Dança: do movimento puro à dramaturgia corporal de Pina

Transcrição

Dança: do movimento puro à dramaturgia corporal de Pina
23
Dança: do movimento puro à
dramaturgia corporal de Pina Bausch
Solange Caldeira
Professora da Universidade Federal de Viçosa, Chefe do Departamento
de Artes e Humanidades. Avaliadora do MEC/INEP. Doutora em
Teatro. Bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e do Balé da
Cidade de São Paulo. Diretora artística e pesquisadora na área de Dança
e Teatro. E-mail: [email protected].
Resumo:
Após
a
Segunda
Guerra
Mundial,
surge
um
questionamento fundamental da dança que se radicaliza
durante os anos 50 e 60. Após treinar formas e possibilidades
corporais isentas de qualquer interpretação dramática, a dança
caminha na direção da recuperação do pessoal e interno do
homem e suas relações com o mundo. As histórias passam a
ser contadas pelos corpos individuais, uma dramaturgia escrita
e inscrita nos movimentos dos atores-bailarinos, uma
dramaturgia corporal, que rompe os limites tradicionais entre o
teatro e a dança.
Palavras-chave:
corporal/Pina Bausch
história/
dança
/
dramaturgia
Abstract:
After the Second World War, there is a fundamental
questioning of the dance that is radicalized during the 50 and
60. After training ways and means body free from any
dramatic interpretation, the dance moves towards the
recovery of personnel and inner man and his relations with
the world. The stories are being told by the individual bodies,
24
a drama written and recorded the movements of the actors,
dancers, drama a body that breaks the traditional boundaries
between theater and dance.
Keywords: history / dance / drama body/ Pina
Bausch
Após a Segunda Guerra Mundial, frente a um novo
desmoronamento dos valores, surge um questionamento
fundamental da dança que se radicaliza durante os anos 50 e
60. A dança atribuiu-se a tarefa de viver intensamente o que há
de mais significativo nas angústias e nas promessas do mundo
moderno e de inventar os novos signos capazes de exprimi-las.
Novos coreógrafos, liderados nos Estados Unidos por Merce
Cunningham1 e Alwin Nikolaïs,2 passaram a rejeitar as
motivações e as linguagens da dança moderna anterior,
conforme coloca Roger Garaudy (1981):
Segundo Sally Banes (1980), Merce Cunningham norteia seu trabalho por sete princípios: 1) qualquer movimento
pode ser base para uma dança; 2) qualquer procedimento pode ser válido como método de composição; 3) qualquer
parte ou partes do corpo podem ser usadas, sujeitas às suas limitações naturais; 4) a música, os figurinos, o cenário, a
iluminação e a dança possuem identidade própria; 5) qualquer espaço pode ser utilizado para dançar; 6) qualquer
dançarino pode ser solista; e 7) a dança pode tratar de qualquer assunto, mas primordialmente deve tratar do corpo
humano e do nascimento e trajetória de seus movimentos.
2 Músico, compositor, pintor e coreógrafo. Faz a fusão entre pintura, cinema e dança Envolve seus bailarinos em
formas que fazem com que se percam as referências do corpo humano. Seus balés são formas dançantes. A ausência
de personagem e da ação caracteriza seu trabalho.
1
"Nega-se o "conteúdo" no sentido tradicional,
isto é, a narração e a emoção, para reter apenas
o movimento pelo movimento, sem qualquer
"significação", como matéria única da dança: a
dança não deve "significar", mas existir como
uma realidade autônoma" (GARAUDY,1981:
81).
