A Reforma Protestante e a educação

Transcrição

A Reforma Protestante e a educação
Desafios para a
gestão educacional
A Reforma Protestante
e a educação
The Protestant Reform and education
Ismael Forte Valentin
Doutor em Educação, mestre em Ciências da Religião, graduado em Pedagogia, Filosofia e Teologia.
Professor na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e na Faculdade de Conchas (Facon).
Coordenador do Grupo de Área de Ciências da Religião da Faculdade de Ciências Humanas (Unimep). Atua
nas áreas de Teologia prática, Educação protestante, Filosofia, História e Pedagogia.
E-mail: [email protected].
Resumo
Os “protestantes” (assim designados os que aderiam ao movimento
liderado por Martinho Lutero) não ficaram estagnados quanto
à questão educativa e foram fundamentais para a formação da
pedagogia que encontramos até hoje. A questão protestante estava
diretamente ligada à educação. Em decorrência dos princípios da
Reforma, surgiu uma ênfase na necessidade da leitura, compreensão
e interpretação da Bíblia, sendo fundamental, portanto, oferecer
instrução às pessoas. Diante dessa realidade, houve necessidade
de oferecer uma educação geral e mais abrangente, já que todos
deveriam ler as Sagradas Escrituras, sem distinção e discriminação,
para conhecerem a vontade de Deus e aceitarem os mandamentos
nelas registrados. A Bíblia tornou-se o livro mais lido da Europa no
século XVII. Na Inglaterra, houve uma erupção religiosa nos campos
sociais, incluindo a preocupação com a educação. A possibilidade
de discussão levou as pessoas a questionar e refletir sobre novas
possibilidades de respostas aos dramas da existência. Isso alimentou
o discurso em torno da igualdade, da liberdade e de futuras revoluções. Paralelamente, o contexto social se transformava e as mudanças iam muito além da questão religiosa. Os estudos referentes
às atividades missionárias protestantes no Brasil a partir da segunda
metade do século XIX apontam para a presença das escolas como
parte do projeto de implantação das denominações, com destaque
para os luteranos, presbiterianos, metodistas e batistas.
Palavras-chave: Protestantismo, educação, metodismo, missão.
Abstract
The “Protestants” (those who joined the movement headed by Martin
Luther) were not stuck on the question of education and were crucial
in forming the pedagogical development we know until now. The protestant issue was directly connected to education. Due to the “Reform”
principles, there was an emphasis on the need to read, understand
and interpret the Bible. Therefore, it was vital to offer proper instruction to the people. In face of this reality, it was necessary to offer a
general and more extensive education, since everybody was expected
to read the Scriptures, without distinction or discrimination, so as to
know the wish of God and to accept His commandments. The Bible
became the most widely read book in the seventeenth-century Europe.
In England, there was an eruption of religion in the social field, and
that included the concern for education. The possibility of discussing led people to question and reflect on new ways of responding
to the dramas of existence. That nurtured the discourse on equality,
freedom and future revolutions. At the same time, the social context
changed and these changes were far beyond the religious issues.
Studies regarding the Protestant missions in Brazil on the second half
of 19 th century show that schools were part of the denominations’
implementation project, especially to the Lutherans, Presbyterians,
Methodists, and Baptists.
Keywords: Protestantism, education, Methodism, mission.
Resumen
Los “protestantes” (así designados los que han adherido al movimiento liderado por Martin Lutero) no han quedado estancados
cuanto a la cuestión educativa y han sido fundamentales para la
formación de la pedagogía que encontramos hasta hoy. La cuestión
protestante estuvo directamente ligada a la educación. Decurrente
de los principios de la Reforma, hay un énfasis en la necesidad de
lectura, comprensión e interpretación de la Biblia. Así, era fundamental ofrecer instrucción a las personas. Delante de esa realidad,
surge la necesidad de una educación general e más abarcante ya
que todos deberían leer las Sagradas Escrituras, sin distinción ni
discriminación, para conocer la voluntad de Dios y aceptar sus mandamientos. La Biblia se transforma en el libro más leído en Europa
en el siglo XVII. En Inglaterra, una erupción religiosa aparece en los
campos sociales, incluyendo la preocupación con la educación. La
posibilidad de discusión leva las personas a cuestionar y pensar en
nuevas posibilidades de respuestas a los dramas de la existencia.
