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ISSN printed: 1677-8308
O CORPO FEMININO SOB TIRANIA NA PÓS-MODERNIDADE
Tânia Maria Gomes da SILVA*
RESUMO: Este trabalho busca discutir a pressão a que as mulheres
encontram-se sujeitas na época contemporânea na busca por um corpo
perfeito: sem gorduras, sem estrias, sem flacidez; ou seja, um corpo „sarado‟.
Através de breve histórico da relação das mulheres com seus corpos,
sustentamos que as imposições atualmente postas ao sexo feminino, no que
diz respeito à conquista de uma imagem ideal, configuram-se em novas formas
de opressão em nada inferiores àquelas insistentemente denunciadas pelas
feministas dos anos 60. Adequar-se aos padrões atuais de beleza corporal é
hoje a luta de inúmeras mulheres cujos corpos são transformados em espaços
diretos de poder e de controle social, como sustentava o filósofo Michel
Foucault.
PALAVRAS-CHAVE: Corpos esculpidos. Beleza. Mulheres. Pós-modernidade.
Até o nascedouro do século XX, a prática do exercício físico não era uma
atividade muito comum entre as mulheres, especialmente as brasileiras. Os
relatos de viajantes e as iconografias deixadas pelos artistas europeus que
visitaram o Brasil em diferentes períodos do passado nos mostram que a
ociosidade feminina era habitual e que o sobrepeso era frequente. Nosso
passado colonial, diz Moraes (2011), é uma história de gordos.
De fato, Gilberto Freire (2000), um dos maiores estudiosos da vida social
brasileira, descreve as mulheres da elite como criaturas brancas, gordas e
*
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná; mestre em História pela Universidade
Estadual de Maringá; coordenadora dos cursos de pós-graduação da Faculdade Metropolitana de
Maringá; docente dos cursos de graduação e de pós-graduação desta mesma instituição. E-mail:
[email protected].
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lânguidas, verdadeiras matronas que envelheciam precocemente, raras vezes
saindo em público, exceto para ocasiões muito especiais, como os
casamentos, as missas, os funerais. Mesmo que pesquisas mais recentes
venham desconstruindo esses estereótipos e nos mostrem exemplos de
mulheres que assumiram uma vida ativa desde os primeiros séculos da
colonização (SILVA, 1995), não é de todo equivocada a tese de Freire.
Durante séculos, o espaço público foi, por excelência, o espaço dos
homens e, portanto, deambular pelas ruas, durante muitos anos, não se
constituía em uma atividade feminina, restando às mulheres tão somente o
espaço doméstico, com todas as suas limitações.
Como nos lembra Michele Perrot, o lugar das mulheres no espaço
público, ao menos no mundo ocidental, sempre foi algo problemático, “pelo
menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais
energeticamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e
do poder ” (PERROT, 2005, p. 8). Para Pitágoras, é ainda Perrot quem nos
conta, uma mulher em público está sempre deslocada.
Exceto aquelas das camadas mais empobrecidas que precisavam praticar
atividades de ganho e que, por conta disso, perambulavam1 diariamente pelas
cidades vendendo doces, pães e bolos, lavando roupas, trabalhando em casas
de família ou prestando serviço nas fábricas, as mulheres pouco se
movimentavam. É, portanto, compreensível que isto contribuísse para que
estivessem mais propensas a um corpo adiposo.
Contudo, o excesso de peso não chegava a ser um grande problema para
as mulheres, que, desde o período renascentista, eram tanto mais valorizadas
quanto mais robustas fossem as suas formas, como bem podemos perceber
nas pinturas renascentistas. No Brasil, não era diferente, pois dos primeiros
tempos de colonização até à chegada da República, a gordura era sinal de
saúde e às mocinhas ministravam-se remédios e elixires que tinham por
objetivo justamente torná-las mais encorpadas e, ao menos aparentemente,
mais saudáveis. Para Del Priore (2000), no século XIX, o charme feminino
1
Desde há muito está consolidada na historiografia a tese de que as mulheres coloniais das camadas mais
empobrecidas, especialmente escravas, tinham um grau de mobilidade que outras mulheres raramente
alcançavam, exceto se quisessem ser mal vistas e mal faladas. De quitanda, agências e negócios
sobreviviam inúmeras mulheres. A meu ver, um dos trabalhos mais exemplares nesta discussão é de
Maria Odila Silva Leite da Silva, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, 1995.
