Novela - Scarium

Transcrição

Novela - Scarium
Scarium Megazine
Ano I Nº 5
abril/maio de 2003
Edição especial para distribuição gratuíta
On Line
www.scarium.com.br
Editora Scarium.com
Scarium
MegaZine
abril/maio 2003
www.scarium.com.br
Editor:
Marco A. M. Bourguignon
Co-Editor:
Rogério Amaral de Vasconcellos
Jornalista Responsável:
Lara Chateaubriand
MTB: 18.232
Colaboradores desta edição:
Arcano
Cesar Silva
Larissa Redeker
Martha Argel
Miguel Angel Perez Corrêa
Ricardo Edgar Caceffo
Roberval Bacellos
Rogério A. de Vasconcellos
Endereço para
correspondência:
Rua Castorino Francisco
Nunes, 88 13/204 - Ilha do
Governador
Cep. 21.921-544
Rio de Janeiro - RJ
Tel. 2467-2805
Ficção Fantástica
Ano I Número 5
Editorial
Cartas
Balaio da Scarium
Entrevista
Banda Desenhada
Última Página
03
04
05
08
60
62
Artigo:
12 O Senhor dos Anéis
Ricardo Edgard Caceffo
60
Um Momento da FC
Cesar Silva
Mini-Conto:
15 O Plástico Bolha
Larissa Redeker
Contos:
37 Filha da Noite
Martha Argel
42 A Coruja
Arcano
Novela:
16
Legião
Roberval Barcellos
46 Coração de Metal
Miguel Angel Perez Corrêa
Concurso:
62 Resultados do Concurso
Ilustração:
Capa - Miguel Angel Perez Corrêa
Todos os trabalhos são de propriedade
de seus respectivos autores. As
afirmações feitas, explícita e
implicitamente, não representam a
opinião editorial desta revista.
Permissões de uso e cópia devem ser
obtidas diretamente com os autores.
Editorial
Esta edição encerra o 1º volume da
Scarium MegaZine. foram seis números com contos, HQs , entrevistas, artigos e novelas. Ficamos muito contente com a boa receptividade entre os fãs
de literatura fantástica. Continuamos
abertos para receber colaborações e
promover a divulgação dos trabalhos
realizados em prol da arte fantástica
brasileira. Ainda temos muito o que
melhorar, por isso precisamos de sua
ajuda e opinião.
Neste número estamos distribuindo,
como brinde aos assinantes, o Fanzine
em CD-Rom “Opinare Absilimis”, para
que todos possam conferir o excelente
trabalho realizado por Larissa Redeker.
Ela também é a autora do mini-conto
desta edição,”O Plástico Bolha”.
Convidamos também a escritora
Martha Argel para uma entrevista, buscando saber um pouco mais sobre o
seu livro “Relações de Sangue”. E poderemos conferir um conto inédito,
“Filha da Noite”, e descobrir a fascinante e misteriosa personagem Lucila.
Este conto é para quem tem bastante
coragem e sangue nas artérias, mas
cuidado que a vampira poderá sugá-lo
todo.
O outro conto desta edição, “A coruja”, é de um autor misterioso, intitulado Arcano. Aliás, a sua obra é autodenominada, gênero soturno.
Duas sensacionais novelas recheiam
as nossas páginas:
Uma é a do escritor Roberval Barcellos, “Legião”. O horror e o mistério
levados ao extremo. O que aconteceu
naquela praia para despertar a mais intrigante de todas as bestas? Qual a relação entre uma facção criminosa e a possessão demoníaca de Andréia?
A outra é “Coração de Metal”, do
escritor e ilustrador Miguel Angel Perez Corrêa, que também é o autor da
capa desta edição. Um verdadeiro resgate às soap operas que tanto mexeram com a nossa imaginação. Um cometa está preste a se chocar e destruir
o mundo de Dione, mas há uma forma
de salvar da morte milhares de pessoas.
Então por que o motivo de não quererem evitar o desastre? A história recheada de intriga política, espionagem e
aventura, sem esquecer de uma boa pitada de romantismo.
Ricardo Caceffo nos apresenta um artigo sobre “O Senhor dos Anéis” que vem
inspirando muitos contos fantásticos, principalmente os de fantasia, ele passa um
pente fino na obra de Tolkien.
Cesar Silva inaugura a coluna “Banda Desenhada” com o artigo “Um Momento da FC” sobre “As Aventuras de
Luke Arkwright” do autor britânico
Bryan Talbot. Uma das mais bem elaboradas HQs de História Alternativa
publicadas no Brasil.
Para encerrar, confira na “Última Página” os vencedores do I Concurso de
Contos da Scarium Megazine. Queremos parabenizar os vencedores e agradecer a todos os que enviaram seus trabalhos.
Até a próxima edição!!!
Editor
Miguel Angel Perez Corrêa
É o autor da capa desta edição. Argentino de Buenos Aires,
engenheiro elétrico e ilustrador, autor de “O dia da Caça”. Mantém
um site para divulgar seus trabalhos em www.aarca.kit.net.
3
Cartas
Fuga da realidade
Leio Ficção Científica desde os 9 anos
de idade, comecei com os livros de bolso
da Ediouro, depois passei para as edições mais "luxuosas" em tamanho maior, com papel melhor. Passei pelos mundos de Isaac Asimov, Sir Arthur Conan
Doyle, Edgar Rice Burroughs, Poul
Anderson, da Coleção Futurâmica portuguesa, Perry Rhodan e sua Space Opera, e quase todos os livros que você possa imaginar (Incluindo um livro de um
escritor chamado Lester Delrey). São tantos que nem me lembro mais os nomes.
Passei a seguir para o mundo sombrio
de Stephen King e seus pesadelos populares, descobri o mistério das histórias
de Edgar Alan Poe, as lendas populares
brasileiras, as européias e americanas
também. Então cansei e passei para o
mundo vermelho de Darkover com seu
eterno inverno, descrito por Marion
Zimmer Bradley. Conheci mundos e mundos, inclusive os descritos na extinta edição brasileira da revista Isaac Asimov
Magazine, que abriu muito os meus horizontes de leitor. Aprendi a ler e falar
inglês por causa da ficção científica. Escolhi minha profissão por ela (um dos
requisitos para ser astronauta) e comecei a escrever a sério por ela. Com a minha experiência de assinar o zine, entrei
em contato com um mundo que eu havia
dado como perdido. Estou redescobrindo
o mundo que encontrei aos nove anos. E
quer sber?: É muito bom estar de volta e
descobrir que este mundo fantástico ainda me leva a mundos e situações desconhecidas por mim. Se isto é uma fuga da
realidade, como alegam alguns, então vamos fugir!
Saudações,
Recebi a Scarium nº 1 e o que tenho a dizer é que essa publicação me
proporciona bastante diversão em
seus contos muito bem escritos. Gostei especialmente do mini-conto Share
Girl, altamente criativo e simbólico.
Também gostei da HQ Raquel e Cia.,
divertidíssimo. Espero que a Scarium
continue crescendo e publicando histórias de mais e mais talentos
Arcano
Rio de Janeiro - RJ
Oi,
Recebi a edição nº 4 e gostei muito
da HQ “Demon Seed”. O conto do
Fabian Rice não me agradou, mas
por outro lado, adorei o conto “Paralelas” do Sidemar, este autor tem
futuro. Gostaria que publicasse mais
texto de horror e principalmente contos de vampiros, pois sou um apaixonado pelo tema. Também alguns artigos sobre o tema também me interessaria.
Carlos Augusto Viriato
Belo Horizonte - MG
Nesta edição apresentamos um conto inédito de vampiros, escrito por
Martha Argel.
Cartas para esta seção:
Rua Castorino Francisco
Nunes, 88 Bl. 13/204
Cep: 21.921-544
Rio de Janeiro - RJ
[email protected]
Atenciosamente,
Claudio Bernardi Stringari
Jaraguá do Sul - SC
4
BALAIO DA SCARIUM
Novidades, Lançamentos, Opiniões
Rogério Amaral de Vasconcellos
Olá, mais uma vez!
Chegamos ao limiar de uma etapa. A
Scarium, a partir de seu próximo volume,
entrará em seu 2 o ano, com o compromisso de se aproximar ainda mais de seus leitores. Foram alguns prêmios conquistados, 37 autores publicados, a maioria dos
quais originários de nosso próprio país
(excetuando três portugueses), mostrando o nosso compromisso de divulgar a
literatura de ficção científica, horror, fantasia e mistério nacional.
Enquanto a edição de aniversário não
chega, com dois contos inéditos do premiado escritor Jorge Luiz Calife, verifique o resultado do I Concurso de Contos
& Ilustrações da Scarium, no final desta
edição. A qualidade de alguns dos trabalhos recebidos nos surpreendeu. Só lamentamos o fato de não terem acontecido inscrições, que permitissem a seleção de trabalhos, nas categorias fanfic e ilustrações.
Não deixem de ler no Balaio On Line
(link no final da coluna), os detalhes das
notas aqui publicadas e muitas outras que
não puderam entrar.
Prontos? Bem, agora é a minha deixa:
uma aventura no chamado “Turbilhão
Estelar”. Desta vez uma nave dos robôs
positrônicos-biológicos (pos-bis) caiu em
um planeta desconhecido, e um fenômeno
também desconhecido, um ser mitológico,
de nome Zeus, vêm mostrar porque esta
é a maior série de fc do mundo. Em “Na
Zona de Influência da Pirâmide”, de
Ernst Vlcek, episódio 679, traduzido por
Erica Saubermann, descobrimos porque
o buraco é mais embaixo. No mundo dos
artilheiros voadores, Castelo de Goshmo,
vimos um novo fator de poder. Tanto Zeus
quantos os humanos querem, precisam,
se apossar desse poder, e para chegar na
frente Perry Rhodan, sua esposa e amigos
enfrentam novos desafios. Mais duas
eletrizantes aventuras desse aclamado
ciclo chamado “O Concílio”. Para maiores
detalhes www.perry-rhodan.com.br ou
[email protected] ou (31)32242050. Vale a pena conferir!
Ela quer chupar... seu sangue– Foi lançado o filme independente, em formato
VHS, “Súcubus de Lilith”, dirigido por
José Salles, escrito e interpretado por
Marcos T. R. Almeida, e contando ainda
com a participação na equipe de produção dos conhecidos fanzineiros Laérçon
J. Santos (fanzines “Boca Suja” e
“Bestagem HQ B”), E. R. Corrêa
(“Desmodus Rotundus”) e José Nogueira (“Delírio Cotidiano”). Destaca-se o
folclórico mito da deusa vampira “Lilith”.
Quer ser um doador? Adquira a cópia
entrando em contato com José Salles no
seguinte endereço: Rua Monte Alegre 90/
134 - Perdizes - São Paulo/SP - CEP
Quer comprar um Deus? – A SSPG
lança mais um sucesso dessa série que é
tal qual seu mote: ruma ao infinito. É o
volume 15, trazendo os seguintes
episódios de Perry Rhodan: “ZeusdoAno
3460”, de William Voltz, narrando o
encontro com um deus, onde os humanos
são confrontados entre a ilusão e a
realidade. O episódio 678, traduzido por
Francis Petra Janssen, nos remete a mais
5
Balaio
05014-000, ou pelo fone (11)3872-4895,
[email protected] ou com Marcos T. R.
Almeida: Rua Angelo Antonio Dian, 58 Jd. Santa Lídia - Mauá/SP - CEP 09310620.
O Argos 2003 – Um dos prêmios mais
tradicionais da FC brasileira é o Prêmios
Argos, que vêm sendo lançado com
regularidade pelo Clube de Leitores de
Ficção Científica, após seu ressurgimento
pelas mãos do atual presidente (novamente
eleito) Gerson Lodi-Ribeiro.
O
regulamento, na íntegra, você pode checar
na Scarium Home Page, e o Balaio on
Line exibirá todo o cronograma de
votações, acompanhando de perto esse
importante reconhecimento para autores
e publicações em nossa língua. O processo
de indicações, para candidatos às três
categorias: Melhor Ficção, Melhor
Publicação e Melhor Periódico, já
começou. Apresentam suas cédulas de
indicação somente sócios ativos do CLFC,
encerrando o processo em 23 de Maio,
com a lista oficial dos indicados saindo no
final de Maio. Em 2003 o chamado
fandom aceitará votações dos fãs de
FC&F brasileiros e portugueses e inovará
ao abrir o processo ao público. Para
entrar em contato com a Comissão
Organizadora: [email protected] .
Sites de qualidade – O performer José
Neves convida-o a conhecer as novidades de seus sites multimídia. Philip K.
Dick, Alan Moore entre outros estão em
www.alanmooresenhordocaos.hpg.com.br
ou www.josecn.hpg.ig.com.br . Neves
também escreveu o artigo PROMETHEA
NO REINO DE THOT-HERMES: O
PODER DA PALAVRA. Uma boa pedida.
Surge uma nova opção – A “Via Literária” se propõe a oferecer uma agenda
de concursos (nacionais e estrangeiros),
Oficinas Literárias, Seção de contos e uma
vitrine, para aqueles autores que, corajosamente, financiaram a publicação de suas
obras, bastando que encaminhem a imagem da capa e dados principais, preço,
emails para adquirir, pois a Via Lite servirá também como livraria alternativa, um
canal entre o autor e seu público. Na sua
próxima ‘regata internáutica’ dê uma navegada em www.vialiteraria.impg.com.br
. Checaremos mais de perto isso e daremos mais detalhes futuramente.
Alerta – Recebemos o seguinte desabafo e achamos oportuno colocar a boca
no trombone: “Pessoal, vez por outra dá
para sentir por que, ao lidar com certas
artes no Brasil, como ficção e fantasia ou
quadrinhos e afins, você parece estar dando murro em ponta de faca. Quando se
abre uma porta, fecham-se duas. Uma
das piores coisas é lidar com o preconceito de certas “autoridades”, que se auto
arrogam saber o que é “bom” e o que é
“arte”. Vejam só esta notícia do
UniversoHq:
http://www.universohq.com/quadrinhos/n02042003_05.cfm .
Nós vimos e pedimos que todos se
solidarizem para que o MAG volte a
abrir.
Lailson convida – Disponível o
Regulamento para o V Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de
Pernambuco. Visite o site
www.reuben.org/lailson e fique por
dentro desse movimento importante
para o humor e atente para o prazo
de inscrição: 13 de Maio. Não fique
de fora. Queremos dar boas risadas.
Album de Família – Cesar Silva,
respeitado editor da Hiperespaço,
anuncia que colocou no ar um sonho
antigo. Finalmente está disponível o site
que sempre quis fazer: Todas as capas
do Hiperespaço com as minutas de
conteúdo, mais edições especiais,
6
Coleção Fantástica, Nova Coleção
Fantástica e um texto sobre os 20 anos
de história do zine. Tudo isso em
www.hiperhistoria.hpg.com.br.
Segundo Cesar “é simples, mas de
coração”. Esta coluna acha que tal
realização é também um marco, um
modo de contar, obra a obra,
sintetizando todo o movimento da FC
e Horror ocorrido em nosso país, onde
o Hiper virou uma parte importante
desta história. Para saber mais sobre o
realizador www.ceritocity.cjb.net .
A Arte de fazer bem feito – Assim
como destacaremos os zines recebidos,
não podemos deixar de fora o excelente trabalho feito pelo André Diniz em
www.nonaarte.com.br . Comprovei
vários dos produtos e com o novo visual, muito mais interativo, seu divertimento e informação estão garantidos.
Fanzines e outros zines – No Balaio
On Line daremos destaque às seguintes publicações que nos remeteram
releases: Megalon, Juvenatrix,
Hiperespaço, Notícias do Fim do Nada,
Informativo Perry Rhodan, Somnium,
Dragão Quântico, Papêra Uirande, entre outros.
É isso aí!!!
Mais uma página virada mas não a
última.
Obrigado por sua atenção e continue
escrevendo para esta coluna, manifestando suas opiniões, divulgando lançamentos e novidades em geral.
Rogério Amaral de Vasconcellos
[email protected]
[email protected]
http://www.scarium.hpg.com.br
7
Entrevista
Martha Argel
é uma contadora de história de mão cheia,
traz para junto de nós, em seu livro “Relações de
Sangue”, o mundo dos vampiros, e nos faz confundir o cotidiano com o mundo da fantasia.
Nesta entrevista ela fala um pouco do seu livro e
se diz mordida por vampiros.
“Dói e demora para sarar. Aliás, acho que até hoje
não sarou.”
SMZ -Você acredita em vampiros
(salvos os morcegos hematófagos e outros
bichos que vivem de chupar nosso
sangue)?
MA -Acredito nos vampiros – nas suas
diversas versões – como uma criação da
mente humana. Eles existem, como
símbolos, como metáfora. Fora isso, quem
sabe. Pode ser que eles estejam por aí,
ocultos nas sombras, tentando a todo custo
preservar o segredo de sua existência... É
melhor a gente não se meter com eles.
SMZ -Você é uma vampira?
MA - Na medida em que, como
qualquer ser humano, tenho necessidade
da atenção e do carinho das outras
pessoas, sim. Como todos nós.
SMZ -Já foi mordida por um(a)
vampiro(a)?
MA - Metaforicamente, sim. Dói e
demora para sarar. Aliás, acho que até hoje
não sarou.
SMZ -Alguns escritores passam um
pouco de si mesmos para os personagens;
você se identificaria mais com a Clara
ou com a Lucila?
MA - Sempre costumo dizer que meus
personagens, principalmente os femininos,
são uma mistura de coisas que sou com
coisas que gostaria de ser e coisas que
jamais seria. Alguns leitores que me
conhecem dizem que a Clara sou eu;
outros, principalmente ex-alunos, me
vêem na Lucila. A verdade é que ambas
têm um pouco de mim e muito de
invenção. Em geral me identifico mais com
a Clara, principalmente porquepreciso me
identificar com ela para poder narrar a
história em primeira pessoa de uma forma
que seja convincente para o leitor.
SMZ -Há quanto tempo vem
escrevendo sobre a vampira Lucila?
MA - A Lucila nasceu no final de 1999,
enquanto eu escrevia um conto que
precisava ter um monstro ao final. A
verdade é que ela nasceu por acaso.
Poderia ter sido qualquer ser fantástico e
cheguei a pensar em um alienígena, mas
numa dessas decisões instantâneas que às
vezes a gente toma, achei que uma
vampira cairia bem, e deu no que deu. De
lá para cá escrevi não só o Relações de
Sangue, mas vários dos contos que estão
no site da vampira Lucila (h ttp://
www.lucila.hpg.com.br) e quatro ou cinco
que permanecem inéditos.
SMZ -Você possui alguma superstição
quando escreve sobre vampiros e seres
além da nossa compreensão?
MA - Minha principal medida de
8
segurança é fazer back up de tudo o que
escrevo, o mais rápido possível. E fora o
pavor de me roubarem o computador ou
da casa pegar fogo, o que mais me
aterroriza quando escrevo é o bloqueio
de escritor. Tenho muita dificuldade para
escrever. Assim, meus rituais têm muito
mais a ver com concentração e busca de
inspiração do que com os dentuços
imortais.
Uso crucifixos quase diariamente
porque acho lindos; eles caem super-bem
com o visual gótico, que adoro. Tenho
uma coleção deles, todos de prata, e o
meu preferido é um que tem belos cristais
azuis, que o vendedor jurou que
eram Swarovski. Me
engana que eu gosto!
Mas para me livrar dos
filhos das trevas
propriamente ditos, uso
o mesmo método do
André Vianco: fecho o
livro ou aperto oejectdo
vídeo-cassete. Tiro e
queda.
SMZ -Você transfere
muito da sua formação
para “Relações de
Sangue”. O quanto isso
pode ajudar? Quanto
isso a prejudica ao criar
o enredo?
MA -Não faço idéia no quê a formação
acadêmica e científica pode prejudicar meu
texto, pois os leitores ainda não se
manifestaram a respeito. O fato é que,
consciente ou inconscientemente, ela
permeia cada etapa da elaboração de
minha ficção, desde o método quase
popperiano (teste e falseamento de
hipóteses, essas coisas) que uso para criar
a trama até a linguagem direta e clara que
me habituei a usar nos escritos técnicos.
Quanto ao aspecto mais específico da
informação científica que costumo incluir
em meio ao texto, em especial a biológica,
é algo consciente e muito planejado, quase
uma atitude política, ideológica. Em minha
opinião, a ciência “de verdade” e o método
científico estão virtualmente ausentes do
cotidiano e da cultura dos brasileiros;
inseri-los como elementos ativos em minha
ficção é uma forma de tentar aproximar a
atividade científica ao público leitor. Pode
chamar de um gesto corporativista no
sentido de divulgar a profissão de Biólogo.
Além disso, sei o quão raros são, aqui no
Brasil, os cientistas de verdade que
conseguem escrever ficção, ou mesmo
divulgação científica, sem parecer que
estão dando uma aula na
universidade; sei que
tenho jogo de cintura
suficiente para escapar
dessa armadilha, e não
tenho dúvidas de que essa
habilidade dá à minha
escrita um diferencial
importante dentro da
ficção nacional. Se esse
diferencial vai ou não
chamar a atenção da
grande mídia algum dia é
algo que não posso
prever, mas eu gosto dele,
e sei que muita gente que
respeito também gosta.
SMZ -O que a motivou a escrever
sobre seres fantásticos, como vampiros e
alienígenas?
MA -Vezes sem conta, tentei escrever
ficção sem uma vertente fantástica, e
descobri que não consigo. Assim, a
Fantasia e a Ficção Científica não é
propriamente uma escolha, mas um
caminho inevitável.
SMZ -Como se realiza o seu processo
criativo?
MA - Escrever, para mim, é um
9
Entrevista
verdadeiro suplício. Não sou daqueles
autores que têm uma idéia atrás da outra.
