Relato de viagem: Costa Rica
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Relato de viagem: Costa Rica
Relato de viagem: Costa Rica __ 752 dias Atrás Com pouco mais um milhão de habitantes, San José, capital da Costa Rica, impressiona pela riqueza de sua produção artística. Chama a atenção a articulação e o preparo dos artistas, extremamente conectados com as discussões mais contemporâneas em arte. Texto por Fernanda Albuquerque Muitos deles devem parte importante de sua formação ao trabalho desenvolvido pela TEORética, espaço independente voltado à pesquisa e difusão da produção contemporânea. Fundado em 1999 pela curadora Virginia Pérez-Ratton, o projeto vem desempenhando um papel determinante – não só na Costa Rica, mas em toda a América Central e Caribe – no estímulo à geração de redes, fomento à criação e internacionalização da produção. Exposições, oficinas, conversas, residências e uma extensa linha de publicações compõem a programação do espaço, que desde 2008 também conta com um museo para abrigar a coleção formada ao longo de mais de vinte anos. Fachada da TEORética, em San José Pois o apoio oferecido pela TEORética também foi fundamental na minha viagem. Além de ter acesso a um extenso material de pesquisa, pude contar com a ajuda de Jurgen Ureña, coordenador do projeto, que me colocou em contato com vários artistas de San José. Emiliano Valdes, Magali Arriola, Rosina Cazali Escobar e Marivi Véliz, críticos e curadores que vêm trabalhando na região, também foram fontes importantes no mapeamento inicial. Diferente do que encontrei no Panamá, não percebi preocupações e interesses recorrentes nos artistas da Costa Rica, mas uma enorme diversidade de propostas. Abaixo, uma breve descrição dos trabalhos que tive a oportunidade de conhecer. Estebán Piedra Investigações sobre o modo como se habita um lugar estão na base dos trabalhos desenvolvidos por Esteban Piedra. Por meio de desenhos, maquetes, vídeos e instalações, suas paisagens domésticas mapeiam desde a forma como uma aranha vive em sua sala ou a maneira como o pó se deposita embaixo do armário até o modo como o próprio artista se desloca, modifica e experiencia sua casa. Ou ainda a forma como ela se deteriora e se transforma com o tempo. É o caso, por exemplo, da topografia criada a partir dos trânsitos de Esteban em seu quarto ou dos diagramas que traduzem a memória do espaço. Descrição da paisagem segundo o topógrafo (2010), de Esteban Piedra Eduardo Chang Temas como migração e identidade são frequentes na obra deste salvadorenho radicado na Costa Rica. Residente Permanente por Vínculo, exposição apresentada em 2009 en San Salvador, reuniu uma série de trabalhos que discutiam a condição de estrangeiro. Caso, por exemplo, dos carimbos que dispensam a cordialidade e o eufemismo para negarem o visto de entrada a um país, do projeto de internacionalização da «pupusa», comida típica de El Salvador, ou ainda dos cartões postais que estampam imagens de fronteiras. International Pupusa Project (2009-2010), de Eduardo Chang Federico Herrero Mesmo sobre tela, a pintura de Federico Herrero parece se projetar no espaço. O domínio da cor e o modo como seus trabalhos ocupam e recriam lugares chamam a atenção na obra do artista, um dos nomes de maior projeção da Costa Rica. Tons vibrantes, alegres e contrastados transpõem os limites físicos da tela e compõem paisagens de cor em locais tão variados quanto um terraço, uma rua, um ônibus, um viaduto e o fundo de uma piscina. A própria casa do artista, onde também funciona seu ateliê, tem vários de seus ambientes demarcados com planos de cor – outra paisagem feita para ser contemplada com os olhos e experimentada pelo corpo. Landscape with circles (2008), de Federico Herrero Lucía Madriz Mi Experimento Verde (2010) é um guia prático para adquirir hábitos sustentáveis e tornar-se um cidadão mais responsável com o planeta. A publicação, que é acompanhada de um blog onde os interessados podem compartilhar seus aprendizados, é um dos últimos projetos da artista Lucía Madriz. A relação do homem com a natureza é um dos temas centrais da obra dessa artista, que tornou-se conhecida por suas instalações com grãos de arroz, feijão e milho – trabalhos que questionam o uso de sementes geneticamente modificadas pelos efeitos trazidos às populações rurais e ao meio ambiente e pela dependência econômica gerada pelo modelo. Money Talks (2003), de Lucía Madriz Joaquin Rodriguez del Paso A relação «de amor e ódio» da Costa Rica com os Estados Unidos é um assunto recorrente nos trabalhos de Joaquin del Paso. Admiração e reprovação costumam caminhar juntos, segundo o artista, quando o assunto é o país do Mickey, do Sundae e da coca-cola. Símbolos como esses são retratados na série de pinturas Melting (20092011), ao lado de personagens que marcaram a história dos Estados Unidos. Todos derretendo. Já na série Americana (2005-2009), o «american way of life» é evocado em meio a imagens que remetem aos apelos turísticos da Costa Rica. Em Please stop blaming US (Por favor, pare de nos culpar / culpar os EUA) (2009), por sua vez, balões com retratos de Reagan e Roosevelt, entre outros, foram entregues ao público acompanhados da frase que dá nome à performance. Dependência econômica, influência política e fascínio pela cultura americana são alguns dos elementos levantados pelos trabalhos de Joaquin que compoem a complexa relação entre os dois países. Joaquín