PDF - Jornal Plástico Bolha

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PDF - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
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Distribuição Gratuita
Ano 4 - Número 27 - Novembro/Dezembro de 2009
leve literatura
O rio e o mar
Afogaram-se os peixes no mar por falta d’água, morreu meu cão inchado feito
uma bola, morreu Bolota. Mas eu fui ao enterro não, que a enchente a levou.
Pra onde, eu não sei não, talvez pra água seca que afogou os peixes de ar. Ah,
talvez você comece a me entender agora. É pena que eu te engane. Lê de novo
este início, depois.
O rio barracento era uma torrente só. Muita casa caiu, muita gente sumiu e
outro tanto de gente chorou na tristeza que a chuva pariu. E ali, bem perto
dali, tudo há dias era só sequía. Mas o barro do rio da rua lambeu as fendas do
chão salgado do que já fora oceano, inundando suas rugas.
Só que, tadinhos, nesse impossível, os mil de mais de mil peixinhos embeberamse de um marrom gosto de esgoto: cadê o sal do nosso azul? Veio a Bolota,
durinha de tão inchada, e se juntou aos sofás que boiavam, aos pneus que
boiavam e àqueles miles de peixinhos com as boquinhas em beijo pedindo ar,
ah! Que cardume fúnebre.
E foi que no dia seguinte tava lá eu, a Bete, Pedrinho e o Alex, mergulhando
naquele rio de mar, incomodando o urubu na Bolota, jogando peixe um no
outro, felizes na nossa desgraça, criando montões de anticorpos. E as ideias
que se misturam, as coisas que não casam, dizem que sou leso da cabeça, mas
a Bete ainda fala comigo — eu acho.
A minha mente... às vezes boia.
Luciano Prado da Silva
DESTAQUES
Entrevista com Georges Lamazière, por Paulo Gravina
Desafio Poético: poemas brevíssimos
Na coluna Puzzles, Stella Caymmi escreve sobre como era
cotidiano do avô, Dorival
Poemas de Adélia Prado, Chiara di Axox, Leandro Jardim,
Alice Sant’Anna, Mariano Marovatto, Paulo Vitor Grossi,
Ismar Tirelli Neto, Jovino Machado, Miguel Del Castillo,
Wilmar Silva & Chacal
Textos de Fred Coelho, Isabel Diegues, Rita Brás,
Fabio Bastos & Antonio Mattoso
Angelo Abu
www.angeloabu.com.br
BOLHETIM
Enfim, ploct!
Carta
Recebemos muitos e-mails de leitores dizendo que andávamos um pouco sumidos. Então,
para os que ficaram preocupados, estamos
aqui! O Plástico Bolha continua funcionando
a todo vapor. Inclusive, a edição #28 já está
em fase de produção, e os que quiserem
participar a hora é esta; estamos abertos aos
textos. E quem sentir muito nossa falta entre
uma edição e outra do impresso pode nos
visitar na internet, pois o Blog do Bolha traz
diariamente textos e novidades do jornal
para nossos leitores, assim como a divulgação
de eventos e lançamentos. Esperando o quê
para nos visitar?
Ei, plásticos
A gente nem se conhece, pô! Como cês conseguem publicar as pessoas assim? Confesso que nem
sou muito simpático, nem fui, das vezes que lhes enviei material. Enfim, posso consertar isso. É
foda ficar sempre sem saber de porra nenhuma, e nem conheço muita gente que mexe com literatura. Bom, meu tel é 8xxx-xxxx — o de casa não dou porque ainda nem tenho! O endereço da
postagem é da casa da minha mãe — tô desempregado, mãe serve para isso também!! Se forem
fazer, participar de algo, me avisem que nos encontramos pra papear. O livro que também envio
pra vocês é pura piada, e o editor, fictício. Acho que dá pra dá uma coçada, ainda que tenham sido
poucas impressões. Espero que se divirtam! Tô preparando um romance, nos moldes desse livrinho,
coisa grande, uh...
