nos lados Um pano branco sobrepujava de uma caixa onde se lia CASAMENTOS E OUTRAS COMEMORAÇÕES. A caixa onde se lia PARTICULARES: RESGISTROS/ DIÁRIOS/CADERNOS DE DESENHO/ROUPA DE BAIXO estava tão atulhada que parecia preparada para se romper. Havia uma outra caixa onde se lia PRATARIA/ PERFUME/CATA-VENTOS DE PAPEL, outra onde se lia RELÓGIOS/INVERNO, outra onde se lia BONECOS/ ÓCULOS. Se eu fosse uma pessoa inteligente teria registrado todos os nomes num pedaço de papel, como o herói fez no seu diário, mas eu não era uma pessoa inteligente, e depois esqueci muitos deles. Alguns dos nomes eu não consegui raciocinar, como a caixa 638 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 onde se lia ESCURIDÃO, ou a que tinha MORTE DO PRIMOGÊNITO escrito a lápis na frente. Observei que havia uma caixa no alto de um desses arranha-céus de caixa onde se lia POEIRA (FOER, 2005, p. 198-199). Esses vestígios, restos da cidadezinha, foram colecionados pela sobrevivente, originalmente, para manter viva a memória de Trachimbrod. De certa forma, a coleção, como um cemitério, exibe em cada artefato, um registro tumular do que foi a aldeia judaica. Dessa coleção fazia parte, ainda, outra enciclopédia fadada ao fracasso, o “Livro de Antecedentes”, entregue aos viajantes pela mulher, e que conforme a história: começara como um registro de acontecimentos principais: batalhas e tratados, fomes ocorrências sísmicas, inicios e términos dos regimes políticos. Mas logo haviam sido incluídos e descritos com grandes minúcias eventos de menor importância – festivais, casamentos e mortes importantes, registros da construção do shtetl (ainda não acontecera a destruição) – e o livreto precisara ser substituído por um conjunto de três volumes. Em pouco tempo, devido à demanda dos leitores (que incluíam todo mundo, tanto Corretos quanto Desleixados), o Livro de Antecedentes incorporara um censo bienal, com nome de cada cidadão e um breve relato da vida dele ou dela (as mulheres haviam sido incluídas depois que a sinagoga se cindiu), sumários até de acontecimentos pouco notáveis, e comentários sobre o que o Rabino Venerável chamava de VIDA, E A VIDA DA VIDA, e que incluíam definições, parábolas, diversas regras e regulamentos para se viver virtuosamente, além de provérbios interessantes, ainda que sem sentido (FOER, 2005, p. 198-199). O Livro de Antecedentes que se inicia com o registro de acontecimentos relevantes para o shtetl logo se vê tomado pela confluência de vozes e estilos, passando a abranger não somente tais acontecimentos, intentando abranger toda a minucia da vida na aldeia. O livreto se expande a tal modo que passa a ocupar toda uma prateleira. Invadidos pela ânsia do registro completo, os enciclopedistas, passam a rever o texto continuamente e mesmo quando não havia nada a registrar, o comitê trabalhando em tempo integral, registrava seus registros apenas para manter o livro em movimento e tentar torna-lo mais parecido com Shoah, enciclopédia e memória: em Tudo se ilumina,..., p. 633-640 639 a vida. O Livro de Antecedentes, é, portanto, incompleto na medida em que sempre resta algo a registrar e que embora persiga “os antecedentes”, ou a origem, o que pode é fazer fantasiar essa história do princípio. Ambas as coleções, tanto a dos artefatos quanto a memória registrada em livro, configuram-se como projetos enciclopédicos que, apesar de ambiciosos, atestam que o intento daquele que registra sempre está fadado ao fracasso. Se, no paradoxo de Zenão de Eléia, Aquiles jamais alcança uma tartaruga se a ela é dada uma vantagem inicial, pois o espaço é susceptível de divisão a um número infinito de pontos separando as posições alcançadas sucessivamente pelos dois, o enciclopedista é aquele que tenta registrar o horror de um genocídio, porém, nunca o conseguirá, pois sempre haverá uma distância imponderável e infinita do que pode ser contado. O romance Tudo se ilumina, assim, ao fazer falar a imponderabilidade das coleções e dos registros, no entanto, ainda que aponte para a impossibilidade do afã enciclopédico, também insurge-se contra o esquecimento. A escrita torna-se, assim, registros e coleções de vestígios, formas precárias de memória a lembrar o leitor da instabilidade do relato, mas de sua absoluta e imperiosa necessidade. Referências BERGER, A. L. Unclaimed experience: trauma and identity in third generation writing about the Holocaust. Shofar: An Interdisciplinary Journal of Jewish Studies, v. 28, n. 3, p. 149-158, 2010. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CODDE, P. Keeping History at Bay: absent presences in three recent Jewish american novels. MFS Modern Fiction Studies, v. 57, n. 4, p. 673-693, 2011. ECO, Umberto. O antiporfírio. In: ______. Sobre os espelhos e outros ensaios. Trad. Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p.316-341. FERRO, J. A “verdade” no fim da estrada – uma análise do romance Tudo se ilumina, de Jonathan Safran Foer, e de sua versão cinematográfica, do diretor Liev Schrieber. 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