Eso irá alimentar el discurso encima de la igualdad, de la libertad y
de futuras revoluciones. Paralelamente, el contexto social se estaba
transformando y los cambios llegaban muy allá de la cuestión religiosa. Los estudios referentes a las actividades misioneras protestantes
en Brasil a partir de la segunda mitad del siglo XIX apuntan para la
presencia de las escuelas como parte del proyecto de implantación
de las denominaciones, con destaque para los luteranos, presbiterianos, metodistas y baptistas.
Palabras clave: Protestantismo, educación, metodismo, misión.
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Revista de Educação do Cogeime – Ano 19 – n. 37 – julho/dezembro 2010
A Reforma Protestante
O século XVI foi marcado por uma série de transformações na
sociedade, como a ascensão burguesa, a intensificação do comércio, a
expansão colonialista e a explosão das ideias humanistas. Outro acontecimento importante que contribuiu para mudar a história ocidental
é identificado como “Reforma Protestante”.
A situação religiosa e econômica da Alemanha no início do século
XVI era crítica. A alta carga de impostos e a interferência dos papas
em assuntos religiosos e políticos eram consideradas opressivas. A administração dos negócios da Igreja, sob o comando papal, era marcada
por conflitos e altamente onerosa. O clero recebia duras críticas em
virtude do mau exemplo.
Um acontecimento
importante que contribuiu para mudar
a história ocidental
é identificado como
“Reforma
Protestante”
As cidades mercantis estavam desgostosas com a isenção de impostos sobre o clero, a proibição de juros, os muitos dias santos e
a excessiva tolerância da Igreja com a mendicância. […] Os camponeses viviam em inquietação econômica, não sendo a menor de
suas queixas os dízimos e aluguéis cobrados pelo alto clero local.
Juntavam-se a estes motivos de intranqüilidade o fermento intelectual do nascente humanismo germânico e o agitante despertamento
religioso popular, manifesto no profundo medo e consciência da
necessidade de salvação. É evidente, pois, que se estes agravos
achassem expressão em determinado líder, sua voz encontraria
muitos ouvidos (WALKER, 1981, p. 8).
O marco inicial da Reforma Protestante acontece em 31 de outubro
de 1517, quando o monge Martinho Lutero afixa suas 95 teses na porta
da catedral de Wittenberg. A intenção de Lutero era apontar as falhas
e contradições na Igreja Católica. A partir dessa iniciativa, outros líderes promoveram ações que foram consideradas reformistas, como as
Reformas Calvinista, Anglicana e a Anabatista.
Como já era de esperar, a Igreja Católica reage. Organiza um movimento a fim de conter a expansão do protestantismo. Essa reformulação
católica, que tem como marco referencial o ano de 1517, torna-se realidade com o aparecimento dos reformados protestantes. A “Contrarreforma”, como alguns historiadores denominam, marca o início de uma
nova era do catolicismo.
A reação da Igreja Católica, por meio de suas lideranças, atingiu
níveis de grande tensão. Por exemplo, em 1520 o papa Leão X, indignado com a situação de celeuma causada por Martinho Lutero, toma a
decisão de excomungá-lo, chamando-o de javali selvagem na vinha do
Senhor. “Essa excomunhão marca definitivamente a divisão entre Igreja
católica e protestante” (OLSON, 2001, p. 379).
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O marco inicial da
Reforma Protestante
acontece em 31 de
outubro de 1517,
quando o monge
Martinho Lutero afixa
suas 95 teses na
porta da catedral de
Wittenberg
O movimento da
Reforma cria a base
de uma nova
religiosidade, o
protestantismo
Apesar de associarmos o ano de 1517 à Reforma Protestante, esse
título veio em 1555. Em meio às lutas entre católicos e luteranos, nesse
ano o imperador Carlos V aceitou a existência das Igrejas luteranas,
assinando com os protestantes a Paz de Augsburgo1, concedendo a cada
príncipe o direito de escolher a religião de seu principado.