Quando elas surgem, tenho de agarrá-las
com unhas e dentes. Sempre tenho comigo
um caderno de anotações. Às vezes a idéia
vai imediatamente para o papel, e pode
até ser que o conto saia inteirinho, de uma
tacada. Em outras ocasiões, trabalho a
idéia na cabeça por dias, ou até meses, e
só quando tenho bem definidos o começo
e o fim é que passo tudo para o papel ou
para o computador.
Meus rituais estão sempre mudando e
não tenho um local fixo para escrever. Já
cheguei a escrever contos inteiros durante
uma viagem de metrô. Às vezes preciso
de sossego e música;
dependendo do clima da
cena que estou escrevendo
ouço missas fúnebres,
modas de viola, rock
pesado ou new age. Às
vezes pego minha
caderneta de anotações e
caminho dois quilômetros
até uma igreja onde já
escrevi boas seqüências e
contos. Às vezes deito no
sofá, durmo e quando
acordo já sei como
continuar o história; ou não
sei, e nesse caso durmo de
novo, e assim por diante...
SMZ -Como foi escrever “Relações de
Sangue”?
MA - O livro foi escrito no primeiro
semestre de 2000, por acidente. Na
verdade, eu nem pretendia escrever um
livro, sempre me considerei contista e não
romancista. Certo dia tive uma idéia boa,
mas muito simples: um vampiro de
programa, que encontra suas vítimas/
clientes pelos anúncios classificados, de
repente percebe que essas mulheres estão
sendo assassinadas e pede ajuda a Lucila
e a Clara para descobrir o assassino.
Comecei a escrever achando que seria um
conto, uma noveleta no máximo, e
enquanto escrevia ia criando os detalhes e
delineando os personagens. Quando já
tinha umas quarenta páginas percebi que
era mais que um texto curto: era o primeiro
livro de uma série fechada de três livros.
Levei um susto e quase desisti, pois nunca
me imaginara capaz de escrever um
romance.
A história foi-se desenrolando quase
automaticamente. A idéia nasceu pronta,
só precisei escrevê-la.
Desde 1997 venho reunindo
informações e estudando os vampiros na
ficção, e portanto posso
dizer quea pesquisa foi
exaustiva, embora não
exclusiva para o livro.
SMZ -O mais
interessante foi a
humanização
dos
personagens
em
“Relações de Sangue”,
sem cair nos recentes
besteirol publicados
sobre vampiros. Como
conseguiu sair do lugar
comum dos vampiros e
tentar uma inovação no
gênero, tornando os
personagens fantásticos
tão reais? Tão reais que penso: a Martha
é a Lucila ou é a Clara?
MA - Se eu responder “não sei” você
acredita? Não fiz uma tentativa consciente
de fugir ao lugar comum, e nem pensei,
durante a escrita, em inovar nada no
gênero vampiresco. Simplesmente escrevi,
da mesma forma como sempre escrevi a
ficção curta.
Durante muitos anos foi algo
inconsciente, mas parece que desde que
comecei a escrever ficção (1988) tenho
10
Scarium
falta algo nelas. Confesso: sou muito mais
a minha Lucila!
SMZ -Já tem em vista algum novo
romance?
MA - Sim! Estou na reta final de
Amores Perigosos, a continuação do
Relações de Sangue. Clara atrapalha a
caçada de um vampiro muito vingativo, e
Lucila tem de suar sangue para salvar o
pescoço de sua amiga mortal, sem deixar
de lado, claro, os cínicos joguinhos que
todo vampiro joga. Tanta gente se queixou
de que o Relações de Sangue era curto
demais que este segundo livro vai ser bem
mais extenso. Também vai ter sangue,
violência, sedução e o que as garotas
pediram, vampiros irresistíveis
contracenando com Clara e Lucila... Sem
esquecer, obviamente, do humor mordaz
da Clara. Infelizmente ainda não tenho
qualquer indicação de que a editora Novo
Século esteja interessada no Amores
Perigosos. Suponho que a uma eventual
publicação dependa do êxito de vendas
do Relações.
Para terminar, queria agradecer ao
Marco Bourguignon e a Scarium pela
divulgação do livro e de minha atividade
literária, e dar meus sinceros parabéfs
pelo trabalho que têm desenvolvido
dentro da Fantasia e Ficção Científica
brasileiras.
tendência a situar os personagens
fantásticos em cenários muito corriqueiros
e cotidianos, que o leitor acaba
reconhecendo em seu dia-a-dia. Pelo
menos é o que várias pessoas disseram ao
analisar textos meus (até mesmo um
psicanalista!). No Relações de Sangue fiz
o mesmo, dessa vez com os vampiros.
SMZ -Por que é fácil se “apaixonar”
pela Lucila, apesar da sua forma meio
enigmática e terrível de ser?
MA - Posso responder “não sei” de
novo? Alguns leitores se apaixonaram
perdidamente pela Lucila logo no primeiro
conto, em que ela aparece só ao final. Eu
mesma fiquei fascinada por ela nesse conto
(e por isso escrevi oRelações de Sangue),
sem entender bem porquê. Ainda não
entendo bem qual a atração que a Lucila
exerce, tanto sobre o público masculino
quanto sobre o feminino.
Um dos fatores que talvez tenha algum
peso é a escassez de vampiras memoráveis
na ficção. Como referências de vampiros
homens, todo mundo pode citar Drácula,
Lestat, Louis e Nosferatu, pelo menos. Em
se tratando de mulheres, a pessoa tem de
conhecer um pouco mais a fundo alguma
forma de arte se quiser citar algum nome.
De tudo o que já vi em termos de livros,
filmes e seriados de tevê, as vampiras que
me parecem mais interessantes são
Carmilla (do conto de Sheridan Le Fanu,
1872) e Marie (do filme Inocente
Mordida), mas ainda assim ainda acho que
Não deixe de ler na página 38,
“A Filha da Noite”, um conto
inédito da autora.
Scarium
HOME PAGE
AS ÚLTIMAS NOVIDADES
DO
MUNDO FANTÁSTICO
www.scarium.hpg.com.br
11
O Senhor dos Anéis
Ricardo Edgard Caceffo
“Três anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores Anões em seus rochosos corredores
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu Escuro Trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras de deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontra-los
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisiona-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam. “
Poucos livros em toda a história humana conseguiram marcar e influenciar (e por
que não dizer mudar) a vida de tantas pessoas e gerações. O Senhor dos Anéis é
um desses poucos livros, sendo eleito o
Livro do Milênio pela livraria
Amazon.com e ficando em posição de
destaque numa pesquisa de opinião semelhante, feita na Inglaterra, onde perde em
popularidade apenas para a Bíblia cristã.
Mas o que torna o Senhor dos Anéis
um livro tão especial? Tudo remonta da
primeira metade do século, quando o inglês J.R.R. Tolkien começou a escrever
seu primeiro livro: “O Hobbit”. O livro é
um tanto quanto infantil, já que Tolkien o
escreveu basicamente para seus quatro filhos, mas mesmo assim é muito importante pois nele é desenvolvida a base do
que viria ser sua mais importante obra:
“O Senhor dos Anéis”.
O livro começa descrevendo uma vila
de hobbits, chamada de Condado.Os
hobbits são um povo discreto mas muito
tranqüilo, sua estatura varia de 60 cm a
1,20 metros, amam a paz e não desprezam uma boa refeição (fazem até 6 por
dia), embora quando necessário consigam
sobreviver bravamente as mais variadas
intempéries, como a ausência de água ,
comida e abrigo por muito tempo.
Um típico hobbit, chamado Bilbo
Bolseiro, vivia tranqüilamente sua pacata
(mas feliz) vida no Condado quando um
dia foi visitado inesperadamente por
Gandalf , o Cinzento. Gandalf (um dos
mais poderosos magos da Terra Média) o
havia escolhido para fazer parte de uma
comitiva de anões que iria até a Montanha Solitária recuperar o tesouro que havia sido tomado há muito tempo por um
cruel Dragão: Smaug. O papel de Bilbo
seria o de “ladrão” já que ele conseguia se
esgueirar fácil e silenciosamente nas sombras sem ser notado. Depois de muito relutar Bilbo aceitou participar, muito mais
pela aventura do que pela recompensa.
Não cabe aqui contar como foi sua
aventura com os anões, na verdade isso
nem seria citado na história da Terra Média se não fosse um pequeno detalhe, na
verdade um pequeno detalhe em forma
de anel: Aconteceu de Bilbo se perder
nas entranhas de uma montanha habitada
por criaturas sombrias: os Goblins (ou
Orcs, como os Hobbits os chamam).
Tateando o chão, ele encontrou um pequeno anel dourado, que pertencia a uma
desprezível e repugnante criatura, conhecida como Gollum.
O que nem Bilbo e Gollum sabiam era
que o Anel encontrado era o Um Anel, o
mais poderoso e importante Anel de Poder, confeccionado pelo próprio Senhor
12
do Escuro: Sauron. O Anel estava perdido desde o final da Segunda Era, quando
Sauron foi derrotado (mas não destruído)
por Gil-galad e Elendil, reis dos povos
antigos dos Homens e dos Elfos. Isildur,
filho de Elendil, cortou o Anel da mão de
Sauron e tomou-o para si (ao invés de
destruí-lo, como deveria ter feito). Mas o
Anel não permaneceu muito tempo com
Isildur, já que ele e seus homens foram
surpreendidos numa emboscada por Orcs
e o Anel perdido nas águas profundas do
Grande Rio até ser encontrado muito tempo depois por Gollum.
A história do Senhor dos Anéis se passa na Terceira Era da Terra Média e conta
um evento que ficou conhecido como a
“Guerra do Anel”. A Grande Sombra novamente se levanta e Sauron retorna para
sua Torre Negra, em Mordor. Para fortalecer suas forças e destruir seus inimigos
ele precisa retomar o Um Anel, onde se
encontra grande parte de seu escuro e antigo poder.
Mas enquanto Sauron ressurgia,
Gandalf, sabendo da procedência do Anel,
enviou Frodo (sobrinho de Bilbo e novo
portador do Anel) para Valfenda, lar de
Elrond, um dos últimos Senhores Elfos
da Terra Média. No Conselho de Elrond
foi decidido que a melhor alternativa seria
destruir o Anel, jogando-o nas Fendas da
Perdição, no próprio coração das trevas:
Mordor.
Assim uma comitiva é formada, composta por Frodo e seus companheiros que
o acompanharam na viagem desde o Condado: Meriadoque Brandebuque, Peregrin
Tûk e Samwise. Também são escolhidos
representantes de várias raças e povos:
Gimli (representante dos Anões), Legolas
(dos Elfos) e Boromir (dos Humanos). O
próprio Gandalf acompanha a comitiva,
seguido também por Aragorn, o
“Guardião das Terras Ermas”,descendente
e herdeiro de Isildur.
Toda a fascinante “Guerra do Anel” é
vista pela ótica do povo Hobbit. Os
Hobbits sempre viveram
isolados no Condado, nunca se preMas o
ocupando e muitas
vezes que torna o
desprezando
Senhor dos
os acontecimentos do Anéis um livro
mundo à sua
tão especial?
volta. Mas
isso mudou
com o achado
do Anel, que colocou não só o Condado em evidência nos principais mapas da Terra Média como também
despertou a atenção do Senhor do Escuro para esse povo que, em sua maioria,
prefere uma boa refeição e uma noite
quente ao lado da lareira do que a fome, o
frio e os perigos que uma viagem rumo
ao desconhecido e a povos e reinos distantes proporciona.
Mas não apenas os hobbits merecem
destaque na Terra Média, um dos vários
continentes do fantástico mundo criado
por Tolkien. Na verdade um dos principais fascínios que atraem as pessoas ao
Senhor dos Anéis é justamente a variedade, cultura própria e história dos povos e
raças descritos lá. A mitologia também é
muito rica, tendo Tolkien dedicado um livro especial a ela: o “Silmarillion”.
Por ter sido professor de Anglo-Saxão
em Oxford e ser amante da lingüística,
Tolkien acabou desenvolvendo alfabetos
e idiomas próprios para algumas raças, especialmente os Elfos. Cada povo possui
uma língua própria, mas todos os povos
falam uma língua comum: o “Westron”.
O grau de meticulosidade do autor chega
a ponto de, nos apêndices do Senhor dos
Anéis, explicar as regras gramaticais e fonéticas dos idiomas por ele criados, para
facilitar a compreensão (e possível utilização) delas pelos leitores. Isso é necessário pois muitos nomes de personagens
e localidades também são mencionados
13
Entrevista
em outros idiomas,
logo a compreensão destes
Na
ajuda muito
verdade
quando se
embora a obra
quer ende Tolkien
tender o
pareça ser à
verdadeiprimeira vista
ro signifiuma leitura muito
cado dos
grande e cansatipersonava, quando se
gens e micomeça a ler temtos que
se a impressão de
cercam e
que as páginas
povoamo
passam depressa
mundo de
e de que o
Tolkien.
tempo não
A literatura
existe
Tolkieniana é
mais.
tão cativante que
vários artistas e grupos
musicais dedicam e baseiam suas obras
em Tolkien. A banda Blind Guardian é
um desses exemplos, e seu álbum “The
Night Fall in the Middle Earth” é um ícone
desse fenômeno, visto que reproduz com
bastante fidelidade histórias, personagens
e acontecimentos da Terra Média, sendo
uma parada obrigatória para quem lê e
aprecia a obra de Tolkien.
A clássica música “Stairway to Heaven”
também se inspira no Senhor dos Anéis.
Embora exista um certo contra-censo em
relação a isso, talvez até pelo fato de a
letra da música ser um pouco confusa,
quem leu o livro consegue identificar facilmente vários versos que se identificam
com o livro. Nas palavras de Jimmy Page,
em entrevista concedida em 1989 para a
jornalista Mirafried: “Stairway é uma balada de melodia triste, como a história de
renúncia do amor de Aragorn e Arwen.
Além disso, enquanto eu dedilhava eu
pensava nas baladas cujas letras estão disponíveis em O Senhor dos Anéis”.
Além dessa influência musical, temos
que os povos e raças de Tolkien aparecem em muitos jogos e desenhos, embo-
ra geralmente as pessoas não saibam de
que se trata dele. Quem nunca assistiu ao
clássico desenho Caverna do Dragão? Ele
foi produzido para popularizar o RPG
(jogo de interpretação de papéis) de mesmo nome, que por sua vez possui muitos
elementos retirados da obra de Tolkien.
Um dos RPGs mais jogados atualmente
no Brasil é o D&D (Dungeon and
Dragons), um jogo que se utiliza das raças de Tolkien (Elfos, Anões e Hobbits –
esses chamados lá de Halflings, devido a
questões de conflitos de direitos autorais),
possuindo também muitos personagens
baseados no livro, como o mago Elmister,
que seria o equivalente a Gandalf. O próprio mundo onde o jogo se passa é uma
imagem espelhada (embora infelizmente
muitas vezes distorcida) da Terra Média
de Tolkien
Na verdade embora a obra de Tolkien
pareça ser à primeira vista uma leitura
muito grande e cansativa, quando se começa a ler tem-se a impressão de que as
páginas passam depressa e de que o tempo não existe mais. A ambientação é tão
realista e a história tão envolvente que o
leitor se sente realmente no mundo criado
por Tolkien, vivenciando cada situação e
drama de cada personagem. A ficção nesse
momento se torna muito mais real do que
a própria realidade, e o mundo de Tolkien
muito mais real que o nosso próprio mundo. É nesse momento que o leitor entende o que Tolkien propôs ao criar “O Senhor dos Anéis”, e se entristece por sua
obra ser tão curta.
Ricardo Edgard Caceffo escreve para
revistas e fanzines sobre literatura, ficção
científica e fantástica. Participa também
do projeto SLEV.
Email: [email protected]
Site: http://www.ricardocaceffo.kit.net
14
Mini-Conto
O Plástico-bolha
Larissa Redeker
Savan interrompeu suas anotações quando ouviu alguns estalos. um plec-plec seguido
por outro plec-plec-plec. Tinha a certeza de que conhecia aquele som; era inconfundível.
Esperou alguns segundos e, diante do silêncio que se seguiu, voltou-se para o monitor à
sua frente.
Mal recomeçou a digitar, ouviu novamente: plec-plec. Agora os estalos se seguiam
sem pausa e estavam bem próximos. Voltou-se e encontrou seu assistente junto à porta,
com uma longa peça de plástico transparente nas mãos.
- O que é isso? – perguntou, um tanto secamente.
- Plástico-bolha – respondeu o rapaz. – Por que? Nunca viu?
Savan estreitou os olhos. Jordi gostava de fazer seus superiores perderem a paciência.
- Sei muito bem o que é um plástico-bolha. Onde o conseguiu?
- Com o César.
- Aquele muambeiro – resmungou Savan. Mas no fundo tinha que admitir que, mesmo
sendo conhecido por adorar encrencas, César era muito útil para a Ordem. – Tudo bem
– continuou. – Mas vá brincar com esse negócio em outro lugar!
Jordi afastou-se com um sorriso maroto nos lábios. O velho mago tentou continuar
com suas anotações. Em poucos segundos o plec-plec das bolhas de plástico sendo
estouradas voltou a encher a sala.
- Jordi, o que foi que eu falei?!! – berrou Savan. E em resposta veio o silêncio.
Que não durou muito. O plec-plec não acabava. A coisa que Savan mais odiava era
trabalhar com um barulho insistente como aquele. Tão insistente quanto os grilos que
faziam sinfonia no jardim. Mas os grilos ele perdoava. Já Jordi era outra história.
- Se não parar com isso, vou dar um nó em seus dedos!
Jordi ignorou a ameaça pois sabia que aquele era um feitiço que Savan não sabia fazer.
Assim como também não se deu conta de que o velho mago conhecia muitas outras
magias.
Em sua sala, Savan apenas fechou os olhos, escolheu um bom feitiço e murmurou
algumas palavras. Depois abriu os olhos e aguardou, com um sorriso vitorioso nos
lábios finos.
Jordi soltou um berro quando estourou uma bolha de dela saíram vespas. No mesmo
instante largou o plástico e desatou a correr por um longo corredor, seguido pelos
insetos.
Quando Jordi já estava longe, Savan saiu de sua sala e encontrou o pedaço de plástico
jogado no chão. Apanhou-o e voltou para frente de seu computador. Olhou atentamente
para o texto que estivera escrevendo e, enquanto tentava reencontrar a linha de pensamento
perdida por causa de Jordi, seus dedos começaram a estourar as pequenas bolhas de ar
do plástico.
O plec-plec estava de volta, só que agora era mais divertido.
Larissa Redeker é programadora e webdesigner, atualmente investindo na área
de multimídia, na arte de escrever ficção científica e tentando criar quadrinhos
no estilo mangá.
15
Terror
Legião
Roberval Barcelos
“...8 Porque Jesus lhe dizia: Espírito imundo, sai desse homem. 9 E
perguntou-lhe: Que nome é o teu? Ao que ele respondeu: Legião é o meu
nome, porque somos muitos...”
O Evangelho Segundo São Marcos.
Na tela da televisão instalada naquele escritório, via-se um rapaz encostado num
muro pichado. Ele vestia uma camiseta preta, bem justa, realçando seus bíceps. Ele,
com as mãos nos bolsos da calça, dizia:
— ...Nossa Lei é nenhuma Lei. Temos apenas o nosso código de honra que desonraria seus valores hipócritas. Somos a prova viva de que sua moral é letra morta. Não
precisamos de ideologias vis ou justificativas vãs. Somos o que somos pela simples
razão de existir e nossa violência não encontra explicações nessa sua sociologia da
demência porque aqui ninguém é motivado pelos traumas do passado ou por uma
infância brutalizada. Violência para nós é uma cruzada que só quando alguém cruza em
nosso caminho ela é mostrada e não tente encontrar refúgio em suas orações, pois
somos as suas aberrações. Nunca nos procure em seus sonhos, pois estamos imersos
nos seus piores pesadelos. Meu nome é Legião, porque sou parte de um todo invencível.
Uma mulher loira desligou a TV e indagou ao homem de terno que estava sentado
atrás da mesa:
— Gostou?
— Adorei! Como você conseguiu entrevistar um desses dementes e sair incólume?
Lembra da Amanda? Ela foi morta ao tentar entrevistá-los.
A mulher riu e respondeu:
— Ela era pouco profissional. Tentou uma abordagem direta em vez de buscar
contatos, mas eu não: fui comendo pelas beiradas até chegar a eles.
— Carina, você é maravilhosa. Eu deveria estar louco quando dei a matéria para
Amanda.
— Amanda é passado. O senhor vai pôr o meu trabalho no ar?
— É claro! — Gritou o chefe, — faremos as edições de praxe e vamos exibir como
documentário em três episódios. Só quero saber uma coisa: por que esse nome, Legião?
— Isso eu não sei nem encontrei ninguém que me desse uma explicação convincente. Eles devem ter escolhido ao acaso.
— Vamos precisar especular um motivo.
Pensaram em vários. Depois despediram-se e Carina saiu, contente.
Pegou seu carro e foi dirigindo feliz da vida.
Carina sorria enquanto dirigia seu carro esporte último modelo. Presunçosa, pensava se não ganharia o Pulitzer, mas ficava humilde ao agradecer a Deus pela morte de sua
16
Scarium
antecessora, numa infame blasfêmia.
Em verdade, fora Carina quem tivera a idéia de entrevistar a quadrilha conhecida por
‘Legião’, que aterroriza os cariocas com sua violência ilógica e aleatória. Mas Amanda,
— que Deus a tenha... nos quintos do inferno! — roubou-lhe a idéia. Carina foi até o
Diretor de Jornalismo, protestou ao dizer que o projeto era dela, mas ainda assim a
reportagem coube a Amanda.
No dia seguinte, uma notícia exclusiva na TV bateu todos os recordes de audiência:
A repórter Amanda Goes, rosto conhecido dos telespectadores, foi encontrada morta
num local ermo próximo à Avenida Ayrton Senna. A audiência teve picos com a
exibição do corpo nu da pobre repórter com marcas de torturas e violência sexual.
