Edição 167 • Julho 2014

Transcrição

Edição 167 • Julho 2014
Edição 167 • Julho 2014
S umário
Foto: Paulo Rosemberg
6 Capa – Gestão pautada no diálogo
Foto: TJMT
10
TJMT inicia sua trilha decenal
rumo ao sesquicentenário
Foto: João Andrade
14
2
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Judiciário e América Latina:
feridas democráticas
5
Editorial – Desrespeito à ordem republicana
13
Poder Judiciário: culpado ou inocente?
18
O fenômeno do superendividamento
24
A competência para processar e julgar ações
civis públicas que contenham pedido de perda
de cargo de agente político
30
Tempo, ironia e linguagem forense
32
Greve de dissidentes
36
Em foco – O peso da magistratura
40
A indisponibilidade dos direitos da
personalidade e as redes sociais
43
O mito da eleição direta para
presidente dos tribunais
50
Testamento: prevalência e obediência da vontade,
em vida, do de cujus
54
A Constituição de 1934: 80 anos depois
60
Princípio da colaboração no projeto
de CPC brasileiro
62
Dom Quixote – Uma alternativa ao
sistema carcerário
66
Prateleira – Influências para toda a vida
E ditorial
Edição 167 • Julho de 2014 • Capa: SCO/STJ
Conselho Editorial
Av. Rio Branco, 14 / 18o andar
Rio de Janeiro – RJ CEP: 20090-000
Tel./Fax (21) 2240-0429
[email protected]
www.editorajc.com.br
ISSN 1807-779X
Orpheu Santos Salles
Editor
Tiago Salles
Editor-Executivo
Erika Branco
Diretora de Redação
Giselle Souza (MTB: 27748 / RJ)
Jornalista Responsável
Carmem Cecília Camatari
Revisora
Mariana Fróes
Coordenadora de Arte
Diogo Tomaz
Coordenador de Produção
Thales Pontes
Analista de Artes e Produção
Amanda Nóbrega
Expedição e Assinaturas
Correspondentes:
Bernardo Cabral
Presidente
Orpheu Santos Salles
Secretário
Adilson Vieira Macabu
André Fontes
Antonio Carlos Martins Soares
Antônio Augusto de Souza Coelho
Antônio Souza Prudente
Ari Pargendler
Arnaldo Esteves Lima
Aurélio Wander Bastos
Benedito Gonçalves
Carlos Antônio Navega
Carlos Ayres Britto
Carlos Mário Velloso
Cláudio dell’Orto
Dalmo de Abreu Dallari
Darci Norte Rebelo
Edson Carvalho Vidigal
Eliana Calmon
Enrique Ricardo Lewandowski
Erika Siebler Branco
Ernane Galvêas
Fábio de Salles Meirelles
Gilmar Ferreira Mendes
Henrique Nelson Calandra
Humberto Martins
Ives Gandra Martins
Julio Antonio Lopes
José Geraldo da Fonseca
José Renato Nalini
Lélis Marcos Teixeira
Luis Felipe Salomão
Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
Luís Inácio Lucena Adams
Luís Roberto Barroso
Luiz Fux
Marco Aurélio Mello
Marcus Faver
Massami Uyeda
Maurício Dinepi
Mauro Campbell
Maximino Gonçalves Fontes
Nelson Tomaz Braga
Ney Prado
Roberto Rosas
Sergio Cavalieri Filho
Sidnei Beneti
Siro Darlan
Sylvio Capanema de Souza
Thiers Montebello
Tiago Salles
Es
p
SÁ eci
Brasília
LV al:
IO U
Arnaldo Gomes DE mFa Ho
IG m
en
SCN, Q.1 – Bl. E / Sl.UE715
IR age
E m
Edifício Central Park DO a
Brasília – DF CEP: 70711-903
Tel.: (61) 3327-1228/29
Ano II - nº 4 - Outubro 2007
Manaus
Julio Antonio Lopes
Av. André Araújo, 1924-A – Aleixo
Manaus – AM CEP: 69060-001
Tel.: (92) 3643-1200
Erramos
Informamos que o texto de apresentação da entrevista do ministro José Antonio
Dias Toffoli, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, publicado na capa da
edição de junho, sob o título O Grande Desafio, conteve um erro. O último
parágrafo da abertura da entrevista (página 9) afirmava que o voto com a
biometria seria realizado em 15 cidades nas eleições de outubro próximo. O
sistema, na realidade, estará presente em 790 municípios e em 14 capitais do País.
Para acessar o site da Editora, baixe o leitor de QR code
em seu celular e aproxime o aparelho do código ao lado.
CTP, Impressão e Acabamento
Edigráfica
facebook.com/editorajc
Apoio
Associação dos
Magistrados Brasileiros
Colégio Permanente de
twitter.com/editorajc
Desrespeito à ordem republicana
O
s tristes e despropositados acontecimentos
ocorridos na abertura da Copa do Mundo de
futebol, com desrespeito e desprezíveis ofensas
de calão contra a presidente Dilma Rousseff,
quando se encontrava na tribuna do estádio em companhia
de altos dignitários estrangeiros, constituem vergonhoso e
lamentável atentado contra a instituição da Presidência da
República e as mais elementares normas de civilidade.
De há muito vimos nos batendo contra a tolerância
diante de uma horda de baderneiros que vem depredando bens públicos e privados com uso abusivo de liberdades asseguradas em lei, contando com a omissão contemplativa das autoridades responsáveis para desmandos
criminosos. Isso causa inequivocamente desmoralização
do governo e prejuízos muitas vezes irrecuperáveis a
estabelecimentos comerciais.
Torna-se incompreensível a vista grossa da Polícia que
permite a delinquentes mascarados o porte de barras de
ferro para danificar vitrines e bens públicos e privados.
A permissividade, a omissão e a tolerância diante de
atentados contra a ordem pública geram a anarquia que
se está instalando no País, propiciando que a desordem se
propague em detrimento da ordem e do interesse público.
A ofensa pessoal à Presidente da República, muito mais
que o desrespeito cívico, representa também ato indigno
contra uma mulher e mãe, independentemente de sua
posição política ou social, e deixa claro o caráter infamante
do ato.
Um registro indispensável
A lembrança desse episódio de desrespeito à Presidente
da República evoca, por semelhança, outro atentado
recente à normalidade democrática e republicana do País:
um advogado, ao que se diz alcoolizado, rompeu não
apenas os ritos jurídicos necessários ao funcionamento
do aparato judicial, como também as mais elementares
normas de urbanidade, ao usar a tribuna da mais alta
corte de justiça do País como picadeiro para um comício
político evidentemente faccioso e ofensivo; seguido por
impropérios e ameaças, após o presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, ser forçado
pelas circunstâncias a mandar retirar do plenário o
destemperado causídico.
Ao encerrar de moto próprio sua brilhante carreira na
mais alta corte do País, marcada pela minuciosa instrução
processual e relatoria perfeccionista da Ação Penal 470
(mensaleiros), o ministro Joaquim Barbosa dá mais um
exemplo de defesa tranquila, impessoal, isenta, firme, às
vezes combativa, das instituições brasileiras. Sua presença
engrandece o Judiciário Brasileiro. Já antecipara isso em
seu discurso de posse: “O Judiciário a que aspiramos é sem
firulas, sem floreios, sem rapapés. Buscamos um Judiciário
célere, efetivo e justo”.
O exercício da presidência do STF, é verdade, rendeulhe críticas de arrogância, destempero e intolerância.
Mesmo assim, não há notícia de que um ministro do
STF seja aplaudido em restaurantes, por transeuntes e até
moradores de rua e instigado a candidatar-se a presidente,
como exemplo de probidade e de que, pela educação
adequada, unida a esforço e determinação, um cidadão
brasileiro de origem pobre pode triunfar e servir de
exemplo a seus compatriotas. E é em respeito aos princípios
que a Revista Justiça & Cidadania se arrogou na defesa do
Poder Judiciário e da Magistratura, que deixamos a ele as
sinceras saudações.
Orpheu Santos Salles
Editor
Presidentes de Tribunais de Justiça
2014 Julho | Justiça & Cidadania 5
Gestão pautada no diálogo
Há três meses à frente da Corregedoria-Geral do Conselho da
Justiça Federal, o ministro Humberto Martins relata as ações que
pretende desenvolver para tornar o órgão mais aberto. Objetivo é
entender as necessidades dos juízes de 1o grau e do cidadão
À
frente da Corregedoria-Geral do Conselho da
Justiça Federal (CJF),
o ministro Humberto
Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quer intensificar o diálogo
com quem está na base da prestação
jurisdicional, ou seja, os magistrados
federais que atuam na primeira instância e a população que busca esse
ramo do Poder Judiciário.
Martins tomou posse como corregedor-geral da Justiça Federal no
último dia 23 de abril. Para alcançar a meta que estipulou para si,
ele afirmou que vai desenvolver um
modelo de gestão “mais preventivo e
pedagógico”.
De acordo com o ministro, a
Corregedoria-Geral do órgão de
planejamento da Justiça Federal detém os meios necessários para identificar os problemas e as barreiras
existentes à atividade jurisdicional
e à celeridade processual. “A Corregedoria é o órgão que primeiro tem
a oportunidade de se deparar com
as causas desses embaraços à atuação eficaz da Justiça Federal e pode,
por meio de estudos e planejamento,
oferecer sugestões normativas, ope6
racionais e de planejamento estratégico para diminuir esses aspectos
negativos”, afirmou.
Por isso, explicou, a importância
de estreitar a relação com a magistratura do primeiro grau. “Só com o
conhecimento da realidade do juiz é
que se pode dar soluções para as carências de um modelo de jurisdição
especializada como é o brasileiro,
único no mundo em sua extensão,
capilaridade e importância para a
vida cotidiana das pessoas”.
Martins também quer se aproximar da sociedade. Nesse sentido,
destacou que pretende estabelecer
uma relação direta e transparente
com a imprensa, com as associações, com a universidade e com os
jurisdicionados. “Nossa gestão será
marcada pelo caráter participativo e pela abertura à sociedade, que
será ouvida sempre que possível nos
principais projetos do Conselho da
Justiça Federal”, ressaltou.
O ministro falou também sobre
os planos que tem para o Centro
de Estudos Judiciários do CJF, que
também está sob o comando dele.
Martins informou que uma de suas
primeiras ações foi determinar a
constituição de uma comissão científica para assessorá-lo na análise
dos projetos de eventos e na definição do planejamento do órgão.
O corregedor-geral relatou ainda os planos que tem para a Turma
Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), da
qual se tornou presidente. Ele contou que o volume de processos nos
juizados especiais tem aumentado
substancialmente, o que reforça a
importância do aprimoramento do
órgão, por onde, na opinião dele,
passa “o futuro da Justiça Federal”.
Confira a íntegra da entrevista.
Revista Justiça & Cidadania –
Como o senhor vê o Conselho da
Justiça Federal e quais as suas expectativas ao integrar o quadro de
corregedores dessa instituição?
– O Conselho da Justiça Federal é
um órgão importantíssimo para o
funcionamento e para as atividades
da judicatura federal brasileira. O
órgão possui três missões de grande
relevo: zelar pelo aperfeiçoamento
técnico e científico da magistratura, por meio do Centro de Estudos
Judiciários; exercer a atividade corJustiça & Cidadania | Julho 2014
reicional; e uniformizar a jurisprudência dos juizados especiais federais no Brasil, por meio da Turma
Nacional de Uniformização. Perpassando essas três funções, há uma
atividade de caráter normativo e de
planejamento estratégico da magistratura federal que se verifica em
todos esses níveis, seja com a participação em projetos de resoluções,
portarias e leis que interferem na
Justiça Federal, seja com a formulação de ideias e planos que visem ao
aperfeiçoamento da Justiça Federal
e de seus plexos. Como em todas
as outras funções que tive a honra
de ocupar, a maior parte delas pela
generosidade de meus colegas ministros, encaro a nova missão como
uma forma de servir. Sim, de servir
ao jurisdicionado, que é cidadão e
um dos milhares de brasileiros que
precisa e acredita na Justiça como
meio de pacificação social. Nesse aspecto, tenho muito a aprender com
a experiência de meus antecessores,
que exerceram com dignidade e discrição essa impor­tante função.
JC – Qual será a marca da sua gestão à frente da Corregedoria-Geral
da Justiça Federal?
– Nossa gestão será marcada pelo
caráter participativo e pela abertura à sociedade, que será ouvida
sempre que possível nos principais
projetos do Conselho da Justiça
Federal. Especificamente quanto à
Corregedoria-Geral da Justiça Federal, é nosso objetivo maior dotar
o órgão de um perfil mais pedagógico e preventivo. A magistratura
hoje é exigida e demandada pela
sociedade, pelos órgãos de controle
externo e pelo jurisdicionado, sem
que as condições reais para exercício da judicatura tenham sido melhoradas substancialmente. Há uma
assimetria entre o que é demandado ao juiz e o que lhe oferecem de
condições para seu mister.
Foto: ACS/CJF
C apa, da Redação
Martins: “Nossa gestão será marcada pelo caráter participativo e pela abertura à sociedade”
2014 Julho | Justiça & Cidadania 7
Foto: ACS/CJF
Foto: Rosane Naylor/TJRJ
Ministro Humberto Martins quer intensificar visitas a seções judiciárias durante o mandato na Corregedoria da Justiça Federal
“Ser transparente é
administrar com participação
da sociedade e permitir a
todos a fiscalização dos atos
de gestão. Trata-se de uma
visão moderna da coisa
pública, que se inspira nos
modelos de accountability”
8
JC – O que o senhor pensa em fazer para aprimorar o
diálogo com a magistratura federal?
– Eu considero o diálogo como um elemento central para
qualquer atividade de gestão. Eu estarei permanentemente de portas abertas para a magistratura federal e suas
representações associativas. É nossa pretensão visitar as
seções judiciárias, acompanhar as atividades correicionais e os eventos que serão promovidos pelo Centro de
Estudos Judiciários, de modo a que possamos conhecer
de perto os problemas e a realidade dos juízes federais
brasileiros.
JC – Em que sentido, na sua opinião, a Corregedoria
pode contribuir para o aperfeiçoamento da Justiça Federal?
– A Corregedoria, especialmente quando assume a função
preventiva e pedagógica, tem condições de identificar
os problemas e os óbices à atividade jurisdicional e à
pronta e célebre oferta de justiça aos cidadãos. Não existe
uma realidade ideal, muito menos é possível imaginar
que nossa Justiça Federal seja isenta de defeitos e de
desvios. A Corregedoria, porém, é o órgão que primeiro
tem a oportunidade de se deparar com as causas desses
embaraços à atuação eficaz da Justiça Federal e pode,
por meio de estudos e planejamento, oferecer sugestões
Justiça & Cidadania | Julho 2014
normativas, operacionais e de planejamento estratégico
para diminuir esses aspectos negativos. Só com o
conhecimento da realidade do juiz é que se pode dar
soluções para as carências de um modelo de jurisdição
especializada como é o brasileiro, único no mundo em
sua extensão, capilaridade e importância para a vida
cotidiana das pessoas.
JC – O senhor afirmou, quando da posse como
corregedor, que a função da Corregedoria deve ser
marcada pela difusão de um valor que, nas suas palavras,
é incontornável: a transparência. Como garantir maior
transparência, no âmbito do Conselho da Justiça Federal
e também no âmbito da Justiça Federal?
– A transparência é hoje uma política de Estado no Brasil.
A Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, a famosa Lei
de Acesso à Informação, tem como uma de suas diretrizes,
que se conectam com os princípios constitucionais da
administração pública, o fomento ao desenvolvimento
da cultura de transparência nos órgãos públicos.
Antes mesmo da transparência, a impessoalidade e a
publicidade dos atos são imperativos que a ela se ligam
para fornecer uma tríade de pautas à atuação do gestor
público, do magistrado e do parlamentar. Ser transparente
é administrar com participação da sociedade e permitir
a todos a fiscalização dos atos de gestão. Trata-se de
uma visão moderna da coisa pública, que se inspira nos
modelos de accountability, que conjugam os mecanismos
clássicos de controle interno e externo às formas de
controle popular e social dos Três Poderes. Nesse ponto,
criar uma relação direta e transparente com a imprensa,
com as associações, com a universidade e com os
jurisdicionados é a forma mais eficiente de implementar
esse objetivo.
JC – Que diretrizes o senhor pretende imprimir à
direção do Centro de Estudos Judiciários?
– A magistratura federal é conhecida pela excelência de
seus quadros e por permanente busca dos juízes pelo
desenvolvimento de suas competências e habilidades nos
campos profissional e acadêmico. O Centro de Estudos
Judiciários (CEJ) tem a missão precípua de planejar e
executar seminários, congressos, encontros e cursos de
extensão voltados para os magistrados e serventuários da
Justiça Federal. Além disso, cabe ao CEJ a ação proativa
de pesquisar os problemas da Justiça Federal e oferecer
soluções racionais e eficazes. A tudo isso soma-se papel
preponderante de organização da informação jurídica e
de difusão de seu conteúdo para a comunidade. O CEJ
vem desempenhando seu papel com grande eficiência e
é nosso objetivo contribuir para o excelente trabalho já
levado a efeito pelos meus ilustres antecessores. Nesse
aspecto, determinei a constituição de uma comissão
científica para o CEJ, formada pelos professores Roberto
Rosas (UnB), José Rogério Tucci (USP) e Otavio Luiz
Rodrigues Junior (USP), que vai me assessorar na análise
dos projetos de eventos e na definição do planejamento
do CEJ. Trata-se de uma vertente de minha gestão
ligada à transparência e à participação da comunidade
universitária. Queremos que o diálogo JudiciárioAcademia seja intensificado. Ademais, pretendo contar
com a colaboração dos ministros do Superior Tribunal
de Justiça, valorizando suas experiências e suas ligações
com as diferentes seções judiciárias federais brasileiras.
Na sua avaliação, o que deve ser priorizado pelo CEJ
no que diz respeito a temas para o desenvolvimento de
pesquisas e realização de eventos de capacitação? Que
temas devem ser eleitos para discussão no âmbito do
CEJ?
– Alguns pontos eu reputo importantes nesse campo, os
quais se ligam aos movimentos de reforma legislativa
em curso no Poder Legislativo e à necessidade de debate
público das grandes controvérsias e dos conflitos que
são levados ao conhecimento do Superior Tribunal
de Justiça e da Justiça Federal. Assim, temas como a
improbidade administrativa, a reforma processual,
o processo eletrônico e os direitos da personalidade
devem receber especial atenção do CEJ. A pesquisa é
algo que deve ser permanente e ocupar posição de
preeminência no âmbito do CEJ. O aperfeiçoamento
técnico-profissional, a pesquisa e o diálogo com os
atores que formam a comunidade jurídica estão na
linha de frente de minha gestão.
Com relação à Turma Nacional de Uniformização dos
Juizados Especiais Federais, como o senhor vê o papel
desse colegiado no âmbito da Justiça Federal?
– Na Justiça Federal, em razão das reformas processuais
dos últimos 20 anos e, especialmente agora, com a
iminência da aprovação de um novo Código de Processo
Civil, houve deslocamento do volume de processos para
os juizados especiais. A estrutura física da Justiça, o
modelo processual e o desenvolvimento das tecnologias
da informação ainda não conseguiram corrigir esse gap
entre a realidade da vida cotidiana nos juizados especiais
e as previsões abstratas da legislação. A Turma Nacional
de Uniformização (TNU) é, nesse sentido, um órgão
cuja importância real ainda não foi descoberta pela
universidade, pelos pesquisadores e pela sociedade. É
preciso que a TNU seja aprimorada e que ela ganhe a
relevância que seu papel no contexto contemporâneo da
jurisdição brasileira exige. O futuro da Justiça Federal,
dito de outro modo, passa pela TNU.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 9
Márcio Vidal
N
Vice-Presidente do TJMT
este 1o de maio, o Tribunal de Justiça do Estado
de Mato Grosso completa seus 140 anos de
instalado, após ter sido criado pelo Decreto n.
2342, de 6 de agosto de 1873, sob a égide do
Brasil Império.
Naquela oportunidade, chamado de Tribunal da
Relação da Província de Mato Grosso, era composto
por quatro desembargadores e constituía-se de cinco
comarcas, a saber: Cuiabá, Corumbá, Cáceres, Diamantino
e Sant’Ana de Paranaíba.
Hoje, com a estrutura tripartite da República, sendo o Judiciário uma das pilastras do Estado Democrático de Direito,
a estrutura e a organização dos Tribunais, entre os quais o de
Mato Grosso, passaram por grandes transformações, para
atender às demandas crescentes e mais complexas.
Dessa sorte, nos tempos hodiernos, o Tribunal de
Justiça do Estado de Mato Grosso, após a Carta Política
de 1988, alcançou o total de 30 desembargadores, dos
quais 24 provêm da Carreira da Magistratura Estadual e
seis do Quinto Constitucional (três do Ministério Público
Estadual e três da Ordem dos Advogados do Brasil –
Seccional de Mato Grosso), para dar conta da prestação
jurisdicional demandada nas 79 comarcas, e, com isso,
registra mais de um milhão de processos em tramitação.
De lá para cá, embora os números de sua organização
tenham crescido, não é demais lembrar que o salto que
10
Foto: TJMT
Tribunal de Justiça do
Estado de Mato Grosso
inicia sua trilha decenal
rumo ao sesquicentenário
se verificou no país, como um todo, e em Mato Grosso
em particular, em quase um século e meio, não guarda
termos de comparação, porque a sociedade, moderna e
contemporânea, mudou radicalmente não só em termos
quantitativos, mas, sobretudo, em termos de exigências,
próprias dos novos tempos, da modernidade, dos avanços
sociais, políticos, culturais, científicos e tecnológicos. Enfim,
tem-se, hoje, uma realidade sociocultural inimaginável
há 140 anos. Portanto, os idos de 1874 representam os
primeiros passos do Judiciário neste estado, então Província
de Mato Grosso, abrangendo, então, o atual estado de Mato
Grosso do Sul e o de Rondônia, antes Território do Guaporé.
A preocupação com números e estatísticas sociais
constitui ênfase da sociedade contemporânea, em que
os interesses marcados pela subjetividade misturam-se e
disfarçam-se entre os interesses coletivos. É a hegemonia
dos dados estatísticos, pelos quais os indivíduos compõem
um todo, traduzido em termos percentuais. Essa é uma
mudança de perspectiva, ou de paradigma, que marcou e
marca a sociedade globalizada.
Por essa razão, os números não permitem comparar,
grosso modo, o quantitativo de feitos enfrentado pelo
Tribunal da Relação da Província de Mato Grosso,
proporcionalmente, em face do quantitativo das demandas
que percorrem o Tribunal de Justiça do Estado de Mato
Grosso, na atualidade.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Esses números preliminares (cinco comarcas) do
Tribunal da Relação e quatro desembargadores contra 79
comarcas, 30 desembargadores e mais de um milhão de
feitos em tramitação, na atualidade, permitem evidenciar
o descompasso entre as duas situações, em que, sem
dúvida, em que pese a toda a contribuição do emprego
da tecnologia informacional moderna, ao que parece, a
prestação jurisdicional, paradoxalmente, tornou-se mais
precária, ao longo da República.
É de considerar, contudo, que os reflexos da
Revolução Francesa que trouxeram à tona o universo das
reivindicações que marcam, nos dias de hoje, o exercício
da cidadania sobre a coisa pública (res publicae), no Estado
Republicano Moderno, gradativamente, abriram espaço a
que a prestação jurisdicional, antes só reivindicada por
classes sociais mais favorecidas economicamente, passasse
a constituir a pauta das classes sociais ditas despossuídas.
Logo, a ampliação do exercício da cidadania, ainda que
não tenha atingido a maioria da população, em termos
da prestação jurisdicional, sem dúvida, deu gigantesco
salto quantitativo, sem que, proporcionalmente, tenham
sua estrutura e a organização judiciárias acompanhado a
demanda.
Aliás, pode-se afirmar que esse não é um “privilégio” do
Judiciário. Nada obstante a todos os avanços e conquistas
sociais, o fato é que, inegavelmente, essa constatação estende-
se, de forma lamentável, a todas as atividades essenciais do
Serviço Público deste país, quais sejam: Educação, Saúde,
Segurança e Justiça, seja esta a institucional, seja a social,
sobretudo porque as políticas públicas só emergem para
nefastos fins eleitoreiros.
Infelizmente, o crescimento quantitativo, em todos os
seus aspectos, não foi devidamente acompanhado pelo
desenvolvimento socioeconômico que teria levado este
país ao concerto das nações consideradas desenvolvidas.
Resistente às intempéries, o Tribunal de Justiça do
Estado de Mato Grosso completa seus 140 anos, e, como
já destaquei em texto anterior a ele dedicado, mais do
que centenário, mantém-se sujeito e, ao mesmo tempo,
testemunha de sua história, conforme registram seus
arquivos, vivos ou mortos, antigos ou modernos, e
guardam, silentes, discretos, recolhidos, histórias gloriosas,
por vezes e, por outras, nem tanto.
Apenas dez anos – que, na linha do tempo histórico
da humanidade, é quase nada – separam-no de seu
sesquicentenário! Por seus corredores, quanta história, em
tão pouco e em tanto tempo que a locomotiva deixou para
trás, mas tem pela frente o infinito!
