ensaios de crítica - Centro de Documentação do Pensamento

Transcrição

ensaios de crítica - Centro de Documentação do Pensamento
ARTHUR ORLANDO
ENSAIOS DE CRÍTICA
Introdução de
ANTONIO PAIM
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
EDITORIAL GRIJALBO LTDA.
SÃO PAULO
1975
1
ÍNDICE
INTRODUÇÃO de Antônio Paim ....................................... 3
PARTE I – CRÍTICA DE FILOSOFIA, CIÊNCIA E DIREITO
1. O Problema da Morte ................................................. 40
2. Sílvio Romero ........................................................... 78
3. Tobias Barreto ................................................................119
4. O Crime..........................................................................153
5. Tobias Barreto, seu Ponto de Vista Religioso ................. 222
6. Filosofia Biológica .................................................... 239
7. Liberdade Moral e Livre Arbítrio ................................. 257
8. Concepção Nova de Matéria ........................................ 272
PARTE II – CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL
1. O Adultério .............................................................. 300
2. A Pena entre os Hebreus ............................................. 356
3. O Infanticídio ........................................................... 379
4. Reforma do Ensino .................................................... 391
5. Sociologia e Totalidade .............................................. 446
2
INTRODUÇÃO
I.
VIDA E ESCRITOS
Arthur Orlando da Silva nasceu na cidade do
Recife em 29 de junho de 1858, tendo se formado pela
Faculdade de Direito aos 23 anos de idade, em 1881.
Imediatamente após a formatura dedico u-se à advocacia
e ao jornalismo, tendo feito duas tentativas mal su cedidas de ingressar no magistério, através de concurso.
O primeiro, para a cadeira de retórica e poética, no
Curso Anexo, foi anulado. No segundo, em 1885, para
lente da Faculdade, na tese, que versava sobre o
momento histórico das leis, procurou aplicar o
haeckelismo ao direito, o que não agradou à Congregação, levando-o a retirar-se. Após a República,
quando não mais se configurava qualquer interdição,
deixou de interessar-se pela docência. É que encontrara,
na atividade política, a forma de consagrar -se à reforma
dos espíritos a salvo de preocupações pela sobrevivência. A propósito, diria Oliveira Lima, saudando -o
na Academia: “O Brasil não está ainda fertilizado
bastante para do seu solo brotar e medrar, como fruto
opimo da cultura, uma classe de estudiosos isolados da
vida agitada dos seus contemporâneos, libertos das
instantes preocupações materiais, cuja pressão os distrai
dos puros labores da ciência. Os homens de letras, como
3
os sábios, têm forçosamente de ser empregados de
secretarias, advogados no foro, agentes de companhias
industriais e corretores internacionais. Vós sois dos
mais afortunados, porque na política armastes a tenda de
onde saís para as algaras céleres e ruidosas da
imprensa”. (1)
O primeiro livro intitulou-o Filocrítica. Reúne
cinco ensaios escritos, possivelmente, entre 1883 e 1885
(dos 25 aos 27 anos de idade) e a tese de concurso ao
magistério da Faculdade de Direito.
Na introdução, Martins Júnior observa que falta à
obra “certo caráter de unidade” e sua leitura “não deixa
uma impressão de larga segurança filosófica e científica
sobre os problemas tratados”. Reflete entretanto a evo lução do autor do positivismo de Littré para o monismo,
sob a influência de Tobias Barreto.
Em 1881, como aluno da Faculdade, juntamente
com Clóvis Beviláqua e Martins Júnior, lança incisivo
manifesto sobre a propalada conversão do filósofo fran cês: “O homem, como as sociedades. Segue fatalmente,
no desenvolvimento de seu espírito, a marcha ascensorial que lhe traçou Comte na lei dos três estados. Pode
ocorrer que um indivíduo não passe do primeiro ou do
segundo estado; pode mesmo acontecer que os três
subsistam no mesmo indivíduo; mas de um estado
superior voltar para um inferior é impossível, sem um
desarranjo cerebral. ... Estamos convencidos de que o
padre Huvelin batizou um cadáver ”. (2 )
A tese de 1885 é calcada sobre o monismo
haeckeliano e a doutrina jurídica de Ihering. Termina-a
4
do seguinte modo: “São estas as soluções que damos ao
problema da determinação do momento histórico das
leis; podem não ser verdadeiras, porém ao menos têm
um mérito; não estão contaminadas do vírus das idéias
velhas, que não podem mais subsistir diante do sopro
rude, mas ao mesmo tempo salutar, do espírito
moderno”. (3)
A Filocrítica registra a reação do autor à
oposição vigente às idéias novas e que o levaram a
abandonar o concurso de 1885. Escreve: “Quando foi
apresentado esse estudo à Faculdade de Direito desta
cidade, entre outras graves censuras so fri a de querer
aplicar o monismo ao processo jurídico. Esta censura,
porém, e digna irmã gêmea de uma crítica em que já
incorri com Martins Júnior. A pedido de um amigo, a
quem muito prezamos, nós fizemos para a Comissão
Central Emancipadora um esboço de representação à
Assembléia Geral propondo diversas medidas a bem da
abolição da escravatura no Império. Neste trabalho
dizíamos que a Comissão, convencida de que a agricultura moderna não é senão uma espiritualização da
terra, uma aplicação das leis da física, da química e da
biologia ao desenvolvimento das plantas e dos animais,
e, mais ainda, uma série de observações, de experiências, de cálculos, de economia, de previdências,
condições que seria difícil de conseguir com o escravo
sem iniciativa, sem responsabilidade nem dignidade,
vinha propor uma série de medidas, cujos fins não eram
outros senão matar economicamente o trabalho escravo,
tornando-o caro, prejudicial, repugnante, e proteger o
5
trabalho livre mas nobre, fecundo e produtivo. Demos,
como vê-se, uma prova de bom senso; mas, apesar de
tudo, o nosso esboço foi desumanamente mutilado, de
maneira que veio a ficar um monstruoso aleijão; e tudo
isso porque, como depois disse-nos o Presidente da
Comissão, havíamos metido o monismo no meio.
Impagável!”. (4 )
No ano do aparecimento da Filocrítica, escreve a
introdução às Questões Vigentes, de Tobias Barreto.
Embora este livro só tenha sido entregue ao público em
1888, da correspondência entre Tobias e Sílvio Romero
infere-se que foi preparado em 1887, aliás o último de
atividade fecunda para o pensador sergipano. Artur
Orlando, mais tarde, ampliou esse texto, que se
transformaria num dos mais importantes de sua obra,
intitulando-o “Tobias Barreto”, para incluí-lo nos
Ensaios de Crítica (1904).
Com o advento da República, ingressa na polít ica
e na administração, inicialmente como diretor da
Instrução Pública, depois como deputado e senador, em
seu Estado, para tornar-se deputado federal nas
legislaturas subseqüentes a 1903. A circunstância não
parece haver afetado sua ensaística.
Em 1891 publica pequeno (81 páginas) e curioso
livro: Meu Álbum, de difícil classificação, mesmo para
um prefaciador, Clóvis Beviláqua. Contém reduzidos
tópicos, sem título, despidos de toda a pretensão de
expor teses e formular argumentos. Contudo, insere
inúmeras idéias caras ao pensador e que acabariam
6
merecendo o tratamento adequado, nos textos de estilo
diverso que desenvolveria nos anos subseqüentes.
Ao longo da década de noventa, a atividade de
Artur Orlando é sobretudo política. Seu nome figura
entre os redatores de A Província, a partir de julho de
1895, jornal que veio a ser uma espécie de órgão oficial
do Partido Autonomista, resultante de uma cisão no
Partido Republicano. Esse periódico parece haver
desempenhado importante papel no sentido de que o
grupo Rosa e Silva, a que pertencia Artur Orlando,
ascendesse à situação nos começos do século. Os
trabalhos de outra índole, além dos políticos, são: “O
Problema da Morte” (nos anos de 1896 e 1898) e “O
Crime” (1896), ambos inclu ídos no livro Ensaios de
Crítica, sendo que este último, ao aparecer como série
de artigos no mencionado jornal, foi intitulado “O
Crime como Fenômeno Social”. Limitam-se a estes os
ensaios de certo desenvolvimento. Os números de 11 e
12 de julho de 1899 publicam dois artigos de filosofia
do direito.
É provável que se possa datar deste final de
século sua maior aproximação com os pontos de vista de
Sílvio Romero. A propósito do livro Juristas Filósofos,
de Clóvis Beviláqua, insere quatro artigos em A
Província, de outubro de 1897. Dentre os pensadores
estudados por Beviláqua, trata apenas do autor da
História da Literatura Brasileira. Escreve a introdução
do livro Martins Pena, publicado por Sílvio Romero em
1901, cuja parte inicial reproduz os artigos antes
7
citados. O texto integral constitui um capítulo dos
Ensaios de Crítica.
Período deveras fecundo seria a fase em que
dirigiu o Diário de Pernambuco (abril de 1901 a fins de
1911). Reúne em livro textos divulgados na imprensa
periódica (Ensaios de Crítica, 1904 e Novos Ensaios,
1905); elabora a Propedêutica Política-Jurídica, editada
em 1904; escreve uma obra sobre o pan-americanismo
(1906); elabora um documento para as comemorações do
centenário da abertura dos portos ( Porto e Cidade do
Recife, 1908); inicia o grande projeto de proceder à mais
ampla descrição do Brasil, de peculiar ângulo socio lógico, que se referirá, a seu tempo; ingressa na
Academia Brasileira de Letras (1907) e mantém
razoável participação na atividade legislativa da Câmara
Federal, que integra a partir de 1903.
A 20 de abril de 1901, o Diário de Pernambuco,
passa a propriedade do conhecido líder político Rosa e
Silva, assumindo Artur Orlando as funções de redator chefe. Durante sua gestão, o periódico, um tablóide de
oito páginas, destina razoável espaço à promoção da
cultura e à divulgação de teses e idéias. Atribui-se
grande destaque às doutrinas pacifistas de Tolstoi. A
política americana merece sempre toda a atenção.
Busca-se familiarizar os leitores com a evolução da
ciência, transcrevendo-se comentários e notas sobre suas
conquistas. O aspecto filosófico do tema não é
descurado, bastando referir os artigos dedicados ao livro
A Ciência e a Hipótese, de Poincaré (seis e sete de
agosto de 1904).
8
É amplo o círculo de colaboradores: os historiadores Pereira da Costa e Oliveira Lima; o crítico José
Veríssimo; França Pereira, Prado Sampaio etc. A partir
de 1907 começa a aparecer colaboração assinada por
Gilberto Amado. Muitos dos ensaios de Artur Orlando
são ali publicados em forma de artigos.
O Diário de Pernambuco acompanha com
interesse a atividade dos membros da Escola do Recife,
em especial Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. Artur
Orlando evita, entretanto, toda estreiteza sectária.
Concomitantemente, a pregação do padre Júlio Maria
merecerá a sua atenção.
O clima de efervescência cultural, que o Diário
de Pernambuco reflete, fez-se sentir também através da
revista Cultura Acadêmica aparecida no segundo
semestre de 1904 e que somente circulou neste e no ano
subseqüente. Essa publicação dedicou um número
especial a Martins Júnior. Reúne em seu derredor os
remanescentes da Escola do Recife, que ainda nutrem
certa esperança no debate filosófico – embora logo
adiante busquem outros caminhos, segundo se indicará –
mas também jovens afoitos como Artur de Araújo Jorge,
matriculado na Faculdade aos 16 anos, aos 20
publicando a Filosofia Biológica (1904), para quem “a
ciência atingirá um estágio em que desaparecerão todas
as dificuldades e tudo quanto fomenta ainda hoje,
discussões estéreis e palavrosas”. (5 )
Na Cultura Acadêmica Artur Orlando publicou
alguns ensaios que, juntamente com outros, divulgados
na imprensa no decênio anterior, foram reunidos nos
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livros Ensaios de Crítica (1904) e Novos Ensaios
(1905).
Em 1905 publicou a Propedêutica PolíticaJurídica onde começam a assumir forma acabada certas
idéias, predominantes em sua obra subseqüente, segundo
as quais a abordagem da criação humana deixava de ser
efetivada no plano filosófico, como pretendia Tobias
Barreto, para tentar esgotá-la no plano sociológico,
como queria Sílvio Romero. Clóvis Beviláqua observa, a
propósito deste livro:
“A doutrina jurídica de Artur Orlando acha -se
exposta, mais particularmente, na Propedêutica Política-Jurídica. Para ele os problemas do direito são
estudos de sociologia dinâmica, pelo que se prendem,
intimamente, à elaboração gradual da idéia de progresso
e à história da luta ativa pela civilização. Deste modo de
ver resultado como conseqüência, que o jurista deve, em
primeiro lugar, descobrir a relação entre os fatores da
evolução cultural humana e as formas jurídicas, estabelecendo não somente o paralelismo como principalmente a conexão entre as sucessivas transformações
do estado social e as variações correspondentes do
direito.
Como se vê Artur Orlando era partidário da
sociologia e entendia que somente pelo caminho da
sociologia era possível o conhecimento das instituições
jurídicas. Neste modo de ver afastava-se de Tobias, o
que torna claro que a Escola do Recife não era um rígido
conjunto de princípios, uma sistematização definitiva de
idéias, mas sim uma orientação filosófica progressiva,
10
que não impedia a cada um investigar por sua conta e ter
idéias próprias, contanto que norteadas cientificamente”. (6 )
Em 1906 publica Pan-americanismo. Desenvolve
a hipótese de que à América estaria reservada a tarefa de
levar à esfera econômica a obra civilizatória e
humanizante que ao cristianismo incumbira no âmbito
da religião. A Europa achava-se, a seu ver, ameaçada de
morte “pela luta de classes, a discórdia intestin a, a
guerra econômica”, à sombra do que se fortalecia a
perspectiva “de invasão por raças superiores em número
e diferentes em cultura, em idéias e sentimentos, em
alma”. A ameaça externa provinha do Japão, que
acabara de vencer a Rússia; da China, ocupada em dar
preparo militar à força potencial do número de seus
habitantes; da Turquia, insatisfeita com sua situação e
da Índia “que nada autoriza a supor que esteja
eternamente disposta a suportar a dominação benéfica
da Inglaterra”. Exauridos, os países europeus nada mais
podiam fazer além de ganhar tempo. “À América cabe
completar a grande tarefa de Alexandre no Oriente e de
César no Ocidente, organizando o pan-americanismo em
defesa da nova concepção de justiça, de moral, de
religião, de arte”.
Em 1907, é eleito para a Academia Brasileira de
Letras, tomando posse a 28 de dezembro. Em seu
discurso limita-se ao elogio do patrono, Junqueira Freire
(1832/1855) e do fundador, Franklin Dória, Barão de
Loreto (1836/1906). (7) É saudado por Oliveira Lima
(1867/1928).
11
O Diário de Pernambuco consigna suas
sucessivas viagens ao Rio, a fim de participar dos
trabalhos da Câmara dos Deputados, e refere sua
atividade parlamentar. Do ano de 1907 ficou entretanto
registro singular: o discurso pronunciado a propósito da
reforma do ensino, amostra representativa da amplitude
com que se lançava à análise dos problemas. O texto
mereceu publicação autônoma, graças à iniciativa de
amigos.
Porto e Cidade do Recife é parte das comemorações da abertura dos portos, livro que deu a Luiz
Delgado, em artigo no Jornal do Comércio (Recife,
dezembro de 1960) “impressão de muita velocidade e de
não muita ordem”. Nessa diversidade e aparente falta de
unidade enxerga o seguinte: “se há premissas, ver dadeiramente, nessas páginas, resulta de uma intenção
guardada na mente do escritor, intenção obscura que era,
talvez, o segredo tanto de muitos sequazes da Escola do
Recife como de vários dos seus adversários. Um
sentimento, um desejo, um instinto de elevação do
homem brasileiro, de efetivação de su as possibilidades”.
A julgar por um artigo da autoria de Gilberto
Amado, publicado no Diário de Pernambuco de 31 de
março de 1909, em que anuncia a obra então intitulada A
Terra, o Homem e o Meio Social no Brasil – por essa
época deve ter amadurecido no espírito de Artur
Orlando a idéia de lançar-se à caracterização das
componentes físicas e biológicas da nacionalidade, na
esperança de assim chamar a uma síntese totalizante. Na
introdução do livro que afinal só vem a aparecer em
12
1913, afirma que “se pode avaliar a insuficiência de
múltiplas teorias sociológicas tão -somente pelo seu
unilateralismo considerando cada uma delas o meio, a
raça ou qualquer manifestação de psiquismo individual
ou coletivo como fator exclusivo da evolução social”. (8)
Acham-se nessa linha as duas comunicações enviadas
aos Congressos de Geografia realizados naquele início
de século bem assim a colaboração publicada na Revista
da Academia Brasileira de Letras. O projeto não logrou,
entretanto, plena realização. Vitimado por prolongada
enfermidade, que o imobilizou praticamente a partir de
1914, veio a falecer a 27 de março de 1916.
O Diário de Pernambuco de 28 de março de 1916
publica nota: “Em sua residência, à Estrada de João de
Barros, faleceu ontem o ilustre homem de letras dr.
Artur Orlando da Silva em conseqüência de longa
enfermidade que, há quatro anos, vinha minando a
existência.
O infausto acontecimento verificou-se pelas 22
horas e 40 minutos.
Dotado de comprovada erudição e sólida cultura
jurídico-filosófica, o distinto morto gozava de elevado
conceito como um dos vultos mais conhecidos do país,
quer nas letras, quer na política. Nesta, sua manifestada
atividade de homem público foi sempre grandemente
pronunciada.
Como pensador consciente de seu aprimorado
talento, escritor de numerosos e valiosos trabalhos
dignos de nota e que lhe proporcionaram merecido
renome, tanto no país como no estrangeiro.
13
Dentre as suas obras de maior relevo salientam-se
Filocrítica; Pan-americanismo, Porto e Cidade do
Recife, Ensaios de Crítica; Brasil, a Terra e o Homem,
cuja segunda parte a morte não o deixou terminar.
Notabilizou-se também no jornalismo, tendo durante
largo período dirigido esta folha, quando pertencente ao
sr. Senador Rosa e Silva. Na Província e no Jornal do
Recife prestou relevantes serviços como redator,
colaborando ainda em diversos outros jornais, assim
como em várias revistas científicas ou literárias no país.
Na política teve sempre posição de destaque,
tendo sido senador estadual e deputado federal em mais
de uma legislatura.
Pertencia a diversas e distintas agremiações,
sendo, notadamente, membro da Academia Brasileira de
Letras e tendo-o sido da extinta Academia Pernambucana.
Anteriormente exercera também o cargo de
inspetor de instrução pública.
A morte o veio encontrar no desempenho das
funções de promotor de resíduos e fundações.
Atacara-o ultimamente incurável septicemia, que
resistiu a todos os recursos da ciência médica.
Os doutores Frederico Curio, Arnóbio Marques,
Simões Barbosa, Abelardo Baltar e Alberto Ferreira , o
primeiro o seu médico assistente e os últimos auxiliares
daquele facultativo, chegaram a tentar os últimos
recursos a fim de salvar-lhe a vida.
14
Anteontem procederam-lhe a amputação da perna
direita. Era já, infelizmente, fora de tempo, porque a
doença havia completado a sua obra destruidora.
Pernambucano, nascera o dr. Artur Orlando em 29
de junho de 1958, contando, conseguintemente, 58 anos
de idade.
Filho do tenente José Caetano da Silva, há muitos
anos falecido, e da exma, srta. d. Belarmina Augusta de
Moraes de Mesquita Pimentel da Silva, era casado com
a dra. Maria Fragoso Orlando da Silva, e deixou três
filhas de seu consórcio: d. Izabel, esposa do dr. Antônio
Vicente de Andrade Bezerra, atual Secretário do Estado;
senhorita Maria, noiva do dr. Francisco Paes Barreto, e
senhorita Olívia. São irmãos do saudoso extinto o
tenente Antônio Irineu da Silva e as exmas sras. dd.
Olívia Augusta da Silva e Belarmina Dorneles Câmara,
esta mãe dos drs. Nilo e Olívio Câmara”.
II.
A ESCOLA DO RECIFE
O movimento que veio a ser denominado Escola
do Recife nasce do processo de diferenciação do
chamado “surto de idéias novas” dos anos setenta do
século XIX. No ciclo inicial, tratava -se de combater os
suportes teóricos da monarquia, entendida como
obstáculo ao progresso, esgrimindo teses apanhadas
indiscriminadamente na obra de Comte, Darwin, Taine,
Renan e tantos outros. Não há facções ou tendências
mas uma espécie de “frente” cientificista. Nesse am15
biente é que surge o positivismo como corrente
filosófica, aparentemente dividida nas facções ortodoxa
e dissidente, mas na verdade formando diversas
vertentes e influindo de forma diversificada segundo os
segmentos da cultura brasileira que se considere.
Ao primeiro momento de diferenciação, com o
positivismo, segue-se o processo de constituição da corrente que iria contestá-lo, sob o lema geral popularizado
por Sílvio Romero de que, se constituía sintoma de
atraso combatê-lo por se estar aquém, correspondia a
sinal de progresso feri-lo por se estar além.
A Escola do Recife notabilizou-se pela reforma
na compreensão do direito, pela obra de muitos dos seus
membros na elaboração sistemática da história da
cultura brasileira, pela modernização de instituições,
como é o caso do Código Civil. Pretendeu muito mais ao
empreender incursões em diversos terrenos, desde a
poesia à política, embora o seu lugar na cultura nacional
seja assegurado sobretudo pelos aspectos antes
enumerados.
A filosofia é que se constituiu no elemento unificador de ação tão variada e dispersa, precisa mente o
que faz sobressair a figura de Tobias Barreto (1839/
1889). A elaboração teórica que iria impulsionar inicia se em 1875 quando Sílvio Romero (1851/1014) pro clama a morte da metafísica, num concurso na Faculdade de Direito do Recife. Por essa ocas ião, escreve
Tobias, “já eu nutria minhas dúvidas a respeito da
defunta, que o positivismo tinha dado realmente por
morta, porém que ainda sentia-se palpitar”. O texto que
16
então elaborou, sob a denominação de “Deve a Metafísica ser Considerada Morta?” e q ue, desaparecido, não
foi incluído na reedição de suas Obras completas,
efetivada na década de vinte, acha -se em parte
reconstituído, na reedição crítica patrocinada pelo
INL. (9)
Durante certo período, Tobias Barreto imaginou
que a superação do positivismo poderia ser alcançada
graças à filosofia monista de Ernest Haeckel. No
aprofundamento dessa hipótese, acabou opondo -se ao
caráter mecanicista do monismo haeckeliano e empre endendo a tentativa de aperfeiçoá-lo mediante a
introdução da idéia de luta, do dinamismo, da polaridade, enfim. Mais tarde, embora sem renegar tais
princípios, pretendeu que a filosofia devia limitar -se a
uma inquirição sobre o conhecimento científico, abdicando de qualquer pretensão de aumentar o saber
operativo (científico), já ago ra sob influência de
representantes dos primórdios do neokantismo.
Tobias Barreto não chegou a proclamar a
incompatibilidade entre a acepção (neokantiana) da
filosofia como epistemologia e o monismo. Este, na
verdade, não chegava a distinguir -se do positivismo
desde que atribuía ao saber filosófico idênticas funções
de patrocinar a síntese das ciências. É provável que não
o tivesse feito porque lhe restaram poucos anos de vida
ativa, ainda assim ocupados na busca de uma esfera
privilegiada, como objeto de inquirição eminentemente
metafísica: a cultura.
17
Assim, Tobias Barreto suscitou a hipótese do
monismo e, sem abandoná-la, difundiu o conceito
neokantiano de filosofia. Artur Orlando é o único dos
seguidores que se dá conta da incompatibilidade das
duas posições e busca aprofundar a idéia da filosofia
como epistemologia. Os demais integrantes da escola
não se dispuseram a abdicar da sua acepção como
síntese das ciências e supunham que a disputa era entre
monismo mecanicista e monismo teleológico ou entre
monismo e evolucionismo.
Contudo, a grande significação do pensamento de
Tobias Barreto, no empenho de restaurar a metafísica,
consiste na abordagem do homem como consciência, a
seu ver a única forma de retirá-lo do determinismo a que
o havia cingido o positivismo. Tal é o tema central da
parcela última de sua obra filosófica. (10 )
Para o pensador sergipano, a cultura é “a síntese
da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança
do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom”. Designase pelo nome geral de natureza “o estado originário das
coisas, o estado em que elas se acham depois do seu
nascimento, enquanto uma força estranha, a força
espiritual do homem, com sua inteligência e vontade,
não influi sobre elas e não as modifica”.
A particularidade do mundo da cultura consiste
no fato de que se subordina à idéia de finalidade,
escapando a todo esquema que se proponha resolvê -lo
em termos de causas eficientes.
A seu ver, o equívoco dos contraditores da
existência da liberdade na criação humana deve-se à
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associação inadequada entre liberdade e ação imotivada.
“Desde que se faz assim do acaso e do capricho
irracional a essência da liberdade, desde que o
verdadeiro ato livre se considera aquele que se pratica
sem motivo, sem razão alguma, não é muito que os
deterministas achem provas de sua teoria em todos os
círculos da atividade humana, onde se nota uma certa
ordem”. Acha entretanto que “a livre vontade não é
incompatível com a existência de motivos; pelo
contrário, eles são indispensáveis ao exercício normal
da liberdade”.
A chave para a solução do problema será
encontrada no entendimento da cultura como um
“sistema de forças combatentes contra o próprio
combate pela vida”, isto é, radicalizando a oposição
entre o império das causas finais e o império das causas
eficientes, entre o mundo da criação humana e o mundo
natural.
O fato natural não o livra de ser “ilógico, falso e
inconveniente”. A regularidade natural, isto é, a
circunstância de que um acontecimento natural seja
considerado segundo leis, não implica em que,
transposto ao plano da cultura, possa ser encarado
independentemente do ponto-de-vista moral. Tem em
vista o seguinte:
“Assim, e por exemplo, se alguém hoje ainda
ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos
para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim – é
natural a existência da escravidão; há até espécies de
formigas, como a polyerga rubescens, que são
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escravocratas; porém é cultural que a escravidão não
exista”.
A natureza, concluirá, pode ser apontada como a
fonte última de toda imortalidade e não foi certamente
inspirando-se nela que o homem criou a cultura. Esta, a
seu ver, forma-se precisamente no pólo oposto ao que
supunha o autor do Contrato Social. “Rousseau deixou
escrito que em assunto de educação – tout consiste à ne
pas gâter l’homme de la nature en l’appropriant à la
societé. Neste princípio que se lê na quinta carta do
quarto livro da Nouvelle Héloise, culmina-se o edifício
de suas idéias reformuladoras. Entretanto a verdade está
do lado contrário. O processo da cultura geral deve
consistir precisamente em gastar, em desbastar, por
assim dizer, o homem da natureza, adaptando -o à
sociedade”.
Nessa luta por erigir algo de independente da
natureza, o homem criou a sociedade, “que é o grande
aparato da cultura humana” e deixa-se afigurar “sob a
imagem de uma teia imensa de relações sinérgicas e
antagônicas; é um sistema de regras, é uma rede de
normas, que não se limitam ao mundo da ação, chegam
até os domínios do pensamento”.
No âmbito dessa imensa teia, o direito é uma
espécie de fio vermelho e a moral o fio de ouro.
O verdadeiro característico do ente humano é pois
“a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as
próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de
proceder”. Trata-se, em síntese, de um animal que se
prende, que se doma a si mesmo. “Todos os deveres
20
éticos e jurídicos, todas as regras da vida acomodam-se
a esta medida, que é a única exata para conferir ao
homem o seu legítimo valor”.
Assim se coloca, para a meditação brasileira, pela
primeira vez, a hipótese de considerar-se o homem como
consciência. Nesse momento inicial, é a idéia de
arquétipo que está presente ao espírito de Tobias
Barreto, na maneira como a entende Kant na “Dialética
Transcendental” da Crítica da Razão Pura. A verdadeira
problemática do tema ainda não se explicita de todo.
Nem por isto, entretanto, pode-se deixar de reconhecer,
como o faz Reale, que “registrou Tobias Barreto, no
processo de sua formação monística, idéias destinadas a
uma longa elaboração mental, e que, do culturalismo
sociológico de Ihering, nos levariam ao culturalismo
mais largo de um Kohler ou de um Berdzheimer, para
atingir, afinal, a fase atual sob a inspiração de um Max
Scheler ou de Nicolai Hartmann. O mérito imorredouro
do autor dos Estudos Alemães está em ter visto o
problema como um problema filosófico, não compreendido, infelizmente, que a sua formulação era, por
si mesma, a mais cabal condenação das doutrinas
monistas que abraçara, após reconhecer a impossibilidade de colocar completamente a vida espiritual
sob o causalismo da natureza”. (1 1)
Reale observa que, na obra de Sílvio Romero, o
conceito de cultura deixa de ser um problema filosófico.
Ao autor da História da Literatura Brasileira não
parece adequada qualquer contraposição entre natureza e
cultura. “A antítese de Tobias, prossegue Reale, opõe
21
uma conciliação, que diz ser possível à luz do evo lucionismo monístico spenceriano, que acabou com a
antítese entre o naturalismo e o espiritualismo ”.
Essencial parece ser a circunstância de que os
seguidores não se tenham disposto, com exceção de
Artur Orlando, a abdicar da acepção da filosofia como
síntese das ciências. E, sem essa disposição, o plano
metafísico propriamente dito acabaria sendo ignorado.
Ainda em 1906, escreveria Sílvio Romero: “A
metafísica que fo i dada por morta em 1875 era a
metafísica dogmática, ontológica-apriorística, inatista,
meramente racionalista, a metafísica do velho estilo,
feita à parte mentis, a pretensa ciência intuitiva do
absoluto, palácio de quimeras fundado em hipóteses
transcendentes, construído dedutivamente de princípios,
imaginados como superiores a toda verificação. Esta
morreu e está bem morta para todo mundo. A metafísica
que se pode considerar viva é a que consiste na crítica
do conhecimento, como a delineou Kost nos seus,
Prolegômenos e, mais, a generalização sintética de todo
o saber, firmada nos processos de observação e
construída por via indutiva. Esta vive e viverá sempre,
porque, além de ser uma disposição natural do espírito,
supre algumas falhas das ciências partic ulares, mas sem
abrir luta com estas e antes nelas se apoiando, mantendo
sempre ativos os largos surtos e aspirações da razão
para o lado do desconhecido. (1 2)
Clóvis Beviláqua (1859/1944) insistiria no
mesmo aspecto ao dizer que a filosofia não deveria ser
denominada de ciência porquanto “não determina
22
relaçoes entre fenômenos, nem tem por objeto que não
lhe seja exclusivo e não comum, ao menos nalgum
sentido, com as outras ciências”. Ao que acrescenta:
“Mas, se não é uma ciência, é uma recapitulação ou,
antes, um extrato de todas as ciências que tem isto de
original: simplifica, unifica e completa os resultados de
todas elas, sendo menos minuciosa do que qualquer
delas, porém tendo mais amplitude e mais profundeza do
que todas reunidas”. (13)
Faltou, portanto, o aprofundamento da perspectiva neokantiana (a filosofia como epistemologia), de
modo a explicitar a impossibilidade de conciliá -la com o
monismo (Fausto Cardoso, 1864/1906) ou pretender
substituí-lo pelo evolucionismo (Romero, Beviláqua,
etc.). Desse modo, a Escola do Recife não logrou
superar a atmosfera na qual viscejava o positivismo e
acabou reforçando entendimento semelhante do saber
filosófico. Ao invés de contribuir para impulsionar o
culturalismo de Tobias Barreto, o que somente viria a
ocorrer muito mais tarde.
Registre-se que no empenho de determinação das
relações entre filosofia e ciência, os membros da Escola
do Recife avançaram algumas idéias acertadas do saber
de índole operativa. Embora sem se dispor a renunciar
seja ao monismo seja ao que chamava de “intuição de
caráter sintético”, Graça Aranha (1868/1931), por exemplo, teria oportunidade de enfatizar que “a ciência
decompõe o universo, conhece-o, discrimina-o, estuda-o
nas suas manifestações parciais. Só há ciência do que se
pode fragmentar. Ela pode analisar, explicar cada ordem
23
de fenômenos que a sensação perceba, ela é es sencialmente divisível e analítica”. (14)
A Escola do Recife não foi capaz de alcançar a
derrota do comtismo como filosofia das ciências. Esta
seria obra do grupo da Escola Politécnica do Rio de
Janeiro, capitaneado por Otto de Alencar (1874/1912) e
Amoroso Costa (1885/1928).
III.
A MEDITAÇÃO DE ARTUR ORLANDO
Artur Orlando foi o único dos integrantes da
Escola do Recife que exerceu prolongada militância
política. Tobias Barreto, talvez por excesso de doutrina,
acabou incompatibilizado com os partidos em que se
refugiara, Sílvio Romero escreveria no “Prólogo” à
reedição dos Estudos Alemães: “os conservadores – se
lhe afiguravam retrógrados, homens do rei, reacionários,
compressores; os liberais – contraditórios, fantasistas,
incapazes de cumprir o que prometia, estragados pela
fraseologia retórica dos declamadores; os republicanos –
incertos, vacilantes entre as parlamentarices francesas e
o arrocho norte-americano”.
O próprio Sílvio Romero teria participação direta
na política estadual de Sergipe, após a República,
chegando mesmo a integrar a direção de movimento
popular que derrubaria o governo. Foi deputado federal
na legislatura de 1901/1902, ocasião em que atuou como
relator da comissão incumbida de dar parecer sobre o
projeto de Código Civil, redigido por Clóvis Beviláqua.
24
Contudo, parece haver sucumbido vítima de equívoco
semelhante ao de Tobias, incapaz de reconhecer a
especificidade dessa esfera, o caráter ine lutável do
compromisso. Em 1911, no prefácio ao livro A Verdadeira Revisão Constitucional, de Samuel de Oliveira,
avançaria este desabafo bem no seu estilo:
“À turba malta dos aduladores do poder aparecem
sempre os seriganos como inteligentes nas letras, na
poesia, na filosofia, no estudo do direito, mas desdotados de capacidade política. É que para esse
cavejamento da incapacidade em torno aos governos – a
capacidade política é igual à soma dos quadrados da
desfaçatez e da impostura, especialmente quando estas
se mostram em ação no bajulamento jornalístico ou nas
manipulações infames das farsas eleitorais.
Medido por esse padrão, Samuel de Oliveira não
tem capacidade política, como não a tinha Tobias
Barreto nem a tenho eu”.
Tudo leva a crer que Artur Orlando buscou,
deliberadamente, uma posição eqüidistante de seme lhante sectarismo. Exerceu a política de modo muito
concreto, sem vincular-se a qualquer tipo de reformismo
sonhador.
É certo que aproveitaria a posição de proeminência que chegou a galgar na situação pernambucana, como responsável pelo Diário de Pernambuco,
para colocar-se a serviço da elevação cultural da elite.
Aliás, o primado do elemento moral sobre o material é
evidente no conjunto de sua obra. “A política –
escreveria nos Ensaios de Crítica – não tem por objetivo
25
aplicar leis existentes, anulando atos, como fazem, os
tribunais civis, ou impondo penas como praticam os
tribunais criminais; sua missão é implantar uma
organização social mais eqüitativa no domínio da
cultura econômica, jurídica, intelectual, filantrópica,
estética, religiosa, em harmonia com as condições de
uma dada época”.
Contudo, é fora de dúvida que não iria além do
empenho em favor do aprimoramento cultural. A filosofia política, como tal, não se inseria no seu círculo
de interesses. Assim, embora proclamasse que “o fun dador do positivismo não se destaca senão pela sua
antipatia às idéias e às instituições liberais”, considerando “uma crise feliz o golpe de estado, que
substituiu pela república ditatorial a república pa rlamentar”, nunca se dispôs à análise mais profunda da
política positiva, ainda que, pela vivência, a tivesse
observado mais de perto que seus outros companheiros
de movimento filosófico.
A evolução dos temas de sua ensaística é bem
elucidativa dessa posição peculiar em face da política.
Sob o clima de agitação em que vive o país, ao
longo da década de noventa, o que está em jogo, na
verdade, é o estilo de vida política a que se ajustaria a
República. José Maria Belo observa que “no Congresso,
encontravam calorosos aplausos os radicais, os
jacobinos, os exaltados de toda espécie. Ainda não
libertos das tradições parlamentares do Império, os
congressistas republicanos reivindicam uma primazia
política que violava a natureza do regime”. Semelhante
26
entendimento parece ter contribuído para o sentido
antiparlamentar de que se revestiria a ascensão e a
consolidação da autoridade do Chefe do Executivo,
consumada afinal nos fins do mandato de Prudente de
Morais e logo formalizada, no governo Campos Sales,
através da chamada política dos governadores, que
institucionaliza o desinteresse pelo aprimoramento da
representação, fenômeno que marcaria todo o período
republicano. A teoria desse processo – consoante a
posteridade o evidenciaria – achava-se integralmente
elaborada por Júlio de Castilhos, sob a inspiração de
Augusto Comte, o que não se patenteou desde logo.
Talvez pela circunstância fortuita de que a facção
castilhista acabaria vinculada à candidatura derrotada.
Artur Orlando é participante ativo de toda essa
movimentação. Nos anos noventa, em que pesem os
compromissos político-partidários, encontra tempo para
a meditação filosófica, ao elaborar o ensaio “O
Problema da Morte”, mas está voltado sobretudo para a
crítica político-social, sendo “O Adultério” e “A Pena
entre os Hebreus” os textos mais representativos. Com o
desfecho da crise, coincide a ascensão do grupo Rosa e
Silva. Para Artur Orlando, o exercício do poder deixa de
constituir tema de inquirição torna-se exercício
diuturno. Tratando-se agora de por em execução o
programa do Partido Autonomista, que ajudara a
formular nos tempos de A Província, volta-se para
outras questões. E começa precisamente pelo reexame
da problemática da Escola do Recife.
27
Neste começo do século, preocupa-se mais uma
vez com a meditação de Tobias Barreto. Publica, na
Cultura Acadêmica, artigo sobre seu ponto-de-vista
religioso. Na oportunidade da reedição do texto
introdutório que redigira para as Questões Vigentes,
efetivada nos Ensaios de Crítica (1904), acrescenta-lhe
extensa nota, de enorme interesse desde que afronta o
problema da acepção de filosofia.
Escreve: “É preciso não esquecer que hoje
filosofia já não quer dizer ciência do absoluto
(metafísica), nem explicação do universo (cosmogonia),
nem qualquer dessas grandes sistematizações conhecidas
pelos nomes de seus autores (darwinismo, comtismo,
spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina
mental sobre a qual se apóiam todas as ciências
constituídas e por constituir”. (15 )
A questão fundamental, prossegue, é a relação
entre o real e o ideal. Parecia ter a intuição de que o
problema conduzia inelutavelmente à avaliação do papel
do espírito, e de sua capacidade de produzir sínteses
ordenadoras, ou melhor, do exame do “a priori”
kantiano. Questiona se seria algo independent e da
experiência, como queria Kant, ou simples função que
se desperta no contato com a experiência. Aventa a
hipótese de que a solução estaria no conceito de
substância. Mas não parece ter clareza quanto à sua
condição de elemento constitutivo de objetivid ade.
Pouco mais tarde, na comunicação apresentada ao 3º
Congresso Científico Latino-Americano (1905), iria ten28
tar elucidar no plano psicológico, a atividade sinté tica
da consciência.
Assim, na oportunidade do reexame dos
problemas legados à posteridade p ela meditação de
Tobias Barreto, Artur Orlando dá-se conta da
incompatibilidade entre o entendimento da filosofia
como síntese das ciências (spencerismo, comtismo, etc.)
e seu enunciado como epistemologia, na linha
neokantiana. E coloca como questão centra l o problema
do “a priori”. Se não logra resolvê-lo, se aprece haver
perdido os vínculos que Tobias Barreto procurara
estabelecer com o neokantismo, está de todos os modos
muito distanciado dos outros membros da Escola do
Recife.
Artur Orlando dá o passo seguinte ao chamar a
atenção para a nova física, no ensaio “Concepção Nova
da Matéria” (16) . Embora circule na esfera mais geral do
saber científico, não confunde os planos e tem noção
clara da especificidade da ciência. Contudo, não daria a
esse tema o sent ido de afrontamento ao positivismo, na
forma como o fizeram Otto de Alencar e Amoroso
Costa.
No tema em que a Escola do Recife efetivamente
deixa de circular nessa atmosfera cientificista, tão
caudatária do positivismo a que tanto desejava se opor,
isto é, naquilo que Reale denominou de culturalismo,
Artur Orlando não soube dar continuidade à meditação
do insigne fundador da Escola. Cedeu a Sílvio Romero
na admissão da possibilidade de uma sociologia, e,
como ele, buscou as descrições exaustivas e totalizan tes.
29
Este o sentido principal de sua obra a partir de 1909.
Embora não a tenha concluído, em diversos ensaios e na
parcela divulgada de Brasil, a Terra e o Homem (1913)
acham-se suficientemente explícitos seus pontos-devista últimos.
***
A reedição dos principais textos de Artur Orlando
insere-se no programa que o Instituto Brasileiro de
Filosofia vem realizando, com o inestimável apoio da
Editora da Universidade de São Paulo, colaboração que
já possibilitou o aparecimento de textos essenciais à
compreensão de nossa evolução cultural, entre os quais
cumpre destacar as Preleções filosóficas, de Silvestre
Pinheiro Ferreira, as Investigações de Psicologia, de
Eduardo Ferreira França e as Obras Filosóficas de
Pereira Barreto.
Dentre os trabalhos de Artur Orlando, foram
selecionados os que melhor refletem o processo de
amadurecimento de seus pontos de vista no
entendimento do direito, da filosofia e da sociologia.
Optamos por preservar a denominação de um de seus
livros – Ensaios de Crítica – desde que reflete com
propriedade o sentido principal de sua obra.
No preparo desta reedição, contamos com a
inestimável colaboração de Ricardo Velez Rodrigues, na
pesquisa de periódicos, e de Generosa Amoedo Teixeira,
no preparo dos originais para impressão. Queremos
consignar também os agradecimentos do IBF a d. Eunice
30
Robalinho Cavalcanti, diretora da Biblioteca da
Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco,
pela presteza com que nos franqueou cópias de textos do
autor, preservados naquela instituição.
IV. BIBLIOGRAFIA DE ARTUR ORLANDO
(17 )
Filocrítica. Prefácio de Martins Junior. Pernambuco, Tipografia
Apolo, 1886, 223 p.
Introdução às Questões Vigentes de Tobias Barreto.
Meu Álbum. Introdução de Clóvis Beviláqua. Recife, Apollo
Editora, 1891, 81 p.
“Dr. José Maria”. Carta sobre a morte do dr. José Maria de
Albuquerque e Melo, datada de 4 de março de 1845. A
Província, 11 de março de 1895 (Reproduzida no Jornal do
Recife). (18)
Discurso sobre os negócios de Pernambuco. A Província, 5 de
julho de 1895.
A Família e a Sociedade (Revista Jurídica). A Província, 23 de
agosto de 1895.
Discurso pronunciado na Câmara, em 7 de agosto último, a
propósito da reforna do ensino nas Academias de Direito. A
Província, 18 de setembro de 1885.
O Problema da Morte. A Província, 5 de julho de 1896.
“Código Penal”. Exposição de motivos apresentada na Comissão
Especial encarregada da revisão do projeto de Código Penal
do dr. João Vieira de Araújo. A Província, 10; 11; 12; 13; 14;
15 e 19 de novembro de 1896.
“O Crime como Fenômeno Social”. A Província, 11; 12; 13; 15;
16; 17; 18; 19 e 20 de dezembro de 1896.
31
“Jurisprudência: Concordata Extrajudicial”. A Província, 20 de
junho de 1897.
“A Cisão”. A propósito da cisão do Partido Republicano Federal.
Crítica ao intervencionismo federal na política interna dos
Estados. A Província, 2 e 26 de junho de 1897.
“Uma Ligeira Resposta”. Sobre as relações dos Estados com o
governo federal. A Província, 11 de julho de 1897.
“Sílvio Romero, Jurista”. A propósito de Filósofos Juristas, de
Clóvis Beviláqua. A Província, 20; 22; 26 e 29 de outubro de
1897.
“Partido Autonomista” (Manifesto). A Província, 19 e 20 de
novembro de 1897.
“José Mariano” (Manifesto contra a sua prisão) A Província, 21 de
novembro de 1897.
“Partido Autonomista”. A Província, 23; 25 e 28 de novembro de
1897.
“Manifesto do Partido Autonomista”. (A propósito das eleições de
1º de março). A Província, 19 de fevereiro de 1898.
“O Problema da Morte”. A Província, 14 e 15 de abril de 1898.
“Sobre a Codificação do Direito Civil Brasileiro”. A Província, 9
de junho de 1898.
“Partido Autonomista aos Eleitores do 5º Distrito”. A Província,
23 de setembro de 1898.
“O Sr. Campos Sales e o Manifesto Inaugural”. A Província, 2; 3
e 6 de dezembro de 1898.
“O Desarmamento Internacional”. A Província, 15 de janeiro de
1899.
“Uma Página de História Experimental’. A Província, 25 de
fevereiro de 1899.
32
“Um Caso de Misoneismo Jurídico”. A Província, 15; 17; 21 e 23
de março de 1899.
“O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça” (Dr. Fonseca
Galeão) A Província, 30 de março e 6; 8; 9 e 11 de abril de
1899.
Prefácio ao livro de Inês Sabino Mulheres Ilustres. Rio de
Janeiro, Garnier, 1899. 280 p.
“O Direito e a Teoria do Realismo e do Idealismo”. A Província,
11 e 13 de julho de 1899.
Introdução ao livro de Sílvio Romero Martins Pena, Porto,
Livraria Chardron, 1901, 193 p.
“Idéias Propedêuticas”. Diário de Pernambuco, 25 de maio de 1901.
“Cristianismo e Socialismo”. Diário de Pernambuco, 24; 25; 26;
28 e 29 de janeiro de 1902. (Transcreve uma carta do padr e
Júlio Maria a propósito do tema).
“O Problema da Velhice”. Diário de Pernambuco, 16 e 17 de abril
de 1902.
“Cruel Convalescença”. Diário de Pernambuco, 18 de abril de
1902.
“A Filosofia e o Problema da Vida”. Diário de Pernambuco, 3 de
junho de 1902.
“Parecer no Congresso Nacional”. Diário de Pernambuco, 8 de
maio de 1903.
Ensaios de Crítica. Recife, Cada Editora Diário de Pernambuco,
1904, 381 p.
Propedêutica Político-Jurídica. Recife, Laemmert, 1904, 202 p.
Tobias Barreto (Seu ponto-de-vista religioso). A Cultura Acadêmica, 1(1): 3-18, jul./dez., 1904.
33
Filosofia Biológica, A Cultura Acadêmica, 1(1):269-186, jul./dez.,
1904.
Martins Junior, Filósofo. A Cultura Acadêmica, setembro, 1904
(Número especial dedicado a Martins Junior).
“Inquérito Literário”. ( Resposta às seguintes perguntas: 1) A que
elementos deve a sua formação literária? 2) Qual o espírito
mais bem organizado da atual geração de intelectuais de
Pernambuco? 3) Como considera o jornalismo do Recife e
quais is meios de remodelá-lo?). Diário de Pernambuco, 11 de
junho de 1905.
“Ligeiro Cavaco”. Diário de Pernambuco, 13 de junho de 1905.
“O Inquérito”. Diário de Pernambuco, 20 d ejunho de 1905.
Novos Ensaios. Recife, Tipografia J. B. Edelbrok, 1905, 155 p.
“O Infanticídio”. A Cultura Acadêmica, 2(1):71-78, ago., 1905.
“Concepção Nova da Matéria”. Diário de Pernambuco, 24; 25 e
30 de agosto de 1905.
“Crime e Loucura” (A propósito de Menores e Loucos de Tobias
Barreto). Diário de Pernambuco, 15 de setembro de 1905.
“A Questão do Estilo” (A propósito de Poesia Científica, de
Martins Junior). Diário de Pernambuco, 1 de outubro de 1905.
“Maciel Monteiro”. Diário de Pernambuco, 14 de outubro de
1905.
“Memória Apresentada ao 3º Congresso Científico LatinoAmericano”. A Cultura Acadêmica, 2(3):225-239, dez., 1905.
“Missioneismo Jurídico”. Diário de Pernambuco, 17 e 24 de
janeiro de 1906.
“Uma Grande Descoberta”. Diário de Pernambuco, 4 de março de
1906.
34
Pan-Americanismo. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1906,
220 p.
“Verificação de Poderes”. Diário de Pernambuco, 30 de maio de
1906.
“Dois Belos Romances de Amélia de Freitas Beviláqua”. Diário
de Pernambuco, 8 de julho de 1906.
“Um Crítico Moderno: Augusto Franco”. Diário de Pernambuco,
26 de julho de 1906.
“Um Livrinho Primoroso de Alfredo Carvalho”.
Pernambuco, 5 de agosto de 1906.
Diário de
“A Ciência e a Religião sob o Ponto-de-Vista Social”. Diário de
Pernambuco, 15 de setembro de 1906.
“Organização de Importante Serviço” (A propósito da repartição
federal de Geologia e Mineralogia), Diário de Pernambuco,
19 de janeiro de 1907.
“General Júlio Rocca”. Diário de Pernambuco, 7 de março de
1907.
“Um Grande Plano de Combate” (A propósito do combate à
tuberculose). Diário de Pernambuco, 20 de março de 1907.
“A Vida Universal”. Diáriod e Pernambuco, 7 de abril de 1907.
“Discurso no Instituto Histórico”. Diário de Pernambuco, 12 e 13
de setembro de 1907.
“A Reforma do Ensino”. Discurso na Câmara dos Deputados.
Diário de Pernambuco, 10; 11; 12 e 13 de outubro de 1907.
Reforma do Ensino. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1907, 41 p.
“Discursos dos drs. Artur Orlando e Oliveira Lima na Academia
Brasileira”. Diário de Pernambuco, 28 de dezembro de 1907.
35
Porto e Cidade do Recife. Pernambuco, Jornal do Recife, 1908,
123 p.
“A História do Brasil” (A propósito do livro de Sílvio Romero).
Diário de Pernambuco, 19 e 20 de dezembro de 1908.
“Discurso na Câmara dos Deputados”. Diário de Pernambuco, 1;
2; 3 e 4 de setembro de 1909.
“Joaquim Nabuco”. Diário de Pernambuco, 2 de fevereiro de
1920.
“Pernambuco”. Diário de Pernambuco, 2; 5; 8; 12 e 16 de abril de
1910.
“Joaquim Nabuco”. Discurso pronunciado na Câmara Federal.
Diário de Pernambuco, 21 de abril de 1910.
“São Paulo, Bandeirantes”. Diário de Pernambuco, 7 de julho de
1910.
São Paulo vérsus Alexandre IV (Memória Apresen tada ao 2º
Congresso Brasileiro de Geografia). Diário de Pernambuco,
26 de julho de 1910.
São Paulo vérsus Alexandre IV, Rio de Janeiro, Jornal do
Comércio, 1910. 23 p. (2º Congresso Brasileiro de Geografia).
“Ideal Social”. Diário de Pernambuco, 29 de julho de 1910.
Flora e Fauna Brasileira. Revista da Academia Brasileira de
Letras, 2(3):39-64, jan., 1911.
A Propósito dos Platirrínios Brasileiros. Revista da Academia
Brasileira de Letras, 2(3):229-286, abril, 1911.
Clima Brasileiro. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1911, 22 p.
(3º Congresso Brasileiro de Geografia).
Brasil, a Terra e o Homem. Recife, O Tempo, 1913, 208 p.
36
NOTAS
(1) Discursos Acadêmicos – Vol. I (1897-1917), Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras, 1965, pág. 350.
(2) Clóvis Beviláqua – “Emílio Littré” (1882), conferência
realizada em nome da Sociedade Positivista do Recife; in Esboços
e Fragmentos, Rio de Janeiro, Laemmert, 1899, págs. 146/147.
(3) Filocrítica – Introdução de Martins Júnior . Pernambuco,
Tipografia Apolo, 1886.
(4)
Idem.
(5)
19
(6)
Cultura Acadêmica – Tomo I. Fac. III, nov./dez., 1904, pág.
Idem
(7) Discursos Acadêmicos – Vol. I, edição citada, págs. 323344.
(8)
O Brasil, a Terra e o Homem – Recife, O Tempo, 1913
(9) “Deve a Metafísica ser Considerada Mort a?” )1875) in
Estudos de Filosofia, Tomo I, Rio de Janeiro, Instituto Nacional
do Livro, 1966, págs. 135 a 138.
(10) Incluída nos Estudos de Filosofia – Tomo II, Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1966, 207 p.
(11) Introdução ao livro Tobias Barreto na Cultura Brasileira:
uma Reavaliação, de Paulo Mercadane e Antônio Paim, São Palo,
Ed. Grijalbo/Univ. de São Paulo, 1972, págs. 22/23.
(12) Zeverissimações Ineptas da Crítica, Porto, 1906, págs.
79/80.
(13) Esboços e Fragmentos, Rio de Janeiro, 1899, págs. 8 e 9.
37
(14) Discursos Acadêmicos – Vol. I (1897/1919), Rio de Janeiro,
Ed. da Academia Brasileira de Letras, 1965, págs. 180/171.
(15) “Tobias Barreto” in Ensaios de Crítica, nota (1) às págs.
225 e seguintes.
(16) Novos Ensaios – Recife, 1905.
(17) Embora muitos estudiosos de sua obra refiram colaboração
assídua no Jornal do Recife (fundado em 1857), na coleção da
década de 90, consultada na Biblioteca Nacional, consta apenas na
Seção de Avisos de 24 de março de 1891, anúncio do escritório d e
advocacia de Artur Orlando (Rua do Imperador, 77) e um único
artigo, de sua autoria, sobre o assassinato do líder político José
Maria, aparecido na edição de 5 de março de 1895.
(18) A Província foi fundada em 1877 e teve a Tobias Barreto
entre os seus colaboradores. O nome de Artur Orlando aparece
entre os colaboradores a partir da edição de 7 de julho de 1895, ao
lado dos seguintes: Artur Henrique de Albuquerque Melo,
Baltazar de Albuquerque Martins Pereira, Francisco de
Albuquerque Melo, Francisco Faelante da Câmara Lima, Gaspar
de Drumond, José Gonçalves Maia, José Mariano Carneito da
Mota, José Nicolau Tolentino de Carvalho, Luiz Demétrio Dias
Simões e Manoel Caetano de Albuquerque e Melo.
38
PARTE I
CRÍTICA DE FILOSOFIA,
CIÊNCIA E DIREITO
39
.
O PROBLEMA DA MORTE
O Problema da Morte é o título de um excelente
livro, em que seu autor, Louis Bordeau, discute as mais
interessantes questões. A vida, a alma, o paraíso, tudo
ali é tratado com um profuso e profundo saber.
Em uma de suas máximas afirma La
Rochefoucauld que nem o sol nem a morte podem ser
encarados fixamente. É um duplo erro, segundo nota
Louis Bordeau. Em primeiro lugar o sol tem sido tratado
como uma espécie de animal curioso pelos astrônomos,
cada um destes, armado das mais aperfeiçoadas lentes,
mirando com olhos indiscretos o leão dos céus, e
procurando ler sua luminosa história na página azul do
firmamento. Em segundo lugar a morte não somente sem
sido encarada, ou melhor, afrontada por aqueles que se
expõem às balas e às epidemias, mas ainda há fornecido
assunto para os mais aprimorados motejos ou as mais
pungentes ironias por parte dos espíritos galantes ou
sarcásticos.
Quem ignora que o desabusado Leopardi fazia a
corte à morte com toda a ternura da alma, como outros
fizeram a corte a Helena, Onfália, Cleópatra, e falava na
gentileza de morir com o mesmo carinho e doçura, com
que um poeta lírico fala no delicioso perfume de uma
flor? (1)
40
Voltaire com seu sorriso escarninho exortava
Mme. de Deffand a gozar, tanto quanto pudesse, a vida,
que é pouca coisa, sem temer a morte, que não é coisa
alguma, e escrevia a seu amigo Thiriot:
“Me moquant de tout son orgueil,
Toujours un pied dans le cercueil
De l’autre faisant des gambades.”
Assim como tem havido quem em vida haja
chorado sobre seu próprio túmulo, compondo para si
doridos epitáfios, da mesma sorte não tem faltado que,
por centenas de escudos, haja comprado magníficos
epigramas para ornarem sua própria sepultura. Tal é o
caso do abade de la Rivière, Louis Barbier, que, legando
em seu testamento cem escudos a quem fizesse seu
melhor epitáfio, deveu a La Monnoye a nota mais
harmoniosa:
“Ci-gît um très grande pernonnage
Qui fut d’um illustre lignage,
Qui posséda mille vertus,
Qui ne trompa jamais, qui fut toujours fort s age.
Je n’en dirai pas davantage:
C’est trop mentir pour cent écus.”
Para o túmulo dos filósofos, que, atormentados
pela dúvida, vivem a levantar eternas questões sobre
tudo, Parny compôs um epitáfio, que é um primor de
crítica:
41
“Ici gît qui toujours douta,
Dieu par lui fut mis en problème
Il douta de son être même;
Mais de douter il s’enuy,
Et, las de cette nuit profonde,
Hier au soir il est parti
Pour aller voir, en l’autre monde,
Ce qu’il faut croire en celui-ci.”
Nao seria dificil prolongar esta excu rsão pela
cidade dos mortos para recolher a boca das tumbas os
ditos mordazes contra a implacável triunfadora, que,
como o camelo negro da lenda dos árabes, se ajoelha
todos os dias às portas das casas; mas já é tempo de
iniciar o indulgente leitor no Problema da Morte, cuja
solução, esperamos, não irá aterrá-lo, como a Mme. de
Sevigné apavorava o pensamento da honra suprema.
Realmente, a adorável criatura perde todo seu bom
humor, quando pensa na morte. “Embarquei na vida sem
meu consentimento, diz ela em sua carta de 16 de março
de 1672; é preciso que eu saia, isto me consome, e como
sairei? Por onde? Por que porta? Quando será, em que
disposição: Sofrerei mil e mil dores, que me farão
morrer desesperada? Em me abismo nestes pensamentos,
e acho a morte tão terrível que odeio a vida mais porque
a ela nos conduz do que pelas dores que sofremos.”
Um fenômeno da vida diária deu origem às idéias
de alma e sobrevivência. É o sono. Dormindo, o homem
primit ivo sonha, e ao despertar lembra -se de que visitou
42
tais e tais lugares, de que lhe apareceram tais e tais
coisas, de que praticou tais e tais ações. Pelo seu estado
de inferioridade intelectual não podendo explicar estes
fatos por um trabalho espontâneo do cérebro, ele os
atribui a um ser interior, que durante o sono abandona o
corpo para se lhe unir de novo algumas horas depois.
Ora, na morte é este mesmo ser interior, que abandona o
corpo por mais algum tempo ou mesmo para sempre. A
aparição de pessoas e animais mortos, que se afiguram
vivos, ainda mais confirma a existência deste ser
interior, independente do corpo, e agora sob o ponto de
vista objetivo. São pessoas e animais, cujo ser interior
continua a persistir depois da morte. Entretanto, além
das pessoas e animais, aparecem em sonho coisas
inanimadas, que não somente brilham como as estrelas,
ou movem-se como as nuvens, ou crescem como as
árvores, ou desabrocham como as flores, ou fulminam
como os raios mas, até se metamorfoseam, tomando
formas gigantescas ou desconhecidas, atacam ou pro tegem os seres animados, falam com eles; então o
homem primit ivo explica sua aparição pela existência de
um ser interior como nas pessoas e nos animais. Deste
modo tudo se anima na natureza, e tal é o estado de
cultura, a que Tylor dá o nome de animismo.
Mas de que natureza é este ser misterioso, que ora
se mantém unido ao corpo, ora o deixa por intervalos ou
para sempre, a fim de se transportar ao longe? A alma
humana nem sempre teve uma natureza espiritual; não
foi senão após longas transformações que ela se tornou
de uma pura imaterialidade. Primitivamente o espírito
43
significava sombra, e assim participava, de alguma
sorte, da materialidade do corpo. Pelo menos, deixava se ver-se, tinha movimentos, podia ser atingido.
Os Bassutos acreditam que, quando um homem
caminha sobre a margem de um rio, um crocodilo pode
agarrar-lhe a sombra, e assim arrastá-lo para fundo
d’água. “Na língua asteca e nas da mesma família, diz
Spencer, a palavra ehecatl significava ao mesmo tempo
vento, sombra, alma. As tribos da Nova Inglaterra
chamavam a alma chemung, sombra. Na língua quiché a
palavra natub e da dos esquimós a palavra tarnak
exprimem estas duas idéias”. (2 )
Mas para que multiplicar os exemplos de
sinonímia entre as duas palavras? é um fato muito
conhecido dos filólogos. Não somente as línguas
selvagens, mas o grego, o latim e outras línguas
civilizadas exprimem a mesma relação de identidade
entre os dois vocábulos. Umbra, entre os romanos,
significa a sombra dos vivos e a alma dos mortos. É o
que explica certos povos acreditarem que o co rpo do
morto não projeta sombra.
Por atribuírem ao espírito as propriedades do
corpo, é que alguns povos selvagens têm por costume
ofertar aos mortos comida, utensílios de caça e pesca e
outros objetos indispensáveis à satisfação de
necessidades puramente fisiológicas. É muito comum
entre os selvagens o uso de fornecer alimentos aos
mortos. Dentre os inúmeros casos mencionados pelos
etnologistas, lembraremos apenas o hábito de os
mexicanos depositarem aos mortos, além de alimento,
44
vestimentas. Nota Spencer que este uso persistiu por
muito tempo entre os incas, a cujos cadáveres
embalsamados se dizia: “Quando vivíeis, tínheis o
hábito de beber e comer; que vossa alma receba e se
nutra onde quer que estejais”. (3 )
O mais interessante é que, segundo nos ensina
ainda o eminente filósofo inglês, o costume tem lugar
mesmo nos países, em que se dá a cremação. Assim,
pratica-se entre os Kukis, de que fala Butler, e entre os
antigos indígenas da América Central, a que se refere
Oviedo.
Acreditam os selvagens que os esp íritos fazem
excursões, e que estas excursões são cercadas de
dificuldades e perigos. Por isso não é de admirar que
lhes dediquem instrumentos de defesa e até lhes
sacrifiquem animais e servidores, que os acompanhem
nas viagens de além túmulo. Portanto, na da mais natural
do que o desejo desse chefe chinouk de matar a mulher
para ela acompanhar ao outro mundo o filho. Os
esquimós costumam imolar um cão na sepultura das
crianças para lhes servirem de guia à região dos mortos.
Em Anit ium, morta uma criança, estrangula-se a mãe, a
tia ou a avó, para conduzi-la ao mundo dos espíritos. (4 )
Da concepção de uma alma material, não de u’a
materialidade densa e compacta como o corpo, mas de
u’a materialidade sutil e etérea, que, entretanto, toma
alimentos, é devorada pelos animais ou persegue como
fantasmas os inimigos, se passou à idéia de uma alma
sopro. Além do ar. que levanta turbilhões de areia ou
trombas d’água, encrespa a superfície dos lagos ou
45
abranda o calor das faces, a cessação respiratória, por
ocasião da morte, também deu origem a esta crença.
Entre os australianos Wang significa indiferentemente alma, sopro ou respiração. Da mesma sorte
entre os hindus Brahma quer dizer sopro ou alma. O
mesmo se dá com Kneph – o espírito divino dos egípcios
– que deriva de nef sopro. Para muitos habitantes da
Polinésia a alma é o sopro, que se exala, tanto assim que
eles costumam tapar a boca e o nariz dos moribundos
para impedirem que a alma se escapula. Não tem outra
significação a prática romana descrita por Virgílio e por
Cícero, em virtude da qual um dos parentes mais
próximos devia aspirar o último sopro do agonizante. O
fim era assimilar o espírito do finado, do mesmo modo
que certos selvagens acreditam apropriar as forças do
inimigo, devorando-lhe as carnes. É por isto que no
Taiti, onde julga-se residir a alma nos olhos, pertence ao
chefe da tribo o privilégio de comer os olhos do
inimigo.
Os hebreus não faziam outro conceito da alma.
No Gênese o homem não é transformado em alma
vivente senão depois que o Senhor lhe imprime na
fronte o sopro da vida. Em Ezequiel não bata que os
esqueletos revistam a carne para que revivam, é preciso
que o espírito divino sopre sobre eles.
Não foi sem viva oposição que a doutrina de
Anaxágoras, desenvolvida por Platão, pôde atravessar os
séculos para encontrar em Santo Agostinho seu mais
esforçado e fervoroso defensor. Os primeiros cristãos
não tinham uma idéia clara da espiritualidade da alma.
46
Esta doutrina não estava nas tradições do espírito
judaico. Jesus ressuscitou em sua carne. Tal é o dogma
fundamental do cristianismo. Além de Galeno, espírito
prático que não via na distinção ente a alma e o corpo
senão uma questão estéril, que não aproveita a saúde
nem a virtude, muitos padres e doutores da Igreja
consideravam a alma material, e outros não admitiam
senão uma espiritualidade relativa. Entre os primeiros
figura Santo Hilário, e entre os segundos Santo Irineu.
Não é senão com Santo Agostinho que a alma
vem a ser tida como uma substância puramente espiritual, que existe por si mes ma, independentemente da
matéria, doutrina que atingiu seu pleno desenvolvimento
em Descartes, além do qual o espiritualismo moderno
não avançou um passo.
Realmente, todos os argumentos, com que os
espiritualistas defendem sua hipótese de uma dualidade
de naturezas distintas, associadas durante a vida, e
caracterizadas por qualidades antagônicas, estão
contidos nas palavras do notável filósofo francês:
“Examinando com atenção o que eu era, conheci que era
uma substância, de que toda essência ou natureza não é
senão pensar, e que para existir não tem necessidade de
lugar algum, nem depende de qualquer coisa material,
de sorte que este eu, isto é, a alma, pela qual eu sou o
que sou, é inteiramente distinto do corpo...”
É interessante notar que um povo, que fa zia de
seu Deus a principal fonte de justiça, não tivesse
cogitado de uma existência, futura, servindo de sanção à
vida presente. Tal é o caso dos judeus, que punia os
47
culpados em sua descendência e não em sua alma
sobrevivente. “O antigo semita, escreve R enan, repelia
como quiméricas todas as formas, sob que os outros
povos representavam a vida de além túmulo. Ele era
levado a isto por um certo bom senso e também pela
imagem exaltada, que fazia da grandeza divina. Só Deus
é eterno; o homem não vive senão a lguns anos; um
homem imortal seria um Deus, um rival de Deus, uma
impossibilidade”. (5)
O Pentateuco não fala em imortalidade do
indivíduo, e nos outros livros do Velho Testamento os
textos, que aludem à vida futura, têm uma significação
negativa. Assim, interrogando Job, quando o homem
morrer, que será dele, a resposta é que o homem, quando
dormir, não ressuscitará nem se levantará de seu sono.
“No ponto de vista do hebraísmo, diz Bourdeau, julgar se imortal seria para o homem uma impiedade arrogante,
uma dupla injúria à majestade divina e ao senso
comum”. (6 )
A história de Israel não é senão a de um povo,
que durante muitos séculos lutou heroicamente para
abolir as iniqüidades deste mundo, para implantar sobre
a terra o império da justiça; e somente quando o s
profetas, espécie de modernos socialistas, reconheceram
que seu ideal não passava de um sonho irrealizável, de
uma utopia, foi que eles imaginaram o reino de Deus
para servir de recompensa à virtude desprezada neste
mundo. Mas apelando para o céu na questão da vitória
definitiva da justiça, Cristo não fez senão adiar
48
indefinidamente a solução de um problema, que foi a
preocupação constante dos filhos de Israel.
Associar a justiça divina à sobrevivência humana
é a missão do cristianismo, porquanto a crença em uma
existência futura nem sempre implica a idéia de uma
divindade, que distribui recompensas ou castigos às
ações boas ou más da vida presente. Os celtas
acreditavam vivamente na imortalidade da alma; mas
não associavam esta crença à doutrina de uma ju stiça de
além túmulo. Para eles a existência futura não é senão
um prolongamento da vida presente, em que não se pode
contar com uma justiça absoluta. “Entre os Celtas,
observa D’Arbois de Jubainville, a crença na imorta lidade da alma tinha um poder, que impressionou
vivamente o espírito dos Romanos; mas esta crença não
era, como entre os cristãos, associada à doutrina
teológica do paraíso e do inferno. O morto, pensava -se,
encontrava no outro mundo uma vida semelhante a esta,
e onde, como nesta, toda just iça superior era ausente”. (7)
Bordeau considera a doutrina judaica da ressur reição e das recompensas futuras assimilada do ma deísmo, (8 ) ao passo que Darmesteter julga-a emprestada
da filosofia grega. (9 ) É verdade que a religião de
Zoroastro consagra as idéias de uma sobrevivência
individual e de uma remuneração futura; porém muito
antes dos medas e dos persas já os egípcios se tinham
salientado por uma noção nítida da justiça divina em
uma vida futura. “No Egito, lembra D’Arbois de
Jubainville, desde os t empos mais antigos, em que
podemos remontar, vemos estabelecida a noção da
49
justiça divina na outra vida, e da justiça real nesta. O
Livro dos Mortos, de que temos exemplares escritos no
sexto, e talvez no sétimo século antes de nossa era, nos
dá o texto oficial do arrazoado, que o morto em
presença do juiz supremo devia fazer. O morto não
devia somente firmar que tinha desempenhado suas
obrigações para com os deuses, era preciso que tivesse
também cumprido seus deveres para com os homens”. (10 )
Também a preocupação de conservar os corpos
dos finados por meio do embalsamamento não deixa a
menor dúvida de que aos egípcios não era estranha a
idéia da ressurreição. Mas a ressurreição fazendo
reviver o homem todo inteiro, alma e corpo, não é a
mesma coisa que o conceito de uma alma distinta do
corpo, sobrevivendo à morte.
Não o é no sentido da imortalidade platoniana,
isto é, de uma alma que existe individualmente antes e
depois da morte, nem no sentido de imortalidade, como
entendia a maioria dos filósofos gregos – uma emanação
e absorção final da alma humana no ser infinito pela
supressão dos limites da individualidade. Deste modo
não se pode dizer que a fé na ressurreição futura seja
uma filiação do madeísmo ou da filosofia grega, ela
provém de uma fonte mais remota, dos egípcios, com
quem os judeus estiveram sempre em contato.
Renan pensa que as três histórias reunidas da
Grécia, da Judéia e de roma constituem o que se pode
chamar a história da civilização, e que a Grécia neste
trabalho de colaboração representou um papel extraordinário, porque fundou, em toda a extensão do
50
termo, o humanismo racional e progressivo. Mas a
Helade em sua esfera intelectual e moral teve uma
enorme lacuna: seus filósofos, cogitando da imor talidade do espírito, não se preocuparam co m as iniqüidades da vida presente.
Entre os gregos a religião é, com efeito, antes
uma explicação mitológica do universo do que uma
organização da sociabilidade da vida, não somente em
relação aos seres reais e vivos, mas ainda aos seres
ideais e imaginários. Após o animismo grosseiro dos
primeiros tempos a indagação de uma vida futura na
Grécia não tem lugar senão como questão metafísica da
origem e destino das coisas, e não como problema da
vida prática e suas diversas manifestações individuais
ou sociais. Sócrates e Platão discorrem eloqüentemente
sobre a imortalidade da alma. Mas para Sócrates a
sobrevivência não passa de uma esperança, com que a
pessoa se deve encantar. É bem significativa a peroração
de seu discurso perante seus julgadores: “De duas coisas
uma, ou a morte é o inteiro aniquilamento ou é a
passagem para um outro lugar. Se tudo é destruído, a
morte será uma noite sem sonho e sem consciência de
nós mesmos, noite eterna e feliz. Se é mudança de
morada, que felicidade encontrar os conhecidos e
conversar com os sábios!” Platão afirma catego ricamente a imortalidade do espírito e a existência de
castigos e recompensas além da vida presente; mas da
forma mais pomposa e deslumbrante que real e
convincente de seus argumentos dá testemunho Cícero,
quando escreve: “Não sei como é isto, li e reli o Fédon,
51
de Platão, e lendo-o estou sempre de acordo com o
autor; mas apenas fecho o volume, minhas dúvidas
aparecem, e pergunto se sou imortal.”
A doutrina de Platão não tem a nitidez, que
ordinariamente se lhe atribui, e algumas vezes a falta de
clareza toca à contradição. Segundo nos informa Draper,
para Platão “cada ser é composto de duas partes, uma
alma e um corpo; sua separação constitui a morte; a
alma é composta de dois elementos, um elemento
mortal, que lhe é dado pelos deuses criados, e um
elemento imortal, que ela recebe do Deus supremo; um
terceiro elemento é necessário para servir de laço entre
estes dois elementos opostos: é o elemento demoníaco
ou o espírito; da coexistência destes três element os, o
apetite, o espírito e a razão, nascem os conflitos, que
agitam nossa alma; só a razão é imortal, as duas outras
partes são mortais; o número das almas, que o universo
contém é invariável e constante; o sentimento da pre existência, que temos em nós, prova que a alma existiu
antes de nós”. Ora é sabido que no Timeu Platão não
admite a imortalidade senão na medida, em que a
natureza humana a comporta. Portanto, além do dis parate, já notado por Lucrécio, de uma substância
imortal associada a uma substância mortal, sofrendo
ambas as mesmas vicissitudes por intermédio de uma
terceira substância, o elemento demoníaco, temos uma
imortalidade, que não é completa, absoluta, mas restrita,
condicionada, o que importa absurdo, tanto mais
despropositado quanto é certo que para Platão a alma
existe desde toda a eternidade, ab aeterno. Mas a
52
eternidade, da mesma sorte que a infinidade, exclui toda
a idéia de relatividade.
A Platão, sonhando uma imortalidade individual,
se pode dizer que se opõem todos os filósofos gr egos:
céticos, epicuristas, estóicos, alexandrinos.
Segundo o ceticismo, para que indagar sobre a
vida futura, quando se desconhece a vida presente? Para
o epicurismo, a alma não sendo senão uma reunião de
átomos, que a morte separa, é inútil se preocupar com
uma existência, que não passa de uma ilusão. O
estoicismo não admite uma imortalidade senão para os
sábios e os heróis. O alexandrino adota francamente a
doutrina védica da emanação e absorção do Universo em
Deus. Seu conceito não é outro senão o dos f ilósofos e
poetas indianos – a alma voltando com a morte ao ser
infinito pela supressão dos limites da individualidade. O
ser infinito, diz um filósofo e ao mesmo tempo poeta
indiano, é como cristal límpido, que recebe em si todas
as cores, e as emite de novo, sem que sua transparência
ou sua pureza seja alterada ou maculada.
Resumindo a filosofia grega relativamente à
natureza da alma, diz Draper: “Consideremos uma
dessas bolhas, que flutuam sobre o mar; em razão de sua
forma ela reflete todos os objetos d a margem, estejam
em repouso ou em movimento; reflete mesmo este mar,
sobre o qual flutua, e do qual nasceu, e reproduz suas
formas múltiplas, tais como realmente são com suas
luzes e suas sobras, sua perspectiva e suas nuances
particulares, ajuntando a isto o jogo de suas próprias
cores. Esta bolha é a imagem exata da alma. Saiu do mar
53
infinito e sem fundo; sob qualquer relação não difere da
fonte, que lhe deu nascimento; procede da água e não
será senão água. Estas propriedades, que ela vem de
manifestar, as deve unicamente, pelo menos no que
respeita à parte exterior do fenômeno, à sua forma
particular e às circunstâncias, em que se achou
colocada; segundo estas circunstâncias variam, flutua
ora aqui, ora ali, fundindo-se em outras bolhas, que
encontra, ora saindo ainda uma vez da escuma das
águas. Aparece ora maior, ora menor, em um certo
momento toma novas formas, em um outro se perde nas
que a cercam; mas quaisquer que sejam as vicissitudes,
a que está exposta em todas estas migrações, um
inevitável destino a espera, a absorção e a reincorporação no oceano. Neste momento final, o que nesta
bolha se perdeu, o que foi destruído? Não foi certamente
sua substância essencial; porque antes de se desenvolver
ela era água, água foi durante toda a duração de sua
existência, e água permanecerá sempre pronta a se
dilatar de novo”. (11 )
Por esta explicação magistral se vê que a filosofia
grega em relação à alma humana não caminhou um
passo além da concepção védica. A alma humana, esta
partícula da inteligência univer sal, separada momentaneamente de sua fonte primitiva pelo corpo, tende a
voltar a ela inevitavelmente como o rio volta ao oceano,
que lhe deu origem.
Entre filósofos, os poetas e os moralistas latinos
reina a dúvida, senão a descrença, quanto à natureza d a
alma. Todo o terceiro livro do grandioso poema de
54
Lucrécio se destina a provar que a alma nasce, cresce e
sucumbe com o corpo. “As crianças não têm senão
membros delicados e débeis, um passo incerto, a que
acompanha a fraqueza do pensamento. Mais tarde, as
forças se desenvolvem com a idade, a inteligência se
alarga, e o espírito adquire vigor. Afinal, quando o
corpo é abalado pelos violentos ataques do tempo, os
órgãos se embotam e se enfraquecem os membros, então
o entendimento cavila, a língua titubeia com o pensamento, tudo falece, tudo foge ao mesmo tempo”. Por
que a alma, que sofre todas as vicissitudes do corpo, há
de prolongar sua existência fora de seu abrigo natural?
“Será com receio de permanecer encerrada num corpo
em ruínas, temendo que a velha casa, desmoronando-se
ao peso dos anos, ameace sepultá-lo? Mas há perigos
para um ser imortal?” Para o De Rerum Natura não há
maiores disparates do que a união do mortal com o
imortal e a ação do corpóreo sobre o incorpóreo.
Entretanto, segundo os espiritualistas a alma se acha tão
intimamente ligada e subordinada ao sangue, aos nervos
e aos ossos, que ela sofre ao contato da água gelada por
intermédio dos dentes cariados.
Plínio afirma que “depois da morte o corpo e a
alma não sentem mais do que sentiam antes do
nascimento... Isolada a alma dos sentidos, como verá,
ouvirá e tateará?... É, portanto, uma loucura pretender
sobreviver depois da morte”. (12) No entender de Sêneca
não há razão para lastimarmos a morte dos seres, que
nos são caros. Se com a morte desaparece o sentimento,
o finado volta à condição que tinha antes de nascer. Se,
55
porém, persiste o sentimento, então a alma deve sentir se satisfeita, gozando o grandioso espetáculo da
natureza. “Das alturas, em que é colocada, verá a seus
pés as coisas humanas, e contemplará de perto as coisas
divinas, cujas causas por muito tempo interrogou”. (13 )
Mas as conclusões finais do filósofo latino são
sempre no sentido negativo contra a imortalidade. “A
morte não é um bem nem um mal. Porque, para ser um
bem ou um mal, seria preciso ser alguma coisa; mas o
que não é coisa alguma, o que reduz tudo a nada, não
impõe uma nem outra daquelas condições”. (14 )
Não há maior loucura do que temer aquilo que
não será sofrido. (15 ) Nada mais doce de perder do que
aquilo que não se pode lamentar quando se tem
perdido. (16 ) Que importa não começar ou cessar de
existir? Um e outro estado importam uma e a mesma
coisa – não existir. (17)
No mundo cristão, mesmo depois que o concílio
de Latrão condenou aqueles que negassem a imor talidade da alma, lavra não menor divergência de idéias
quanto à origem, natureza e destino do espírito humano.
Ao lado de Santo Agostinho e seus discípulos surgem
materialistas, idealistas, panteístas, combatendo a dou trina daqueles que separam o homem em duas substâncias, uma corpórea e outra imaterial, a primeira
transitória e a segunda eterna.
A prodigiosa diversidade de opiniões se mantém
por afirmações tão contraditórias, que fazem descrer da
unidade da razão humana, até se chegar ao conceito de
uma psicologia, não diremos somente sem alma, como
56
alguém já se exprimiu, mas sem matéria e sem espírito,
designando estes termos duas substâncias distintas e
concomitantes. Então não se quer mais indagar se a
alma e o corpo formam duas substâncias extrínsecas, o u
se a alma é uma simples propriedade do corpo, ou se a
matéria é uma aparência puramente fenomênica, ou se a
personalidade individual é u’a manifestação da impes soalidade universal; apenas constatam-se estados fisiológicos e psíquicos, que se determinam, mas não se
produzem uns aos outros. “A diferença entre determinar
e produzir é capital, diz Sully-Prudhomme, produzir é
fornecer os materiais da coisa que nasce, determinar é
simplesmente fornecer as condições do nascimento”. (18 )
A necessidade de uma justiça futura, punindo os
mais e recompensando os bons, é o grande argumento
invocado em favor de um outro mundo para reparar as
iniqüidades deste. “A história de Israel, escreve Renan,
é um esforço de dez séculos para chegar à idéia das
compensações ulteriores... A idéia de que a virtude deve
ser recompensada, é a mais lógica das idéias, que
compensam o espírito humano. A idéia de que a virtude
é, com efeito, recompensada, é uma afirmação ousada, a
que o israelita foi levado por uma confiança absoluta na
justiça divina. Deus quer o bem e ordena -o; por
conseguinte recompensa-o. Ele pode tudo; se abandonasse aquele que se conforma com sua vontade, seria
absurdo, enganador, autor da iniqüidade”. (19) O próprio
filho de Israel, porém, nem sempre teve a idéia de u m
mundo superior como sanção da virtude: os maus são
57
punidos, não em sua sobrevivência, mas em sua
descendência até a terceira e quarta geração.
