MEDIAÇÃO DEZ 1ULTIMA222.p65

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MEDIAÇÃO DEZ 1ULTIMA222.p65
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Diretor
Pe. Rui Körbes, S.J.
ISSN 1808-2564
revista de educação editada e
produzida pelo colégio medianeira
Vice-diretor
Prof. Adalberto Fávero
Coordenador Administrativo e Financeiro
Gilberto Vizini Vieira
Coord. Comunitário e de Esporte
Prof. Francisco Alexandre Faigle
Coordenação Editorial e Revisão
Nilton Cezar Tridapalli
Luciana Nogueira Nascimento
(MTB 2927/82v)
Projeto Gráfico e Diagramação
Sonia Oleskovicz
Ilustrações
Ulisses Candal Sato
Fotografias
Arquivo Medianeira e autores
Colaboraram nesta edição
Adalberto Fávero, Claudia Furtado de
Miranda, Cristina Graeml, Fabiano Pinkner
Rodrigues, Geraldo Vieira de Magalhães,
José Vanderlei Dissenha, Juliana Cavassin,
Levis Litz, Luciane Hagemeyer, Luiz Carlos
Heleno, Luiza Pacheco, Lyziana Dela Bruna
Hiroki, Marcelo Pastre, Marcelo Webere e
Ramon José Gusso.
Tiragem
3.000 exemplares
Papel
Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo)
Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa)
Número de Páginas
52
Brincadeiras de criança
Geraldo Vieira de Magalhães ........................................................................................................................ 5
Lendo em outras frequências: O Clube da Leitura
Luciane Hagemeyer ....................................................................................................................................... 7
Quem é essa tal de Sociedade Civil?
Ramon José Gusso ........................................................................................................................................ 11
O caminho de Peabiru
José Vanderlei Dissenha ............................................................................................................................... 15
Dicas para você estudar nossa Língua Portuguesa...
Fabiano Pinkner Rodrigues ............................................................................................................................ 19
Enem 2009 - apresentação oficial das principais mudanças
Marcelo Pastre ................................................................................................................................................ 22
Enem: nem zero nem cem
Adalberto Fávero e Claudia Furtado de Miranda ......................................................................................... 25
EQUIPE PEDAGÓGICA
Educação Infantil e Ensino
Fundamental de 1ª à 4ª séries
Supervisora
Juliana Heleno
Coordenadora
Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro
Supervisora de 5ª a Ensino Médio
Claudia Furtado de Miranda
Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries
Coordenadora
Profª Eliane Zaionc
Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries
Coordenadora
Profa. Roberta Uceda
Ensino Médio
Coordenador
Prof Marcelo Pastre
Coordenador de Pastoral
Pe. Guido Valli, S.J.
Há quatro décadas o mundo começou a mudar
Cristina Graeml ............................................................................................................................................... 32
A pedagogia do Teatro do Oprimido e a formação do sujeito
Juliana Cavassin ............................................................................................................................................. 34
Na terra dos Leprechauns... Nas Irlandas...
Levis Litz ......................................................................................................................................................... 39
O dono da morte
Luiz Carlos Heleno .......................................................................................................................................... 45
Silêncio Sépia
Luiza Pacheco .................................................................................................................................................. 47
Na parede uma lembrança
Coordenador de Midiaeducação
Nilton Cezar Tripadalli
Lyziana Dela Bruna Hiroki .............................................................................................................................. 48
Comunicação e Marketing
Luciana Nogueira Nascimento
Croquete de posta branca
Marcelo Weber ................................................................................................................................................ 49
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio
Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que
devidamente citada a fonte e autoria.
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Prado Velho • Curitiba • Paraná
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Um convite para pensar
Natal, presentes, matrículas, material escolar
e uniforme, médico, dentista, Ano Novo, férias e...
vestibular! Não necessariamente nesta ordem,
milhares de assuntos ou tarefas ocupam a mente
da grande maioria das pessoas nesta época do
ano. A rotina, quase que automática, nos faz cumprir as tarefas uma a uma, deixando uma sensação de satisfação que talvez alguns confundam
com felicidade. A melhor parte fica por conta da
tomada de decisão. Não precisamos mais escolher presentes de Natal, eles são escolhidos, ou
melhor, "impostos" pelos milhões de comerciais
impressos, televisivos, virtuais ou megavisuais
dos outdoors. "Eu já sei o que eu quero..." é uma
das frases mais pronunciadas nesta época do ano.
E ela se aplica não só aos presentes de Natal, mas
a todas as outras escolhas ou decisões que temos
que tomar. A escola dos filhos, por exemplo, com
exceção dos muito pequenos (por enquanto), é
escolhida pela criança ou adolescente de acordo
com a decisão da maioria dentro do grupo de
amigos e amigas ou pelos anúncios higienizados
e impecáveis das instituições de ensino. E o que
dizer dos resultados de vestibular? Os números
milagrosos, e superfaturados, impressionam e
seduzem qualquer mortal desavisado. Mas basta
fazermos as contas para entendermos que não
batem número de vagas com número de aprovados. Teríamos que criar pelo menos o dobro das
vagas nas universidades e faculdades para abrigar os calouros de todos os centímetros/colunas
dos anúncios de jornais. Para engrossar esta vitrine que facilita todas as nossas escolhas, surgiu
o Enem, como os infalíveis produtos de comercial dos filmes de Jerry Lewis - basta usar uma vez
e todos os seus problemas estarão resolvidos.
Será? Aqui entra nosso convite para pensar! Fugir das fórmulas prontas, do marketing sedutor e
"enganoso", da "preguiça" de refletir e analisar por
um lado nos dá um trabalho extra, por outro nos
dá uma satisfação verdadeira quando alcançamos
um resultado esperado ou sonhado, nos dá a sensação de autores de nossa própria história, de
senhores de nossas escolhas. Poder acertar ou
errar por opção consciente e refletida é um direito de todos nós e um dever quando somos responsáveis por escolher para uma terceira pessoa.
Fica aqui o convite para ler, pensar e refletir e
não só isso. Nesta edição de Mediação, vamos viajar, conhecer pessoas, ampliar nosso conhecimento sobre o mundo que nos cerca e seus mistérios. E como não poderia faltar, nossa odisseia gastronômica continua. Confira e nos escreva.
[email protected]
Luciana Nogueira
[email protected]
CHICHO,
Porque você me recomendou, li seu texto do
Mediação. O que dizer? Que aquilo é pura poesia?
A um poeta?! Direi, então, que se trata de um
romance... de um romance seu com as palavras que
você escolhe tão bem, e com a viagem do
conhecimento que você tanto preza em apreender
para poder rapidamente dividir.
Lendo, senti-me voltar atrás no tempo e
rejuvenesci eras. Vi, ali, muito mais do que a
imagem do firmamento que você retrata com tanta
competência: vi a sua alma jovem, íntegra,
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incansável na busca da perfeição e de uma nova
superação. Tudo, em sua crônica, é intencional,
dosado, calculado... de uma beleza lenta,
progressiva, que não quer se esgotar, como um gol
de pênalti. Seu pensamento flui com a naturalidade
de quem seleciona batatas numa feira livre para nos
presentear depois com um delicioso soufflé.
Parafraseando Raul Seixas: alguns de nós somos
estrelas, você é uma constelação.
Parabéns, e um abraço fraterno.
LINCOLN HARTMANN
(sobre o texto “Memórias de um pretenso caçador
de estrelas cadentes”, publicado em Mediação nº 14)
BRINCADEIRAS
DE CRIANÇA
Por Geraldo Vieira de Magalhães
Às vezes, temos uma
tendência de substituir
uma prática por outra
mais “moderna”: mas
será que elas se
excluem? Não seria
possível fazer as novas
brincadeiras eletrônicas
conviverem com as boas
e velhas corridas de pé
descalço, entre outros
brinquedos?
M
Muitos desconhecem, pois lhes fogem à época. Outros tantos já não se lembram, pois se perderam no tempo. Não poucos, embora à distância, ainda as guardam na lembrança: as brincadeiras de criança...
As enormes áreas eram testemunhas de muitas alegrias, e as ruas proporcionavam não só o
caminhar, mas também o brincar. Os grandes
quintais eram concorridos, com todas as opções
que ofereciam, e suas frondosas árvores eram
fontes inesgotáveis de recursos, para o balanço,
a casa, o esconderijo...
Locais para diversões não faltavam, proporcionando possibilidades para as mais diversas
brincadeiras, como as de roda, a bandeirinha, a
amarelinha, o pique e muitas outras...
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Os pais não tinham lá tanta preocupação com
o andar de bicicleta, de patinete ou de carrinho
de rolimãs.
Geraldo Vieira de
Magalhães é psicólogo
(CRP 08/06392).
[email protected]
Mas os espaços tão amplos foram diminuindo. Os veículos tomaram conta das ruas e os grandes quintais cederam lugar aos mais variados tipos de imóveis.
Em paralelo, o setor tecnológico ampliou o
seu negócio. A TV, cada vez mais adentrou os lares, proporcionando um novo tipo de lazer. A comodidade oferecida encontrou apoio ante a gradativa redução dos espaços.
E aquelas brincadeiras, tão sadias e colaboradoras ao desenvolvimento infantil, foram sendo
deixadas de lado, esquecidas...
BRINCADEIRA DE CRIANÇA
Surgem os jogos eletrônicos, nas mais variadas formas e o computador cada vez mais aperfeiçoou essa modalidade de diversão. E assim lá
se vão muitas horas frente a esses estímulos audiovisuais.
Editora Larousse Júnior
Embora as vantagens, por um lado, existam,
há, por outro, desvantagens, como a falta de contato com as coisas da natureza, como
o sol e o ar puro, além do refúgio
na individualidade e o favorecimento às disfunções metabólicas,
como a obesidade e outras situações nocivas à saúde.
Energia artificial é necessária, inovações tecnológicas de
lazer devem ser estendidas à infância, mas não se pode esquecer da
força natural, da energia que nasce e cresce dentro de cada criança e que precisa ser libertada, desenvolvida...
Criança necessita de integração, socialização,
movimentação e espaço, dar asas à sua imaginação. E, para isso, nada melhor do que incentivar,
proporcionar e preservar algo que lhe é tão peculiar e inerente: as suas próprias brincadeiras. Espontâneas, criativas, naturais, elas são elementos
importantíssimos para um crescimento saudável
e, consequentemente, uma vida mais feliz.
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ANNA CLAUDIA RAMOS
O bom de ser criança é
brincar de qualquer coisa
que dê na telha: princesa,
pirata, caubói, jogador de
futebol... Opa! Minha tia
disse que só menino pode jogar futebol! Será?
O livro de Anna Claudia rompe preconceitos
e mostra que não há brincadeira de menino e
brincadeira de menina. O que existe, e é gostoso, é brincadeira de criança.
RITUAIS E BRINCADEIRAS
VERA BARROS DE OLIVEIRA
Editora Vozes
Esta obra mostra como os rituais e brincadeiras auxiliam
na formação da personalidade
e no desenvolvimento saudável do ser humano, em todas
as fases da vida. Contribui,
desta forma, para a formação,
manutenção e preservação
dos processos cognitivos, afetivo-emocionais
e socioculturais. Baseado em recentes pesquisas no campo da Psicologia e da Educação,
este é um texto escrito de forma didática destinado inicialmente a profissionais de Saúde e
Educação.
Lendo em outras
frequências:
O CLUBE
DA
LEITURA
Por Luciane Hagemeyer
Veja como as teorias da leitura podem
contribuir para embalar instigantes e animados
encontros de jovens leitores. E como um clube
da leitura consegue despertar o debate para a
literatura e por meio da literatura.
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Seria mais fácil fazer como todo mundo faz
sem sair do sofá, deixar a Ferrari pra trás
seria mais fácil, como todo mundo faz
o milésimo gol sentado na mesa de um bar...
Outras frequências, Engenheiros do Hawaii
E
Este artigo não está aqui para tentar convencer ninguém a respeito da importância do ato de
ler. Até porque parece que ler não é mais fundamental. Pelo menos é o que está escrito na revista Galileu deste último mês de outubro. De acordo com Pierre Bayard, professor de literatura da
Universidade de Paris, e Daniel Pennac, escritor,
“ler um livro da primeira à última página não é
necessariamente uma virtude”. Concordo. Jamais leria um livro de astrofísica do início ao fim.
Talvez não passasse nem do índice. No entanto,
o professor Bayard, em seu livro Como falar dos
Livros que Não Lemos?, afirma que “ser culto é
ser capaz de se orientar rapidamente em uma
obra, e essa orientação não implica sua leitura integral”. O que a revista não diz, no entanto, é que
para atingir este “nível” de cultura, não existem
atalhos. Ninguém chega ao milésimo gol sem
entrar em campo, sem fazer muita bola rolar.
Mas ainda não li o Bayard. Estou interpretando o que “alguém” escreveu sobre seu livro. Este
“alguém” registra que para o autor em questão
“a leitura passa por meios-termos como deixar
o livro fechado, ouvir falar sobre ele, percorrer
suas páginas...”. Concordo, afinal quem dá conta
de ler tudo o que há para ler? No entanto, este é
“um tipo de leitura”, entre tantos outros possíveis. E diz também que a luta do escritor Daniel
Pennac é pelo direito à não-leitura. Equívoco do
articulista: Pennac afirma que não precisamos ler
aquilo que não nos interessa. Daí a concluir que
não precisamos ler nada já é outra coisa.
Para finalizar, o redator do artigo propõe um
teste: “experimente discutir com seus amigos
Ulisses, de James Joyce. Provavelmente todos
terão uma opinião formada, ainda que nenhum
deles tenha lido de cabo a rabo o romance”. Que
maravilha! Todos são capazes de fazer uma resenha crítica sobre Ulisses! Não precisamos ler
nada. Basta ouvir falar sobre os livros ou ler coi-
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sas deste tipo, que saberemos o que é necessário saber. Seremos cultos. “Livre-se das velhas
ideias!” Esta é a chamada.
Acredito que leitores de verdade sejam aqueles que leem voluntariamente e sempre. Aqueles que leem uma grande variedade de materiais. Confiam em si mesmos como leitores. São
considerados “leitores” em relação aos demais.
Leem para estar informados sobre uma série de
assuntos. Leem para satisfazer curiosidades e se
sentirem recompensados por compartilhar outras experiências. Leem para expandir seu mundo para além do aqui e do agora. Colecionam livros e sabem reconhecer seus favoritos, pois já
os leram mais de uma vez. Recomendam leituras para os outros. Conversam com os outros
sobre o que leem. Conhecem autores, gêneros
e estilos variados. Analisam, criticam, ponderam.
Estabelecem conexões entre a leitura e suas experiências de vida e de leitura.
Sim, precisamos nos livrar das “velhas ideias”,
pois “todos nós” fazemos “tudo” isso desde criancinhas. Não precisamos de mais nada, este ideal já foi atingido. E superado. O longo caminho que
leva à capacidade “de se orientar rapidamente em
uma obra”, em que “essa orientação não implica
sua leitura integral”, como afirma Bayard, parece
já ter sido percorrido por todos nós.
O fato é que a leitura, como os demais valores que tomamos para a nossa vida, nunca foi
nem nunca será uma unanimidade. Sim, pois há
pessoas que simplesmente não gostam de ler,
assim como há pessoas que não gostam de futebol, o que causa, sem dúvida, espanto um pouco maior. Mas então, qual é o problema? Existe
algum mal nisso?
Ler, se informar, ter o que dizer, são coisas que,
acredito, ainda têm lá o seu valor. Na prática, dá
para perceber que a piazadinha até acha legal, mas
às vezes diz que é chato, demora, ler é ter que
ficar um tempão se dedicando a apenas uma coisa só e eles têm que conversar com muita gente
pelo MSN, baixar umas músicas, estudar para a
prova, fazer uma pesquisa no Google e ainda assistir àquele programa da Nickelodeon. Realmente, parar tudo por causa de um livro, só se for
muuuuito bom, como aquela série da Stephanie
Meyer. E se eles entraram para o Clube de Leitura? Afinal, o que eles vão ganhar com isso?
As crianças, os jovens, todo mundo é um “ser
de vontade”. No entanto, cada um tem a sua maneira de sentir a realidade. Todos estão mudando o tempo todo, passando por novas experiências, envelhecendo, lidando com diferentes emoções e sentimentos. As rodas de leitura que são
realizadas no Clube priorizam as questões que
os alunos formulam a respeito não só a partir dos
livros que leem, mas também daquilo que vivem.
Imagine esta cena: se você der uma espiadela nos encontros semanais, verá grupos de cinco
ou seis pessoas conversando de modo entusiasmado sobre os capítulos que leram nos dias
anteriores ao encontro. Se observar mais de perto, verá que cada um deles possui alguns dados
escritos que envolvem o registro de conclusões
pessoais, a razão da identificação com um ou
outro personagem, a síntese do que foi lido, as
previsões para os próximos capítulos, uma lista
de elementos comparativos e contrastantes, as
relações de causa e efeito que entremeiam a narrativa, dados que são fruto de relações de inferência, descrições de cenários e personagens de
acordo com as imagens mentais produzidas. Ficção e vida real. Em um mundo repleto de “informação”, o clube da leitura está aí para ajudar na
construção de um discurso pessoal mais autêntico, na desconstrução de ideias pré-concebidas
e das fórmulas de comportamento.
O papel de cada leitor pode ser alterado a
cada encontro, dependendo da obra escolhida.