Quantos por seus corredores transitaram, ou ainda
transitarão, julgados ou não? Pelo sim, pelo não, merece
este Tribunal comemorar o tempo que já venceu e investir
no tempo que já vem, como bem o disse o cantor e poeta
da MPB, Chico Buarque, “desde o ano passado para o mês
que vem, que já vem, que já vem...”, a exemplo de Pedro
pedreiro que espera o trem...
Em honra da importância de seu papel junto ao corpo
social, gostaria de prestar-lhe breve reverência, sobretudo
pela independência que deve ter, notadamente nesses
tempos conturbados, de tanta violência e de disputas
políticas acirradas e, não raro, pouco, ou nada, éticas.
Em que pese tão lamentáveis circunstâncias históricas,
que cercam não apenas a sociedade brasileira, mas grande
parte da ordem política internacional, e ainda que alguns
países conservem-se monárquicos, como é o caso da Inglaterra, o Estado Moderno, fruto do processo civilizatório,
sustenta-se no equilíbrio dos poderes constituídos.
Com lastro nessas rápidas digressões, assevero que,
por este Tribunal, já passaram muitos homens honrados e
de grande cultura, como aqueles que ainda integram suas
hostes, símbolos que são de independência, defensores
da lei e da justiça, e que dedicam, ou dedicaram, sua
vida em prol da construção e do aperfeiçoamento
deste Judiciário, a serviço da sociedade e da prestação
jurisdicional. Confundem-se eles com a tradição histórica
desta instituição, dignos que são da liturgia do cargo que
ocupam, ou ocuparam.
Por tudo isso, em honra dessa tradição e da liturgia
da Justiça, cabe às gerações que ora se formam suceder-
2014 Julho | Justiça & Cidadania 11
12
discutível o mérito da magistratura, em seu mister de
guardiã da democracia, dos direitos, das garantias sociais, enfim, do exercício da cidadania, neste momento
especialmente crítico da história da humanidade, quando, ao invés de evoluir, muitos indivíduos insistem em
regredir à barbárie.
Não apenas por isso, que já é bastante, estendo a todos
os Colegas da Magistratura a homenagem que ora presto
ao insigne Desembargador José Barnabé de Mesquita,
imortalizado no busto que representa sua imagem de
homem íntegro, figura impoluta e valorosa que tantos
anos de sua não longa existência – diga-se de passagem –
dedicou, como timoneiro, a este Tribunal.
Permanece seu busto, tal sentinela perene, firme,
desperta, indormida e consagrada que, incansavelmente,
guarda este Tribunal, como se sobre ele estendesse sua
toga, qual manto protetor, recobrindo e preenchendo, com
sua lembrança, todos os espaços deste Sodalício que jamais
o relegou ao esquecimento... Tanto é assim que ostenta seu
busto, como um troféu de todos que integram esta Corte
de Justiça, enlaçados pelo Colar do Mérito Judiciário e
condecorados com a Medalha do Mérito Judiciário José
Barnabé de Mesquita.
Encerro esta mensagem com os comoventes e
preciosos versos no magistral soneto de poeta parnasiano
retardatário, que o insigne e ínclito Desembargador José
Barnabé de Mesquita o era e, por não mais que isso,
caprichosamente os urdiu, com a delicadeza de joalheiro
das palavras, para homenagear a querida Cuiabá:
CIVITAS MATER
Meu carinho filial e meu sonho de poeta
Veem-te, ó doce cidade ideal dos meus amores
Em teu plácido vale, entre colinas, quieta,
Como um Éden terreal de encantos sedutores.
Tuas várzeas gentis estreladas de flores
Sagram-te do sertão a Princesa dileta
E o sol te elege, quando, em íris multicores
Na esmeralda dos teus palmares se projeta.
Nenhuma outra cidade assim à alma nos fala,
Dos teus muros senis a tradição se exala
E a nossa História inteira em teu brasão reluz.
Ainda hoje em teu ambiente, ó minha urbe querida,
Paira dos teus heróis a sombra estremecida
– Nobre Vila Real do Senhor Bom Jesus!
Cuiabá, outono de 2014.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Poder Judiciário:
culpado ou inocente?
Márcio Flávio Salem Vidigal
Desembargador do TRT 3ª Região
Foto: Leonardo Andrade
lhes na condução do bastão, a ser levado rumo ao
desconhecido, ao imprevisível. Se por mais não fora, urge
que se preparem os magistrados do presente para o futuro,
imediato e o remoto, na certeza de que os modelos de hoje
poderão ser inadequados e insuficientes para a sociedade
do porvir.
A história do conhecimento tem mostrado que toda
evolução experimenta o antes, o agora e o depois, em
uma sequência cujo presente constitui o elo de ligação,
necessário, imprescindível, entre o passado e o futuro;
sem essa integração, não há evolução possível. A novidade
de hoje será o ultrapassado de amanhã, assim como os
modelos se renovam, mas jamais se perpetuam como
novos, porque, tão logo se atualizam, estão superados
no momento seguinte. É assim que caminha a produção
do conhecimento através do tempo, atravessando toda a
história da humanidade.
Diante disso, a Justiça, como instituição, integra e
acompanha essa realidade, cumprindo-lhe administrar as
relações sociais no mundo jurídico, em consonância com o
contexto sócio-situacional, em cada época, e segundo suas
circunstâncias sociojurídicas. Não só por isso, a instituição
judiciária precisa aparelhar-se com novos instrumentos
tecnológicos e com novos modelos de recrutamento de
seus quadros, que se devem dotar da capacitação necessária
e exigida para jurisdicionar nas novas realidades, em que
são gestados problemas cada vez mais inusitados, por vias
cada vez mais exóticas.
Basta considerar, por exemplo, a reação que se vem
forjando, para se destacarem os indivíduos nas chamadas
redes sociais, advindas da globalização das comunicações.
Assim, vias como Facebook, blogues etc., enfim, todas
aquelas que utilizam a rede mundial de computadores, têm
constituído ambientes não só desse processo neoliberal
subjetivista global, como também de práticas delituosas
ou criminosas, muitas vezes, de difícil solução, porque
os aparatos, repressivo, policial e judicial dos estados não
estão suficientemente preparados para combater nessa
frente de batalha, além do que não há orçamento público
possível que possa suprir as necessidades ilimitadas de
atualização tecnológica permanente, em geral sustentada
pelo grande capital privado, nas mãos de poderosos
grupos financeiros.
Diante desse quadro dramático, mas não só por
isso, os poderes do Estado Moderno e Contemporâneo
estão em crise. As imagens televisivas dão a dimensão
do desaparelhamento dos Estados para debelar as ações
aparentemente desordenadas para estabelecer o caos pela
intensa mobilização, por tudo e por nada, contra a atuação
estatal, ao que parece.
É nesse contexto social que a Justiça hodierna deve
dizer a que veio e qual o seu papel. Por tudo isso, in-
A
s discussões sobre as dificuldades do Poder
Judiciário brasileiro têm revelado que o tempo
excessivo na administração da justiça constitui
grave perigo para o Estado Democrático,
conduzindo à negação dos direitos previstos pela
Constituição e pela legislação, muitas vezes com reflexo na
dignidade da pessoa, princípio universal consagrado no
ordenamento jurídico brasileiro e alçado a valor supremo.
A situação, é claro, está a exigir imediata e urgente tomada
de posição na busca da solução de um problema estrutural
da duração do processo, o que requer forte empenho de
toda a sociedade.
Na verdade, a contínua produção de leis, as sucessivas
alterações que se fazem no ordenamento processual, as
novidades que se imaginam, a construção de um aparato
unicamente jurídico, destituído de consciência social, são
medidas tão inócuas quanto o ritmo e a corpulência que
se lhes são conferidas. O mundo atual indica, ao contrário,
e com rigor, a impostergável necessidade da adoção de
novo espírito e de nova postura de solidariedade e respeito
sociais, o respeito a valores culturais, com o consequente
exercício consciente de responsabilidade por parte de todos
os segmentos da sociedade. Entre eles, evidentemente,
as instituições estatais e as pessoas jurídicas de direito
privado e de direito público, que tanto concorrem para
o desconfortável e volumoso número de ações e litígios
em curso perante as distintas jurisdições (civil, penal,
trabalhista, ambiental, consumerista, tributária etc.).
Não é difícil verificar quantos acorrem ao Poder
Judiciário com a visão individualista e exclusivista, própria
de uma ideologia irresponsável, de que podem utilizá-lo
sem preocupação alguma com os resultados institucionais
ou sociais que tal atitude possa causar. Bem por isso é que
qualquer plano que se pretenda elaborar para o alcance da
almejada duração razoável do processo e da efetiva prestação
jurisdicional será tão inútil quanto for o seu desprezo pelo
sentimento de que um só, e apenas um, processo tem
reflexos de toda ordem sobre toda a sociedade.
A visão elástica de que o Estado – logo, a sociedade
– está sempre a serviço de interesses individuais ou de
grupos (de casta privilegiada, no mais das vezes), com
a possibilidade de manutenção indevida e onerosa de
processos inacabáveis, é própria de uma era já ultrapassada
e de mentalidade obtusa que se instaurou, desde longa
data, sobretudo nos países em que quase tudo é possível
em nome de uma equivocada concepção de democracia. A
análise, por isso mesmo, não pode se resumir a uma suposta
cultura demandista nacional, conquanto se deva admitir
que tal estado de ânimo tenha se agravado na sociedade
brasileira por força de uma interpretação equivocada da
garantia constitucional do acesso à justiça, que se presta à
variada espécie de abuso. Por isso, muitas vezes processase e se é processado por vingança, por pirraça, por inveja,
por se tratar de um bom negócio, por tentativa, por tudo.
É preciso lembrar, ainda, a bem de todos, que “direitos
são serviços públicos que o Governo presta em troca de
tributos”, como assinalam Stephen Holmes e Cass Sunstein
em seu precioso The cost of rights: why liberty depends
on taxes (New York and London: W. M. Norton, 1999,
p. 151). E concluir que a sociedade não pode arcar com
a reprovável postura de um ou de alguns (incontáveis,
na verdade) que, por capricho ou conveniência, mantêm
abarrotado o sistema judiciário.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 13
Foto: João Andrade
Judiciário e América Latina:
Feridas democráticas
Antonio Aurélio Abi Ramia Duarte
P
Juiz de Direito do TJRJ
assados anos e anos de regimes autoritários e
sangrentos, com a perda de inúmeras vidas de
diversos militantes políticos, estudantes, professores, jovens, juízes etc., a América Latina
esperava, ansiosa, pela vinda de novos ares democráticos,
distanciados das políticas populistas.
Nós, latino-americanos, aguardávamos pelos dias
da concretização da democracia plena e comprometida
com a real vontade popular e não com projetos políticos
de grupos setorizados e seus interesses. Esperávamos a
igualdade concreta de oportunidades, o resguardo dos
direitos fundamentais, um Estado pautado pela liberdade
de expressão e por um Judiciário livre de influências
externas ou castrações políticas, verdadeiramente
independente.
Este é ponto central e que merece nossa reflexão, ou
seja, quais são as limitações das mais diversas ordens
que vêm sendo impostas aos povos latinos, despertando
nossa curiosidade para indagações como: até que ponto a
América Latina possui um Judiciário livre de amarras? Os
juízes latinos são livres e independentes de verdade? Os
povos latinos percebem o grau de independência do seu
Judiciário ou tal fato parte de um enredo político que soa
como uma reforma natural e necessária por um judiciário
“dito” melhor?
Aqui não pretendo encontrar respostas objetivas, mas
aguçar a reflexão acerca do nosso papel e do nosso estágio
14
atual, bem como do que está ao nosso redor e, por vezes,
não percebemos.
Testemunhamos todos os dias, quer pelos jornais, quer
por artigos técnicos publicados em toda parte do mundo,
quer pelos diversos meios de comunicação, referências de
que alguns países latinos adotam discursos constitucionais
para justificar suas democracias em franco e radical
processo de cerceamento das atividades judiciais e dos
meios de comunicação. O Judiciário tem sofrido severas
limitações em sua independência como poder e na atuação
de seus membros, sofrendo franca manipulação na sua
atuação e limites.
Para que nossa reflexão tenha a medida exata da
situação imposta aos juízes pelo mundo, em que pese
tratarmos da América Latina, vale a reflexão com relação à
situação vivida pelos magistrados na Espanha.
Naquele país, os julgadores não percebem tipo algum de
aumento desde 2010; ou seja, persistem por mais de quatro
anos sem qualquer forma direta ou indireta de reajuste, em
condições econômicas concretamente desfavoráveis. Ao
contrário, no ano de 2012, impuseram aos nossos colegas
espanhóis uma redução em seus vencimentos de 9%,
fato da mais relevante gravidade. Com isso, além de não
desfrutarem de qualquer forma de reajuste, tiveram seus
salários reduzidos.
Diante de um quadro tão comprometedor, os magis­
trados da Espanha promoveram a primeira greve instada
Justiça & Cidadania | Julho 2014
pela classe, com alcance de 1.025 juízes, dos cerca de 4,5
mil que atuam no país ibérico. Ganha relevância o fato
de o movimento em questão ter sido subscrito pelos
julgadores decanos, estes insatisfeitos com as constantes
interferências sofridas no seu âmbito de atuação, portanto,
fruto da madura reflexão e experiência daqueles que
ocupam o ápice da pirâmide. Não estamos tratando de um
movimento nascido do ímpeto juvenil.
Notícias dão conta de que a paralisação teve início
devido a uma punição de 1.500 euros imposta a um
magistrado, além de outros itens, como se percebe
detalhadamente no trecho transcrito abaixo, que culminou
no ato conhecido como Movimiento 8 de octubre (Greve da
Magistratura):
El detonante del paro de hoy ha sido el caso del juez de Sevilla
Rafael Tirado, multado con 1.500 euros por no ejecutar la
sentencia que condenaba por abusos al presunto asesino de
Mari Luz. La sanción no satisfizo al Gobierno y así lo hicieron
saber la vicepresidenta Primera, Mª Teresa Fernández de la
Vega, y el propio Bermejo. El pasado 8 de octubre, los jueces
decanos firmaron un documento en el que rechazaban las
“constantes injerencias” políticas en el CGPJ, lo que dio nombre
al Movimiento 8 de octubre. El 21 de octubre, los tribunales
se paralizaron en toda España durante tres horas al coincidir
el paro de los secretarios judiciales en protesta por la sanción
a Juana Gálvez, secretaria de Tirado, con las juntas de jueces
convocadas para denunciar las “presiones políticas.
Tal movimento culminou com a demissão do
ministro da Justiça, sendo nomeado novo, que retomou
o diálogo com as associações de juízes para uma solução
comum. Ademais, a questão da greve foi submetida ao
Tribunal Supremo da Espanha, com resultados altamente
proveitosos para os magistrados daquele país, sendo
absolvidos os juízes que dela participaram, reconhecido
o direito de manifestação dos julgadores, e, por fim,
confeccionado documento com reinvindicações da classe.
Não resta dúvida de que o Judiciário, em toda parte do
mundo, sofre tensões de poder em sua atuação e seu espaço;
contudo, vivenciamos um quadro mais acentuado no
nosso continente, uma realidade altamente comprometida
em alguns países, com a consequente e clara violação
da independência e liberdade de atuação do Judiciário
(quer do poder em si, quer de seus membros), sob o
crivo legitimador dos regimes populistas e democráticos
radicais. Algo preocupante, eis que tratamos de nossos
vizinhos-irmãos, a nossa porta ao lado...
Como bem destaca o Prof. Javier Couso, em importante
estudo realizado pela Universidade de Yale, países como
Bolívia, Equador e Venezuela debilitaram gravemente
a separação dos poderes, em franco prejuízo ao Poder
Judiciário e à sua endógena independência.
Leciona Couso que a magistratura na Bolívia e Equador
está sob o controle popular e do Executivo, mediante o
aval do parlamento e do conselho judicial; já na situação
2014 Julho | Justiça & Cidadania 15
16
Desenvolvimento, somente 0,8% da população confiava
no Judiciário venezuelano.
Outro exemplo tópico decorre do ano de 1999, quando
a assembleia nacional declarou que o Poder Judiciário
da Venezuela encontrava-se em estado de emergência,
criando uma comissão para reformá-lo. Com o início
dos trabalhos desta comissão, ocorreu a destituição, da
noite para o dia, de centenas de juízes. Basta recordar que
três dos magistrados mais independentes e atuantes, que
proferiram as decisões mais criticadas por Chávez, foram
destituídos de suas funções sumariamente.
Adiante, as demissões chegaram a mais de 400 juízes,
chegando ao ponto de 80% dos juízes venezuelanos
ocuparem cargos temporários e provisórios, logo, podendo
ser destituídos sumariamente.
Em outro vizinho do Brasil não temos situação
diversa. No Equador, o parlamento dissolveu o Tribunal
Constitucional e nomeou nova Corte Constitucional em
substituição à anterior, com o especial encargo de solver
uma questão relativa à destituição de 57 deputados
opositores ao governo, deputados que foram sumariamente
destituídos.
Na Argentina, o governo de Cristina Kirchner ofertou
proposta de retirada da Suprema Corte do poder de
administrar e gerir seu próprio orçamento, sendo tal
transferido para o Conselho da Magistratura (órgão que
nomeia, sanciona e destitui juízes), em clara reação a
decisões contrárias aos interesses do Executivo argentino.
E mais: tal proposta é ofertada em um pacote que o governo
denominou de “democratização da Justiça”.
Tal quadro nos reporta a uma situação de “quasede­mocracia”, na qual os líderes latinos pretendem
questionar a legitimidade dos tribunais, além de outros
fatos mais atentatórios à liberdade humana, algo da mais
Foto: Depositphotos
específica da Venezuela, sob o controle governamental
encarregado da nomeação dos julgadores.
Notem que estamos tratando de eleição “populares”
em países de democracias tardias e populistas, com um
déficit moral e educacional gritantes, para composição de
órgãos julgadores, com todas as especificidades políticas
inerentes a tal processo eleitoral, em franco processo de
degradação da independência do nosso Judiciário.
Mais uma vez, Javier Couso, no importante estudo
apresentado à Universidade de Yale, conclui que o “novo
constitucionalismo” latino-americano tem muito pouco
de constitucional devido à sua hostilidade à separação dos
poderes e à independência da magistratura, entendendo
pela intromissão de fatores pouco democráticos nos
diversos mecanismos judiciais de preservação de valores
essencialmente legítimos e na composição do próprio
poder em si. Reitero, esta é a conclusão do trabalho
apresentado a uma das mais renomadas universidades do
mundo, fato demonstrado cientificamente.
Passando para o caso particular da Venezuela,
podemos constatar tal intromissão em diversos campos
de atuação política, em regra, promovidos por regimes
“democráticos” e “populares”.
A ONG Human Right Watch denunciou, em substancial estudo com mais de 200 páginas, que o máximo tribunal venezuelano converteu-se em um fantoche
do governo. Tal fator é desencadeado a partir de 2004,
quando havia um equilíbrio entre os 20 membros da
Suprema Corte (10 favoráveis a Húgo Chávez e 10 contrários). Diante da necessidade de maior controle das
decisões, foi promovida uma reforma pelo governo de
Chávez, ingressando novos 12 juristas com tendências
Pró-Chavismo. Consequentemente, com a nomeação
dos novos 12 juristas pelo Poder Executivo venezuelano, o governo passou a ter situação altamente favorável
aos seus interesses, alcançando a maioria dos votos necessários.
José Miguel Vivanco, da ONG Human Right Watch,
nos faz lembrar: “De entre todas las medidas de recortes
de libertades y derechos humanos, la ONG destaca una
especialmente grave: la ley que reformó el Tribunal Supremo
en mayo de 2004. ‘Con la reforma, Chávez incorporó a
12 jueces chavistas, se hizo con la mayoría y convirtió al
tribunal en un apéndice del Ejecutivo’”.
Após apresentar tal relatório crítico ao governo e suas
reformas, o diretor da Human Right VIVANCO (chileno)
foi expulso daquele país, sendo sumariamente conduzido
para o aeroporto Simón Bolívar com destino a São Paulo.
Notem: a mesma democracia que expulsa escolhe os
julgadores e dita as reformas judiciais.
Tal situação é tão gravosa que, em pesquisa feita
em 1998 pelo Programa das Nações Unidas para o
perversa gravidade. Tal constatação foi objeto de atenção
do Ph.D. por Harvard e professor das Universidades de
Hamburgo e Connecticut School of Law Ángel Ricardo
Oquendo, em publicação feita pela Universidade de Yale,
cujo trecho merece nossa profunda reflexão:
After evolving into a quasi-constitutional regime that
boasts virtually universal recognition and a respectable
compliance record in Latin America, the Inter-American
Human Rights System presently faces a life-threatening
crisis. Several countries, under the leadership of the selfstyled Bolivarian Axis of Venezuela, Ecuador, Bolivia,
and Nicaragua, have questioned the legitimacy of the
key institutions, i.e., the Commission and Court. Not
surprisingly, high-profile actors have intervened in this
interfamilial war. Ecuador’s President, Rafael Correa,
for instance, has urged the sponsoring Organization of
American States, in the face of the ongoing dispute, to
“revolutionize itself or disappear.” 3 Bolivian President
Evo Morales, in turn, has proclaimed that the entity must
either “die at the service of the empire or be born again to
serve the peoples of the Americas.
Não resta a menor dúvida de que todas as medidas
acima descritas e uma centena de outras que ocorrem
nos países latinos evidenciam clara violação ao art.
8o da Convenção Americana de Direitos Humanos,
que estabelece julgamentos por juízes competentes,
imparciais e acima de tudo independentes. A relevância
da independência e imparcialidade também é exigida pela
Convenção Europeia de Direitos Humanos, em seu artigo
6o, fator a reforçar o zelo de todos pela independência e
liberdade do Judiciário.
Quanto mais castrado e limitado o Judiciário, seja
interna ou externamente, mais prejudicado é seu povo, de
menos liberdade usufrui, mais massacrado é pelo Estado,
mais atrasado cultural e socialmente se revela.
Uma certeza nos resta: não há democracia com um
Judiciário controlado e tolhido, com juízes amedrontados.
Não é esta a verdade democrática que o povo espera da
Justiça.
Dezenas de outros exemplos nos reportam à reflexão
relativa ao tema da independência do Judiciário, restando
claro que os poucos casos ora transcritos renovam a
necessidade de máxima vigilância e a percepção crítica
do que está ao nosso redor. Lutemos para que nossa casa
persista sempre livre, lembrando a observação de Oscar
Wilde de que “a verdade raras vezes é pura e nunca é
simples”.
As notas de rodapé foram suprimidas para composição do texto com
autorização do autor. A íntegra do artigo encontra-se disponível pelo
link: http://bit.ly/1qsdRwv
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 17
Foto: Mariana Bueno
O fenômeno do
superendividamento:
uma resposta ao desamparo
na sociedade moderna
Alexandre Chini
Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro
Diógenes Faria de Carvalho
Professor Universitário
Alexandre Chini
O
1. Introdução
endividamento de consumidores é, de fato,
um dos temas mais instigantes e socialmente
relevantes que dizem respeito à autoproteção
dos consumidores. Endividamento é um fato
inerente à vida social, comum na sociedade moderna,
pois mesmo os consumidores que não se endividam ou
pagam à vista têm à sua disposição infinitas possibilidades
de contrair crédito e fazer empréstimos. Essa é a lógica
que move o mundo capitalista no ocidente. Assim, quase
sempre, para ter acesso a bens e serviços, os consumidores
se endividam constantemente.
O tema tem sua relevância tanto no aspecto social,
quanto do indivíduo e ainda em suas decorrências
jurídicas. O aumento do consumo atrai as pessoas, que se
veem atônitas diante de tanta oferta de crédito facilitado.
Na sociedade moderna, o consumo passou a ter o papel
de satisfazer as necessidades e realizar desejos, para muito
além das necessidades e desejos considerados básicos ou
necessários para a sobrevivência.
Desse modo, os consumidores contemporâneos não
buscam apenas o bem-estar material, mas também o
bem-estar psíquico, que é promovido pela aquisição
desenfreada dos mais variados itens de consumo, o que
acaba por modificar o conceito de necessidade.
18
2. A concessão de crédito como estímulo para o
endividamento
O endividamento e o consumo de produtos e serviços
específicos estão relacionados à necessidade que temos
de aprovação de outros. E o capital, então, determina a
receptividade e adesão a um grupo social, até mesmo
determinando as amizades.
Nota-se que a substituição do desejo de ser amado
pelo desejo de aprovação, de se destacar, de ser melhor
que outros, de impressionar e de ser importante agravou o
problema do endividamento dos consumidores.
O problema do endividamento está associado não
somente ao estilo de vida urbano, em que o acesso a
diferentes tipos de bens e serviços é acompanhado de
forte pressão social para adquirir estes, mas também à
compulsão do homem moderno por aprovação.