Primitivamente os selvagens não têm idéia
alguma de uma outra vida. A morte não é senão a
cessação momentânea da vida presente. Mais dias menos
dias, o morto deve voltar à vida ordinária, como provam
as precauções para impedir a decomposição dos
cadáveres, os cuidados para que os corpos não sejam
devorados pelos animais ou atacados e injuriados pelos
inimigos, e tantas outras medidas e expedientes, de que
usam os selvagens. Mais tarde, quando lhes vêm a noção
de um outro mundo, este não passa de uma cópia da vida
presente. Por isso não raras vezes vemos somente
gozando das delícias paradisíacas os filhos da fortuna,
enquanto os desprotegidos da sorte são atirados a
regiões inóspitas.
Mas nem sempre se estende a todos os espíritos o
direito de sobreviver. A princípio é um privilégio dos
chefes, dos heróis ou das classes superiores. Entre os
comanches sobrevivem os bravos, que se salientam,
matando os inimigos ou furtando cavalos. Nas ilhas
Tonga apenas não morrem as almas dos chefes. O
mesmo se dá na Nova Zelândia.
Além dos selvagens e dos bárbaros não faltam
povos civilizados, nos quais a vida futura depende da
vontade dos deuses. Daí o uso das orações e mais expedientes propriciatórios para assegurar a sobrevivência.
Em São Lucas e em São Paulo a ressurreição não é
prometida senão aos justos; os ímpios devem per manecer no nada para seu castigo. (20 ) Lactâncio sus58
tentava que a imortalidade é “o salário e a recompensa
da virtude e não um apanágio de nossa natureza”. (21)
A maioria dos filósofos e poetas, antigos e
modernos, não atribui a imortalidade senão à glória; a
vulgaridade, depois da morte, se some no esquecimen to,
como, em vida, se perde na obscuridade. Um paraíso de
pobres e humildes como o de Jesus, é um fenômeno
único, que não se explica senão como uma conseqüência
das idéias e um desenvolvimento dos acontecimentos do
povo judeu.
Sempre sujeito aos vencedores deste mundo, o
filho de Israel tinha necessidade de uma compensação
futura. Jesus apelou para a vida futura como uma
recompensa aos infortúnios de seu povo. Sabe -se como a
doutrina cristã, prometendo o reino de Deus aos pobres
e fracos, e dele excluindo os ricos e poderosos, levantou
vivos protestos no mundo oficial dos judeus.
Não é senão em um estado de civilização muito
avançado que a sanção moral se alia à idéia de uma vida
futura. Isto prova que é possível fundar uma moral
independentemente de toda idéia de sanção em um outro
mundo, o que, entretanto, não quer dizer que a doutrina,
que adiou para depois da morte os efeitos da justiça
divina, não tenha exercido uma ação mais poderosa e
eficaz do que a que limitou aqueles efeitos à vida
presente. A razão é que a falta de uma justiça divina em
um outro mundo é muito mais difícil de constatar do que
neste.
Convém não esquecer que os israelitas não
cessavam de exprobar Jeová de não ter favores senão
59
para seus inimigos, e falhando deste modo a justiça
divina sobre a terra. Jesus não teve outro recurso senão
apelar para o céu. Infelizmente “o Reino de Deus” não é
feito para os virtuosos, mas para os pobres, os fracos e
os oprimidos, sem se levar em linha de conta, como
justamente observa Bordeau, o bem que, por ventura os
ricos, os poderosos e os opressores tivessem praticado, e
o mal de que os pobres, os fracos e os humildes não se
houvessem isentado.
Jesus opõe positivamente a pobreza à riqueza, a
fraqueza ao poderio, a humildade à glória, e deste modo
exclui os protegidos da sorte, os filhos da fortuna, da
bem-aventurança eterna. Assim o reino de Deus importa
uma formidável injustiça agravada pela desproporcionalidade de compensação, porquanto, ao passo que a
felicidade do rico, por exemplo, é transitória, a do pobre
vem a ser eterna. Entretanto a riqueza por si só não é
uma falta, como a pobreza não é uma virtude.
Não menos interessante que o estudo da condição
é o da morada dos espíritos. A princípio os mortos
habitam as mesmas regiões que os vivos. Segundo
Cruickshank (22 ) os naturais da Costa do Ouro pensam
que o espírito permanece no mesmo lugar em que o
corpo foi sepultado. Levingstone afirma que ao norte do
Zambeze é crença geral que os mortos erram entre os
vivos e tomam os mesmos alimentos que estes. E porque
o finado continua a habitar o lugar do falecimento, é que
entre alguns povos selvagens a família abandona a casa,
em que habiava o falecido, apenas dá-se a morte. Entre
os Chipchas um óbito é sempre motivo para que os
60
sobreviventes mudem de cabana. (23 ) A razão é que os
vivos temem o espírito malfazejo dos mortos. “Movidos
por um melhor sentimento, diz Tylor, os negros do
Congo se abstêm, durante um ano inteiro, de varrer uma
casa em que a morte passou, com receio de que o pó fira
a substância delicada do espírito”. (24 ) Bordeau nota com
razão que mesmo entre os civilizados é preciso uma
certa coragem para atravessar sem susto um cemitério,
que se julga povoado de espíritos. (25 )
Com o tempo a região dos mortos se estende: os
espíritos vão habitar os bosques, o cimo das montanhas,
ou, em maior distância, as ilhas isoladas pelo mar.
Refere Turner que os habitantes das ilhas Samoa
supõem que os espíritos erram nos bosques. A mesma
crença predomina na Nova Caledônia. (26 ) É sobre as
mais altas colinas que os caraíbas e os comanches
sepultam seus chefes. Entre os patagônios e os árabes
orientais todos os mortos são enterrados nos píncaros
das montanhas. Este costume deu origem à crença de
que a morada bem-aventurada dos espíritos é nos
montes. Em Bornéo o paraíso da raça Idaan é no cume
do Kina balu, e na ilha de Java o éden dos Sajiras no
cimo do Gummung Danka. No México o deliciosa
Tlalocan, morada das almas das crianças sacrificadas a
Tlaloc e das pessoas que morrem de lepra, hidropisia e
moléstias agudas, floresce sobre o alto das
montanhas. (27 )
A idéia de um paraíso coberto de vegetação
luxuriante, fecundo de caça, fez com que entre alguns
povos a habitação dos espíritos fosse transplantada para
61
os vales. Pelas condições de isolamento, porém, reu nidas às de fertilidade, as ilhas, mais do que os vales
dos continentes, se prestam à morada dos espíritos. Daí
o crescido número de ilhas afortunadas dos tempos
heróicos. Mas fora da antiguidade clássica não faltam
exemplos de ilhas servindo de paraíso aos deuses e aos
espíritos dos mortos. Uma lenda do Tongo descreve a
ilha de Boluto como uma região em que amadurecem os
mais belos frutos, as flores se reproduzem, ao serem
colhidas, enchendo o ar de delicioso perfume, e a cada
passo se encontram pássaros de deslumbrante plumagem, e porcos, que não cessam de existir, exceto quando
dados em alimentos aos deuses.
O costume de enterras os cadáveres devia ter
concorrido para a crença de um mundo subterrâneo dos
espíritos, sem luz, como o desaparecimento diário do sol
no horizonte, parecendo atravessar a terra, não deixou
de contribuir para a concepção de uma morada de
mortos no grande astro, ou de um paraíso de luz. Se por
um lado vemos o Orcus dos romanos, o Hade dos
gregos, o Sheol dos israelitas, o Tartaro dos etruscos, o
Hel dos escandinavos, em uma palavra, o inferno,
situado nas entranhas da terra, onde não reinam senão as
trevas, não poder explicar-se senão pela escuridão que
se faz ao morrer do sol no ocidente, por outro lado
vemos que os natchez do Mississipe e os apalaches da
Flórida, pensando que os seus chefes e heróis vão
habitar o sol depois da morte, idéia que se encontra na
teogonia do México e do Peru, não podiam ter
imaginado seu brilhante mito senão pelo espetáculo
62
diário da descida do sol ao ocidente. O sol não passa
pelas regiões do ocidente, senão para conduzir consigo
as almas dos mortos ilustres sepultados na terra.
Mas não é o sol o único formador de mitos;
conhecido fenômeno metereológico parece ter sido a
origem de uma outra morada dos espíritos. S ão os
nevoeiros, que se formam no fundo dos vales ou no
cimo das montanhas, lugares em que se enterravam os
mortos.
Eles aparecem para receber em seu seio as almas
dos heróis. Nos poemas de Ossiam os guerreiros depois
de mortos passam a morar nas nuvens. E m sua habitação
aérea conservam os mesmos gostos, as mesmas paixões,
que em vida. Combatem legiões de fumo, caçam javalis
de vapor.
Um herói caledônio, porém, não podia entrar no
palácio aéreo de seus antepassados se os bardos não
cantassem o hino fúnebre. Deitado o corpo sobre uma
camada de argila, em fosso de seis ou oito pés de
profundidade, e com o corpo estendidas uma espada e
doze flexas, se o morto era um guerreiro, e sobre uma
nova camada de argila o cão favorito do defunto, sendo
finalmente coberta com terra escolhida a sepultura, cuja
situação era marcada com quatro pedras colocadas nos
quatro cantos do fosso, comparecia um bardo para
cantar o hino dos mortos e abrir ao herói a porta do
palácio das nuvens. O esquecimento desta cerimônia
fazia com que a alma do morto ficasse envolvida no
nevoeiro do lago de Lego.
63
No poema do Fingal Cuchulin increpando Connal
de não ter conduzido o “fantasma de Crugal” à sua
presença para revelar-lhe o destino, que o aguardava, o
filho de Colgar responde: os espíritos sobem às nuvens e
voam sobre os ventos. No Cathlin de Clutha, quando os
guerreiros de Selma se retiram para a colina freqüentada
pelas sombras de seus antepassados, é confundindo -se
com as nuvens que aparecem a sombra majestosa de
Tuenmor e as formas fant ásticas de seus companheiros
de armas. Na Guerra de Temora Caibar aparece a
Cathmor, envolvido na nuvem, de que se apoderava
subindo para sua morada aérea. Ainda no mesmo poema,
Cathmor ferido, para consolar seus companheiros de
armas, afirma que, assentado sobre o nevoeiro do rio de
Atha, verá correr sua água em ondas azuladas, e,
morrendo, aparece à Sulmalla, sua esposa, que, ao
levantar-se para abraçá-lo, transportada de alegria, vê o
herói desaparecer no nevoeiro, seus membros de vapor
descanecendo-se aos poucos e misturando-se com os
ventos da montanha. “Então Sulmalla, diz Ossian,
compreendeu que Cathmor tinha morrido”. O processus
social é uma luta contínua entre elementos étnicos
heterogêneos; e as hordas, as tribos, os povos, as
nações, as raças, não lutam entre si senão para
estabelecerem a dominação do vencedor sobre o
vencido. Vae victis não é somente o grito de Brenno, e
sim de todo triunfador. Sob qualquer forma que se
manifeste, escravidão, vassalagem, contribuição, a
sujeição é sempre o result ado de uma guerra, que atingiu
seu fim.
64
Organizada a dominação entre os elementos
étnicos, o vencedor procura por todos os meios manter
sua supremacia, e esta supremacia tende a se perpetuar,
estendendo-se até a vida futura. É o que explica a
duplicidade de condição no mundo dos mortos, da
mesma sorte que na região dos vivos. De um lado os
dominadores, de outro lado os subjugados: para os
primeiros o paraíso, para os segundos o inferno.
Bordeau diz que o cristianismo produziu uma verdadeira
revolução, transportando do inferno para o céu a morada
dos eleitos. Mas não foi o cristianismo, e sim o
antagonismo das classes de dominadores e dominados, e
sim o antagonismo das classes de dominadores e
dominados, a rivalidade das duas grandes camadas
sociais de vencedores e vencidos, que opôs um céu de
infinitos gozos a um inferno de eternos suplícios. O que
fez o cristianismo foi povoar o céu de justos em vez de
poderosos, e o inferno de maus em vez de humildes.
“Duas grandes concepções dominam especialmente a idéia, que se fez de um mundo futuro, diz Tylor.
A primeira é que a vida futura é, por assim dizer, uma
simples imagem da vida atual; os homens, segundo esta
doutrina, conservam num outro mundo, idealmente belo
talvez, mas também fantasticamente melancólico, sua
forma e sua condição terrestre; não cercados dos amigos
que tinham sobre a terra; possuem o que possuíam aqui
em baixo; continuam as ocupações deste mundo.
Segundo a outra concepção, a vida futura é uma
compensação da vida atual. Os homens, entrando para o
outro mundo, mudam de condição, e esta mudança é a
65
conseqüência, e, sobretudo, a recompensa ou a punição
de sua conduta sobre a terra”. (28) O cristianismo não fez
senão sacrificar o pobre, condenando o rico. “Ai dos
ricos, o céu ao é para eles”.
Depois de uma tão brilhante excursão pelos
domínios do outro mundo, a que resultado chega
Bordeau, aproveitando os achados da ciência? – A duas
conclusões: uma teórica e outra prática.
Sob o primeiro ponto de vista, escreve o autor do
Problema da Morte, “a razão se recusa a compreender
que um ser continue a viver, quando cessou de existir,
que o eu, cuja unidade ao mesmo tempo física e psíquica
é manifesta para a consciência, se desdobre, e que um eu
espiritual, que não poder-se-ia separar do eu material,
pois que não aparece senão nele, subsista, entretanto,
depois dele. É mais difícil ainda de conceber como estas
duas metades do ser humano, separadas pela morte,
poderiam se unir de novo, seja que, em contrário a mais
constante das leis, o corpo destruído se recons trua, seja
que um outro o substitua, ou que uma simples aparência
venha a ocupar seu lugar.
“O ser assim restabelecido numa integridade
factícia não poderia se relacionar com o mundo físico
sem obedecer às suas leis, nem escapar a seu império,
sem se excluir de toda a realidade. Além disto não se lhe
pode assinar um lugar no espaço, nem determinar suas
fases de duração, nem especificar suas funções. Também
não se vê como lhe seria possível se manter num estado
fixo sem cessar de viver, ou evoluir sem se tor nar
contingente, enfim se perpetuar indefinidamente,
66
quando uma lei de renovação universal condena a
morrer tudo que nasce no tempo”. (29 )
Sob o ponto de vista prático não temos que
indagar se a vida é boa ou má para desejarmos ou
abominarmos a morte. Aceit amo-la como um fato, sobre
o qual não fomos consultados, e nos arranjemos o
melhor possível a respeito dele. É o conselho de Milton
ao homem no Paraíso Perdido. “Não tenhais pela vida
amor nem ódio; mas enquanto viverdes, vivei bem”.
Sacrificar, porém, a vida presente à futura é
realizar a fábula do cão, que deixou cair a presa pela
sombra. Daí o conselho dado por Bordeau: “Vós pedis
‘um mundo melhor’ – melhorai aquele em que estais;
fazei-o sobre a terra. Aplicai-vos a tornar ao redor de
vós a natureza menos hostil e mais fecunda. Ainda não
conhecemos toda a extensão de nosso poder para
modificá-la. Ela se presta a transformações indefinidas
no sentido de nossos interesses. Utilizai do melhor
modo seus recursos, que por toda a parte abundam, e
que a vossa incúria deixa que se percam; encaminhai,
por meio de uma razão esclarecida pela ciência, suas
forças brutas, mas dóceis, para um fim superior.
Ampliai sua ordem no que ela tem de facultativo sem
tentar em vão perturbá-la no que ela tem de necessário.
Uni vossa atividade refletida à atividade cega das
coisas, considerando-vos como investidos de uma
função cósmica, encarregados de presidir ao governo da
vida sobre o globo. Fareis assim pouco a pouco deste
“mundo de miséria”, senão um éden, porque os édens
67
não existem senão em nossos sonhos, pelo menos uma
estada suportável e mesmo cada vez mais atraente”. (3 0)
O livro de Bordeau interessa o leitor curioso,
como a narração de um desses exploradores ousados e
aventurosos, que, arrastados pelo amor da descoberta, s e
entregam a toda sorte de sofrimentos e perigos para
esclarecerem um ponto obscuro nos anais da ciência de
Marco Pólo; mas teria encontrado Bordeau alguma
região desconhecida, na qual nenhum predecessor
temerário ainda houvesse posto o pé? As ciências
morais, como a terra, parecem ter entregue seus últimos
segredos. Nem mesmo a sonda, penetrando no fundo do
mar, descobre alguma coisa de novo. A reflexão armada
dos mais rigorosos processos lógicos não está sujeita a
menores decepções. É o que se sente com a leitura do
Problema da Morte: seu autor, com a abundância de sua
vasta erudição e com o brilho de sua pujante capacidade
intelectual, seduz na exposição do complicado assunto,
como Homero maravilha na Odisséia, contando as
prodigiosas aventuras de seu famoso Ulisses; mas
quando tenta desvendar algum segredo, decifrar algum
enigma, percebe-se que a solução lhe foge como uma
região encantada.
No mundo teórico forçoso é reconhecer que
Bordeau ficou muito aquém de Lucrécio, como prova
qualquer página do livro III do inimitável poema Da
Natureza das Coisas. Também a solução prática, que
ferece Bordeau, é menos uma explicação do que uma
consolação à maneira das consolações de Sêneca.
Lendo-se o capítulo da conclusão prática do Problema
68
da Morte, como que se está em classe, traduzindo o
velho filósofo latino. Coragem! Dentre todas as curio sidades que podem interessar o espírito humano, a morte
não é senão a última; vale bem a pena sacrificar a vida!
Os selvagens não acreditam que a morte possa se
produzir naturalmente. Para eles a morte é sempre efeito
de um golpe desfechado por ente invisível, ordina riamente um espírito vingativo ou um deus ofendido.
Além de muitos outros exemplos, Spencer cita o caso
dos taitianos, que atribuem o efeito dos venenos ao ódio
dos deuses. Para eles os próprios guerreiros, que mor rem no campo de batalha são feridos pelos deuses. A
feitiçaria, tão comum entre os selvagens, não tem outra
explicação senão o atribuir -se a morte, a simples
moléstia, a causas sobrenaturais.
Dar-se-á que perante a ciência todos os seres
vivos estejam fatalmente condenados à morte? Não: há
seres que não morrem. Sirvam de exemplo os seres
unicelulares, entre outros protozoários, que se repro duzem, dividindo-se em duas partes, que se completam
depois da separação. Isto não quer dizer que sejam
indestrutíveis, pelo contrário, são destruídos aos milhões por acidente; não morrem, porém, de velhice. Só
os seres policelulares, entre eles o homem, são mortais.
Entretanto, o homem não morre de todo. O ho mem tem filhos, que são a carne de sua carne, o sangue
de seu sangue, e continua a viver neles. “Não se trata,
segundo observa Delage, de uma simples metáfora, mas
de um fato anatômico”.
69
O filho não é senão uma continuação de seus
progenitores, da mesma sorte que o adolescente ou o
adulto não deixa de ser uma continuação do infante,
posto que o indivíduo esteja a mudar continuamente de
substância. “Na realidade, o metazoário não morre senão
em parte; ele se divide em duas partes, uma que morre e
outra que continua a viver, e isto indefinidamente,
continua o sábio biologista. Há nele duas coisas, uma
mortal, o corpo, o Soma, outra imortal, as células
germinais, que se poderiam chamar em seu todo o
Gérmen. Este Gérmen é imortal, exatamente à maneira
dos infusórios. Como estes e mais do que estes, é frágil;
quantos ovos, sobretudo espermatozóides, não morrem
assim todos os dias? Mas há para eles, como para os
infusórios, uma possibilidade de continuar a viver, se
dá-se a condição necessária, que é encontrarem-se e
fundirem-se na fecundação”. Daí encarar Delage o
plasma germinativo como um fato incontestável, e
defini-lo – “a parte da substância dos pais, que não
morre com eles, e se perpetua nos filhos ”.
Considerando a continuidade do plasma germinativo menos uma teoria do que uma maneira de encarar
a filiação das substâncias na geração, escreve ainda o
autor d’A Estrutura do Protoplasma e as Teorias sobre
a Hereditariedade: “Ela consiste em considerar, não
como sucede ordinariamente, o indivíduo, que engendra
um novo ovo, e assim por diante; mas o ovo se
desdobrando em um corpo e em um ovo, aquele
morrendo, este se desdobrando em um novo ovo e em
um novo corpo, e assim por diante”. (31 )
70
Admit indo que os seres unicelulares são imortais,
resta saber como foi que a morte se introduziu, na
passagem da vida unicelular à policelular, entre os
metazoários. Como foi que no ciclo evolutivo quando o
ser se tornou policelular, umas células conservaram a
imortalidade, ao passo que outras adquiriram a
mortalidade?
Contra as teorias de Spencer – suficiência ou
insuficiência de nutrição – de Bütschli – renovamento
ou esgotamento de fermento – de Lendl – presença ou
ausência de ballast – e outras hipóteses, em face das
quais continua indecifrável o enigma da morte, Delage
vê a causa da imortalidade do Gérmen e da imortalidade
do Soma na diferenciação.
“Sem exceção alguma, diz ele, todas as células de
metazoários ou de metafitos, que servem à continuação
da espécie por sai assexual ou sexual, são células pouco
ou nada diferenciadas. Segue-se daí que cada célula não
diferenciada é imortal, e não requer para continuar a
viver senão ser colocada em condições que lho
permitam; e que toda célula diferenciada é votada a uma
morte inevitável, sem que haja para ela possibilidade
alguma de escapar. O corpo dos metazoários morre,
porque é formado, em sua maior parte, de células
diferenciadas, e, se nele há células pouco ou nada
diferenciadas por ocasião da morte, elas também
morrem, porque a nutrição lhes é suprimida. (32 )
Do que fica dito resulta que nos metazoários,
entre os quais figura o homem, há duas partes, uma
constituída pelas células germinais ou imortais, outra
71
pelas células somáticas ou mortais. Só as células ger minais têm a capacidade de se dividir indefinidamente,
porque sua divisão homogênea não diminui nunca a
vitalidade das células. As células somáticas tendem a
perder sua aptidão reprodutora pela sua divisão hete rogênea. É a diferenciação que traz a diminuição da
capacidade de se dividir. Com a diminuição da aptidão a
se dividir, surge a detenção do crescimento, e com a
detenção do crescimento a detenção do nutrimento, o
que importa dizer – a morte. A morte é uma conseqüência necessária da detenção da divisão e do crescimento dos seres vivos. A grande lei da vida é o crescei
e multiplicai da Bíblia. Crescendo e multiplicando -se, é
que a vida é vida, ou por outras palavras, é que o
plasma, a substância viva pode viver indefinidamente. A
vida não se mantém eternamente nem se desenvolve
ilimitadamente senão por ciclos, mas ciclos em que a
substância viva primordial, o plasma germinativo, se
mantém idêntico a si mesmo, e, portanto, imortal, pela
reprodução homogênea, ao passo que o plasma somático
se diferencia em sua multiplicação, e deste modo perde
sua imortalidade. A morte se introduziu no campo da
vida por intermédio da diferenciação, e deste modo se
pode dizer que ela é uma conseqüência lógica e
necessária do desenvolvimento da própria vida.
Tudo se esclarece facilmente, desde que se tem a
idéia não de um indivíduo, que produz um ovo, que se
torna um indivíduo, que por sua vez engendra um novo
ovo, e assim por diante; mas de um Gérmen, que se
desdobra em um Soma e em outro Gérmen, aquele
72
mortal e este imortal, a se desdobrar novamente em um
outro Soma e em um outro Gérmen, e assim por diante.
O papel do Soma é nutrir e proteger o Gérmen. Os seres
policelulares morrem porque conforme afirma Delage,
neles as células são em sua maioria somáticas, e se no
momento da morte existem algumas células germinais,
estas também morrem por falta de nutrimento em
virtude da morte do Soma. Só não morrem as células
germinativas, que em tempo encontraram as condições
necessárias para crescerem e se multiplicarem, como se
dá no caso de sexuação.
Isto no ponto de vista objetivo; no ponto de vista
subjetivo a questão muda de face, porquanto não é à
ciência que a individualidade pode pedir a confirmação
de sua persistência depois da mo rte. O eu, produto da
evolução, dissolve-se necessariamente com a morte,
resultado final da diferenciação. O que sobrevive é
justamente o que menos se diferencia: são as células
germinais, que se reproduzem homogeneamente. As cé lulas somáticas são mortais em virtude mesmo de sua
produção heterogênea. Mortais as células somáticas,
mortais são as funções resultantes de sua diferenciação.
A mesma causa, que organiza o plasma, produz a morte
do organismo. O amor, que leva o ser a sair de si
mesmo, o amor que provoca o ser a se reproduzir ainda
mesmo com sacrifício próprio, arrasta o indivíduo a
protestar contra a morte não só de si mesmo como dos
seres, que lhe são caros. Mas isto, porque o amor é filho
da tendência de todo o ser vivo a crescer e a se
multiplicar. Querer eternizar o indivíduo não é um resto
73
de egoísmo, como diz Guiau, é a lei lógica do “crescei e
multiplicai”, agindo psicologicamente, por intermédio
da consciência. Mas a consciência ou o sentimento da
continuidade de estados internos, a consciência ou a
permanência de funções mentais através dos elementos
que mudam, não é senão um resultado da complexidade
dos referidos estados internos ou funções mentais, não é
senão a integração resultante da diferenciação. “Por seu
lado físico, diz Wundt, como por seu lado psíquico, o
corpo vivo é uma unidade; esta unidade não é fundada
sobre a simplicidade, mas, pelo contrário, sobre uma
composição muito complexa”. “A consciência, acrescenta Guiau, com seus estados múltiplos e, entretanto,
unidos estreitamente, é para nossa concepção interna
uma unidade análoga à do organismo corpóreo para
nossa concepção externa”.
Assim, o que nós chamamos eu ou alma, não é
senão a unidade consciente de estados internos, como o
corpo não é senão a unidade inconsciente de esta dos
morfológicos. Se a organização, porém, não impede a
morte, pelo contrário, a determina, a consciência, o eu, a
alma, não justifica a imortalidade, pelo contrário a
condena.
Se a alma humana deve ser encarada como o
produto evoluído de inumeráveis eleme ntos, se deste
modo é que ela deve ser considerada o “espelho do
mundo” na expressão de Leibnitz, é claro que quanto
mais se estender a evolução das funções mentais, quanto
mais se integrar a unidade da multiplicidade complexa
dos elementos constitutivos da alma, menos duração
74
terão tais elementos, cuja transitoriedade cresce na
razão direta da organização.
Uma associação não se desenvolve senão com
prejuízo dos indivíduos, que a compõem. É o que se dá
com a consciência humana, associação de consciências
celulares.
Se o problema consiste, no entender de Guiau, em
indagar se pode existir uma associação ao mesmo tempo
bastante sólida para durar sempre, e bastante sutil,
bastante flexível, para se adaptar ao meio sempre
variável da evolução universal, pode-se responder com
firmeza e segurança que quanto mais os seres se elevam
na escala da evolução orgânica, mais progressiva se
torna a mortalidade das células somáticas, cuja história
não é outra senão a história de toda a evolução vital
desde os movimentos monótonos dos animais inferiores
até as mais originais criações do pensamento humano.
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 99-144).
NOTAS
(1)
Il naufragar m’è dolce in questo mare.
(2)
95.
Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XIII, Parágrafo
(3) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XII, Parágrafo 85.
(4) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulos XIV e XV,
Parágrafos 104 e 112.
75
(5)
Histoire du Peuple d’Israel, Tomo IV, pág. 320.
(6)
Le Problème de la Mort, pág. 29.
(7)
Études sur le Droit Celtique, pág. 3.
(8)
Le Problème de la Mort, pág. 27.
(9)
Les Prophètes d’Israel, pág. 116.
(10) Études sur le Droite Celtique, pág. 9.
(11) Histoire du Développement Intelectuel de l’Europe, Volume
1, Capítulo 7.
(12) História Natural, Capítulo VII, Parágrafo 56.
(13) Consolatio ad Polybyum, n. XXVII.
(14) Consolatio ad Polybyum, n. XIX.
(15) Epist. XXX.
(16) Epist. IX.
(17) Epist. LIV.
(18) Sully-Prudhomme, OEuvres, Prefácio, pág. LXXX.
(19) Histoire du Peuple d’Israel, Volume IV, Capítulo XII.
(20) Vide Renan, Vida de Jesus, Capítulos IV e XVII.
(21) Apud Bordeau, Le Problème de la Mort, pág. 134.
(22) Apud Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XIV,
Parágrafo 110.
76
(23) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XV, Parágrafo
110.
(24) La Civilisation Primitive, Volume I, Capítulo II.
(25) Le Problème de la Mort, Capítulo VIII, pág. 176.
(26) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XV, Parágrafo
111.
(27) Vide Tylor, La Civilisation Primitive, Tomo II, Capitulo
XIII.
(28) La Civilisation Primitive, Tomo II, Capitulo XIII.
(29) Le Problème de la Mort, Capitulo XII, pág. 292.
(30) Le Problème de la Mort, pág. 332.
(31) A Estrutura do Protoplasma e as Teorias s obre a Hereditariedade, Paris, 1895, págs. 178 e 179.
(32) A Estrutura do Protoplasma e as Teorias s obre a Hereditariedade, pág. 769.
77
2.
SILVIO ROMERO
No último livro de Clóvis Beviláqua vemos,
fazendo parte da famosa constelação dos juristas
filósofos, os vultos lumino sos de Tobias Barreto e Sílvio
Romero.
O autor não tendo por fim escrever toda a história
da filosofia do direito, porém salientar os espíritos
superiores que do direito tiveram uma concepção
original e fecunda, era de esperar que seu trabalho se
limitasse a um pequeno número de cultores da ciência, e
que ao lado de Cícero, Montesquieu, Ihering e Post,
figurassem Tobias Barreto e Sílvio Romero.
Do papel que entre nós representou Tobias
Barreto como jurista filósofo já nos ocupamos na
introdução às Questões Vigentes e no estudo publicado
na Revista do Norte sob o título – Mundo Jurídico; hoje
procuraremos mostrar a parte que cabe a Sílvio Romero
em nosso desenvolvimento jurídico -filosófico.
“Era naturalmente a mim, escreve Sílvio Romero
na introdução aos Estudos de Direito, no caso de eu
sobreviver a Tobias Barreto, que havia de caber a tarefa
de organizar e dirigir a publicação póstuma de suas
obras. Uma amizade de vinte e dois anos, nunca,
fenômeno raro no Brasil entre homens de letras,
desmentida por um ressentimento qualquer, dava-me
este direito. A família assim espontaneamente o
78
compreendeu, e foi logo fazendo diligências que me
habilitassem a por ombros à empresa”.
Mas a Sílvio Romero coube não somente a tarefa
de organizar a publicação póstuma dos traba lhos do
grande morto, mas ainda a glória de lhe completar a
obra, o que fez mesmo em vida de Tobias Barreto.
Além de que, sem Sílvio Romero, o eminente
reformador de nossos hábitos intelectuais teria morrido
no meio do esquecimento de seus contemporâneos, além
de que foi aquele dedicado companheiro de armas que
tornou Tobias Barreto conhecido como uma individualidade representativa, como uma glória nacional,
sucede que no Brasil, especialmente em Pernambuco, o
livro que mais impulso tem dado ao desenvolvimento
das letras sob qualquer das manifestações do pensa mento, é a História da Literatura Brasileira.
A Sílvio Romero deve o Brasil a percepção clara
de seu passado, a mais indispensável condição de toda
superior existência social.
Esquecendo-se de seus feitos, a sociedade como
que perde a consciência de si mesma.
Daí a necessidade da história, mas da história
cientificamente organizada.
É este o inestimável valor da obra capital de
Sílvio Romero.
Que vem a ser, porém, a história cientificamente
organizada?
Durante muito tempo se escreveu a história,
fazendo dão somente a biografia dos homens célebres.
Deste modo se caia na mais flagrante contradição:
79
desdenhava-se a vulgaridade e, entretanto, a ela é que se
recorria para discernir e proclamas a glória.
“Toda a reputação, nota judiciosamente Bordeau,
vem dela.
Sem a auréola que ela discerne, o mais sublime
gênio seria não menos ignorado do que o mais
desconhecido dos homens”. (1 )
Só mais tarde se deixou de lado o herói para
atribuir a elaboração do progresso à multidão, e se
abjurou o culto da fama para endeusar a vulgaridade.
O principal fator do progresso é então a
obscuridade.
Referindo-se à Revolução, diz Mme. Roland: “a
coisa que mais me surpreende... é a universal
mediocridade; ela passa tudo que a imaginação pode
representar e isto em todos os graus”.
Um e outro sistema, porém pecam, pelo seu
absoluto exclusivismo, senão pela ausência de senso
científico.O gênio não é simplesmente o que afirma
Macaulay quando escreve estas palavras:
“O sol esclarece prime iro as montanhas, quando
ele está abaixo do horizonte, e os espíritos superiores
descobrem a verdade algum tempo antes que ela se torne
visível para a multidão. Eis a que se reduz
superioridade. Eles são os primeiros a recolher e a
refletir uma luz, que, sem seu concurso, se tornaria
visível um instante mais tarde a homens colocados
muito abaixo deles”. Não é também o que pretendia
Carlyle, para quem “todas as coisas que vemos
realizadas no mundo não são senão o resultado material
80
exterior, a realização prática e a encarnação dos
pensamentos que habitaram no cérebro dos grandes
homens”.
Também não se pode dizer que seja a multidão o
novo Atlas a suportar todo o peso do mundo social. O
equilíbrio e desenvolvimento do progresso humano
assentam sobre bases mais sólidas e estáveis.
A civilização não é trabalho exclusivo da
soberania do pensamento ou da ação individual, nem tão
pouco mera criação anônima da atividade coletiva.
Era preciso seguir outro caminho nas inves tigações da história científica, e Bordeau pr etende tê-lo
descoberto no desenvolvimento da razão por meio da
estatística.
A história não é mais, conforme define o
dicionário da Academia Francesa, a narração das coisas
dignas de memória, e sim “a ciência dos desenvolvimentos da razão”.
“É pela razão que o homem se eleva acima de
todo o mundo animal e constitui na ordem das funções
psíquicas uma espécie de reino a parte, tão superior ao
reino animal, quanto este o é ao reino vegetal, e um e
outro o são ao reino dos corpos brutos”.
Determinar as leis que imperam no reino da
razão, tal é o fim a que se propõe a ciência da história.
Classificar as funções da razão – arte, ciência,
religião – e determinar suas relações de coexistência e
sucessão no meio da variedade e complexidade dos
fenômenos, eis a preo cupação constante daquele que
quer fazer a história científica da vida humana.
81
Qual o meio, porém, de apreciar os desenvolvimentos da razão?
A estatística, que, segundo a definição de Moreau
de Jonnès, é a ciência dos fatos sociais expressos por
termos numéricos.
“As ciências da natureza, escreve Bordeau, a
princípio entregues ao espírito de especulação e de hipótese, para se constituírem em estado positivo, tiveram
que submeter suas noções às provas do cálculo.
Fazendo matemática, a astronomia converteu em
teoremas as quimeras dos filósofos antigos sobre o
sistema do mundo. Armada da análise, cadastrou o céu,
mediu as distâncias dos astros, traçou a curva de suas
órbitas, avaliou suas atrações mútuas, calculou a
duração de suas revoluções e deu conta dos movimentos
mais complicados da mecânica celeste. Da mesma sorte,
os progressos da física datam da época recente em que o
método experimental, aplicando-se a graduar os efeitos
das forças moleculares, pôde exprimi-los por número.
Lavoisier fundou a química sobre o empreso sistemático
da balança, e seus sucessores reduzem os fatos de
combinação a cômputos de átomos, a fórmulas de
proporção e equivalência”.
Para Bordeau a estatística é a última palavra da
ciência social: ela substitui o número às palavras, os
diagramas às descrições; permite descobrir unifor midades, concomitâncias, relações que passariam des percebidas sem seus dados.
O simples registro civil determina o número de
casamentos, de óbitos, de nascimentos, e, portanto, o
82
desenvolvimento da população, o aumento da riqueza, o
nível de moralidade, a salubridade do território, a
mistura dos elementos etnográficos, e mil condições de
progresso. A tarifa das alfândegas é a justa medida do
que um povo produz, troca, consome; ela dá o exato
conhecimento da economia social.
Entretanto, não é sobre os fatos que a estatística
revela sua eficácia; convém distinguir entre acontecimentos e funções.
Acontecimentos são os fatos acidentais, transitórios, tais como as mudanças de governo, os sucessos
bélicos, as descobertas científicas.
Funções são os fatos ordinários, que se produzem
com toda a regularidade, e que não passam desper cebidos senão em razão de sua própria freqüência.
Por isso mesmo que tais fatos são os mais
comuns, freqüentes, constantes e regulares , pode-se
dizer que eles constituem o fundo da natureza humana,
e, submetidos ao cadinho da estatística, não há que
recear os erros e ilusões a que ordinariamente estão
sujeitos os que abordam o estudo dos fenômenos sociais.
Não é Bordeau o único escritor para quem há
fatos menos importantes, dos quais o historiador não
tem que se ocupar.
P. Lacombe, outro teórico da história, em seu
livro intitulado Da História Considerada como Ciência,
depois de estabelecer a distinção entre homem geral,
semelante a todos os indivíduos da mesma espécie,
homem temporário, semelhante a todas as pessoas da
mesma sociedade, e homem singular, distinto por
83
diversas particularidades de seus semelhantes, sustenta
que há fatos insignificantes, que absolutamente não
podem fazer objeto da história: tais são os que vêm do
homem singular os quais não constituem senão acontecimentos. São os fatos do homem geral e mesmo do
homem temporário os únicos que, por se apresentarem
sob o caráter de instituições, isto é, sempre idênticos a
si mesmos em uma série de circunstâncias, podem
tornar-se o objeto da ciência da história.
O método de Lacombe tem alguma coisa de original; mas nem por isso deixa de ser arbitrário.
Com efeito, pode-se perguntar onde termina o
homem singular e começa o homem t emporário ou geral.
Além disto, se por um lado é admissível em
abstrato a distinção entre acontecimentos e instituições,
por outro lado, restringindo-se o objeto da história ao
estudo das instituições, que, entretanto, vemos na rea lidade senão fortes individualidades, reagindo e influindo poderosamente sobre o mecanismo das ins tituições?
Muitas vezes quanto mais original e, portanto,
mais singular é o indivíduo, maior é a sua influência,
sobre o meio em que vive. Voltaire, no dizer de Worms,
representa alguma coisa de inteiramente único em seu
gênero, poderíamos mesmo dizer que ele oferece o quer
que seja de inédito na história, e, não obstante, nenhum
historiador, ocupando-se do século XVIII, teria o direito
de deixar de lado sua imponente figura.
Lacombe não adiantou um passo a Bordeau, cuja
tese capital não se pode dizer verdadeira; mas, segundo
84
observa Henrique Berr, obriga a pensar e convida a
discutir.
Existe realmente uma alma coletiva, tão
imperecível quanto invisível. É a alma da multidão,
herdeira do patrimônio intelectual das gerações
passadas. Bordeau exprime sua marcha, que ele chama
progresso, nos seguintes termos: “Da mesma sorte que a
gravitação age na razão direta das massas e na inversa
do quadrado das distâncias, o progresso parece realiz arse na razão direta da soma dos ganhos anteriormente
realizados, e na inversa dos obstáculos, que se opõem à
sua difusão no mundo”.
Assim temos o gênero humano como uma espécie
de vegetação, florescendo sobre o humos das gerações
passadas.
Mas ao lado desse desenvolvimento orgânico e
sem abalos, que permite que a sociedade tenha
consciência de si mesma, e guarde a lembrança de sua
personalidade, de seu eu, como Vixnu em seu avatares
conserva o sentimento de sua divindade, há mudanças
permanentes, renovamentos sucessivos, que sujeitam a
alma social a grandes crises e convulsões.
Nestas condições por que razão restringir o objeto
da história ao que é comum, permanente, idêntico?
É preciso não esquecer que o progresso consiste
em um processo simultâneo de integração e
diferenciação. Assim, não é raro ver a demagogia e o
despotismo coexistindo em uma mesma sociedade.
Além disto, a estatística, sobre que Bordeau
franca e decisivamente assenta a lógica da história, pode
85
dar a constatação de relações e conexões contínuas e
constantes; mas não dará a razão, a explicação dessas
relações e conexões.
A que se deve então recorrer? À psicologia,
conforme ensina Lacombe? Mas a psicologia de Bordeau
assenta sobre noções bem vagas e confusas. A razão,
pião sobre que gira todo o mecanismo de sua teoria,
compreende todas as manifestações da atividade
humana, desde as descobertas científicas e invenções
religiosas até as criações estéticas e produções
industriais. Como se vê, as funções da razão abrangem a
integralidade da natureza humana, e, deste modo,
Bordeau definindo a história – a ciência dos desenvolvimentos da razão, é como se dissesse que ela é a
ciência do progresso das gerações sucessivas, a ciência
da perfetibilidade humana, o que não adiante coisa
alguma depois do s trabalhos históricos de um Riehl na
Alemanha, de um Buckle na Inglaterra, de um Taine na
França.
Rumo bem diverso do caminho do Bordeau e
Lacombe segue Sílvio Romero.
Em 1880, em uma famosa dissertação de concurso
intitulada Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos
escreveu o eminente crítico: “O problema da liberdade
tem sido mal compreendido. A liberdade é mais uma
conquista da inteligência sobre o fatalismo da natureza
do que o poder que dá a presunção a cada um para fazer
disparates. A velha teoria das faculdades d’alma, desacreditada desde Hume e Herbart, é a fonte de todos os
erros da velha psicologia sobre a liberdade. Criando
86
domínios exclusivos na vida espiritual, a antiga escola
fez da vontade um ermo recluso do espírito, separado
por uma trincheira de abstrações das outras faces da
vida psíquica. A liberdade não é um predicado da
vontade, é antes uma resultante do entendimento;
consiste não em praticar ações caprichosamente, sem
motivos e precedentes, mas no discernimento intelectual
de abraçar um partido. Como diante de muitas teorias
diversas e encontradas., o homem estuda, medida,
trabalha para formar uma idéia de um assunto qualquer,
e, as mais das vezes, só após muitos ensaios contraditórios e o abandono de umas quantas opiniões, é
que chega a abraçar uma doutrina e abraçando -a, o faz
em virtude de uma necessidade lógica; assim é com a
liberdade. Ela tem sempre precedentes racionais; por
isso mesmo não é, não pode ser o livre arbítrio
indifferentiae.
Aplicando tal ordem de idéias à marcha coletiva
da humanidade, a liberdade desta consiste em se ir
subtraindo à pressão do despotismo. Do despotismo da
natureza, que a fustiga de todos os lados, e contra o qual
ela vai obtendo triunfos por meio da indústria; do
despotismo dos padres, que se arrogaram o direito de
dispor das vitórias por meio da crítica; do despotismo
dos tiranos, de todas as formas e tamanhos, e que se
apossaram do poder de dispor de seus destinos, e contra
o qual ela vai obtendo desforras por intermédio da
ciência e da revolução”.
87
Transcrevemos esta página, não pelo prazer de
mimosear o leitor com um delicioso fruto literário, mas
porque ela contém em si toda uma filosofia da história.
Desde alguns anos que se exagera a influência das
circunstâncias exteriores sobre a ação individual. Sob o
pretexto de que os acontecimentos são regidos por leis,
de que o que sucedeu não podia deixar de suceder, temse feito do sucesso a suprema lei da história. Daí o
enfraquecimento do sentimento de responsabilidade
entre os dominadores, e o excesso de resignação entre os
subjugados, em conseqüência de se querer estudar a
natureza humana como se estuda a natureza bruta.
É contra esta tendência que Sílvio Romero reage
com toda a superioridade de sua crítica magistral.
A questão não é somente de mecânica social, e
sim de psicologia humana.
Não basta constatar para prever, é preciso
libertar-se para agir.
A alma humana não é somente “o número em
movimento”, e tanto basta para que a história não possa
ser considerada uma simples “dedução geométrica” .
No seio do determinismo universal há alguma
coisa, que se desenvolve conhecendo -se – é a vontade
imanente, que obedece menos à causalidade cega do que
à finalidade consciente.
É esta a superioridade da história humana sobre a
história natural.
Se a evolução social é um produto da colaboração
da massa anônima, e, se por sua vez o indivíduo reage
por suas idéias e sentimentos sobre o mundo externo –
88
físico ou social – é claro que o historiador não pode
olvidar o que é individual, e, portanto, esquecer espe cialmente a literatura, que é o terreno em que as fortes
individualidades mais acentuadamente se impõem.
Mas, se não desdenhando o geral, o historiador
tem que abordar o individual, mesmo para determinar as
relações existentes entre os grandes homens e o meio
exterior – físico ou social – isto não quer dizer que,
ocupando-se da literatura de um povo, deva restringir
seu método ao simples processo narrativo; pelo
contrário, tem que descer à apreciação de todos os fatos
e circunstâncias, para fazer a seleção, que se impõe ao
espírito de todo hábil investigador.
Em que sentido, porém, deve ser feita esta
seleção?
Eis o importantíssimo problema, a que, estamos
convencidos, Sílvio Romero deu brilhante solução na
História da Literatura Brasileira.
Ali, com efeito, vemos Sílvio Romero estudando
a configuração geológica do Brasil, as influências
climatérias, os meios de alimentação, o que tudo
importa dizer, as nossas condições econômicas; depois
investigando os elementos, que entraram na formação do
caráter nacional, o que em seu verdadeiro sentido não
significa outra coisa senão uma análise dos fenômenos
genéticos, quer sob o ponto de vista geral da etnografia,
quer sob a relação especial da família; em seguida
apreciando os cantos e contos populares, isto é, os
fenômenos morais e religiosos antes de serem reduzidos
à forma regida das regras jurídicas; por último
89
ocupando-se das instituições políticas da colônia e do
império para então tratar das produções literárias.
Parece à primeira vista um luxo de erudição o
processo segundo na História da Literatura Brasileira;
mas é que antes dos recentes trabalhos sobre a
organização científica da história, já Sílvio Romero
explanava o assunto de um modo completo;
Antes, porém, de passarmos adiante, seja -nos
permitido fazer uma ligeira digressão com o fim de
mostrarmos a que maravilhosos resultados se pode
chegar, quando se possui no cérebro mais do que uma
filosofia da história, quando se tem no espírito uma
completa ciência das idéias, uma verdadeira teoria dos
conhecimentos humanos, o que os alemães chamam
Ideekund.
Em maio de 1888, referindo-se aos nossos
problemas capitais, escrevia o autor da História da
Literatura Brasileira: “Uns e outros – problemas
capitais – na hora atual são, pela face política:
federalismo, república e organização municipal; pela
face econômica o velho e temeroso problema da
emancipação dos escravos esta substituído por três
outros: o aproveitamento da força produtora do
proletário, a organização do trabalho em geral, a boa
distribuição da propriedade territorial; pelo lado social;
colonização estrangeira, grande naturalização, reforma
do ensino teórico e técnico”. (2)
Um ano depois, decretou-se a República com o
federalismo e a autonomia dos municípios; mas se
90
deixou no mesmo pé o problema econômico, e sem
solução a questão social.
Enquanto os estados modernos procuram regular
sua vida econômica de acordo com o princípio jurídico
da igualdade, nós fechamos os olhos e cruzamos os
braços em face do movimento destinado a regular as
relações existentes entre os fenômenos jurídicos e os
fenômenos econômicos, e deixamos que o mais in teressante problema deste fim de século – a organização
jurídica do capital, da inteligência e do trabalho – esteja
sendo explorado por simples especuladores políticos,
que não fazem senão anarquizar o país e agravar ainda
mais a sorte dos desprotegidos da fortuna.
Onde estão as instituições destinadas a servir de
órgão às funções da nova vida social?
O Estado moderno não pode mais limitar seu
papel à garantia da livre convivência dos indivíduos na
sociedade, tem que estender sua ação além da livre
atividade individual para regular juridicamente certos
fenômenos econômicos, e particularmente para melhorar
a condição do proletário miseravelmente explorado pelo
capitalista.
Quanto à propriedade territorial, esta continua a
ser monopolizada por indivíduos que não a exploram ou
não a querem explorar, senão à custa da escravidão,
quaisquer que sejam a forma e a cor sob que apareça,
ainda mesmo coberta com o manto da imigração, de
maneira que se pode dizer que a colonização estrangeira
é para nós menos um problema de economia social do
que uma questão de tráfico de braços para aumento dos
91
grandes senhores da terra, em prejuízo da riqueza
pública e do progresso nacional.
A riqueza nacional é mas alguma coisa do que
uma simples questão de exploração da força muscular
em benefício tão somente do capital.
É preciso subtrair as relações econômicas aos
caprichos da plutocracia, e submetê -las à disciplina
jurídica. Determinar as relações existente s entre a
economia política e o direito constitui atualmente um
dos problemas políticos mais interessantes, e sua so lução será o ponto de partida de uma nova organização
social.
No tocante ao ensino, é verdade que Benjamin
Constant procurou reformar a instrução pública; mas em
vez de reformar o ensino no sentido de torná-lo uma
poderosa alavanca de progresso social, organizando a
escola, de maneira a fornecer não somente métodos de
pensar, mas também processos de agir, sob o pretexto de
que é preciso acostumar a mocidade a observar,
experimentar e induzir, baniu a parte interessante do
saber, o lado humano do ensino, desde a psicologia até a
filosofia, deixando apenas subsistirem os conhecimentos
puramente especiais, “a enumeração e inventário dos
fatos e das leis”.
Os fenômenos sociais podem classificar -se em
três grandes categorias: fenômenos econômicos ou de
nutrição, fenômenos genéticos ou de reprodução e
fenômenos políticos ou de relação.
Os primeiros compreendem as relações de pro dução, circulação e consumo das riquezas; os segundos
92
abraçam as relações de família como parentesco, ca samento, adoção; os terceiros abrangem as relações de
inteligência, sensibilidade e contractilidade social,
relações correspondentes nos animais superiores às
ações exercidas pelo cérebro sobre as outras partes do
corpo, quer para defesa quer para locomoção do
organismo.
Nas sociedades, ainda mais que nos indivíduos o
exercício regular da integralidade das funções está
sujeito a centros superiores correspondentes aos centros
nervosos nos animais. Tais são as instituições cien tíficas, artísticas, morais, religiosas e civis, que reunimos todas sob a denominação de políticas.
Para nós as instituições jurídicas não formam uma
categoria à parte de fenômenos sociais: são os mesmo s
fenômenos econômicos, genéticos e políticos revestindo
a forma de coação pública.
Neste ponto estamos de perfeito acordo com
Worms, para quem o direito não tem objeto que lhe seja
próprio, ou antes, seu objeto é infinitamente extensivo:
“Todos os fatos sociais são regidos por ele, tanto
os da vida intelectual como os da vida material, desde
que a sociedade se pos de acordo sobre certos
princípios, que ela impõe a seus membros na realização
destes fatos. Inversamente, não há talvez uma só ordem
de atos que não possa ser idealmente deixada à livre
iniciativa dos particulares, isto é, subtraída à dominação
do direito. Seria interessante seguir a evolução que fez
com que muitos fenômenos entrassem no domínio da
legislação e muitos outros dele saíssem. Não pare ce que
93
haja sobre este ponto regra geral a estabelecer. Certas
classes de fenômenos se libertaram das regras do
direito, pelo menos em nosso país: a religião, por
exemplo, desde que foi admitida a liberdade de
consciência. Mas outras se submeteram a elas: os
trabalhos estéticos, entre outros, desde que foi
consagrada legislativamente a propriedade literária.
Certas matérias caíram sob as malhas da legislação,
depois se livraram, e finalmente tornaram a cair: tal é a
organização da indústria, regulamentada sob o antigo
regime, liberta pela revolução, e em nossos dias
regulamentada de novo”. (3 )
Em seu notável livro O Transformismo Social, G.
de Greef estabelece que o progresso se realiza nas
sociedades por evolução, segundo a ordem da gene ralidade descrente e da complexidade crescente dos
fenômenos, e o regresso por involução, segundo a ordem
inversa do desenvolvimento dos fenômenos. Daí a
classificação hierárquica dos fenômenos sociais em
econômicos, genéticos, artísticos, religiosos, morais,
jurídicos e políticos.
Dez são as regras sob que, segundo G. de Greef,
pode ser formulada a lei de interdependência, em
virtude da qual se dão as ações e reações dos fenômenos
sociais.
1ª – As ações ou reações sociais estão em relação
com o grau de simplicidade e de generalidade dos
fenômenos e das funções, a que elas se aplicam. Assim,
as ações e as reações econômicas são mais simples e
94
mais gerais do que as ações e reações morais, jurídicas e
politicas.
2ª – Os fenômenos e as funções mais simples e
mais gerais agem de u’a maneira mais simples e mais
geral sobre os fenômenos e as funções mais complexas e
especiais.
3ª – Os fenômenos e as funções imediatamente
anteriores agem mais imediata e diretamente sobre os
fenômenos e as funções imediatamente seqüentes.
4ª – As ações e reações são menos imediatas e
diretas entre fenômenos e funções pertencentes a classes
diferentes, que não se seguem imediatamente, do que
quanto a ligação entre as classes é direta.
5ª – São os fenômenos homogêneos de uma
mesma classe que se associam ma is facilmente.
6ª – Salvo essas diferenças, todos os fenômenos e
todas as funções agem uns sobre os outros.
7ª – Os fenômenos e as funções mais especiais e
superiores reagem sobre os fenômenos e as funções
menos elevados, mais simples e mais gerais.
8ª – Sua influência é tanto mais forte quanto ela
se exerce por mais tempo sobre os fenômenos e as
funções mais simples e mais gerais.
9ª – Geralmente sua influência não é senão
indireta e fraca.
10ª – Os fenômenos e as funções mais elevados,
sendo também em cada classe e no todo das classes os
mais recentemente aparecidos, são os mais superficiais,
os mais variáveis, os menos estáveis; pelo contrário, os
fenômenos e funções interiores mais simples, mais
95
gerais, são também os mais antigos, ou mais
profundamente integrados no organismo social, os mais
fixos, por conseguinte os mais dificilmente, porém, em
compensação os mais utilmente modificáveis.
Quaisquer que sejam as suas aplicações, a idéia
capital de G. de Greef é a hierarquia dos fenômenos
sociais, e o poder reformador preponderante da função
econômica sobre as demais funções da sociedade.
Esta mesma supremacia do elemento econômico,
não obstante o ponto de vista especial em que cada um
se coloca, é doutrinada por Carlos Marx, Frederico
Engels e, em geral, pelos representantes da chama
concepção materialista da história.
Dühring inverte completamente a ordem hierár quica de G. de Greef, e faz assentar o movimento
econômico sobre o mecanismo político:
“É a formação das relações políticas que é
fundamental no ponto de vista histórico, e as
dependências econômicas não são senão o seu efeito ou
um caso particular, e, portanto, sempre fatos de uma
ordem secundária”.
Nem uma nem outra coisa: o que nos ensina a
observação e dá testemunho a história, é que as relações
sociais são coevas, reina entre elas homocronismo.
Sirvam de exemplo a escravidão, a servidão, as
corporações, as associações industriais, fatos ao mesmo
tempo econômicos, morais, jurídicos, políticos,
religiosos.
Na evolução, que vai da escravidão ao sis tema
atual da organização do trabalho, vemos as diversas
96
modalidades do fenômeno social, economia, moral,
direito, política, sempre de envolta umas com as outras.
É fácil mostrar o serviço incalculável que prestou
Sílvio Romero à teoria e prática do progre sso social com
sua classificação, discriminando os fatos sociais, mas
banindo toda idéia de hierarquia.
À conta de uma tal hierarquia devem ser levadas
umas tantas iniqüidades, que imperam do ponto de vista
político-social.
E muito propositalmente falamos em iniqüidades
político-sociais, porque há, com efeito, uma justiça
distinta da justiça jurídica.
Pode existir injustiça do ponto de vista polít ico
sem que as regras do direito civil ou criminal sejam
infringidas.
Não faltará quem afirme que tal distinção não
existe; entretanto, ela é real: são as injustiças políticas
as mais revoltantes, as mais condenáveis, porque sob a
capa da legalidade mais escarnecem das vítimas.
Para mostrar que há diferença entre a injustiça
jurídica e a política, basta lembrar que há lacunas que
ferem as pessoas consideradas individualmente; mas ao
lado destas há outras, como certas operações finan ceiras, certos negócios de bolsa que ferem a comunhão
em geral, e se para elas é impossível a sanção do direito
civil ou criminal, nem por isso falham aos poderes
públicos meios de coibi-las.
A política não tem por objeto aplicar leis
existentes, anulando atos, como fazem os tribunais civis,
ou impondo penas como praticam os tribunais criminais;
97
sua missão é implantar uma organização socia l mais
eqüitativa no domínio da cultura econômica, jurídica,
intelectual, filantrópica, estética, religiosa, de harmonia
com as condições de uma dada época.
Por desconhecer esta distinção é que até hoje se
tem cometido o enorme erro de se considerar legíti mo
tudo que não está em conflito com o direito civil ou
criminal, como se fosse possível conseguir toda a justiça
social somente por meio de códigos.
Há uma justiça política que o jurista ignora, e
que, entretanto, não se pode deixar de reconhecer à luz
dos fatos.
Não se pode negar que em nosso tempo muito se
tem trabalhado para regular a esfera do direito civil e
criminal; mas até hoje temos estado muito longe de
atingir toda a soma de justiça que é possível existir na
sociedade.
Grande pode ser a soma de injustiças que reinam
na sociedade, e entretanto, há quem, fazendo política,
acredite que o Estado vai no melhor dos mundos,
quando as estatísticas não acusam alças nas infrações ao
direito civil e criminal.
Não somente nas épocas de selvageria, mas de
requintada civilização, se constatam lacunas que, não
entrando em conflito com as disposições do código,
constituem verdadeiras iniqüidades, que revoltam a
razão e indignam a consciência.
Certas formas de concorrência estão neste caso, e
se até hoje não foram tomadas medidas contra elas, tem
sido pelo receio de paralisar o espírito de iniciativa; mas
98
é de esperar que, dadas novas condições sociais, tais
medidas serão adotadas a bem da justiça distributiva.
A maior cabeça humana, Aristóteles, afirmou que
a escravidão seria de todos os tempos; mas as novas
condições sociais, que ele não podia prever, permitiram
banir aquela grande injustiça política.
O senhor do escravo alegava que tinha de seu
lado o direito; porém uma civilização mais avançada
permitiu acabar com a repugnante iniqüidade, tolerada,
senão justificada, por um estado social menos adiantado.
Esta observação mostra como pode existir uma
deplorável situação econômica saturada de iniqüidades,
sem que se dê infração das regras de direito civil e
criminal.
Por ter considerado a propriedade como um fato
isolado, que existe por si, sem afinidades com a moral,
com a religião, com a política, é que se têm sustentado
as mais absurdas teorias e praticado as mais revoltantes
injustiças.
Daí a célebre teoria do laisser faire laisser
passer, considerando ilegítima toda a intervenção dos
poderes públicos na organização da propriedade por
outro motivo que não seja o mais estéril, senão per nicioso, egoísmo.
Justo ou não do ponto de vista político, a
propriedade, considerada como direito, deve ser
respeitada em toda sua plenitude, como deve sê -lo todo
direito; mas isto não quer dizer que se deva conservar a
situação econômica injusta, nem justifica a pretensão
99
daqueles que a todo transe querem conservar a le gislação existente por mais iníqua que seja.
Há propriedades legitimamente adquiridas, quer
do ponto de vista moral, quer jurídicos, outras
adquiridas por meios legais, mas reprovados pela moral,
outras que não passam de frutos, ao mesmo tempo, da
imoralidade e da ilegalidade.
Excluído este último caso, toda propriedade
regularmente adquirida, conforme a legislação existente,
deve ser respeitada; mas este respeito não impede que o
legislador procure, de acordo com as condições do
momento, eliminar as injustiças que po rventura existam
do ponto de vista político.
Nem há direito, por mais bem adquirido, que
justifique o legislador cruzar os braços em face das
injustiças e iniqüidades econômicas, quando este reconhece que é chegado o momento de dar nova
organização social.
Desde que existem sociedades humanas e
instituições sociais, a preocupação constante tem sido
procurar uma justa distribuição dos bens, não somente
materiais, mas de toda a espécie.
Por quererem equiparar a vida animal à vida
social, e deste modo aplicar ao processus social a teoria
da luta pela vida, é que alguns espíritos repelem em
absoluto a idéia de uma justa repartição de bens.
Mas na vida social, se nem tudo é concurso,
também nem tudo é concorrência.
É tendo os olhos fixos em um ideal de justiça que
as massas se agitam mesmo do ponto de vista econô100
mico. Elas querem, em todas as relações da vida social,
que o que reputam igual, seja tratado de um modo igual;
não compreendem riqueza, honra, dignidade, posição,
enfim toda e qualquer situação social que não seja
submetida à idéia de proporcionalidade.
A idéia de justiça distributiva surge sempre que
se forma uma sociedade. A sociedade supõe a justiça
como supõe a riqueza. Uma e outra são elementos
histológicos do corpo social.
Sempre que um grupo de indivíduos forma para
nós um todo social, somos levados a considerá-lo sob o
ponto de vista do que deve ser e apreciá -lo segundo suas
tendências e aspirações para um ideal de justiça. Isto em
todas as manifestações da vida social.
Injustiça é a constituição em virtude da qual o
poder não compete aos mais dignos; injusto é o código
penal em que as penas não correspondem à idéia que se
faz da gravidade dos crimes; injustiça é a empresa em
que a gradação dos lucros não está em harmonia com a
gradação dos serviços ou do capital.
As massas não se insurgem contra as riquezas,
honras e dignidades daqueles que são julgados
realmente superiores pelos seus talentos, virtudes ou
predicados; o que condenam e repelem é que sejam
tratados desigualmente indivíduos que elas reputam
iguais.
Em um artigo publicado na Revista Brasileira
José Veríssimo considera Sílvio Romero “o mais
completo tipo representativo brasileiro”. (4 )
101
Em face desta afirmativa vem logo à mente
perguntar-se: – E Tobias Barreto?
Deixando de parte o lado subjetivo da questão,
sem entrarmos na apreciação de quem mais encarna em
sua individualidade a fisionomia da alma coletiva, sem
darmos, como assentado, que Tobias Barreto teve a alma
muito contrastada para oferecer o cunho do caráter
nacional, parece-nos que, colocando-nos em um ponto
de vista puramente objetivo, com os olhos fixos tão
somente sobre as produções dos dois filhos de Sergipe,
pode-se dizer, sem falta à veneração devida à memória
de Tobias Barreto, que a obra eminentemente nacional
de nossas letras é a História da Literatura Brasileira.
Além de que a História da Literatura Brasileira é
um repositório inesgotável de informações sobre nossa
vida mental e emocional, quer o passado, quer no
presente, e, portanto, um manancial de previsões fu turas, sucede que Tobias Barreto revelou sempre uma
organização muito refratária ao meio em que viveu, para
poder ser considerado o representante supremo das
tendências e aspirações nacionais.
Mas aqui não caímos na mais formal contradição,
depois de termos afirmado que Sílvio Romero completou a obra de Tobias Barreto?
Na história das literaturas não é raro encontrarem-se organizações psíquicas diferentes com aptidões intelectuais diversas, concorrendo para um mesmo
resultado.
Além da diversidade de aptidões, q ue distinguia
os dois heróis, é sabido que nem sempre reinou entre
102
eles completo acordo em muitos assuntos, sociais,
políticos e mesmo científicos; mas, apesar da diver sidade de vistas no par homérico, esta divergência em
nada prejudicou o êxito final.
Para Tobias Barreto, em um país como o nosso,
em que a política andou sempre divorciada da moral,
como encarar a forma de governo senão como uma
questão estética, própria para mascarar o despotismo
mais absoluto, sob a aparência de uma forma liberal?
Sílvio Romero, porém, possui, em alta dose, esta
febre ardente de ideal, que reage contra a própria
corrente dos acontecimentos, para não perder a
confiança no futuro, para não duvidar da boa fortuna da
república brasileira.
Se lhe objetarem que, a julgar pelo pa ssado, este
passado de ontem, que já vem com um longo cortejo de
amargas experiências, a julgar pelo presente, este
presente que se embrulha e se complica cada vez mais,
enchendo de receios e inquietações a alma nacional,
nada há a esperar do futuro da nossa República, ele
responderá que “os governos nefandos hão de passar, os
congressos criminosos e corruptos hão de atufar -se no
nada, e o povo há de encontrar o seu estado de repouso e
equilíbrio, de liberdade e honra nas suas próprias
energias, nas forças nativas da sua própria constituição
imorredoura”.
Tobias Barreto, admitindo a existência de
ciências sociais, entre elas o direito, negava, entretanto,
a possibilidade de uma ciência geral dos fenômenos
103
sociais. Para ele a constituição de uma sociologia é
“uma aspiração tão nobre quão pouco realizável”.
Sílvio Romero segue caminho inteiramente opos to: o direito pode e deve ser estudado cientificamente,
porque é um fenômeno sociológico, porque é uma das
criações fundamentais da humanidade, cujo estudo
constitui o amplo objeto da sociologia.
É estranhável que a um espírito tão lúcido e
penetrante, como o de Tobias Barreto, houvesse
escapado que o estudo de certas instituições jurídicas foi
em seus resultados muito além da esfera propriamente
jurídica.
Os trabalhos de Fustel de Coulanges, de Sumner
Maine, de Kovalewsky sobre a patria potestas e outras
instituições jurídicas, deram em resultado a descoberta
de que não se podem reduzir a um tipo único as instituições primitivas. Assim, a poligamia e a monogamia
devem ter sido fatos primordiais nas sociedades hu manas e não fases sucessivas uma da outra.
Investigações
sobre
o
patriarcado
e
o
matriarcado, instituições jurídicas, fizeram repousar o
parentesco menos sobre o fato genético do que sobre a
consciência da espécie, fato importantíssimo, sobre que
Giddings assenta toda sua teoria do processo social.
Worms dá a razão porque são as instituições
jurídicas as que mais têm concorrido para iluminar o
espírito dos sociólogos: são elas as mais estáveis e
precisas, as que, por assim dizer, se cristalizam nos
costumes e nas leis.
104
Alguém já disse que basta um dicionário para
conhecer toda a civilização de um povo. Com maioria de
razão pode-se afirmar o mesmo de um código.
Com os textos do Corpus Juris seria fácil
reconstruir toda a civilização romana.
A razão é simples: o que distingue o direito das
outras instituições sociais, é que ele é construído por
textos e costumes, tanto mais estáveis e definidos
quanto mais genéricos e comuns.
O direito abrange a integralidade dos fenômenos
sociais sob a condição de que, dadas certas cir cunstâncias especiais, os fatos por ele regulados possam
ser exigidos coativamente.
O traço característico, o predicado conceitual do
direito é a coação.
Fenômenos morais, econômicos, genésicos, estéticos, políticos, religiosos, todos eles podem revestir a
forma jurídica, desde que a coletividade esteja de acor do em exigi-los coativamente.
Ora, desde que o direito compreende a
integralidade dos fenômenos sociais, que por certas e
determinadas circunstâncias revestem a forma legal, e
desde que se reconhece que estes fenômenos estão
sujeitos aos métodos e processos científicos, por que
motivo negar-se a possibilidade de uma sociologia,
síntese das ciências sociais, quando se atribui o caráter
de ciência ao direito, que não é senão a investigação dos
fenômenos sociais sob a forma da coação, da mesma
maneira que se pode dizer que a estatística o é sob a
105
forma dos números, e a filologia sob a forma da
linguagem?
Quem tiver lido a História da Literatura
Brasileira, notará que antes da publicação de seus
interessantes e preciosos trabalhos sobre a história e
filosofia do direito, já Sílvio Romero influía eficaz mente sobre a regeneração de nosso movimento jurídico
pelo seu método de investigar e criticar; e, ciente, por
experiência própria, do quanto influi sobre os diversos
domínios do pensamento uma teoria do conhecimento
humano, foi que o nosso hercúleo lutador teve a feliz
idéia de escrever Doutrina contra Doutrina para
combater o positivismo.
“O positivismo no mundo, diz Sílvio Romero, e
nomeadamente no Brasil, deve ser combatido larga,
tenaz e sistematicamente, ponto por ponto, idéia por
idéia, doutrina por doutrina”.
Entretanto, sobre este assunto, até a presente data
nos temos satisfeito com pilhérias de mau gosto,
especialmente com relação a Clotilde de Vaux, a qual
Augusto Comte chamava seu anjo da guarda, e que
durante os treze últimos anos de existência do filósofo
lhe absorveu toda a vida afetiva.
A concepção da Virge-Mãe, hipótese científica
para uns, desvario da razão para outros, não passa de um
produto da mania da época – a influência mistagógica
das virgens e das mães.
“Em nosso mundo crítico, exclama Enfantin,
discípulo, como Augusto Comte, de Saint -Simon, temos
esquecido esta divina influência da dama da idade média
106
ou da virgem cristã sobre a vida do pagem ou do
cavalheiro... mas nós ignoramos, sobretudo, o poder de
uma virtuosa carícia, de um religioso beijo, de uma
santa volúpia”.
Depois da condenação de Enfantin perante os
tribunais de policia correcional, dissolvem-se as igrejas
de Toulouse, Bret, Metz, e partem Barrault, Lambert e
outros apóstolos em busca desta outra mãe que este
outro sumo pontífice não cessava de invocar para ajudá lo a proclamar o código do pudor e a por termo à cr ise
em que a humanidade se debatia.
Enquanto, porém, Enfantin, agraciado por Luiz
Felipe, embarcava para o Egito, a fim de efetuar a
abertura do canal de Suez, não voltando à França, sem
realizar sua empresa, senão para administrar caminhos
de ferro, Augusto Comte, que, como todos os discípulos
de Saint-Simon, tinha a fibra teológica, cria a Religião
da Humanidade, sob a invocação da Virgem-Mãe, que
não é senão a imagem de Clotilde de Vaux, a mulher
cujo “único sonho sendo a maternidade” – carta de 15
de setembro de 1845 – soube, entretanto, resistir a todas
as solicitações do homem, que lhe votava “verdadeiro
culto doméstico e público”.
Clotilde de Vaux foi como Mme. Recamier:
possuiu a virtude secreta da resistência, e daí para o seu
adorador a fantasia de uma Virgem-Mãe, fruto tão
extravagante como todas as outras citações religiosas do
Falansterismo e do Saint-Simonismo.
A 15 de setembro de 1845 escrevia Clotilde ao
“seu caro filósofo”: “Si vous me contraigniez, par
107
quelque moyen que ce soit, à vous ceder sur le point en
question, je ne vous reverrais plus de ma vie. Vous ne
savez pas à quel degré d’exasperation me pousserait une
violence de ce genre; une femme qui a vécu dans la
continence pendant long-temps ne peut se donner
qu’avec enthousiasme ou la résolution de devenir mère.
Je connais le mariage et je me emnais mieux que le
primier savant du monde. N’opposez, donc, plus la
moindre observation à mes sentiments; elles ne me me
ferraient pas changer et elles me rendraient profon demente malhereuse”.
Por sua vez respondia Augusto Comte:
“... Efforçons nous, donc, ma chère amie,
d’oublier, comme um rêve orageus, la crise avortée,
d’où sortons, pour reprendre paisiblement l’heureux
cours de nos relations cordiales...
Vous m’avez inspiré, il est vrai, la seu le passion
que j’aie jamais resentie; et je sens trop qu’elle ne peut
cesser qu’avec ma vie; mais elle est, j’ose le dire, aussi
pure qu’energique. Depuis la Saint Clotilde, début de
nos relations suivies, aucune pensée charnelle n’avait
jusqu’alors, ni en votre présence, ni même en votre
absence, jamais troublé mon intime adoration.
L’ensemble de ma correspondance et de ma
conduite tien certes beacoup plus du D. Quichotte que
du D. Juan”.
Nao menos curiosa e digna de estudo do que a
afeição foi a política de Augusto Comte.
108
Sob este ponto de vista, o fundador do
positivismo não se destaca senão pela sua antiparia às
idéias e às instituições liberais.
Já não falando de seu entusiasmo pela Companhia
de Jesus, de sua apologia ao imperador Nicolau, de sua
apoteose ao regime feudal, de sua instituição de um
clero para evitar a anarquia intelectual, de sua criação
de uma plutocracia para dirigir o proletariado, ninguém
ignora que Augusto Comte, além do desdém que votava
ao sistema representativo, considerava uma crise feliz o
golpe de estado, que substituiu a república ditatorial à
república parlamentar.
Augusto Comte esteve sempre disposto a
endeusar os atos de absolutismo.
É assim que figura no Calendário Positivista,
conforme já tivemos ocasião de notar, o célebr e ministro
de D. José, marquês de Pombal, que levou o despotismo
ao ponto de submeter a seu poder absoluto fatos consumados, acontecimentos passados, violentando deste
modo o processo de filiação histórica da civilização
portuguesa.
Entretanto, apesar do crime de lesa-civilização,
em que tão repetidas vezes reincidiu, o marquês de
Pombal foi canonizado pelo fundador do positivismo, e
por ele considerado um vulto digno do culto da
humanidade.
Destaquemos mais nitidamente a atitude do
ilustre sergipano em face de seu patrício e amigo Tobias
Barreto.
109
O desejo de Sílvio Romero foi sempre escrever
uma história da literatura brasileira, mas uma história,
que estudasse as produções literárias sob um ponto de
vista científico, sem ódios nem simpatias, investigando
as causas dos fatos, descobrindo as leis dos
acontecimentos.
Reconhecendo com Scherer que há duas tendências divergentes no modo de escrever a história
literária de um povo, uma “pendendo para as considerações gerais, referindo os efeitos às suas causas,
distinguindo, classificando”, outra “tomando por alvo
reviver este mundo de poetas e escritores do meio que
tão grandes causas produziu, procurando surpreender
estes homens em sua vida de todo o dia, desenhando lhes a fisionomia, recolhendo as picantes anedotas a seu
respeito”, Sílvio Romero não hesita em se decidir pela
primeira tendência sob a judiciosa razão de que o
encanto, que encontramos neste último gênero de
história literária, proveniente de um conhecimento mais
familiar do viver dos homens, não consiste especialmente no desenvolvimento de um ou outro segredo,
na prática de uma ou outra singularidade, na convivência de uma ou outra anedota.
“Tudo seria mais estéril, se não nos deixasse
meios de elevar-nos a vistas mais amplas e concernentes
à humanidade em geral. O conhecimento que se buscar
ao surpreender os atos mais íntimos de um escritor,
deve sempre visar uma maior compreensão de sua
individualidade e das relações desta com o seu país e
das deste com a humanidade”.
110
A história da literatura de um povo é mais alguma
coisa do que a crítica literária no sentido de julgar boas
ou más as produções estéticas.
Este método, que durante muito tempo formou o
fundo das histórias literárias, já não pode satisfazer as
exigências do saber moderno.
Nem é mais também uma série de biografias,
dando conta dos antecedentes hereditários dos
escritores, informando sobre sua infância, sua educação,
suas leituras prediletas, suas opiniões a respeito de
certas questões, suas simplatias, seus ódios, em uma
palavra, tudo que diz respeito ao indivíduo.
Depois que Taine escreveu a História da
Literatura Inglesa, a história deixou de ser bibliografia,
como praticavam La Harpe e Diderot, ou galeria de
portrairs, admiravelmente desenhados e coloridos, como
sabiam fazer Nisard e Scherer.
Hoje o historiador literário tem vistas mais
amplas e profundas: não restringe sua tarefa à notícia
das produções antigas ou contemporâneas para informar
o que nelas agrada ou descontenta, nem à caracterização
do talento dos escritores como me io de determinar o
valor de suas produções.
São trabalhos estes, em que se admira a
penetração de espírito de tantos ensaístas, notavelmente
entre eles Paul Bourget nos perfis de Baudelaire, de
Flaubert, de Sthendhal, de Renan, de Dumas Filho;
porém que, por mais interessantes e instrutivos que
sejam, não dão a conhecer o senso da história literária
de um povo.
111
A história de uma literatura não é senão a
caracterização do gênio de uma nacionalidade pelo mais
significativo de todos os documentos humanos – o livro.
Encarar o livro, não como objeto de crítica, mas
sobretudo como documento histórico, elevar -se até a
psicologia social, não limitando -se a estudar o mecanismo cerebral dos escritores e suas manifestações
intelectuais, como procedia Sainte Beuve, nem restringindo-se a analisar as influências de meio e de here ditariedade, como se dá em Taine, eis a tarefa do
moderno historiador literário.
Com esta orientação foi escrita a História da
Literatura Brasileira, cujo fito é determinar o que é e o
que será o brasileiro, caracterizar nosso gênio social,
descobrir as leis que presidem ao nosso destino, às
nossas tendências e aspirações nacionais.
Para tanto não batavam Le Brézil Litteraire, de
Wolf, que não forma um tecido contínuo e completo de
nossa literatura, nem os trabalhos de Abreu e Lima,
Domingos Magalhães, Norberto e Silva, Pereira da
Silva, Varnhagen, Fernandes Pinheiro, Antônio Joaquim
de Mello, Soteri dos Reis, Joaquim Manoel de Macedo,
mello Moraes Filho, Pereira da Costa, José de Alencar,
Quintino Bocaiúva, Machado de Assis, Franklin Távora,
Araripe Junior, trabalhos que não passam de
monografias sobre assuntos destacados uns dos outros
ou de biografias sobre escritores prediletos, realçando o
valor literário desta ou daquela produção. “Era mister ,
com se lê no capítulo I da História da Literatura
Brasileira, mostrar as relações de nossa vida intelectual
112
com a história política, social e econômica da nação. era
preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o
implantador da nova ordem de coisas, o português e3m
suma, se foi transformando ao contato do índio, do
negro, da natureza americana, e como ajudado por tudo
isso e pelo concurso de idéias estrangeiras se foi
aparelhando o brasileiro, tal qual ele é desde já e ainda
mais característico se tornará no futuro”.
Daí o espírito geral do livro de que nossa história
científica nem é a do inveterado barbarismo brasileiro,
de que fala Bukle; nem a da combinação dos três
elementos étnicos – o português, o africano e o índio –
como entende O. Martins; nem a do prolongamento da
civilização ocidental, passando para a América a luta
entre latinos e germanos, entre portugueses e holan deses, segundo a fórmula dos discípulos de Comte.
A história científica brasileira é a de uma
metempsicose, filha da fusão de três raças distintas – a
branca, a negra e a amarela – sob a influência de causas
atmosféricas e de zonas topográficas diferentes, e ao
contato das grandes correntes da civilização européia.
Guiado por este pensamento, Sílvio Romero
explica certas particularidades do caráter brasileiro pela
influência direta do solo, do clima e do nutrimento.
Temos um solo imenso, cortado por grandes rios,
de norte a sul, de leste a oeste, formando duas vastas
bacias hidrográficas, a do Amazonas e a do Prata. A
região do norte é quente e ubérrima, a do sul rela tivamente fresca e mais ou menos fértil.
113
“É certo, porém, que a maior parte do país, o
verdadeiro Brasil, está contido na zona tórrida, que
encerra quase todas as terras baixas do litoral de um
clima quente e úmido... As notas predominantes no
clima do país são, pois, o calor e a umidade, com todo o
cortejo formado pelo paludismo.
Além disto a alimentação, apesar da extraordinária fertilidade da natureza, é pouco substancial,
operando-se dificilmente a digestão pelo enfraquecimento das funções centrais; a exalação do ácido
carbônico pelos pulmões não é completa, encarregando se da eliminação daquele elemento prejudicial à vida do
fígado, que a realiza sob a forma de bílis; a depressão da
respiração não permitindo que o quilo se transforme em
sangue, este, seroso, se arterializa dificilmente. A dificuldade da arterialização, o enlanguecimento da grande
circulação, traz, o enfraquecimento dos órgãos, o depau peramento da vida. O calor, desenvolvendo uma
transpiração abundante, distende os tecidos cutâneos, e
a pele torna-se extraordinariamente sensível.
Então, como diz Levy, “os órgãos, que simpa tizam diretamente com a pele, recebem um igual impulso, especialmente os sentidos e o aparelho genital”.
Na diminuta eliminação, pois, do ácido carbônico
pelas vias respiratórias, na exagerada secreção de bílis
pelo fígado e na superexcitação cutânea por uma
copiosa transpiração, em poucas pa lavras, nesse
pernicioso antagonismo entre o fígado, o pulmão e a
pele, produzido pelo solo, pela alimentação e pelo
clima, está a causa genérica desse histerismo, desse
114
hepatismo e desse afrodisismo, que se manifestam em
nossa literatura e que exercem uma tão decisiva
influência sobre o caráter de nosso povo e sobre o
destino de nossa civilização. Tal a intuição geral do
grande livro de Sílvio Romero.
Edmundo Scherer, criticando a História da
Literatura Francesa, por D. Nisard, diz:
“O livro de M. Nisard tem, antes de tudo, alguma
coisa de imponente. É uma obra considerável, e isto em
um tempo em que não se escrevem mais senão artigos de
jornais e brochuras. É fruto de vinte e cinco anos de
trabalho, fruto lentamente amadurecido, em uma época
em que todo o mundo improvisa. O leitor inclina -se
diante de um poder de labor e de vontade a que quase
não está mais acostumado”.
Estas palavras podem ser justamente aplicadas à
História da Literatura Brasileira por Sílvio Romero.