O movimento da Reforma cria a base de uma nova religiosidade, o
protestantismo. Vários discursos são criados a partir de uma base única,
ou seja, Deus age em favor do homem e de sua salvação pelo envio de
seu Filho, Jesus Cristo, para ser o Salvador da humanidade. O homem
tinha de corresponder à ação de Deus pela fé em Cristo, e só pela fé. Isto
é, tinha de colocar sua vida, em entrega livre e voluntária, sob a supremacia de Jesus. A Bíblia contém as informações para guiar e conduzir
o cristão. Ela é entendida como agência mediadora da autoridade de
Deus. Essas duas crenças, usualmente mencionadas como “justificação
pela fé” e “Escrituras como regra de fé e prática”, eram a estrutura
fundamental do protestantismo. O homem, em sua liberdade, tinha de
renunciar a toda crença na autoridade externa, fosse ela estabelecida
na tradição ou história, ou elaborada pela mente ou pelo espírito de
cada um; tinha de crer unicamente em Cristo (DUNSTAN, 1964, p. 62).
Entretanto, o protestantismo pode variar, tendo vertentes diferentes
dependendo da região e da época onde apareceu. A oposição à Igreja
Católica parece ser uma constante nos anos iniciais do movimento da
Reforma.
Um estudo das 95 teses luteranas indica como objetivo principal a
reforma do catolicismo, para que este corrigisse, na visão dos reformistas, sua caminhada e se pautasse nas “leis de Deus”. É clara a denúncia
das teses sobre as atividades papais, a venda de indulgências entre outros fatos desse gênero, mas, numa análise mais detalhada, percebe-se
que Lutero, na realidade, se preocupa é com o aspecto teológico que
trata da soteriologia (salvação do homem). Para ele, a Igreja não estava
preocupada com o que deveria ser seu principal objetivo. Um aspecto
interessante defendido pelo criador do luteranismo é sua preocupação
com a questão escolar, defendendo e exaltando a importância dessa
instituição e de seus conteúdos programáticos (LIENHARD, 2005, p. 68).
1
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Paz de Augsburgo: Esse tratado marcou temporariamente o fim da luta travada entre católicos romanos e protestantes luteranos na Alemanha do século XVI, durante
o reinado de Carlos V. Este acordo, datado de 25 de setembro de 1555, foi feito pela
Dieta do Sacro Império Romano-Germânico, mas Carlos V, apesar de ter proclamado
este parlamento, recusou-se a participar nele. Seu irmão Ferdinando I, depois coroado
imperador do Império Romano, porém foi autorizado a celebrar os compromissos
necessários ao restabelecimento da paz. Por este tratado de paz ficava consagrado o
estatuto legal do Protestantismo na Alemanha, permitindo a possibilidade de cada
líder de um estado alemão escolher sua religião, ficando seus súditos obrigados a
aceitar sua escolha. Este tratado, no entanto, não conseguiu acabar com as disputas
entre os dois credos cristãos, mas, embora não tenha satisfeito nenhuma das partes
em conflito, conduziu a um período de cerca de cinquenta anos de paz religiosa.
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No entanto, os opositores do catolicismo aparecem até mesmo antes
do século XVI. Um exemplo são os movimentos camponeses que lutam
pela terra; eles colocam que a Igreja deveria ser mais justa e próxima de
seus fiéis, propondo uma religião pura e primitiva, seguindo os valores
básicos do cristianismo, e até mesmo sem a figura institucional da Igreja.
O pensamento pós-Reforma Protestante
Para entender a Reforma Protestante, temos de primeiro conhecer
seu ambiente e por que ela se deu. No bojo do movimento humanista
encontramos as bases que fundamentam o movimento. Trata-se de uma
retomada do sentido original do ideal divino ao criar o ser humano.
Esse renascimento original é “um prodigioso florescer da vida, e em
todas as formas que, embora as suas maiores manifestações se tenham
verificado de 1490 a 1560, não ficou limitada dentro destes marcos”
(MOUSNIER, 1960, p. 17).