A polícia prendeu vários integrantes da quadrilha, que confessaram o crime, dando
detalhes do suplício ao qual a incauta Amanda foi submetida. Dias depois, a polícia
apreendeu uma fita de vídeo que mostrava todo crime, filmado pelos próprios algozes
com o equipamento roubado da equipe. Cópias desse macabro filme ainda eram vendidas por uma fortuna no mercado negro do sexo.
Que tipo de mente doentia pagaria um preço tão alto só para assistir a cenas reais de
pessoas sendo brutalmente seviciadas e assassinadas?
Carina, precavida, agiu diferente, conforme ela mesma explicava:
— Fui atrás de contatos e só aceitei gravar as entrevistas em locais escolhidos por
mim e com forte apoio.
O resultado foi um ótimo documentário sobre a mais violenta quadrilha de todos os
tempos. Houve quem dissesse que eles se inspiraram em James Masone quem dissesse
que eles viam a vida como uma negação à realidade consumista, quando em verdade o
que havia ali era somente violência. Outros diziam que Legião foi uma resposta dos
oprimidos à opressão, embora as principais vítimas daqueles ‘oprimidos’ fossem outros
oprimidos.
E eles seguem num ciclo infindável de atrocidades que, apesar de toda ação policial,
continua a crescer.
Carina chegou ao seu apartamento e foi logo tomar um banho. Solteira, jovem e
ambiciosa, aquele documentário será o divisor de águas em sua vida.
* * *
Numa igreja no Rio, seis Padres rodeavam uma bela mulher de cabelos lisos ruivos e
olhos verdes. Ela, sentada numa cadeira e de olhos arregalados, parecia confusa enquanto um dos Padres gritava:
— Esta mulher é batizada e sua alma pertence a Deus! Saia já desse corpo!
Da mulher saiu um coro de vozes masculinas que ecoou pela igreja:
— Desista, servo do cordeiro. Tu não pertences a esta época, senão saberias que
todas as almas estão perdidas para Deus.
O Padre, suando, persistia:
— Criatura das trevas! Abandone esse corpo em nome de Deus!
— Divindade errada! Nem tu nem o teu Cristo podem me derrotar. Eu sou Legião
e voltamos para reclamar o que é nosso!
O Padre, já cansado, olhou para os demais e disse:
— Temos que participar isso ao Bispo porque se esse for mesmo Legião vamos
precisar de toda ajuda possível.
Um homem moreno apareceu e foi logo interpelado pelo Padre:
17
Novela
— Você é o namorado dela?
— Sim, Padre. Meu nome é Silvio e namoro a Andréa há seis meses.
— Foi decisão sua trazê-la para cá?
— Sim, Padre Vicente. Os psicólogos deram várias explicações quanto ao estado
dela, mas nenhum foi capaz de explicar como ela consegue falar reproduzindo tantas
vozes de homem.
— Ela passou por um trauma, não foi?
— Sim, ela foi a única sobrevivente de uma chacina pavorosa que aconteceu numa
casa de praia ano passado. Os bandidos da tal Legião invadiram a casa, fizeram barbaridades e depois mataram todos, menos Andréa que fingiu-se de morta. Como essa
coisa diz chamar-se Legião, os psicólogos enxergaram uma correlação.
O Padre olhou para a moça, que havia desmaiado, e disse:
— Acredite: há mesmo um demônio nesta jovem.
— E o que devo fazer?
— Nada. Apenas aguarde pelo exorcismo a ser marcado pelo Bispo.
Aos poucos a jovem recobrava a consciência. Silvio amparou-a e levou-a para o
carro. Enquanto manobrava para sair do estacionamento, deparou-se com dois adolescentes que usavam camisetas com o ‘L’ vermelho pintado. Ele não se conteve:
— Vocês dois são bandidos por acaso?
Os dois se entreolharam.
— Sai fora! Somos estudantes!
— Então parem de fingir que são bandidos e tirem já essa camisa!
Os dois riram:
— Qualé, Mané? Tá com medo de Legião?
Silvio já ia descer do carro, mas Andréa o conteve:
— Deixa para lá, meu bem. São adolescentes tolos que acham que agridem aos
outros exaltando aqueles canalhas.
— Acham, não, Andréa! Eles conseguem! Devia haver uma lei proibindo isso ou o
pai desses babacas dessem uma boa surra neles.
— E eles usariam escondidos. Violência só repudia mesmo quem já sofreu.
Silvio manobrou e saiu com o carro.
— Você é mesmo muito especial, Andréa — disse Silvio, — eu não aturaria isso,
mas quero que saiba que nunca fui vítima de violência alguma e a repudio totalmente.
Andréa encostou a cabeça no ombro dele e olhava seu rosto pelo espelho retrovisor
do carro. Ele era o primeiro namorado digno de assim ser chamado que ela conheceu
somente aos vinte e três anos. Antes, foram apenas “caras”.
— Acho que de nós dois você que é especial — ela disse.
* * *
Dias depois, Carina estava num bar com os amigos assistindo ao primeiro capítulo do
seu documentário. A todo instante ela era parabenizada pelos presentes e por colegas
que foram até lá somente para homenageá-la.
No telão da TV do bar, numa parte do documentário, um homem de máscara dizia:
— ...Legião é isso aí: sexo, violência, drogas, violência, curtição, violência...
A repórter Carina perguntou-lhe:
— É só nisso no que pensa? E os estudos? E o seu futuro?
— Eu penso no que todo mundo pensa. Enquanto sujeitos metidos a certinhos
18
Scarium
ficam se masturbando imaginando estuprar a vizinha gostosa ou sodomizar uma família
inteira, nós botamos em prática. Somos tudo aquilo que vocês gostariam de ser. Não
me venha com esse papo de futuro porque ele morreu, aliás não morreu, mas foi abortado, não deixaram ele nascer, por isso matamos a esperança. Você fica por aí sonhando
porque acordada é tudo um pesadelo. Nós somos o pesadelo. Conosco suas leis não
pegam, só a polícia, mas quase sempre é tarde demais.
Numa escola municipal, dois meninos que usavam a camiseta da Legião por debaixo
do uniforme, eram entrevistados por Carina.
— Vocês dois não me parecem da quadrilha — provocou ela.
— Nem somos!
— Então porque usam a camisa deles?
— Porque ninguém se mete com quem as usa. Até o meu pai parou de me bater
achando que eu fosse Legião.
— Eu não — disse o outro garoto, — uso para tirar onda. Eu vou num baile com
uma camisa de Legião e as minas ficam doidinhas. Quem usa tem fama de macho.
— Você acha certo matar? — Indagou Carina.
— Não!
— Já atirou antes?
— Nem sei usar armas!
— Mas gostaria de ter uma?
O menino sorriu:
— Ah! Eu queria ter uma sim.
No bar, um colega de Carina, rico mas que faz questão de vestir-se mal para parecer
um intelectual desprendido dos valores materiais, aproximou-se dela com aquele ar
arrogante de quem despreza o sucesso:
— Seu trabalho foi muito corajoso.
— Obrigada!
— Mas acho que você pegou pesado com os estudantes pobres. Por que não
entrevistou os classe média?
Num sorriso constrangedor, Carina respondeu:
— Porque eles não seriam tão burros em admitir seu lado bandido.
E os dois riram.
No telão, no final do capítulo, um rapaz da quadrilha proclamava:
— Legião é uma proposta de vida. Dizemos à sociedade podre que somos o lodo no
qual você terminará de afundar. Meu nome é Legião!
O garçom que atendia Carina, comentou enquanto olhava para o telão:
— Pra mim só matando! Deviam chamar o Exército e metralhar esses desgraçados.
Assim que o garçom saiu de perto, o pretenso intelectual indagou:
— Concorda com ele?
Carina, que era só alegria, respondeu:
— Quer saber duma coisa? Agora que já consegui a entrevista podem matar todos
que eu vou morrer... de rir.
* * *
— Minha filha, Padre não resolve nada! — Dizia a empregada Sonia a Andréa, que
assistia a um programa de TV com Silvio.
— Você tem que ir é lá na minha igreja — insistiu Sonia. — Só ontem o Pastor
19
Novela
exorcizou cinco demônios. Ele chama pelo demônio, ele vem, leva um sabão, fica de
joelhos e sai. Mas tem que ter fé.
Silvio ouvia espantado.
— Cinco demônios numa só noite? O que ele faz? Exorcismo no atacado?
Andréa sorriu e disse a Sonia:
— Obrigada por querer me ajudar, mas confio na Igreja.
A empregada fez cara de quem perdeu tempo e retrucou:
— E eu confio em Jesus. Dá licença que vou ver se o pernil tá pronto.
E voltou para cozinha. Silvio segurou a mão de Andréa e disse, como se pudesse
prometer o impossível:
— Nós vamos derrotar isso, seja demônio ou trauma.
— É claro que vamos, querido.
Na TV, o entrevistador perguntava a um político:
— O senhor não acha melhor a pena de morte?
— Com as deficiências do nosso sistema judiciário e a corrupção existente na polícia,
a instituição da pena capital poderia vitimar inocentes.
— Mas Deputado, e os membros dessa tal de Legião? Eles vão continuar agindo
impunemente enquanto pessoas honestas são assassinadas? No caso específico deles
não deveria haver pena de morte?
— A adoção da pena capital não resolveria. Precisamos é de mais investimentos na
área social. Matar nos igualaria a eles.
— E não matá-los seria igualar muitos outros aos mortos!
— A polícia prendeu mais de cem.
— Mas deve haver uns duzentos soltos por aí. Escute bem, Deputado: esses criminosos se reproduzem como piranhas. Se alguns deles fossem executados não daria para
inibir a formação de mais Legião?
— Creio que não.
— Então o Estado está capitulando, assumindo que não pode detê-los.
— Eu não disse isso.
— E os grupos de Funk, Deputado? Alguns fizeram músicas exaltando Legião.
— Alguns não, repórter, só um fez. E o que aconteceu? Tiraram o CD deles de
circulação e prenderam o líder da banda. Hoje, o CD deles vende centenas por dia no
mercado negro e o nome da banda — Legionários do Crime — virou grife. Quero
também deixar claro que a esmagadora maioria das bandas de Funk fazem músicas
contra a violência e algumas tiveram até coragem de compor letras tentando mostrar a
insensatez das ações de Legião.
E a entrevista prosseguiu com o Deputado procurando dar explicações e o entrevistador tentando aparecer, portando-se como indignado pela violência alheia e defendendo a pena de morte. Era o indignado contra o inocente útil
— Esse repórter é um aproveitador — disse Silvio.
— Também acho — concordou Andréa, — lembra-se quando ele dizia que subia
morros para prender bandidos?
Assistiram TV por mais um tempo. Silvio sentiu que Andréa apertava-lhe a mão
cada vez com mais força. Apertou, apertou e...
— Andréa, o que está acontecendo? — a mão começava a doer.
Ao olhar para o lado viu-a tremendo e de olhos arregalados. Ele tentou soltar sua
20
Scarium
mão mas foi inútil e tinha medo de machucá-la tentando.
— Andréa! Pare com isso!
Ela virou-se e disse com várias vozes masculinas:
— Meu nome é Legião! Como podes almejar derrotar-me se tanto ódio te cerca?
Eu sou bem-vindo nesta Era.
— Desgraçado! — Silvio xingou, enquanto tentava, com cuidado, soltar a mão. —
Você está destruindo a mulher que eu amo! Saia já daí!
Depois de uma sinistra gargalhada, a coisa disse:
— Pobre ignorante! Vedes tanto ódio à volta que entendes qualquer alívio como
prova de amor. Há dois mil anos pensaram que haviam me expulsado para sempre,
mas atendi ao chamado da humanidade e retornei. Meu nome é Legião.
Sonia, a empregada, voltou à sala trazendo a carne de porco para o jantar. Ao ver
Andréa possuída, deixou a comida cair no chão, o que chamou a atenção da coisa. Ela
correu na direção do casal, segurou a cabeça de Andréa e ordenou, com a mão na testa
dela:
— Demônio dos infernos! Saia já daí em nome de Jesus!
A coisa parou de tremer, olhou para a comida no chão e disse:
— Criatura ignóbil. Saibas que evocaste um nome em vão.
E desmaiou. Andréa recobrou-se aos poucos.
Sonia, com ares de vencedora, esfregava as mãos e dizia:
— Não falei? Sangue de Jesus tem poder.
Assim que Andréa voltou ao normal, Silvio sugeriu:
— Meu amor, acho que devemos ir na igreja da Sonia.
Andréa assentiu.
* * *
Naquela noite estrelada, um caminhão chegou a um galpão abandonado na periferia
do Rio, do qual desceram dois policiais militares que fizeram sinal com uma lanterna. De
repente, como se fossem espectros da noite, surgiram dezenas de homens encapuzados
fortemente armados.
— Trouxemos as armas — disse um dos policiais. — Precisamos falar com o chefe.
Os homens ficaram em silêncio e em seguida surgiu um que vestia um manto negro
e usava uma máscara de Bate-bola (!), embora o carnaval fosse só no próximo ano.
— Descarreguem o caminhão! — Ordenou, sendo prontamente obedecido. Os
policiais se aproximaram dele e foram sendo cercados pelos que não estavam descarregando.
— Estamos com problemas.
— Vocês são policiais. Se virem!
— Tá difícil — disse o outro, — o Serviço Reservado tá em cima.
O “Bate-bola” retrucou:
— Eu paguei por este e mais um carregamento. Quero receber!
— Semana que vem como você pediu tá difícil! Se puder esperar um mês...
— Um mês? Nem pensar!
— Nesse caso devolveremos metade do dinheiro.
— Tudo bem — concordou o homem de preto, — assim poderei encomendar armas
em outros menos cagões que vocês.
21
Novela
— Não é medo não! — Rebateu um dos policiais. — É precaução. Nós vendemos
pra vocês as armas que apreendemos de outros bandidos. Quando o número de armas
apreendidas cai, a vigilância aumenta porque fica mais fácil tomar conta.
— Tudo bem, eu entendo.
O “Bate-bola” recebeu do policial um pacote com o dinheiro devolvido e após rápida
conferida, disse:
— É uma pena. Sentirei saudades de vocês.
Os policiais foram cercados por meliantes que lhes apontavam armas.
— Pelo amor de Deus! Nós jogamos limpo com vocês! Devolvemos o dinheiro e
trouxemos parte das armas. Por favor, não nos mate!
O “Bate-bola” cruzou os braços e disse:
— Vocês estão apavorados demais. Se descobertos poderão contar sobre nós, afinal
vocês nos viram.
Um dos policiais disse:
— Por favor, não nos mate! Nós nem sabemos como vocês são. Nunca vimos seus
rostos.
O “Bate-bola” tirou a máscara, depois ordenou:
— Todos tirem suas máscaras!
Todos obedeceram. Ninguém mais estava mascarado. O líder disse:
— Agora que vocês viram nossos rostos poderão ser perigosos para nós, por isso
não podemos deixá-los viver. Nada pessoal, mas é a nossa natureza. Meu nome é
Legião!
No dia seguinte, foram encontrados os corpos de dois policiais, esquartejados, na
praia de Sepetiba. Muitos quiseram acreditar que eles morreram no estrito cumprimento do dever legal.
* * *
Andréa e Silvio entraram pela primeira vez naquela igreja levados por Sonia. Os fiéis
estavam de pé entoando bonitos cânticos de louvor a Deus enquanto dois Pastores, um
mais novo e outro de meia-idade, conduziam o culto. Sonia foi até uma das mulheres
que ajudavam os Pastores e contou-lhe o que acontecia com Andréa. A mulher tentou
confortá-la e avisou que a levaria até os Pastores assim que começassem o exorcismo.
Minutos depois, o Pastor de meia-idade pediu aos fiéis:
— Meus irmãos e irmãs! Dêem sua contribuição para Deus como prova maior de fé.
Lembrem-se de Caim e Abel: Deus só tinha olhos para Abel porque este nada lhe negava
enquanto Caim pouco dava e nada recebia do Senhor.
Andréa cochichou no ouvido de Silvio:
— Se Deus gostava tanto de Abel, por que deixou Caim matá-lo?
— E pergunta a mim? Eu nunca entendi por quê Deus fez aquilo tudo com Jó e o Diabo
foi quem levou a fama de mau!
Os fiéis fizeram fila e começaram a despejar dinheiro, faziam cheques etc. O Pastor
mais novo disse ao de meia-idade:
— Não deveríamos dispensar os que já deram dinheiro?
— Claro que não, Pastor Sérgio!
— Mas tem gente aqui que não pode dar mais.
— Tem sim. Tem que ter fé. É dá ou desce!
Terminada a contribuição, os Pastores deram início ao culto de exorcismo. Uma
22
Scarium
“obreira” levou ao palco uma garrafa de cachaça, uma vela preta e um pote de barro
com uma galinha morta sem a cabeça.
— Isso é o que usam para macumbaria, irmãos!
Uma gargalhada geral.
— Irmãos! Quem crê em Deus não precisa de nada disso. Pensem em quanto
dinheiro se gasta para adorar o demônio!
Ouvia-se um murmúrio entre os fiéis.
— Agora vamos vencer! Vamos derrotar o demônio!
Os fiéis deliravam. Um homem que dizia estar com um ‘exu’ ficou de joelhos e
depois levantou-se dando graças a Deus e agradecendo ao Pastor; uma moça dizia estar
com uma pomba-gira e caiu também de joelhos, desmaiou e acordou, dizendo-se curada
do mal e dando graças a Jesus; uma senhora gorda tremia e jogava-se para os lados, até
que os pastores puseram as mãos sobre sua cabeça e expulsaram o “coisa ruim”. Chegou a vez de Andréa.
Ela subiu no palco (era mesmo um palco!) com Silvio, Sonia e a “obreira”. O Pastor
puxou-a pelo braço e levou-a diante dos fiéis, desafiando:
— Estão vendo essa linda jovem, meus irmãos? É a primeira vez que ela vm aqui.
Nossa irmã Sonia a trouxe porque está possuída por um demônio. E nós vamos o quê?
— Derrotá-lo! — Gritaram os fiéis.
— Em nome de Jesus! — Corou o Pastor.
O Pastor mais novo aproximou-se e cochichou:
— Ela parece estar com sérios problemas, não é melhor conversar antes?
— Não, Pastor Sérgio. Não é.
E o Pastor mais velho desvencilhou-se do outro e pôs a mão sobre a testa de Andréa,
fazendo uma prosaica evocação:
— Vem demônio! Venha se tiver coragem! — Nada. — Venha até nós, demônio!
Venha ser derrotado pelos verdadeiros cristãos! — Nada. — Você não tem coragem
para enfrentar o povo de Deus! Você é um farsa!
Segundos depois Andréa começou a tremer. Em seguida ela arregalou os olhos e
disse com o coro de vozes masculinas:
— Quem ousa convocar-me?
Surpreso com a entonação das vozes, o Pastor continuou:
— Eu ousei, demônio! Saia já deste corpo que é a morada de Deus!
— Isso não és tu quem decide.
— Vá embora para sempre em nome de Jesus!
A coisa gargalhou e disse:
— O Cordeiro não atende ao teu chamado.
Sentindo-se constrangido, o Pastor apontou para o ‘despacho’:
— Eis ali o que você gosta, demônio dos infernos! Vá lá comer!
A coisa fez cara de nojo e disse:
— Mas que droga é aquela? Eu sou um demônio decente e exijo respeito!
— Vocês ouviram, irmãos? O diabo quer respeito!
O Pastor foi até o ‘despacho’ e apanhou a vela, que estava apagada.
— Está vendo isso, demônio? Se é quem diz ser, faça essa vela acender.
A coisa fez um gesto e o pavio da vela acendeu. O Pastor assustou-se mas manteve
a pose. De repente, a chama da vela cresceu tanto que alcançou o teto, que fez o Pastor
23
Novela
deixá-la cair no chão com o susto. Depois, a coisa fez outro gesto e uma ventania
começou dentro do templo.
Os fiéis ficaram surpresos e assustados, mas logo voltaram a gritar:
— Derrote esse demônio, Pastor!
O Pastor respirou fundo e gritou:
— Vá embora daqui em nome de Deus!
A coisa limitou-se a rir. O Pastor Sérgio apontou para baixo e o de meia-idade notou
que ela pairava no ar uns vinte centímetros acima do chão.
— Parta agora, Servo de Satanás! — Tentava fingir controle. — Volte para o inferno
em nome de Jesus!
— Chamaste-me de quê? Tu serves a Satã melhor do que eu, criatura sem escrúpulos.
A coisa abriu os braços e a galinha sem cabeça levantou-se e começou a andar em
volta do Pastor. Este arregalou os olhos e gritou:
— Irmãos! Deus quer uma prova de fé! Quem chegar ao lado de fora da nossa igreja
sem se machucar é porque tem fé!
E todos, Pastor à frente, saíram correndo do templo. No palco ficaram Silvio, o
Pastor Sérgio, Sonia e Andréa/Legião.
A coisa gargalhava e a ventania aumentava. O Pastor Sérgio apanhou a Bíblia e
jogou-se sobre ela, segurando-lhe a testa e gritando:
— Saia deste corpo agora, Satanás!
— Erraste de demônio.
— Volte para o inferno, Asmodeus!
— Erraste novamente!
— Curve-se diante do poder de Deus, Belzebu!
— Sequer passaste perto.
— Seja quem for, você é servo do mal.
— Estás melhorando...
— A vida é um milagre de Deus!
— A vida é meu instrumento.
— Saia agora! Saia em nome de Jesus!
— Sairei porque quero e não por causa do nome daquele rabino reformista.
A galinha caiu, a coisa gargalhou e provocou espasmos em Andréa, que desmaiou,
cessando a ventania.
Aos poucos, amparada por Silvio e Sonia, Andréa acordou:
— E então? — Ela indagou. — Aquilo foi embora?
O Pastor Sérgio, ainda refazendo-se, respondeu:
— Lamento reconhecer, mas acho que aquilo voltará.