Na partilha de ideias, cada um é responsável por
fornecer subsídios e assistência para os demais.
Deste modo, os leitores mais tímidos são provocados a participar das conversas. Suas motivações, valores e objetivos são promovidos ao
assumir o papel que lhes cabe no grupo, tanto
ao expressar ideias que os outros não haviam
pensado, como tendo a chance de ouvir, falar e
discutir sobre os livros. Além disso, no Clube da
Leitura, os alunos desenvolvem as habilidades
sociais necessárias para o convívio em grupo,
ampliam sua capacidade de estabelecer relações
e de apreciar a literatura de maneira estética.
A proposta do Clube da Leitura procura ir além
da aprendizagem sobre a literatura (oferecer complemento ao estudo da matéria didática que a
grade curricular da escola oferece), pois se apresenta centrada na ampliação das dimensões que
envolvem a aprendizagem por meio (ampliar o
conjunto de estratégias de compreensão de leitura e das habilidades do pensar) e da literatura
(pois pretende enfatizar a formação de sujeitos
leitores e pesquisadores por meio do contato
com obras literárias e sua leitura integral, individual e partilhada, intensiva e extensiva).
Ok. Os integrantes do Clube da Leitura não
sabem quem é James Joyce. Ainda. Não ouviram falar de Ulisses, nem de Os Dublinenses, e
também não sabem nada sobre o personagem
Stephen Dedalus. Não têm uma opinião formada sobre estas obras. Talvez isso demore anos.
Mas já entraram em campo e estão a caminho
do milésimo gol, ou melhor, do milésimo livro...
*A proposta do Clube da Leitura foi incorporada pelo Departamento de Arte e Cultura
do Colégio Mediameira no ano de 2009. Tratase de uma oficina oferecida como modalidade
extracurricular (junto às demais atividades do
setor, como dança, teatro, artes plásticas, cinema e vídeo), sendo atualmente ofertada a todos os alunos da 3ª. à 6ª. série (4º. ao 7º. ano)
do Ensino Fundamental, das 18h às 19h 40min,
duas vezes por semana. O projeto foi um dos
finalistas da edição 2008 do Prêmio Vivaleitura,
uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC),
do Ministério da Cultura (MinC) e da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). O Prêmio Vivaleitura faz parte do Plano Nacional do Livro e
Leitura (PNLL).
(Comente este artigo em
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Luciane Hagemeyer é
professora do Ensino
Fundamental, formada em
Letras Português/Inglês
pela UFPR, com pósgraduação em Currículo e
Prática Educativa pela PUCRio e mestre em Estudos
Literários pela UFPR. É
responsável pelo projeto
do Clube da Leitura.
COMO FFALAR
ALAR DOS LIVROS QUE NÃO LEMOS?
PIERRE BAYARD
Editora Objetiva
Neste ensaio, Pierre Bayard trata uma questão
comum no dia-a-dia - como falar dos livros que
não lemos? Numa mesa de bar, numa reunião em
família ou numa roda de amigos é preciso ter
noções dos assuntos em pauta para não passar
vergonha. Bayard considera o ‘não-leitor’ uma
figura tão importante como o devorador de livros.
COMO UM ROMANCE
DANIEL PENNAC
Editora Rocco
Em ‘Como um romance’ Pennac questiona, através da recriação ficcional do ambiente de uma
sala de aula, a razão de os jovens não gostarem
de ler. Baseado em suas próprias experiências
como professor, ele ensina e aí reside todo o charme do livro - como recuperar nos alunos o gosto
pela leitura, um ato esquecido neste fim de século dominado pela comunicação em massa. Acima de tudo, Pennac quer mostrar que o ato de
ler é um ato de prazer e não de obrigação.
UM RETRA
TO DO ARTIST
A QUANDO JOVEM
RETRAT
ARTISTA
JAMES JOYCE
Editora Alfaguara
‘Um retrato do artista quando jovem’, romance
de estreia do escritor irlandês publicado em 1916,
é o despertar intelectual de um dos personagens
literários mais célebres. Semiautobiográfico, o livro conta o processo de transição do jovem Stephen Dedalus para a maturidade e o autoconhecimento. Ele deseja profundamente ser um artista, mas, primeiro, precisa vencer as forças que
reprimem sua imaginação - as convenções da sociedade. Nesta obra, Joyce apresenta o uso sistemático do monólogo interior - desde o primeiro
capítulo somos introduzidos na mente de Stephen
Dedalus e convidados a acompanhar seus pensamentos, reações e
os processos psíquicos de sua consciência. Trata-se de um dos primeiros exemplos da técnica narrativa do fluxo da consciência. ‘Um
retrato do artista quando jovem’ reflete a profunda relação de amor
e ódio que o autor manteve durante toda a vida com sua terra natal,
Dublin, e com a cultura que o formou.
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?
CIVIL
QUEM É
ESSA TAL DE
SOCIEDADE
Por Ramon José Gusso
Volta e meia ouvimos essa expressão:
sociedade civil organizada. Mas às vezes nos
falta preencher essa expressão com um
sentido teórico capaz de nos fazer ver com
mais clarividência as suas várias implicações e
nuances na vida das pessoas.
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O
O conceito de sociedade civil parece algo
ambivalente, difícil de apreender. É um conceito
utilizado genericamente por todos e em qualquer
circunstância. Lembro um colega que em um
evento participativo, quando foi indagado sobre
o seu vínculo (a quem representava), diante do
constrangimento de representar somente a si
mesmo, visto que todos ali representavam alguma instituição, um movimento social ou uma
ONG, preferiu dizer que era representante da
sociedade civil organizada. Mas quem é a sociedade civil? Assim, para não cairmos em constrangimentos ou em erros teóricos, é fundamental
termos claro a quem nos referimos quando genericamente utilizamos este conceito, ou seja,
quais grupos, quais interesses em jogo e quais
projetos políticos estão representados.
Segundo Evelina Dagnino (2004), o conceito
de sociedade civil assume uma forte centralidade no Brasil principalmente a partir da década
de 1990, quando há uma confluência perversa
entre dois projetos divergentes e antagônicos
de sociedade. Por um lado, há uma maior ampliação dos princípios e experimentações democráticas, como Conselhos Gestores, Conferências e Orçamentos Participativos e por outro
há a emergência do projeto neoliberal que busca diminuir o papel do Estado e transferir
funções para a sociedade civil. A confluência perversa é que para os dois
projetos de sociedade é necessária a existência de uma sociedade
civil dinâmica, ativa e propositiva. É perverso também porque, nos dois projetos, os
referenciais discursivos são
os mesmos, porém com
significados distintos para
participação, sociedade civil,
cidadania e democracia (Dagnino,
2004). Enquanto uma visão mais democrática de sociedade civil está ligada à cidadania, à conquista e ampliação de direitos por meio
da política, a outra leitura de sociedade civil utiliza-se das mesmas palavras para despolitizar o
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seu sentido semântico, ao reduzir cidadania à solidariedade, ação política coletiva às ações individuais, a luta por direitos à inserção no mercado. Reduz também sociedade civil e movimentos sociais ao Terceiro Setor ou, muitas vezes, a
Organizações não Governamentais.
Para uma melhor compreensão deste debate, é necessário resgatar algumas concepções a
respeito do conceito de sociedade civil. Uma das
primeiras definições de sociedade civil foi apresentada por Gramsci. Para o autor marxista, a
sociedade está dividida metodologicamente em
sociedade civil e sociedade política, o que caracteriza a noção de estado ampliado (Liguori, 2003).
A sociedade civil representa o espaço em que
são formulados e difundidos os valores morais,
a cultura e a ideologia de classe. Essa é composta por diversas organizações, tais como associações sindicais, políticas e culturais. Aqui a dominação de classe se faz não pela coerção, mas pela
produção de consensos ideológicos e direção
política, o que caracteriza a hegemonia (Costa,
2002). A sociedade política, para Gramsci, representa o conjunto de instituições que impõe coercitivamente a dominação de classe, tais como:
sistema judiciário, administrativo e policial. A junção entre sociedade civil e sociedade política
forma o Estado. Assim, o Estado é o conjunto de
instituições pelas quais uma classe exercerá seu
domínio coercitivo e direção intelectual e moral. Para Gramsci, as classes disputam a hegemonia; assim, a luta de classe se realiza tanto na
sociedade civil como na sociedade política. A
transição para o socialismo se daria antes da
conquista do poder ou do governo, começaria
com a luta para construir uma nova hegemonia
ou novo consenso ideológico na sociedade civil, o que caracterizaria a “guerra de posição”.
Assim, a passagem para o socialismo pressupõe a conquista de espaços políticos de formação de consensos em conjunto com a luta institucional (Nogueira, 2003. Duriguetto, 2007). A
inovação teórica colocada por Gramsci é, portanto, a divisão da superestrutura em sociedade civil e sociedade política, enquanto a infraestrutura continua inalterada, formando assim o
modelo tripartite gramsciano: mercado, sociedade civil e sociedade política (Costa, 2002).
Outro modelo interpretativo sobre a sociedade civil é apresentado por Cohen e Arato (1994), a
partir do referencial teórico de Habermas. Para os
autores, assim como em Habermas, a sociedade
se apresenta em um modelo tripartite, entre sociedade civil, Estado e mercado. Esse modelo apresenta certa autonomia entre as partes, o que caracterizaria, portanto, lógicas diferenciadas entre
o mundo da vida (sociedade civil) e o sistema (Estado e mercado). O mundo da vida seria composto por três componentes estruturais: a cultura, a
sociedade e a personalidade, o que permite aos
atores – por meio de processos comunicativos –
partilharem uma tradição cultural, que é reconhecida de forma subjetiva por todo o participante,
formando identidades individuais e sociais. Assim,
cada cultura cria suas instituições responsáveis
por normatizar, transmitir, reproduzir, integrar e
socializar determinadas tradições e identidades.
Cohen e Arato (1994) colocam que a estrutura jurídica desenvolvida é condição de existência de
uma sociedade civil, pois permite que haja a liberalização e mediação das partes. Assim, à sociedade civil pertencem os direitos de reprodução
cultural – liberdade de pensamento, imprensa,
expressão e comunicação; os direitos de integração social – liberdade de associação e reunião e
os direitos de socialização – privacidade, intimidade e inviolabilidade do indivíduo; ao mercado
pertencem os direitos de propriedade e contratos de trabalho e ao Estado pertencem os direitos políticos e de bem-estar. Dessa forma, o direito garante a existência de uma esfera pública em
que sociedade civil, mercado e Estado são diferenciados, mas estabelecem regras de convívio
por meio de uma democracia comunicativa. Porém, quando há penetração da lógica do sistema
(poder e mercado) sobre as instituições da sociedade civil, ocorre o que Habermas denomina de
colonização do mundo da vida. O caráter negativo da sociedade civil se daria pelo grau de colonização do mundo da vida que acarreta o comprometimento da ação comunicativa. Para Cohen e
Arato (1994), este modelo tem vantagens analíticas em relação aos modelos dicotômicos (Estado como esfera pública e sociedade civil como
esfera privada), pois complexifica o conceito, tornando-o uma categoria analítica que permite entender as múltiplas relações e influências que ocor-
rem tanto da sociedade civil para o Estado e Mercado ou vive-versa.
No entanto, para os autores, esse processo
também permite o surgimento de novas organizações na sociedade civil de caráter igualitário e democrático. A regulação jurídica não se
impõe exclusivamente como um meio de dominação; assegura também à sociedade civil autonomia, direitos e expansão de um espaço
público democrático. Assim, os autores atribuem um papel central para os movimentos sociais
na criação e ampliação desse espaço público. Os
movimentos sociais possuiriam tanto um papel
reativo de defesa diante de processos de colonização do mundo da vida, como de ofensiva (proposição e influência) sobre a lógica do Estado e
do mercado. (Costa, 2002). Sérgio Costa chama o
modelo de Cohen e Arato de vertente enfática,
uma vez que propõe um modelo normativo de
democracia e de sociedade civil. O autor apresenta
também a vertente moderada em que a sociedade civil seria uma categoria propriamente empírica destituída de princípios político-emancipatórios. Para essa corrente, sociedade civil seria entendida como o conjunto de instituições que formariam o espírito cívico e a consciência coletiva
de uma sociedade, capaz de neutralizar tendências desintegradoras advindas pela competição de
interesses privados. Tal perspectiva – adverte
Dahrendorf apud. Costa – pressupõe uma sociedade civil etnicamente homogênica.
No Brasil, o conceito de sociedade civil ganha
centralidade durante o regime militar, com função
político-estratégica de resistência à ditadura, marcada pela oposição ao Estado e sociedade e, nas
décadas seguintes, passa a funcionar propriamente com um conceito analítico-teórico, utilizado para
caracterizar a emergência do conjunto de práticas
associativas e dos “novos” movimentos sociais
no contexto da redemocratização (Costa, 2002;
Lüchmann, 2003). Durante a década de 1980, predominavam estudos marxistas, principalmente
aqueles voltados à interpretação gramsciana de
sociedade civil. Com o aprofundamento da democracia, novas organizações passam a se incorporar à sociedade civil, tais como movimentos sociais temáticos e ONGs; com isso, as estratégias
de ação da sociedade civil são reconfiguradas, tais
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de crenças, interesses, concepções de mundo [e]
representações do que deve ser a vida em sociedade”. Isto caracteriza a noção de projeto político
e significa dizer que os projetos políticos circulam
e estão em disputa pela ação desses vários atores: Estado e sociedade civil possuem projetos
políticos que podem ora se aproximar, ora se distanciar, gerando tipos de relações conflituosas ou
não. Nesse sentido pode-se dizer que também
existem disputas pela construção de consensos,
o que, numa leitura gramsciana, seria a disputa
pela hegemonia. Dessa forma, importa, também,
desvelar todos os sentidos e projetos políticos
que estão por detrás da utilização do conceito de
sociedade civil, evitando, portanto, tratá-lo em um
sentido figurado em que supostamente todos os
grupos e organizações e seus respectivos interesses estariam agregados de forma homogênea sob
o véu da sociedade civil.
ações estão cada vez mais voltadas para o estabelecimento de parcerias e cooperação com o
Estado. Essa reconfiguração se dá também graças à nova institucionalidade do Estado, principalmente no que se refere a sua abertura à participação popular, por meio de conselhos, orçamentos
participativos e conferências (Lüchmann, 2003;
Dagnino, 2004). E, para o entendimento dessa reconfiguração da sociedade civil, novos aparatos
analíticos são utilizados, principalmente aqueles
inspirados em Habermas (Lavalle, 2003).
A definição sobre o conceito de sociedade civil não é uma assunto restrito apenas a pesquisadores, o seu sentido é também disputado e preenchido por outros atores sociais, tais como o
Estado, o mercado e movimentos sociais. O que
importa compreender nesse debate é que nem o
Estado é homogêneo nem a sociedade civil possui o mesmo interesse. Assim afirmam Dagnino,
Olvera e Panfichi (2006, pg. 38): a ação política de
diferentes sujeitos é orientada por “um conjunto
(Comente este artigo em
[email protected])
Ramon José Gusso é bacharel e licenciado
em Ciências Sociais (UFPR), mestrando em
Sociologia Política (UFSC), bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e membro
da Ambiens Sociedade Cooperativa.
NOTA:
1
DEMOCRACIA
ADE CIVIL E P
ARTICIP
AÇÃO
DEMOCRACIA,, SOCIED
SOCIEDADE
PARTICIP
ARTICIPAÇÃO
Há evidentemente interpretações de sociedade civil anteriores, como de Hobbes, Hegel, Marx e aquelas produzidas por autores da corrente liberal.
REFERÊNCIAS:
ARATO, A.; COHEN, J. Sociedade civil e teoria social. In: AVRITZER, L. (Org.). Sociedade
civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
LUCIANA TATAGIBA E EVELINA
DAGNINO (ORGS.)
Editora Argos
A obra se constitui de uma seleção de trabalhos sobre ‘Sociedade civil e os novos espaços públicos de participação e deliberação’,
apresentados no III Congresso da
Associação Latino-Americana de
Ciência Política, realizado na UNICAMP, em setembro de 2006. Ela é representativa,
de certa maneira, de um novo patamar na produção acadêmica sobre essa temática. O conjunto
destes trabalhos se caracteriza, em primeiro lugar,
pelo abandono do registro celebratório e otimista
que marcou a primeira leva de estudos sobre o
potencial democratizador tanto da sociedade civil
como dos espaços participativos que a abrigam.
14
COSTA, S. Sociedade civil e espaço público. As cores de Ercília. BH, ed UFMG, 2002.
DAGNINO, E. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: En
Daniel Mato (coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de
globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004.
DAGNINO, E., OLVERA, A. J. e PANFICHI, A. Para uma outra leitura da disputa pela
construção democrática na América Latina. In: DAGNINO, E., OLVERA, A. J. e PANFICHI,
A. (orgs). A disputa pela construção democrática na América Latina. SP: Paz
e Terra; Campinas: Unicamp, 2006.
DURIGUETTO, M. L. Sociedade civil e democracia. São Paulo: Cortez, 2007.
HABERMAS, J. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, Cedec, São
Paulo, 1995.
LAVALLE, A.G. Sem pena nem gloria, o debate sobre sociedade civil nos
anos 1990. Novos Estudos Cebrab, São Paulo, 2003.
LIGUORI, G. Estado e Sociedade Civil: entender Gramsci para entender a realidade. in Ler
Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: International Gramsci society/Ed.