Até,
Paulo Vitor Grossi
Caça-palavras
Esta vai deixar até o listrado Wally de cabelo
em pé: é o novo e emocionante jogo do jornal
Plástico Bolha. Encontre em algum lugar nesta
edição as seguintes cinco palavras:
(embornal, rebobinando, desengonço, formigueiro, antipercussivo)
Heinz
Lange
r
EDIçÃo Lucas Viriato | Paulo Gravina | Marilena Moraes
Conselho Editorial Luiz Coelho | Gregório Duvivier | Isabel Diegues | Gabriel Matos
Comissão Avaliadora Carlos Andreas | Nadja Voss | Mauro Rebello | Letícia Simões | Alice Sant’Anna | Edson Santana | Manoela Ferrari
Rosimery Trindade | Nathanna Alves | Raïssa Degoes | Maria Silvia Camargo
DIAGRAMAÇão Mariana Castro Dias
Revisão Marilena Moraes | Rafael Anselmé | Gabriel Matos
Equipe Márcia Brito | Mary Viriato | Beatriz Pedras | Gisele Lemos
webdesign Henrique Silveira
DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador, Porto Velho, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
TIRAGEM 13.000 | IMPRESSO na ZM Notícias
ENVIE SEUS TEXTOS PARA [email protected]
2
Inscrito em Belém
São três horas de voo. Não, quatro. Não sei. De todo o modo, é tempo suficiente para escrever.
Tenho à mão o que preciso: papel, lápis, silêncio, mas não a ideia. Tento dormir, mas o pouco espaço impede o corpo de ficar à vontade. Fecho os olhos e cubro o rosto. Entre a vigília, o sono e
o assombro, o tempo passa. No ar, em pleno voo, não estou mais onde estive antes, e ainda não
cheguei ao novo lugar. Estou a meio caminho entre o que fui e o que estou por ser. Em trânsito,
a ideia da memória me visita. Uma certa melancolia de voltar, 16 anos depois, a um antigo e conhecido lugar, a um estado de alma, de liberdade do eu. São poucos os lugares-momentos que
transformam você no que você será para o resto da vida. Essas experiências impregnadas por baixo
da pele lhe fazem o que você é. Belém viveu em mim por nove meses. Um lugar onde me tornei
dona do meu tempo.
Temo não reconhecer a cidade, os odores, os sorvetes. Temo descobrir nunca ter vivido o que
sempre acreditei ter experimentado; temo a ilusão de um lugar onde talvez nunca tenha estado.
Lugar criado com a ajuda de fotografias amareladas, borradas, cheias de mofo, esquecidas num
fundo de gaveta. Fotografias que são ativadores de memórias — como os diários —, e confirmam
a veracidade de construções imaginárias de nossas vivências. Eles são, fisicamente, a prova concreta da existência de um acontecimento, de um romance, de um corte de cabelo, de um estado
de coisas, de um estado de alma. Alma capturada pela lente, congelada no tempo e aprisionada
neste hard disk externo imagético.
Entre a vigília e o sono, entre turbinas e nuvens, me pergunto se não seria mais justo simplesmente
jamais voltar. Deixar o coração aquecido pela lembrança da luz, dos cheiros, dos rostos da memória;
e escrever sobre esses traços que ficaram em mim. Mas é tarde demais. O piloto anuncia a descida.
Já não há mais como abrir o paraquedas. A queda, forçada, é livre. Não sei quanto tempo estive
quieta, de olhos fechados, decidindo sobre algo que não estava sob meu comando. Parece que
se passaram não mais que vinte minutos. Vinte exaustivos minutos a questionar a ideia de voltar
a viver algo que não sei se de fato vivi.
É tarde. O nariz e a garganta coçam, imploram ar puro. As luzes se acendem. É iniciada a descida.
Depois o pouso brusco, o barulho das máquinas, tudo me parece muito real. Ao se abrirem as
portas do avião, o choque. A memória vem de onde não imaginaria jamais; vem na pele, no tato,
na sensação do ar espesso e molhado tocando a pele, o rosto, os braços, o pescoço. Posso fechar
os olhos e me transportar a um passado de suores melados, lisos.
Tudo pode estar fora do lugar, tudo pode nunca ter estado ali. Mas eu estive. É a minha pele quem diz.