Naturalmente, as técnicas decorrentes da vontade de
exprimir terrores ou êxtases e de significar uma experiência da
25
vida não têm mais objeto nesta perspectiva: nem a inspiraçãoexpiração de Martha Graham,3 nem a queda e sua recuperação
em Doris Humphrey.4
Paradoxalmente, estes novos coreógrafos são menos
hostis que seus predecessores à dança clássica: evidentemente
não voltam às sapatilhas de pontas nem às fórmulas
mitológicas, mas sua orientação não lhes inspira a mesma
cólera contra o movimento executado por ele mesmo,
independente de qualquer ligação com a vida. Surge assim uma
espécie de dialética da história da dança de nossa época. A
dança moderna, no começo do século, é a primeira negação do
balé clássico. Em meados do século aparece a negação da
negação. Novos coreógrafos pretendem utilizar o movimento
não por sua significação, mas pelo próprio movimento, como
objeto. O mal-estar de uma arte cercada por um mundo que
ela não pode nem admitir nem recusar traduz-se por uma
recusa global de todas as significações: "O mundo não é nem
significante nem absurdo. Ele simplesmente é. Os objetos
existem antes de ser qualquer coisa" (Robbe-Grillet).
Como a dança contemporânea só quer lidar com o
movimento ou a pop art com o objeto, a palavra, o
Coreógrafa, bailarina e professora. Cria uma técnica de dança baseada na respiração, que podem conduzir à
contração (dor) e libertação (êxtase). Coreografias sobre mitologia e temas de seu país.
4 Bailarina, coreógrafa e professora norte-americana. Sua técnica baseava-se no ciclo da respiração e ações de "queda e
recuperação".
3
movimento, o objeto existe sem interioridade e sem
transcendência.
A maioria, do cinema à dança e à pintura, acredita
descobrir, através da diferença, a autonomia. Trata-se então da
corrida à diferença e à novidade. Os bailarinos passam a se
preocupar com a dança e sua forma, com a dança enquanto
linguagem autônoma e especializada, passível de existir sem
música, cenários, figurinos, enredo ou emoção a ser contada.
26
É uma época de experimentação, profissionais de arte,
interessados em trabalhar com dança, se reúnem em grupos
para criar infra-estruturas que lhes permitam trabalhar mais,
com menos custos e maior informalidade. Novos locais de
apresentação serão utilizados e a dança aparecerá nas
performances e happenings da época, eventos de música,
cinema, arte visual, teatro e poesia. Nesses grupos trabalham
coreógrafos-bailarinos,
coreógrafos
não-bailarinos
tecnicamente treinados e gente sem treino corporal algum, já
que para as experiências cinéticas com grande número de
pessoas serão necessários muitos participantes.
Alguns coreógrafos optam por mostrar no palco seu
processo de trabalho, acreditando que este valeria mais do que
o produto final. Os ruídos e a palavra são utilizados para
pontuar
os
movimentos.
Desmistifica-se
a
narrativa
emocionada, assim como o virtuosismo de qualquer técnica: as
coreografias não precisam contar nada e improvisa-se para
mostrar que o processo coreográfico também é tentativa-eerro, pois a beleza e o acabado - fatores de sedução - não
nascem do nada.
Nas improvisações surge a necessidade de simplificar-se a
técnica e, para isso, a saída é a utilização dos movimentos
naturais do homem, que mostram seu corpo sem deformá-lo.
Assim, faz-se uso de ações como escovar os dentes ou sentarse numa cadeira, dentro de uma estrutura de dança. Como a
naturalidade do movimento será uma das tônicas da dança
contemporânea, partindo-se daí podemos discernir, grosso
modo, algumas de suas tendências.
Há o naturalismo dos corpos, que preenche o espaço
com ações de todos os dias, acrescidas de muita emoção emoção natural, do homem, cotidiana. Contrária à prática de
27
movimentos específicos, essa tendência do natural trata de
criar movimentos que não ocultem as ações naturais do
homem sem, entretanto, acreditar que para isso se possa
prescindir de treinamento específico. Os bailarinos e
coreógrafos usam suas técnicas tanto para contar ou
expressarem-se dramática e
literariamente,
como para
pesquisar e realizar o movimento pelo movimento, oscilando
assim entre conteúdos temáticos da dança contemporânea e
moderna.
Os corpos contam a si mesmo em ações, que não
escondem o ‘natural dos gestos’, e os planos espaciais e apoios
de sustentação são utilizados para transmitir os conteúdos da
narrativa. Na busca por modificações, os dançarinos também
pinçam da modernidade a deformação, o estranho e o
carregado da dança expressionista. A expressividade do rosto
volta a restringir-se ao olhar, que expressa o íntimo e não vaga
pela sala à procura de um horizonte perdido ou de um ponto
para a fixação da cabeça nos movimentos de voltear. Percebese um intimismo sofrido, não exteriorizado pelo rosto, mas
pelo corpo, que expressa a si mesmo, autonomamente à
história ou tema abordado, é o corpo tornando orgânico o seu
linguajar e expressando com menos limitações as composições
coreográficas.