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pedia ombros arredondados, seios opulentos, bacia larga, braços carnudos e
pernas sólidas.
Foi apenas na segunda metade do século XIX que ocorreu uma mudança
quanto à idealização do corpo feminino, que passou a ser desvalorizado
quando gordo. Essa inversão de modelo encontra na literatura parte de sua
explicação. Estudiosos e estudiosas das questões femininas acreditam que a
presença do romantismo na literatura fez com que as mulheres envidassem
todos os esforços para se adequarem ao perfil da heroína dos folhetins
românticos, delineando-se, a partir de então, um novo perfil da mulher, cuja
figura corpulenta pareceu pouco condizente com a delicadeza que se esperava
do chamado sexo frágil.
O século XIX representa, assim, uma virada tanto no que diz respeito ao
corpo, que passa a ser desvalorizado justamente naquilo que antes era tido
como o modelo ideal, a gordura, como no que tange à questão da imobilidade e
da inércia, então vistos como um comportamento prejudicial à saúde física e
mental.
Na Europa, teve início um movimento buscando enfatizar a importância
de atividades físicas para a saúde feminina, ao mesmo tempo em que se
desenvolveu um discurso de desvalorização da obesidade. Desse modo,
multiplicaram-se os ginásios esportivos e os professores de educação física
buscaram despertar nas mulheres, especialmente nas mais jovens, o gosto
pelos exercícios físicos. A prática de exercícios, que sempre fora vista como
inadequada para o sexo feminino, começou a ser entusiasticamente
incentivada.
Médicos e higienistas passaram a associar a falta de exercícios físicos a
doenças como a melancolia e a histeria. Alertavam que, confinadas dentro de
suas casas, as mulheres só podiam fenecer e murchar. Assim, era preciso
“oxigenar as carnes”, buscando o equilíbrio saudável do organismo. Atribuiu-se
aos exercícios físicos até mesmo o poder de “combater os adultérios
incentivados pelo romantismo” (DEL PRIORE, 2000, p. 36).
Para Melo e Schetino (2009), o surgimento do trem, da luz elétrica, da
fotografia e de outras invenções que caracterizam a transição do século XIX
para o XX, também contribuiu para o surgimento de novas sensibilidades,
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relacionadas
às
ideias
de
velocidade
e
fugacidade.
Estes
inventos
representaram a valorização do espaço público como locus privilegiado de
vivências sociais, entre as quais o lazer. O cinema, as exposições artísticas, as
exibições musicais e de danças, a abertura noturna dos cafés, possíveis graças
à luz elétrica, são exemplos de como se configurava um novo estilo de vida, ao
menos para a classe burguesa.
Estas ideias, que inicialmente estiveram em voga na Europa, não
demoraram a chegar ao Brasil. A intensificação do processo imigratório,
expressivo já nas primeiras décadas do século XX, bem como o contato que
membros da oligarquia brasileira mantinham com os costumes europeus,
serviram como elementos de disseminação dessa nova cultura.
Se o antigo discurso caminhara no sentido de valorizar o espaço
doméstico como sendo o lugar da mulher, importava, já nas primeiras décadas
do século XX, redimensionar esta afirmação, a fim de atender aos interesses
da industrialização e da urbanização.
O século XX foi, por excelência, o século da expansão do capitalismo e,
portanto, do movimento e do trabalho. O ócio passou a ser condenado e tido
como pernicioso ao desenvolvimento do capital, uma vez que este exigia
corpos disciplinados e ágeis. Ia perdendo força, se é que de fato alguma vez a
teve, pensamento, como o de Paul Lafargue, cujo panfleto de 1880, ao
defender „a preguiça‟, revolucionou a época (LAFARGUE, 1999).