Os imponentes volumes do ilustre sergipano
constituem uma vasta produção, um trabalho de longo
fôlego, onde se sente a espontaneidade, que inspira, e a
força de vontade, que executa uma grande empresa.
É que o autor da História da Literatura
Brasileira, além de sede de saber, tem a febre da
atividade, mas da atividade, que realiza uma nobre
tarefa.
O livro de Sílvio Romero, além de ser uma obra
considerável, engenhosamente planejada, belamente
executada, era uma necessidade para a nossa literatura,
que carecia de uma história.
115
Tudo que possuímos, como os trabalhos de Antônio Joaquim de Mello, de Franklin Távora, de Ararip e
Junior e outros, se atraía a atenção como matiz, não
tinha importância como contextura.
Os magníficos escritos de Tobias Barreto não se
ocupam do assunto em seu todo: são fragmentos
colossais, é verdade, por onde se poderia avaliar da
grandiosidade do mo numento a levantar; mas como
pedaços de história, desatacados uns dos outros, sem
conexão entre si, sem formarem um tecido contínuo e
completo, podem ser comparados a frutos exóticos, que
deixariam a boca do leitor cheia de cinza depois de
saborosamente devorados.
A razão é simples: a crítica de Tobias Barreto é
tanto mais admirável e encantadora quanto mais cruel e
desapiedada. Para provar o que digo, basta lembrar os
artigos Sobre os Fatos do Espírito Humano e o Atraso
da Filosofia entre nós, publicados no Jornal do Recife,
o primeiro em 1869 e o segundo em 1871.
Sílvio Romero pertence à família dos individualistas, dominados pelo forte sentimento da perso nalidade humana. O autor da História da Literatura
Brasileira é uma natureza semelhante ao autor da
Democracia na América, dirige e encaminha mais do
que explica e raciocina.
Hão de ver q eu sua obra é mais a orientação para
um fim do que a descoberta de uma origem: é uma obra
em que predomina mais o senso da direção do que o da
visão.
116
Comparando-o com Tobias Barreto, vemos que
este é um lúcido, que por trás dos fatos vê, compreende
tudo, afirmando a verdade como uma causa; Sílvio
Romero sente as transformações sucessivas da natureza,
põe-se à frente dos acontecimentos e afirma a verdade
como um efeito.
O primeiro explica como da lagarta sai a
borboleta, o segundo afirma convencidamente que a
semente se transformará em flor.
Se o primeiro possui essa calma, essa claridade
de espírito, que vai até a mais ampla filosofia, o
segundo tem essa sede, essa febre de propaganda, mas
da propaganda no bom sentido da palavra, como direção
para um ideal, qualidade que o torna um excelente
crítico.
Se nos fosse permitida ainda uma comparação,
nós diríamos que Sílvio Romero acompanha o processo
da natureza, caminha do simples para o composto, do
homogêneo para o heterogêneo; Tobias Barreto segue
uma ordem inversa, parte do particular para o geral, da
variedade para a unidade.
Estamos convencidos de que, se Tobias escre vesse uma história de nossa literatura, não considerar ia
os indivíduos senão como ponto de partida para uma
conclusão geral.
A História da Literatura Brasileira, porém,
simples e genérica em seu início, pouco a pouco se vai
diferenciando e especializando, passando do geral para o
particular, do meio para a raça, da raça para o indivíduo.
117
É por isso que no livro de Sílvio Romero há uma
como que aparente oposição entre a primeira e a se gunda parte: naquela o autor, se entrega a considerações
gerais, o indivíduo desaparece diante da raça, a raça
diante do meio, reduzindo-se tudo a uma simples
questão da fisiologia, ou melhor, de mecânica; neste
estuda os indivíduos, desenha caracteres, biografa per sonalidades, conta anedotas e até faz larga antologia.
Esta disposição prova o que dissemos: Sílvio
Romero, por mais preocupado que se mostre com as
influências da raça e do meio em que se desenvolveu a
literatura brasileira é, sobretudo, uma natureza individualista, dominada por um vivo sentimento da per sonalidade, por uma consciência nítida da dignidade
humana.
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 145-193).
NOTAS
(1)
A História e os Historiadores, Paris, 1888.
(2)
História da Literatura Brasileira, Introdução, pág. XIII.
(3)
René Wiorms, La Sociologie et le Droit.
(4)
Revista Brasileira, Tomo IV, pág. 297.
118
3.
TOBIAS BARRETO
As Questões Vigentes são mais alguma coisa do
que um livro notável, escrito com saber e arte por um
vigoroso pensador, que é ao mesmo tempo um brilhante
escritor: são um monumento para a literatur a brasileira,
simbolizam as sucessivas e múltiplas manifestações de
uma pena magistral, estereotipam a psicologia de uma
natureza genial, constituem uma obra tão grandiosa
como a alma de Tobias Barreto em seu movimento
progressivo, em suas diferentes metamorfoses, livrando se das cadeias e convenções correntes, e elevando -se as
mais altas regiões do pensamento, em que dominam
como reis no espaço e no tempo os Lucrécios, os
Dantes, os Shakespeares, os Goeths.
As Questões Vigentes formam a história autônoma do desenvolvimento de nossa literatura, pelo que
bastaria sua leitura para conhecer -se sua característica,
se seu autor as tivesse apresentado na ordem, em que
foram escritas; porém, natureza mais nobre do que
vaidosa, Tobias Barreto preferiu dispor sua obra de
maneira a constituir antes um monumento para a
literatura brasileira do que um pedestal de glória para
sua individualidade.
Portanto, a presente introdução, se não é filha tão
somente da necessidade, que sente um discípulo, de dar
expansão ao sentimento de afeição, que tem ao mestre,
119
também não pretende mais do que mostrar como e
quando nasceram as Questões Vigentes( * ).
Mas tanto bastará para conhecer-se a natureza
superior de Tobias Barreto, e a influência, que há exer cido sobre nosso movimento intelectual; para convencer-se de que é ele o regenerador de nossa literatura,
desbravando o terreno e lançando as sementes, que têm
produzido os mais belos frutos, para persuadir-se de que
não se trata simplesmente de um poeta, de um crítico ou
de um jurista, mas, sobretudo, de um filósofo adorável
da poesia, da crítica e do direito, notando -se em todas as
suas produções essa unidade de vistas, essa mecânica de
espírito, em virtude da qual todos os seus trabalhos se
prendem, se ligam, se combinam e formam um todo
harmonioso, de maneira que cada um deles não é senão
como um fragmento dessa grande alma, espécie de
câmara de árvore de natal, repetindo umas palavras de
Schopenhauer, iluminada, quente, alegre, no meio das
neves e dos gelos de uma noite de inverno.
O leitor então verá que nessa esquisita e
grandiosa vegetação, que constitui a vida literária de
Tobias Barreto mais de um botão tem rebentado, que,
depois colhido por mãos estranhas, há desabrochado na
mais bela flor, excitando a admiração e a volúpia
*
O presente escrito serviu de introdução às Questões Vigentes,
livro de que tinha razão para se orgulhar seu autor, e cujo nome só
desapareceu em virtude da nova organização, que Sílvio Romero
deu aos trabalhos de Tobias Barreto, que de filosofia passando
para os Estudos Alemães, o que era de jurisprudência para os
Estudos de Direito.
120
daqueles que receariam aspirar o perfume de uma página
assinada pelo ilustre pensador.
Como quase todas as naturezas geniais, Tobias
Barreto começou poeta. No princípio de sua vida,
quando ainda habitava a província de Sergipe, ver
versos, que nunca foram publicados, porém que ainda
hoje são repetidos como a produção mais espontânea e
característica do meio inculto e ao mesmo tempo sadio,
em que apareceram. É uma poesia simples, inspirada por
um vivo sentimento da natureza, sem o desespero triste
de Byron ou a fanfarra retumbante de Hugo, de quem
depois assimilou a forma, quando mais tarde veio
estudar o curso jurídico aqui no Recife, assimilação que
se explica menos pela afinidade do temperamento
meridional do poeta sergipano do que pelo período
guerreiro, por que passava o país. A ardente paixão pela
pátria se dava bem com o tom elevado da poesia
hugoana, que Tobias Barreto chegou mesmo a
ultrapassar para depois tornar -se natural, quero dizer,
para tornar-se Tobias Barreto mesmo, com todas as suas
qualidades e defeitos, dos quais, no entender de seu
mais sincero, dedicado e distinto admirador – Sílvio
Romero, o maior é baratear sempre e sempre seu talento.
A influência de Hugo, porém, não durou senão um
instante, livrando -se dentro em breve tempo o poeta de
todo o convencionalismo da forma, e readquirindo toda
a sua espontaneidade, caracterizada mais pela nota
vibrante do sentimento do que brilho cambiante da
imaginação.
121
Sob esta relação Tobias Barreto marca u’a nova
era para nossa literatura; é um poeta que tem o
sentimento de sua raça e o espírito de seu tempo; é o
nosso Shelley pela naturalidade e espontaneidade de
suas produções; sua poesia é uma fonte inesgotável de
inspiração e de amor; sua alma alada voa para as alturas
do pensamento como as águias para os píncaros dos
montes.
Tobias Barreto possuía, entretanto, muito o
sentimento de seu tempo para ficar poeta, para fazer da
poesia sua ocupação habitual; interrogou as ciências e
entreviu novos mundos na política, no jornalismo, na
crítica, na filosofia.
Uma vez começada sua peregrinação científica,
não parou mais, caminhando sempre para a verdade.
A fim de conseguir a tranqüilidade de espírito, de
que sente nec4essidade toda a natureza rica de vida
interior, deixou o Recife e se isolou na Escada.
Ali passou dez anos na companhia daquela, a
quem tinha ligado seu destino, e na convivência dos
bons livros alemães, de cujos autores, por diferentes
vezes, recebeu testemunhos de admiração, como este:
“Há muito que tinha desejo de dirigir-vos
algumas linhas. Eu vos admiro, eu vos venero, e isto na
minha idade quer dizer alguma coisa, pois que a
admiração e a veneração, que se consagram aos homens,
desaparecem com o tempo, quando já se tem acumulado
uma boa soma de túrbidas experiências. Do meio do
povo brasileiro, a quem eu estimo do mesmo modo que
122
sois um amigo do povo alemão, vós sobressais como um
gigante do espírito”. (1 )
Nada mais honroso nem mais justo para quem,
levado por uma sede insaciável de saber, aprendeu o
alemão consigo mesmo, e, não satisfeito com is to,
publicou jornais em língua tedesca numa pequena cidade
como a Escada!
Foi isolado na Escada que Tobias Barreto come çou seu magistral trabalho sobre o Poder Moderador, no
qual não se sabe o que mais admirar: se a superioridade
do talento, se a integridade do caráter do autor.
Naquele tempo era uma temeridade ir de encontro
aos três escritores, que se ocuparam com o Poder
Moderador, o Conselheiro Zacarias de Góes, o Visconde
de Uruguai e o Dr. Braz Florentino; mas pensando com
Huet que nosso século tem necessidade de todas as
coragens, que ele carece, antes de tudo, da coragem
intelectual, o solitário da Escada dissipou de tal sorte as
nuvens, em que se envolvia o assunto, que a arca santa
desapareceu como por encanto, e o rebelde foi acolhido
com entusiasmo, tal era a simplicidade da exposição, a
clareza da argumentação, a sinceridade da crítica.
Ao Poder Moderador prendem-se outros trabalhos, dados à luz em 1872: o Direito Público
Brasileiro, análise ao livro do Marquês de São Vicente,
e a Província e o Provincialismo, crítica ao livro de
Tavares Bastos – A Província.
De todas estas obras criticadas por Tobias
Barreto, a única que ainda hoje se lê, é a Província, que,
entretanto, pode ser tudo, menos um livro. A impressão,
123
que deixa a obra capital de Tavares Bastos é a de um
longo discurso dividido em capítulos.
Admita-se a palavra fácil e eloqüente do autor
com seus entusiasmos e ilusões de moço, mas sente-se
que o livro é despido de todo senso científico.
Na Província, ao lado de pomposas tiradas
oratórias, encontram-se apenas fracos e tíbios
raciocínios.
Em 1873 Tobias Barreto nada produziu, tão
grande foi a dor causada pela morte de sua mãe!
Em 1874 publicou o famoso Sinal dos Tempos.
Saíram apenas dez números; mas foram dez brasas
inflamadas, aplicadas à nossa comédia político-social.
Em 1875 deu à luz da publicidade seu primeiro
livro, que modestamente intitulou Ensaios e Estudos de
Filosofia e Crítica, obra notável pela profundez das
idéias, pela franqueza da crítica, crítica sincera de quem
tem bastante rigidez de caráter para exprimir
corajosamente suas predileções e antipatias.
A crítica puramente objetiva, como a compreende
Taine, não é fecunda senão procurando descobrir o nexo
de causalidade entre os acontecimentos históricos, mas
não como meio de seleção, aplicado às obras dos
contemporâneos.
Sob esta relação a crítica há de ser rigorosamente
subjetiva, forçosamente parcial, agindo o crítico com
todas as suas convicções e entusiasmos para eliminar as
irregularidades e monstruosidades literárias.
Nos Ensaios e Estudos há uma coisa digna de
toda a atenção: o segundo capítulo é um magnífico
124
ensaio de crítica religiosa, o que importa dizer que foi a
primeira palavra sobre o assunto no Brasil.
Nem se fale nas Bíblias Falsificadas, de Abreu e
Lima, ou na Igreja e Estado, de Saldanha Marinho, que
nada têm que ver com as ciências das religiões: são
meras obras de polêmica, em que seus autores se
mostram além de intolerantes, atrasados, acreditando em
falsos e verdadeiros deuses, atacando dogmas e cultos,
que servem para marcar as diversas metamorfoses, por
que tem passado o espírito dos povos, como as pedras
erráticas atestam as revoluções do globo terrestre.
Ocupa-se o segundo capítulo dos Ensaios e
Estudos com a realeza e o profetismo hebreu, “essas
duas forças que derramam, por seus combates, na vida
histórica dos judeus tão dramático interesse”. A um
espírito superior como Tobias Barreto não podia escapar
o mais original elemento da história do povo hebreu – o
profetismo, tão mal compreendido pelo rabinismo, que o
deturpou, dando como singularidade o que apenas foi
uma superioridade étnica.
Não há muito tempo James Dermesteter, refe rindo-se à História do Povo de Israel, de Ernesto Renan,
dizia que duas coisas fazem a originalidade e o poder de
atração da grande obra do famoso escritor francês. A
originalidade é ter feito do profetismo o pivot da
história de Israel; o poder de atração e a harmonia, que
salienta entre o coração dos profetas e a alma moderna
do século XX.
Note-se que o profetismo não é um fenômeno
exclusivo do judaísmo. Todos os povos antigos, escreve
125
Darmesteter, tiveram seus profetas, isto é, homens
falaram em nome de Deus ou dos poderes sobrenaturais.
O profetismo é um fenômeno da vida espiritual,
como o é a filosofia. Esta organiza as relações das
coisas no espaço, aquele regulariza as relações dos
acontecimentos no tempo. Assim como há um sentimento da ordem ente os sons, sentimento da harmonia
entre as linhas, o qual se traduz pela arquitetura, há
também um sentimento de conformidade entre os
acontecimentos, que se manifesta pelo profetismo, tão
cultivado entre os antigos, principalmente pelos semitas.
Ora. o profetismo não é a flor e sim a raiz mesma
do judaísmo. Jeová é invisível; mas não cessa de falar a
seu povo pela boca dos profetas. Os profetas israelitas
são os órgãos do pensamento e da vontade de Jeová. O
profeta, diz Darmesteter, é outra coisa que o padre, que
é um personagem sem grande originalidade, ministro de
um ritual estabelecido, cujo poder age por si mesmo,
sem que a pessoa do padre intervenha em coisa alguma.
O profeta é um homem possuído de Deus e por quem
Deus se revela aos homens.
O profeta israelita era o grande porta-voz do
pensamento e da vontade divina, não somente do ponto
de vista moral, mas principalmente do po nto de vista
civil e político.
Sua principal preocupação eram os negócios
públicos. Por isso foram comparados com razão a
tribunos do povo, e diz Colani que esta comparação é
justa no sentido de que eles tinham por fim esclarecer
126
Israel sobre seus verdadeiros interesses, e modificar a
marcha do governo pelo poder único da persuasão.
Nem sempre reina harmonia de vistas entre os
profetas, é verdade; mas todos eles pertencem a um
mesmo partido, todos eles advogam a mesma causa – o
progresso. O profeta israelit a não é um reacionário, um
apóstolo do passado, e sim um precursor, um missio nário do futuro.
O profeta antigo não se distinguia do revo lucionário moderno senão por ser mais pertinaz do que
este e porque era o que havia de mais nobre e mais puro
no seio da massa popular.
Era o profeta que, condenando os abusos e os
vícios contemporâneos, consolava o povo em seus dias
azíagos e inspirava-lhe esperanças acalentadoras.
O cristianismo é o complemento do judaísmo, é a
continuação desse movimento que se encontr a através
das religiões da Caldéia, da Assíria, do Egito, da
Fenícia.
O nabi tinha espalhado em Israel uma esperança
tão ardente em um salvador, em um Cristo, que este
devia necessariamente se produzir, e assim Jesus foi o
Deus de justiça, de piedade, de c lemência, de
misericórdia, de caridade, de que falam as profecias da
Bíblia.
Em 1876 Tobias Barreto começa u’a nova fase de
sua vida: deixa a publicística e a crítica, e se atira de
corpo e alma no jornalismo.
127
Bem poucos têm sido jornalistas como ele, bem
poucos têm manifestado uma tão grande vocação para a
imprensa periódica.
O solitário da Escada não foi no jornalismo um
lisonjeador das paixões públicas; mas uma espécie de
vidente, que lia no futuro como em um livro aberto no
presente.
Seu admirável talento sondava as profundezas das
correntes do dia, como levantava os arcanos dos
acontecimentos vindouros.
Em 1876 publicou o Povo da Escada e o Desabuso; em 1878 o Aqui para Nós e a Igualdade, da qual
apenas saiu um número, mais uma página solta que, pelo
arrojo dos conceitos políticos, vale bem a célebre ode de
Pushkin, sob o mesmo título; em 1778 e 1880 o Contra
a Hipocrisia, onde a cabeça luminosa do jornalista por
seus vastos conhecimentos brilha como uma estrela no
espaço.
Mas, coisa incrível, até o saber vale perseguição!
Na admirável obra de regeneração intelectual, que
arquitetava, Tobias Barreto não escapou ao ódio das
naturezas medíocres, e foram tantas as perseguições
movidas, que se viu forçado a deixar seu refúgio
intelectual e vir para o Recife.
Há muito que Tobias Barreto trabalhava com
todas as energias de seu talento para colocar o direito na
altura do espírito de seu tempo, há muito que se
esforçava sinceramente para “acomodar o direito às
exigências do saber moderno”.
128
Já em 1878 tinha escrito, na Província, na
Jurisprudência da Vida Diária, e no Contra a
Hipocrisia as brilhantes páginas, que mais tarde foram
reproduzidas nos Estudos Alemães sob o título de
Delitos por Omissão.
A Jurisprudência da Vida Diária, sob o ponto de
vista crítico e científico, é o menos importante de todos
os capítulos das Questões Vigentes; mas nem por isso
deixa de ter uma alta significação.
Em março de 1875 Sílvio Romero, por ocasião de
sua defesa de teses perante a Faculdade de Direito do
Recife, apresentou uma belíssima dissertação, na qual
citava o notável jurista alemão Von Ihering.
A novidade da citação causou espanto à
Congregação, e foi talvez essa uma das circunstâncias,
que concorreram para que contra o ilustre candidato
fosse instaurado um processo.
Tobias Barreto, que a uma extraordinária largueza
de vistas reúne uma prodigiosa generosidade de coração,
tomou a peito vingar, algum tempo depois, seu conterrâneo e amigo, e fê-lo, escrevendo aquelas brilhantes
páginas, onde respira-se um tão delicado perfume de
amizade, ao mesmo tempo que se trava conhecimento
com um dos mais ilustres jurisconsultos da Alemanha.
É assim com todos, e aproveito a ocasião para
declarar que me sinto tão orgulhoso quanto agradecido
pela defesa a mim feita perante aquela mesma
Congregação nos seguintes termos:
“A ciência do direito é uma ciência de seres
vivos; ela entra por conseguinte na categoria da
129
fisiofilia ou filogenia das funções vitais. O método, que
lhe assenta, é justamente o método filogenético, do qual
Eduardo Strasburger diz ser o único de valor e
importância para o estudo dos organismos viventes. Se o
leitor entende, tanto melhor para si; caso porém não
entenda, não é culpa nossa. Talvez nos perguntem: quem
é esse Sr. Eduardo Strasburger? Só podemos responder
que não é lente da nossa faculdade nem candidato à
deputação geral”.
Nos Delitos por Omissão, ao terminar, predisse
que, “persistindo nesse terreno, bem podia, depois de
alguns anos, vestir sua clâmide de criminalista”.
Não se iludiu: em março de 1881 publicou o
belíssimo trabalho sobre o Chamado Fundamento do
Direito de Punir, e em 1882, quando concorreu ao lugar
de lente substituto da Faculdade de Direito, apresentou
uma dissertação de direito criminal, que é um modelo de
aplicação dos modernos processos científicos a fenômenos da ordem jurídica.
Mas em agosto deste mesmo ano foi que a
clâmide do criminalista se mostrou em todo seu fulgor
com a substanciosa análise do artigo 10 do velho Código
Criminal.
Dos Menores e Loucos ressalta, como já uma vez
notei, a idéia completamente original, exclusivamente
própria de Tobias Barreto, considerando o crime não
tanto um caso de patologia ou atavismo, mas antes uma
mostruosidade ou irregularidade, que deve ser
eliminada por meio da pena, e a pena como um meio de
seleção jurídica, pelo qual as monstruosidades ou
130
irregularidades sociais vão sendo excluídas do
organismo comum.
Se a ordem é o fim supremo a que tendem todas
as categorias de seres, especialmente os homens,
aqueles que infringem esta ordem, principalmente os
criminosos, são irregularidades, monstruosidades, que
devem desaparecer como notas díssonas no concerto
universal da natureza, concerto de que a sociedade
humana procura se aproximar.
Tobias Barreto, porém, não parou na teoria da
pena, foi adiante, escrevendo em 1 881 a Nova
Instituição do Direito, em 1882 o Direito Autoral, que
causou espanto aos nossos juristas como uma espécie
nova, que nunca houvesse aparecido, e em 1883 a
célebre oração acadêmica, que lhe valeu uma longa série
de insultos e calúnias por parte d a imprensa clerical do
Maranhão.
A Nova Intuição do Direito é a concepção
darwinico-haeckeliana no mundo jurídico.
O direito “não é um filho do céu”, perfeito e
acabado em si mesmo, fora do desenvolvimento
universal: mas um fenômeno histórico, sujeito a uma
metamorfose constante, a um fieri perpétuo. E além de
um fenômeno histórico, que varia no tempo e no espaço
segundo uma infinidade de circunstâncias, o direito é
filho da luta, princípio superior, que preside o
desenvolvimento de todos os indivíduos e de todos os
acontecimentos.
131
Antes da Nova Intuição do Direito nada se
encontra entre nós, que mostre o direito invadido pelo
espírito darwiniano. (2)
Quanto ao chamado Direito Natural, é uma
criação da arte humana e não uma produção espontânea
da natureza.
A etnografia, estudando os elementos de cultura,
que se tornaram partes integrantes da psique humana,
mostra o homem inventando seu direito, como inventou
suas armas ou seus instrumentos de trabalho. A natureza
não conhece direito, como não conhece polidez.
Em 1883, banido o compêndio das Faculdades de
Direito, foi publicado um programa, no qual seu autor,
o dr. José Higino, elevando-se um tanto acima da rotina,
considerava o homem como uma resultante dos três
reinos, mineral, vegetal e animal, e reconhecia q ue as
ciências formam todas um vasto organismo, mantendo
entre si as mais estreitas relações; mas, em vez de se
limitar a subordinar o estudo do direito ao mecanismo
da ciência em geral, procurou sujeitá -lo aos pretensos
princípios da chamada Sociologia.
Com relação a este programa, que teve de explicar em 1884, quando regeu a cadeira de Direito
Natural, foi que Tobias Barreto escreveu as Notas a
Lápis sobre a Evolução Emocional e Mental do Homem,
e as Glosas Heterodoxas a um dos Motes do Dia, ou
Variações Anti-Sociológicas.
A questão da evolução mental e emocional, a que
se poderia acrescentar a volicional, porque a vontade
humana também é progredido, ou é simplesmente
132
“ociosa”, ou inteiramente “insolúvel”: ociosa, se
investigar-se “se tem havido” uma evolução das idéias e
sentimentos? Insolúvel se indagar -se como tem havido
esta evolução.
Com efeito, hoje que já se possui uma história da
vida sideral – Astronomia, uma história da vida mineral
– Geologia, uma história da vida vegetal – Botânica,
uma história da vida animal – Zoologia, uma história da
vida humana – Antropologia, lançando esta última os
mais vivos clarões sobre as diferentes causas, que têm
modificado e aperfeiçoado o sistema nervoso do homem,
sobre os diversos elementos constitutivos da cultu ra
psíquica em toda a superfície do globo, seria ridículo se
indagar se tem havido um desenvolvimento da inteligência e da sensibilidade.
A questão, porém, muda de face para se tornar
insolúvel, quando se pretende saber como se operou a
evolução das idéias e dos sentimentos.
Com efeito, escrevíamos, há alguns anos: “se
ainda hoje está por acabar-se a história morfogênica e
morfofílica dos seres vivos, de maneira que ainda não se
pôde explicar como de um organismo amorfo saiu por
evoluções contínuas a beleza plástica da mulher; se é
terreno ainda menos explorado a fisiogenia bem como a
fisiofilia, de tal sorte que seria impossível explicar
como dos movimentos monótonos dos animais inferiores
proveio a graça feminina com todos os seus encantos e
seduções, seria loucura pretender fazer psicogenia e
psicofilia, explicando como se tem operado a evolução
mental e emocional do homem”.
133
Mais proveitoso seria investigar se tem havido
uma evolução volicional, se a cadeia dos para que tem
progredido na série dos porque, se ho homem as cxausas
finais têm adquirido preponderância sobre as causas
eficientes.
Ainda mais complicar-se-ia o enigma, pretendendo-se levantar o véu, que oculta o futuro, para se
determinar até onde aumentará o poder do homem sobre
a natureza, até o nde melhorará seu destino, que idéias e
sentimentos prevalecerão nas gerações vindouras, em
que sentido deve ser dirigida a marcha da humanidade
para o futuro, quais os elementos de civilização que
substituirão e quais os que desaparecerão. São questões
interessantes, mas de bem difícil solução.
Mais fácil seria indagar se a idéia e o sentimento
têm marchado paralela e sincronicamente, se existe
homocronismo entre o desenvolvimento mental e o
emocional.
Os fatos são pelo anacronismo sentimental: enquanto muita idéia se tem apagado do céu do pensamento, as primeiras emoções do homem continuam a
cintilar-se n’alma.
Chegando a este ponto das Questões Vigentes, o
leitor verá o que é ter um profundo talento de obser vação, um delicado tato crítico; admirará a s agacidade
com que Tobias Barreto explica um grande número de
fenômenos até hoje mal interpretados; saberá como deve
ser compreendido o padre, que prega o bem e pratica o
mal, o materialista, que pretende conhecer o segredo de
todo o universo e receia entrar à noite em um cemitério,
134
o amante, que conhece todo o seu aviltamento e,
entretanto, vai onde o leva a paixão.
Mas de todos os capítulos das Questões Vigentes
aqueles em que o autor mais abala, mais empolga, mais
encanta o espírito do leitor, são as Notas Heterodoxas
ou Variações Anti-Sociológicas e a Irreligião do
Futuro.
Tobias Barreto pensa que a Sociologia é “apenas
o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco
realizável”.
O universo inteiro vive numa transformação
contínua, num fieri perpétuo; mas à proporção que a
natureza evolui, passando do homogêneo, vai perdendo
a estabilidade e a fixidez, e a ciência se torna pouco a
pouco irrealizável.
A instabilidade dos estados está na razão direta
da complexidade dos fenômenos, e é por isso que a
proporção que os fenômenos se multiplicam, passando
de estados homogêneos a estados heterogêneos, a
possibilidade de ciência vai desaparecendo, e a
necessidade de ideal surgindo.
Como se vê, a instabilidade dos fenômenos de
ordem superior não é coisa estranha à economia geral da
natureza, e a temeridade, senão impossibilidade, da
constituição de uma Sociologia nasce daquela instabilidade, filha da grande heterogeneidade dos estados
superiores da evolução universal.
As Notas Heterodoxas se ocupam em primeiro
lugar com o debate entre os partidários e os adversários
135
da liberdade, assunto que tem merecido especial atenção
da parte dos sociólogos.
Para estes a liberdade é uma ilusão, desde que
todos os fenômenos são regidos por leis; daí a
necessidade de um determinismo para a vontade como
para qualquer fenômeno físico.
A verdade, porém, é que a vontade, como diz
Wundt, tem permanecido até hoje “como um ponto
negro no meio da brilhante luz das causas e efeitos”.
Os sociólogos não vão com a experiência, quando
pretendem submeter a vontade ao princípio da
causalidade. Interrogada a experiência ela não nos diz
senão uma coisa: é que existe um fator pessoal, causa
imediata de nossas ações e das quais os motivos não são
senão causas mediatas.
Nesse ponto o vigor do pensamento de Tobias
Barreto está na altura do primor da expressão:
“Para o monismo filosófico, o movimento e o
sentimento sendo inseparáveis, dá-se entre eles somente
uma questão de grau: onde mais domina o movimento,
aparece então a causa eficiens; onde mais o sentimento,
prepondera também a causa finalis. O mundo não é só
uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo
acanhado, mas ainda uma cadeia, uma série de para
ques, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apóiam,
se limitam que saem uns dos outros. A intuição
mecânica porém não quer saber do que vai além da
simples concatenação de causas e efeitos.
O monismo naturalístico, que representa a
unidade de vistas adquiridas no domínio das ciências
136
naturais, está preso, como elas, à exclusiva consideração
da causalidade, que é a lei capital da empiria, o
princípio gerador de toda experiência”.
É desta distinção entre motivo e causa, aquele
consciente e finalístico, esta cega e fatal, que o autor
parte para refutar o mecanicismo de Haeckel, reabilitar
o monismo de Kant e mostrar a impossibilidade de
constituir uma Poliologia científica pelo arbitrário, que
a liberdade introduz na sucessão dos acontecimentos.
Além da liberdade há uma outra dificuldade, com
que lutam os sociólogos: é a aparição dos grandes
homens, que até hoje tem permanecido como um enigma
na sucessão dos séculos, Mas, quando mesmo a
determinação das condições, em que aparecem os gênios
não ultrapasse os limites do saber humano, ainda assim
a constituição de uma Sociologia seria impossível,
porque não se podem prever todas as transformações e
resultados, que produzem as invenções e descobertas.
Nem se diga que tendemos para restringir o
domínio da liberdade e das ações individuais, ampliando
o da lei e das causas gerais, porque dia a dia surgem
novas descobertas e invenções, e a parte do imprevisto e
inadivinhável nas invenções humanas se torna cada vez
maior.
Além disto, a civilização tal como é geralmente
compreendida, tende mais e mais a restringir a ação da
natureza. Com este conceito, que lhe é próprio, e que é
novo, Tobias Barreto dá a chave de uma infinidade de
enigmas, que eram um tormento para outros, que não
achavam meio de sair-se da dificuldade senão con137
denando instituições sociais, como hospitais, asilos,
misericórdias. O próprio Darwin não escapa aos rudes
golpes do crítico, que logo em seguida se mostra o mais
liberal e tolerante dos pensadores nas belíssimas
reflexões, feitas sobre o acaso e Deus. Sem entrar em
considerações metafísicas sobre a natureza de um e de
outro, põe em relevo o papel importante, que ambos
representam na vida social, como forças ideais.
Mas relativamente a estas duas forças sociais,
sendo maior os erros e injustiças sobre o papel da
divindade, Tobias Barreto aproveitou a ocasião do
aparecimento do livro de Guiau – a Irreligião do Futuro
– para descarregar mais rudes golpes sobre a Fronteira
da Sociologia, de que fala Froebel.
O ensaio escrito a propósito do livro de Guiau é
uma produção toda nova, como gérmen de uma filosofia
do futuro, como uma aspiração da alma contemporânea,
como uma satisfação à necessidade de afeição, que exis te em nossa natureza, como uma obra de paz entre a
afirmação e a negação da divindade, como uma concepção, que, se não nos aponta um futuro, cuja perspectiva
nos deslumbra, inspira-nos uma tolerância, que será a
verdadeira vitória da civilização sobre a barbaria.
Quaisquer que sejam os progressos realizados
pelo espírito humano, por mais que tenha aumentado o
poder do homem sobre a natureza, por mais que o império das leis gerais t enha restringido o domínio das
vontades individuais, a verdade é que a religião continua a representar papel preponderante na maioria dos
espíritos.
138
Não raras vezes ao lado da negação intelectual
está a afirmação do sentimento, não raras vezes no
espírito de um livre pensador está a alma de um
religioso.
Não se trata de saber se os benefícios da religião
são ilusórios ou caramente comprados, o fato é que o
homem não pode desprezar o que passa os limites de sua
observação nem renunciar o que constitui sua fé.
Aí estão os trabalhos de François Lenormant –
Origines des l’Histoire e Traduction de la Genese, de
Pressensé – L’Ancien Monde et le Christianisme, de
Maurice Vernes – L’Histoire des Religions, de Gustave
d’Eichthal – Melanges de Critique Biblique, de E.
Ledrain – La Bible, tomo 1 e 2, Lres Juges, Samuel,
Rois, Esdras, Néhémie, Chroniques, Macchabées, do
abade G. Fremont – Jesus-Christ Attendu et Prophétisé,
de H. Derenbourg – L’Islamisme et l’Histoire des
Religions, de Goblet d’Avilla – Introduction à l’Histoire
générale des Religions, de Josef Koup – Zur Judenfrag,
de James Darmesteter – Les Prophetes d’Israel, de
Guiau – L’Irreligion de l’Avenir, e tantos outros livros
notáveis de brilhantes escritores, ao mesmo tempo
profundos críticos, pensadores ou filósofos, para que
não nos seja permitido desconhecer toda a importância
do problema religioso, não, como simples assunto de
curiosidade, capaz de interessar um certo número de
espíritos, mas como manifestação de uma tendência
humana, que se afirma numa direção especial, da mesma
sorte que o movimento científico, artístico, jurídico.
139
Existe um movimento religioso, contra o qual são
impotentes os prejuízos de seita ou os preconceitos
antidogmáticos, e o catolicismo ortodoxo oferece o mais
notável exemplo de um movimento religioso.
Qualquer que seja o modo de pensar sobre o valor
dogmático do cristianismo, não se pode deixar de
reconhecer que o catolicismo é o fato capital da história
do Ocidente.
No desenvolvimento da civilização ocidental o
catolicismo é o fato histórico por excelência, encerrando
em si uma força de expansão, que desafia todas as
dificuldades e obstáculos. Ve-lo-emos não somente se
impondo às consciências, modelando à sua imagem
indivíduos, famílias, sociedades, mas ainda esforçando se por elevar à altura de sua moral o nível das raças
inferiores.
Hoje o movimento religioso não interessa somente aos crentes ou aos céticos, aos adversários ou aos
fiéis de uma seita, interessa aos epigrafistas, aos etnó logos, aos filósofos, aos estudiosos em geral, a todos
que se esforçam pelo desenvolvimento intelectual e
moral das sociedades.
Não há muito tempo uma revista religiosa, depois
de frisar o progresso do catolicismo na América e do
protestantismo na França, concluía nos seguintes
termos: “O importante não é o progresso de uma e outra
Igreja, é o progresso evidente na concepção de uma vida
verdadeiramente religiosa”.
Este espírito de tolerância entre as diversas
igrejas, que não suprime a fé, mas a torna simplesmente
140
mais humana, é o traço caracter ístico de nossa época,
importando um verdadeiro progresso a bem do
sentimento religioso.
E, como se não bastasse o sentimento da
tolerância para tornar uma realidade o sonho de Jacob,
profunda metamorfose se operou na concepção do
dogma entre os católicos.
Já o dogma não é mais uma forma inerte, imóvel,
como na ortodoxia oriental; pelo contrário, é o Verbo
em ação.
Nesta concepção do dogma inseparável da moral,
e como esta participando da vida, vai toda diferença
entre o catolicismo e a ortodoxia oriental, e aí está
talvez o segredo da extraordinária força de expansão da
igreja católica, a explicação de seu humanismo vivaz e
progressivo.
Destinada à vida, a religião não pode ser reduzida
à simples tradição; ao lado desta deve estar a autoridade
suprema do soberano pontífice como intérprete do
pensamento divino em ação, e deste modo concorrendo
para a grandiosa obra de unificação da espécie humana
em Deus único, que tornou o homem capaz de conhecê lo e de imitá-lo.
Diz-se que o cidadão e o crente vivem em luta, e
é na independência recíproca das duas personalidades
que está o remédio. Incompetência religiosa do Estado,
incompetência política da Igreja, eis a verdadeira
fórmula do progresso religioso.
Mas o Estado pode ser absolutamente incompetente em relação aos negócios da Igreja, e nem por
141
isso a Igreja deixará de se relacionar com todos os
fenômenos sociais. “Colombo, diz Scherer, não pode
desembarcar na América, Copérnico não pode mudar a
astronomia, Cuvier não pode reconstruir fósseis, Bopp
não pode dissertar sobre a composição dos poemas
homéricos, ninguém pode tocar em uma questão, fazer
uma descoberta, propor uma hipótese, sem que o dogma
seja interessado”.
É falsear inteiramente a doutrina católica pretender que a Igreja abandone toda ação sobre as co isas
da terra, renuncie toda direção sobre as forças sociais.
“Seria exigir que o Sinai se calasse, que Deus se
eclipsasse, que Jesus Cristo se perdesse na multidão
como um homem comum”.
Como remate de todos os estudos anteriores
figura a Recordação de Kant.
No Brasil bem poucos são os que podem ser lidos
em questões de filosofia além de Tobias Barreto, cujos
escritos são, entretanto, numerosos, como provam o A
Propósito de S. Tomaz de Aquino na Regeneração, de
1868, Sobre os Fatos do Espírito Humano e A Força
Motriz no Jornal do Recife, de 1869, a Theologiae
Rationalis Confulatio na Crença, de 1870, o Atraso da
Filosofia entre Nós no Jornal do Recife, de 1871, e
muitos outros indicados por Sílvio Romero na História
da Literatura Brasileira.
A Recordação de Kant, porém, é o mais
importante de seus trabalhos filosóficos como exposição
clara e lúcida da filosofia alemã nas diversas fases de
seu desenvolvimento, como justa e apurada crítica da
142
filosofia francesa e especialmente do positivismo de
Augusto Comte, como reabilitação da metafísica de
Kant, e sobretudo, como manifestação de elevado senso
filosófico, opondo ao inconsciente de Jartmann e ao
mecanicismo de Haeckel o monismo largo e e fecundo
de Noiré. (3 )
Agora que o leitor já sabe o que são as Questões
Vigentes, como foi arquitetado este gigantesco
monumento de nossa literatura, que exigirá mais para
curvar-se reverente perante o vulto majestoso de Tobias
Barreto?
Estilo?
Ninguém como o autor das Questões Vigentes
possui o dom da expressão: por um gesto, po r uma
palavra, faz do leitor e do ouvinte um cúmplice. Dele
pode-se dizer o que de Settembrini afirmou De Sanctis:
“possui um estilo pessoal como a própria fisionomia,
que ninguém pode reproduzir; um estilo todo sentimento
que se comunica ao pensamento e lhe interdiz a
imparcialidade, fazendo-o cúmplice das emoções
ardentes, tornando-o batalhador e apaixonado, como se
o cérebro descesse ao coração e lhe tomasse as
pulsações”.
Entretanto, Tobias Barreto não se distingue
somente pela construção estética do pe ríodo, mas pelas
mil palavras e expressões novas, com que sabe embelezar e enriquecer nossa língua. Com seu estilo nossa
língua não se imobiliza, como se dá com a maioria de
nossos escritores; pelo contrário, cresce, desenvolve -se,
143
aperfeiçoa-se, aprimora-se pela assimilação de novas
expressões.
Um ponto interessantíssimo da História da
Literatura Brasileira, é aquele em que Sílvio Romero se
ocupa das palavras e frases aladas, criados por Tobias
Barreto.
Sob a ação da pena de nosso magistral escritor
uma grande inovação se tem operado em nossa língua,
modificando-se muitas palavras e transformando -se ao
mesmo tempo sua significação.
Entretanto, é difícil de conceber-se um estilo
mais simples e natural: cada palavra tem seu lugar certo,
próprio, sua significação rigorosa, matemática, que
exclui toda e qualquer alteração, toda e qualquer
substituição.
O estilo de Tobias Barreto em nada se parece com
esta pedantesca ostentação de vocábulos, com esta
estranha exibição de frases, em que se esgotam tantos
espíritos, que parecem desconhecer que a primeira
qualidade de um escritor deve ser poupar a atenção do
leitor, não fatigando-o com ornamentos parasitas, que
não servem senão para encobrir a vacuidade das idéias.
Em todas as suas produções vê-se que não se trata
de um escritor, cuja preocupação seja a indagação da
forma; e sua prosa vigorosa e vibrante, toda espontaneidade e estímulo, vivifica o espírito, rejuvenesce o
sentimento, é força e luz ao mesmo tempo, fonte de
serenidade e reflexão.
E digo que o estilo de Tobias Barreto é uma fonte
de reflexão, porque não só desperta o pensamento,
144
evocando idéias, como também obriga o leitor a
descobrir mil relações entre as numerosas e diversas
idéias sugeridas.
Essas relações podem escapar aos espíritos pouco
compreensivos; mas constituem a suprema alegria
daqueles que se ocupam em sondar todas as riquezas de
uma natureza genial.
Nestas condições compreende-se que Tobias
Barreto não seja um escritor popular, sendo o nosso
maior vulto literário. O público não é acessível s enão à
retórica, que gira em torno de um saber rudimentar,
fundo da razão comum.
Uma outra excelente qualidade a notar no estilo
de nosso prosador é a construção do período com uma
tournure toda alemã, prendendo até ao fim da frase a
atenção do leitor, que deste modo é forçosamente
obrigado a pensar à medida que lê.
É pena que o estilo de Tobias Barreto seja tão
pessoal, que ninguém possa imitá-lo, porque aqui a
imitação seria um grande benefício para nós,
acostumados à construção francesa, que pensa pelo
escritor e dispensa o leitor de refletir. (4)
Reformador no círculo inteiro dos conhecimentos
humanos, na poesia, na crítica, na política, na filosofia,
Tobias Barreto não o é menos no estilo. Nem se devia
esperar outra coisa, porque a linguagem sofre a
influência do pensamento como o vegetal a do terreno,
em que se desenvolve. Uma língua, que se imobiliza, é
uma literatura, que se esteriliza.
145
Tal é a obra gigantesca de quem nem a ma turidade, nem a intolerância, nem a perseguição
conseguiram fazer desaparecer esse vigor e esse calor de
mocidade, que rejuvenescem o espírito e o coração no
meio da indiferença, que nos mata, ou do desfa lecimento, que nos atrofia.
Ainda não chegou a hora da apoteose de Tobias
Barreto; mas virá: a respeito de glória escreveu Sêne ca
em sua linguagem de bronze que a glória segue tão
infalivelmente o mérito como a sombra segue o corpo,
posto que ela marche como a sombra, ora adiante, ora
atrás.
Ao autor das Questões Vigentes está reservada
uma glória póstuma; mas esta será tanto maio r quanto o
sol do pensamento brasileiro se achar mais avançado na
trajetória do progresso.
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 195-235).
NOTAS
(1)
Carta do Dr. Lange.
(2) O discurso pronunciado pelo Dr. Tavare s Belfort, a 16 de
novembro de 1882, além de posterior, não é um trabalho original.
Lendo-se a peça como que se ouve falar Tobias Barreto com toda
a sua largueza de vista e com todo seu vigor de expressão.
O Dr. Tavares Belfort, porém, era um espírito sup erior;
tanto no campo abstrato das ciências, como no domínio concreto
das letras.
146
(3) Já se vê que muito injusto foi o sr. Garcia Merou, quando
em seu El Brasil Intelectual nega a Tobias Barreto capacidade
filosófica, a respeito do que tive ocasião de escrever:
O trabalho que publicou Sílvio Romero na Revista Brasileira, sob o título Classificação dos Fenômenos em Sociologia
ou Teoria das Criações Fundamentais da Humanidade, é um
desmentido cabal do preconceito que o horizonte intelectual
brasileiro não se estende aos domínios da filosofia. Não possuí mos, é a linguagem comum, senão pseudo-filósofos, sem a vocação e cultura necessárias, espíritos sem originalidade, sem
feição própria, sem expressão característica, os quais com suas
acanhadas e frívolas produções não fazem senão dar testemunho
de nossa miséria intelectual, relativamente a tão elevada mani festação do pensamento humano.
Note-se que foram Tobias Barreto e Sílvio Romero os pri meiros a certificar nossa inópia em matéria de filosofia, cer tificado de que hoje se servem contra eles os próprios virtuosi
estrangeiros que se têm ocupado de nossa vida espiritual.
Ainda ultimamente escrevia o Sr. Martin Garcia Merou em
El Brasil Intelectual: “O que acho é que nada do que diz Tobias
Barreto é uma novidade para os espíritos cultos de nossa época,
para os mais ou menos ilustrados que tenham freqüentado
bibliotecas e estejam um pouco ao corrente do movimento das
letras da Europa. O que desejaria achar nele não é o que dizem
Ewald, Hartmann, Jellinek, Ranke e outros, o que me é fácil
averiguar, lendo suas obras, mas alguma coisa de original, de
nativo, tirado de sua própria substância...”
A Sílvio Romero não menos perfidamente se contesta ca pacidade filosófica. Seus trabalhos, sempre interessantes, inst rutivos, proveitosos, são, entretanto, increpados de carência de
sistematização, de falta de unidade de vista, de ausência de plano
filosófico.
“No seu conjunto, afirma o crítico argentino, a obra do Sr.
Romero apresenta um quadro colorido da vida psíqui ca de sua
pátria, desde a época da conquista até os nossos dias. É a mais
particularizada e extensa que sobre a matéria se haja no país
escrito. Revela seu autor uma inteligência poderosa, um amor
apaixonado das letras, uma independência de juízo e um valo r
moral que inspiram respeito, Mas, sem embargo, acabo de relê -la
147
com atenção, e reconhecendo todas estas condições, ela me deixa
no espírito um vazio, me parece confusa e pouco ponderada, me
dificulta construir mentalmente o vasto todo que procurou animar
com o brilho de sua palavra cálida e vibrante”.
Mas como conciliar a falha apontada com a “ação fecunda”,
que “em nossas letras”, com a influência direta, que “em todo o
nosso movimento intelectual” tem exercido a obra de Sílvio
Romero, “acontecimento literário de primeira ordem”, no dizer de
José Veríssimo?
A História da Literatura Brasileira não se tornou tão
fecunda senão pelo que ela em si contém do que os alemães
denominaram Ideenkunden, expressão que, em seu verdadeiro
sentido, não significa outra coisa senão filosofia.
É preciso não esquecer que hoje filosofia já não quer dizer
ciência do absoluto (metafísica), nem explicação do universo
(cosmogonia), nem qualquer dessas grandes sistematizações
conhecidas pelos nomes de seus autores (darwinismo, c omtismo,
spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina mental,
sobre a qual se apóiam todas as ciências constituídas e por
constituir.
Acreditavam os posivitistas que bastava uma classificação
das ciências constituídas para se ter a chave de todo o saber
humano. Mas definir o objeto das ciências, traçar os limites de
suas investigações, subordinar suas questões a um princípio de
coordenação, a um processo lógico, não é tudo, quanto se tem em
vista além dos conhecimentos adquiridos o progresso do lab or
humano, a descoberta de novas verdades, a exploração de mundos
desconhecidos. É preciso, além do que já é conhecido, dar conta
do que resta conhecer e do modo por que há de ser conhecido.
Somente deste modo se terá essa Summa Sciencie, conforme
sonhou Leibnitz, em substituição à Summa Theologiae de S.
Tomaz.
O problema fundamental da filosofia é a teoria do real e do
ideal. Descartes, escreve Arthur Schopenhauer, passa com direito
como pai da filosofia moderna: antes de tudo, e de um modo geral,
porque levou a filosofia a sustentar -se sobre seus próprios pés,
ensinando os homens a fazerem uso de sua própria cabeça em
lugar da qual funcionaram até ele de um lado a Bíblia, e, de outro
Aristóteles; porém mais particularmente, e num sentido mais
restrito, porque foi o primeiro que apanhou o problema em redor
148
do qual gira desde então toda a filosofia: o problema do ideal e do
real, isto é a questão de saber o que há de objetivo e subjetivo em
nosso conhecimento, ou, por outras palavras, o que é preciso
atribuir a nós ou às coisas diferentes de nós. Eis o problema e
desde que ele foi posto, há 200 anos, o esforço principal dos
filósofos tem sido distinguir nitidamente por uma linha de de marcação bem justa o ideal, isto é, o que pertence a nosso
conhecimento com o tal, do real, isto é, o que existe indepen dentemente de nosso conhecimento, e estabelecer assim de um
modo estável sua mútua relação.
Pois bem, nos livros de Sílvio Romero, e especialmente na
História da Literatura Brasileira, a questão do real e do ideal tem
sido tratada de um modo todo original, exclusivamente próprio do
regenerador do nosso movimento intelectual, sendo considerada
não do ponto de vista da psicologia puramente individual, como
praticaram Malebranche, Leibnitz, Spinoza, Berkley, Locke, e até
Schopenhauer, mas de ponto de vista da psicologia social da
Volker-Psicologie.
A filosofia de Sílvio Romero é o que se poderia denominar
teoria psicológica do processus social, estudando os fenômenos
sociais à luz da psicologia coletiva, inter-individual.
É a psicologia que nasce do contrato dos indivíduos entre si,
psicologia diversa da que resulta das relações intra-cerebrais em
um mesmo indivíduo.
Tobias Barreto tomará a si a tarefa de estudar a questão pelo
lado da psicologia fisiológica, orgâ nica, puramente individual,
considerando o ideal e real como assunto exclusivamente intracerebral, tarefa que desempenhará magistralmente, na Recordação
de Kant, o mais importante de seus trabalhos filosóficos, dissemos
na introdução às Questões Vigentes de Filosofia e de Direito,
como exposição clara e lúcida da filosofia alemã nas diversas
fases de seu desenvolvimento, como justa e apurada crítica da
filosofia francesa e especialmente do positivismo, como reabilitação da Crítica da Razão Pura, como manifestação de alevantado senso filosófico, mostrando todo o valor da teoria do
conhecimento humano.
A teoria do conhecimento, conforme nota Lachelier, dá
lugar a dois estudos distintos: um psicológico, que tem por objeto
a engrenagem de nosso mecanismo representativo, e outro lógico,
149
que tem por fim indagar as relações dos fenômenos com o
pensamento.
Dentre os discípulos de Kant uns atribuem uma combinação
artificial ao mecanismo do pensamento com o exagerado aparelho
das instituições e dos conceitos a priori; outros entendem que é
preciso restringir o domínio do a priori e explicar o conhecimento
por uma combinação menos artificial que a das formas ou
categorias do pensamento.
Assim Fichte e Hegel entendem que a filosofia deve vir de
um ponto mais elevado que o das simples formas do pensamento e
das diversidades de intuição, isto é, deve vir das funções, das
atividades internas que são a essência mesma do pensamento.
Que será, porém, esta atividade interna do pensamento? Será
um modo especial de crer alguma coisa dos objetos, alguma coisa
que existe independentemente de toda experiência, alguma coisa
de imediatamente certo e necessário, que não se acorda com os
dados da experiência, conforme entende Spir, ou não será senão
uma função, que só se desperta ao contato da experiência, porém
que traz em si mesma uma certeza imediata e absoluta?
“Não chegaríamos nunca a conceber o princípio de
identidade, diz Lachelier, se a intuição imediata de nossas
representações não nos oferecesse objetos constantes, nem o
princípio de razão, se não achássemos na experiência objetos
iguais entre si, ou pelo menos sensivelmente iguais. Esta condição
empírica de formação das leis lógicas não tira coisa alguma a seu
caráter de aprioridade”.
Mas o pensamento não se satisfaz em n ão se contradizerem
os dados da experiência, quer descobrir entre eles uma ligação,
uma coordenação. Tal é a função primordial do pensamento, e o
princípio de razão. A igual a B, B igual a C, logo A igual a C, não
é senão a expressão mais simples desta fun ção.
É uma necessidade do espírito exigir que os fenômenos se
encadeiem, sejam conexos entre si.
Mas esta conexão existe realmente, isto é, aquela neces sidade do espírito corresponde a uma realidade entre os dados da
experiência?
Para Wundt, esta reali dade existe efetivamente, há conexão
entre os dados da experiência, e então o mecanismo do espírito é
antes um aparelho que ilumina a realidade existente do que um
150
modelo, sobre o qual é calcada uma ordem de coisas, que, se pode
dizer, não existia antes dele.
Daí a necessidade de um novo conceito a priori, além das
funções lógicas que constituem a essência do pensamento, e que é
por assim dizer, o support daquela conexão.
Para Wundt este novo conceito é o de substância, que não se
confunde de maneira alguma com a noção de coisa.
A coisa é um complexo de fenômenos relacionados entre si,
e, por conseguinte, condicionados, ao passo que a substância
existe por si, de um modo incondicionado, e portanto, absoluto.
Variando sempre, as coisas persistem distintas umas das
outras; além disto, as variações, que elas sofrem, são sempre
filhas umas das outras. A substância, porém, é sempre idêntica a
si mesma no espaço e permanente no tempo.
A relação entre a substância (incondicionada) e as coisas
(condicionadas) se não é uma relação de causa e efeito (científica),
nem por isso deixa de ser uma função lógica (metafísica), que não
pode ser desprezada pela verdadeira filosofia.
Em face da Recordação de Kant sente-se toda a injustiça do
que escreveu o Sr. Garcia Merou em relação aos Estudos Alemães:
“Não é este livro uma explicação do pensamento alemão, uma
síntese alemã, nem sequer um alegado da cultura germânica,
oposta à cultura latina”.
Mais do que como esboço histórico das teorias alemães ou
arrazoado em favor da cultura germânica vale a Recordação de
Kant, reabilitando a Crítica da Razão Pura, o cimo que domina
todo o horizonte do pensamento filosófico moderno.
A chave do saber real, positivo, é a teoria do conhecimento,
quando estuda o mecanismo do pensamento e indaga o critério da
certeza.
A razão de ser da verdadeira filosofia é a resposta à questão
de saber o que o espírito humano possui de positivo, quer como
certeza imediata, como função lógica, como lei do pensamento,
quer como relação fenomênica, que se c onstata senão pela
experiência, o que constitui objeto da ciência propriamente dita.
Separando os domínios da metafísica e da ciência, sem,
entretanto, sacrificar uma a outra, é que o sistema kantesco se
pode dizer a disciplina mental por excelência, e foi para mostrar a
evidência que a Crítica da Razão Pura é a mais elevada expressão
151
da filosofia que Tobias Barreto escreveu a inolvidável Recordação
de Kant”.
(4) Há atualmente na França um grupo de escritores, que
procuram dar à expressão do sentimento u’a nova forma, que vibre
a emoção, mas a emoção com todas as suas irradiações, com todas
as suas refrações. São os Simbolistas, que, para conseguirem o seu
fim, tiveram necessidade de recorrer à tournure alemã. Tanto
bastou para que o chauvinista Maurício Peyrot os atacasse. É bom
lembrar que os Simbolistas não são em sua maioria fraceses: René
Ghil é belga, João Moreas grego, Stuart Merril e Ville Grifin
americanos.
152
4.
O CRIME
Ordinariamente considera-se o Direito como uma
espécie de modelo, sobre o qual os homens vazam suas
ações, como alguma coisa de anterior e superior à
conduta humana.
É o mesmo que se dá em relação às ciências, em
cujos domínios não raras vezes supõe-se a lei anterior e
superior aos fenômenos, concepção dualística, em que a
lei é colocada acima da realidade das coisas para
regularizar e uniformizar os fatos.
Mas é da própria realidade dos atos que nasce o
Direito, como é da própria realidade dos fatos que nasce
a lei.
Tão errônea e absurda é a concepção de um
Direito, que subsiste por si, pairando acima das ações,
quanto o é a de uma lei anterior e superior aos
fenômenos, regulando sua produção e normalizando sua
seqüência.
É preciso, portanto, protestar contra a distinção
antitética entre direito e fato, lei e fenômeno, da qual
certos espíritos, aliás inclinados à concepção monística,
não têm sabido desembaraçar -se.
Afastado o conceito dualístico de um Direito
anterior e superior aos atos, como o de uma lei diferente
e separada dos fenômenos, resta determinar as relações
do Direito com a ciência e especialmente com a
Antropologia.
153
O Direito será uma ciência ou uma arte, e num ou
noutro caso, qual a sua posição relativamente à
hierarquia dos conhecimentos humanos?
Para respondermos à questão proposta, precisamos recorrer à classificação dos conhecimentos
humanos, conquista esta que não pode dizer -se uma
criação deste ou daquele filósofo, mas uma produção
necessária e espontânea, filha do desenvolvimento da
cultura científica.
Os conhecimentos humanos podem ser classificados em três grandes categorias:
1ª) Ciências que se referem às diferentes ordens
de fenom,enos.
2ª) Ciências que se ocupam com as diversas
espécies de seres.
3ª) Artes, as quais têm por fim o emprego das
descobertas e achados científicos sobre a natureza,
exterior e interior.
A primeira categoria compreende as ciências cha madas abstratas, e as segundas as chamadas concretas.
Aquelas investigam cada ordem de fenômenos
onde quer que eles se apresentem; estas estudam cada
aspecto de seres em toda a sua compreensão, isto é,
acompanhando em cada espécie de seres todas as ordens
de fenômenos, que apresentam.
Estas duas categorias de conhecimentos não se
hostilizam; pelo contrário, se auxiliam mutuamente.
O pleno conhecimento de um fenômeno exige que
seja estudado em todos os seres, em que aparece; o
154
perfeito conhecimento de um ser requer que se estudem
todas as ordens de fenômenos que nele se manifestam.
Fazem parte da primeira categoria a Matemática,
a Física, a Química, a Biologia e a Sociologia, e da
segunda a Cosmografia, a Metereologia, a Geografia, a
Geologia, a Mineralogia, a Botânica e a Zoologia.
Compreendendo a necessidade de estudar cada
espécie de seres em sua complexidade e integralidade, o
homem não poda abrir exceção para si próprio.
Daí a formação da Antropologia, visando o estudo
completo do homem, sob qualquer ponto de vista, desde
o numérico até ao social.
As artes compreendem os processos, que têm por
fim a ação do homem sobre a natureza e sobre si
mesmo.
Mas as artes repousando sobre as leis formuladas
pela ciência, cada uma delas corresponde mais ou menos
a uma ciência. Assim, para não citar senão um exemplo,
basta lembrar que as artes mecânicas correspondem às
ciências físicas.
O mesmo se dá com a ciência social, abstrata ou
concreta. Ao lado da Sociologia e da Antropologia está
o Direito, a arte social por excelência, tendo por fim
regular as relações sociais, a bem dos interesses da
comunhão. Sendo o Direito uma arte antropotécnica,
como o é a Medicina, claro está que ele não pode fechar
os olhos às luzes da Antropologia.
É esta uma verdade, cujo desconhecimento não
pode ser explicado senão pela idéia falsa, que se fazia
do Direito e da Antropologia. Mas, desde que se
155
considera o Direito uma arte antropotécnica, e a
Antropologia a ciência do homem, e não um s imples
estudo genealógico das raças humanas, a necessidade de
aplicar os achados antropológicos à arte jurídica se
torna evidente como qualquer axioma matemático.
O Direito é uma arte antropotécnica como a
medicina; porém, só muito mais tarde veio aproveit ar as
conquistas da Antropologia. A razão se nos afigura que
para os fins da medicina bastam conhecimentos
anátomo-fisiológicos, muito menos complicados que os
conhecimentos etnológicos e demográficos, sobre que se
baseia a arte jurídica.
Também de que a Medicina se embebeu primeiro
dos conhecimentos científicos, resultou que mais tarde,
sendo os méditos consultados pelos tribunais a respeito
de certas questões anátomo-fisiológicas, se pretendeu
subordinar o Direito à Medicina.
A criação do que hoje impropr iamente se denomina Medicina Legal ou Medicina Pública, concorreu
para este resultado. Entretanto, quando o médico comparecia perante os tribunais para ocupar-se de certas
questões, não era no caráter de profissional, e sim de
homem de ciência. O consultado não era o médico, pois
que não se tratava de socorrer algum doente, e sim o
antropólogo. O que se pedia ao médico em nada
dependia da profissão, da arte de curar; mas como o
consultado era o homem de ciência, dobrado do homem
de arte, esquecendo-se facilmente o antropologista para
só enxergar-se o médico, deste modo se veio a con156
siderar certas questões jurídicas como pertencentes à
esfera da medicina.
Assim, a teoria de Lombroso considerando o criminoso uma variedade da espécie humana, um tipo
etnográfico em virtude do atavismo, embora de caráter
puramente antropológico, tratada quase exclusivamente
por médicos, tomou bem depressa feição psiquiátrica,
para o que mais tarde concorreu eficazmente o próprio
Lombroso, considerando o crime um caso de epilep sia.
A doutrina de Lombroso era falsa; mas a
denominação de que se serviu o professor de Turin para
batizá-la – Antropologia Criminal – foi feliz, porquanto,
se por um lado contribuiu para as exagerações dos
patologistas do crime, por outro lado concorreu para a
adoção de reformas, que honram os confeccionadores
dos modernos códigos penais.
Com efeito, “a nova escola positiva”, exagerando
as proporções da gênese atávica ou patológica do crime,
concorreu para que, em nome da Antropologia, se
operasse viva reação em favor da gênese normal da
criminalidade, e assim resultassem efeitos mais bené ficos não somente para o Direito, mas também para a
Moral, para a Pedagogia, para a Política.
Do que fica dito, facilmente se conclui que as
nossas Faculdades Jurídicas só teriam que lucrar, se
fosse criada uma cadeira de Antropologia jurídica, para
estudar-se cientificamente o homem, tendo em mira a
arte do Direito.
Seria o meio mais pronto e eficaz de dar ao
Direito, quer Civil, quer Penal, a amplitude e vitor, que
157
comporta a possante vitalidade dos modernos estudos
sobre o homem.
Uma profunda transformação se operaria em todo
o campo da arte jurídica: o Direito Penal viria a ser uma
espécie de nosologia, e o Direito Civil uma sorte de
higiene social.
A matéria toda concreta da aplicação do Direito
Penal, estudando o criminoso em todas as múltiplas e
variadas circunstâncias, que influem sobre a sua vontade, foi a razão de ter sido o Direito Criminal o
primeiro a sentir necessidade de aproveitar os achados
da Antropologia; mas a aplicação dos dados antro pológicos à arte jurídica abrirá por sua vez ao Direito
Civil os mais largos horizontes.
É verdade que relativamente à aplicação da lei, a
Antropologia aproveitaria menos ao juiz civil do que ao
criminal; mas quanto à formação jurídica, quanto ao que
diz respeito à tarefa do legislador, as luzes da
antropologia projetariam sobre o direito civil o mais
vivo clarão, e, espancando as trevas de prejuízos
seculares, impeli-lo-ia a marcha desassombradamente no
sentido do progresso.
Da necessidade da Antropologia na execução do
Direito penal foi fácil concluir -se que o legislador
criminal não podia dispensar o estudo científico do
homem na formação daquele Direito; porém o mesmo
não se manifestava tão evidentemente na execução, se
concluiu que a ciência antropógica era dispensável para
a gênese do Direito Civil.
158
Tarde, a quem aliás muito deve o estudo
científico do Direito, levantou contra a Antropologia
jurídica a objeção de que “não é fácil saber o que se
entende por aplicação da Antropologia ao Direito Civil”.
“Em Direito Criminal, escreve o autor das
Transformações do Direito, sabemos, consiste em se
preocupar do criminoso mais do que do crime, em
individualizar a questão. Muito bem: mas, se para fazer
pendant à Antropologia criminal, procura-se edificar a
Antropologia jurídica, poder-se-á conseguir da mesma
sorte e com um igual sucesso? Dar-se-á que, por acaso,
se pense em individualizar as disposições legais, em
ajustá-las aos diversos indivíduos separamente, como
fazem em relação aos nossos vestuários os alfaiates?...
Mas eu não posso admitir que as necessidades com que
se trata de se conformar, sendo em parte, e em grande
parte, o produto da cultura e dos acidentes históricos,
seja bastante ter medido muitos crânios humanos de
todos os tempos e de todas as raças, e mesmo ter feito
muita psicologia fisiológica, para poder dizer a última
palavra a este respeito”.
Mas, além de que as aplicações da Antropologia
não se limitam à execução, estendendo -se também à
formação do Direito, dá-se que, mesmo dentro dos
limites da execução, a Antropologia encontra um vasto
campo de aplicação no que diz respeito às questões de
sugestão nos diversos ramos do Direito, além do Penal.
O juiz tem necessidade de fazer aplicação dos
dados antropológicos às questões de capacidade civil,
159
como o faz em relação às questões de responsabilidade
criminal.
Aí estão inúmeros trabalhos, entre eles so bressaindo o do professor Liégeois – A Sugestão Hipnótica
em suas Relações com o Direito Civil e o Direito
Criminal, e o de Alberto Bonjean – O Hipnotismo, suas
Relações com o Direito e a Terapêutica, nos quais se
assinalam os abusos da sugestão hipnótica em matéria
de contratos e casamentos.
“No domínio do Direito Civil, o magnetismo pode
ser chamado a representar um dos papéis mais ativos, e
isto não somente no ponto de vista de um reco nhecimento de dívida ou de uma doação testamentária,
mas ainda em todas as manifestações da vida jurídica, e
elas são inumeráveis”.
O que há concorrido para que à primeira vista não
seja reconhecida toda importância dos dados antro pológicos em relação aos diversos ramos do Direito, é
que não se tem feito uma idéia completa da do objeto da
Antropologia. Considerada, porém a Antropologia como
o estudo completo da espécie humana, da mes ma
maneira que a Astronomia é o estudo completo dos
astros, e devendo, portanto, estudar o homem não
somente sob o ponto de vista anátomo -fisiológico, mas
ainda sob o ponto de vista psíquico -social, sua utilidade
se impõe de um modo evidente no estudo do D ireito.
Nem se pense que as luzes da Biologia e da
Sociologia dispensam as investigações da Antropologia.
As ciências abstratas não estudam senão cada
uma das categorias de fenômenos separadamente, ao
160
passo que as ciências concretas estudam os seres em
toda sua variedade fenomênica. a Biologia e a
Sociologia estudam os fenômenos vitais e sociais onde
quer que eles se apresentem; a Antropologia estuda o ser
humano sob todas as suas relações, quer físicas, quer
químicas, quer vitais, quer sociais.
A proporção que se passa do simples ao
composto, do homogêneo ao heterogêneo, nota-se que
mais complexa é a natureza de um ser, menos eficaz é a
ação de qualquer ciência abstrata sobre ele.
Daí, segundo nota Manouvrier, a razão de ser das
ciências naturais. É preciso estudar os seres sob todos os
pontos de vista fenomênicos, para poder agir eficaz mente sobre eles.
O cristal manifesta em si fenômenos geométicos,
físicos e químicos; mas nem a Matemática, nem a
Física, nem a Química, por si só, bastam para que se
conheça o cristal em toda a sua complexidade: este
conhecimento só pode ser obtido por meio da
Mineralogia.
Ninguém tem, portanto, que se admirar de ver o
objeto da Antropologia estendido além dos limites da
Etnologia.
Ela foi definida com grande clareza e precisão
por Quatrefages – com a história natural do homem; e
neste sentido, que está de acordo com a verdadeira
classificação dos conhecimentos humanos, compreende
todas as relações em que se acha o homem com o resto
da natureza, relações físicas, químicas, biológicas e
sociais.
161
O crime não é um fenômeno exclusivamente
biológico ou social, e sim uma combinação binária de
elementos biossociais.
Também não se poderia considerá-lo rigorosamente um puro fato antropológico, porque ele não é
exclusivo da espécie humana, existindo entre outras
espécies animais.
Todo o erro tem sido querer-se resolver
problemas biossociais exclusivamente por meio da
Biologia ou da Sociologia, quando é certo que na
formação de idéias, sentimento e atos individuais variam
as circunstâncias sociais conforme os estados
biológicos, com os quais elas entram em combinação.
“Nem a Biologia nem a Sociologia, escreve Manouvrier,
utilizadas isoladamente, seriam suficientes para fazerem
compreender a conduta de um homem e sobretudo de um
grupo, ou para dirigirem a conduta, que se deve ter a seu
respeito.
É preciso para prever e para prover cientificamente, em semelhante matéria, um conhecimento ao
mesmo tempo biológico e sociológico, isto é,
antropológico”.
Figuremos exemplos. A tendência em não
respeitar o alheio, no pobre, degenera em furto ou
roubo; no rico, engendra toda a longa série de
falcatruas, trapaças e manobras fraudulentas, que não
são punidas.
O furto ou o roubo nem sempre pode ser
comparado, como fez Tarde, a uma arte, para a qual se
faz precisa a inclinação ou vocação. Vemos, pelo
162
contrário, muitas vezes o estreante reagindo contra o
ofício; mas todos os seus esforços tornando -se inúteis
em virtude da pobreza ou da camaradagem.
Somente em certos casos é que se trata de
verdadeiros profissionais, que têm a inclinação, o gosto
e a prática do ofício, e que não abandonam a carreira
senão pelo decrescimento das forças e da destreza.
Não raras vezes também vemos que são condenados por ferimentos indivíduos, que se possuíssem
fortuna ou posição, gozariam da maior estima e consideração como duelistas.
O crime é uma combinação binária de pro priedades e condições individuais e sociais, e cujo
conhecimento só nos pode ser fornecido pelo estudo
concreto das espécies animais, e especialmente pela
Antropologia, da mesma forma que o conhecimento do
cristal só nos pode ser dado pelo objeto concreto da
Mineralogia, em seu tríplice ponto de vista, geométrico,
físico e químico.
Daí resulta que se equivalem por seu exclu sivismo as duas doutrinas: a que considera o crime um
produto da organização físico -psíquica do criminoso, e a
que o atribui ao meio exterior, à atmosfera social; a
primeira imputando toda a responsabilidade ao indi víduo como uma criação autogenética, a segunda ao meio
exterior como uma produção heterogenética.
Contra a teoria que considera a sociedade a única
culpada na produção dos crimes, protesta o próprio criminoso, que em sua consciência se reconhece
responsável.
163
Tanto basta para que a responsabilidade, individualizando-se, se torne efetiva e não se desvaneça no
seio da coletividade, como toda responsabilidade que
vai estendendo-se por círculos cada vez mais extensos.
Mas, antes de entrarmos no estudo do fenômeno
tão complexo da responsabilidade, pois diz respeito à
vida normal e anômala dos indivíduos, a todas as
condições internas e externas, que podem influir sobre
as suas idéias, sentimentos e atos, será de grande
proveito lançarmos uma vista de olhos sobre as diversas
teorias, que se têm ocupado da gênese do crime.
Estas teorias podem ser classificadas em três
grandes categorias: a primeira considerando o crime um
efeito de causas bio -psíquicas, a segunda um produto de
circunstâncias sociais, e a terceira um resultado de
causas telúricas.
A primeira categoria compreende as doutrinas do
atavismo orgânico ou psíquico (Lombroso, Colajanni),
da patologia, por epilepsia (Lombroso), por neurastenia
(Benedikt), por nevrose (Dally, Maudsleu, Minzloff,
Virgílio), por degenerescência (Morel, Sergi, Magnan,
ZUccarelli,
Dallemagne),
por
anomalia
moral
(Garofalo), por falta de nutrição do sistema nervoso
(Marro).
À segunda categoria pertencem as doutrinas da
falta de adaptação político-social (Vaccaro), do “meio
social” (Lacassagne), do “tipo profissional” (Tarde).
Na terceira categoria se compreendem aqueles
que não vêem no crime senão a expressão da relação
necessária entre o homem e meio cósmico, como dá-se
164
com a doutrina de Turati, que considera o fator eco nômico a base fundamental do crime.
Além dessas três grandes categorias há a teoria,
não diremos absurda, mas paradoxal, que vê no crime
simplesmente uma normalidade biológica (Albrecht), ou
uma normalidade social (Durkheim).
É uma idéia tão paradoxal como a de certos
filósofos, que retiram a vida aos indivíduos para atribuíla à sociedade; mas nem por isso deixou de prestar
grandes serviços à investigação da gênese do crime, o
qual se nos afigura uma irregularidade social por falta
de adaptação, simples ou complexa, sob qualquer
relação, em que possam e devam ser considerados os
animais, e especialmente os homens.
Para Albrecht é o criminoso que é o homem
normal, pois é ele que personifica a humanidade, ou
melhor, a animalidade inteira em seus atributos
essenciais, que são a carnificina e a depredação. Deste
modo o crime representaria o estado normal da vida, ao
passo que a piedade e a propriedade não seriam senão
anormalidades.
Se se tratasse da vida animal propriamente dita,
onde a luta pela existência produz tão lúgubres combates e violentas depredações, Albrecht poderia ter
aparências de razão; mas a questão é que se trata da vida
social, em que tais atos são considerados ver dadeiras
irregularidades.
Ferri responde que a idéia de Albrecht não é
exata, porque a ação, que entre os animais corresponde
ao assassinato entre os homens, não é a morte de um
165
animal por outro qualquer, porém por animal da mesma
espécie.
Para Ferri a morte não é crime senão quando
sacrificador e vítima pertencem à mesma espécie.
“Matar para viver é a lei de bronze da natureza entre
animais de espécies diferentes”.
Não procede a argumentação de Ferri, porque
mesmo entre os homens a morte do indivíduo por
indivíduo da mesma espécie nem sempre constitui
crime, tal é o caso da antropofagia entre os selvagens.
Entre as espécies animais é bem conhecido o fato
de pais devorando os próprios filhos.
Mas, se por um lado nem sempre o fato praticado
por um animal em relação a animal da mesma espécie
constitui crime, por outro lado não é raro ver
constituindo crime fato praticado por um animal em
relação a animal de espécie diferente.
Sabe-se que durante a idade média os animais
estiveram sob o mesmo pé de igualdade que os homens
quanto a criminalidade.
“Na idade média, diz Lacassagnel, julgavam-se os
animais, que se tornavam culpáveis de morte, ou que se
constituíam flagelos de um país, ou as fêmeas que,
dando a luz um monstro, eram suspeitas de coabitação
criminosa”. (1 )
E entre muitos outros exemplos curiosos cita ele
o de uma porca, que matou uma criança e começou a
devorá-la, sendo afinal condenada a morte.
E, como ela tivesse devorado um braço e comido
parte da cabeça, antes de inflingir -lhe a morte, julgou-se
166
do direito impor-lhe a pena de talião, cortando-se-lhe
uma pata e mutilando-se-lhe o focinho.
Depois foi conduzida ao suplício, coberta de
vestimentas próprias, recebendo afinal o carrasco seu
soldo e seu par de luvas.
Os processos contra ratos, lagartas, caracóis,
pululam no século XVI entre os povos mais civilizados
da Europa.
Em 1516 João Milon oficial de Troyes, deu a
seguinte sentença, datada de 9 de julho:
“Ouvidas as partes, fazendo justiça a reque rimento dos habitantes de Villeneuve, advertimos às
lagartas que devem retirar-se dentro de seis dias, e caso
não o façam, as declaramos malditas”.
Na antiguidade clássica Demócrito entendia que
devia ser punido de morte o animal, que causava um
dano maior.
Segundo refere Marcial, sob o império de
Domiciano, foi severamente punida a ingratidão de um
leão para com seu senhor. (2 )
N mudo biológico a destruição e a pilhagem são
considerados fator normais,
porque constituem
condições de desenvolvimento para os seres vivos; mas
ninguém pretenderá sustentar que nas sociedades o
assassinato e o roubo constituem elementos de
progresso.
Aqui torna-se bem patente o erro daqueles que
querem explicar fatos sociais por um processus
puramente biológico.
167
Todas as vezes que se pretende dar dos
fenômenos sociais uma outra explicação, que não seja
um processus social, há o perigo de escapar aquilo que
eles têm de específico, aquilo que diz respeito à
sociabilidade.
Entre certas sociedades animais, principalmente
nas sociedades humanas, o que há de específico é a
anormalidade do assassinato e do roubo entre os
membros de uma coletividade, e esta anormalidade é
que constitui o fenômeno chamado crime. (3)
É, portanto, uma explicação falsa a do cr ime,
fenômeno social, pelo processus biológico da luta pela
vida.
Do que fica dito, se conclui que menos aceitável
ainda é a idéia de Durkheim, considerando o crime um
fenômeno normal sob o ponto de vista social.
Qual a razão por que o autor das Leis do Método
Sociológico chega à conclusão de que o crime é um
fenômeno normal nas sociedades humanas?
Por dar-se constantemente, sem exceção de tempo
e de lugar?
Seria o mesmo que sustentar, conforme observa
Ferri, que a moléstia é um fenômeno normal da vida,
porque em todos os tempos e lugares têm havido
doentes.
Entretanto, as moléstias tendem a prejudicar os
organismos sociais. É possível que em alguns casos o
crime seja condição de progresso, como em outros a
moléstia é condição de desenvolvimento; mas são casos
excepcionais, que não autorizam a conclusão de que a
168
moléstia e os crimes são fenômenos normais para os
indivíduos e para as sociedades.
Das teorias que consideram o crime uma
anormalidade biológica, tornou-se célebre a de
Lombroso, encarando o crime co mo um caso de
atavismo.
Para Lombroso o homem delinqüente não é senão
anacronismo, um selvagem aparecendo em país civi lizado, uma monstruosa ressurreição das épocas pré-históricas, alguma coisa de comparável ao animal que,
nascendo de pais domésticos, aparecesse com os
instintos e as paixões de seus primitivos antepassados.
“O crime entre os selvagens, diz o notável
professor de Turin, não é uma exceção, mas a regra
quase geral”.
Em apoio de sua hipótese Lombroso cita os
freqüentes cavos de abortos e infanticídios entre os
selvagens, o uso de matar os velhos e os enfermos, o
roubo como instituição legal, o canibalismo sob todas as
suas formas, e uma infinidade de costumes, que dão a
perceber que o crime é a ressurreição da selvageria
primit iva no mundo civilizado.
A idéia de Lombroso não era uma novidade; antes
dele já Edgar Quinet considerava o crime um
anacronismo sanguinolento, e o criminoso um indivíduo
que sai da humanidade e entra na animalidade do
mundo terciário.
A teoria de Lombroso não tem, porta nto, o mérito
da originalidade, que se lhe quer atribuir; mas o erudito
antropologista soube dar o vigor e brilho de seu vasto
169
talento e ilustração ao que se achava disperso em
Quinet, Despine, Lubbock.
Lombroso salientou os traços orgânicos e
psíquicos que, dos selvagens e até dos animais, existem
nos criminosos; mas, compreendendo que o atavismo era
uma explicação insuficiente para todas as categorias de
crimes, nas últimas edições do Homem Delinqüente
junta ao atavismo a loucura moral, especialmente a
epilepsia, para a explicação do crime.
A epilepsia é o traço de união entre o louco moral
e o criminoso nato. Ela funde o criminoso nato e o louco
moral em um todo sintético, que é a fórmula geral da
criminalidade.
Sob o ponto de vista anatômico, fisiológico e
psíquico descobre Lombroso nos criminosos natos os
mesmos traços característicos que nos epiléticos, as
mesmas anomalias faciais e cranianas, as mesmas
anormalidades cerebrais e fisionômicas, as mesmas
emoções e impulsões, as mesmas antipatias e
preferências.
A objeção de que o furor epilético, pela
instantaneidade, pela ausência de fim útil, se revela
imediatamente como um estado patológico, Lombroso
responde que mesmo no furor epilético nem sempre se
nota ausência de premeditação ou de interesse, de so rte
que vem a se confundir de um modo absoluto com o
delito.
Em seu segundo avatar a teoria lombrosiana não
exclui a doutrina da degenerescência. Apenas o notável
antropologista italiano pensa que “esta abraça um muito
170
grande número de regiões do campo pat ológico, indo do
cretino ao homem de gênio, do surdo -mudo ao
canceroso e ao tísico, e que é impossível aceitá-la sem
restrição”.
Lombroso,
que
censura
na
teoria
da
degenerescência sua demasiada esfera de compreensão,
cai na falta, notada por Jelgersma, de atribuir uma
extensão pouco razoável ao síndrome patológico da
epilepsia.
Colajanni, seguindo as pegadas de Fauvele e
Mantegazza, sustenta engenhosamente que o crime é
uma manifestação de atavismo moral.
O criminoso para ela não é um louco, nem um
epilético, nem um degenerado, “porque as províncias
italianas, que se distinguem pela saúde física e pela
perfeita conformação orgânica, se assinalam também
pela superioridade criminosa; e onde, pelo contrário, a
degenerescência se impõe, a moralidade relativa rei na
comumente”. “Quanto ao atavismo moral, diz o autor da
Sociologia, é essencial não confundi-lo com o atavismo
físico. A evolução física, que vem de longe, não é
paralela à evolução moral de data mais recente. Esta
circunstância explica sua não localização”.