Além disso, alguns coreógrafos trabalham com grupos de
amadores e profissionais em grandes danças coletivas, onde
testam
novas
e
velhas
técnicas
de
movimentação,
experimentando sempre: são as danças corais5 .
O princípio de dançar-se o movimento pelo movimento
manifesta-se na dança. Os coreógrafos modificam a dança
clássica, base técnica sobre a qual trabalham e, à semelhança da
estética neoclássica, algumas vezes as linhas definidas e as
28
formas marcadamente esculpidas aparecem em seus trabalhos.
Entretanto, se existe essa semelhança, ela não é capaz de
sozinha justificar uma total identificação entre estas duas
formas de linguagem de dança, as mudanças são de fato
substanciais. O coreógrafo utiliza os bailarinos para criação de
formas abstratas como instrumentos de interpretação dos seus
objetivos e idéias. Os bailarinos não interpretam personagens
ou a si mesmos, o objetivo é o movimento e sua forma. Assim,
observa-se o início do experimento com outras possibilidades
coreográficas: aparece um novo tipo de deslocamento no
grupo que marcha em conjunto.
Os conjuntos dançam blocos elásticos que reagem
tecnologicamente aos estímulos. Nesta e naquela coreografia
há criações de formas torcidas das pernas que se entrecruzam,
pressionando o solo, enquanto os troncos se estiram para um
lado em torções semelhantes às encontradas nas técnicas do
jazz dance.
Entretanto, na investigação de novas formas para sua
estrutura, a dança pincela-se de emotividade e sensações. A
emoção chega como uma outra etapa de seu desenvolvimento
Introduzidas por Rudolf Von Laban na Alemanha dos anos 20 e 30, podem assumir um caráter recreativo e mesmo
educacional, quando praticadas por leigos e profissionais. Quando executadas por bailarinos ou pessoas com alguma
formação técnica corporal, resultam em formas representativas de arte, onde o essencial também é a expressão
harmônica total, resultante da somatória de especiais maneiras de movimentação de cada participante.
5
enquanto forma de linguagem, como acontecerá também em
algumas coreografias da dança contemporânea após o período
da abstração temática total.
Muitas vezes a emotividade chega através de signos de
gestualidade e de movimentação animalesca, em outras as
linhas curvas do desenho espacial se enrolam e desenrolam
como rios, sugerindo emoções lentas, cíclicas, arredondadas.
Assim, a dança vai em busca de uma forma e estrutura que
29
desmistifique a narrativa, negando uma coerência linear na
ação descritiva. Com o tempo, após treinarem formas e
possibilidades corporais isentas de qualquer interpretação
dramática, negando o exagero do drama e a introversão da
dança moderna, os bailarinos recuperam parte do pessoal e
interno do homem (seu cotidiano mais intimista) e suas
relações com o mundo (seu cotidiano menos intimista).
A emoção e as histórias serão então contadas pelos
corpos.
Através
dos
movimentos,
tecem-se
balés
extremamente rítmicos, que utilizam o rock e o eletrônico para
estimular a dança dos bailarinos. Há a oposição entre o reto e
quadrado do mecânico e o redondo e circular do natural. E aí
está o homem preocupando-se com seu corpo, o universo que
ele pode conhecer em oposição ao desconhecido: mundo
imensurável em relação a ele.
O movimento se faz pelos ritmos do corpo humano,
cortantes, vibrantes, tempos preciosos são utilizados em
conjunto de movimentação uníssona. Dança-se, não se
representa a descrição de um rito, a vibração sai do movimento
célere e do trabalho com os conjuntos, ritmo dos ritos
ancestrais e contemporâneos: a tribo primitiva e a tribo
tecnológica (a cidade).
