REVISTA BRASILEIRA 78 - III - Book.indb

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REVISTA BRASILEIRA 78 - III - Book.indb
“ Vi n i c i u s d e M o r a e s :
Poe s i a d e m u i t o s p l u r a i s ”
Vinicius de Moraes: língua
e linguagem poética
Iva n Ju nqu ei r a
S
Ocupante da
Cadeira 37
na Academia
Brasileira de
Letras.
empre que me toca reler a poesia de Vinicius de Moraes, mais
me convenço de que até hoje não lhe fizeram a devida justiça,
seja por indigência exegética, seja por preconceito literário. É claro
que não se pode situá-lo entre os maiores poetas brasileiros do século – e aqui me refiro, especificamente, a Bandeira, Drummond,
Jorge de Lima, Dante Milano e João Cabral de Melo Neto –, mas
é que Vinícius, quer pelo domínio da língua – e das boas tradições
da língua –, quer pela pujança de sua linguagem poética, cultivou
uma vertente lírica dentro da qual são poucos, ou muito poucos, os
que dele lograram se aproximar. Há nos versos do autor uma tragicidade tão intensa e dolorosa que nem o humour nem a participação
social de seus últimos poemas serão capazes de apagar. Vinicius de
Moraes será sempre, e acima de tudo, o poeta do amor e da morte.
E talvez por isso mesmo seja ele o poeta mais emblemático de sua
* Conferência
proferida na ABL, em 26 de novembro de 2013.
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Ivan Junqueira
época, assim como o foram Baudelaire e Dylan Thomas, aquele que com
maior desassombro e autenticidade encarnou o mito de Orfeu, descendo aos
infernos da vida e da morte em busca de sua Eurídice, que foram muitas e
talvez nenhuma. Seu trânsito tardio para a música não é, portanto, fortuito,
mas uma destinação que, sob muitos aspectos, se confunde com a danação
fáustica, como o atesta, não propriamente o decisivo papel que desempenhou
na evolução de nosso cancioneiro popular, mas a urdidura poético-dramática
que sustenta o seu Orfeu da Conceição (1956).
Como todos os da sua geração, a da década de 1930, Vinicius de Moraes
é um dos mais característicos herdeiros do Modernismo de 1922, tendo levado ao ápice, como bem assinala J. Sérgio Milliet, “os vícios e as virtudes
da escola”. Se acrescentarmos a esse perfil as preocupações transcendentais,
amiúde místicas, visíveis na primeira etapa de sua formação, de fundas raízes
cristãs, como se vê em O caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935)
e Ariana, a mulher (1936), teremos um retrato de corpo inteiro desse Vinicius
ainda imaturo e caudaloso, mas em cuja produção já desponta o rigor formal
que o acompanhará vida afora. É ainda Milliet quem o sublinha: “Sua predileção pela disciplina formal é (...) característica. Rarissimamente se abandona
ao capricho da inspiração, em que pesem as aparências. Controla-se, e quase
sempre sob as medidas clássicas do alexandrino, do decassílabo e do verso de
sete pés (...)”. Ou seja, diríamos de nossa parte, em consonância com a índole
da língua.
Tais observações de Milliet, no entanto, somente se poderiam aplicar ao
volume seguinte do autor, Novos poemas (1938), pois naqueles três primeiros,
como pondera Manuel Bandeira, o poeta ainda “se debatia entre as solicitações da carne e as do espírito; debatia-se naquele conflito que Otávio de
Faria definiu como uma perplexidade entre ‘a impossível pureza’ e ‘a impureza
inaceitável’. Ressoava o seu canto como a longa e desesperada queixa de um
prisioneiro”. O que se lê até então em quase todos os poemas do autor é o
mesmo tom austero, quase solene, os mesmos ritmos largos, dir-se-iam bíblicos, que encontramos na poesia de Augusto Frederico Schmidt, como se pode
observar nesta estrofe do poema “O incriado”:
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destino do mal mas eu nada sou.
Nesses quatro primeiro livros, o que mais aproxima Vinicius de Moraes do
discurso dos poetas do período de transição entre o modernismo ortodoxo e a
poesia que a partir de então se cultivou é, sem dúvida, sua riqueza de imagens
e, curiosamente, sua falta de coragem para despojar-se do supérfluo e reduzir
o poema à sua essência.
Em outras palavras, mais precisamente as de Mário da Silva Brito: “Vinicius de Moraes, nessa fase, é patético e dramático, e seu processo de expressão
é o versículo bíblico a Claudel ou Patrice de la Tour du Pin. Linguagem estranha, exaltada, e até nebulosa que traduz aguda sensualidade e misticismo.”
É curioso que, egresso do modernismo ortodoxo, tenha o poeta reagido, de
início, ao prosaico e ao cotidiano, muito embora viesse a renovar essa temática
quando a ela aderiu, sobretudo graças àquela efusão lírica a que já aludimos.
Não lhe é favorável, contudo, o juízo crítico de Péricles Eugênio da Silva
Ramos, a meu ver injusto, quando afirma que, “entregando-se a pesquisas
de dicção, não chegou Vinicius a cristalizar sua poesia em expressão irredutivelmente própria”, ou quando sustenta que “até como sonetista Vinicius de
Moraes não descobriu o seu modo imperativo de dizer” e que “boa parte de
seus sonetos, com efeito, são pastiches quinhentistas”. Está correto o ensaísta
quando lhe denuncia influências mal absorvidas, entre as quais as de García
Lorca, a quem de fato quase plagia no poema “O rosário”, cujos primeiros
versos parecem sair inteiros de “La casada infiel”. Mas não tem razão quanto
àquelas primeiras objeções, pois o impulso lírico de Vinicius supera todas as
suas deficiências estilísticas ou transbordamentos retóricos.
Foi talvez Mário de Andrade quem melhor entendeu a poesia que o autor
escreveu até o fim da década de 1930. Com efeito, no ensaio “Belo, forte,
jovem” (1939), ao abordar os Novos poemas, diz o grande líder modernista que
desapareceram “aquela firmeza dos livros anteriores e aquela personalidade
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Ivan Junqueira
entregue que, conhecido um poema, não nos preocupava mais, reconhecia em
todos”, mas, sublinha o autor de Macunaíma, “a personalidade demonstrada
por Vinicius de Moraes nos livros anteriores era, senão falsa, pelo menos bastante reorganizada por preconceitos adquiridos. Era uma personalidade que
se retratava pela doutrina estética adotada, muito mais que uma real personalidade, vinda de fatalidades interiores”. Mário de Andrade pusera o dedo na
ferida, e foi ainda mais certeiro quando, nesse mesmo ensaio, denunciou o perigo que o poeta passara a correr ao deixar-se influenciar por “uma poesia tão
marcadamente pessoal como a de Manuel Bandeira”, cujo poema “A estrela
da manhã” desponta sob o palimpsesto do “Amor nos três pavimentos”, de
Vinicius. Mas era, afinal, a libertação que o jovem poeta alcançara no que toca
à sufocante visão estética e doutrinária de um de seus maiores críticos, Otávio
de Faria. Observa ainda Mário de Andrade que Vinicius se apropria de alguns
preciosismos gramaticais e verbais de Bandeira “que talvez lhe venham de
amizades invejáveis com alguns filólogos” e que ora, inesperadamente, transparecem em certos poemas do autor, como a “Ária para assovio”, a “Balada
para Maria” e o “Soneto a Katherine Mansfield”, mas revela o discernimento
e a generosidade que faltaram a Péricles Eugênio da Silva Ramos, quando lhe
descobre o lado benéfico de tais influências, como seria o caso do belo poema
“O falso mendigo”, cujos primeiros versos aqui transcrevo:
Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida
Diz a Amélia para procurar a Patética no rádio
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética Se houver um grande desastre, vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
É particularmente notável a advertência que lhe faz Mário de Andrade
quanto ao abuso do ritmo livre, sobretudo do verso de feição bíblica, longo e
impessoal, ponderando que tais expedientes constituíam então um dos “perigos” e uma “das facilidades da poesia moça do Brasil”. Pois bem: transcorreu
mais de meio século, e os jovens de hoje ainda reincidem nessa tolice, ou seja,
a de julgar que o verso livre, que é dificílimo, tem de fato algo de livre. Veja-se
o que diz pouco adiante o ensaísta: “E o verso deles vai perdendo em caráter e
riqueza rítmica, o que vai ganhando em banalidade de falsa ondulação. Neste
sentido, acho mesmo que as novas gerações vão bem mal quanto à poesia.
Desapareceram os artistas do verso, e, o que é pior, a poesia virou inspiração.” (Os
grifos são nossos.) Com sua contumaz acuidade, Mário de Andrade como
que antecipa a maturação da linguagem poética de Vinicius de Moraes, em
particular no soberbo exercício de estilo em que consiste o soneto, já que “ele
o retoma como a necessidade do seu dizer”, e não como aquele maneirismo
quinhentista equivocamente apontado por Péricles Eugênio da Silva Ramos,
que não conseguiu enxergar aí o entranhado amor do poeta à índole e às
boas tradições da língua. E remata Mário de Andrade: “É possível que, pela
irregularidade do livro, se possa concluir que o poeta está num período de
transição.” Errou por muito pouco: a transição chegara ao fim, e a poesia de
Vinicius de Moraes já beirava o limiar de duas de suas mais altas realizações:
Cinco elegias (1943) e Poemas, sonetos e baladas (1946).
Para que se compreenda por que Vinicius de Moraes insiste ainda em recorrer ao verso longo nas Cinco elegias, convém sublinhar aqui o sentido mais
profundo que, nesse contexto, adquire o verso “Tudo é expressão”, pertencente à “Elegia lírica”e que, com uma leve alteração, se repete no final do poema:
Mas tudo é expressão!
Insisto nesse ponto, senhores jurados
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Ivan Junqueira
O meu amor diz frases temerárias:
Angústia mística
Teorema poético
Cultura grega dos passeios no parque ...
No fundo o que eu quero é que ninguém me entenda
Para eu poder te amar tragicamente!
Escritas durante o período em que o poeta, agraciado com uma bolsa de
estudos do Conselho Britânico, estudou no Merton College, da Universidade
de Oxford, essas elegias refletem não apenas a solidão e o isolamento em que
então se encontrava, mas também – e sobretudo – a ruptura definitiva com
as matrizes espirituais que lhe inervam toda a produção anterior. São sintomáticos – e magníficos – os três versos que abrem essa pungente e soberba
sequência elegíaca, pertencentes à “Elegia quase uma ode”:
Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem.
O verso que mergulha o fundo de minha alma
É simples e fatal, mas não traz carícia
E logo adiante:
Pobre de mim, tornei-me em homem.
De repente, como a árvore pequena
Que à estação das águas bebe a seiva no húmus farto
Estira o caule e dorme para despertar adulta
Assim, poeta, voltaste para sempre.
Apesar de sua gradual e irremissível caminhada em direção às medidas métricas mais estritas, como se vê nos Novos poemas, ser-lhe-ia muito difícil, senão
mesmo impossível, delas se valer em momento de tão intensa metamorfose
ontológica. As Cinco elegias são, assim, uma como que despedida daquela angústia transcendental que tanto atormentara o autor em sua primeira fase de
produção. Mas não são apenas isso, como a seguir se verá.