Além de que seria difícil imaginar um fenômeno
físico qualquer sem base orgânica, ignoramos o que se
adianta para solução da questão com o reconhecimento
da falta de paralelismo entre o atavismo moral e o
físico.
A gênese patológica do crime tem dado lugar a
mais de uma explicação. Entre as várias modalidades
171
sobressai a de Maudsley, cuja famosa “zona inter mediária” é bem conhecida.
“Entre o crime e a insânia existe uma zona neutra.
em uma das extremidades observa-se um pouco de
loucura e muita perversidade; no limite oposto menos
perversidade e mais loucura”.
Não se pode negar a relação que em alguns casos
existe entre o crime e a loucura; mas há certamente
exagero, quando se pretende elevar a categoria de regra
a subordinação do crime à loucura. Diz Ferri que para
notar a grade diferença que existe entre o crime e a
loucura basta visitar um asilo de alienados comuns e
alienados criminosos.
Para Benedickt o crime provém da neurastenia,
física ou moral, hereditária ou adquirida.
Servindo de boa explicação para a vagabundagem, a ponto de Charcot equiparar o vagabundo ao
neurastênico, e Meige compará-lo ao tipo legendário do
Judeu errante, a neurastenia está longe de dar conta da
origem da maioria dos crimes.
Mais completa, porém ainda insuficiente, é a
explicação de Marro, fazendo derivar a perturbação
psíquica, de que o crime não é senão uma exteriorização, de “uma nutrição defeituosa do sistema
nervoso central”. A aceitar a opinião de Mosso, que
entende que as perturbações de nutrição dos centros
nervosos são as primeiras condições mórbidas da origem
da epilepsia, vê-se que pouca distância vai da
explicação de Lombroso à de Marro, e a admitir a
doutrina, sustentada por Bouchar e Hayem, de que o
172
quimismo estomacal perturbado constitui o fator
essencial da neurastenia, nota-se que Marro não
adiantou um passo a Benedickt.
Mas a idéia, que vai ganhando a maioria dos
espíritos, é a de degenerescência, idéia com a qual
nestes últimos tempos têm sido arquitetados vários
sistemas não somente de criminologia, mas até de estopsicologia.
Com efeito, na dedicatória feita a Lombroso em
sua obra – Degenerescência, Max Nordau declara
formalmente que os degenerados não formam somente
prostitutas, criminosos, anarquistas e loucos declarados;
eles tornam-se também escritores e artistas.
Como a degenerescência foi elevada ultimamente
a categoria de grande síntese etiológica, temos
necessidade de proceder a uma análise um tanto
detalhada do maravilhoso fator de obras geniais como
de crimes horrorosos.
A idéia de degenerescência não é uma idéia
precisa, determinada, e o próprio Dallemagne, que
escreveu a respeito um grosso volume, reconhece que é
impossível dar uma completa definição, não se podendo
fazer mais do que assinar-lhe um lugar médio entre a
saúde a moléstia, a razão e a loucura.
Segundo Morel, a quem se deve a teoria, “a idéia
mais clara, que podemos formar da degenerescência
humana, é representá-la como uma desviação doentia de
um tipo primitivo. Esta desviação, por mais simples que
suponhamos em sua origem, encerra, entretanto
elementos de transmissibilidade de uma tal natureza,
173
que aquele que traz o gérmen dela, torna-se cada vez
mais incapaz de desempenhar sua função na huma nidade, e o progresso intelectual, já enraizado em sua
pessoa,
acha-se
também
ameaçado
em
seus
descendentes”.
É nem mais nem menos o conceito bíblico da
degradação humana. Foi preciso que a corrente
transformista se impusesse com toda a sua impe tuosidade aos espíritos, para que a idéia de Morel
perdesse sua primitiva feição mística e assumisse um
caráter mais objetivo com Magnan e Dailly.
Distando apenas vinte cinco anos uma da outra,
há entre a idéia de Morel e a de Dailly toda a diferença,
que vai entre a maneira de ver de um teólogo e a de um
antropologista. (4)
Morel imaginava a existência de um tipo
primit ivo perfeito, encerrando em si os elementos da
vitalidade e da continuidade da espécie. A degene rescência não á para ele senão a degradação deste tipo
perfeito e acabado. “A existência de um tipo primitivo,
que o espírito humano se compraz em construir em seu
pensamento como a obra-prima e o resultado da criação,
é um fato tão conforme às nossas crenças, que a idéia de
uma degenerescência de nossa natureza é inseparável da
idéia de um desvio primit ivo, que encerra em si mesmo
os elementos da continuidade da espécie”. Este critério
do homem normal não pode se manter em face da
grandiosidade da doutrina transformista, e veio a tomar
uma feição nova. O equilíbrio do homem figura não
mais como o início, mas como o fim da vida individual,
174
e a degenerescência deixa a sua base teológica para
assentar sobre o eixo cérebro-espinhal, centro de
elaboração e transformação de todas as regressões. A
teoria da evolução e a base biológica do desenvolvimento humano deram em resultado esta vasta síntese
que vai “das enfermidades congênitas do cérebro, fa lando das lesões gerais e manifestas do idiota profundo,
para chegar sucessivamente às lesões locais parciais
dissimuladas dos irregulares”, síntese que valeu a ce lebridade do clínico de Santa-Anna, dando à sua
doutrina a unidade e a continuidade, que faltavam à
teoria de Morel.
Mas a larga e progressiva idéia da degene rescência, com a extensão a amplidão, que constituem a
originalidade da doutrina de Magnan, se por um lado
deu em resultado uma importante sínt ese, indo do idiota
profundo ao desequilibrado ou simples extravagante, por
outro lado veio colocar sob uma mesma categoria
fenômenos, que não têm entre si senão longínquas
relações biológicas e que, sob o ponto de vista social, o
único importante para o caso, têm significações
inteiramente diferentes e conseqüências completamente
diversas, como se dá com a relação genética entre o
crime monstruoso e a imponente obra de gênio.
É verdade que Magnan sabe fazer engenhosas
comparações para defender a extensão de sua doutrina.
Assim diz o clínico de Santa-Anna: “Tomemos,
por exemplo, um desequilibrado que, em um momento
dado, projeta impulsivamente uma palavra, que ele não
pode reter, e comparemo-lo àquele que projeta um golpe
175
e fere sem razão um transeunte desconhecido. Não
vemos aí dois fenômenos análogos? Não são dois
doentes análogos quase idênticos? Comparemos um
inomatomano, que busca sem tréguas uma palavra, a um
dipsomano, que procura com o mesmo furor uma bebida.
Um e outro estão à cata de uma sensação, que deve por
momentaneamente um termo a seu desejo. Pertencem,
pois, ambos a um mesmo grupo”.
Recordamo-nos de que lá lemos, mas já não nos
lembramos onde, que todas as vezes que um fenômeno
social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico, se pode estar certo de que a explicação é falsa.
Com efeito, todas as vezes que se quer explicar
fenômenos de ordem superior por outros de categoria
inferior, não escapa aquilo que eles têm de específico?
Toda explicação direta e imediata de fatos sociais
por fenômenos biológicos é necessariamente errônea. A
mesma causa, que explica a imbecilidade e a idiotia, a
esterilidade e o suicídio, serve para explicar o crime, o
gênio e até a marcha social. Falamos em marcha social,
porque é sabido que Guilherme de Greef introduziu a
noção de degenerescência no domínio da Sociologia.
Aí estão os seus trabalhos, desde As Leis Sociológicas até ao Transformismo Social ocupando-se
largamente da deformação regressiva social.
À força de tudo se querer explicar por meio da
degenerescência, tornou-se esta noção vaga, indeterminada, flutuante, apanhando em sua amplitude os
mais variados e múltiplos fenômenos, para em seguida
176
deixar escapar entre as suas largas malhas tipos da
mesma espécie.
Depois, não é um visível círculo vicioso e xplicar
certos fenômenos sociais pela degenerescência, e ao
mesmo tempo explicar a degenerescência por esses
mesmos fatos sociais?
É o que se dá com o curioso fenômeno da
criminalidade das multidões, que se explica tanto pela
degenerescência da raça, como pelo que se tem chamado
psicologia das massas.
O crime das multidões é um sintoma da decadência social; mas o que produz regressão não é o
movimento político, religioso ou financeiro?
É verdade que Dallamagne, prevendo a objeção,
alega que as grandes como ções políticas e religiosas não
engendram ordinariamente senão desequilíbrios.
Mas a explicação do notável psiquiatra belga não
está indicando, que é um erro perigoso submeter a
explicação de fenômenos de categorias diversas a uma
causa única, sendo de mais a mais esta de natureza
diferente dos referidos fenômenos?
No círculo da esto-psicologia pode-se avaliar da
aplicabilidade do conceito da degenerescência pelo livro
de Max Nordau.
Max Nordau, depois de passar em revista uma
série de casos, em que se vê um rei renunciando,
mediante a quantia de um quinhão de francos, todos os
seus direitos ao trono, um chefe de polícia secreta
arrancando ao cadáver do assassino Pranzine um pedaço
de pele para transformá-la em charuteiras e arteiras para
177
si e para os amigos, um casal americano indo fazer a sua
viagem de núpcias, não pela Europa em estradas de
ferro, mas pelas nuvens, em um aerostato, um estudante,
filho de banqueiro, mostrando em passeio, a um seu
colega o edifício, em que seu pai estivera tantas vezes
preso por quebras fraudulentas e outros crimes
proveitosos, acrescenta: “A primeira vista um rei, que
vende os direitos de soberano por um cheque considerável, parece ter pouca semelhança com os recémcasados, que fazem a sua viagem de núpcias num balão;
e a relação entre a dignidade episcopal e a jovem bem
educada que aconselha à sua amiga um casamento de
dinheiro, mitigado pelo amigo da casa, não é fácil de
reconhecer-se imediatamente. E, entretanto, todos estes
casos “fin de siècle” têm um traço comum: o desprezo
das conveniências e da moral tradicionais”.
É o que o autor da Degenerescência chama, não o
“crepúsculo dos povos”, para significar as formas vagas
e indefinidas de um momento histórico, em que con forme diz o escritor polaco Casimiro de Krauz, ningu ém
é pessoa, querendo todo mundo ser original.
Este estado de coisas, que para os filisteus se
explica por capricho, excentricidade, paixão de novidade, gosto de imitação, para o médico, e principalmente para o especialista, que se dedicou ao estudo
das moléstias nervosas e mentais, não quer dizer senão
degenerescência e histeria, cujos graus inferiores cons tituem a neurastenia.
Pelos estigmas seria fácil de provar que os
diretores das atuais correntes literárias são degenerados;
178
mas encontrar-se-ia a maior oposição por parte das
famílias nesta espécie de escalpelamento vivo.
Felizmente ao lado dos estigmas físicos estão os
estigmas psíquicos, que os próprios degenerados se
encarregam de divulgar não somente nos hospitais, mas
nos livros, que escrevem.
Estes estigmas são: egoísmo desmarcado, impulsividade, impressionabilidade, adinamia ou receio de
tudo, preguiça, que pode estender-se até à falta absoluta
de vontade-embolia.
À ausência do querer vem juntar-se o desalento
da dúvida, e ao vácuo da incerteza o desespero do
pessimismo.
“O degenerado, escreve Max Nordau, que afu genta a ação, desprovido de vontade, que não suspeita
que sua incapacidade de agir é conseqüência das eivas
cerebrais hereditárias, acredita que é por livre deter minação que despreza a ação, e se deleita na inatividade; e para justificar-se a seus próprios olhos,
constrói uma filosofia de renunciação, de afastamento
do mundo e de desprezo dos homens, pretende que se
acha convencido do quietismo, qualifica -se com orgulho
budista e exalta, com fraseado poeticamente eloqüente,
o nirvana como o mais elevado e digno ideal do espírito
humano. Os degenerados e os alienados são o público
predestinado de Schopenhauer e de Eduardo de
Hartmann, e basta conhecerem o budismo para serem
convertidos”.
À multidão que apoteosa os inovadores e jura em
suas palavras, aplica-se segundo diagnóstico – a histeria
179
ou, pelo menos, a neurastenia. Os traços característicos
da histeria são uma excessiva impressonabilidade, um
desmedido egoísmo, que se manifesta pelo prurido das
exibições e pelo requinte da vaidade, e uma pronunciada
tendência para a sugestão. À sugestão se deve o
nascimento das chamadas escolas artísticas ou literárias,
as quais em substância não passam de grupos de
histéricos hipnotizados por um degenerado superior.
Depois de ter enumerado os estigmas, Max
Nordau procura classificar os artistas e escritores
degenerados, e divide-se em duas grandes categorias –
os místicos e os egotistas.
Deixando de parte as curiosas explicações, que dá
Nordau do misticismo e do egotismo, aquele tendo suas
raízes na fraqueza de vontade e na conseqüente falta de
atenção, este no irregular funcionamento do mecanismo
da consciência, veremos o autor dos Paradoxos e das
Mentiras Convencionais percorrendo todo o edifício da
literatura contemporânea, e encerrando em cada
compartimento do grande asilo de alienados tal ou tal
grupos de escritores.
Os mais salientes têm uma célula especial. Prérafaelistas, românticos, simbolistas, decadentes, satânicos,
parnasianos, todos oferecem estigmas de degenerescência.
Além de sua excursão pelos domínios da lite ratura, Nordau percorre as regiões da música, da política
e até da terapêutica. Wagnerismo, jacobismo, kneipismo, tudo isto traduz decadência psíquica.
Logo à entrada da casa dos degenerados aparece a
majestosa figura do cone Leão Tolstoi.
180
Que importa que o famoso pensador tenha pro duzido obras cheias de seiva e perfume?
Que importa que tenha escrito Guerra e Paz, esta
grandiosa dramatização de todas as situações e circuns tâncias ordinárias da vida humana?
É um apóstolo do socialismo místico, um
revoltado contra as opressões da sociedade, um inimigo
da mentira da observação.
“Desde que o mundo existe, escreve, com efeito,
o filósofo, os seres racionais têm distinguido o bem d o
mal; aproveitando os esforços de seus antepassados,
lutavam contra o mal, procuravam o justo, o melhor
caminho, e lentamente, mas incessantemente, marcha vam nesta direção. E, sempre lhes tolhendo o passo,
achavam a sua frente os fautores de mentiras, os quais
lhes pretendiam provar que é preciso tomar a vida como
ela é.
Eles, à custa de esforços e de lutas, se libertaram
pouco a pouco destas mentiras. Mas eis que uma mentira
nova, a pior de todas, aparece-lhes no caminho: a
mentira científica.
Esta nova mentira é no fundo a mesma que as
antigas; sua essência é substituir a atividade da razão e
da consciência, a nossa e a de nossos antepassados, por
alguma coisa de exterior; na mentira científica está
alguma coisa de exterior: é a observação”.
Bastava esta página para que Nordau fizesse
entrar Leão Tolstoi em uma das princiáis celas de seu
grande asilo.
181
Para o crítico alienista um dos traços característicos do degenerado é a sua incapacidade de se
adaptar às circunstâncias da vida. “O egotista, lê -se em
Degenerescência, é o tipo do ser inadaptável... O fundo
de seu ser é o mau humor, e ele volta-se com um
descontentamento odiento contra a natureza, a socie dade, as instituições públicas, que o irritam e o ferem,
porque não sabe acomodar-se com elas. Permanece em
um estado constante de revolta contra o que existe, e
trabalha para destruí-lo ou pelo menos, sonha a sua
destruição.
No segundo pavimento do edifício, trazendo
camisa de força, figura Henrique Ibsen com ares de
sumo pontífice intelectual.
“Não se pode negar que Henrique Ibsen seja um
poeta cheio de temperamento e vigor; mas é um místico,
dominado por três obsessões, que são o pecado original,
a confissão e o sacrifício de si mesmo ou a redenção”. (5 )
Além de suas obsessões teológicas, de seu simbolismo, de suas criações fantásticas, que lhe dão direito
a um lugar entre os místicos, Henrique Ibsen é um
decidido egotista, “porque em seu pensamento a
exacerbação doentia de sua consciência do ‘eu’ é ainda
mais notável e mais característica do que seu próp rio
misticismo.
Seu egotismo toma a forma do anarquismo. Ele
acha-se em estado de constante revolta contra tudo que
existe.
Não exerce a respeito uma crítica arrazoada, não
mostra, por exemplo, o que é mau, porque razão é mau,
182
e como se poderia melhorar; não. Crimina simplesmente
de existir e não tem senão um desejo: destruir”.
Frederico Nietsche, filósofo, Georges Brandes
crítico, não são menos severamente tratados: o primeiro
parece um “louco furioso, de olhos cintilantes, boca
escumante, gestos selvagens”; o segundo não passa de
“um dos fenômenos literários mais repelentes de nosso
século”.
Do exposto vê-se que a aplicação da degenerescência não se restringe ao grupo dos criminosos,
estende-se a artistas, beletristas, filósofos, sábios. Sob
rúbricas particulares são classificadas como anomalias
ou monstruosidades regressivas as mais divergentes
manifestações da atividade humana, desde o assassinato,
que rouba a vida, até a fantasia, que encanta o espírito.
Em Degenerescência não raras vezes o leitor
sente que ele próprio não escapa ao interminável quadro
sintomatológico de Nordau, e não raras vezes acredita
que traz colados a pele, como a túnica de Nessus, os
estigmas da degradação.
Para mais obscurecerem a questão dos casos de
degenerescência individual vieram juntar os de regressão coletiva, como se os chamados casos de in volução social pudessem ser equiparados aos de
degenerescência individual.
“Nós distinguimos, diz Dallemagne, a involução
individual e a involução social. Certas causas que
explicam uma podem intervir na inteligência da outra.
Entretanto, a primeira não implica inevitavelmente a
segunda.
183
A regressão individual é um fato normal, contínuo, regular, mesmo na evolução das coletividades. É,
portanto, necessário separar em nossos espíritos o
processus particular do processus coletivo”. (6 )
Algumas páginas mais adiante, acrescenta:
“A regressão individual, a degenerescência
limitada aos indivíduos, gostamos de repetir, é um fato
contínuo, permanente, mesmo nas sociedades em
evolução. Os degenerados são ao mesmo tempo os
atrasados dos exércitos vitoriosos e os estropiados dos
exércitos derrotados. Mesmo as sociedades em evolução
as degradações particulares fazem parte do processo
social normal fisiológico”. (7 )
A patologia social não se confunde d e maneira
alguma com a patologia individual Aquela traduz
anormalidade de condições sociais; esta anormalidade
de condições fisiológicas.
A respeito da tendência a exagerar a importância
e aplicação da degenerescência refere Sanson a anedota,
cuja veracidade garante, de que, narrando uma pessoa
que seu filho havia recusado a proposta de uma medalha
de campanha sob o fundamento de não ser motivo para
recompensa a infelicidade de achar-se sobre o trajeto da
bala, à qual devia o seu ferimento, o fato foi aprec iado
por alguém nos seguintes termos: “Isso não se admira,
eu sabia desde muito tempo que em vossa família se é
mal equilibrado”.
“Acredita-se, ajunta Sanson, que uma tal maneira
de julgar os atos de desinteresse e de retidão seja uma
rara exceção? Seria infelizmente um erro. Em nosso
184
mundo atual, em que as distinções honoríficas de toda
espécie são tão ardentemente ambicionadas e
solicitadas, dá-se que aquele que as desdenha, aquele
que pensa que o título de membro, de uma academia
principalmente, não vale os sacrifícios de dignidade ou,
pelo menos, de altivez, que custa, o mais das vezes
adquirir, não seja considerado geralmente como um
original, por conseguinte, como um desequilibrado,
como um daqueles que Magnan chama degenerados
superiores? É evidentemente uma bizarria de caráter
para todos aqueles que pensam e agem de outro modo, e
que não podem deixar de achar que sua maneira de
pensar e de agir é a única acertada; pois é, com efeito, a
do maior número”.
O alienista, como todo especialista, é inclinado a
alargar além da justa medida o círculo de suas
investigações. Do mesmo modo que aquele sábio, que,
por estudar baleias, via até nas mulheres mais bonitas a
figura daqueles cetáceos, os alienistas tendem a ver por
toda parte sinais de loucura, estigmas de degenerescência.
Assim, conforme observa mordazmente Sanson,
se se devesse tomar ao pé da letra as definições dos
alienistas sobre desequilíbrio mental, eles ocupariam um
bom lugar na lista dos desequilibrados e figurariam em
excelente companhia.
É o que se nota em Degenerescência, onde
existem admiráveis páginas de fisio -psicologia; mas
onde o especialismo do autor prejudica de um modo
violento a solução das questões. Nordau padece do que
185
Casimiro de Krauz denomina com toda propriedade de
expressão: estigma profissional. Médico, pretende
explicar todas as manifestações da vida espiritual por
meio da psiquiatria sem atender às influências sociais no
desenvolvimento do espírito humano. Daí toda a
estreiteza e inanidade de uma crítica “verdadeiramente
científica, completamente objetiva”, em que Poe,
Baudelaire e Rollinat são qualificados de necróficos
degenerados, ao passo que Valdès é apoteosado como
artista filo-social por ter pintado um bispo metido em
um esquife, e devorado por vermes. (8)
O pior é que o estigma do especialismo não influi
somente sobre a etiologia das manifestações artísticas e
literárias; a sua ação se faz sentir igualmente sobre a
terapêutica.
No último capítulo de Degenerescência, consagrado ao tratamento das classes cultas atacadas em seu
sistema nernovo, Nordau propõe a instituição de uma
associação composta de professores, juízes, deputados,
altos funcionários, à maneira da “Aliança dos homens
contra a imoralidade”, tendo por fim cuidar da saúde e
da moralidade dos escritores e dos artistas, da pureza
das produções estéticas e literárias.
“Seus membros, diz Nordau, possuiriam bastante
cultura a gosto para distinguirem a franqueza de um
artista moralmente são da baixa especulação de um
rufião escrevinhador”.
O remédio proposta é nem mais nem menos do
que a condenação ao index em nome da psiquiatria.
186
O crime, como o livro, como todas as manifestações da atividade humana, é o produto dos fatores,
que presidem aos nossos atos. Estes atos traduzem
sempre uma ação simultânea de elementos biológicos,
psíquicos e sociais. Explicá-los, portanto, pela influência única e exclusiva de qualquer destes fatores é
dar explicação errônea, falsa, uma explicação unilateral
do que é complexo.
As relações de causa e efeito entre a dege nerescência e a criminalidade foram magistralmente
determinadas por Legrain, que, entre muitas considerações feitas com toda clareza e nitidez, reduz a três
os pontos de contato.
1º) Os degenerados podem tornar-se criminosos, e
eles tornam-se mais vezes do que os seres não
degenerados, porque se adaptam menos do que estes
últimos às condições da vida regular e às convenções
incompatíveis com as ações legalmente qualificadas de
crimes.
2º) Certos criminosos apresentam estigmas de
degenerescência; bem que estes estigmas não possam ter
relação alguma de indicação com as ações cometidas por
aqueles que são seus portadores, significam pelo menos
que estes criminosos são degenerados.
3º) Se o degenerado pode ser criminoso, e se o
criminoso pode ser degenerado, há criminosos que n ão
têm caráter algum de degenerescência.
A doutrina de Garofalo é uma peça completa e
inteiriça, e seu autor a descreve com a máxima clareza e
precisão.
187
O Estado, como todas as formas de associação,
supõe condições de existência, quer o ataque provenha
do exterior, quer parta dos próprios associados.
Entre as condições de existência social figura
principalmente o respeito à integridade individual dos
associados e às livres manifestações da sua atividade.
Daí duas categorias principais de crimes,
conforme se trata de atentados contra a individualidade
dos associados ou contra as manifestaçoes de sua
atividade.
O respeito às duas condições elementares de
sociabilidade constitui os dois sentimentos fundamentais
de justiça, que são a piedade, respeito à integridade
individual, e a probidade – respeito às manifestações da
atividade individual.
O crime, aquilo que Garofalo chama delito
natural, é, portanto, a violação dos dois sentimentos
primordiais, sobre que assentam todas as relações
sociais.
Vê-se que esta concepção do crime não exclui a
idéia de que o crime, como anomalia moral, possa
achar-se sob a dependência de um estado patológico,
loucura, epilepsia, neurastenia ou outra qualquer
moléstia. Garofalo apenas afirma que o crime pode
existir em indivíduos dotados de saúde perfeita. É
verdade que a psico-fisiologia se recusa a admitir um
desvio psíquico sem base numa anomalia orgânica,
consiste ela em uma especial disposição das moléculas
do cérebro; mas, enquanto não se determinar em como e
em quanto o desvio psíquico influi sobre a saúde
188
propriamente dita, pode-se falar em um estado de saúde
coexistindo com u’a moralidade inferior.
Pelo menos é preciso admitir que o desvio
psíquico, que importa uma anomalia dos sentimentos de
piedade e probidade, pode existir d e um modo congênito, como fazendo parte da organização individual
por efeito da hereditariedade ou do atavismo, ou apenas
ser efeito de uma circunstância passageira, desapa recendo a qual, tudo volta ao seu estado.
Em todo caso é preciso não confundir a moléstia
no sentido estritamente patológico com o puro e simples
desvio psíquico. É preciso não esquecer que os
equilíbrios, medular e ganglionar, indispensáveis à
existência individual e especifica, podem efetuar -se sem
intervenção do equilíbrio psíquico. “Os equilíbrios
vegetativos e afetivo interessam no mais grau à
existência individual e à persistência da espécie. O
equilíbrio psíquico se traduz sobretudo na evolução
sociológica. Sem os dois primeiros, toda vida pessoal ou
específica é impossível. O ter ceiro preside à evolução
sociológica; conduz à adaptação cada vez mais perfeita
do intelecto às coisas da natureza; é o artista por
excelência de todos os progressos em todos os domínios
do pensamento”. (9 )
Dentre as doutrinas, que atribuem o crime a
anomalias sociais, sobressai a de Turati, e, em regra, a
dos socialistas, que consideram como causa única, direta
ou indireta, dos crimes as condições econômicas, base
fundamental, segundo a teoria de Marx, largamente
189
desenvolvida por Greef, de todos os outros fenômenos
sociais, quer morais, quer políticos.
É verdade que a miséria é uma grande genetriz de
crimes, sobretudo de crimes contra a propriedade; mas
não pode ser considerada o fator único dos crimes de
improbidade e crueldade, porque vemos a riqueza
tocando ao fausto coexistir com uma e outra.
Contra os criminólogos marxistas, que derivam o
crime exclusivamente do determinismo econômico,
observa brilhantemente Garofalo que “a estatística de monstra que se as formas grosseiras dos atentados à
propriedade são o apanágio das classes pobres e
ignorantes, como o roubo, a apropriação ilícita, etc.,
encontra-se o equivalente substancial destes delitos, em
todas as outras classes, sob a forma de gatunice,
velhacaria, falsidade, bancarrota fraudulenta, etc. De
sorte que se pode concluir que não é a uma condição
econômica dada, que se deve atribuir esta parte da
criminalidade, mas antes a uma condição moral especial,
a saber – a ausência do instinto de probidade e o descuido de uma boa reputação, pela qual muitos in divíduos, posto que seu senso moral seja muito fraco,
evitam, entretanto, cometer delitos. Quanto à extrema
indigência, seu efeito quase nunca é o crime, porque
aqueles que são verdadeiramente esfomeados, caem num
estado de prostração ou apatia, que não lhes deixa
energia para o crime como para qualquer outro esforço.
Enfim, se a degenerescência acompanha geralmente a
miséria, nada prova que a última tenha sido a causa da
190
primeira; é, pelo contrário, o inverso, de que muitas
vezes se pode dar a prova”. (10 )
Vaccaro entende que o crime é o efeito de uma
falta de adaptação à constituição político -legal de uma
sociedade.
É nada adiantar a Garofalo, que não considera o
criminoso outra coisa senão um revoltado contra a
organização legal do Estado.
“O Estado, diz realmente o elegante escritor, tem
seus rebeldes, da mesma sorte que cada associação
particular tem os seus; mas os verdadeiros criminosos
são os rebeldes ao que constitui o fundo da moral social
no que ela tem de universal e de indispensável para
todas as relações sociais, de qualquer natureza que
sejam”. (11)
Poder-se-ia perguntar a Vaccaro por que em um
mesmo meio político-social a falta de adaptação nem
sempre conduz ao crime, muitas vezes levando à
loucura, à degenerescência ou ao suicídio.
Garofalo já havia dito com maior profundez de
vistas que o crime não é senão “a violação dos
sentimentos de piedade e de probidade em sua medida
média, nos povos civilizados, com ações prejudiciais à
comunhão”.
Para Tarde o crime é uma questão de tendência,
de inclinação, de ofício, de profissão.
O indivíduo é criminoso como é músico ou poeta.
“Como todo outro ofício escreve o autor da
Filosofia Pena, o crime tem seu idioma especial – a
gíria: que profissão antiga e enraizada não tem a sua,
191
desde os marinheiros e caldeireiros até aos agentes de
policia, que dizem se camoufler por se déguiser, coton
por rassemblement etc.? Tem finalidade suas
associações especiais, temporárias ou permanentes,
epidêmicas ou endêmicas. Exemplo de umas, a
Jacquerie e a certos respeitos o Jacobinismo, que
passageiramente devastaram a França; exemplo de
outras, a Camorra e Mafia que flagelam tradicionalmente a Itália. São grandes sindicatos profissionais
do crime, que representaram um papel histórico muito
mais importante do que se acredita. Quantas vezes um
bando guerreiro, que se organizou no seio das tribos
pastoris, não foi uma associação de salteadores?
Quantas vezes este banditismo não foi o fermento
necessário, que ergueu um império e assentou a paz
sobre a vitória do forte? Não se me c ensure, pois, por
fazer muita honra ao delito, colocando -o no número das
profissões. Se a pequena indústria do crime, que vegeta
nas baixas camadas de nossas cidade, como tantas
bodegas em que sobrevivem produtos de uma fabricação
atrasada, não faz senão mal, a grande indústria do crime
tem seus dias de grande e terrível utilidade no passado
sob sua forma militar e despótica, e, sob sua forma
financeira, se pretende que ela preste serviços
apreciáveis. Onde estaríamos nós, se ao tivesse existido,
sempre felizes, criminosos ardentes em saltar por cima
de escrúpulos e de direito, de preconceitos e costumes,
em levar o gênero humano da égloga ao drama da
civilização?”. (12 )
192
Como estas, muitas outras páginas poderiam ser
transcritas, em que Tarde procura provar que o
criminoso “é obra de seu próprio crime tanto quanto seu
crime é sua própria obra”.
Mas esta concepção do crime como produto da
vocação, além de estar em contradição com as leis da
imitação do próprio Tarde, nada adianta à solução da
questão.
Que importa que o crime seja um produto da
vocação? É um achado tão inútil e estéril quanto o
afirmar que a obra de arte é um fruto da inspiração.
Ou a vocação é um efeito da heredirariedade ou
da invenção. Mas tanto em um como em outro caso a
lacuna é enorme, porque é Tarde quem, em resposta a
um trabalho de C. de Krauz sobre a Lei da Retrospecção
Revolucionária, confessa que as leis da hereditariedade
ainda não foram descobertas e muito menos as da
invenção. (13 )
Não menos deficiente é a explicação do crime
como produto do meio social. “O meio social, diz
Lacassagne, é o caldo de cultura da criminalidade: o
micróbio é o criminoso, um elemento que não tem
importância senão no dia em que encontra o caldo, que o
faz fermentar”.
A sociedade pode ser o caldo de cultura do crime,
pode fornecer-lhe as condições de existência; mas ela
não engendra por si só o micróbio do roubo ou do
assassinato.
193
Ferri e Manouvrier são os dois campeões da
doutrina, que atribui o crime à combinação de in fluências físicas, biológicas e sociais.
Ferri entende que o crime é “um fenômeno de
origem complexa, ao mesmo tempo biológica, física e
social”. (14 )
“De certo, diz o notável professor de Bolonha, a
predominância de tal ou tal fator determina variedades
biossociais de criminosos – mesmo se cometem o
mesmo crime, por exemplo, o assassinato ou o roubo;
mas todo crime de todo criminoso é sempre o produto da
ação simultânea das condições biológicas, físicas e
sociais”. (15 )
A doutrina de Ferri, se escapa à pecha de
unilateralidade, peca pela sua vaga amplitude. Ela se
aplica a todas as manifestações da atividade, desde os
atos de improbidade ou perversidade até aos de fantasia
ou galanteria.
Ferri, compreendendo que sua fórmula era tão
extensa quanto indeterminada, sentiu necessidade de
corrigi-la, dando-lhe mais precisão; mas não o fez senão
para incorrer na censura, por ele increpada às teorias
adversas, caindo na mesma balda de unilateralismo.
A principal objeção oposto por Ferri às teorias
adversas, principalmente às biológicas, é que nenhuma
delas “dá a razão precisa e fundamental, pela qual a
mesma condição de anormalidade biológica (loucura,
neurastenia, epilepsia ou degenerescência) chega a
determinar em tal indivíduo o crime, enquanto que em
tal outro, nas mesmas condições de meio físico e so cial,
194
não determina senão o suicídio ou a loucura, ou então
uma simples inferioridade bio -psíquica”.
“Se se dissesse, acrescenta o autor da Sociologoa
Criminal, que isto depende da diferença das condições
exteriores, que nunca são as mesmas para os dois
individuos, isto não bastaria. Há muitas vezes diferenças
tão pequenas nestas condições exteriores, que não são
uma razão proporcionada da enorme diferença entre
aquele que, por exemplo, reduzido à miséria, mata -se
em lugar de matar, e aquele que mata em lug ar de se
matar. Por que de dois idiotas de u’a mesma família,
tratados da mesma maneira, um responde às zombarias
com a indiferença ou a dor concentrada, e o outro com o
assassinato? E por que de dois degenerados ou loucos, a
quem a nova recusa sua mão, um em face da bem amada
mata-a, e o outro prefere matar-se? E por que de muitos
degenerados, tendo vivido todos na mesma miséria física
e moral, um não se torna senão um vagabundo, outro não
chega senão ao simples roubo, com uma repugnância
invencível para o assassinato, e outro, pelo contrário,
começa por matar a vítima antes de roubá-la?”. (16)
Aqui se poderia retorquir contra Ferri o
argumento, que ele costuma opor aos adversários: se o
crime é um fenômeno de origem complexa, ao mesmo
tempo física, biológica e social, por que razão, dadas as
mesmas causas, nem sempre se produzem os mesmos
efeitos, originando-se aqui o crime, ali o sacrifício,
acolá a indiferença?
Acossado pela dificuldade, responde ele que “o
fator biológico é alguma coisa de específico, que ainda
195
não se determinou, mas sem o qual todas as outras
condições biológicas, físicas e sociais, não bastam para
explicar todas as formas do crime, e o próprio crime”.
“O crime é, portanto, o produto de uma especial
anomalia biológica, que por falta de me lhor expressão,
chamarei com Maudsley, uma “nevrose criminal”, que o
distingue de toda outra forma de degenerescência, e sem
a qual o meio físico e o meio social não bastam para
explicar o crime.
“Nevrose criminal, que é acompanhada quase
sempre, em proporções diferentes segundo a categoria
dos criminosos, das anomalias do atavismo, da epilep sia, da degenerescência, e que é verdadeiramente o ator
específico, pelo qual tal indivíduo com tais caracteres
bio-químicos em tal meio físico e social comete tal
crime”. (17 )
Temos, portanto, a “nevrose criminal” elevada à
categoria de causa específica, e a teoria de Ferri
saturada da mesma eiva de unilateralidade.
Desde então, os fatores físico e sociais perdem
quase toda a sua importância como elementos etioló gicos, deixam de ser causas efetivas para tornarem-se
simples condições.
Deste modo compreende-se que o sagaz criminologista não podia chegar à conclusão de que todo
crime de todo criminoso é sempre o produto da ação
simultânea das condições biológicas, físicas e sociais. O
mais que podia concluir é que o crime é um fato
produzido por causas bio-químicas em um meio físico social.
196
Mas para constituir a ciência do direito penal não
foi preciso definir o crime, como para se formar a
estética não houve necessidade d e definir o belo.
Basta que se esteja convencido de que é uma
irregularidade social, a qual pode ser produzida por uma
causa normal ou anormal, interna ou externa, pouco
importa, porque o que constitui seu caráter específico é
ser uma anomalia em relação ao grande tesouro de
idéias, sentimentos e bens comuns, que constituem o
patrimônio social, e que se chama ora Opinião pública,
ora Crédito público, ora Moral pública, domínio imenso,
cuja invasão constitui o crime.
O resultado da multiplicidade das teoria s foi uma
infinita variedade de classificação de criminosos, não
diremos para determinar os diversos tipos de criminosos
segundo os seus caracteres específicos, mas para indicar
as principais categorias de criminosos segundo as várias
causas do crime, desde a simples e primitiva divisão dos
criminosos de hábito e criminosos de ocasião até às
enumerações mais ou menos complexas, que apareceram
depois da classificação de Ferri.
Assim deixaremos de lado as classificações de
Royce, Siciliani, Tallack, Garrau, Garofalo, Fouillé,
Espinas, Reinach, Ten Kate e Pavloviski, Soury,
Oettingen, Desporres, Du Cane, Zucarelli, Acollas,
Beaussire, Joly e todos que reproduziram mais ou menos
a distinção primitiva dos criminosos de hábito e
criminosos de ocasião, e indicaremo s tão somente as
tentativas feitas depois dos trabalhos de Ferri, sobre
classificação de criminosos, tentativas mais ou menos
197
interessantes, segundo o ponto de vista especial em que
se colocam os seus autores.
Ferri distingue:
1º) CRIMINOSOS ALIENADOS. Antropologicamente idênticos aos instintivos, mas distinguindo -se,
conforme nota Paolo Riccardi, pelo ato deliberativo do
crime, pelos motivos, pelo modo de agir e de comportar se antes, durante e depois da ação criminosa.
2º) CRIMINOSOS INSTINTIVOS. Ausência hereditária do senso moral, imprevidência, insensibi lidade,
ausência de remorsos.
4º) CRIMINOSOS DE OCASIÃO. Fraqueza de
senso moral, sujeição às circunstâncias exteriores.
5º) CRIMINOSOS POR PAIXÃO. Impulsi vidade, indiferença para com a comunhão, imprevidência.
Minzloff propõe classificar os criminosos em
quatro categorias:
1ª) Indivíduos inteiramente, ou em parte, selva gens por efeito de atavismo.
2ª) Loucos e doentes.
3ª) Descendentes de loucos, doentes e criminosos.
4ª) Indivíduos sem meios de subsistência, que
agem sob ação de influências psíquicas, que não podem
combater por efeito da educação recebida.
Serge divide os delinqüentes em:
198
1º) Delinqüentes por degeneração morfológica,
compreendendo:
a) Os delinqüentes por anomalia regressiva.
b) Os delinqüentes por ausência de adaptação bio lógica.
c) Os delinqüentes por degenerescência secundária.
2º) Delinqüentes por degeneração funcional,
compreendendo:
a) Causas biológicas.
b) Causas sociais.
Colajanni aceita a classificação de Ferri, acres centando a categoria dos delinqüentes políticos, e assim
reconhece:
1º) Delinqüentes políticos.
2º) Delinqüentes por paixão.
3º) Delinqüentes de ocasião.
4º) Delinqüentes habituais.
5º) Delinqüentes natos.
6º) Delinqüentes alienados.
Marro classifica os criminosos nas seguintes
categorias:
1ª Categoria – Delinqüentes, nos quais as causas
externas agem ou como causas predisponentes ou como
causas determinantes: delitos acidentais, ferimentos,
rixas, rebeliões, etc.
2ª Categoria – Delinqüentes, nos quais a influência das causas externas e interna se equilibra:
199
escroqueries, furtos domésticos e participação secundá ria em delitos graves.
3ª Categoria – Delinqüentes, nos quais as causas
internas têm pronunciada preponderância sobre as
externas: assassinatos, raptos, incêndios, etc.
Do mesmo modo que Marro, Lombroso dividia os
criminosos em duas grandes categorias:
1ª) Criminosos por defeito orgânico, inato ou
adquirido.
2ª) Criminosos por causas estranhas ao organismo.
Na primeira categoria eram compreendidos os
epiléticos, os loucos morais, os matoides, etc.; na
segunda os delinqüentes de ocasião, os delinqüentes por
paixão, etc.
Na última edição, porém, d’Uomo delinquente
Lombroso modificou sua classificação nos termos
seguintes:
1º) Delinqüente – nato e pazzo morale.
2º) Delinqüente – epilleptico.
3º) Delinqüente d’impeto de passione (forza
irresistible).
4º) Delinqüente pazzo.
a) Delinqüente alcoolista.
b) Delinqüente isterico.
c) Delinqüente mattoide.
5º) Delinqüente d’occasione.
a) Criminaloidi.
b) Psedo-criminali.
c) Rei d’abitudine.
200
d) Rei latenti.
e) Epilettoidi.
Benedikt classifica os homens em:
Homo nobilis (seres superiores).
Homo mediocris aut typicus (tipo humano médio)
Homem canalha, vicioso e criminoso.
Os homens criminosos são divididos em 4 grupos:
1º) Delinqüente acidental.
2º) Delinqüente profissional.
3º) Delinqüente por moléstia ou intoxicação.
4º) Delinqüente degenerado.
Maudsley, Bella, Corre reproduzem quase
textualmente a classificação de Ferri.
Nenhuma dessas classificações está isent a de
crítica, nenhuma delas pode ser aceita senão a título
provisório.
Basta atender a que todas elas foram feitas
segundo o ponto de vista, em que se coloca cada um de
seus autores, considerando este o criminoso um atávico,
aquele um doente, aquele outro um louco, um
degenerado, um profissional, um anti-social, e assim por
diante.
A verdade é que, apesar de todos os esforços dos
antropólogos e dos criminalistas, ainda não foi possível
determinar o que seja o delito, e o que seja o homem
delinqüente.
É preciso convir com Paolo Riccardi que, não
obstante o enorme material de teorias, de observações e
201
de críticas relativamente ao crime e ao criminoso, a
natureza de um e de outro permanece um problema de
difícil solução.
Os trabalhos de Lombroso, Lacassagne, Bordier,
Manouvrier, Magitot, Lucchini, Ga,ba, Ave -Lallemant,
Garofalo, Ferri, Olivecrona, Almquist, Bastian, Tardieu,
Derselbe Friedaelnder, Emminghaus, Moreau, Zirn,
Magnan, Lentz, Henry Jolly, Gustavo Le Bom, Paul
Aubry, deixam ver claramente, após longa e aturada
reflexão, que o criminoso não é um tipo anatômico,
psíquico ou social, e que é uma utopia procurar um traço
especial, que caracterize o criminoso em sua complexidade anatômica, psíquica e social.
Nem se pense que resolve a questão a doutrina
tão lata quanto vaga, que considera o delinqüente um
homem inferior, assunto interessante, de que se ocupa
largamente Paolo Riccardi, tratando do suicídio, do
idiotismo, da prostituição, da imbecilidade, do cretinis mo, da epilepsia, do histerismo, da vagabundagem, do
parasitismo, etc.
Não é absolutamente exata a idéia de considerar
como indivíduo inferior o criminoso, que até pode ser
uma natureza superior, um grande homem considerado
sob todos os pontos de vista.
Tal é o caso do revolucionário, que muitas ve zes
é um missionário do progresso, um apóstolo do futuro,
um precursor da civilização.
Não contestamos que o criminoso tenha uma
organização psíquica, fisiológica, e até anatômica,
anômala relativamente ao homem normal, o que não se
202
pode dizer um achado dos tempos modernos, porque
desde muito que os filósofos e todos aqueles que se têm
dado ao estudo do homem, notaram uma certa relação,
mais ou menos verificada pela observação, entre a
figura do corpo, especialmente a fisionomia, e o estado
da alma. “A fisionomia, nota Vidal, foi o objeto de
preocupações numerosas e de tentativas mais ou menos
felizes desde a antiguidade até aos nossos dias, desde os
poetas e os filósofos antigos, Homero, Zapiro, Sócrates
e Aristóteles, até os sábios contemporâneos, passando
por Porta, Lavanter e Gall”.
O que afirmanos é que até o presente ainda não
foi possível determinar as relações etiológicas entre o
crime e a organização anatômica, fisiológica e psíquica
do criminoso.
As dificuldades de caracterizar o tipo do criminoso assume proporções, que fazem desesperar de
uma solução em sentido positiva, se considerar -se que
em relação ao crime será preciso atender-se muito
especialmente ao meio social. É o que faz sobressair
com muita justeza Lacassagne, quando diz que o criminoso é um elemento que não tem importância, senão
no dia, em que encontra o caldo, que o faz fermentar.
“O criminoso com seus caracteres antropométricos não
nos parece ter senão uma importância muito medíocre.
Todos esses caracteres podem encontrar-se em pessoas
muito honestas. Daí o alcance social diferente segundo
estes dois pontos de vista. Ao fatalismo imobilizante,
que decorre inevitavelmente da teoria antropométrica, se
opõe a iniciativa social. Se o meio social é tudo e se é
203
bastante defeituoso para favorecer o desenvolvimento
das naturezas viciosas ou criminosas, é sobre este meio
e suas condições de funcionamento que devem versas as
reformas”. Para Lacassagne o crime é sobretudo, um
fenômeno social, e assim, “as sociedades têm os criminosos, que estas merecem”.
Lombroso, Ferri, Marro reconhecem bem que
pessoas honestas podem ter uma organização anormal, e,
à inversa, delinqüentes podem possuir uma organização
normal; e tanto basta para que o tipo criminoso perca o
caráter especial, o traço específico, que o distingue do
tipo normal humano.
Sob o ponto de vista fisionômico a existência de
um tipo geral do criminoso é contraditada pela in teressante experiência de Galton. Sabe-se que, graças
aos progressos da fotografia, é possível superpor muitos
retratos de membros de uma mesma família ou de uma
mesma raça, e assim obter um retrato, uma figura
comum representando o tipo geral da família ou da raça.
Pois bem, o distinto sábio inglês superpôs um certo
número de retratos de criminosos, e não obteve senão
uma figura comum sem traço algum, que caracterizasse
um tipo especial. “Ora tomados separadamente, cada um
destes retratos tinha alguma coisa de repelente; mas,
operada a mistura, o retrato que resultou, era um retrato
ordinário, banal, humano, não apresent ando caráter
algum saliente, e no qual em vão procurar -se-ia o traço,
que perturbava a serenidade de cada rosto”.
Que tipo criminoso é este que nem sempre
caminha fatalmente para o crime, e que muitas vezes
204
não se manifesta senão pela loucura, pelo suicídio, pela
prostituição, pela imoralidade, pela simples excen tricidade ou bizarria de conduta pelo caráter desa busado, pelo espírito de aventura, e até pela mais estrita
observância das leis penais?
A revelação, feita pelo próprio Lombroso no
Congresso de Antropologia criminal, reunido em Roma
em 1885, da confidência sincera desse homem muito
rico, que confessava que, se fosse pobre, seria assassino
ou ladrão, não é prova de não raras vezes o crime é
devido à influência de causas sociais, como miséria,
ignorância ou ociosidade? A simples riqueza ou posição
social tanto basta para transformar o bandido em agiota
ou o ladrão em explorador de empresas fraudulentas.
Contestando que a Criminologia constitua um
tipo antropológico, escreve Topinard que se pode falar
em tipo criminoso, como se fala em tipo de militar, de
magistrado, de padre, de negociante, de proletário; mas
são tipos coletivos acidentais, que aparecem e
desaparecem com a ação dos meios no dizer de Buffon,
ou das circunstâncias na linguagem de Lamarc k. Não
são tipos congenitais e hereditários, como pretende
Lombroso que seja o criminoso; são o que se poder4ia
chamar – tipos mesológicos, devidos às condições gerais
de existência ou antes tipos sociais, criados pelas
distinções sociais, pelos gêneros de vida, pelas
diferenças de ocupação. “O tipo coletivo acidental, diz
Topinard tem por característico ser essencialmente
ligado aos indivíduos, aparecer e desaparecer com as
condições comuns, que lhe deram nascimento, e não se
205
transmitir por gerações. Os tipos coletivos acidentais
não passam à geração, que os viu nascer, se repetem,
não se continuam.
Os tipos de profissão, de habitat, de classes
sociais, de que demos exemplos, não são senão tipos
coletivos acidentais, isto é, semelhanças entre indivíduos submetidos às mesmas influências, desde o
nascimento até a idade adulta. Não é duvidoso, depois
do exposto, que possa haver um tipo coletivo secundário
de criminoso, senão muitos, correspondendo cada um
aos diversos gêneros de meio, em que se acham.
A educação primeira dos criminosos ou de
família, sua educação secundária ou pela sociedade, sua
precocidade, seu modo de existência, são muito espe ciais para que não resulte em cunho comum.
Mas não se segue por isto que haja um tipo de
família, e por conseguinte, congenital de criminoso. São
questões distintas”.
Se existisse um tipo de homem delinqüente no
sentido lombrosiano da palavra, este tipo permaneceria
idêntico a si mesmo através dos tempos e dos lugares.
Mas pode-se pretender que os criminosos de todos o s
séculos e países formem um povo a parte no seio dos
outros povos? Não vemos muitas vezes a figura do
criminoso se transfigurar na do herói, quando os atos de
depredação e impiedade, de perfídia e crueldade, são
dirigidos contra o estrangeiro, contra o in imigo? Não
falando do infanticídio, do aborto, e tantos outros
delitos elevados à categoria de ações louváveis entre
certos povos, os chamados delitos naturais na expressão
206
de Garofalo, o roubo e o assassinato, não perdem o
caráter de criminalidade, quando são cometidos fora do
clã ou da cidade, da família ou da casta? “Mas estes
Cossacos, interroga Gabriel Tarde, esses Prussianos, tão
numerosos que, em 1814, violavam as mulheres, e
depois as degolavam em face de seus maridos
garrotados, não eram cidadãos honestos em suas aldeias,
onde nunca cometeram o menor delito, e onde mais de
um teve de ganhar a medalha militar?
Deste modo, transpondo as fronteiras de sua
nacionalidade, o tipo de homem criminoso perde os
traços, que deveria conservar inalterável atravé s de
todas as épocas e latitudes.
É verdade que existe um flair que revela ao
observador sagaz a existência do homem perigoso ou
criminoso no seio das pessoas honestas ou inocentes.
Mas, conforme nota Tarde “não é o olho, é o olhar; não
é a boca, é o sorriso; não são os traços, é a fisionomia;
não é a estatura, é o andar, que esclarece o advinho sem
este mesmo dar por isto”.
Este flair especial é antes o rastro deixado pelo
crime do que o sinal de uma predisposição criminosa.
Dizia Vidocq que não tinha necessidade de ver
todo o rosto de um criminoso, bastava-lhe poder fixá-los
nos olhos.
Mas isto pelo estado de espírito, traduzido, ou
melhor traído, pelo olhar do criminoso, estado de
espírito, que apesar de todas as dissimulações o
indivíduo não consegue ocultar nas profundezas mais
íntimas de seu ser, e não porque o olhar do criminoso
207
tenha uma expressão particular sempre idêntica a si
mesma entre os criminosos.
Mas não sendo possível definir o crime, nem
caracterizar o tipo de delinqüente, de que modo
determinar a responsabilidade do criminoso?
As doutrinas principais sobre a responsabilidade
criminal são:
1ª – O homem é dotado de livre arbítrio, e se
escolhe o mal, deve ser punido.
Esta doutrina supõe como condições essenciais da
responsabilidade – o conhecimento do mal e sua livre
escolha.
2ª – As ações humanas são produtos de causas
físicas e morais, que as determinam. A vontade não é
senão a consciência, em um dado momento, do conflito
de forças externas e internas.
Consoante a esta doutrina, o homem não é
responsável senão porque vive em sociedade e suas
ações não são punidas senão quando determinadas por
motivos anti-sociais.
3ª – Entre as doutrinas do livre arbítrio e do
determinismo surge a da voluntariedade.
A liberdade e o determinismo, dizem alguns,
podem ser contestados; mas não se dá o mesmo com a
vontade. Se o homem quer os atos que pratica, é por eles
responsável.
Eis como Villa em seu relatório à Câmara dos
Deputados expunha o conceito da voluntariedade, no
projeto do novo código penal da Itália : “Um dos
problemas, que fatigaram mais as inteligências dos
208
jurisconsultos e dos filósofos, é o da imputabilidade do
crime... Sem nos ocuparmos das opiniões isoladas ou
intermediárias, devemos notar que há três doutrinas, que
hoje separam o campo da discussão a respeito. Uma
delas, a mais antiga e a mais espalhada, nos ensina –
que o homem não pode ser imputável de um crime, se o
fato não foi o produto da livre determinação de sua
vontade... Entretanto, os ataques à teoria do livre
arbítrio são muito antigos na filosofia; mas, hoje foram
renovados mais audaz e vivamente, passando da tese
abstrata à tese especial e concreta da imputabilidade do
crime... Negou-se o livre arbítrio, e que, portanto, a
imutabilidade e a responsabilidade possam ser fundadas
sobre ele. Acreditou-se mesmo poder tornar responsável
o homem sobre o fundamento da idéia pura e simples da
necessidade social, que quer que ao delito suceda a
pena, como sanção ou reação correspondente. De sorte
que não seria mais necessário indagar se um ind ivíduo é
mais ou menos livre em suas volições para estabelecer o
fundamento de sua responsabilidade penal, que deveria
ser a conseqüência de sua existência em sociedade... É
preciso reconhecer que estas doutrinas, sustentadas hoje
com o apoio das ciências mais modernas, tais como a
sociologia, a estatística, a fisiologia e a antropologia...
exerceram um encanto singular... Mas a história, a
tradição, a consciência humana são também forças vivas
para a ciência... A luta ardente preparou um novo
postulado que, entre as duas teses opostas do livre
arbítrio e de sua negação, é talvez a solução verdadeira
do problema”.
209
Se por um lado, porém, atos há que são puníveis,
posto que sejam involuntários, por outro lado, existem
atos que, não obstante voluntários, não po dem ser
punidos, como no caso do indivíduo que mata outrem
em legítima defesa.
“Não basta, diz Ferri, ter querido o fato, é preciso
demais uma intenção ofensiva, com um fim anti-social
ou anti-jurídico.
É o que os juristas e os legisladores exprimem
menos completamente, dizendo que o elemento
psicológico do crime é constituído pelo dolo ou malícia,
ou má intenção; ou então ajuntando que com o dolo
geral em cada crime é necessário o dolo específico
(animus diffamandi, animus occidenti, etc.).
Dizer, portanto, que uma ação é punível, só
porque é voluntária – eis um erro psicológico.
Dois homicídios igualmente voluntários podem
ser – um punível e outro não, segundo há ou não uma
intenção ofensiva e um fim anti-social”.(18)
Também nem sempre se requer a voluntar iedade
para que um ato possa ser punido, como nos casos de
negligência ou imperícia, sobretudo se trata -se de um
crime por omissão. Neste caso, não colhe mesmo a
alegação de que, embora a conseqüência não tenha sido
querida nem prevista, todavia o ato inic ial foi voluntário. Não se pode dizer voluntário o ato inicial, porque
a omissão consiste justamente em não ter o indivíduo
querido o ato, que a lei exige. O indivíduo poderá alegar
que não se lembra do ato exigido por lei, e nem por isso
ficará isento de pena.
210
Daí a dificuldade, sentida por aqueles que fundam
a responsabilidade sobre a voluntariedade, de justificar
a punibilidade dos crimes culposos, dando em resultado
alguns juristas sustentarem – que a culpa não é punível.
Para sairem-se da dificuldade alegam alguns –
que a culpa é uma falta de vontade e não de inteligência.
Mas, é justamente por ser uma diminuição, senão
uma eliminação, de vontade, que na deve ser punida,
desde que funda-se a responsabilidade sobre a vo luntariedade.
A verdade, porém, é que a culpa não vem a ser
uma falta de vontade, senão porque ela é um defeito de
inteligência. Assim, não se pode dizer com Carrara que
há culpa, quando o indivíduo voluntariamente deixou de
calcular os efeitos de seu ato.
Não é falta de vontade que traz a imprevidência,
mas antes a imprevidência que produz a falta de vontade
De duas uma: ou a definição de Carrara importa contradição nos próprios termos, ou, se é possível compre ender alguém deixando voluntariamente de calcular os
efeitos de seu ato, dar-se-ia então o caso do dolo. Se
voluntariamente atiro sobre uma moita, tendo previsto
que por trás dela pode estar oculta alguma pessoa, já
não se dá mais o caso de negligência ou imprevidência,
há verdadeiro dolo, posto que indeterminado.
Para mostrar que a responsabilidade pode variar
indefinidamente, havendo em todos os casos a mesma
voluntariedade, figura Carrara o exemplo do caçador,
que dispara voluntariamente um fuzil sobre uma moita
por trás da qual está um homem.
211
Se descarrega a arma para vingar-se por meio da
morte, há homicídio ou tentativa de homicídio, con forme sua intenção se realiza ou não; se atira por mo tivo de legítima defesa, ainda mesmo que cause a morte,
não é punido; se, sem ser por motivo de vingança ou de
legítima defesa, na ocasião de despejar a carga lembrouse de que alguém podia estar por trás, é caso de crime
doloso, posto que indeterminado, e como tal punido com
as penas de crime consumado ou tentado, conforme o
efeito; se não previu os efeitos possíveis do seu ato, é
apenas responsável de culpa; e se o fato não podia
absolutamente ser previsto, então não há crime, por ser
considerado casual.
Segundo os dados da psicologia moderna, o eu
não é uma substância simples, mas uma combinação de
elementos, um sistema de estados.
Esta combinação de elementos, este sistema de
estados é de tal sorte integralizado que, apesar de
múltiplas e variadas mudanças, realiza -se uma continuidade, uma duração, u’a memória.
O produto evoluído desta vasta associação,
importando uma unidade, constitui o eu que, elevado à
categoria de força, toma o nome de liberdade, sempre
que age autonomicamente.
A liberdade, portanto, não é, como geralmente se
pensa, arbitrária; pelo contrário, ela é determinada,
porquanto a autonomia não exclui a influência dos
motivos.
Não se compreende a autonomia sem a integridade do eu, e a falta desta integridade pode resultar
212
ou de um estado anormal da combinação de seus ele mentos constitutivos (tal é o caso de moléstia ou falta de
desenvolvimento mental), ou da ação de qualqu er causa,
que não seja a simples influência dos motivos (tal é o
caso do constrangimento ou da violência).
A vontade não é outra coisa senão o eu
desposando o motivo. Sendo assim, compreende-se
facilmente que, dada a integridade do eu, deve-se
atribuir-lhe o ato querido, não como emanação do livre
arbítrio, mas como conseqüência do consórcio do eu
como o motivo.
Um eu, que quer uma perversidade, se a realiza, é
de fato seu criador, e então o ato lhe deve ser imputado.
Não se trata de uma imputabilidade filh a do
votum arbitrium indifferentiae, nascida segundo a
expressão de Tarde, ex abrupto et ex nihilo, ou de uma
imputabilidade estribada sobre a temibilidade, sem
indagar da integridade do eu ou da voluntariedade da
ação.
Na realidade, que vemos? A sociedade absolvendo aqueles que não têm a determinação autônoma de
seus atos, por mais temíveis que eles sejam.
O crime como simples ofensa à comunhão, e a
pena como meio de defesa social, não são critérios
suficientes para organização da justiça criminal.
Nota com toda a razão Tarde – que nos vários
tempos, e entre as diversas nações, não têm sido as
ações mais prejudiciais ao interesse geral as consideradas mais criminosas e punidas mais severamente.
“Se o maior crime entre os antigos persas era sepultar os
213
mortos, e entre os gregos não sepultá-los, não é que o
maior interesse prático desses povos fosse referente aos
usos fúnebres... O maior crime, na idade média, era a
sodomia... A criminalidade de um ato não se pro porciona, pois, em um lugar e em um tempo dado, ao
prejuízo que resulta, nem mesmo ao prejuízo suposto e
imaginário, como no caso da feitiçaria”. (19)
Nas tribos selvagens e nos povos bárbaros, onde o
sentimento da honra e da dignidade é muito menos
desenvolvido do que entre as nações civilizadas, pun e-se
o adultério com penas atrozes, ao passo que a
infidelidade conjugal não figura entre os artigos dos
códigos mais adiantados.
Por serem as ações humanas motivadas, nem por
isso deixa de haver solidariedade entre elas e o eu. É
certamente uma ilusão da consciência que o eu seja a
causa exclusiva de seus atos; mas também é uma
verdade incontestável que não se pode divorciar o eu de
seus atos.
Basta que o homem reconheça seus atos como um
prolongamento do seu eu, para que não possa deixar de
imputá-los a si próprio.
Nosso eu é um produto de acontecimentos, que
lhe dão um cunho especial e lhe imprimem mesmo uma
direção; mas, porque não criou sua própria natureza, e
porque seus atos têm sua origem nesta natureza, que ele
não criou, segue-se que não lhe devam ser imputados,
quando aliás ele próprio reconhece sua solidariedade
com esses mesmos atos?
214
Nós compreendemos que, à proporção que o
tecido das causas e efeitos se torna cada vez errado e
consistente, a ponto de se dizer que se fosse possível
conhecer todos os antecedentes, as ações do homem
seriam preditas com a mesma certeza que um eclipse, a
idéia do livre arbítrio, isto é, de querer ou não querer no
mesmo tempo, vá desfazendo-se como uma ilusão; mas
o mecanismo do mundo moral, sendo mesmo análogo ao
do mundo físico, de certo não elimina a solidariedade do
eu e seus atos.
“Vêem-se algumas vezes, diz Kant, homens que,
tendo recebido a mesma educação que outros, a quem
foi ela salutar, mostram desde a infância uma maldade
tão precoce, e fazem tantos progressos em sua idade
madura, a ponto de se dizer que nasceram celerados, e
serem tidos como incorrigíveis. E, no entanto, não se
deixa de julgá-los pelo que eles fazem, de exprobar -lhes
os crimes como faltas voluntárias; e eles mesmos acham
estas exprobrações fundadas”.
Nem podia ser de outro modo, porque as ações
humanas não são simples efeitos de causas exteriores.
Desde que o homem se reconhece solidário com as suas
ações, ele próprio as imputa a seu eu.
A imputabilidade é uma conseqüência lógica,
necessária, fatal mesmo, da atividade consciente.
Os animais, que possuem uma consciência mais
ou menos obscura da sua atividade, têm a noção da
imputabilidade propriamente dita, que importa mérito ou
demérito.
215
Para esta condição, além do reconhecimento da
solidariedade com os seus atos, é mister que o eu tenha
idéia do justo, noção primeira, como a do verdadeiro ou
a do belo, e que não precisa ser definida para ser
compreendida.
Somente quando o eu reconhece a sua ação de
harmonia com a idéia, que tem, de justiça, é que a
considera meritória, digna da simpatia alheia; no caso
contrário, sofre até vexame, como Safo sentia -se mal em
face da própria fealdade.
O prazer, quando fazemos bem, e o prazer,
quando praticamos o mal, nascem da harmonia ou de
desarmonia entre nossa ação e a idéia que temos do bem
ou do mal.
A simpatia e a antipatia, que sentimos pelas ações
alheias, se fundam na mesma relação de conformidade
ou desconformidade com o nosso símbolo de justiça.
A perversidade provoca – indignação, como a
estupidez – aborrecimento, e a fealdade – aversão.
Entretanto, não se é, de certo, estúpido ou
disforme, porque se queira.
O criminoso não é punido, somente porque tenha
praticado o ato; indaga-se também se ele tinha
consciência do ato praticado. É a pergunta que se fa z em
face dos atos mais monstruosos e daninhos à sociedade.
Sem conhecimento de que o ato é, ou não, conforme à
idéia que se tem do justo, não há responsabilidade
possível.
216
A noção de responsabilidade implica a de mérito
ou demérito, no sentido de que o at o está, ou não, de
conformidade com o postulado de justiça.
Já mostramos que, por não ser causa absoluta da
vontade, nem por isso o eu deixa de ter mérito ou
demérito; para tal, basta que o eu se reconheça como
uma força motivada, e não como um simples efe ito
causado.
É o que vemos na prática. Sempre que por
qualquer circunstância desaparece o equilíbrio, que faz
com que o eu se reconheça uma força motivada, passando então a ser considerado um simples efeito
causado, desaparece toda a idéia de mérito, e, p ortanto,
de responsabilidade para o indivíduo ou para a
sociedade.
Mesmo em desarmonia com o conhecimento do
justo, o homem reconhece o ato como seu, como uma
revelação de seu eu.
Assim, a responsabilidade social não exclui o
conceito de mérito ou demérito ; pelo contrário, supõe no
agente a idéia do justo ou injusto. O que se dá, é que
não se exige que o postulado de justiça, tomado para
medida da responsabilidade, seja o do autor: basta que o
indivíduo tenha conhecimento do postulado social, e
reconheça que sua ação está em desarmonia com este
postulado, o que sucede toda vez que existe integridade
do eu.
Afinal de contas, não há responsabilidade senão
porque o eu é complexo, senão porque a parte volicional
217
do eu, se assim podemos exprimir, nem sempre esta de
acordo com a outra parte, representada pela inteligência.
A responsabilidade é produto da desarmonia entre
a ação e a idéia do eu sobre a justiça.
Estivessem invariavelmente as ações de acordo
com a noção do justo, e desapareceria da consciência
humana o conceito da responsabilidade.
O homem, para quem se faz patente a consciência
desta desarmonia, sofre uma espécie de mal-estar, que é
a origem do remorso.
É seu sentimento, interposto entre a idéia e o ato,
combinado com o conhecimento da desarmonia entr e
uma e outro, que dá em resultado o remorso.
Se faltasse o sentimento, o indivíduo poderia ter
pleno conhecimento do mal, mas não existiria o
remorso.
A idéia de responsabilidade, porém, não implica a
de sanção.
Pode-se compreender a consciência da culpab ilidade sem a previsão da pena.
As idéias de demérito e castigo, posto que estreitamente ligadas, não se confundem.
As idéias de responsabilidade e de punibilidade
não se evocam senão pelo princípio de associação, em
virtude do qual uma idéia desperta outras, com que tem
afinidades.
A noção de responsabilidade se formou em face
do postulado de justiça; mas é prudente abandonar o
preconceito de que a justiça envolve a idéia de re compensa ou de punição social.
218
Segundo a organização emocional do indivíduo, a
idéia de justiça pode produzir mais ou menos remorso,
mais ou mesmo satisfação íntima; não acarreta, porém,
como conseqüência necessária a punição ou a
recompensa.
Kant, que teve sempre a clarividência das coisas,
não deixou de notar o disparate de tornar a justiça uma
forma do receio ou do cálculo, desconhecendo -se a
natureza essencialmente desinteressada do dever.
Rénan se revolta contra a idéia de que o bem não
tenha uma recompensa e o mal um castigo. É, como se
vê, o mesmo espírito da moral dos profet as de Israel;
mas reclamar uma sanção em nome da justiça não é
senão fazer antropomorfismo.
Não foi senão por ter ajuntado a sanção à
responsabilidade, que o homem mais tarde imaginou
entre elas uma necessária relação de coexistência.
Entretanto, a pena não passa de um processo
criado pelo homem para desenvolver sempre a idéia do
justo, tornando cada vez mais efetivo o sentimento de
responsabilidade.
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 277-356).
NOTAS
(1)
Lacassagne, La Criminalité chez les Animaux.
(2)
Vide Emílio Laurent, L’Anthropologie Criminelle, pág. 20.
219
(3) Entre certas sociedades animais existe bem nítido e
determinado o conceito do crime em suas diversas modalidades,
roubo, adultério, assassinato, etc.
Os macacos se associam para pilharem os vergéis de acesso
difícil. Têm pleno conhecimento do mal e direta intenção de
praticá-lo, como se diz na técnica jurídica, tanto assim que
colocam uma sentinela avançada no ponto mais conveniente para
avisar qualquer perigo. Dado o sinal, todos fogem. Refere
Neander que na pequena aldeia de Bangue, na Baviera, muitas
cegonhas viviam no melhor acordo entre si. Certo dia uma fêmea,
na ausência do macho, se deixou seduzir por um outro macho. De
volta, o esposo, sentind o-se traído, convocou um tribunal de toda
a coletividade, e a adúltera foi condenada a ser morta, senão a
pedradas, pelo menos a bicaradas.
Sabe-se como, dóceis e pacientes para com os de sua
espécie, os animais cometem verdadeiros assassinatos, por vin gança, rivalidade ou provocação.
(4)
Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 147.
(5) Degenerescence, tradução do alemão por Augusto Districh,
volume 29, pág. 205.
(6)
Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 147.
(7)
Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. VEE.
(8) Vice La Psychiatrie et Science des Idées por Casimiro de
Krauz, Annales de l’Institut Internacional de Sociologie.
(9
Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 130.
(10) Vide Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 433.
(11) Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 438.
(12) La Philosophie Pénale, págs. 255 e 256.
(13) Vide Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 341.
220
(14) Anais de Sociologia, ano 1895, pág. 433.
(15) Ferri, La Sociologie Criminelle, 1883, págs. 75 e 76.
(16) Ferri, La Sociologie Criminelle, págs. 73 e 74.
(17) Anais de Sociologia, ano 1895, págs. 426 e 427.
(18) La Sociologie Criminelle, 1893, pág. 367.
(19) Tarde, Études Pénales et Sociales, pág. 329.
221
5.
TOBIAS BARRETO,
SEU PONTO DE VISTA RELIGIOSO
Além das linhas que serviram de introdução às
Questões Vigentes, conhecemos quatro estudos, dada
qual mais precioso, sobre o vulto de Tobias Barreto, de
João Bandeira, o de Faelante da Câmara, o de Clóvis
Beviláqua, o de Sílvio Romero.
Na História da Literatura Brasileira Tobias
Barreto é estudado nas múltiplas manifestações de sua
natureza genial, como poeta, como orador, como jurista,
como filósofo, como musicista.
Procuraremos analisá-lo do ponto de vista
religioso, feição interessantíssima da alma grandiosa de
Tobias Barreto.
Hoje, o fenômeno religioso não interessa somente
aos crentes ou aos céticos, aos adversários ou aos fiéis
de uma seita; ele interessa aos epigrafistas, aos
etnólogos, aos filósofos, como interessa aos teólogos,
como interessará a todos que estudam, a todos que se
esforçam pelo desenvolvimento intelectual e moral das
sociedades.
Hoje, examina-se um dogma ou um culto, como
se examina um arco ou uma flecha e nem por isso a fé
religiosa perdeu coisa alguma no coração da
humanidade.
Há bem pouco tempo uma revista religiosa,
depois de frisar o progresso do catolicismo na América
222
e do protestantismo na França, concluiu bis seguintes
termos:
“O importante não é o progresso de uma e de
outra Igreja, é o progresso evidente na concepção de
uma vida verdadeiramente religiosa”.
Este espírito de tolerância entre as diversas
Igrejas, por mais divergentes que sejam suas vistas, é o
traço característico de nossa época, importando um
verdadeiro progresso a bem do sentimento religioso.
Quaisquer que sejam os progressos realizados
pelo espírito humano, por mais que tenha aumentado o
poder do homem sobre a natureza, por mais que o
império das leis gerais tenha restringido o domínio das
vontades individuais, a verdade é que a religião
continua a representar papel preponderante na maioria
dos espíritos.
Não raras vezes ao lado da negação intelectual
está a afirmação do sentimento, não raras vezes no
espírito de um livre pensador está a alma de um
religioso.
Não se trata de saber se os benefícios da religião
são ilusórios ou têm sido claramente comprados, o fato é
que o homem não pode desprezar o que passa os limites
da observação nem renunciar o que constitui sua fé.
A religião não é uma invenção humana, uma
invenção que o homem possa fazer e desfazer à vo ntade;
ela foi dada com a inteligência humana, ela é uma
função da razão, tanto assim que cada síntese religiosa é
menos criação de um profeta que de seus precursores,
apóstolos, discípulos e fiéis.
223
Não é senão porque existe em cada crente um
filho da divindade que a fé se propaga.
Cada profeta não trás senão a boa nova, que é
reclamada pela lógica de seu tempo.
Por isso teve razão Vera para afirmar que o lugar
da religião não é a consciência individual, mas a
consciência nacional, a consciência dos povos, consciência coletiva, comum, em que a consciência individual acha a fonte, a sanção e o alimento de sua
religiosidade.
Sob o ponto de vista social, porém a religião é
menos uma filosofia do que u’a moral. Não é aquele que
mais pensa no absoluto ou no infinito que melhores
provas dá de sua religiosidade, e sim aquele que maior
soma de bem pratica.
É o que veremos mais adiante.
O esforço intelectual, que produz a ciência, e o
sentimento profundo, que gera a religião, nascem de u’a
mesma fonte, e tendem para um mesmo fim.
É assim que a verdade e a piedade não se
excluem, dão-se as mãos.
Nada mais tocante do que a espécie de misticismo, que as descobertas inspiram aos sábios.
Aqueles mesmos que têm desfechado os mais
rudes golpes sobre a religião, quantas vezes não se
entregam a transporte de piedade?
É vem conhecida a aventura de Augusto Comte,
combatendo não só os teólogos, mas ainda os metafísicos. Para ele o espírito humano, chegando ao estado
positivo, se limita a constatar fatos e determinar leis.
224
Pois bem, o filósofo positivista, depois de ter
varrido de seu pensamento toda idéia de divindade,
escreveu uma obra em quatro volumes para criar a
religião da humanidade e instituir uma igreja com
padres, súplicas, sacramentos, todas as cerimônias de
um verdadeiro culto.
Tudo isto está dando a entender que hoje já não
existe ciência especificamente divina e que não seja um
produto do esforço humano; mas não quer dizer que não
tenhamos mais necessidade de fazer teologia.
Trata-se justamente de determinar o lugar que
ocupará a teologia entre as ciências modernas.
Não é exato que a ciência tenha de dar cabo da
religião.
Na vida nem tudo é ciência, como na alma nem
tudo é pensamento.
Bem diverso do sistema de Comte é o processo de
Renan, pretendendo que o mundo vir a a ser governado
exclusivamente por um poder único – a ciência.
Que será o mundo, escreve Renan, quando um
milhão de vezes se houver reproduzido o que se tem
passado desde 1763, quando a química em lugar de
oitenta anos de progresso, tiver cem milhões? To do
ensaio para imaginar um semelhante futuro é ridículo e
estéril. Entretanto este futuro existirá. Quem sabe se o
homem ou outro qualquer ser inteligente não chegará a
conhecer a última palavra da matéria, a lei da vida, a lei
do átomo? Quem sabe se, sendo senhor do segredo da
matéria, um químico predestinado não transformará
tudo? Quem sabe se, senhor do segredo da vida, um
225
biologista onisciente não modificará suas condições, se
um dia as espécies naturais não passarão como restos de
um mundo envelhecido, incômodo, de que guardar-se-ão
curiosamente os restos nos museus? Quem sabe, em uma
palavra, se a ciência infinita não trará o poder infinito,
segundo a bela expressão de Bacon: “Saber é poder?” O
ser em posse de uma tal ciência e de um tal poder será
verdadeiramente senhor do universo. O espaço não
existindo para ele, transporá ele os limit es de seus
planetas. Um só poder governará realmente o mundo:
será a ciência, será o espírito. Deus então será completo,
se é que a palavra Deus é sinônima da total existência.
Como se vê, Renan fala o mais irreligiosamente
possível da Ciência; mas nem por isso o culto da ciência
deixa de fazer parte da religião integral.
Existe uma verdadeira religião da ciência, que
não é outra coisa senão a ascensão do espírito para a
luz.
Está no mesmo pé de igualdade o sábio que nega
à ciência toda função religiosa, como o teólogo, que
teme todo o contato da ciência.
A verdade é que tanto da descoberta realizada
quanto do dever cumprido se desprende um delicioso
perfume místico, a que não foram estranhos Descartes,
Newton, Pasteur e tantos outros cultores da ciência.
Sob que condições, porém, a teologia se
constituirá ciência?
Sob duas cláusulas:
1ª) ter objeto próprio;
226
2ª) não empregar como instrumentos de inves tigação a observação e a indução.
Qual o objeto da teologia?
Schleiermacher o determinou claramente – é o
fenômeno religioso.
Mas este não será uma ilusão do espírito humano?
O que nos mostra a história, apoiada sobre a
observação dos fatos e a experiência dos acontecimentos, é que a vida religiosa é u fato social e
humano por excelência.
Nestas condições é preciso fazer a teoria da vida
religiosa.
Este trabalho está começando, resta terminá -lo,
Que nos falta para fazermos uma teoria da vida
religiosa, para termos uma disciplina com todos os
atributos de uma ciência positiva?
Sem dúvida ignoramos até onde irão as
descobertas científicas, até onde crescerá o poder mental
do homem; mas já possuímos uma grande soma de
material acumulado: graças ao desenvolvimento da
etnologia é enorme a massa de informações sobre a
evolução mental das raças e dos povos desde a pura
selvageria até a civilização mais refinada.
Guyau escreveu a respeito um notável livro A
Irreligião do Futuro, no qual se ocupa:
1º) da gênese das religiões nas sociedades
primit ivas;
2º) da dissolução das religiões nas sociedades
contemporâneas;
227
3º) da substituição das religiões por outras
criações do espírito humano.
Como se vê, é uma obra de história, crítica e
profecia ao mesmo tempo.
O título do livro desvenda o pensamento do autor.
Guyau está convencido de que as religiões representam
ainda um papel considerável, mas tendem a desaparecer.
Tobias Barreto, porém, considera a admissão de
um estado ulterior da humanidade, que se distingue de
todos os precedentes pela completa eliminação do
sentimento religioso como uma tese desacreditada.
“Os apóstolos da futura anomia religiosa não têm
direito de inferir o seu advento do fato ocasional e
transitório da descrença, que lavra em todos os domínios
do espírito na época vigent e.
Eu não sei que grande distância medeia entre o
ponto de vista do homem do povo que, observando um
terremoto, uma inundação, ou a passagem de um
cometa, conclui logo que o mundo vai se acabar, e o
ponto de vista de certos filósofos que, diante da
incredulidade e indiferença religiosa dos nossos dias,
induzem como lei o fim da religião”.
A ilusão provém da confusão da fé e da crença;
mas a fé não se confunde com a crença, da mesma sorte
que a impiedade não se confunde com a dúvida.
A crença e a fé não se extinguem nem renascem
do mesmo modo. A crença uma vez extinta, não renasce
mais. Para a dúvida só há um remédio: uma crença nova
em substituição à antiga. O mesmo não se dá com a fé,
que pode reviver com o arrependimento.
228
A crença, erigida a princípio em d ogma, torna-se
mais tarde opinião, e acaba por ceder o lugar a outra.
Outro é o caminho da fé, ato todo do coração e da
vontade, e que não implica adesão a um fato histórico
ou a uma doutrina, como sucede com a crença.
Esta confusão da fé com a crença tem dado lugar
a lamentáveis erros.
O cristianismo é a confirmação do que vem dito.
Jesus não faz teoria, ela não tem em vista senão a
prática da vida. O que lhe importa não é o título de
doutor e sim o papel de salvador.
Sua obra não é uma renascença intelect ual e sim
uma terapêutica moral. O que ele deseja não é iluminar
a inteligência e sim curar os sofrimentos da hu manidade.
Jesus nos ensina uma doutrina nova, ele
sugestiona a seus discípulos o que de piedade existe em
seu próprio ser.
Sua tarefa não é de um iluminado e sim de
encantador. Atraindo o homem a si, é que Jesus
aproxima de Deus, dupla revelação de amor de Cristo e
de fé no homem. “Vinde a mim, dizia Jesus, que
achareis em mim o repouso de vossas almas; seguii-me,
acreditai em mim; eu vivo no Pai, e o pai existe em
mim”.
Tal é a missão do Cristo, tal é a força de sua obra.
Jesus procura ligar a si o homem na terra tanto
quanto no Céu está ligado ao Pai.
É uma espécie de mediador plástico.
229
O que faz a grandeza do cristianismo não é a letra
do Evangelho e sim a pessoa de Cristo.
Não é porque Jesus seja mais humano e mais
acessível que o Pai, que a ele se dirige o cristão e sim
porque ele é mais do que uma lição, é um exemplo, mais
do que um exemplo, é um modelo de piedade.
“Deus, escreve Sabatier, pede o coração do
homem, porque o coração mudado e ganho arrasto tudo
mais, ao passo que o dom de tudo mais sem o do
coração não é senão aparente, e deixa o homem em seu
primeiro estado”.
Isto não quer dizer que, psicologicamente, a fé
possa existir sem a crença, da mesma sorte que o
sentimento não pode existir sem a idéia; mas na religião
o elemento importante é o moral, que diz respeito à
pureza do coração e à retidão da vontade.
Toda fé religiosa ou piedade precisa de uma
forma intelectual ou crença para se desenvolver.
É esta forma intelectual que sofre com o tempo
interpretações profundas e até completas substituições.
A fé que é a raiz mesma da religião importa dois
estados da alma: a autonomia da vontade toma posse de
si mesma e se afirma como força, e o amor, pelo qual
ela se distende e se comunica com a natureza inteira.
A primeira forma a alma capaz de resistir a todas
as iniqüidades, enquanto a conduz a todos os sacrifícios.
É por isso que o homem pode não crer numa
revelação, nem na existência da divindade, nem na vida
futura, sem que por isto seja menos piedoso, e tenha
uma atitude anti-religiosa.
230
Que importa a dúvida?