Dança-se a novidade, o up-to-date, a urbe e sua vida. A
angústia destas não se transmite pela expressão facial dos
bailarinos, mas é transmitida por movimentos rápidos,
cortantes, desconcertantes. O corpo corta e soca o ar como
instrumento do movimento e não como instrumento da
emoção de cada um ou do conjunto. Através do corpo, contase a história: o cotidiano supersônico, o oposto (o oriente), o
absurdo da vida, mutável, rápida e incompreensível.
Nos anos sessenta e setenta, uma nova geração de
30
coreógrafos americanos, geralmente chamados coreógrafos
pós-modernos, levou mais longe algumas das idéias de Merce
Cunningham6.
Eles
concordavam
movimentos cotidianos
em
dança,
que
mas
deveriam
usar
rejeitaram
o
virtuosismo da técnica de Cunningham e as complexidades de
suas estruturas coreográficas, insistindo em um estilo que
procurava captar o processo de sentir e construir o movimento. Por
conseguinte, substituíram passos de dança convencionais por
movimentos simples como rolar, caminhar, saltar, correr e se
concentraram nos princípios básicos da dança: espaço, tempo,
peso e energia corporal.
Era uma época de experimentação, onde artistas
interessados em dança se reuniam em grupos para criar infraestruturas que lhes permitissem trabalhar mais, com menos
custos e maior informalidade. Novos locais de apresentação
foram utilizados e a dança aparece nas performances e
happenings da época (eventos de música, cinema, arte visual,
teatro e poesia).
Descartam do espetáculo quaisquer elementos que
pudessem tirar a atenção do trabalho do movimento. Os
figurinos eram freqüentemente roupas práticas do dia-a-dia,
havia pouca ou nenhuma iluminação especial e muitas
6
Ver nota 1.
performances aconteciam em sótãos e galerias, fora de
edifícios teatrais convencionais. Narrativa e expressão eram
desprezadas, e as estruturas coreográficas eram muito simples,
envolvendo a repetição e acumulação de frases, jogos de
movimento ou tarefas, como em uma coreografia de Tom
Johnson (1976), Running Out of Breath, onde o dançarino
simplesmente corria ao redor do palco enquanto recitava um
texto, até ficar realmente sem fôlego.
31
A maioria destes grupos de vanguarda era pequena e não
ocuparam posição de destaque no mundo da dança
profissional, atraindo uma platéia reduzida de aficionados.
Embora atualmente a dança contemporânea atraia um grande
público na Europa e América do Norte, foi durante muitas
décadas um tipo de arte minoritária e sem reconhecimento.
Sem receber subsídios, essas companhias tendiam a uma
produção menos elaborada e se apresentavam em espaços
pequenos, onde o contato com a audiência era mais íntimo.
Em 1962, era fundado o Judson Dance Theater (JDT), na
Judson Church, em Manhattan apresentando trabalhos de
coreógrafos experimentais. O primeiro espetáculo foi feito
pelos diplomados do curso de composição da dança do
músico Robert Dunn. O JDT foi influenciado pelas teorias e
práticas do mundo da arte contemporânea: minimalismo,
conceitualismo, anti-ilusionismo, etc. A Dança era definida
como ‘qualquer movimento para se olhar’. A Judson Church só
durou até 1966, mas do grupo fizeram parte nomes que
posteriormente se tornariam famosos, como: Trisha Brown,
Lucinda Childs, David Gordon, Douglas Dunn, Meredith
Monk, Yvonne Ranier, James Waring, Steve Paxton, Simone
Forti, Sally Gross, Elaine Summers, Phoebe Neville, Ruth
Emerson, Deborah Hay.
Alguns deles vão formar suas próprias companhias,
como Trisha Brown7. Em seu trabalho, classificado como
pós-moderno, ela explora e experimenta o movimento puro,
com ou sem acompanhamento de música, em espaços teatrais
não tradicionais. Nas décadas de 70 e 80, Brown começa a
incorporar cenografia e música em suas peças e a trabalhar
em teatros tradicionais, em vez de ao ar livre. Reclassificada
como coreógrafa8, ela apresentou trabalhos como If You
32
Couldn't See Me (1994), um solo no qual Brown está de costas
para o público quase todo o tempo. O estilo desenvolvido
por Trisha Brown influenciou a maioria da vanguarda da
dança americana durante os anos sessenta e setenta.