Nos dias de hoje, diferentemente do que ocorria nas
décadas passadas, a disseminação do crédito faz que
grande parte dos bens seja acessível a todas as camadas
sociais, sendo a sua aquisição o fator que viabiliza inclusão
ou pertença a essa sociedade de consumo. Como bem frisa
Lipovetsky: “o consumo para si suplantou o consumo para
o outro” (LIPOVETSKY, 2010, p. 42). Todo mundo busca
a aprovação e a admiração nos olhos dos outros. E bem
Justiça & Cidadania | Julho 2014
observa Bauman: “as bases para a autoestima fornecida
pela aprovação e admiração de outro são notoriamente
frágeis” (BAUMAN, 2009, p. 59).
Na sociedade contemporânea, há verdadeira mania
pelas marcas, que trazem intrinsecamente a ideia de
qualidade para si, surgindo compulsão pela aprovação,
fazendo que o indivíduo da sociedade moderna substitua
valores morais pelo desejo de brilhar, de ser melhor que os
outros, de impressionar, ou de ser importante.
O esforço pela aprovação, para provar uma coisa
ou para se sentir incluído torna-se uma luta constante
e totalmente inútil. Nada que não seja autêntico pode
trazer satisfação. Mesmo que experimentando “vitórias
temporárias” – admiração, aprovação, seja o que for – a
sensação final será de insatisfação e desamparo.
O processo de consumo traz questões acerca da subjetividade dos sujeitos e, nas concepções freudianas de sujeito e
constituição, Freud (1895) desenvolveu um conceito fundamental para a análise da constituição do sujeito: o desamparo. Dessa feita, para esse autor, o desamparo é uma condição
inerente ao ser humano, considerando-a como a dimensão
a partir da qual se desenvolverá a vida psíquica do sujeito.
Nesse diapasão, verifica-se que, na sociedade moderna,
os indivíduos são submetidos aos seus desejos e os fornecedores apresentam seus produtos com a promessa de grati-
ficação total. E esse desejo, sensorial e ilusório, passa a ser
realizável. Daí observa-se uma cultura em torno da imagem,
da aparência, da boa forma, da juventude, que encontra
suporte na demanda desse sujeito, e a subjetividade torna-se,
então, uma peça fundamental para o sucesso desses fornecedores, pois o sujeito tem a sua demanda satisfeita, ilusoriamente, pelos produtos ofertados.
A partir dessa leitura do sujeito observado por Freud
(1895), podemos pensar a cultura do consumo nessa sociedade moderna. Segundo o autor psicanalítico, o nascimento é a primeira experiência de ansiedade e desamparo pela
qual passa o indivíduo, pois, com o corte do cordão umbilical, dá-se início a um irreversível processo de adaptação e
luta pela sobrevivência. A criança quando abandona o mundo uterino inicia um processo de desenvolvimento rumo à
realidade concreta: simbolicamente, marca a passagem da
gratificação completa à permanente falta.
Segundo Freud (1895), essa primeira experiência de
ansiedade do ser humano, ou seja, a criança anteriormente
fundida com a mãe, ao deixar seu casulo da vida uterina,
entra em contato com a realidade que, de início, é uma
fonte intensa de ansiedade. À medida que a criança
começa a perceber a mãe como objeto externo, surge o
receio de perdê-la, pois é a fonte do alimento, do cuidado
e do carinho. E sempre o afastamento da mãe é visto como
uma ansiedade para a criança.
Com o passar do tempo, a mãe tem outros interesses e
necessidades, não podendo estar disponível na totalidade.
A partir daí, a criança começa sentir uma perda e, para
recuperar o suposto amor perdido da mãe, quer obter o
reconhecimento e a sua aprovação.
No texto Projeto para a Psicologia Científica, Freud
(1895) desenvolve o conceito de desamparo, apontando-o
como uma característica diferencial e constitutiva do ser
humano, que nunca poderá ser superada pelo sujeito,
pois este buscará sempre meios que possam, ainda que
ilusoriamente, suprimi-lo.
Então, esse desamparo ou vazio não é somente consti­
tutivo do sujeito, como é também constituinte. O ser
humano sempre terá um busca constante do que possa
satisfazer-lhe, preenchendo um vazio inaugural e, em uma
repetição pela busca de aprovação, de questões observadas
anteriormente em relação à sociedade de consumidores.
Assim, a sociedade de consumo só prospera quando
perpetua essa sensação de desamparo dos seus membros, e
sua insatisfação é agravada ainda mais pela frustração e pela
infelicidade de uma total e inútil batalha, observando-se que
nada que não é autêntico pode gerar a felicidade. E de modo
superficial, esconder um desejo original jamais é autêntico.
Para Bauman (2008), a sociedade de consumo utiliza
como seu alicerce a promessa de satisfazer os desejos
humanos em um nível que nenhuma sociedade no
2014 Julho | Justiça & Cidadania 19
“O problema do
endividamento está
associado não somente ao
estilo de vida urbano, em
que o acesso a diferentes
tipos de bens e serviços
é acompanhado de forte
pressão social para adquirir
estes, mas também à
compulsão do homem
moderno por aprovação”
passado poderia imaginar em alcançar ou, menos ainda,
tenha alcançado, mas a promessa de satisfação somente
permanece sedutora enquanto o desejo siga insatisfeito.
A decepção do sujeito moderno é inevitável na medida
em que jamais esses indivíduos poderão atingir a posição
que desejam; a vitória é sempre momentânea e jamais
inclui tudo aquilo que eles gostariam de ver como
satisfeitos.
A cultura de consumo é marcada pela constante pressão
sobre o consumidor para ser alguém diferente. O mercado
de consumo se foca na imediata desvalorização de suas
ofertas anteriores. Promove a insatisfação com a identidade
adquirida e com o conjunto de necessidades pelas quais essa
identidade é definida. Somos seres humanos sincrônicos,
ou seja, que vivem somente para o presente, fruto de uma
cultura imediatista que privilegia pressa e eficácia em
detrimento da paciência e perseverança.
O superendividamento está ligado à relação complexa
entre o indivíduo e a sociedade ou, isto é, consumo como
forma de relação social entre pessoas e instituições ou
como mecanismo de reprodução social. O fenômeno do
superendividamento é extremamente complexo e tem
produzido impactos e consequências de várias ordens,
na sociedade, na vida familiar, nos relacionamentos
interpessoais e nos conflitos intrapsíquicos. Todas essas
20
consequências indicam grande desestruturação na vida
de consumidores, causados pelo inútil esforço de receber
aprovação, fruto de uma programação mental ou como
supõe Hofstede (1994) “software of the mind”.
Vários autores têm abordado o tema; entre eles, podese citar Lipovetsky (2010), Hofstede (1994), Featherstone
(1995) e Bauman (2008). Das primeiras concepções de
consumo, este tem sido visto no seu significado de relação
entre pessoas, que leva à reprodução de um sistema
social desigual ou relacionado intimamente à criação do
indivíduo como agente social e ao desenvolvimento dessa
identidade, da mesma forma que a tradição associada ao
individualismo expressivo. O consumo também tem sido
visto como meio de estabelecer uma espécie de relação
vertical entre indivíduos e sociedade, entre estruturas
sociais e pessoas, que agora são reconhecidas como
agentes sociais. Aliás, para entender o consumo, sem
excluir elementos importantes, deve-se admitir que o
consumo integre valores sociais e representações, práticas
individuais, estruturas sociais e o sistema cultural e
econômico.
Bauman, na sua obra Modernidade e Ambivalência,
afirma que o mercado nos impõe “identikits”.
Os reclames comerciais se esforçam em mostrar seu contexto
social às mercadorias que tentam vender, isto é, como parte
de um estilo de vida especial, de modo que o consumidor
em perspectiva possa conscientemente adquirir símbolos
da autoidentidade que gostaria possuir. O mercado também
oferece instrumentos para “construir identidade” que podem
ser usados diferencialmente, isto é, que produzem resultados
algo diferentes uns dos outros e que são assim “personalizados”,
feitos “sob medida”, melhor, atendendo às exigências da
individualidade. Por meio do mercado, podem-se colocar
juntos vários elementos do “identikit” completo de um eu [...]
A atração das identidades promovidas pelo mercado reside
nos tormentos da autoconstrução e da subsequente busca de
aprovação social (BAUMAN, 1999, p.216).
Nesse sentido, os fornecedores não vendem produtos
ou serviços, mas identidades aos consumidores, que
vêm acompanhadas do rótulo de felicidade e aprovação
social, segundo Bauman (2009). Nesse percurso, a
mídia encontra formas de seduzir os consumidores:
criando ideias, comportamentos, imagens como ideais
de perfeição, e ao consumidor só cabe realizá-los, da
única forma que a mídia mostra ser possível, por meio
de alto consumo. Porém, nenhum produto ou serviço
pode interpor-se entre o sujeito e sua condição humana,
a condição de desamparo.
De fato, o ato de “comprar” passou a ser um ato
complexo e necessário da vida moderna. Assim, em um
ambiente de compra extremamente incentivada e facilitada,
Justiça & Cidadania | Julho 2014
o processo decisório do consumidor sempre é formado
pelo conjunto de muitas variáveis. Desse modo, a formação
do consentimento do consumidor no ato da compra é
o seu ponto fraco, alvo dos fornecedores para estimular
a aquisição de produtos e serviços. Assim, o Direito do
Consumidor deve voltar os olhos a esse aspecto de maneira
bastante efetiva, com objetivo de evitar o surgimento de
novos problemas nessa sociedade de crédito.
Nesse sentido, o superendividamento está vinculado
a uma identificação do sujeito como pertencente a
determinada classe social (CARPENA, 2006). Nas palavras
do sociólogo Mike Featherstone1, “no âmbito da cultura de
consumo, o indivíduo moderno tem consciência de que se
comunica não apenas por meio de suas roupas, mas também
por meio de sua casa, mobiliários, decoração, carro e outras
atividades, que serão interpretadas e classificadas em termos
da presença ou falta de gosto” (FEATHERSTONE, 1995,
p. 123). O autor acrescenta, ainda, que “a preocupação
em convencionar um estilo de vida e uma consciência de
si estilizada não se encontra apenas entre os jovens e os
abastados; a publicidade da cultura de consumo sugere
que cada um de nós tem a oportunidade de aperfeiçoar e
exprimir a si próprio, seja qual for a idade ou a origem de
classe” (FEATHERSTONE, 1995, p.123).
O acesso ao crédito destaca-se como elemento
indispensável para que o indivíduo participe dessa cultura
de consumo. Afinal, opera no mercado de consumo tão
somente aquele que dispõe de recursos financeiros,
constituindo o crédito condição essenciais para a aquisição
de produtos e fruição de serviços. Não raro obter-se uma
concessão de crédito, apresenta-se como única forma de
acesso ao consumo (CARPENA, 2006).
O crédito concedido aos consumidores não apenas
atende como também cria necessidades, vinculado que
está o padrão de consumo a uma identificação do sujeito
como pertencente a certa classe social. Desse modo,
o endividamento tornou-se fato inerente à atividade
econômica, servindo como meio de financiá-la (COSTA,
2002). Numerosos consumidores estão se endividando
para consumir produtos e serviços, sejam essenciais ou
não (MARQUES, 2006). Vive-se verdadeira economia ou
cultura de endividamento.
Vale dizer que o superendividamento do consumidor
é um fato inerente à atividade econômica e social, pois, na
economia atual, o crédito deixou de ser concebido como
um mal necessário, para ser concebido como uma força
que se impõe no desenvolvimento econômico e social
do país (LIMA, 2010). A emergência de nova cultura de
Experiência e tradição
de mais de 80 anos
Rio de Janeiro
Brasília
[email protected]
Av. Rio Branco, 133 - 12º andar
SHS quadra 06, Centro Empresarial Brasil XXI
www.linsesilva.adv.br
Centro - RJ 20040-006
Bloco A, sala 301, Asa Sul - DF 70316-102
Tel.:2014
+55 (21)
2224-8726
/
Fax:
+55
(21)
2232-1012
Tel.:
+55
(61) 3321-1971 / Fax: +55 (61) 3051-3722
Julho | Justiça & Cidadania
21
[email protected]
[email protected]
endividamento fez do crédito um elemento normal e aceito
na vida dos particulares, sendo visto até mesmo como uma
manifestação de liberdade e autonomia.
3. Considerações finais
Assim, após a discussão, percebe-se que, de fato, o
endividamento é um fenômeno intrínseco à sociedade
moderna, na qual o cidadão adquire status na sua comunidade proporcionalmente ao número de bens consumidos: quanto mais você tem, mais você é.
E a busca por status é parte integrante da condição
humana, a condição de desamparo, que alguns mais,
outros menos, têm como acompanhante ao longo de sua
existência (SCHWERINER, 2006).
Para o estudo do superendividamento do consumidor,
os conhecimentos de natureza sociológica, ética, política,
de psicologia, de economia e direito são essenciais,
pois expõem o indivíduo no interior de seu contexto
sociocultural. Da mesma forma, o ser humano, quando
nasce, carrega consigo um comportamento natural
determinante, ligado a sua estrutura biológica, o qual,
todavia, durante o seu crescimento, é moldado pelas
atividades culturais dos outros com que ele se relaciona.
Segundo Hofstede (1994), todas as pessoas têm
padrões de pensamento, sentimento e ações potenciais
internas, que foram aprendidas durante a vida, na
maioria das vezes adquiridas durante a infância, quando
somos mais suscetíveis ao aprendizado e à assimilação.
Hofstede (1994) faz uma analogia com computadores,
quando ele afirma que pessoas são programadas, ou
seja, que o comportamento é predeterminado por um
programa-mental (um software da mente), o qual pode
ser encontrado no meio social em que cada um coleta
suas experiências de vida.
Neste aspecto, para Hofstede (1994), tal software é
a cultura, que é aprendida e não herdada, derivada de
um meio social. Assim, pode-se associar a cultura de
endividamento a essa programação mental da sociedade
pós-moderna, em que os seres humanos estão envolvidos,
visto que suas atitudes são semelhantes a um software,
como se estivéssemos programados para ser ainda mais
um consumidor, condicionado por tal cultura. Isto torna
a questão do superendividamento ainda mais pertinente,
perturbante e provocante: se podemos ser programados,
seríamos, então, culpados ou vítimas do sistema?
Assim, os consumidores endividados são, na realidade,
vítimas de um sistema cultural imposto pela sociedade, na
qual o consumo se tornou a medida de uma vida bemsucedida. Consumir e possuir determinados objetos e
adotar determinados estilos de vida é a condição necessária
para a felicidade e dignidade humana, perseguida por
todos nós consumidores.
22
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de
Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
____. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008b.
­­­­­____. A arte da vida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli.
Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva
de regulação. In: MARQUES. Cláudia Lima; CAVALLAZZI,
Rosângela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado:
superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006.
COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção
do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês.
São Paulo: RT, 2002.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernidade.
São Paulo: Studio Nobel, 1995.
FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira,
com comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de
Jayme Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986a.
____. (1926) Além do princípio do prazer. In: Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, com
comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de Jayme
Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986b.
____. (1930) O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, com
comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de Jayme
Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986c.
HOFSTEDE, G. Cultures and organizations: cultural cooperation and
its importance for survival. London: McGrawHill International, 1994.
LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz.
Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiências do
Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ, 2010.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade
do hiperconsumo. Tradução de Patrícia Xavier. Lisboa: Edições70, 2010.
MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre tratamento
do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao
consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos
no Rio Grande do Sul. In: MARQUES. Cláudia Lima; CAVALLAZZI,
Rosângela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado:
superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006.
SCHWERINER, Mário Ernesto René. Comportamento do
consumidor: identificando ensejos e supérfluos essenciais. São Paulo:
Saraiva, 2006.
Nota
Segundo Mike Featherstone, para a compreensão da sociedade
contemporânea, seria necessário o estudo da cultura de consumo dando
ênfase ao mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação.
Observe-se que o autor identifica três perspectivas fundamentais para
o desenvolvimento do seu estudo. Em primeiro lugar, “[...] a cultura
de consumo tem como premissa a expansão da produção capitalista
de mercadorias, que deu origem a uma vasta acumulação material na
forma de bens e locais de compra de consumo. [...] Em segundo lugar,
há a concepção mais estritamente sociológica de que a relação entre a
satisfação proporcionada pelos bens e seu acesso socialmente estruturado
é um jogo de soma zero, no qual a satisfação e o status dependem da
exibição e conservação das diferenças em condições de inflação. Nesse
caso, focaliza-se o fato de que as pessoas usam as mercadorias de forma
a criar vínculos e estabelecer distinções sociais. Em terceiro lugar, há
a questão dos prazeres emocionais do consumo, os sonhos e desejos
celebrados no imaginário cultural consumista e em locais específicos
de consumo que produzem diversos tipos de excitação física e prazeres
estéticos”. In: FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pósmodernidade. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p.121-123.
1
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 23
Foto: Flavius Fotografias
A competência para processar e
julgar ações civis públicas que
contenham pedido de perda de
cargo de agente político
Nilza Bitar
3ª Vice-Presidente do TJRJ
O
presente artigo discorrerá sobre a competência para se processar e julgar ação civil
pública por cometimento de ato de improbidade administrativa em que se pede a
perda de cargo da autoridade ré. Terá ela a prerrogativa
de se ver julgado por foro diferenciado e não pelas vias
ordinárias da primeira instância?
A doutrina não é unânime quanto ao tema.
Ferreira (1998) é radical e, atribuindo às sanções
previstas na Lei de Improbidade Administrativa “forte
conteúdo penal”, afirma que os agentes ditos políticos
sequer se encontrariam sob o manto de tal legislação.
Carvalho Filho (2008) traz um temperamento, de
forma que a competência somente seria afastada do juízo
de primeiro grau quando o pedido da ação civil pública
envolvesse a perda do cargo de agentes que gozem de
vitaliciedade:
A questão da perda de função pública merece acurada análise
quanto à sua aplicabilidade a agentes dotados de vitaliciedade
[...]. No que tange aos membros do Ministério Público,
dispõem seus diplomas reguladores que tais agentes também
só podem perder seus cargos em ação civil processada
perante os Tribunais a que estejam vinculados. Trata-se, pois,
de agentes sujeitos a regime jurídico especial. [...] constituiu
escopo da Constituição e das leis reguladoras dispensarlhes regime próprio, como qual se afigura incompatível a
aplicação da referida sanção por juízo de primeira instância.
24
Por seu turno, Mazzilli (2011) sustenta que, de fato,
há agentes políticos cujo cargo não pode ser objeto de
pedido de perda por meio de ação civil pública. Porém,
tal distinção de tratamento somente se fará quando
expressamente previsto na própria Constituição da
República um regime específico de responsabilidade,
como é o caso do impeachment por crime de
responsabilidade do Presidente da República:
De nossa parte, concordamos com que os agente políticos
não possam perder o cargo ou a função por meio de ação
civil pública proposta com base nessa lei, quando estejam
submetidos a forma própria de responsabilidade, prevista
diretamente na Constituição. Contudo, nada impede que
lhes seja movida ação civil pública com causa de pedir
fundada na mesma lei, desde que o pedido se limite a sanções
pecuniárias (como eventual perda de bens ilicitamente
adquiridos ou ressarcimento integral do dano), assim como
já podiam e continuam podendo ser processados sem foro
especial por meio de ação popular.
Por fim, tem-se a posição de Garcia e Alves (2004), para
quem a legislação não traz qualquer óbice à decretação da
sanção de perda de cargo aos servidores públicos, ainda
que estes gozem da prerrogativa da vitaliciedade.
Por constituir a Lei n. 8.429/1992 um microssistema de
combate à improbidade, com peculiaridades próprias e
que comina sanções de natureza cível, também em relação
Justiça & Cidadania | Julho 2014
aos membros do Ministério Público Estadual inexiste
prerrogativa de foto, devendo ser fixada a competência do
juízo monocrático. Em que pese o fato de o art. 38, § 2o, da Lei
n. 8.625/1993 ser claro ao estatuir “a ação civil pública para a
decretação da perda do cargo será proposta pelo ProcuradorGeral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local”, tal
preceito somente será aplicável às hipóteses previstas no
diploma legal em que está inserido, não alcançando a
disciplina específica da Lei de Improbidade.
[...]
Constituição da República, que estabelece que os atos de
improbidade administrativa implicarão sanções próprias,
na forma da lei, sem prejuízo de eventual ação penal.
Confira-se:
Sintetizando o que foi dito neste item, conclui-se
que referidos agentes sempre estarão sujeitos às sanções
cominados pela prática de atos de improbidade, devendo
ser processados e julgados, a exemplo dos demais agentes
públicos, pelo juízo monocrático, inexistindo qualquer
óbice à decretação da perda do cargo por este.
Sopesando todos os argumentos usados pelos
defensores das mais distintas correntes de pensamento,
creio assistir razão à corrente dos que entendem que o
foro por prerrogativa de função não alcança as ações
civis públicas, ainda que ela contenha pedido de perda
de cargo do agente.
A primeira premissa a ser fixada para o deslinde da
questão é no sentido de que as ações de improbidade
administrativa possuem natureza civil, e não penal. Isso se
extrai do comando expresso contido no § 4o do art. 37 da
Por conseguinte, sendo cível a ação em questão, não
se estende às ações de improbidade administrativa a
prerrogativa de foro prevista para as ações penais e para
as ações civis de nulidade de atos de autoridade – como,
por exemplo, os mandados de segurança.
Assim, é forçoso inferir pela competência originária
do juízo singular de primeiro grau, seja federal ou
estadual, conforme o caso, não prevalecendo qualquer
foro por prerrogativa de função.
Tal conclusão decorre, ainda, de uma interpretação
da norma específica em sintonia com os fundamentos
primordiais do Brasil inseridos no art. 1o da Constituição,
a saber, o princípio republicano, a democracia e a
cidadania, bem como dos valores da igualdade e da justiça,
consagrados pelo legislador constituinte originário no
preâmbulo da Carta Magna.
Art. 37. [...]
§ 4o – Os atos de improbidade administrativa importarão a
suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública,
a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação
penal cabível. (grifei)
2014 Julho | Justiça & Cidadania 25
Portanto, à vista do princípio da igualdade, erigido à
condição de direito fundamental dos cidadãos no texto
constitucional, todos devem ter, a princípio, o mesmo
tratamento, somente se justificando alguma desigualdade
na exata medida em que sejam desiguais.
Por conta disso, o próprio constituinte originário
trouxe situações em que, em virtude do cargo exercido por
alguns (e não em função da pessoa de seu ocupante) e em
situações fáticas especiais (causas criminais e cíveis em que
se impugna a validade de atos de ofício), a competência
originária para processar e julgar as demandas não seria
da primeira instância.
Tais exceções são taxativas, não se admitindo nem
interpretação extensiva, nem ampliação do rol por meio
de legislação ordinária, haja vista que somente a própria
Constituição pode se excepcionar. Confira-se, por
supedâneo, a brilhante lição de Comparato (1999):
Neste sentido, é à luz do princípio da isonomia que deve
ser interpretada a disposição constante do art. 5o, inciso
LIII, da Constituição de 1988: “Ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente”;
vale dizer, pela autoridade cuja competência tenha sido
determinada de acordo com o sistema constitucional
[...] Ora, no regime constitucional brasileiro em vigor,
seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições
republicanas, mas diversamente do que dispunha a
Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente
constitucional para a criação de privilégios de foro [...]
Quanto ao Poder Judiciário, cujos membros não são
eleitos pelo povo, ele exorbitaria claramente de suas
funções, se, sob pretexto de interpretar a Constituição
e as leis, decidisse criar ponte própria direito novo. Não
é mister grande esforço de raciocínio para perceber que,
se o Poder Judiciário se arrogasse competência para
dizer como e por intermédio de que órgão iria decidir
um litígio sobre a aplicação da Constituição e das leis,
os jurisdicionados já não estariam submetidos a elas,
mas sim aos próprios tribunais. Por conseguinte, nesse
aleijão de democracia, todo poder emanaria não do
povo, mas dos juízes que o povo não escolheu [...] É
preciso salientar, ademais, que a vedação de prerrogativa
de foro costuma, com muito boa razão, vir expressa
juntamente com a proibição de se criarem tribunais
de exceção. E a razão é intuitiva. A livre instituição de
privilégios jurisdicionais, se levada às suas últimas e
naturais consequências, acabaria por revogar todo o
ordenamento da competência judiciária e, por eliminar,
em consequência, juntamente com a submissão de todos,
sem discriminações, aos mesmos juízes e tribunais,
a regra de que os órgãos do Poder Judiciário devem
ser, pela sua própria natureza, permanentes e não
circunstanciais. (grifei)
26
“Os crimes de responsabilidade
possuem natureza distinta
não só dos crimes comuns,
mas também de outros atos
ilícitos de natureza extrapenal,
pelo que não há de falar
que a previsão de foro por
prerrogativa de função para
os crimes de responsabilidade
englobe os casos de
improbidade administrativa”
Deveras, somente a Constituição poderia se excepcionar e criar competência originária para os tribunais, tal
como previsto, por exemplo, no artigo 102, inciso I, alíneas “b”, “c” e “d”; artigo 105, inciso I, alíneas “a”, “b” e “c”;
e artigo 108, inciso I, alíneas “a” e “c”, todos da Carta da
República.
No âmbito do estado do Rio de Janeiro, a competência
originária do Tribunal de Justiça também é excepcional,
taxativamente descrita e adstrita às hipóteses de crimes
comuns e de responsabilidade, ex vi artigo 161, inciso IV,
alíneas “c” e “d” e “e”, da Carta Estadual.