Assim é que a obesidade, antes sinônimo de saúde, tornou-se,
especialmente no caso feminino, taxado de deselegante. Entendia-se que o
corpo obeso era menos produtivo.
Na década de 1910, as mulheres de classe média e até de classe alta
urbana participavam cada vez mais do mundo do trabalho. Por isso mesmo, a
ociosidade era cada vez mais menosprezada e proibida pela moral burguesa
(BESSE, 1999).
Segundo Bercito (2011), o corpo foi o primeiro instrumento de trabalho e
de produção do homem e a cada época moldaram-se diferentes técnicas
corporais no sentido de ter garantida a sobrevivência humana. Com o
capitalismo, o corpo tornou-se mão de obra, passando a ser concebido como
instrumento útil para a garantia da produtividade, buscando se moldar os
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comportamentos e impondo aos indivíduos gestos e posturas adequadas às
exigências crescentes de eficiência e rendimento máximo nas atividades, de
acordo com a racionalidade do capital. No capitalismo, diz este autor, o corpo
é uma ferramenta a serviço da produtividade.
Nesse contexto é que as mulheres foram incentivadas a praticar esportes.
Todavia, à exceção de algumas poucas experiências, não era usual que elas
se envolvessem como atletas profissionais. Isso somente ocorreria na segunda
metade do século XX, quando as jovens começaram a optar pelo tiro ao alvo,
tênis e natação. Quanto à equitação, esta era concebida mais como ferramenta
de educação das elites (MELO, 2011). Uma atividade que despertou interesse
no público feminino foi a prática de andar de bicicleta, um invento surgido na
transição dos séculos XIX e XX.
Artefato moderno, as bicicletas desencadearam novas possibilidades de
encontros entre as diferentes classes sociais, ainda que com restrições, e
permitiram maior presença feminina no espaço público. Muito popular na
França, as bicicletas logo deixaram de ser um entretenimento somente das
classes altas para ser adotado por todas as camadas sociais. As mulheres que
aderiram à prática, como era de se esperar, foram criticadas, mas algumas
pioneiras tentaram construir uma carreira esportiva nos velódromos e estradas
da França, Inglaterra, Itália e Alemanha. Importante destacar que a prática do
ciclismo levou a mudanças na indumentária feminina. Os espartilhos, por
exemplo, que dificultavam o pedalar, foram abandonados. As roupas também
ficaram mais curtas e justas. No Brasil, foram principalmente as mulheres do
Rio de Janeiro e de São Paulo as que primeiro aderiram ao ciclismo (MELO;
SCHETINO, 2009).
Inicialmente os preços das bicicletas eram bastante elevados e sua
aquisição somente possível pelos mais abastados financeiramente; mas, com o
tempo, sua aquisição foi ficando mais viável para os diversos segmentos da
sociedade, transformando-se, com o passar do tempo, em um instrumento
indispensável para o deslocamento do trabalhador e da trabalhadora.
A modernidade, que se consolidou a partir da Revolução Industrial e com
o desenvolvimento do capitalismo, valorizou o trabalho e, por conta disso,
ressignificou antigos conceitos. Entre eles o da ociosidade, que passou a ser
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vista com maus olhos. Se o século XX trouxe uma visão menos valorativa da
gordura, o século XXI foi ainda mais rígido, com a obesidade chegando a ser
definida pela Organização Mundial da Saúde como doença crônica.
Trabalho exige movimento e este, por sua vez, pressupõe corpos ágeis.
As
mulheres
começaram
a
ser
incentivadas
a
se
movimentar
e,
consequentemente, a perder peso. Pouco a pouco, porém, se desvinculou a
ideia de magreza como tendo por objetivo atender às necessidades imperativas
do mundo do trabalho e se buscou dar ênfase à associação desta com a
beleza. A partir daí as mulheres foram bombardeadas com exigências de que
deveriam ser magras para se tornarem mais atraentes e menos para que se
tornassem facilmente aproveitáveis pelo mundo da produção capitalista.