Mas, talvez seja Twyla Tharp9 a representante da dança
americana de vanguarda mais conhecida internacionalmente.
Como Merce Cunningham, gostava de apresentar suas danças
em lugares pouco comuns. Quando vai pela primeira vez a
Paris, em 1971, preferiu dançar suas Six Pieces não no palco,
mas na galeria do teatro da Cidade Universitária. Em pouco
tempo torna-se uma das mais respeitadas coreógrafas
americanas, tendo coreografado o filme Hair, em 1979, sendo
convidada para montar suas obras com o American Ballet
Theater. Suas coreografias se caracterizam como seqüências
muito elaboradas, que podem se sobrepor umas às outras ou
se sucederem em encadeamentos não obrigatórios: uma dança
aparentemente aleatória, que responde com precisão à
concepção da música aleatória, em que a organização dos
fragmentos escritos pode variar incessantemente. Pode-se
7 Em 1970, forma sua companhia, com a qual desenvolveu pesquisas coreográficas como Roof Piece: quinze dançarinos
dispostos cada um em um telhado diferente de Manhattan, executavam uma série de movimentos, enquanto o público
assistia de outro telhado.
8 Durante muito tempo os trabalhos experimentais não foram considerados como espetáculos de dança,
principalmente pela ousadia de suas propostas. Assim, Trisha Brown só é reconhecida como coreógrafa a partir do
momento que resolve dançar no espaço tradicional do edifício teatral.
9 Nascida em Portland, Indiana, aluna de Erick Hawkins, Merce Cunningham, Carolyn Brown e Paul Taylor, Tharp sai
da companhia de Paul Taylor em 1965 para formar sua própria companhia.
encontrar uma atitude parecida nos pintores expressionistas
abstratos: simultaneamente liberdade de reunião das partes
entre si e rigor na execução de cada uma delas.
Por volta dos anos 80, surgem novos coreógrafos
europeus, como: Jean-Claude Gallotta, Maguy Marin, François
Verret e Mathilde Monnier. Permitem-se tudo, exceto ser
enfadonhos ou se parecerem com os antecessores. Alguns
receberam uma formação técnica clássica ou contemporânea,
33
mas o momento não é para trabalhar a técnica, mas para criar
e, como autores, retomam a preocupação com a temática.
As criações coreográficas de Maguy Marin, a partir de
1983, variadas em termos formais, concentram-se no drama da
natureza humana10. Mathilde Monnier une improvisações de
dança e de música aos grandes temas gregos, em Antigone
(1993)11. Jean-Claude Gallotta inspira-se no desejo de
aventuras, relacionando-o às tribulações de Odisseu, como
confirma Ulysses12(1998), enquanto François Verret explora o
vasto tema masculino/feminino, em Fin et Début (1999).13
Todo esse movimento contemporâneo e pós-moderno
estabelece uma alteração que será vital para a Dança: pela
primeira vez, o bailarino participa diretamente do processo de
criação coreográfica - antes exclusividade dos coreógrafos através do uso da improvisação, um método conhecido do
teatro, mas estranho à dança. Assim, após treinar formas e
possibilidades corporais isentas de qualquer interpretação
dramática, e negar a narratividade e o envolvimento emocional
10
A preocupação de Maguy Marin com o drama da natureza humana a leva a coreografar uma série de peças com
grande variação temática. Seus dançarinos interagem igualmente com música, texto, acessórios, cenários, luzes e
figurinos. Para Marin a dança é drama narrativo contado por meio de elementos integrados.
11
Monnier procura, no íntimo do movimento moderno, razões que o liguem com a realidade contemporânea.
Atualmente sua pesquisa está dirigida à área psiquiátrica, onde estuda o fenômeno do autismo.
12
A partir de seqüências improvisadas, cria um simulacro do episódio entre Odisseu e Circe. Usa, em sua coreografia,
tanto quanto a dança, a palavra, o cinema, a música.