Esse período é marcado por uma nova forma de pensar, pela ascensão da classe burguesa, pelo desenvolvimento nas relações de produção
de capital e trabalho e pela formação dos Estados absolutistas. O homem é posto no centro das atenções e o pensamento científico começa
a questionar algumas afirmações vigentes até então, inclusive religiosas.
Percebia-se a necessidade de uma nova religião mais sensível e que
não fosse tão mal compreendida e mal conhecida como o catolicismo.
Uma vertente do pensamento humanista investe na reflexão acerca
do papel da Igreja e das verdades que ela pregava. A Europa vê-se
envolta numa efervescência contestadora, chegando nas bases da Igreja Católica. Alguns pensadores, como Jonh Wicliff, Jonh Huss, Filipe
Melanchthon e Erasmo de Roterdão, principal representante do humanismo cristão, opunham-se a alguns preceitos e dogmas do catolicismo.
Em sua obra Elogio à loucura, Erasmo critica a postura da Igreja. Ele
entende que o protestantismo quebrou definitivamente o poder único
da Igreja Romana Ocidental e com isso se criou uma nova religião com
uma base única. Apesar da reforma ter sido inaugurada por Lutero,
outros reformadores vão aparecer, e com eles novas Igrejas, mas todas
seguindo três princípios básicos: “a salvação pela graça mediante a fé
somente, a autoridade especial e final das Escrituras e o sacerdócio de
todos os crentes” (OLSON, 2001, p. 407). Outras linhas protestantes
mais relevantes que apareceram foram o calvinismo e o anglicanismo.
O calvinismo foi pensado por Ulrico Zuínglio e João Calvino. E
esse segmento organiza e agrupa em um corpo de doutrinas a teologia
protestante. Além disso, o calvinismo dispõe de uma metodologia que
une regras severas de conduta e postura somadas a uma dedicação
veemente ao trabalho.
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Um exemplo são os
movimentos camponeses que lutam
pela terra; eles colocam que a Igreja
deveria ser mais
justa e próxima de
seus fiéis, propondo
uma religião pura e
primitiva
Apesar da reforma
ter sido inaugurada
por Lutero, outros
reformadores vão
aparecer, e com eles
novas Igrejas
Aproximadamente
dois séculos depois
do movimento originário no seio da
Igreja, surgem outros movimentos da
sociedade ocidental
moderna, como o
Iluminismo
O conceito de modernização refere-se a um feixe de processos
cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e
mobilização de recursos, ao desenvolvimento das forças produtivas e
ao aumento da produtividade do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades nacionais,
à expansão de direitos de participação política, de formas urbanas
de vida e de formação escolar formal, refere-se à secularização de
valores normais, etc. (HABERMAS, 1990, p. 14).
Aproximadamente dois séculos depois do movimento originário
no seio da Igreja, surgem outros movimentos da sociedade ocidental
moderna, como o Iluminismo. Esse movimento caracterizou-se como
um amplo movimento artístico, filosófico, literário e científico que,
historicamente, sintetiza a expressão teórica de um momento no qual
a burguesia já não aceita mais as ideias retrógradas da vida europeia.
O próprio termo “Iluminismo” identifica uma visão segundo a qual a
razão e a ciência trariam luz sobre o obscurantismo da fé e dos dogmas
construídos ao longo de pelo menos dez séculos. Não por acaso, o século
XVIII ficou conhecido como Século das Luzes.
Lutero via claramente a importância fundamental da educação
universal para a Reforma e a preconizou insistentemente em suas
pregações. O ensino deveria chegar a todo o povo, nobre e plebeu,
rico e pobre; deveria beneficiar meninos e meninas – avanço notável;
finalmente, o Estado deveria decretar leis para freqüência obrigatória […] Era opinião de Lutero, ainda, que o Estado tinha o dever
de obrigar os seus súditos a enviar seus filhos à escola, da mesma
forma que compelia todos eles a prestar serviço militar para sua
defesa e prosperidade. Conseqüentemente, a educação deveria ser
mantida e dirigida pelo Estado (MONROE, 1979, p. 179).
