Apostando numa pata esganiçada

Transcrição

Apostando numa pata esganiçada
Apostando num ganso gasguito*
Um antigo e legítimo grupo de rock pesado britânico, lá nas origens de sua formação,
nasceu quando um músico psicodélico decidiu apostar em sua voz canina, juntando-se a
outros 3 músicos brilhantes para brilhar em conjunto.
Foi um grupo nascido na região de Walsall e Wolverhampton, West Midlands, Reino Unido, na
terra dos Beatles, Pink Floyd, Stones e outros monstros sagrados que fizeram história. Refiro-me à
extraordinária banda SLADE, um dos mais bem afinados grupos de heavy e glam rock da velha
geração, portador de recordes invejáveis nos registros da música contemporânea.
Sua música é realmente diferenciada das demais bandas glamourosas de seu gênero, tais como
o Def Leppard, o Quiet Riot, o T.Rex, Toto, Reo Speedwagon, Sweet, Steely Dan, etc., justamente pela
característica marcante da voz de Noddy Holder, compositor e vocalista vocacionado (sem
pleonasmo) para vozearias de palco e estúdio, as quais, na maioria das vezes, com ele, se transformava
em gritaria afinada que enlouquecia sua imensa legião de fãs presentes aos shows.
Sua diferença estava nítida na proporção em que Holder jamais temeu colocar a sua “garganta
de aço” a serviço de qualquer gênero musical, e não admira que a banda tocou diversos, i.e, desde
baladas cadenciadas (como “Everyday”, “In for a Penny” e “My oh my”, esta ainda hoje sucesso nas
rádios), indo do puro heavy ao ie-ie-ie (“Till deaf do us part”, “Lay it down” e “Nobody’s fool”), bem
como do blues ao country britânico (“Far far away”, “Pack up your troubles” e "How does it feel"), e
deste à valsa contemporânea (“Find yourself a rainbow” e “Look Wot You Dun”). E não era só nos
vocais que o Grupo se destacava, porquanto a guitarra de Dave Hill, o baixo de Jim Lea (que compôs a
maioria das letras) e a bateria de Don Powell (perfeita em todos os gêneros), formavam um som
afinadíssimo e bem focado, endereçado tanto a quem queria dançar a noite toda, quanto aos casais
enamorados que queriam uma música para sonhar e marcar sua união até mais tarde, quando a
ouvissem saudosamente com seus filhos e netos.
A propósito de hits que marcaram época e deixaram profunda saudade, destaco a belíssima
"Cum on feel the noize"... A qual, embora extremamente dançante, carrega aquela pitada de “sadness
melody” que empresta beleza ao clássico, ao gospel e ao lírico. Da velha geração, hoje com 50 ou 60
anos, não há como ouvi-la sem querer dançar ou choramingar na intimidade, lamentando jamais voltar
o tempo às coisas boas da vida, que deixaram as melhores recordações. Mesmo quem não estava
namorando ou casando na época, “Cum on feel the noize” traz a memória das peripécias de um bar
“dirty” chamado "Porkys", que Hollywood filmou com sublime maestria, logo após "Loucuras de
Verão" que apresentou Richard Dreyfuss ao mundo.
Como em quase todas as histórias de bandas bem arranjadas há curiosidades interessantes, com
SLADE podemos destacar três momentos sui generis, que quase não foram divulgados pela mídia.
Vejamos:
(1o) A banda usou de estratégia localizada de marketing para alcançar os diversos países,
sobretudo os EUA, onde as vendas precisavam ser alavancadas, se algum grupo quisesse o estrelato.
Neste sentido, o SLADE chegou a publicar discos nos EUA com um nome mais apropriado ao fã clube
americano, como no caso do LP “Old, New, Borrowed and Blue” (velho, novo, emprestado e azul),
que saiu no Canadá e nos EUA com o nome de “Stomp Your Hands, Clap Your Feet” (literalmente:
“Pise suas mãos, aplauda seus pés”, refrão de uma música cultual dos navajos, que seus descendentes
traduziram como “dance em pé ou de ponta cabeça, mas dance”).
(2o) A banda chegou a causar constrangimento e até perda de popularidade por ter, por
exemplo, comprado grandes lotes/áreas de terrenos no Reino Unido, em lugares já pleiteados por fãs e
grupos de admiradores, independente das ações que os mesmos poderiam impetrar nas negociações,
por conta de “privilégios” ou prioridades de venda pela lei inglesa. Isto, evidentemente, causou certa
antipatia de início, mas não diminuiu a fascinação que as músicas do SLADE provocavam nos seus
“enteados”, e a banda continuou no topo das paradas.