Houve, consequentemente, a instauração de um culto ao corpo levando a uma
situação em que hoje o sujeito serve ao corpo ao invés de se servir dele
(COSTA, 1985, apud NOVAES, 2011).
Na era pós-moderna o corpo passou a ser valorizado como um meio de
se alcançar a felicidade, resultado da descrença nos ideais da modernidade
que previam uma sociedade comunitária e feliz a partir das propostas globais.
A pós-modernidade tem como princípio básico a desvalorização de
conceitos dominantes na era moderna, em especial a ideia de progresso, tendo
se tornado um conceito largamente explorado pelos estudiosos, não sem
receber muitas críticas. Para alguns, como Habermas, por exemplo, o projeto
moderno ainda não está concluído, de modo que não há que se pensar em um
„pós‟, acusando, inclusive o caráter conservador e reacionário do pósmodernismo. Já o filósofo polonês Zygmunt Bauman prefere usar o termo
„modernidade líquida‟ para se referir a esse momento em que, ao que parece,
os ideais modernos perderam vigor. Outra voz que se levanta no sentido de
defender essas assim chamadas „causas perdidas‟, título, aliás, de um livro seu
bastante instigante, é a do filósofo esloveno Slavoj Zizek (2011), para quem
pelo menos duas propostas da modernidade não podem ser perdidas: o
marxismo e a psicanálise.
Marx pensava que a modernidade resolveria os problemas pessoais e
faria as pessoas felizes, vendo no socialismo e no comunismo o meio para se
alcançar tal objetivo. Marxismo, estruturalismo, racionalismo científico,
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iluminismo e outros „ismos‟ são condições modernas identificadas com a era
progressista. A pós-modernidade marcou o fim na crença dessas grandes
narrativas, como as definiu LYOTARD (1999), que deixaram de ser pensadas
como
elementos
capazes
de
promover
mudanças
sociais
e,
consequentemente, melhorar a vida dos homens. A felicidade na pósmodernidade é um projeto individualista.
Nos dias atuais, as mulheres passaram a buscar cada vez mais um corpo
perfeito, isto é, magro. A agressividade dos métodos para se alcançar tais fins,
como, exemplo, as lipoaspirações realizadas por meio de cânulas que sugam
as gorduras e agridem profundamente o corpo, não tem amedrontado as
mulheres, insensíveis às complicações que já levaram pacientes à morte. Na
busca da perfeição, o corpo humano é cortado, retalhado, modificado, seja por
meio de tardes inteiras em academias, seja com a implantação de silicone,
botox e tudo o mais que for aparecendo como capaz de produzir „beleza‟.
Não queremos aqui fazer críticas às pessoas que cuidam de seus corpos
e que buscam se manter dentro de um índice de massa corporal adequado.
Muito longe de criticar a prática de exercícios ou de desconsiderar os
benefícios que o mesmo traz à saúde; o que nos importa alertar é o quanto há
de impositivo neste discurso de culto ao corpo e na busca incondicional da
beleza que vem sendo imposta à mulher numa verdadeira tirania da perfeição
do corpo.
O que há de agravante é a existência de um ideal de beleza
constantemente perseguido e nunca alcançado. Para Novaes (2011), em uma
sociedade imagética, em que o sujeito é definido pela aparência, temos que
considerar o sofrimento psíquico acarretado pelas regulações sociais que
incidem sobre o corpo, especialmente o da mulher. Corpo é também capital,
possui valor de troca, em especial numa sociedade de consumo como a que
vivemos. Assim, ele deve ser jovem, belo, magro, esculpido em academias de
ginásticas ou remodelados em cirurgias. Ser magro tornou-se uma virtude e
talvez mal nisso não houvesse, exceto pelo fato de ser um modelo imposto e
impossível para a grande maioria das pessoas.