Civilização Brasileira, 2003.
LUCHMANN, L. H: H. Redesenhando as relações sociedade e Estado: tripé da
democracia deliberativa, Revista Katálysis. Florianópolis: ED. UFSC, 2003.
NOGUERA. M.A. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: COUTINHO,
N.C. TEIXEIRA, A.P. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: International Gramsci society/Ed. Civilização Brasileira, 2003.
O caminho de
PEABIRU
Por José Vanderlei Dissenha
Proporcionando desenvolvimento das cidades bem como um
resgate histórico-cultural importante para nosso desmemoriado
país, pesquisadores se debruçam sobre o Caminho do Peabiru,
que vem se tornando importante ponto turístico.
15
B
Bem antes de o homem branco explorar a
América, uma extensa malha viária atravessava
a porção sul do continente. O Caminho de Peabiru, que é uma rota milenar que ligava o Oceano Atlântico ao Pacifico e que percorria os países do Brasil, Paraguai, Argentina, Bolívia e Peru,
era o tronco principal desta malha viária. Ele tinha extremos nos oceanos Atlântico (em locais
que hoje correspondem a São Vicente, litoral
norte de São Paulo, e Florianópolis, em Santa
Catarina) e Pacífico (em pontos onde atualmente situam-se as cidades peruanas de Tacna, Arequipa e Moquegua).
O caminho possui grande importância histórica, pois, entre outras coisas, serviu para as andanças e até grandes migrações de povos indígenas e mais tarde, para a descoberta de riquezas, criação de missões religiosas, comércio, fundação de povoados e cidades.
OS PRIMEIROS EUROPEUS NO
CAMINHO DE PEABIRU
Aleixo Garcia um português que utilizou o
Peabiru, foi o primeiro europeu a fazer contato
com os Incas, e a penetrar o interior do Brasil e
do Paraguai em busca de um acesso às riquezas
desse povo, no ano de 1524, a partir do litoral de
Santa Catarina e rumando para oeste, seguindo
o caminho traçado pelos índios, chegou à região
de Assunção, no Paraguai.
Também pelo Peabiru passaram Alvar
Nuñes Cabeza de Vaca (considerado o descobridor das Cataratas do Iguaçu) em 1541 e Ulrich Schmidel em 1553. Jesuítas como Pedro
Lozano e Ruiz de Montoya também o percorreram em suas missões de catequese aos guaranis. Um século mais tarde, seria também pela
via do Peabiru que Raposo Tavares e outros
bandeirantes paulistas seguiriam para realizar
seus devastadores ataques às missões do
Guairá, no atual estado do Paraná.
16
Depois de 1630, quando os bandeirantes entraram no Paraná e destruíram as cidades espanholas e as missões dos jesuítas, o Peabiru foi
praticamente abandonado. O caminho ainda conseguiu retomar vida no final do século XIX, quando serviu, mais uma vez, para entrada de uma
nova leva de homens brancos, os colonizadores
pioneiros do interior do Paraná.
RESGATE HITÓRICO E CULTURAL
DO CAMINHO DE PEABIRU
No inicio dos anos 70, o arqueólogo Igor
Chmyz, da UFPR, descobriu alguns trechos de um
ramal do Caminho de Peabiru, na cidade de Campina da Lagoa, próxima a Campo Mourão. Ele
relatou essas descobertas e até então seus registros eram a única fonte de pesquisa sobre o
caminho na região. A partir disso, nada mais se
encontrava de registros atuais sobre o caminho.
Em 1995, quando era assessora de imprensa
da prefeitura de Campo Mourão, a jornalista Rosana Bond iniciou seus estudos sobre o Caminho de Peabiru, a partir de um pedido do prefeito Rubens Bueno. Rosana logo de inicio constatou que tal missão não seria tão fácil, pois fazia
anos que existia um silêncio quase absoluto sobre o assunto, tanto nas repartições públicas,
quanto nas escolas e na imprensa da região. E os
poucos vestígios físicos preservados, a cada ano
estavam desaparecendo. Então Rosana Bond visitou cidades como Curitiba, Maringá, Pitanga,
Fênix e o vizinho Paraguai, em busca de registros e documentos que contassem a história do
Caminho de Peabiru na região de Campo Mourão. Conseguiu documentos e apoio para estender suas pesquisas sobre o assunto, conversou
com pesquisadores e chegou a publicar um livro
sobre o Caminho de Peabiru (cf. Dicas e Indicações no final deste artigo).
O movimento visando resgatar o Caminho de
Peabiru do esquecimento logrou êxito em âmbito nacional e mundial, mas na cidade de Campo
Mourão, onde esse movimento se iniciou, o
tema voltou a cair no esquecimento. O que motivou um pouco esse esquecimento foi a mudan-
ça de Rosana Bond de Campo Mourão para Florianópolis, transferindo para Santa Catarina os
contatos com pesquisadores que trabalhavam
nos estudos sobre o caminho.
Em março de 2004, visando dar sequência ao
projeto de resgate do Caminho de Peabiru na
região de Campo Mourão e agradecer o apoio
recebido em suas pesquisas e trabalhos iniciais
na cidade, Rosana Bond reúne sua equipe de trabalho e de pesquisadores e lança, no Teatro Municipal de Campo Mourão, a ideia do pré-projeto
turístico e cultural “Caminho de Peabiru: o Compostela da América do Sul”.
No evento de pré-lançamento do projeto Caminho de Peabiru, foi definido que os municípios da região deveriam formar grupos pró-Peabiru, para incentivar pesquisas e levantamentos de
informações e vestígios do caminho, visando
buscar o apoio de empresários e autoridades,
convidando-os a aderirem ao futuro projeto turístico em torno do Caminho de Peabiru.
RESGATE DA MEMÓRIA DO
CAMINHO DE PEABIRU
O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o
Caminho de Peabiru na Região de Campo Mourão (NECAPECAM) surgiu pela necessidade que
seus integrantes viram de resgatar a história do
Caminho e de conservar alguns de seus trechos
que ainda existem na região. O NECAPECAM faz
explorações de estudos e pesquisas semanalmente ou quinzenalmente na região, registra, escreve, armazena dados para a sua pesquisa e
para ainda muitas outras que possam interessar.
O Núcleo de Estudos e Pesquisas de Campo
Mourão sobre o Caminho de Peabiru debruçouse sobre documentos, pesquisas, estudos nas
mais diferentes áreas para compreender melhor
a história do Caminho, para fazer desse Caminho
um projeto turístico como opção econômica de
alto alcance social.
Esse Núcleo de Campo Mourão buscou atrair
não apenas o turismo, mas também atividades para
os mais diferentes segmentos profissionais, como
o da gestão empresarial, da arquitetura, das enge-
nharias, da arte, oferecendo novas oportunidades
de modelos, baseados na cultura, na ecologia, no
próprio campo místico, buscando inovar a estrutura das cidades envolvidas, suas edificações, sua
comercialização, sua economia e sua rotina.
No projeto de resgate histórico, acontecem
investigações referentes aos acontecimentos
ambientais, econômicos, linguísticos, sociais e
culturais que envolveram tanto os índios guaranis como as populações que viveram e vivem
ao entorno da rota. Por essa razão, o projeto é
grandioso, não apenas na abordagem, mas principalmente em sua extensão. O que se pode verificar é o aumento da autoestima das populações do entorno, da busca das raízes e da identidade dessas mesmas populações.
O projeto desenvolvido pelo NECAPECAM
também busca uma maior compreensão dos fenômenos ambientais, que sofreram e sofrem
com a agressão feita ao meio ambiente pelas
desmedidas ações da exploração que os processos colonizadores do século XX provocaram.
Durante as peregrinações promovidas pelo NECAPECAM, também são desenvolvidas explorações que colhem informações inéditas e também
se conhecem caminhos, matas, documentos,
materiais líticos e vestígios naturais em pedras.
PEREGRINAÇÕES
As peregrinações são um jeito que o NECAPECAM utilizou para “batizar” os trechos que
prepara para um projeto de turismo regional.
Uma forma de turismo diferente, que visa à conscientização da preservação dos trechos e da
memória do Caminho de Peabiru. Em outubro
de 2004, foi organizada em Campo Mourão a primeira peregrinação pelo Caminho de Peabiru. Os
peregrinos atravessaram planícies, rios, reservas
florestais, serras, cachoeiras, passando por sítios, fazendas, igrejas, escolas e pequenas comunidades que lembram a história da colonização
da região. Com apoio logístico de muitos voluntários e acompanhamento de técnicos do IAP –
Instituto Ambiental do Paraná –, os peregrinos
caminharam o dia todo seguindo a rota original
17
do Caminho de
Peabiru. O trajeto
percorrido pelos
peregrinos tinha
sido demarcado
anteriormente
por estudiosos.
Após a primeira peregrinação realizada em
2004, outras peregrinações foram organizadas em 2005, 2006, 2007, 2008 e
2009, num total de oito peregrinações em seis
anos. Cada uma das peregrinações percorreu um
trecho diferente do Caminho de Peabiru na região e em cada uma delas foi feito um trabalho
de campo visando estudar um pouco mais a região que seria percorrida. Também foi feito um
trabalho de conscientização dos moradores locais sobre a história do Caminho de Peabiru e a
importância de se preservar sua história e os
pequenos trechos originais ainda existentes.
É muito difícil afirmar a rota exata do Caminho, historicamente, mas é possível traçar um
roteiro aproximado. Bond (2004) descreve o
tronco principal paulista começando em São Vicente e Cananéia, seguindo a direção do rio Tietê, no município de Itu, rio Paranapanema, rio Itararé, nascente do Ribeira do Iguape. Entrando no
Paraná, percorria, ainda segundo Bond, Doutor
Ulisses, Cerro Azul, Castro, Tibagi, Reserva Cândido de Abreu, Pitanga, Guaraniaçu, Corbélia,
Nova Aurora, Tupãssi, Assis Chateaubriand, Palotina, Guairá.
O tronco principal catarinense, continua
Bond, iniciava-se provavelmente no Massiambu (Palhoça), seguindo por Florianópolis, litoral
norte, rio Itapocu, Guaramirim, São Bento, Mafra. Esse tronco principal entrava no Paraná por
Rio Negro, Campo Tenente, Lapa, Porto Amazonas, Palmeira, Castro. Esses troncos principais
espalhavam-se por ramais, formando uma rede
complexa. E é por esses ramais que o NECAPECAM trilha em pesquisas e explorações históricas para definir sua rota turística.
18
Os estudos sobre o Caminho do Peabiru empreendidos pelo NECAPECAM na região de Campo Mourão estão contribuindo para dois importantes movimentos culturais: o de levantamento proto-histórico e histórico da região e o de formação
de uma rota turística baseada no turismo de peregrinação. Embora as origens e a construção do caminho de Peabiru permaneçam incógnitas, é fato
que os guaranis usavam-no como o caminho da
busca da Terra sem mal. Isso motiva a que o turismo de peregrinação adquira a característica de retomar tal tradição, ressignificando a proposta. Também instiga os pesquisadores a conhecerem melhor a nação guarani – berço do Guairá.
(Comente este artigo em
[email protected])
José Vanderlei Dissenha trabalha no
Departamento de Pessoal do Colégio
Medianeira. É formado em História pelas
Faculdades Integradas Espírita e faz Pós
Graduação em Ensino de História e Geografia,
na Facinter. Desde que conheceu o projeto de
resgate do Caminho de Peabiru, passou a
estudar o assunto e participou de quatro
peregrinações pelo caminho.
Site do Necapecam, com mais informações
sobre o Caminho de Peabiru:
http://www.caminhodepeabiru.com.br/
HISTÓRIA DO CAMINHO
DO PEABIRU –
DESCOBERT
AS E SEGREDOS D
A
DESCOBERTAS
DA
RO
TA INDÍGENA QUE LIGA
VA O
ROT
LIGAV
ATLÂNTICO AO PACÍFICO
ROSANA BOND
DICAS
para você estudar
NOSSA LÍNGUA
PORTUGUESA...
MAS NÃO É BEM ASSIM...
Por Fabiano Pinkner Rodrigues
O imaginário das pessoas
sobre sua língua ainda é o de
que ela é apenas um sistema
de formas utilizado para a
comunicação. Quanto melhor a
pessoa domina esse sistema,
melhor se comunica, aprende,
expõe seus pensamentos.
É comum entre os alunos ouvir que há
dificuldades quando o assunto é estudar
nossa Língua Portuguesa. Afinal, qual o conteúdo a ser estudado?
Em um outro contexto, quando o ensino de língua materna era basicamente o estudo das normas da Gramática Tradicional,
determinar o que deveria ser estudado em
determinado período, ou para determinada prova, era tarefa fácil. No entanto, a partir das contribuições da Linguística (ciência
que estuda as línguas humanas) para o ensino, por exemplo, de português, o olhar
sobre nossa língua foi alterado e a Gramática Tradicional foi incorporada a uma série
de outros aspectos linguísticos que devem
ser estudados, pesquisados, analisados.
19
Diante disso, o que pode ser definido é na verdade um comportamento diante dos fatos linguísticos (na oralidade e na escrita) que deve ser exercitado. De forma breve e objetiva, abaixo vão algumas dicas para você que quer, mas não sabe o que
fazer quando o assunto é estudar Português!
1. Considere sua língua materna uma realidade
complexa que vai muito além do simples “certo” ou “errado”.
2. As normas existentes na língua variam de acordo com o contexto, as pessoas, o espaço, o
tempo...
3. A norma que você aprende na escola é uma
das várias que você encontra no dia-a-dia. Ela
é chamada de norma-padrão e tem como referência a Gramática Tradicional.
4. Os livros “Gramática Tradicional”, “Gramática
da Língua Portuguesa”, “Minigramática”, “Curso de Gramática Aplicada aos Textos” e outros
mais são, todos, uma espécie de “manual” para
o uso da norma-padrão do português.
5. Como já dissemos que o “correto” e o “errado” na língua não é algo tão simples assim,
pode-se dizer que a norma-padrão é a forma
da língua que tem maior prestígio entre as pessoas. Sua importância está no fato de ela ser a
principal referência para a linguagem escrita.
6. É fácil entender que a escrita é fundamental
para todos, pois é através dela que podemos
ter acesso ao conhecimento acumulado pela
humanidade: sua história, ciência, filosofia...
7. Mas, também dissemos que a norma-padrão
é uma das diversas normas linguísticas encontradas na sociedade (na escrita e na oralidade).
8. Portanto, para um real domínio da língua portuguesa, é preciso transitar pelos diversos
contextos sociais (linguísticos) e suas mais variadas normas... com um olhar investigativo e
sem preconceitos.
9. Aí sim você terá um bom trânsito (lendo/escrevendo/ouvindo/falando) entre todos os enunciados, gêneros textuais, verbais e não verbais.
10. Para finalizar... leia, leia, ouça, leia... tudo, de
forma ativa-responsiva, investigadora. O res-
20
to é consequência. Não é só isso! Mas é um
começo de conversa!
PARA VOCÊ ENTENDER UM POUCO
DESSA HISTÓRIA COMPLICADA... E
SEM FIM!
Ensino de Língua Portuguesa: para uma real
mudança
“O essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender
sua significação numa enunciação particular. Em
suma, trata-se de perceber seu caráter de novidade
e não somente sua conformidade à norma” (BAKHTIN-VOLOCHÍNOV, 1999, P. 93).
O ensino de língua materna tem como um de
seus objetivos ensinar a norma-padrão. Essa norma está associada à escrita, que é, afinal, um dos
objetivos da escola: levar o aluno a dominar a
linguagem escrita de sua língua. A forma como
esse objetivo será atingido tem ligação com o
conceito de norma, de texto, leitura e produção,
assim como com a concepção de língua adotada. Teoria e prática precisam, portanto, caminhar
em conjunto.
No entanto, a preocupação com o ensino de
língua portuguesa tem sua atenção voltada mais
para as práticas e metodologias adotadas em sala
de aula e menos para a parte teórica que sustenta essas práticas. Esse descompasso tem gerado uma realidade de ensino que traz novas práticas, formas de se trabalhar com o ensino de língua portuguesa, mas é carente de clareza e fundamentação teórica. Um breve exemplo:
Os programas de educação e, por último, os
Parâmetros Curriculares Nacionais, juntamente
com os exames de avaliação do ensino, trouxeram para a realidade das escolas um olhar sobre
a língua menos “engessado” pelo normativismo
da gramática tradicional (GT). A heterogeneidade da língua foi colocada como parte integrante
do ensino e as mudanças que ela sofre com o
tempo como tópico de discussão. Além disso, o
texto passou a ser a base para o trabalho realizado no ensino de língua portuguesa.
Ao mesmo tempo, os exames nacionais
(ENEM, Saeb...) continuam exigindo o domínio da
norma-padrão da língua, do “conhecimento gramatical”, que faz referência ao conteúdo da GT,
documento de referência para a sistematização da
língua. Esse conteúdo aparece na leitura e interpretação de textos e é cobrado na sua produção.
Alguns “itens” foram adicionados ao ensino: coesão textual, coerência textual, progressão dos conteúdos de um texto, adequação linguística. Mas o
domínio da concordância, da regência, da colocação pronominal, a conjugação correta dos verbos,
a correta ortografia e acentuação das palavras continuam sendo essenciais e refletindo o “real domínio” sobre a língua portuguesa.