* * *
Carina chegou depois da hora na emissora de TV. Ela o fez de propósito só para
testar o seu prestígio. Ninguém ousou repreendê-la. O documentário havia sido negociado para outros países e falava-se até numa produtora americana interessada em levar
a história para as telas de cinema.
Assim que aproximou-se da secretária, ouviu o recado:
— Tem um Promotor Público querendo falar com a senhora.
Ele a esperava numa sala. Era um jovem de cabelos castanhos crespos e porte
24
Scarium
imponente, o que chamou a atenção de Carina. Após rápidos cumprimentos ele começou a falar sem rodeios:
— Quem serviu de elo entre a senhorita e Legião?
— Não posso informar as minhas fontes.
— Acho que deveria. Ao menos pense na sua colega Amanda.
Carina teve vontade de rir. Coitadinha...
— Ela está morta. Legião a matou.
— E o que o senhor espera que eu faça? Mande rezar missas?
— Ao menos poderia contar-me quem foi o elo, pois também poderá nos levar até o
covil do líder de Legião e daremos um ponto final nestes criminosos.
— Infelizmente não posso dar o que o senhor me pede.
O Promotor sorriu:
— A violência que Legião pratica nada mais é do que o recurso do terror, pura
psicologia do medo. Eles adotam uma postura violenta para intimidar possíveis inimigos. Tamerlão fez melhor.
— Já disse, Promotor: não posso ajudá-lo, mas se quiser jantar comigo...
O Promotor ficou de pé e disse:
— Lamento muito! — Ele parecia triste. — Fica para a próxima reencarnação.
E saiu. Carina rosnou ao ver-se desprezada, mas buscou consolo no sucesso que fez
dela uma celebridade além dos quinze minutos.
Ela foi até o banheiro feminino e antes de digitar um número em seu celular, certificou-se de que não havia mais alguém ali. Ela sussurrou quando do outro lado da linha
alguém atendeu:
— Aqui é Carina. Precisamos de mais ação, de outra exclusiva. Cedo ou tarde mais
repórteres terão acesso às minha fontes.
Andando de um lado para o outro enquanto ouvia a resposta, ela disse:
— O negócio tá ficandofeio! Até o Ministério Público está me assediando, mas nem
falam em me pagar. É isso aí: querem de graça o que eu suei para arranjar.
Do outro lado, disseram algo e desligaram. Carina, então, digitou outro número e
disse:
— Alberto, estou com problemas. Vamos agir depressa porque daqui a pouco não
terei mais uma fonte exclusiva. — E desligou o celular.
* * *
— Silvio, estou assustada... — Andréa disse sobre a noite anterior na igreja dos
Pastores.
— Não se preocupe, meu amor — tentava confortá-la, — depois de tudo pelo que
você já passou, posso afirmar que ninguém é tão forte quanto você.
— Mas e essa coisa? Eu não posso ter uma vida normal enquanto não superar isso.
E eu tinha tanta esperança na igreja da Sonia...
Silvio fez um muxoxo:
— O primeiro Pastor parecia um comediante, mas o Pastor Sérgio era sério.
— Mas ele voltará. Eu sinto!
— Estaremos preparados! O Pastor Sérgio deixou o telefone dele para o caso de
precisarmos de ajuda e os Padres não desistiram de lutar. Eu tenho fé de que juntos
derrotaremos esse... seja lá o que for!
— Amém, meu amor. Amém! — E foi dormir.
25
Novela
Silvio deitou-se ao lado dela e não pode evitar de se lembrar da primeira vez que a
viu, linda e sorridente, porém fútil e venal, cercada de amigos duvidosos e vazios. Mesmo assim estava apaixonado por uma imagem, por uma moça que lhe passava exatamente o que não era. Depois veio a tragédia. Ela sobreviveu ao ataque de “Legião” e
por vários dias os telejornais mostravam entrevistas com os pais dela chorando copiosamente o infortúnio da filha. Até para programas de entrevistas eles foram convidados (e
aceitaram), mas Silvio queria apenas uma chance e esta veio quando Andréa saiu do
hospital e voltou para casa. Os pais “precisaram” viajar e a deixaram sozinha. Um dia
ele passou por ela na calçada, chamou-a pelo nome e perguntou-lhe como estava. Ela
sorriu e esticou a conversa mais do que o normal. O passo seguinte foi esperar alguns
“encontros casuais” e pedi-la em namoro. Conseguiu.
Seus amigos, pelo menos os que conheciam bem Andréa, reprovaram com argumentos factíveis: “É uma drogada!”, “Mais vazia impossível!”, “Só anda em más companhias!”, “Até o irmão morreu de overdose!”, “Os pais dela se odeiam e mantém
amantes!”, “Ninguém na vizinhança gosta dela!”.
Aquilo tudo era verdade. Era, porque ele conheceu uma Andréa diferente, entusiasmada com seu “relacionamento sério” como se fosse o primeiro.
E era. Ele velou o sono dela por mais meia hora e dormiu também.
* * *
O terceiro capítulo do documentário de Carina sobre Legião foi ao ar no horário
nobre. Recorde absoluto de audiência.
Nas telas das TVs um jovem encapuzado narrava:
—...foi aqui mesmo. Os caras do Tunicão pensaram que eram os donos do pedaço
e ficaram cheios de ‘marra’. As bocas-de-fumo deles davam um dinheirão e eles usavam
armamento de primeira, mas nós encaramos. Foi de manhã e eles tavam dormindo, com
poucos de guarda. Fomos tão rápidos que eles nem puderam reagir. Quando Tunicão
acordou, estávamos em volta da cama dele. O safado tava pelado e com duas ‘de
menor’. Sabe o que fizemos? Matamos ele e fizemos uma festa com as ‘mina’. Depois
penduramos as três cabeças num varal para os moradores ficarem sabendo que agora é
Legião quem manda no pedaço...
Para fechar, Carina, diante de milhões de telespectadores, dizia:
—...Legião: vítimas ou algozes de uma sociedade cada vez mais indiferente? O que
eles querem realmente? Chamar a atenção sobre si e seus problemas? A resposta da
sociedade tem sido sempre devolver-lhes a violência que praticam, mas da qual também
são vítimas. Legião é o estágio mais baixo que a nossa sociedade chegou desde que o
Exército brasileiro massacrou sertanejos miseráveis em Canudos. Incrível que por mais
que a nossa sociedade decaia, ainda não tenhamos atingido o fundo do poço.
E a última imagem a ir ao ar foi um garoto com o rosto parcialmente coberto por um
gorro preto gritando:
— Meu nome é Legião!
Apesar das aparências, Carina não estava relaxada. Enquanto aguardava pelo Diretor-geral da emissora, ela ia tecendo mais matérias em sua mente, por mais arriscadas
que fossem. Quando abraçou a carreira na televisão, jamais imaginou encontrar disputa
tão acirrada entre colegas e só sobreviveu porque soube manipular pessoas e mostrar
serviço. Agora era ela quem bajulavam, adulavam e mencionavam. Quando o assunto
era ousadia e talento, seu nome aos poucos firmava-se como referência.
26
Scarium
O Diretor parabenizou Carina pela enésima vez e indagou:
— Você contou sobre suas fontes para o Promotor?
— De jeito nenhum!
— Fez muito bem!
— Eu nunca revelarei as minhas fontes.
— Nunca?
— Bem... se me derem um bom dinheiro...
— Mas aí é uma questão de sobrevivência e nesta selva de concreto sobrevive melhor quem tem mais dinheiro.
* * *
Andréa passou mal a noite inteira. Silvio chamou um médico e ele não soube diagnosticar o que via. Na dúvida deu-lhe um sedativo, mas ela permaneceu inquieta. A
empregada lamentava:
— Tadinha da dona Andréa. E os pais desnaturados resolvem viajar em vez de
tomarem conta dela. Se o ‘seu’ Silvio não estivesse aqui...
— O caso dela é psíquico e não sobrenatural — disse o médico, — ela sobreviveu à
chacina da casa da praia no ano passado e assimilou os dizeres daqueles dementes.
— Traumas não produzem ventania nem fazem galinhas mortas andarem. — Ele
julgou melhor não mencionar que ela levitou.
— Podem fazer até mais, senhor Silvio. Certamente o senhor já ouviu falar de
poltergeist, quando uma série de distúrbios mentais geram atividades físicas incontroláveis, pois a nossa mente libera forças ainda ocultas de nossa psique. A telecinésia e a
telepatia são provas do potencial da mente humana, quase sempre latente, mas que pode
ser ativado quando sofremos algum distúrbio. É exatamente isso que está acontecendo
com ela.
O médico esperou Andréa dormir e foi embora. Silvio ficou na cama, sentado, ao
lado de Andréa e sentindo-se inútil por não saber o quê fazer. Quando ele estava perto
de pegar no sono, ouviu um coro de vozes:
— Meu nome é Legião.
Ele redespertou como num salto mas Andréa continuava dormindo, linda, como
se nada de ruim pudesse lhe acontecer.
Melhor dormir também.
* * *
Carina sabia que sua glória não duraria para sempre. Daqui em diante precisaria estar
sempre em evidência para ser lembrada para os trabalhos de grande impacto junto ao
público. E isso poderia incluir participar de programas de auditório chatíssimos ou
mostrar seu apartamento reformado para os voyeurs do sucesso alheio. Talvez até um
romance de mentirinha com algum cantor gay.
— Sabe da última, Carina? — Indagou-lhe um rapaz que servia de zangão para
novas matérias.
— O que você tem para mim, Alberto? — Ela perguntou, sentindo cheiro de notícia.
— Eu soube por fonte limpa, que uma mulher que se dizia possuída por um espírito
maligno foi numa dessas igrejas evangélicas e pôs o Pastor e os fiéis para correrem.
— Tem certeza?
— Absoluta! Eu chequei! Mas essa não é a melhor parte!
— E qual é?
27
Novela
— O espírito que possuía a moça chamava-se Legião.
— O quê? Legião? — Carina quase deu um salto.
— Isso mesmo: Legião. Como está na Bíblia, no Evangelho de São Marcos.
—Na Bíblia?
—Isso mesmo. Nunca leu a Bíblia?
—Para falar a verdade, tem muito tempo...
— Tudo bem. Legião tem esse nome porque é formado por vários espíritos atrasados. Jesus Cristo que ao indagar-lhe o nome obteve a seguinte resposta: ‘Meu nome é
Legião’.
— Assim? Igual àquela quadrilha?
— Exatamente. E tem mais: a mulher possuída chama-se Andréa Fisher, que sobreviveu a um ataque da Legião numa casa de praia...
— Espere! Eu já ouvi falar nesse caso! Foi o ‘Massacre da Casa da Praia’ onde
Legião torturou e matou quase vinte pessoas.
— Exato! Essa Andréa Fisher foi a única sobrevivente. Na época ela estava envolvida com uma turma de manés que adorava fumar ‘baseado’. Eles estavam no meio de
uma orgia quando eles chegaram e barbarizaram. Foi o início da escalada da violência de
Legião.
Carina andou em volta da mesa. Aquilo era bom demais para ser verdade.
— Essa Andréa ainda anda com aquele tipo de gente?
— Não! Em verdade ela vem de uma família desajustada, onde os pais vivem
viajando para lugares diferentes porque um não tolera o outro. Ambos têm amantes
fixos e já tiveram envolvimento com drogas. O irmão de Andréa morreu de overdose de
cocaína há três anos.
— Que coisa horrível! Mas... coisas horríveis assim dão ibope! O que mais você
descobriu sobre ela?
— Que ela se afastou das drogas e arranjou um namorado decente — sim, eles
existem. — Pensa até em casar, ter filhos, voltar a estudar...
— Uma tragédia com final feliz! Para um público que assiste a dramalhões mexicanos e chora a morte de políticos que nunca fizeram nada que prestasse, isso vem a calhar.
— Mas, Carina, tem o demônio Legião no meio disso tudo.
— E você acredita nisso?
— Bem, não exatamente, mas quem me deu a informação garante que havia algo de
terrível com ela. Talvez o demônio exista mesmo.
— Tanto melhor! Tem o endereço dela?
— Tenho sim. Ela havia se mudado por medo de uma represália da quadrilha e a
própria polícia deu-lhe proteção durante alguns meses, mas subornando as pessoas
certas, pude descobrir o seu atual endereço num subúrbio daqui do Rio.
— Ela ainda mora no Rio?
— Sim. O correto seria mudar-se para outro estado, mas os pais têm negócios aqui
e não querem sustentar a filha em outro estado.
— Daí eles preferem que ela corra o risco de ser morta aqui?
— Para você ver!
Alberto e Carina riram. Ela riu porque estava quase sentindo pena de Andréa e ele...
bem, ele riu porque ela riu.
* * *
28
Scarium
Silvio acordou e logo olhou no relógio: onze da manhã.
Mais uma vez perdeu um dia de trabalho. Ele olhou para o lado e constatou que
Andréa não mais estava ali.
Lavou o rosto e deu-se de cara com Sonia:
— Você viu Andréa?
— Não, ‘seu’ Silvio.
Silvio começou a ficar preocupado e insistiu:
— Meu Deus! Você chegou aqui a que horas?
— Na hora de sempre: nove da manhã.
— Essa não! Ligue para o Pastor Sérgio que eu vou ligar para o Padre Vicente e para
a polícia. Ela não sairia sem dizer aonde iria.
* * *
Andréa estava num ônibus com destino ao bairro de Pedra de Guaratiba, bairro
afastado, quase nos limites do município do Rio de Janeiro.
Ela lembrava do sonho desta noite e sabia que aquilo foi algo mais:
Ela viu-se caminhando num lugar escuro e desolado até que avistou um vulto de
capuz marrom debaixo de um poste com fraca iluminação. Ele parecia um monge, mas
havia algo diferente.
O capuz cobria-lhe todo rosto. Ao se aproximar mais, um coro de vozes masculinas
disse-lhe:
— Bem-vinda ao meu/nosso mundo de trevas, Andréa.
— Eu sei quem é você! É o Legião! Deixe-me em paz!
— Foi para isso que trouxemo-te aqui. Para livrar-te de nós.
— Por que faz essas coisas? O que você quer?
— Queremos o que todos os condenados querem: fugir da prisão. A única maneira
de escaparmos deste purgatório eterno é deixarmos de vez este maldito lugar ao qual o
Nazareno nos confinou.
— Eu não vou ajudá-los!
— Mas precisa fazê-lo. Quando alguém clama por nós diante de uma alma prestes a
desencarnar, ocupamos o corpo moribundo e impedimos que a alma saia, portanto
passamos a coabitar o mesmo corpo. Todavia, tudo tem um limite e teu corpo não
satisfaz a todos nós porque somos muitos. Se todos nós escaparmos de uma só vez para
o teu mundo, precisaremos faze-lo através de teu corpo, mas se isso for feito, tu não
suportarás a transferência de tantos espíritos e... explodirá.
— Quer dizer que aqueles bandidos acidentalmente convocaram vocês?
— Sim, Andréa. Teu suplício teria fim na morte, mas tu ainda estavas viva e eles não
cessavam de citar o meu/nosso nome. Quando tu estavas prestes a morrer, chegamos,
ocupamos parte de teu corpo e impedimos que tua alma saísse. Salvamos tua vida
miserável, mas tu nunca quiseste ser nossa hospedeira.
— E o que esperam que eu faça? Que eu lhes agradeça? Que tenha pena?
— Não. Queremos que leve-nos até aqueles que nos convocaram para que possamos terminar o encantamento. Eles, teus algozes, nos chamaram, portanto devem ser
eles e não tu o nosso elo, nossa passagem para este mundo de liberdade.
— Mas eu morrerei! Eu não quero morrer!
— Tu não morrerás! Nós te libertaremos de nós e passaremos para eles. Tu terás tua
vingança e nós a nossa liberdade.
29
Novela
— E o que devo fazer?
— Muito bem, Andréa. Tu és inteligente! Faça o seguinte...
E ela estava indo para um acerto de contas. Mas sabia que precisaria de toda ajuda
possível... e impossível.
* * *
Silvio estava reunido com o Padre Vicente e com o Pastor Sérgio, ambos preocupados com o paradeiro de Andréa. A polícia já havia sido contatada e os detetives afirmaram que fariam o possível para localizá-la. Quase às cinco da tarde Sonia foi até a sala e
disse a eles:
— Padre, Pastor, ‘seu’ Silvio, achei um envelope com uma carta assinada pea dona
Andréa. Meu Jesus, como pude não ter visto?
Silvio apanhou o envelope e leu a carta. Ali Andréa dizia o que ia fazer e aonde
estava indo. Ela pedia para que não a seguissem, pois sabia estar confiando em forças
demoníacas que certamente não se preocupariam com a vida de inocentes.
— Temos que ir lá — disse o Padre.
— Mas não sem antes avisarmos a polícia — sugeriu o Pastor.
— Vamos de qualquer jeito — disse Silvio, — a polícia será avisada.
— Pedra de Guaratiba é longe daqui — disse o Pastor, — mas se ela saiu pela manhã
certamente já chegou lá há horas.
— Eu sei — concordou Silvio, — mas acredito que nada seja por acaso, portanto ela
ainda não deve ter chegado lá.
— Então não temos tempo a perder — disse o Padre, — vamos direto para lá.
E os três saíram no carro de Silvio, mas antes avisaram a polícia.
* * *
Andréa também acreditava que nada era por acaso. Ela havia tomado o ônibus
errado e descido em outro bairro. Para voltar ao caminho, tomou outro ônibus errado
e desceu em Itaguaí, mas agora, às 17 horas, finalmente havia chegado ao seu destino:
Pedra de Guaratiba. Bairro pobre com ruas de terra, loteamentos clandestinos e valas
negras. À medida que se aproximava, voltavam as lembranças amargas de sua quasemorte.
Se ela tivesse tido um pouco de amor naquele lar, talvez buscasse uma vida de
objetivos e realizações, mas só fez mergulhar numa orgia de autodestruição, com drogas
e sexo casual, a ponto de sair de uma orgia sem lembrar-se com quem havia estado. Sua
existência vazia levou-a à uma casa de praia onde garotos ricos e moças ambiciosas se
reuniram para muita droga e muito sexo, mas isso era problema deles. Quando se
preparava para cheirar mais uma carreira de cocaína, um grupo de homens armados e
gritando muito irromperam pela casa. Diziam que queriam dinheiro e jóias mas aos
poucos foram ficando cada vez mais violentos. Primeiro se contentaram em ver as
moças nuas, depois mandaram que elas se beijassem, depois partiram para o estupro e
finalmente iniciaram o massacre no qual ela foi a única sobrevivente — graças aos
demônios. Ela levou dois tiros nas costas (a maioria recebeu tiros na cabeça) e caiu
inerte. A todo tempo aqueles loucos gritavam: “Legião!”
Acordou numa cama de hospital. Depois, policiais e promotores queriam detalhes, a
imprensa idem. Ninguém foi preso embora a todo instante surgissem notícias da morte
deste ou daquele membro de “Legião” e aumentassem as pichações com a inscrição
“MEU NOME É LEGIÃO”.
30
Scarium
Seus pais foram ao hospital, deram entrevistas, choraram diante das câmeras e foram
viajar para “aliviar o stress”, mas deixaram a filha sozinha, aos cuidados da empregada.
Desde que embarcaram sequer deram um telefonema para saber como estava, como se
sentia, se precisava de algo. Eles devem ter pensado que o dinheiro deixado na conta
supriria todas as carências.
Mais uma vez estava só. Foi quando Silvio apareceu e parecia interessado somente
nela, mais do que um amigo e diferente de todos que ela permitiu que se aproximassem.
Com ele, Andréa vislumbrou um mundo novo, acima das futilidades que tanto cultivou.
Também foi graças à força que ele lhe transmitiu que ela reuniu coragem para aventurarse naquele bairro, ao encontro de seus algozes.
Ela foi-se informando com os moradores acerca do local indicado por Legião em seu
sonho, e já havia andado bastante, perdendo-se algumas vezes. Ela sabia que o momento crucial de sua vida estava prestes a acontecer. Talvez morresse, mas tudo acabaria ali,
fosse para melhor ou para pior.
— Vai lá não, moça — aconselhou-a um menino com o qual ela se informava acerca
do local almejado, — Legião vai estar lá.
— Isso com certeza, menino — disse ela, — com certeza.
Era a prova que ela precisava. O demônio estava certo. Eles estão lá.
À medida que se aproximava do local almejado, Andréa sentia um frio na barriga e as
lembranças daquele dia maldito vinham-lhe à mente, fazendo o medo ocupar os espaços
deixados vazios pela coragem.
Medo!
Ela lembrava-se que a coragem tem seus limites.
Medo!
Hesitava em prosseguir.
Um coro de vozes masculinas fez-se ouvir:
— Não temas, Andréa. Terás a tua vingança. Não fraquejes agora que estás tão
perto!
Que se danem! Pensou Andréa, seguindo a passos firmes.
* * *
Carina manobrava seu carro naquela rua de terra em Pedra de Guaratiba. Andréa
deu-lhe uma grande idéia para uma matéria: “LEGIÃO SE VINGA E MATA SUA
PRIMEIRA VÍTIMA”. Talvez o título fosse outro, mas seria um impacto que lhe
renderia mais prestígio. Assim que desceu do veículo, foi abordada por dois homens
armados:
— O que você quer, vagabunda?
Carina cruzou os braços e rosnou:
— Olha como fala, babaca! Quero falar com o Eliseu.
Os dois se entreolharam e um terceiro conduziu-a para dentro de um grande galpão
abandonado, cheio de caixas com armas e munições onde havia dezenas de outros
homens lá dentro.
Um homem todo de preto e com máscara de Bate-bola aproximou-se cautelosamente de Carina:
— Veio fazer o quê aqui? Já não te demos a entrevista?
Carina sorriu e falou:
— Vocês me ajudaram e eu ajudei vocês, ou não assistiu ao último capítulo?
31
Novela
O homem tirou a máscara, exibindo um rosto moreno com marcas deixadas pela
acne na adolescência.