A tentativa de adequação a um biótipo inalcançável termina levando a
doenças, tais como a anorexia, caracterizada por perda intensa de peso a partir
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de dietas rígidas, e a bulimia, que consiste na ingestão excessiva de alimentos,
seguida de vômitos autoinduzidos, dietas extremamente rígidas ou uso
indiscriminado de medicamentos (ABREU; CANGHELLI FILHO, 2004).
Para a filósofa Susan Bordo, a fome feminina sempre foi retratada como
algo que precisava ser refreada com o ato de comer sendo visto como algo
furtivo, vergonhoso, ilícito. Alerta, porém, que não é exatamente a fome de
alimento que, em última análise, está se buscando controlar. Dessa forma, nos
alerta: o controle do apetite feminino é a expressão mais concreta da norma
geral que rege a construção da feminidade, de que a fome feminina deve ser
contida e o espaço público que se permite às mulheres deve ser circunscrito,
limitado (BORDO, 1997).
Prossegue esta mesma autora:
Os corpos femininos falam agora dessa necessidade em
sua configuração corpórea reduzida, enxuta, e no uso de
roupa mais próxima da masculina, em moda atualmente.
Nossos corpos, quando nos arrastamos todos os dias
para a ginástica e resistimos ferozmente às nossas fomes
e aos nossos desejos de gratificar e mimar a nós
mesmas, também estão se tornando cada vez mais
habituados com as virtudes „masculinas‟ de controle e
autodomínio. As anoréxicas as perseguem com dedicação
ingênua, inabalável (BORDO, 1997, p. 26).
Daí
chamarmos
a
atenção
para
o
terrível
fato
de
que,
na
contemporaneidade, a busca e a manutenção de um corpo perfeito têm se
constituído “[...] entraves bem maiores na vida das mulheres do que os fardos
que deflagraram a queima de sutiãs em praça pública ou mesmo o discurso
médico atestando o mal que os espartilhos causavam” (PERROT, 1994 apud
FREIRE, 2011, p. 486).
Em 1968, mulheres americanas, no cemitério de Arlington, promoveram o
enterro da feminilidade e coroaram um carneiro como Miss América, além de
jogarem no lixo ligas, cintas e sutiãs. Na França, em 1970, buscando quebrar a
invisibilidade a que sempre estiveram sujeitas, mulheres colocaram uma coroa
de flores à mulher desconhecida do soldado desconhecido, no Arco do Triunfo.
No mundo todo, elas lutaram por mudanças legislativas e, entre 1970 e 1980,
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várias leis reformistas a respeito dos direitos das mulheres foram aprovadas
(ERGAS, 1991). Contudo, uma conclusão se impõe imperativa: se antes uma
sociedade machista aprisionava as mulheres, hoje o corpo cumpre esse papel.
Isto implica dizer que, a despeito de toda a luta levada a cabo pelo movimento
feminista, nos dias atuais, muitas mulheres voltaram a carregar grilhões que as
sufocam não menos do que as amarras no passado.
Para Dirce de Sá Freire (2011), vivemos um momento em que, de
maneira frenética e enlouquecida, as mulheres perdem-se no espelho a
procura de si mesmas.
E nos traz uma reflexão importante: quando se toma a magreza como uma
virtude, substitui-se a necessidade de confessar os pecados, como ocorria no
passado, pela obrigação de se subir na balança para prestar contas ao social e
a si. Assim, é inquietante esta pertinente observação da autora a respeito da
proibição de comer como uma nova forma de opressão imposta às mulheres.
Suas críticas são contundentes.
A magreza, sobretudo a feminina, tornou-se uma virtude.
Antigamente não lhes era permitido o apetite sexual, haja
vista os eventuais desfechos histéricos do início do século
passado. Hoje, simplesmente não podem mais ter apetite,
sob a ameaça de saírem das normas ditadas pela
lipofobia. Muda a forma de aprisionamento, mas mantêmse prisioneiras, só que não mais da moral que lhes
bloqueava o livre acesso ao sexo, e sim da estética da
magreza (FREIRE, 2011, p. 471).