Belém, 08.09.06
Isabel Diegues
3
PUZZLES
por Stella Caymmi
Suave Cotidiano
É um ser compreensivo. Jamais reclama. Tem um
humor manso, para ser ouvido como quem escuta João Gilberto sussurrar ao violão, ou a mulher
amada, como diria Vinicius. “Necessariamente, para
O dia a dia de Dorival é bem simples. Não há
viver feliz tem que ter o ingrediente mais sério:
grandes mudanças na sua rotina quer esteja em
humor. Consulte Millôr Fernandes, que é o definiCopacabana, Pequeri ou Rio das Ostras. Costuma
tivo” — explica. Suas tiradas são inteligentíssimas.
acordar por volta das seis da manhã. Até antes. Fica
Noutro dia disse: “Gostar é um fenômeno da hora”.
na cama, esperando o movimento da casa começar
Enxuto. Não é à toa que lê, apaixonado, a poesia
para não acordar ninguém. Faz, em silêncio, a Orados Manuéis, o Bandeira e o de Barros. Adélia Prado
ção da Manhã, que conhece desde menino.
é poupada, para não acabar. A Bíblia, Dom Quixote,
Depois da oração, medita e espera o café da de Cervantes, e Cândido, ou o otimismo, de Voltaimanhã. Por causa da diabetes, não costuma abu- re, ordenadamente dispostos na sua mesinha de
sar na alimentação. Mas sempre que pode não cabeceira, são sempre revisitados, fertilizando sua
dispensa uma balinha ou lascas de
rapadura, pacientemente cortadas
por Cristiane, que trabalha na casa
há anos, e colocadas num vidro que
fica em seu escritório. Disciplinado,
não comete extravagâncias. Sabe
se conter. É metódico. Gosta de se
aproximar da janela a qualquer hora
do dia — critica muito quem encosta
móvel Interditando o livre acesso a ela.
Se está em Minas, onde tem passado
longas temporadas, abre a janela de
manhã e enche os pulmões com o ar
puro da montanha. Se passa alguém,
apressa-se em acenar e recebe um
alegre “Bom dia, Seu Dorival”, do primeiro passante do dia. Responde com
imaginação. “Eu sou escravo de um personagem,
alegria. É bom estar vivo.
eu sou escravo de Dom Quixote de la Mancha” —
É uma bonita caminhada desde o mar até a montanha. Um caminho de sabedoria. As músicas que
canta para os montes de Minas só ele sabe. Costuma
ler. Na última vez em que eu perguntei, ele tinha
relido as obras completas de Machado de Assis. À
sua maneira, é tão sábio quanto o Conselheiro Ayres.
Ou mais, pois não se afastou das mulheres. Observa
a vida que corre. Aceita cada um como é. Nada exige.
Nada impõe. É a favor da liberdade total. Perguntem
a Denise, João Gilberto, Juliana, João Victor, Gabriel
ou Alice. Só sabe o que lhe contam. Não faz da vida alheia um alimento da sua curiosidade. Invadir,
jamais. Conversa com criança pequena como se
fosse gente grande. Ele as respeita. Elas o amam.
Não existe melhor ombro para chorar. Eu mesma
já chorei ali muitas vezes e saí consolada. Deitei,
mesmo depois de adulta, na sua barriga — quando
ela era grande, era ainda melhor.
4
duas lentes de aumento, por causa de uma catarata
que não pode mais ser operada. Não desgruda de
Stella. Quando cochila — ele sempre cochilou —
na hora da novela, Stella repete: “Caymmi, vá se
deitar”. Não adianta nada, ele fica ali sentadinho,
até ela ir junto. Sonha em reunir a família completa
para um longo fim de semana. Infelizmente, isso
nem sempre é possível para as agendas dos filhos,
netos e bisnetas. Gosta do movimento da mulher
com as amigas e colaboradoras no zelo com a
casa. Alda, Cristiane, Telma, Elaine, Sonia, Celena,
Mara e Vandréia lembram-lhe as mulheres de saia
de sua infância. Vive rodeado de mulheres. Ainda
tem Maryara, que é sua amiga há anos; mas só se
conhecem por telefone. Uma amiga
virtual. Batem longos papos. A vida
para ele não teria a menor graça sem
a mulher.
Fernando Rabelo
“Primeiro: não fale. Espere que te entendam.”
(Dorival Caymmi – 13.07.87)
Às vezes, fica longos períodos em
silêncio, com os olhos no longe. Tem
uma vida interior impossível de ser
comunicada. Ninguém o incomoda
quando está quieto. Stella, que vive
com ele há mais de sessenta anos,
instruiu a todos da casa que quando
fosse assim não o interrompessem.