Ocorre então que, em alguns casos, ainda se
vê o trabalho centralizado na GT como realidade do ensino de língua materna. Em outros,
uma mistura de texto e gramática tradicional, ou
gramática tradicional no texto, que não deixa
claro o objetivo ou a concepção adotada de língua e ensino.
A falta de clareza sobre que concepção de língua deve perpassar as mudanças adotadas no
ensino de língua portuguesa faz com que as mudanças propostas e já existentes se transformem
apenas numa “casca” nova que envolve os programas de ensino de língua materna. Aparente-
mente, tem se caminhado para uma mudança significativa no trabalho com a língua portuguesa nas
escolas. No entanto, perguntas essenciais para
o desenvolvimento de metodologias e práticas
de ensino, assim como de exames de avaliação,
ainda parecem não atingir de forma devida a discussão linguística e educacional: “O que é que
se revela como o verdadeiro núcleo da realidade linguística? O ato individual da fala – a enunciação – ou o sistema de língua? E qual é, pois, o
modo de existência da realidade linguística? Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de
normas idênticas a si mesmas?” (BAKHTIN-VOLOCHÍNOV, 1999, p.89).
Dessa forma, resgatar a base teórica que originou as mudanças no ensino de língua materna,
assim como iluminá-la com novas contribuições,
é essencial para que as novas práticas e estratégias não acabem sendo apenas uma variação do
tradicionalismo gramatical.
Em outras palavras, teoria é tudo!
(Comente este artigo em
[email protected])
Fabiano Pinkner Rodrigues é professor de
Língua Portuguesa do Colégio Nossa Senhora
Medianeira. Formado em Letras pela UFPR, é
mestre em Educação pela mesma instituição.
POR QUE (NÃO) ENSINAR GRAMÁTICA NA ESCOLA
SÍRIO POSSENTI
Editora Mercado de Letras
A primeira parte deste livro expõe questões fundamentais relativas à natureza e ao aprendizado das
línguas, destacando os fatores internos e externos da variação linguística, a natureza das gramáticas
'naturais', dos 'erros' dos aprendizes ou falantes, e aspectos do funcionamento da língua ligados aos
contextos e valores sociais. Defende-se que o aprendizado de uma língua é um processo complexo,
mas, ao mesmo tempo, natural; que a escola deve privilegiar a escrita, mas que características da
oralidade são cruciais para compreender o processo geral. Na segunda parte, são expostos e
exemplificados os conceitos de gramática normativa, descritiva e internalizada, e se apresentam
algumas sugestões práticas de como trabalhar em sala de aula a partir da produção do aluno.
21
ENEM
2009
apresentação oficial
das
principais
mudanças
Por Marcelo Pastre
A fim de que se conheça
melhor os subsídios teóricos
que inspiraram o Exame
Nacional do Ensino Médio
(ENEM), apresentamos uma
seleção de documentos
oficiais que nos ajudam a
esclarecer princípios dessa
que vem sendo uma das
principais portas de entrada
do ensino Superior no Brasil.
22
C
Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem o objetivo de avaliar o
desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica. Todos os alunos concluintes e
egressos do ensino médio podem participar do
exame, que busca consolidar um modelo de
avaliação de desempenho por competência,
tendo como referência principal a articulação
entre o conceito de educação básica e o de
cidadania.
O exame também é utilizado como critério
de seleção para os estudantes que pretendem
concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni), além de ser utilizada por algumas Universidades como critério
de seleção para o ingresso no ensino superior,
seja de maneira complementar, inserida nos critérios de classificação, ou substituindo o próprio vestibular.
Neste ano, o Ministério da Educação estabeleceu algumas mudanças no Enem, assim como
definiu a possibilidade de sua utilização como
forma de seleção unificada nos processos seletivos das universidades públicas federais.
A proposta de mudanças teve como principais objetivos a democratização das oportunidades de acesso às vagas federais de ensino
superior, a possibilidade da mobilidade acadêmica e indução da reestruturação dos currículos do ensino médio.
O estabelecimento desta proposta surgiu do
reconhecimento da necessidade, importância
e legitimidade dos exames de seleção (vestibular) para ingresso no ensino superior no Brasil,
a partir do entendimento de ser um instrumento de estabelecimento de mérito, para definição daqueles que têm direito a um recurso não
disponível para todos.
Porém, os vários exames de seleção das diversas Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES) trazem consigo alguns problemas que as
mudanças no Enem deste ano buscaram contrapor: descentralização dos processos seletivos
que favorecem os candidatos com maior poder
aquisitivo – que podem diversificar suas opções
de escolha –, assim como a dificuldade de seleção das IFES localizadas em centros menores e
o direcionamento dos currículos do ensino médio das diversas regiões e cidades do Brasil.
A alternativa à descentralização dos processos
seria, então, a unificação da seleção às vagas das
IFES por meio de uma única prova. A racionalização da disputa por essas vagas, de forma a democratizar a participação nos processos de seleção para vagas em diferentes regiões do país, é
uma responsabilidade social tanto do Ministério
da Educação quanto das instituições de ensino
superior, em especial as IFES. Da mesma forma, a
influência dos vestibulares tradicionais nos conteúdos ministrados no ensino médio também
deve ser objeto de reflexão.
A partir da apresentação da proposta de mudanças do Enem em 2009, as IFES tinham autonomia de optar por quatro possibilidades de utilização do exame como processo seletivo:
Como fase única, com o sistema de seleção
unificada, informatizado e on-line;
Como primeira fase;
Combinado com o vestibular da instituição;
Como fase única para as vagas remanescentes do vestibular.
Como instrumento de discussão curricular
do ensino médio no Brasil, a nova proposta do
Enem buscou desencadear uma discussão entre os conteúdos exigidos para o ingresso na
educação superior e habilidades que seriam fundamentais, tanto para o desempenho acadêmico futuro, quanto para a formação humana.
Um exame nacional unificado, desenvolvido
com base numa concepção de prova focada em
habilidades e conteúdos mais relevantes, passaria a ser importante instrumento de política educacional, na medida em que sinalizaria concretamente para o ensino médio orientações curriculares expressas de modo claro, intencional e
articulado para cada área de conhecimento.
Enquanto exame nacional, o Enem é uma
avaliação que procura analisar o aluno nas áreas
do conhecimento incluídas na escolaridade básica do Brasil, de forma interdisciplinar e contextualizada em situações cotidianas, numa concepção de desenvolvimento de inteligência e de
construção de conhecimento com ênfase na avaliação de competências e habilidades com as
quais transformamos informações em novos conhecimentos, e que, reorganizados, permitem a
resolução de problemas.
23
Desta forma, o Enem busca discutir e questionar processos avaliativos que se caracterizam por
uma valorização de um conhecimento diretamente vinculado a um arsenal de respostas a problemas já discutidos e conhecidos, ou seja, a discussão sobre processos avaliativos reféns da
memória e do “decoreba”.
O objetivo do Enem é a aferição das possibilidades e habilidades cognitivas dos alunos, com
as quais eles compreendem fenômenos, enfrentam e resolvem problemas, com argumentação
e elaboração de propostas em favor de uma cidadania plena, justa e digna.
Assim, o Enem estruturou-se enquanto matriz de referência, com os seguintes eixos cognitivos (comuns a todas as áreas de conhecimento):
I. Dominar linguagens (DL): dominar a norma
culta da Língua Portuguesa e fazer uso das
linguagens matemática, artística e científica
e das línguas espanhola e inglesa.
II. Compreender fenômenos (CF): construir e
aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos
naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.
III. Enfrentar situações-problema (SP): selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados
e informações representados de diferentes
formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.
IV. Construir argumentação (CA): relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação
consistente.
V. Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores
humanos e considerando a diversidade sociocultural.
O novo Enem será composto por perguntas objetivas em quatro áreas do conhecimento: linguagens, códigos e suas tecnologias (incluindo redação); ciências humanas e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias e matemática e suas tecnologias. Cada grupo de testes será composto por 45 itens de
múltimpla escolha, aplicados em dois dias.
24
Como expressão de aprendizagem ou forma de conhecimento, a situação-problema é a
principal estratégia de avaliação do Enem, pois
desafia o aluno a mobilizar os recursos no contexto de situação-problema para tomar decisões
favoráveis ao seu objetivo ou metas, como um
desafio fundamental em nossas relações com
pessoas, objetivos ou tarefas.
Finalizando, reafirmamos as principais intenções do Ministério da Educação com as mudanças sugeridas e ocorridas no Enem: reformulação do currículo do ensino médio; questionamento sobre o vestibular nos moldes de hoje,
que produz efeitos negativos sobre o currículo
escolar, voltado cada vez mais ao acúmulo excessivo de conteúdos; sinalização para o ensino
médio de outro tipo de formação, mais voltado
para a solução de problemas; e o exame unificado como forma de promover a mobilidade dos
alunos pelo país, democratizando o acesso a todas as universidades.
(Comente este artigo em
[email protected])
Marcelo Pastre é coordenador do Ensino
Médio do Colégio Medianeira. Licenciado em
Educação Física (UFPR), é mestre em Mídia e
Conhecimento – Engenharia de Produção
(UFSC) e doutor em Educação (UNIMEP).
APRENDER NA VIDA E APRENDER NA ESCOLA
JUAN DELVAL
Editora Artmed
Neste livro, o autor parte da
comprovação do escasso
êxito da escola para uma proposta de mudança baseada
em conhecimentos sobre
problemas de aprendizagem,
história da educação, desenvolvimento infantil, formas de
transmissão de conhecimento, diferença entre aprendizagem escolar e a aprendizagem para a vida, entre outras
questões importantes.
ENEM:
nem
zero
nem
cem
Por Adalberto Fávero a Claudia Furtado de Miranda
“Num mundo com tantas
novidades tentadoras
E com sempre novos
começos, viajar é sempre
Mais tentador do que a
possibilidade de chegada.
A alegria está no caminho
e não na chegada.”
(Zygmunt Bauman)
25
P
O CONTEXTO E O ESPETÁCULO
Pensar, desde remota antiguidade, tem sido
um exercício sobremaneira dolorido. Nos dias
atuais, o reflexo e a rapidez das coisas e dos
próximos afazeres atropelam os homens e as
mulheres de um tempo sem tempo. Pensar dói
um pouco mais!
Mesmo que pensar pareça doer nas entranhas a muitos de nós, pobres mortais, seria importante conseguirmos fazer isso sem conclusões antecipadas, sem objetivo definido, sem
categorias predeterminadas e sem verdades
passadas. Pensar livre!
Não precisamos ter sempre algo a dizer sobre tudo e sobre todos para sobreviver, embora
devamos ter profundidade ao falar sobre algumas especificidades. Ao menos isso parece necessário termos consistência ao fazê-lo!
A atualidade tem escondido as florestas que
estão atrás das árvores tão atraentes e vantajosas
no jogo permanente em que se confunde o sujeito com a mercadoria. Assim, o fetichismo da subjetividade mata o autor e faz nascer sempre mais
o ator que a tudo representa, porém se lhe nega a
autoria. Já não pensa e nem cria! Consome! Atua!
Na sociedade dos consumidores, as coisas, a mercadoria e o sujeito se misturam para
que os primeiros também sejam mercadoria.
Nesse caminho, os compradores são treinados pelos homens do marketing a cumprir
seus papéis de sujeito; por isso, entra-se na
web para comprar um parceiro. Confundemse consumidor e mercadoria!
Para que olhar no olho do outro? Os desktops,
laptops e celulares permitem magistralmente aos
consumidores enterrar suas cabeças nas areias
e cultuar a verdade da imagem. Não é mais preciso o exercício doído de pensar e ir além do que
o culto coletivo, imagético e midiático proporciona. Afinal, a imagem e sua interpretação dizem
tudo. Dispensa pensar e criar! Já tudo está pronto para o consumo! O fetiche!
26
A propósito das mercadorias e consumidores, tais reflexões fazem sentido sobre o consumo e o insumo produzido pelas atuais discussões e pressões geradas pelo ENEM. Essa avaliação de caráter nacional, agora com o status classificatório para universidades, situa-se no rol da
prova Brasil, das avaliações das escolas americanas e/ou dos exames de proficiência protagonizados pelo Laboratório Latino-Americano de
Avaliação de Qualidade da Educação (Llece)...
entre outros tantos!
Guardadas as especificidades de cada uma,
trata-se de avaliações que pretendem medir resultados e qualidade de sistemas educativos e
em faixas etárias ou séries específicas. Trata-se
de avaliações de “fora para dentro” que não têm
por objetivo e nem levam em conta as peculiaridades de cada escola, dos projetos pedagógicos,
das condições de trabalho, das estruturas das
instituições, das culturas locais, do salário docente, da existência ou não da formação continuada
dos professores e assim por diante.
Por um lado os sistemas educacionais e as
escolas não podem se recusar a ser avaliados
além de seus muros, sob pena de perpetuação
de mesmices e de passar a vida a cantar loas a
seus próprios avanços e projetos. Isso vale menos (talvez) para as escolas particulares, em vista da demanda por alunos e pela concorrência
sempre mais antropofágica que enfrentam. A todas não basta olhar o próprio umbigo!
Por outro lado, esses mesmos sistemas e
escolas ficam à mercê da pressão externa num
processo de avaliação de resultados que não levam em conta suas peculiaridades e condições
de atuação e intervenção na formação de seus
alunos em seus próprios contextos.
Na verdade, parece-nos que qualquer avaliação deveria ter em conta três componentes que
atuam decisivamente na excelência da/na educação: - o contexto macro, com suas mudanças
vertiginosas e as implicações sociais/econômicas/culturais sobre as instituições e seus membros e o contexto micro, no que se refere às regiões, cidades, espaços rurais e cultura interna
da própria instituição; - as famílias e a importância e possibilidade que têm de valorizar e inves-
tir na vida acadêmica, as oportunidades/opções
que veem para o futuro de seus filhos e a escolaridade que possuem como elemento de influência determinante sobre os mesmos; - os sistemas educacionais e as escolas com suas estruturas, seus projetos pedagógicos participativos
ou não, a formação dos professores e a remuneração dos mesmos, o espaço formativo diversificado que oferecem e as possibilidades de parceria que de fato possibilitam com as famílias de
seus alunos.
Nesse sentido, o ENEM tem o grande privilégio de colocar em xeque o modelo viciado e excludente de acesso à universidade; de colocar a
leitura e o raciocínio lógico como referência; de
priorizar um espaço de reflexão sobre a mera
reprodução; de estabelecer parâmetros claros
de uma matriz curricular a ser privilegiada; de
privilegiar uma forma reflexiva sobre o meramente técnico...
No entanto, os resultados deveriam servir
prioritariamente para releitura e estudo interno
do ministério, dos responsáveis pelos sistemas
educacionais e pelas escolas como elementos e
subsídios para a inovação permanente e para realimentações constantes dos processos públicos
e privados da formação das próximas gerações.
Mesmo ainda optando por supervalorizar as habilidades e competências do fazer!
Ora, todo esse processo avaliativo e seus resultados fazem parte de um contexto marcado
por um mercado não só competitivo como recheado de opções em tratar a educação como
mercadoria e a população como clientes/consumidores capazes de gerar riquezas e investimentos crescentes no mundo dos negócios. De novo,
a mercadoria e o consumidor!
Avolumam-se nesse meio os dirigentes e gestores em inúmeras funções que são mais tecnocratas que educadores para quem os rankings de
escolas significam oportunidades de afirmar sua
supremacia e vender sua mercadoria: a educação.
Assim, além da classificação pelos resultados
obtidos, passou-se a falar em capital social, capital cultural, capital humano, capital integrado... e
isso com toda fundamentação econômica e socio-
lógica necessárias para garantir a confiabilidade.
Quando se fala em capital, não são mais os educadores e a formação que importam e sim os resultados; não são mais os educadores que decidem e sim o Banco Mundial e OMC e os similares
tupiniquins; não há mais sonho de transformação
do futuro e de oferecer a essa geração e à que
vem depois da nossa um mundo melhor, mais
justo, mais igualitário, mais fraterno e de maior paz.
Só existem mercadoria e consumidores!
Para não dizer que esquecemos ou que o
início desse artigo foi apenas um pretexto
para um assunto desconexo, importa insistir
que os consumidores seduzidos pelo marketing aplaudem e aderem aos pacotes mais
bem elaborados e consomem a mercadoria
bem embalada: “a educação”.
O problema e a solução, nessa
direção, não é o ENEM ou qualquer
outra prova externa. A questão é
como vamos recuperar nossa capacidade de sonhar com o futuro, ressignificar/redignificar a profissão do
professor (sem o que não haverá
mais e melhor formação intelectual e humana).
Parece-nos que tal transformação implicará reeducar nosso olhar
para o mundo, para as autorias e
para a repolitização (em seu amplo sentido) do ato de ensinar e de aprender e
do papel da escola como espaço público de interferência direta, olho no olho, entre adultos e
uma geração em formação. Voltar a ser sujeitos,
autores e protagonistas!
Nesse sentido, o ENEM não vale 0 e nem 100.
Pode se transformar em mais uma oportunidade de revalorização da educação e do educador...
ou se transformar em outra oportunidade de encher salas de aulas em preparatórios para fazer
mais esse Vestibular.
Enfim, bastará doravante ver o marketing, os
outdoors, a TV ou ler os jornais.
Optar apenas por ver a próxima cena! Se contentar em ser plateia e assistir!