— Adorei! Somos vítimas da sociedade! Vítimas! Só você mesmo...
— Tem muito trouxa que acreditou, Eliseu.
— Acho bom. Mas você não deveria ter vindo até aqui.
— Mas precisei, afinal meu nome também é Legião.
Eliseu sorriu e devolveu:
— Todos nós somos Legião!
— Estou preocupada. — Ela disse — Nós tiramos o nome de um demônio da
Bíblia mas nunca contamos a ninguém. Eliseu... lembra-se daquela moça que sobreviveu ao ataque à casa de praia?
— Como não lembrar? Ganhamos as manchetes até no exterior. A verdade é que o
dono da casa nos devia uma grana alta da cocaína e nada de pagar. Pior que o malandro
vendia e não prestava contas. Fomos lá cobrar e quem tava lá dançou. Quem manda
andar em más companhias?
— Eu perguntei da sobrevivente.
— E daí? Que você quer? Eu não vou sair por aí procurando uma vagabunda.
— Mas devia. Um informante contou-me que ela está possuída por um demônio
chamado Legião. O mesmo no qual nos inspiramos para criarmos nosso grupo.
Eliseu gargalhou. O fez tão alto que chamou a atenção dos outros.
— O que é isso, Carina? Passou a acreditar na própria mentira?
— Pense bem, Eliseu. Nós contamos que nosso nome foi inspirado no demônio da
Bíblia...
— Muitos fariam a associação. Para mim ela pirou. Também... do jeito que a
rapaziada se divertiu naquela noite, quem não piraria?
— Sei não, Eliseu. Eu estou com um péssimo pressentimento.
— Tome um calmante que isso passa.
— Mas vocês mataram a Amanda e toda equipe...
— Eliseu franziu o cenho, aproximou seu rosto do dela e disse:
— Foi você quem pediu para matarmos ela. Não te devemos nada!
— Não estou falando de dívida, falo de segurança.
— Nós estamos seguros.
— Mas eu não!
— Isso é problema seu!
* * *
Andréa aproximou-se a passos curtos dos mesmos homens armados que abordaram
Carina. Eles a viram e se aproximaram dela.
— Tá fazendo o quê aqui, gostosa?
Ela não respondeu, apenas, em silêncio, arrependia-se por haver confiado num demônio. Um dos homens apontou-lhe uma escopeta e disse:
— Vai logo tirando a roupa que a gente deixa você viver.
Andréa começou a tremer, sacolejando violentamente seu corpo. Os homens se
entreolharam e um deles comentou:
— Ela está tendo um ataque!
— Que bom! Adoro mulher que se mexe!
Ela caiu no chão desacordada. O mais afoito largou a arma e foi logo desabotoando
32
Scarium
a blusa e arrancando-lhe o sutiã.
— E aí? — Indagou, olhando para o outro. — Nosso nome é ou não é Legião?
De repente, Andréa abriu os olhos e um coro sinistro de vozes masculinas saiu de
seus lábios delicados:
— Não! Meu nome que é Legião.
Os dois criminosos começaram a sentir uma horrível dor de cabeça. De repente
começou a sair sangue do nariz, do ouvido e dos olhos de cada um. Quando começaram a gritar, cuspiram sangue até caírem mortos.
A coisa/Andréa ficou de pé. Sorriu demoniacamente e caminhou na direção do
galpão, sem importar-se em estar despida da cintura para cima.
* * *
De dentro do galpão, enquanto Eliseu e Carina conversavam, começou uma algazarra. Os homens começaram a gritar ‘gostosa’, ‘tesão’ e ‘boazuda’. Eliseu e Carina foram
ver e repararam na jovem, com os seios à mostra, que caminhava para o centro do
galpão.
— Quem é você? — Perguntou um surpreso Eliseu.
A coisa riu e respondeu:
— Não me reconheces, mortal? Meu nome é Legião.
Carina arregalou os olhos:
— Só pode ser ela Eliseu! Mate-a antes que nos mate!
— Só depois de muita diversão... — disse um dos criminosos.
Confuso, Eliseu viu que ela não trazia armas e se aproximou. Em seguida, seguroua pelos cabelos e perguntou:
— O que você quer?
A coisa riu e segurou o braço de Eliseu, dizendo:
— Carne! Preciso de carne, ainda que de má qualidade.
Eliseu começou a tremer, fazendo os outros criminosos (dezenas deles) se afastarem.
Tremeu tanto que explodiu.
O sangue dele sujou Andréa, que caiu de joelhos no chão. De repente, vários espectros em forma de pessoas maltrapilhas saíram de seu corpo e começaram a planar naquele galpão. Os criminosos apanharam suas armas e atiraram a esmo. Inútil. Carina
jogou-se no chão, atrás de uns caixotes.
Em seguida, os espectros começaram a entrar nos corpos deles, a proporção de
dezenas para um, que explodia. Aquilo tornava-se um festival escatológico onde pedaços das sobras da sociedade brasileira espalhavam-se pelo galpão abandonado.
Poucos meliantes ainda restavam de pé. Carina apanhou uma escopeta. Procurou
por Andréa e encontrou-a caída no chão.
Aquela cena macabra de corpos explodindo continuava. Carina rastejou até bem
próximo de Andréa, levantou-se, fez mira e...
Dezenas de espectros começaram a entrar em seu corpo. Carina sentiu uma dor
insuportável e perdia o controle sobre seus movimentos. Em segundos ela nada mais
sentia do pescoço para baixo e...
Explodiu!
Suas vísceras, carne, ossos e pele espalharam-se pelo galpão, juntando-se aos restos
de seus cúmplices.
Só restou Andréa inteira.
33
Novela
* * *
O automóvel de Silvio atolou duas vezes na lama. Na terceira, eles desceram e
o Pastor perguntou a um grupo de meninos:
— Sabem quem tem uma criação de porcos aqui perto?
Eles disseram que sim e o Padre disse a Silvio:
— Eu vou com você. O Pastor Sérgio pode cuidar disso sozinho.
— Duvido muito — discordou Silvio, — é melhor irem os dois e depois nos
encontramos no tal galpão.
Após muito debate, o Pastor e o Padre seguiram a pé e Silvio foi para o carro.
Lá ele apanhou uma pistola de dentro do porta-luvas e carregou-a com um pente.
Desde o serviço militar que ele nunca mais usou uma arma, nem queria voltar a
fazê-lo.
* * *
Andréa foi acordada por um homem negro e idoso que lhe dizia:
— Levanta, minha filha! Você tem que sair daqui!
Ela recobrou a consciência aos poucos. Viu o idoso e teve náuseas ao ver
tantos pedaços de gente espalhados pelo galpão. O chão, as paredes e ela mesma
estavam manchados de vermelho e um cheiro ruim impregnava o ar.
— Anda, filha. Saia daqui. Seu namorado já vem buscá-la.
— Como o senhor sabe do meu namorado? — Indagou ela.
O idoso não respondeu. Limitou-se a apontar para porta e desapareceu.
Assustada, Andréa correu até a porta e parou pouco antes de sair quando reparou que estava com os seios à mostra. Pensou em procurar por sua blusa, mas os
pedaços se erguiam no ar.
Todos aqueles pedaços de gente convergiram para o centro do galpão.
Andréa ficou paralisada, olhando a montanha de destroços humanos que se
formava, crescendo sem parar. Ela reparou que aquele monte patológico ia ganhando forma: Formavam-se duas pernas, dois braços e uma cabeça que se projetava além do que parecia ser o tronco. Aquela criatura parecia estar viva, apesar
do horrível aspecto e do fedor que exalava. Cresceu, cresceu e cresceu.
Cresceu até atingir uns dez metros de altura, quase tocando o teto do galpão.
No que parecia ser a cabeça, três orifícios se formaram: os dois de cima assemelhavam-se a olhos sem o globo ocular e o de baixo alargou-se até formar uma ‘boca’.
Andréa reparou que dedos formavam-se nas ‘mãos’ e ‘pés’ da criatura, que
virou a ‘cabeça’, onde viu uma luz avermelhada nos buracos que faziam as vezes
de ‘olhos’; e a ‘boca’ proferiu:
— Finalmente livre! Meu nome é Legião!
Andréa cobriu os seios com os braços e correu para fora. Enquanto corria
esbarrou em alguém.
— Andréa! — Era Silvio, aliviado por encontrá-la.
— Corre, Silvio! Corre! — Ela empurrou-o para a trilha.
Silvio tirou o casaco e cobriu os seios desnudos de Andréa. Como já fosse
noite, ao correr pela trilha esburacada, ela tropeçou e caiu. Enquanto Silvio ajudava-a a se levantar, sentiu:
— Credo! Que cheiro é esse?
A criatura feita de restos humanos saiu do galpão. A luz vermelha que reluzia
34
Scarium
de seus ‘olhos’ ganhava destaque na noite.
— Meu nome é Legião — A criatura repetia.
Silvio apontou-lhe a pistola e fez três disparos. Inútil. Pior: a criatura foi em
sua direção.
Eles correram o mais rápido que puderam. A criatura tinha passos lerdos, mas
o tamanho de suas passadas compensava. Eles continuaram a correr até chegarem
numa estrada asfaltada, por onde entravam três carros da polícia militar.
— Aqui! Socorro! — Gritou Silvio.
Eles foram na direção das patrulhas. Desceram policiais armados e com lanternas. Um Oficial indagou:
— Quem são vocês? Estão correndo de quem?
— Fui eu quem chamou vocês aqui! — Explicou Silvio. — Vem vindo uma
coisa...
Os policiais estavam se sentindo nauseados:
— Que fedor é esse? — Perguntou um Sargento.
A criatura surgiu. Emitiu um grunhido aterrador e foi na direção deles. Os
policiais sacaram suas armas e começaram a atirar. De tão assustados, nem tentaram entender o que se passava.
— Meu nome é Legião! — Bradava a coisa.
O Oficial levou Silvio e Andréa para trás do último veículo. A coisa pisoteou o
primeiro carro e depois, ergueu-o com os braços e arremessou longe. Apavorados, os policiais mantinham o fogo cerrado.
— Meu nome é Legião. Muitos há a quem devo trazer e muitos vós sois que
podem nos servir.
Quando a coisa ia pisotear o segundo veículo, surgiram o Padre e o Pastor
conduzindo uns vinte porcos com a ajuda de alguns homens.
— Não! — Gritou a coisa. — De novo não!
Os porcos cercaram a coisa, que tentou fugir, mas tropeçou nalguns, caindo.
— Não! Não! Não!
A coisa foi-se desfazendo, voltando a ser uma massa disforme. Os porcos
caíram no chão debatendo-se e morreram. Morreram todos.
O Pastor e o Padre foram até Silvio e Andréa. Os policiais guardaram suas
armas e ficaram tentando entender o que havia se passado. O Pastor Sérgio disse:
— Estava tudo na Bíblia. O apóstolo Marcos conta que Jesus fez Legião sair
do corpo de um homem e passarem para os corpos de porcos, que morreram em
seguida.
— São Marcos, meu prezado Pastor. São Marcos!
— Marcos, meu querido Padre. Marcos!
— Ei! — Intercedeu Silvio. — Mal derrotaram um demônio juntos e já vão
começar a brigar?
O Padre e o Pastor se entreolharam e riram. O oficial, ainda assustado, aproximou-se deles e pediu:
— Se importariam em me ajudar a colocar tudo isso no Boletim de Ocorrência?
Andréa, lembrando-se do negro idoso, disse a Silvio:
— Houve mais ajuda.
* * *
35
Novela
Durante muito tempo as autoridades fluminenses mantiveram segredo sobre o Boletim de Ocorrência do Tenente Magalhães. Os religiosos voltaram mais convictos
do que nunca em sua fé e com projetos de Ação Ecumênica. A quadrilha Legião
desapareceu, assim como a repórter Carina, cuja falta não foi sentida. O demônio
Legião nunca mais se manifestou.
Silvio e Andréa casaram-se, tiveram filhos e continuam residindo na Cidade
Maravilhosa, da qual ela quase foi expulsa por conta de macabras estatísticas criminais.
Quando relembravam os acontecimentos daqueles dias, Andréa fazia questão
de ressaltar:
— Talvez nós sejamos o verdadeiro milagre: somos de tantos lugares e de
tantas culturas que ao deixarmos as diferenças de lado e assumimos a nossa diversidade, podemos contar com toda ajuda possível neste mundo tão maravilhosamente complexo.
Silvio, com o filho mais novo no colo, concordava:
— Viva a diferença!
Roberval do Passo Barcellos - Historiador e advogado, autor do livro” Primeiro
de Abril” (Editora Ano-Luz) e “O Camarada O’ Brien” (Coleção Fantástica Hiperespaço).
Scarium E-books
Biopanzer
Josiel Vieira
A novela Biopanzer é uma poesia moldada
no concreto do cotidiano. O sofrimento, a
cidade, a luta e a filosofia do mundo visto sobre
o olhar de uma menina, uma motogirl do
futuro. Uma menina com uma armadura tão
forte como um tanque alemão. Uma armadura
biológica endurecida pela vida para enfrentar
a diversidade do sofrimento.
Disponível para download gratuito
www.scarium.hpg.com.br
36
Terror
FILHA DA NOITE
Martha Argel
Lucila, a vampira, estava sentada sobre o peitoril da janela e tinha sua atenção
voltada para a rua lá embaixo. A distância e as trevas da madrugada, mal-disfarçadas
pela iluminação urbana, não impediam que seus olhos seguissem atentos cada detalhe
do pequeno drama sendo representado no ponto de ônibus da quadra seguinte.
Três atores: dois rapazinhos e uma menina loira que usava um sobretudo preto.
Ou que tinha usado. Agora ele estava jogado no chão, e via-se seu vestido preto
decotadíssimo, provocante, com a fenda lateral subindo quase até o quadril.
Um dos rapazes abraçou a moça pelas costas, prendendo-lhe os braços de encontro ao corpo. O outro se aproximou por diante e se encostou nela, enquanto
metia a mão pela fenda do vestido e acariciava as coxas cobertas pela meia arrastão preta. A moça se contorceu quando a mão dele a tocou em partes mais sensíveis, mas não gritou. Havia um revólver enfiado no lado de seu corpo.
O rapaz tirou a mão de dentro do vestido apenas pelo tempo necessário para
abrir o zíper da calça e colocar o pau para fora. A moça de novo tentou se soltar,
mas estava bem presa. O cara afastou o vestido e puxou para baixo a calcinha, e
num movimento decidido e violento já estava dentro da garota.
Lucila assistia a tudo e deixava-se invadir pela excitação. A cena de violência,
de dominação, por mais vulgar que fosse, aguçava sua fome, a ânsia pelo sangue.
O rapaz estava quase gozando quando ela decidiu que era o momento.
Lançou-se no vazio, nos dezoito andares de nada que a separavam do chão.
Sua aparição surpreendeu o rapaz em pleno orgasmo. Lucila o arrancou de
dentro da menina ainda intumescido e ejaculando. Não lhe deu tempo para mais do
que um ô! indignado e assustado antes de arremessá-lo contra a coluna do ponto
de ônibus. Enquanto ele deslizava para a calçada, inconsciente, ela já agarrava o
outro cara pela garganta.
– Quieta aí. Não se mexa e não grite! – ordenou à menina que havia tentado sair
correndo. A menina obedeceu, claro, pois quando um vampiro usa a Voz, é tudo
que se pode fazer.
– Agora nós, amiguinho. Você não vai gritar, não é? – disse para o rapaz que
segurava. Não teve de usar a Voz, pois ao mesmo tempo aumentou a pressão dos
dedos e esmagou-lhe a traquéia, impedindo-o não só de gritar como também de
respirar. Eficiente.
Em pânico, o garoto que cheirava a álcool e cocaína deixou a arma cair e tentou
se libertar, mas ela o puxou para si e mordeu-o no lado do pescoço, enfiando as
presas e rasgando as carnes com um movimento lateral da cabeça. O sangue brotou dentro de sua boca, delicioso, quente. À medida que perdia sangue, a vítima se
37
Conto
debatia menos e menos, até que ficou imóvel, e sua vida se foi.
Com um suspiro de satisfação, Lucila o largou, e ele desabou na calçada. Ela
então desviou a atenção para o garoto ainda vivo, que começava a voltar a si.
Ajoelhou-se a seu lado e se inclinou em direção a sua orelha.
– Querido, guarda de volta esse teu pintinho ridículo, junta aquele revólver e
bota teu amigo no carro. Cai fora e se atira do alto de um viaduto por aí, à toda.
O rapaz se levantou, arrumou-se e fechou o zíper, pegou a arma e então arrastou o corpo do amigo para o carro, parado de porta aberta em frente ao ponto de
ônibus. Pareceu não estranhar o peso inerte e nem o pescoço destroçado. Acomodou-o no banco do carona, sentou ao volante e saiu cantando pneu.
Lucila ficou olhando até o carro dobrar a esquina. Dois moleques bêbados e
armados, mortos num acidente estúpido. Talvez o fato do sangue de um deles ter
sumido passasse batido. Ou talvez não. Mas quem ligaria? Dois delinqüentes a
menos, alguma reclamação?
A vampira então olhou para a moça de vestido provocante, que tremia, incapaz
de correr ou gritar, as lágrimas escorrendo em silêncio. Não parecia a mulher sexy
e sedutora que pretendia ser. Era só uma criança assustada.
– Eu não vou te matar, acho que você já teve o suficiente por hoje. Também,
vestida desse jeito, você tá pedindo pra ser comida, né? Que que você tem na
cabeça, ô bibelozinho?
– Você é uma vampira!
– Sou. Vou te contar um segredo: vampiros existem. Aproveita essa revelação
enquanto pode porque daqui a trinta segundos você só vai se lembrar que dois
carinhas te agarraram, te fuderam e se mandaram.
– Não, espera, eu sei que você pode me dar qualquer ordem e eu vou ter que
obedecer, mas espera, não faz isso, eu faço o que você quiser, mesmo sem você me
forçar. Eu não conto pra ninguém, juro, mas por favor, não me faz esquecer!
Lucila achou curiosa a ansiedade dela. Aquela mocinha parecia saber algo sobre vampiros, e obviamente seu interesse por eles era tão grande que tornava
irrelevantes o estupro que acabava de sofrer e a morte que tinha presenciado. A
vampira prestou atenção no monte de anéis, pulseiras e correntes, nas tatuagens
cabalísticas, na maquiagem soturna, nos piercings e nas orelhas cheias de brincos.
– Você é uma dessas garotas deprimidas que se acham góticas só porque usam
preto e andam por aí, se entediando e se lamentando pelos cantos de botecos
escuros?
Um brilho inesperado surgiu nos olhos da menina. Irritação.
– Quem é você pra ficar criticando os outros? Se olha no espelho! Uma vampira
de moletom do Mickey? Que coisa ridícula!
– Ah, desculpa! Você acha que eu devia me vestir de preto?
– Claro.
– Então me explica: por quê?
– Por quê? Oras, por quê, pra mostrar que você é diferente! Pra mostrar que
você não compartilha com esse bando de alienados essa subvida normal e entediante.
38
Scarium
Pra provar pros outros que você sabe coisas que eles não sabem e que nem imaginam.
– Querida, você devia dar uma voltinha pela Paulista depois do expediente.
Sabia que dez em cada dez executivas e secretárias se vestem de preto dos pés à
cabeça? Quer ser diferente, linda? Bota um vestido pink.
– Eu não acredito que estou ouvido isso de uma… vampira! Meu, eu uso preto
por que ele é o reflexo da minha alma fria e decadente. É como eu me sinto por
dentro. É como eu vejo o futuro, a minha total falta de futuro. Eu tenho que usar
preto, cara, por causa dessa minha angústia, dessa falta de esperança, dessa vida
inútil, esse saco de vida…
– Ah, tá.
– Cê tá gozando da minha cara, garota?
– Garota… você sabe quantos anos eu tenho?
– Diz.
– Trezentos e vinte e seis.
– Tá brincando!
– É, tô.
– Não, eu acredito em você. Puxa, que demais.
– Demais porquê? Você não disse que acha a vida inútil, um saco? Isso enquanto você tem… quantos… vinte e cinco?
– Dezenove.
– Sabia que esse monte de maquiagem te envelhece pra burro? Puxa, mas se
com vinte você já acha a vida um saco, imagina mais de três séculos de tédio!
– Ah, mas você não entende! Ninguém nunca me entende! Você não sabe como
a minha realidade é insuportável. É diferente pra você, você tem sua própria vida,
você faz o que quer e não tem ninguém pra te mandar, te encher o saco, te fazer
entrar no esquemão podre e antiquado. Você não tem pai, mãe e um monte de
professor mandando em você, implicando com teu piercing, criticando seus amigos, te forçando a estudar, proibindo de fazer tatuagem, ficando acordado pra te
dar bronca porque chegou tarde…
– É, você tem razão. Ninguém me dá bronca. Meus pais, meus irmãos e meus
professores morreram faz quase três séculos.
– E aposto como você fez um monte de amigo legal nesse tempo, tipo assim um
pessoal que se diverte, sai de noite, apronta pra caramba, maior barato…
– Ah, fiz amigos, sim. Pena que a maioria já morreu. Muitos inclusive fui eu
mesma quem matou.
– Ai, nossa, que barato! Como você é poderosa! Você já matou muita gente?
Ah, mas que tonta eu, claro que já matou, é assim que você vive. Ah, sabe que eu
tenho fascinação pela morte?
– Hum, nossa, sério? Que… interessante.
– É, eu tenho uma atração estranha pelo mórbido, eu sei que as pessoas acham
mó esquisito, mas eu me interesso por tudo que se relaciona com morte, tipo,
assisto filmes de terror, curto visitar cemitérios de noite, tenho tesão por caras bem
pálidos e sombrios, me excito quando me tocam com as mãos geladas. Acho que
39
Conto
eu me daria super-bem como vampira.
– Puxa, não duvido.
– Me transforma.
– Não.
– Ei, que história é essa? Como não, assim, na lata? Você não vai nem dar uma
chance de argumentar?