“Sem a ação contemplativa você não
consegue reunir a capacidade de absorção. Você larga os olhos no espaço
e a memória, aí, tem mais atividade”
— ensina. Sobre a música, disse certa
vez que “o artista não deve morrer de amor pela
primeira coisa que faz”. Quando escuta Bach, seu
compositor favorito, atinge regiões impensáveis
para a maioria de nós. Sobre a morte, costuma dizer
que já está no lucro. Tem muita consciência de si.
Quem se aproxima dele percebe que está diante
de um homem realizado. Ele é irresistível.
confidenciou-me certa vez. Como Millôr gosta de
dicionários, ele gosta de enciclopédias. E as lê, de
A a Z. Cultiva a memória. Faz palavras cruzadas. E
descreve seu dia em agendas há quase quarenta
anos (eu que o diga!). É um profundo admirador da
tecnologia, mas não chegou ao computador. Tem
preguiça. Deixa para os mais jovens. Seu ídolo é
Thomas Alva Edison, o inventor da lâmpada incan- Vê beleza onde as pessoas menos desconfiam.
Interessa-se por pequenas coisas, como a trajetória
descente e o precursor do cinematógrafo.
da formiga até o formigueiro carregando uma foConversar com Caymmi é uma arte. E quando isso lha três vezes maior que o seu tamanho, ou como
acontece exige sua total atenção. É detalhista. a visita do beija-flor, que costuma pousar em seus
Cinematográfico. Pinta o cenário antes de desen- cabelos brancos. Você não sabia? Caymmi conversa
cadear a ação no imaginário do seu interlocutor. É com os pássaros.
plástico. É um homem informado. Sabe tudo o que
está acontecendo, lê jornais, revistas e vê televisão,
mesmo que para ler tenha de usar, além dos óculos,
MULHERES-DAMAS
Para ler em voz alta
por Leonardo Marona
por João Gabriel d’Alincourt da Fonseca
Sabia Sabrina,
sentir é sem sentido
se solto de saber-se seu
Ana C.
a poesia
se insiste
se é cisma
(instinto?)
é um passo
na direção
do abismo
(infinito?)
ou então são
Papéis
Carta para uma prima
dois passos
O corte no meio
querida minha,
e um colapso
formava um coração.
(suicídio?)
Era a parte vazia
nos casos
do papel
de poesia
por onde passava
mais rara
o que de mim saía.
(primitiva?)
A branca borda
ou então coice
me protegia,
patada de pena
cobria o assento
porque as asas
do vaso, não sanguíneo,
(comprimidos?)
a privada mesmo
estão na cabeça
do banheiro do shopping
e não nas pedras
(ironicamente limpo e útil).
portuguesas.
Leandro Jardim
PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS
PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS
De volta ao Leblon!
www.ettore.com.br
chove muito nesta madrugada (é claro
que ainda estou de pé. na verdade
acabei de fazer café) e só queria dizer
que penso em ti todas as vezes que
estalo os dedos porque me lembro
de que suas mãos são maiores que as
minhas. e também lembro que quase
nunca conseguimos ficar em silêncio, e
que delícia — acho que só eu sei que
você não suporta o silêncio. que pena
que fui embora correndo daí, mas é
que achei que alguém estivesse me
esperando aqui. me enganei e agora
quero voltar, quero tanto voltar. penso
sempre em você caminhando e carregando o seu charme, e desengonço
pelas ruas do 5ème, se bem que a esta
altura você já deve estar caminhando
em knightsbridge, enfim. quando será
que te encontro de novo? preciso de
ti pra sorrir. um brinde, como aqueles,
loucos, com aqueles vinhos de 2 ou 3
euros que só a gente bebia, um brinde
querida. saudades sempre.
B.
Isabel Wilker
Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D. Condado de Cascais, Barra da Tijuca - RJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939
Rua Conde de Bernadote 26 - loja 110. Leblon - RJ Tel.: 2512-2226 / 2540-0036
5
BOLHAS GERAES
por Mulheres Emergentes
Neste número a coluna Bolhas Geraes abre espaço para o projeto Mulheres Emergentes, um mural poético que enfatiza o feminino nas artes e é coordenado
pela poeta Tânia Diniz desde 1989. Quem é de Minas certamente já ouviu falar no projeto, agora é a vez dos leitores do Bolha conhecerem um pouco da poesia
que emergiu ao longo destes anos todos de trabalho.