27
Há um espetáculo sendo tecido que precisa de
autoria e excelência crítica e criativa! Na ativa, estão
apresentados “mocinhos e bandidos, personagens
centrais e figurantes”. Há palcos e plateias!
Há caminhos a se caminhar!
MUITAS PEDRAS NO CAMINHO:
ENTRE O IDEAL E O REAL
Na realidade educacional brasileira, a tendência é que as mudanças de todo o sistema sejam
pensadas pelos órgãos governamentais e pelos
centros de pesquisa acadêmica de educação.
Pode-se até explicitar que nos últimos anos muitas das mudanças no contexto da escola de Ensino Básico se projetou “de cima para baixo”,
como é o caso do Ensino Fundamental de 9 anos
e, mais recentemente, as mudanças no sistema
de avaliação do ENEM – Exame Nacional do
Ensino Médio.
Não se trata simplesmente de criticar as mudanças que estão ocorrendo no Ensino Básico,
pois a inserção da criança mais cedo na escola e
a possibilidade de um ensino reflexivo em que
as disciplinas curriculares dialoguem com a realidade social, são elementos centrais para uma
educação de qualidade voltada a um maior número de pessoas.
A questão que se instaura aqui – e com a qual
trabalhamos na primeira parte do texto – é justamente pela pouca consulta e participação dos
professores e educadores ligados diretamente
à escola nas mudanças e permanências necessárias para o projeto educativo do Ensino Básico. Estes, não raras vezes, veem-se excluídos
do sistema decisório e abstraídos dos seus saberes e urgências ligadas ao seu trabalho e à
formação de crianças e jovens.
Se a criatividade e a criticidade são as principais marcas do conhecimento e dos seus sujeitos de interação, é possível afirmar que não
existe um modelo único para a reflexão e o estudo sobre a ciência, a realidade e, muito menos, sobre a Educação.
Por si só, a tessitura do conhecimento carrega a dúvida porque não elimina o inesperado e
28
as certezas passageiras dos modelos que se dizem inovadores para uma realidade tão diversa
e desigual como a brasileira. Nesta direção, como
pensar a educação nos meios acadêmicos cercados por métodos definidos e modismos que
aprisionam as diferentes possibilidades de criação e inovação?
A complexidade da realidade, em qualquer
tempo, enfatiza a necessidade política de reconstrução do conceito de emancipação humana no contexto educacional. A concepção
de educação que lê esta necessidade, procura emancipar o ser humano (educadores e alunos) do imobilismo em relação à realidade em
que vive; e, principalmente, propõe educar/
ensinar para a autonomia intelectual e reflexiva. Neste sentido, emancipar significa formar
cidadãos críticos e ativos na construção de um
mundo mais justo e igualitário para todos. Eis
aqui a importância da escola e de seus educadores, como indica Paulo Freire (1983, p. 40):
“a práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”.
Ora, importa perceber a crise educacional
pela ausência de responsabilização pelo mundo (desigualdade social, crise ambiental, precarização do trabalho, individualismo etc). Esta
crise afeta a educação porque os referenciais
sociais, políticos e culturais que inspiravam os
princípios éticos e de solidariedade estão se
esfacelando... ou se transformando!
O processo de tessitura do conhecimento implica esforço, dedicação, emoção e prazer – sem
cair no reducionismo da motivação pela motivação. Envolve também um processo de avaliação e autoavaliação para que se possa reagir,
entender, contestar e reconstruir as múltiplas dimensões do conhecimento acadêmico e social.
Ou será que basta refazer um modelo e medir resultados para resolver a questão?
É diante destes enfrentamentos e necessidades educacionais que as medidas públicas
podem partir, principalmente, considerando as
experiências e as necessidades dos educadores e alunos que trabalham nas escolas do Ensino Fundamental e Médio.
A PROPOSTA DE AVALIAÇÃO DO
ENEM E A FORMAÇÃO DE ALUNOS
E PROFESSORES
Qual a relação entre a proposta de avaliação do ENEM e a formação dos professores?
Qual a relação com o currículo implantado nas
escolas? Que tipo de currículo atende as exigências deste tipo de avaliação? Como os conteúdos são projetados e quais as demandas metodológicas e avaliativas que a escola deve enfatizar no seu dia-a-dia?
Estas questões são centrais para que possamos pensar: uma avaliação de caráter nacional
pode pressionar para que a estrutura e o currículo da escola mudem? Ou seria mais adequado o
contrário? A primazia a ação pela “medição” de
resultados é suficiente?
Dar sentido a mensagens ambíguas e contraditórias no contexto em que surgem;
Vejamos o que propõe o ENEM para a seleção dos conteúdos e aprendizagem dos alunos:
Perceber similitudes entre situações, apesar
das diferenças que possam separá-las;
Avaliação mais humanizada, com foco na interdisciplinaridade e transdisciplinaridade ó
relação entre as áreas do conhecimento.
Reconstruir uma configuração global, um acontecimento ou um fenômeno a partir de marcas
e indícios de fragmentos da realidade;
Atenção especial às interpretações de textos
diversos: diferentes gêneros literários, gráficos, tabelas, imagens, charges etc.
Capacidade de agir diante do inesperado e
do acaso criando situações de aprendizagem
e, portanto, de desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, relacionais, organizativas e emocionais;
Conhecimento da realidade social (leitura de
mundo) por meio das diferentes áreas do conhecimento (disciplinas). O que se pretende
evitar é o famoso “decoreba”.
Hábito da leitura de jornais, revistas de diversas
áreas do conhecimento (pesquisa) e literatura.
Conhecimento da história da arte e da arte
contemporânea por meio de visitas a museus
e exposições do teatro, dança e do acesso à
arte plástica, à música e à pintura.
A formação dos jovens no Ensino Médio
deve priorizar:
Capacidade de aprender por si mesmo utilizando os ensinamentos de uma experiência
anterior;
Compreensão dos elementos centrais e dos
periféricos;
Capacidade de definir os meios para resoluções de problemas e desafios;
Capacidade para enfrentar, ultrapassar e inovar diante de situações inéditas;
Discernimento para reconhecer o impossível
do possível e criar possibilidades de ação diante de desafios.
Não há dúvida de que a proposta do ENEM
reitera a perspectiva da LDB porque destaca algumas exigências fundamentais na formação
das crianças e jovens brasileiros: “a difusão dos
valores de justiça social e dos pressupostos da
democracia, o respeito à pluralidade, o crédito
à capacidade de cada cidadão ler e interpretar
a realidade, conforme sua própria experiência”
(apresentação dos Textos Teóricos Metodológicos, ENEM 2009, p. 5).
Esta proposta também pode ser inovadora
porque propõe que o currículo e as práticas
pedagógicas aconteçam de maneira interdisci-
29
plinar e transdisciplinar. Entretanto, um currículo
com estas características demanda um espaço e
um tempo contínuo de estudo do professor e
entre os professores sobre os conhecimentos
das diversas áreas e das possibilidades de relações que podem ser estabelecidas com a realidade histórica e social, local e global.
Diante disso, poderíamos nos perguntar:
como os professores entendem tais conceitos e
são orientados no processo de organização dos
currículos e da metodologia de ensino? Como
estas demandas são analisadas a partir das necessidades e espaços de formação dos professores das escolas públicas e particulares?
A elaboração e compreensão de um conhecimento simultaneamente multifacetado e integral devem ser capazes de destacar as grandes
interrogações sobre a possibilidade de conhecer e de ensinar a condição humana (ética do
gênero humano) e a concepção de ambiente
como um sistema interdependente com os demais sistemas, do qual o ser humano faz parte
e é por ele responsável. Esta concepção de conhecimento científico e educacional destaca
uma visão de mundo complexa obtida pela flexibilização e ultrapassagem das barreiras disciplinares (dialogismo entre disciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade).
Em outras palavras, a educação e a formação dos professores precisam criar interdependências com a realidade concreta – dilemas, contradições e desafios – e com as inovações educacionais, considerando, no estudo do contexto
educacional, as práticas e os conhecimentos docentes. Daí a necessidade de mais investimento e
valorização na formação dos professores, tendo
em vista um espaço e um tempo reais para estudo e elaboração de práticas que referenciem um
currículo transdisciplinar, visando à melhoria do
ensino na escola pública e particular.
Ou será que basta um decreto ou uma equipe especializada elaborar o material didático necessário a ser cumprido e tudo fica resolvido?
Seria muito complicado que a avaliação do
ENEM fosse usada para fins mercadológicos pela
escola particular (treino no estilo vestibular para
30
as questões do ENEM). Como também, será muito difícil que a estrutura física e pedagógica continue dificultando, em muitas escolas públicas, o
desenvolvimento de um ensino de qualidade.
Nesta perspectiva, a formação do professor
pode ser realizada a partir das demandas estabelecidas pelo próprio ENEM, mas privilegiando o contexto local e regional da escola, e também a reflexão crítica que emana do contexto
social e político, priorizando e ultrapassando o
contexto de sala de aula e possibilitando a emancipação dos sujeitos envolvidos no processo
educativo. Entretanto, para que isto ocorra, é
fundamental que as configurações de poder
que determinam as possibilidades de autonomia do professorado também se transformem
no contexto das instituições de ensino.
Não se criam processos reflexivos, criativos
e críticos apenas exigindo atores competentes
para cumprir os papéis já determinados. Fazemse necessárias a autoria e a participação reflexiva e decisória. Ou não?
Um projeto de ensino transdisciplinar inclui a
gestão da política e das verbas públicas e a valorização dos saberes e da experiência das pessoas
inseridas na cultura local (educadores, alunos,
comunidade) como exercício de cidadania, buscando um maior equilíbrio social e econômico.
No contexto em que ocorre a formação continuada, os conceitos de autonomia e emancipação podem indicar as possibilidades que são oferecidas aos professores de interferirem em diversos espaços de trabalho (seleção curricular, aprendizagem dos alunos, planejamentos das aulas,
preparo para reuniões e seminários de estudos,
atendimento às famílias etc), e, portanto, de tomarem decisões no projeto pedagógico da escola. Em decorrência, a autonomia também se projeta como processo de formação continuada
quando o professor consegue decidir sobre os
rumos da sua carreira profissional. Isto implica
uma mudança de atitude que caracteriza a cultura da escola e das políticas públicas para a Educação, tendo em vista o projeto e o processo de
formação continuada dos professores e a formação integral e crítica dos alunos.
(Comente este artigo em
[email protected])
Referências:
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 1988.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983.
MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: complexidade,
política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena, 2000.
MIRANDA, Claudia Furtado de. A formação continuada de
professores: estudos sobre a complexidade nas
relações entre aprendizagem e desenvolvimento
no contexto escolar. Educere – PUC-PR, 2006.
Adalberto Fávero é vice-diretor do Colégio
Medianeira; é formado em Filosofia, Teologia
e História, com pós-graduação em Filosofia
da Educação (PUCPR) e em Currículo e
Práticas Educativas (PUCRJ). É mestre em
Educação pela PUCPR.
Cláudia Furtado de Miranda é historiadora,
mestre em Educação pela PUCPR e
supervisora pedagógica do Ensino
Fundamental e Médio no Colégio Medianeira.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Edição revista e
modificada. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
____. A C a b e ç a B e m - F e i t a : r e p e n s a r a r e f o r m a , r e f o r mar o pensamento, 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006.
MORIN, Edgar & LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da
complexidade. Tradução Nurimar Maria Falci. São Paulo:
Peirópolis, 2000.
A CABEÇA BEM-FEITA: REPENSAR A REFORMA, REFORMAR O PENSAMENTO
EDGAR MORIN
Editora Bertrand Brasil
Reformar o pensamento para reformar o ensino e reformar o ensino para reformar o pensamento é o que preconiza Edgar Morin. Na linha da reforma do
pensamento, ele propõe os princípios que permitiriam seguir a indicação de
Pascal- ‘Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto
quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes...’. Esses
princípios levam o pensamento para além de um conhecimento fragmentado
que, por tornar invisíveis as interações entre um todo e suas partes, anula o
complexo e oculta os problemas essenciais; levam, igualmente, para além de
um conhecimento que, por ver apenas globalidades, perde o contato com o
particular, o singular e o concreto. Eles permitem remediar a funesta desunião
entre o pensamento científico- que desassocia os conhecimentos e não reflete
sobre o destino humano- e o pensamento humanista- que ignora as conquistas das
ciências, enquanto alimenta suas interrogações sobre o mundo e sobre a vida.
AS PAIXÕES DO EGO: COMPLEXIDADE, POLÍTICA E SOLIDARIEDADE
HUMBERTO MARIOTTI
Editora Palas Athena
O livro apresenta questões da atualidade, como os modelos de pensamento complexo e sistêmico, bem como suas aplicações práticas em áreas como a ética, a
política, a administração, o desenvolvimento sustentado, a psicologia do ego e
os relacionamentos interpessoais. São discutidos autores como Edgar Morin,
Gregory Bateson, Humberto Maturana e Francisco Varela. Trata-se de leitura para
quem quer iniciar-se, ou mesmo reciclar-se, em temas como complexidade, pensamento sistêmico, ciência cognitiva não-cartesiana, transdisciplinaridade, biologia da cognição, psicologia do autoconhecimento e habilidades interpessoais.
31
HÁ QUATRO DÉCADAS
o
mundo
começou a mudar
I
Internet para pesquisa, internet para estudo,
internet para trabalho, para divulgar currículo e
serviços, internet para pesquisar preços, para
comprar e vender, internet para o lazer, para reencontrar amigos, para falar com quem está distante, para conhecer gente nova, para economizar telefone, para conversar com vídeo, para postar e para assistir a vídeos, para localizar endereços, para ver mapas... Internet, internet, internet...
Alguém que já tenha experimentado viveria sem?
Por Cristina Graeml
A invenção da internet, no
início dos anos 70, marcou
uma geração, criou novas
possibilidades e transformou
as relações. O inventor já
previa este resultado,há 40
anos. Agora, não é possível
viver sem ela...
32
Ao questionamento inevitável acrescente-se
outro, um tanto quanto perturbador. Como podemos ter atingido tamanho grau de dependência de uma tecnologia que até há pouco simplesmente não existia?
Em se tratando de internet parece-me que todas as perguntas impressionam. Volte à pergunta do parágrafo anterior. Releu? Agora impressione-se com a afirmação a seguir. Não importa
há quanto tempo você tenha sido apresentado à
internet ou qual o uso que venha fazendo desta
fantástica rede mundial de computadores, você
com certeza conheceu a tecnologia muito, mas
muito tempo depois de sua invenção. Duvida?
Diga lá: há quantos anos exatamente você visitou
um site pela primeira vez? Quando mandou seu
primeiro email? Dez anos? Quinze, que seja! Pois
a internet acaba de completar 40 anos. Isso mesmo: 40 anos! Embora tenha chegado ao Brasil com
duas décadas de atraso, já faz quatro décadas que
uma equipe de engenheiros americanos fez a
experiência que passaria a ser considerada o nascimento da rede: uma transmissão de dados entre
computadores de cidades diferentes. E nós, adultos de 40 anos, ainda nos surpreendemos com a
facilidade com que nossos filhos lidam com a internet, porque para nós esta jovem senhora é uma
adolescente!
Quer se surpreender de
novo? Pois saiba que para o inventor desse fenômeno da globalização a internet ainda engatinha!
“We are definitely in the informaLeonard Kleinrock
tion era, but in it’s very early stages”, disse-me Leonard Kleinrock em entrevista recente via Skype. Ao ouvir isso do homem que comandou a equipe responsável por aquela primeira
transmissão de dados entre computadores a partir
de uma central na Universidade da Califórnia, em
Los Angeles, em 02 de setembro de 1969, quase
caí dura. Primeiros estágios da era da informação?
Como assim? E eu? E você? E todo o resto do mundo, todas as pessoas que já se sentem suficientemente oprimidas pela atual avalanche de informação? Como é que ficamos nessa história? “É mesmo assustador”, seguiu Kleinrock. “Mas preciso dizer com conhecimento de causa que a rede ainda
vai evoluir infinitamente. Prevejo para as próximas
décadas a internet na ponta de nossas unhas. Isso
quer dizer que ela estará em absolutamente todos
os lugares: nos carros, nos ônibus, nas ruas, nos eletrodomésticos, nos móveis, em todos os cantos da
casa, da escola, do ambiente de trabalho, nos quartos de hotel. Isso já está começando a acontecer.