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética É aqui que de fato se inicia o amadurecimento da linguagem poética de
Vinicius de Moraes. É dessa distensão verbal extrema que o poeta evoluirá
para as formas concisas do soneto, da canção e da balada. Seria talvez como
se o autor houvesse esgotado todas as possibilidades polimétricas do versículo bíblico, que lhe era ainda, todavia, necessário nesse instante em que
se lhe transmutavam os valores espirituais e estéticos. O tempo do sonho
místico terminara, e, “no entanto, era mais belo o tempo em que sonhavas...”. Aquele ideal metafísico do poeta que “busca ainda as viagens eternas
da origem” e que “sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência”
esbarra de súbito na realidade da vida, e se transforma. O poeta cede lugar
ao homem:
Oh ideal misérrimo, te quero:
Sentir-me apenas homem e não poeta!
A pujança imagístico-metafórica do autor alcança nessas Cinco elegias seu
momento paroxístico:
Choro,
Choro atrozmente, como os homens choram.
As lágrimas correm milhões de léguas no meu rosto que o pranto fez gigantesco.
De nada mais lhe valem os pensadores e os filósofos, como tampouco os
“escritores russos, alemães, franceses, ingleses, noruegueses”, os quais já não
podem fazê-lo sentir-se “sábio como antigamente”:
Hoje me sinto despojado de tudo que não seja música
Poderia assoviar a ideia da morte, fazer uma sonata de toda a tristeza humana
Poderia apanhar todo o pensamento da vida e enforcá-lo na ponta de uma clave de Fá!
A par de toda essa tragicidade, porém, a “Elegia quase uma ode”, como
as demais, já deixa muito claro a abertura do espírito do poeta à caducidade
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e à contingência das coisas miúdas e efêmeras que povoam a existência desse
“bicho da terra tão pequeno”. Não obstante sua ânsia ascensional, os versos
finais dessa primeira elegia estão banhados de um humor que se confunde
com o lirismo romântico e a sensualidade cósmica, aquela mesma que se verá
depois em poemas como “A partida” e “Os acrobatas”:
Mendelsohn, toca tua marchinha inocente
Sorriam, pajens, operárias curiosas
O poeta vai passar soberbo
Ao seu braço uma criança fantástica derrama os óleos santos das últimas lágrimas
Ah, não me afogueis em flores, poemas meus, voltai aos livros
Solness, voa para a montanha, meu amigo
Começa a construir uma torre bem alta, bem alta...
Esse humor anima também boa parte da “Elegia lírica”, a segunda do conjunto, sobretudo em versos como estes:
A minha namorada é muito culta, sabe aritmética, geografia, história, contraponto
E se eu lhe perguntar qual a cor mais bonita ela não dirá que é a roxa porém brique.
Ela faz coleção de cactos, acorda cedo e vai para o trabalho
E nunca se esquece que é a menininha do poeta.
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer ir à Europa ? ela diz:
Quero se mamãe for!
O tom trágico reaparece na “Elegia desesperada”, como é flagrante nos
primeiros versos:
Alguém que me falasse do mistério do Amor
Na sombra – alguém: alguém que me mentisse
Em sorrisos, enquanto morriam os rios, enquanto morriam
As aves do céu! e mais que nunca
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética No fundo da carne o sonho rompeu um claustro frio
Onde as lúcidas irmãs na branca loucura das auroras
Rezam e choram e velam o cadáver gelado do sol!
A diluição do conceito cristão de Deus conduz lentamente o poeta ao pathos
do desespero, que agora lhe substitui a angústia existencial:
Gritarei a Deus? – ai dos homens!
Aos homens? – ai de mim! Cantarei
Os fatais hinos da redenção? Morra Deus
Envolto em música! – que se abracem
As montanhas do mundo para apagar o rastro do poeta!
Pertence a esta elegia uma das passagens mais ortodoxas e felizes da moderna poesia brasileira (O desespero da piedade), onde, reconciliado com alguns dos
mais característicos expedientes dos modernistas de 1922, o autor conjuga o
humor ao patético, o erudito ao vulgar, o drama social ao lirismo cotidiano,
a anedota à enumeração caótica dos elementos, para concluir com um dilacerado e dilacerante rogo de piedade a um Deus no qual, todavia, ele já não crê:
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se ainda piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!
A quarta elegia, a “Elegia ao primeiro amigo”, está infiltrada de uma atmosfera intimista que se diria quase rilkiana, como se pode ver nestes versos:
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
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Mas o humor retorna quase patético e feroz quando o poeta nos fala de sua
delicadeza: “Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza”, verso
no qual é visível a paródia a Rimbaud: “Par délicatesse/J’ai perdu ma vie”,
da “Chanson de la plus haute tour”. Ou: “Mato com delicadeza. Faço chorar
delicadamente.” Ou adiante:
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado (...).
Ou ainda:
Meu comércio com os homens é leal e delicado: prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado do que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.
Finalmente, “A última elegia”, concebida a partir de um puzzle linguístico-metafórico em que aflora a prática do intertextualismo poético (há ecos de
diversos autores ingleses clássicos e modernos, entre os quais Shakespeare,
curiosamente parafraseado nos seguintes versos: “Amanheceu, não durmas... o
bálsamo do sono/Fechou-te as pálpebras de azul ... Victoria & Albert resplande? Para o teu despertar; ô darling, vem amar/À luz de Chelsea! não ouves o
rouxinol cantar em Central Park?”), constitui um hino heteróclito de louvor
aos “roofs of Chelsea”, impressos em forma de telhados logo ao início do
poema, que termina com esta bela e radiante invocação:
Ye pavements!
– até que a morte nos separe –
ó brisas do Tâmisa, farfalhai!
Ó telhados de Chelsea,
amanhecei!
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética E assim amanhece a nova vertente da poesia de Vinicius de Moraes, a da
redução métrica e da maior tangibilidade em relação aos aspectos mais imediatos e palpáveis da realidade fenomênica, o que o levará pouco depois ao
engajamento político-social, conquanto efêmero, e a um maior apego ao caráter popular de nosso cancioneiro.
Com poucas exceções – vez por outra o poeta voltará ao verso de ritmos
largos, como ocorre em dois poemas esplêndidos, “Pátria minha” e “Elegia
na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Morais, poeta e cidadão”, dedicada
a seu pai –, toda a poesia escrita desde então por Vinicius de Moraes tende
a medidas métricas mais ou menos regulares, como se pode ver no já citado
Poemas, sonetos e baladas e, ainda, no Livro de sonetos (1957) e em Novos poemas
(1959). O caso dos sonetos e das baladas, algumas destas ainda influenciadas pela dicção encantatória de García Lorca (“Balada na praia do Vidigal”,
“A morte de madrugada”, “O poeta e a lua”, “Balada negra”) e por aquele
coloquialismo inconfundível de Manuel Bandeira (“Balada para Maria”, “A
estrela polar”, “Sinos de Oxford”), merecem consideração à parte, pois neles
deu o poeta, em muitíssimos momentos, o melhor de si e, talvez, de toda a
poesia que se escreveu em seu tempo. É curioso – e isso traz de volta aquela
reflexão de Mário de Andrade acerca da extrema dificuldade imposta pelo
verso livre – como Vinicius de Moraes, cuja espontaneidade expressiva lhe
caracteriza em boa parte a linguagem poética, se revela ainda mais espontâneo
e fluente no enganoso constrangimento métrico do verso medido. Um poema
como “Trecho”, cheio de graça e malícia, conquanto despretensioso, dá bem a
ideia do que queremos dizer. Perceba o leitor a naturalidade com que transita
o autor em meio às redondilhas:
Quem foi, perguntou o Celo
Que me desobedeceu?
Quem foi que entrou no meu reino
E em meu ouro remexeu?
Quem foi que pulou meu muro
E minhas rosas colheu?
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Quem foi, perguntou o Celo
E a Flauta falou: Fui eu.
Mas quem foi, a Flauta disse
Que no meu quarto surgiu?
Quem foi que me deu um beijo
E em minha cama dormiu?
Quem foi que me fez perdida
E que me desiludiu?
Quem foi, perguntou a Flauta
E o velho Celo sorriu.
Não será necessário muito esforço para compreender por que Vinicius de
Moraes é, até hoje, um dos nossos poetas de maior aceitação popular. A historieta maliciosa entre o austero celo e a trêfega flauta pode ser entendida por
qualquer um. Embora às vezes preciosa e hermética, pelo menos até Cinco elegias, sua linguagem ostenta um irresistível poder de comunicação e de sedução,
muito semelhante, aliás, à daquele mesmo García Lorca, a rigor dificílimo em
seu amiúde obscuro surrealismo, em quem tanto se inspirou o poeta.
Quanto às baladas, foi nelas quase sempre extremamente feliz o autor. Anima-as ora o coloquialismo cotidiano, dir-se-ia até doméstico, como na “Balada
do Cavalão”, ora a denúncia social, como é o caso da soberba “Balada do
Mangue”, ora o impulso lírico, presente na “Balada de Pedro Nava” ou na
“Balada das meninas de bicicleta” (à qual pertencem estes dois versos memoráveis: “Centauresas transpiradas/Que o leque do mar abana!”), ora, ainda, a
ambiência macabra, como se pode ver na funérea “Balada do enterrado vivo”
ou na magnífica “Balada da moça do Miramar”, de acentos quase baudelairianos (“Une charogne”, “Danse macabre”) e repugnante clima de putrefação:
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor de seu corpo
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética destila um fétido mel
...................................................
A vida que está na morte
Os dedos já lhe comeu
Só lhe resta um aro de ouro
Que a morte em vida lhe deu
Mas seu cabelo de ouro
Rebrilha com tanta luz
Que a sua caveira é bela
E belo é seu ventre louro
Com seus pelinhos azuis
...................................................
E enquanto os dias se passam
Trazendo putrefação
À noite coisas se passam...
A moça e a lua se enlaçam
Ambas mortas de paixão
...................................................
Ah, vermes, morte vivendo
Nas flores ainda em botão
Ah, sonhos, ah, desesperos
Ah, desespero de amar
Ah, vida sempre morrendo
Ah, moça do Miramar!
Já a “Balada do enterrado vivo” explora aquele temor de que são vítimas
muitos de nós diante da ideia de que possamos despertar sob os sete palmos
de terra. São terríveis seus últimos versos, marcados pelo eco implacável desse
brasileiríssimo ão:
Bate, bate, mão aflita
No fundo deste caixão
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Ivan Junqueira
Marca a angústia dos segundos
Que sem ar se extinguirão!
...................................................
Corre mente desvairada
Sem consolo e sem perdão
Que nem a prece te ocorre
À louca imaginação!
Busca o ar que se te finda
Na caverna do pulmão
O pouco que tens ainda
Te há de erguer na convulsão
Que romperá teu sepulcro
E os sete palmos de chão:
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!