13
Fin et Début(1999) sobre o tema masculino/feminino, é uma estranha metamorfose de uma mulher em raposa.
dos 'pais da dança moderna', a dança contemporânea caminha
na direção da recuperação do pessoal e interno do homem e
suas relações com o mundo. A emoção e as histórias passam
então a ser contadas pelos corpos individuais.
E chega-se a Pina Bausch - um caso especial.
Bailarina e coreógrafa alemã, que desde 1973, vem
trabalhando à frente do Wuppertaler Tanztheater, através de um
34
discurso poético fragmentado, repleto de imagens oníricas,
induz o espectador a uma leitura pessoal da realidade
focalizada, realidade esta que passa a ser uma "recriação" e não
uma "interpretação" de modelos comportamentais conhecidos.
O que de mais sério ela fez foi requalificar o que se entendia,
até então, por expressividade. Pina Bausch construiu a
dramaturgia do expressionismo via dança. Exatamente por
isso, trouxe uma dificuldade suplementar para os que preferem
as classificações. Para lidar com o que ela criava, foi necessário
nomear uma categoria que a olhos pouco treinados pode
parecer um hibridismo, mas que, na realidade, representa uma
nova instauração: a dança-teatro ou tanztheater.
Pina Bausch vem de Kurt Jooss, o primeiro grande nome
a tentar misturar o balé clássico com a tradição expressionista.
Na sua dança está também o cinema de Walter Murnau, Fritz
Lang (O Vampiro de Düsseldorf, Metrópolis) e Robert Wiene (O
Gabinete do Dr. Caligari). Podemos encontrar também
influências do Dadaísmo do Cabaret Voltaire.
Pina Bausch vai levar tão adiante os ingredientes que
exploram a capacidade expressiva na dança, que se torna
impossível
defini-la
apenas
pela
análise
dos
passos
coreográficos. Quando se discute se o que ela faz é dança ou
teatro, depara-se com uma antiga e interminável polêmica que
se enraíza longe, esbarra-se em paradigmas conceituais que
vêm sendo reformulados há vinte séculos, tanto na dança,
quanto no teatro.
A questão é sempre a mesma: o que diferencia a dança
do teatro? A ênfase no movimento? Convenhamos que este
seja um conceito caduco por natureza, tendo em vista que a
elaboração de um personagem, no teatro dramático, exige
também um trabalho corporal intenso e ininterrupto. Sim,
mas e o uso da palavra? Também não se sustenta o
35
argumento, quando nos deparamos com as encenações do
Kinematic14, grupo americano, que não só usa a palavra em
cena, como monta seus textos.
É possível ainda que algum questionamento apareça na
área teatral, por exemplo, ao se observar o empenho na
dramaturgia de Beckett em privilegiar o 'corpo em frangalhos',
em decomposição. Sim, ele propõe uma dramaturgia em que o
corpo vai desaparecendo, paralisando - como nos personagens
de Fim de Jogo, Nag, Nell, velhos e doentes, talvez sem pernas,
que ficam em latas de lixo e Hamm, que é cego e permanece
sentado em uma cadeira, paralítico, ou o apagamento gradual
de corpo de Winnie, em Dias Felizes, onde a personagem vai
desaparecendo num monte de areia, enquanto seu corpo vai
perdendo a mobilidade, sobrando no final apenas a sua voz,
insistente e ininterrupta. Correto do ponto de vista de uma
análise e interpretação do texto. Porém, não é exatamente isso
que acontece, se a observação for dirigida ao trabalho do ator
em Beckett. Essa paralisia de partes do corpo dos personagens
beckettianos, exige, na concretude da encenação, um rigoroso
e peculiar trabalho corporal do ator. Paradoxalmente, a
proposta de anulação corporal da sua dramaturgia, traduz-se
O Kinematic, foi formado em 1980, nos EEUU, por Tamar Kotoske, Maria Lakis e Mary Richter, que se reuniram
com o objetivo de fazer experiências em coreografia, o principal interesse do Kinematic evoluiu rumo à criação de
histórias e ao relacionamento entre a dança e os textos verbais..