A contribuição da
Reforma Protestante
para a educação foi
significativa. Seus
líderes, de modo
geral, não estavam
preocupados somente com a formação
espiritual dos crentes, mas buscavam
também uma base
cultural sólida
Enfim, a contribuição da Reforma Protestante para a educação foi
significativa. Seus líderes, de modo geral, não estavam preocupados
somente com a formação espiritual dos crentes, mas buscavam também
uma base cultural sólida. Uma instrução tal que pudesse levar os indivíduos a serem úteis não somente ao serviço sagrado, mas também à
sociedade capitalista nascente.
A Reforma Protestante e a educação
O humanismo cristão2, corrente de pensamento que florescera no
século XV, teve em Erasmo de Roterdão (1466/69-1536) um de seus maio2
O humanismo cristão é entendido apenas pela relação com Cristo, o Deus-Homem, o homem mais perfeito e mais completo que existiu, segundo os cristãos. Uma das evidências
dos Evangelhos, que constituem a história de Jesus, é que Cristo, aparecendo entre os
judeus, manifesta claramente ter uma missão. Ora, se esta missão é recebida do “Pai” e
tem, portanto, origem divina, ela visa, como escopo fundamental, aos homens. Quando o
próprio Cristo fala de sua missão, ele não a coloca principalmente na promoção do culto
a Deus, do respeito à autoridade, da obediência às leis, mas na renovação, reabilitação,
revalorização do homem: do homem todo e de todos os homens.
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res expoentes. Ele fez duras críticas à educação postulada pela Igreja
Católica em sua época. Para ele, o modelo escolar era estático, formado
pela memorização e repetição de conceitos sendo altamente disciplinar
e controlado pelos princípios católicos. Obviamente, essa educação
impedia o desenvolvimento da capacidade crítica e a criatividade dos
educandos. Essa realidade também se faz presente, segundo Erasmo,
nas escolas sob influência do movimento reformista.
Os “protestantes” (assim designados os que aderiam ao movimento
liderado por Martinho Lutero) não ficam estagnados quanto à questão
educativa e são fundamentais para a formação da pedagogia que encontramos até hoje. A questão protestante estava diretamente ligada à
educação. Em decorrência dos princípios da Reforma, há uma ênfase
na obrigação à leitura, compreensão e a interpretação da Bíblia. Assim,
era fundamental oferecer instrução às pessoas. Com essa ideia tomando
espaço, começa a surgir a necessidade de uma educação geral e mais
abrangente, já que todos deveriam ler as Sagradas Escrituras, sem distinção e discriminação, para poderem buscar a Deus em suas palavras.
Lutero não somente atinge a Igreja Católica com suas críticas, mas
influencia a educação quando produz uma reestruturação no sistema
de ensino alemão, inaugurando uma escola moderna. A ideia da escola
pública e para todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental,
médio e superior) e voltada para o saber útil nasce do projeto educacional de Lutero (FERRARI, 2005, p. 30-32).
A primeira universidade protestante, a Phillipps-Universität Marburg,
fundada em 1º de julho de 1527, foi criada pelo Conde Philipp (Conde
de Hessen) por recomendação de Martinho Lutero. A expectativa era
criar um espaço para o aperfeiçoamento dos eruditos e religiosos, pregadores e leigos. Os primeiros cursos a serem oferecidos foram Teologia,
Direito, Medicina e Filosofia (MAIA, 2003, p. 7). Outras instituições de
ensino surgiram na Europa durante o século XVI. Em destaque temos
a Academia de Genebra, criada em 1559 por Calvino. Esta Academia
tornou-se um importante centro de educação e difusão das ideias reformistas. Com a mesma intenção, John Knox lançou o desafio para que
se fundasse uma escola em cada cidade da Escócia. Em 1689 foi criada
a Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão.