Fora do âmbito da balada, Vinicius de Moraes alcança também a plenitude em alguns poemas de rara mestria, nos quais se associam à emoção todas
aquelas virtudes técnicas a que já aludimos. Seria injusto esquecer aqui – e
não é à toa que estejam todas recolhidas em sua Antologia poética (1960) –
realizações como “Ternura”, “A mulher que passa” (notável por seus impecáveis eneassílabos), “Os acrobatas”, “Sombra e luz”, “Cântico”, “Epitáfio”, “Mensagem à poesia”, “Balanço do filho morto”, “Poema enjoadinho”,
“Pátria minha” (onde o conceito de pátria é liricamente antropomorfizado),
“Poética”, “O operário em construção” e, mais do que quaisquer outras, “O
dia da criação”, com seu imperativo refrão “Porque hoje é sábado” e repleto
de trouvailles humorísticas, e o belíssimo “Poema de Natal”, do qual nunca será
demais repetir aquela comovida primeira estrofe:
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Ou a última, de uma aceitação quase estoica:
Para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje à noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Decidimos deixar para o final – et pour cause! – a análise daquela forma em
que Vinicius de Moraes alcançou talvez seus momentos mais altos e duradouros
como poeta: a do soneto. Tal como o entendemos, o soneto tem suas origens
em meados do século XIII, quando na Sicília, a partir de estruturas métrico-rítmicas rudimentares cultivadas pelos trovadores provençais Piero delle Vigne
e, posteriormente, Guittone d’Arezzo o desenvolveram e fixaram, experiência de
que logo a seguir se serviriam os poetas do dolce stil nuovo, entre os quais Guido
Cavalcanti, Dante e Petrarca, e não há dúvida de que a concepção sonetística
deste último domina toda a poesia da Renascença. É esse o modelo de que se
valeram, entre outros poetas portugueses, Camões e Sá de Miranda. E foi nos
sonetos de Camões, o maior poeta da língua, em que decerto se inspirou Vinicius de Moraes para desenvolver a sua moderna concepção dessa forma poética.
Muitos dos sonetos do autor têm, de fato, um “sabor” quinhentista e até mesmo
camoniano, sobretudo quando pensamos em seus hábeis – e não propriamente
fáceis, ou “cheirosamente fáceis”, como o pretendeu Mário de Andrade –, jogos
de antíteses. Quinhentista seria também, a propósito, um soneto como “Mal
sem mudança”, que Manuel Bandeira escreveu já no fim da vida. E quinhentistas
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Ivan Junqueira
seriam todos os sonetos de um poeta do calibre de José Albano, cuja exata conceituação histórico-literária constitui, até hoje, um enigma que desafia a crítica.
Quinhentistas seriam, ainda, muitos dos sonetos que agora se escrevem, sem que
isso lhes tire a intrínseca modernidade, condição essa que esplende, por exemplo, em todos os rigorosos sonetos que nos legou um poeta tão atual (eu diria
eterno) quanto Dante Milano. E quinhentistas seriam, enfim e afinal, quaisquer
dos sonetos de ontem ou de hoje cujos autores se dispusessem, para além dos
limites do tempo, a deixar-se levar por esse fluxo encantatório que aqui defino
como a índole da língua.
Claro está que nem sempre Vinicius de Moraes acertou a mão no soneto.
Alguns há, por exemplo, que, ou por sua temática, ou por sua concepção estritamente formal, não passam também de equívocos, e tem toda razão Mário
de Andrade quando os reduz a simples “enganos parnasianos”, como é o
caso do “Soneto de agosto”. Sob prisma distinto, creio que os alexandrinos
do “Soneto de intimidade”, apesar de suculentos, não se adaptam ao tema
escolhido pelo poeta. Mas sem dúvida já é um bom exemplar do gênero, sobretudo pela crueza lírica dos tercetos:
Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve
Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos juntos numa festa de espuma.
Outros há, ainda, que são pálidos, ou apenas talvez formalmente corretos,
talvez até corretos demais, como o “Soneto à lua”, o “Soneto a Katherine
Mansfield”, o “Soneto de Londres”, o “Soneto de carnaval” ou o “Soneto do
só ou parábola de Malte Laurids Bridge”, nos quais o poeta esgrima decerto
uma fabulosa astúcia verbal, mas sem alcançar aquela mágica e indispensável
adequação entre o que e o como da expressão poética. Em outras palavras: não se
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética percebem aqui os insólitos caminhos ao longo dos quais o pensamento sente
e a emoção pensa, como ocorre nos terríveis sonetos de Antero de Quental.
Ainda assim, já se pode intuir do que seria capaz o autor no cultivo dessa
forma poética por muitos considerada tão cediça quão temerária. E ele o foi.
Vejamos agora como e por quê.
A partir do momento em que, já dominados os segredos da língua, amadurece a linguagem poética de Vinicius de Moraes, ou seja, por volta de 1940,
cristaliza-se também sua concepção estética quanto ao soneto, até então hesitante e nebulosa. Enfim, o tema adapta-se como luva à linguagem escolhida, e
o poeta vai aos poucos se livrando daquele ranço retórico que lhe endurecia a
expressão. Já se pode ver isso em dois sonetos, os “de contrição” e “de devoção”. Perceba o leitor a fluência e o impulso lírico da primeira quadra daquele,
na qual fulgura a cunha camoniana através do sintagma “o meu peito me dói
como em doença”:
Eu te amo tanto, Maria, te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.
É de notável efeito retórico, por sua vez, a repetição da palavra “mulher”
no outro soneto acima citado, sobretudo nos tercetos:
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
E eis que chegamos ao primeiro dos sonetos integralmente resolvidos de
Vinicius de Moraes, um dos mais belos da língua ou da literatura de qualquer
31
Ivan Junqueira
língua, o “de fidelidade”, cuja cadência decassilábica é no mínimo encantatória e no qual se harmonizam todas as virtudes expressivas que conquistara
o poeta em termos de língua e de linguagem poética. Leia-se-lhe o primeiro
quarteto:
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Ou os dois tercetos:
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Pergunte-se a qualquer modesto ou fugaz leitor de poesia se não lhe ecoam
para sempre na memória estes dois últimos versos. E por quê? Porque neles o
milagre da poesia ocorre não apenas graças à magia verbal que os anima, mas
também a uma experiência amorosa que transcende o âmbito pessoal da sensibilidade do poeta para tornar-se um bem comum de que todos partilham,
uma doação que se recebe no nível de uma língua comum. Daí a razão pela
qual os sonetos de Vinicius de Moraes dele fazem um clássico de nosso idioma. O mesmo se pode ver em algumas das passagens dos “Quatro sonetos de
meditação”, como no terceto final do segundo deles:
E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.
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Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética Ou no primeiro quarteto do terceiro:
O efêmero. Ora, um pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.
Ou, ainda, nos dois tercetos do último:
Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito
Há ainda outros quatro sonetos em que se opera esse mesmo milagre:
“Soneto do maior amor”, “Soneto de Quarta-Feira de Cinzas”, “Soneto do
amor total” e “Soneto de separação”. O sábio emprego da conjunção e, aqui
utilizada como um pedale sostenuto, cadencia e faz jorrar o ímpeto eufórico daquele primeiro, como se pode ver nos tercetos:
Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer – e vive a esmo!
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido e delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.
Sinta-se agora a grave solenidade camoniana do soberbo decassílabo com
que se abre o melancólico “Soneto de Quarta-Feira de Cinzas”:
33
Ivan Junqueira
Por seres quem me foste, grave e pura.
Ou atente-se para as graciosas antíteses de seu terceto final:
Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
Perceba-se a “imitação” camoniana dos primeiros versos do “Soneto do
amor total”:
Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Ou a modernidade expressiva e a pulsação telúrica de seus esplêndidos
tercetos:
Amo-te como um bicho, simplesmente.
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Por fim, o mais miraculoso e talvez estimado de todos os sonetos de Vinicius de Moraes: o “de separação”. Tudo aqui é de uma extrema simplicidade,
pois todo o fluxo retórico do poema repousa na repetição do verbo “fazer”,
utilizado sempre naquele sentido heraclitiano de alguma coisa que se transmuda em outra, e desse banalíssimo advérbio “de repente”. E no entanto
34
Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética tudo aqui é de um supremo requinte, desde a tensão antitética e as aliterações
rascantes até o esquema rítmico adotado, cujos segmentos rimáticos se espelham a distância uns dos outros: anto, uma, ento, ama, ente, ante. E ainda assim é
este um dos sonetos do autor pelo qual nem ele nem seus herdeiros poderiam
sequer invocar o usufruto de direitos autorais, pois está na boca e na memória
de todos, mesmo daqueles que somente vez por outra frequentam o reino da
poesia. É que nele, talvez mais do que em nenhum outro, Vinicius de Moraes
realiza aquele ideal da língua comum a que se refere T. S. Eliot quando define
a situação de Virgílio na poesia latina, ou seja, a de único e autêntico clássico
do Ocidente. Que fique o leitor com a íntegra do “Soneto de separação”:
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes morreu há trinta e três anos e, como poeta – não como
compositor popular –, mergulhou naquela zona de silêncio e sombra em que
costumam ser tragados os escritores após os 10 ou 20 anos de sua morte.
35
Ivan Junqueira
Durante esse tempo, muitos equívocos e incompreensões se acumularam, e o
autor das Cinco elegias não foge à regra. Chamá-lo, como hoje ainda o chamam,
ainda que carinhosamente, de “poetinha” não condiz em absoluto com a
grandeza de seus versos. Cumpre assim que resgatemos, já e já, sua condição
de alto poeta, de poeta que transcendeu os limites do tempo e que, numa
antevisão de sua trajetória rumo à posteridade, escreveu um dia:
Ando onde há espaço
– Meu tempo é quando.
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“ Vi n i c i u s d e M o r a e s :
Poe s i a d e m u i t o s p l u r a i s ”
Vinicius de Moraes, boêmio,
poeta e diplomata
Af fonso Ari nos de Mel lo Fr a nc o
N
Ocupante da
Cadeira 17
na Academia
Brasileira de
Letras.
ão tenciono apresentar uma biografia resumida de Vinicius
de Moraes, nem criticar-lhe a obra literária, ou a musical.
Desejo apenas narrar à guisa de depoimento, em homenagem ao
seu centenário, cumprido há pouco, ocasiões pessoais ou familiares
quando fomos muito próximos, na convivência diária que se estenderia por anos.
Afonso Arinos e Vinicius colaboravam no suplemento literário
do jornal A Manhã, sendo Afonso demitido após a publicação do
manifesto Ao povo mineiro, que ele idealizara e assinou contra a ditadura de Getúlio Vargas. O manifesto seria a primeira denúncia
formal oposta ao governo de exceção. E Beatriz Azevedo de Mello,
a Tati, primeira mulher do poeta, era prima-irmã de um tio meu.
Vinicius se encontrava com Afonso em reuniões de intelectuais
que naquela época, durante a segunda guerra mundial, se uniam na
* Conferência
proferida na ABL, em 3 de dezembro de 2013.
37
Af fonso Arinos de Mello Franco
luta contra o nazifascismo internacional e o regime autoritário brasileiro, corporificado no Estado Novo. Ambos debateram com Orson Welles a questão
do conceito de arte com relação ao cinema, quando Arinos levantou perante
Welles o problema de até onde o constante progresso tecnológico permitia
que aquela concepção fosse aplicável às produções cinematográficas.
Afonso, amigo de Osvaldo Aranha, então ministro das Relações Exteriores,
contribuiu para que Vinicius, já casado com Beatriz por procuração, obtivesse
bolsa concedida pelo Conselho Britânico para o estudo da língua e literatura
inglesas no Magdalen College, da Universidade de Oxford. Aquelas bolsas
universitárias só eram distribuídas a homens solteiros, mas Vinicius levou de
contrabando Tati, a menina do narizinho arrebitado que encantara Monteiro
Lobato. O poeta fugia do College à noite, agarrando-se aos canos do telhado
para descer e dormir com ela em Londres. Voltava a Oxford de madrugada, à
espera que se abrissem as portas da universidade para poder entrar às 7 horas.