Por isso, importante lembrar novamente Susan Bordo (1997), para quem
a normatização e o disciplinamento do corpo feminino constituem-se nas
únicas expressões de gênero que se exercem por si mesmas, embora em
graus e formas diferentes, a depender da idade, da raça, da classe social e da
orientação sexual, devendo ser reconhecidos como uma estratégia durável e
flexível de controle social. As mulheres, muito mais do que os homens,
preocupam-se com a aparência e muitas não medem esforços para adequar-se
ao padrão atual de beleza, não se importando, talvez sequer se dando conta,
de que esta é uma nova forma de opressão que se impõe a elas.
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Por mais que a mulher tenha uma profissão a qual se dedica de maneira
estafante, tendo ainda que cuidar da casa, dos filhos e atender às
necessidades de toda a família, ainda assim lhe é exigido reservar um tempo
para cuidar do corpo, seja praticando esportes nas academias, realizando
lipoaspirações, drenagens e cirurgias reparadoras, seja utilizando toda sorte de
cosméticos que abundam um mercado voraz e cada vez mais competitivo dos
cosméticos. Tudo isso sob a pena de ser taxada de relaxada. Chega-se ao
ponto de censurar aquelas cujos maridos ou namorados as troquem por outras
cujo corpo „sarado‟ esteja mais em consonância com as exigências do
„mercado‟.
Retornando mais uma vez a Del Priore (2000, p. 92) temos:
A industrial cultural ensina às mulheres que cuidar do
binômio saúde-beleza é o caminho seguro para a
felicidade individual. É o culto ao corpo na religião do
indivíduo em que cada um é simultaneamente adorador
e adorado. Mas o culto não é para todos. O tal corpo
adorado é um corpo de “classe”. Ele pertence a quem
possui capital para frequentar determinadas academias,
tem personal trainer, investe no body fitness; esse corpo
é trabalhado e valorizado até adquirir as condições
ideais de competitividade que lhe garanta assento na
lógica capitalista.
Desse modo, ter um corpo malhado passou a ser tido como o objetivo
final de muitas mulheres – ainda que não só delas, ressaltemos – que são,
lamentavelmente, mais sujeitas do que os homens a esses reclames
propagandísticos. Tornou-se imperativo livrar-se das estrias, celulites, culotes e
os terríveis „pneuzinhos‟. As mulheres se tornaram escravas de uma imagem
corpórea que raramente conseguem alcançar e para isso se servem cada vez
mais de lipoaspirações e lipoesculturas.
Importante apontar que este culto ao corpo perfeito configura-se numa
violência ainda maior quando atinge as adolescentes, menos capazes de
questionar as regras que são ditadas pela sociedade de consumo. O excesso
de preocupação com a aparência e o aumento da insatisfação com o próprio
corpo, especialmente com o peso, tem preocupado os profissionais de diversas
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áreas e alarmado muitos pais, devido ao aumento de garotas adolescentes
apresentando distúrbios alimentares.
O Globo Ciência informou que, em 1996, haviam sido realizadas 150 mil
operações estéticas no Brasil. Pesquisa realizada no mesmo ano, pelo
Datafolha, noticiou que 50% das mulheres brasileiras não estavam satisfeitas
com seu corpo e que 55% gostariam de fazer uma cirurgia plástica. O dado
mais estarrecedor é que 61% dessas mulheres não estavam dispostas a
praticar qualquer atividade física (PRIORE, 2011, p. 82). Em 2011, o Brasil
alcançou o segundo maior número de cirurgias plásticas realizadas, perdendo
apenas para os Estados Unidos (AUMENTA ..., 2012).