Nesse momento um carro que vinha vindo devagarinho parou perto das duas.
– Ô, você aí, loirona, quanto é?
– Sai fora, otário, a loira já tá ocupada, a gente só tá tratando o preço.
– Porra, gatinha, fala sério! Tão gostosinha e sapatão…
O cara acelerou e sumiu.
– Tá, então você quer argumentar, né? Vamos pra um lugar mais sossegado.
– Tem um barzinho gótico…
– Que barzinho o quê…
Lucila foi em direção a ela e a abraçou, e quando, após um momento de confusão, a menina gótica deu por si, estavam em um lugar escuro, onde o vento soprava forte. As estrelas brilhavam pálidas e raras por cima de sua cabeça.
– Onde a gente está?
– Vem até aqui e olha.
– Nossa! Demais! Como é alto aqui, dá pra ver a cidade inteira.
– Pode começar a argumentar.
– Cara, você TEM que me transformar.
– Por quê?
– Por quê? Por quê? Porque sim, ué! Você não vê que eunasci para ser vampira?
Eu amo a noite, não suporto o sol, a claridade, aquele monte de cores, as pessoas
felizes…
– Que que têm a ver as pessoas felizes com o sol?
– Ah, não me sacaneia, você nunca viu como as pessoas ficam idiotas, sorrindo
que nem umas débeis mentais, quando tem sol? Ah, desculpa, esqueci que faz mais
de trezentos anos que você não vê o sol. Esse negócio de felicidade me dá vontade
de vomitar, aquele monte de babaca se iludindo, achando que sabem das coisas.
Cara, não tem porque as pessoas serem felizes. Viver é uma merda.
– Tá, e por isso você quer que eu te transforme, pra você viver pra sempre.
– Mas não é viver, não é? Quer dizer, eu sei que você não parece morta, pelo
menos não agora que você tomou sangue, mas você também não tá viva… não é?
– É.
– Ah, sei lá, não tô conseguindo me expressar bem, mas eu sei que você me
entende. Eu quero as trevas. Viver na escuridão.
– Escuridão. É isso que você quer?
– Só, cara, as trevas eternas.
– Por quê?
– Porque eu não quero ser igual aos outros. Você não entende? Eu sou diferente, eu vejo o mundo como ele realmente é. Eu não sou como o resto da humanida40
Scarium
de. Eu preciso ser diferente. Eu preciso expressar o meu verdadeiro eu. Se eu viver
minha vida do mesmo jeito que meus pais, que o meu irmão mais velho, que os
meus tios, eu vou enlouquecer!
– Tá, tudo bem, essa parte eu já entendi. Agora me explica exatamente porque
é que eu tenho que te transformar numa vampira.
– Porra, mas como você é teimosa, meu! Olha só: eu tenho espírito de vampiro,
estou cansada dessa vidinha de merda, e pra você não custa nada me transformar.
E se depois você não quiser saber de mim, eu não vou ficar te pentelhando e caio
fora da tua vida, juro.
– Hum, resumindo, você está de saco cheio da vida, você anseia pela escuridão
eterna e acha que eu posso quebrar teu galho. E se eu quiser me livrar de você,
você me deixa em paz, na boa.
– Isso.
– Tá, então vem cá. E não grita.
A expectativa iluminava o rosto pálido da garota quando ela se aproximou de
Lucila, e quando Lucila a segurou pelos braços, e ainda estava lá quando Lucila a
empurrou por cima da mureta que rodeava o alto do prédio. Já devia ter desaparecido durante os segundos que durou sua queda através dos quase trinta andares.
Os ouvidos sobre-humanos da vampira escutaram o baque do corpo na calçada
lá embaixo.
Logo ia amanhecer. Ela foi para casa.
Horas depois, quando acordou de mau humor, com o equivalente vampírico de
uma ressaca, ela se lembrou contrariada do que havia feito. Tinha perdido o controle. Tinha se arriscado à toa. Riscos inúteis, dona Lucila, outra vez. Será possível que você não aprende? Sangue drogado sempre te deixa doida e dá merda!
Ela devia era ter bebido a menina. Nunca o cara chapado. Desse ela devia ter
quebrado o pescoço. Deviam ter sido três os cadáveres no acidente do viaduto.
O telefone tocou. Ela sabia quem era. Seu brinquedo humano. A dona do apartamento onde estivera ontem de noite.
– Alô.
– Lucila, me diz que você não tem nada a ver com a menina que acharam morta
aqui na frente do prédio.
Ia ser uma bela discussão.
Martha Argel - Bióloga, autora do romance “Relações de Sangue” (Novo Século),
“Olhos de Gato” (Writers), Contos Improváveis (Writers) e organizadora da coletânea
“Lugar de Mulher é na Cozinha” (Writers).
41
Mistério
A Coruja
Arcano
Dez horas da noite. Eu olhava para a janela do meu quarto. O céu tinha poucas
nuvens, a lua estava cheia e brilhava fortemente. Vi um morcego voando,
aproveitando a liberdade que ele tinha.
Eu não conseguia me controlar. Era sempre assim. Toda noite surgia uma vontade
avassaladora de escrever um conto ou uma poesia. Parecia que a noite me obrigava
a escrever. Eu tentava dormir, mas não conseguia. Virava de um lado para o outro
completamente perturbado e nervoso.
Eu já estava me acostumando a trocar o dia pela noite. Tornar-se um noctívago
parecia ser uma solução. Mas eu não podia, meu trabalho não permitia. Se eu não
dormisse durante a noite, não conseguiria trabalhar durante o dia. Era sempre
assim: se eu não escrevesse algo, não conseguiria dormir. E sempre que surgia a
vontade de escrever, uma coruja aparecia na minha janela. Eu deixava a janela
aberta, já estava me acostumando com a presença da coruja. Eu acreditava que ela
poderia me ajudar, que a inspiração de muitos textos que escrevi vieramda coruja,
como se a natureza estivesse me ajudando. E todos os dias quando ela apareceria
eu deixava um pote de água na janela. Às vezes ela bebia, mas eu não sabia nada
sobre corujas, muito menos o que elas comiam. No princípio, ela parecia arisca,
mas com o tempo ela foi perdendo o medo de mim, até entrar no meu quarto. Um
mês se passou e eu já estava me tomando muito amigo da coruja. Parece estranho,
mas eu e a coruja tínhamos uma amizade muito forte, tão forte que cheguei a
acreditar que ela era uma parte de mim, ou seja, eu não conseguia escrever sem ela
por perto. E realmente, isso aconteceu durante umas noites em que a coruja não
apareceu no meu quarto. Foram noites muito mal dormidas. Eu não queria nem
pensar que ela poderia ter morrido. Mas na outra noite ela voltava, eu escrevia
uma poesia ou um conto e dormia tranqüílamente. Porém, naquela noite de lua
cheia, às dez horas da noite, mesmo com a coruja em meu quarto, eu não conseguia
escrever nem mesmo um simples verso. E é ai que a história toda começa.
Enfurecido, nervoso, eu caminhava de um lado para o outro. Olhava para o
relógio. Já passava das onze horas.
A coruja era pontual. Chegava em meu quarto às dez horas, durante todas as
noites. E só ia embora quando o dia amanhecia. Eu deixava a janela sempre aberta,
dormia com a janela aberta.
Quando deu meia-noite, fiquei enlouquecido. Eu tinha que acordar cedo para
trabalhar, mas não conseguia dormir, muito menos escrever. A coruja me olhava,
com aqueles olhos grandes, amarelos, com uma grande circunferência negra no
centro. Ela parecia assustada, mas isso era uma falsa impressão. Seus olhos
arregalados davam essa falsa impressão, mas suas penas negras e brancas pareciam
revelar uma sabedoria maior que a minha. E seu bico encurvado demonstrava
respeito para um animal que nem sempre é doméstico.
Eu não suportava mais o olhar da coruja
— O que aconteceu, será que não somos mais amigos?
Meia-noite e meia. Olho para o papel, seguro o lápis e apoio meus cotovelos
sobre a escrivaninha. Mas nada surge, nada sai da minha mente. Olho para o lado,
42
Scarium
e lá está a coruja olhando para mim. Ela gira a cabeça até as costas e olha para a
Lua, como se estivesse evitando meu olhar.
Uma hora da manhã. Desisto de escrever e vou para a cama. Apago a luz e tento
relaxar, dormir. Minha última visão antes de pegar no sono foi o olhar da coruja.
Seus olhos brilhavam na escuridão.
Minha visão estava um pouco embaçada. Com um pouco de esforço, consigo
ver dois pontos amarelos na escuridão. Eram os olhos da coruja.
Acendo a luz e olho o relógio: duas e meia da manhã. Xinguei todos os palavrões
que conhecia.
— Quase que eu consigo dormir, quase! A coruja já estava me irritando com sua
presença sinistra em meu quarto.
— Maldita seja. Nem ao menos deu um pio de conselho!
Andei de um lado para o outro, xinguei a coruja, quebrei os vidros da janela
arremessando os livros que encontrava pela frente.
Olhei para a coruja. Naquele momento eu a odiava.
— Você pensa que não vou conseguir escrever, mas está muito enganada. Hoje
eu vou escrever com ou sem sua ajuda, coruja dos infernos!
A inquietação era grande. O terrível desejo de terminar um conto ou uma poesia
atormentava- me a alma. Não era uma noite nada agradável para se ter uma insônia.
Fazia muito calor, não tinha nada para se fazer e eu estava com dor de cabeça.
Subitamente, tive uma estranha idéia.
— Já sei o que vou fazer, coruja maldita. Se você não me trouxe inspiração hoje,
vou atrás da inspiração.
Saí de casa e fui até o cemitério mais próximo. Levei meu caderno e meu lápis.
Não precisava nem de lanterna, a lua brilhava tão forte que era possível ler um livro
no cemitério. Pode parecer um lugar sinistro para pegar inspiração, mas devo
lembrar que tudo que escrevo está ligado ao sinistro olhar da coruja.
Sento num túmulo e contemplo a lua, esperando surgir uma idéia para pôr no
papel. De repente, um mendigo surge na minha frente e pergunta:
-— Poeta, louco ou apenas alguém com depressão?
O mendigo carregava uma garrafa de vinho. Seu andar cambaleante denunciava
seu estado de bêbado.
Senti desânimo e raiva ao mesmo tempo. Sua presença estava tirando minha
concentração.
— Sou poeta. Mas louco o suficiente para admitir que meus versos refletem
minha depressão.
— E de onde vem sua depressão? — Perguntou o mendigo.
— Da incapacidade de viver em paz, sem o tormento da vontade de escrever
— Tome um gole de vinho. Você vai melhorar.
— Não, obrigado.
Eu não queria beber no mesmo gargalo que o mendigo bebeu. Mas a vontade de
beber era grande. Ele ficou falando um monte de besteiras. Perguntou se eu
acreditava em fantasmas, pois ele já tinha visto muitos no cemitério. Sua conversa
era um verdadeiro tédio. Primeiro porque eu não acreditava nas histórias de um
bêbado, segundo porque eu queda ficar sozinho. Ele falava muito, mas minha
mente estava distante. Eu estava pensando na coruja que deixei sozinha em meu
quarto. De repente, o mendigo diz algo que desperta minha atenção. Duas palavras
43
Conto
no fim de uma frase, pois eu não estava prestando muita atenção no que ele dizia.
— ... aquele fantasma.
Eu estava olhando para a Lua e refletindo. Mas ao ouvir as palavras “...fantasma.”,
olhei para ele e perguntei:
— Como disse?
— Foi o que eu acabei de dizer. Vejo muitos fantasmas neste cemitério, inclusive
aquele fantasma.
O mendigo apontou para um cruzeiro perto de onde estávamos. E lá estava o
fantasma de uma mulher. Parecia usar um longo vestido branco, e corria suavemente
sobre as covas.
Fiquei perplexo. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Mas o mendigo,
estranhamente, parecia feliz com a presença do fantasma.
— Não é demais ter a companhia de um fantasma num cemitério?
O mendigo dava gargalhadas, pulava de alegria. Como se aquilo fosse a coisa
mais excitante que poderia existir. Mas eu não sentia o mesmo. Eu estava com
medo e não conseguia me mover. O mendigo parecia não entender isso. Ele pedia
para que eu escrevesse uma poesia em homenagem ao fantasma.
— Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que eu
vejo! O mendigo parecia zombar de mim. Suas gargalhadas estavam me
atormentando. Tentei fugir. Corri o mais depressa que pude até a saída do cemitério.
Mas surgiram outros fantasmas que me seguiram e me cercaram, impedindo a
minha saída do cemitério. Tentei fugir dos fantasmas, corri e me escondi atrás de
uma capela. Naquele momento, pensei que tinha fugido dos fantasmas, mas de
repente surge o mendigo gritando:
— Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que eu
vejo!
Os fantasmas conseguiram me pegar. Deram voltas ao meu redor, rapidamente,
como um rodamoinho. Eram muitos, mais de cem. Senti meu corpo girar com o
vento que eles faziam e ser enterrado no chão da cintura para baixo. Depois, os
fantasmas foram embora, mas o mendigo ficou perto de mim. Tentei sair do chão
mas não consegui. Pedi ajuda ao mendigo, mas ele só dizia:
—- Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que
eu vejo!
De fato, eu estava enterrado. Mas meus braços estavam livres e eu ainda segurava
o meu caderno e o lápis. Tentei pedir ajuda ao mendigo muitas vezes, mas ele só
dizia as mesmas palavras. Parecia que eu agora estava condenado a escrever
forçadamente, até o momento da minha morte. Escrevi algumas poesias e um
conto, mas não era o suficiente para o mendigo. Gritei, ninguém ouviu. O mendigo
disse que só iria me libertar quando as minhas escrituras fossem suficientes para
ele. E a noite demorava a passar. Pareciaque eu estava condenado a uma noite
eterna de sofrimento. Talvez invocada por mim mesmo.
De repente, tive uma idéia: comecei a sussurrar para o mendigo, de uma forma
que ele não pudesse me ouvir. O mendigo se aproximou de mim e tentou ouvir
mais de perto o que eu sussurrava para ele. Quando ele chegou bem perto, peguei
seu pescoço e comecei a apertar bem forte. Era melhor ter ele morto do que correr
o risco de ser assassinado. Apertei tão forte que meu braço doía. Já não era mais
uma questão de sobrevivência, e sim, de um ódio que subitamente possuiu meu
44
Scarium
corpo. E quando o mendigo parou de se mover e morreu, vi que eu estava
novamente em meu quarto, deitado na cama. Tudo não tinha passado de um sonho.
Já era dia, o relógio marcava seis horas da manhã. E nas minhas mãos, uma surpresa:
a coruja estava morta. Eu estrangulei a coruja enquanto estava sonhando, como se
ela fosse o mendigo do meu sonho.
Epílogo
Dias depois, fui ao cemitério enterrar a coruja. Ela foi minha amiga, e eu a tinha
matado. Isso me deixava muito triste. Perdi a vontade de escrever antes de dormir.
Sem a coruja, a vontade desapareceu. E voltei a dormir tranqüilamente durante
todas as noites. Mas aprendi uma coisa no dia que enterrei minha amiga coruja:
quando saí do cemitério, ouvi um pio que eu reconhecia muito bem. Olhei para
trás e vi uma coruja em cima do portão do cemitério. Não era a coruja que eu
conhecia, mas pelo olhar dela, pude ver que ela pertencia a outro escritor. Pois
aprendi que todo escritor tem uma coruja que o assombra.
Arcano (Alexandre Souza) é militar e poeta. Editor do fanzine “Sombrias
Escrituras” e autor da obra “Anjo Soturno”.
Relançamento
Você pediu e ela voltou!
Complete a coleção
Edição limitada
Scarium MegaZine Nº 0
Promocional:
R$ 4,00 (Quatro Reais)
Pedidos para:
[email protected]
Rua Castorino Francisco Nunes, 88 13/204
21.921-544 Rio de Janeiro - RJ
45
Ficção Científica
Coração de Metal
Miguel Angel Perez Corrêa
No ano 2432 o planeta Terra e todas as colônias, passavam por uma profunda
crise. A escassez de berquélio, um metal extremamente raro de origem extraterrestre,
único que tornava possíveis as viagens interplanetárias pelo tchion-espaço, jogou a
humanidade em uma era de decadência.
As megacorporações dividiam entre si o controle dos setores da confederação, que
aos poucos foram ficando isolados devido aos altos preços das viagens espaciais.
Pequenas rebeliões surgiam, aqui e ali, sem ameaçarem a nova ordem imposta. As
empresas, apesar das divergências, mantinham um pacto e dividiam pacificamente
todo o transporte espacial de mercadorias. Auferiam altos lucros a custa de inúmeras
vidas humanas. Até que um fato novo quebrou o equilíbrio existente.
***
Julian Kraff era um jovem notável. Não somente por suas habilidades como estrategista militar e piloto, mas também por seu justo julgamento.
Ele agora estava tentando, sem sucesso, concentrar-se para a primeira inspeção, ao
maior, e mais veloz cruzador espacial já construído. Não podia deixar de sentir repulsa
diante de tanto desprezo pela vida humana. Havia milhões de pessoas morrendo, sem
alimentação, abrigo ou remédios em todos os cantos da federação, e os burocratas do
governo preocupados em construir naves para enfrentarem uma batalha contra o Pacto,
que certamente não tinham como vencer.
Seria diferente se tivessem tentado isso há uns cinqüenta ou sessenta anos, mas na
época estavam felizes com a lucratividade dos negócios e tudo caminhou conforme o
Pacto desejava. Até que eles monopolizaram o comércio e os lucros dos políticos foram
por terra. Então resolveram antagonizar o Pacto, entretanto já era tarde. Eles eram
poderosos demais.
— Malditos burocratas — disse em voz baixa, mas foi ouvido.
— Como disse senhor? — perguntou um soldado, um tanto fora de forma e muito
carrancudo.
— Nada! Nada! — repetiu.
Ele sabia que se seu comentário chegasse aos ouvidos dos tais burocratas, nos dias
atuais, poderia ser condenado à morte por traição ao estado, e ressentia-se por isso.
Com grande esforço conseguiu se concentrar e, acreditava, poderia proceder a inspeção. Seu rosto fino e bem delineado mostrava linhas duras e não deixava transparecer
a confusão que havia dentro dele. Idéias que há tempos o atormentavam, mas que nem
mesmo havia notado, agora começavam a tomar forma. Eram idéias tão perigosas e
insólitas que, até então, sua mente não as havia revelado em sua verdadeira forma.
Ele percebeu, após longo tempo, que havia optado pelo lado errado, que se quisesse
ajudar seu povo, e o povo de todas as colônias, deveria tomar uma atitude naquele
momento, quando a oportunidade lhe surgira à frente.
46
Scarium
Natural de Dione, Julian era uma pessoa de alma simple e ideais firmes. Vivera lá até
ser recrutado pela federação para o serviço. Quando tivera de abandonar seu lar e sua
família pelo bem do estado, não o fizera com magoa ou revolta, mas sim com orgulho.
Acreditava que faziam o melhor pelo povo, no entanto isso não correspondia exatamente à verdade.
Há duas semanas, o jovem capitão-de-fragata soubera de algo que mudaria sua vida
e sua maneira de encarar o mundo.
Um cometa, um dos grandes, caminhava rumo a sua colônia natal. Isso não seria
grande problema, a tecnologia disponível era ótima para resolver esse tipo de coisas,
porém o Pacto achou por bem manter tudo em segredo e apenas eles sabiam de onde
vinha o tal cometa. O cerne da questão era, segundo a fonte de Julian, que o cometa
tinha o “coração” de metal. Justamente, um coração formado pelo metal mais precioso
do universo, o berquélio, e isso fez com que o Pacto desconsiderasse o fato de que tal
atitude condenaria uma colônia de vinte milhões de pessoas a total destruição.
O Pacto optara por essa maneira nada simpática de agir, pelo fato da federação,
nessa época ter começado a opor-se a seus interesses, e caso a colisão com Dione, —
que por coincidência era de seu domínio legal por escrituração pública, já há oitenta
anos— , fosse evitada, o metal seria espalhado por todo o espaço e poderia ser recolhido
por qualquer um. Com a quantidade de berquélio, que acreditava-se estar contida no
cometa, a dominação do Pacto chegaria ao fim e a federação poderia novamente controlar o espaço. Os lucros cessariam.
Julian sabia que a informação também deveria ser de conhecimento da federação e
que esta, devia estar tentando a todo custo descobrir a trajetória do cometa a tempo de
evitar a colisão. Já não tinha ilusões quanto às motivações da federação. Não se tratava
de salvar vidas, mas de poder. Queriam retornar a posição de domínio exercida no
passado, com extrema incompetência, — pensava o capitão — , e para isso não mediriam esforços. Entretanto não ficaria esperando. Seus pensamentos foram interrompidos
por uma sirena muito estridente e bem conhecida de seus ouvidos.
— É hora — disse o homem carrancudo ao seu lado.
O capitão de fragata, meioatordoado pelos pensamentos inoportunos sentiu-se por
alguns instantes perdido.
— Vamos ver o que podemos fazer — disse, tentando aparentar entusiasmo.
Ele olhou a sua volta e lá estavam eles: seis homens da mais alta patente da armada;
quatro colegas de esquadra e seu suboficial e melhor amigo, Jorge Walsh. Não ousava
olhar para ele, sabia que como amigo de tantos anos notaria alguma coisa. Não era um
plano do qual se pudesse fazer comentários.
Todos, sem exceção, cumprimentaram Julian Kraff. Afinal, a ele caberia a honra de
comandar o maior cruzador da armada, o que tornaria a federação grande e poderosa
novamente. Poderia derrotar uma esquadra inteira do Pacto sozinho, mas Julian sabia
que não seria assim.
Durante todo o percurso até o campo de decolagem, que durou alguns minutos,
Julian não pronunciou uma palavra, tinha medo de que qualquer coisa que dissesse o
traísse, mas foi o silêncio que o fez.
— O que há? — perguntou Jorge.