É o próprio Guyau quem diz: “A dúvida não é, no
fundo, tão oposta, como se poderia acreditar, ao
sentimento religioso mais elevado; é uma evolução
desse próprio sentimento. A dúvida, com efeito, não é
senão a consciência de que nosso pensamento não é o
absoluto nem pode apanhá-lo direta ou indiretamente.
Neste ponto de vista a dúvida é o mais religioso dos atos
do pensamento humano”.
Deixemos de lado a parte do livro em que Guyau,
historiador, se ocupa da gênese das religiões nas
sociedades primitivas bem como aquela em Guyau,
crítico, trata da extinção mais ou menos próxima das
crenças religiosas.
O que nos interessa saber no momento é se a
sociedade futura passará sem religião.
Guyau, profeta, gasta grande parte em expor e
criticar os sistemas filosóficos que pretendem substituir
a religião.
Mas na questão do panteísmo ou do monismo o
que está em causa não é a fé, raiz da religião, e s im a
crença, sua forma intelectual ou doutrina filosófica.
Diz Guyau: “A religião é um sociomorfismo
universal. A sociedade com os animais, a sociedade com
os mortos, a sociedade com os espíritos, com os bons e
maus gênios, a sociedade com as formas da nat ureza,
não são mais do que formas diversas desta sociologia
universal, em que as religiões têm procurado a razão de
tantas as coisas, tanto dos fatos físicos, como o trovão, a
tempestade, a doença, a morte, como das relações
231
metafísicas, origem e destino, ou das relações morais,
virtudes, vícios, lei e sanção”.
Mas, no panteísmo como no monismo, não se
encontra “esta sociologia universal, em que as religiões
têm procurado a razão de todas as coisas, tanto dos fatos
físicos, como das relações metafísicas, co mo das
relações morais?”
Imaginando, porém, com Renan, o infinito da
ciência, e com o infinito da ciência o infinito do poder,
vindo o ente em posse de uma tal ciência e de um tal
poder a ser o senhor do universo, em que esta hipótese é
superior à hipótese da criação?
Valia a pena cansar o espírito em combater velhas
crenças para povoá-lo de tais quimeras?
“Se não podemos, diz Raul Frary, nos impedir de
concebermos um deus ou deuses, imaginarmos o infinito
da ciência e da força realizado em seres pessoais e
conscientes, temos o direito de condenar os teólogos em
nome das modernas doutrinas científicas? A hipótese
desse futuro Júpiter é menos contrária ao que sabemos
sobre as leis da natureza do que a hipótese da criação?
Vale a pena aplicar uma crítica sem t réguas às velhas
crenças para alimentar o espírito de tais quimeras?
“Poesia por poesia, o Ramayana, Homero, a
Bíblia, valem bem essas efusões de um profetismo, que
duvida de si própria. É preciso confessar que os Deuses
presentes, em ação, amados e temido s, dão à imaginação
um pasto muito mais substancial do que esses deuses
futuros ou longínquos que, diz-se, devem surgir algum
dia, não somente fora da terra, mas fora do sistema
232
solar, e das porções do universo atingidas por nossos
telescópios.
A grandeza desses parvenus não é bastante para
consolar-nos de nossas misérias”.
Esta crença em um progresso indefinido, esta
idéia de marcha da humanidade para um destino quase
divino não está dando a entender que a alma humana é
trabalhada por uma espécie de instinto religioso?
Em todo caso, resta saber se com a ciência e
poder infinitos, os futuros habitantes da terra serão mais
felizes do que nós.
Renan figura a hipótese nos Diálogos Filosóficos:
“A elite dos seres inteligentes, senhora dos mais
importantes segredos da natureza, dominaria o mundo
pelos poderosos meios de ação, que estariam a seu
alcance... No futuro, poderão existir máquinas que, fora
de mãos sábias, sejam de nenhuma eficácia. Assim é que
se imagina o tempo, em que um grupo de homens
reinaria por direito incontestado sobre o resto dos
homens. Então, seria reconstituído como uma realidade
o poder que a imaginação popular prestava outrora aos
feiticeiros. Então, a idéia de um poder espiritual, isto é,
tendo por base a superioridade intelectual, seria uma
realidade... As forças da humanidade seriam assim
concentradas em um pequenino número de mãos e
tornar-se-ia a propriedade de uma liga capaz de dispor
da existência do planeta e de aterrorizar por esta ameaça
o mundo inteiro. No dia, com efeito, em que alguns
privilegiados da razão possuíssem o meio de destruir o
planeta, sua soberania seria criada; esses privilegiados
233
reinariam pelo terror absoluto, pois que teriam nas mãos
a existência de todos; pode-se dizer que seriam deuses, e
que então o estado teológico, sonhado pelo poeta para a
humanidade primit iva, seria uma realidade. “Primus in
orbe deus fecit timor”.
Eis o resultado a que chegaria a divinização da
ciência – a tirania absoluta de uma elite intelectual por
meio do terror. Caso, porém, a ciência sem limites se
estendesse ao vulgo, então imperaria a anarquia.
Espírito superior, Tobias Barreto não acredita que
a humanidade se ache em caminho para o estado de
irreligião.
“Não há, escreveu em 1878, não há razão
suficiente, máxime entre nós, para ter-se a religião como
dispensada do seu mister de iludir e consolar. Ainda por
muito tempo, e quem pode assegurar que não sempre? O
organismo social terá funções religiosas e carecerá, para
elas de órgãos especiais. Enquanto o homem,
encontrando este mundo somente durezas, injustiças e
misérias, criar-se pela fantasia um mundo melhor, uma
ilha encantada, onde ele irá repousar das fadigas e
enjôos da existência, a religião será, como até hoje, um
fator poderoso na história das nações”.
Já em 1870 dizia ela no Americano: “Dizer que a
religião não tem raízes profundas no mais íntimo da
alma humana é uma calúnia psicológica. Se porque o
estado religioso de alguns espíritos pode atenuar -se a
ponto de parecer nulo, daí se deduz que ele é provisório
e não corresponde a uma faculdade permanente, não
seria injusto assegurar também que o estado filosófico é
234
da mesma natureza, porque vêmo-lo muitas vezes
tornar-se vagamente indeciso e perder-se nos vapores de
místicas visões. É certo que não pertencemos ao grupo
dos que pensam que o pássaro, a que se cortou as asas
não pode mais viver, ou que a alma de que se tiram as
esperanças e belas perspectivas de além túmulo, perde,
perde por isto as forças e rola no abismo da abjeção de
miséria. Este insulto que se faz à razão e à l iberdade,
julgadas incapazes de abraçar a virtude por si mesma,
quando não se lhe deixa cair no seio um título de débito
pagável em outro mundo; este suborno hediondo,
praticado em nome de Deus, é a mais viva prova da
tacanhice humana, é a teoria do ganho transcendental.
não a discutimos, desprezamo-la. Mas também não
podemos admitir que a filosofia venha podar estes
lances primitivos, estas primeiras folhas do coração,
como estéreis e caidiças para produzir mais vigorosos
rebentos”.
Tobias Barreto, porém, estuda com verdadeira fé
científica o fenômeno religioso e mais especialmente o
cristianismo, que não é senão uma forma superior
daquele.
Que é o cristianismo para Tobias Barreto?
Diga a esplêndida página, a que dificilmente
encontrar-se-á igual em crítica religiosa:
“Quando se estuda a história do povo judeu
observa-se um fenômeno admirável que não se encontra
na vida dos outros povos antigos. Queremos falar da fé
ardente, com que essa nação inditosa teve, de contínuo,
235
os olhos cravados no futuro, cuja pur a claridade não se
lhe empenava pela nuvem da desgraça.
Daí resulta o espetáculo majestoso que oferece a
procissão imensa da família de Israel sempre altiva e
magnânima, resumindo em sua vida o destino da
humanidade.
E por isso diz Ewal que a história dest e velho
povo é a história da verdadeira religião, aperfeiçoando se gradualmente e, no meio de todo gênero de lutas,
elevando-se à vitória suprema, para daí irradiar com
toda a sua força de modo a constituir -se o eterno
patrimônio e a eterna benção ( ewiger Besitz und Segen)
de todos os outros povos.
Ao passo que por outras partes, diz Reuss, nós
vemos a imaginação dos homens traçar complacen temente o quadro de uma idade de ouro para sempre
esvaecida, Israel, guiado por seus profetas, persistia em
volver as vistas para o lado oposto e aferrava -se à idéia
de uma felicidade futura com tanto maior firmeza,
quanto a situação presente parecia dever dar às suas
esperanças o mais solene desmentido.
Este nobre distintivo que é hoje de todos
reconhecido, não tem recebido de todos seu verdadeiro
valor e apreciação merecida.
No juízo que se forma geralmente da civilização
moderna, já é erro habitual ceder uma larga parte, uma
parte demasiada ao gênio helênico.
Não basta reconhecer, com Bordes Dumoulin, a
influência renovatriz do espírito cristão, distinguindo -a
da ação contrária dos chefes eclesiásticos. Menos ainda
236
basta admitir, com Huet, que o cristinanismo e o gênio
grego-latino são os dois elementos necessários, irredutíveis da nova civilização.
Melhor que tudo isto, um escritor eminente que
convém ter sempre em vista, Guizot, disse também
sobre o espírito civilizador das sociedades atuais, que os
Gregos foram o elemento humano e intelectual, os
Judeus o elemento divino e moral.
E todavia nós achamos este dizer um pouco vago.
O elemento divino, de que fala o ilustra autor, não é
simplesmente uma fibra demais que a Bíblia tenha dado
para vibrar ao impulso de místicos oradores; não é
mesmo a idéia monoteica, depurada de qualquer mácula
idolátrica pelo bafo ardente de profetismo exaltado.
É porém alguma coisa de profundamente vivido e
agitado, o pressentimento enérgico do futuro, o ideal
político e social que modera o caráter descontente e as
aspirações indômitas do espírito moderno.
E de feito os povos que se afeiçoam à civilização
cristã, são todos messianistas, quer o saibam, quer não;
todos sonham, todos visam além uma época mais feliz.
O futuro que entre os antigos era apenas uma
divisão do tempo e só tinha um nome próprio e distinto
na gramática, é agora um poder para que se apela, uma
estrela atrás da qual vão as idéias, um braço invisível
que sai da imensidade e suspende as nações acima do
planeta”.
O cristianismo é a religião do ideal, e segundo o
cristianismo nos não servimos o ideal, porque ele se
237
realiza, mas o ideal se realiza, porque nos esforçamos
para que ele seja uma realidade.
Falando em ideal não queremos dizer que Cristo
fosse um filósofo ou um poeta, ele foi sobretudo a
encarnação da piedade. Cor Cordium.
O que vibra todo o seu ser não é a contemplação
do universo, a investigação das leis naturais, e sim o
império da injustiça, o espetáculo da iniqüidade, contra
o que ele irá até o martírio.
“O moço doutor da Lei, são palavras de Tobias
Barreto, que sem ter sido discípulo, tornou-se mestre, e
à primeira palavra que proferiu ante a multidão,
embebeu de esperanças e consolações até às raízes da
alma humana, se não deu, por felicidade nossa, às idéias
correntes de seu tempo o esplendor de um palavreado
platônico, fez muito mais do que isso: aqueceu-as em
seu peito, e mandou que elas bebessem no seu coração o
orvalho que as alimenta e o aroma que as diviniza”.
(Transcrito de A Cultura Acadêmica. Tomo 1º, volume 1. Recife,
Imp. Industrial, 1904, págs. 3 a 18).
238
6.
FILOSOFIA BIOLÓGICA
Devido à gentileza do Dr. Frota e Vasconcellos
tivemos o prazer de ler os Problemas de Filosofia
Biológica, do jovem Artur de Araújo Jorge.
Editou a obra o Dr. Frota e Vasconcellos, que
está prestando grande serviço às letras brasileiras, e
especialmente a Pernambuco, do pont o de vista da
produção intelectual e seus esforçados cultores.
Ainda agora temos sob os olhos uma carta de
Angelo de Gubernatis, na qual este glorioso homem de
letras, que é objeto de justo orgulho para a Itália, afirma
que as edições d’A Cultura Acadêmica, dirigida pelo Dr.
Frota e Vasconcellos muito o interessaram, e que ele
aproveitará os exemplares, que lhe foram remetidos,
para, em seu Dicionário Biobibliográfico dos Latinos,
que deverá aparecer em junho próximo, dar conta do
movimento intelectual de Pernambuco.
O livro do Dr. Artur de Araújo Jorge revela uma
vasta cultura e uma inteligência aberta aos eflúvios
luminosos da filosofia, supremo gozo do homem que
sente necessidade de conhecer em sua totalidade o
Universo, esse grande ser vivo dos Estóicos, no qual a
terra constitui o corpo da humanidade e a humanidade o
espírito da terra.
Estamos em pleno desacordo com o jovem filó sofo sob muitos pontos de vista; mas nem por isso
sentimos menos calorosa simpatia por um moço, cujo
239
precoce desenvolvimento intelectual parece informar o
aforismo de Bacon: Veritas filia temporis.
***
Os problemas da vida, desde a vida das plantas,
com a elegância de suas formas, o brilho de suas cores e
a suavidade de seus perfumes, até a vida dos gênios,
laboratório em que a natureza se transforma em ciência,
continuam envoltos em densas trevas.
O espírito humano busca resposta para as suas
interrogações na especulação filosófica, que oferece as
mesmas soluções há trinta, há cem, há dois mil anos: é o
animismo, o vitalismo e o materialismo.
Há ainda atualmente, escreve A. Dastre,
representantes desses três sistemas que em todos os
tempos disputaram a explicação dos fenômenos vitais:
há animistas, vitalistas e unicistas. Mas se adivinha que
de ontem para hoje há alguma coisa d e mudado no
assunto.
Não foi em vão que a ciência em geral e a própria
biologia fizeram progressos desde o tempo da Renascença e sobretudo durante o curso do século XIX. As
velhas doutrinas foram obrigadas a se reformar, a
renunciar partes caducas, falar uma outra linguagem, em
uma palavra, rejuvenescer os neo -animistas de nosso
tempo.
Chaufford, em 1868, Von Bunge, em 1889 ou
Rindfleisch, mais recentemente, não pensam exatamente
com Aristóteles, S. Tomás ou Stahl. Os neo -vitalistas
240
contemporâneos, sejam ilustrados em fisiologia, com
Heidenhain, ou em química biológica, como Armand
Gautier, ou em botânica como Reink, não falam de 1880
a 1900 a mesma linguagem que Paracelso, no século
XV, e Van Helmont, no século XII, que Barthez e
Bordeau, no fim do século XVIII, ou somente Cuvier e
Bichat, no começo do século passado. Enfim, os
próprios mecanicistas, quer sejam discípulos de Darwin
e Haeckel, como o maior número dos naturalistas de
nosso tempo, ou discípulos de Lavoisier, como a maior
parte dos fisiologistas atuais, estão longe das idéias de
Descartes.
Profundas transformações se operaram em cada
uma dessas teorias, permitindo apreciar sua influência
sobre a Biologia em geral e especialmente sobre a
Fisiologia e avaliar o resultado a que elas chegaram.
Sob este título vale bem a pena examinar as
modificações por que passaram aquelas diversas teorias
desde o animismo grosseiro dos tempos primitivos até o
materialismo mecanicista ou finalístico.
O animismo é a mais antiga das concepções
filosóficas do espírito humano.
Um fenômeno da vida diária deu origem às idéias
de alma e sobrevivência. É o sono. Dormindo, o homem
primit ivo sonha, e ao despertar lembra -se de que visitou
tais e tais lugares, de que lhe apareceram tais e tais
coisas, de que praticou tais e tais ações. Pelo seu estado
de inferioridade intelectual não podendo explicar estes
fatos por um trabalho espontâneo do cérebro, ele os
atribui a um ser interior, que durante o sono abandona o
241
corpo para se lhe unir de novo algumas horas depois.
Ora, na morte é este mesmo ser interior que abandona o
corpo por mais algum tempo ou mesmo para sempre. A
aparição de pessoas ou animais mortos, que se afiguram
vivos, ainda mais confirma a existência deste ser
interior, independente do corpo, e agora sob o ponto de
vista objetivo. São pessoas e animais, cujo ser interior
continua a persistir depois da morte. Entretanto, além
das pessoas e animais, aparecem em sonho coisas
inanimadas, que não somente brilham como as estrelas,
ou movem-se como as nuvens, ou crescem como a s
árvores, ou desabrocham como as flores, ou fulminam
como os raios, mas até se metamorfoseam, tomando
formas gigantescas ou desconhecidas, atacam ou
protegem os seres animados, falam com eles; então o
homem primit ivo explica sua aparição pela existência d e
um ser interior como nas pessoas e nos animais. Deste
modo tudo se anima na natureza, e tal é o estado de
cultura, a que Tylor dá o nome de animismo.
Mas de que natureza é este ser misterioso, que ora
se mantém unido ao corpo, ora o deixa por intervalos ou
para sempre, a fim de se transportar ao longe? A alma
humana nem sempre teve uma natureza espiritual; não
foi senão após longas transformações que ela se tornou
de uma pura imaterialidade. Primitivamente o espírito
significava sombra, e assim participava, de alguma
sorte, da materialidade do corpo. Pelo menos, deixava se ver-se, tinha movimentos, podia ser atingido.
Os Bassutos acreditam que, quando um homem
caminha sobre a margem de um rio, um crocodilo pode
242
agarrar-lhe a sombra, e assim arrastá-lo para fundo
d’água. “Na língua asteca e nas da mesma família, diz
Spencer, a palavra ehecatl significava ao mesmo tempo
vento, sombra, alma. As tribos da Nova Inglaterra
chamavam a alma chemung, sombra. Na língua quiché a
palavra natub e da dos esquimós a palavra tarnak
exprimem estas duas idéias”.
Mas para que multiplicar os exemplos de
sinonímia entre as duas palavras? é um fato muito
conhecido dos filólogos. Não somente as línguas
selvagens, mas o grego, o latim e outras línguas
civilizadas exprimem a mesma r elação de identidade
entre os dois vocábulos. Umbra, entre os romanos,
significa a sombra dos vivos e a alma dos mortos. É o
que explica certos povos acreditarem que o corpo do
morto não projeta sombra.
Por atribuírem ao espírito as propriedades do
corpo, é que alguns povos selvagens têm por costume
ofertar aos mortos comida, utensílios de caça e pesca e
outros objetos indispensáveis à satisfação de
necessidades puramente fisiológicas. É muito comum
entre os selvagens o uso de fornecer alimentos aos
mortos. Dentre os inúmeros casos mencionados pelos
etnologistas, lembraremos apenas o hábito de os
mexicanos depositarem aos mortos, além de alimento,
vestimentas. Nota Spencer que este uso persistiu por
muito tempo entre os incas, a cujos cadáveres
embalsamados se dizia: “Quando vivíeis, tínheis o
hábito de beber e comer; que vossa alma receba e se
nutra onde quer que estejais”.
243
O mais interessante é que, segundo nos ensina
ainda o eminente filósofo inglês, o costume tem lugar
mesmo nos países, em que se dá a cre mação. Assim,
pratica-se entre os Kukis, de que fala Butler, e entre os
antigos indígenas da América Central, a que se refere
Oviedo.
Acreditam os selvagens que os espíritos fazem
excursões, e que estas excursões são cercadas de
dificuldades e perigos. Por isso não é de admirar que
lhes dediquem instrumentos de defesa e até lhes
sacrifiquem animais e servidores, que os acompanhem
nas viagens de além túmulo. Portanto, nada mais natural
do que o desejo desse chefe chinouk de matar a mulher
para ela acompanhar ao outro mundo o filho. Os
esquimós costumam imolar um cão na sepultura das
crianças para lhes servirem de guia à região dos mortos.
Em Anit ium, morta uma criança, estrangula -se a mãe, a
tia ou a avó, para conduzi-la ao mundo dos espíritos.
Da concepção de uma alma material, não de u’a
materialidade densa e compacta como o corpo, mas de
u’a materialidade sutil e etérea, que, entretanto, toma
alimentos, é devorada pelos animais ou persegue como
fantasmas os inimigos, se passou à idéia de uma alma
sopro. Além do ar. que levanta turbilhões de areia ou
trombas d’água, encrespa a superfície dos lagos ou
abranda o calor das faces, a cessação respiratória, por
ocasião da morte, também deu origem a esta crença.
Entre os australianos Wang significa indiferentemente alma, sopro ou respiração. Da mesma sorte
entre os hindus Brahma quer dizer sopro ou alma. O
244
mesmo se dá com Kneph – o espírito divino dos egípcios
– que deriva de nef sopro. Para muitos habitantes da
Polinésia a alma é o sopro, que se exala, tanto assim que
eles costumam tapar a boca e o nariz dos moribundos
para impedirem que a alma se escapula. Não tem outra
significação a prática romana descrita por Virgílio e por
Cícero, em virtude da qual um dos parentes mais
próximos devia aspirar o último sopro do agonizante. O
fim era assimilar o espírito do finado, do mesmo modo
que certos selvagens acreditam apropriar as forças do
inimigo, devorando-lhe as carnes. É por isto que no
Taiti, onde julga-se residir a alma nos olhos, pertence ao
chefe da tribo o privilégio de comer os olhos do
inimigo.
Os hebreus não faziam outro conceito da alma.
No Gênese o homem não é transformado em alma
vivente senão depois que o Senhor lhe imprime na
fronte o sopro da vida. Em Ezequiel não bata que os
esqueletos revistam a carne para que revivam, é preciso
que o espírito divino sopre sobre eles.
Não foi sem viva oposição que a doutrina de
Anaxágoras, desenvolvida por Platão, pôde atravessar os
séculos para encontrar em Santo Agostinho seu mais
esforçado e fervoroso defensor. Os pr imeiros cristãos
não tinham uma idéia clara da espiritualidade da alma.
Esta doutrina não estava nas tradições do espírito
judaico. Jesus ressuscitou em sua carne. Tal é o dogma
fundamental do cristianismo. Além de Galeno, espírito
prático que não via na d istinção ente a alma e o corpo
senão uma questão estéril, que não aproveita a saúde
245
nem a virtude, muitos padres e doutores da Igreja
consideravam a alma material, e outros não admitiam
senão uma espiritualidade relativa. Entre os primeiros
figura Santo Hilário, e entre os segundos Santo Irineu.
Não é senão com Santo Agostinho que a alma
vem a ser tida como uma substância puramente espiritual, que existe por si mesma, independentemente da
matéria, doutrina que atingiu seu pleno desenvolvimento
em Descartes, além do qual o espiritualismo moderno
não avançou um passo.
Realmente, todos os argumentos, com que os
espiritualistas defendem sua hipótese de uma dualidade
de naturezas distintas, associadas durante a vida, e
caracterizadas por qualidades antagônicas, estão contidos nas palavras do notável filósofo francês: “Exa minando com atenção o que eu era, conheci que era uma
substância, de que toda essência ou natureza não é senão
pensar, e que para existir não tem necessidade de lugar
algum, nem depende de qualquer coisa material, de sorte
que este eu, isto é, a alma, pela qual eu sou o que sou, é
inteiramente distinto do corpo...”
Para o animista é a alma que faz viver o corpo,
agindo diretamente sobre os órgãos. Assim é ela que faz
“bater o coração, contrair o s músculos, secretar as
glândulas, funcionar todos os aparelhos”.
Mas como a alma, substância espiritual, pode agir
diretamente sobre o corpo, substância material?
Leibnitz pretendeu cortar o nó gordio com a
célebre teoria da harmonia preestabelecida. “As almas
se acordam com os corpos em virtude desta harmonia,
246
preestabelecida desde a criação e não por uma influência
física, mútua e atual. Tudo isto se passa na alma como
se não houvesse alma”.
Outra dificuldade com que lutava o animismo é
que, pensava-se, os fenômenos psíquicos são conscientes, reflexos e voluntários ao passo que os
fenômenos fisiológicos são automáticos, involuntários e
inconscientes. E então como compreender o comércio
entre eles?
Para conciliar a oposição atribuíram-se à alma
dois modos de ação: um exercendo-se sobre os
fenômenos de pensamento e em que age com reflexão,
consciência e vontade; outro exercendo -se sobre os
fenômenos fisiológicos e em que sua ação é automática,
inconsciente e involuntária.
Os vitalistas consideram os fenômenos vitais
como fenômenos específicos, completamente irredu tíveis aos fenômenos físico -químicos e aos fenômenos
psíquicos.
O isolamento, porém, se tem mentido mais firme
o lado espiritual que do lado inorgânico. Com efeito, os
neo-vitalistas não desconhecem que as leis da física e da
química agem sobre o organismo, e, à proporção que
eles foram reconhecendo esta influência, a força vital se
foi modificando desde a primitiva forma de espécie de
divindade a arquitetar-se com suas próprias mãos até à
concepção da idéia diretriz, sem existência objetiva,
sem virtude eficiente, sem papel executivo, necessidade
do espírito, conceito metafísico, pelo qual a inteligência
247
reúne e explica uma sucessão de fenômenos físico químicos.
Do lado psíquico, porém, a barreira subsiste
nítida. Nós não sentimos as pancadas do coração, os
movimentos do pulmão, as dilatações das artérias. A
alma que tem consciência de seus atos ignora o que
passa no corpo. Pitágoras, diz Dastre, distinguia a alma
verdadeira, a alma pensante, o nós, princípio inteligente
e imortal, caracterizado pelos atributos da consciência e
da vontade, do princípio vital da Psique, que dá ao
corpo o sopro e a animação, que é uma alma de segunda
majestade, ativa, passageira e mortal. Aristóteles fazia o
mesmo: punha de um lado a alma propriamente dita,
mens ou intelecto, isto é, o entendimento com suas luzes
racionais; do outro lado era o princípio diretor da vida,
a psique, irracional e vegetativa.
A falta de univitalistas, atribuindo a explicação
dos fenômenos vitais a uma causa estranha à matéria
viva, causa imaterial, sem substância, foi atenuada pela
concepção dos plurivitalistas, que consideram os
fenômenos vitais como manifestações da atividade da
substância viva proveniente do arranjo das moléculas,
de que é formado o organismo.
Considerando os fenômenos vitais como manifestações de atividade da substância viva, Bichat e os
sábios de seu tempo cometeram o erro de considerar as
propriedades vitais não somente como distintas das
propriedades físicas, mais ainda como opostas a elas.
É bem conhecido o quadro que a propósito pinta
Cuvier. É uma rapariga em todo o vigor e brilho da
248
mocidade ferida violentamente pela morte. As formas
esculturais se apagam para aparecer a saliência angulosa
dos ossos; os olhos outrora cintilantes se tornam turvos,
a cor de rosa da tez cede lugar à palidez, a flexibilidade
graciosa do corpo à rigidez do cadáver. Depois, mais
horríveis transformações se operam: as carnes passam
do azul ao verde, do verde ao negro: uma parte se desfaz
em matéria pútrida, a outra em emanações infetas.
Cuvier atribuiu estas modificações à ação do ar,
do calor, da umidade. Enquanto o corpo estava vivo
estes agentes eram importantes em face das proprie dades vitais, que reagiam contra eles, mas uma vez
morto o organismo, sua ação se torna eficaz. Bichat,
porém, teve uma idéia genial: foi a descentralização da
vidal. A vida deixou de ser localizada no estômago,
como entendia Von Helmont, no sangue, como pen savam os judeus, ou no bulbo raquidiano, como queriam
Legallois e Flourens, e passou a ser considerada como a
soma total da atividade dos diversos seres de que se
compõe o organismo.
Esta descentralização foi pouco a pouco
estendendo-se dos órgãos aos tecidos, dos tecidos aos
elementos anatômicos, dos element os anatômicos às
células.
Para os unicistas no admirável encadeamento dos
reinos mineral, vegetal e animal, tão intimamente
ligados entre si, de maneira que não se pode compre ender um independente do outro, a solução do problema
está em atribuir a vida ao átomo e em não ver nos
diversos modos de ser dos indivíduos senão uma questão
249
de maior ou menos complexidade de agrupamentos de
átomos.
Assim a combinação de átomos produziria a vida
química, a combinação de moléculas a vida física, a
combinação de células a vida fisiológica, a combinação
de órgãos a vida psíquica.
Pode-se admitir que a matéria seja móvel e não
movida, ativa e não inerte, e, entretanto, não identificá la com a vida. É o que resulta das experiências de Bohr,
o famoso fisiologista de Copenhague, e de Heidenhain,
o célebre professor de Breslau.
O ar e o sangue estão em presença um do outro no
pulmão, separados simplesmente por uma membrana
muito fina, formada de células vivas. De que modo se
vai portar esta membrana? Tão-somente segundo as leis
da difusão gasosa? As experiências de Bohr não deixam
dúvida a respeito: as coisas se passam de modo
diferente, de conformidade com as leis da secreção,
fenômeno fisiológico, que se não confunde com a
simples difusão.
O mesmo se dá com o que se refere à s trocas que
se realizam na intimidade dos tecidos ente os líquidos
(linfas), que banham exteriormente os vasos sangüíneos
e o sangue que eles contêm.
Uma perfeita metábole se realiza, a passagem do
líquido assume uma feição fisiológica.
Sim, impossível de definir a matéria tão-somente
pelo pensamento; esta matéria que não consiste senão na
extensão, e esta alma que não consiste senão no pensa mento são puros conceitos do espírito. Mas, porque as
250
forças fisico-químicas e fisio-químicas se influenciam,
nem por isso se podem dizer idênticas.
“Quando o escultor modela a estátua, diz Dastre,
há em cada golpe que faz saltar um pedaço de mármore,
mais alguma coisa do que a força viva do martelo; há o
pensamento, a vontade do artista, que realiza um plano”.
Se as transformações por que passaram as doutrinas filosóficas da vida foram no sentido de cessarem
de exercer sua tirania sobre as investigações científicas
e se, hoje, os biólogos se esforçam por se livrar de
compromissos filosóficos, esta prudência não exclui a
tendência para explicações mecanicistas ou teológicas.
Por este lado não é rigorosamente exato dizer -se
que a ciência ganha todos os dias o que perde a
filosofia. Ciência e filosofia giram em esferas distintas;
mas nem por isto se movem em campos inimigos.
Na parte relativa à etiologia do gênio ainda
estamos em desacordo com o Dr. Artur de Araújo Jorge,
por considerá-la mais uma questão de filosofia social do
que de filosofia biológica.
“Considerando o problema na posição em que eu
o coloco e ressalvo, diz o jovem filósofo, ela assume
como é fácil averiguar com a leitura atenta das
seqüentes considerações, uma feição nova, ignorada e
desconhecida a todos quantos fizeram dele objeto de
suas meditações. Em autor algum dos que me auxiliaram
na feitura deste trabalho, encontrei formulada a doutrina
que perfilo e creio possuo elementos para julgá-la senão
verdadeira, em vista da fragilidade das que se têm
apresentado na investigação da etiologia do gênio, pelo
251
menos provável, não somente devido a uma convicção
minha, íntima e inabalável, haurida no estudo acurado
feito sobre alguns destes grandes vultos que a
humanidade guarda carinhosamente no panteão de suas
glórias, como também mercê de um certo número de
fatos arduamente obtidos e que parecem comprová-lo;
limito-me ao que fez Bovio quando teve de expor a sua
opinião, fragílima aliás, sobre o gênio: io ho sbozzato
uma dottrina con esiguo numero di nomi e de esempi.
Sendo assim é claro que me assiste o direito indiscutível
de avocar a autoria da doutrina que su stento, enquanto
não se provar a inexistência dos fatos que estudo ou a
sua sintetização em doutrina alheia”.
Antes de tudo o autor indaga o que constitui o
gênio e como ele pode e deve ser definido.
Para o Dr. Artur de Araújo Jorge o que caracteriza o gênio é a originalidade, esta faculdade inventiva
que divisa sempre “nas coisas um aspecto novo além do
reservado à generalidade dos mortais”, como transuda
de suas próprias palavras:
“Segundo o meu modo de ver e também de
quantos têm procurado estudar o fenômeno da
genialidade, o gênio em si, em sua essê ncia íntima,
abstração feita de sua causa genética, é a mais elevada
faculdade de sintetização mental, afetiva ou volitiva que
se pode encontrar num cérebro humano. À primeira vista
este conceito geral parece vago, inconsistente devido à
essência de um critério seguro para diferenciar as
faculdades ordinárias da psique humana; entretanto
aquela fórmula encobre um característico saliente,
252
essencial à genialidade e que se encontra fatalmente,
todas as vezes que defrontamos um homem verdadeiramente superior; é a originalidade no modo de ser
impressionado pelos fenômenos do mundo exterior e de
explicá-los à luz do seu espírito, é esta faculdade
inventiva que descobre sempre em todos os problemas
uma face então velada à investigação humana. Kepler ou
Newton, Galileu ou Laplace, Hugo ou Byron,
Shakespeare ou Goethe, todos são vítimas deste
fenômeno de diplopia mental pelo qual eles divisam nas
coisas um aspecto novo além do reservado à
generalidade dos mortais, criando assim um mundo ideal
e fantástico, à semelhança daquele em que vivia
mergulhado Fídias que, quando esculpia uma estátua de
Júpiter, não tinha sob as suas vistas um modelo comum,
mas um tipo perfeito, ideal de beleza que lhe guiava a
mão e a arte, segundo a expressão de Cícero. É a mesma
idéia de Antônio Rand, o erudito italiano que consagrou
à dinâmica genial um livro que não será esquecido,
quando inquirindo, no gênio, dos característicos que o
elevavam acima do nível da vulgaridade, disse:
“considerando le note differeziali del genio si trovano
queste due, l’originalitá, rispetto alla potenza, la
scoperta del vero, dispetto al termine ”.
Se o que caracteriza o gênio, fosse o que há no
grande homem de original, exclusivo, pessoal, seria
impossível fazer dele assunto de ciência. A ciência não
se ocupa senão do que é geral, comum, permanente.
O mundo psíquico apresenta uma face diferencial
ao lado da semelhança, quer dizer, oferece uma soma de
253
caracteres comuns, gerais, e ao mesmo tempo um
quantum de elementos próprios, individuais, exclusivos.
No gênio não falta esta dualidade: ele tem um
lado comum com os outros indivíduos e um lado
próprio, individual, exclusivo. O progresso de um
acompanha o progresso do outro, e por isso é que o
homem é sociável na medida, em que é original.
Esta correlação dá bem a entender que o gênio
não pode ser encarado exclusivamente pelo que ele tem
de próprio, de pessoal, de original. Ao contrário, não é
senão o que o gênio tem de comum com os outros
indivíduos que explica o prest ígio e a influência que ele
exerce sobre a comunhão.
Esta influência e prestígio se exercem por muitos
modos, pela força, pela inteligência, pela astúcia, e até
pelo dinheiro, quando aquele que o possui sabe
aproveitar-se dele para impor à multidão respeit o.
Aqui está porque Draghicesco considera o grande
capitalista uma das manifestações do gênio econômico,
pela ascendência considerável que ele mantém na
sociedade. A questão é o modo pelo qual ele administra
esta fortuna, que lhe dá prestígio.
É difícil dizer se Cícero exerceu mais influência
pela maravilhosa eloqüência do que pela colossal
riqueza que possuiu.
O gênio se caracteriza mais elo que tem de
exterior do que pelo que ele possui de íntimo, de
maneira que se pode dizer de um modo um tanto
paradoxal, porém não menos expressivo, que o gênio é
mais o panteão, o monumento, a estátua do que o
254
próprio grande homem, e isto por uma razão muito
simples: é que o monumento traduz a influência e o
prestígio do gênio sobre o comum dos mortais, sem as
falhas que foram próprias do grande homem.
A reputação, a fama, a consideração, embora
exterior, é elemento integrante, essencial do gênio.
Assim concebido, o gênio perde a feição
misteriosa, enigmática que lhe atribui a psicologia
individualista, e todo o homem, por mais humilde que
seja sua posição social, fica habilitado a tocar às raias
da genialidade, conforme a influência que ele venha a
exercer sobre seus semelhantes.
O gênio é ao mesmo tempo uno e coletivo, e ele
não se distingue do comum dos homens senão em q ue é
mais semelhante aos que não são tão semelhantes entre
si.
É esta semelhança, esta analogia com a massa que
dá ao indivíduo aquela força psíquica extraordinária,
aquele poder de sugestão excepcional, que o transfigura
em gênio aos próprios olhos e aos olhos da sociedade.
Alguém já comparou o grande homem, artista,
poeta, sábio ou político, a uma espécie de capitalista:
ele acumula em sua alma as idéias e os sentimentos de
sua época como o capitalista acumula em seu cofre os
haveres da sociedade.
Assim como, referindo-se ao mundo econômico,
“Proudhon exclamou: a propriedade é um roubo”, da
mesma sorte, um revolucionário moderno, referindo -se
ao mundo psíquico, poderia com igual propriedade de
255
expressão repetir o mesmo paradoxo – o gênio é um
roubo.
A verdade é que o gênio muito se assemelha à
moeda, desempenhando entre as relações psíquicas o
mesmo papel que a moeda representa entre as relações
econômicas.
O gênio é o intermediário, o agente de circulação,
o veículo de troca entre as idéias e os sentimento s de
seu país ou de sua época como a moeda o é entre os
gêneros e mercadorias de um dado lugar ou tempo.
Nem há que recear que se democratize o gênio,
porque no processus de democratização do gênio, se
baixam os superiores, em compensação os inferiores se
elevam.
Se o gênio desce do cimo à planície, o simples
mortal sobe da obscuridade de seu nascimento à glória
de seus feitos.
É preciso varrer do espírito essa concepção
pseudo-científica, que busca a causa unida do gênio na
hereditariedade, próxima ou remo ta, direta ou colateral.
Já lemos que o gênio é como o pedaço de cristal
caído em uma solução química, cuja composição é igual
à sua: se ele modela a massa à sua imagem é porque sua
natureza íntima é idêntica à da massa, como a natureza
atômica do cristal é idêntica à sua solução, que toma a
forma cristalina.
(Transcrito de A Cultura Acadêmica. Tomo 1º, volume 1. Recife,
Imp. Industrial, 1904, págs. 269 -286).
256
7.
LIBERDADE MORAL E LIVRE ARBÍTRIO
MEMÓRIA APRESENTADA AO 3º CONGRESSO
CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO
Tema: “É possível admitir-se a liberdade moral
como fundamento da imputabilidade criminal,
independente do livre arbítrio?”
O Eu é um esforço contínuo para a unidade, e esta
atividade sintética é o traço característico de todas as
manifestações psíquicas: da vontade, da inteligência, da
sensibilidade.
Kant, com a profundez de seu olhar, já
considerava a consciência uma síntese a unificar
elementos diversos, e afirmava que esta função
totalizadora “provém de uma tendência cega, posto que
necessária, da alma”.
Segundo Wundt, “a consciência, com seus estados
múltiplos e, entretanto, unidos estreitamente, é, para
nossa concepção interna, uma unidade, análogo à que é
o organismo corpóreo, para nossa concepção externa”.
Para Pierre Janet “a atividade da consciência é
antes de tudo uma atividade sintética, que reúne
fenômenos dados, mais ou menos numerosos, em um
fenômeno novo, diferente dos elementos”.
257
Hoffding, acentua ainda mais esta atividade
unificadora, quando escreve: “Em nós cada elemento da
consciência não existe isolado; existem todos em uma
conexão mais ou menos estreita”, “sem análogo na
esfera de nossa experiência”.
Em termos ainda mais incisivos e4xprime -se Spir:
“Em nosso corpo orgânico o todo governa as partes e a
forma da matéria, enquanto ao mesmo tempo o todo é
em cada momento um produto mesmo do concurso de
suas partes; o mesmo se dá com o Eu. Há, entretanto,
uma diferença, uma diferença essencial, entre os dois
casos, e ei-la: nosso Eu não pode, como um corpo
orgânico, ser reduzido a elementos que, depois de sua
separação, continuem a subsistir. Os elementos de nosso
Eu, sentimentos, desejos etc., não existem indepen dentemente uns dos outros,, e se distinguem em sua
sucessão somente por suas vicissitudes”.
O Eu não é, pois, uma substância, como entendem
os espiritualistas, nem a resultante de uma combinação
físico-química, como ensinam os materialistas; mas um
processus que tende para uma unidade, ainda mais
profunda e real do que a de um corpo orgânico.
Por aí já se vê que não se pode consider4ar
simplesmente a unidade orgânica dos corpos como base
exclusiva da atividade sintética da consciência, e nisto
vai precisamente toda a distância entre o processus
psíquico e o processus fisiológico.
Entretanto, não têm faltado psicólogos que
haviam reduzido a atividade sintética da consciência à
unidade orgânica do corpo. Assim procede Ritob,
258
quando escreve: “O consensus da consciência, sendo
subordinado ao consensus do organismo, o problema da
unidade do Eu é, sob sua forma última, um problema
biológico. À biologia cabe explicar, se ela pode, a
gênese dos organismos e a solidariedade de suas partes.
A interpretação psicológica não pode senão acompanhá la. É sobre a base física do organismo que repousa o que
se chama a unidade do Eu, a solidariedade que liga os
estados de consciência”.
Antes de tudo, nota Draghicesco, “as espécies
animais superiores se caracterizam por uma unidade
orgânica perfeita, sem que por isso sua consciência seja
comparável à dos homens”.
Assim, deve existir alguma coisa, alé m da
unidade orgânica, que sirva de base à atividade sintética
da consciência.
Em vez de servir de explicação única da unidade
da consciência, pelo contrário, a constituição do
encéfalo está precisando de explicação.
Se a função do encéfalo é inerente à natureza do
organismo, sua origem só pode ser explicada por uma
adaptação ao meio cósmico. Entretanto, no meio
cósmico não se notam fenômenos centralizados, que
possam ter dado lugar a esta função centralizadora.
“No mundo físico, observa Draghicesco, não há
hierarquia nem processus sintético centralizador, a que
o organismo tenha devido adaptar-se por meio do
encéfalo”.
Depois, o cérebro não é um órgão indispensável à
vida; pelo contrário, em alguns casos pode ser uma
259
condição restritiva da vida puramente animal, e se nem
sempre constitui um impedimento, muitas vezes não
passa de um luxo.
O certo é que o encéfalo não se desenvolve senão
nas espécies superiores da escala zoológica, que vivem
em sociedade.
Aqui está porque Hoffding, recusando -se a
derivar a consciência da unidade orgânica, limita -se a
fazer um paralelo entre a atividade sintética da
consciência e o funcionamento do sistema nervoso.
“O grande valor do sistema nervoso, nota
Hoffding, lhe vem de que ele põe todas as ações em
harmonia íntima, e torna possível, em face do mundo
exterior, um sistema fechado de manifestações. A
consciência se desempenha, a seu modo, da mesma
tarefa. Ela une o que se acha esparso no tempo e no
espaço, traduz um ritmo de prazer e de dor o choque
alternativo das condições vitais, e nos revela na
lembrança e no ato do pensamento a concentração a
mais íntima, que o círculo inteiro de nossas experiências
nos permite constatar”.
Não sendo possível considerar a atividade
sintética da consciência um produto exclusivo da
unidade orgânica, é preciso assentar a unidade da
consciência sobre outras bases que simples condições
fisiológicas.
“A consciência, diz Boutroux, não é um
desenvolvimento, um aperfeiçoamento das funções
fisiológicas. É um elemento novo, uma criação. O
homem, que é dotado de consciência, é mais que um ser
260
vivo, e mais que um organismo individual: a forma na
qual a consciência é superposta à vida, é uma síntese
absoluta, uma adição de elementos radicalmente
heterogêneos”.
Se a unidade orgânica por si só não basta par a
explicar a consciência, qual será a explicação, que pode
ser dada do fenômeno?
Acima do indivíduo está a sociedade, e então por
que não procurar no meio social a gênese e o desen volvimento da consciência individual?
O cérebro, órgão de luxo em relação ao
funcionamento vital, propriamente dito, seria então um
órgão de primeira necessidade em relação ao
funcionamento psíquico.
Deste modo seria o meio social que concorreria
para a formação do cérebro por meio do desenvolvimento excepcional dos últimos cent ros da medula
espinhal.
A sociabilidade seria a fonte donde brota a
consciência.
Tal é o modo de ver de Durkheim, quando
escreve: “O grande serviço que os filósofos espiritualistas prestaram à ciência, foi combater todas as
doutrinas que reduzem a vida psíquica a não ser senão
uma aflorescência da vida física”. E sem cair no
espiritualismo, acrescenta que todos os fatos, de que se
não pode achar a explicação na constituição dos tecidos,
“se tornam propriedade do meio social”.
De modo brilhante Draghicesco faz ressaltar que
a sociedade é a explicação causal da consciência.
261
“Os psicólogos, observa o perspicaz investigador,
não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e
adaptação ao meio social. A consciência para eles é
indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a
origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não
pode ser mais atribuída a influências causadas pelo meio
físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico é,
por assim dizer, constante, invariável. Por outro lado,
estabelecemos também que a constituição orgânica do
homem é precisamente o resultado da adaptação a esse
meio. A adaptação, uma vez feita e consolidada em
hábitos para sempre invariáveis, não poderia mas ser
questão de novas adaptações, este meio não mudando
mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade, em a
natureza e no homem adaptado. Se, porém, ainda se
constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir
senão do meio social: sim, estabelecemos que é ela que,
por sua variabilidade e pela luta pela vida, impõe a
adaptação.
De hoje por diante não seria mais possível
procurar explicação para a consciência senão nas
adaptações às condições sociais. A consciência não pode
ser o produto senão do meio social, exclusivamente”.
Sob o ponto de vista volicional, não é menos o
esforço do Eu para a unidade, dando em resultado a
Liberdade, atual base da responsabilidade.
Antes de passarmos adiante, notaremos que a
responsabilidade a princípio foi coletiva, respondendo
pelo crime a tribo ou a família; ela não se tornou
262
individual senão com a afirmação da personalidade
humana.
Para nós a liberdade é a mais bela conquista do
esforço humano. O homem se faz cada vez mais livre, à
medida que seu Eu se integra e adquire consciência de
seus atos.
E com a idéia de liberdade se afirma, por sua vez,
a noção de responsabilidade, tanto mais nitidamente
quanto mais intensamente o homem atribui a si mesmo a
causa de seus atos.
Mas para que o sentimento de liberdade se
desenvolvesse cada vez mais no homem, foi preciso que
a integridade do Eu se tornasse cada vez mais profunda,
o que não sucedeu senão após um longo período de
evolução social.
Produto do desenvolvimento humano, a liberdade
não é a mesma em todos os tempos e lugares: está
sujeita a uma variedade infinita de circunstâncias.
Daí os diversos sentidos em que pode ser tomada
a palavra liberdade. Assim pe que se diz livre aquele
que não é obrigado por alguma causa externa, por
exemplo, a violência, ou aquele que não é arrastado por
alguma causa interna, como a paixão irresistível, ou
aquele que não age contra a vontade, ou aquele cuja
deliberação é refletida.
O homem é mais ou menos livre, conforme
obedece a móveis mais ou menos irrefletidos, ou a
motivos mais ou menos esclarecidos e ponderados.
Em suas ações o homem pode ir desde a impulsão
mais cega até à decisão mais refletida; mas, em todo
263
caso, seus atos são determinados sempre por causas que,
quando mesmo inerentes ao Eu, nem por isso são menos
influentes e menos dignas de consideração.
O que não existe é liberdade no sentido de
escolher arbitrariamente entre motivos diversos, e ainda
menos no de agir sem causa.
O indeterminismo é a negação de todo o espírito
científico; o princípio da causalidade é o postulado com
que abordamos toda a ordem de investigações.
Nem há razão para subtrair a vida volicional ao
princípio da causalidade, quando toda a vida psíquica a
ele é sujeita.
Toda psicologia, portanto, tem de ser deter minista, quer se trate da inteligência, quer do sentimento,
quer da vontade.
Por que motivo subtrair ao princípio da causalidade a vontade humana?
Será que não se possa falar em responsabilidade
sem que a vontade humana seja colocada acima da série
causal?
Seria realmente admirável que para fazer moral o
homem tivesse de despedaçar o laço que existe entre sua
vida e o vasto todo da existência universal.
“Os efeitos poderosos das causas externas, da
condição social em que se nasce, do modo pelo qual se
vive física e moralmente, da educação que se recebeu,
da herança física recebida dos progenitores; das
moléstias de todo o gênero, especialmente do cérebro;
das tendências a delinqüir inerentes à própria natureza;
do grau de contínuo ou momentâneo nervosismo em que
264
se acha o agente; das idéias e superstições sociais que
influem sobre o nosso organismo; dos defeitos mole culares íntimos e invisíveis da matéria central do
homem; os efeitos poderosos de tudo isto são os fatores
da vontade humana, e, portanto, não se pode mais
aceitar o antigo conceito de uma responsabilidade
fundada sobre uma liberdade indeterminada e ilimitada” .
O princípio da causalidade exclui toda possibilidade de escolha. Ao espectador é que parece que o
indivíduo poderia ter querido o contrário do que quis. A
indeterminação de escolha é incompatível com o
princípio de causalidade.
A determinação por si mes mo exclui toda idéia de
livre arbítrio.
“A razão é que o Eu é alguma coisa de completamente determinado. Pensamentos, sentimentos,
instintos, tendências, tudo isto influi sobre o Eu e em
tudo isto é preciso ver a origem da volição.
Assim, diz bem Hoffding, as duas idéias,
determinação por si mesmo e liberdade causal, que se
consideram muitas vezes como idênticas, suprimem-se
na realidade mutuamente, desde que se liga à palavra ‘si
mesmo’ um sentido preciso”.
O indeterminista subtrai a volição à lei da
causalidade com receio de reduzir o indivíduo a uma
pura máquina, entretanto faz dele um joguete do acaso,
ou uma vítima do capricho.
A volição equivale à soma total dos elementos
que entraram para sua formação, e assim não admitimos
liberdade senão no sentido de confluência de motivos
265
superiores, ente os quais principalmente o Eu, para
realização de um Ideal tanto mais nobre quanto mais
elevado.
É por isso que entre os antigos se chamava
escravo o homem que não dominava suas paixões e livre
o que não era movido por motivos egoístas.
Daí o conceito de liberdade, como a entenderam
Sócrates, Santo Agostinho e Spinoza, isto é, vontade
governada por motivos morais.
Hoffding explica o conceito da liberdade moral
nos seguintes termos:
“Neste sentido só o homem de bem é livre. É
preciso supor aqui uma evolução mental tão alta e um
hábito tão forte que a consciência possa tomar uma
importância decisiva em cada deliberação e cada
evolução. Mas isto supõe por sua vez a existência de
uma ligação causal psicológica. É precis o que a
necessidade ou a ocasião de agir possa então despertar a
consciência em virtude das leis que regem a associação
das representações entre si ou com os sentimentos”.
A liberdade, portanto, não é um dado primum,
donde todos os homens partem igualmente ; mas um fim
a alcançar, e ao qual nem todos chegam, ou, pelo menos,
com a mesma facilidade.
A nossa volição surge, dados os motivos que a
determinam, e dizemos que a nossa volição é livre,
quando nossa consciência nos dá a entender que o ato é
nosso, isto é, que o nosso Eu o reconhece como seu.
Querer livremente não quer dizer querer sem
causa, sem depender de antecedente algum; pelo
266
contrário, liberdade significa que existe a mais estreita
solidariedade entre a volição e os motivos, que a
determinam.
É a conexão psicológica dos motivos com a
volição que constitui o fundamento da responsabilidade.
É por isso que os códigos penais consideram a
superexcitação de espírito e a falta de reflexão como
circunstâncias atenuantes, e a reincidência e a preme ditação como circunstâncias agravantes. Isto quer dizer
que a responsabilidade é tanto maior quanto a violação
criminal decorre mais diretamente dos antecedentes que
constituem o caráter do criminoso.
Por aí, se pode avaliar da iniqüidade desses
julgamentos judiciários, que se limitam a indagar se o
réu praticou realmente o crime, sem dar conta de todas
as circunstâncias externas e internas, em que o crime foi
cometido.
Eis a razão, pela qual Anselm von Feuerbach
sustentava que o juiz jamais devia pronunciar senten ça
capital sem poder explicar como o ato pôde ter
nascimento.
A volição não é uma causa absolutamente
primeira, o começo absoluto de uma série causal; nem
há necessidade de um tal indeterminismo para firmar a
responsabilidade: basta que o homem reconheça s eus
atos como filhos de seu Eu, para que não possa deixar
de imputá-los a si próprio.
Nosso Eu é uma resultante de antecedentes, que
lhe dão um cunho especial e lhe imprimem mesmo uma
direção; mas, porque não criou sua própria natureza, e
267
porque seus atos têm sua origem nesta natureza, que ele
não criou, segue-se que lhe não devam ser imputados,
quando aliás ele próprio reconhece sua solidariedade
com esses mesmos atos?
Nós compreendemos que, à proporção que o
tecido de causas e efeitos se torna cada vez ma is cerrado
e consistente, a ponto de se dizer que se fosse possível
conhecer todos os antecedentes, as ações do homem
seriam preditas com a mesma certeza que um eclipse, a
idéia do livre arbítrio vá desfazendo -se como uma
ilusão; mas, por isso mesmo que existe um determinismo psíquico, é que a solidariedade do Eu com seus
atos se torna cada vez mais efetiva, e deste modo se
afirma cada vez mais a responsabilidade humana.
O homem se julga tanto mais digno quanto mais
ele assume a responsabilidade de seus atos.
“Vêem-se algumas vezes, diz Kant, homens que,
tendo recebido a mesma educação que outros, a quem
foi ela salutar mostram desde a infância uma maldade
tão precoce, e fazem tantos progressos em sua idade
madura, a ponto de se dizer que nasceram celerados, e
serem tidos como incorrigíveis. E, no entanto, não se
deixa de julgá-los pelo que eles fazem, de exprobar -lhes
os crimes como faltas voluntárias; e eles mesmos acham
estas exprobações fundadas”.
Nem podia ser de outro modo, porque as ações,
ele próprio as imputa a seu Eu.
A responsabilidade é uma conseqüência lógica,
fatal, necessária, do determinismo psíquico.
268
A ilusão do livre arbítrio não vem justamente
senão de que em cada volição nós não podemos
determinar os motivos, que entraram em sua formação.
“Além disso, nota Pietro Cogliolo, a volição nasce tão
subitamente da composição dos motivos, que nós
somente a percebemos depois de nascida, de sorte que
devemos fazer com o pensamento um difícil trabalho de
regresso para ver as suas causas”.
Deve-se reconhecer a responsabilidade como uma
conseqüência lógica, necessária do determinismo psíquico, tanto mais quanto é certo que os motivos não
exercem sobre nosso Eu uma ação análoga à dos pesos
sobre uma das conchas da balança.
Nosso motivo principal é nosso próprio Eu, todos
os mais se podem dizer acessórios.
É quanto a decisão é determinada pelo Eu, pelo
todo de pensamentos, sentimentos e inclinações, que,
em virtude de predisposições originárias, tomaram
raízes nas profundezas de seu ser, que o indivíduo po de
dizer que quis o seu ato, que o seu Eu se determinou a si
próprio.
Bem se vê que a responsabilidade tem sua base no
determinismo psíquico, cuja manifestação fundamental é
a tendência da consciência para a unidade.
O indeterminismo, teoria que admite volições sem
causa, quebra a unidade da vida consciente, sobre que
assenta solidamente a responsabilidade humana.
“O projeto e a resolução, escreve Hoffding,
dependem da memória, e por conseguinte não podem
admitir regras em leis válidas para a memória e
269
associação de idéias que não o sejam igualmente para a
vontade Dizer que a vontade é intimamente ligada à
memória, é dizer em suma que ela é intimamente ligada
ao Eu, à unidade formal e real da consciência. Um ato
sem causa não poderia provir de um Eu, nem ser nosso
próprio ato, porque um ato não é verdadeiramente
nosso, se não é u’a manifestação necessária do nosso
próprio ser”.
Se o Eu reconhece o ato como próprio, considerao como um produto de si mesmo, e então toda responsabilidade lhe cabe.
Um Eu que quer uma perversidade, se a realiza, é
de fato seu criador, e então o ato lhe deve ser imputado.
Dada a integridade do Eu, deve-se-lhe imputar o
ato praticado em virtude da unidade sintética, para a
qual tende toda atividade psíquica.
Não se trata, portanto, de uma imputabilidade,
filha do votum arbitrium indifferentiae, nascida segundo
a expressão de Tarde ex abrupto et ex nihilo, nem de
uma imputabilidade baseada sobre a simples temibilidade do criminoso, sendo excluído todo o mecanismo
do mundo psíquico; mas de uma imputabilidade, que
tem raízes profundas na natureza do próprio Eu.
De que reconheço o ato como próprio, como uma
irradiação da natureza íntima de meu ser, por isso
mesmo assumo toda a responsabilidade.
“O julgamento moral de minha ação parte do fato
que a ação é realmente minha. Também não é ele claro e
nítido senão quando a conexão psicológica dos motivos
com a resolução é evidente. Menos minha ação é
270
inteligível pelo conhecimento de meu caráter e das
condições que me são próprias, maior será a facilidade
que se terá para se me encarar como irresponsável e
menos poderei ser considerado como o autor dela.
Abandonar a conexão causal da vontade é precisamente
abandonar o caráter da responsabilidade”.
Segundo os dados da psicologia moderna o Eu
não é um primum dado, mas um processus, que não se
desenvolve senão paulatinamente, uma combinação de
elementos, uma sucessão de estados, é de tal sorte
integralizada, que apesar das múltiplas e variadas
mudanças, dá-se uma unidade, que, em relação ao
Tempo, chama-se Imortalidade, e, em relação ao
Espaço, Liberdade.
A Liberdade pode não ser uma realidade; mas é
um ideal que, não contradizendo o determinismo, pois
que no mundo moral predominam as causas finais, em
oposição ao mundo físico, em que imperam as causa s
eficientes, dá plena satisfação ao dogma socialmente
inviolável e sagrado da Responsabilidade.
(Transcrito de A Cultura Acadêmica. Recife, 2 (1-1), págs. 225 a
239, dezembro, 1905).
271
8.
CONCEPÇÃO NOVA DA MATÉRIA
A concepção da matéria como uma substância
inerte e indestrutível já não pode satisfazer as vistas
largas e extraordinariamente belas do espírito moderno.
Este se elevou a um plano superior ao mundo da
matéria propriamente dita com suas conhecidas
propriedades cinéticas, físicas, químicas, e létricas,
magnéticas.
Nós sabemos hoje que além dos sólidos, dos
líquidos e dos gasosos, além dos astros, das moléculas,
dos átomos, existe o que quer que seja, que não sendo
luz, calor, gravitação, serve, entretanto, de base a todas
estas coisas.
Qual será a natureza dessa substância sui generis,
que não se confunde com a matéria propriamente dita?
Foi somente no último século, segundo nota de
William Crookes no Congresso de Química Aplicada, de
Berlim, a 5 de junho de 1903, que se ousou avançar pela
primeira vez que era possível que os metais fossem
corpos compostos, o que teve lugar em uma conferência
realizada em 1809 por Sir Sumphry Davy na “Royal
Institution”.
Nesta conferência afirmava o ousado precursor:
“Se tais generalizações viessem a se verificar por fatos,
resultaria uma filosofia nova ao mesmo tempo simples e
grande. As substâncias materiais em toda sua diver sidade poderiam ser concebidas como devendo sua
272
constituição a duas ou três espécies de matéria
ponderável combinadas em quantidades difer entes”.
Em 1811 acrescentava: “Procurar-se-ia em vão
imaginar as conseqüências, que trariam um progresso na
química, tal como a decomposição e a composição dos
metais... É dever do químico ser audacioso na busca do
seu fim. Não deve considerar as coisas co mo
impossíveis pela razão única de que ainda não foram
feitas. Não deve encará-las como desarrazoadas, porque
estão em desacordo com a opinião comum. Deve
lembrar-se de quanto a ciência é algumas vezes
contrária ao que parece ser a experiência. Indagar se os
metais podem ser compostos e decompostos, é uma
tarefa magnífica e verdadeiramente filosófica”.
Pouco tempo depois Faraday, em uma de suas
conferências na “Royal Institution”, exprimia-se nos
seguintes termos:
“Se concebermos uma mudança que vá além da
vaporização, tanto quanto esta vai além da fluidez, e se
dermos conta também do aumento proporcional das
modificações, que têm lugar à medida que essas
mudanças se operam, chegaremos sem dúvida (se é
possível formarmos alguma concepção a este respeito)
muito perto da matéria radiante: e como na última
mudança havíamos constatado a desaparição de um
grande número de qualidade, na mudança do estado, que
nos ocupa, estas desaparecerão muito mais”.
Em outra conferência dizia: “Presentemente
começamos a prever com o mais vivo interesse a
descoberta de um novo estado dos elementos químicos.
273
A decomposição dos metais, sua composição, a
realização da idéia outrora absurda, da transmutação, eis
os problemas que a química tem de resolver”.
A William Cookes se deve, em 1879, o
ressurgimento da idéia de uma “matéria radiante”,
emitindo a hipótese de que nos fenômenos, que se
passam em um tubo, em que se fez o vácuo, as
partículas que constituem a corrente catódica, não são
sólidas, nem líquidas, nem gasosas, não consiste m em
átomos que se movam através do tubo e produzam
fenômenos luminosos, mecânicos ou elétricos, no ponto
em que elas batem; mas consistem em alguma coisa
menor do que o átomo, fragmentos de matéria,
corpúsculos ultra-atômicos, coisas infinitamente tênues,
muito menores e muito mais sutis do que os átomos, e
que parecem ser a própria base dos átomos”.
Além disto, William Crookes aludia à fronteira,
em que a matéria e a força parecem fundir -se uma na
outra, reino obscuro, estendendo -se entre o conhecido e
desconhecido.
“Eu creio, afirmava o distinto sábio inglês, que os
maiores problemas científicos do futuro acharão sua
solução sobre esta fronteira, e mesmo além; aí, parece,
estão as realidades últimas, sutis, cheias de conse qüências maravilhosas”.
A existência de uma substância pré-atômica era
idéia que pairava no ar desde algum tempo, como se
poderia p´rovar com citações de Benjamin Brodie,
Graham, George Stokes, sir William Tomson, sir
Norman Lockyer, quando das vistas de William Crookes
274
sobre o estado pré-atômico da matéria, da descoberta
dos raios catódicos, da dos raios-X, a dos corpos
chamados radioativos, e a demonstração por Gustave Le
Bon, de que a radioatividade não pertence a certos
corpos, mas constitui uma propriedade geral da matéria.
Vieram abalar profundamente o espírito humano em
relação a várias concepções científicas e filosóficas.
Com efeito, a constituição complexa dos átomos,
a natureza atômica da eletricidade, a dessassociação dos
elementos atômicos, e tantas outras hipóteses confir madas pelas maravilhosas descobertas apontadas, convergiram para uma nova orientação intelectual, que
atirou por terra não poucos dogmas científicos, entre
outros os da inércia e indestrutibilidade da matérias,
base fundamental da física e da química.
Spencer foi ao ponto de afirmar que se “fosse
possível supor que a matéria pode tornar-se não
existente, seria necessário confessar que a ciência e a
filosofia são impossíveis”.
Naquet, professor da Escola de Medicina de
Paris, escreve:
“Nunca vimos a volta do ponderável ao
imponderável. A química toda inteira é fundada sobre a
lei de que uma tal volta não tem lugar, porque se
tivesse, adeus as equações químicas”.
Apesar de todas as transformações a que está
sujeita a matéria, a massa dos corpos parecia per manecer invariável, irredutível.
Assim pensavam os químicos em face das
constatações de sua balança.
275
No oceano móvel dos fenômenos físico -químicos
o peso era o ponto fixo e luminoso, que servia de guia
ao físico e ao químico em suas pesquisas sobre as
incessantes transformações da matéria.
Nada, porém, existe de invariável em a natureza
inteira, a ponto de William Crookes pode dizer que o
átomo partilha com o resto da criação os atributos do
nascimento, da decrepitude e da morte, e Gustavo Le
Bom pensar que é preciso inverter o adágio clássico –
nada se cria, nada se perde.
Sim, tudo nasce, tudo morre em a natureza, desde
o infinitamente pequeno até ao infinitamente grande,
desde o mais insignificante átomo até ao mais volumoso
sol com todo seu cortejo de planetas e satélites.
A natureza inteira é como Penélope, não faz
senão para desfazer em seguida, e da mesma sorte que a
figura mitológica, em sua obra destruidora, não é menos
fecunda do que em sua tarefa de construção.
A evolução da matéria se opera sob um duplo
ponto de vista, ela vai do imponderável ao ponderável
pela associação de seus elementos, e do ponderável ao
imponderável pela desassociação.
Assim foi que os dogmas da indestrutibilidade da
matéria e da separação do ponderável e imponderável se
desvaneceram em face dos últimos achados da ciência,
sobre a energia intra-atômica.
Com efeito, esta nova forma de energia veio ligar
o mundo da matéria ao mundo do movimento, o mundo
do ponderável ao mundo do imponderável, mundos pro 276
fundamente separados até hoje e que nenhum medidor
parecia ligar.
A energia intra-atômica, porém, veio provar que
não há separação essencial entre a matéria e o mo vimento: uma e outro não passam de estados de u’a
mesma realidade. “A matéria, diz Peladan, é uma cris talização do movimento; o movimento é uma fluidificação da matéria”.
Até hoje sábios e filósofos não se têm ocupado
senão da evolução da matéria no ponto de vista da
integração, deixando de lado a outra face do problema,
que é a desassociação de seus elementos.
Tratam da materialização progressiva sem se
lembrarem da ordem inversa, que é o processus de
desmaterialização, pela desassociação contínua dos
elementos, que constituem a matéria.
É o produto dessa desmaterialização da matéria
pela desassociação de seus elementos, que constitui a
nova forma de energia, chamada intra-atômica, a qual
serve de laço entre o mundo do ponderável e o do
imponderável, o que importa dizer que é esta sorte de
energia que faz desaparecer a dualidade clássica entre a
matéria e o movimento.
Não há, pois, separação entre matéria e
movimento, uma e outro são aspectos de u’a mesma
realidade.
Deixando de lado o processus da materialização
progressiva da energia, trataremos tão -somente da
evolução regressiva da matéria, isto é, do processus da
desmaterialização de seus elementos constitutivos.
277
A evolução regressiva, ou desassociação da ma téria, se opera por meio da emissão, no espaço, de
eflúvios com uma rapidez como somente possui a luz, e
tendo propriedades análogas às dos raios catódicos,
principalmente a de produzir raios-X sempre que
encontram um obstáculo.
São estes eflúvios que constituem o maravilhoso
fenômeno da radioatividade, cuja universalidade foi
posta fora de toda dúvida por Gustavo Le Bom. Assim, a
maior força até hoje conhecida, a radioatividade, ou
energia intra-atômica, força maravilhosa, cujo poder
imenso excede a tudo que de enérgico se poderia
produzir pelos meios físicos ordinários, é devida à
desassociação dos elementos da matéria.
Estudemos, pois, o miraculoso fenômeno que em
poder excede a todas as forças até hoje conhecidas.
O dogma fundamental da termodinâmica é que a
matéria não faz senão restituir a energia que se lhe
empresta por um meio qualquer. Pois bem, nós vamos
mostrar que, pelo contrário, a matéria é em si mesma um
vasto reservatório de energia, ou por outros termos, não
é senão energia concentrada, em forma estática, e que
para produzir forças imensas basta que seus elementos
se desassociem.
As emissões radioativas são todas da mesma
natureza, ou se produzam nos tubos de Crookes, ou
provenham da irradiação de um metal sob a influência
da luz, ou resultem de certos corpos muito ativos, tais
como o uranium, o thorium e o radium.
278
Foi nos tubos de Crookes que começaram as belas
experiências sobre a radioatividade. Crookes atribuía o
fenômeno a um estado particular da matéria, que ele
chamada estado radiante. O sábio inglês atribuía um
papel considerável a este quarto estado da matéria, pape
que foi adiado até à descoberta dos raios-X pelo famoso
Roentgen.
Antes, porém, de Crookes, já o físico alemão,
Hittorf, havia descoberto os raios catódicos, que bem
mereciam o nome do seu descobridor, como os raios X o
de Roentgen.
No dizer de Dastre, sucederam-se então as
peripécias: “Com Crookes, em 1880, é a missão que
triunfa: o raio catódico parece decididamente uma
projeção material, uam trajetória balístia; com Lenard,
em 1894, que faz penetrar os raios catódicos no vácuo,
sem que este deixe de se manter, pensa-se em um
substractum unimaterial, em radiações etéreas; J. J.
Thomson, em 1897 volta à emissão das partículas, mas
esses projéteis não são mais moléculas, átomos ou íons
– último grau admitido até então da divisibilidade da
matéria – são fragmentos de átomos, corpúsculos
atômicos. Enfim, Villard, em 1899, precisa a natureza
desses corpos, mostra-os formados de hidrogênio,
considera-os corpúsculos ou fragmentos do átomo de
hidrogênio.
Físicos e químicos têm prestado a maior atenção a
todos os fenômenos de que são teatro os tubos de
Crookes, mas os detalhes em que eles entram e a s
minuciosidades, de que nos dão conta, são sem
279
importância para o fim que temos em vista. Basta que
saibamos que as emissões catódicas são retilíneas,
desviáveis por um campo magnético e eletrizadas.
Os raios catódicos produzem eletricidade sobre
todos os corpos, gases ou matérias sólidas, que
encontram.
Sendo assim, os raios catódicos devem ser considerados como materiais, porque a matéria é o suporte
obrigatório da eletricidade. Onde há eletricidade, há
necessariamente matéria.
O raio catódico é, portanto, formado por partículas materiais, emitidas com uma prodigiosa rapidez,
que se aproxima da rapidez de emissão da luz.
A prodigiosa rapidez, porém, dos eflúvios
catódicos está em contraste com a maravilhosa pequenez
de sua massa. Segundo os cálculos feitos, a partícula
catódica representa a milésima parte do átomo de
hidrogênio, o menor dos átomos conhecidos.
O átomo, portanto, não é mais, como era para
nossos antepassados, a mais elevada expressão do
infinitamente pequeno, o último termo da divisão da
matéria.
Pelo contrário, os raios catódicos revelaram que
os átomos constituem verdadeiros mundos, formados de
miríades de “miliátomos”.
“Cada átomo, diz Perrin, seria constituído de um
lado, por uma ou muitas massas fortemente carregadas
de eletricidade, espécie de sóis positivos; e de outro
lado por uma multidão de corpúsculos, espécie de
280
planetas negativos, gravitando sob a ação das forças
elétricas”.
Deixando de parte os raios catódicos que não tem
importância prática, tratemos dos raios-X, férteis em
aplicações úteis sobretudo na medicina e na cirurgia.
Imaginem-se os serviços prestados pelos raios de
Roentgen à anatomia, normal ou patológica, desnudando
interiormente os organismos, tornando os corpos
transparentes em sua plenitude.
Derivados dos raios catódicos, pois que tomam
nascimento no ponto de encontro daqueles com as
substâncias sólidas, os raios de Roentgen se distinguem
nitidamente dos raios catódicos. São extraordinariamente penetrantes e não se deixam desviar por um
campo magnetizado, enquanto os raios catódicos são
sensíveis à influência magnética e possuem diminuta
força de penetração. O raio-X atravessa um grosso
volume como um raio de luz o vidro. Entretanto a
proeza da natureza no primeiro caso não é maior do que
no segundo, e se este no s não causa admiração, é por ser
muito conhecido.
Inflexível em seu trajeto, atravessando os
obstáculos que encontra em sua passagem, o raio -X deve
ser encarado como o símbolo da retidão.
Conhecidas as propriedades dos raios catódicos e
dos raios-X, vejamos que espécie de radiações emitem
os corpos chamados radioativos.
Estes emitem três espécies diversas de radiações.
281
As radiações a, carregadas de eletricidade
positiva, são muito pouco penetrantes, e emit idas em
grande número.
As radiações b, são, como os raios catódicos,
carregadas de eletricidade negativa, e como eles
desviáveis por um campo magnetizado. São eles que
produzem os efeitos fotográficos.
As radiações c, insensíveis a um campo
magnetizado, são completamente semelhantes aos raiosX, e como eles muito penetrantes.
Os corpos radioativos possuem a propriedade de
transmitir uma radioatividade, temporária, aos outros
corpos, com os quais entram em contato. É a radio atividade induzida.
Há, além disto, uma propriedade comum às três
espécies de radiações, e consiste em que elas provocam
a condensação do vapor, conforme a experiência muito
simples de que fala Dastre:
“O vapor escapa, invisível, do tubo estreito de um
balão cheio de água fervendo. Aproxima -se uma ponta
metálica fortemente eletrizada, do nde o fluido escapa
sob forma de popa, que se poderia distinguir na
escuridão. Desde que a aproximação tem lugar, vê -se o
jato de vapor tomar o aspecto de bruma muito densa ou
de espesso fumo”.
Qual a causa da radioatividade? Donde provém a
energia, que os corpos radioativos parecem gastar de um
modo indefinido?
Descoberta a radioatividade, como esta aparecesse principalmente sob a influência de algum agente
282
estranho, luz, calor, etc., entraram os físicos a indagar a
que causas exteriores deve a energia intra-atômica sua
origem.
Admit indo como princípio fundamental que a
matéria é indestrutível e que ela não faz senão restituir
sob uma forma qualquer a energia que lhe foi fornecida,
Despaux entende que a energia, que os corpos radioativos gastam incessantemente, é mantida pelo meio
ambiente, como no caso de um litro de água, em que se
lançasse um pedaço de gelo. A água resfriaria, mas o
meio ambiente restituiria seu calor, e assim sucessivamente, de modo a poder dissolver milhares de quilos
de gelo, sem que sua energia viesse a ser afetada.
“Não viria ao espírito de ninguém, escreve
Despaux, pretender que a energia despendida provenha
do litro da água em experiência”. A água não foi senão o
canal por onde se escoou a grande quantidade de gelo,
por onde poderia ter-se escoado todo o gelo da terra.
Um fenômeno particular parece justificar as
vistas do cientista francês: é que certos corpos radio ativos, principalmente os metais se fastigam. O exemplo
do litro da água vem ilustrar o caso. Se obrigarmos a
água a esfriar muito gelo, ela se fatigará, e resfriando -se
cada vez mais, sem que se lhe dê tempo para recuperar o
calor perdido, acabará por não dissolver mais o gelo.
De modo bem diverso pensa Gustavo Le Bon,
para quem a radioatividade é filha da própria maté ria
pela desassociação dos elementos atômicos.
283
Os átomos são reservatórios imensos de energia, e
podem gastá-la em alta dose, sem pedirem emprestado
qualquer auxílio ao mundo exterior.
O átomo químico, caminhando de desassociação
em desassociação até ao átomo do éter, toca as raias do
imponderável, causa suprema de toda energia.
A matéria, emitindo radioatividade, restitui ao
éter imponderável a energia com que se articulou a si
própria. Sim, do mesmo modo que a energia por si
mesma se articula em matéria, a matéria por si mesma se
desarticula em energia.
Transformar a energia em matéria e a matéria em
energia, sem que nada de exterior lhe seja fornecido, é o
grande ciclo da evolução universal.
Na transição entre o ponderável e o imponderável
produz-se uma substância intermediária, que não é
puramente matéria nem puramente éter, e que Max
Abraham e Kaufmann, consideram átomo de eletricidade, elétron, como atualmente se denomina.
No estado atual da ciência não se pode definir o
elétron; mas com Gustavo Le Bon se pode dizer que ele
constitui uma substância, que não é um sólido, nem um
líquido, nem um gás, não pesa, atravessa sem dificuldade os obstáculos que encontra, não tem de comum
com a matéria senão uma certa inércia, aproximando -se
mais do éter que da matéria, e formando uma transição
entre ambos.
Se é difícil definir o elétron, as dificuldades
crescem desproporcionadamente quando se procura
definir o éter, realidade misteriosa, que enche o espaço,
284
serve de laço aos diversos mundos, penetra os corpos e
unifica o universo.
A razão é que imponderável, intangível, invisível,
diferindo de tudo que nos é dado conhecer, foge a todo
termo de comparação e deste modo escapa a toda
definição.
Entretanto, seu conhecimento se impõe, porque
nenhum fenômeno se poderia conceber sem sua
existência.
Sem ele não haveria calor, nem luz, nem eletricidade, nem vida, nem pensamento.
O universo seria o vácuo, o sol não agiria sobre
nosso planeta, os corpos não gravitariam para o centro
da terra, a idéia do homem não influiria no tempo nem
no espaço.
Deste modo, não admira que a concepção do éter
remonte aos filósofos antigos.
Aristóteles considera-o um “corpo animado de
movimento eterno”, complemento necessário dos quatro
elementos terrestres.
Entre os modernos, Descartes exalta sua função
no mecanismo do universo.
Newton com seu olhar genial viu nele a causa da
gravitação. “Eu procuro no éter a causa da gravitação”,
escrevia a R. Baylo em 28 de fevereiro de 1678.
Lesage durante toda sua vida fez da existência de
um meio intercósmico o objeto de suas constantes
investigações, e posto que imponderável, intangível,
invisível, o éter sempre se figurou a Lamé mais
285
manifesto para o pensamento do que a matéria para os
sentidos.
Quando os tratados de física em relação ao éter
falam em uma substância imponderável, intangível,
invisível, acredita-se que eles figuram um gás leve,
tênue, de uma densidade extraordinariamente rarefeita.
Entretanto nada menos semelhante ao gás do que
o éter. Os gases são muito compressíveis, ao passo que
o éter quase não pode sê-lo.
Além disto, o éter é de uma rigidez superior à do
aço, a ponto de Kelvin considerá-lo um “sólido elástico
a encher o espaço”.
Entretanto, sua extrema rigidez está na proporção
de sua diminuta densidade, para que não possa enfra quecer a translação dos astros no espaço.
Por mais ininteligível que pareça a idéia de uma
substância mais rígida do que o aço e ao mesmo tempo
menos densa do que o gás, é preciso imaginá -la para se
compreender a transmissão quase instantânea das vibrações luminosas bem como o movimento e atração dos
corpos no espaço.
Substância maravilhosa o éter: invisível, intangível, imponderável, entretanto conseguimos vibrá -lo e
desviá-lo a vontade. Com um pedaço de vidro talhado de
certo modo, é possível desviar o curso do éter luminoso.
Se o éter não está sujeito às leis da gravitação, se
não tem peso, se é uma substância imaterial, é preciso,
porém, que seja u’a massa para que oponha resistência
ao movimento.
286
Se assim não fosse, a propagação das vibrações
luminosas seria instantânea, e nós sabemos que a
transmissão da luz, embora muito rápida não se faz
instantaneamente.
Qual a constituição do éter?
Concebendo-o como uma reunião ilimitada de
átomos animados de um duplo movimento de translação
e de rotação, a distinção entre a substância etérea e a
substância material, estaria em que os elementos da
primeira se moveriam sob as leis únicas de sua própria
atividade, de seu automobilismo ingênito, ao passo que
os elementos da segunda constituiriam agregados fixos,
sujeitos às influências do meio.
As concepções, uma segunda a qual os átomos
devem ser considerados coisas distintas do meio que os
cerca, outra segundo a qual eles são parte do meio em
que se movem, não se excluem, e representaram uma e
outra papel importante na hist ória da hipótese atômica
do éter.
Segundo a teoria da continuidade, não há par tículas constitutivas, descontinuas, chocando -se umas
nas outras como bolas de bilhar; mas um meio único,
sem solução de continuidade, meio em que se banham
tanto o imperceptível átomo como a estrela de primeira
grandeza.
Imaginemos agora o universo assim constituído:
de um lado u’a massa espalhada por toda parte, um todo
homogêneo e contínuo, dotado de geral elasticidade, e
de outra parte uma infinitude de corpúsculos descontínuos e heterogêneos, sujeitos à influência do meio, a
287
que estão sujeitos, e vejamos como as duas substâncias
vão se portar.
É a história da materialização progressiva do
mundo, cujo repouso final seria sua forma perfeita e
acabada, se fosse possível conceber um semelhante
estado para a matéria.
Físicos e químicos são levados cada vez mais a
considerar o éter como o verdadeiro substrato do mundo
e de todos os seres que nele vivem.
Neste caso, como explicar a existência dos
átomos, sujeitos à influência do meio etéreo?
Kelvin, fundado em cálculos matemáticos,
chegou à conclusão de que o éter não está sujeito às leis
da gravitação, quer dizer, é imponderável; mas isto não
significa que seja incompressível.
“Nós não temos razão alguma, escreve o maior
físico dos últimos tempos, para considerarmos o átomo
como absolutamente incompressível, e assim podemos
admitir que uma pressão suficiente pode condensá-lo”.
Ignoramos inteiramente o mecanismo pelo qual
na origem das idades se geraram no seio do éter os
primeiros átomos; mas qualquer que tenha sido o
processo, é claro que eles não podiam ter sido formados
senão de éter, fonte primeira e termo último de todas as
coisas.
Condensando-se o éter em partículas atômicas,
nem por isso essas deixam de ser frações do todo, ao
mesmo tempo uno e múltiplo, elástico e concentrado,
difuso e condensado, justamente como se dá no mundo
288
moral, em que se manifesta a unidade simultânea com a
multiplicidade.
A alma humana é, com efeito, uma e múltipla ao
mesmo tempo: múltipla em relação à sensibilidade,
inteligência e vontade, uma em relação ao Eu.
Acreditamos que a existência dessa substância, ao
mesmo tempo una e múltipla, homogênea e heterogênea,
contínua e descontínua, como é o éter, explicará
suficientemente a formação não somente do mundo
cósmico mas ainda do mundo moral quer dizer, o duplo
processus de materialização do Pater Omnipotens
OEthers, de que inspiradamente fala Virgílio.