Vemos que a conquista do corpo ideal nem sempre busca ser alcançada
com esforços. Evidencia-se que, na busca do corpo perfeito, não há um
interesse muito evidente de se conquistar uma alimentação saudável e uma
vida mais equilibrada, de modo a se estabelecer uma relação entre corpo e
saúde. É o que demonstra o fato de que, cada vez mais, aumenta o consumo
de alimentos gordurosos e hipocalóricos em todas as partes do mundo. O que
é muito evidente é que o corpo idealizado deve ser alcançado sem esforços e
com máxima rapidez.
Os nutricionistas alertam, por exemplo, que a tradicional dieta do
brasileiro, antes centrada no arroz, feijão e na farinha, perdem cada vez mais
espaço para os produtos industrializados, com menor poder nutritivo. Não por
outra razão, pesquisa elaborada pela SBCBM (Sociedade Brasileira de Cirurgia
Bariátrica e Metabólica) em 2007 constatou que 51% da população brasileira
tem sobrepeso. Desse universo, 51% são mulheres; com 14% da parcela
feminina apresentando obesidade, contra 2% dos homens (FREIRE, 2011).
Diante desses dados, não é possível desvalorizar a prática do exercício
físico, sabidamente favorável à saúde e ao equilíbrio físico e emocional dos
indivíduos, mas o que estamos criticando aqui é o fato de que esta busca vem
sendo praticada mais por motivos estéticos e menos em razão da saúde e
bem-estar que é capaz de proporcionar.
Para Michele Perrot (2005), historiadora francesa voltada à temática
feminina, o corpo está no centro de toda relação de poder, mas, no caso das
mulheres, o corpo é o centro de uma maneira imediata e específica e tê-lo
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perfeito tem se constituído numa luta que se assemelha a um martírio. Há um
modelo a ser conquistado que precisa, a todo custo, ser alcançado e que exclui
de maneira preconceituosa e cruel as mulheres que dele se afastam. A
ditadura da beleza pune todas aquelas que nele não se enquadram. Mas, há
sempre uma luz no fim do túnel, pois para estas „desafortunadas‟ o mercado
consumista está sempre atentamente ávido em lançar novos (e caros) produtos
que oferecem resultados „milagrosos‟.
Como bem enfatizou Michel Foucault, o corpo, na atualidade, é um lugar
prático direto de controle social. Através da busca incessante da beleza, os
corpos femininos tornam-se corpos sob o mais intenso controle externo. Neste
contexto, podemos fazer uma apropriação do conceito de poder que nos é
dada por esse autor. Não aquele poder repressivo e que é dirigido de cima
para baixo, isto é, das instituições para os indivíduos, mas o poder espraiado,
difuso e que não é sequer repressivo, mas indutivo. Para o filósofo francês, no
mundo atual, a força do poder está no fato de que o mesmo não é exatamente
repressivo. O que faz com que ele se mantenha e seja aceito é justamente que
ele não pesa só como uma força que diz não, mas que, de fato, ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (FOUCAULT,
1979).
Por isso é que os corpos femininos se transformam em „corpos dóceis‟. As
mulheres aceitam, se submetem e se entregam a um modelo estético que não
é, nem jamais poderá ser alcançado por todas, porque desrespeita os
diferentes biótipos que formam a raça humana e, na luta para alcançar a
perfeição, substituem no presente, conscientemente ou não, as opressões do
passado.
FEMALE BODY UNDER TYRANNY IN POST-MODERN ERA
ABSTRACT: This research aims to discuss the pressure which women are
submitted nowadays in the pursuit of the perfect body: with no body fat, stretch
marks or flaccidity; in other words, a “sexy” body. Through the brief history of
women‟s relation with their bodies, we can support that the impositions currently
made about the feminine structure, in regards to the achievement of the ideal
appearance, configure in new forms of oppression, nothing inferior to the
impositions reported by the feminists of the 60s. Adapting to the patterns of
modern body beauty is today‟s struggle of innumerous women whose bodies
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are transformed in direct space of power and social control, as supported by the
philosopher Michel Foucault.
KEYWORDS: Sculpted bodies. Beauty. Women. Postmodernism.
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