A educação era de fundamental importância dentro da concepção
de mundo de Martinho Lutero. Em uma de suas cartas aos prefeitos e
conselheiros alemães ele escreve:
É realmente um pecado e uma vergonha que tenhamos de ser
estimulados e incitados ao dever de educar nossas crianças e de
considerar seus interesses mais sublimes, ao passo que a própria
natureza dever-nos-ia impelir a isso e o exemplo dos brutos nos
fornece variada instrução. Não há animal irracional que não cuide
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Os “protestantes”
não ficam estagnados quanto à
questão educativa
e são fundamentais
para a formação da
pedagogia que encontramos até hoje
Todos deveriam ler
as Sagradas
Escrituras, sem
distinção e
discriminação, para
poderem buscar a
Deus em suas
palavras
e instrua seu filhote no que este deve saber, exceção feita à avestruz,
de quem diz Deus: “Ela (a fêmea avestruz) põe seus ovos na terra
e os aquece na areia; e é dura para com seus filhotes, como se não
fossem dela”. E de que adiantaria se possuíssemos e realizássemos
tudo o mais, e nos tornássemos santos perfeitos, se negligenciássemos aquilo por que essencialmente vivemos, a saber, cuidar dos
jovens? Em minha opinião não há nenhuma outra ofensa visível
que, aos olhos de Deus, seja um fardo tão pesado para o mundo
e mereça castigo tão duro quanto a negligência na educação das
crianças (LUTERO apud MAYER, 1976, p. 250-251).
Seja pela falta de
piedade e
honestidade, seja
pela falta de
formação dos
próprios pais, os
filhos eram privados
de se desenvolverem
intelectual e
espiritualmente
Na Inglaterra, uma
erupção religiosa
aparece nos campos
sociais, incluindo a
preocupação com a
educação
Lutero faz duras críticas aos pais por negligenciarem o dever sagrado de educar os filhos. Seja pela falta de piedade e honestidade, seja
pela falta de formação dos próprios pais, os filhos eram privados de se
desenvolverem intelectual e espiritualmente. Outra crítica apresentada
por Lutero referia-se ao pouco tempo que os pais dedicavam à educação
dos filhos. As escolas surgem como uma importante alternativa para essa
realidade e, com o poder aquisitivo da nascente burguesia, era possível
transferir muitas das tarefas educacionais aos professores.
O Humanismo e o Renascimento 3 aceleraram a produção literária
e promoveram as transformações na época. Valendo-se disso, Lutero,
ao romper com a Igreja Católica e ser acolhido pelos príncipes locais,
traduz a Bíblia para o alemão. Todo distanciamento imposto pelo catolicismo acaba, e o cidadão a partir da tradução das Escrituras, passa
a ter viabilidade de interpretação individual de sua fé.
A Bíblia torna-se o livro mais lido da Europa no século XVII. Na
Inglaterra, uma erupção religiosa aparece nos campos sociais, incluindo
a preocupação com a educação. A possibilidade de discussão leva as
pessoas a questionar e refletir sobre as novas possibilidades de respostas aos dramas da existência. Isso alimentará o discurso a respeito
da igualdade, da liberdade e de futuras revoluções. Paralelamente, o
contexto social estava se transformando e as mudanças iam muito além
da questão religiosa.
A doutrina calvinista vai ao encontro dos interesses da burguesia
quando diz que o trabalho enobrece o homem e garante que a acumulação de capital não é pecado, mas, sim, uma recompensa divina. Por esse
3
O termo Renascimento é comumente aplicado à civilização europeia que se desenvolveu
entre 1300 e 1650. Além de reviver a antiga cultura greco-romana, ocorreram nesse
período muitos progressos e incontáveis realizações no campo das artes, da literatura e
das ciências, que superaram a herança clássica. O ideal do humanismo foi, sem dúvida,
o móvel desse progresso e tornou-se o próprio espírito do Renascimento. Trata-se de
uma volta deliberada, que propunha a ressurreição consciente (o renascimento) do
passado, considerado agora fonte de inspiração e modelo de civilização. Num sentido
amplo, esse ideal pode ser entendido como a valorização do homem (Humanismo) e da
natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que haviam impregnado
a cultura da Idade Média. 66
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motivo, ela teve grande influência na Europa, onde a burguesia estava
em franco desenvolvimento, e ao chegar à Inglaterra transforma-se em
puritanismo4. O puritanismo constituir-se-á na maior manifestação do
protestantismo na Inglaterra, contrastando com a chamada “população
anglicana”. O anglicanismo possui o mesmo culto católico, só que dentro
dessa religião o poder é transferido ao rei, caracterizando-o como uma
religião da nobreza.