14
num fundamental apuro corporal do executante. Pois, sem
dúvida, é necessário um empenho físico respeitável para ficar,
como seus personagens, em latas de lixo, cadeiras de rodas ou
entalado em buracos, às vezes, por quase duas horas (por
espetáculo). A expressividade corporal torna-se minimalista. O
grande problema é que não existe movimento sem ação
interna. Por mais mecânico, físico que seja o movimento, ele
sempre provoca uma 'leitura' que lhe empresta um significado,
36
por vezes bastante interessante, pois já que não há indução
ficcional, cada espectador tem liberdade de entender,
conforme suas próprias experiências, o que as formas lhe
sugerem.
O que vai se percebendo é que os cânones radicais, que
compartimentam as artes, no nosso caso, a dança e o teatro,
vão sendo derrubados e a discussão, se o que se vê em Bausch
e em outros encenadores contemporâneos é dança ou teatro,
passa a ser uma questão retórica em agonia, polêmica
insustentável, principalmente, depois da criação do tanztheater.
Bausch fala de cenas fundadas no que “move as
pessoas”, referindo-se a emoções ou feridas psíquicas,
trajetórias privadas do corpo individual, que ela, fisicamente,
mostra ao público através de um processo de criação onde o
corpo se apresenta como núcleo dramático, fonte original de
suas histórias recordadas. Os assuntos de Bausch são as
pessoas na rua, na vida cotidiana, o modo como alguém
caminha ou como inclina seu pescoço, lhe conta algo sobre
como vive ou sobre as coisas que lhe aconteceram. O
ineditismo do processo de criação de Bausch, é que ele parte
de perguntas pessoais feitas a seus bailarinos. O resultado é a
construção de cenas baseadas nos impulsos mais profundos,
arquivados na memória corporal. Esse método, que já se
tornou clichê na criação da dança contemporânea, possibilita a
Pina Bausch um resultado teatral que nenhuma outra
companhia alcança. Ela é pioneira em uma estética da dança
que confronta a significação cultural e histórica de corpos. O
corpo é o texto de Bausch. Corpos para ela são documentos
com seus assuntos.
Essa dramaturgia nascente recoloca na ordem do dia uma
evidência: a dança é o movimento do corpo entregue ao seu
37
mistério, à sua humanidade. Fazer advir essa linguagem
interior, comum a todos e desconhecida de cada um, é a aposta
paradoxal dessa dramaturgia: fundada na significação do movimento,
no pensamento-movimento, que traduz narrações que se
superpõem, narrações de corpos técnicos, psicológicos,
afetivos, biográficos e culturais - corpos que enunciam e
refletem consciências.
Não se trata de uma maneira ou outra de representar os
mesmos conteúdos preexistentes como dança ou teatro. Pina
Bausch cria novas formas-conteúdos. Através de uma nova
sintaxe para o teatro e para a dança, ela inventa uma singular
modalidade de dramaturgia, uma dramaturgia escrita e inscrita
nos movimentos dos atores-bailarinos, também co-autores,
uma dramaturgia corporal, que rompe os limites tradicionais
entre o teatro e a dança, e aponta Pina Bausch como uma das
artistas mais inovadoras para o teatro e para a dança no século
XXI.
Nelken, de Pina Bausch
Foto:Jochen Viehoff
Referências bibliográficas:
BANES, Sally. Terpsichose in Sneakers. Boston: Houghton
Mifflin, 1980.
GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
GIL, José. Metamorfoses do corpo. 2ª ed. Lisboa: Relógio d’Água.
2007.
38
VACARINO, Elisa. Pina Bausch: Parlez-moi d’amour. Paris:
L’Arche Éditeur, 1995.
ZIPES, Jack. Fairy Tales and The Art of Subversion. New York:
Methuen, 1993.
DADOS DA PUBLICAÇÃO:
CALDEIRA, Solange. Dança: do movimento puro à dramaturgia corporal de Pina Bausch.
Mimus – Revista on-line de mímica e teatro físico. Salvador: Padma/Faculdade Social,
Ano 01, no. 2, julho, 2009, p. 23-38,. Disponível em: < www.mimus.com.br>. Acesso em
[data de acesso].

Documentos relacionados