Ele dedicou à esposa a última das suas Cinco elegias:
“O roofs of Chelsea!
Encantados roofs, multicolores, briques, bridges, brumas
Da aurora em Chelsea! Ô melancholy!
(...) darling, darling, acorda, escuta
Amanheceu, não durmas... o bálsamo do sono
Fechou-te as pálpebras de azul...
(...) Para o teu despertar; ô darling, vem amar
(...) não ouves o rouxinol cantar em Central Park?
Não ouves resvalar no rio, sob os chorões, o leve batel
Que Bilac deitou à correnteza para eu te passear?
(...) Ó telhados de Chelsea
amanhecei!”
O poeta já prevenira, contudo, na “Elegia ao primeiro amigo”:
“Na verdade sou um homem de muitas mulheres, com todas delicado e
atento
38
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas
com uma doçura de água
(...) Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; (...) sou
Um monstro de delicadeza
(...) Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-la, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ele seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.”
Parece excessivo Vinicius cantar fidelidade, ele que se uniu a nove mulheres consecutivas, e namorou muitas mais. Próximo ao fim, diria sonhar com
a hipótese de viver num casarão com todas as que amou. Porém, mesmo a
essas mulheres às quais destinava a promessa, o poeta avisara no “Soneto de
fidelidade”:
“De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
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Af fonso Arinos de Mello Franco
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
A segunda guerra mundial alcança o casal na Europa. Vinicius desiste da
bolsa na Inglaterra e volta ao Brasil. Resolve ingressar na diplomacia, estuda português com o futuro diplomata Antônio Houaiss, que, mais de meio
século depois, sucedi nesta Academia. É aprovado em concurso do DASP, o
Departamento Administrativo do Serviço Público, e nomeado em 1943, junto a Lauro Escorel, com quem, nos anos 50, eu serviria na Itália.
Quando, formado pelo Instituto Rio Branco do Ministério das Relações
Exteriores, ingressei na carreira diplomática em 1952, fui convidado pelo
ministro João Alberto Lins de Barros, remanescente da Coluna Prestes, a
servir no Departamento Econômico, que ele chefiava. “O Departamento
Político é perfumaria”, decretou João Alberto. Outro diplomata meu amigo,
chefe do Cerimonial, desejava que eu fosse ajudá-lo na sua área, mas nunca
consegui interessar-me por cerimônias formais e questões protocolares. Eu
sentia mais afinidade com os assuntos políticos, e me designaram para a
Comissão de Organismos Internacionais. Ali chegado, apontaram-me uma
mesa vazia, que seria a minha. Na mesa pegada, aboletava-se o diplomata
Vinicius de Moraes.
Estaríamos juntos pelo tempo em que servimos na Secretaria de Estado –
quase inseparáveis durante o dia no Ministério, à noite em romaria pelos bares
de Copacabana. O horário manso do trabalho permitia vida boêmia colateral.
Em certa ocasião, talvez por causa das noitadas em que Vinicius era incansável, senti dor de cabeça e perguntei-lhe se tinha uma aspirina. Disse-me que
não, mas esta seria a oportunidade para levar-me à Divisão Cultural, onde trabalhava João Cabral de Melo Neto, e me apresentar ao pernambucano, outro
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Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata poeta e diplomata. João Cabral sofria de enxaqueca crônica, e, para comba­
tê-la, reservava em sua mesa uma gaveta cheia de analgésicos. Foi assim que
fiquei próximo aos dois até o fim da vida de ambos, embora afastados, com
frequência, pelas contingências da nossa profissão. Cabral e Vinicius foram,
respectivamente, o mais mineral e o mais musical dentre os maiores poetas
brasileiros.
Findo o expediente, Vinicius e eu nos dirigíamos à sede do jornal Última
Hora, distante apenas alguns quarteirões do Itamaraty, onde ele devia entregar
a crônica diária, com que suplementava os modestos vencimentos funcionais.
Eu desconhecia, a princípio, que sua colaboração com a imprensa ia além daquela coluna. Uma tarde, entretanto, o contínuo entrou em nossa sala trazendo correspondência para o cronista, que aproveitava as folgas do serviço para
respondê-la. Só que, naquele dia, a grande quantidade de cartas me surpreendeu. Intrigado, indaguei se eram todas de leitores da crônica. Meio sem jeito,
ele perguntou se eu lia mesmo a Última Hora, e confirmei lê-la diariamente. O
poeta, então, me disse: “Flan, semanário da Última Hora, tem um consultório
sentimental.” Respondi: “Sei, assinado por Helenice.”
Helle Nice fora uma francesa corredora de automóveis, que disputou no
Rio de Janeiro o Circuito da Gávea em seus tempos heroicos antes da segunda
guerra mundial, pilotando um carro azul. Fazia sensação ao posar na praia
de Copacabana, com um cigarro na boca e maiô de duas peças. O próprio
ditador Getúlio Vargas, admirador do gênero vedete, deixou-se fotografar
a cumprimentá-la, embevecido. Diziam que ela namorava o piloto italiano
Marinoni, companheiro de Carlo Pintacuda. Ambos corriam com suas Alfa
Romeo vermelhas, e Pintacuda venceu o circuito, ao derrotar o alemão Von
Stuck, cuja presença na pista era anunciada pela bandeira nazista com a cruz
suástica. Consta que Helle Nice encerrou sua carreira no Brasil como dona de
bordel em Porto Alegre.
Veio, em seguida, a confissão encabulada de Vinicius: “Helenice sou eu.
Esse monte de cartas se deve ao fato de ela ter anunciado uma receita infalível
contra a queda de cabelos.” Conhecendo o poeta, não duvido que seus conselhos possam ter desfeito lares de leitoras e leitores incautos. E ainda ganhei
41
Af fonso Arinos de Mello Franco
uma receita de próprio punho, firmada e dedicada por Helenice, que começava assim: “Comprar uma escova de pelo de arame. Esfregar com força o cabelo
com sabão Aristolino. Vai cair cabelo à beça. Não dar bola.”
Na redação da Última Hora, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e outros
amigos formavam uma rodinha, conversando conosco a rememorar os fatos
do dia. Otto cobrava de Vinicius, o grande lírico de Poemas, sonetos e baladas,
talvez o mais belo dos seus livros de poesia, a continuidade da obra literária,
mas o poeta se defendia, lembrando que as letras para a música popular estavam no coração e na boca do povo, ao passo que a leitura dos versos ficaria
restrita a uma elite. Eu achava que os dois tinham razão, mas a verdade é que,
no caso, a música, sempre bonita, superou a poesia, cujas últimas tentativas
foram medíocres.
Tati fazia crônica de cinema. Recém-separada de Vinicius pela segunda vez,
era constrangedor para ela juntar-se ao grupo. No entanto, caminhando de
um lado para outro, passava por nós com frequência, e daí nasceu o primeiro
samba-canção de Vinicius de Moraes, “Quando tu passas por mim”:
“Quando tu passas por mim
Por mim passam saudades cruéis
Passam saudades de um tempo
Em que a vida eu vivia a teus pés
Quando tu passas por mim
Passam coisas que eu quero esquecer
Beijos de amor infiéis
Juras que fazem sofrer
Quando tu passas por mim
Passa o tempo e me leva para trás
Leva-me a um tempo sem fim
A um amor onde o amor foi demais
E eu que só fiz te adorar
E de tanto te amar penei mágoas sem fim
Hoje nem olho para trás quando passas por mim.”
42
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Ao mesmo tempo, o poeta elogiava a sensualidade de uma namorada que,
mais tarde, tornaria pública a relação entre ambos. Eu gostava da sua poesia e
das músicas que ele compunha, estimava o amigo e colega, mas sem admirar-lhe, necessariamente, a atitude diante das mulheres. A Vinicius, como ao Don
Juan, de Gregorio Marañon, nenhuma, de fato, contentava, pois ele, no final
das contas, não satisfazia mulher alguma. Para o poeta, o feminino era um ser
abstrato, verbo intransitivo. Assim, na “Receita de mulher”:
“As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
(...) Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo.
(...) e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e, em sua incalculável imperfeição,
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.”
Nesses versos, Vinicius não fez mais que confirmar o que já cantara na
adolescência, com o fox-trot “Loura ou morena”, composto por ele e Paulo
Tapajós:
“Eu quero apenas a todas glorificar
Sou bem constante
No amor sou leal
Louras, morenas, sois o ideal
Haja o que houver
Eu amo em todas, somente a mulher.”
Porém reconhecia e louvava as que se defendiam, como “Marina”:
“Mas sempre te libertavas
Com doidas dentadas bravas
Menina fidalga!
43
Af fonso Arinos de Mello Franco
(...) Que nas outras criaturas
Não vi mais meninas puras
Menina pura.”
A pena que ele sentia das mulheres também era plural, como mostra na
“Elegia desesperada”:
“Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.”
Vinicius separou-se de Tati pela primeira vez por causa de Regina Pederneiras, arquivista do Itamaraty, inspiradora da sua “Balada das arquivistas”:
“Oh, jovens anjos cativos
Que as asas vos machucais
Nos armários dos arquivos!
(...) Eu vos incito a lutardes
(...) E ir passear pelas tardes
De braço com os namorados.”
Saindo do Ministério, o diplomata passeava pelo Campo de Santana de mãos
dadas com Regina. Como se unira a Tati apenas pelo matrimônio civil, encontrou em Petrópolis um padre para casá-lo com a nova amada, na ausência conspícua da mãe e das irmãs. Passados uns dias, entrou na casa materna e cobrou:
“Vocês não apareceram no meu casamento.” Elas ficaram esperando a reprimenda, mas veio a reação carinhosa: “Pois perderam, estava muito bonitinho.”
O que segue me foi narrado por Pedro Nava, médico e escritor, amigo
fraterno de Vinicius e de Afonso Arinos. Nava dormia de madrugada, quando
Regina o acordou, telefonando cheia de susto: “Nava, Vinicius está desacordado. Não sei o que fazer. Me ajude.” Nava vestiu-se, arrumou a maleta de
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Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata instrumentos e remédios, e seguiu para a casa distante do amigo. Deu-lhe
uma injeção, reanimou-o e foi-se embora. Poucos dias depois, Regina chamou
de novo, alarmada: “Nava, Vinicius voltou a perder os sentidos.” O médico
tornou a rumar para a casa do poeta. Lá jazia ele, desmaiado. Dessa vez, o
médico pediu: “Regina, traz-me um café forte, por favor.” Quando a mulher
desapareceu na cozinha, Nava indagou, sacudindo Vinicius severamente: “O
que está havendo?” E o poeta entreabriu um olho súplice: “Pedrinho, eu não
aguento mais...”
Vinicius não seria réu primário nesse truque. Um dia, já com o lar sob
outra gerência, a musa de turno recorreu a Otto Lara Resende, pois seu companheiro sentia-se mal. Otto foi visitá-lo com Hélio Pellegrino, que tinha
formação médica. Mas, ao adentrar o quarto onde jazia o poeta, Otto lobrigou, sobre a mesa de cabeceira, a intimação de uma promissória vencida.