Logo, se o constituinte afirmou que a responsabilização
por atos de improbidade administrativa independe da
responsabilização penal, e, quando tratou do foro por
prerrogativa de função, expressamente aludiu a crimes
comuns e de responsabilidade, bem como a mandados de
segurança, conclui-se que, para os atos de improbidade,
não há falar em foro por prerrogativa de função.
Nesse sentido já decidiu a c. Corte Especial do e.
Superior Tribunal de Justiça, como se pode observar da
ementa de acórdão a seguir:
Improbidade administrativa (Constituição, art. 37, §
4o, Cód. Civil, arts. 159 e 1.518, Leis n. 7.347/1985 e n.
8.429/1992). Inquérito civil, ação cautelar inominada
e ação civil pública. Foro por prerrogativa de função
(membro de TRT). Competência. Reclamação. 1.
Segundo disposições constitucional, legal e regimental,
cabe a reclamação da parte interessada para preservar
Justiça & Cidadania | Julho 2014
a competência do STJ. 2. Competência não se presume
(Maximiliano, Hermenêutica, 265), é indisponível e típica
(Canotilho, in REsp-28.848, DJ de 02.08.93). Admitese, porém, competência por força de compreensão, ou
por interpretação lógico-extensiva. 3. Conquanto caiba
ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de
responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do
Trabalho (Constituição, art. 105, I, “a”), não lhe compete,
porém, explicitamente, processá-los e julgá-los por atos
de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer,
admite-se tal competência, porquanto, aqui, trata-se de
ação civil, em virtude de investigação de natureza civil.
Competência, portanto, de juiz de primeiro grau. 4. De
lege ferenda, impõe-se a urgente revisão das competências
jurisdicionais. 5. À míngua de competência explícita e
expressa do STJ, a Corte Especial, por maioria de votos,
julgou improcedente a reclamação. (grifei)
(Rcl 591/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, CORTE
ESPECIAL, julgado em 01/12/1999, DJ 15/05/2000, p. 112)
Não se desconhece, por certo, que há decisões mais
recentes do STJ inclinando-se pela aplicação das regras
do foro diferenciado (cf. AgRg no AREsp 184.147/
RN, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA
TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 20/08/2012; AgRg
na MC 18.692/RN, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA
FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe
20/03/2012), embora não de modo unânime e pacificado
(cf. AgRg no REsp 1331229/SE, Rel. Min. MAURO
CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado
em 27/11/2012, DJe 05/12/2012).
Emblemática, entretanto, para elucidar a controvérsia posta, é a decisão tomada pelo e. Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN n. 2797/DF.
Nessa oportunidade, a Corte constitucional brasileira declarou a inconstitucionalidade do § 2o do art. 84
do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n.
10.628/2002, o qual previa que “a ação de improbidade,
de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será
proposta perante o tribunal competente para processar
e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na
hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício
de função pública”.
Abaixo, transcreve-se elucidativo trecho da ementa do
acórdão da referida Ação:
EMENTA: I. [...]. III. Foro especial por prerrogativa de
função: extensão, no tempo, ao momento posterior à
cessação da investidura na função dele determinante.
Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal
Federal). Lei n. 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1o e 2o
ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível
de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária
e usurpação da competência do Supremo Tribunal
para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade
declarada. 1. [...]. IV. Ação de improbidade administrativa:
extensão da competência especial por prerrogativa de
função estabelecida para o processo penal condenatório
contra o mesmo dignitário (§ 2o do art. 84 do C Pr Penal,
introduzido pela L. n. 10.628/2002): declaração, por lei,
de competência originária não prevista na Constituição:
inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses
de competência cível ou criminal dos tribunais da
União são as previstas na Constituição da República
ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta
mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade
constitucional da fonte das competências dos tribunais
federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial
em relação às dos estados, detentores de toda a jurisdição
residual. 3. Acresce que a competência originária dos
Tribunais é, por definição, derrogação da competência
ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre
que, demarcada a última pela Constituição, só a própria
Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de
competências originárias implícitas na Lei Fundamental,
à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões
já aventadas contra a pretensão de imposição por lei
ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De
outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação
de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art.
37, § 4o), à ação penal contra os mais altos dignitários
da República, para o fim de estabelecer competência
originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a
jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida
distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais
locais, a Constituição Federal – salvo as hipóteses dos
seus arts. 29, X, e 96, III –, reservou explicitamente às
Constituições dos Estados-membros a definição da
competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade
de ser ela alterada por lei federal ordinária. V. Ação de
improbidade administrativa e competência constitucional
para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1.
O eventual acolhimento da tese de que a competência
constitucional para julgar os crimes de responsabilidade
haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação
de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de
julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem
é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2o
do art. 84 do C Pr Penal. 2. A competência originária
dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é
bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes
comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo
impeachment é da competência dos órgãos políticos – a
cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer
por integração analógica, os membros do Congresso
2014 Julho | Justiça & Cidadania 27
Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo
a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes
de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do
que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa
a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o
termo da investidura do dignitário acusado”.
(ADI 2797, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE,
Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)
Cabe asseverar, nesse diapasão, que a decisão
do e. STF, tomada em sede de controle abstrato de
constitucionalidade, possui eficácia erga omnes e efeito
vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário (art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/1999).
Consequentemente, não é lícito aos demais órgãos do
Poder Judiciário decidir em sentido oposto ao naquela
Corte assentado, pena de violação à autoridade de suas
decisões (art. 102, inc. I, al. “l”, da CRFB).
Nem se diga que os atos de improbidade administrativa sejam crimes de responsabilidade. Isso porque,
considerando que a natureza das sanções a serem aplicadas no âmbito das ações por improbidade administrativa seja cível, as regras para atribuição de competência
de tais ações devem seguir o disposto para o processo
civil.
Por conseguinte, impõe-se concluir que tal competência
recai sobre o juízo monocrático de primeiro grau, não
havendo falar, nessas hipóteses, em foro especial por
prerrogativa de função concedido a determinadas pessoas
na esfera criminal.
Reproduz-se, por absoluta pertinência, o seguinte
escrito de Miranda (2011):
Com efeito, os atos de improbidade administrativa não se
confundem com os impropriamente denominados crimes
de responsabilidade, uma vez que os primeiros configuram
ilícitos de natureza civil (extrapenal) – muito embora tenha
consequências na esfera administrativa –, enquanto os
segundos são infrações político-administrativas.
Daí porque os primeiros – os atos de improbidade administrativa – estão sujeitos a um processo e julgamento
realizado exclusivamente pelo Poder Judiciário, isto é, na
esfera jurisdicional, valendo-se de um rito próprio sem
qualquer aspecto político, enquanto os segundos – os crimes de responsabilidade –, conforme destacado, estão sujeitos em relação a alguns agentes a processo e julgamento
pelo Legislativo (Senado Federal, Assembleias Legislativas
e Câmaras Municipais), tendo, assim, forte carga política
em sua condução.
Tem-se, portanto, que os crimes de responsabilidade
possuem natureza distinta não só dos crimes comuns, mas
28
também de outros atos ilícitos de natureza extrapenal, pelo
que não há falar que a previsão de foro por prerrogativa
de função para os crimes de responsabilidade englobe os
casos de improbidade administrativa.
Desse modo, resta afastada peremptoriamente qualquer tentativa de se dar foro por prerrogativa de função
nas ações civis públicas para apuração de atos de improbidade administrativa.
Não é demais lembrar, ainda, que as normas procedimentais para os processos em tramitação perante os Tribunais estão previstos na Lei n. 8.038/1990.
Essa, em seu Título I, traz a disciplina para os feitos de
competência originária perante os Tribunais, ali elencando,
expressamente, a ação penal originária (arts. 1o ao 12), a
reclamação (arts. 13 a 18), a intervenção federal (arts. 19 a
22), o habeas corpus (art. 23), a ação rescisória, o conflito
de competência, de jurisdição e de atribuições, a revisão
criminal e o mandado de segurança (art. 24), o mandado
de injunção e o habeas data (art. 24, parágrafo único) e a
suspensão de segurança (art. 25, caput). Perceba-se que,
em momento algum, é mencionada a ação civil pública,
nem mesmo quando for para a perda de cargo daqueles
agentes públicos que gozam de prerrogativa de serem
processados e julgados perante o STJ ou o STF.
Isso denota a toda evidência que a competência, em
tais hipóteses, não será de órgão colegiado, mas sim, como
já dito, de juízos de primeira instância.
Eventual legislação infraconstitucional que estabeleça
competência originária para os Tribunais além do já
previsto nas Constituições Federal e Estaduais não
pode prevalecer, pois vai de encontro ao primado da
taxatividade.
Tampouco merece guarida o argumento de que,
considerando o princípio de hierarquia e para evitar
incongruências no sistema jurídico vigente, as autoridades
detentoras de foro por prerrogativa de função para crimes
comuns e de responsabilidade também teriam direito ao
julgamento por atos de improbidade administrativa em
órgão colegiado das instâncias superiores.
Como já dito, as exceções foram criadas pelas Constituições, em rol fechado, não cabendo nem ao legislador,
nem ao intérprete, ampliá-lo. Veja-se, a esse respeito, o ensinamento da doutrina de Fazzio Junior (2011):
Pergunta-se: qual é o problema de um Juiz de primeiro
grau julgar a ação civil impetrada contra qualquer executivo municipal por atos de improbidade? Se condenado em
primeira instância, o prefeito poderá recorrer ao Tribunal
de Justiça, cumprindo-se a garantia processual do duplo
grau de jurisdição.
A fim de se ilustrar a polêmica apresentada, apresento
dois casos emblemáticos havidos no Judiciário do estado
Justiça & Cidadania | Julho 2014
do Rio de Janeiro, um envolvendo um Procurador de
Justiça e o outro um Desembargador.
Na primeira situação, quis o Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro que um seu membro fosse
processado e julgado perante o Órgão Especial do Tribunal
de Justiça do Estado. Arvorou-se, para tanto, basicamente,
em dois preceitos legais, a saber:
Lei n. 8.625/93
Art. 38. [...].
§ 2o. A ação civil para a decretação da perda do cargo
será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o
Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de
Procuradores, na forma da Lei Orgânica.
Lei Complementar Estadual n. 106/03
Art. 134 [...].
§ 1..o – A ação civil para decretação da perda do
cargo do membro vitalício do Ministério Público será
proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, perante o
Tribunal de Justiça deste Estado, após autorização do
Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça,
por maioria simples.
À época, o colegiado, por maioria, encampou a
tese ministerial e reconheceu do foro por prerrogativa
de função quando a propositura de ação civil pública
puder ensejar a perda do cargo de agente que goze de
vitaliciedade.
Relatora originária que era da ação em cotejo, fiquei
vencida ao filiar-me à melhor doutrina e ao entendimento
assente da Corte Maior.
Fundamentei minha posição ao emprestar aos dispositivos supratranscritos interpretação conforme a Constituição, de forma que a expressão “Tribunal de Justiça”
neles contida deva ser tomada em seu sentido amplo,
como sinônimo do gênero da Justiça estadual, e não em
sentido estrito, como sendo o seu órgão colegiado de segunda instância.
Afirmei, ainda, que, na esfera estadual, a Lei Complementar n. 113/06, acresceu o parágrafo 6o ao artigo 134,
esclarecendo que:
§ 6o – A atribuição prevista no § 1o aplica-se a todas as ações
civis de que possa resultar a perda do cargo do membro
vitalício do Ministério Público, qualquer que seja o foro
competente para o respectivo processo e julgamento.
Tal norma vem espancar qualquer dúvida que pudesse
haver quanto à competência do juízo de primeiro grau
para processar e julgar ação civil pública objetivando
a perda de cargo de membro vitalício do Ministério
Público, haja vista que esclarece que a atribuição do
Procurador-Geral para propor a referida ação vale para
qualquer foro.
Pouco tempo depois, foi objeto de julgamento perante
o Órgão Especial outra ação civil pública, dessa feita
com pedido de perda de cargo de Desembargador. Esse
processo tramitava originalmente perante o e. STF, o qual
decidiu por remetê-lo para o Tribunal de Justiça.
Ora, se o Supremo tivesse entendido que, em sede de
ação civil pública, prevaleceria o foro por prerrogativa
de função, teria encaminhado a ação diretamente para o
Superior Tribunal de Justiça, e não para o Tribunal de Justiça
estadual. Não soa lógico. Tampouco se avista coerente
que, nas ações civis públicas em face de Procuradores
de Justiça, o Órgão Especial se julgue competente com
base no foro por prerrogativa de função, e nas em face
de Desembargadores, não reconheça o mesmo foro por
prerrogativa de função (no caso, do Superior Tribunal de
Justiça).
Repise-se que, para respeitar o comando do excelso
Pretório, faz-se necessário perquirir a diferença entre Tribunal de Justiça strictu sensu, isto é, o colegiado de Desembargadores, e Tribunal de Justiça lato sensu, vale dizer, o
Judiciário estadual. E, no caso, é evidente que se trata desta
última acepção.
Destarte, tem-se que deve ser reconhecida a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar as ações de improbidade administrativa,
não importando o grau hierárquico do agente que figure como réu, visto que as sanções correspondentes
têm natureza jurídica cível e a competência originária
dos tribunais não pode ser alterada por norma infraconstitucional.
Referências bibliográficas
ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 500-502.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 958-959.
COMPARATO, Fabio Konder. Boletim dos Procuradores da República, São Paulo, ANPR / Fundação Procurador Pedro Jorge de
Melo e Silva, ano 1, n. 9, p. 6-9, jan./1999.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes
de prefeitos: de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. 2.
ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 34.
FERREIRA, Gilmar Mendes. Competência para julgar a improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, n. 138,
p. 213-215, abr./jun. 1998.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 312.
MIRANDA, Gustavo Senna. Da impossibilidade de considerar
os atos de improbidade administrativa como crimes de responsabilidade. Disponível em: <https://www2.mp.pa.gov.br/
sistemas/gcsubsites/upload/39/DA_IMPOSSIBILIDADE_DE_
CONSIDERAR_OS_ATOS_DE_IMPROBIDADE_ADMINISTRATIVA_COMO_CRIMES_DE_RESPONSABILIDADE.doc>.
Acesso em: 26 set. 2011.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 29
Foto: Arquivo pessoal
Tempo, ironia e
linguagem forense
Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo
C
Presidente do IRTDPJ-RJ
Diretor da Anoreg-RJ
onfesso meu aborrecimento com os tais embargos. Não pelo resultado. Vivo desde cedo
as divergências dos tribunais, recordando tio
Dario a esbravejar contra os votos desfavoráveis. Para meus alunos, achei um bordão: “Terra boa de
criar morcegos!”. A classe relaxava, a lição prosseguia. Meu
aborrecimento é outro: as mais de duas horas de erudição
em linguagem rebuscada e rebarbativa. Lamentei não falar
javanês. Acudiu-me à memória comentário de Mário Henrique Simonsen, feito à saída de uma audiência em que figurara como testemunha:
– Essa gente ignora que tempo é dinheiro! – ironizou,
zangado.
Sua contrariedade era com o juiz do processo que
quis saber o significado de muitas expressões do mercado
financeiro. Para ele, economista e professor, o melhor seria
trocar o depoimento por um glossário de termos usuais.
Não digam que o grave da hora exigia a profundidade de
razões bem argumentadas. O problema é que o voto visava
mais ao interesse geral da sociedade e menos aos colegas
de plenário arraigados às suas convicções. Nem creio que
o eminente decano, culto e educado, aprovaria Nelson
Rodrigues na irreverência que alardeava que “de gente
burra só quero vaias”.
Lógico que apreciamos o debate ao vivo pela televisão. A questão é a eficiência e a racionalidade do método. Ganharíamos todos se a decisão vitoriosa fosse
proclamada em tópicos fundamentados, destacando as
30
“Não nego valor à tecnicidade
e ao ritualismo. O que prego é a
simplificação da linguagem para
ganharmos em sentido e clareza
narrativa. Nas decisões judiciais, de
qualquer instância, o excesso verbal
gera contradições ou obscuridade,
motivando embargos de declaração
para esclarecimentos”
contrarrazões dos vencidos. Adotada essa prática, haveríamos de combater a linguagem prolixa e vaidosa, sendo obrigatório o uso do vernáculo, evitando estrangeirismos. Combater, de mais, o “juridiquês” e o “legalês”.
Repensar, enfim, como exortou Pasquale Neto, na Folha
de S. Paulo de 18/9/2013, a impertinência de pérolas do
gênero “com supedâneo no artigo...” e não “com base...”,
que todos entendem.
Não nego valor à tecnicidade e ao ritualismo. O que
prego é a simplificação da linguagem para ganharmos
Justiça & Cidadania | Julho 2014
em sentido e clareza narrativa. Nas decisões judiciais, de
qualquer instância, o excesso verbal gera contradições
ou obscuridade, motivando embargos de declaração para
esclarecimentos. Tampouco cogito de vulgarização para
facilitar a compreensão dos processos. Expressões consagradas permanecem. Por exemplo, desacato, arrolamento,
prevaricação. Proponho é o fim do risível e a consciência
do ridículo. Óbvio que os agora célebres embargos infringentes continuam até que o legislador resolva eliminá-los
das cartilhas recursais.
A par disso, parece-me já intolerável, hoje, o requinte
burlesco de termos como “decisão objurgada”, “sodalício”,
“digesto processual”, “novel diploma”, “idade provecta”,
“disposição contumeliosa”. Toda linguagem deve ser
pertinente e adequada. Soa pedante formular frases
rocambolescas para externar o cotidiano da vida de
relações. Empregar teorias, como a do domínio do fato,
exige explicações antes de aplicá-la à trama criminosa. O
objetivo final é o bem da Justiça, reduzindo desinteligências,
o peso das críticas, as hostilidades, e mesmo, curiosamente,
anedotas e picardias como catarses sociais.
Sei da verborragia do nosso bacharelismo atávico.
Em 1920, Sinhô, em Fala, meu Louro, fez piada com
a loquacidade de Ruy Barbosa. Custa-nos encerrar
discurso ou qualquer escrito. No entanto, urge sepultar
os panegíricos da medieva idade; chegamos ao terceiro
milênio. O homem faz o estilo. Devia haver censura
retórica para cortar palavras, as repetições e o apreço
narcísico à erudição. Se acusarem que a sentença é
coloquial e pobre, responder com Nelson Rodrigues: “Só
eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos”. Na
história de cada processo, a esperança maior é atingir a
essência das controvérsias e decidir do modo mais simples,
sem “perfumar a flor”, diria João Cabral de Melo Neto.
Há nisso tudo grande ironia. As montanhas de ações
correntes e a teimosia da judicialização dos conflitos
deveriam estimular a criatividade para otimizar o princípio
da razoável duração dos processos. Há ainda o dado
jurídico-normativo. As pessoas pensam em termos de
normas claras e unívocas, sobretudo no Direito Penal, de
sorte a confiarem que o Direito tem a última regra do jogo.
O resultado, muitas vezes, é frustrante, e a maioria recebe
as decisões como ultraje e prevaricação. Não são os juízes;
é a lei que permite sucessivos embargos de embargos,
declaratórios ou infringentes. Para piorar, sobram casos de
omissão legislativa.
Nesse cenário, é provável que a crítica de Simonsen
tenha sido empírica e sumamente injusta. A verdade
nua e crua é que a legislação em vigor surge lacunosa,
desconexa e caótica, amiúde carecida das luzes doutrinais,
com reflexos nos atos do Poder Judiciário a quem incumbe
consolidar, a exemplo da antiga Roma, uma nova fase na
construção do jurídico brasileiro. Encontrar o meio termo
das virtudes possíveis – para afirmar a efetividade dos
direitos com justiça real – é o desafio de todos que exibem
o belo nome de jurisprudentes.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 31
Foto: João Andrade
Greve de dissidentes:
breve análise do movimento
dos rodoviários na cidade do
Rio de Janeiro em 2014
Henrique da Silva Louro
Advogado
N
o início de maio de 2014, a população carioca
sofreu com uma greve movida por uma parcela dos trabalhadores rodoviários, marcada
por situações de extrema gravidade, como
depredação de ônibus e fechamento de vias públicas.
Essa greve ficou caracterizada pelo fato de ter sido
deflagrada por uma dissidência de trabalhadores que não
concordou com a convenção coletiva de trabalho celebrada
pelo sindicato da categoria profissional, e, por conta disso,
passou a exigir novos benefícios.
A aludida paralisação dos serviços trouxe insegurança
jurídica quanto à utilização da negociação coletiva para
resolver tais conflitos, situação que conduz aos seguintes
questionamentos: a greve é um direito ilimitado? Quem
é o titular do direito de greve? Quem pode conduzir uma
greve? A greve deflagrada após assinatura de convenção
coletiva de trabalho está adequada com o ordenamento
jurídico brasileiro? Quais são as suas consequências
jurídicas?
Essas são as questões que serão abordadas neste artigo
jurídico que, decerto, não possui a intenção de esgotar
o tema ou expor verdades absolutas, mas, sim, propor
reflexão jurídica sobre esse recente fenômeno social,
que merece maior atenção da comunidade jurídica e dos
movimentos dos trabalhadores.
1. Do direito de greve. Tratamento constitucional e legal
A greve deve ser compreendida como instrumento de
pressão dos trabalhadores, quiçá o mais importante, de
profunda relevância histórica e social.
Trata-se, nos dizeres de Vólia Bomfim Cassar (2014), da
“exteriorização do conflito existente entre a classe trabalha32
dora e o patrão acerca de questões pendentes que, apesar
das tentativas de negociação, persistem. Sua finalidade é de
pressionar o empregador para ceder em alguns pontos”.1
No Brasil, o direito de greve foi previsto, inicialmente,
como um ilícito penal pelo Código Penal de 1930.
Posteriormente, o direito de greve foi seguindo o modelo
de liberdade que era estabelecido pelo momento histórico
vigente no país.2
Assim, se durante o período de 1964/1985, a greve
era regida por legislação significativamente restritiva,3
com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
conhecida como “Constituição cidadã”, a greve passou a
ser reconhecida como um direito social.
Dessa forma, o art. 9o da Constituição Federal de 1988
assegura a realização “do direito de greve, competindo aos
trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo
e sobre os interesses que devam por meio dele defender.”
Embora se trate de um direito social, de titularidade
dos trabalhadores, expressamente reconhecido pela Carta
Magna, a greve está longe de ser um direito ilimitado,
irrestrito ou absoluto.4
Isso porque, como a greve se trata de uma forma de
expressão coletiva que, por sua natureza, causa reflexos
sociais na esfera jurídica de terceiros, a ordem jurídica
brasileira limita o direito de greve, ao determinar o
atendimento dos requisitos formais e materiais previstos
na Lei n. 7.783/1989, que regulamenta o exercício desse
direito no plano infraconstitucional.
Nesse ensejo, o art. 1o da Lei n. 7.783/1989, em
seu caput, repete o disposto no art. 9o da Constituição
Federal, ao assegurar o direito de greve, competindo aos
trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo,
Justiça & Cidadania | Julho 2014
enquanto o parágrafo único restringe o exercício do direito
de greve à forma estabelecida no referido diploma legal.5
Válido destacar que a Lei n. 7.783/1989 estipula diversos requisitos para a deflagração do movimento grevista, que visam civilizar o exercício desse direito, podendo
ser elencados na seguinte ordem: tentativa de negociação
prévia, aprovação pela assembleia de trabalhadores, aviso
prévio à parte adversa e, em se tratando de atividades ou
serviços essenciais, que sejam respeitadas as necessidades
inadiáveis da comunidade.
Caso não sejam atendidos os requisitos previstos nesse
diploma legal, ou se a paralisação for mantida após a celebração de um acordo, convenção ou decisão da Justiça do trabalho, o exercício do direito de greve será considerado abusivo,
consoante dispõe o art. 14 da Lei n. 7.783/1989,6 salvo nas
poucas exceções estabelecidas no citado dispositivo.
Ressalta-se que o exercício desse direito deve ser
conduzido inicialmente pelos sindicatos, entidades de base7
que possuem legitimação constitucional para representar
esses trabalhadores e para realizar a negociação coletiva
(art. 8o, incisos III e VI, da Constituição Federal de 1988).8
Tanto é que a própria Lei n. 7.783/1989, no art. 4o,
determina que caberá à entidade sindical convocar a
assembleia geral, na forma do seu estatuto, para definir as
reivindicações da categoria profissional e deliberar sobre
a paralisação coletiva dos serviços. Nos termos do § 2o do
aludido dispositivo, somente no caso de inexistir entidade
sindical, a assembleia geral de trabalhadores deliberará
sobre a paralisação coletiva dos serviços, constituindo
comissão de negociação.9
Acresça-se, nesse passo, que a forma de organização
sindical no Brasil é baseada no princípio da unicidade
sindical. Previsto no art. 8o, inciso II,10 da Constituição
Federal, o referido princípio impede a criação de mais de uma
organização sindical, representativa da mesma categoria
profissional ou econômica, na mesma base territorial, que
não poderá ser inferior à área de um Município.
Portanto, com base na interpretação do art. 8o, incisos
II e VII da Constituição Federal combinado com art. 4o
da Lei no 7.783/1989, somente existirá uma entidade
sindical legitimada para conduzir o movimento de greve
em determinada base territorial.