O que é preciso é que no processo de
materialização progressiva do éter, relativamente à
formação do mundo físico, não se deixe de lado a
evolução química, e em relação ao mundo moral não se
esqueça a evolução coletiva, socionômica, ao lado da
evolução individual, bionômica.
Somente aplicando o quimismo à teoria da
condensação física, poderemos compreender a formação
do Cosmos; da mesma sorte somente associando a
psicologia individual à social poderemos explicar a
formação do mundo moral.
Skwortzow em uma notável memória apresentada
à seção astronômica do 10º Congresso dos naturalistas e
dos Médicos Russos, reunido em Kiew, mostrou como
os exclusivismos da teoria da condensação física, que
ainda hoje impera no ensino, não se explica senão pelo
fato de sua prioridade no tempo.
289
“Newton, Laplace, Kant, escreve o autor do
notável trabalho “O Sol, a Terra, a Eletricidade”,
estabeleceram suas concepções físico -mecânicas do
Universo e da formação dos mundos em uma época, em
que a química científica não existia ainda ou não se
fazia senão nascer, em uma época em que ainda não se
tratava de corpos simples e em que não s e falava senão
dos elementos, como o ar, a água, a terra e o fogo. Hoje
negligenciar a evolução química na formação dos
mundos não é senão uma espécie de anacronismo, em
favor do qual se torna menos profunda, sem lhe dar base
suficientemente sólida, nossa concepção positiva atual
do Universo”.
Somente colocando-se no ponto de vista físico químico, é possível explicar a formação dos sóis e das
estrelas, dos planetas e seus satélites.
Kelvon escreveu em sua Mecânica Molecular que
somente as explicações mecânicas são claras.Assim, se
ele pode fazer uma idéia mecânica do objeto, ele o
compreende; no caso contrário, não.
É o vezo de todo especialista querer resolver
todas as questões pelo prisma de sua especialidade.
Mas como dar uma explicação puramente mecâ nica de todos os fenômenos cósmicos?
Somente o quimismo de mãos dadas ao fisicismo
constitui a integralidade do processus de materialização
do Cosmos.
Augusto Comte imaginou fases sucessivas de
energia segundo fases sucessivas de evolução da
matéria.
290
É assim que para ele o processus químico assenta
sobre o processus físico, o processus biológico sobre o
processus químico, e assim por diante. Tal é a base de
seus sistema filosófico.
O Pater Omnipotens Oethers, porém, uno em si e
múltiplo em suas manifestações, é ao mesmo tempo
mecânico, químico e até socionômico. Socionômico,
sim, desde que de seu seio surgem partículas de átomo,
distintas umas das outras, mas subordinadas a um só
todo.
Os fenômenos físicos, químicos, biológicos,
psíquicos, socionômicos, são coevos, interdependentes,
não existindo uns senão conjuntamente com os outros.
O universo é um organismo, como o é nosso cor po, dotado de propriedades físicas, químicas, psíquicas,
sociais, e o éter influi sobre nós como nós sobre ele.
Posto que invisível, intangível, imponderável o
éter, nós conseguimos vibrá-lo e desviá-lo à vontade. É
sabido que com um pedaço de vidro talhado de um certo
modo podemos desviar seu caminho e separar suas
vibrações.
Além do ponto de vista físico -químico, a evolução da matéria, ou a materialização da substância
etérea, do Pater Omnipotens Oethers, opera-se sob o
ponto de vista moral por meio do desenvolvimento do
sistema nervoso e das instituições sociais.
Na Memória, que apresentamos ao 3º Congresso
Científico Latino-Americano, fizemos ver como o funcionamento do sistema nervoso corresponde ao desenvolvimento da atividade psíquica.
291
Estamos de acordo com Skwortzow quando
sustenta que não se pode fazer abstração do quimismo,
tendo-se de explicar em sua integralidade a evolução do
Universo; mas não podemos concordar com ele, quando
reduz toda a marcha de materialização da substância
imponderável, que é o éter, a um processo puramente
físico-químico.
O processo de materialização se opera em todo o
vasto campo da fenomenologia física, química, biológica, socionômica, e nos seres vivos ela vai desde a
concepção até a morte.
Somente com a morte começa para os organismos
a desmaterialização da substância, a regressão para o
éter.
Bem se vê que, para nós, desmaterialização não
significa o mesmo que espiritualização.
Não admitimos a existência de duas substâncias:
uma espiricual, outra material. Uma substância único é
que se materializa progressivamente indo, por fases
sucessivas, até ao cérebro humano, como se des materializa regressiva mente, voltando, por desassociações contínuas, ao primitivo estado de éter, princípio
e fim de todas as coisas.
Deste modo, o que chamamos espírito não se
desenvolve senão com a materialização progressiva de si
próprio, com a formação de novos sentidos, com o
desenvolvimento do sistema nervoso.
A sociabilidade, além de universal, comum a
todos os seres – átomos, moléculas, células – deve ser
292
encarada como a primeira das manifestações da energia
primordial.
A comunhão existe, desde que o éter universal se
diferencia em átomos, formando um todo ao mesmo
tempo uno e múltiplo.
Neste duplicidade fenomenal do éter, ao mesmo
tempo uno e múltiplo, estático e dinâmico, julgamos
repousar a fonte suprema da solidariedade que reina
entre todos os seres, e faz do Unive rso um todo
orgânico.
Vimos que o éter é como a alma no sistema
animista: dá-se um corpo, articula-se.
Somente então surge a matéria, a qual conserva
invariável sua massa através de todas as transformações
até que começa seu desvanecimento pela desassociaç ão
dos átomos.
Os átomos, pois, da mesma sorte que as plantas e
os animais, estão sujeitos à morte; mas uma morte bela,
que se manifesta pela radioatividade.
“Até uma época muito recente, escreve Gustavo
Le Bon, a indestrutibilidade dos elementos, que comp õe
a matéria, era considerada o dogma mais fundamental da
química. E não era somente a observação vulgar que
ensinava a permanência da matéria. Todas as ex periências da química não faziam senão confirmar esse
dogma, pois, através de todas as transformaçõe s que a
matéria pode sofrer, sua massa, medida por seu peso,
permanecia invariável. Esta invariabilidade da massa
havia acabado mesmo por se tornar o único caráter
verdadeiramente irredutível da matéria, o único que
293
aparecia como independente das influências de meio a
que ela está sujeita. As outras propriedades, sendo
sempre condicionadas pelo meio, apareciam como simples relações”.
Mas os fatos vieram demonstrar que os átomos
podem desassociar-se em elementos imponderáveis, que,
não sendo mais matéria, porquanto deixam de ter peso,
forma e fixidez, não são, entretanto, éter.
Que vão ser estas partículas? Ignoramô -lo completamente, sabendo apenas que com elas não podemos
recompor a matéria.
Guardarão sua individualidade ou voltarão
definitivamente ao éter, espécie de Nirvana, dos
budistas? (1 )
É possível que percam sua individualidade e
voltem ao oceano sem margem do éter imponderável.
Assim, as étapes da evolução universal seriam em
primeiro lugar o éter imponderável; em segundo lugar a
matéria, estado de energia condensada, em que a
substância adquire peso, forma e fixidez; em terceiro
lugar o império da radioatividade pela desarticulação do
átomo em elementos intermediários entre a matéria e o
éter; em quarto lugar novamente o éter imponderável,
princípio e fim de todas as coisas.
A idéia da indestrutibilidade dos átomos nasceu
em uma época, em que os químicos não possuíam
instrumento mais aperfeiçoado de investigação do que a
balança.
Mas na química moderna nem tudo pode ser
resolvido por meio de balança, porque nem tudo é peso.
294
O peso – último reduto da matéria – desvanece-se
em face da instabilidade e retrogradação do átomo,
constatada pela experiência dos fatos.
É a conclusão, a que chega William Crookes nos
seguintes termos:
“Esta fatal desassociação dos átomos parece
universal.Ela se manifesta, quando esfregamos um
bastão de vidro, quando o sol brilha, quando um corpo
queima, quando a chuva cai, quando as vagas do oceano
de despedaçam. E bem que a data do desvanecimento do
Universo não possa ser calculada, devemos constatar
que o mundo volta lentamente à bruma informe do aos
primit ivo. Neste dia o relógio da eternidade terá
marcado um ciclo”.
Nós ignoramos como o éter se transforma em
átomo, e como este volta ao primitivo estado de imponderabilidade; mas sob este ponto de vista a astro nomia, que não é outra coisa senão a matemática de
mãos dadas à física, à química e à biologia, parece que
nos reserva bem extraordinárias surpresas.
Não há muitos anos temerário seria o espírito que
ousasse imaginar que outras energias, além da gravitação e da luz, atravessam tão grandes distâncias como
as que separam as estrelas; hoje, há se não põe em
dúvida que a ação de tais agentes se exerce entre os
sistemas planetários. Sirva de exemplo ilustrativo a
relação que existe entre a aparição das manchas solares
e as tempestades magnéticas da terra.
295
O fenômeno tem sua explicação no que de
idêntico a corpúsculos, elétrons e diversas espécies de
raios de produz nos laboratórios.
Contra a teoria do éter levanta-se a objeção de
que ela não esclarece senão o lado inanimado da
natureza, deixando na obscuridade a matéria viva.
Mas sem irmos ao extremo de atribuir, com Wogt
e Haeckel, aos átomos uma faculdade de sentir e de
querer, notaremos que a fisiologia não tem feito senão
progressos depois que os fisiologistas deixaram de
considerar a vida como alguma coisa de oposto às leis
da física e da química, e passaram a fazer das
propriedades físico -químicas dos seres vivos o objeto
especial de seus estudos.
Insistem, porém, em que uma profunda diferença
existe entre os seres vivos e os corpos inanimados. Os
primeiros têm um processus finalístico, os segundos
puramente mecânicos.
Com efeito, dizem, os seres vivos tendem a viver,
e são organizados para a vida. Há um encaminhamento
para um fim, um esforço para a vida que se pode dizer o
completamento da luta pela vida.
“As causas finais, escreve Charles Richet,
ocupam um lugar importante nas ciências biológicas.
Guardemo-nos contra as exagerações perigosas e pueris;
mas reconheçamos francamente que tudo no ser vivo
tem um destino; que todas as suas partes e todas as suas
funções servem para proteção e propagação da parcela
de vida que existe nele”.
296
Mas não será a consideração, aliás interessante da
finalidade, que informará a teoria atômic a. Todas as
coisas que tomam uma forma, cessam de ser amontoados
confusos e passam a ser aglomerações homogêneas,
obedecem a um plano.
A configuração dos seres animados ou inanimados não se explica senão por um acordo das partes
integrantes entre si e com o todo. O cristal impõe sua
forma às partículas da solução em que foi mergulhado.
É o nisos formativus, o archoeus faber, de Van
Helmont, que põe em ordem os elementos dos corpos
brutos ou vivos, e lhes dá harmonia e unidade.
“A plasticidade, ensina Bordeau, igual à gravitação e à afinidade, é, da mesma sorte que estas forças a
que ela se liga e de que sem dúvida procede,
desconhecida em essência, mas por toda parte visível em
seus efeitos”.
A hipótese do desvanecimento da matéria pela
desarticulação dos átomos em elementos intermediários
entre o ponderável e o imponderável, pode não ser
verdadeira, mesmo porque em rigor não há hipótese
verdadeira nem falsa; porém será a mais fecunda,
porque está mais de acordo com os fatos, e o valor de
uma hipótese se deve medir não tanto pela sua exatidão
quanto pela sua utilidade.
(Transcrito de Novos Ensaios de Crítica, Recife, Tipografia JB
Edelbrock, 1905, págs. 5 a 42).
297
NOTA
(1)
“O Nirvana, nota Hudry-Menos, não é a aniquilação, como
se diz; mas um estado pelo qual os elementos, entre eles o
substratum da consciência humana, passam para irem a outros
destinos cósmicos”. É uma concepção tão grandiosa como a do
Pater Omnipotens OEthers, de Virgílio.
298
PARTE II
CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL
299
1.
O ADULTÉRIO
Ocupemo-nos com a tão velha e, entretanto,
sempre nova questão da infidelidade conjugal.
Antes de tudo examinemos de que espécie de
adultério se trata, se do homem, se da mulher.
A pergunta não vem de fora de propósito,
porquanto nesta questão a parcialidade tem ido ao ponto
de o homem cometer a falta e atribuir a culpa à mulher.
É o que em sua forma tão brilhante de dizer dá a
entender Alphonse Karr: “Quando a moça consegue
apanhar na armadilha o pássaro raro, um marido, ela crê
ser tudo, e, entretanto, se engana. Soube armar o laço,
mas ninguém lhe ensinou a fazer uma gaiola, onde o
pássaro possa viver, acostuma-se e comprazer-se. Falaime de gaiolas bem feitas, bem sortidas daquilo, de que o
pássaro possa gostar”.
Os juristas definem o adultério – a violação da fé
conjugal, o crime que ofende a ordem da família em
geral, e em particular o direito de o cônjuge ter relações
sexuais com outros cônjuge, com exclusão de qualquer
outra pessoa. (1 ) Entretanto, que vemos? Não somente
juristas, mas filósofos e moralistas cheios de indulgência para o adultério do marido e ao mesmo tempo
indignados contra a infidelidade da mulher. Há até quem
esteja convencido de que o homem casado não ter
amantes é dar mostra de pobreza física, ao passo que o
menor desvio feminino é uma repugnante perversidade,
300
uma abominável depravação, que na família pode dar
lugar à encarnação da ignonímia do marido.
Alexandre Dumas, que fez do adultério o estofo
de seus melhores dramas e romances, e discutiu a
respeito as mais ousadas teses, se aconselha à mulher
indignada das faltas do marido a resignação cristã, (2)
incita o homem a matar a esposa infiel. (3 )
Por seu lado Hartmann, bastante filósofo para não
fulminar as faltas femininas com a intolerância e se veridade dos moralistas, nem por isso deixa de acentuar
a profunda diferença, que vai entre a infidelidade do
homem e a da mulher. “Se o homem, escreve o autor da
Filosofia do Inconsciente, tem tanta dificuldade em
dominar suas inclinações adúlteras, isto não pode
resultar senão de seu instinto poligâmico. Se u’a mulher,
que tem em seu marido um homem completo, sente de sejos adúlteros, é o efeito de uma completa depravação
ou de um amor levado à paixão. A diferença dos ins tintos, que sobre este ponto predominam no homem e na
mulher, se explica facilmente. É preciso não esquecer
que um homem no espaço de um ano pode facilmente
com um suficiente número de mulheres procriar mais de
cem filhos; com um número igual de homens u’a mulher
não pode dar à luz no mesmo prazo senão um filho. O
homem favorecido pela fortuna pode nutrir muitas
mulheres e seus filhos. A mulher não pode habitar senão
a casa de um só homem; sua situação e a de seus filhos
seriam minguadas pela introdução de um rival. Enfim,
só o homem, não a mulher, corre o risco, por efeito do
adultério, de tomar filhos estranhos por seus, e de ver o
301
amor para com seus próprios filhos desenraizado de seu
coração pelas suspeitas, que lhe inspiraria a fidelidade
de sua esposa”. Assim, conclui Hartmann, “por toda
parte, em que o homem é senhor absoluto, a poligamia
domina de direito; onde o progresso dos costumes
trouxe à mulher uma situação mais digna, a monogamia
se tornou a única forma legal da união dos sexos, posto
que, do lado dos homens, não seja na realidade
rigorosamente respeitada em parte alguma do mundo”. (4)
É costume nesta questão se recorrer às fórmulas
absolutas dos filósofos e moralistas, ou se apelar para o
convencionalismo teimoso da opinião corrente; mas,
seguindo um outro rumo, limitar-nos-emos a pedir
informações aos dados da etnografia e da história, e
deste modo, parece-nos, evitaremos soluções tanto mais
paradoxais quanto mais absolutas.
O estudo dos fatos etnográficos e dos documentos
históricos nos mostra desde a mais remota antiguidade,
e entre as raças mais diver sas, o adultério punido com as
mais severas penas, sendo que entre bárbaros e selvagens a severidade toca à crueldade. Como explicar o
fato? Dar-se-á que aqueles povos tenham o senso de
moralidade mais desenvolvido do que as nações
civilizadas, em que a repressão do crime é menos
rigorosa?
O que nos ensina a lição dos fatos é que antes de
chegar a um estado superior de civilização, a sociedade
humana passou por uma fase, em que a mulher tem um
valor exclusivamente econômico, e então o adultério
vem a ser considerado um roubo à propriedade conjugal.
302
É o que se nota entre os aborígenes da Índia, entre os
negros da África, entre os selvagens da América, entre
os bárbaros da antiga Europa. Em Sumatra aquele que
perdoa o amante da mulher, pode exigir -lhe cinqüenta
piastras. O mesmo se dava no antigo Sião, onde o
marido tinha o direito de matar os adúlteros ou lhes
cobrar uma indenização. Os habitantes do Boutan têm
por costume matar os acusados de adultério ou lhes
impor uma multa. Na África, onde o castigo vai à
atrocidade, é geral a prática de compensar o marido
lesado. Nas costas da África Ocidental o marido traído
pode pedir de indenização um certo número de escravas,
e no interior, segundo o testemunho de Levingstone, tem
o direito de vender a mulher. Os Bambaras confiscam os
bens do sedutor, quanto este pertence à classe dos
nobres. Entre os Mexicanos as relações ilícitas com uma
escrava davam lugar a uma ação de perdas e danos.
Quem ignora que os antigos Germanos impunham
ao adultério, além de outras penas, a de compensação?
Pelos estatutos de S. Luís o vassalo adúltero com a
mulher do suzerano perdia o feudo, e o suzerano
cúmplice de adultério com a mulher do vassalo a
suzerania. As ordenações de Philippe de Valois, de
Philippe o Belo, de João o Bom, de Carlos V, e de
Carlos VI fulminavam o adultério com uma multa, que
devia ser paga ao rei. (5 )
A prova de que o adultério entre os bárbaros e
selvagens não tem sido punido senão a título de roubo à
propriedade, está em que são justamente os povos que
menos prezam o sentimento da honra, os que mais
303
atrozmente se vingam contra o ultraje à fidelidade
conjugal. Na Nova Zelândia os maridos, ao mesmo
tempo que matam os culpados de adultério, não hesitam
em alugar e emprestar as mulheres. “Que o castigo visa
o roubo, escreve Tito Lívio de Castro (6 ) e não um crime
correspondente ao criado pela moral moderna, provamno esses mesmos povos, não prezando de modo algum a
honra (à moderna), não tendo mesmo noção do que ela
seja. O mesmo povo, que pune de morte o adultério,
aluga ou vende a mulher, oferece-a a estrangeiros, não
cogita da vida livre dessa mulher antes de ser a escrava
de um homem. Em quase toda a África a mulher adúltera
é punida com a morte; em quase toda a África os
maridos alugam, emprestam e vendem as mulheres. O
castigo do adultério em alguns países é ser o homem
criminoso obrigado a pagar grandes quantias ou dar
valiosos presentes ao marido queixoso”.
Um fato muito curioso e instrutivo é que há
povos em que o adultério é severamente punido, e,
entretanto, os maridos têm por dever cívico ou religioso
ceder as mulheres aos parentes, aos hóspedes, aos
amigos e aos chefes espirituais.
Os Pele-Vermelha, que mata a adúltera depois de
arrancar-lhe o nariz e as orelhas, julga dever de
hospitalidade fornecer a mulher ao estrangeiro. “Nada
seria mais fácil, afirma Letourneau, do que enumerar um
grande número de fatos do mesmo gênero, observados
na Austrália, na África, na Polinésia, na Mongólia, um
pouco por toda parte”. (7) Em Roma vemos o rígido
304
Catão de Utica ceder a mulher a Quintius Hortensius por
motivo de civismo.
“É tão honesto quanto útil à República, alegava
Quintius Hortensius, que u’a mulher bela, na flor da
idade, não fique inútil, deixando passar a idade de ter
filhos. Liberalizando assim as mulheres ao cidad ão
honesto, a virtude se multiplicaria e se tornaria comum
nas famílias; por estas alianças a sociedade se fundiria,
por assim dizer, em uma só família. Se Bibulus quer
conservar absolutamente sua mulher, eu lha restituirei
desde que ela se torne mãe”.
Neste ponto Roma não se afastava uma linha da
antiga Grécia. “Não era reprovável, atesta Plutarco, a
um homem já de idade, casado com u’a moça, levar para
casa um jovem agradável e de natureza gentil, a fim de
dormir com sua mulher e fecundá-la com boa sement e,
adotando depois o fruto que nascia, como se tivesse sido
engendrado por ele mesmo. Também era lícito a um
homem honesto, que estimava a mulher de outro por vê la discreta, pudica e tendo filhos belos, obter do marido
consentimento para dormir com ela, a fim se semear,
como em terra fecunda e fértil, belas e boas crianças,
que por este modo vinham a ter relações de sangue e de
parentesco com pessoas de bem e de honra”. (8 ) Atenas
segue as pegadas de Esparta, e Solon não impõe às leis
de Licurgo outra restrição senão a mulher escolher o
amante entre os parentes mais próximos do marido. (9 )
Refere ainda Plutarco que, os costumes indo além
das leis, Simon emprestou sua mulher a Calias, e
Sócrates fez a mesma liberalidade a Alcebíades.
305
Por dever religioso as mulheres da Babilônia
deviam se entregar, pelo menos uma vez na vida, aos
estrangeiros, em homenagem à deusa Milita, e, segundo
Estrabão, o mesmo culto era prestado entre os Armênios
à deusa Anaites. (10 )
Enquanto a mulher não passa de um instrumento
econômico, é claro, o adultério não pode ser punido
senão como um roubo à propriedade conjugal; mas com
a instituição do dote uma profunda transformação se
opera na família.
Deixando de ser comprada para comprar, pode-se
dizer, um marido, a mulher se eleva da condição inferior
de animal doméstico ou de escrava à situação opressora,
em que os homens gemem como Menandro ou se
indignam como Marcial.
Por aí se vê a grande influência que exerce a
propriedade sobre a família, como o destino da família
está ligado à sorte da propriedade.
A prática geral e quase constante entre certos
povos, principalmente da Índia, de queimar as mulheres
sobre a fogueira funerária dos maridos não tem outra
explicação.
É possível que vistas filosóficas e religiosas
tenham influído sobre o desenvolvimento do suttee,
terrível costume, que tanto impressionou os ingleses em
Bengala; mas a causa direta e imediata não pode ser
outra senão o direito de propriedade do marido sobre a
mulher. A viúva era queimada ou enterrada com o
cadáver do marido, como o eram as armas e mais
objetos incorporados à pessoa do possuidor.
306
Referindo-se ao Taiti e à Austrália, observa
Thulié que “na vida selvagem, como na vida civilizada,
a influência da riqueza é fatal. Na ilha rica a mulher é
um elemento de gozo, e matam-se-lhe os filhos, novas
bocas, que podem diminuir o bem-estar. No país pobre a
mulher é um instrumento de trabalho, é verdade; mas
pode produzir filhos e os filhos, são uma riqueza, forças
novas para a luta contra a avareza da terra”.
A história comparada de Roma e da Grécia
mostra claramente a influência da propriedade sobre as
instituições sociais, e especialmente sobre a família. A
natureza não era madrasta para o Grego. O ar e o solo da
Hélade tinham a doçura das carícias e dos afagos
maternos. “Nada é enorme, gigantesco naquele país; as
coisas exteriores não têm dimensões desproporcionadas.
opressoras. Ali não se vê coisa alguma semelhante a
esses labirintos infinitos de vegetação pululante, e esses
enormes rios, que os poetas indianos descrevem; coisa
alguma de semelhante às planícies ilimitadas, ao oceano
sem limites e selvagem da Europa do Norte. O olhar
apanha sem dificuldades as formas dos objetos e deles
recolhe uma imagem precisa. Tudo é mediano,
proporcionado, fácil e nitidamente perceptível pelos
sentidos. As montanhas de Corinto, da Ática, da Beócia,
do Peloponeso, têm três ou quatro mil pés de altura;
somente algumas vão até seis mil; é preciso ir ao
extremo da Grécia, completamente ao norte, para
encontrar um cimo semelhante aos dos Pirineus e dos
Alpes; é o Olimpo onde foi feita a morada dos deuses.
Os maiores rios, o Peneu e o Aquelos, têm no máximo
307
trinta ou quarenta léguas de curso; os outros não são
ordinariamente senão regatos e levadas. O próprio mar,
tão terrível e ameaçador do norte, é aqui uma espécie de
lago”. (11)
Não tendo senão que abrir os olhos para admirar
apoteoses de luz e de cor das pedras preciosas, os
compatriotas de Anacreonte amavam seus bosques, suas
fontes, suas montanhas com sentimento de ternura filial.
Tão sóbrio quanto curioso, tão sereno quanto
inventivo, o engenhoso filho da Grécia se preocupava
mais com gozos do espírito do que com as necessidades
da vida.
Assim, não é para admirar que, adorando mais o
belo do que o útil, mais embriagado de eloqüência do
que de fortuna, o grego abandonasse a riqueza pela arte,
pela política e pelo amor, esquecesse o gineceu pelo
teatro, pelo ginásio e pela praça pública. Daí o Estado
intervindo, justamente como aconselham os modernos
socialistas, nas relações de família para regula r a
capacidade e elevar a dignidade feminina. “Seja solteira,
esposa ou viúva, diz Thulié, (12 ) o Estado a protege
contra seu pai, contra seu marido, contra seu tutor.
Todos os cidadãos são seus defensores perante a lei; é
ainda muito fraca para sustentar por si mesma seus
direitos e acusar aquele que lhe causa algum dano; mas
tem por apoio todo o mundo; o primeiro cidadão, que
aparece, pode ser seu campeão. Quanto o pai, o marido
ou o tutor administra mal os seus bens, quando por eles
é maltratada, todo cidadão pode tomar a si sua defesa,
citar o culpado perante os tribunais e fazer condená -lo
308
ou torná-lo interdito”. O romano, porém, ainda mais
opressor e tirano do que ocioso e superficial, não faz
senão implantar na família sua idéia predominante de
que a base de toda a ordem, quer no mundo físico, quer
no social, é a força. Exercer onipotência sobre os seres
animados e inanimados, sobre as pessoas e as coisas, tal
é a preocupação desse povo, que não deixou de dominar
pelas armas senão para oprimir consciênc ias.
Neste ponto o direito romano é de uma
transparência cristalina, deixando ver nitidamente, que
não há diferença entre o poder marital e o direito de
propriedade. “Sobre a mulher, como sobre as coisas, a
posse ou o uso contínuo durante um ano faz adquir ir o
direito de propriedade. Aplicada às coisas, esta posse
contínua se chama usucapião; aplicado à mulher, chama se usus”. (13 )
A história do casamento romano, sob as três
formas do usus, da coemptio e da confarreatio,
conferindo todas elas ao marido a manus, é a história
mesma da força e da violência da família. Mas se o
pater-familias é onipotente, enquanto a mulher e os
filhos são equiparados às coisas em geral, sua terrível
autoridade se desmorona completamente no dia em que
permite que eles possuam e possam dispor de seus bens.
“O pai, ensina-nos Thulié, (14 ) em redor do qual tudo
gravitava, perde seus direitos tirânicos; o filho é o único
proprietário do que soube ganhar; pode gozar
exclusivamente de sua fortuna, usar dela à sua vontade,
pode mesmo dá-la depois de sua morte. Não somente o
pai deve um dote à filha, mas até não pode se opor ao
309
seu casamento, ou então o tribunal o condena. É uma
revolução completa, que teria parecido monstruosa a um
antigo romano”.
Em relação à influência da propriedade sobre a
organização da família, que de mais exato e engenhoso
se poderia dizer que o que escreveu E. Legouvé na
História Moral das Mulheres? “A primeira questão, que
se nos apresenta, lê-se no delicado livro, é a questão dos
bens. Este único ponto, com efeit o, resume por um lado
todos os outros; porque nada assinala tão vivamente a
subordinação moral quanto a dependência pecuniária.
Como pune a lei o pródigo? Tirando -lhe a administração
de seus bens. Como encadeia a lei o incapaz? Tirando lhe a administração de seus bens. Como domina a lei o
menor? Tirando-lhe a administração de seus bens. Não
poder possuir é ser assimilado ao morto civil e moralmente: porque possuir é usar, é dar, é socorrer, é agir, é
viver. As questões de delicadeza e dignidade se acham,
portanto, estreitamente ligadas às questões de dinheiro,
e entregar ao marido a fortuna da mulher é condená -la a
uma eterna minoridade, e torná-lo senhor absoluto das
ações e quase da alma de sua companheira”. (15 )
O homem primitivo, não tendo consciência de sua
individualidade, vive escravizado ao grupo, de que faz
parte, e ai! daquele que dele se afasta, porque então não
será mais admitido na horda. O selvagem, escreve o
autor da Origem e Evolução da Propriedade, é assaltado
por tantos perigos reais, e ator mentado por tantos
receios imaginários, que não pode existir no estado
isolado, não pode mesmo conceber tal idéia. Expulsá -lo
310
de sua gens, de sua horda, equivale a condená-lo à pena
de morte: entre os Gregos e os Semitas pré-históricos,
assim como entre todos os bárbaros, o assassinato
cometido contra um dos membros da tribo não era
punido senão com o exílio.
Orestes, depois do assassinato de sua mãe, e
Caim, depois do seu irmão, foram simplesmente
obrigados a deixar o país. Em civilizações muito
avançadas, como as da Grécia e da Itália histórica, o
exílio continua a ser a pena mais temida. O exilado, diz
o poeta grego Teógnis, não tem amigos nem
companheiros fiéis: é o que há de mais duro no exílio.
Ser separado dos seus, levar uma existência solitária,
aterra o homem primitivo, habituado a viver em
bando. (1 6)
É o mesmo que se dá entre certos animais: o
elefante criminoso, por exemplo, uma vez expulso do
bando, não pode mais entrar para ele. O mais
interessante é que o isolamento, a que é condenado,
torna o animal mau, furioso. Assim, o Rogue, conforme
observa Lacassagne, está sempre disposto a atacar o
homem. (17 )
Completamente identificado com a horda, de que
faz parte, o homem primitivo não tem idéia da
propriedade. O Fogueano, que encontra uma baleia,
ainda que esteja morrendo de fome, não a devora, vai
chamar a gens. É rara a tribo selvagem em que a caça e
a pesca não se façam em comum, e quanto este costume
desaparece, o comunismo primitivo surge sob a forma
do comensalismo.
311
Só muito tarde é que o selvagem consegue
objetivar sua individualidade nos objetos exteriores, e
deste modo ter a idéia de propriedade. Ainda assim, a
propriedade se limita aos objetos, por assim dizer,
incorporados à pessoa, tais como os ornamentos dos
lábios e das orelhas, e mais tar de aos instrumentos de
caça e de pesca. O uso dos banquetes públicos na Grécia
e em Roma, de que dão testemunho Xenofonte,
Heráclito, Aristóteles e Diniz de Halicarnaso, é uma
sobrevivência dos tempos primitivos: a sissítia dos
gregos e o copo dos romanos, circulando pelos
convivas, não passam de restos do comensalismo
selvagem.
Deste modo se compreende como entre os
selvagens do período comunista a hospitalidade não seja
uma virtude muito rara. Não conhecendo o meu e o teu,
que razão haveria para que eles não exercessem a
hospitalidade em larga escala?
Notando que entre muitos poucos antigos
imperava o parentesco pelo lado materno, procurava
Bachofen explicar o fenômeno pela supremacia das
mulheres sobre os homens na antiguidade. Mais tarde,
Mc Lenan, constatando o mesmo fato, o considerava
uma resultante da incerteza paterna, ou melhor, da
promiscuidade primitiva. “A relação entre essas duas
coisas – a paternidade incerta e o parentesco somente
pelas mulheres – parece tão necessária e ser de tal sorte
uma relação de causa e efeito, que podemos com toda
confiança supor uma onde achamos a outra”.
312
Mas, se por um lado depois da crítica profunda de
Westermack seria impossível atribuir a metrocracia à
incerteza da paternidade, por outro lado seria mostrar -se
pouco exigente satisfazer-se com a explicação de
Sumner Maine, isto é, que a paternidade é uma questão
de indução em relação à maternidade, que é uma questão
de observação. A razão da metrocracia entre vários
povos primitivos ou selvagens nos parece não ser out ra
senão a influência da propriedade sobre a organização
da família. Artur Orlando princípio a mulher nada
possui; pelo contrário, ela é que pertence à tribo. Não é
senão quando a horda deixa de erras pelos campos e
pelas margens dos rios em busca de caça e de pesca, não
é senão quando a gens inicia um período de agricultura
rudimentar, não é senão quando se estabelece e se
acentua pela diferença de ocupações a separação dos
instrumentos de guerra para o homem e dos utensílios
domésticos para a mulher, que a família pode surgir sob
a forma matriarcal. Desde que o selvagem, preocupado
com a necessidade da caça e da guerra, deixa à mulher o
resto das ocupações e a propriedade dos objetos ade quados ao seu gênero especial de trabalho, compreende se facilmente que a mãe de família se torne soberana,
despoina, como diziam os lacedemônios.
Deste modo se pode afirmar que foi a divisão do
trabalho, a diferenciação das ocupações, a distinção dos
bens incorporados à pessoa do homem ou da mulher,
que fracionou a família comunista, a gens, em famílias
matriarcais ou patriarcais. Assim seria demasiadamente
ousado afirmar que por toda parte o parentesco pelas
313
mulheres precedeu o parentesco pelos homens, como
seria escurecer a verdade negar que é considerável o
número dos povos selvagens, quer antigos, quer mo dernos, entre os quais a descendência e a herança não
seguem exclusivamente o lado materno.
Onde predomina a propriedade materna, a gens se
divide em famílias matriarcais; onde impera a
propriedade paterna, a gens se fraciona em famílias
patriarcais. Em relação ao nome, o filho herdava o nome
materno, como herdava qualquer objeto. Entre os
selvagens o nome é o mais precioso bem. A respeito dis
indígenas da Austrália Ocidental nota George Grey que
a obrigação do nome de família é muito mais forte do
que a do sangue. O nome é menos uma questão de
parentesco do que de propriedade. Assim se explica que
em alguns povos se dê a herança do nome como se dá a
herança dos objetos, pela influência, não diremos
exclusiva, mas preponderante, da mulher.
Sem atribuirmos a família matriarcal a incerteza
da paternidade resultante da promiscuidade primitiva,
como quer Lc Lenan, ou à simples supremacia feminina,
segundo entende Bachofen, temos como certo que a
metrocracia se explica pela influência da propriedade
sobre a organização da família. “É um fato digno de
nota, escreve Westermarck, que onde os dois costumes –
a mulher recebendo o homem em sua cabana e o homem
lavando a mulher para a sua cabana – se produzem lado
a lado, no mesmo povo, a linha de descendência no
primeiro caso é feminina, e no segundo masculina”.
Entre os Tuaregs, onde impera o “direito materno”, onde
314
“o filho segue o sangue da mãe, onde o filho de um pai
escravo ou servo e de uma mãe nobre é nobre”, a
mulher, principalmente a mulher rica e nobre, é
“senhora absoluta de sua fortuna, de seus atos, dos
filhos, que lhe pertencem e que trazem seu nome”. (18)
Letourneau, por sua vez, lembra que a influência da
dama Tuareg é devida à riqueza. Em That, por exemplo,
quase toda a propriedade territorial está nas mãos das
mulheres.
Mas assim como a gens se divide em famílias
matriarcais, ou patriarcais, segundo a propriedade
comum se fragmenta em propriedade coletiva, do
mesmo modo o matriarcado ou o patriarcado assume a
forma da família moderna, conforme o coletivismo se
fraciona no individualismo burguês, servindo de termo
de transição a propriedade feudal. Quando os bárbaros
invadiram o Império Romano, não se limitaram a
saquear as cidades; deixando os vencidos viverem
segundo suas leis e tradições, todavia lhes tomaram as
terras e as distribuíram entre suas hordas. Não o
fizeram, porém, arbitrariamente, e sim de acordo com
seus usos e costumes. Cada tribo recebia para si uma ou
muitas aldeias, que eram divididas entre suas gentes.
Estas aldeias ocupadas pelas gentes de cada tribo
formavam uma centena, muitas centenas um condado,
muitos condados um ducado. A terra que não tocada à
aldeia, competia, ao condado, a que não cabia ao
condado, pertencia ao ducado. A propriedade territoria l
era, portanto, comum. De possa das terras conquistadas,
as tribos bárbaras foram perdendo seus hábitos
315
guerreiros e dedicando-se à cultura da terra. A
proporção, porém, que os vencedores cultivavam o solo
conquistado, novas ondas de bárbaros invadiam os
terrenos cultivados, pilhavam, escravizavam, e massa cravam. Para se defenderem contra a irrupção constante
dos invasores, os bárbaros, então possuidores dos
campos, fortificavam suas aldeias e elegiam um chefe
encarregado da defesa. A princípio esses che fes eleitos,
além de executores das deliberações das assembléias
populares, eram apenas encarregados da percepção dos
impostos e do desempenho do serviço militar sem
direito algum territorial.
“As leis do país de Gales, dis Paulo Lafargue,
coligidas em 940 por ordem do rei Hoel-Da e publicadas
em 1841 por A. Owen, indicam o modo de eleição, as
qualidades e as funções destes chefes, que são as
mesmas, pouco mais ou menos, em todas as tribos
bárbaras. O chefe da gens ou do clã era eleito por todos
os chefes de família, que tinham mulheres e filhos
legítimos; exercia seu poder durante a vida; entre outros
povos suas funções eram temporárias; em todo caso,
porém, podia ser destituído. Era preciso que estivesse
sempre pronto a “falar em favor de seus parentes e q ue
fosse escutado; que estivesse sempre pronto a se bater
por seus parentes e que fosse temido; que estivesse
sempre disposto a ser o garantidor de seus parentes e
que fosse aceito”. Quando pronunciava sentença, fazia se assistir pelos sete velhos de mais idade; tinha sob
suas ordens um vingador (avener) encarregado de
executar as vinganças, porque a justiça não era então
316
senão a lei de talião, senão a vingança, golpe por golpe,
ferida por ferida, dano por dano. Ao primeiro grito de
alerta, quando se tinha proferido o clamor – o haro dos
Normandos, o biafor dos Bascos – todos os habitantes
deviam sair em armas de suas casas e se por sob suas
ordens: era chefe militar e todos lhe deviam obediência
e fidelidade. Aquele que não correspondia ao apelo, era
condenado a multa. Os habitantes eram organizados
militarmente; assim em Tarbes eram agrupados por
dezenas, tendo a sua frente um dizainier, encarregado de
velar para que todo o mundo estivesse armado e para
que as armas estivessem em bom estado”. (1 9)
Mas ao lado desses chefes de aldeia eleitos havia
chefes militares colocados pelos vencedores nos postos
estratégicos. A ocupação desses postos foi a princípio
temporária, depois perpétua, e acabou por ser
hereditária. Substituindo os chefes eleitos, os donatários
dos postos militares empregaram todos seus esforços
para converterem os benefícios em verdadeiros
patrimônios. Se, porém, compreende-se facilmente o
beneficiário militar transformando -se em senhor feudal,
o mesmo não sucede com o chefe eleito pela
comunidade. Não reinava entre os membros da
comunidade o mais vivo sentimento da igualdade? Pelos
costumes e tradições esta igualmente não tendia a
persistir? Realmente, sob o regimen feudal não se
encontram traços desta primit iva igualdade?
Verdade é que, segundo nota Lafargue, o fato de
serem escolhidos sempre os chefes da comunidade na
mesma família acabou por constituir um privilégio, que
317
se transformou em direito hereditário; mas isto não
explica como se operou a incorporação da propriedade
territorial à pessoa do chefe da comunidade. A razão
afigura-se-nos ser que embora reinasse nas comunidades
da aldeia o mas intenso sentimento de igualdade, não
obstante elas concediam nas divisões agrárias a seus
chefes eleitos uma parte maior do que a que cabia aos
demais membros por ocasião de conquista sobre as
outras comunidades. De posse de tais porções de terras,
os chefes de comunidade, tendo além disto diante dos
olhos o exemplo vivo dos beneficiários nos postos
militares, puderam isolá-las do patrimônio comum, a
transformá-las em propriedade feudal. Assim, a
transformação do coletivismo de aldeia em propriedade
feudal obedeceu a uma dupla corrente de influência. Em
primeiro lugar foi o ardor quereloso das próprias co munidades, dando em resultado o chefe da comunidade
vencedora se apropriar de uma grande parte das terras
anexadas ao patrimônio comum; em segundo lugar foi a
força sugestiva dos benefícios militares, em que os
chefes impunham às comunidades vencidas o sistema
individualista do Direito Romano.
Assistindo à gênese da propriedade feudal, vê-se
que haveria grande erro em confundi-la com a
propriedade romana, quer móvel, quer imóvel. Assim, o
escravo da idade média não é empregado no serviço
doméstico. Este pertence à dona da casa. O escravo é
simples cultivador do solo conquistado. “As leis
bárbaras, afirma Laurente, (2 0) mostram os escravos em
sua maior parte empregados no trabalho da terra; esses
318
escravos se vendem e se compram com a propriedade
que cultivam, são parte integrante do solo”.
Para mostrar a grande diferença, que vai entre o
escravo romano e o da idade média, basta lembrar que
entre os Lombardos era permitido que o escravo,
surpreendendo sua mulher em adultério, matasse os
culpados, ao passo que os Romanos não compreendiam
o casamento dos escravos, inventando para ele uma
palavra ignóbil. Depois da invasão dos bárbaros a
grande propriedade territorial sob a influência das
concessões beneficiarias, das conquistas e das
usurpações, ainda mais se alargou e se estendeu, mas
sem perder seus caracteres especiais, que não deixam
confundi-la com a propriedade romana.
A propriedade feudal estava sujeita a uma
organização hierárquica, que de nenhuma sorte se
concilia com a plena in re potestas, com o direito de
usar e abusar dos Romanos. “A terra, assevera Lafargue,
não se compra nem se vende, é gravada de servidões, e
se transmite segundo costumes a leis, que o proprietário
não pode infringir; o proprietário é obrigado a cumprir
deveres para com seus superiores e inferiores
hierárquicos. O feudalismo em sua essência é um
contrato de serviços recíprocos: o barão não possui uma
terra e direitos sobre o trabalho e colheita de seus servos
e vassalos senão sob condição de prestar serviços a seu
superiores e inferiores. O senhor feudal, recebendo “a
fidelidade e a ho menagem” de seu vassalo, “se obrigava
a protegê-lo para com todos contra todos, e a socorrê -lo,
em todas as circunstâncias”; o vassalo, para assegurar a
319
si esta proteção, devia acompanhar na guerra seu senhor
e lhe pagar certas prestações em serviços pesso ais e em
dízimos sobre as suas searas e animais domésticos. O
barão para achar, em caso de necessidade, auxílio e
apoio, se ligava a um senhor mais poderoso, que, por
sua vez, é vassalo de um dos grandes feudatários do rei
ou do imperador”.
Mais tarde, o individualismo burguês despedaçou
esta vasta organização recíproca de direitos e deveres
territoriais; mas não em benefício dos proletários, como
fazem acreditar certos apologistas da revolução fran cesa. A revolução de 1789, nem arrancou o solo das
mãos dos grandes proprietários, nem melhorou a
condição dos camponeses; pelo contrário, não serviu
senão para que os burgueses aumentassem seus
domínios à custa dos bens dos emigrados e do clero, e
para que a grande classe dos enjeitados da fortuna fosse
privada de seus direitos sobre as terras dos nobres.
Precisamos, porém, antes de passarmos adiante,
tornar bem acentuada a distinção entre a propriedade
antiga e a propriedade moderna, às quais serviu de
termo de transição a propriedade moderna, às quais
serviu de termo de transição a feudal.
O que caracteriza a civilização romana, sob o
ponto de vista econômico, é que ela desconheceu a
riqueza móvel. “O solo, descreve Fustel de Coulan ges, (21 ) se conservou sempre nesta sociedade a fonte
principal e, sobretudo, a medida única da fortuna. Não é
que houvesse comércio, indústria, profissões ao mesmo
tempo honrosas e lucrativas; porém nunca saiu de tudo
320
isto uma classe poderosa como a que se vê nos Estados
modernos. O comerciante, o banqueiro, o industrial,
podiam ter individualmente uma existência opulenta;
não constituíam como em nossos dias uma força social;
não formavam um grupo de interesses e um feixe de
valores, com o qual o Estado devesse contar, e que
pudesse exercer alguma ação sobre a natureza do
governo. É por este motivo que os povos submetidos ao
império romano tiveram outras necessidades que não as
nossas, e nunca reclamaram as instituições, que se
tornaram necessárias às nações modernas”.
A importância do solo era decisiva, pois dele
vinha não somente riqueza, mas ainda consideração.
Quem não possuía terra, valia pouco. Aos proprietários
do solo competiam as principais funções públicas, a
magistratura, o sacerdócio, enfim tudo que, no dizer de
Fustel de Coulanges, dava dignidade ou brilho à vida.
Os senadores, a mais privilegiada classe do Império, não
eram escolhidos senão entre os proprietários. De tal
sorte a riqueza do solo influía sobre a alta dignidade de
senador, que esta se perdia, quando aquela desaparecia.
Era a terra que constituía a mola principal, o pivô sobre
que girava todo mecanismo do mundo romano. “Esta
ausência quase completa do que chamamos hoje os
capitais ou os valores móveis, e esta importância única
do solo, este apagamento da população industrial e
urbana e esta supremacia incontest ada da classe dos
proprietários, são os fatos que dominam e regem o
estado social daquele tempo”.
321
Bem diferente é a forma principal da propriedade
moderna. A classe média fabricou, comerciou, e, não
satisfeita com o produto de seu trabalho, procurou
emprego para sua fortuna, para sua riqueza, e conseguiu,
apoderando-se dos instrumentos de trabalho. Deste
modo começou a preponderância da propriedade
capitalista, a exploração do operário pelo patrão. Desde
que são abolidos os privilégios ligados à terra e os
utensílios passam das mãos do artífice para as do
capitalista, este se torna o supremo árbitro da condição
do proletariado, a ponto de Carlos Marx poder dizer
com razão “que a acumulação da riqueza em um dos
pólos da sociedade marcha com o mesmo passo que a
acumulação, no outro pólo, da miséria, da sujeição e da
degradação moral da classe, que, com o seu produto, faz
nascer o capital”.
Com a invasão do império romano pelos bárbaros,
deu-se uma verdadeira fusão de costumes e instituições.
O que então se realizou, não foi simplesmente uma
amálgama de legislações, foi uma profunda penetração
de tradições e conceitos econômicos, artísticos, morais e
políticos. O mais curioso é que do choque das relações
entre vencedores e vencidos resultou uma sorte de
retrogradação do presente, uma espécie de ressurreição
do passado.
Com o mundium dos Germanos, e especialmente
dos Lombardos, não volta a mulher à sua antiga
condição de escrava? Absorvida por uma ferrenha e
constante tutela, não deixa de ser senhora de sua pessoa
e bens? Não é o tutor que desfruta e herda os bens da
322
pupila? Não é ele quem estipula o dote, e anula o
casamento, quando não recebe a quantia convencioada?
A absorção feminina não vai ao ponto de ser o homem o
responsável pelas faltas e crimes da mulher?
Não vem fora de propósito notar que perante os
Germanos e os Escandinavos o dote passava como
condição essencial para a validade do casamento.
Primitivamente, tanto os gregos como os romanos
consideravam toda a união contraída sem dote antes um
concubinato do que um verdadeiro casamento. Em
alguns países da África é nulo o casamento em que a
família da noiva não recebe o preço desta. Entre os
karocks são tidos na conta de bastardos os filhos da
mulher casada, cujo marido não paga a importância, por
que a compra. No seio do convulsionamento, que marca
uma era nova na história da civilização, a mulher cai de
novo sob o poder brutal e cruel do homem, e então
ressurgem as mais odiosas e abomináveis penas contra o
adultério. Como se não bastasse a tortura, junto u-se a
ignonímia. Antes de ser supliciada, a adúltera era
conduzida nua pelas ruas da cidade, tendo muitas vezes
o nariz, as orelhas e os lábios arrancados. Também não
era raro que a atirassem aos circos para lutar com os
touros bravios. Além de tudo isto, havia a prática
infamante de encerrá-la em um cubículo, e assim expôla indefesa à volúpia dos transeuntes.
Que fazia o cristianismo conquistando as cons ciências, enquanto os bárbaros conquistavam o solo? É
bem conhecida a linguagem malsoante dos padres da
igreja contra a mulher. Para eles, a mulher é uma
323
natureza impura e diabólica. São Paulo, Orígenes,
Tertuliano, Santo Agostinho, todos eles aconselham o
celibato. Além das apóstrofes pungentes de S. Jerônimo,
Santo Anastácio, S. João Crisóstomo, Santo I nácio e S.
Boaventura, contra a influência perniciosa da mulher,
não vemos o próprio Cristo dizer a Maria, o tipo ideal
de virtude: “Mulher, que há de comum entre nós?”
Entretanto, não se pode negar que o cristianismo tivesse
concorrido para a dignificação da mulher; mas fê-lo
indiretamente por suas vistas e aspirações socialistas,
pregando a glorificação dos pobres e dos humildes.
Para S. Basílio o rico é um ladrão, S. João
Crisóstomo entende que todos os bens devem ser
comuns. S. Jerônimo sustenta que a o pulência é sempre
produto de um roubo. Santo Ambrósio afirma que foi a
usurpação e não a natureza, que estabeleceu a
propriedade particular. S. Clemente reproduz quase
textualmente o pensamento de Santo Ambrósio. Jesus, o
redentor dos enjeitados da fortuna, não colocou seu
reinado fora deste mundo senão como um protesto
contra a apropriação da terra.
A invasão dos bárbaros trouxe o retrogradamento
social; mas o regresso não tocou à dissolução. A
sociedade não recuará senão para marchar depois com
maior firmeza e segurança, A involução tornar -se-á o
ponto de partida de transformações e desenvolvimentos,
que a antiguidade não conheceu. Dado o desmembramento político, o Império se transformará em nações,
e o despedaçamento da unidade romana influirá sobre a
organização da propriedade e da família mas, voltando a
324
formas relativamente rudimentares, as duas instituições
não ficarão estacionárias, revestirão modalidades, que
não se confundirão com os tipos gregos e romanos.
Por uma feliz transformação, o mundium, o
morgengabe e o osculum se converterão em donaire, e,
mais tarde, em regimen da comunhão, principalmente na
Dinamarca, na Alemanha, na Síça, na Holanda e em
Portugal. Carlos Magno, concentrando em suas mãos
todos os poderes públicos e absorvendo todos os d ireitos
privados, sujeitará a mulher à tutela do Estado; mas em
compensação as comunas, levantando -se contra os
senhores feudais, garantirão tanto às filhas da nobreza
como às do povo o gozo de seus bens.
Liberta da tutela eterna, herdando igualmente
com seus irmãos, participando dos bens adquiridos na
constância do matrimônio, podendo na qualidade de
herdeira de um feudo presidir os juízes civis e criminais,
cunhar moeda, levantar tropas, outorgar cartas, a mulher
se torna soberana, e a galanteria suprema razão de
Estado. Não impera somente pelas suas graças e
encantos, domina por privilégios ligados à propriedade
territorial. Era impossível que a mulher, unindo à força
da beleza o domínio da terra, não se constituísse senhora
absoluta de seus feudatários, vassalos e clientes. É
preciso não esquecer que os clientes embora não fossem
escravos, todavia dependiam em todas as coisas da
vontade daquele, cujas terras ocupava. Sendo assim, é
bem de presumir que esta subordinação entrasse em
grande dose para a formação do sentimento cava325
lheiresco, que faz da fidelidade uma questão de honra e
da cortesia um objeto de culto.
A supremacia feminina é devida a outras causas
que não exclusivamente as influências etnográficas. Em
mais de um povo o homem tem sido escravo d a mulher.
Na Grécia vemos na lenda Hércules fazer garbo de não
falar senão de joelhos aos pés de Onfália. “Em Roma,
escreve Thuilé, (22) a mulher recebeu a liberdade, usou
dela até a licença mais abominável, se lançou de olhos
fechados nas intrigas, nas aventuras; não somente se
chafurdou em todas as devassidões, mas teve todas as
ambições e se entregou a todos os crimes para satisfazê las. As mulheres conseguiram um poder sem limites,
destruíram tronos, fizeram e desfizeram imperadores,
misturaram o amor co m a política, transformaram em
senhores e em ministros seus amantes, quem quer que
eles fossem, os mais vulgares, os mais imundos. Ho mens do nada, histriões, dançarinos, libertos, escravos,
são elevados às mais altas posições do Estado pelo
capricho de suas poderosas amantes; é o reinado da
paixão bestial, é a dominação da mais baixa sensua lidade, e se é grande homem somente porque se é
solidamente organizado”.
Se a mulher do império romano é mais volutuosa
e corrupta, a mulher da cavalaria, dos tribunais do amor,
da Fronda, é mais ousada e aventurosa. Nesses velos
tempos a dominação feminina não conhece termos; o
sexo fraco é de uma energia e de uma audácia sem
limites. É a paixão romanesca que inspira as mais
ilustres empresas, os mais ousados cometimentos. No
326
salão a suprema direção pertence à mulher. Aí ela se
insurge contra o rei, contra a igreja, contra o próprio
Aristóteles. A conversação tem um tom picante, nada
discreto e reservado. Mme, de Sévigné, censurada por
ter posto a maior parte de sua fortuna sobre a cabeça do
marido, responde desabusadamente: “uma vez que não
lhe ponho sobre a cabeça senão isto, paciência”.
Quando a galanteria se constitui a norma de
conduta, o móvel principal, a razão suprema de todas as
ações, surge uma devoção desregrada e tortuosa, uma
moral desabusada e licenciosa, uma política, que é um
embróglio, de rivalidades e ambições, de astúcias e
dissimulações. Armauld d’Andilly, o grande convertedor
de damas, leva seu zelo religioso a ponto de beijar a
boca de cada extraviada durante um bom quarto de hora.
O abade Fouquet ameaça de retomar a Mme. de
Chatillon todos os vestidos, móveis, jóias, que lhe havia
dado. Mlle. de Coligny recebe todas as tardes seu
namorado disfarçado em padre. Mme. de Rohan cria e
educa, às escondidas do marido, u seu filho adulterino, e
mais tarde pretende reconhecê-lo como herdeiro de seu
nome e bens. Referindo-se a Mme. de Montabason,
escreve Retz que nunca viu uma pessoa que no vício
conservasse tão pouco respeito à virtude, e em relação a
Mme. de Chevreuse diz que ela não conhecia senão um
dever – o de agradar o amante.
São costumes que fazem lembrar os famosos
tempos da Grécia, em que as Laís, as Frinés e as
Aspásias dirigem artistas, filósofos e estadistas. Na
própria guerra é a dama que guia o c avalheiro,
327
despertando-lhe coragem, clemência e generosidade. M.
de Chatillon não vai ao combate senão levando no braço
a jarreteira de sua amante. O duque de Loraine concede
a vida e a liberdade a dois cavalheiros franceses sob a
condição de irem beijar as fímbrias do vestido de Mlle.
de Hautefort.
A mulher, porém, não se contenta com inspirar
aventuras, ela quer representar o primeiro papel na cena
da guerra. Presos seus dois irmãos e seu marido. Mme.
de Longueville se faz porta-bandeira da revolta.
Ameaçada de ser detida no castelo da cidade, depois de
ter tentado levantar Dieppe, foge à noite, tomando um
barco; mas uma grande tempestade a atira sobre o mar,
dio qual não consegue se salvar senão com grandes
dificuldades. Ao ganhar a margem, erra durante o resto
da noite em busca de um asilo. Conseguindo embarcar
em um navio, no qual passa como um cavalheiro que
havia se batido em duelo e procurava se refugiar em
Inglaterra, salta na Holanda, e se instala em Stenay,
onde aguarda o momento oportuno para agra vessar a
França, alcançar Bordeux, e ai conseguir ser quase
rainha.
Afinal derrotada, não se dá por vencida, e
continua a guerra. Mme. de Condé, preso o marido,
segue para Bordeaux, coberta de luto, conduzindo o
filho nos braços. Uma vez na cidade, levanta homens e
mulheres, e repele o exército real que tinha vindo por
cerco a Bordeaux. Mlle. de Montpensier não se mostra
menos ousada e intrépida. Em Orleans, encontrando as
portas fechadas, mas avistando uma poterna mal
328
guarnecida, aproxima-se, sobe por uma escada meio
quebrada, e ei-la dentro da cidade. “É conduzida em
triunfo, nota George Renard, chamam-lhe uma nova
Joana d’Arc; cantam-se por toda a parte estrofes,
consagrando sua glória, e mais tarde quando ela aparece
perante seu exército, é recebida com todas as honras
militares, cumprimenta-se sua chegada ao som de
trombetas e de canhões, bebe-se de joelhos à sua saúde,
fazem-se-lhe passar tropas em revista, segue-se sua
opinião sobre as manobras; ela é de ofício”.
Da prática as mulheres elevam-se à teoria.
Modesta de Pazzo de Zorzi escreve uma calorosa
apologia de seu sexo, e mais tarde Lucrécia Morinella
publica seu livro, que se ocupa da nobreza e excelência
das mulheres comparadas com as faltas e as
imperfeições dos homens, assunto de que também se
ocupou Margarida de Navarra, primeira mulher de
Henrique IV. Em 1665 a pretensão feminina se ostenta
faustosamente no livro, que traz o pomposo título de
Damas Ilustres, onde por Boas e Fortes Razões se
Prova que as Mulheres Sobrepassam os Homens.
Mas estes escritos, maneiras e costumes não eram
os mais próprios para refrearem o comportamento das
imodestas. Ninon de Lenclos se torna então o tipo da
moda, dando o tom à sociedade e servindo de modelo
àquela que depois devia chamar -se Mme. de Maintenon.
A intervenção das favoritas nos negócios do
Estado é manifesta, e sua influência se torna decisiva
nos destinos do país. A partir de Carlos VI as favoritas
fazem parte integrante da corte. Carlos VI tem junto a si
329
Odete de Champdivers, a filha de um mercador de
cavalos, para a qual inventa uma árvore genealógica,
que a eleva de seu baixo nascimento à altura da proteção
que lhe é dispensada. Carlos VII vive no seio de um
verdadeiro serralho, entre Agnes Sorel, Antonieta de
Meignelai, Gerarde Cassignol. Luís XI se d istinque,
além do número, pela variedade de escolha: entre suas
favoritas figuram Margarida de Sassenaye, Huguette de
Jacquelin, representantes da nobreza, Félisa Renard,
Gigonne e Passefilon, filhas do povo. Francisco I, o rei
galante, que dizia que uma corte sem damas é um ano
sem primavera ou uma primavera sem rosas, não pode
dispensar as graças e encantos de Cureon, Éampes,
Chateaubriand, Féronnière, Ana de Boleyn e Diana de
Poitier. Henrique II tem por amantes Philippa Duc,
Flovim de Leviston, Nicole de Savigny. Henrique III,
Renée de Rieux, Maria de Clèves. Henrique IV não se
mostra menos exigente do que Luís XI e Francisco I,
nem em número nem em variedade. Cercam-no cheias de
exigências e fantasias Avelle, Gabriela, Tignonville,
Martine, Luc, Armandina, Montaigu, Fleurette, Glandée,
Boinville, Maria de Beauvilliers. Luís XIV, aos quinze
anos já desfruta Mme. de Beauvais, e, mais tarde,
Lamotte
d’Agencourt,
La
Vallière,
Fontanges,
Montespan, a marquesa de Soubise e uma infinidade de
filhas de lacaios. Luís XV se mostra digno sucessor das
galanterias capetianas, deixando -se conduzir ao teatro
da guerra pela duquesa de Châteauroux, e aviltar pela
dominação perniciosa de Mme. de Pompadour.
330
Mais que tudo, porém, sofrem as finanças do
Estado com os excessos poligâmicos da corte. Muito
caro custam ao tesouro público as liberalidades
femininas. Para não falar senão de Luís XIV e Luís XV,
basta lembrar que Fontanges recebe a título de pensão
1000.000 escudos por mês, além de suntuosos móveis,
luxuosos vestidos, tecidos com fios de ouro e pérolas no
valor de 150.000 libras, e Mme. de Pompadour figura no
orçamento com 36,727,000 francos, afora os presentes e
abonos que recebia dos rendeiros gerais para conceder
favores sobre o preço dos arrendamentos e assegurar a
impunidade das exações. (23)
Felizmente nem todos os homens se deixavam
arrastar por esta febre de imoralidade e corrupção: havia
espíritos, que refletiam e raciocinavam, sem estarem
dispostos a sacrificar tudo à embriaguez da galanteria.
Despojada das imunidades e privilégios,
imunidades e privilégios, oriundos da antiga estrutura
feudal, a mulher deixa de ser o que de seus compatriotas
afirmam os irmãos Goncourts: “a alma desse tempo... o
ponto donde tudo irradia, a imagem sobre que tudo se
modela... o princípio que governa, a razão que dirige, a
voz que ordena... a causa universal e fatal, a origem dos
acontecimentos, a fonte das coisas”.
Com o predominância da indústria e do comércio
a riqueza móvel não somente suplanta a propriedade
territorial, mas toma uma feição nova, revestindo a for ma capitalista. “O que é relativamente novo e constitui
um dos traços de nossas sociedades modernas, é a pre 331
dominância, entre os povos contemporâneos, da riqueza
móvel ou como dizem alguns, do capitalismo”. (2 4)
A propriedade territorial é firme, fixa, uniforme;
a móvel é variável, cambiante, proteiforme. A primeira
é o que se poderia chamar uma propriedade estável,
disposta ao repouso e à inércia; a segunda uma
propriedade instável, levada ao movimento e à ação. Isto
não quer dizer que a propriedade móvel não esteja
sujeita a equilíbrio; mas, este equilíbrio é passageiro,
transitório, instável, enquanto que o da propriedade
territorial é durável, permanente, estável. A propriedade
territorial acha em si mesma garantias de duração,
enquanto que a propriedade móvel para perdurar precisa
ser refeita pelo trabalho. O equilíbrio da propriedade
territorial se mantém somente por efeito da posse, como
o equilíbrio estável pela ação preponderante da
gravidade; o equilíbrio da propriedade móvel, porém, se
mantém por outras circunstâncias que não exclu sivamente a posse, da mesma sorte que o equilíbrio
instável se conserva por outras causas que não somente
gravitação. O equilíbrio da propriedade territorial tende
a persistir como o da propriedade móvel a acabar.
Em dinâmica desde que uma causa estranha faz
oscilar o centro de gravidade, não somente a massa não
volta à sua posição anterior, mas ainda se desvia cada
vez mais. É o mesmo que se dá com a propriedade
móvel que, dada uma modificação em seu centro de
gravidade – na posse – tende a não voltar a seu estado
anterior e a se afastar dele cada vez mais. O valor da
propriedade territorial persiste pelo fato da posse, ao
332
passo que o valor da propriedade móvel diminui pela
ação do tempo. Rigorosamente o tempo não faz nem
desfaz coisa alguma: já tivemos ocasião de escrever que
assim como não se pode dizer que ele seja bom ou mau,
belo ou feio, longo ou curto, rápido ou lento, também
não se pode afirmar que ele construa ou destrua coisa
alguma; mas a verdade é que com os anos a propriedade
móvel diminui de valor, se ela não se refaz pela ação do
trabalho e pelo espírito de empresa. Esta verdade é posta
em toda a evidência por Anatole Leroy Beaulien em seu
magistral trabalho sobre o capitalis mo e o feudalismo
industrial e financeiro.
“Se não têm o cuidado de renovar a fortuna pela
economia e pela inteligência, isto é, pelo esforço
pessoal, os netos dos reis do ouro são condenados a ver
sua situação diminuir em cada geração. Neste sentido,
por mais que a lei garanta aos filhos a herança paterna, a
riqueza não se transmite por longo tempo. A nova
aristocracia do dinheiro, o que chamais o novo
feudalismo, está votada a uma decadência rápida, a
menos que ela tenha a energia de elevar incessantement e
o nível sempre decrescente de sua fortuna. O capitalista,
ao inverso do que se atribuía outrora ao proprietário
territorial, não possui monopólio, que lhe garanta para
sempre os gozos da riqueza. O capital, o odioso capital,
longe de engordar naturalment e sem fazer coisa alguma,
ou de guardar sua nediez no repouso, o capital emagrece
com a idade, perdendo pouco a pouco seu peso, de ano
em ano, por toda parte, em que vive sobre si mesmo,
333
sem se refazer pelo trabalho ou pelo espírito de
empresa”. (25)
A forma, porém, mais precária, mais dilatável,
mais fluida, e por isto mesmo mais perfeita e acabada,
da propriedade móvel, é a moeda, a mercadoria por
excelência, a mercadoria que, no dizer de Lafargue,
“encerra em estado latente todas as outras, e tem o
poder mágico de se transformar à vontade em todas as
coisas desejáveis e desejadas”. Com um tão poderoso
instrumento econômico inaugura-se uma nova era
financeira: concentram-se nas mãos dos capitalistas e
empresários as economias individuais, e realizam-se
obras gigantescas, como só se encontram iguais nos
monumentos das épocas, em que o povo era obrigado a
trabalhar em massa. É a época do feudalismo industrial
e financeiro, do capitalismo, época em que pela
transformação da propriedade, pela predominância da
riqueza móvel, a mulher perdeu a supremacia, que teve
no século XVIII.
A mulher solteira herda igualmente com seus
irmãos; mas em suas mãos a riqueza vai constantemente
diminuindo por falta de movimento. Precisando ser
refeito pelo trabalho, a fortuna móvel perde de valor,
sempre que é conservada inativa. Por inércia a mulher
vê diminuir sua riqueza, à medida que aumenta o nível
comum da propriedade nas mãos do homem. Em relação
à mulher casada, a incapacidade feminina foi decretada
por lei. Se a Revolução Francesa proclamou a igualdade
civil dos esposos, as leis posteriores, submetendo a
mulher casada ao poder marital, a declararam incapaz
334
quanto à sua pessoa e bens. Ninguém ignora que a
mulher a princípio foi incapaz quanto à sua pessoa e
bens, qualquer que fosse seu estado ou idade, e que
nesta condição se manteve até bem pouco tempo em
muitos países da Europa: na Dinamarca até 1857, na
Suécia até 1863, na Noruega até 1869, em vários
cantões da Suíça até 1881. A tutela feminina, porém,
continuou a persistir em relação à mulher casada.
Gozando em solteira dos mesmos direitos civis que o
homem, salvo um pequeno número de casos excepcionais, a mulher se torna incapaz desde o dia do
casamento. Todavia, mesmo fora do casamento, sua
capacidade não é completa, está sujeita a restrições. É
assim que em face de um grande número de legislações
não pode ser tutora nem servir de testemunha dos
testamentos e outros atos da vida civil. Pelo artigo 37 do
Código Napoleão a mulher não pode figurar como tes temunha nos atos de estado civil. Entretanto nem sempre
foi assim na Europa: no ato do nascimento de Vitor
Hugo vemos Mme. Dessirier, esposa do coronel Jacques
Delelée, ajudante de campo do general Moreau, assinar
como testemunha ao lado de seu marido.
Não vem de fora de propósito lembrar uma
curiosa disposição do código de processo do cantão de
Vaud antes de 1825, em virtude da qual o testemunho de
duas mulheres equivale ao de um homem, e o de quatro
mulheres ao de dois homens, e assim por diante. Hoje a
incapacidade das mulheres no referido cantão não
subsiste senão como testemunha instrumentária, sendo
plenamente aceito seu depoimento nos tribunais civis e
335
criminais; mas daí a incoerência de ser nulo o
testemunho de uma mulher para constatar o nascimento
de um indivíduo, e válido para acarretar a pena de morte
nos países onde se mantém o cadafalso. (26 ) O Código
Civil francês não é menos incoerente: pelo artigo 71 o
ato de notoriedade que, dadas certas circunstâncias, é
destinado à reconstituição do estado civil, vale ainda
mesmo que todas as sete testemunhas sejam mulheres.
Neste ponto a lei francesa não está mais adiantada do
que a velha lei de cantão de Vaud, pois que, para a
reconstituição do estado civil o testemunho de sete
mulheres tem tanto valor quanto o de dois homens. Já é
tempo de eliminar a injusta e odiosa exceção de a
mulher não poder figurar como testemunha nos
testamentos e outros atos da vida civil, exceção
injustificável e chocante, que tem produzido conseqüências desastrosas e irreparáveis. É bem instrutivo o
caso do contador Leon Richer em seu excelente livro –
O Código das Mulheres. Em 1873 o cocheido de Mme.
X... viúva de um antigo conselheiro de Estado, sentindo
que estava para morrer, fez chamar o tabelião do lugar.
Sua intenção era deixar sua fortuna, doze a treze mil
francos, a uma digna rapariga de dezenove anos de
idade, órfã de pai e mãe, e por cujo futuro muito se
interessava. Chega o tabelião, e o doente manifesta sua
última vontade. São preciso quatro testemunhas, e Mme.
S... manda chamar o porteiro e o jardineiro. A
respeitável senhora não pode ser testemunha, e,
enquanto o jardineiro corre a chamar o primeiro homem
que aparecesse, morre o cocheiro. Na Itália a
336
desigualdade feminina subsistiu até 1878, ano em que
foi adotado como lei o projeto de Salvatore Morelli,
sendo abolidas todas as disposições legais, que excluíam
as mulheres do direito de servir de testemunhas nos atos
públicos ou privados.
Segundo o Código Civil francês, salvo a exceção
geralmente admitida em favor da mãe e algumas vezes
em favor das avós, a mulher é excluída da tutela. Basta
comparar os artigos 442, 443 e 444 do citado código
para ver que neste ponto a mulher é equiparada aos
menores, aos interditos, aos indivíduos de notória má
conduta e aos condenados. Entretanto nota Louis Bridel,
não vale grande coisa a razão, que se invoca para
justificar a exclusão da mulher em matéria de tutela. (27 )
Se a mulher não tem bastante experiência para poder se
encarregar de uma tutela, não devia ser aberta exceção
em favor da mãe, porque a ternura materna não supre a
inteligência nem a atividade. Se prevalecesse o
argumento da ternura, neste caso não haveria razão para
excluir a mulher, quando esta fosse protetora real do
menor, quando, por exemplo, no caso citado por Leon
Richer, tivesse tido sempre a seu cargo o sustento e a
educação do órfão.
Afora as exceções relativas à tutela e ao
testemunho, a mulher solteira, viúva ou divorciada, se
acha no mesmo pé de igualdade que o homem; mas
entrando para o casamento, perde nome, condição,
domicílio, grande soma de sua capacidade, sendo que
em alguns países sua personalidade é eliminada de modo
absoluto em favor do marido. “Solteira, diz Thuilé, (28 ) é
337
senhora de si mesma e de seus bens; viúva reconquista a
autonomia de sua pessoa; casada é menor. E é no
momento, em que ela deveria entrar em seu apogeu de
grandeza e dignidade, é quando ela desempenha o maior
dos deveres humanos, vai ser mãe, consagrando sua vida
a perpetuar a espécie, que então é amesquinhada”. Em
relação ao domicílio a mulher casada é tratada como o
menor ou o interdito: segue o domicílio do marido como
o órfão o do tutor, e o interdito o do curador. (29) Há
quem pense que a mulher, que desposa um estrangeiro,
segue a nacionalidade do marido, o que traria como
resultado ter muitas vezes a mulher renegar sua pátria
para não se divorciar do marido. Felizmente o artigo 69
nº 5 da Constituição Federal com a expressão –
estrangeiros casados com brasileiras exclui tão iníquo
modo de desnacionalização.
Não é tudo: insultada, injuriada, vilipendiada, a
mulher casada não pode defender seu caráter, honra ou
dignidade sem consentimento do marido. Quanto aos
bens, ninguém ignora que em regra a incapacidade da
mulher casada é completa. O artigo 217 do Código Civil
francês diz claramente: “A mulher, mesmo não comum
ou separada de bens, não pode dar, alienar, hipotecar,
adquirir, a título gratuito ou oneroso, sem o concurso do
marido no ato ou seu consentimento por escrito”.
Entre nós o marido pode dissipar livremente a
riqueza da família em tolas especulações ou loucas
fantasias; a mulher, porém, não pode dar, alienar,
hipotecar seus próprios bens sem autorização do marido.
Até mesmo para receber o título gratuito precisa de
338
permissão marital. Não têm faltado apologias ao
regimen da comunhão com a forma patrimonial, que
melhor se harmoniza com a fusão de vidas e de in teresses, que se opera no casamento. A verdade, porém,
é que, sendo a mulher excluída da administração da
propriedade comum, o marido pode dizer-se o senhor
único dos bens do casal. Nós já vimos o que é a
propriedade moderna, e como seu prodigioso desenvolvimento ou rápida depressão depende do modo de
administrá-la. “Nada é comum no regimen da comunhão,
diz Thuilé, salvo o título. A fortuna comum, com o
fundo comum composto de todos os móveis presentes e
futuros, e de todos os imóveis adquiridos a títulos
onerosos depois do casamento, de qualquer lado que
venham, este fundo comum está à disposição, à
discrição de um só dos esposos, do marido, bem
entendido. Tudo entra neste fundo, para r eceber é, com
efeito, comum, tudo cai nele, rendimentos e salário da
mulher, bem como os ganhos do marido. Mas é somente
o marido que dispõe deles, negocia com eles e os
desfruta; ambos os alimentam, um só gasta-os”. (30 ) No
caso de simples fusão de aqüesto s, conservando cada um
dos esposos os bens, que possuía no momento da
celebração do casamento, e não recaindo a comunhão
senão sobre os ganhos provenientes do trabalho comum
ou individual dos cônjuges, e sobre os frutos e
rendimentos dos bens próprios de cada um deles e as
aquisições a título oneroso na constância do
matrimônio, é certo que o marido não pode delapidar a
fortuna, com que a mulher entrou para o casamento;
339
mas, como lhe compete a administração de todos os
bens da família, e como a mulher não d ispõe de seus
próprios bens sem autorização marital, segue -se que é o
marido quem realmente goza de toda a propriedade
comum ou não, cabendo somente à mulher a satisfação
de contemplar sua riqueza. Sob o regimen dotal ainda ao
marido compete exclusivamente a administração do
dote, do qual percebe os frutos e rendimentos, deles
dispondo a seu talante.
Todas as variedades de regimen legal podem
reduzir-se a três categorias: 1ª) regimen da comunhão,
figurando como principais formas a comunhão universal, a de móveis e aqüestos, e a de simples aqüestos;
2ª) regimen sem comunhão, cujas principais espécies
são o regimen dotal, e o que os alemães chamam
Güterverbindung (união de bens); 3ª) regimen de
separação.
Pela comunhão universal, a partir da consumação
do matrimônio, dá-se a fusão de todos os bens – móveis
e imóveis, presentes e futuros – dos esposos; mas esta
fusão se opera exclusivamente em favor do marido,
conforme já mostramos. É o regimen legal dos Países
Baixos, dos cantões de Bailéa e da Turgóvia, de
Portugal e do Brasil.
Pela comunhão de móveis e de aqüestos ficam
pertencendo exclusivamente a cada um dos esposos os
imóveis, que eles possuem por ocasião do casamento, e
os que adquirem depois por sucessão ou doação, caindo
em comunhão, além dos móveis existentes antes do
casamento, todos os móveis ou imóveis posteriormente
340
adquiridos a título oneroso, e bem assim os frutos e
rendimentos dos bens exclusivos de cada um dos
esposos. É o regimen legal da França, Bélgica, Gênova e
Jura Bernense. Pela comunhão de aqüestos não se
comunicam os bens, que os esposos possuem por
ocasião do casamento, bem como os que adquirirem
depois, por sucessão ou doação. A comunhão recai
somente sobre os ganhos do trabalho comum ou
particular dos esposos, sobre os frutos e rendime ntos
dos bens próprios de cada um deles, e sobre os móveis
ou imóveis adquiridos a título oneroso durante o
casamento. É o regimen legal da Espanha e dos cantões
de Neuchâtel, Valais, Schaffhouse e Grisões.
No regimen dotal a mulher conserva a
propriedade e administração dos bens parafernais; (3 1 ) ao
marido, porém, pertence a exclusiva administração do
dote, além da propriedade e administração dos bens, que
permanecem incomunicáveis em si e em seus
rendimentos. Na união dos bens (Güterverbindung) não
se dá a fusão das fortunas: os bens adquiridos pelo
marido ou pela mulher, antes ou depois do casamento,
ficam pertencendo a cada um dos esposos; o marido,
porém, tem a administração e o gozo dos bens da
mulher. Ao marido, na qualidade de usufrutuário dos
bens da mulher, compete os respectivos frutos e
rendimentos, os quais deste modo são incorporados ao
seu patrimônio. A mulher continua proprietária, mas
sem a administração e o gozo de sua propriedade. (32 ) Na
unidade de bens (Gutereinheit) os bens da mulher
passam para o domínio do marido, conservando, porém,
341
aquela um direito de crédito relativo ao valor de seus
bens.
Sob uma ou sob outra das formas apontadas é este
o regimen legal na Áustria, nas Províncias Bálticas e na
maioria dos cantões suíços: Berna, Zurich, Vaud, SaintGall e Lucerna.
A separação de bens, como o próprio nome está
indicando, é o regimen em que cada um dos esposos
mantém a propriedade, gozo e administração de seus
próprios bens. Tal é o regimen legal da Itália, da Rússia,
da Inglaterra, de mu itos Estados da União Americana e
do Canadá.
Com estas noções, que não procuramos dar senão
para determinar os países, em que as categorias
definidas predominam como regimen legal, já se torna
fácil apreciar a capacidade feminina em cada um deles,
e, portanto, sua influência na família, ou quer dizer na
civilização, porque a família é órgão de conservação e
educação da espécie.
Nos cantões da Suíça alemã a mulher casada é
completamente incapaz “O marido, diz o artigo 589 do
Código de Zurique, é de direito tutor marital de sua
mulher”. A mulher casada é equiparada ao menor ou ao
interdito. Submetida ao poder marital, que é uma
espécie de tutela ou curatela, não tem o livre exercício
de seus direitos. O marido é encarregado de agir por ela,
como o é o tutor pelo menor, o curador pelo interdito.
Na França a mulher casada para agir precisa de
autorização do marido; mas é ela quem age, e são o
marido, como se dá na Suíça alemã. Esta autorização é
342
sempre necessária, e não pode ser suprida pelo tribunais
senão em casos especiais: menoridade, interdição,
condenação, ausência ou recusa injustificável do
marido. Somente para os atos de administração relativos
aos próprios bens no regimen da separação é que a
mulher casada prescinde da autorização marital; em
todos os demais atos da vida civil, quer judiciais, quer
extrajudiciais, ela não pode agir sem permissão do
marido. Deste modo, salvo um pequeno número de
exceções, a mulher casada tem necessidade do
consentimento marital para estar em juízo, dar, receber,
alienar, adquirir, contratar, aceitar ou repudiar uma
sucessão. A falta de autorização importa nulidade do
ato, a qual pode ser pedida pela própria mulher, por seu
marido ou por seus herdeiros. Mais ou menos
modificado, seguem o mesmo sistema a Bélgica, os
Países Baixos, a Espanha e diversos cantões da Suíça
como Gênova, Vaud, Friburgo, Tessino e Valais. Na
Itália, por ocasião de elaborar-se o código civil,
cogitou-se da supressão de qualquer consentimento do
marido; mas afinal prevaleceu o sistema de exigir -se a
permissão marital para certos e determinados atos.
Louis Bridel, a cujo excelente livro Le Droit des
Femmes et le Mariage, devemos estas informações sobre
regimens legais de bens no casamento e seus efeitos
sobre a personalidade da mulher casada, (33 ) nota as
seguintes diferenças entre o direito francês e o italiano:
1ª) O Código italiano exige autorização para um
pequeno número de atos, enquanto o francês não a
dispensa à quase totalidade deles; pela lei francesa a
343
autorização deve ser especial, pela italiana pode ser
genérica; 2ª) a mulher italiana não tem necessidade de
suprimento de autorização nos casos em que o marido é
menor ou acha-se interdito, ausente ou condenado a
mais de um ano de prisão, casos a que é preciso
acrescentar a separação de corpo por fa lta do marido e a
condenação por motivo de adultério; 3ª) o Código
italiano exige autorização judiciária nos casos de
separação do corpo ocasionada por falta da mulher ou
por mútuo consentimento, ao passo que na França, pela
lei de 6 de fevereiro de 1893, a mulher separada de
corpo readquire plena capacidade civil.
O Código Civil alemão adotou como regimen
legal a união dos bens; mas a incapacidade feminina não
sendo uma conseqüência necessária do casamento, a
mulher casada pode adotar o regimen da separação e
deste modo fazer desaparecer toda espécie de restrição
quanto a seus bens. Da mesma sorte pelo Código Civil
do cantão de Neuchâtel, desde que os esposos adotam
outro regimen que não o legal da comunhão, a mulher
adquire uma completa capacidade quanto a seus bens.