Rodriguez del Paso em seu ateliê Habacuc Guillermo Vargas O artista ficou conhecido por deixar um cachorro de rua supostamente morrer de fome como parte da obra És o que lês, apresentada em 2007 em uma galeria da Nicarágua. Transformada em fenômeno midiático pelos fervorosos protestos gerados em todo mundo, a proposta partiu de outro evento de ampla repercussão: a cobertura ao vivo da morte de um indigente nicaraguense, devorado por rottweilers na Costa Rica, enquanto a polícia, bombeiros e jornalistas observavam a brutalidade. Até hoje não se sabe se o cachorro morreu ou não, mas a repercussão da história parece ter ganhado mais força e realidade que o próprio ocorrido. A polêmica e a provocação estão presentes também em outros trabalhos do artista, como na ação realizada para a abertura da 5a Bienal Centroamericana, em 2006, em que Habacuc criou um tapete vermelho de tomates ou quando vestiu uma camiseta com os dizeres «camisETA» na inauguração da Bienal de Pontevedra, em 2010, na Espanha.. Tapete vermelho ou 300 kilos de tomate (2006), de Habacuc Priscilla Monge Delicadeza e violência são uma aproximação constante nas obras de Priscilla Monge. Proibições listadas no quadro negro, uma furadeira que aciona uma bailarina de caixinha de música, torturas descritas em bordados e padrões decorativos produzidos com sangue são algumas das criações da artista que exploram conflitos de poder e problematizam papeis sociais e sexuais. A condição feminina é um dos assuntos preferidos de Priscilla, que já teve seu trabalho exposto em mostras com a Bienal de Veneza (2001) e a Bienal de Liverpool (2006). Não devo prostituirme (2006), de Priscilla Monge Rolando Castellón Desenhos, pinturas, objetos e colagens realizados com barro, sementes, espinhos, ninhos, folhas, cascas de fruta e telas de aranha conformam a produção de Castellón, que desde os anos 1970 também atua como curador. A natureza, a memória e o fluxo da vida são alguns dos interesses que alimentam a poética do artista e abastecem sua casaateliê de materiais, referências, obras e livros, fazendo do espaço um verdadeiro gabinete de curiosidades. A transformação dos trabalhos, pela própria organicidade dos elementos que utiliza, é incorporada por Castellón como sintoma de uma precária estabilidade que também é própria da vida. Casa e ateliê de Rolando Castellón Javier Calvo Discussões sobre poder e identidade alimentam os trabalhos de Javier Calvo, como nas performances em que o artista inscreve na própria pele as frases «quero ser um bom centroamericano» e «o branco é relativo». Registradas em fotografia, ambas as inscrições são fruto de uma exposição à dor. No primeiro caso, uma queimadura solar e, no segundo, uma tatuagem feita com tinta branca. A coloração vermelha das marcas (e não morena, como um «bom centroamericano», ou branca, como um autêntico europeu) contribui para questionar o valor da cor como categoria capaz de construir identidades. Quiero ser un buen centroamericano (2009), de Javier Calvo Karen Clachar A memória de Guanacaste, província onde nasceu e viveu toda a infância, é um tema central na produção de Karen Clachar. Localizada no noroeste da Costa Rica, a região é ponto de partida pra uma série de propostas colaborativas, que buscam envolver a comunidade em torno da preservação da cultura local. É o caso, por exemplo, da Casa de Vico, projeto iniciado em 2007 que reúne, em um antigo casarão de Liberia, capital da provincia, fotos e documentos sobre a história de Guanacaste. “Comecei a desenvolver o trabalho sozinha e aos poucos ele se converteu em um projeto coletivo”, conta Karen. Outra proposta, chamada Lunas Blancas, envolve o mapeamento e a sinalização de monumentos e locais de interesse histórico e cultural de Liberia. Com a ajuda de habitantes, a artista pinta luas brancas em frente aos locais mapeados, em referência à canção da lua liberiana, ícone da chamada “cidade branca”. Lunas Blancas, de Karen Clachar Fabrizio Arrieta A apropriação de imagens relacionadas ao mundo da moda está na base das pinturas desenvolvidas por Fabrizio Arrieta. Recortar, colar e manipular digitalmente fotografias e materiais variados são as operações que o jovem artista utiliza para chegar às suas composições, antes de transferi-las para a tela. Entre o que se revela e o que se esconde ou deforma, representações de luxo, sedução e opulência ganham uma atmosfera de mistério e violência nas pinturas do artista. Masterpiece-Vandalized (2010), de Francisco Arrieta Durante os quatro dias em que estive em San José, ainda conheci a obra de Oscar Figueroa, que realiza instalações com peças de computador, mesclando referências do passado colonial da Costa Rica e da situação atual do país, e Roberto Lizano, cujas colagens e objetos também se reportam à história da América Central. Por fim, tive a oportunidade de encontrar brevemente as artistas Nadia Mendoza, que cria ambientes e cidades futuristas a partir de animações digitais, e Rocio Con, que desenvolve vídeos sobre temas como identidade, deslocamento e imigração. Ainda que a visita tenha sido curta, fica a impressão de ter tido uma bela amostra da diversidade da produção costarriquenha – ou tica, como se diz por lá. Na próxima viagem, espero conhecer também outras diversidades do país. Afinal de contas, ficar a poucos quilômetros do mar do Caribe e não botar os pés na água é daquelas falhas que só se perdoa uma vez – e por um ótimo motivo.