Mas no futuro será uma rede extremamente presente, embora invisível. Poderemos acessá-la quando
e de onde quisermos”. Pergunto se nem mesmo ele
se assusta com a dimensão que a internet possa tomar. “É assustador também para mim”, responde o
engenheiro de seu escritório em Los Angeles. E eu,
aqui em Curitiba, sigo atenta às surpreendentes revelações que me chegam pela via virtual. A imagem,
serena e nítida, do homem de 75 anos que na semana anterior respondera ao meu despretensioso
email com pedido de entrevista, vem acompanhada de um áudio limpo como o de poucas ligações
telefônicas internacionais. “Será preciso aprimorarmos nossa capacidade de filtrar o que é realmente
útil pra nós e usarmos a rede com sabedoria”. Apro-
veito a resposta e emendo pergunta pertinente ao
tema que ele acaba de abordar: “por que o senhor
não usa as redes sociais, adotadas por centenas de
milhões de pessoas mundo afora? Não o encontrei
no Tweeter, nem no Facebook ou no Orkut. O senhor também não está no MSN, ao menos não com
seu nome verdadeiro”. A resposta é rápida e objetiva. “Não uso mesmo nenhuma dessas ferramentas. Para mim são perda de tempo. Já passo boa
parte dos meus dias conectado. Considero as informações trocadas nas redes sociais pura perda de
tempo. Além do mais resta-nos tão pouca privacidade hoje em dia que não sinto a menor necessidade de ser seguido por ninguém. As pessoas tem
inúmeras maneiras de me encontrar e me encontram sempre que querem, ainda que fora das redes
sociais”. Sou obrigada a concordar. Encontrei o
email do professor Leonard Kleinrock com a ajuda
de uma amiga que mora em Nova York (avisada de
minha busca através de um tweet, de um scrap do
Orkut e de um recado no mural do Facebook, redes
que comecei a usar por força de curiosidade jornalística, mas que, para mim, tem sido úteis com freqüência cada vez maior). Por algum motivo esta
amiga conseguira achar o endereço eletrônico do
homem considerado o “pai” da internet no site da
UCLA, coisa que eu mesma havia tentado sem sucesso. Fato é que, por mais que almejasse fazer contato com ele, jamais acreditei que pudesse ser atendida com tamanha rapidez em meu singelo pedido
intitulado de “interviewer from Brazil”. A resposta
de Leonard Kleinrock chegou horas depois, digitada às 3 da manhã em Los Angeles! Ele realmente
fala a verdade quando diz que passa a maior parte
de sues dias (e noites) conectado e que as pessoas
dispõem de incontáveis maneiras de encontrá-lo.
Resta-nos encontrar a nós mesmos nesse labirinto
da era da informação e saber direcionar nossos passos na rede mundial de computadores, enquanto ela
própria ainda está aprendendo a andar!
(Comente este artigo em
[email protected])
Cristina Graeml é jornalista, repórter do Canal
12, TV Paranaense. É formada pela UFPR e exaluna do Colégio Medianeira.
33
a pedagogia do
TEATRO DO
OPRIMIDO
e a formação do sujeito
Por Juliana Cavassin
34
A perda de Augusto Boal em
2009 não significa que suas
ideias se perderam. Ao
contrário, elas continuam
bem vivas e espalhadas por
todo o mundo.
A
Augusto Boal (1931-2009) é conhecido como
dramaturgo, diretor teatral e político brasileiro.
Foi o criador de outra proposta de ensino do teatro, que também busca a formação do sujeito,
o método que hoje é conhecido no mundo inteiro como Teatro do Oprimido – T. O. Não é à toa
que no ano passado, o brasileiro foi indicado ao
Prêmio Nobel da Paz!
O TEATRO DE ARENA E O SISTEMA
CORINGA
Nas décadas de 1950 e 1960, Boal participou
ativamente do Teatro de Arena em São Paulo, do
qual foi um dos fundadores, juntamente com
Gianfrancesco Guarnieri, José Renato e Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha). O grupo buscava soluções cênicas alternativas para as montagens –
uma vez que o padrão dominante da época era o
Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que seguia
um modelo europeu. Mas além das razões econômicas, havia essencialmente uma preocupação
sociopolítica que se expressava na criação de
uma dramaturgia brasileira.
Assim, a insatisfação com o modelo das relações de produção que caracterizavam as práticas teatrais brasileiras, o estudo em busca de
uma nova função social para o teatro, o engajamento político na luta pela construção de uma
sociedade socialista no país e a formulação de
uma poética teatral genuinamente brasileira levaram ao conjunto de procedimentos de atuação
teatral improvisada, com objetivo de transformar as relações de produção material na sociedade capitalista pela conscientização política do
público conhecido como Teatro de Arena.
O Teatro de Arena criou um teatro de integração das classes trabalhadoras e desfavorecidas,
que pretendia dar voz aos oprimidos. Boal foi um
participante extremamente atuante nesse grupo,
no qual criou um sistema de interpretação para
atores chamado de Sistema Coringa. Nele, todos interpretam todos os personagens, revezan-
do-se nos papéis diante da plateia, num exercício de democratização e socialização dos papéis
dentro do teatro.
Nessa “estrutura de elenco”, atores e atrizes
podem interpretar tanto papéis masculinos
como femininos, não são distribuídos personagens e sim funções de acordo com a estrutura
geral dos conflitos identificados no texto. A ideia,
de base socialista, era tirar a “propriedade privada” do personagem.
O Coringa tem função polivalente no espetáculo; os atores podem desempenhar qualquer papel, até substituir o protagonista nos “impedimentos” determinados pela realidade realista-naturalista (do modelo europeu e do TBC). A
consciência dele é de autor ou adaptador, que se
supõe acima e além, no espaço e no tempo das
personagens e todas as possibilidades teatrais
lhe são conferidas.
Ainda compõem o elenco desse tipo de espetáculo o coro e a orquestra coral, com violão,
flauta, bateria, instrumentos de corda, sopro e
percussão. Algumas montagens muito conhecidas da época foram Eles Não Usam Black-Tie
(1958), de Guarnieri, Arena Conta Zumbi (1965),
com música de Edu Lobo e Arena Conta Tiradentes (1967-68), ambas de Boal e Guarnieri.
A “estrutura” desse tipo de espetáculo é
composta por 7 unidades de ação;
1 - Dedicatória: canção, texto, cena, canção e dedicação do espetáculo;
2 - Explicação: quebra na continuidade da ação
dramática, em prosa, dita pelo coringa; busca colocar a ação na perspectiva de quem
conta; pode conter recursos próprios (slides,
poemas, documentos, cartas, notícias de jornal, filmes, vídeos, mapas, refazer, corrigir ou
incluir novidades na cena, etc.); apresenta o
elenco, a autoria, adaptação, técnicas utilizadas, propósitos do texto, etc.;
3 - Episódio: reúne cenas mais ou menos independentes;
4 - Cena ou lance: Módulos dramáticos que têm
fim em si mesmo e contêm ao menos uma
variação no desenvolvimento qualitativo da
35
ação; dialogados, cantados ou lidos (poemas,
discursos, notícias, documentos...); imprimem mudança qualitativa ao sistema de forças em conflito;
5 - Comentários: interligam as cenas e são escritos, preferencialmente, em versos rimados,
cantados pelo corifeu, orquestra ou ambos;
6 - Entrevista: não tem colocação específica na
estrutura do espetáculo, depende de “ocasionais necessidades expositivas”; utiliza-se de
recursos de outros rituais espetaculares como
esportes (como nos intervalos dos tempos
das partidas em que os cronistas entrevistam
a plateia e técnicos);
7 - Exortação: o coringa cobra uma ação da plateia segundo o tema tratado em cada peça.
Pode ser em forma de poesia, canção coletiva ou ambos.
DO TEATRO DE ARENA PARA O
TEATRO DO OPRIMIDO:
Um dos desdobramentos do Teatro de Arena e do Sistema Coringa foi a criação do Teatro do Oprimido, ainda que esse tenha ocorrido circunstancialmente, sem planejamento
prévio. Boal foi levado ao questionamento sobre as montagens do Teatro de Arena que seguiam a relação ator/plateia, cuja estrutura parecia “moralizante” e “catequética” (no livro O
arco-íris do desejo, o dramaturgo refere-se ao
ponto de ruptura entre o teatro de arena e a
estética do oprimido).
Em 1973, Boal contribuiu com o Alfin (Plano Nacional de Alfabetização Integral), no Peru,
período decisivo para trocar a estrutura espetacular (espectador/ator) das montagens do
Arena pela política e popular (espect-ator) da
Poética do Oprimido. O objetivo do Alfin era
alfabetizar o povo na língua materna e ensinar
todas as linguagens artísticas possíveis. Utilizando-se do T.O, Boal contribuiu para a alfabetização do Peru e percebeu o teatro concebido como linguagem, capaz de ser utilizado
por qualquer pessoa, independente da língua
36
e do “talento” para o palco.
O Teatro do Oprimido tem inspiração na estética do alemão Bertold Brecht (Teatro épico,
dialético e antiaristotélico, que veremos em outro artigo!) e na pedagogia libertadora de Paulo
Freire, conhecida como Pedagogia do Oprimido.
A premissa é a democratização do palco, que não
é mais “estacionamento privativo” dos atores:
qualquer pessoa é ator e espectador ao mesmo
tempo, daí o binômio spect-ator. O spect-ator
não delega poderes aos personagens para que
esses pensem ou atuem em seu lugar; é a liberação do espectador da “opressão” imposta pela
tradição teatral ocidental.
Nessa fase, Boal interessa-se pelo teatro
como ação cultural e estético-pedagógica que
conduz e ensaia uma revolução política, econômica e histórica nas sociedades humanas. Por
isso, quer converter o espectador (passivo) em
ator (ativo), ou melhor, em spect-ator, uma vez
que é fundamental ver, mas também agir. A essência do Ser Sujeito!
Esse processo ganhou metodologia específica composta de 4 etapas: conhecimento do
corpo; expressividade do corpo; teatro como
linguagem; e teatro como discurso. O conhecimento do corpo é uma sequência de exercícios
para conhecer as possibilidades, limitações físicas e socialmente impostas e o potencial expressivo do corpo.
Tornar o corpo expressivo é uma sequência
de jogos em que a pessoa começa a se expressar intuitivamente abandonando as formas logocêntricas de comunicação e compreensão. Essas
duas primeiras etapas podem ser melhor verificadas no livro 200 Exercícios e Jogos para o ator
e o não-ator com vontade de dizer algo através
do teatro. Nesse livro, Boal propõe exercícios
que visam a um teatro libertador, que transforma o ser passivo em ativo, em protagonista do
fenômeno teatral, a essência do método do Teatro do Oprimido.
O teatro como linguagem é composto da
prática teatral improvisada propriamente dita,
e divide-se em três etapas: a Dramaturgia Simultânea, o Teatro-Imagem e o Teatro-debate
ou Teatro-fórum. Teatro como discurso são formas dramáticas e teatrais de atuação originalmente formuladas por Boal. São sete: Teatrojornal, Teatro invisível, Teatro-fotonovela, Quebra de repressão, Teatro-mito, Teatro-julgamento e Rituais e Máscaras. Cada uma dessas práticas possui metodologia específica e conferem a essência do T.O.
OUTRAS DIMENSÕES DO T.O.
Durante a ditadura militar, Boal foi exilado e
nesse período trabalhou em vários países, onde
desenvolveu e consolidou o teatro do oprimido.
Retornou ao Brasil em 1986, por convite de Darcy Ribeiro (vice-governador do Rio de Janeiro na
época), para desenvolver núcleos do Teatro do
Oprimido nos Cieps (Centro Integrados de Educação Popular). Por conta desse trabalho, entrou
para a câmara dos vereadores do Rio e inaugurou o Teatro Legislativo.
O Teatro Legislativo ocorreu entre a década
de 80 e 90, quando em revisão crítica às suas ideias, retificou a radicalidade do direcionamento de
suas propostas. Por meio dos coringas e do teatro-fórum, o então vereador escutava, através do
teatro, as suas bases e, a partir dessas reivindicações, reformulava os projetos de lei apresentados à Câmara de vereadores. O Teatro legislativo encerrou-se junto com o mandato de Boal,
que passou então a investigar mais a fundo a função terapêutica do T.O., iniciada no Centre du
Théatre de l’Opprimé, em Paris, durante as duas
décadas do exílio.
O Método Boal de teatro e terapia (também
descrito no livro Arco-iris do desejo) utiliza o
teatro-fórum e o teatro invisível, que recebem
uma nova função instrumental: curar traumas
e distúrbios psicológicos ou psicossomáticos
das pessoas.
No Teatro-fórum, o indivíduo pode se “ver de
fora”, quando experimenta contracenar consigo
mesmo na pele do outro da cena-terapêutica traumática. No teatro invisível, a pessoa experimenta uma forma idealizada de agir, de acordo com a
psicologia de sua vida particular, em um contex-
to real, com auxílio dos coringas, porém sem que
as demais pessoas envolvidas saibam que é teatralidade. O que se ensaia no plano potencial passa a existir no plano real.
Todas as propostas de Boal visam à libertação dos oprimidos, sejam pessoais, políticas,
estéticas ou sociais, a partir do conhecimento
da sua aceitação da condição de oprimido, o
que sustenta a existência do opressor. Ele perseguiu profundamente esse objetivo, traduziu
essas ideias tanto para os exercícios teatrais
como para as reflexões sobre teatro e os textos
dramáticos, e, por isso, tornou-se tão conhecido, inclusive por meio dos CTOs (Centros do
Teatro do Oprimido) espalhados pelo mundo
inteiro.
(Comente este artigo em
[email protected])
Juliana Cavassin é formada em Educação
Artística – Artes Cênicas (FAP) e Jornalismo
(PUCPR), com especialização em
Fundamentos do Ensino das Artes (FAP) e
Mestrado em Educação (PUCPR). É ex-aluna e
professora de Teatro desde 2003 do Colégio
Medianeira; também é professora do curso
de Licenciatura em Teatro da Faculdade de
Artes do Paraná (2007) e presta serviços na
área de Artes, Educação e Comunicação para
várias instituições como SENAC-PR, ITDE e
UFPR. Contato: [email protected].
37
O ARCO
-ÍRIS DO DESEJO
ODO BOAL DE TEA
TRO E TERAPIAS
ARCO-ÍRIS
DESEJO:: O MÉT
MÉTODO
TEATRO
AUGUSTO BOAL
Editora Civilização Brasileira
Esse livro é um conjunto de técnicas terapêuticas e teatrais,
adequadas para a análise de questões interpessoais e/ou individuais. O teatro torna-se veículo da análise em grupo dos problemas relacionais e pessoais, usado tanto para o conjunto do
Teatro do Oprimido e seus propósitos como terapia em instituições para tratamento psiquiátrico.
JOGOS P
ARA A
TORES E NÃO
-A
TORES
PARA
AT
NÃO-A
-AT
AUGUSTO BOAL
Editora Civilização Brasileira
Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até
mesmo os atores. Teatro é algo que existe dentro de cada ser
humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador, em
frente a um espelho, no Maracanã ou em praça pública para
milhares de espectadores. Em qualquer lugar, até mesmo dentro dos teatros.
Versão mais completa do já celebre manual de jogos e exercícios do teatrólogo. O livro sistematiza os exercícios utilizados pelo Teatro de Arena entre 1956 e 1971, oferecendo métodos de importância inestimável para o ator e para o homem comum.
MET
ODOL
OGIAS DO ENSINO DO TEA
TRO
METODOL
ODOLOGIAS
TEATRO
RICARDO JAPIASSU
Editora Editora
De maneira clara e objetiva, essa obra expõe ao leitor os parâmetros educacionais de uma proposta didática para o ensino
de teatro a crianças e pré-adolescentes das séries iniciais (1ª a
4ª série), fundamentada nos pressupostos teórico-práticos do
sistema de jogos teatrais formulado por Viola Spolin (arte-educadora norte-americana). O livro constitui referência bibliográfica relevante para profissionais da educação interessados em
discutir e resgatar o papel e o espaço das diferentes linguagens artísticas, além de fornecer um guia de atividades que
pode ser utilizado em sala de aula e para grupos.
38
Na Terra dos
LEPRECHAUNS...
Nas Irlandas...
Por Levis Litz - texto e fotos
Eis uma prova de como
viajar pode ser uma das
aulas mais completas da
vida da gente!
A CHEGADA
V
Vento, muito vento e frio – e que frio! Foi assim que aterrissei em Dublin, Irlanda. Céu cinzento, nuvens mais ainda e a vontade de voltar para
uma cama bem quentinha. Mas, num ânimo que
surgiu da sede de aventura, levantei-me do assento, peguei minha mochila e saí da aeronave.
Vindo da terra dos Anglos¹ (Inglaterra), cheguei
na terra da deusa Ériu² (Irlanda).
1. Os anglos (Angeln em alemão; englas em inglês antigo; anglus em latim) eram um povo
germânico que se instalou na Ânglia Oriental,
na Mércia e na Nortúmbria no século V d.C. A
Grã-Bretanha meridional e oriental foi posteriomente chamada de Engla-lond (“terra dos
anglos”, em inglês antigo), de onde England,
o termo em inglês para Inglaterra.
2. Na mitologia irlandesa, Ériu, filha de Ernmas,
era a deusa epônima, padroeira da Irlanda. Seu
marido era Mac Gréine (Filho do Sol). O nome
em inglês para Irlanda vem de Ériu e da palavra land (“terra” em germânico, nórdico antigo ou anglo-saxão).
39
TERRA DE GENTE FAMOSA
Difícil não lembrar desse país onde foi encenado o meu filme preferido de adolescência:
Excalibur³. Berço de pessoas como os escritores Oscar Wilde, George Bernard Shaw e Bram
Stoker, dos atores Pierce Brosnan, Liam Neeson,
Peter O’Toole, Gabriel Byrne e Colin Farrell. Como
os irlandeses interessam-se muito pela música,
tanto a tradicional, como também a contemporânea, destacam-se interpretações de Sinéad
O’Connor, Shane MacGowan, da banda U2, The
Cranberries, The Corrs e James Galway, um flautista clássico.
nhei não haver ticket de comprovante da bagagem que segue lá embaixo, no bagageiro. À frente, 5 horas de viagem entre os vilarejos da Irlanda – cena rural, vegetação rasteira, muitas ovelhas e casas típicas. Dentro do ônibus: um monitor de tv desligado e sem banheiro. “Talvez haja
paradas no trajeto”, pensei. Que nada!