(3o) Um festival do tipo “Razzie Awards” (“Framboesa de ouro” ou “Boscar”, o Oscar ao
contrário, que premia os piores), realizado entre ouvintes fiéis do lirismo tocado em muitas rádios do
R.U., outorgou um excêntrico prêmio a Noddy Holder, como se juntasse todos os anti-fãs do rock,
(mormente aqueles que detestam gritarias), escolhendo uma música para atribuir-lhe tal “honraria”. A
canção premiada entre esse pessoal, num certame informal de vozes esganiçadas, se chama “Don’t
blame me”, e pode ser ouvida NESTE link. O festival citado (que aqui no Ceará poderia ter o nome de
“Os gasguitos”, ou então “Gogó de Ouro”) teria sido chamado de “Gold Gulet of the Rock Award”, e
premiou o vocalista como o dono da voz mais “canina” do rock. Por esta “Don’t blame me”, Noddy
mereceria sem dúvida um prêmio desses.
Esta “Don’t blame me” (não me culpe) foi lançada naquele mesmo LP de 74, o “Old, new,
borrowed and blue”, e compõe um dos melhores momentos da banda, senão o melhor. Ali estão
pérolas de sensibilidade, tais como “When the lights are out” (“quando as luzes se apagarem”, que
muito beatlemaníaco confundiu com música dos Beatles! – A voz e os acordes aqui realmente
merecem esta comparação!), “Find yourself a rainbow” (uma valsinha para encantar saudosistas), “My
friend Stan” (uma linda homenagem a um velho conhecido), “Everyday” (outra melodia belíssima e
com tons de ie-ie-ie).
Outros discos também tocaram coisas inesquecíveis, como o LP “Sladest”, no qual o hit “Cum
on feel the noize" ainda hoje é bem cotado nas paradas de sucessos nostálgicos e em programas de
rádio que tocam a “era disco”. Mais à frente, o grupo fez um filme no qual a trilha sonora trouxe
verdadeiras pérolas musicais, destacando-se a canção-tema “How does it feel” (ouça-a no terceiro
parágrafo), regada a belíssimo piano e voz mais comportada de Noddy. Porém o filme, disse a maioria
dos fãs não-britânicos, só é suportável por legítimos fãs, e estaria longe de se comparar a um filme
como “Help”, que tanto agradou a beatlemaníacos quanto a quaisquer apreciadores de música.
Como se pôde perceber ouvindo “Don’t blame me”, apostar numa “pata esganiçada” que nem
Noddy Holder poderia ter sido um retumbante fracasso para o grupo, porquanto poucos ouvidos
gostam de escutar gritarias estridentes e roucas, como meninos gasguitos. Dizem que esta “condição
irritante da voz” atrapalhou o incremento de um maior número de fãs até para cantores como Kate
Bush, Suzy Quatro, Dan McCafferty, Brian Connolly, Ronnie James Dio, Kevin DuBrow, e até uma
Meredith Monk e uma Tetê Espíndola (nossa querida Tetê), cujas gargantas podiam “quebrar cristais”,
segundo suspeitavam alguns colegas estudiosos da Física.
O Grupo SLADE, como quase todos os conjuntos de rock, infelizmente, também passou pela
“doença das bandas”, que quase sempre faz com que se separem ou modifiquem compulsoriamente
sua formação original, embora o SLADE tenha feito relativamente até poucas mudanças, em
comparação com outros. Aparentemente, a última formação teria os nomes de Mal McNulty (Vocais,
Guitarra); Dave Hill (Vocais, Guitarra, Baixo); John Berry (Vocais, Baixo, Violino); e Don Powell
(Bateria). Nada, evidentemente, que se compare ao som pioneiro dos dez primeiros discos, que a
História jamais silenciará.
Fica então a dica para quem não conhecia o SLADE a aventurar-se por uma discografia cheia
de lindos acordes, baladas dançantes e puro romantismo, ou, se quiser aventura mesmo, pela voz de
Noddy Holder nos bons tempos dos “metais pós-pílula”, nos discos gravados ao vivo. Então, assim
sendo, se vai mesmo ouvir Noddy, sente-se no seu sofá, ponha uma boa acústica de proteção nos
ouvidos e bote pra quebrar, pois é rock de primeira.
(*) Artigo dedicado a Roberto Cunha Figueiredo, um dos maiores fãs do SLADE da era Disco.