2. Da greve movida pela dissidência dos rodoviários do
município do Rio de Janeiro
Com relação aos rodoviários, o Sindicato Municipal
dos Empregados em Empresas de Transporte Urbano
do Município do Rio de janeiro (SMTEETUPMRJ), representante da categoria profissional, celebrou
convenção coletiva de trabalho com o sindicato das
empresas de ônibus do Rio de Janeiro – RIO ÔNIBUS
– com vigência entre 1o de abril de 2014 a 31 de maio
de 2015, a qual estabeleceu reajuste salarial de 10%, bem
como elevou o valor do vale-refeição em 40%.
Ocorre que uma parcela dos trabalhadores não aceitou
a referida convenção coletiva de trabalho e, sob o pretexto
2014 Julho | Justiça & Cidadania 33
Foto: Jaime Batista da Silva / Jornalismo participativo
de estarem realizando novas reivindicações, resolveu
deflagrar uma greve sem atender aos requisitos da Lei n.
7.783/1989 e em desacordo com o sindicato profissional.
Tal fato levou o sindicato patronal – RIO ÔNIBUS – a
propor um dissídio coletivo de greve (0010477-45.2014.5.
01.0000) perante a Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região, visando
a reconhecer a abusividade do movimento grevista.
No julgamento do referido dissídio coletivo de
greve, os membros da Seção Especializada em Dissídios
Coletivos reconheceram, no v. acórdão, que, embora o
movimento tenha sido deflagrado de forma espontânea
pelos próprios rodoviários, tal fato não “retira a
responsabilidade do sindicato de classe, já que este é
o legítimo representante da categoria e, efetivamente
assumiu as rédeas da negociação, sendo o acordo aceito
pela maioria, que é absoluta”.
Restou mencionado no v. acórdão que as “partes
firmaram a Convenção Coletiva de Trabalho em 22/04/2014
e, logo em seguida, os trabalhadores entenderam por bem
criar novas reivindicações, sem aviso prévio ao suscitante
e sem tentativa de solução pacífica do conflito”.
Dessa forma, o movimento grevista seria abusivo, haja
vista não terem sido observados os requisitos contidos na
Lei n. 7.783/1989, conforme se observa pelo v. acórdão
abaixo colacionado:
DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. ABUSIVIDADE. Ilegal
a greve deflagrada, por configurado, nos termos dispostos no
art. 14, da Lei n. 7.783/1989, o abuso de direito, haja vista não
terem sido observadas as normas contidas nos artigos 3o, 4o e
parágrafo único do art. 14 do citado diploma legal.11
34
3. Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que a greve, embora seja
um direito social previsto na Constituição Federal, não
pode ser exercido de forma absoluta ou irrestrita pelos
trabalhadores, ante o reflexos que causa na esfera jurídica
de terceiros.
Em função disso, a Lei n. 7.783/1989 estabelece diversos
requisitos que devem ser adotados para o exercício do
direito de greve, bem como impede a continuidade da
paralisação após a celebração do acordo, convenção
coletiva ou decisão da Justiça do Trabalho, salvo em
raras exceções, como forma de conferir estabilidade às
relações jurídicas, sob pena de o exercício do direito ser
considerado abusivo.
Apesar de os trabalhadores terem competência para
decidir sobre a oportunidade de exercer a greve, cabe
ao sindicato conduzir o movimento, como legítimo
representante da categoria profissional e por ter
participação indispensável nas negociações coletivas de
trabalho.
Em consequência, deve ser considerada abusiva, a
greve movida por uma dissidência de trabalhadores,
após a assinatura da convenção coletiva de trabalho, sem
atender aos requisitos da Lei n. 7.783/1989 e, ainda, sem a
intervenção do sindicato de classe.
Nesse sentido, a decisão proferida pela Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do
Trabalho da 1.ª Região apresenta-se irretocável, quando
reconheceu, pelos argumentos acima expostos, a abusividade da paralisação deflagrada por uma parcela dos trabalhadores rodoviários do Rio de Janeiro.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Referências bibliográficas
CASSAR. Vólia Bomfim. Direito do trabalho. São Paulo: Método, 2014.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A greve como direito fundamental. Curitiba: Juruá, 2000.
MELO, Raimundo Simão. A greve no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006.
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Disponível em <http://www.tst.jus.br>. Acesso em: 28 jun. 2014.
Notas
Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 620.
Nessa linha, vale consultar a obra do professor Raimundo Simão de Melo. A greve no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 2008. p. 23.
3
Na época, o exercício do direito de greve era regulamentado pela Lei n. 4.330/1964, cujas características foram analisadas por Melo
(2008, p. 23):
“A Lei n. 4.330/64 permitia a greve em atividades normais, embora com muitas restrições que, na prática, tornavam quase impossível o
seu exercício. [...] Essa lei, como se sabe, foi promulgada logo após a decretação do golpe militar de 1964 e representou a real filosofia do
regime ditatorial, consubstanciado, no âmbito das relações de trabalho, em muitas ocupações e intervenções em sindicatos, cassações e
punições de dirigentes sindicais e ativistas, como represálias aos movimentos trabalhistas.”
4
A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, de forma iterativa, reconhece que o direito de greve não é absoluto, conforme se
observa pelo recentíssimo julgado:
RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO DE GREVE. NOMEAÇÃO PARA REITOR DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO – PUC. CANDIDATA MENOS VOTADA EM LISTA TRÍPLICE. OBSERVÂNCIA DO REGULAMENTO. PROTESTO
COM MOTIVAÇÃO POLÍTICA. ABUSIVIDADE DA PARALISAÇÃO.
1. A Constituição da República de 1988, em seu art. 9o, assegura o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo e os interesses que devam por meio dele defender.
2. Todavia, embora o direito de greve não seja condicionado à previsão em lei, a própria Constituição (art. 114, § 1o) e a Lei n. 7.783/1989
(art. 3o) fixaram requisitos para o exercício do direito de greve (formais e materiais), sendo que a inobservância de tais requisitos constitui
abuso do direito de greve (art. 14 da Lei n. 7.783).
3. Em tal contexto, os interesses suscetíveis de serem defendidos por meio da greve dizem respeito a condições contratuais e ambientais de
trabalho, ainda que já estipuladas, mas não cumpridas; em outras palavras, o objeto da greve está limitado a postulações capazes de serem
atendidas por convenção ou acordo coletivo, laudo arbitral ou sentença normativa da Justiça do Trabalho, conforme lição do saudoso
Ministro Arnaldo Süssekind, em conhecida obra.
4. Na hipótese vertente, os professores e os auxiliares administrativos da PUC se utilizaram da greve como meio de protesto pela não
nomeação para o cargo de reitor do candidato que figurou no topo da lista tríplice, embora admitam que a escolha do candidato menos
votado tenha observado as normas regulamentares. Portanto, a greve não teve por objeto a criação de normas ou condições contratuais
ou ambientais de trabalho, mas se tratou de movimento de protesto, com caráter político, extrapolando o âmbito laboral e denotando a
abusividade material da paralisação. Recurso ordinário conhecido e provido, no tema. (RO 51534-84.2012.5.02.0000, data de julgamento:
9/6/2014, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 20/6/2014).
5
Art. 1o – É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses
que devam por meio dele defender. Parágrafo único. O direito de greve será exercido na forma estabelecida nesta Lei.
6
Art. 14 – Constitui abuso do direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da
paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho.
Parágrafo único. Na vigência de acordo, convenção ou sentença normativa não constitui abuso do exercício do direito de greve a
paralisação que:
I – tenha por objetivo exigir o cumprimento de cláusula ou condição;
II – seja motivada pela superveniência de fatos novos ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho.
7
Enquanto os sindicatos são entidades de base, as federações e confederações são entidades sindicais de grau superior, conforme o
disposto no art. 535 da Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 533 – Constituem associações sindicais de grau superior as federações e confederações organizadas nos termos desta Lei.”
8
Art. 8o – É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou
administrativas;
VI – é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;
9
Art. 4o – Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembleia geral que definirá as reivindicações
da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços.
§ 1o – O estatuto da entidade sindical deverá prever as formalidades de convocação e o quórum para a deliberação, tanto da deflagração
quanto da cessação da greve.
§ 2o – Na falta de entidade sindical, a assembleia geral dos trabalhadores interessados deliberará para os fins previstos no caput,
constituindo comissão de negociação.
10
Art. 8o – É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
II – é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica,
na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um
Município;
11
Publicado no DJe do dia 5/6/2014.
1
2
2014 Julho | Justiça & Cidadania 35
E m foco, Giselle Souza
De 1951 a 1981
Participação de homens
e mulheres no Poder
Judiciário
O peso da magistratura
21,4%
Percentual de magistradas
segundo a identificação dos
efeitos da carreira na vida
pessoal em comparação com
os magistrados
78,6%
Mulheres representam 35% da magistratura, revela o Censo do
Poder Judiciário, divulgado pelo CNJ. Pesquisa também mostra o
que elas pensam da carreira. A maioria acha que a profissão afeta
mais a vida pessoal delas que a dos seus colegas juízes
De 1982 a 1991
De 1992 a 2001
A
35,1%
62%
74,4%
Foto: NUCOM/TRT10
36
É afetada em menor
medida que os juízes
38%
25,6%
dministrar as rotinas da família e da profissão
requereu jogo de cintura por parte da desembargadora Cilene Ferreira Amaro Santos, do
Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região.
Designada para atuar nas comarcas do Distrito Federal
após passar no concurso público de ingresso na carreira,
em 1992, a magistrada – que é mãe de dois filhos – teve,
por um período de 15 anos, de morar em uma casa diferente da do marido, que advogava em Goiás.
Cilene em nenhum momento se arrependeu da escolha
profissional que fez, mas reconhece que a magistratura
lhe exigiu alguns sacrifícios. Assim como também
reconhecem 64,5% das juízas ouvidas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) no Censo do Poder Judiciário.
Dados preliminares da pesquisa, divulgados no fim de
junho, revelaram que, na opinião dessas magistradas, a
carreira afeta mais a vida pessoal das mulheres que a dos
homens que optaram pela carreira.
O Censo foi realizado entre novembro e dezembro
do ano passado e foi respondido por 64% dos 16.812
magistrados em atividade no País. De acordo com a
pesquisa, o Poder Judiciário é composto por 64,1% de
homens e 35,9% de mulheres. No estudo, elas puderam
dizer o que pensam sobre uma série de questões de gênero
ligadas, por exemplo, ao exercício da profissão, a eventuais
reações preconceituosas por parte dos jurisdicionados ou
colegas de profissão, assim como ao acesso a oportunidades
de promoção na carreira.
Ainda no que se refere à vida pessoal, afirmaram que
o impacto da profissão é maior para as mulheres: 68%
0,4%
É afetada na mesma
medida que os juízes
De 2002 a 2011
De 2012 a 2013
38,9%
35,9%
64,5%
61,1%
64,1%
É afetada em maior
medida que os juízes
Cilene Santos: magistratura exige sacrifícios, mas profissão é gratificante
das magistradas que já são mães e 56,1% das que ainda
não tiveram filhos. As integrantes da Justiça com faixa
etária entre 36 e 40 anos foram as que mais consideraram
ter a vida pessoal afetada pela carreira (72,1%), seguidas
daquelas que têm entre 31 e 35 anos (70,2%) e entre 41 e
45 anos (68,1%).
Também acham que a magistratura afeta mais a vida
pessoal das mulheres que a dos homens aquelas que
ocupam o cargo de juíza substituta (69,2%). Na sequência,
estão as magistradas que ocupam a função de juíza eleitoral
da classe dos advogados (66,7%), juíza titular (64,6%),
Justiça & Cidadania | Julho 2014
juíza substituta de segundo grau (63,5%), ministra de
Tribunal Superior e do Supremo Tribunal Federal (57,1%)
e desembargadora (48%).
Para a juíza Amini Haddad, diretora da Secretaria de
Gênero da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB),
a percepção do peso da carreira pelas magistradas ratifica
diversos estudos, principalmente os que são produzidos
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), que apontam que as atribuições domésticas ainda
continuam circunscritas e impingidas como deveres quase
que exclusivos das mulheres.
“Isso, realmente, é uma desigualdade grandiosa
que gera desgastes. Ainda, o fato de a magistratura
comumente exigir muitas mudanças de domicílio, para
os devidos fins de alcançar a titularidade de varas nas
capitais ou grandes centros, acaba gerando custo maior
à mulher, em razão das dificuldades culturais do homem
de acompanhar a esposa ou parceira, colocando em ‘risco’
o casamento. É mais uma das dificuldades alicerçadas nas
concepções de gênero: a mulher acompanha o marido.
O inverso, comumente, por delimitação cultural, é quase
uma exceção”, explicou.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 37
Na avaliação da desembargadora Cilene, o impacto
é grande, mas não é exclusivo da carreira de magistrada.
“Isso não é algo que ocorre apenas na magistratura, mas
em qualquer cargo mais alto, que seja ocupado por uma
mulher. A profissão sempre cobra mais das mulheres”,
afirmou a desembargadora, cuja rotina de trabalho, não
raro, chega a 12 horas diárias.
Apesar da dedicação à magistratura, Cilene conta
que não deixou de acompanhar o crescimento dos filhos
ou de viver seu casamento. “Óbvio, houve renúncias e
dificuldades. Mas faria tudo de novo. É muito gratificante a
profissão que escolhi”, disse a desembargadora, endossando
o grupo de 91,8% de magistrados – homens e mulheres –
que declararam ao Censo estarem satisfeitos com a escolha
profissional que fizeram.
Participação
O Censo do CNJ mostra que a presença das mulheres
é maior na Justiça do Trabalho (47%). Depois na Justiça
Estadual (34,5%), na Justiça Eleitoral (28,1%), nos Tribunais
Superiores (27,8%), na Justiça Federal (26,2%), nos Conselhos Superiores (26,1%) e na Justiça Militar (16,2%).
A constatação do estudo é que a participação feminina
nos tribunais e demais órgãos judiciais vem crescendo
a passos ainda tímidos. De 1951 a 1981, por exemplo, o
percentual de pessoas do sexo feminino na carreira era
apenas de 21,4%. De 1982 a 1991 houve acréscimo, porém
não muito expressivo, quando o índice passou para 25,6%.
De 1992 a 2001, o número de magistradas aumentou
para 38%, taxa que praticamente se manteve até 2011.
Entretanto, de 2012 a 2013, houve decréscimo e o número
de magistradas caiu para os atuais 35,9%.
De acordo com a diretora da AMB, o número atual de
magistradas não é o fator mais preocupante. “Devemos
destacar que esse percentual é o geral. Se observarmos a
inserção recente de magistradas no Judiciário, para o cargo
de juízes substitutos, ainda não vitalícios, nos primeiros
dois anos da carreira, os percentuais são próximos (ao de
magistrados). A problemática, portanto, está na continui­
dade da carreira, ou seja, na ascensão às cortes. Poucas
alcançam os Tribunais Superiores”, destacou.
Na avaliação do coordenador do Censo produzido
pelo CNJ, conselheiro Paulo Teixeira, o número de
mulheres no Poder Judiciário tende a aumentar. “Temos
um contingente masculino maior que o feminino. A gente
crê que o número tende a se elevar. Para que se possa ter
segmento significativo é preciso diversidade. O Judiciário
historicamente é conservador, mas com tendência de
modificação”, afirmou.
O Censo também aferiu o que as magistradas pensam
sobre uma série de questões relacionadas à temática gênero.
Uma delas foi a reação das pessoas ao fato de elas serem
38
magistradas. Das juízas, desembargadoras e ministras
ouvidas, 30,2% afirmaram já ter identificado alguma reação
negativa de outros profissionais do sistema de Justiça.
No que se refere aos jurisdicionados, a percepção das
magistradas é a de que eles não parecem se impressionar
pelo fato de elas serem mulheres e integrantes da Justiça.
Apenas 24,7% das juízas, desembargadoras e ministras
afirmaram ter identificado reações negativas por parte
daqueles que buscam o Poder Judiciário.
No que tange aos processos de remoção e promoção na
carreira, 86,1% também afirmaram que as dificuldades que
enfrentam são as mesmas das dos seus colegas magistrados. E
no que diz respeito ao exercício da magistratura, outra questão também indagada, 70,7% das magistradas disseram não
sentir diferença com relação aos seus colegas juízes.
Outro tema questionado foi o ingresso na carreira. A
maioria das magistradas (86,6%) ouvidas no Censo afirmou
considerar o concurso para a magistratura como imparcial
para todos os candidatos, sejam eles homens ou mulheres.
Empossada como desembargadora do TRT10 em outubro
do ano passado, pelo critério da antiguidade, Cilene Santos
está de acordo com o pensamento demonstrado pela maior
parte das magistradas ouvidas pela pesquisa. “Não encontrei
dificuldades para ascender na profissão”, relatou.
Perfil conservador
O Censo do Poder Judiciário resulta de uma decisão
no Pedido de Providências 0002248-46.2012.2.00.000,
analisado pelo CNJ. O procedimento visava à fixação
de políticas públicas para o preenchimento de cargos
no Poder Judiciário, inclusive com o estabelecimento de
percentuais para negros e indígenas. A pesquisa também
foi feita junto aos mais de 285 mil servidores atualmente
em atividade na Justiça.
No que se refere à magistratura, de um modo geral,
o Censo constatou um perfil mais conservador, com a
composição dos quadros dos tribunais e órgãos judiciais,
predominantemente, por pessoas do sexo masculino, da
cor branca e heterossexuais. Também de acordo com a
pesquisa, 78,4% dos membros da Justiça são casados ou
vivem em união estável, e 75,7% deles possuem filhos.
Apenas 19,1% dos magistrados são negros e 0,9% é
portador de alguma necessidade especial.
Para o conselheiro Paulo Teixeira os resultados obtidos
pelo Censo do Poder Judiciário foram alvissareiros e
certamente contribuirão não apenas para aprimorar a
prestação jurisdicional, como para a identificação mais
precisa daqueles que compõem os quadros do Poder
Judiciário. “Foi uma oportunidade inédita para os
participantes contribuírem, partilhando de suas opiniões
e informações, para um trabalho indispensável para os
planos de futuro da Justiça brasileira”, destacou.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 39
Foto: Arquivo pessoal
A indisponibilidade dos
direitos da personalidade
e as redes sociais
Thiago Ferreira Cardoso Neves
A
Professor da Emerj
busca pela fama e notoriedade não é um
fenômeno recente. Ao contrário, é inerente
ao ser humano o desejo de ver os seus atos
conhecidos e reconhecidos pelos demais indivíduos. Isso, hoje, é facilitado pelo assombroso crescimento dos veículos de comunicação, em que a Internet
se insere como poderosa ferramenta de divulgação e informação. E, dentro desse mar em que navegam milhões
de internautas, estão as redes sociais, as quais permitem
às pessoas ampla divulgação e exposição da sua imagem,
intimidade e privacidade.
A imagem, a intimidade e a privacidade estão compreendidas, sem sobra de dúvidas, no conjunto de atributos
que compõem o rol dos direitos da personalidade, que
nada mais são do que direitos inatos à pessoa, isto é, são
direitos titularizados pelo sujeito pelo simples fato de ser
ele uma pessoa, tendo como objetivo a realização da esfera
íntima do indivíduo.
São os direitos da personalidade corolários da dignidade
da pessoa humana, a qual consiste no reconhecimento de
que todas as pessoas têm o direito a uma vida digna e ao
mínimo essencial para a realização dos seus projetos. E
para a realização da pessoa, especialmente na sua esfera
íntima, é preciso se reconhecer a existência e a necessidade
de proteção dos direitos da personalidade.
Por isso, não há outra conclusão do que aquela em que
se reconhece que esses direitos possuem status constitucional, integrando verdadeiramente o bloco de constitucionalidade. Pelo bloco de constitucionalidade, integram
40
a Constituição não apenas as normas formalmente inseridas em seu texto, mas também aquelas que tenham conteúdo de Constituição, chamadas de normas materialmente
constitucionais, especialmente aquelas que dizem respeito
aos direitos fundamentais.
Assim, amplia-se o conceito de Constituição para além
das normas incluídas apenas em seu texto, de modo a
compreender, dentro da noção de Constituição, também
normas infraconstitucionais, “desde que vocacionadas
a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos
postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental,
viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas
conceituais mais amplas, a concretização da ideia de
ordem constitucional global”.1
No caso dos direitos da personalidade, a sua integração
ao bloco de constitucionalidade se impõe por serem eles
uma exteriorização da dignidade da pessoa humana,
caracterizando-se, induvidosamente, como direitos
fundamentais.
Como prova do que aqui se disse, basta simples leitura
dos incisos V e X do art. 5o da Constituição Federal, os
quais preveem expressamente tutela específica para esses
direitos, de modo a assegurar a plena proteção e realização
do indivíduo como pessoa humana. Além da Constituição,
os direitos da personalidade também têm previsão
infraconstitucional, mais especificamente no Código Civil
em seus arts. 11 a 21.
Dada essa estatura constitucional e também os objetivos a que esses direitos visam, têm os direitos da persona-
Justiça & Cidadania | Julho 2014
lidade algumas características marcantes. Entre elas estão
a indisponibilidade e a irrenunciabilidade, que estão asseguradas no Código Civil especificamente em seu art. 11.
Por essas mencionadas características, não é possível
à pessoa dispor livremente dos seus direitos inatos, e
tampouco renunciar a eles e à sua tutela. Essa disposição
do Código Civil é alvo de diversas críticas por parte da
doutrina, e quase já se chegou ao consenso de que essa
indisponibilidade e irrenunciabilidade não são absolutas,
ou seja, há um limite para elas, pois caso contrário haveria
violação à autonomia privada, que nada mais é que o
direito da pessoa de se autodeterminar, de escolher os seus
projetos de vida e tomar as decisões sobre os rumos que
ela deverá tomar.
Então, a indisponibilidade e irrenunciabilidade têm limites. Mas, essa limitação à indisponibilidade e irrenunciabilidade decorrente da autonomia privada é absoluta? Por
conta da autonomia privada, qualquer um pode fazer o que
quiser da sua vida, do seu corpo, da sua intimidade e privacidade? Há um limite do limite? Aqui a resposta também
nos parece ser positiva, e isso porque a liberdade ampla e
total do indivíduo pode levá-lo à violação e à degradação da
sua própria dignidade. A dificuldade aqui, entretanto, parece ser a definição da exata medida desse limite.
E essa questão ganha contornos cada vez mais
dramáticos quando falamos das redes sociais. Nas redes
sociais há cada vez mais casos de renúncia e disposição
quase irrestrita da intimidade, da imagem e da vida
privada. Inúmeros são os exemplos de pessoas que
tiveram a sua intimidade violada, exposta, sem qualquer
restrição. E, em muitos desses casos, as consequências
dessa superexposição são traumáticas, havendo, inclusive,
algumas situações noticiadas na mídia de suicídio de
meninas que tiveram momentos de grande intimidade
expostos na rede e, por conta da imensa vergonha e
constrangimento que sentiram pelo que foi divulgado,
acabaram dando fim a própria vida.
E, isso é importante frisar, muitas dessas situações
são provocadas pela própria vítima que, ou diretamente
expõe as informações e fotografias nos ambientes virtuais,
ou tão somente aguça a curiosidade de terceiros que, na
busca para descobrir aquilo que foi insinuado, acabam
descobrindo e expondo o que não deveriam.
Diante disso, questiona-se como fica a questão da
proteção dos direitos da personalidade nesses casos,
especialmente quando a própria lei prevê a indisponibilidade e irrenunciabilidade desses direitos. É possível
impor restrições às redes sociais para a proteção das
próprias pessoas? É legítimo ao Estado intervir na esfera íntima, na autonomia do indivíduo e impedir que
ele veicule essas informações, ou publique determinadas fotos?
Imaginem se amanhã um usuário da rede receber um
e-mail de um desses provedores de conteúdo solicitando
que as suas fotos íntimas, publicadas pela própria pessoa,
vestindo uma sunga ou um microbiquíni, ou simplesmente
de roupas íntimas ou, ainda, completamente despida, sejam
retiradas do ar por determinação das autoridades. Cremos
2014 Julho | Justiça & Cidadania 41
que a maioria dos envolvidos, senão a unanimidade, não
irá gostar, e buscará o Judiciário para ver o seu direito de
liberdade, sua autonomia privada, resguardada.
Agora, imaginem se essas fotos publicadas pelo próprio
usuário no provedor da rede social forem utilizadas indevidamente por um terceiro, que as coloque em sites de conteúdo pornográfico, induzindo, por exemplo, à prostituição.
Aqui, temos a certeza de que ninguém irá gostar.
Como é possível perceber, essa situação não é simples, revelando-se como verdadeiro conflito de direitos
fundamentais, especificamente a autonomia privada e a
privacidade e intimidade. Dada a natureza dos direitos envolvidos, não é fácil resolver esse imbróglio e decidir por
criar restrições ou manter a quase irrestrita liberdade dos
usuários, não havendo resposta pronta no ordenamento
para isso.
A solução, caso seja levada ao Judiciário, deverá ser
construída pelo juiz, utilizando-se do critério da ponderação para decidir qual é a resposta adequada ao caso
concreto.