Tirou, então, da carteira uma nota de dois cruzeiros, cuja cor alaranjada era
semelhante à da cédula de mil cruzeiros, ilustrada por uma figura de Pedro
Álvares Cabral. Dobrou-a com cuidado e, ao se despedir de Vinicius, passou-a sorrateiramente ao pseudoenfermo, que, na sua expressão ao me narrar o
episódio, capturou-a “com mão de garçom recebendo gorjeta”. Os dois amigos pretextaram sair, mas ficaram esperando atrás da porta, até ouvirem uma
risada do poeta, que lhes confessou: “Eu pensava que fosse um cabralzinho...”
E, já reconfortado, seguiu junto aos companheiros para a cidade.
A união de Vinicius com Regina não durou. Removido como vice-cônsul
para o Consulado do Brasil em Los Angeles, o poeta reatara com Tati. O novo
posto, onde teve como chefe o futuro acadêmico Sérgio Corrêa da Costa, o
encantaria, por causa do seu grande interesse pelo cinema. Outra fonte de
atração para ele era a música popular norte-americana, com o spiritual e o jazz.
Experiente cronista, crítico e censor cinematográfico antes de morar em
Hollywood, Vinicius lá se tornaria amigo de Orson Welles, Louis Armstrong
e Carmen Miranda. Namorou ou tentou namorar Rosina Pagã, Ann Sheridan, que chegou a detê-lo fisicamente, e Ava Gardner. Ao conhecer esta
última, lançou-lhe olhares gulosos para o decote, mas ela observou: “Você me
acha bonita? Por dentro, cheiro mal (inside, I stink).”
45
Af fonso Arinos de Mello Franco
Um dia, ao representar o Consulado do Brasil no sepultamento de um
marinheiro que morrera na viagem, a caminho do porto, o vice-cônsul tinha
bebido, escorregou e caiu dentro do túmulo vazio. Para ele, o uísque era o
melhor amigo do homem: “É o cachorro engarrafado”, dizia.
Quando se encontrava nos Estados Unidos, Vinicius perdeu o pai, e passou
a noite escrevendo, para recordá-lo, a “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira
da Silva Moraes, poeta e cidadão”:
“A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram no mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro
(...) Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste
A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar
Em silêncio
(...) Eras, meu pai morto
Um grande Clodoaldo
(...) Neto de Alexandre
Filho de Maria
Cônjuge de Lydia
Pai da Poesia.”
O poeta servia nos Estados Unidos, mas, como sempre no exterior, sentindo a distância da terra natal. Então, cantou-a em “Pátria minha”, poema que
João Cabral publicaria mais tarde em Barcelona, na sua prensa manual:
“A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
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Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
(...) Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
(...) Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos. A minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito
‘Liberta que serás também’
E repito!
(...) Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
47
Af fonso Arinos de Mello Franco
Para levar-te presto este avigrama:
‘Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes’.”
Voltemos agora à Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, onde trabalhávamos. Findo o horário do expediente no Ministério, íamos a pé até à Última Hora. Do jornal, saíamos para o bar Maxim’s, na Avenida Atlântica. Lá,
era também diária a presença de boêmios contumazes, escritores e jornalistas
talentosos, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,
Sérgio Porto, Fernando Lobo, Lúcio Rangel e Antônio Maria, já então inseparável de Vinicius. No Maxim’s, Vinicius ia encontrar Lila Bôscoli, sua
terceira mulher, que gerou a “Balada dos olhos da amada”:
“Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus
Ó minha amada
Que olhos os teus
(...) Ó minha amada
De olhos ateus
Talvez um dia
Quisesse Deus
Que eu visse um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus”
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Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Às vezes, eu saía do Maxim’s para ir ao Michel, ouvir cantar Dolores Duran, compositora e intérprete deliciosa d’“A noite do meu bem”, que morreu
antes dos 30 anos.
De outra feita, percorri com o poeta vários pontos de encontro dos notívagos de Copacabana, até amanhecermos num bar do Posto 6, comemorando
o nascimento, naquele dia, de Georgiana, sua filha com Lila. Afonso Arinos,
ao saber disso, insinuou que Vinicius assim teria chamado a garotinha para
homenagear Stálin, natural da Geórgia.
Um dia, Otto Lara Resende e eu resolvemos visitar o poeta, que estava
acamado. Encontramos Tom Jobim sentado à sua cabeceira. Ex-aluno dos jesuítas, Vinicius fora católico fervoroso na mocidade, sobretudo pelas mãos de
Octávio de Farias, que tinha grande influencia sobre ele, e o amava. Chegando
a sentir simpatias integralistas, passaria depois para o lado oposto, como lídimo representante da esquerda festiva. Lembro-me dele a citar, como tipos de
pessoas que detestava, fascistas e avarentos.
A conversa com o enfermo descambou para os crimes de Stálin, que seriam
denunciados por Kruschev no Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Otto e eu pressionávamos Vinicius sobre a personalidade do líder soviético, e ele acabou concordando: “Uma grande figura, mas um monstro moral.”
Naquela época, eram comunistas ou simpatizantes vários dos maiores artistas, escritores e arquitetos brasileiros. Basta lembrar, quanto aos últimos,
Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, e, entre os primeiros, Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Graciliano Ramos, os diplomatas
Antônio Houaiss, Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, a quem
Vinicius conclamara, certa vez, no “Retrato, à sua maneira”:
“Adiante Ave
Camarada diamante!”
Mas o poeta era bom pai, como revela no “Poema enjoadinho”, escrito em
Los Angeles quando tinha um casal de filhos, Susana e Pedro. Depois, viriam
mais três meninas, Georgiana, Luciana e Maria:
49
Af fonso Arinos de Mello Franco
“Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
(...) Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
(...) Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
(...) Mas se não os temos
Como sabê-los?
(...) Que maciez
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém que coisa
50
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!”
Quanto à música popular, eu frequentava o Grêmio Recreativo Escola de
Samba União de Vaz Lobo, com carteirinha de sócio e tudo. O grande compositor da escola, Zé Kéti, costumava vir com outros sambistas cantar em
casa de parentes ou amigos meus. Uma vez, a reunião ocorreu na casa de
Hamilton Nogueira, senador pelo Rio de Janeiro. Um filho de Hamilton era
prócer importante do Grêmio Recreativo. Convidei Vinicius e Lila para irmos
juntos. Lá chegados, encontramos Zé Kéti, sempre animado, a quem acompanhava um amigo discreto, de cabelos lisos e grisalhos, que se pôs a cantar,
dedilhando o violão.
Lila ficou no auge da excitação ao ouvi-lo: “Vinicius, o samba da minha
vida! Por favor, de quem é ele?”, exultava, ao perguntar ao sambista. “Meu,
minha senhora.” “Mas, então, o senhor é...” “Nelson Cavaquinho, para lhe
servir, minha senhora.”
Fui, com meus pais, celebrar os 40 anos de Vinicius no apartamento onde
ele vivia, em Ipanema. Afonso Arinos gostava dos seus versos na “Balada do
Mangue”, onde se abria o poeta social:
“Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobres de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
(...) Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
(...) Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
51
Af fonso Arinos de Mello Franco
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
(...) Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto-morto de choferes
Passadiço de navais!
(...) Por que não vos trucidais
Ó inimigas? Ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!”
Décadas mais tarde, conversando na Holanda com Joanita Blank, carioca
de Santa Teresa, filha espiritual de Manuel Bandeira, que chegara a embaixadora da Holanda em Portugal e na Alemanha, perguntei-lhe como se dera seu
namoro com Vinicius (que, repreendido por Bandeira, chamou-o, em versos,
“poeta, pai, áspero irmão”). Joanita me contou que passeavam de bonde com
as mãos dadas.
Na mocidade, ela fora próxima a Afonso Arinos e este lhe dedicou um
poema, confessando, em suas memórias, haver sentido por Joanita uma “recôndita ternura”.
Hospedei-a na minha casa em Wassenaar, quando servi como chefe de
missão nos Países-Baixos, e a frequentava assiduamente no lar de idosos onde
se recolhera, próximo a Amsterdã. Doou-me, então, um desenho de Afonso
que havia feito na juventude, e me pediu para trazer ao Rio um busto de
Manuel Bandeira esculpido por Dante Milano, a fim de integrar o espólio do
poeta na Casa de Rui Barbosa.
Joanita me disse, nessa ocasião, que ficara encantada com Pedro Nava, dançando juntos em um baile de Carnaval no High Life, mas não o namorou
porque ele era feio e pobre.
52
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata O médico e escritor Pedro Nava foi íntimo de Vinicius, que lhe dedicou a
“Balada de Pedro Nava”. Quando Nava meteu uma bala na cabeça, lembrei-me
da canção, imaginando seu caráter profético sobre o destino do grande
memorialista:
“Uma pedra a Pedro Nava
Nessa pedra uma inscrição:
‘– deste que muito te amava
teu amigo, teu irmão...’
(...) Preciso muito falar-lhe
Antes que chegue amanhã:
Pedro Nava, meu amigo
DESCEU O LEVIATÃ!”
Devoto dos encantos femininos, Vinicius não era discreto sobre suas detentoras, que lhe retribuíam as atenções. Falando de um desses amores pouco
duradouros, flama exótica, radiante em todos os sentidos, disse-me, certa vez,
que não conseguia resolver se a julgava “uma beleza ou um bofe”.
Mas tinha o coração generoso. Chegou a desafiar o brutamontes que ousara falar mal de Alceu Amoroso Lima no Bar Recreio.
Uma noite, Vinicius com Lila, Antônio Maria e sua amada de ocasião
passaram por nossa casa, a fim de levar-me a São Paulo, onde chegamos ao
amanhecer. O pernambucano gordo dirigia o carro, e, repentinamente, começou a monologar. Vi que se punha a reproduzir, em voz alta, a discussão que
imaginava estar-se travando no carro ao lado, com o qual ele apostava corrida
para ultrapassá-lo: “Preste atenção, Azevedo, você está andando depressa demais... Cuidado, Azevedo, vá mais devagar... Não corra, Azevedo, por favor...
Azevedo, aquilo é um negro, Azevedo!”
Tempos depois, o poeta seria removido para a Embaixada do Brasil na
França, onde permaneceu pouco tempo, graças à antipatia do chefe. Foi,
53
Af fonso Arinos de Mello Franco
então, transferido para a nossa delegação junto à Unesco, também localizada
na capital francesa, chefiada pelo nosso amigo Paulo Carneiro, positivista ilustre, zelador da Casa Museu de Augusto Comte em Paris, futuro embaixador
na Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Paulo
viria a integrar esta Academia.
Por carta de março de 1955, Vinicius me informou de Paris que a “figura
de Pedro Nava esteve excelente aqui. Grandes papos. Ele te contará aí. Consta
que meu livro esgotou rápido, e eu estou brilhando muito por aí. Se for verdade, escreve contando, pois sempre dá prazer saber que a gente ainda não foi
esquecido”.
Então nos afastamos, mas ele precisou de dinheiro no Rio, e arranjei-lhe
empréstimo com parente nosso que geria uma agência bancária. O poeta ainda pediu: “Manda me avisar da data do vencimento.” Eu estava noivo, e, ao
aproximar-se a ocasião do matrimônio, verifiquei que teria necessidade das
parcas economias que a fiança imobilizara. Então, escrevi-lhe informando que
a promissória por mim avalizada estava para vencer. E ele me tranquilizou
com telegrama redigido em latim macarrônico: “NON AFOBARE FILI MIHI.