Na Inglaterra, depois da lei de 18 de agosto de
1882, a mulher casada adquire a plena propriedade,
gozo e administração de sua fortuna. Sua capacidade
jurídica é completa, podendo praticar qualquer ato
judicial ou extrajudicial independente de autorização do
marido. Nenhum de seus bens responde pelas dívidas do
marido. O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde a
mulher casada não tem necessidade de autorização
marital para exercer qualquer direito civil. Pode figurar
344
em juízo, demandar contra os danos causados à sua
propriedade, à sua pessoa, a seu caráter, à sua honra, à
sua dignidade, dispor à vontade de todos os seus bens
móveis ou imóveis, dando, vendendo, hipotecando,
legando sem a menor restrição. “A esposa nos Estados
Unidos, diz Leon Donnat, (34 ) é mais favorecida pela lei
do que o marido. As disposições novas, que estenderam
os direitos da mulher, não diminuíram obrigação alguma
do esposo. Enquanto aquela tem a livre disposição de
sua fortuna, este tem o dever de nutri-la, de lhe fornecer
um domicílio, de prover suas necessidades segundo a
posição que ele ocupa, podendo a mulher obter o que lhe
é necessário à custa do marido. No ponto de vista estrito
da lei a esposa não é forçada a coabitar com seu esposo,
nem a prestar seus cuidados à casa. É, sem dúvida, uma
obrigação moral, admitida por toda parte, porém que
repousa unicamente sobre as conveniências sociais, e
não pode ser exigida pelo constrangimento. A mulher,
que abandona o domicílio conjugal, somente perde o
direito a ser mantida por seu marido.
Conhecidos os efeitos dos regimens legais sobre a
capacidade da mulher casada, é fora de dúvida a
influência da organização da propriedade sobre a
instituição da família. Passando de comum a coletiva, de
coletiva a individual, a princípio sob a forma territorial
e depois sob a forma móvel, a propriedade tem influído
sempre sobre a família, e a razão é, conforme afirma G.
de Greef, que o grito do estômago domina o do amor;
Tornando-se flexível, fluida, expansiva sob a forma do
capitalismo, a propriedade predomina hoje, mais do que
345
nunca, sobre todos os fenômenos sociais, e principalmente sobre a família. Temos a prova diante dos
olhos. A Revolução Francesa proclamou a igualdade
civil do homem e da mulher; mas a organização da
propriedade falseou, burlou esta igualdade. A mulher
herda, com efeito, igualmente com o homem; mas a
preponderância da fortuna móvel tornou de fato a
condição feminina inferior à do homem. Portanto, não é
rigorosamente exato afirmar -se que enquanto não é
casada e desde que não o é mais, a mulher é civilmente
igual ao homem. A lei pode proclamar que a capacidade
jurídica da mulher é igual à do homem, e nem por isso
ela deixa de lhe ser inferior. Não é o fato do casamento
que inferioriza a mulher na família e na sociedade, é a
influência da riqueza sobre os vários fenômenos sociais.
Precisando ser refeita pelo trabalho, a riqueza móvel
diminui de valor, sempre que é conservada inativa. Daí
a necessidade de trazê-la constantemente em movimento. A lei pode garantir a igualdade de herança a
todos os filhos; mas esta igualdade não se manterá, se
todos eles não tiverem igual poder mental para imprimirem o mesmo giro econômico. Por falta de mo vimento, causada por inatividade mental, a riqueza
móvel nas mãos da mulher tende a baixar de nível, a
diminuir de valor. Ora, é esta incapacidade mental que
torna a mulher inferior ao homem, independentemente
do casamento. O casamento não faz senão agravar esta
inferioridade, concorrendo pela organização das
relações patrimoniais para fomentar a incapacidade
feminina.
346
Em uma civilização, em que sobre os destroços
de todas as supremacias impera a supremacia da riqueza,
pode-se avaliar dos efeitos de uma organização da
propriedade, em que ao se procura senão amesquinhar a
capacidade feminina. Entretanto, a educação, que os
pais se esforçam para dar aos filhos, não é feita senão
no sentido da luta pela fortuna. Médicos, advogados,
artistas, políticos, todos distendem os músculos para a
riqueza. Não há maior hipocrisia do que proclamar a
igualdade civil do homem e da mulher, e tirar a esta a
administração de sua fortuna, ou colocá -la em uma
posição – por sua educação ou outro qualquer motivo –
que não lhe permita enriquecer, enriquecer cada vez
mais, conforme o voto das sociedades modernas.
A pobreza pode servir de assunto à poesia, como
sucedeu a Pierre Loti, que soube dizer tão belas coisas a
respeito das privações, por que passou depois de sua
infância; mas a mola real da civilização moderna é a
riqueza, o que Balzac com seu admirável talento de
observação compreendeu bem, quando fez do ouro, do
vil metal, da obscoena penucia, como chamava o irônico
Juvenal, o pivô da Comédia Humana. Para Balzac o
motivo principal, determinante das ações humanas, é o
dinheiro, do qual “foi ele a presa e o escravo por
necessidade, por honra, por imaginação, por esperança”.
“Ele contou a fortuna de seus personagens, explicou sua
origem, seus acréscimos e seu emprego, balanceou suas
receitas e despesas, e trouxe para o romance as práticas
do orçamento. Expôs as especulações, a economia, as
compras, as vendas, os contratos, as aventuras do
347
comércio, as invenções da indústria, as combinações da
agiotagem. Pintou os advogados, as belegins, os
banqueiros, fez entrar em toda parte o código civil e a
letra de câmbio. Daí uma parte de sua glória”. (35 )
Com uma semelhante concepção da vida é fácil
de compreender o papel puramente estético, que o amor
passou a representar no casamento. Se não se tratasse
senão de amar, afirma Marie Anne de Bovet, (36 ) não
haveria necessidade de todo este aparelho. A própria
fidelidade não encontra no amor garantias. A fidelidade
supõe a persistência, a coerção, a disciplina, e nada de
mais insubmisso, caprichoso, indomável do que “a bela
flor, que vive de febre e fantasia”. O amor não é o
terreno mais próprio para a cultura da fidelidade. O
amor não reconhece outra força nem obedece a outro
princípio senão a beleza. É por isso que todos os D.
Juans, seja o de Molière, o de Mozart, o de Byron ou o
de Lenau, são sempre os mais belos homens. No poema
de Lenau, Constância, revendo aquele que tanto tinha
amado e que depois tanto odiou, diz: “é a mais bela
recordação da mais bela hora de minha vida”. Se o
casamento fosse o amor legalizado, como pretendem
alguns espíritos galantes, teria razão Henry Maret,
quando sustenta que a prostituição não é o amor livre, e
sim toda união, que não é determinada pelo amor. A
grande falta seria então não se entregar a mulher àquele
que deseja com ternura, e sim deixar -se possuir por
aquele que tolera com aversão. Deste modo, a falta no
casamento viria a ser a venalidade, e não a infidelidade,
e se reabilitaria a mulher que, tendo -se casado por
348
interesse, se prostituísse por afeição. O amor servindo
de garantia à fidelidade conjugal tem contra si o
testemunho dos fatos. O que nos ensina a etnografia, é
que nas hordas, em que o amor é muito fraco entre os
esposos, impera a ferocidade do ciúme. Que amor pode
existir entre marido e mulher, quando estes se viram
pela primeira vez na noite do casamento? Entretanto, já
vimos que onde existem tais costumes, a infidelidade é
cruelmente punida.
Sabe-se que os Fogueanos são muito ciumentos
de suas mulheres. O mesmo se dá com os Australianos,
a respeito dos quais escreve George Grey que um ciúme
severo e vigilante existe em todo homem casado, e
assevera Curr que na maior parte das tribos não se
permite a uma mulher falar com um homem ou ter
alguma relação com ele, se não é o marido.
Westermarck nos informa ainda que são muito
ciumentos os Aleoutas de Atkha. segundo Yakof; os
Kutchins, segundo Richardson e Hardisty; os Haidahs,
segundo Dixon; os Taculias, segundo Harmon; os Crees,
segundo Richardson; os habitantes das ilhas Havaí,
segundo Lisiansky; os Samoiedas, segundo Arnesen; os
Tártaros, segundo Heikel; os Coroados do Brasil,
segundo Martins e Spix; os Vedas de Ceilão, segundo
Bailey. De tal sorte predomina o ciúme entre os
selvagens, que não é raro ver as mulheres se afeiarem, e
até se deformarem, para não despertarem suspeitas nos
maridos. É costume em certas tribos as mulheres
casadas se desfazerem dos adornos para não atraírem
admiradores.
349
Como, porém, explicar o curioso fenômeno do
excesso ou cúmulo de ciúme com a parcimônia ou falta
de amor? É que só em aparência estes sentimentos se
relacionam. No amor há atração, no ciúme repulsão. O
ciúme é um sentimento todo egoísta, ao passo que o
amor vai até ao devotamento, até à abnegação, até ao
sacrifício. O ciúme se funda sobre a posse da mulher
casada. É a vontade firma de deter a mulher capturada
ou comprada, que gera na alma do selvagem o ciúme.
“Onde as uniões se realizam sem método, onde a mulher
é considerada propriedade de todos, não há ciúme...
Entre os povos políbanos somente o homem pode ser
ciumento; entre os povos poliândricos somente a mulher
tem o direito de se mostrar ciumenta”. (37 ) Mas enquanto
o ciúme é um sentimento todo egoístico, tendendo
sempre para a exclusão, o ideal do amor é “encontrar a
mulher que encarne todas as outras”, o que vale dizer –
“amar todas as belas”.
O casamento é uma instituição destinada a
regular não o amor – o que seria um contrasenso porque
ele é tão perfidamente inconstante quanto diabo licamente belo – mas a família, que compreende três
ordens de relações – patrimoniais, pessoais e sociais. As
primeiras têm por objeto os bens do casal, as segundas
os direitos e deveres dos esposos entre si, as terceiras a
conservação material e a educação moral da espécie.
Estas relações nem sempre se distinguiram, elas não se
diferenciaram senão com o tempo. Não foi senão quando
se deu a especialização entre as fu nções patrimoniais e
as pessoais, que o adultério deixou de ser punido como
350
um roubo à propriedade conjugal para ser considerado
uma infração do dever matrimonial.
Também enquanto as relações individuais se confundiram com as sociais propriamente ditas, o adultério
passou como um odioso crime contra a comunhão,
punindo a lei com degradação cívica o marido complacente, que procurava ocultar o adultério da mulher;
hoje, dada a especialização das relações, é uma falta,
cuja punição depende exclusivamente da vontade do
cônjuge ofendido. Aqui se aplica o princípio, que Taine
estendeu a todos os instrumentos, órgãos e associações:
mais suas funções se distinguem e se especializam, mais
se circunscrevem e se opõem. (38 )
Mas dizem Cheveau e Helie: “A lei não estabelece penas em favor do marido, e sim em favor da
sociedade. Não é porque o adultério ultraje o espo so em
suas afeições e sua honra que o erige em delito, é
porque o adultério é um mal moral, a violação de um
dever; é porque fere direitos que ela consagrou, que são
uma das bases da ordem social, e que ela deve proteger;
é, sobretudo, porque a imoralidade e a desordem, que
ele lança no seio da sociedade, quando se torna público,
exigem uma repressão, que não é senão a justa sanção
da moral pública”. (3 9)
Se não estivéssemos no firme propósito de evitar
o processo de opor argumento a argumento, poderíamos
responder que a tentativa de suicídio também é um mal
moral também fere direitos, que a sociedade consagrou,
e que ela deve proteger; mas a lei não pune aquele que
tenta suicidar-se. Entre o terrível dilema – matar ou
351
suicidar-se, o marido traído, que mata o amante da
mulher, é punido; se suicida-se, a sociedade lastima
simplesmente sua infeliz sorte. O negociante falido, que
foge para salvar sua liberdade, é perseguido pela justiça;
o que se suicida para não sobreviver à sua desonra, fica
reabilitado em sua memória. Só por ironia poder -se-ia
punir o adultério em nome de uma sociedade, que só tem
escárnio e ridículo para as vítimas da infidelidade
conjugal.
Se a observação dos fatos e a lição dos acontecimentos valem alguma coisa em lógica social, então
imitemos o exemplo da Holanda, de Gênova, de
Hamburgo, da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde o
divórcio foi aceito como a única sanção contra a
infidelidade conjugal. (40)
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 1-67).
NOTAS
(1)
Impalloment, Il Codice Penale Italiano, volume III, pág. 108.
(2)
Princesse Georges, ato I, cena II.
(3)
Carta a Cuvillier Fleury.
(4) Eduardo de Hartmann, Filosofia do Inconsciente, tradução
Nolen, volume 1, pág. 249.
352
(5) Letorneau, A
Humanas, pág. 477.
Evolução
Jurídica
nas
Diversas
Raças
(6)
A Mulher e a Sociogenia, pág. 60.
(7)
Letorneau, A Evolução do Casamento e da Família, pág. 65.
(8)
Plutarco, Licurco, XXIX.
(9)
Plutarco, Solon, XXXVI.
(10) Estrabão, y. XI, 14.
(11) Taine, Filosofia da Arte, Tomo II, págs. 121 e 122.
(12) Thuilé, La Femme, Essai de Sociologie Phisiologique, pág.
39.
(13) Letorneau, L’Évolution du Mariage, pág. 150.
(14) Letorneau, L’Évolution du Mariage, pág. 50.
(15) Histoire Morale des Femmes, pág. 147.
(16) Lafargue, Origem e Evolução da Propriedade, Capítulo II,
parágrafo 2.
(17) Lacassagne, De la Criminalité chez les Animaux, Revue
Scientifique, 1882.
(18) Duveyvrier, Tuareg do Norte, pág. 337.
(19) Paul Lafargue, Origine et Évolution de la Proprieté, n. II.
(20) Laurent, Études sur l’Histoire de l’Humanité, pág. 30.
(21) Fustel de Coulanges, Revue des Deux Mondes, tomo 105, pág.
439.
353
(22) Thilié, La Femme, Essais de Sociologie Physiologique, pág.
53.
(23) Charles Louandre, Du Rôle des Femmes dans l’Histoire de
France.
(24) Anatole Leroy Beaulieu, Revue des Deux Mondes. Le Regne
de l’Argent, tomo 123, pág. 513.
(25) Leroy Beaulieu, Obra citada, pág. 518.
(26) Louis Bridel, Le Droit des Femmes, pág. 44.
(27) Louis Bridel, Le Droit des Femmes, pág. 42.
(28) Thuilé, La Femme, Essai de Sociologie Physiologuique, pág.
381.
(29) Código Civil francês, artigo 108.
(30) Thuilé, Obra citada, pág. 439.
(31) Código Civil francês, artigo 1576, Código Civil italiano,
artigo 1427, Clóvis Beviláqua, Direito da Família, pág. 294, contra
a opinião de Lafayette.
(32) Emile Acollas, Manuel de Droit Civil, tomo III, pág. 177.
(33) Louis Bridel, Obra citada, capitulos III e IV.
(34) Leon Donnat, Lois et Moeurs Republicaines, pág. 180.
(35) Taine, Nouveaux Essais de Critique et d’Histoire, pág. 66.
(36) Marie Anne de Bovet, Nouvelle Revue, l’Amour dans le
Mariage, pág. 788.
(37) Mantegazza, Physiologie de l’Amour, pág. 159.
354
(38) Taine, Les Origines de la France Contemporaine, Le Regime
Moderne,Tomo I, pág. 142.
(39) Cheveau et Helie, Theorie du Code Penale, número 2863.
(40) Completo Tratado Teórico e Prático de Direito Penal,
volume II, parte I-A.
355
2.
A PENA ENTRE OS HEBREUS
A pena é uma necessidade de ordem jurídica.
Onde há direito, aparece a pena em repulsa à agressão. É
a agressão que provoca a reação, e deste modo se pode
dizer que o crime engendra a pena. A reação, porém,
pode se operar no momento da agressão, assumindo a
forma de defesa, ou ter lugar depois dela, tomando a
feição de vingança.
A vingança, em gérmen, não passa de um caso de
defesa, tendo o ofendido em vista o futuro, para que a
agressão não se reproduza. Nos organismos coletivos,
como é a sociedade humana, a reação se opera, quer pela
comunhão, quer pelos indivíduos, que a compõem. É um
fenômeno ao mesmo tempo individual e social. Mas a
proporção que se sobe na escala zoológica, nota-se,
além da existência de uma defesa comum ao lado da
defesa individual, a organização de uma defesa superior,
que se manifesta por um órgão especial, encarregado de
acautelar os interesses da comunhão. Tal é o caso do
chefe de rebanho, encarregado o ministério punitivo nas
sociedades animais.
A vingança primitiva foi durante muito tempo
indeterminada; não é senão em um período de
civilização já avançado, que ela passa a ter limites.
Entre os muçulmanos, somente um século antes de
Maomé, vemos o preço de sangue fixado em cem
camelos. (1 ) Aqui assistimos no vivo à primeira
356
transformação do direito de punir. É a metamorfose da
vingança na composição, que é a satisfação dentro de
certos limites, servindo de medida os bens.
A vida tem então uma medida, e esta medida é a
propriedade. O pagamento do preço de sangue era
costume entre os Israelitas, os Persas, os Egípcios, os
Celtas e os Germanos. Na Boemia um estatuto do rei
Oton, de 1229, dispõe que o assassino pagará 200
dinheiros à Corte, e deixará o país até que tenha pago à
família da vítima o preço da compensação . Entre os
Polacos o preço de sangue não foi abolido senão no
século XV por um estatuto de Casimiro Jagelão. Nos
assassinatos cometidos sobre as grandes estradas, além
da composição, que era de cinqüenta marcos para um
cavalheiro, e de trinta para um aldeão, o assassino
pagava ao rei uma multa de 50 marcos. Os Ossetas,
afora a composição paga pelo assassino, impõem um
banquete de reconciliação aos parentes do criminoso. Na
rússia a Russkaia-Pravda, ou o código de Iaroslav,
consagra o preço de sangue, que é de quarenta grivnas,
seja qual for a condição do assassino, russo ou
estrangeiro, nobre ou plebeu. Reformada pelos filhos de
Iaroslav, a Russkaia-Pravda alterou a taxa em relação a
qualquer assassino.
Em regra, a família é responsável pelo preço de
sangue. O pai responde pelo filho, o irmão pelo irmão,
os parentes pelos parentes. Sendo a compensação um
meio de restabelecer a paz e reconciliar as famílias,
tanto assim que entre alguns povos, os antigos Suecos,
por exemplo, o assassino deve deixar o país, até que
357
satisfaça a família do morto, não é de estranhar que
várias legislações deixem impunes os crimes cometidos
no seio da própria família. É que entre membros de uma
mesma família é impossível a satisfação penal, sob a
forma ilimitada da vingança, ou limitada da compensação. Por isso nada mais lógico do que várias leis, à
maneira do código de Solon, guardarem silêncio sobre o
parricídio, pois que não impondo elas outra penalidade
senão a compensação, esta não pode ter lugar no seio da
própria família. O mais que pode acontecer, é a
expulsão daquele que perturbou a paz doméstica.
Hermann Post considera o sacrifício como o
primeiro estádio da pena. “Não é raro afirmar, escreve o
citado jurista, que primitivamente pena o sacrifício
humano foram uma e mesma coisa, e que destarte a
origem do direito de punir deve ser procurada nesse
mesmo sacrifício”.
Mas as idéias de sacrifício importa a de expiação,
de purificação. Imposto pelos homens ou pelos deuses, o
sacrifício é sempre um exorcismo. O conceito do
sacrifício ou expiação é muito mais espiritualizado do
que o da defesa ou vingança.
Não é senão quando o crime vem a ser
considerado sob o ponto de vista psíquico, em relação à
vontade, que a pena assume a feição de sacrifício ou
expiação. Os animais se defendem ou se vingam dos
outros animais; mais não sacrificam em expiação da
culpa cometida por algum membro da comunhão.
Somente quando o homem tem atingido a um certo grau
de cultura, é que vem a considerar o crime como uma
358
mácula, da qual deve se purificar por meio do sacrifício;
e antes disto o crime não passa de uma simples
agressão, da qual não tem senão que se defender ou se
vingar.
Proal gasta não poucas palavras para mostrar o
equívoco de Littré traduzindo em Homero e Heródoto
como compensação o que não significa senão sacrifício,
expiação. (2 ) Em relação à Ilíada opõe o autor do Crime e
a Pena as traduções de Dugast-Montbel, Leconte de
I’Isle e de Planche, em que a palavra, que para Littré
significa compensação, é traduzida por expiação. Da
mesma sorte, insiste Proal, em Herédoto a mesma
palavra não pode ter o sentido que Littré atribui e sim o
de expiação. Dado que a palavra pena primit ivamente
significasse compensação, como entende Littré, ou que
ela se derivasse do sânscrito punia, cuja raíz é pu, que
significa purificar, uma ou outra etimologia não prova
senão que os Árias tinham chegado à concepção de uma
pena-compensação, ou, ainda mais, de uma pena expiação. Não quer, porém, dizer que o primeiro
momento histórico da pena fosse a compensação ou a
expiação, pois que uma e outra supõem a existência das
instituições da propriedade e da religião, que são
posteriores à necessidade não somente social, mas
biológica, da defesa e da vingança.
Antes de qualquer concepção de propriedade e de
religião, os indivíduos que vivem em sociedade, têm
precisão de se defender ou de se vingar contra as
agressões presentes ou passadas. Daí a origem da pena.
Não falta quem pense que o crime foi sempre con 359
siderado como uma marcha e a pena como uma expia ção. Mas uma e outra coisa supõem a responsabilidade
moral, a voluntariedade da ação, e é sabido que vários
povos primitivos e selvagens punem tanto os crimes
voluntários como os involuntários. Os muçulmanos
puniam o assassinato involuntário com um maior ou
menor número de camelos ou de dinars, conforme o
crime tinha sido preterintencional ou casual.
Em face de tais documentos não se pode afirmar
que primitivamente a pena fosse uma expiação.
A vida humana tinha a princípio um valor
puramente econômico, e a pena era a justa medida d este
valor. O assassino se r4esgatava do crime, pagando uma
certa quantia à família do morto. “Acreditou-se por
muito tempo, escreve D’Arbois de Jubainville, que este
processo de pacificação, ainda em uso no direito
internacional, era especial aos Gregos. Em nossos dias
demonstrou-se que ele foi geral no direito privado das
populações arianas, e que foi conhecido fora deste
grupo: por exemplo, entre os Hebreus, os Árabes, os
Húngaros, A lei de Moisés proíbe receber o preço de
sangue; decide que o assassino seja punido de morte. É
uma inovação. Moisés é um reformador; mas sua
legislação oferece ainda do antigo direito alguns
vestígios, que Dareste recolheu”. (3)
Realmente, entre os Hebreus o homem, que
desfechava golpes em uma mulher grávida, se esta
morria, era punido com a morte; se, porém, não morria,
era obrigado a pagar uma compensação. O senhor do boi
que matava um homem, era punido com a pena de
360
morte, se, prevenido, em tempo, do que pudesse
suceder, não tomava as necessárias providências; mas
podia resgatar sua vida, pagando uma compensação,
Dado que o morto fosse um escravo, a compensação era
invariavelmente de trinta ciclos de prata. O sedutor de
uma virgem era obrigado a dar ao pai dela o preço, que
teria de pagar por uma noiva, caso se tratasse de um
casamento. O criminoso de contusões e ferimentos, além
das despesas de médico, era obrigado ao pagamento de
uma compensação.
A Idade Média oferece um curioso fenômeno; é a
venda das indulgências, que em suma não é outra coisa
senão o sistema das composições, aplicado entre o
homem e a Divindade. Entre os Hebreus já se havia
realizado – igual fenômeno: enquanto Moisés, por um
lado, proibia o uso das compensações para o caso de
homicídio, por outro lado no Levitício encontra-se todo
o capítulo, cujo assunto não é outro senão o resgate, por
meio de compensações, de votos feitos a Deus.
O que possuímos sobre egiptologia ainda não nos
permite fazer a história do direito penal e egípcio; mas o
Livro dos Mortos, a que se costuma recorrer para provar
que desde a mais remota antiguidade o crime foi
considerado mácula, não pode servir de argumento em
favor da primitiva qualidade expiatória da pena. Basta
considerar que se trata de uma coleção de orações, e a
oração marca um adiantado grau na escala das medidas
expiatórias, conforme teremos ocasião de ver.
Se, porém, ignoramos o desenvolvimento do
direito penal no Egito, não se dá o mesmo em relação
361
aos Hindus, Gregos e aos Romanos. “Quando os Árias,
ensina Dareste, desceram das montanhas do noroeste às
planícies dos Hindus e do Ganges, se pareciam com os
heróis de Homero. A compra da mulher era a forma do
casamento, e o direito criminal consistia todo ele em
uma série de composições exatamente taxadas conforme
a gravidade do dano. O preço de sangue se pagava em
um certo número de vacas com um touro. Guatama não
conhece outra moeda”. (4)
Na Grécia proto-histórica competia à família
vingar a morte dos parentes. A princípio este direito
pertencia a todos os membros do clã; mas Dracon o
restringiu aos parentes. Os costumes, porém, não
proibiam as composições. Somente quando o preço de
sangue não era pago ou não era aceito, o assassino tinha
necessidade de se exilar para evitar a morte.
Entre os Gregos dos tempos heróicos o crime
nada tinha de infamante. A ninguém repugnava aco lher
um homicida. Assim, quando Telêmaco estava para
deixar o Peloponeso, na ocasião em que à margem do
amr praticava um sacrifício em homenagem a Atenas,
sua deusa protetora, viu aproximar -se um desconhecido,
Teoclimenes, profeta, que lhe disse: “Venho de Argos,
minha cidade natal, onde tirei a vida de um de meus
concidadãos, pertencente à mesma tribo que eu. Em
Argos, que nutre muitos cavalos, o finado deixou irmãos
e amigos onipotentes; escapei à morte e ao negro
destino, com que me ameaçavam; eu fujo, e stou para
sempre, fatalmente, condenado a errar entre os homens.
Recebe-me em teu navio, pois que, exilado, eu te
362
suplico, impedirás meus inimigos de me matarem,
porquanto acredito que eles me perseguem”. Telêmaco
não hesitou, aceita Teoclimenes em seu nav io, fê-lo
assentar a seu lado, e o profeta pagou a hospitalidade,
predizendo a realeza para Telêmaco e para sua
posteridade.
Em Atenas, no quinto ou quarto século, nos
informa D’Arbois de Jubainville, o assassinato preme ditado era punido com a morte e a confiscação dos bens
do assassino; se, porém, não tinha havido premeditação,
os parentes do finado podiam optar entre o pagamento
de uma composição e o exílio do homicida.
Se pela Lei das XII Táboas era sacer o condenado
à morte, justamente como no Levítico é santo o animal
dado em voto a Jeové, não é menos exato que a mesma
Lei das XII Táboas contém texto fixando em trezentos
as a compensação devida pela fratura de um membro,
quando o ofendido é um homem livre, e cento e
cinqüenta, quando é um escravo, “Manu fustive, si os
fregit libero CCC: si servo, CL poenam subito ”.
O conceito da expiação supõe a existência de um
Deus e a intervenção desse Deus como fator de moral na
vida de um povo. Por isso nenhuma fonte mais fecunda
para o estudo do conceito da expiação do que a história
do povo de Israel.
O povo hebreu possui um Deus, que não distribui
castigos ou recompensas em uma outra vida, é um Deus
que não se preocupa senão com o destino terrestre de
seu povo. O que lhe importa não é a vida futura, tanto
assim que para ela a morte é um castigo. O judaísmo
363
não é uma religião feita para a alma, para o espírito, e
sim para a carne, para a vida.
No Genesis, o Senhor diz a Moisés: “Eu resolvi
dar cabo de toda a carne. Os homens encheram a terra de
iniqüidades, e eu os farei perecer com a terra. Eu
lançarei as águas do dilúvio sobre a terra para fazer
perecer toda a carne que respira vida. Tudo que existe
sobre a terra, será consumido”. (5 ) O dilúvio é a
destruição da carne, a submersão de tudo que tem vida.
“Toda a carne, que se move sobre a terra, foi
consumida; todas as aves, todos os animais, todas as
bestas, e tudo que anda de rastos sobre a terra. Todos os
homens morreram, e geralmente tudo que respira vida na
terra. Todas as criaturas que existiam sobre a terra,
desde o homem até as bestas; tanto as que andam de
rastos, como as que voam pelo ar, tudo desapareceu da
terra. Ficaram somente Noé, e os que estavam com ele
na arca”. (6)
O paraíso dos Hebreus não é, como o de Dante,
uma região etérea, habitada por seres ima teriais; é sobre
a terra, num delicioso sítio, coberto de árvores, povoado
de animais, encantador jardim, ao mesmo tempo
botânico e zoológico.
Os Israelitas conceberam um paraíso; mas eles
não têm noção alguma de morada celeste. Enquanto as
outras religiões não vivem senão de mortos, de puros
espíritos, o judaísmo ressuscita os mortos, reencarna os
ossos dos finados. Há em Ezequiel uma página
admirável, que dá o traço predominante do jeovismo,
religião de carne e osso, se assim podemos nos exprimir,
364
e não uma religião de fantasmas. É o renascimento de
Israel, figurado por ossos secos, que se aproximam uns
dos outros, se cobrem de músculos, de carne, de pele, e
de novo se animam ao sopro do espírito.
“E ele me disse: Profetiza acerca destes ossos, e
dir-lhes-ás: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Eis o
que diz o Senhor Deus a estes ossos: Aí vou introduzir
em vós o espírito e vós vivereis. E porei sobre vós
nervos, e farei crescer carnes sobre vós e sobre vós
estenderei pele; e dar-vos-ei espírito, e vós vivereis e
sabereis que eu sou o Senhor. Eu, pois, profetizei como
o Senhor me tinha mandado; e quando eu profetizava,
ouviu-se um ruído, e eis que se fez um reboliço: e os
ossos se chegavam uns para os outros, pondo -se cada
um em sua juntura. E olhei e vi que vieram sobre os
ossos nervos e carnes para os revestirem, e neles foi
estendida a pele por cima; mas eles ainda não tinham
espírito. Então, me disse o Senhor; profetiza ao espírito,
profetiza filho do homem, e dirás ao espírito: Eis o que
diz o Senhor Deus: Espírito, vem dos quatro ventos e
sopra sobre estes mortos, para que revivam. Eu, pois,
profetizei, como o Senhor me tinha ordenado; e entrou o
espírito naqueles ossos, e viveram, e se levantaram
sobre seus pés, como um exército feito em grande
extremo. E me disse o Senhor: Filho do homem, todos
estes ossos são a casa de Israel; eles dizem os nossos
ossos se tornaram secos, e a nossa esperança se perdeu,
e nós fomos cortados do número dos homens. Profetiza,
pois, e lhes diz: Eis o que diz o Senhor Deu s: povo meu,
365
vou abrir vossos túmulos, tirar-vos-ei de vossos
sepulcros, e vos farei entrar na terra de Israel”. (7 )
Jeová é invisível; mas não cessa de falar a seu
povo pela boca dos profetas. Os profetas israelitas são
os órgãos do pensamento e da vontade de Jeová. “O
profeta, diz Darmesteter, é outra coisa que o padre, que
é um personagem sem grande originalidade, ministro de
um ritual estabelecido, cujo poder age por si mesmo,
sem que a pessoa do padre intervenha em coisa alguma.
O profeta é um homem possuído de Deus e por quem
Deus se revela aos homens”.
O profeta israelita, porém, era porta-voz do
pensamento e da vontade divina, não somente sob o
ponto de vista moral, mas especialmente sob o ponto de
vista civil e político. Sua principal preocupação era m os
negócios públicos, Por isso foram comparados com
razão a tribunos do povo, e diz Colani que esta comparação é justa no sentido de que eles tinham por fim
esclarecer Israel sobre seus verdadeiros interesses, e
modificar a marcha do governo pelo poder único de
persuasão.
Nem sempre reina harmonia de vistas entre os
profetas; mas todos eles pertencem a um mesmo partido,
todos eles advogam a mesma causa – o progresso. O
profeta hebreu não é um conservador, um apóstolo do
passado, e sim um precursor, um missionário do futuro.
Do que fica dito facilmente se depreende que não
se poderia encontrar um norte mais firme, uma fonte
mais fecunda para o estudo do conceito da expiação do
366
que a história do povo eleito e especialmente a história
de seu movimento profét ico.
Segundo Moisés, no Gênesis, Jeová, para punir a
iniqüidade e a corrupção, fez cair sobre a terra o
dilúvio, a fim de destruir toda a criação desde o homem
até aos animais, desde os répteis até às aves do céu. É
um extermínio geral; pagam culpados e inocentes,
racionais e irracionais, tudo que tem vida sobre a terra.
Depois do dilúvio vem a destruição pelo fogo.
Sodoma e Gomorra são devoradas pelas chamas.
A esta forma geral de expiação sucede o
adoçamento do castigo sob a forma do sacrifício. Para
expiar a falta comum é sacrificada a mais preciosa vida
da comunhão. E quanto não é mais a comunhão a
responsável pela culpa de seus membros, as vítimas vêm
a ser os animais pertencentes aos indivíduos culpados.
Na Bíblia é bem conhecido o caso do bode expiató rio.
Se o sacrifício diminui a efusão de sangue, a
compensação a elimina.
A este processo de eliminação de sangue nas
relações familiais ou internacionais corresponde o
sistema das indulgências, espécie de composição paga à
divindade, “wergeld mystico” no dizer de Tarde.
O jejum, a castidade, a súplica, a confissão, a
esmola, são outras tantas metamorfoses da expiação. Em
Amós o Senhor diz a seu povo: “Eu aborreço e abomino
vossas festas; e não posso suportar o odor de vossas
reuniões. Em vão me ofereceis holocaustos e presentes,
eu os não aceitarei e não porei os olhos nos sacrifícios
das hóstias pingues, que me ofereçais no cumprimento
367
de vossos votos. Afasta de mim o ruído de seus
cânticos; nem ouvireis as árias, que cantares em tua lira.
E meus juízos se darão contra vós como uma torrente,
que transborda, e a minha justiça como uma corrente
impetuosa. (8)
Como se vê, não é mais um Deus, que tem fome
de vítimas e dízimos, um Deus que abranda com festas e
cantigas; porém é um Deus de justiça, que quer coraçõ es
puros e não mãos cheias de oferendas.
Em Oséas Jeová é um personagem terno e
amoroso, ao mesmo tempo melancólico e carinhoso, um
Deus, que, abominando tudo que é brutal e iníquo, sente
necessidade de ser amado com doçura e fidelidade.
“Depois disto eis aqui estou eu que a atrairei, a levarei à
soledade, e lhe falarei ao coração. E lhe darei
vinhateiros do mesmo lugar, e o vale de Achor, para
esperança: e ali cantará ela cânticos como nos dias em
que fez sua saída da terra do Egito. E sucedendo isto
naquele dia, diz o Senhor, ela me chamará meu esposo,
e não me chamará mais Baali”. (9) “E naquele dia farei
aliança entre eles e as alimarias do campo, as aves do
céu, e os répteis da terra, despedaçarei o arco e a
espada, e suprirei a guerra de cima da terra: e eu os farei
dormir com toda a segurança. E me desposarei contigo
para sempre; me desposarei contigo com uma aliança de
justiça, de juízo, de misericórdia, de compaixão. E me
desposarei contigo com uma inviolável fidelidade,e
saberás que eu sou o Senhor”. (10 )
As faltas de seu povo não inspiram a Jeová senão
compaixão e piedade. Se este ameaça de sair ao
368
encontro dos filhos de Israel, como uma ursa a que
roubaram os filhos, e de lhes rasgar as entranhas até
chegar ao fígado, não se demora em se mostrar
arrependido, e em lhes prometer o resgate da morte. Se
lhes promete tomar o trigo e o vinho, a lã e o linho, as
vinhas e as figueiras, é para lhes impor a provação da
necessidade, a penitência do deserto, onde outrora
vibraram as cordas do amor.
Jeová não pode abandonar aquela que lhe deu os
amores de jovem; a atrairá à solidão, e ali a desposará
com uma aliança de justiça e misericórdia. O mal de
Israel não é a miséria: não lhe falta trigo, nem vinho,
nem ouro. O que a atormenta é a dúvida, o vago, o
indefinido, esse estado de alma, que lembra a situação
do espírito de René, de Werther ou de Manfredo. Daí
esses tocantes acentos líricos, como não se encontram
iguais senão no romantismo moderno.
A voz de Jeová, até então grave e severa, tem
agora a doçura da promessa da vinha daquele que há de
ensinar a justiça. “Semea para vós na justiça e segai na
boca da misericórdia, alqueivai vossos pousos; o tempo,
porém, de buscar o Senhor será quando tiver vindo
aquele que vos há de ensinar a justiça”. (1 1)
Com Isaias continua a evoluir o conceito da
expiação: Jeová abomina os sacrifícios, sobretudo se ao
cheiro do sangue ou da gordura das vítimas vem juntar se o perfume de incenso; aborrece as penitências,
revistam elas a forma de jejum, abstinência ou
confissão. Condena neomênias, sábados e calendas;
despreza as orações para não atender senão à pureza de
369
pensamento e à bondade de ação. Para o mal só há um
remédio, é o bem Proteger o humilde, socorrer o
necessitado, é que torna a alma pura, alva como a neve.
“Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma,
escutai a lei de vosso Deus, povo de Gomorra. De que
me serve a multidão de vossas vítimas? Diz o Senhor, já
estou farto delas: não quero mais holocaustos de
carneiros, nem gorduras de animais nédios, nem sangue
de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando
vinheis à minha presença, quem vos exigiu que
trouxésseis estas coisas para entrardes em meus átrios?
Não ofereçais mais sacrifícios em vão; o incenso é para
mim abominação. Neomênia, sábado e outras festividades não suportarei, vossa reuniões são iníquas.
Minha alma aborrece vossas calendas e vossas
solenidades: elas se me têm tornado molestas, cansado
estou de suportá-las. E quando estenderdes vossas mãos,
apartarei de vós meus olhos: e quando multiplicardes
vossas orações, não as atenderei, porque vossas mãos
estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai de
diante de meus olhos a malignidade de vossos
pensamentos: cessai de obrar perversamente, aprendei a
fazer o bem: procurai o que é justo, socorrei ao
oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. E
vinde e me argüi, diz o Senhor, se vossos pecados forem
como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve;
e se forem roxos como o carmesim, ficarão alvos como a
branca lã”. (12)
E não é somente a seu povo que contra o mal
Jeová prega a prática do bem, e a todas as gentes. A
370
justiça não é um monopólio nacional, ela se estende à
universalidade dos homens. “E nos últimos dias, sonha o
profeta, estará preparado o monte da casa do Senhor no
cimo dos montes, e se elevará sobre os outeiros e
correrão a ele todas as gentes. E irão muitos povos, e
dirão: vinde e subamos ao monte do Senhor e à casa de
Deus de Jacó, ele nos ensinará seus caminhos, e nós
andaremos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a
lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor. Porquanto já um
pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi
dado a nós, e foi posto o Principado sobre seu ombro: e
o nome com que se apelidará, será Admirável,
Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, P ríncipe
da paz. Seu império se estenderá cada vez mais e a paz
não terá fim; assentar-se-á sobre o trono de David, e
sobre seu reino para firmar e fortalecer em juízo e
justiça, desde então e para sempre: fará isto o zelo do
Senhor dos exércitos. (13 )
No tempo de Isaias se há expiação severa é para
as pequenas faltas femininas. Jeová tem aversão aos
artifícios da coquetterie. O porte e os modos
desenvoltos, provocantes, são punidos com as mais
rigorosas penas. “Ainda disse mais o Senhor: Pois que
as filhas de Sião se elevaram e andaram com o pescoço
levantado, fazendo acenos com os olhos, e gestos com
as mãos, passeando com ruidosos pés, e caminhando a
passo medido, o Senhor tornará calva a cabeça das filhas
do Sião, e despojá-las-á o mesmo Senhor de seus
cabelos. Naquele mesmo dia tirará o Senhor o adorno
dos calçados, as fivelas, os colares, os braceletes, os
371
fios de pérolas, as coifas, os crescentes, as ligas das
pernas, as cadeias de ouro, os frasquinhos de perfume,
os brincos, os anéis, as pedras preciosa s, pendentes da
fronte, os vestidos de reserva, as charpas, os linhos
finos, os alfinetes, os espelhos, as delicadas camisas, os
listões e as roupas de verão”. (14 )
E não satisfeito de despojar as elegantes penitentes do arsenal inteiro da toilette, Jeová acrescenta: “E
em lugar de suave perfume terão mau odor, e por cinta
corda, e por cabelo frisado calva, e por corpete
cilício”. (15 )
Não cessam as iniqüidades de Israel; mas nem por
isso Jeová deixa de amá-la com uma afeição sem
limites. De sua parte o cast igo não é senão o começo de
um arrependimento ou a promessa de um futuro
glorioso.
Ao lado das censuras e ameaças estão as palavras
de perdão e esperança. Algumas vezes a felicidade
prometida é tão maravilhosa que provoca o riso. “O lobo
habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará aos pés
do cabrito; o novilho, o leão e a velha viverão juntos, e
uma criança os conduzirá. O novilho e o urso irão comer
as mesmas pastagens, suas crias descansarão umas com
as outras, e o leão comerá palha como o boi. E brincará
a criança de peito sobre a toca do áspide, e na caverna
do basilisco meterá sua mão a que estiver já
desmamada”. (16 )
É mais alguma coisa do que o sonho moderno da
paz perpétua, é a supressão da luta pela existência,
372
porque a terra inteira estará cheia do espírito do Senhor,
espírito de sabedoria e de piedade.
O cunho do profetismo é a fé tenaz de regeneração no seio das tremendas catástrofes. Os profetas
de Israel foram, como diz Colani, otimistas apaixo nados, que sustentaram com suas palavras muito s indivíduos e muitos povos nas horas de desfalecimento. (17 )
A primeira vista Jeremias parece um descrente do
futuro, um desesperado da sorte. Mas o sucessor de
Isaias, se tem asperezas de palavras, que lembram a
linguagem dos modernos niilistas, se acons elha a
destruição nacional, é porque sonha uma pátria futura.
Já que a nação não pode ser reformada de outro modo,
que se recorra ao extremo.
Por patriotismo é que Jeremias insiste em que
Jerusalém seja entregue aos Caldeus. “Julgado por
nossas leis e nossos costumes modernos, escreve
Darmesteter, Jeremias seria um traidor: ele o era aos
olhos dos últimos chefes do exército de Jerusalém. Mas
o que faz justamente a grandeza inaudita do homem, é
que este traidor à pátria é o patriota dos patriotas.
Jeremias não é o santo ou o fanático, que destrói a
cidade terrestre por uma cidade celeste. O que ele
sonha, como todos seus predecessores, é uma pátria
judaica, com uma dinastia nacional, a de David, mas
com uma lei de justiça, de piedade, de moralidade, a de
Jeová”. (18 )
Pela sua bravura moral, Jeremias sofre per seguições; mas os sofrimentos não alteram uma linha sua
norma de conduta. Fassur, prefeito da casa do Senhor, o
373
mete no trono; mas o profeta, apenas solto, descreve
detalhadamente a sorte, que aguarda Judá. Sedecias
manda consultá-lo em relação a Nabucodonosor, rei da
Babilônia, e ele prediz com toda franqueza os males
que estão para suceder a Jerusalém. “E depois disto, diz
o Senhor: Entregarei Sedecias, Rei de Judá, seus servos,
seu povo, e quantos nesta cidade têm escapado da peste,
da espada, e da fome nas mãos de Nabucodonosor, rei
da Babilônia, nas mãos de seus inimigos e nas mãos dos
que procuram tirar-lhes a vida, os quais passá-lo-ão ao
fio da espada, e Nabucodonosor não se dobrará, nem
perdoará, nem se compadecerá”. (19) Profetizando na casa
do Senhor a destruição de Jerusalém, não somente os
sacerdotes, mas também os profetas, o prendem e pedem
sua condenação à morte. Absolvido pelos Príncipes e
pelo povo, não hesita em ferir o convencionalismo do
povo e dos sacerdotes, contestando Ananias, que
profetizava o levantamento e o jugo de Babilônia.
Joaquim manda queimar o livro das profecias, que
Baruch havia copiado, e Jeremias as dita segunda vez a
Baruch, ajuntando novas profecias. O lago de lodo em
que foi metido, por ter aconselhado submissão a
Babilônia, e do qual foi salvo por ordem de Sedecias,
não serviu senão para que, consultado pelo rei, lhe
respondesse com toda franqueza: “Se fores entregar -te
aos príncipes do rei de Babilônia, viverá tua al ma, e não
arderá em fogo esta cidade, e tu serás salvo bem como
tua casa. Mas se não fores entregar-te aos príncipes do
rei da Babilônica, cairá esta cidade nas mãos dos
374
Caldeus, que a farão arder no fogo; e tu não escaparás
das mãos deles”. (20 )
Consultado pelos judeus, que desejavam se retirar
para o Egito, aconselha, em nome do Senhor, que não se
retirem, e não tendo sido atendido, em Tafnis, para onde
fora conduzido pelo seu povo, anuncia que Nabuco donosor revertir-se-á da terra do Egito como se veste o
pastor com sua roupa.
As palavras de Jeremias soam aos ouvidos dos
filhos de Israel como um toque de agonia; mas quando
vier o aniquilamento nacional, elas farão surgir
Jerusalém de suas próprias cinzas: elas serão o sopro
que animará a comunhão de ossos, de que fala Ezequiel.
E quando Israel disser: “Nossos ossos se tornarão secos,
nossa esperança se perdeu”, o Senhor responderá: “Povo
meu, eis aí vou eu abrir vossos túmulos e vos tirar de
vossos sepulcros; e eu vos restituirei à terra de Israel”.
Devido ao desprendimento dos interesses, à intensidade
das convicções, à coerência da conduta, aconselhando
sempre a aliança com Babilônia contra o Egito, pode
dizer-se que foi Jeremias o fundador da nova pátria de
Israel.
Ezequiel não é um simples sucessor, é um
continuador de Jeremias: mesma fé inabalável no
renascimento da pátria, mesma indignação contra os
profetas insensatos, que não têm a precepção do destino
nacional, mesmos conceitos morais, muitas vezes
revestidos das mesmas formas, mesma guerra contra a
aliança de Faraó, rei do Egito, comparado a um
crocodilo enorme, que tirado para fora das águas do
375
Nilo, será lançado no deserto com todos os peixes de
seu rio, a fim de servir de pasto aos animais da terra e às
aves do céu.
Em Ezequiel reina confiança absoluta em Jeová,
conseqüência necessária da ternura sem limites, que o
Senhor tem a seu povo. Israel é a esposa infiel, que
apanhada nua no deserto, apenas se vê lavada, ungida
com óleo, vestida com roupas bordadas de diversas
cores, calçada com jacinto, or nada com preciosos
enfeites, braceletes nas mãos, colar ao pescoço, argolas
nas orelhas, coroa na cabeça, se prostitui, se entrega a
todos os que passam, aos filhos do Egito, aos filhos da
Assíria, a todos os estrangeiros; edifica casa de
impudicícia em to das as praças públicas, e corre atrás
dos amantes, fazendo-lhes presentes. Apesar de tudo,
Jeová perdia aquela, com quem fez pacto no deserto, e
promete fazer com ela um novo pacto, que então será
eterno.
Esta alegoria, que aparece a cada canto da Bíblia,
é a história figurada do judaísmo; ela representa a
ternura imensa, infinita de Jeová a seu povo, ternura de
marido, que perdoa a infidelidade da esposa, ternura que
vai além do amor materno.
“O Senhor me desamparou, o Senhor se esqueceu
de mim”, diz Sião. E Jeová responde pela boca do
grande Anônimo, cuja obra se acha compilada nos
capítulos XL a LXVI do Livro de Isaias: “Acaso pode
uma mulher se esquecer do filho, de sorte que não tenha
compaixão do fruto de suas entranhas? E quando ela se
esquecesse, eu não me esqueceria de ti”. (21)
376
Mas este Deus de ternura, sempre disposto à
indulgência, este Deus que aplaude o Messias, quando este
entrega o corpo aos que o ferem, as maçãs do rosto aos
que lhe arrancam os cabelos da barba, quando não oferece
a face aos que o injuriam e lhe cospem em cima, este Deus
de clemência, de piedade, de misericórdia, de caridade,
conseguiu o triunfo efetivo da justiça sobre a terra?
Conseguiu efetivamente Jeová “quebrar as ca deias da iniqüidade, despedaçar os laços da opressão,
apesar de ser este o culto, que lhe agradava?”
A verdade é que o cristianismo, apelando para um
reino, que não é deste mundo, com a noção de um Deus,
que recompensa ou castiga em uma outra vida o homem
justo ou culpado, noção inteiramente desconhecida do
judaísmo, adiou indefinidamente a solução de uma
questão, que fez o tormento e ao mesmo tempo a
grandiosidade dos profetas de Israel.
(Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco,
1904, págs. 69-97).
NOTAS
(1)
Vide Rodolphe Dareste, Études d’Histoire du Droit, pág. 64.
(2)
Le Crime et la Peine, Capitulo XV.
(3) Cours de Litterature Celtique, por D’Arbois de Jubainville,
pág. 76.
(4)
Cit. Dareste, pág. 71.
377
(5)
Gênesis, Capitulo VI, vv. 13 e 17.
(6)
Gênesis, Capítulo VII, vv. 21, 22, 23.
(7)
Ezequiel, capítulo 37, vv. 4 a 11.
(8)
Amós, capítulo V, vv. 21 a 24.
(9)
Oséas, Capítulo II, vv. 14, 15, 16.
(10) Oséas, Capítulo II, vv. 18, 19, 20.
(11) Oséas, Capítulo X, v. 12.
(12) Isaias, Capítulo I, vv. 10 a 18.
(13) Isaias, Capítulo IX, vv. 6 e 7.
(14) Isaias, Capítulo II, v. 24.
(15) Isaias, Capítulo III, vv. 16 a 23.
(16) Isaias, Capítulo XI, vv. 6, 7 e 8.
(17) Vide Essais de Critique Historique, Philosophique et
Litteraire, por T. Cotani.
(18) Les Prophetes d’Israel, por James Darmesteter, págs. 89 e 90.
(19) Jeremias, Capítulo 21, v. 7.
(20) Jeremias, Capítulo XXXVIII, vv. 17 e 18.
(21) Isaias, Capítulo XLIX, v. 15.
378
3.
O INFANTICÍDIO
No direito penal a palavra infanticídio perdeu sua
significação etimológica, tanto que, vindo de intans e
coedere, hoje é empregada no sentido restrito de morte
do recém-nascido e por motivo de honra.
A característica do infanticídio está em que a
morte do recém-nascido tenha tido por móvel o
ocultamento da desonra da mãe.
Fora desta circunstância não há razão alguma
para destacar o infanticídio da figuração geral de
homicídio.
A disposição única, que o Código diz respeito ao
infanticídio, é a concebida nos seguintes termos:
“Se o crime for perpetrado pela mãe para ocultar
a desonra própria”.
Dos termos – ocultar a desonra própria – se deduz
a necessidade de que a mãe do recém-nascido seja
mulher honesta ou geralmente tida como tal.
No infanticídio não se trata, pois, de um
homocídio cometido por mãe de vida livre ou
manifestamente licenciosa.
Dos termos – ocultar desonra própria – resulta
ainda que não se pode admitir a minoração do
infanticídio no caso, em que a mãe, os avós maternos, o
marido ou o irmão, não se acham no estado de espírito,
em que o nascimento da criança seria a prova evidente
da desonra materna.
379
Assim, não aproveitaria a minoração da pena à
mulher que quatro meses depois de casada desse à luz
uma criança filha do próprio marido.
A mulher não pode alegar desonra perante o
marido, e este desonra perante o público.
O Código fala nos sete primeiros dias do
nascimento, deixando no esquecimento o momento do
parto, o qual pode prolongar-se por muito tempo, desde
as primeiras dores até que a criança se desprenda da
mãe, pela secção do cordão.
O Código em vigor considera infanticíd io a morte
do infante praticada por qualquer pessoa dentro de sete
dias depois do nascimento. Em sua noção lata
compreende toda e qualquer pessoa, que por atos
negativos ou positivos pratica a morte de um infante. É
assim que pune com as mesmas penas a mãe que mata o
filho, recusando-se a amamentá-lo, o pai que produz a
morte do filho, deixando de dar ama de leite na
impossibilidade da mulher; a ama que assassina a
criança, que lhe fora confiada, furtando -se à obrigação
de amamentá-la.
Com a acepção lata que deu ao infanticídio, e
punindo-o com as mesmas penas que o homicídio em
geral, não se compreende para que o Código vigente fez
do infanticídio uma figura especial de crime.
Para conseguir o resultado a que chegou, bastava
considerar a causa honoris circunstância atenuante.
Não se compreende a razão, pela qual o Código
submeteu a figura do infanticídio ao círculo de ferro dos
sete dias depois do nascimento da criança, a qual precisa
380
de defesa social tanto com um dia quanto com um ano, e
até mais, depois de nascida.
O motivo da especialização não provém da
circunstância de tempo, e assim pouco importa o maior
ou menor número de dias do recém-nascido para
figuração do infanticídio.
A determinação de um prazo só tem razão de ser
na hipótese honoris causa.
A menos que o Código tivesse em vista exclu sivamente proteger os assassinos de recém-nascidos, não
se compreende a figura especial do infanticídio, tanto
mais quanto em sua especialização o Código passa uma
esponja sobre as circunstâncias agravantes, não esquecidas aliás pelo Código Português.
Compreende-se, em relação ao infanticídio praticado por mãe ilegitimamente fecundada, que o Código
estabeleça um prazo, dentro do qual supõe não ser
notório o nascimento, falta de notoriedade sobre a qual
se baseia a circunstância honoris causa; mas não se
explica que a todo e qualquer caso de infanticídio o
Código houvesse imposto o barbicacho dos sete dias.
Além de sua falta de senso quanto à primeira
semana depois do nascimento. o Código não foi mais
feliz, quando deixou sem amparo a criança por ocasião
do parto.
Pela letra do Código está entregue ao desamparo
a criança que as nascer foi asfixiada, quer pela
parturiente, quer pela parteira.
Considerando a causa honoris o traço
característico do infanticídio, a razão de ser de sua
381
figuração especial, o infanticídio vem a ser a morte de
uma criança na ocasião de nascer, ou recém-nascida, por
atos negativos ou positivos, com o fim de ocular a
desonra, que o autor do crime faz valor.
Assim é infanticida o pai ou o marido que, por se
julgar desonrado, mata o produto dos amores ilícitos da
filha ou mulher.
O Código, porém, só admite a minorante causa
honoris para a mãe, seja, entretanto, esta legítima ou
ilegítima, como se no caso de concepção legítima
pudesse militar em favo r da mãe, que mata o fruto de
suas entranhas, a circunstâncias honoris causa.
Nem há razão para não estender a minorante aos
avós maternos, ao marido e até ao próprio irmão, que
procura ocultar a desonra da irmã.
O motivo, que influi sobre o espírito de ta is
pessoas, é o mesmo que leva a mãe a matar o filho: a
desonra.
Antes nosso Código houvesse seguido o exemplo
de outros, incluindo o infanticídio na configuração geral
do homicídio, admitindo, porém, a minorante causa
honoris não só para a mãe criminosa como para o
marido, para os pais e até para os irmãos no caso de
concepção ilegítima.
O Código Brasileiro considera infanticídio
somente a morte do filho ilegítimo praticado pela mãe
para ocultar a própria desonra; mas o Código Italiano,
reconhecendo que o nascimento do filho ilegítimo
desonra não só a mãe, mas toda a família, inclui na
categoria de infanticídio a morte praticada pelo marido,
382
pelos ascendentes, pelos filhos, pelos irmãos com o fim
de ocultar a desonra da esposa, da mãe, da descendente,
da filha adotiva, da irmã.
O Código do Uruguai em seu artigo 330 também
equipara o infanticídio praticado pela mãe ao que
cometem o marido, os irmãos, os filhos, os pais
legítimos, naturais ou adotivos.
***
Para ter lugar o infanticídio é preciso que em
relação à mãe haja necessidade de ocultar sua desonra, e
em relação ao marido, avós maternos, irmãos ou filhos,
estes se sintam ofendidos em sua honra com o
nascimento da criança.
Se trata-se, por exemplo, de mulher seduzida, e
cujo amante foi processado por iniciativa da ofendida ou
de seus parentes, neste caso não há honra que ocultar.
Da mesma sorte, se o marido tinha ciência e
consciência do adultério, é ele o menos competente para
alegar em seu favor a desonra da família.
Nas mesmas condições estão os pais, avós ou
irmãos que vendem a honra das filhas, netas ou irmãs.
Figuremos a hipótese que, quatro meses depois de
casada, a mulher dá à luz uma criança que concebeu do
marido antes do casamento. Neste caso nem a mãe, nem
o marido, nem os pais, nem os avós, nem os irmãos
podem alegar desonra, por se achar legitimado o filho
pelo matrimônio subseqüente à concepção.
383
Mas não é somente a desonra que leva a mãe a
dar cabo de crime de infanticídio perante o Tribunal de
Limoges:
“Eu era criada há dois anos; fiquei grávida. Como
se aproximava a ocasião do parto, o patrão me despediu,
dando meus salários, que montavam a 35 francos. Fui
ter a Limoges, em casa de uma parteira.
A 22 de dezembro dei à luz, em casa desta
mulher, uma menina. Antes do parto já tinha uma fort e
inflamação. Faltando o leite, não pude dar o seio a
minha filha. Como não tinha leite e continuava sempre
doente, a parteira me apresentou conjuntamente com
minha filha ao Hospício de Limoges; mas não fomos
aceitas. Como não havia mais dinheiro, declarou-me a
parteira que não podia conservar-me por mais tempo em
sua casa, e tive de partir neste mesmo dia entre meio dia
e uma hora, levando comigo minha filha.
Até então ela tinha sido alimentada com água
açucarada; mas desde aquele momento até ao dia
seguinte, em que morreu, não tomou ceia da mesma
sorte que eu.
A 28 de dezembro, à noite, parei em uma aldeia, e
pedi em uma casa agasalho, que me foi concedido.
Fazia muito frio, Como não havia leito, tive de
passar a noite em um curral, com minha filha.
Na manhã seguinte continuei meu caminho.
Passei ainda o dia sem comer coisa alguma, não
ousando implorar a caridade. Eu caminhava difi cilmente, e não cheguei senão às nove horas, conduzindo
sempre minha filha nos braços. Ambas estávamos
384
transidas de frio; então não tinha mais cabeça. Estrangulei minha filha e a lancei num poço, que existia
perto da estrada. Quis matar-me, mas faltou-me a
coragem”.
Não menos pungente é o drama de Maria
Darthiailh, contado por R. Davenne no Droit des
Femmes, edição de 1884:
“Maria Darthiailh habitava Villandraut, perto de
Bazas, no departamento da Gironda.
Na idade em que nossos filhos vão à escola, aos
dez ou doze anos, seus pais, carregados de família e
vivendo miseravelmente, a colocaram como criada em
casa de outros camponeses menos indigentes.
Eu não sei se os leitores – e as leitoras – do Droit
des Femmes poderão facilmente figurar o que é uma
criada no campo.
Desde os primeiros clarões da manhã até horas
adiantadas da noite, sob a chuva, o vento, a geada, sob
um sol de brasa no verão, ela trabalhava, cava a terra ou
ceifa o trigo. Pés nus, cabeça descoberta, vai nos regos
com água até aos joelhos, ou caminhando sobre as
hastes pontudas, que deixa o trigo depois de cortado.
A besta de carga – a vaca, o cavalo ou o asno –
que trabalha menos do que ela, tem direito a mais
cuidados. É a criada que lhe faz a cura e dá o feno,
enquanto os homens tomam sua refeição. Muitas vezes
não come, indo e vindo, senão um pequeno pedaço de
pão, que se lhe dá como por caridade, e com o qual de ve
contentar-se até tarde da noite.
385
Este ofício, este regimen, esta existência de
condenado aplicada a uma criança, Maria Darthiailh
suportou até ao dia em que veio sentar-se sobre o banco
dos réus.
Aos dezessete anos Maria Darthiailh ficou
grávida. Para nutrir seu filho e a si própria, redobrou de
esforços e de trabalho.
Muitas vezes repelida, permanecendo longos dias
sem comer, ela se deixa arrastar novamente pela
obsessão da miséria e se torna grávida uma segunda vez.
Então, sempre repelida, a infeliz, nos últimos
momentos de gravidez, mais morta do que viva, aceita
como um benefício a hospitalidade de uma mulher da
localidade num telheiro, exposto ao ar, à chuva, a todas
as intempéries do inverno.
Ali deu à luz entre sofrimentos atrozes. Deitada
sobre a terra úmida, quase na lama, levou semanas a se
restabelecer, e, diz uma testemunha, mais abandonada
do que um animal.
Enfim, põe-se de pé e se retira para casa dos
parentes que moram a certa distância. Ah! O pão
também lá faltava.
Sua última criança era uma menina. Ela a
conduziu em seus braços, mas seu seio que nada
alimentava, não podia fornecer leite à recém-nascida,
que morria lentamente aos olhos da mãe.
Foi em tão horríveis circunstância que, esta, em
um indômito movimento de desespero, tomou a crianç a
e a lançou n’água.
Eis o fato brutal, em toda sua atroz ingenuidade”.
386
Comrpeende-se a sociedade absolvendo a mãe,
que mata o filho por falta de meios para sustentá-lo.
Não é por egoísmo, por cálculo, por perversidade que
ela o mata, é para arrancá-lo à fome. “Seu crime, no
dizer de Ernesto Legouvé, não foi senão o desespero da
ternura”.
Para condenar a mãe infanticida, a sociedade
deveria condenar em primeiro lugar a si própria e ao
sedutor, porque o crime não é senão o resultado da má
organização social, deixando impune o pai criminoso e
abandonando na estrada pública pessoas, que não podem
lugar pela existência.
Mas haverá razão para ser menos rigoroso com a
mãe que mata o filho a fim de ocultar sua desonra? Não
será um absurdo minorar a pena do crime, q ue é
cometido para ocultar a falta?
Qual será o motivo que explica, se não justifica,
esta incongruência? Por que colocar a maternidade
ilegítima em um plano superior à maternidade
indigente? Parece que não há maior falta de lógica
social.
A mãe que mata o filho para ocular sua desonra,
como que é a negação da maternidade, benfeitora para a
raça, protetora para a infância, sacrificando a inocência
à falsa honra.
Donde vem a contradição de minorar a pena da
mulher, que comete um crime para ocultar uma falta:
Não será inepta e hipócrita a sociedade, que
minora a pena da mulher, que mata o filho para ocultar a
desonra, proveniente da concepção ilegítima?
387
O que explica e justifica a minoração da pena
causa honoris é que a mulher que mata o filho para
ocultar a desonra, dá testemunho de que o indivíduo não
vale senão pelo conceito que a sociedade forma a seu
respeito.
O infanticídio é uma espécie de sacrifício de
Abraão do mundo feminino: a mãe imola o filho ao
sentimento da honra, elevada à altura de dever supremo,
acima mesmo do sentimento da maternidade.
Tal é a lógica do infanticídio, lógica à primeira
vista contraditória, incongruente, absurda; mas,
entretanto, de harmonia com o fundo da alma coletiva,
de acordo com o raciocínio afetivo da comunhão,
expresso nos códigos penais.
Pelo infanticídio a mulher afirma, certamente de
um modo feroz, que ela vale menos pela sua pessoa
individual, pelo seu eu do que pela sociedade, a cujas
idéias e sentimentos ela se sacrifica e sacrifica o fruto
de seus amores.
Que importa que as idéias e sentimentos da
sociedade sejam prejuízos? São prejuízos que
constituem o trama da lógica social, a qual contribui
para reforçar o laço da comunhão.
“Mas na cidade antiga, na comuna da Idade
Média, escreve Tarde, os indivíduos estão pront os a
sacrificar, seja sua própria vida, seja a de seus
semelhantes, a um fim que ultrapassa seu interesse
particular, a uma opinião que não é sua idéia particular,
ou por outras palavras, mais há ao mesmo tempo
devotamento e desumanidade nos costumes, e mais o
388
grupo social, em lugar de ser uma simples pessoa moral,
torna-se uma pessoa real e viva, independente das vidas
humanas que a compõem”.
É possível que o infanticídio desapareça algum
dia, como desapareceu a escravidão, e tende a desa parecer o duelo; mas é preciso que se dê uma outra
organização social, em que se modifique profundamente
o conceito de honra feminina. Por enquanto é uma
conseqüência necessária da lógica social, que eleva a
honra feminina à categoria de suprema virtude, base de
toda pureza de costumes.
Houve um tempo em que a escravidão teve sua
utilidade prática, da mesma sorte que a tortura, o corso,
o duelo; hoje o infanticídio tem, senão sua beleza, como
alguém já disse do duelo, ao menos sua explicação, e
justificativa em face da lógica social, que considera a
honra feminina o valor moral por excelência.
Sim, a honra constitui um valor não menos
precioso do que a riqueza.
Ihering considera a honra um bem sui generis,
imaterial; mas, nem por isso, deixa de ser um bem
jurídico.
É o sentimento da honra é menos um bem
individual do que um bem público.
A honra constitui um elemento histológico do
corpo social, e, mais do que a riqueza, sua conservação
interessa cada vez mais à sociedade.
Nestas condições os códigos minoram a pena da
mãe, que mata o filho para ocultar a falta, que a
sociedade considera uma ofensa ao sentimento de honra
389
da coletividade, e assim procedendo, eles não fazem
senão agir de acordo com a lógica dos sentimentos, ou
melhor, com a metafísica do coração.
Além da lógica racional, o direito faz questão de
lógica afetiva, e as duas lógicas, no dizer de T. Ribot,
desenvolvem-se por processos especiais, como expressões e tendências opostas da natureza humana.
(Transcrito a A Cultura Acadêmica, Recife, 2 (2-1) – 71?78,
agosto de 1905).
390
4.
REFORMA DO ENSINO
(Discurso pronunciado na Câmara Federal)
O Sr. Artur Orlando – Sr. Presidente, é sempre
perigoso falar depois de um deputado como o que
acabou de ocupar a tribuna; mas o Sr. Castro Pinto falou
ontem com tanta bravura intelectual e moral, com tanto
desassombro, com tanta eloqüência que, ao calor de sua
palavra, vibrou minha alma como vibra a terra aos raios
do sol.
Sr. Presidente, ao calor de sua palavra, dei um
aparte.
S. Exa. contestou o meu aparte; eu repliquei; S.
Exa. treplicou: eu pedi então a palavra. Foi o meu mal,
ou antes, foi o meu castigo...
Um Sr. Deputado – Foi um bem.
O Sr. Artur Orlando - ... porque, Sr. Presidente,
tive de passar uma noite em claro, a copiar páginas e
páginas de relatórios de ministros, para hoje poder
responder condignamente a S. Exa. E pela manhã, antes
de vir para a Câmara, tive de ir a um consultório
médico. Narrei o acontecido. O médico censurou o meu
procedimento e disse-me ele: “Você não sabe que
padece de artritismo com fundo neurastênico?” Eu
pensei que seria preferível a inversão dos termos: “Você
não padece de neurastenia com fundo artrítico?”
391
Mas a musa da medicina é digna irmã da musa da
felicidade.
A gente deve respeitá-la muito, mesmo porque,
quando ela entra em casa, a gent e, quer queira, quer não,
há de ser feliz.
Depois disse: “Que vai fazer?” “Vou responder a
um meu colega”. “Faça, mas reduza a escrito o que tem
a dizer. Não é muito comum, não é usual, mas faça -o.
Aliás, o senhor tem necessidade de poupar muita força
mental, sobretudo a memória, e o senhor, reduzindo a
escrito o que tem a proferir, mesmo pela preguiça de
escrever, necessariamente poupará muitas palavras”. “E
se me derem apartes?” Ele ficou embaraçado, mas
depois disse: “Não responde absolutamente. (Riso) O
aparte é contra-indicado. Continue no seu regimen
dietético, no regime lácteo vegetal”.
“E as carnes?” “As carnes brancas, a caça,
respondeu: a alta caça”.
“E as frutas? “Bem cozidas”. Disse ele: “As
frutas são boas para a alimentação mas devem ser bem
cozinhadas, é o processo empregado ultimamente pelo
célebre professor Metchnikoff”.
“Não está contente, perguntou-me ele, com o
regime prescrito? Se não está satisfeito, posso passar
outro, modifico à sua vontade”.
“Não senhor, muito obrigado, estou satis feitíssimo”.
Sr. Presidente, recordo-me de ter lido, sem me
lembrar onde, porque, pelo horror que tenho à tribuna,
sinto que foge-me a memória, essa deusa magnânima
392
que os gregos, com o seu admirável senso prático e
incomparável gênio poético, fizeram companheira
inseparável de Júpiter, quer no Olimpo, quer no
Parnaso, e de cujo consórcio nasceram as primeiras
musas, à mais velha das quais, Memória, que era assim
o seu nome, prestava homenagem o filho querido de
Apolo, o popularíssimo Esculápio (os médicos se mpre
tiveram muita popularidade) e se curvava reverente o
próprio tempo, que tudo destrói, Saturno que devora os
próprios filhos, como dizia, recordo -me de que li em
alguma parte, que há na vida moral, uma lei terrível,
muito embora proteste a consciência – é a que pune as
falas dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta
geração, e esta lei existe mais terrível ainda no mundo
político, onde muitas vezes é a centésima geração que
paga as faltas que não cometeu. Com efeito, todos se
julgam com competência para discutir esta questão e
com direito para propor reformas que afirmam ser a
solução do problema.
Mas poucos, bem poucos são os que têm bastante
coragem para confessar a sua ignorância e bastante
escrúpulo para vacilar diante da formação de um juízo
definitivo.
Cada um quer impor o seu sistema, sem se
lembrar que pelo simples gosto de fazer um ensaio
submetem-se milhares de consciências, milhares de
inteligências a uma regra uniforme, que muitas vezes
não passa de uma criação fantasiosa de um espírito
utopista, porém, que pode prejudicar perniciosamente a
centenas de gerações.
393
Entretanto, senhores, a mocidade é o orgulho, a
maior riqueza de um país! Seus destinos, portanto, não
podem ser abandonados àqueles que não trepidam fazer
dela, mocidade, um objeto de experiência em anima vili!
O que vem dito não se aplica a nenhum dos
membros da Comissão e muito menos ao emérito relator
do projeto; conheço-os todos: o Sr. Teixeira Brandão,
tão notável por seus trabalhos sobre medicina, quer
pública, quer privada; o Sr. Leão Veloso, de cuja
exuberância de saber e louçania de estilo, todos os dias
dá testemunho à imprensa desta Capital; o Sr. José
Bonifácio herdeiro do talento e eloqüência dos
Andradas; o Sr. Campos Cartier, sempre tão refletido e
ponderado; o Sr. Antero Botelho, tão modesto, quanto
ilustrado; o Sr. João Vieira, portador de vasta erudição;
o Sr. Passos Miranda, tão artista da palavra, quão
meticuloso investigador, o Sr. Valois de Castro, que
desempenha o seu mandato com tanto proveito ara o
país, quanto brilho para a Igreja, e o Sr. Afonso Costa,
autor da excelente memória que vem ilustrando o
projeto.
Mas, Sr. Presidente, como dizia, qualquer que
sema a importância dos outros problemas sociais, para
mim a grande questão é a do ensino público; para m im
esta é a questão de todos os tempos e lugares, a que
surge cada vez mais complicada, a que vai do
nascimento à morte das sociedades.
A razão é simples: a sociedade caminha e nós
procurando saber para onde ela vai; não nos
contentamos de olhar somente para o passado, queremos
394
adivinhar o futuro. Senhores, o que vou dizer sobre
matéria de nacionalização do ensino não passa de
reprodução – devo confessar – do que tenho, por mais
de uma vez dito e escrito sobre o assunto. Mas confesso,
que sinto o maior prazer nesta reprodução, porque vejo
que não é de hoje, vem de longe a minha harmonia de
vistas com tão eminentes espíritos, em assunto de
tamanha importância.
Coma teoria do causalismo psíquico, aceitando as
idéias e os sentimentos como força evolutiva do seio do
determinismo universal, o problema pedagógico assumiu
importância capital, tornou-se o problema dos
problemas. Como já tive ocasião de dizer, sua solução
definitiva seria a realização presente de todo o
aperfeiçoamento futuro, se as sociedades, em sua
ascensão evolutiva, não fossem embaraçadas pela força
da hereditariedade. (Muito bem).
Não desconheço a importância da organização do
trabalho, da organização do crédito, da organização da
previdência. Mas todos estes expedientes econômicos,
para produzirem todos os seus salutares efeitos,
precisam assentar sobre a base mais larga e mais sólida
da educação.
Senhores, enquanto não se fizer uma educação
que dê o sentimento da eficácia do trabalho, que coloque
a força mental do homem acima das convenções sociais,
que faça do cérebro do homem um centro de atividade, e
ao mesmo tempo um foco de luz, por mais
deslumbrantes que sejam os resultados da civilização,
por mais que melhore as indústrias, não melhorará a
395
sorte do trabalhador; pelo contrário, ela se agrav ará,
tornando cada vez mais desproporcional a troça de
serviços, submetendo cada vez mais o trabalho ao
capital.
Tratando dos efeitos perniciosos da plutocracia,
esse estado da sociedade, em que a riqueza é o nervo de
todas as coisas, afirma Renan, que o r emédio para o mal
não está em fazer com que o pobre possa se tornar rico,
nem excitar nele esse desejo, mas fazer com que a
riqueza seja uma coisa insignificante e secundária, com
que sem ela se possa ser muito grande, muito nobre,
muito feliz, com que sem ela se possa ser influente e
considerado no estado.
A propriedade, diz o conde de Leão Tolstoi,
significa o que me foi dado, o que pertence exclu sivamente a mim aquilo sobre que eu possa fazer tudo
que quero, o que ninguém pode tirar-me o que
permanece meu até o fim de minha existência. Ora, diz
ele, esta propriedade para o homem é ele mesmo, e
somente ele.
Senhores, não somente as reformas econômicas,
mas ainda as políticas, estão subordinadas ao problema
pedagógico.
O absolutismo no mundo moderno, afirma um
profundo pensador, não se baseia sobre a força dos que
governam, mas sobre a ignorância dos governados.
Senhores, como organismos que se desenvolvem,
as sociedades estão sujeitas a uma variedade infinita de
condições, mas todas elas podem reduzir-se a três
principais: solo, língua e tradições comuns.
396
Nós temos continuidade de solo, unidade de
língua; mas falta-nos comunhão de tradições. Em geral
ignoramos o que pensaram e sentiram os nossos
antepassados, que virtudes os animaram, que
concepções se aninharam em seus cérebros, que idéias
presidiram os seus atos. Daí concluo a necessidade de
nacionalizar a nossa educação, de organizar a escola, de
acordo com os nossos usos, costumes e tradições e de
aproveitar as forças vivas do país na formação do
caráter brasileiro.
“Não convém encarar – diz Dreyfus Brisac – as
instituições escolares como seres abstratos e isolados,
mas pelo contrário, colocá-las em seu quadro natural, no
meio social e político, em que são destinadas a viver e a
desenvolver-se”.
“Costumam perguntar, escreve Guyot – se a
educação tem um fim individual ou um fim social. Ela
tem esses dois fins ao mesmo tempo: é precisamente a
investigação dos meios para por de acordo a vida
individual mais intensa, com a vida social mais
extensiva”.
Senhores, para mim é preciso elevar a questão,
abandonar o velho e gasto lema da centralização ou
descentralização para considerar a educação, segundo
entende Dreyfus Brisac, isto é, “não como a criação de
tais ou tais corporações livres ou oficiais, como a
função de tais institutos públicos ou privados, mas como
esforço contínuo e perseverante da própria nação,
trabalhando com todas as suas forças e por todos os
meios a seu alcance para uma cultura enérgica intensiva,
397
para o desenvolvimento normal e progressivo de todos
os poderes intelectuais e morais”. (Muito bem)
Entendo por educação nacional a que sai do
próprio seio da nação, de harmonia com a economia
geral do organismo social sob a influência do solo, do
clima, da raça, dos costumes, das tradições, de todas as
circunstâncias em cujo meio o Estado vive e se
desenvolve. (Muito bem)
Sabido o que seja educação nacional, façamos um
pouco de história. é possível que a experiência do
passado derrame alguma luz sobre o presente e produza
talvez alguns frutos sazonados para o futuro.
A história da pedagogia no Brasil pode ser
dividida em diversos períodos:
Primeiro período: Desde a descoberta do Brasil
até a expulsão dos jesuítas.
Segundo período: Desde a expulsão dos jesuítas
até a vinda da família real para o Brasil.
Terceiro período: Desde a vinda da família real
até a proclamação da Independência.
Quarto período: Desde a proclamação da Independência até a chamada para o Ministério do Império
do Dr. Luiz Pedreira do Couto Ferraz, que foi o primeiro
ministro organizador da instrução pública entre nós.
Outro período vai desde a retirada do Dr. Couto
Ferraz, até a proclamação da República.
Finalmente, o período que vai da proclamação da
República, até o projeto que se acha em discussão.
Senhores, o período mais fecundo da pedagogia
brasileira é o período do ensino jesuítico.
398
Para não gastar palavras basta lembrar que
Anchieta, com a sua gramática tupi, abriu as portas do
Brasil Ocidental aos descobridores do Brasil Oriental.
Mas, além disso, é o período em que florescera m
Basílio da Gama Rocha Pitta, o baiano Gregório de
Matos, e o pernambucano Bento Teixeira Pinto, autor da
Prosopopéia, em que ele vaticinou os altos destinos de
Pernambuco e também autor dos Diálogos das
Grandezas do Brasil em que profetizou, de modo claro e
preciso, a vinda da família real para a nossa terra.
O segundo período é talvez o mais estéril, apesar
da criação do subsídio literário e das medidas violentas
do Marquês de Pombal. Não satisfeito com a expulsão
dos jesuítas, o ministro de D. José I ba niu os próprios
compêndios, castigando com pena de prisão quem
continuasse a lecionar pela Arte de Manoel Álvares e
ordenando que o ensino de latim fosse dado tão -somente
pelo Novo Método do Padre Antônio Pereira, que ainda
hoje é usado.
O subsídio literário consistia em cobrar um real
sobre cada arratel de carne vendida nos açougues e 10
réis sobre canada de aguardente fabricada no país.
Apesar de tudo, o ensino público caiu em tal
degradação que, neste longo período que vai desde a
expulsão dos jesuítas até a vinda da família real para o
Brasil, nada se encontra digno de menção, exceto a
criação da cadeira de retórica e poética, para ser dada a
Silva Alvarenga, a cujos ensinamentos se deve a
formação de S. Carlos, Mont’Alverne e outros oradores
de igual coturno.
399
Com a vinda da família real para o Brasil, como
era natural, desenvolveu-se o movimento intelectual
brasileiro, e D. João VI, que era dado às letras,
encarregou o general Francisco Stockler de organizar
um projeto de instrução pública. O general Fra ncisco
Stockler apresentou o seu projeto a D. João VI, projeto
cuja organização consistia em dividir o ensino em
quatro estádios. O primeiro compreendia todos aqueles
conhecimentos, sem os quais, dizia o general Stockler,
não se compreende um cidadão.
O segundo estádio compreendia todos aqueles
estudos que vinham dar ao cidadão uma educação
integral, uma educação que dizia respeito a todas as
manifestações da alma humana. Era a educação de um
cidadão perfeito e acabado. O terceiro estádio exigia
todos os estudos que eram necessários e indispensáveis
para que o cidadão pudesse matricular -se em qualquer
academia de direito, de medicina ou de engenharia.
Finalmente, o quarto estádio compreendia os
estudos particulares que constituíam o objeto das
escolas de direito, medicina, engenharia e até de
teologia. As primeiras escolas chamavam-se pedagogias
e os mestres pedagogos; as segundas institutos e os
mestres institutores; as terceiras liceus, como hoje os
mestres professores, e as quartas academias e os
mestres lentes, como ainda hoje.
A proclamação da Independência do Brasil devia
trazer como conseqüência o melhoramento da instrução
pública, mas assim não sucedeu, porque os nossos
estadistas, preocupados com as grandes agitações
400
políticas, então, não puderam prestar atenção ao
problema que, entretanto, mais diz respeito ao progresso
e ao desenvolvimento dos povos, como é da instrução
pública.
Além disto, predominavam então as idéias dos
teoristas franceses para os quais tudo que diz respeito à
instrução pública deve ser deixado, como eles diziam, à
influência salutar da liberdade, da emulação e da
concorrência.
A Lei de 15 de outubro de 1827 mandou criar
escolas de primeiras letras em todo o Brasil, isto é, em
todas as cidades, vilas e lugares mais populosos. Seria
adotado o sistema mútuo de ensino e os professores
seriam obrigados a ensinar a ler, escrever, as quatro
operações fundamentais da aritmética, frações, sistema
decimal, proporções, rudimentos de geometria e
doutrina cristã. Essa reforma, acanhada no fundo e na
forma, foi um verdadeiro fiasco, que os ministros que se
sucederam na pasta do Império não fizeram senão
agravar ainda mais, alegando em seus relatórios, como
se lê, ora, a falta de estabelecimentos, ora a in competência dos professores, ora a insuficiência dos
vencimentos.
Menos desafortunado se pode dizer o ensino
secundário.
Restabelecido desde 1821, dez anos depois, em
1831, passou o seminário de São Joaquim por uma
reforma, em virtude da qual foi criada uma cadeira de
manejo e exercício da guarda nacional.
401
Somente em 1837, deixou o Seminário Imperial,
como então era conhecido, de ser um seminário dobrado
de uma escola militar, para se transformar em um
verdadeiro instituto de ensino secundário sob a
denominação de Colégio de Pedro II, reforma
importantíssima por ser o início de uma educação
integral.
O curso constava do ensino das línguas latina,
grega, francesa e inglesa, de retórica, dos princípios
elementares de geografia, história, filosofia, zoologia,
botânica, mineralogia, química, física, ar itmética,
geometria, álgebra e astronomia.