A expressão subjetividade implica sobretudo quatro conotações: a)
individualismo: no mundo moderno a peculiaridade infinitamente
particular pode fazer valer as suas pretensões; b) direito à crítica: o
princípio do mundo moderno exige que o que deve ser reconhecido
por cada um se lhe apresente como algo legítimo; c) autonomia do
agir: é característico dos tempos modernos o fato de nos querermos
responsabilizar pelo que fazemos; d) filosofia idealista: Hegel considera ser tarefa dos tempos modernos que a filosofia aprenda a idéia
que sabe de si própria (HABERMAS, 1990, p. 27 e 28).
A partir da Reforma Protestante, a religião atingiu sua interioridade absoluta. Segundo Habermas (1990, p. 44), “ela separou-se da
consciência mundana na época do iluminismo”. A preocupação com o
conhecimento além daquilo determinado por Deus torna-se possível.
A intelecção superior representa, em muitas situações, algo inatingível.
Matéria e espírito tendem a se afastar, novamente, a exemplo dos pressupostos platônicos. Essas ideias acabam por motivar grupos reformados ao despertamento missionário do século XVIII. Os movimentos de
colonização envolvendo países predominantemente protestantes apresentarão em seu bojo uma retomada da vivência espiritual marcada pela
expectativa de tornarem conhecidos os propósitos redentores de Deus.
Um exemplo típico da influência do pensamento da Reforma e da
educação encontramos nas origens da Igreja Metodista. O movimento
denominado “metodismo” surgiu dentro do contexto universitário
inglês, em especial em Oxford. Com sua ênfase na universalidade da
educação, na racionalização, no desenvolvimento científico, nas revoluções políticas e econômicas na Europa do século XVIII, as ideias
4
O movimento puritano, ou simplemente Puritanismo, em seus primórdios, foi claramente apoiado e influenciado por João Calvino (1509-1564), que a partir de 1548
passou a se corresponder com os principais líderes da Reforma inglesa. Os puritanos
acreditavam que a Igreja Anglicana necessitava ser purificada dos resquícios da Igreja
Católica. Eles clamavam por pureza teológica, litúrgica e moral. Também ansiavam
por mudanças litúrgicas, pois, mesmo a Inglaterra se declarando protestante, a missa
ainda era rezada em latim, eram usadas as vestimentas clericais, velas nos altares, e
o calendário litúrgico e as imagens de santos eram preservados. Era uma incoerente
ofensa aos reformadores ingleses.
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O contexto social
estava se
transformando e as
mudanças iam muito
além da questão
religiosa
Um exemplo típico
da influência do
pensamento da
Reforma e da
educação encontramos nas origens
da Igreja Metodista
Os estudos referentes às atividades
missionárias protestantes no Brasil a
partir da segunda
metade do século
XIX apontam para a
presença da escola
como parte do projeto de implantação
das denominações
O projeto
educacional protestante, vinculado ao
projeto missionário,
serviu como
combustível para a
nascente classe
burguesa nacional
iluministas influenciam e são influenciadas pelo pensamento da época. Entre as ênfases no movimento metodista temos, com destaque, a
preocupação com a educação. Desde a atenção às crianças, filhos dos
trabalhadores das minas, até as discussões filosóficas e teológicas no
ambiente universitário, os “entusiastas da fé” (como também eram chamados os metodistas) faziam-se presentes. “Esse contexto universitário
e o longo tempo durante o qual Wesley permaneceu associado a ele nos
revelam alguns traços do Iluminismo que caracteriza o século XVIII”
(NASCIMENTO, 2003, p. 90).
Os estudos referentes às atividades missionárias protestantes no Brasil a partir da segunda metade do século XIX apontam para a presença
da escola como parte do projeto de implantação das denominações, com
destaque para os luteranos, presbiterianos, metodistas e batistas. Com
relação às escolas protestantes,
As razões para sua instalação não são filantrópicas, mas doutrinais: o
analfabetismo era empecilho ao aprendizado da doutrina protestante, calcada na leitura da Bíblia, de livros e revistas denominacionais.