5. Galway, também denominada de Gaillimh em
irlandês, é uma das maiores cidades da Irlanda, localiza-se na costa oeste do condado do
mesmo nome. Sua população é de pouco mais
de 70 mil habitantes, cuja história tem registros de cerca de 800 anos, tendo sido a única
cidade medieval na província de Connacht.
3. Excalibur é um filme de 1981, dirigido por
John Boorman. Trata-se da lenda do rei Arthur
e os Cavaleiros da Távola Redonda, escrita
por Sir Thomas Malory, mais especificamente sobre a espada do rei, a Excalibur.
CERVEJA FORTE, CAFÉ NEM
TANTO!
Feliz de estar com os pés firmes no chão da
terceira maior ilha da Europa situada no oceano
Atlântico, pensei em tomar um café. Ugh! Que
decepção, na terra da encorpada cerveja Guinness4, o café era muito fraco!
4. A Guinness é uma cerveja irlandesa cuja história teve início em 1759, quando Arthur Guinness alugou uma fábrica em Dublin, na Irlanda, e começou a produzir sua cerveja. Em
1862, adotou a Harpa irlandesa como símbolo. Com quase 300 anos de história, a cerveja
Guinness é produzida com a mesma composição: malte irlandês, água de Dublin, lúpulo
e levedura.
COM O DESTINO TRAÇADO
Vou para a cidade de Galway5, e, de cara, uma
boa notícia: a passagem baixou de 20 para apenas 5 euros, só porque a comprei dentro do aeroporto (não entendi! Mas, se é assim, porque
contestar, não é?). Acomodado no ônibus, estra-
40
Cidade de Galway
APRENDENDO COM UM MESTRE
Galway – razão da minha viagem. Fui convidado para aprofundar minhas técnicas na arte marcial chinesa que mais admiro, o Tai Chi Chuan6. Arte
chinesa? Na Irlanda? Pois é! Parece um pouco fora
de contexto, mas é simples de entender. Meu professor irlandês, Niall O‘Floinn, e nosso mestre chinês, Wang Hai Jun, vivem aqui na Europa. Assim,
nos reunimos para treinar Tai Chi Chuan em
Galway e também numa cidade vizinha, Limerick.
Nosso treinamento consistiu em 2 horas de manhã, 2 horas à tarde e mais 3 a 4 horas e meia de
treino à noite – isso de segunda à sexta. Já aos
sábados e domingos, somente 2 horas pela manhã e 2 horas à tarde. Mamão com açúcar.
6. Tai Chi Chuan é uma arte tradicional marcial interna chinesa, com movimentos suaves e contínuos que produzem resultados terapêuticos
ao praticante.
ta em seu interior. Também visitei, nas redondezas, o castelo de Kylemore8. Conclui que andar
pelo mundo e conhecer os castelos e igrejas antigas é como fazer parte das histórias e segredos guardados pelo tempo.
Praticando Tai Chi Chuan
NAS HORAS VAGAS
Logo que cheguei, por coincidência ou sorte,
um evento grande movimentava a cidade: era a
“Volvo Ocean Race”, que atraiu mais de meio milhão de pessoas de todo o país para Galway. Todas as noites havia apresentações de dança típica
irlandesa, shows e muita festa. O povo irlandês é
muito amistoso e considerado um dos mais alegres da Europa. A Irlanda, uma ilha com aproximadamente 5,8 milhões de habitantes (incluindo
a Irlanda do Norte), tem fortes raízes celtas7 e impressiona também por sua vida social e boêmia.
7. Os celtas organizavam-se em tribos desde a
península Ibérica até a Anatólia. Boa parte da
população da Europa ocidental pertencia às
suas etnias até a eventual conquista de seus
territórios pelo Império Romano. Perpetuaram-se até pelo menos o século XVII na Irlanda, pela característica geográfica de seu isolamento, conseguindo, assim, preservar melhor suas tradições. Os celtas exaltavam as
forças telúricas em rituais populares, em que
a expressão máxima era a Deusa Mãe, cuja
manifestação era a própria natureza.
CASTELOS E IGREJAS – CENÁRIOS
DE HISTÓRIAS E LENDAS
Quando viajamos pelo mundo, ficamos deslumbrados diante dos castelos e igrejas que cruzam nossas vistas. Imaginamos como deve ter
sido na época de suas construções e a vida dos
que habitavam naqueles locais. Quando apareceu um intervalo em meu treinamento, aproveitei para visitar a Catedral de Galway, muito boni-
8. O castelo de Kylemore é uma das mais românticas construções do final do Século 19. Situase em Connemara, Galway. Originalmente, foi
construída por uma família como uma residência particular. Sua construção neogótica,
feita de mármore, tornou-se, mais tarde, uma
abadia de freiras beneditinas que fugiram da
Bélgica na época da 1ª Guerra Mundial.
Espetacular interior da Catedral de Galway e
o castelo de Kylemore
NA CAPITAL, DUBLIN
Após um longo período de treinamento, fui
para Dublin descansar. Lá encontrei uma amiga
argentina, Monina, professora de tango e que me
ajudou a conhecer a cidade. Ela me levou no Temple Bar9 e num pub, o “Ha’ Penny Bridge Pub”,
onde se pode experimentar o entretenimento típico irlandês com música ao vivo, bebida e ótimo ambiente. Ali, assistimos a uma dupla de “violeiros countries” dos Estados Unidos. Um show
memorável para a minha última noite na cidade.
9. O Temple Bar é um famoso espaço turístico
que se destaca pela concentração de inúmeros bares em que a vida boemia se faz presente e onde pessoas de todo o mundo se
encontram.
41
O Temple bar, em Dublin
Interior do Ha’ Penny Bridge Pub
O LEPRECHAUN
Segundo arqueólogos, a Irlanda é povoada há
mais de 9000 anos. É uma terra com muita tradição e os irlandeses adoram contar histórias da
região. Tentei acompanhar seus contos regados
a muitos copos de Guinness, mas não foi o suficiente a ponto de ver um leprechaun10.
10. Leprechaun é uma figura mitológica do folclore irlandês, também conhecido como Duende ou Gnomo. Pequenos, com estatura
entre 30 e 50 centímetros, vivem em bosques ou florestas e são considerados guardiões de tesouros escondidos. São descritos como alegres, traquinas e vestidos à
maneira antiga, com roupas verdes, uma cartola e sapatos com fivelas.
res no planeta para conduzir rituais pela paz. Um
sioux chamado Arvol Looking Horse teve uma visão para ir à Irlanda e visitar o centro espiritual daquele país. Para revitalizar os lugares sagrados,
muitos dos quais com círculos de pedras12, cerimônias foram realizadas com uma fogueira por
quatro dias. Porções das cinzas remanescentes
dessas fogueiras seriam distribuídas com a intenção de aproximar as pessoas em prol da paz. Um
irlandês que estava envolvido como um dos membros do grupo que recebeu os índios, na minha
despedida, deu-me alguns gramas daquelas cinzas.
12. Círculos de pedras são antigos monumentos
que frequentemente formam um conjunto de
pedras dispostas num arco de círculo. O mais
conhecido e visitado círculo de pedras britânicos é o de Stonehenge (Inglaterra). Confira
na foto abaixo:
O CLADDAGH
Numa terra tão fascinante, repleta de simbologia e mistério, o respeito pelo ser humano é evidente. A fraternidade, lealdade e amizade são pontos fortes nessa terra representada pelo “Claddagh11”.
11. O Claddagh é um símbolo cuja origem data
de 300 anos. Surgiu numa antiga aldeia de
pescadores em Claddagh, aos arredores da
cidade de Galway. Seu símbolo é entregue
como reconhecimento de amizade sincera e
verdadeira.
A FRATERNIDADE EM BUSCA DA PAZ
Velhos e respeitados índios de diferentes tribos da América do Norte designaram cinco luga-
42
NA OUTRA IRLANDA (DO NORTE),
EM BELFAST
De Dublin levei um pouco mais de 2 horas,
de ônibus, para chegar a Belfast. Mas por que há
duas Irlandas? A Irlanda do Norte, em 1921, surgiu como uma entidade política autônoma que
ficou sob o domínio do Reino Unido. Na década
de 60, tentou-se reformar o sistema, mas houve
excessivos confrontos entre os habitantes locais.
O Exército Britânico, para “conter os ânimos de
protestos”, assassinou treze civis desarmados.
Esse trágico evento ficou conhecido como o Domingo Sangrento (Bloody Sunday). O confronto
com o IRA – Exército Republicano Irlandês – e
uma campanha de violência levaram a Irlanda do
Norte à beira de uma guerra civil. Novos siste-
mas de governo foram tentados, mas fracassaram até que em 1998 surgiu o “Acordo da SextaFeira Santa13”. Em 1999, os protestantes aceitaram o compromisso do IRA de entregar armas.
Enfim, cresce o otimismo em relação ao processo de paz.
13. O Acordo de Sexta-feira-Santa, também conhecido por Acordo de Belfast, foi assinado
em 10 de abril de 1998, tendo sido apoiado
pela maioria dos partidos políticos norte-irlandeses. Este acordo tem por finalidade acabar com os conflitos entre católicos e protestantes e garante que a Irlanda do Norte
permanecerá ligada ao Reino Unido enquanto sua população assim o desejar.
SITUAÇÃO DE TENSÃO
Quando caminhei pelas ruas do centro de
Belfast, percebi o benefício que o “Acordo de
Belfast” proporcionou para a revitalização da cidade, mas havia ainda resquícios das discrepâncias políticas e religiosas. Há muitos murais14 de
protestos. Embora fervorosamente advertido
para evitar tal área, quis conhecê-la. Soube de 2
chinesas que foram ameaçadas com facas para
saírem daquela área onde estrangeiros eram pessoas não gratas! Com todo cuidado, me preparei para ir lá. Trajado como irlandês, não como
turista, caminhei em passos largos como quem
já soubesse para onde ia, evitava olhar para os
lados. Saí do hotel às 11h da manhã, imaginei ser
um bom horário, porque haveria mais movimento nas avenidas. Engano meu, a cada passo em
que me “embrenhava” na zona de risco, a tensão
aumentava, pois havia pouca gente a pé. Em breve teria que entrar nas ruas secundárias, ainda
mais vazias e isso chamaria a atenção. Repentinamente, um carro para a poucos metros de mim,
saem quatro irlandeses parrudos. Um deles fica
bem no meu caminho. Sem me intimidar, mas
pronto para correr uma maratona se necessário,
olhei sério para o sujeito e fiz um aceno com a
cabeça, ele me fitou, deu um passo para trás e
me deixou passar. Continuei, sem olhar para trás,
até que entrei na área dos murais. Sem quase ninguém nas ruas, era difícil ser discreto. Notei cortinas se movendo enquanto passava. Parecia coi-
Eis dois murais de forte
sa de filme de terror. Logo avistei um mural e
depois outro. E agora, como tirar fotografias incógnito? Titubeei um pouco e, sem opção, comecei a fotografar. Tudo certo, até que, na esquina, dois homens ficaram me observando. Quando um deles se levantou, me antecipei, dei meia
volta, caminhei apressadamente até conseguir
me distanciar para um local mais movimentado
e seguro. Aquele foi o momento mais tenso que
passei na terra dos leprechauns.
14. Os famosos murais políticos, quase dois mil
documentados, tornaram-se símbolo da Irlanda do Norte, pois representam as diferenças do passado e do presente na região desde a década de 70.
A PARTIDA
Após aquela experiência desagradável, passei
momentos agradáveis no Botanic Gardens, um
dos mais belos parques de Belfast. Aproveitei para
conhecer alguns pratos típicos e saborear um pouco do licor da Irlanda, o Bailey´s15 – uma delícia!
Detalhe do belo Botanic Gardens
43
15. O Bailey´s Irish Cream é um dos mais famosos e deliciosos licores do mundo. Produzido desde 1974 na Irlanda, consiste numa mistura de natas com uísque irlandês e teor alcoólico que alcança 17%.
LITERATURA, POESIA E HUMOR DA
IRLANDA
A Irlanda não é fraca, não! Os irlandeses têm
fascínio pela literatura. Inseridas em sua cultura,
encontramos quatro nobéis de Literatura: George Bernard Shaw, Samuel Beckett ,W. B. Yeats e
Seamus Heaney. Um irlandês ganhou o Nobel da
Física, Ernest Walton, em 1951. A poesia irlandesa
representa a mais antiga poesia vernácula na Europa. Os primeiros registros datam do século VI. Os
irlandeses também gostam de rir – e muito!
Algumas anedotas curtas mais famosas:
“Não faça ao outro o que o outro faria a você, o
gosto dele pode não ser o mesmo”. George
gios da arte religiosa medieval. Escrito em latim, o Livro de Kells contém quatro Evangelhos do Novo Testamento.
A harpa, um dos símbolos da Irlanda, pode
ser vista nos passaportes e selos da República da Irlanda. É baseada numa harpa do séc.
XIV, que está agora guardada no Trinity College de Dublin e obteve popularidade como a
Harpa de Brian Boru.
O dia nacional na Irlanda é 17 de março, que
homenageia o padroeiro São Patrício.
O trevo de três folhas também é identificado
como símbolo da Irlanda, porque se diz que São
Patrício o utilizou para explicar a Santíssima Trindade. A cor verde também é a cor mais associada à Irlanda e está presente na bandeira nacional, representando os cristãos do país.
(Comente este artigo em
[email protected])
Para saber mais
www.ireland.com
Bernard Shaw, dramaturgo.
“Os verdadeiros amigos apunhalam-te pela
frente”. Oscar Wilde, escritor.
“Formei um novo grupo chamado de Alcoólicos Unânimes. Se não lhe apetecer uma
bebida, telefone a um dos membros, que virá
persuadi-lo”. Richard Harris, ator.
Levis Litz é Professor de Tai Chi Chuan no
Colégio Medianeira pela APP. As aulas
acontecem às terças e quintas-feiras, das
07h20min às 08h15min. É membro da Galway
Chen Style Tai-Chi Academy (Europa) e da
International Yang Style Tai Chi Chuan
Association (EUA).
Curiosidades
Pessoas da etnia irlandesa são comuns em muitos países. Mais de 80 milhões de pessoas
compõem a emigração irlandesa que atualmente abrange Inglaterra, Argentina, Austrália, Canadá, entre outros. O maior número se encontra nos Estados Unidos, cerca de dez vezes
mais irlandeses do que na própria Irlanda.
A Irlanda também é famosa pelo Grande Evangelho de Santa Columba (Book of Kells). Um
manuscrito ilustrado feito por monges célticos até o ano de 800. Apesar de estar inacabada, é um dos mais belos manuscritos que
sobreviveram desde a Idade Média. É considerado como um dos mais importantes vestí-
44
OS PRÍNCIPES DA IRLANDA (COLEÇÃO A
SAGA DE DUBLIN)
EDWARD RUTHERFURD
Editora Record
'Os príncipes da Irlanda' é
mais um magnífico épico repleto de amores, batalhas,
família e intrigas políticas.
Costurando pesquisa histórica e uma incrível capacidade
de contar boas histórias,
Edward Rutherfurd captura
com delicadeza e inteligência a essência do povo
irlandês ao longo de onze séculos.
UM CONTO
O DONO
DA MORTE
Por Luiz Carlos Heleno
V
Vira e mexe matam um, dois, dez, cem.
Uma guerra diuturna, silenciosa e perversa, alimentada por tudo que é tipo de descuido. O
ponteiro estatístico da taxa de mortandade de
jovens – meninos ainda (meninas, bem pouco) – segue virando a vida ao avesso. As garras do tráfico sobre eles, a vida rasa de que é
feita seus dias, o destino que não se conta e
nem se releva quando desfeito e despedaçado ao som de “pipocos”, como dizem eles,
vindos do cano das armas prontas para o disparo ordenado pelos senhores das bocas.
Gilliard (assim mesmo, com “d” mudo), dirige um carro emprestado pelas vielas de Vila
das Torres, no afã de brecar por momentos o
índice dessas mortes que têm prazo certo pra
aumentar: 24 horas. Esse o tempo que o dono
da boca deu para que “Bugre” – 17 anos – acerte sua dívida com o gerente do “ponto três”
da vila. O avô de Bugre, já em desespero, foi
quem avisou Gilliard, dizendo que os homens
não tão brincando não, e que foram até o bar,
armados, encostaram Bugre contra a mesa de
sinuca, falando lento palavra por palavra: aí ô
pivete, tu tem 24 horas pra livrar tua carcaça de começar a feder! Depois do aviso, deixaram uma grana com o dono do bar,
que é pra ajudar com o novo uniforme do
Flamengo, time da vila que vai disputar torneio por esses dias.
O cuidado para não ser visto requer olhos
e ouvidos atentos. Gilliard avisou os técnicos
da Rede de Proteção que iria direto para a vila,
que não usaria o veículo do programa, e que
teria um bate-papo com alguns jovens do “graffiti” – maneiras de despistar qualquer mensagem que pudesse pôr em risco a vida de
Bugre. Estaciona numa rua transversal, desliga o rádio no exato momento em que Rita Lee
canta “coisas da vida / e a gente se olha e
não sabe se vai ou se fica”, e segue a pé até
o Centro de Atividades, avistando do portão
o avô de Bugre, um negro ainda forte nos seus
quase 75 anos.