Mais tarde, em 1841, foi reformado o regulamento, não só por ter parecido ao Governo insu ficiente o prazo de seis anos para o ensino de todas as
matérias, como porque nos primeiros anos eram
exigidos dos alunos, estudos para os quais não tinham a
inteligência bastante desenvolvida.
Nestas condições, foi o curso elevado para sete
anos, em vez de seis, sendo o primeiro ano aliviado do
ensino de aritmética e geografia, que só aparecia no
segundo; a latinidade que ocupava três anos, passou a
ser lecionada em cinco, a história natural foi transferida
do terceiro ano para o quinto; a física e a química do
quarto e quinto ano para o quinto e sexto, a filosofia do
quinto e sexto para o sexto e sétimo.
Criadas pela Lei de 11 de agosto de 1827, as
Academias de Direito de São Paulo e do Recife, mais
tarde o Seminário de Olinda foi convertido no Colégio
das Artes, de acordo com os estatutos anexos àquela
402
Lei, e em cujo capítulo relativo às matrículas se lia o
seguinte:
‘Sendo necessário que os estudantes, que
houverem de matricular-se nas aulas jurídicas tenham a
conveniente idade e os estudos prévios que preparam o
entendimento para prosperar nos maiores, nenhum
poderá matricular-se sem apresentar certidão de idade,
pela qual conste que tem 16 anos para cima, porque só
desta época em diante poderão ter os necessários
preparatórios e o espírito medrado e disposto para bem
conceber as matérias da ciência a que se dedicam e
discorrer sobre ela com mais madura reflexão.
Juntarão também certidão de exame e aprovação
das línguas latina e francesa, de retórica, filosofia
racional e moral, aritmética e geometria.
O conhecimento perfeito das línguas latina e
francesa, sobre dever entrar no plano de uma boa
instrução literário para conhecimento dos livros
clássicos de toda a literatura é peculiarmente necessário
para os estudantes juristas. Na primeira está escrito o
Digesto, o Código, as Novelas, os Institutos e os bons
livros de direito romano, o qual, posto que só há de ser
elementarmente ensinado neste curso jurídico, deve de
força ser estudado, bem como as instituições de Pascoal
de Melo Freire e algumas outras obras jurídicas de
autores de grande nota que andam escritas na mesma
língua.
E na segunda se acham também escritos os
melhores livros do direito natural, público, e das gentes,
marítimo e comercial, que convém consultar, maior 403
mente entrando estas doutrinas no plano de estudos do
curso jurídico, e sendo escritos em francês muitos dos
livros que devem por ora servir de compêndios.
O estudo da retórica é também indispensável aos
que se dedicam à jurisprudência, porque o advogado
deve saber a eloqüência do foro; e a arte de bem falar e
escrever, muito necessária é aos que houverem de ser
deputados nas assembléias ou empregados na diplomacia, e uma vez que a retórica se ensina como convém,
mais por modelos do que por áridos preceitos, será mui
proveitosa aos fins propostos, não sendo também
indiferente, antes necessária e útil aos magistrados que
têm muitas ocasiões de falar e escrever.
A filosofia racional apura o entendimento e
ensina as regras de discorrer e tirar conclusões certas de
princípios; o que é assaz necessário a todo homem
literato e particularmente ao jurisconsulto não só porque
tem necessidade de saber discorrer com pr ecisão todas
as matérias; mas porque sendo certo que nem todos os
casos podem especialmente prevenir -se e acautelar-se
nas leis, de força há de estender-se para casos idênticos
a idêntica razão de direito. Parte dela é além disto a arte
crítica, que ensina avaliar os quilates das provas e
conhecer onde se encontra a evidência moral ou a
certeza de dúvida do testemunho por documentos e
afirmações verbais; e a moral ou ética é como a base, ou
antes o primeiro degrau para o estudo do direito natural,
que é a primeira e a mais fundamental ciência que deve
ocupar o ânimo de jurisconsulto, como o primordial
assento da jurisprudência.
404
“Não é menos necessário nem menos útil o ensino
de aritmética e geometria; esta pelo muito que concorre
para se discorrer com método, clareza, precisão e
exatidão, e aquela porque convém que a saiba todo o
homem, a fim de conhecer o melhor método de contar, e
tirar desse conhecimento os multiplicados subsídios que
ele pode prestar nos usos da vida; além disso,
aproveitam muito particularmente ao magistrado,
advogado ou diplomata que no exercício de seus
respectivos empregos acharão repetidas ocasiões de
aplicar com proveito os princípios que tiveram destes
dois importantíssimos ramos de ciências matemáticas”.
Admira que deste modo ainda discorresse o
visconde de Cachoeira, autor dos estatutos, quando já
em 1792, Condorcet tinha apresentado à Assembléia
Legislativa Francesa os seus importantes projetos, e
Diderot em 1885, havia publicado sua notável
exposição, que escrevera a pedido de Catarina II, a
“Semíramis do Norte”, tratando da organização de uma
universidade na Rússia.
“É nas mesmas escolas, dizia Diderot, que se
estudam ainda hoje, sob o nome de belas letras, duas
línguas mortas, que não são úteis senão a um pequeno
número de cidadãos; é aí que se as estudam durante seis
a sete aos sem aprendê-las; que sob o nome de retórica
se ensina a arte de falar antes da de pensar, a arte de
bem dizer antes de ter idéias; que sob o nome da lógica
se enche a lista das sutilezas de Aristóteles, e de sua
muito sublime e muito sutil teoria do silogismo; que se
desenvolve em cem páginas obscuras o que se poderia
405
expor claramente em quatro; que sob o nome de
metafísica se trata do tempo, do espaço, do ser, da
possibilidade, da essência e outras teses frívolas... e
nem uma palavra de história natural nem uma palavra de
boa química, muito pouca coisa de física, quase nada de
experiências, ainda menos de anatomia, nada de
geografia”.
O primeiro ministro reformador da instrução
pública que tivemos, foi o Dr. Luís Pedreira do Couto
Ferraz, pela extensão das medidas que pôs em prática,
abrangendo a esfera inteira do ensino primário,
secundário e superior.
Muito concorreu para o novo estado de coisas o
Dr. Justiniano José da Rocha, que, sendo encarregado
pelo Governo de visitar e examinar os estabelecimentos
de instrução pública, apresentou um luminoso relatório,
em que põe a dedo na ferida de nossa educação.
“Os pais dos alunos, escrevia o Dr. Justiniano da
Rocha, iludidos por deplorável erro, não pedem aos
diretores de colégio que ensinem a seus filhos, mas
simplesmente que os habilitem no menor prazo possível
e com o menor incômodo deles pais e de seus filhos,
para os exames preparatórios das nossas aulas
superiores. Sob esta condição, os estudos acanhavam-se
e perdiam-se. Os alunos mal começavam a habilitar-se,
afluíam para o colégio de Pedro II, onde ganhavam, a
cabo de um ou dois anos, diplomas de bacharel, que os
dispensava do receado exame de preparatórios, ou
aproveitando a benignidade de empenhos, que n as
escolas superiores desta Capital tanto facilitavam os
406
exames de preparatórios, faziam-se aqui aprovar e iam
concluir em São Paulo com o estudo de história e
retórica e filosofia, como o entendiam os examinadores
daquela cidade, as suas habilitações para o ingresso no
curso jurídico, único fim que almejavam alcançar”.
Em 1854 pôde o Dr. Luís Pedreira do Couto
Ferraz expedir o seu regulamento, que, se não é uma
obra perfeita e acabada, contém salutares preceitos
sobre a instrução primária e secundária e sobre a
inspeção e fiscalização escolar.
Quanto ao magistério, o Dr. Luís Pedreira do
Couto Ferraz organizou escolas normais, pelas razões
que expôs em seu relatório:
“Basta, pois, que por agora vos observe que, sem
pessoal habilitadíssimo e dedicado para manter e dirigir
uma instituição de tal ordem, e tendo diante dos olhos o
exemplo das escolas normais estabelecidas em algumas
províncias, que nenhum fruto deram por causa daquela
falta, pareceria por sem dúvida imprudente arriscar
grandes somas e perder inutilmente o tempo preciso
para no fim de alguns anos suprimir -se a escola que se
criasse. Teve por isso o Governo por melhor
experimentar uma nova instituição e achou mais
acertado ir educando os futuros mestres nas próprias
escolas públicas, aproveitando-se neste intuito alguns
meninos inteligentes. Serão estes colocados como
adjuntos dos professores mais hábeis com módicas
retribuições, até que vão gradualmente progredindo no
ensino, a ponto de poderem reger as mesmas escolas,
quando vagarem, ou as que de novo se instituírem. Para
407
evitar que este sistema, que em parte já foi adotado na
Áustria e na Holanda, e que até certo ponto o foi
também em França, pudesse embaraçar o progresso do
ensino, tornando-o algum tanto estacionário. Foi a sua
adoção, entre nós acompanhada dos convenientes
corretivos, tais como a instituição das conferências dos
professores em épocas designadas, os exames repetidos
todos os anos e outros, além de ficar subordinado ao
zelo e a vigilância de uma constante e severa inspeção.
Paralelamente aos adjuntos das escolas primárias, criou se para a instrução secundária no Colégio de Pedro II
uma classe de repetidores.
Esta classe tem de prestar duas vantagens: não só
preenche uma lacuna, que a muito se notava na
organização do ensino naquele colégio, auxiliando o
estudo dos alunos internos, e prestando -lhes os serviços
que a sua própria designação indica como também ainda
pode vir a preparar excelentes professores afeitos ao
estudo e a disciplina, e sem os hábitos do magistério”.
De acordo com a reforma, foi regulamentado o
plano de estudos do Colégio de Pedro II, sendo dividido
o curso em dois ciclos:
Primeiro ciclo – 1º ano: Leitura e recitação de
português; exercícios ortográficos; gramática nacional,
aritmética; gramática latina; francês, compreendendo
simplesmente leitura, gramática e versão fácil. – 2º ano:
Latim, versão fácil e construção de períodos curtos, com
o fim especial de aplicar e recordar as regras
gramaticais; francês, versão, temas e conversas; inglês,
leitura, gramática, versão fácil; continuação de
408
aritmética e álgebra, até equações do 2º grau; ciências
naturais, compreendendo a primeira cadeira zoologia e
botânica e a segunda, física. – 3º ano: Latim, versão
gradualmente mais difícil e temas; francês, aperfeiçoamento da língua; geometria; ciências naturais,
compreendendo a primeira cadeira, mineralogia e geo logia e a segunda química; explicação dos termos
técnicos necessários para o estudo da geografia;
geografia e história moderna. – 4º ano: Latim, versão e
temas; inglês, aperfeiçoamento do estudo da língua e
conversa, trigonometria retilínea; ciências naturais
compreendendo a primeira cadeira repetição de mine ralogia e geologia e a segunda repetição de física e
química, continuação da geografia e da história
moderna; corografia brasileira e história natural.
Segundo ciclo – 5º ano: Latim, versão para a
língua nacional de clássicos mais difíceis e temas;
alemão, leitura, gramática, versão fácil; grego, leitura,
gramática, versão fácil; filosofia racional e moral;
geografia e história antiga. – 6º ano: Latim, continuados
das matérias do ano anterior; filosofia, sistemas
comparados; alemão, versão mais difícil, temas fáceis;
grego, versão mais difícil, temas fáceis; retórica, regras
de eloqüência e de composição; geografia e história da
Idade Média. – 7º ano: Alemão, aperfeiçoamento; grego,
aperfeiçoamento; eloqüência prática, composição de
discursos e narrações em português, e quadro da
literatura nacional; história da filosofia, latim,
composição de discursos e narrações; it aliano.
409
Também foram reguladas as aulas dos cursos
anexos às faculdades de direito, bem como as condições
para a matrícula nas diversas academias, quer de direito,
quer de medicina.
Para as faculdades de direito se exigiam as
seguintes matérias: português, francês, inglês, latim,
retórica, aritmética, geometria, geografia, história e
filosofia.
Para as faculdades de medicina as mesmas ma térias, sendo substituída retórica pela álgebra.
Com a retirada, em princípios de 1857, do Dr.
Luís Pedreira do Couto Ferraz da pasta do Império,
declinou de tal sorte o ensino público, que em 1865
pôde o Dr. Joaquim Caetano da Silva, o ilustre autor do
Oiapoque e Amazonas, escrever o seguinte em favor do
ensino particular:
“Aparato grande. Despesa grande, resultado
pequenino. Eis aí o que apresenta no município da Corte
o magistério público, e ao lado dele, o ensino particular,
dando à capital do Brasil, sem ônus algum do Tesouro,
proveito muito maior. Por que será? Sustentam muitos
que é por falta de execução do art. 64 do Decreto 1.331A, de 17 de fevereiro de 1854, o qual comina penas aos
pais, tutores e curadores, que tiverem em sua companhia, meninos menores de sete anos sem impedimento
físico ou moral, e lhes não proporcionarem instrução.
Assim opinou o Senado, em 7 de julho de 1864, uma
autoridade gravíssima. Mas é inegável que em todas as
partes do mundo, máxime no Brasil, tem a questão do
ensino obrigatório árduas escabrosidades. Pretendem
410
outros que a perpetuidade do professor público redunda
em ruína do magistério. Dizem que, galgados os cinco
anos para vitalício, já não empenha esforço, quando o
professor particular ufana-se em incessante desvelo.
Lástima seria que assim fosse alguma vez; mas no geral
o professor público acende-se em novos brios com a
segurança do futuro, e de fato temo-los exímios.
Não há de esquadrinhar razões, que a todos ferem
os olhos. O magistério particular estende-se por onde
quer. O magistério público mal se volve em espaço
estreito – em poucas casas e essas acanhadas. Visitemse os estabelecimentos públicos de instrução, e na
máxima parte achar-se-ão entupidos com um punhado de
crianças. Concedamos que, compelidas pela obrigação
legal, acudissem a eles toda as que não fazem, onde
caberiam? Para aumentar-lhes o número, para lhes dar
amplidão, é indispensável dinheiro. E falta o dinheiro. A
conseqüência é palpável. Já que o Governo não pode,
não ate as mãos aos que podem, ou antes, aos que
poderiam.
O magistério particular anda entre nós es cravizado por lei; e mesmo assim prospera mais que o
magistério público. Tanta é a sua força. Dê-se-lhe carta
de alforria e muito mais se desenvolverá. Este vai sendo
o voto do Brasil. No extremo setentrional do país fez a
Assembléia Provincial do Amazonas uma Lei, em 9 de
outubro último, infelizmente não sancionada, mandando
que em toda a província fosse livre o ensino, tanto
primário como secundário. Na Assembléia Provincial do
Rio de Janeiro apresentou-se em 9 de novembro um
411
notável parecer no mesmo sentido, e anteriormente, em
21 de maio, ecoara a mesma aspiração no seio da
Assembléia Legislativa. Seria bem próprio da sua
elevada categoria ostentar o município da Corte o
primeiro exemplo desta fecunda liberdade”.
Felizmente, neste mesmo ano foi chamado para a
pasta do Império o Dr. José Liberato Barroso, que havia
dado prova de sua competência em matéria de instrução
com a publicação de seu livro A Instrução Pública no
Brasil.
O Dr. José Liberato Barroso, porém, durou pouco
no governo, não tendo tido tempo, senão para dar novos
estatutos às Faculdades de Direito e de Medicina. Nas
Faculdades de Direito dividiu o curso em duas secções:
uma de ciências jurídicas e outra de ciências sociais.
Em 1869, o Sr. conselheiro Paulino José Soares
de Souza, em seu relatório do Ministério do Império,
chamou a atenção para a falta de estabilidade em
matéria de instrução pública e para a influência
perniciosa da política em tão importante assunto; mas,
por sua vez convencido da necessidade de reformar a
instrução apresentou à Câmara dos Deputados um
projeto de lei, manifest ando-se partidário da obrigatoriedade do ensino primário e da liberdade do ensino
superior e propondo diversas medidas, entre outras a
criação de uma universidade com quatro faculdades,
uma de direito, outra de medicina, outra das mate máticas e ciências naturais, outra de teologia; a su pressão dos cursos anexos às Faculdades de Direito do
Recife e São Paulo, a criação de externatos naquelas
412
cidades e na da Bahia modelados sob o tipo do colégio
de Pedro II, transferência do Internato de Pedro II para
uma cidade do interior do Rio de Janeiro ou de Minas,
criação de uma escola normal, e reorganização do
ensino primário e secundário do Município Neutro.
Combatido no Senado pelos Senadores Zacarias e
Pompeu, o projeto não foi aprovado naquela casa do
parlamento em conseqüência da retirada do gabinete, em
1870.
Como seus antecessores na pasta do Império,
salvo raras exceções, não se dispensou de reformar o
Colégio Pedro II, que não havia muito tempo tinha sido
reformado pelo sucessor de Couto Ferraz.
Com efeito Couto Ferras dividira o curso do
Colégio de Pedro II em dois ciclos com o fito de
diminuir a simultaneidade de múltiplas matérias, e ao
mesmo tempo de tornar o ensino de tal sorte maleável,
que ele pudesse aproveitar com igual vantagem tanto
aos que aspiravam seguir as carreiras literárias como aos
que desejavam se preparar para as carreiras comerciais e
industriais.
Seu sucessor, atendendo a que no quarto ano do
primeiro ciclo se acumulavam muitas matérias e estas
acima das forças intelectuais dos alunos, acabou com a
divisão do curso em dois ciclos e seus respectivos
exames de maturidade; mas permitiu que aqueles que
houvessem cursado os quatro primeiros anos, mediante
mais um ano, empregado no estudo da trigonometria
retilínea, da física e química da mineralogia, e na
413
repetição da botânica e da corografia e história do
Brasil, obtivessem um diploma especial.
Ao Sr. conselheiro Paulino Soares de Souza
sucedeu como titular da pasta do Império o Sr.
conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, que deu
extraordinário impulso à instrução pública, tanto pelas
reformas que propôs, como pelas medidas que adotou,
destacando-se em um e outro caso, quer pela largueza e
firmeza de vistas, quer pelo profundo conhecimento, que
manifestou, de todas as questões anteriorme nte
ventiladas.
As reformas, dizia o Sr. conselheiro João Alfredo
em seu relatório de 1871, versarão sobre os seguintes
pontos:
“1º) Realização da idéia do ensino obrigatório.
Esta idéia, cuja necessidade e justiça não carecem
de demonstração, e que está praticamente admitida nos
países mais adiantados em matéria de instrução popular,
acha-se já estabelecida no art. 64 do regulamento que
acompanha o Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de
1854. Nunca se tratou, porém, de dar execução a este
preceito legal, por ser impraticável nas circunstâncias
existentes. Certamente, enquanto não se fundarem tantas
escolas públicas, gratuitas quantas forem necessárias,
para que se torne possível e fácil a sua freqüência aos
menos de todas as localidades o emprego de meio s
coercitivos para que os pais e pessoas que tiverem
menores sob sua direção lhes dêem o ensino elementar,
seria uma clamorosa violência, principalmente em
relação às classes cujos deficientes recursos não
414
comportam os dispêndios que exige aquele ensino da do
particularmente.
Ao mesmo tempo, pois, que no projeto se tratar
de tornar real aquela obrigação, estabelecendo -se as
condições de seu cumprimento e regulando -se a aplicação da penalidade imposta, se satisfará a necessidade
da elevação do número das escolas do 1º grau na
proporção devida, e, para generalizar o mais possível a
instrução, serão criadas aulas noturnas destinadas não só
aos menores de idade superior fixada para a freqüência
das diurnas, mas também aos adultos que, por suas
ocupações, só das horas da noite podem dispor para tal
fim.
2º) Execução da disposição do art. 1º da Lei nº
630, de 17 de setembr de 1851, e do art. 47 do já citado
regulamento de 17 de fevereiro de 1854 a criação de
escolas de instrução primária do 2º grau.
Destinadas estas escolas ao ensino de matérias
complementares da instrução primária ou o conhecimento é a imediata utilidade, tanto na prática da vida
individual, como nas relações sociais, não pode ser por
mais tempo adiada a sua fundação.
3º) Melhoramento do professorado.
É geralmente conhecido que o vício radical do
ensino primário entre nós está na insuficiência das
habilitações teóricas e práticas da maior parte dos
professores.
Possuindo apenas conhecimentos imperfeitos
sobre as matérias que deve assinar, não pode m tais
professores exercer bem e cumpridamente suas funções.
415
Ninguém ignora quanto imprópria para este fim que a
instrução do professor não se limite aos conhecimentos
que restritamente se referem ao assunto, a cujo ensino se
propõe, além disto, que, sem o conhecimento da
pedagogia ou do método do ensino, este não pode ser
completamente profícuo, embora abundem habilitações
teóricas em que o dá. Eis porque, em geral, são pouco
satisfatórios os resultados que apresentam as nossas
escolas, apesar da boa vontade dos esforços com que
muitos professores procuram desempenhar seus deveres.
Cumpre, pois, proporcionar os meios indis pensáveis para formarem-se professores completamente
habilitados. No projeto se satisfará esta grande neces sidade com a organização das escolas do 2º grau, e de
duas escolas normais, sendo uma destas para cada sexo.
Abrangendo o ensino, nessas escolas do 2º grau,
assuntos científicos e literários e a pedagogia, nelas irão
os adjuntos das de 1º grau, sem, todavia, deixarem de
praticar nestas o ensino, alargar a esfera de seus co nhecimentos e completar suas habilitações, obtendo o
título de professor do 1º grau, depois de aprovados em
todo o curso daquelas escolas superiores; e só dentre os
que estiverem habilitados com este título, poderão ser
nomeados professores efetivos. A instituição dos adjun tos não tem trazido todas as vantagens que se tiveram
em vista e devem esperar-se, porque, circunscritos
constantemente ao estreito círculo das noções adquiridas
na prática das escolas elementares, faltam-lhes os meios
para aperfeiçoarem e elevarem seus conhecimentos; e
quando professores, não passam de simples conti416
nuadores daqueles de quem foram discípulos e cujos
sucessores são.
Nas escolas normais constituídas para dar ainda
mais larga e desenvolvida instrução, se habilitarão os
que aspirem o magistério do 2º grau.
Nestas escolas, será conferido o título de
professor do 2º grau, com o qual se habilitarão para o
provimento efetivo nas respectivas escolas, os alunos
que tendo já o de professor de 1º grau, freqüentarem o
curso completo dos estudos das mesmas escolas e neles
forem aprovados ou que, sem possuírem este último
título, houverem provado por exame antes da matrícula,
terem todos os conhecimentos teóricos e práticos
necessários para obtê-lo.
Creio que por este modo, aqui apenas indicado, se
alcançará o grande desideratum de verem-se colocados
no ensino primário de ambos os graus, professores
capazes de preencherem cabalmente, sua importante
missão.
4º) Melhoramento de sistema de direção, inspeção
e fiscalização do ensino.
Achavam-se incumbidas estas importantes funções, pelo modo estabelecido no referido regulamento
de 17 de fevereiro de 1854, a um inspetor geral, a um
conselho diretor e a delegados de distrito.
Na organização dos serviços há, porém, defeitos
que, como a experiência tem mostrado e é de fácil
intuição, tornam incompleta e pouco eficaz a sua
execução.
No projeto se tratará de corrigir estes defeitos:
417
Definindo-se mais precisamente as funções
daquelas autoridades e regulando -se o seu exercício de
modo que assegure o rigoroso cumprimento de todas as
obrigações estabelecidas.
Dando-se ao inspetor geral vantagens que tornem
possível ser esse cargo aceito por pessoa que, tendo as
altas habilitações precisas, dedique-se exclusivament e
ao desempenho de suas funções.
Constituindo-se o conselho diretor, de forma que
fique habilitado para discutir e tratar proficientemente
de todos os negócios concernentes à instrução pública,
de sua competência, estabelecendo -se perfeita regularidade em seus trabalhos.
Substituindo-se os delegados de distrito os quais
apesar da boa vontade e patriotismo com que se prestam
a exercer as funções do seu cargo, não podem nele
empregar senão o tempo que lhes resta de suas
ocupações habituais, pois que servem g ratuitamente por
inspetores de distrito, pecuniariamente remunerados,
para que cumpra todas as funções que lhes são
incumbidas com a assiduidade que a natureza destas
requer.
Quanto ao ensino particular, o projeto conterá
melhoramentos importantes.
Primeiramente, com a instituição das escolas de
segundo grau e das escolas normais, se proporcionaram
os meios que hoje faltam para habilitarem-se professores particulares.
Estabelecer-se-á ao mesmo tempo a liberdade do
ensino, pondo-se a esta uma única restrição; a obrigação
418
de darem provas de sua moralidade os que a ele se
dedicarem.
É tempo de realizar-se esta idéia. A intervenção
oficial na parte relativa às habilitações intelectuais dos
professores particulares, além de ser uma tutela
desnecessária, porque o interesse dos pais é a melhor e a
mais eficaz garantia da boa educação de seus filhos, traz
inconvenientes práticos e impede o desenvolvimento da
instrução.
Em verdade os exames de capacidade profis sional, a que são obrigados os que pretendem exercer
aquele magistério, nem sempre dão a melhor prova de
suas habilitações reais. Apenas se podem apreciar,
nesses exames, os conhecimentos dos candidatos em
todas as matérias sobre que versam, mas como ninguém
ignora, não basta possuir esses conhecimentos para
ensinar bem; há outra condição essencial – a de saber
ensinar, qualidade que só se pode adquirir pela ciência
do método e pela prática. Por isso, muitas vezes estará
efetivamente mais habilitado para ensinar certas
matérias um indivíduo que, tendo essa qualidade, não
possa satisfazer todas as exigências de tais exames, do
que outro que simplesmente para estes se acha
preparado; entretanto, àquele se negará o título de
capacidade profissional de que se julgará digno somente
o último. A denegação deste título, nas circunstâncias a
que aludo, traz inconvenientes óbvios, sobretudo em
relação às localidades de pouca população e riqueza,
onde, não sendo fácil encontrar professores legalmente
habilitados, ficam os pais privados de darem instrução a
419
seus filhos fora das escolas públicas, direito que sem
injustiça lhes não pode ser tirado.
No projeto se atenderá também à conveniência de
melhorar a condição dos professores e dos adjuntos,
pois que, só o magistério não oferece vantagens que
atraiam pessoas de verdadeiro merecimento e de
vocação especial, nunca se conseguirá elevá -lo à altura
a que deve chegar”.
Isto quanto à instrução primária; quanto ao ensino
secundário e superior, estava o Sr. conselheiro João
Alfredo de acordo com o seu antecessor na fundação,
nas Províncias de estabelecimentos congêneres ao Colé gio de Pedro II e na criação, nesta Capital, de uma
universidade.
Sobre a instrução primária, secundária e profis sional, formulou o Sr. conselheiro João Alfredo um
projeto, no qual, em relação às Províncias, d e acordo
com o ato adicional, cingia-se a auxiliar o incremento da
instrução primária e secundária, e em relação ao
Município Neutro estabelecia:
“A liberdade de ensino particular restringindo a
intervenção do Governo às condições de moralidade e
higiene.
A obrigação de instrução elementar para rodos os
indivíduos de 7 a 14 anos e, também, nos lugares do mu nicípio em que houvesse aulas de adultos, para os de 14
a 18 que não a tivessem recebido.
A fundação de escolas diurnas e noturnas para
adultos.
420
A criação de duas escolas normais, uma para cada
sexo, nas quais se preparariam professores para o ensino
primário, compreendendo o seu programa as disciplinas
que se professarem nas escolas primárias e o estudo de
pedagogia com escolas práticas.
A faculdade de criar o Governo escolas mistas,
instituir escolas de trabalho para o sexo feminino e
auxiliar os estabelecimentos particulares de instrução
gratuita, primária e profissional, que se mostrarem
dignos deste favor.
A livre admissão a exames no Imperial Colégio
de Pedro II, assim como nos que semelhantemente se
fundassem nas províncias, de todos os indivíduos que o
requeressem, e a expedição dos respectivos diplomas
àqueles que fossem aprovados nas matérias do curso do
bacharelado.
A divisão do município em dist ritos literários,
quando fossem necessários para uma assídua
fiscalização, sendo remunerados os inspetores de
distritos.
A reorganização do conselho diretor e da
Secretaria da Instrução Primária e Secundária do
Município”.
Quanto às Províncias, estabelecia as seguintes
disposições, sendo feitas as despesas necessárias pelos
cofres gerais e por caixas especiais, instituídas para
sustentação das escolas em cada uma das mu nicipalidades:
“A criação nos municípios de escolas profis sionais, em que se ensinasse m as ciências e suas
421
aplicações, que mais conviessem às artes e indústrias
dominantes ou que devam ser criadas e desenvolvidas.
A concessão aos estabelecimentos de instruções
secundária, mantidos pelas províncias e que seguissem o
plano de estudos do Colégio de Pedro II, das mesmas
vantagens de que goza este, concorrendo o Governo com
um subsídio para os daquelas províncias cujos meios
não bastassem para toda a despesa precisa.
A extinção dos cursos preparatórios, anexos às
faculdades de direito.
A fundação de bibliotecas populares ou a
prestação de auxílios para este fim”.
Como o de seu antecessor, o excelente projeto do
Sr. conselheiro João Alfredo não chegou a ser
convertido em lei, mas o eminente estadista não passou
pelo Governo sem que deixasse pegadas de luz: entre
outros atos citaremos o Decreto de 2 de outubro de
1873, concedendo aos exames efetuados nas Províncias
os mesmos efeitos que aos feitos nesta Capital e nas
Províncias onde existiam faculdades.
Infelizmente algumas Províncias abusaram de tal
forma, que nelas o Governo teve necessidade de
suspender a concessão.
Lembro-me de ter lido uma carta escrita por um
venerado amigo a um outro, que era presidente do Rio
Grande do Norte, mais ou menos nos seguintes termos:
“Aí vai Fulano fazer exames. Peço benevolência e
não justiça, porque bem sabes, nas Províncias, quem faz
exame é como quem compra um par de botas e pede
mais ou menos frouxas, conforme os calos de que
422
padece. Não sei onde, se na cabeça ou nos pés; mas a
verdade é que meu recomendado sofr e de calos e não
pode usar botas justas”.
Ao Sr. conselheiro João Alfredo, sucedeu na
pasta do Império o Sr. conselheiro José Bento da Cunha
Figueiredo que, não obstante tudo confiar à Divina
Providência, não resistiu à tentação de reformar o
Colégio de Pedro II, tal é a sorte deste Instituto de
contar as suas reformas pelos Ministros que se sucedem
no ministério, a cujo cargo ele se acha, e ao Sr.
conselheiro Leôncio de Carvalho antecedeu o Sr.
conselheiro Costa Pinto, que declarou para sempre em
vigor os exames uma vez feitos.
A idéia capital da reforma do Sr. conselheiro
Leôncio de Carvalho é a de ampla liberdade de ensino,
no sentido não só de ser permitido a todo particular
lecionar como entender e quiser, mas ainda de ser
suprimida a freqüência obrigat ória dos alunos e, portanto, as lições, as sabatinas, as notas, fazendo depender
toda prova de habilitação exclusivamente do exame.
Em defesa de sua idéia, transcrevia o Sr.
conselheiro Leôncio de Carvalho as palavras da
Memória Histórica apresentada pela Faculdade de
Direito do Recife em 1870:
“Com o sistema, entre nós seguido, de serem os
estudantes chamados às lições e sabatinas, notando -se
nas cadernetas o mérito de umas e outras, o ato é para
muitos estudantes, senão para a generalidade deles, uma
mera formalidade: o juízo do lente está feito pelas notas
e, ordinariamente, quando desmentido pela prova
423
produzida no ato, não prevalece esta sobre aquela, senão
quando favorece o estudante.
Nada de lições, nada de sabatinas, e, conseguintemente, de notas: a única prova de habilitação seja
o exame público, em que o juízo do lente sobre o mérito
do estudante se forme sem prevenção favorável ou
contrária, e em que, portanto, a argumentação seja igual
e não varie conforme e reconhecida inteligência do
estudante”.
Deste modo, o professor deixa de ser um produtor
de ciência para tornar-se um mero expositor de idéias
alheias, e o discípulo deixa de ser um colaborador do
mestre para fazer-se um simples repetidor do magister
dixit.
É o maior erro que se pode cometer em pedagogia
pretender avaliar da habilitação e aproveitamento de um
estudante, pelas eventualidades e contingências do
exame.
O estudante, antes de tudo, deve aprender o que é
a ciência, como se faz o trabalho científico, o que
significam as palavras produção científica, e não
somente se preparar para responder às perguntas que lhe
serão feitas no fim do ano.
Ensinar a um moço, dizem João Terrel e Luís
Durant, as diversas soluções que tem de dar às diversas
dificuldades que encontrar na sua carreira, não é dar-lhe
a alta educação intelectual a que tem direito; é preciso
não lhe ensinar essas soluções, mas os métodos que lhe
permitiram achá-las; é preciso fazer dele, não um indivíduo admiravelmente ensinado que, graças às
424
recordações de sua educação e aos hábitos que tiver
contraído em sua juvenilidade, se conduzirá como faria
um homem inteligente, mas um homem que pensa, que
sabe, que conhece e que se conduz segundo as luzes de
sua própria razão.
De acordo com suas idéias, publicou o Dr.
Leôncio de Carvalho o Decreto de 19 de abril de 1879,
reformando o ensino primário e secundário no
Município Neutro e superior em todo o Brasil, e deu
nova organização ao Colégio Pedro II, tornando
facultativa a freqüência do externato, restabelecendo a
cadeira de italiano, etc.
Ao Dr. Leôncio de Carvalho, sucedeu na pasta do
Império o Dr. Francisco Maria Sodré Pereira, e a este, l
Sr. Homem de Melo. O primeiro criou a Escola Normal
do Município Neutro, de acordo com o Decreto de 19 de
abril de 1879, e o segundo limitou-se a reformá-la.
Seguiu-se na pasta do Império o Dr. Rodolfo
Epifânio de Souza Dantas que, entretanto para o
governo com tanto ardor pelas questões de ensino
público quando o Dr. Leôncio de Carvalho apresentou às
Câmaras um extenso projeto de reforma, que deu lugar
ao notável parecer do conselheiro Ruy Barbosa,
extraordinário monumento de saber e erudição.
Daí por diante, até a proclamação da República,
destacam-se apenas o regimento interno para as escolas
públicas do primeiro grau do Município Neutro,
elaborado pelo Dr. Antônio Herculano de Souza
Bandeira e o parecer do barão de Tautfoeus em
contraposição às idéias da congregação do Colégio de
425
Pedro II, a qual se manifestara no sentido ser mantido o
sistema dos exames finais, com exclusão do exame de
madureza, que era sustentado pelo conselheiro Ferreira
Viana, então Ministro do Império.
“O plano de estudos, dizia o barão de Tautfoeus,
sobre o qual a congregação foi agora convidada a dar o
seu parecer, distingue-se das muitas reformas anteriores
que este colégio sofreu, depois que se começou a alterar
o plano de sua instituição primit iva, pela adoção de um
princípio que era expressamente enunciado como uma
das bases da organização dos estudos, e cujo abandono
foi, segundo a minha opinião, a principal causa da
decadência científica deste colégio, a saber: a
simultaneidade dos exames finais, feitos todos no fim do
sétimo ano e constituindo em seu conjunto o exame do
seu bacharelado, pelo qual o candidato aprovado em
todas as matérias obtinha o seu grau literário.
Este plano ficou em vigor por quase 20 anos
depois da fundação do colégio: são muito numerosos os
antigos estudantes daquele tempo, que se acham agora
em posição eminentes e que podem comparar os
resultados obtidos então com os que vemos hoje, depois
de adotado o funesto sistema do fracionamento dos
estudos, introduzido não em virtude de algum novo
princípio pedagógico mas arrancado gradualmente à
fraqueza de diversos ministros por mesquinhas con siderações de concorrência material com os colégios
particulares, quando o motivo expresso da fundação
deste colégio foi precisamente estabelecer um foco de
estudos literários que, por ser independente da maior ou
426
menos afluência de alunos, pudesse conservar -se em
uma altura literária e científica, superior ao nível g eral
da instrução secundária, dada até então, salvo algumas
aulas públicas destacadas, unicamente em colégios
particulares.
Este triste sistema de fracionamento não tardou a
produzir suas inevitáveis conseqüências. O professor
não piorou repentinamente, e por certo ninguém, que
possa comparar as duas épocas, dirá que ele seja agora,
a qualquer respeito, inferior ao dos primeiros vinte anos
do colégio; o contrário é evidente. Tão pouco há razão
para pensar que a raça brasileira tenha degenerado e que
a mocidade atual seja menos talentosa ou tenha menos
curiosidade intelectual e menor desejo de saber.
A inquestionável inferioridade dos resultados
obtidos agora não pode, pois, ter outra causa senão o
vício radical do atual plano de estudos, que,
desprezando a lei do desenvolvimento das faculdades
intelectuais na transição da meninice à virilidade, quer
em umas matérias colher frutos sem esperar a época da
maturidade e em outras semear, quando já está na
estação da colheita.
O professorado do colégio, consultado diversas
vezes pelo Governo sobre reformas dos estudos, opinou
sempre nesse sentido e recomendou, como primeiro
passo para todo melhoramento, a volta a este princípio
da unidade dos estudos humanitários, realizada pela
continuação das matérias até o fim do curso e pela
prestação de todos os exames finais no 7º ano. Creio,
pois, que para ficar coerente consigo mesma, para não
427
se por em desacordo com as leis da psicologia, com a
experiência feita no próprio colégio e com o exemplo
das nações mais adiantadas em instrução, a congregação
deve aprovar o plano de reforma, formulado pelo
Governo nessa sua principal idéia”.
Proclamada a República e criado o Ministério da
Instrução Pública, o primeiro ato do Dr. Benjamin
Constant, nomeado Ministro, foi a fundação do
Pedagogim, destinado a servir de centro propulsor da
instrução pública. Nesse instituto haveria um museu
pedagógico, conferências didáticas, laboratórios e
gabinetes de ciências físicas e naturais, exposições
escolares, uma escola primária modelo e publicaç ão de
uma revista.
Depois, publicou o eminente Ministro sua
reforma tão vasta quão detalhada, porém, por mais
reverência que nos mereça a magistral obra, ela se nos
afigura lacunosa, por ter banido do ensino o lado
humano, desde a psicologia até a lógica, substituindo
pelos chamados conhecimentos especiais, aqueles
estudos que mais têm contribuído para a crença no
progresso humano.
O discípulo, diz excelentemente A. Fouillée, é
entregue a uma sucessão de mestres, cada um dos quais
ensina isoladamente sua especialidade, resta saber se
uma série de especialidades forma uma verdadeira
unidade; se as forças intelectuais da mocidade, que são
também forças sociais, não são em partes desperdiçadas
por falta de concentração e direção.
428
Sob o pretexto de acostumar-se a mocidade
brasileira a observar, experimentar e induzir, sacrificou se o que nas ciências há de verdadeiramente educador, a
sua história, a sua filosofia, a sua poesia, à parte
puramente objetiva, “a enumeração e inventário dos
fatos e das leis”; e, deste modo, cortou-se barbaramente
o vôo da alma nacional para as mais altas regiões do
pensamento, e sua marcha para os mais nobres destinos
da humanidade.
Senhores, as nossas reformas sobre a instrução
pública, com raríssimas exceções, fazem lembrar a
anedota daquele inglês que, em uma de suas viagens,
encontrando uma casa de extraordinária acústica,
comprou-a por avultada soma, numerou as diversas
peças e fê-las transportar para a Inglaterra.
Ali chegando, reconstruiu a casa, dispondo as
peças na mesma ordem em que se achavam por ocasião
da compra; mas qual foi o seu espanto, quando, ao dar o
primeiro concerto, reconheceu que a casa tinha perdido
toda a sonoridade.
Da mesma sorte as nossas reformas sobre a
instrução pública não possuem sonoridade, porque não
passam de criações exóticas, em contravenção com o
nosso meio social, com os nossos usos, costumes,
tradições, tendências e aspirações.
São reformas que não repercutem na alma
nacional; não ecoam no coração do povo.
O projeto exige, além do conhecimento de língua
moderna, o estudo prático de duas línguas: seria
429
preferível que a exigência fosse pelo menos de quatro
línguas estrangeiras: francês, inglês, alemão e italiano.
Não é muito, desde que se atenda a que na Rússia
para a matrícula nos ginásios de mulher es se exige de
uma menina de oito anos o conhecimento de três línguas
de gênios tão diversos, como o russo, o alemão e o
francês.
É certo que os russos das mais elevadas camadas
sociais têm o talento do poliglotismo; mas Wallace vê
nesta aptidão especial um resultado mesmo da educação.
Senhores
vou referir
um fato
curioso,
interessante, que mostra quanto aproveita a um povo o
conhecimento de línguas estrangeiras.
Em 1873 o Ministro da Instrução Pública em
Yedo fundou uma escola de russo para iniciar os jove ns
japoneses nos progressos do Ocidente, principalmente a
Rússia.
O resultado foi essa obra maravilhosa, única nos
últimos tempos, a transformação de quarenta milhões de
homens em uma civilização nova e a subseqüente vitória
do Japão sobre a Rússia.
Foi encarregado dessa obra gigantesca Leão
Mateknikoff, autor do belo livro A Civilização e os
Grandes Rios Historicos. A edição dessa obra se acha
esgotada, mas existe um exemplar nas mãos do Sr.
Presidente, o Sr. Carlos Peixoto, e o líder da Câmara
que com S. Exa. forma um par homérico, poderá
informar se o que refiro vem ou não narrado
detalhadamente na introdução e escrita por Eliseu
Reclus.
430
Um mais exato conhecimento de nossa geografia,
tomada a palavra geografia em sua mais larga acepção,
no sentido não somente de descrição pitoresca da
superfície da terra, das montanhas que se elevam tantos
metros acima do mar ou dos rios, tantas léguas de curso,
mas ainda de influência climatérica (metereologia), de
influência geométrica e aritmética (território e
população), de influência física e química do solo e
subsolo (geologia e mineralogia), influência das plantas
e animais (botânica e zoologia) nos fará compreender
melhor nossa história, entrever melhor nosso futuro, e
dirigir melhor nossa política interna e externa, nossa
economia nacional e nossa higiene social.
Far-nos-á compreender melhor nossa história,
eliminando a rivalidade que se quer estabelecer entre os
rios Tietê e São Francisco.
Se o Tietê, corrente transversal, até hoje tem
exercido uma função eminentemente econômica, o São
Francisco, corrente ao mesmo tempo transversal e
longitudinal, por correr em forma de crescente ou
semicírculo, de sul a norte, tem exercido a dupla função
de economia e defesa nacional.
Ora, o Amazonas correndo transversalmente do
ocidente para o oriente e com a disposição longitudinal
de seus afluentes, está destinado a ser o eixo de toda a
nossa política, quer nacional, quer internacional.
Não há muito tempo dizíamos que se de cima de
nosso planalto, todo coberto de ouro e pedras p reciosas,
lançássemos o olhar para o extremo norte do Brasil, para
o Amazonas, essa monstruosidade geográfica, que faz
431
pequeno tudo que é grande no Brasil, uma fantástica e
mirabolante visão nos empolgaria o espírito, veríamos
diante de nós uma pátria de cuja grandiosidade futura se
pode avaliar pelas oscilações desmedidas desse
desmarcado pêndulo – o rio mar, com que a natureza
dotou o Brasil para servir de supremo regulador de seu
destino.
Afirmam os competentes que o Brasil foi ligado
ao continente americano por uma grande revolução
geológica; no século atual prevemos um acontecimento
ainda maior, que é a ligação de todos os Estados
brasileiros por linhas fluviais e vias férreas e a juntura
dessas linhas e dessas vias em um ponto determinado do
território nacional, o Recife, por exemplo, aos múltiplos
caminhos marítimos do mundo inteiro.
Só nos falta um estadista que queira ligar seu
nome à história da civilização, ligando todo o Brasil à
rede universal de comunicação e transportes.
Mas é principalmente do ponto de vista geológico
que o conhecimento da geografia se impõe, quer em
relação à economia, quer em relação à higiene social.
Quando o Sr. Ministro da Agricultura, tão jovem
quão competente, desmentindo assim o aforismo de
Bacon – Veritas filia temporis, nomeou a comissão
encarregada de organizar a carta geológica brasileira,
serviço de cuja direção se acha encarregado o professor
Orville Derbu, que tanto se tem imposto à admiração e
reconhecimento de nossos compatriotas, pelos serviços
prestados ao Brasil publicamos as seguintes linhas:
432
“Múltiplas são as influências do solo e subsolo
sobre o desenvolvimento social; mas suas se destacam
pela sua magna importância: uma econômica, relativa à
exploração das minas, outra higiênica, referente à
habitação e principalmente à alimentação das coletividades humanas em água potável.
Já se foi o tempo em que se considerava uma
fonte sã, porque era clara, fria e agradável ao paladar.
Hoje nem mesmo as análises bacteriológicas e químicas
por si só bastam para se avaliar de uma fonte, porque o
exame não faz conhecer seu estado senão no momento
em que foi ele feito; mas não impede que a fonte venha
a ficar contaminada, dando-se, por exemplo, um caso de
febre tifóide em um dos pontos de infiltração. Neste
caso se fazem necessários os recursos da geologia para
determinar o ponto de infecção.
Em todas as questões de higiene, que dizem
respeito à circulação das águas, e são as mais
importantes, porque a água é elemento indispensável à
vida, principalmente à existência humana, tanto para a
alimentação, como para outras necessidades dos
indivíduos (abluções, banhos, lavagens), a utilidade da
geologia é manifesta pelas relações estreitas que
existem entre a natureza dos terrenos e a qualidade das
águas subterrâneas.
É assim que camadas de rocha ígnea, na
profundeza compactas e impenetráveis, mas na sua
superfície permitindo que resultante de sua trans formação, constituem excelente filtro, ao passo que as
433
camadas de argila formam verdadeiras paredes que
acarretam a estagnação das águas.
Nos terrenos calcários muito insuficientemente se
opera a ação filtrante, e em regra as fontes neles
existentes devem ser consideradas suspeitas.
Os terrenos xistosos oferecem drenagem à
circulação das águas, quando os xistos existem, não em
forma horizontal, mas levantados por movimentos
tetônicos do solo, uma das concepções mais engenhosas
e ao mesmo tempo mais complicadas dos geólogos
modernos.
Pelo que vem dito se podem avaliar as grandes
vantagens, que para a higiene social resultam do
conhecimento do solo e da organização das cartas
geológicas, sobretudo para o que diz respeito à captação
das águas potáveis e à luta contra a poluição deste
imprescindível elemento de vida.
Mas, além de importância capital das inves tigações geológicas na solução do grande problema das
águas potáveis, elas se prendem intimamente ao de senvolvimento das indústrias extrativas, pelas relações
existentes entre a natureza dos terrenos e os diversos
minérios, pedras preciosas e metais.
Oouro, nota um prático, aparece ord inariamente
em veios de pirita, em ditos de quartzo, em camadas de
quartzito ferruginoso (itabirito) e em cascalhos e areias
superficiais, sendo os primeiros os melhores e mais
ricos, como os do Morro Velho, Cuiabá, Santa Bárbara e
outros; seguindo-se os de quartzo e os de itabirito, como
434
de Congo Soco e Maquiné, etc. e em último lugar os de
cascalhos e areias.
Investigações recentes parecem confirmar as
vistas dos professores Gorceix e Derby sobre a gênese
do diamante.
“Naturalmente, escreve o último, toda s as rochas
mais novas do que a formação original e formadas dos
seus destroços podem conter o diamante; a formação
original é provavelmente da idade cambriana”.
A litomargia é a substância que acompanha mais
frequentemente os topázios, e no Brasil deve ser
considerada o melhor guia para a pesquisa deles.
Porém, mesmo sob o ponto de vista histórico, não
deixam de ser interessantíssimas certas conclusões da
geologia. Para nós tal é o caso, a que se refere Gerber:
“Tendo Elias de Beaumont com evidência demonstrado
que a idade das diversas partes do nosso globo, isto é, a
época do levantamento das mesmas acima do nível do
mar, deve ser anterior à mais antiga formação limítrofe,
cujas camadas se conservam horizontais, assim como
posterior à idade das formações que por efeito do
próprio levantamento, se acham inclinadas, é claro que
em vista do referido fato, de se acharem as formações de
transição (paleozóicas) horizontalmente estratificadas;
sem serem cobertas por formações secundárias ou
terciárias, fenômeno de que não consta haver completo
em outra parte do mundo, é claro repito, que esta parte
do continente sul-americano já se achava elevada acima
do nível dos mares em uma época anterior ao tempo que
em começavam os depósitos submarinos; ou, em outros
435
termos, o Brasil central já existia como um continente
extenso, quando o resto do mundo ainda estava
submergido no oceano universal, ou apenas surgiam
pertos dele com ilhas insignificantes. É pois, o Brasil, e
em particular o Estado de Minas Gerais, a quem toca a
honra de ser o mais antigo continente do nosso planeta.
Bem se vê que a geologia, além do alto valor
histórico, paleográfico, com o fim de notar as diferentes
idades do solo e reconstruir a figura da terra nas fases
sucessivas de sua longa evolução, interessa sobretudo ao
higienista, como a ciência que se destina a fazer
conhecida a natureza dos terrenos, que existem nas
diversas profundezas do nosso globo, e as relações que
eles mantém com a zona circunvizinha, por onde cir culam as águas subterrâneas.
Referindo-se à lógica, não trata o projeto de
dialética da teoria sublime e sutil do silogismo, de que
fala Diderot, mas da ciência das idéias, do que os
alemães chamam idenkund.
Neste sentido a lógica é tão necessária à investigação da verdade, com a hermenêutica à aplicação
do direito.
Com efeito, como investigar sobre qualquer ramo
do saber humano sem se saber o que é observação e
experimentação, indução e dedução, análise e síntese,
sem se conhecerem os processos especiais da matemática, da física, da biologia?
A base do saber, real positivo, é a teoria do
conhecimento, quando estuda o mecanismo do pensamento e indaga o critério da certeza.
436
Descartes, escreve Arthur Schopenhauer, passa
com direito como pai da filosofia moderna: antes de
tudo, e de um modo geral, porque levou a filosofia s
sustentar-se sobre seus próprios pés, ensinando os
homens a fazerem uso de sua própria cabeça em lugar da
qual funcionaram até ele de um lado a Bíblia e de outro
Aristóteles; porém, mas particularmente, e em um
sentido mais restrito, por que foi o primeiro que
apanhou o problema em redor do qual gira desde então
toda a filosofia: o problema do ideal e do real, isto é, a
questão de saber o que há de objetivo e subjetivo em
nosso conhecimento, ou, por outras palavras, o q ue é
preciso atribuir a nós ou às coisas diferentes de nós. Eis
o problema; e desde que ele foi posto, há 200 anos, o
esforço principal dos filósofos tem sido distinguir o
ideal, isto é, o que pertence a nosso conhecimento como
tal, do real, isto é, o que existe independentemente de
nosso conhecimento, e estabelecer assim de um modo
estável a sua mútua relação.
Acreditavam os positivistas que bastava uma
classificação das ciências constituídas para se ter a
chave de todo o saber humano. Mas definir o objeto das
ciências, traçar os limites de suas investigações,
subordinar suas questões a um princípio de coor denação, a um processo lógico, não é tudo quando se
tem em vista, além dos conhecimentos adquiridos, o
progresso do saber humano, a descoberta de novas
verdades, a exploração de mundos desconhecidos. É
preciso, além do conhecido, dar conta do que resta
conhecer e do modo porque há de ser conhecido.
437
Somente assim se terá essa Suma Ciência, que sonhou
Leibniz, em substituição a Suma Teológica de S. Tomás.
A teoria do conhecimento, conforme nota Lachelier, dá lugar a dois estudos distintos: um psico lógico que tem por objeto a engrenagem de nosso
mecanismo representativo, e outro lógico, que tem por
fim indagar as relações dos fenômenos com o
pensamento.
Dentre os discípulos de Kant, uns atribuem uma
combinação artificial ao mecanismo do pensamento com
o exagerado aparelho das instituições e dos conceitos a
prior; outros entendem que é preciso restringir o
domínio do a priori a explicar o conhecimento por uma
combinação menos artificial que a das formas ou
categorias do pensamento.
Assim Fichte e Hegel entendem que a filosofia
deve vir de um ponto mais elevado que o da simples
forma do pensamento e das adversidades de intuições,
isto é, deve vir das funções das atividades internas, que
são a essência mesma do pensamento.
Que será, porém, esta atividade interna do
pensamento? Será um modo especial de crer alguma
coisa dos objetos, alguma coisa de imediatamente certo
e necessário, que não se acorda com os dados da
experiência, conforme entende Spir, ou não será senão
uma função, que só se desperta ao contato da
experiência, porém que traz em si mesma uma certeza
imediata e absoluta?
“Não chegaríamos nunca a conceber o princípio
de identidade, diz Lachelier, se a intuição de nossas
438
representações não nos oferecesse objetos constantes,
nem o princípio de razão, se não achássemos na
experiência objetos iguais entre si, ou pelo menos
sensivelmente iguais. Esta condição empírica de
formação das leis lógicas não tira co isa alguma a seu
caráter de a prioridade”.
Mas o pensamento não se satisfaz em não se
contradizerem os dados da experiência, quer descobrir
entre eles uma ligação, uma coordenação. Tal é a função
primordial do pensamento, e o principal de razão. A
igual a B, B igual a C, logo A igual a C, não é senão a
expressão mais simples desta função.
É uma necessidade do espírito exigir que os fenô menos se encadeem, sejam conexos entre si.
Mas esta conexão existe realmente, isto é, aquela
necessidade do espírito corresponde a uma realidade
entre os dados da experiência?
Para Wundt esta realidade existe efetivamente, há
conexão entre os dados da experiência, e então o
mecanismo do espírito é antes um aparelho que ilumina
a realidade existente do que um modelo, sobre o q ual é
calcada uma ordem de coisas, que, se pode dizer, não
existia antes dele, conforme pensavam os filósofos
gregos.
Tratando o projeto de sociologia, cumpre notar
que a associação é um princípio ainda mais genérico que
a gravitação.
Até hoje a tendência dos cientistas tem sido
subordinar todos os fenômenos do Universo à lei da
gravitação, em virtude da qual o Universo inteiro é
439
mantido não só na mais estreita solidariedade, porém
ainda na mais íntima continuidade.
Um mesmo princípio, diz Mismer, liga o ma is
pequeno corpo ao maior através do espaço inter planetário; o organismo mais humilde ao mais complexo
através das camadas geológicas, a humanidade a sua
moradia terrestre, o homem a seu semelhante.
Segundo Mismer, este princípio é o da gravitação
que expulsará a teologia e a metafísica dos domínios da
sociedade, como já o fez nos domínios da física, da
química e da biologia.
Eu mesmo em uma dissertação apresentada à
Faculdade de Direito do Recife sobre a determinação do
momento histórico das leis, escrevi:
“É preciso convir que o insuspeito Cláudio
Bernard estabelecendo que os seres vivos são pequenos
mundos, em cujo meio os fenômenos se encadeiam
como em nossa terra e em todas as terras, que flutuam
no espaço, derribou as barreiras que separavam o mundo
orgânico do mineral, e predispôs assim os espíritos para
esta concepção mecânica do universo, pela qual todos os
segredos da natureza parecem prestes a desvendar -se em
face da luz derramada pela descoberta de Newton.
Kelvin, porém, o maior físico dos último s tempos,
fundado em cálculos matemáticos, chegou a conclusão
de que o éter não está sujeito à lei da gravitação.
Hoje, depois das investigações de William
Crookes sobre o estado pré-atômico da matéria, da
descoberta dos raios catódicos, dos raios-X, da dos
chamados corpos radioativos, da demonstração tão
440
brilhantemente feita por Gustave Le Bon, de que a
radioatividade não pertence a certos corpos somente mas
constitui uma propriedade geral da matéria, não se pode
mais dizer que o princípio regulador de tod a
solidariedade e continuidade universal, princípio no
qual se resolvem todas as leis do mundo orgânico e
inorgânico, seja a gravitação, e sim a sociabilidade,
principal manifestação da energia primordial do
universo, e, portanto comum a todos os átomos,
moléculas, células, órgãos animais, Estados.
Esta energia suprema que, apesar de imponderável, intangível, invisível, enche todos os pontos do
espaço e todos os momentos do tempo, servem de laço
aos diversos mudos e penetra todos os corpos, é o éter,
no qual Newton, com o seu olhar genial, viu a causa da
gravitação.
“Eu procuro no éter a causa da gravitação,
escrevia Newton a R, Bayle em 28 de fevereiro de
1678”.
Pela existência dessa substância, ao mesmo
tempo, uma e múltipla e heterogênea, contínua e
descontínua, contínua descontínua, é que se explica
sufientemente a formação não somente do mundo
cósmico, mas ainda do mundo moral.
Montesquieu em uma definição que parece
resumir todo o passado científico do espírito humano,
disse que: leis são as relações necessárias que derivam
da natureza das coisas.
Mas, se nós não podemos conhecer a natureza
das coisas, senão podemos conhecer as relações das
441
coisas, não será mais exato dizer que a natureza das
coisas deriva das relações delas entres si?
E, deste modo, a sociologia não será a ciência
fundamental do saber humano, e todas as ciências,
mesmo as mais positivas, não serão ciências sociais?
Com feito, de que trata a matemática? Trata dos
corpos, sob o ponto de vista das quantidades umas de
relações às outras. De que trata a física? Trata dos
corpos sob o ponto de vista das moléculas umas em
relações às outros. De que trata a química: Dos corpos
sob o ponto de vista dos átomos em relação duns aos
outros. De que trata a biologia? Dos corpos sob o ponto
de vista das células em relação umas às outras.
A própria ontologia ou ciência da natureza das
coisas seria uma ciência eminentemente social, porque a
natureza das coisas deriva das relações destas entre si.
Com efeito, de tal sorte a natureza das coisas
depende das relações destas entre si, que toda alteração
nessas relações altera a natureza das coisas. É assim que
os corpos passam de sólidos a líquidos e gasosos,
conforme a alteração das relações das moléculas entre si.
A única ciência que, à primeira vista, pared e
escapar ao princípio da socialidade, é a psicologia, por
causa do esforço contínuo do Eu para a unidade; mas,
acredito, senhores, ter demonstrado em uma memória
apresentada ao Congresso Latino -Americano que a
psicologia, mais do que as outras ciências, s e baseia
sobre relações sociais.
A consciência, diz Boutroux, não é um desenvolvimento, um aperfeiçoamento das funções fisioló 442
gicas, é um elemento novo, uma criação. O homem, que
é dotado de consciência, é mais que um ser vivo, e mais
que um organismo individual: a forma na qual a
consciência é superposta à vida é uma síntese absoluta,
uma adição de elementos radicalmente heterogêneos”.
Se a unidade orgânica por si só não basta para
explicar a consciência, qual será a explicação que pode
ser dada do fenômeno?
Acima do indivíduo está a sociedade, e então por
que não procurar no meio social a gênese e o desen volvimento da consciência individual?
O cérebro, órgão de luxo em relação ao
funcionamento vital, propriamente dito, seria então um
órgão de primeira necessidade em relação ao funcionamento psíquico.
Deste modo seria o meio social que concorreria
para a formação do cérebro por meio do desenvo lvimento excepcional dos últimos centros da medula
espinhal.
A socialidade seria a fonte donde brota a
consciência.
Tal é o modo de ver de Durkheim, quando escre ve: “o grande serviço que os filósofos espiritualistas
prestaram à ciência, foi combater todas as doutrinas que
reduzem a vida psíquica a não ser senão uma eflo rescência da vida física”. E sem cair no espiritualismo,
acrescenta que “todos os fatos, de que não se pode achar
a explicação na constituição dos tecidos, torna-se
propriedades do meio social”.
443
De modo brilhante Draghicesco faz ressaltar que
a sociedade é a explicação causal da consciência.
“Os psicólogos, observa o perspicaz investigador,
não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e
adaptação ao meio social.
A consciência para eles é indiferentemente o
produto de uma ou de outra.
Ora, a origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não pode ser mais atribuída a influências
causadas pelo meio físico.
Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico é,
por assim dizer constante, invariável. Por outro lado,
estabelecemos também que a constituição orgânica do
homem é precisamente o resultado da adaptação a esse
meio. A adaptação, uma vez feita e consolidada em
hábitos para sempre invariáveis, não poderia mais ser
questão de novas adaptações, este meio não mudando
mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade, em a
natureza e no homem adaptado. Se, porém, ainda se
constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir
senão no meio social: sim, estabelecemos que é ele que,
por sua invariabilidade e pela luta pela vida, impõe a
adaptação.
De hoje por diante não seria mais possível pro curar explicação para consciência senão nas adaptações
às condições sociais. A consciência não pode ser o
produto senão do meio social, exclusivamente.
Senhores, do exposto se vê que estas três ciências
– psicologia, lógica e sociologia – se prendem, se ligam,
se combinam, formam um todo harmônico e constituem
444
a parte mais interessante de toda a pedagogia, pois que
diz respeito àqueles estudos que mais têm influído para
a crença no progresso da humanidade.
Portanto, dou o meu voto para a aprovação do
projeto, e dou-o confiando no honrado Sr. Presidente da
República, no qual vejo a encarnação do tipo do
verdadeiro estadista americano tão belamente descrito
por Horácio Mann.
O Sr. José Bonifácio – Apoiado, muito bem.
O Sr. Artur Orlando – Diz Horácio Mann:
“O primeiro dever dos nossos magistrados e dos
chefes da nossa República é subordinar tudo a este
interesse supremo. Em nossos países e em nossos dias
ninguém é merecedor do título de homem de estado, se a
educação prática do povo não tem o primeiro lugar no
seu programa. Pode um homem ser eloqüente, conhecer
a fundo a história, a diplomacia, a jurisprudência, o que
lhe basta aliás para pretender a elevada condição de
homem de estado, mas, se suas palavras, seus projetos,
seus esforços não forem por toda a parte constant emente
consagrados à educação do povo, ele não é, não pode ser
homem de estado americano”.
Tenho dito. (Muito bem; muito bem. O Orador é
vivamente cumprimentado e abraçado por todos os seus
colegas presentes).
(Transcrito de Reforma do Ensino, Rio de Janeiro, Jornal do
Comércio, 1907, 41 páginas).
445
5.
SOCIOLOGIA E TOTALIDADE
Para a maioria dos espíritos a natureza inteira não
passa de uma cadeia de contrastes, importando a
afirmação de um termo a negação do outro: finito e
infinito, uno e múltiplo, real e ideal, objetivo e
subjetivo, e assim por diante. Ao número destas
antíteses pertence a antinomia de indivíduo e sociedade.
Poucos são os moralistas, filósofos, políticos,
religiosos, artistas, que não consideram o indivíduo e a
sociedade como entidades distintas colocadas em
extremos opostos. Na Bíblia a salvação é sempre
individual. A torre de Babel, que devia garantir a
salvação geral, acabou pela confusão das línguas,
ninguém entendendo-se mais sobre o bem comum. Entre
os moralistas, mesmo tratando-se de moral social, o
princípio diretor das ações humanas é a consciência
individual.
Sob o ponto de vista filosófico Nietzche junta ao
omne individ um ineffabile de Schopenhauer, o
sentimento da distância, das Pathos der Distanz, que
coloca o “super-homem” acima da sociedade. Enquanto
os carneiros de Panurgio vivem em rebanho, o leão,
consciente de sua força desdenha o “pecurismo”. Em
política é clássico o antagonismo entre o indivíduo e o
Estado, e grossos volumes insinuam a tendência daquele
para o anarquismo e a deste para o despotismo.
446
É, porém, nas regiões da arte que se acentua mais
nitidamente a antinomia entre o indivíduo e a sociedade.
Tornar a obra de arte parte integrante de sua individualidade, imprimir-lhe o cunho de sua personalidade,
eis o que distingue o artista de vulgo, e lhe assegura a
admiração da posteridade. Pensar e sentir pela cabeça
dos outros, produzir somente com o que vem do
exterior, pode ser tudo, menos arte. A primeira condição
para ser artista é ter espontaneidade. Escusado, p ortanto,
é fazer esforço: o artista espera que chegue a inspiração,
e nada mais avesso a todo nariz de cera do que a
inspiração.
“Quantas vezes, escreve Guy de Maupassant,
constatei que a inteligência engrandece e se eleva,
quando vivemos só, que ela decresce e se abaixa, desde
que nos misturamos com outros homens. Os contatos,
tudo que se diz e que se é obrigado a escapar, ouvir e
responder, como age sobre nosso pensamento! Um fluxo
de idéias vai de cérebro em cérebro, e se estabelece uma
média para toda extensa aglomeração de indivíduos. As
qualidades de iniciativa individual, de reflexão judiciosa, e mesmo de penetração, de todo homem isolado,
desaparecem desde que a pessoa se junta a um grande
número de outros homens”.
Toda grande obra de arte é mais uma criação do
homem que uma imitação da natureza. Por isso, a
suprema expressão de arte é a música, filha tão -somente
da alma do artista a exalar -se em ondas de harmonia. A
antítese, porém, não existe: o indivíduo e a sociedade,
considerados isoladamente, são puras abstrações sem
447
existência real, sem realidade objetiva. O antagonismo
entre o indivíduo e a sociedade na passa de pura ilusão:
o indivíduo e a sociedade são forças polares, que se
completam formando o ser indivíduo -social ou a
entidade sócio-individual.
“Não há senão um meio de individualizar as
pessoas, nota A. Fouillée, é socializá -las; não há senão
um meio de socializar as pessoas, é individualizá -las.
Para alargar as funções do organismo público, é preciso
tornar mais larga a personalidade de cada um de seus
membros; mas a recíproca não é menos verdadeira: a
personalidade não se alarga senão pela extensão de seus
laços sociais e pelo engrandecimento da sociedade a que
pertence”.
Além de que o indivíduo e a sociedade não são
entidades distintas e opostas, sucede que a sociedade
não se compõe exclusivamente de unidades humanas, é
uma combinação binária de pessoas e coisas. Da
combinação do território e da população é que resulta a
existência das nacionalidades. Assim, o indivíduo, ao
mesmo tempo fator e produto da sociedade, não é o seu
elemento único: há ainda o meio físico que, associado
ao homem, forma a sociedade.
Bem se vê que a natureza inorgânica entra com
sua quota de matéria para a constituição das sociedades.
Exemplos: o ninho é condição necessária de toda
sociedade de pássaros, a colméia de toda sociedade de
abelhas, não falando nas cidades, com seus templos,
edifícios e monumentos, tratando -se de nações civilizadas. Para ver como a natureza inteira, orgânica e
448
inorgânica, se socializa, basta abrir um código e ler
qualquer de suas páginas.
O leitor se convencerá facilmente de que o direito
não é senão uma socialização das três ordens de
relações, físicas, fisiológicas e psíquicas, que se
prendem, se ligam, se combinam e se penetram
reciprocamente. O direito não é esse monossilabismo,
tão simples quanto falso, que imaginam os espíritos
unilaterais; sua gênese é simultaneamente física,
biológica e psíquica, filha da multiplicidade fenomenal
do universo.
Que significam os fatos jurídicos que modificam
a personalidade jurídica humana, que fazem com que as
pessoas gozem ou não de certos direitos, senão que a
natureza entrou para a gênese jurídica com todas as suas
diferenças de tempo, de lugar, de sexo, de idade, de
atividade?
Daí as instituições do casamento, da prosperidade, do domicilio, da prescrição e tantas outras,
que não passam de socializações da natureza, tenham
por base as pessoas ou as coisas, o tempo ou o espaço.
Os fatos jurídicos mais importantes, quer se trate da
aquisição, quer da extinção de direitos, o nascimento e a
morte, não passam de fenômenos puramente biológicos.
Nos códigos modernos não aparecem mais pessoas
figurando como coisas; mas não é raro ver coisas
elevadas à categoria de pessoas. Se da órbita do direito
passarmos à esfera da psicologia, notaremos que a
própria consciência individual, o eu, não é uma unidade
real, objetiva, mas uma atividade sintética, um
449
processus de socialização. Kant, com a profundeza de
seu olhar, já considerava a consciência uma síntese a
unificar elementos diversos, e afirmar que esta função
totalizadora é o traço característico de todas as
manifestações psíquicas.
Do mesmo modo pensa Spir: “Em nosso corpo
orgânico o todo governa as partes e a forma, a matéria,
enquanto ao mesmo tempo o todo é em cada momento
um produto mesmo do concurso de suas partes; o mesmo
se dá com o Eu”. Para Durkeim a consciência é um
processus sintético, que tem sua origem e desenvolvimento no meio social. No mesmo ponto de vista se
coloca Draghicesco, considerando a sociedade como a
explicação causal da consciência individual: “Os
psicólogos não fazem diferença entre adaptação ao meio
físico e adaptação social. A consciência para eles é
indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a
origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não
pode mais ser atribuída a influências causadas pelo meio
físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico e,
por assim dizer, constante, invariável. Por outro lado
estabelecemos também que a constituição orgânica do
homem é precisamente o resultado da adaptação a esse
meio.
“A adaptação, uma vez feita e consolidada em
hábitos para sempre invariáveis, não poderia mais ser
questão de novas adaptações, este meio não mudando
mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade na
natureza e no homem adaptado. Ser, porém, ainda se
constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir
450
senão do meio social; sim, estabelecemos que é ele que,
por sua variabilidade e pela luta da vida, impõe a
adaptação. De hoje por diante não seria mais poss ível
procurar explicação para a consciência senão nas
adaptações às condições sociais. A consciência não pode
ser o produto senão do meio social, exclusivamente”.
Reina completa solidariedade no universo, que,
da mesma forma que o nosso corpo, é dotado de
propriedades físicas, orgânicas e psíquicas. Calor, luz,
eletricidade, pensamento, tudo se relaciona, formando
um só todo, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, contínuo e
homogêneo e heterogêneo. Não seria difícil mostrar
quanto o sol, os insetos, os pássaros e os jardineiros
colaboram no desenvolvimento da beleza das flores, da
elegância de suas formas, do brilho de suas cores, da
suavidade de seus perfumes, e quanto por uma vez as
flores concorreram para se desenvolverem entre os
homens e os animais o senso e o gosto das formas, das
cores e dos perfumes.
Na economia universal os fenômenos físicos,
biológicos e psíquicos são solidários e interdependentes;
na economia social cada fenômeno é ao mesmo tempo
físico, fisiológico e psíquico. Daí diversas espécies de
fenômenos sociais (econômicos, jurídicos, estéticos)
sem que, entretanto, nenhum deles se possa dizer
exclusivamente econômico, jurídico, político, estético.
Assim é que se pode avaliar a insuficiência das
múltiplas teorias sociológicas tão -somente pelo seu
unilaterismo, considerando cada uma delas o meio, a
451
raça ou qualquer manifestação de psíquico individual ou
coletivo com o fator exclusivo da evolução social.
Rompendo com todo seu passado teorético de
uma finalidade das ações humanas, R. von Ihering, que
em Zweeck im Recht havia sustentado que a distinção
entre a natureza inanimada e o homem está em que no
mundo físico a causa engendra necessariamente o efeito,
ao passo que nas ações humanas predomina a vontade,
impondo a si mesma um fim e escolhendo os meios
próprios de atingi-lo, no livro, que é uma espécie de
cristalização de sua vida de sábio – Vorgeschicht der
Indo-Europaer – afirma positivamente que tanto no
mundo moral como no físico impera a lei da
causalidade, em virtude da qual os seres se desenv olvem
sob a influência das circunstâncias exteriores.
Partindo da origem comum dos povos indo europeus e analisando as transformações profundas, por
que passaram, e as modificações contínuas que neles se
produziram, o famoso jurista atribui umas e outras a
puras influências de habitat. À diversidade do solo
devem os gregos, os germanos e todos os povos de
origem ariana, suas aptidões particulares, seus traços
característicos, seus temperamentos especiais, em uma
palavra, sua individualidade étnica.
Todos os povos indo-europeus, escreve o sábio
alemão; se formaram desta maneira, pertencendo originariamente a um só e mesmo povo, por conseguinte, à
mesma raça, não se diferenciaram senão no curso dos
tempos, e é, portanto, pela história que eles se tornaram
o que hoje são. A raça é o produto sedimental de toda a
452
ação histórica da nação, ela não pode ser outra coisa, se
é verdade que a lei da causalidade também rege o
mundo humano. Nenhum povo foi dotado pela natureza
de modo diverso dos outros povos; todos saíra m das
mãos dela perfeitamente iguais; a diferença ulterior é
exclusivamente obra do desenvolvimento histórico. O
todo dos caracteres particulares não é senão o produto
das condições especiais de seu território, ou por outras
palavras, a raça e o solo. Onde, para os povos equivale a
como, e porque; a geografia é a história traçada de
antemão, a história é a geografia em ação.
Opinião bem diversa seguem os antropo -sociológos, sustentando que a causa determinante das
evoluções históricas é a pureza ou a mistura das raças,
ou, segundo a expressão que lhes é usual, a química das
raças. (1 ) Para estes, se a história registra as datas e os
detalhes dos acontecimentos, não é senão a histologia
que dá a chave do enigma, montando e desmontando as
molas da grande máquina da vida, tornando conhecidas
as verdadeiras causas das migrações, das revoluções,
das decadências, das renascenças. As raças se dis tinguem por caracteres especiais, e são esses caracteres
que determinam a função social de cada uma delas.
“As raças árabes, a raça indiana, já dizia um
velho escritor francês, são intuitivas, falta-lhes
dialética, falta-lhes controle; todos os grandes
fundadores de religião pertencem a estas raças. A raça
greco-latina, menos poderoso como intuição, era uma
raça dialética, organizadora, uma raça que agrupa,
classifica; é a ela que se deve o monumento católico,
453
monumento latino sobre uma base semítica. Lineu,
Jussieu, Blainville, eram espíritos latinos; Buffon um
semita. A raça galo-germânica, enxertada sobre a raça
greco-latina, parece acusar a presença das faculdades
dialéticas ao lado das faculdades intuitivas, e é a raça
mais notável, que a história constato. É a raça que
instituiu a sã teoria dos controles ou criterium de
certeza”.
Os próprios gênios, que aparecem como pontos
culminantes na história, os dominadores do tempo, e do
espaço, não escapam à influência da raça. Por mais
original que seja um grande homem, suas palavras,
gestos e ações conservam inalteráveis os traços da
origem comum, a feição da raça. Não se compre enderia
Goethe escrevendo os Lusíadas, Camões produzindo o
Fausto.
O grande homem, seja profeta, filósofo, poeta, é
um fundador, um revelador, um criador; suas produções
servem de lição, de modelo, de exemplo, mas são lições,
modelos e exemplos, que trazem o cunho da comunhão,
a que pertencem. Sim, existe uma alma coletiva, e os
semitas oferecem o curioso exemplo de uma raça que ao
mesmo tempo que sofre mudanças e modificações nos
países por onde passa, ao mesmo tempo que se adapta
aos usos e costumes estrangeiros, conserva inalterável o
cunho de sua individualidade primitiva, a ponto de
construir um povo à parte entre as nações, em que
adquire direito de cidade. Daí para os antropologistas e
etnólogos a necessidade de se estar prevenido com a
teoria exclusivista dos fatores mesológicos. Toda raça é
454
um produto do meio em que vive; os povos não surgem
no mundo predestinados para esta ou aquela missão
especial; sua vocação é determinada pelas circunstâncias
ambientais. Tudo isso é verdade; mas seria impossível
negar a influência decisiva do elemento étnico, como
prova a história da raça ariana.
As principais correntes da rala ariana foram os
celtas, que ocuparam a Espanha, e Bretanha e a Irlanda;
os helenos, os ítalos e os germanos, que se estabeleceram no meio-dia da Europa; e os latino-eslavos,
que invadiram o norte. Entre estas diversas correntes de
migração se distinguiram os helenos, os ítalos e os
germanos, representando cada um destes povos saliente
papel na civilização ocidental pela feição especial, com
que cada um deles entrou na luta jurídica. Os helenos se
afirmam como inteligência que arquiteta um ideal, os
romanos como sentimento que se afirma pela afinidade,
os germanos como vontade que reage contra os
obstáculos.
Assim, para os helenos o direito é uma arte, para
os romanos, uma religião, para os germanos, uma mecâ nica. Na própria biologia é preciso corrigir os exageros
de Darwin e Spencer, atribuindo a evolução dos orga nismos a causas puramente exteriores, quando a
explicação deve ser procurada antes em uma espécie de
desenvolvimento interno, de determinismo congênito. Em
seu notável livro Evolução dos Sexos, Geddes e
Thompson mostram como o desenvolvimento do pelo e o
brilho do colorido entre os animais machos são devidos
455
ao sexo. Já Alfredo Wallace atribui a beleza dos animais
do sexo masculino às leis gerais do crescimento.
Ora, assim como os fenômenos estéticos têm sua
origem e explicação no temperamento e desenvolvimento interno dos organismos, da mesma sorte os
fenômenos sociais não se podem dizer uma simples
resultante do meio exterior, físico ou mesmo social, são
antes uma questão de temperamento etnográfico. Dez
raças podem se misturar com uma outra, e, entretanto,
esta não cessar de manter no tempo e no espaço as
formas imanentes de sua constituição, os elementos
irredutíveis de seu temperamento. É preciso estudar as
raças em sua fisionomia particular, sempre idêntica a si
mesma através dos séculos e dos climas, e bem assim
suas diversas modificações sob a influência dos
cruzamentos, não somente para reconstituir o passado,
mas ainda compreender as grandes transformações, por
que estão passando as sociedades humanas sob todos os
pontos de vista, quer se trate de moral, quer de direito,
quer de economia, quer de literatura.
É fácil ver como as raças se distinguem por
caracteres especiais em relação ao movimento, jurídico,
religioso, literário.
Movimento Jurídico
Segundo o direito romano, que é o direito do
Velho Mundo, compete ao soberano regular de modo
absoluto as relações entre os part iculares e os poderes
públicos; no direito anglo-saxônico, que serve de base
456
às Constituições Americanas, a idéia capital é colocar os
individuais ao abrigo de qualquer ataque por parte do
governo ou dos particulares.
Movimento Religioso
A igreja católica é filha da alma latina, a alma,
por excelência, imperialista, mas de um imperialismo
cesariano, que impõe a escravidão em nome da
fraternidade.
Movimento Literário
Júlio Case, ocupando-se do célebre romancista
Gorki, salientou a grande dificuldade de compreender
uma raça estrangeira. Mais tarde, a propósito do drama
de Bjoernson, acima das forças humanas, repetiu a
mesma observação, ilustrando-a com as seguintes
palavras de Henrique Ibsen:
“Quanto aos franceses confesso que não posso
compreendê-los. São uma raça à parte, e não estamos em
condições, nem possuímos os dados necessários para
compreendermo-los. Nós outros escandinavos ou cosmo politas não devemos julgá-los, porque o faríamos
injustamente”.
O psiquismo, individual ou coletivo, não se
mostra menos unilaterista, considerando exclusivamente
fator social o grande homem, segundo pensa Carlile, ou
o “pecurismo”, no entender de Ammon. É da comunhão
da terra e do homem, da combinação do território e da
457
população, que surge a sociedade; mas não basta esta
interpretação global, resta determinar o traço
característico da fenomenalidade social, considerada
esta como o produto da fusão de todos os elementos:
físicos, orgânicos e psíquicos.
Segundo Korkonov, o fator social por excelência
é o futuro, da mesma sorte que o presente no mundo
físico e o passado no mundo orgânico.
“Um montão de pedra, escreve o distinto
professor de Petersburgo, se mantêm por um tempo
indeterminado, enquanto as condições de equilíbrio não
são perturbadas, ao passo que os seres vivos têm um
desenvolvimento, uma história, uma embriologia, que é
determinada segundo as forças que receberam desde o
início de sua formação. Cada feto recebe uma certa
provisão de energia, que é gasta depois pela adaptação
do indivíduo às condições exteriores da vida. Se as
condições exteriores são desfavoráveis, o gasto de
energia é maior; se são favoráveis, este mesmo gasto é
mais lento; porém, por mais favoráveis que sejam essas
condições, chegará um momento em que elas serão
completamente esgotadas. Os indivíduos não perecem
pelo acaso, mas poque gastaram toda sua energia na luta
contra as condições exteriores da vida”.
Na sociedade não se dá esse esgotamento, porque
os individuos são substituídos uns pelos outros. guiados
e inspirados sempre por uma força nova – o futuro. É
sempre para o futuro que os pvos têm os olhos voltados
não obstante o seu honroso passado, as suas gloriosas
tradições. Certamente o passado e o presente exercem
458
poderosa influência sobre a vida das sociedades, pois
todos sabem quanto as mais extraordinárias transformações sociais são devidas ao contágio ou à
hereditariedade; mas a influência decisiva é a imagem
do futuro. Daí três fatores sociais: as circunstâncias
presentes, as condições passadas e as influências fu turas. Entre as circunstâncias presentes se salientam o
solo e o clima; entre as condições passadas, os costumes
e as tradições; entre as influências futuras, as tendências
e as aspirações por um lado, e por outo, as descobertas e
as invenções.
Assim, as nacionalidades, além do solo, clima,
costumes e tradições, supõem novas idéias, novas
vocações, novas descobertas, novas invenções, que
constituem todas a mais poderosa alavanca de progresso
– o Ideal.
(Transcrito de Brasil, a Terra e o Homem. Recife, O Tempo,
1913, págs. 7 a 16).
NOTA
(1) Vide Gobineau, Essai sur l’Inégalitè des Races Humaines;
Lapouge, Séections Sociales.
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