PAPAGAIUS PAGATUS EST.”
Após o convívio com Vinicius no Rio, casei-me e fui removido para a
Embaixada na Itália. A noite da minha despedida de solteiro transcorreu na
calçada da Avenida Atlântica, quando ardia o incêndio do edifício onde ficava
a boate Vogue, quase vizinha ao Bar Maxim’s, por nós frequentado. Houve
quem saltasse lá de cima, não suportando as chamas, o calor e o fumo. No
dia seguinte, amigas da noiva vieram assistir ao matrimônio diretamente do
funeral de uma delas, que, em plena lua de mel, morrera abraçada ao marido
na banheira cheia d’água, tentando escapar do fogo.
Ao felicitar-me, em agosto, pelo casamento com Beatriz, o poeta contava
que, “apesar da grande agitação social, mesmo em Château d’Eu, este sarcófago, onde me enterrei por 15 dias para poder trabalhar um pouco em
coisas minhas – o que é impossível em Paris”, ia “tocando assim mesmo o
cenário de um filme e uma peça de teatro noite adentro”. (Foi no Château
d’Eu, comprado havia pouco por Assis Chateaubriand, que o conde d’Eu,
54
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata marido da princesa Isabel, se refugiou após a proclamação da República no
Brasil.)
A peça teatral e o filme a que Vinicius se referia eram “Orfeu da Conceição”, premiada no concurso de teatro do IV Centenário de São Paulo,
exibida, com cenografia de Oscar Niemeyer, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, e “Orfeu Negro”, que ganharia, no Festival de Cinema em Cannes,
a Palma de Ouro, e, em Hollywood, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Em crônica escrita naqueles dias, o poeta explica com mais detalhes seu
trabalho: “Vim para terminar a primeira adaptação para o cinema da minha
peça ‘Orfeu da Conceição’, de que o produtor Sacha Gordine quer extrair um
filme. Depositamos ambos grandes esperanças no projeto. (...) É coisa apaixonante criar um filme. Nesta adaptação, construo o filme como eu o faria.
Ao contrário da minha peça, em que a ‘descida aos infernos’ de Orfeu situa-se
numa gafieira, no 2.º ato, estou transpondo o Carnaval carioca para o final do
filme, como o ambiente dentro do qual a Morte perseguirá Eurídice.”
A propósito da peça e do filme, Vinicius me solicitou, em setembro, que
o ajudasse a apressar uma resposta favorável a seu pedido, feito ao Itamaraty,
para passar dois meses de férias no Brasil: “O tempo está correndo, e eu não
posso perder essa minha viagem, que é importantíssima, do ponto de vista
‘cinematográfico’ da carreira. Você, por essa altura, já deve ter lido aí sobre o
meu filme com o Gordine etc.” E dá, então, sua opinião sincera sobre a profissão que abraçáramos: “Não posso perder essa chance, do contrário acabarei
mesmo embaixador, o que é uma das perspectivas mais sinistras que há na
minha frente. Breve nos veremos aí, para trançar um violão. Estou cheio de
sambinhas novos.”
Não obstante a visão pouco lisonjeira que parecia ter da carreira diplomática, o poeta, então primeiro-secretário, nela seria reintegrado, post mortem, no
cargo de ministro de primeira classe, dentre cujos integrantes são designados
os embaixadores.
E, aqui, talvez já aludisse à nova batida do samba, que nascera no violão de
João Gilberto, com Tom Jobim ao piano e poesia de Vinicius de Moraes. O
primeiro samba da bossa-nova a aparecer seria “Chega de saudade”:
55
Af fonso Arinos de Mello Franco
“Vai, minha tristeza
E diga a ela
Que sem ela não poder ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim
Não sai.”
O primeiro grande sucesso internacional da dupla Vinicius-Tom Jobim
seria “Felicidade”, composto para o filme “Orfeu Negro”:
“Tristeza não tem fim
Felicidade sim...
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar.”
Com o samba-canção “Se todos fossem iguais a você”, Vinicius e Jobim
definiam o sonho de amar:
“Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver!
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
56
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir nem sofrer;
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você.”
No belo “Prelúdio”, letra e música eram de Vinicius:
“Eu sem você
Não tenho porque
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar.
Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
(...) Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.”
Enquanto na França, Vinicius se enamora, breve e dramaticamente, da
bela Eugênia Maria, a Mimi, filha do embaixador Ouro Preto, irmã de caros
amigos meus que eram diplomatas. Dela me recordo, em outros tempos, no
Hotel Ritz, embrulhada num manto de leopardo. Dessa feita, Lila consegue recuperá-lo, mas seria pela última vez. E inspira ao poeta o “Soneto do
amor total”:
57
Af fonso Arinos de Mello Franco
“Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.”
Passamos por Paris em férias, revimos Vinicius e Lila, e revivemos por uma
vez, saindo em bando, a boemia do Rio de Janeiro. Mas, o casal se desfazia.
Enquanto me sentei no meio-fio, tentando consolar Lila que chorava, acontecia um novo amor ali mesmo, na calçada bem atrás de nós, pois o poeta se
apaixonara, desta vez, por Lúcia Proença.
Transferido para Montevidéu como cônsul-adjunto, Vinicius se une a Lúcia, e compõe com Baden Powell, estimulados por uma caixa de uísque, os
afrossambas, durante duas semanas passadas na casa dela em Petrópolis, que
pertencera ao barão de Mauá.
Encontrava-me em Genebra como cônsul do Brasil quando assisti a uma
sessão especial do filme “Um homme, une femme”, de Claude Lelouche, com
a presença do diretor. E, para minha surpresa, ouvi, na trilha sonora, o “Samba da bênção”, de Vinicius e Baden. Nos debates que se seguiram à exibição,
indaguei de Lelouche sobre a presença, no filme, do afrossamba que me era
58
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata familiar sem menção aos seus autores, mas ele se esquivou com uma tirada de
mau gosto.
Sem desejar atingir o topo da carreira, Vinicius não desdenhava, entretanto,
a diplomacia. Numa das músicas compostas com Baden, ele se define como
poeta e diplomata, nessa ordem.
Sua fama como músico já era, então, bem maior que a de poeta. Mas ele pediu ao Ministério das Relações Exteriores para regressar ao Brasil, explicando
oficialmente que o fazia por amor.
Pouco antes do golpe de Estado de 1964, o Itamaraty o devolveu a Paris, a
fim de servir no Consulado-Geral. Lúcia, cansada de boemia, passara o bastão
a Nelita.
Era o começo do fim da carreira diplomática de Vinicius de Moraes. O
secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, conhecido por sua
ideologia direitista e antipatia pelos boêmios, colocou-o perante a opção de
deixar o trabalho na boate Zum-Zum, em Copacabana, onde o poeta se apresentava todas as noites, ou licenciar-se sem vencimentos. Vinicius resolveu
pedir licença.
Um ministro das Relações Exteriores, outrora signatário do Manifesto
dos Mineiros contra a ditadura civil do Estado Novo, firmaria, também, o
Ato Institucional n.º 5, que tirou a máscara da ditadura militar entre nós. O
general-presidente de turno não julgava possível que um diplomata de carreira
fosse, além de poeta, boêmio. E aposentou Vinicius compulsoriamente.
Numa das fases mais sombrias da nossa história, o poeta foi excluído da
carreira diplomática por ato arbitrário do governo. Os catões de plantão, capachos da ditadura, julgavam-lhe a vida artística e boêmia incompatível com a
alegada pureza revolucionária. Não é que Vinicius tivesse vocação incoercível
para a diplomacia. Nem poderia exercê-la por muito tempo, com o espírito
desregrado que lhe era peculiar. Naquele momento, porém, sentiu o golpe
financeiro.
Voltamos a estar juntos no Rio bem mais tarde, e por pouco tempo. Compositor e intérprete, ele se aproximara de Chico Buarque e Francis Hime, ambos filhos de primas-irmãs de meu pai. Maria Amélia, mãe de Chico, muito
59
Af fonso Arinos de Mello Franco
religiosa e habitualmente severa, se dispunha sempre a compreender, explicar
e desculpar as estrepolias do amigo. Este se apresentava, então, perante vasto auditório, acompanhado ao piano por Tom Jobim, Toquinho no violão,
e Miúcha, irmã de Chico, a cantar. Com um copo de uísque sobre o piano,
Vinicius advertia Jobim: “Tomzinho, vamos contar aquela história enquanto
eu me lembro dela.” Terminado o espetáculo, esticávamos a noite em uma
churrascaria, o poeta na cabeceira da mesa comprida, o dinheiro da bilheteria
a estufar-lhe os bolsos do safári, pagando toda a despesa, com a generosidade
ilimitada que lhe era habitual.
Chegado mais uma vez do exterior, peço notícias do poeta a Afonso Arinos, que responde: “Anda pela Bahia, morando na praia de Itapuã, metido
numa bata, como franciscano.” Vivia com ele a baiana Gesse Gessy, filha de
santo no candomblé.
Nosso encontro final ocorreu quando Vinicius dedicara à argentina Marta
Rodriguez o “Soneto para Marta”:
“E sem olhar nem vida, nem idade,
Me deste em tempo certo
Os frutos verdes deste amor maduro.”
Duas amigas da nova companheira passavam uma temporada na casa de Vinicius no Rio, enquanto Martita permanecia em Buenos Aires. Fomos jantar
os quatro num restaurante em Ipanema. O poeta bebia muito, ora a inclinar-se
sobre uma das moças, ora sobre a outra, que lhe endireitava a roupa. Levei-os
para sua casa na Gávea, à qual dava acesso, a partir da rua, uma vasta escadaria.
Dali o vi pela última vez, subindo aos céus com dificuldade, amparado por
um par de anjos portenhos.
Eu era chefe de missão na Embaixada do Brasil em La Paz, na Bolívia,
quando minha esposa telefonou do Rio, onde prestava assistência a um filho,
ferido com gravidade em acidente de automóvel conduzido por um irresponsável, no qual falecera uma jovem. Cuidadosa, Beatriz perguntou se eu já lera
60
Vinicius de Moraes, boêmio, poeta e diplomata os jornais brasileiros do dia, dos quais recebíamos uma sinopse telegráfica, e,
diante da resposta negativa, deu-me a notícia da morte de Vinicius.
Lembranças do nosso convívio tão próximo nos anos 50 me assomaram
aos borbotões, os dias no trabalho, as noites na boemia. Depois, a pobreza,
quando o regime militar o demitiu do Itamaraty. O reencontro final, de novo
nas madrugadas do Rio, o poeta entre mulheres em flor.
Para Carlos Drummond de Andrade, Vinicius “foi, de todos nós, o único
que viveu como poeta”. Na opinião de João Cabral de Melo Neto, ele teria
sido o maior poeta da língua, se não houvesse optado pela música. Disse-me
Cabral que, a seu ver, no mundo e no século, o maior de todos fora Federico
García Lorca. A quem Vinicius dedicou “A morte de madrugada”:
“Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n’alma
(...) De repente reconheço:
Eram campos de Granada!