Diante do que dissemos, é possível perceber que essas
questões que envolvem os direitos da personalidade e
as redes sociais devem ser examinadas com cautela. É
certo que não é possível impor às pessoas uma censura,
impedindo absolutamente a veiculação de dados,
informações e fotografias, como já foi vivido nesse país
um dia. Como costuma afirmar o Professor e Ministro
Luís Roberto Barroso, só quem nunca viu a sombra não
sabe reconhecer a luz. Esses são tempos que, se Deus
quiser, jamais voltarão. Mas isso não significa que não
se deva repensar o alcance da proteção aos direitos da
personalidade, a fim de se evitar que essa liberdade que
hoje existe não seja uma armadilha feita, por nós mesmos,
para nós mesmos cairmos nela.
O mito da eleição direta para
presidente dos tribunais
Nota
Trecho extraído do voto do eminente Ministro Celso de Mello, no
julgamento da ADI 595/ES, divulgado no Informativo 258 do Supremo Tribunal Federal, e disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo258.htm. #ADIn: Bloco
de Constitucionalidade (Transcrições). O Ministro Celso de Mello
voltou a enfrentar a questão no julgamento da ADI 514/PI, divulgada
no Informativo 499 do Supremo Tribunal Federal, e disponível em
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo499.htm#transcricao1.
1
Reis Friede
Desembargador do TRF 2ª Região
1. Introdução
É
“Nas redes sociais há cada
vez mais casos de renúncia
e disposição quase irrestrita
da intimidade, da imagem
e da vida privada. Inúmeros
são os exemplos de pessoas
que tiveram a sua intimidade
violada, exposta, sem
qualquer restrição”
42
Justiça & Cidadania | Julho 2014
da tradição de nossos Tribunais – tradição esta
muito anterior ao advento do Regime Militar
(1964-1985) – o critério da antiguidade para o
acesso e exercício de sua presidência, por meio
de referendo ratificador por parte de seus membros.
Ainda que seja cediço reconhecer que esta tradição
já vem sendo, de certa forma, rompida, haja vista o
que vem ocorrendo em alguns Tribunais Estaduais
(nos quais a escolha para a presidência acontece por
intermédio da eleição de uma chapa composta por
parte de seus membros, não necessariamente os mais
antigos, mas com um colégio eleitoral composto apenas
pelos desembargadores que compõem a Corte), é
lícito concluir, todavia, que os resultados colhidos até
a presente data indubitavelmente nos dão conta, em
maior ou menor medida, de elevado grau de criticável
politização do Poder Judiciário local, além de relativo
comprometimento da recomendável isenção (corolário
do princípio basilar da eficiência) na administração
desses tribunais.
Ainda assim, salta aos olhos a tramitação, no Congresso
Nacional, da Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) n. 187/2012, que propõe, simplesmente, alterar a
Constituição para permitir, de forma muito mais elástica,
a eleição livre para os órgãos diretores de todos os
tribunais de segundo grau.
Em linhas gerais, a chamada PEC de Democratização
do Judiciário estabelece que os Tribunais Intermediários
deverão passar a eleger os integrantes dos seus cargos de
direção (à exceção do cargo de Corregedor) por maioria
absoluta de todos os magistrados vitalícios, e não apenas
de seus membros.
O argumento central repousa no frágil entendimento
de que a Administração dos Tribunais “mantém suas
decisões concentradas nas mãos de poucos, sem a devida
justiça, e que sua concepção é baseada na hierarquia
militar, reflexo dos tempos de regime militar, e que, por
esta razão, sua escolha não deveria pertencer à Corte”
(bollmann, 2013).
2. Breve análise da PEC n. 187/2012
As mudanças propostas pela PEC1 em análise
resumem-se em prover nova redação às alíneas “a” e “b” do
inciso I do artigo 96 da Constituição Federal, renominar as
alíneas subsequentes e acrescentar ao artigo um parágrafo
único, dispondo sobre a eleição dos órgãos diretivos dos
Tribunais de segundo grau. Destarte, o texto do artigo 96
passaria a ostentar a seguinte redação, verbis:
Art. 96. Compete privativamente:
I – aos Tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos, por maioria absoluta e
voto direto e secreto, entre os membros do tribunal pleno,
2014 Julho | Justiça & Cidadania 43
Foto: SCO/STF
Ilustração
exceto os cargos de corregedoria, por todos os magistrados
vitalícios em atividade, de primeiro e segundo grau, da
respectiva jurisdição, para um mandato de dois anos,
permitida uma recondução.
b) elaborar seus regimentos internos, com observância das
normas de processo e das garantias processuais das partes,
dispondo sobre a criação, a competência, a composição e
o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e
administrativos;
c) .............................. (redação da atual alínea “b”);
d) .............................. (redação da atual alínea “c”);
e) .............................. (redação da atual alínea “d”)
f) ............................. (redação da atual alínea “e”);
g) ............................. (redação da atual alínea “f ”);
Parágrafo único: Não se aplica ao Supremo Tribunal
Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais Regionais
Eleitorais o disposto no inciso I, “a”, competindo-lhes eleger
os seus órgãos diretivos na forma dos seus regimentos
interno, observado o previsto no § 2o do artigo 120. (grifos
nossos)
A par de toda a respeitável linha argumentativa,
delineada pelos mais ardorosos defensores da presente tese,
o mais interessante é que a referida PEC não se apresenta
com o necessário dever de coerência argumentativa
quando exclui, expressamente, os órgãos de cúpula do
44
Poder Judiciário, ou seja, o Supremo Tribunal Federal
(STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), bem como
o próprio “tribunal da cidadania”, o Superior Tribunal
de Justiça (STJ) –, em que provavelmente o argumento
pelo “clamor democrático” seria muito mais perceptível,
apreciável e adequado.
Também vale ressaltar que a enfática defesa de que o
atual Colégio Eleitoral para eleições nos órgãos diretivos
dos Tribunais deveria ser ampliado para igualmente incluir
juízes de primeiro grau – “justamente os que têm no dia
a dia contato direto com o cidadão que demanda justiça”
(BOLLMANN, 2013) –, resta, no mínimo, contraditória,
visto que, por essa mesma linha de raciocínio, seria
necessário incluir os demais operadores do Direito
(membros do Ministério Público e advogados) pelas
mesmas razões apontadas.
É curioso observar que ninguém se preocupou em
estudar mais aprofundadamente e, sobretudo, entender,
com maior atenção, as razões históricas de o consagrado
critério de antiguidade ter se fixado no Poder Judiciário
como uma salutar tradição que se iniciou após o fim do
Estado Novo (1937 a 1945),2 exatamente como importante
e necessária resposta ao clamor democrático que repudiou,
de forma veemente, o anterior critério eletivo amplo que
somente serviu aos interesses populistas daquele odioso
e repulsivo momento histórico, que se caracterizou
Justiça & Cidadania | Julho 2014
pela centralização de poder, fortemente travestida de
esdrúxula situação factual em que o cargo de Corregedor,
nacionalismo e exacerbado autoritarismo.
eventualmente ocupado por desembargador mais antigo,
É importante registrar que todas as Constituições
teria certa ascendência sobre o Presidente, em sinérgica
posteriores a este momento ditatorial3 outorgaram plena
subversão hierárquica não somente da estrutura do
autonomia aos Tribunais para elegerem seus cargos de
próprio tribunal, mas também em relação à organização
direção – exclusivamente por voto de seus membros e
vertical do Poder Judiciário.4
observado o critério de antiguidade –, o que acabou por
Temerariamente, parece que tais situações pontuais
consagrar o importantíssimo princípio do autogoverno da
encontram-se, ainda que de maneira implícita, na
magistratura em nosso país.
justificação para a propositura da PEC em comento, haja
Ademais, a razão de ter sido historicamente privilevista a atual realidade pátria, em que muito tem sido
giado o critério de antiguidade nos referidos processos
conseguido, lamentavelmente, por meio do “compadrio”.
de escolha dos órgãos diretivos de nossos Tribunais deveEm necessária adição argumentativa, deve ser consig-se ao fato de que, não obstante o Poder Judiciário ser um
nado, em tom de sublime advertência, que tal alteração,
reconhecido poder político, inerente ao Estado Demouma vez conduzida a efeito, seria de monta suficiente
crático, sua função precípua (jurisdicional) é exercitada
para causar graves danos à imagem de imparcialidade
de forma predominantemente técnica, por meio de uma
do Poder Judiciário, com o consequente e eventual surtríade indissociável a incluir a imparcialidade, a impessogimento de possíveis lobbies de empresários e políticos
alidade e a independência, paradigmas que revelam um
por trás das chapas concorrentes aos cargos diretivos dos
imperativo de necessário e saudáTribunais, tudo com vistas a
verem seus interesses privilevel distanciamento político e de
“É muito mais o princípio do amplo
giados.
ações políticas por parte de seus
membros.
Dessa feita, verifica-se, a
acesso – ainda que por critérios distintos
A prevalecer, data maxima
toda evidência – especialmente
da eleição, tais como o concurso
venia, essa irrefletida, descabida
pelas várias possíveis consequpúblico –, o caminho que se revela mais
(e pouco debatida) proposta de
ências derivadas –, que a proposta sub examen é por demais
emenda à Constituição, passaríademocrático para o preenchimento
complexa para ser reduzida a
mos a ter – de forma impositiva e
dos cargos e das funções do Estado,
desafiadora da própria autonomia
uma simples identidade demojudiciária –, nos Tribunais Estaducrática; afinal, entre os vários
em praticamente todos os seus níveis,
ais e, em particular, nos Tribunais
poderes de um presidente de
notadamente nos que se exercem à
Regionais Federais – caracterizatribunal, encontra-se não somargem da política e que se afirmam
dos pelo número restrito de demente a prerrogativa de estasembargadores – inéditas disputas
belecer a pauta de julgamento,5
por desempenho técnico”
político-eleitorais que não somencomo ainda a própria ordem
te poderiam vir a paralisar o bom
dos trabalhos, influenciando,
andamento de seus trabalhos, a envolver seus membros
sobremaneira, o destino temporal dos julgamentos.
em intensas campanhas eleitorais por vários meses anteriores ao pleito (se assemelhando, em muito, ao que ocorre
3. Critérios para o acesso e exercício da presidência de
nas Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB),
tribunais em outros países
mas também abrir verdadeiro leque de possibilidades iniA título comparativo, vale, nesse momento, trazer à
magináveis, como a de que desembargadores advindos do
baila como funcionam o acesso e o exercício da presidênquinto constitucional e recém-empossados, sem qualquer
cia nos Tribunais em alguns países com governo reconheconhecimento sobre o funcionamento administrativo de
cidamente democrático.
um tribunal – mas com excelente trânsito político – posNa Índia, a maior democracia do mundo, o presidente
sam ser eleitos para a alta administração do tribunal e,
da Suprema Corte é nomeado pelo presidente do país,
inclusive, para a sua presidência, pondo muitas vezes a
recaindo essa designação, geralmente, sobre o juiz mais
perder, por seu conhecimento incipiente da função, uma
antigo da Corte naquele momento, ou seja, é seguido o
organização eficiente construída ao longo de décadas e
critério de antiguidade, assim como ocorre no Brasil.6
forjada em vigorosa experiência e maturidade que somenNo Chile, país de raízes culturais também ibéricas, com
te o tempo efetivamente propicia.
sistema legal próximo ao nosso e reconhecida recuperação
Igualmente, ao se excluir, dos novos critérios
democrática após os duros anos da Ditadura Pinochet,
propostos, o cargo de Corregedor, poderia vir a ocorrer a
a eleição para a presidência de sua Corte Suprema segue
2014 Julho | Justiça & Cidadania 45
4. A situação atual das eleições para a presidência dos
tribunais brasileiros
Voltando os olhos à nossa situação fática, insta salientar que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman)
vigente expressamente prevê, em seu artigo 102, que “Os
Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por
votação secreta, elegerão entre seus juízes mais antigos,
em número correspondente ao dos cargos de direção, os
titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição” (grifo nosso).
Referido fato nunca preocupou os Tribunais com poucos desembargadores. Salvo raras exceções, neles vem sendo seguida a antiguidade nos cargos de direção, sendo que
todos, ou quase todos, chegam à presidência, vice-presidência ou corregedoria.
A situação, contudo, apresenta-se diferente nos Tribunais maiores, e por um motivo muito simples: quem entra
em um tribunal com 30 (trinta) juízes ou mais provavelmente nunca chegará aos cargos de direção. Ainda que 15
(quinze) de seus colegas já tenham presidido a Corte, morram ou se aposentem, os 15 (quinze) restantes significarão
30 (trinta) anos de espera. Isto obviamente desagrada aos
mais novos, alguns com enorme vontade (e mesmo vocação) de atuar como presidentes.
Assim, são os Tribunais de porte médio (20 a 49 desembargadores) e os de grande porte (50 ou mais desembargadores, caso do TJSC, TJPR, TJMG, TJRJ, TJRS
e TJSP) que não têm aceitado a antiguidade como critério único de escolha,8 ainda que não a tenham renegado
por completo.
46
De Freitas (2011), desembargador federal aposentado
do TRF 4a Região, onde foi presidente, e consagrado
professor universitário, entende que “o anseio de presidir
um tribunal é uma aspiração legítima e nada tem de
errado. Pelo contrário, é ótimo que quem assuma tão
difícil posição esteja preparado e disposto, física e
psicologicamente, a dedicar dois anos de sua existência
à causa pública”.
Aduz o douto colega, ademais, que a presidência de um
Tribunal Intermediário (TJ, TRF ou TRT) é onde se pode
fazer mais pela efetividade da Justiça, visto ser o presidente
desses Tribunais quem dá a política da gestão judiciária
no estado ou na região, que pode incentivar os juízes e
servidores, instalar Varas, realizar concursos, conduzir a
construção de Fóruns, implementar o processo eletrônico,
estimular a conciliação e pôr em prática tantas outras
importantíssimas medidas.
De Freitas menciona também, contrariamente ao
pensamento dos defensores da PEC 187/2012, que não
tem qualquer cabimento a pretensão de que todos os juízes
votem para presidente, pois isto culminaria em campanhas
pelo interior, promessas de favores, animosidade entre
facções em disputa e outros tantos problemas.
Nessa linha, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo,
cujo Tribunal de Justiça possui 180 desembargadores,
com 25 fazendo parte do Órgão Especial. A escolha
da presidência se dá por votação secreta pela maioria
dos membros do Tribunal, podendo concorrer apenas
os membros efetivos do Órgão Especial, cuja metade é
provida pelo critério de antiguidade. Assim, constata-se,
neste ente federativo, a adoção de um critério de eleição
que poderia ser considerado misto, haja vista o fato de,
entre os desembargadores elegíveis, metade ser composta
dos membros mais antigos do Tribunal, mas, ainda assim,
excluídos, em qualquer hipótese, os juízes de primeiro
grau como sujeitos eleitorais ativos.
Analisando a questão no âmbito da Justiça Federal,
cabe salientar que o Tribunal Regional Federal da 2a Região,
em seu Regimento Interno, deixa claro que a eleição
para sua Presidência dar-se-á por votação de seus 27
desembargadores, recaindo a escolha, preferencialmente,
sobre os desembargadores federais mais antigos, ou seja,
utiliza-se do critério de antiguidade.
Tal critério é o que também é utilizado, tradicionalmente, por nossa Corte máxima, o STF. Assim, nem todos os ministros chegam à Presidência do Supremo. Nas
eleições, atualmente feitas a cada dois anos, é respeitada
a antiguidade, tendo prioridade o ministro que entrou há
mais tempo na Corte, com o presidente sendo eleito por
seus pares em Plenário, por voto secreto.9
Igualmente, é o critério adotado pelo STJ, desde a sua
criação e instalação em 1989, em repetição ao idêntico cri-
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Foto: Depositphotos
a tradição de os magistrados elegerem o ministro mais
antigo,7 assim como ocorre com os demais Tribunais
inferiores, como nas chamadas Cortes de Apelação.
Por outro lado, na Espanha, país no qual a Constituição,
promulgada em 1978, é contemporânea à nossa e que
também foi redigida após vários anos de regime ditatorial,
a designação para a presidência dos Tribunais Superiores
de Justiça das comunidades autônomas se dá, em efetiva
contraposição, por meio da realização de criticáveis
acordos políticos, o que tem gerado grandes problemas,
em especial nas regiões tradicionalmente avessas ao poder
central emanado de Madri, tais como a Catalunha e o
País Basco, apenas para citar algumas. Ademais, a própria
categoria dos magistrados daquela nação tem visto com
grande apreensão esta politização da Justiça, que não
seria de forma alguma reflexo de maior democracia, mas
apenas a certeza de que verdadeiros “conchavos políticos”
conseguem melhores resultados na hora de se buscar a
posição de presidente, o que, de forma alguma, é o que
se espera que ocorra em uma instituição que pugna pela
necessária imparcialidade.
“Quem entra em um tribunal
com 30 juízes ou mais
provavelmente nunca chegará
aos cargos de direção. Ainda que
15 de seus colegas já tenham
presidido a Corte, morram ou
se aposentem, os 15 restantes
significarão 30 anos de espera.
Isto obviamente desagrada aos
mais novos, alguns com enorme
vontade (e mesmo vocação) de
atuar como presidentes”
tério aplicado historicamente, desde sempre,10 ao Tribunal
Federal de Recursos (TFR), quando de sua criação, em
1946, durante o importantíssimo processo de redemocratização do Brasil.
Uma das anunciadas temeridades no caso de uma
eventual aprovação da PEC n. 187/2012 recai exatamente
no fato de que, como a base da pirâmide hierárquica
do Judiciário é muito maior do que a sua Cúpula,
na prática, seriam os juízes vitalícios com menos de
cinco anos na carreira, muitos com menos de 30 anos
de idade e pouquíssima experiência judicante, quem,
de fato, decidiriam as eleições. E ainda – o que é mais
grave –, para que estes, em um segundo “momento
democratizante”, passem de simples eleitores (sujeitos
eleitorais ativos) a membros elegíveis (sujeitos eleitorais
passivos),11 seria relativamente simples, do ponto de
vista político, permitindo o risco de começarmos a ver
Tribunais espalhados pelo país inteiro presididos por
juízes de primeiro grau com menos de cinco anos de
carreira, ou seja, com pouquíssima experiência no que
pertine à administração complexa que envolve a estrutura
2014 Julho | Justiça & Cidadania 47
de um tribunal, além de uma idade cronológica em que
a própria maturidade humana, – essencial à função
judicante e administrativa –, ainda não se encontra
plenamente assentada.
5. A esfera do Poder Legislativo: as eleições para a
presidência das casas do Congresso Nacional
É interessante destacar que, no âmbito do Poder
Legislativo – no que pertine ao fato de não recair na
massa da população com capacidade eleitoral ativa
a escolha de seus cargos diretivos –, a eleição para a
presidência da Câmara dos Deputados igualmente não
inclui os senadores, que também são congressistas,
sendo certo que, inclusive, para eleição da Mesa
Diretora do Senado Federal – incluindo o cargo de
presidente do Senado e de todo o Congresso Nacional
–, não votam os deputados federais,12 mesmo sendo
fato que, nos trabalhos conjuntos englobando ambas as
Casas Legislativas, a presidência recai sobre um senador,
escolhido exclusivamente por seus pares.
6. O clamor pela democratização do Poder Judiciário
Resta incontestável que uma das naturais aspirações
de um juiz de carreira – que por meio de seus reconhecidos méritos logrou aprovação em dificílimo concurso
público de acesso –, é não somente ser promovido ao respectivo tribunal a que se encontra adstrito, na medida em
que avança temporalmente na carreira, como também
participar mais ativamente das decisões que, em grande
medida, alteram os rumos do Poder Judiciário.
É exatamente dentro desse contexto que não somente
se faz imperativa, como, igualmente, se almeja, – como
um autêntico clamor de seus membros –, uma verdadeira
“democratização do Poder Judiciário”. Tal pretensão,
legítima em sua origem e em sua intenção – resta lícito
concluir –, passa, necessariamente, por amplas e profundas
mudanças estruturais que afastem definitivamente o
conservadorismo predominante, sobretudo aquele ditado
pelo poder político a que, reconhecidamente, o Judiciário
se encontra criticamente subordinado.
Assim, é de se registrar que, essencialmente, as
legítimas aspirações dos magistrados de primeiro grau,
em última análise, não são satisfeitas pelo simples fato
de que eles não possuem o direito de eleger (ou serem
eleitos para) os cargos de direção dos Tribunais, mas,
muito mais acertadamente, porque dificilmente chegarão
a esses importantes cargos pelo isento critério de
antiguidade em razão da própria carreira não permitir
esta natural evolução gradualística, em razão, sobretudo,
de antidemocráticas intervenções políticas externas
que permitem admitir, de forma ampla e gradual, nas
instâncias superiores, o ingresso de juízes oriundos
48
de outras carreiras ou funções, como a advocacia ou
o Ministério Público, e que – além de simplesmente
não se submeterem ao concurso público de acesso à
magistratura nacional –, subvertem a natural ordem
hierárquica implícita em todas as carreiras do serviço
público (situação em que a carreira da magistratura não
pode ser apontada como exceção), em efetivo prejuízo
das mais corriqueiras aspirações daqueles que continuam
a aguardar, ano após ano, por uma ansiada promoção aos
Tribunais dos mais variados graus e, porque não, à última
instância, ou seja, ao STF.
Este é exatamente o cerne da questão democrática que
precisa ser verdadeiramente enfrentada, sem os “desvios
de atenção” que se pretende, ainda que inconscientemente, impor, camuflando os verdadeiros caminhos a serem
trilhados para efetivamente se avançar no processo democrático, rompendo com as últimas amarras da herança autoritária do período getulista.
Senão, vejamos: 100% das vagas de Juízes de primeiro
grau são, atualmente, providas exclusivamente por
candidatos que, unicamente pelo critério meritório do
concurso público de provas e títulos, lograram aprovação
nele, revelando grande avanço democrático, na exata
medida em que, no período compreendido entre 1966
e 1973, os cargos de juízes federais de primeiro grau
eram providos por simples indicação política do Poder
Executivo.13
Todavia, nos Tribunais Intermediários, por uma
herança da Era Vargas14 (até hoje não objeto de necessária
correção democratizante), apenas 80% das vagas de
desembargadores (Juízes de segundo grau) são destinadas
aos magistrados de carreira e, ainda assim, apenas metade
destas, ou seja, 40% do total são reservadas aos juízes de
primeiro grau pelo critério de antiguidade, sem qualquer
ingerência política.15
Nos Tribunais Superiores a situação é ainda mais
desafiadora, visto que, no Tribunal da Cidadania, o STJ,
órgão de cúpula das justiças comum local (estadual e
distrital) e federal, o quinto constitucional é transformado
em terço constitucional, ou seja, o percentual de 80% de
acesso de juízes de carreira é reduzido para 67%, sendo
certo que todas as vagas são providas por critérios
políticos de formação da lista tríplice com posterior
escolha discricionária e soberana pelo Chefe do Poder
Executivo.16
No Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula de
todo o Poder Judiciário, todas as vagas (11 no total), insta
salientar, são exclusivamente providas por livre escolha
do Chefe do Executivo, excluída qualquer vinculação à
necessária nomeação de juízes de carreira.17
O clamor por mais democracia no Poder Judiciário,
portanto, preconiza, em tom sublime, maior defesa pelo
Justiça & Cidadania | Julho 2014
democráticos da atualidade, bem como do próprio
processo de democratização do Judiciário, inaugurado
a partir de 1946, que buscou sepultar, em definitivo, o
“populismo” da Ditadura Vargas, que permitiu curvar
todos os Tribunais sobreviventes (é importante lembrar
que a Constituição de 1937 simplesmente extinguiu a
Justiça Federal) às suas ordens e interesses, por meio,
e sobretudo, da aplicação do amplo critério eletivo (e
eleitoreiro) de seus Presidentes.
Não é por outra sorte de considerações, portanto, que
7. Conclusões
devemos sempre ter em mente que o verdadeiro caminho
É importante salientar que, nos últimos tempos, o
para a democratização do Judiciário passa não pela politiverbo “democratizar” ganhou notável importância que,
zação tanto de sua estrutura como de seus membros, mas
entretanto, não tem sido acompanhada de sua corresponsim (e principalmente) pelo fortalecimento da própria cardente e correta interpretação.
reira (exclusivamente composta de magistrados concursaDemocratizar não significa, necessariamente, tornar
dos), como ainda e fundamentalmente, pela sinérgica efetodas as funções do Estado elegíveis e, de igual forma,
tividade do poder jurisdicional inerente aos magistrados
ampliar irrestritamente o Colégio Eleitoral daquelas em
de primeiro grau, o que implica
que se faz pertinente o critério
dizer restringir os inúmeros rede escolha.