Julian precisava contar, não suportava mais o peso da responsabilidade sobre seus
ombros, mas era perigoso demais e ele não devia, limitou-se a manear a cabeça e fazer
47
Novela
um gesto, colocando o dedo indicador diante da boca. Jorge entendeu e permaneceu,
como Julian, calado o restante da viagem.
O viagem, no automóvel onde estavam Julian e Jorge, seguiu num silêncio aterrador.
O veículo deslizava em um campo magnético sem atrito e estava equipado com um
supressor de campo inercial, de forma que dava a sensação de estar parado. Como os
vidros estavam opacos devido a ordens do comando, não havia meios de se ter certeza
de que o veiculo realmente estava em movimento. O trajeto não era por demais longo,
mas para Julian pareceu uma eternidade.
Chegaram! Finalmente chegaram. Os campos de decolagem, nos áureos anos da
federação, eram lugares muito bonitos, arborizados, e muito visitados pelos turistas.
Hoje no entanto eram quase um deserto, sem arvores, lagos, animais ou visitantes. Viase apenas um único edifício parcialmente em ruínas e um fosso gigantesco em território
árido e hostil. Uma construção precária dava sinais de deterioração, o que deixava claro
o grau de decadência da federação e de todo o velho sistema.
Do gigantesco fosso surgiam arranha-céus, que a distância pareciam pequenas torres. Ninguém estava preparado para o que iriam ver.
Julian, assim como seus colegas de esquadra, mal pôde acreditar.
Ron Lau, um capitão com idade para estar na reserva e muitas vezes condecorado,
homem que durante toda sua vida pilotou as mais incríveis espaçonaves, levou a mão ao
rosto e esfregou os olhos.
— Inacreditável, realmente! — exclamou incrédulo.
Uma atitude semelhante, de assombro e incredulidade, tomou conta de todos os
demais, com exceção de Julian Kraff. Este estava simplesmente paralisado, com o olhar
distante como o de alguém que tem o dia todo para pensar em coisa alguma.
Lorins Col, primeiro oficial de ciências do Zulú, o maior vaso de guerra até então,
disse, com um pouco de inveja, que não conseguiu esconder:
— Isso não sai do fosso.
Mac’Vongraf e Oxin Ya capitão e primeiro engenheiro respectivamente da Almirante
Vongraf, nome dado a nave em homenagem ao bisavô de Mac, limitaram-se a uma troca
de olhares incrédulos.
A inspeção continuou rotineiramente, se é que isso era possível no caso dessa nave.
Julian a cada segundo ficava mais convicto do que precisava ser feito, só não sabia como
iria infiltrar-se no Pacto para roubar o segredo de que tanto necessitava para salvar seu
lar, sua família a tanto tempo deixada para trás e milhões de vidas.
— O que é que está havendo com você homem? — perguntou Jorge sabendo que
não obteria resposta.
Nesse momento um dos homens da cúpula da armada adiantou-se. O Almirante
Andrew Luneiev, era do tipo nada atlético, calvo, com o rosto um tanto gorducho e
cultivava um bigodinho minúsculo e ralo para encobrir o formato estranho de sua boca,
além disso era “O homem da guerra”, assim chamado por ser ele um homem de ação e
avesso a diplomacia e ocupar o mais alto posto da armada da federação.
— Bem senhores — disse — , apresento-lhes a arma definitiva. A capacidade desta
colossal obra de engenharia, tenho certeza, vai além do que todos são capazes de imaginar. Ela é capaz de transportar quinhentos mil fuzileiros armados até os dentes, tanques,
aviões de caça espaço-atmosféricos, e ainda sustentar a vida de todos esses homens por
cerca de sete anos em espaço profundo — fez uma pausa colocando as mãos no cinto.
48
Scarium
— Alguma pergunta? — O orgulho estava estampado em seu rosto.
Julian agora estava controlado e suas emoções não mais comandavam seu corpo.
Aquilo que se estendia por quilômetros a sua frente, era muito mais do que poderia
esperar. Era justamente o que ele precisava para convencer o Pacto de que era um
traidor.
Jorge estava confuso. Podia ver através de Julian. Os anos de boa amizade lhe possibilitavam saber que alguma coisa estava errada, mas o que?
— Mas... Para que tudo isso? — Perguntou o velho Lau. — Se não precisamos de
mais de mil fuzileiros e dois meses de sobrevida para nossas maiores reconquistas?
A satisfação no rosto do Almirante Luneiev era cada vez mais pronunciada.
— Bem... — começou, esperou um momento até notar que o suspense já havia
atingido o nível desejado e continuou: — Esta nave não foi forjada com fins de reconquista, mas sim de iniciar a expansão da federação até os confins da galáxia — disse,
com muita convicção, quase gritando.
Col não foi capaz de conter-se e deu uma gargalhada alta e grosseira. Todos, em seu
intimo, estavam dando aquela gargalhada, no entanto Col, sem dúvida, estava lançandoa desrespeitoso em cima dos grandes oficiais, e isto podia custar-lhe seu posto, se não a
vida, caso algum deles se sentisse ofendido. Logo que percebeu o tamanho da besteira
que estava cometendo moldou seu rosto em linhas sóbrias e duras.
— Não pude conter-me, lamento! – tentou desculpar-se e percebeu que fracassara.
O almirante limitou-se a lançar um severo olhar de reprovação e prosseguiu:
— Admito, que o que disse é bastante absurdo para os atuais padrões, por isso, não
será punido, primeiro oficial Col, mas... contenha-se. Continuando...
O Almirante pôs-se a falar por vários minutos e finalmente concluiu:
— Bem, capitão Julian Kraff, a nau é toda sua. Tem uma semana para efetuar os
devidos cálculos para o salto.
— Sim senhor — respondeu Julian, quase gritando e imaginando quão irônica pode
tornar-se a vida, a posição que tanto almejara no comando de uma capitânia finalmente
era sua, mas agora era tarde demais.
— Tome cuidado com ela. — disse o almirante em tom de brincadeira — Ela tem
mais poder de fogo que toda a armada unida.
***
Três dias depois, Julian conseguiu encontrar-se a sós com Jorge em circunstâncias
absolutamente insuspeitáveis. Foram caminhando até um parque próximo falando amenidades e quando chagaram, Julian contou tudo a seu amigo.
— Mas, por que você não me contou tudo isso antes? — quis saber Jorge.
— Eu não sabia o que deveria fazer.
— Então?
— Agora sei, meu amigo. Agora sei! — respondeu Julian com ar de pesar.
— E o que vamos fazer? — perguntou em voz baixa o fiel amigo incluindo-se nos
planos.
— Eu vou me infiltrar na organização do Pacto e tentar descobrir a trajetória do
cometa e o porque do segredo.
— Não me leve a mal, mas você é muito conhecido! Acha que vai conseguir entrar
para o Pacto e ainda ter acesso a informações desse tipo? — argumentou o imediato.
— Eu tenho algo para convencê-los de minha lealdade.
49
Novela
Subitamente, Jorge entendeu.
— Acha que será a coisa certa a fazer? O pacto, com o Soyus, se tornará virtualmente invencível.
— Não há outra saída.
***
— Então, mesmo com o vazamento das informações, o projeto está seguro? — quis
saber um homem de roupa de vinil negra, conforme a última moda.
Cinco homens estavam reunidos naquela sala há algumas horas. Estavam em uma
base secreta, num asteróide qualquer. Quatro deles, sentados ao lado da uma grande
mesa oval, eram de meia idade e tinham ar severo. O quinto, de pé, jovem e cheio de
vitalidade, dava explicações.
— Perfeitamente seguro senhor. O informante não sabia muita coisa e já foi
silenciado.
— Como tem tanta certeza de que ele não sabia muito? — perguntou o homem mais
à direita da mesa, de cabelos ruivos e nariz adunco.
— Nossos métodos são muito seguros. Associamos drogas e dor, se resistir a um cai
diante do outro — respondeu marcialmente o homem que estava de pé.
— Temos que evitar que coisas assim voltem a... — comentava o homem trajado
com vinil, quando foi interrompido pelo som de algo que caíra.
— Um momento cavalheiros — desculpou-se e foi verificar o que estava acontecendo. Ele era o anfitrião e aquela fortaleza nos asteróides era seu lar.
***
Do lado de fora da sala de reuniões Josep, encontrou sua filha. Ela era uma linda
garota. Seus olhos eram negros e profundos e seu corpo fazia calar o mais falastrão, mas
para o todo poderoso Josep Cadorin, não passava de uma menininha. Sua menininha.
— O que faz aqui, querida? — indagou.
— Nada, papai. Só estava passando e esbarrei na cômoda. Eu... — parou quando ao
pai a interrompeu.
— Depois conversaremos. Agora vá com sua mãe.
***
— Você está louco! Não vamos conseguir — comentou Jorge.
— Fale baixo! — Sussurrou Julian, discretamente olhando para os lados.
— Você enlouqueceu? Como pretende ter sucesso com isso? — perguntou o imediato, agora em voz baixa.
Julian baixou a cabeça e disse:
— Você não entende? Alguém tem que fazer alguma coisa. A hora é esta, o local é
este e esse alguém, somos nós!
— Mas Julian... — começou Jorge, mas foi interrompido.
— Você tem que entender — disse Julian controlando-se. — Minha família, meu
mundo está em perigo.
Desta vez Jorge é que interrompeu.
— Mesmo se eu ajudar não adiantará nada. Você não poderá enganar seus homens
por muito tempo. Eles perceberão e quando isso acontecer... Será côrte marcial para nós
dois.
— Você não entende. Eu não sou o único de Dione nesta nave. Escolhi cuidadosamente minha tripulação. Estou certo da ajuda de vários oficiais. Você tem que
50
Scarium
me ajudar.
***
Eram treze horas e trinta minutos exatos quando Julian deu a ordem que tirou o
descomunal artefato do fosso. Horário da base de controle de trafego espacial antártica.
Os foguetes que tornavam possível manobrar a nave eram tão grandes que ao serem
ativados provocaram uma onda de choque que se espalhou por quilômetros abaixo da
superfície atingindo o magma e provocando abalos num raio de sessenta quilômetros. O
processo de decolagem levou cerca de três horas e finalmente aquele maravilhoso fruto
da engenharia humana estava em órbita.
— Julian! — chamou o imediato — A Base Antártica pede confirmação pessoal de
nossa rota.
— Comunicação! Contato visual — ordenou o capitão. Aguardou uns poucos instantes, que aproveitou para armar-se de um escudo emocional, e então o contato foi
estabelecido.
— O que significa esta intromissão nos procedimentos rotineiros? — perguntou com
indignação.
— Desculpe capitão, ordens diretas do comando central Andino: Controle absoluto,
prioridade um.
— Esta tudo bem — falou com indiferença e continuou: — Com uma coisa destas
nas mãos ninguém é digno de confiança não é? — Ao que não obteve resposta. Então
prosseguiu:
— A rota estabelecida está confirmada pessoalmente por mim. Identifico-me como
Julian Kraff capitão do cruzador espacial Soyus.
— Posicione-se para exame da retina por favor — pediu muito educadamente a
moça do outro lado do transmissor.
Ele olhou fixamente para uma lente abaixo da tela de recepção pelos segundos necessários para a confirmação de sua identidade ,que não deixaria sombra de duúvida. Nesse
instante surgiu em sua mente a dúvida: Seria aquela a melhor forma de ajudar? Não
havia mais tempo para pensar. Neste momento Jorge que, como Julian nunca duvidara,
concordara em ajudá-lo. Estava recrutando os sete oficiais que ele indicara. Tarde demais para parar.
Jorge concordou em ajudá-lo mesmo não tendo nenhum interesse pessoal na colônia de Dione. Ambos, em uma reunião com os oficiais na cabina do comandante, relataram os fatos e convenceram os oficiais a aliarem-se, naquela que seria a última empreitada da carreira de cada um.
— Não achou estranho? — perguntou o imediato, quando este se encontrava novamente a sós com o Kraff.
— Estanho, o quê?
— Foi muito fácil. Ninguém se preocupou com a carreira que estarão jogando na
lixeira, ninguém ponderou outras linhas de ação...
— Eu disse que escolhi com muito cuidado meus tripulantes — contrapôs Julian.
— Pode ser, mas vou ficar de olho.
***
— Eu não posso acreditar pai — queixou-se a garota entre lágrimas. Dois dias
haviam se passado antes que o pai tivesse tempo de vê-la.
— Como imagina que chagamos aonde estamos? Das minas de irídio de Io ao topo
51
Novela
da maior organização que a humanidade já conheceu?
— Mas pai...
— Nossa organização é que mantém a humanidade — interrompeu o Sr. Cadorin.
— Sem nós e os mantimentos que transportamos trilhões de pessoas morreriam. Dez
milhões são nada se comparados com o bem que faremos ao restante do povo.
— Vinte!
— O quê?
— São vinte milhões que vivem lá — explicou a filha do todo poderoso do Pacto,
Josep Cadorin, sem levantar a cabeça, soluçando.
***
Dois dias passarem-se a bordo do cruzador Soyus em aparente normalidade, mas na
escuridão alguém conspirava e veio então a delação.
— Capitão! Um chamado do controle em seu canal privado — avisou o oficial de
comunicações, fazendo um sinal para que Julian atendesse em sua cabine.
O comandante entendeu a preocupação de seu aliado e foi para a cabine.
— Kraff, falando — iniciou.
— O que diabos pensa estar fazendo? Seu fedelho idiota! — quem esbravejava do
outro lado era o Almirante Luneiev, que parecia estar soltando fogo pelas narinas.
— Almirante! — reconheceu Julian, fazendo continência.
— Por que ainda me faz mesuras se está contra mim? — quis saber aquele que um
dia fora o maior inspirador do capitão.
— Senhor. Eu não estou contra o senhor ou quem quer que seja. Eu sou a favor da
vida. Vida que está sendo deixada em segundo plano pelos poderes econômicos e políticos envolvidos.
— Bobagem! — falou com desprezo o Almirante. — Você está roubando nossa
chance de mudar tudo isso e vai entregar o queijo aos ratos. Quanto vai levar?
— Sei que me conhece o bastante para saber que eu não faria isso por dinheiro ou
poder — retrucou Julian, tentando manter a calma.
— Então, conte-me o que pretende — ordenou o velho.
A discussão entre o Almirante e o jovem capitão durou mais de duas horas em que
Julian passou todas as informações que tinha e quais eram seus planos ao velho.
— Muito bem... — começou o Luneiev pensativo, olhando para baixo, passando a
mão no queixo alisando uma barba rala e grisalha. — Admito que seu plano tem pontos
positivos, mas é muito perigoso entregarmos a Soyus ao inimigo. E se seu plano falhar?
Nossas esperanças estarão perdidas para sempre. Não temos mais dinheiro para um
empreendimento como esse.
— Não falharei senhor — interveio Julian muito animado em ver que seu Almirante
entendera seus motivos e ao que parecia o estaria apoiando.
— Mesmo assim. Para o caso de falhar, faça as alterações que constam dos planos
que estou lhe enviando, nos sistemas da nave. Quando tudo acabar derretemos os reatores desse colosso. Sem chances de recuperação.
O jovem ficou apreensivo. Estaria o Almirante realmente do seu lado, ou os planos
que lhe passara seriam uma armadilha.
— Por que está me ajudando? — arriscou.
— Sou de Dione, como você! — respondeu o velho Almirante enquanto sua imagem sumia do receptor de Julian.
52
Scarium
***
A sala estava escura. Não queria arriscar-se acendendo as luzes. Sabia que se o pai a
pegasse bisbilhotando por ali, teria muitas explicações a dar e isso não fazia parte de seus
planos para o momento.
Sob a luz de uma pequena lanterna, ela revisava papéis e mais papéis. Procurava por
uma pista, por coordenadas, por mensagens cifradas.
Vários minutos passarem até que encontrou uma anotação com uma seqüência de
números. Era aquela. Tinha que ser, pois ouviu os passos de alguém se aproximando e
teve que se esconder.
De dentro do banheiro, único lugar onde pode pensar em esconder-se, viu o sujeito
que dias antes fazia relatórios a seu pai e aos outros senhores do Pacto. Desta vez, o
homem caminhava sorrateiramente e invadiu a sala de seu pai, ao que parecia com as
mesmas intenções que ela. Vasculhava tudo rapidamente, tomando cuidado para não
fazer barulho e recolocar tudo nos seus devidos lugares. Ela não teve dificuldades para
concluir o que isso significava. O Pacto estava sendo violado e alguém estava tentando
roubar as informações que seu pai possuía. Sabia que correria grandes riscos pelo que
estava fazendo, mas não podia ficar de braços cruzados enquanto seu pai condenava
vinte milhões de pessoas a morte.
***
Era chegada a hora. Entraram em órbita estacionária, próximos a Deimos. Desembarcaram grande parte da tripulação que nem mesmo entendeu o que estava se passando com exceção de um, o oficial de máquinas que fora o autor da denúncia que veio
mostrar-se bastante favorável a Kraff. Mais tripulantes foram recrutados, dentre os homens e mulheres em que cada um dos oficiais achou que poderia confiar, e destes,
poucos se recusaram a colaborar.
De Deimos ao cinturão de asteróides a viagem correu sem problemas. Quando chegaram as fronteiras do cinturão, a Soyus foi interceptada por uma esquadra de naves
“comercias” do Pacto e, após longas conversações e uma abordagem sem resistência,
escoltada até uma base insólita em meio às rochas flutuantes.
O jovem capitão foi recebido com desconfiança, a princípio, porém quando os membros do Pacto analisaram o presente que ele lhes ofertara em prova de lealdade logo o
acolheram como um dos seus.
Julian tinha pressa. Não sabia a que distância estaria o cometa e ninguém mencionava
o assunto. Teriam caído num blefe? Agora, ele agradecia por ter confiado no Almirante
e feito aquelas modificações no cruzador. Caso tudo não passasse de uma cartada do
Pacto, acabariam por se arrepender amargamente.
Em uma recepção oferecida pelo Capo, denominação dada, informalmente, ao presidente do Pacto. Julian foi apresentado à linda filha do empresário, Bárbara. Trocaram
olhares. Conversaram sobre muitas coisas. Quando o rapaz mencionou que era de Dione
a garota mudou. Mesmo sem conhecê-la bem Julian percebeu.
— O que houve? — perguntou. — Foi alguma coisa que eu disse?
— Não. Está tudo bem — respondeu a garota pensativa.
Depois de alguns segundos, perdida em seus pensamentos falou:
— Como você entrou para o Pacto? Quero dizer: Se você era um oficial da
federação?
— Bem, eu... — ele não sabia o que responder. — Tive problemas com o comando!
53
Novela
Ele ficou inquieto com a pergunta dela e percebeu que ela estava inquieta também,
como alguém que tem algo a dizer.
— Tem alguma coisa incomodando você? — insistiu.
— Tem! — respondeu, Bárbara, com os olhos marejados.
— O que está havendo? Confie em mim!
Ela não sabia se devia, ou não, mas o fato é que falou. Falou como se tivesse reencontrado um velho amigo. Contou tudo o que sabia e passou a Julian um pedacinho de
papel, que este guardou discretamente num bolso em seu traje de gala de uma azul quase
negro.
Nesse momento o Sr. Cadorin se aproximou e perguntou severo:
— O que está havendo?
— N... Nada Papai. Acho que exagerei um pouquinho no licor. Só isso. O senhor
Kraff estava me ajudando a entrar. Vou me recolher.
— Já é hora. Senhor Kraff... — fez uma referência olhando severamente nos olhos
do rapaz e voltou para a beira da piscina de sua fortaleza em estilo medieval, construída
sob uma redoma de puro berquélio transparente, o que deixava a vista um céu impressionante acima das cabeças de seus convidados.
***
Jorge chegou da recepção horas mais tarde que seu amigo e o encontrou andando de
um lado para o outro do luxuoso quarto que fora colocado a sua disposição enquanto
permanecessem ali.
— Olá, amigo. O que faz em meu quarto? — inquiriu o ex-primeiro oficial da armada
da federação. Que saudades tinha desse título, e só deixara de usá-lo fazia dez dias.
— Eu tenho — sussurrou depois de ligar uma música, para tentar evitar as escutas
que estavam certos deviam estar instaladas por toda parte.
— O que?
— A filha do Capo, Bárbara. Ela me deu as coordenadas. Quando eu perdia as
esperanças, por não termos nenhuma liberdade de ação por aqui, ela vem e me coloca a
informação nas mãos.
Ambos ficaram se olhando sem fala por alguns instantes, então Jorge quebrou o
silêncio:
— Temos que levar essa informação para fora daqui.
— Eu sei. Já dei uma olhada e pela data, deve faltar muito pouco. Temos que sair
daqui hoje. No máximo, amanhã.
— Como faremos isso? – quis saber Jorge, falando cada vez mais baixo.
— Temos que sair e levar nossa nave.
— Acha que teremos alguma chance de escapar daqui? — inquiriu o amigo,
incrédulo.
— Não temos escolha. Essa é nossa força!
***
A conversa do dia anterior estendera-se por várias horas. Planejaram tudo. Alguns
teriam que arriscar-se e chamar a atenção para que os outros pudessem invadir um
transporte e roubar pelo menos um caça para que tivessem a mínima de chance de
alcançarem a Soyus.
Julian quis, antes de dar inicio a operação, despedir-se de Bárbara . Sem saber tomou
a atitude que colocou toda a atenção sobre si. O Capo havia ficado desconfiado na noite
54
Scarium
anterior e com Julian procurando por Bárbara, fixou ainda mais sua atenção nele.
Os dois encontraram-se em um jardim artificial e foram vigiados de perto, porém
discretamente, por vários homens de confiança do Sr. Cadorin, até que um tumulto nos
hangares os fez saírem dali.
— Nós mal nos conhecemos, mas... — ele não sabia se seria correto expô-la aos
perigos que tinham a enfrentar, mas não resistiu ao seu coração. — Venha comigo.
— Ir com você? Do que está falando?