Estava em terras de Espanha
Em sua terra ensanguentada
(...) Era um grupo de soldados
Que pela estrada marchava
Trazendo fuzis ao ombro
E impiedade na cara
Entre eles andava um moço
De face morena e cálida
Cabelos soltos ao vento
Camisa desabotoada
(...) Súbito um raio de sol
Ao moço ilumina a face
61
Af fonso Arinos de Mello Franco
(...) Era ele, era Federico
O poeta meu muito amado
(...) Chamei-o: García Lorca!
Mas já não ouvia nada
Enquanto os soldados miram
A cabeça delicada.
(...) Hoje sei que teve medo
Mas sei que não foi covarde
(...) Atiraram-lhe na cara
Os vendilhões de sua pátria
Nos seus olhos andaluzes
Em sua boca de palavras.
(...) Em meio a flores de sangue
A expressão se conservava
Como a segredar-me: – A morte
É simples, de madrugada...”
Não sei quem haja contribuído mais do que Vinicius para divulgar nossa
literatura, a música popular e o cinema brasileiros no exterior. Pelo que lhe devemos, seu nome poderia ser dado a algum órgão do Ministério das Relações
Exteriores encarregado da promoção cultural do Brasil no mundo.
O poeta extraiu da vida tudo o que ela podia oferecer-lhe. Viveu cada dia e
cada momento como se fosse o último. Por outro lado, totalmente desprendido, sem ambicionar bens materiais, nem preocupado com a própria saúde,
julgava que bastar-se a si mesmo era a pior solidão. Sempre se dando ao próximo, Vinicius de Moraes legou à vida uma herança de amor.
62
“ Vi n i c i u s d e M o r a e s :
Poe s i a d e m u i t o s p l u r a i s ”
Vinicius de Moraes, o
poeta da imperfeição
Jo s é C a stel lo
N
o ano de 2013, ano do centenário de nascimento de Vinicius de Moraes (1913-1980), mais uma chance nos é
oferecida para devolver ao poeta o lugar que lhe é de direito. Não
só o de grande poeta, um dos maiores da língua portuguesa, mas
o posto – tão necessário no século gelado e superficial em que vivemos – de poeta maior. Ao pensar nos grandes poetas do século
XX brasileiro – João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de
Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes e tantos outros –, alguns
ainda insistem em catalogar Vinicius de Moraes como um “poeta
menor”, ou um simples (ainda que doce) “poetinha”. O escândalo
dessa avaliação se evidencia com a simples leitura de seus poemas.
Só um grande poeta, só um poeta singular e absolutamente dono de
si, escreveria poemas como as Cinco elegias, de 1943, os magníficos
* Conferência
proferida na ABL, em 13 de dezembro de 2013.
Escritor e jornalista,
é colunista do
suplemento “Prosa”,
de O Globo. No Globo
On Line, mantém o
blog “A literatura
na poltrona”. É
colaborador do
suplemento “EU&”,
do jornal Valor
Econômico, e do mensário
“Rascunho”. Mestre
em Comunicação pela
UFRJ. Autor, entre
outros, de Ribamar
(Bertrand Brasil
2010, prêmio Jabuti
de “romance do ano”
em 2011), Vinicius de
Moraes, o poeta da paixão
(Companhia das
Letras, 1994, prêmio
Jabuti de “ensaio do
ano” em 1995) e de
João Cabral: o homem sem
alma (Bertrand Brasil,
2006).
63
José Castello
sonetos, reunidos no Livro de Sonetos, de 1947, ou comoventes baladas, como a
“Balada das arquivistas”, a “Balada do Mangue” e a “Balada das meninas de
bicicleta”. Só um poeta maior escreveria poemas da força de “Pátria minha”,
“Carta aos puros”, ou “Operário em construção”.
Apesar da vida agitada, inconstante e mundana, é possível, com o recurso
da distância, observar Vinicius de Moraes, hoje, como uma espécie inesperada
de eremita. Foi um poeta solitário – como um músico solitário também. Os
poetas sempre desconfiaram de sua aproximação com a música popular – logo
dele, que ocupou o lugar de grande mestre do movimento da bossa-nova.
Sobre essa aproximação, disse João Cabral de Melo Neto em uma entrevista:
“Vinicius teria sido o maior poeta do século XX brasileiro, não fosse essa
mania da música popular.” Também os músicos, mesmo os que o olham com
respeito, suspeitaram, algumas vezes, de suas origens livrescas e de gabinete.
Situado entre a literatura e a música, onde estaria, afinal, Vinicius? Quem seria, no fim das contas, Vinicius de Moraes? Onde fica, exatamente, este “espaço entre” no qual o poeta sempre fez questão de viver? A resposta só pode ser
uma: para além das artes clássicas e dos cânones, Vinicius foi, antes de tudo,
um poeta da vida. Um homem movido não por uma estética, mas por uma
paixão. A paixão pela imperfeição humana. Poeta – para tomar emprestada
uma expressão clássica de Nelson Rodrigues – da vida como ela é.
Esteve, sempre, em busca da mulher perfeita: Tati, Lila, Lucinha, Gesse,
Gilda – uma série quase sem-fim de grandes mulheres que o escoltaram. Em
busca do parceiro perfeito: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Toquinho,
Chico Buarque, Edu Lobo, Antonio Maria, Claudio Santoro, Francis Hime
–, nunca se contentando realmente com nenhum deles. Atravessou várias profissões: foi jornalista, cronista, crítico de cinema, censor de cinema, diplomata
de carreira, músico, cantor e showman, letrista, poeta, dramaturgo, até mesmo
um romancista que não se realizou. Quanto mais buscava a perfeição, mais
esbarrava na imperfeição. Tornou-se, assim, um homem inquieto, apaixonado
pela busca, um grande perseguidor. Que não teve receio de se deixar contaminar pelas impurezas e irregularidades do mundo. Ao contrário, que se “sujou”
da vida para vivê-la em intensidade máxima.
64
Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição Na célebre “Cartas aos puros”, poema-chave a que não me canso de retornar, Vinicius começa com uma grave advertência: “Ó vós, homens sem sol,
que vos dizeis os Puros/E em cujos olhos queima um lento fogo frio/ Vós
de nervos de nylon e de músculos duros/Capazes de não rir durante anos a
fio.” Penso que o poeta se dirigia, sem saber, ao século futuro – o nosso século,
o século 21 –, no qual a tecnologia (o “nylon”) nos hipnotiza, as imagens e
as aparências (os “músculos duros”) nos desafiam, e a depressão (“capazes
de não rir”) parece ser nossa mais grave doença. Um século acelerado, todo
“para fora” e obcecado pelas etiquetas, pelos índices e pelas grifes, no qual a
paixão – esse sentimento arcaico, mas feroz – parece não só supérflua, mas,
até, um tanto ridícula. Um século da performance, que tem sempre a marca
perfeita como objeto, descartando assim a imperfeição – beleza dolorosa, mas
extrema – que define o humano.
“Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito”, insiste Vinicius, nos alertando a respeito de nossas planilhas, de nosso apego aos balancetes e às projeções
gráficas, de nosso amor cada vez mais fanático e insensato às performances, às
medições, às tabulações e aos índices. “Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens
da cifra”, insiste o poeta, antevendo um século (o nosso século!) dominado
pelo fascínio da contabilidade e pelo domínio sem alma das classificações.
Triste século o nosso, no qual a técnica – bem tão precioso, extensão profunda do homem sobre o mundo – se transforma, no entanto, em um obstáculo
e mesmo, tantas vezes, em uma couraça. A técnica que se quer perfeita, que
busca o desempenho impecável e o resultado em série, descartando, assim,
o que os homens têm de mais frágil, de mais fugidio, mas também de mais
belo. Descartando a singularidade e a beleza – impura, incomparável – do
particular. A imperfeição humana não é só deficiência, falha, mácula, limite;
ela é, também, o registro de nosso tamanho e de nossa grandeza. Sem limites,
dolorosos limites, ninguém chega a ser.
Daí a importância e a urgência de reler, hoje, a poesia de Vinicius de Mo­
raes. Ela nos ajuda a abdicar de nossos sonhos loucos de poder e de vitória, para
retornar ao que somos, seres pequenos e perdidos, como está dito na abertura
da “Elegia quase uma ode”: “Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem.”
65
José Castello
Vinicius se oferece, assim, como um profeta que, em vez de olhar para frente
e para fora, olha para dentro e para bem perto. Um profeta da “volta a si” –
como alguém que, de repente, desperta de um desmaio. Movimento que, em
um século fascinado pelas imagens, pelo virtual e pelas projeções, se torna
cada vez mais necessário, senão obrigatório. Alguém que anuncia as tristezas
humanas, mas também suas frágeis alegrias. Um poeta que trata das paixões
mais ardentes, mas também de seu fracasso inevitável, expresso na ideia célebre do amor “eterno enquanto dure”. Um poeta que acolhe o homem por
todos os lados, com o que ele tem de melhor, mas também com o que tem de
pior. Que não se interessa pela aventura impecável, mas pelo caminho lento,
sinuoso e amoroso dos seres humanos sobre nosso planeta Terra.
Acreditou, sempre, Vinicius em um mundo que recoloque a beleza acima
da vantagem e da vitória: “As muito feias que me perdoem/Mas beleza é
fundamental”, ele diz no célebre “Receita de mulher”. Não se trata da beleza
padrão, “de passarela” – basta lembrar nos tipos físicos tão distintos e até
improváveis das nove mulheres com que, ao longo da vida, o poeta se casou
oficialmente. Um mundo que volte a apostar, para além da zoeira da performance e da cegueira do brilho, nos sentimentos secretos e delicados: “Alguém
que me falasse do mistério do Amor/na sombra”, ele nos diz na “Elegia desesperada”. Um mundo, enfim, que inclua o imprevisto e alguma dose (sadia
e sábia) de loucura: “Canta uma esperança desatinada para que se enfureçam
silenciosamente os cadáveres dos afogados”, o poeta escreve na “Balada feroz”. Profeta do irregular, do torto e do desequilíbrio, em um século cuja
imagem mais pura parece ser a das escadas rolantes que se desenrolam retas
e impassíveis entre os andares dos shoppings, Vinicius profetizou, em resumo,
a necessidade do humano, que é imperfeição e desordem, isto é, turbulência,
calor e existência.
Desejou, todo o tempo, uma vida que valorizasse as miudezas: “A minha namorada é tão bonita, tem olhos como besourinhos do céu/Tem olhos
como estrelinhas que estão sempre balbuciando aos passarinhos”, ele escreve
na “Elegia lírica”. Mas como atribuir valor às frágeis “bolhinhas de sabão” –
metáfora mais precisa para o movimento da bossa-nova – em um século que
66
Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição se define pela força, pelo êxito e pelo desempenho? No século da publicidade,
do marketing e das existências virtuais, Vinicius pode ser útil quando nos lembra de “uma vontade indizível de te falar docemente“, como está na “Elegia
ao primeiro amigo”. Intelectual sofisticado e poeta de linguagem fina e rigorosa, ainda assim ele desabafa na “Carta aos puros”: “Ó vós que desprezais a
mulher e o poeta/em nome de sua vã sabedoria/Vós que não comeis e viveis
de dieta/E achais que o bem alheio é a melhor iguaria.” A sabedoria, para
Vinicius, não podia ser vã. Poesia e pensamento, para ele, sempre andaram
juntos. O saber não pode deixar de afetar e de transformar a vida. Foi um
grande pensador, mas pensou sempre o homem sem desligá-lo de sua carne
e de seus incêndios interiores. Foi um poeta requintado e trabalhador – as
imensas pilhas de rascunhos e manuscritos guardadas nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, comprovam isso fartamente. Mas
jamais deixou de lado experiências radicalmente humanas como os impulsos,
as ideias fixas, os ardores e as obsessões.