No salão do centro a conversa é breve:
tome a chave, apanhe as coisas, evite demonstrar medo, o carro tá em frente da casa
de Jorge, avise dona Cida pra esperar no por-
45
tão da Católica, pegue umas bolachas pra
viagem, e vá calmo que tudo vai dar certo.
O tempo, feito em horas, está demasiado
lento para o dono da morte: o prazo estipulado em vias de se cumprir, o fio da navalha em
que sobrevive uma espécie de Cronos a engolir jovens num submundo em que o pagamento em dia mantém a morte lenta; o não
pagamento atrai a morte violenta. O dono da
boca a exigir ou a morte em vida pelo uso da
pedra, ou a morte-morte mesmo lavrada a
cabo e a pólvora em sentença sumária sem
choro nem vela. Pelas ruas da vila a vida se
safava em três atos simultâneos e sincrônicos,
no correr de minutos preciosos se esvaindo
rápido demais: 1 - Bugre passou pelo ponto
três para agradecer o prazo dado, e que tava
indo agora mesmo apanhar a grana com um
amigo da família, sendo logo avistado indo em
direção ao Colégio do outro lado da ponte,
com a concordância do gerente da boca, que
ainda disse: “o meninão que não vacile!”; 2
- o avô de Bugre preparou farnel, juntou roupa e levou até o carro de Gilliard, seguiu até o
Centro de Atividades para entregar a chave, e
antes de voltar para o veículo passou também
pelo ponto três para certificar-se de que tudo
estava calmo: faltavam ainda oito horas para
quitar a dívida; 3 – Gilliard apanhou a chave,
seguiu pela rua inversa a que seguiu o avô de
Bugre, e calculou os minutos para que pudessem chegar ao mesmo tempo onde o carro
estava estacionado.
Dez minutos depois, já ligado o motor, tremeram: estudantes do Colégio ao lado visitavam alguns programas sociais desenvolvidos na vila, quando ouviram tiros na direção
da rua central, xingamentos, carrinho de ca-
chorro-quente se espatifando, cães fugindo
pelas vielas, início de corre-corre: o avô pensou o pior, Gilliard ficou apreensivo, mas não
cedeu à ansiedade – guiou calmo em direção
ao Colégio Esperança, pediu passagem a veículos que chegavam para apanhar crianças do
turno da manhã, tomou o rumo da Avenida
das Torres, e contornou pela antiga BR, no
sentido da Universidade Católica, onde Bugre
e Cida, sua mãe, aguardavam há alguns minutos. O destino dos três era Santa Catarina: no
interior mora uma tia de Bugre, que agora tá
quieto no banco traseiro, levando bronca do
avô que queria saber por que é que ele tava
fumando da pedra maldita.
Num restaurante de beira de estrada pararam para o almoço. Bugre estava estralando
os ossos da mão quando serviram o comercial para 4 pessoas: salada de alface e tomate, arroz, feijão, e frango ao molho. Gilliard orienta o que tem de ser feito quando chegarem
ao destino: procurar o serviço social do município; Bugre se inscrever nas atividades para
dependentes químicos; arranjar outro jeito de
sobrevivência; e se puder arranjar logo uma
casinha pra alugar – vai que o gerente da boca
desconfia do paradeiro.
De acordo, fecharam a conta do almoço, e
seguiram viagem. Dona Cida, olhando a estrada e cantarolando um trecho de canção
“aquela nuvem que passa / lá em cima sou
eu...”, comenta que nos anos 70 gostava muito de um cantor que se chamava Gilliard: Você também canta? Ela pergunta. Gilliard
diz que não, mas confirma que seu nome é
por causa desse cantor, que ele nunca viu nem
ouviu. Já é noite quando chegam à cidadezinha no estado vizinho: o prazo da dívida pela
pedra se esgotou há mais de meia hora. Por
hoje, o senhor da morte perdeu.
Luiz Carlos Heleno é escritor e compositor, com prêmios em concursos de literatura no
Paraná e em outros estados: Gralha Azul de Literatura, Concurso de Poesias de São José dos
Pinhais, Prêmio Publicação Concurso Helena Kolody, Revista Brasiliense de Literatura,
Participação em Coletâneas de Literatura em prosa e verso. Possui composições próprias e em
parceria com Grace Torres e Ulisses Galeto, integrantes do Grupo Fato, e com Luiz Antonio
Fidalgo, compositor paranaense. Já colaborou em diversos jornais e revistas: O Estado do
Paraná, Jornal do Estado, Tribuna do Paraná, Revista NÓS (Galiza, Espanha), entre outros.
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SILÊNCIOSÉPIA
O cabelo ralo caía sobre a face de Rita, as sobrancelhas estavam sempre arqueadas, como o desenho que
suas costas faziam (hoje penso que não conseguia mais
deixá-las naturais) e seus olhos – ah, seus olhos! – miravam o mundo com uma tristeza comparável ao banzo
dos africanos.
Conservava seu ar perdido, de quem, de tanto viver,
foi se esquecendo nos anos, foi se deixando nas ruas, foi
se apagando nas fotografias.
Era a típica imagem do correr do tempo. Sempre sozinha, saía de casa com passos inseguros, lentos, parando todos os dias em frente à padaria de nossa rua.
Entrava, conversava alguns instantes com “seu” Joaquim e saía com o embrulho de sempre, pequeno, quase vazio, condizente com seu corpo franzino. Imagino
que carregava pãezinhos doces, daqueles que têm creme por cima, que combinam com chá de camomila e
uma toalha bordada estendida na mesa.
Foi numa dessas ocasiões que, tomada de coragem,
entrei na padaria. Aproximei-me, como outra cliente qualquer, ainda indecisa com o que levar, e abri-lhe um sorriso
discreto. Ela retribuiu com um olhar doce e um movimento
leve dos lábios.
Pude perceber que seus olhos não eram tristes como
pareciam de longe. Pelo contrário, brilhavam com uma
intensidade estonteante, que ao mesmo tempo acalmava. Não sei o que me chamava atenção naquela mulher,
parecida com tantas outras por quem passo despercebida. Acho que Rita ainda conservava um feixe de luz em
meio a tanta poeira.
– Desculpe, não me lembro de você...
Havia me esquecido, Rita não me conhecia (nem eu,
tampouco). Apresentei-me. Agora sabia meu nome.
Foi, aos poucos, nas idas diárias à padaria, sabendo
mais sobre mim.
Convidou-me para um chá. Bati na porta da casa antiga, a única de madeira, repleta de árvores, que sobrevivera à invasão vertical da Avenida São João.
Entrei e senti o peso de décadas sobre mim. Fotos,
quadros antigos pendurados nas paredes e um tom de sépia por toda a casa.
Estava linda, a Rita. Vestira o que parecia ser seu melhor vestido, todo florido, bordado, penteara o cabelo e
até os velhos chinelos havia trocado.
Agora puxava-me pelo braço, com um toque leve
Por Luiza Pacheco
de mãos, mostrando a casa. Os quartos dos filhos, o
seu, a cozinha e, de volta à sala, colocou-me na cadeira, como uma mãe faz com a filha que há tempos não
vê, e me serviu o chá.
A conversa durou horas. Acho que mal percebeu que
só falamos a seu respeito. Contou dos filhos, cada um com
sua família, morando longe, sem qualquer Rita para se preocupar. O marido também já se fora, há dez ou doze anos.
Ficamos em silêncio. Eu pensando em Rita; ela, não
sei dizer.
Queria conhecê-la mais. Saber seus segredos, histórias, vontades, os sonhos que ainda guardava.
Ainda me pergunto o motivo de tanto interesse, sem
conseguir encontrar muito bem uma resposta. Acho que
Rita conservava vida dentro de si. Seus olhos, sua fala o
demonstravam.
Precisava conhecê-la melhor para entender essa palpitação que a mantinha faiscante mesmo quando as fotografias já amarelavam. Precisava lançar mão de meus traumas
e mergulhar dentro daquela mulher, daquela figura de mãe
que tanto me intrigava. Rita era um espelho, ainda embaçado, pelo qual sabia que conseguiria me ver.
Bati novamente à sua porta. Nada. Repeti-o incontáveis
vezes, sempre mais aflita.
– Rita?
Nada.
Entrei. Que me desculpasse, mais tarde, a falta de educação ou meu jeito intruso, não podia esperar mais.
Entrei e a casa, impecável como da primeira vez, estava
agora repleta de silêncio. Parecia que até os quadros haviam se calado, zelosos por mantê-la nesse estado. Era
como se tudo dormisse ao sono leve de fim de tarde.
Estava deitada em sua cama, mais linda do que nunca
– ainda que usasse o mesmo vestido e os mesmos chinelos da última vez. Não demorei muito para compreender,
Rita estava completamente branca...
Remédios ao lado da cama. De relance, pude distinguir um para memória e outro para o coração. O que fizera, Rita? Esquecera-se ou lembrara-se do quê?
Já não tinha medo. Minha vontade era de segurar sua
mão, não de chorar.
Rita se fora, eu sabia, e mais rápido do que pudera imaginar. Só restaram em mim, presos na garganta, o silêncio e
um estranho tom de sépia.
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NA PAREDE
UMA LEMBRANÇA
Por Lyziana Dela Bruna Hiroki
Era um final de tarde, o suor escorria em minha testa,
as rodas do meu skate gritavam para descer aquela rampa, porém, a coragem – que já era pouca – com o passar
do tempo parecia diminuir.
De cima da rampa, avistava o quarteirão inteiro. Do meu
lado esquerdo as crianças começavam a sair do colégio
Dom Bosco, onde por sinal havia me matriculado no começo do ano por pressão da minha mãe para estudar, porém,
nunca cheguei a assistir a uma aula. Sempre me perguntava se a escola da vida não é a melhor. Do meu lado direito,
o trânsito infernal tomava conta de uma rua estreita e barulhenta. Foi então que avistei aquela mulher pela primeira
vez. Seus cabelos loiros caíam sobre os ombros um tanto
curvados naquele momento por conta dos livros que carregava. Ela usava um suéter rosa desbotado e aquelas cores
me deixaram completamente fascinado, pois além de linda, ela parecia carregar consigo uma felicidade por mim
ainda não experimentada.
No transe em que me encontrava, desequilibrei-me na
rampa e caí. Logo depois, lembro-me de ter visto várias
pessoas a minha volta, algumas gritando para chamar a
ambulância, outras apenas me observando, e junto delas
aquela mulher de suéter rosa desbotado deferia um olhar
assustado em minha direção. Acordei no hospital com a
perna quebrada e quatro pontos na cabeça.
Durante o tempo em que fiquei de repouso no hospital,
por causa dos meus ferimentos, imaginei várias histórias
ao lado daquela que dominava meus pensamentos. Sonhava acordado com a possibilidade de com ela me casar,
ter vários filhos e por consequência, ser feliz para sempre.
Um tanto idiotas esses meus devaneios, eu sei, mas em
meu mundo imaginário não existiam problemas, discussões, preocupações, eu o adorava e passava horas nessa
vida inventada.
Em uma manhã, depois de terem tirado o gesso da minha perna, avistei novamente aquela mulher, e comecei a
segui-la. Durante meses continuei nessa busca e descobri
que me sentia melhor quando estava perto dela. Outro dia,
porém, ela olhou para trás e começou a andar em minha
direção, fiquei sem ar, foi quando me disse “oi” com uma
voz suave e empolgante.
Depois do “oi” que quase não consegui pronunciar direito, ela me perguntou como eu estava depois do aciden-
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te e respondi meio sem graça que eu estava bem. Claudia
se apresentou a mim e começou a falar sem parar sobre
diversos assuntos, que não me lembro, pois estava prestando atenção em seu rosto perfeito que parecia ser de
seda, combinando com seus olhos castanhos claros que ao
descer da minha vista encontrava-se com seus lábios pequenos. Só me lembro bem de uma pergunta, aquela que
daria um novo rumo à minha vida. Claudia queria saber
onde eu estudava, e, sem conseguir mentir, contei que não
ia para o colégio. Ela não me deu sermões, nem filosofou a
respeito, mas seu ar desapontado me fez sentir vergonha
de aos 16 anos ainda ser praticamente analfabeto.
No dia seguinte, fui ao colégio estudar pela primeira
vez. Ainda estava apaixonado por Claudia, mas começava
também a me interessar pela vida na escola. Ao término da
aula conversamos novamente sobre outros assuntos.
Depois de um tempo, ir para o colégio, conversar com a
Claudia, estudar, sair com meus primeiros e novos amigos
virou rotina, e com isso todas as minhas imaginações passadas foram sendo trocadas pelo novo e real mundo no
qual eu estava vivendo. Porém, não parei de imaginar, pelo
contrário, agora tinha tudo que eu queria: uma vida e as
minhas novas e mais ousadas imaginações.
Foi então que recebi uma notícia triste. Claudia tinha
sido atropelada e não resistiu aos ferimentos. Chorei. Não
havia nada que eu pudesse fazer para reverter a situação.
Hoje, olhando meu diploma de médico na parede, a foto
dos meus dois filhos e da minha esposa na mesa do meu
consultório, minha família feliz, só tenho a agradecer a presença daquela mulher que me ensinou que a vida não é só
uma ilusão. E não adianta viver sem responsabilidade e só
na imaginação como eu vivia, pois o melhor da vida é saber
que podemos construir belas realidades a partir de sonhos.
– Doutor Eric, desculpa interromper, mas a paciente atropelada que o senhor atendeu a pouco acaba de acordar.
Gostaria de vê-la agora?
Luiza Pacheco e Lyziana Dela Bruna Hiroki
são alunas da 1ª e 2ª série do Ensino Médio
do Colégio Medianeira. Os textos foram
produzidos na Oficina de Criação
Literária, ministrada pela professora de
Língua Portuguesa, Eliege Pepler.
CROQUETE DE
POSTA BRANCA
... E a odisseia
gastronômica
continua...
Por ele, Marcelo Weber
D
Dentre os inumeráveis desfrutes que se tem
do fogo e da caçarola, não podemos esquecer o prazer alquímico, de transformar alguns
restos inexpressivos – sobras aparentemente
sem valor, destinadas ao desperdício – em
verdadeiros acepipes, fábulas da mesa.
A lagarta de mau aspecto se transforma
numa linda borboleta, Deus fez luz das trevas,
Jesus transformou pedras em pães, mas a mineira transforma o feijão de ontem em tutu.
O português faz o arroz doce, e do pão
velho faz as migas e faz a rabanada. Os alemães fazem o chucrute. Eu faço o croquete
de posta branca e o bolinho de arroz.
É que o milagre não é mais exclusividade
dos santos.
O rouxinol canta na entrada da primavera, o esturjão dá o caviar, a abelha, o mel, a
videira, o vinho, e eu posso vos dar o croquete de posta branca.
É um pitéu que faz sorrir a viúva em luto.
Inspira o poeta. Devolve o juízo ao alienado e
a anistia os condenados.
Quem come fecha os olhos para concentrar os sentidos todos na língua. E a boca se
transforma numa fonte torrentosa de salivas.
Ele faz o orgulho do gênero humano, ele é o
O CROQUETE DE POSTA BRANCA.
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Para 500 g. de sobras
de posta de panela
Dois ovos
50 ml Leite
Farinha de rosca q.b.
Um molho salsinhas
Sal e pimenta q.b.
MODO DE PREPARAR:
INGREDIENTES:
CROQUETE DE POSTA BRANCA
Passe a posta no moedor de carne duas vezes
Misture o ovo previamente batido com salsinha, sal e
pimenta e junte à carne
Misture com a mão (use luvas cirúrgicas e tenha, nem
preciso dizer, as unhas cortadas para que não cortem a
luva).
Acrescente umas duas ou três colheres de sopa de leite e
depois vá colocando farinha de rosca fresca aos poucos
até conseguir uma massa mole, mas firme o suficiente
para ser modelada na palma da mão.
Bata um ovo com pouco de leite e passe os croquetes
por aí e depois na farinha de rosca. - Frite-os pelo tempo
de um pai-nosso em azeite quente.
Escorra-os e deixe enxugar a gordura em papéis
próprios para isto.
Reza a lenda que Argus Panoptes, animal fabuloso de 100 olhos, sempre tinha dois abertos.
E para tentar fazê-lo dormir, Mercúrio contava
histórias e tocava música.
Mas isto não foi suficiente para o que monstro dormisse totalmente. Mercúrio lhe deu destes Croquetes de posta branca. Ele fechou então
todos os olhos para melhor saborear e teve a
cabeça cortada. Hera, com pena do monstro, tirou seus olhos e pôs na cauda do pavão.
Homero não conta, mas Odisseu ficou tanto
tempo esquecido de Penélope na ilha de Circe
por efeito dos croquetes de posta branca que a
rainha fritava e lhe oferecia sempre que o encontrava lacrimoso e triste na praia olhando o
mar. Isso lhe devolvia a alegria de viver e desejo de entregar-se aos combates de Vênus com
aquela feiticeira.
Combina com arroz, purê de batatas, salada de
alface, tomate, agrião.
É prato para as crianças de dieta mal educadas
aprenderem a comer saladas. O expediente de
enrolar o croquete com a folha da alface funciona
muito bem como engodo para fazê-las aprendizes de saladas... Acredite quem fizer.
E ipse dixit...
Marcelo Weber é artista no seu sentido mais amplo, renascentista. Ex-aluno do Medianeira e agora pai de
aluna, é autor do Mural do Conhecimento, obra em azulejo em exposição na entrada principal do Colégio.
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