“É muito mais o princípio do amplo
Em verdade, é muito mais
acesso – ainda que por critérios distintos cursos e a ampla gama de nefastos efeitos suspensivos que vêm
o princípio do amplo acesso
da
eleição,
tais
como
o
concurso
transformando, na prática, os
– ainda que por critérios disjuízos monocráticos em simples
tintos da eleição, tais como o
público –, o caminho que se revela mais
juízos de instrução, como bem
concurso público –, o caminho
democrático para o preenchimento
assim seus respectivos julgadores
que se revela mais democrático
dos cargos e das funções do Estado,
em meros magistrados de iniciapara o preenchimento dos carção processual.18
gos e das funções do Estado,
em praticamente todos os seus níveis,
Por efeito conclusivo, é exaem praticamente todos os seus
notadamente nos que se exercem à
tamente a despolitização e o
níveis, notadamente nos que se
afastamento do caráter populista
exercem à margem da política
margem da política e que se afirmam
e eleitoreiro nos Tribunais que,
e que se afirmam por desempepor desempenho técnico”
historicamente, – ao reverso do
nho técnico.
que preconizam os mais desaviNo caso específico da funsados –, se constituem na grande e verdadeira conquista
ção judicante, não é possível deixar de reconhecer que,
democrática pós-ditadura Vargas, sendo certo que ainda
hodiernamente, esta se perfaz por meio de um viés no
resta o desafio de ver sepultada a última herança daquequal a experiência de vida permite interpretação cresle sombrio regime, ou seja, a extinção da figura política
centemente mais justa das leis, tornando-se cada vez
do quinto constitucional, a permitir, por derradeiro, a
melhor quanto maior for o tempo em atividade. Relemprevalência do critério meritocrático de acesso a todos os
bre-se, nesse sentido, que, na antiguidade, os julgamenTribunais, com a consequente promoção de seus memtos eram efetuados por conselhos de anciãos, ou seja, a
bros circundada exclusivamente aos juízes de carreira,
“justiça” era proporcionada pelos indivíduos mais exafastando-se, desta feita, qualquer ingerência política de
perientes no seio social, reconhecendo-se a maturidade,
outros poderes ou mesmo de politizações indesejadas,
a experiência de vida e o conhecimento prático e teórico
em efetiva consagração da democracia (e dos valores
acumulado ao longo do tempo como essenciais ao misdemocráticos) que preconiza a existência de um Poder
ter da função jurisdicional e administrativa correlata.
Judiciário realmente independente. Afinal, não é do inteÉ exatamente por essa razão que não é possível que
resse do povo brasileiro que o Poder Judiciário venha a se
se cogite faltar democracia no fato de continuarmos
transformar em simples Serviço Judiciário.
a seguir o consagrado critério de antiguidade na
eleição de presidentes dos Tribunais pátrios, como
medida de salutar equilíbrio e não politização do
As notas de rodapé foram suprimidas para composição do texto com
Poder Judiciário nacional, seguindo os melhores e
autorização do autor. A íntegra do artigo encontra-se disponível pelo
mais diversos exemplos presentes nos países mais
link: http://bit.ly/1lRdvcK
fortalecimento da carreira, o que se traduz pelo reforço
dos critérios meritórios e, consequentemente, por cada
vez menos ingerências políticas de outros Poderes e, sobretudo, menor politização interna corporis, reafirmando
o preceito democrático de amplo acesso de seus membros exclusivamente por critérios de antiguidade que
melhor traduzem os esforços naturais de desempenho na
carreira judicante.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 49
Foto: Arquivo pessoal
Testamento:
prevalência e obediência da
vontade, em vida, do de cujus
Marcelo Lima Buhatem, desembargador do TJRJ
Nota do editor
Chamou a atenção do longevo jornalista, afeito às
morosas, extensas e complicadas questões judiciais, a
sucinta decisão prolatada pelo desembargador Marcelo
Lima Buhatem, em processo de Família e Sucessões, que
nos levou a publicar o respectivo Acórdão.
Em si não há nada diferente, a não ser a forma prática
como o ilustre e culto magistrado deslinda o feito, de forma a
esgotar a lide sem delongas e argumentos estéreis e dispensáveis – o que a prática e experiência judicante ensina e impõe.
Vem de longe, herança das culturas latinas, o costume
das longas e enormes dissertações literárias jurídicas, repletas e intermináveis citações que às vezes se contradizem
nos argumentos, tanto nas petições, recursos infindos e
finalmente com sentenças monumentais que chegam normalmente à conclusão com dezenas e dezenas de páginas.
Os tempos atuais e a celeridade alcançada através dos
meios de comunicação, trazendo e motivando a difusão
cultural em todos os sentidos, trouxe como implicação
da rapidez e modernidade a exigência da praticidade
na solução de todos os assuntos e questões nos vários e
extensos ramos da atividade humana.
Os exemplos que vêm sendo dados nos últimos tempos
em vários setores do Poder Judiciário por magistrados
que se despem da demonstração da cultura-jurídica que
são detentores e buscam, nas decisões que prolatam na
distribuição do direito que lhes cabe, a síntese da questão
com objetividade, isenta de divagações e firulas jurídicas,
é merecedor dos encômios que o editor lhe transmite.
50
AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO CIVIL –
FAMÍLIA E SUCESSÕES – INVENTÁRIO E PARTILHA
– DECISÃO QUE ADJUDICOU OS BENS DEIXADOS
PELA FALECIDA EM FAVOR DE CÔNJUGE
SOBREVIVENTE – INSURGÊNCIA DOS COLATERAIS
– CÔNJUGE SOBREVIVENTE CASADO PELO REGIME
DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – TESTAMENTO
QUE IMPÔS CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE
APOSTA À LEGÍTIMA – SUBSISTÊNCIA DO GRAVAME
APÓS A MORTE DA BENEFICIÁRIA – OBSERVÂNCIA DA
ÚLTIMA VONTADE DO TESTADOR – PREVALÊNCIA.
DECISÃO QUE SE REFORMA.
1. Decisão agravada que reconheceu ser o cônjuge
supérstite da inventariada seu legítimo sucessor, uma
vez que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes.
Afastou da sucessão os colaterais, que somente herdariam
na ausência do cônjuge da falecida. Afirmou que a
cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade
de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o
óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz
desaparecer a restrição, visto que os bens gravados com
cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito
enquanto viver o seu beneficiário.
2. Agravo interposto pelos tios e primos da inventariada
Eliane. Argumentam que fazem jus aos bens gravados
com cláusula de incomunicabilidade.
3. A cláusula de incomunicabilidade impede que o bem
entre na comunhão em razão de casamento, união estável
ou união homoafetiva.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
4. Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas
conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros
necessários.
5. Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento,
de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando
a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de
salvaguardar os bens deixados à inventariada.
6. Reconhece-se a incomunicabilidade dos bens entre
a filha falecida do testador e seu esposo, em respeito à
vontade do testador de manter o patrimônio no seio
familiar.
7. Provimento do recurso, para deferir as habilitações dos
agravantes na qualidade de herdeiros dos bens gravados
com cláusula de incomunicabilidade.
DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO.
ACÓRDÃO
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de agravo
de instrumento n. xxx, em que são AGRAVANTE 1: A.
F. N., AGRAVANTE 2: N. F. N., AGRAVANTE 3: C. N.
M., AGRAVANTE 4: J. N. M., AGRAVANTE 5: L. M. H.
M., AGRAVANTE 6: A. N. M., AGRAVANTE 7: C. F. N.
AGRAVANTE 8: K. H. N. e AGRAVADO 1: ESPÓLIO
DE E. A. M. REP/P/S/INV P. M. M. e AGRAVADO 2:
ESPÓLIO DE O. J. A. REP/P/S/INV P. M. M.
ACORDAM os ilustres Desembargadores que
compõem a 22a Câmara Cível deste E. Tribunal, por
unanimidade de votos, em conhecer e dar provimento ao
recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.
RELATÓRIO
Trata-se de agravo de instrumento, interposto por A.
F. N. e outros, nos autos da ação de inventário, almejando
a reforma da decisão assim exarada, ipsis litteris:
Fls. 174/176 – Com razão o requerente. Na forma do artigo
1.829 do Código Civil, o requente, cônjuge supérstite
da inventariada que faleceu sem deixar descendentes e
ascendentes, é seu legítimo sucessor. Dessa forma, os
colaterais somente herdariam na ausência do cônjuge da
falecida, conforme inciso IV do artigo acima citado. Impende
esclarecer que a cláusula de incomunicabilidade não retira
a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo
que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente
faz desaparecer a restrição, uma vez que a cláusula de
incomunicabilidade impede que o bem se comunique na
comunhão em razão de casamento, independentemente do
regime adotado para a união, ou seja, o bem integrará sempre
o patrimônio particular do beneficiário. No entanto, os bens
gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão
este efeito enquanto viver o seu beneficiário. Neste sentido,
o cônjuge supérstite herdará, com ou sem concorrência,
todos os bens do falecido gravados com cláusula de
incomunicabilidade, posto que tais bens se transmitem aos
herdeiros sem qualquer ônus. Indefiro, pois, as habilitações
requeridas às fls. 153/155. Restando preclusa a presente
decisão, voltem para sentença.
Insurgem-se contra o decisum, narrando os
Agravantes que são tios e primos de E. A. M. Esclarecem
2014 Julho | Justiça & Cidadania 51
que a mãe de E., de nome O. J. A., faleceu em 30/6/2012,
enquanto aquela faleceu em 9/11/2012, sem descendentes
ou ascendentes. Dessa forma, informam que o cônjuge
sobrevivente de E. requereu a adjudicação de todos os
bens do monte, inclusive aqueles gravados com cláusula
de incomunicabilidade.
Dessa forma, os Agravantes, na qualidade de herdeiros colaterais de E., afirmam que fazem jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade, visto que o
cônjuge sobrevivente não tem direito a estes, até porque
casaram-se sob o regime da comunhão parcial de bens,
devendo ser observada a vocação hereditária. Requerem
sejam deferidas as habilitações na qualidade de herdeiros
dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.
Petição de fl. 19, apresentando os agravantes comprovante de interposição do recurso, em cumprimento ao
art. 526 do CPC.
Contrarrazões de fls. 28/32, argumentando os agravados que:
A primeira inventariada, O. J. A., viúva de H. N. A., faleceu
em 30.6.2012, tendo deixado testamento, gravando os
seus bens com as cláusulas de incomunicabilidade e de
impenhorabilidade vitalícias. Foi aberto o inventário,
tendo sido requerida a adjudicação dos bens a sua
única filha, E. J. A., que faleceu em 9.11.2012, não tendo
deixado descendentes ou testamento, sendo casada com o
inventariante, sob o regime da comunhão parcial de bens.
O inventário da segunda inventariada foi aberto, com o
requerimento de adjudicação dos bens ao inventariante,
na qualidade de herdeiro, uma vez que a de cujus não
possuía descendentes e ascendentes, tendo o douto Juízo a
quo deferido a inventariança ao cônjuge supérstite.
Ocorre que A. F. N. e C. F. N., irmãos do pai da segunda
inventariada, e C. N. M., J. N. M. e A. N. M., filhos da irmã
do pai da segunda inventariada, falecida em 18.6.1995,
portanto, tios e primos da segunda inventariada,
respectivamente, ingressaram nos autos requerendo a
habilitação no inventário e avaliação dos bens. Apesar das
habilitações requeridas, o douto Juízo a quo indeferiu o
pedido dos Agravantes, dando integral cumprimento ao
art. 1.829, I a IV, do Código Civil.
Ofício do Juízo a quo de fl. 34, afirmando que manteve
a decisão agravada.
A d. Procuradoria de Justiça, às fl. 37/39, opinou no
sentido de inexistir interesse público primário a justificar
sua intervenção.
Passo ao VOTO.
Conheço do recurso por tempestivo e por estarem
satisfeitos os demais requisitos de sua admissibilidade.
O Juízo a quo reconheceu que o cônjuge supérstite
da inventariada E., que faleceu sem deixar descendentes
52
e ascendentes, é seu legítimo sucessor, afastando, assim,
os colaterais, que somente herdariam na ausência do
cônjuge da falecida, conforme incisos III e IV do artigo
1.829 do Código Civil.
Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem
seguinte:
(...)
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Ressaltou o magistrado de piso que a cláusula de
incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do
cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária
do testamento automaticamente faz desaparecer a
restrição, uma vez que a cláusula de incomunicabilidade
impede que o bem se comunique na comunhão em razão
de casamento.
O ponto nodal da questão situa-se em definir se o
cônjuge sobrevivente, que fora casado com a autora da
herança sob o regime da separação convencional de bens,
participa ou não da sucessão como herdeiro necessário,
na medida em que os bens deixados estão gravados com
cláusula de incomunicabilidade por testamento deixado
pelos genitores já falecidos de sua esposa.
O agravante P., inventariante dos espólios de O. e E.
(agravados 1 e 2), casou-se com E. em 25/9/1993, sob o
regime da comunhão parcial de bens.
O sogro do inventariante dos agravados, H. N. A.,
faleceu em 15/9/1994, deixando testamento, no qual
gravou os bens que seriam transmitidos à sua única
filha E. com as cláusulas de incomunicabilidade e
impenhorabilidade.
Posteriormente, O., a sogra do inventariante dos
espólios, faleceu em 30/6/2012, deixando testamento,
gravando seus bens com cláusulas de incomunicabilidade
e impenhorabilidade vitalícias.
Dessa forma, ocorreu a transmissão causa mortis do
falecido Sr. H. e, posteriormente, da falecida Sr.ª O., para
a filha Sr.ª E..
No entanto, poucos meses após, em 9/11/2012, faleceu
E., sem deixar descendentes ou ascendentes.
Assim, o inventariante dos espólios agravados, na
qualidade de cônjuge sobrevivente de E., requereu a
adjudicação de todos os bens do monte.
Importa esclarecer que o 1o agravante é casado com a
a
2 agravante e a 7a agravante é casada com o 8o agravante,
tios de E., enquanto o 3o agravante, o 4o agravante, que é
casado com a 5a agravante, e o 6o agravante eram primos
da falecida E.
Dessa forma, os agravantes, na qualidade de herdeiros
colaterais de E, alegam fazer jus aos bens gravados com
cláusula de incomunicabilidade, pedindo que sejam
Justiça & Cidadania | Julho 2014
deferidas as suas habilitações como herdeiros, afastandose o cônjuge sobrevivente Paulo.
No caso em comento, como dito acima, os bens estão
gravados com a cláusula de incomunicabilidade, que é um
gravame imposto pelo testador ou doador como forma
de impedir que o bem recebido em doação, herança ou
legado integre o patrimônio que irá se comunicar com o
do cônjuge (meação).
Nesta esteira, prevê o Código Civil, em seu artigo
1.668, no inciso I, que são excluídos da comunhão
os bens doados ou herdados com a cláusula de
incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar.
Do Regime de Bens entre os Cônjuges
Art. 1.668. São excluídos da comunhão:
I – os bens doados ou herdados com a cláusula de
incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;
Já no artigo 1.661, está disposto que automaticamente
será incomunicável o bem cuja aquisição tiver por título
uma causa anterior ao casamento, quando se tratar do
regime de comunhão parcial.
Do Regime de Bens entre os Cônjuges
Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição
tiver por título uma causa anterior ao casamento.
Observa-se, assim, que o bem gravado com a cláusula
de incomunicabilidade torna-se um bem patrimonial do
beneficiário.
Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas
conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros
necessários, sendo que, na interpretação das cláusulas
testamentárias, deve-se preferir a inteligência que faz
valer o ato.
Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento,
de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando
a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de
salvaguardar os bens deixados a E.
Em hipótese em que se discutia a qualidade de
herdeiro necessário do cônjuge sobrevivente, que fora
casado com o autor da herança sob o regime da separação
convencional de bens, entendi, nos autos do Agravo
de Instrumento n. xxx, não remanescer para o cônjuge
casado mediante tal regime de bens direito à meação,
tampouco à concorrência sucessória.
Isso porque, se os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens
adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos
e rendimentos, essa ampla liberdade advinda da pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, não poderia
ser tolhida pelo Direito das Sucessões, fazendo-se assim
prevalecer a vontade do cônjuge em vida, para após a sua
morte.
Mutatis mutandis, este é o caso do testador que, em
vida, gravou o bem deixado para a filha com a cláusula de
incomunicabilidade, devendo assim permanecer o bem
gravado mesmo para após a morte daquela, sob pena
de se vilipendiar a vontade do testador que deve sofrer
proteção legal, já que ato de última vontade instituidor de
atribuição de propriedade, em que ele se despe dos seus
imóveis em prol de alguém que entende capaz de geri-lo
ou por afinidade tal que não deseja ver outro fruir.
Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, verbis:
REsp246693/SP-RECURSOESPECIAL-2000/0007811-5
Relator(a)
Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR (1102)
Órgão Julgador
T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento
4/12/2001
Data da Publicação/Fonte
DJ 17/5/2004 p. 228
Ementa
CIVIL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO
CONFIGURADA. INVENTÁRIO. TESTAMENTO. QUINHÃO DE FILHA GRAVADO COM CLÁUSULA RESTRITIVA DE INCOMUNICABILIDADE. HABILITAÇÃO DE SOBRINHOS E NETOS. DISCUSSÃO SOBRE
A SUA EXTINÇÃO EM FACE DA CLÁUSULA, PELO
ÓBITO, ANTERIOR, DA HERDEIRA, A BENEFICIAR
O CÔNJUGE SUPÉRSTITE. PREVALÊNCIA DA DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA. CC, ARTS. 1676 E 1666.
I. A interpretação da cláusula testamentária deve, o quanto
possível, harmonizar-se com a real vontade do testador,
em consonância com o art. 1.666 do Código Civil anterior.
II. Estabelecida, pelo testador, cláusula restritiva
sobre o quinhão da herdeira, de incomunicabilidade,
inalienabilidade e impenhorabilidade, o falecimento
dela não afasta a eficácia da disposição testamentária, de
sorte que procede o pedido de habilitação, no inventário
em questão, dos sobrinhos da de cujus.
III. Recurso especial conhecido e provido.
Ex positis, voto para conhecer e DAR PROVIMENTO
ao recurso, para deferir as habilitações dos agravantes na
qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula
de incomunicabilidade.
Desembargador MARCELO BUHATEM
Relator
2014 Julho | Justiça & Cidadania 53
A Constituição de 1934:
80 anos depois
Rosalina Corrêa de Araujo
Professora Associada de Direito Constitucional e Administrativo da UFRJ
Procuradora Federal – PRF 2ª Região
E
2. A Nova Ordem Constitucional Republicana de 1934
A Constituição de 1934, que agora completa oitenta
anos, é a única Constituição brasileira que evoluiu de uma
revolução – a Revolução de 1930 – que pôs fim à Velha
República e, consequentemente, à Constituição de 1891.
Ela não propriamente desprezou os ideais republicanos,
mas procurou compatibilizar as expectativas da nova
realidade político-social da época com a necessária
renovação institucional. Nesse propósito, traduziu a
definitiva ruptura com o sistema unitário e centralizado
de estado que predominou no período constitucional
anterior à Proclamação da República e o de dominação
oligárquica que sobressaiu na Velha República.
A Revolução de 1930 foi o principal movimento
político que tornou possível apressar o fim da Velha
República, sujeitando a legalidade anterior à nova
legitimidade revolucionária. No bojo de sua vitória,
54
Foto: Ana Wander Bastos
1. Apresentação
ste texto, comemorativo dos Oitenta Anos da
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934, é parte
dos estudos que estamos desenvolvendo sobre
as nossas Constituições no contexto político do estado
brasileiro. O seu objetivo é analisar os fatores que influíram no processo de modernização institucional do
Brasil iniciado em 1889-1891, os principais fatores que
conduziram àquela Constituição e a perenidade dos
institutos inaugurados naquele período. Assim, abordaremos o contexto do seu surgimento e vigência e a
sua atualidade para o estado democrático de direito da
Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de
outubro de 1988.
formaram-se alianças para combater a ditadura e o
Governo Provisório, que culminaram com o movimento
constitucionalista paulista de 1932, que exigia do governo
revolucionário nova Constituição. Antes, porém, pelo
Decreto no 21.067, de 1932, o governo de Getúlio Vargas
editou o Código Eleitoral, criou a Justiça Eleitoral,
instituiu o voto proporcional e suspendeu o voto distrital
Justiça & Cidadania | Julho 2014
de 1891, base do domínio oligárquico. A nova legislação
eleitoral pós-revolução também instituiu o voto feminino,
pretendeu dar segurança ao sigilo do sufrágio e confiou
a apuração dos votos, o reconhecimento e a proclamação
dos eleitos à Justiça Eleitoral. Foi na vigência desse novo
marco eleitoral que se elegeu a representação popular
e profissional da Constituinte Republicana de 1934,
instalada em 1933, posteriormente transportada para o
texto constitucional de 1934 e para a nova Lei Eleitoral
no 48, de 1935.
Somado a esses fatores de ordem interna, é
importante considerar que a origem da Constituição
de 1934 foi marcada pela ascensão dos movimentos
internacionais sociais-democratas que tiveram como
referencial as revoluções sociais que sucederam à
Primeira Guerra Mundial, externados, principalmente,
na Declaração de Direitos da Revolução Russa de 1917,
na Constituição Mexicana de 1917, na Constituição de
Weimar de 1919 e no movimento fascista de 1920 que
avançou como um sindicalismo corporativista na Itália.
Ademais, a partir de 1929, instalou-se a crise econômica,
principalmente nos Estados Unidos da América, dando
início às políticas do Welfare State consagradas no
New Deal, impregnadas pelo liberalismo social que
àquela época já se confrontava com os ideais sociais
democratas da fase anterior com repercussões de cunho
mais radical, como o ascendente bolchevismo soviético
e o fascismo ítalo-germânico. Contudo, o liberalismo
do New Deal não conseguiu impedir o fortalecimento
dos movimentos europeus de natureza corporativista,
como a ascensão do nazismo alemão. Esses movimentos
exerceram influência no Brasil, principalmente sobre
as forças que se articularam para retirar do poder os
grupos oligárquicos que viabilizaram as políticas dos
governadores, que revezavam o exercício do poder
central entre os estados de São Paulo e Minas Gerais.
Apesar de tantos percalços, a Constituição de 1934,
ao lado dos direitos individuais, privilegiou os direitos
sociais e abriu espaço para a introdução de matérias
como ordem econômica, proteção da família e justiça
social. Vinculado ao Poder Executivo, criou a Justiça do
Trabalho para dirimir questões originárias de conflitos
trabalhistas individuais e dissídios coletivos entre empregados e empregadores, traçou as linhas gerais de divisão
entre o trabalho urbano e o rural, previu a regulamentação das profissões e a composição do salário, o reconhecimento das convenções coletivas de trabalho, dos
sindicatos e associações profissionais e os princípios de
seguridade do trabalhador, proibiu a discriminação por
idade, sexo, cor, nacionalidade e estado civil. Também
vinculados ao Poder Executivo criou os Juízes de Paz eletivos e os temporários não togados, o Tribunal Marítimo
2014 Julho | Justiça & Cidadania 55
e, ainda, durante a sua vigência, em 1936, por força da
concorrendo decisivamente para os retrocessos demoo
Lei n 244, acresceu entre os órgãos da Justiça Militar o
cráticos e republicanos vividos pelo estado brasileiro por
Tribunal de Segurança Nacional, para funcionar quando
longo período. Não obstante a experiência de redemocradeclarado o estado de guerra. Esse tribunal foi efetivatização ensaiada pela Constituição de 1946, os retrocessos
mente instituído e serviu no processo de repressão ideodemocráticos somente foram desmontados pela Constituilógica tanto de esquerda (comunistas em 1935) como de
ção de 5 de outubro de 1988, que originariamente introdudireita (integralistas rebelados em 1938). Embora extinto
ziu mecanismos de limitação do poder de ação do Poder
em 1945, a Lei de Segurança Nacional de 1935 foi manExecutivo sobre os princípios democráticos e republicanos
tida e, mais adiante, marcou profundamente o período
e sobre os direitos fundamentais e suas e garantias.
constitu­cional que sucedeu o ano de 1964.