Vinicius, como seu jeito sedutor e suas longas gargalhadas, foi, também,
um profeta da felicidade. Está em “Um passarinho”: “Para que vieste/Na
minha janela/Meter o nariz?/Se foi por um verso/Não sou mais poeta/
Ando tão feliz!” Esses brevíssimos versos ajudam a entender, quem sabe, o
lento distanciamento da poesia que Vinicius viveu em sua última década de
vida. Tinha tantas coisas a experimentar, e com tanta urgência, que – na Bahia
de Gesse Gessy, sua sétima mulher – ele voltou ao passado e, em plenos anos
1970, imitando os “poetas marginais” – Ana Cristina Cesar, Cacaso, Chacal,
Charles –, passou a publicar em edições restritas mimeografadas, colocando,
assim, a precariedade acima do sucesso e a transitoriedade além da consagração. Transformou-se, novamente, nos braços de Martita, sua oitava mulher, a
argentina. E quando chegou ao colo de Gilda Mattoso, a mulher que o viu
morrer, soube, mais uma vez, aceitar uma metamorfose.
Um homem que não teve medo de se transformar e que viveu, sempre, em
estado de mutação. Um homem que aprendeu a ver e a amar os aspectos pequenos, esquecidos, das grandes coisas, e a arrancá-los da obscuridade para colocá-los bem à sua frente. Que buscou o pequeno como reduto secreto da beleza.
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José Castello
Lemos em um de seus mais belos poemas, “Pátria minha”, uma apaixonada
declaração de amor ao Brasil: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima/
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/É minha pátria.” Diminuir
para aumentar: Vinicius foi o poeta dos movimentos bruscos e das súbitas guinadas. Um poeta – como uma criança curiosa – sempre decidido a observar as
coisas pelo avesso e a encontrar seus aspectos mais imprevistos e secretos.
Jamais abriu mão de sentimentos contraditórios e das oscilações íntimas
que definem a alma humana. No “Poema enjoadinho”, ele nos oferece os
célebres versos: “Filhos... Filhos?/Melhor não tê-los!/Mas se não os temos/
Como sabê-lo?” Amava a vida justamente porque ela é complexa, cheia de
nuances e de sentimentos que não combinam entre si. Com o que se distanciou da retórica impecável, da fala solene e da retidão estilística. Também
nunca abriu mão de sentimentos antigos como a compaixão, a fraternidade e
a piedade. Está em sua vigorosa “Balada do Mangue”: “Pobres flores gonocócicas/Que à noite despetalais/As vossas pétalas tóxicas!”, escreveu, pensando
no amor triste das mulheres da vida. Estranho amor sem amor: “Sois frágeis,
desmilinguidas/Dálias cortadas ao pé/Corolas descoloridas/Enclausuradas
sem fé” Foi, antes de tudo, um lírico, que escreveu para cantar e encantar o
mundo em que viveu. O que não foi nada fácil, tendo vivido no século do
modernismo, das grandes guerras, das vanguardas políticas radicais, e da arte
experimental.
A aposta no lirismo talvez pareça, desde os movimentos de vanguarda da
metade do século XX, quase uma agressão à poesia. Foi com o lirismo, no
entanto, que Vinicius disputou – e venceu – suas melhores batalhas. Sempre
se recordou de Rosário, a primeira moça com que, ainda garoto, provou do
amor. Escreveu em “Rosário”: “E eu que era um menino puro/Não fui perder
minha infância/No mangue daquela carne!” Sempre valorizou, ao contrário
dos adeptos do “novo pelo novo”, o sangue mais espesso da memória. Nunca
desprezou os temas lúgubres, mórbidos mesmo, mas dolorosamente humanos
mais uma vez, como aparece no fecho do “Soneto da hora final”: “E, como
dois antigos namorados/noturnamente tristes e enlaçados/nós entraremos
nos jardins da morte.” Nem mesmo – como já observou o poeta e crítico
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Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição Eucanaã Ferraz – fugiu do grotesco, como lemos, por exemplo, na “Balada da
moça do Miramar”, em que ele escreve: “Mantém-se extática em face/Da aurora em elaboração/Embora formigas pretas/Que lhe entram pelos ouvidos/
Se escapem por umas gretas/Do lado do coração.”
Apostou, com todo o empenho, na força da amizade, na necessidade dos
grandes laços sentimentais, na potência da solidariedade e da admiração e no
respeito total pelo outro. Com seus parceiros musicais, como ele mesmo dizia,
viveu “casamentos sem sexo”. Explicava: “Na relação com meus parceiros
tenho tudo o que tenho em um casamento, menos a relação sexual.” Sempre
a falta – a grande falta – a surgir à sua frente. Sempre as falhas humanas
que, no entanto, para seus olhos de poeta, engrandeciam as pessoas em vez
de diminuí-las. O maior e o menor sempre juntos. Como podemos ler no
“Soneto a Pablo Neruda”, de quem foi um amigo inseparável: “Canto maior,
canto menor – dois cantos/Fazem-se agora ouvir sob o Cruzeiro/E em seu
recesso as cóleras e os prantos/Do homem chileno e do homem brasileiro.”
Vinicius nunca desprezou os sentimentos difíceis, as situações atormentadas,
as experiências dolorosas e os becos sem saída. Ao contrário, sempre os valorizou como os aspectos mais difíceis – e por isso mesmo mais preciosos – da
condição humana. Enfrentamento da dor, que esteve sempre ao lado de seu
projeto de felicidade.
Escreveu, muitas vezes, a partir do sofrimento – como podemos ler no
magnífico “Poética” (II), breve poema que vale a pena rememorar inteiro:
“Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.”
“E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.”
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José Castello
“Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)
“Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
– Entrai, irmãos meus!”
Foi não só o poeta do passado – que desenha o espírito humano com
suas feridas –, mas também o poeta do futuro, que acreditou na alegria da
transformação. Foi, como ele mesmo nos disse, um “poeta de seu tempo”.
Soube enfrentar a dor e dela arrancar beleza e grandeza, como fez com a
“Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”,
versos difíceis a respeito da perda de seu pai. Em um momento de tanto
sofrimento e desamparo, só um poeta – só um grande poeta – é capaz de
arrancar sentido e beleza. “A morte chegou pelo interurbano em longas
espirais metálicas”, ele começa. “Era de madrugada. Ouvi a voz de minha
mãe, viúva./De repente não tinha pai.” Vinicius escreve em versos longos
e derramados de agonia, contrariando as normas poéticas de seu tempo,
adeptas dos versos secos e afirmativos. Suas elegias, seus sonetos, suas baladas, suas odes se desenrolam em absoluta indiferença para com as normas
de seu tempo e, por isso, o fertilizam e o alimentam. São estojos antigos
em que Vinicius acolhe e guarda o apelo interminável do desejo. Ainda
a respeito do pai morto, ele escreve: “Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar/Com mirada de argonauta. Teus pequenos
olhos feios/Buscavam ilhas, outras ilhas... – as Imaculadas, Inacessíveis/
Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar/e trazer.” Espelhando-se na imagem paterna, Vinicius de Moraes pode ser visto, ele também,
como um aventureiro, um incansável argonauta a atravessar mares e perigos
em busca do tesouro maior, que jamais se acha. Tesouro da perfeição que
– mais uma vez – só o levou a encontrar o destino inevitável, mas grande
também, da imperfeição.
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Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição Nunca descartou o humano, e por isso foi, antes de mais nada, um poeta
apaixonado. A paixão – Vinicius sempre afirmou – está na impureza. A vida
é suja, imperfeita, manca, desconexa, e por isso mesmo é bela. E só por isso
a paixão nos move, como um combustível imaterial. Não é algo que devamos
esconder. Escreveu, no mesmo poema dedicado à moça Rosário: “E eu baixinho me entregava/Com medo que Deus ouvisse/Os gemidos que não dava!/
Os gemidos que não dava...” No século dos protocolos, das precisas marcas
olímpicas e da limpidez das passarelas, nada mais útil do que reencontrar Vinicius de Moraes, um profeta enfático da paixão, como um valor secreto, em
meio a tantas falsas luzes, capaz de nos manter vivos.
Para encerrar, decido ler “Pátria minha”, um dos mais belos poemas que
Vinicius de Moraes escreveu. Contudo, há uma história fabulosa que cerca
este poema que gostaria, antes, de relembrar. Conta-se que no dia em que os
militares decretaram o Ato Institucional Número 5, Vinicius se apresentava
em um teatro de Lisboa. No intervalo do espetáculo, foi avisado da decretação do ato militar. “Talvez tenhamos que adiar por algum tempo nossa volta
ao Brasil”, um companheiro de trabalho lhe disse. “Voltar agora pode ser
perigoso.” Vinicius não quis ouvir mais: “Ninguém me diz o que fazer. Eu
volto para o Brasil amanhã.” Em seguida, tranquilamente, retornou ao palco e
concluiu o espetáculo musical, como se nada tivesse acontecido.
Ao fim do show, um amigo veio avisá-lo de que teriam de esperar algum
tempo antes de deixar o teatro. A Juventude Salazarista cercara a porta dos
fundos – a saída dos artistas – e esperava Vinicius (um notório poeta de oposição ao regime militar) para vaiá-lo, comemorando, assim, o AI-5. “Ninguém me impede de sair”, Vinicius tratou de dizer. Arrumou-se e caminhou
até a porta do teatro. Quando a abriu, foi coberto por uma intensa e feroz
vaia. Os rapazes da Juventude, todos metidos em solenes paletós, debochavam de seu sofrimento. O poeta, porém, não se intimidou. Esperou calmamente que as vaias abrandassem e, enfim, com a voz firme, recitou, inteiro,
um dos mais belos poemas que já escreveu – justamente o “Pátria minha”,
fruto do período em que viveu em Los Angeles como cônsul adjunto do
governo brasileiro.
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José Castello
Um inesperado silêncio tomou conta da rua. Vinicius recitou todo o poe­
ma sem que ousassem interrompê-lo. Ao fim, em um gesto inesperado, mas
belo, os rapazes tiraram seus paletós, com que fizeram um longo tapete, sobre
o qual o poeta saiu do teatro em triunfo. Triunfo desta ou daquela posição
política? Triunfo da situação ou da oposição? Não, triunfo da poesia. Estávamos em outro território, muito além das contingências humanas. Vinicius
nos dava a prova definitiva: a poesia – se é mesmo poesia, se é grande poesia
– ultrapassa e anula as contradições de seu tempo. Une todos os homens em
um único sentimento do sublime. Eleva-nos acima de nós mesmos e nos torna
maiores do que somos. Nós que somos tão pequenos, incompletos e imperfeitos. Quando abrigados no território caloroso e complexo da poesia, enfim
temos uma chance de nos ultrapassar.
Eis “Pátria minha”. Um poema não só de amor à pátria, mas de amor à
imperfeição.
Pátria Minha
Vinicius de Moraes
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
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Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
73
José Castello
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
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Vinicius de Moraes, o poeta da imperfeição Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes.”
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