O canto dos hinos igualmente requeria pessoas alfabetizadas. Tais
escolas floresceram bastante em áreas rurais, onde o controle da
religião dominante era menor (DREHER, 2003, p. 25).
Nas crescentes áreas urbanas brasileiras no final do segundo Império, o crescimento das escolas protestantes e, consequentemente, o
projeto educacional reformado deram-se em razão da discriminação que
os filhos dos “protestantes” sofriam na escola pública. Sofrendo forte
influência das ideias pragmáticas e liberais norte-americanas, o projeto
educacional protestante, vinculado ao projeto missionário, serviu como
combustível para a nascente classe burguesa nacional.
Considerações finais
Nesta reflexão procuramos situar o papel, o lugar e a importância da
educação no momento em que a Europa vive o movimento denominado
Reforma Protestante. A partir de alguns destaques, refletimos sobre esse
momento altamente significativo para a história do pensamento cristão.
Para finalizar este artigo, retomamos alguns aspectos que julgamos
essenciais para nossa reflexão.
A Reforma torna-se efetiva a partir de um tratado – a Paz de Augsburgo. Trata-se de uma iniciativa política com o objetivo de estabelecer
padrões de convivência garantindo a dignidade humana. Direitos são
reconhecidos e a possibilidade de escolha caracteriza-se como marca
daquele período. A liberdade representará uma conquista capaz de
mudar os rumos da história. O poder é concedido a outros principados
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Revista de Educação do Cogeime – Ano 19 – n. 37 – julho/dezembro 2010
e a relação Estado-Igreja tende a se constituir em novos contornos. A
educação para todos torna-se uma das principais bandeiras, tanto pelos
segmentos protestantes como pelos católicos.
Digna de nota é a atenção dada à educação numa perspectiva missionária. É necessário conhecer a Deus. A fé será vivida a partir de uma
experiência em que conhecer e crer se confundem numa só imagem.
Uma nova compreensão social, política e econômica se configura nessa
sociedade aprendente.
O objetivo da educação numa comunidade democrática é habilitar
os indivíduos a buscá-la progressiva e continuamente, levando-os
a um constante desenvolvimento. Ressalta-se a importância do indivíduo educado, consciente e interessado, apto para desenvolver
suas responsabilidades sociais (VALENTIN, 2008, p. 21).
Educar o ser humano, criado à imagem de Deus, para o exercício
consciente e crítico da cidadania constitui o principal objetivo das
escolas confessionais. As pessoas deviam se preparar para a vida,
contribuindo para o desenvolvimento do homem e da sociedade, por
meio da educação, com a articulação dinâmica das atividades científicas, culturais, esportivas, sociais, éticas e espirituais. A necessidade de
redenção desde épocas passadas nos faz lembrar a ideia familiar tanto
da mística judaica como protestante da responsabilidade das pessoas
pelos propósitos de um Deus que, desde o ato da criação, renunciou
à sua onipotência em favor da liberdade do homem criando-o à sua
imagem e semelhança (HABERMAS, 1990, p. 25).
Próximos de comemorarmos 500 anos de Reforma Protestante, indagamos pelos propósitos postulados pelos grandes reformadores. Em
especial, no que concerne à educação, ao observarmos a atual realidade
social, política e econômica da sociedade ocidental, cremos que há muito
a ser pensado. Os pressupostos educacionais, tanto protestantes como
católicos, têm contribuído para a construção de uma sociedade baseada
nos valores do Reino de Deus, explicitamente apresentados e vividos
por Jesus Cristo? A partir das informações e reflexões apresentadas,
observamos a existência de uma longa caminhada a ser feita no intuito
de concretizar os ideais da Reforma na perspectiva do Evangelho.
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Revista de Educação do Cogeime – Ano 19 – n. 37 – julho/dezembro 2010
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O objetivo da educação numa comunidade democrática é habilitar os indivíduos a
buscá-la progressiva
e continuamente
Os pressupostos
educacionais têm
contribuído para a
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sociedade baseada
nos valores do Reino
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