Finalmente podemos afirmar que a Constituição de
Cumprindo a sua promessa modernizadora, criou
1934 foi uma referência no processo brasileiro de moo tão aguardado mandado de segurança, que absorveu
dernização institucional e permitiu, inclusive, superar os
o espaço de alcance jurisprudencial atribuído anteriorentraves políticos oligárquicos da Velha República. Todamente ao habeas corpus, sem as restrições impostas pela
via, ao institucionalizar no mesmo texto ideias políticas
Reforma Constitucional de 1926 que pôs fim a reconheconflitantes entre si, como os princípios herdados do licida “doutrina brasileira do habeas corpus”. Também
beralismo com as expectativas corporativistas que aquela
aperfeiçoou o sistema brasileiro
época se impunha, além da falta
de controle de constitucionalide clareza quanto às atribui“Os movimentos que fizeram surgir a
dade das leis deixando expressa
ções de cada um dos poderes,
Cons­tituição de 1934, assim como os que a criação inédita do poder coa supremacia do Poder Judiciário a partir da introdução, em
ordenação atribuído ao Senado
a sucederam, de ordem internacional
seu texto, dos pressupostos da
Federal que, na época, muito
e nacional, é possível admitir que,
ação direta de inconstitucionafazia recordar o modelo centraem seu curto período de vigência, o
lidade, formalizada em 1965,
lizador imperial representado
pela Emenda Constitucional
pelo Poder Moderador, expôs
estado brasileiro e suas instituições
o
sua fragilidade, principalmente
n 16. A supremacia do Poder
conheceram grandes avanços em relação em relação à força ditatorial que
Judiciário no Brasil era tema
decisivo para a implantação da
se apontava como forma de enà modernização, ao desenvolvimento
República, sua base legal era o
frentar as alianças comunistas
econômico e aos direitos de cidadania,
o
responsáveis pelo surgimento
Decreto n 848/1890, que repois ela teve a força de suspender
da Intentona de 1935.
formou o Poder Judiciário e
revogou a legislação vigente no
a ordem revolucionária, visto que se
3. Conclusão
Império. Os documentos juríoriginou
de
uma
Assembleia
Constituinte”
Não obstante os movimentos
dicos elaborados entre o fim do
que fizeram surgir a Cons­
Império e início da República
tituição de 1934, assim como os que a sucederam, de
demonstram claramente a contribuição de Ruy Barbosa
ordem internacional e nacional, é possível admitir que,
na consolidação da supremacia do Poder Judiciário.
em seu curto período de vigência, o estado brasileiro e
Efetivamente, a Constituição brasileira de 1934 realisuas instituições conheceram grandes avanços em relação
zou o seu propósito de reorganizar e modernizar o estado
à modernização, ao desenvolvimento econômico e aos
brasileiro. Mas a pressão ideológica internacional, como a
direitos de cidadania, pois ela teve a força de suspender
ascensão dos movimentos autoritários de 1929 em Portua ordem revolucionária, visto que se originou de uma
gal e 1936 na Espanha, e a ebulição social brasileira, como
Assembleia Constituinte. Suas conquistas são comparáveis
o crescimento da Ação Integralista nos anos 1930, abriram
no tempo apenas aos avanços da Constituição de 1988.
margem para o crescimento dos movimentos populares
Contudo as resistências ao seu modelo foram profundas,
com a ascensão da Aliança Nacional Libertadora, coordecomo o fortalecimento das oligarquias republicanas,
nada pelo Partido Comunista do Brasil. Nesse contexto,
os movimentos de reivindicação operária e socialistas
em 10 de novembro foi outorgada a Constituição de 1937
e o avanço dos movimentos nacionalistas radicais de
e implantado o Estado Novo, que sufocou as conquistas da
modelo fascista, que acabaram por inviabilizar o seu
Constituição de 1934 e, no movimento para a centralizaêxito e, consequentemente, sustentar a imposição da
ção do poder, aprofundou a força do Poder Executivo por
Constituição outorgada de 1937.
meio da criação de instrumentos jurídicos excepcionais,
56
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 57
Invista
em Itaboraí
A capital dos bons negócios.
Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí
é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para
empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e
Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o
seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará
a 1 milhão de habitantes nesse período.
Itaboraí
Esses empreendimentos estão
atraindo empresas de diversos
segmentos, pois hoje com a nova
administração municipal, Itaboraí
mostra um cenário de progresso
e de modernização da cidade.
Seu território faz divisa com Tanguá
e Maricá, municípios que serão beneficiados
pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via
de escoamento que integrará uma importante região do
estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o
desenvolvimento integrado de toda essa região.
58
Conheça Itaboraí, a cidade que será a
segunda capital do estado e o melhor
lugar para sua empresa.
www.itaborai.rj.gov.br
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 59
Princípio da colaboração no
projeto de CPC brasileiro
José Marcos Rodrigues Vieira
Desembargador do TJMG
Professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFMG
Foto: Arquivo pessoal
D
esafio inarredável da elaboração de qualquer
código de processo, há de ser obtida a harmonia entre as medidas de utilização dos
princípios dispositivo e inquisitivo. É que o
direito a merecer in concreto a tutela jurisdicional pode
distanciar-se da descrição empreendida pelo autor, tanto
quanto da encetada pelo réu, na interinfluência dos elementos objetivos da ação e da defesa.
60
Avizinhamo-nos, presentemente, de um Código de
Processo que irá prosseguir, desde a delimitação da res in
iudicum deducta, o resultado de colaboração das partes
com o juiz (Art. 8o , versão aprovada no Senado).
O Projeto pretende realizar a mitigação da velha imparcialidade dogma ou princípio absoluto, para impedir que
seja levada a ponto de, por falso escrúpulo, propiciar julgamento com consciente desinformação do órgão judicante,
quando já os debates orais em audiência não lhe permitam
regresso aos trâmites em que verificada omissão de alguma
das providências preliminares. Afortunadamente, o futuro
Código repudia a posição do juiz au dessus de la melée.
Suposta a fixação da controvérsia, antecedente
necessário da produção da prova, cabe discernir o que
se busca de interação entre os princípios dispositivo e
inquisitivo: a integral discussão da causa, que, como
adverte Giuseppe de Stefano, consiste no atingir a fatos
ulteriores, diversos daqueles da formulação imediata do
problema – os motivos para uma atendível solução (Il
Notorio nel Processo Civile. Milano: Giuffrè, 1947. p. 14).
É que, sob pena de cognição insuficiente, a imediatidade
(em audiência) tem sua eficácia – suporte remoto da
eficácia da sentença – dependente de que a produção
da prova seja dirigida ao esclarecimento da matéria de
fundamento do pedido e da resposta e, pois, da seleção
dos fatos relevantes da relação jurídica de ação, em que
se traduz o processo.
O justo processo agora induz o aprofundamento
do contraditório, o exercício da cognição até o plano
da realidade pré-processual, isto é, dos interesses em
Justiça & Cidadania | Julho 2014
conflito. Volte-se a De Stefano (ob. e loc. cit.), em sua
antevisão de que os fatos influentes sobre a solução
dados pela formulação imediata da controvérsia, são
uma porção mínima do plano do direito substancial, a
ser trazido mediante aquisição processual.
A cognição, sem quebra da imparcialidade, há de descer,
do confronto dos fatos constitutivo e impeditivo ou extintivo
alegados, à exploração de suas respectivas circunstâncias, que
restam vertidas em argumentos de prova. É ainda do jurista
citado que o accertamento somente tem relevância jurídica se
os aspectos interindividuais forem de estrutura socialmente
apreciável e não puramente interiores, porque não se adverte
menos a necessidade de tutela jurídica na vida social de quanto o seja na vida individual (ob. cit., p. 15).
Desde quando, por reprováveis excessos embora, se
degradou a sociológica a lide, perdeu-se contato com suas
elementares objetivas – os bens e os interesses conflitantes –
atributivos de profundidade aos habitualmente invocados
pedido e causa de pedir. Em grau de recurso, todavia,
fala-se, pacificamente, em extensão e profundidade do
efeito devolutivo. Diga-se até mesmo que, a propósito, se
cuidou de preferindo-se a proposição do art. 469, CPC,
com que definidos por exclusão os limites objetivos da
coisa julgada. Aos elementos da lide, como a recuperar-se,
se refere o Código vigente, na regra, esta em proposição
afirmativa, do art. 468, CPC, que devolve os referidos
limites à lide e às questões decididas, tanto quanto o art.
128, CPC alude a lide proposta.
Faz-se, por isso, saliente, a consagração de regras-fins
e regras- meio, tal sistema de colaboração-informação,
introduzido no Projeto:
A solução da lide, integral, inclusiva da atividade satisfativa
(art. 4o), dever do juiz atendível mediante a delimitação de
todas as questões de fato e de direito (arts. 8o e 342).
A abrangência das questões prejudiciais pela expressão
conclusiva do mérito da causa – vale dizer que a
serem expressamente decididas, já definidamente por
determinação legal (art. 20), diretamente ou por remissão,
no dispositivo sentencial (arts. 20 e 476, III) – atendível
mediante injunção ao contraditório ou direto exercício do
caráter dúplice da ação, reconvencional ou declaratório
incidente (arts. 10 e 326).
A qualificação da força de coisa julgada como autoridade,
agora que deriva, quer para os pedidos quer para as
prejudiciais expressamente decididas (art. 490), da preclusão
exauriente de questões (art. 476, parágrafo único, IV).
Dir-se-á que o Projeto apostou em altas qualidades do
julgador: só que dependentes, todas elas, de simétricas
qualidades dos advogados, ao conferir-lhes o direito de
participação ativa (art. 5o), a influir na fixação e solução
dos pontos controvertidos.
Cumpre destacar, sobretudo, que o Projeto busca
delimitar, em profundidade (e não mais só em extensão),
o objeto litigioso – operando a (nunca empreendida)
tarefa de determinação do interesse subjacente aos
alegados direitos, no que superada, aliás, a atávica
insuficiência conceitual do direito subjetivo.
Considere-se que, de sua vez, o Código Buzaid,
apoiado instintivamente na imparcialidade do juiz –
por isso que clássica (absoluta) – contenta-se com a
imediatidade, princípio da audiência. Assim, ao exigir do
Réu que se manifeste precisamente sobre os fatos alegados
pelo autor, a ponto de fazer presumidos verdadeiros os
fatos não impugnados, coerentemente deveria impor ao
autor a formulação igualmente precisa das circunstâncias
de fato. Mais grave a incoerência, depois de suprimida
do rol do art. 17, CPC, a figura da litigância de má-fé por
omissão de fato essencial ao julgamento da causa.
Ao falarmos, portanto, de fatos essenciais ao julgamento, dando como admissível, na sistemática legal
vigente, que possam ter sido omitidos pela parte, convencemo-nos da admissibilidade atualmente implícita
de o juiz julgar sem algum dos elementos essenciais a
sua convicção. Eis a imparcialidade, d. v., parcimoniosa.
Falaríamos, na tradição do Código de 1973, do constante risco de apelo à verdade formal, como meio de
se elidir a insuficiência argumentativa surpreendida no
eixo interpretativo.
O Projeto (sem se esquecer das virtudes – outras –
do Código Buzaid) quer abolir o misterioso escrúpulo
de se distinguir entre livre convencimento do julgador e
livre argumentação sentencial. A preclusão de questões
dita a força da argumentação – a autoridade – agora
convenientemente distinguida da eficácia sentencial. E
nisso consiste a cognição, em extensão e profundidade.
A fim de que o julgamento não se desgarre do
pedido, mas também para que não seja dado à parte,
corifeu do princípio dispositivo, subtrair à cognição do
juiz relevante circunstância interferente na etiologia do
fato jurídico descrito nas alegações, loas sejam tecidas
ao Projeto.
Vista a finalidade do processo como a atuação do
direito (subjetivo); vista a lide como obstáculo (removível)
à atuação do direito – no que, como de sabida lição,
as proposições se identificam: o Projeto terá decifrado
a polêmica dos processualistas, os da ação, e os da lide,
para resolvê-la no concerto legislativo dos princípios
dispositivo e inquisitivo. Bem definida a consciência do
julgador, o objeto do processo se reconhece, afinal, como a
lide nos limites do pedido. Tanto quanto a fundamentação
da sentença alinha os motivos, resultantes sistemáticas
das razões da pretensão e da resistência, definidas desde a
totalidade dos pontos controvertidos.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 61
D om Quixote, Giselle Souza
Uma alternativa ao
sistema carcerário
Foto: Depositphotos
62
Justiça & Cidadania | Julho 2014
C
Foto: CNJ
Método Apac tem
crescido no Brasil.
Modelo trabalha
a reintegração dos
condenados e apresenta
índice de reincidência
inferior a 10%. Nos
presídios convencionais,
taxa chega a 70%
om índices de reincidência abaixo de 10%,
o Método Apac – sigla para Associação de
Proteção e Assistência aos Condenados –
começa a ser visto como alternativa viável
ao caótico sistema carcerário brasileiro. A metodologia
atualmente é desenvolvida em 42 centros de reintegração
social, presentes nos estados de Minas Gerais, Rio
Grande do Norte, Maranhão, Paraná e Espírito Santo.
A estimativa é que 2,3 mil detentos cumpram pena com
base nesse modelo alternativo.
O Brasil atualmente tem mais de 560 mil presos, de
acordo com os dados do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça. Também,
segundo apontam as estimativas do órgão, pelo menos
70% desses presidiários acabam voltando ao crime. E, não
raro, após cumprirem pena em condições desumanas, em
presídios sem qualquer estrutura e superlotados. Com
relação a esse último fator, aliás, cálculos indicam que o
déficit nas penitenciárias chega a 200 mil vagas.
Nesse contexto, as Apacs se diferenciam. Nos centros
onde a metodologia é desenvolvida, não há agentes
penitenciários nem armas de fogo. Os detentos – ou
recuperandos, como são chamados – são os que detêm
as chaves da unidade e cuidam da segurança. Valdecir
Antônio Ferreira, diretor-executivo da Fraternidade
Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC),
entidade que reúne e fiscaliza as Apacs, explicou que
o objetivo do método é a ressocialização dos presos a
partir da assistência espiritual, médica, psicológica
e jurídica prestada pelas comunidades próximas aos
centros de reintegração.
A primeira Apac foi criada em 1972 por um grupo
de voluntários cristãos, em São José dos Campos, no
estado de São Paulo. O método é ancorado em 12
pilares: participação da comunidade; ajuda mútua entre
Luiz Carlos Rezende e Santos, juiz do CNJ
“O método é desenvolvido
há mais de 40 anos e nunca
registrou um caso grave de
violência no interior de suas
unidades. Nunca houve um
homicídio. E motim ou rebelião
jamais foi registrado”
2014 Julho | Justiça & Cidadania 63
recuperandos; trabalho; religião; assistência jurídica;
assistência à saúde; valorização humana; família; formação
de voluntários; implantação de centros de integração
social; observação minuciosa do comportamento do
recuperando para fins de progressão do regime penal;
e a participação na Jornada da Libertação com Cristo,
considerada o ponto alto de toda a metodologia, por
consistir em palestras, meditações e testemunhos dos
recuperandos.
As Apacs contam com apoio do Poder Judiciário e do
Poder Executivo. O método vale para o regime aberto,
o semiaberto e o fechado e é desenvolvido em unidades
de pequeno, médio e grande porte, sendo esta última
Recuperandos e universitários
Estimular o estudo é uma premissa do Método
Apac. E os resultados são visíveis. Nada menos que
47 recuperandos de Minas Gerais foram aprovados
no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no
ano passado. Eles agora cursam as faculdades de
Administração, Turismo, Ciências Econômicas e
Ciências Contábeis, na modalidade à distância.
Os recuperandos pertencem aos centros de
reintegração social de Alfenas, Caratinga, Frutal,
Itaúna, Ituiutaba, Lagoa da Prata, Manhuaçu, Minas
Novas, Paracatu, Passos, Patrocínio, Pedra Azul,
Perdões, Santa Bárbara, Santa Luzia, Santa Maria
do Suaçuí, São João del Rei, Sete Lagoas e Viçosa,
todas cidades de Minas Gerais. Ao todo, 308 pessoas
assistidas por essas entidades prestaram o Enem.
A implantação dos cursos foi possível graças à
Subsecretaria de Administração Prisional (SUAPI)
que, por meio da Superintendência de Atendimento
ao Preso (SAPE), firmou um Termo de Cooperação
Técnica com a Faculdade FEAD, que disponibiliza,
a cada semestre, 200 bolsas integrais para o sistema
prisional do estado.
64
com a capacidade máxima de 200 vagas. Antes de serem
designados para o centro de reintegração, os detentos
têm de passar por rigoroso processo de avaliação,
que atesta o comportamento. Presos indisciplinados,
violentos ou líderes de facções criminosas raramente
são acolhidos.
A Apac é uma entidade sem fins lucrativos instalada
por iniciativa da população, geralmente das regiões
onde funcionam os presídios tradicionais. “A sociedade
não fica alheia aos problemas. Ao contrário: participa e
se envolve, seja por meio do voluntariado ou ofertando
trabalho (aos presos)”, afirmou o presidente da FBAC.
Ferreira explicou os passos necessários para a criação
de uma Apac. O primeiro envolve a realização de uma
audiência pública na comarca interessada. Há também a
realização de um seminário que visa a explicar o método
para a comunidade. Ao mesmo tempo, têm andamento os
esforços para organização de uma equipe de voluntários
e para a formação de parcerias. Também é nessa fase que
ocorre a busca do local onde o centro de reintegração
será construído.
Paralelamente às obras, ocorrem as tratativas para a
formalização de convênios para o custeio da futura Apac.
Geralmente a negociação é feita junto às secretarias de
defesa social do estado onde o centro de reintegração será
instalado. Nessa etapa é realizado também o treinamento
dos futuros funcionários das Apacs.
Após a inauguração, há a transferência dos recuperandos para a Apac e um Conselho de Sinceridade e
Solidariedade, formado por detentos, é constituído. E o
trabalho não para com a instalação da Apac. Cursos, audiências públicas, criação de novos grupos de voluntários
e a consolidação de novas parcerias têm andamento, em
um ciclo constante.
Segundo Ferreira, todo o processo – desde a decisão de
criar uma Apac à instalação definitiva dela – pode durar
três anos. Ele conta que o tempo poderia ser menor se
não fosse o preconceito. “Nossa maior barreira é romper
as barreiras da sociedade e o preconceito arraigado de que
bandido bom é bandido morto. Precisamos conscientizar
a sociedade para assim podermos multiplicar a prática”,
destacou.
De acordo com Ferreira, após a superação do desafio
do preconceito e realizada a instalação da Apac, os
benefícios se mostram inúmeros – principalmente
para a comunidade. Ele destaca o custo do detento que
cumpre pena pelo método, que chega a ser duas vezes
menor em relação às penitenciárias convencionais. Além
disso, nunca se verificou, nos centros de reintegração,
problemas relacionados a motins. “Nunca registramos
uma rebelião”, afirmou o diretor da FBAC.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
Reconhecimento
As vantagens do método vêm sendo reconhecidas
pelo Poder Judiciário. Diversos tribunais têm apoiado
as Apacs. É o caso do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, que lançou uma cartilha para as comarcas
que já possuem ou têm interesse em instalar um centro
de reintegração. “O objetivo da Apac é promover a
humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade
punitiva da pena. Seu propósito é evitar a reincidência
no crime e oferecer alternativas para o condenado se
recuperar”, diz a publicação.
O método também tem sido recomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de fiscalização e
planejamento estratégico do Poder Judiciário, principalmente nos mutirões carcerários que promove País afora.
Luiz Carlos Rezende e Santos, juiz auxiliar do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário e do Sistema de Execuções e Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, afirmou que as Apacs têm muito a contribuir para a melhoria do sistema prisional. A
declaração foi feita após participar como palestrante do
seminário realizado no último dia 4 de maio, em Campo
Maior, no Piauí. O evento discutiu a instalação da primeira Apac no estado.
A movimentação iniciada para a instalação da Apac no
Piauí atende às recomendações do CNJ feitas durante um
Mutirão Carcerário no estado, realizado no ano passado.
Essas orientações também constam no relatório final
da força-tarefa entregue pelo Conselho às autoridades
piauienses. As mesmas sugestões também foram feitas,
em 2013, nos mutirões promovidos pelo Conselho no
Rio Grande do Norte, em Alagoas e no Amazonas.
“Acreditamos que o sistema prisional pode melhorar
muito e que a Apac pode contribuir com essa melhora.
O método é desenvolvido há mais de 40 anos e nunca
registrou um caso grave de violência no interior de suas
unidades. Nunca verificamos um homicídio. E motim ou
rebelião jamais foi registrado. Além disso, a reincidência
chega a ser 10 vezes inferior que no sistema convencional”,
destacou.
Comunidade internacional
Uma solução criada por brasileiros para os problemas
do cárcere no País, o método Apac passou a ser adotado
também por outras nações. Países como Belize, Bulgária,
Chile, Colômbia, Costa Rica, Alemanha, Hungria, Latvia,
Singapura, Estados Unidos já desenvolvem a metodologia,
ainda que parcialmente. Eles são assessorados pela Prison
Fellowship International (PFI), entidade consultora das
Nações Unidas para assuntos penitenciários, e à qual a
FBAC é filiada.
O juiz auxiliar do CNJ conta que as Apacs têm cada vez
mais recebido atenção das comunidades internacionais,
principalmente da Europa. No ano passado, delegações
com diversos embaixadores de países europeus visitaram
a Apac de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo
Horizonte.
“A União Europeia, por meio de projeto do Eurosocial
II, favoreceu o intercâmbio da metodologia Apac com a
que é aplicada em uma unidade existente no norte da
Itália, na cidade de Padova, onde se desenvolve com
excelência o cooperativismo, em especial a Cooperativa
Giotto, e isso poderá incrementar o elemento trabalho
nas Apacs do Brasil”, relata o juiz Luiz Carlos.
Apac oferece aulas de circo
Trabalho, educação e – porque não – diversão e
arte. Sim, este último item também integra o rol de
atividades desenvolvidas nas Apacs. No centro de
reintegração de Nova Lima, em Minas Gerais, por
exemplo, são oferecidas oficinas circenses. As aulas
começaram em fevereiro e são realizadas pelo Circo de
Todo Mundo, por meio do patrocínio da Anglo Gold
Ashanti, em parceria com o Programa Desenvolvimento
e Cidadania da Petrobras e a Prefeitura Municipal.
As oficinas visam a contribuir para o processo de recuperação dos que cumprem pena de privação de liberdade ao lhes possibilitar a chance de reinserção, inclusive no mercado de trabalho, em áreas como educação
e entretenimento. É que as aulas abarcam a história do
circo e atividades tais como malabarismo, equilibrismo,
acrobacia de solo, performance, técnicas de segurança,
montagem de espetáculo e metodologia de ensino.
O foco das oficinas é a educação na área cultural,
através do desenvolvimento de oficinas circenses, artísticas e pedagógicas. Trata-se da construção de conhecimentos e de uma prática inovadora, no campo da
formação de Arte Educador Circense.
2014 Julho | Justiça & Cidadania 65
P rateleira, Giselle Souza
Influências para toda a vida
Foto: Arquivo pessoal
A
literatura sempre foi e continuará sendo verdadeira fonte de inspiração para o reconhecido jurista Ives Gandra da Silva Martins. A
poesia, revelou ele à coluna, foi o primeiro
gênero a conquistá-lo e a guiá-lo. Era fã inconteste de Guilherme de Almeida, importante advogado, jornalista, crítico de cinema, ensaísta, tradutor e – sobretudo – poeta da
primeira metade do século passado. Ives leu toda a obra
do escritor.
Compartilhava da mesma admiração pelo autor Saulo
Ramos – renomado jurista e também escritor brasileiro,
infelizmente falecido em abril do ano passado, aos 83 anos
de idade. Martins e Ramos eram amigos. Na juventude,
tinham por hábito declamar poesias, inspirados – claro –
no ídolo que tinham em comum.
A obra do poeta teve repercussão na vida pessoal de
Gandra Martins. “Saulo Ramos e eu, quando jovens e
estudantes, viajávamos pelo interior declamando nossos
poemas, inspirados pelo príncipe dos poetas brasileiros, à
época Guilherme de Almeida. Até hoje, desde Olavo Bilac
até Paulo Bonfim, só seis poetas mereceram esse título.
Em seu livro Código da Vida, Saulo relata nossas aventuras
interioranas”, conta o jurista.
A mesma influência se deu também na vida profissional
do jurista. Quase como profetizando, o amigo Saulo
costumava dizer a Ives que a advocacia lhes seria um meio
para não apenas ganharem a vida, mas realizarem o sonho
66
de se tornarem poetas. “Saulo vaticinava jocosamente e
dizia ‘Ives, a advocacia será, para nós, o bico que sustentará
a nossa verve poética’. E, na verdade, a obra desse grande
vate foi uma das que mais influenciaram os meus escritos”.
Na universidade, os interesses se ampliaram. Gandra
Martins apaixonou-se por outros gêneros da literatura.
“Em Filosofia e Direito, os quatro diálogos de Platão, que
cuidam da Justiça em Atenas, relatando o julgamento
de Sócrates, parecem-me obras fundamentais para todo
estudante de Direito e para a formação do jurista”, afirma.
“No primeiro, Etifron, seu amigo, é aconselhado por
Sócrates a sujeitar-se ao julgamento de sua cidade, porque
deveria crer na Justiça e nas leis de sua terra. No segundo,
com lógica imbatível, Sócrates, ele próprio, submete-se a
julgamento, podendo ir para outra cidade, defender-se de
falsas acusações, mas, mesmo assim, é condenado à morte
(Apologia). No terceiro, tem a oportunidade, oferecida
por seus próprios julgadores, de fugir, recusando-a para
dar exemplo à juventude de respeito às leis (Crito). E,
no quarto, faz considerações serenas sobre a morte,
para a qual diz estar preparado, por ser uma libertação
(Fedon). Os quatro diálogos, indissociáveis, muito me
influenciaram”, acrescenta.
O jurista também destaca a obra de Daniel Rops,
A história da Igreja, em 10 volumes, publicado pela
Editora Quadrante, como inspiradora. Os livros relatam
a história do mundo nos últimos 2 mil anos à luz de uma
perspectiva de valores. “Guilherme de Almeida, Platão
e Rops foram, pois, os autores fundamentais na minha
formação”, destaca.
Justiça & Cidadania | Julho 2014
2014 Julho | Justiça & Cidadania 67
GONÇALVES COELHO
ADVOCACIA
SÃO PAULO
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1478/1201 – Jardim Paulistano – (55) 11 3815 9475
68
www.gcoelho.com.br
Justiça & Cidadania | Julho 2014