— Nós voltaremos ao espaço hoje. Já está começando, percebe? — perguntou
mostrando o jardim sem guardas.
— Começando?
— Meus amigos devem estar invadindo os reatores neste momento.
— Por que pensa que não vou denunciá-lo a meu pai?
— Não teria me passado as coordenadas se quisesse me entregar — respondeu
Julian, receoso de que aquilo fosse apenas um teste.
— Vou com você, mas prometa-me uma coisa — pediu a garota com os olhos em
chamas.
— O que?
— Deixe este lugar intacto. Cresci aqui e minha mãe e pai vivem aqui.
— Está bem, mas vamos sair daqui — disse o rapaz puxando-a pelo braço, discretamente, até que puderam correr escondidos pelas árvores.
Em minutos estavam próximos ao hangar “B”, por onde iriam escapar, juntamente
com alguns dos outros, para chagarem à Soyus.
— Temos que pegar um transporte e um ou dois caças. Conseguiram armas? — quis
saber, novamente, capitão.
— Somente estas aqui — respondeu o oficial de comunicações Petrolov, mostrando
três armas de mão.
— Com isso não vai ser fácil, mas é o que temos — observou Julian. — Vamos logo
que temos que resgatar o Jorge e os outros no “D”.
O capitão deu um beijo em Bárbara e fez sinal com a mão para que ficasse abaixada.
Sorrateiramente, o grupo de oito homens e duas mulheres foi se aproximando das
naves. Separou-se. Um grupo de quatro foi para a torre de comando, onde rendeu
facilmente os operadores desprevenidos e os trancou num armário de equipamentos.
Outro grupo de quatro invadiu uma nave de transporte que para surpresa deles estava
desguarnecida e os outros dois foram para os caças que estavam sendo revisados por
um mecânico magrelo, que ao perceber a ação tratou logo de cair fora, mas foi impedido
por um negro corpulento, oficial de segurança da Soyus, que o atirou dentro de um
enorme tanque vazio.
As naves estavam em poder dos federados. Julian correu com cuidado para buscar
Bárbara e descobriu com tristeza que ela fugira. Logo estava dentro do transporte com
os outros. Os quatro da torre de controle acionaram as comportas de decolagem e se
apressarem para unir-se aos demais.
Nesse momento uma avalanche de soldados do Pacto adentrou o hangar e preparava-se para obstruir a comporta, quando uma explosão os atirou para longe. Alguns
atordoados, muitos feridos, a maioria morta.
— Que foi isso? — perguntou Julian.
— Um presente surpresa, chefe! Há, há, há!!! — gritava José, o oficial de segurança.
55
Novela
— Gostou?
— Muito, José. Muito!
As naves decolaram em meio a fumaça e poeira. Por sorte passaram pela fresta da
comporta e logo que saíram da redoma puderam localizar facilmente o hangar “D” pois
o mesmo estava jogando para fora um jato de ar indicando que também tinha recebido
um tratamento todo especial de José.
O transporte entrou sem dificuldades no hangar completamente destruído, enquanto os caças davam rajadas de laser para evitar a aproximação de algum eventual soldado
que não se via por ali. O grupo, que lá esperava, não era mais de quatro pessoas e sim de
três. Quando entraram, Julian ficou esperando que seu amigo entrasse.
— Ele se foi — disse uma voz feminina lamuriante.
Julian ficou desconcertado por alguns segundos. Deixou-se cair numa cadeira enquanto o transporte decolava em meio aos tiros dos caças.
Quando iniciavam a subida rumo ao cruzador, surge de trás de alguns asteróides
próximos, como um enxame de abelhas, várias naves caças do Pacto.
Para sorte do grupo federado, o intuito daquele mar de naves não era proteger a
Soyus de um ataque partindo do asteróide base e sim de assaltos vindos do exterior. Por
isso os caças estavam relativamente distantes. Nada em escala astronômica, mas o suficiente para lhes garantir a dianteira que precisavam para entrar novamente no cruzador.
No momento a Soyus estava ocupada apenas por cientistas, contratados pelo Pacto,
para decifrarem os segredos tecnológicos da máquina e não opuseram resistência, zelando pelas próprias vidas.
Cinco caças tentaram pousar, mas acabaram colidindo contra o casco do cruzador e
apenas inutilizaram o hangar. Logo a Soyus estava novamente aquecendo os reatores e
sob comando da federação, ou pelo menos de homens fiéis a ela.
— Levantem os escudos — ordenou Kraff, muito abalado com a morte de Jorge. —
Temos berquélio suficiente para um salto?
— Sim senhor — respondeu enfática, Miriam, oficial calculista de primeira classe.
— Então, vamos para o mais próximo que puder nos levar de Saturno.
Dali por diante a Soyus fez o resto. Realmente o Almirante Luneiev tinha razão. A
nave resistira sem dificuldades aos ataques das fragatas do Pacto, e escapara da perseguição de dois destróieres classe A sem maiores problemas. Era uma bela nave, pensava
Julian, agora.
***
Em Dione, o alto da colina era o lugar ideal para alguém que quisesse observar a vida
à distância. Podia-se ver e não ver ao mesmo tempo. A vida nos dias atuais não era coisa
que alguém quisesse ver muito de perto. A morte estava em todo lugar esperando que
alguém fraquejasse.
Bren era o irmão mais jovem de Julian e estava alcançando a idade do recrutamento;
seus pensamentos, porém seguiam em outra direção. Ele estava preocupado com outros assuntos. Como ajudar sua família e seu pequeno mundo. Não sabia como Julian,
seu irmão, receberia a idéia de que ele, o irmão do sujeito mais badalado da armada, não
queria servir a federação. Um grito interrompeu seus pensamentos.
— Bren! Bren! — gritava a distância, uma figura gorda e esfarrapada.
— Estou indo — respondeu ele, também com um grito. Levantou-se, tirou a poeira
de seus trajes, também puídos, batendo com a mão por toda parte e correu em direção
56
Scarium
àquela figura que o chamava muito apreensiva.
— O que houve, tia? — perguntou ele aflito.
Bren há muito não via sua tia em tal estado, afinal a vida em Dione era difícil, mas ao
mesmo tempo monótona. O que provocaria tal mudança naquela mulher dócil e sofrida
que durante sua longa vida já tinha visto a maior parte de seus velhos amigos morrerem?
Não tinha mais ninguém em lugar algum. Só ele e... Julian! Um pensamento terrível o
abalou. Teria acontecido alguma coisa a seu irmão?
Com esse pensamento ecoando em sua cabeça, correu como louco os setenta metros,
que o separavam de sua tia Mabel.
— Ele... — começou.
— Acalme-se — disse ela energicamente. — É grave, mas não é o que você pensa.
— O que é? O que é? — perguntou muito nervoso.
— Ele está sendo caçado por todo o sistema por naves do Pacto. Parece que ele
roubou uma nave muito importante... Não sei bem. A transmissão foi interrompida.
— Então ele está vivo?
— Não tenho certeza, mas você conhece seu irmão. Ele não é fácil.
— Uma esperança! Devia ter me acostumado. É só o que temos aqui para viver?
O garoto estava muito revoltado. Não podia e não queria, aceitar as coisas como
estavam, mas agora uma idéia bastante reconfortante lhe vinha a cabeça.
— Tia venha comigo — disse já saindo em disparada.
Depois de esforçar-se para correr cerca de duzentos metros a senhora já maltratada
pela idade, conseguiu chegar a casa um bom tempo depois que Bren. Este já estava
diante de um armário escancarado em seu quarto e onde se podia ver um painel que a tia
Mabel jamais havia visto antes e por instantes não compreendeu de que se tratava, mas
apesar de sua educação simples e sua vida de campônia era inteligente e logo reconheceu o equipamento. Tratava-se de um transmissor. Já havia visto um na cooperativa nos
tempos em que o comércio era abundante, mas este era diferente e tinha a insígnia da
federação.
— O que está fazendo? — perguntou aflita.
— Tudo está bem! Fique calma — disse ele sem dar maiores explicações e fazendo
um gesto para que a tia fizesse silêncio.
O garoto tentou e tentou, mas não consegui contato com o irmão pelo velho rádio
federado e isso o deixou ainda mais apreensivo.
***
— Lá está ele — apontou Lara, oficial de telemetria.
— Incrível! É enorme — comentou, José.
Senhor uma comunicação no canal dois.
— Abra na tela grande — solicitou, Julian
Uma grande tela surgiu diante da ponte e nela a face apreensiva do Almirante Luneiev.
— Nossa! Mal posso crer no que vejo — exclamou o velho Almirante agora com
uma expressão de satisfação na face.
— Estamos de volta, senhor — disse Julian fazendo continência com prazer de quem
acaba de sair da academia.
— Trouxeram minha belezinha de volta. Isso vai reduzir as suas penas por insubordinação — observou sardônico. — Eu já estava com o dedo no botão vermelho para
pôr esse vaso fora de ação.
57
Novela
— Ele é da federação novamente senhor — observou, com orgulho Julian. — Assim
como o coração de metal daquela coisa, o também será.
— Senhores! Façam seu trabalho — disse o velho, e sua imagem desapareceu.
Julian observou por alguns instantes o cometa pensando em seu amigo Jorge, um
bravo, e ordenou:
— Baixar escudos.
— Escudos baixos senhor — respondeu o operador.
— Disparem os mísseis atômicos.
***
— Bren! Bren! — chamou novamente a tia Mabel.
— Que foi tia? — perguntou o menino colocando a cabeça para fora da janela sem
precisar de resposta diante do espetáculo que viu no céu.
Uma imensa e silenciosa mancha luminosa enchia um terço do céu esverdeado que
Dione adquirira depois da terraformação. E inúmeros raios de luz eram vistos quando
alguns fragmentos atingiam a atmosfera. O espetáculo estendeu-se até o inicio da noite
e transformou-se em festa na colônia. Mais tarde, Mabel e Bren tiveram outra surpresa.
***
— Julian! — disse Bren, correndo para dar-lhe um abraço.
— Nossa, irmãozinho, você cresceu um bocado – observou o irmão mais velho
enquanto olhava o garoto. — É muito bom estar aqui — continuou Julian. — Onde
está a tia Mabel?
— Na casa, assustada — respondeu Bren.
— Nossa que saudade!
Julian partiu em direção a casa onde passara sua infância caminhando a passos curtos
e lentos. Quando Mabel o viu parado à porta, imediatamente seus olhos encheram-se de
lágrimas e correu para um forte abraço. Os dois abraçaram-se e choraram, então ela o
empurrou para longe para olhar para ele e disse em meio a lágrimas, gargalhadas e
soluços: — Meu Deus! Como você cresceu!
Mais tarde volta da fogueira, Julian contava sobre a aventura.
— E nada disso teria sido possível sem a coragem de Jorge e Bárbara — concluiu
pensando no velho amigo e na garota que para sempre estaria do outro lado do abismo.
***
O Pacto, com os ataques realizados contra o cruzador Soyus, deixou clara sua posição de beligerância contra a federação, que por sua vez, não tardou em usar isso para
enfraquecer as empresas do grupo diante da opinião publica. E aos poucos foi perdendo
o domínio comercial e político e tornando-se uma figura jurídica sem importância.
Os dias áureos da federação estavam voltando e com eles a prosperidade do povo.
Até que mais alguns inescrupulosos chegassem ao poder.
Miguel Angel Pérez Corrêa - é argentino de Buenos Aires, Engenheiro Elétrico e
ilustrador, autor de “O dia da Caça”, mantém um site para divulgar seus trabalhos em
www.aarca.kit.net.
58
Não perca esta edição especial!!!
Três histórias Completas
Três histórias completas:
A Troca
Rumo ao Mundo Novo
2066 na Rota das Caravanas
ScariumQuadrinhos
A Troca
Rumo ao Mundo Novo
2066 na Rota das Caravanas
Junho 2003
20 páginas
R$ 2,50
www.scarium.hpg.com.br
Ano I nº 1
www.scarium.rg3.net
R$ 2,50
Banda Desenhada
Um monumento da FC
Cesar Silva
Há algum tempo eu defendo a idéia que
a FC na literatura tem mais fôlego e vigor
que em qualquer outra mídia. Parece
preconceito, afinal qualquer um pode
enumerar dezenas de obras muito boas
de FC&F no cinema, na TV, no teatro,
nos quadrinhos, até no rádio e nos discos
de música. Mas o fato é que cada mídia
tem sua própria escala de valores. É difícil
comparar um filme de cinema com uma
peça teatral, uma obra musical com uma
HQ, pois cada uma delas atinge uma parte
diferente do cérebro e causa prazer (ou
desprazer) diferente.
Mas no que se refere aos conceitos da
ficção científica, a literatura tem abordado
o gênero de modo mais arrojado, criativo
e ousado que todas as demais mídias .
Nesse aspecto, está décadas adiante e
amplia essa vantagem na medida que
aquelas, que almejam um apelo mais
comercial, lutam pela atenção dos
consumidores oferecendo-lhes produtos
que sabem que não serão estranhados e
rejeitados.
Não que isso deixe de acontecer na
indústria editorial, ao contrário. Basta uma
visita a qualquer livraria para constatar a
pobreza das gôndolas de FC. Quando ela
existe, está repleta de novelizações e
fanfics, o que demonstra que os editores
livreiros também estão preocupados com
a disposição dos leitores e tentam oferecerlhes aquilo que demonstra ter algum apelo
complementar, como histórias inspiradas
num novo longa do cinema ou uma série
de TV de sucesso. Coisas do mercado
globalizado,que alinhou por baixo a
profundidade de todo e qualquer produto
cultural.
Apesar disso, ainda sustento afirmação
apoiado não no material que está nas
nossas livrarias, mas no que não está.
Temos o privilégio de encontrar, aqui
mesmo neste fanzine, peças de ficção
produzidas por autores amadores que
atestam o grau de criatividade que se
exercita na literatura. Também podemos
perceber que há uma incontável
quantidade de autores em outros países
fazendo exatamente o mesmo; todas as
tentativas que faço em busca de trabalhos
de outros fandons prova ser produtiva. Há
bons escritores de FC apresentando idéias
inovadoras em todos os países da América
Latina assim como em qualquer parte do
mundo, principalmente nos EUA e
Inglaterra, onde a FC atinge seu nível
profissional mais expressivo. E também
em todos esses lugares a FC literária
comprova seu talento de ponta na FC,
fazendo tudo o que se vê nas outras mídias
parecer redundante.
Por isso, fiquei surpreso quando eu
comecei a lerAs aventuras de Luke
Arkwright, do autor britânico Bryan
Talbot, publicado no Brasil em dois
volumes pela editora Via Lettera.
Justamente porque trata-se de uma HQ.
Mas não uma HQ convencional. Aliás,
como linguagem até deixa um pouco a
desejar,é demasiadamente sofisticada,
lenta, com muito texto, muitos
preâmbulos, muitas referências históricas
que escapam ao leitor não-britânico. Os
desenhos detalhadíssimos permitem que
a atenção de leitor desvie-se
constantemente da narrativa. Todos os
pecados que os autores profissionais de
Comics (o quadrinho americano) ou de
Mangá (o quadrinho japonês) sabem que
devem evitar para manter escravizada a
atenção dos leitores.
Mas a história, ah, a história...
As aventuras de Luke Arkwright tratase de uma incursão no mais moderno e
difícil sub-gênero da FC, a História
Alternativa. Mas não do modo
“convencional” com que a FC costuma
abordar o tema, se é que me permitem o
termo.
Luke Arkwright é um agente muito
60
Scarium
especial de uma organização lotada numa
linha histórica alternativa (LHA ou
“paralela”, como Talbot prefere chamála), a Paralela Zero-Zero, e tem a
capacidade de deslocar-se pelas infinitas
LHAs. Essa capacidade especial faz dele
um homem importante na busca pelo Fogo
Gélido, um artefato alienígena que está
escondido numa paralela na qual a
Inglaterra é um país subdesenvolvido
submetido a uma prolongada ditadura
teocrática puritana e linha-dura,sob o
comando do Lorde Protetor Oliver
Cromwell, um integralista torturado por
traumas de infância.
O Fogo Gélido caiu na Terra depois
devagar pelo cosmo por eras incontáveis.
É a arma final de uma guerra entre LHAs,
que está prestes a ser resgatada por um
grupo terrorista misterioso conhecido
como Dilaceradores. Eles pretendem
reativar a arma e destruir todas as LHAs
da Terra, embora ninguém saiba
exatamente o motivo. Na busca pelo
artefato, Arkwright acaba envolvendo-se
na política daquela LHA, engajando-se na
resistência dos Realistas,grupo dissidente
que quer restaurar a monarquia britânica
e é comandado pelo herdeiro ao trono, o
Rei Charles, e sua irmã Anne.Enquanto
isso, o governo prussiano e o governo
russo, as maiores potências militares dessa
LHA, manejam suas tropas para se
aproveitarem de um possível colapso
político na Inglaterra e anexá-la a suas
fronteiras.
Quando os Dilaceradores finalmente
conseguem resgatar o artefato, bem
debaixo do nariz de Arkwright depois de
uma perigosa escaramuça no Egito, coisas
estranhas e apavorantes começam a
acontecer em todas as LHAs, monitoradas
pela Paralela Zero-Zero. Algumas entram
em convulsão mundial, outras são
devastadas por conflitos nucleares, e os
efeitos do Fogo Gélido logo começam a
ser sentidos também na Paralela ZeroZero.
As coisas não correm muito bem para
os Realistas que são atacados em sua base
pela tropa mais sanguinária do governo
Puritano. O Rei Charles é assassinado, os
Realistas são desorganizados e Arkwright
é preso, torturado e morto, fechando o
primeiro volume da obra. E é aí que
realmente se inicia a história, e não vou
contar mais nada.
Talbot é um ilustrador soberbo. A
irregularidade e lentidão do seu roteiro acaba
funcionando em favor da melhor apreciação
de sua arte refinada. Em alguns momentos
o autor é verborrágico em demasia, noutros
mostra-se um especialista em narrativa
cinematográfica. O trabalho como um todo
parece propositalmente equilibrar-se na
fronteira entre a literatura e os quadrinhos.
Prova disso são os textos que prefaciam os
dois volumes. No primeiro, a apresentação
é feita pelo roteirista de quadrinhos Alan
Moore, no segundo a tarefa cabe ao escritor
Michael Moorcock. Ambos não
economizam elogios a obra e ao autor.
Faço coro com eles. E recomendo a
leitura a todo o apreciador da boa FC. As
aventuras de Luke Arkwright é FC de
primeira e não há nada parecido com ela
seja na literatura do gênero, seja nos
quadrinho sou em qualquer outra mídia.
Meus conselhos para a leitura: não deixe
de ler nada. Não pule os preâmbulos por
mais longos que sejam,não dispense os
apêndices e, sobretudo, não tenha pressa.
Ao final da leitura do segundo volume o
leitor, com a cabeça a dar voltas,vai ter
aquele mesmo sentimento de perda que
acompanha a leitura da última página dos
livros que nos impressionam. Então leia de
novo.A cada vez vai parecer uma obra
diferente, e ainda mais madura que na leitura
anterior.
As aventuras de Luke Arkwright
Bryan Talbot,
Via Lettera Editora (2000).
2 volumes, 120 páginas cada.
Tradução: Jotapê Martins.
Cesar Silva - editor do “Hiperespaço”
e autor do livro “Dinossauria
Tropicalia”
www.ceritocity.cjb.net.
61
Última Página
Resultados do Concurso
I Concurso de Contos & Ilustrações da Scarium Megazine
Fantasia
Ficção Científica
3º Lugar - “ Cidade dos Anjos”
Maria Luísa Gouveia Lopes
(Beira - Moçambique).
Prêmio: 1 Revista MIB + certificado
+ Publicação da obra.
3º Lugar - “A Saga dos Vikings do
Espaço”
Sidemar Vivente de Castro
(Catanduva - SP).
Prêmio: 1 Revista MIB + certificado
+ publicação da obra.
2º Lugar - “Filho de Elfo”
Tânia Crivellenti Baptistelli
(Campinas - SP).
Prêmio: 2 edições da Scarium + 1
livro Perry Rhodan + Revista MIB +
certificado + Publicação da obra.
2º Lugar - “Na Rota das Caravanas”
Marta Rolim
(Porto Alegre - RS).
Prêmio: 2 edições da Scarium + 1
livro do Perry Rhodan + 1 revista MIB
+ Certificado + Publicação da Obra.
1º Lugar - “A Roda dos Anões”
Simone Saueressig
(Novo Hamburgo - RS).
Prêmio: 1 assinatura da Scarium (4
edições) + 1 livro Perry Rhodan + 1
livro Tropas Estelares + 1 Revista MIB
+ certificado + publicação da obra
1º Lugar - “Dactyl”
Bertoldo Scheider Jr.
(Curitiba - PR)
.
Prêmio: 1assinatura da Scarium (4
edições) + 1 livro do Perry Rhodan + 1
livro Tropa Estelares + 1 Revista MIB
+ certificado + publicação da obra
Prêmios Especiais:
Menção Honrosa - “Vale do Ódio”
Bertoldo Schneider JR.
(Curitiba - PR)
Prêmio Scarium de Participação
Fanfic
“ A Clonagem de Joseph K”
Márcio Ramos Callegaro
(Santos - SP)
Prêmio Scarium de Participação
Quadrinhos
“2066 – Na Rota das Caravanas”
Rogério Aparecido da Paixão
(Guarujá - SP)
“Rumo ao Novo Mundo”
Regina Araújo dos Anjos
(João Pessoa - PB)
“A Troca”
Carlos S. Masuda
(São Paulo - SP)
NO PRÓXIMO NÚMERO:
Edição de aniversário:
2 Vezes Jorge Luiz Calife
Zona de Guerra
e
M2M2 (Mission to Mars Two)
Uma possível seqüência para o filme do Brian de Palma
Táxi
Emir Ribeiro
Uma sensacional história em quadrinhos da Velta
e mais
John Dekowes
Marcello Simão Branco