Veleiro noturno flutua.
A rede pesca estrelas
O mastro roça a lua.
Lívia Tucci
Artefato nipônico
Depende
Boto
Às vezes
sou corda de aço
outras
corda de harpa
Depende
da mão que me alcança.
Tuas mãos trançam
Em meu rosto
Chama e anseio
Tua voz clama
O verso
Face no espelho
Tua sede esculpe
Em meu corpo
A forma do desejo.
Zulmira da Silva Pinto
A borboleta pousada
Ou é Deus
Ou é nada
Alzira Umbelino
Canope
Adélia Prado
Luas
Na lua nova
de recurvo brilho
a paixão renovas
No meu céu
de cio crescente
a chama alteia
E serpente e sereia
me encontro vindo:
lua cheia
E quando, bacante,
mesmo minguante,
me prendes a cintura
na quadratura de cada mês,
a cada vez,
desvendas com arte
a sanguínea face
de minha lua escarlate.
uma multidão
de peregrinos
atravessa o canal
do meu corpo
tudo é preparado
para produzir
relaxamento e prazer
eu espero Estrabão
com um jacinto nos cabelos.
Mexer nos papéis
Da memória.
Desarquivar
Os sentimentos
Que o corpo
Não ignora,
Rememora.
Lúcia Serra
Denise Costa Almeida
Vigília
Violoncelo
Vazia velejo
pelo meu ventre
entre o vão e o dente
versejo
vaga plena
em que (di)vago
e velo meu corpo
tantas vezes
(re)velado
No berço
De seu braço
Sons
Adormecem.
Quando despertam
Para a viagem
E aportam estrelas,
Até anjos estremecem.
Tânia Diniz
Yeda Prates Bernis
Vejo no céu
Trabalho de abelhas
Lua de mel!
Ana Carol Diniz
6
Adriana Ferreira Melo
CONTOS INSÓLITOS
Ontem será amanhã
Acordou na hora de sempre, foi ao banheiro e depois, para
a cozinha, onde preparou uma xícara de café, colocou uma
fatia de pão na torradeira, abriu a porta e pegou o jornal.
Sentou-se então para tomar o café e dar uma olhada rápida no jornal. Estranhou a manchete, que parecia ser a
mesma da véspera. Notou também que todas as notícias
da primeira página eram as mesmas do dia anterior. Olhou
então a data do jornal e verificou que era quarta-feira, ou
seja, o entregador havia deixado um jornal do dia anterior.
Isso nunca havia acontecido antes, mas para tudo existe
uma primeira vez. Acabou de tomar seu café e saiu para
trabalhar, avisando o porteiro do jornal do dia anterior.
ao jogo na véspera e vibraram muito com a vitória por 2
a 1. Resolveu não contar para o filho o resultado do jogo,
até porque não sabia como explicar o que estava acontecendo, e assistiram novamente ao jogo que transcorreu
exatamente como no dia anterior. Era como se fosse um
videoteipe e não um jogo ao vivo. Lembrou-se então de
um filme em que o personagem vivia sempre o mesmo
dia, mas aquilo era ficção e não aconteceria com ele na
vida real. Mesmo assim, foi dormir preocupado.
Acordou antes da hora no dia seguinte, levantou-se
rapidamente e foi direto pegar o jornal. Não acreditou
no que viu: o jornal era de terça-feira e a primeira página
Chegando ao trabalho, ligou o computador e verificou estampava a foto do enterro de um famoso cantor que
que as mensagens do correio eletrônico que apareciam havia morrido em acidente de carro no fim de semana
como novas ele já havia lido na véspera. Achou estranho, anterior. A notícia havia tomado conta de toda a mídia
mas como de um computador pode-se esperar qualquer e o enterro havia sido na segunda-feira. Sentou-se na
coisa não ligou muito para o fato. Quando encontrasse cadeira da cozinha e ficou ali por algum tempo tentando
alguém da área de Informática, comentaria o fato e certa- encontrar uma explicação para tudo aquilo.
mente receberia mais uma explicação sem lógica. Seguiu
trabalhando até que sua secretária veio avisá-lo que ele Foi quando sua mulher entrou na cozinha e ele perguntou
estava atrasado para a reunião do comitê, do qual ele assim que a viu. “Que dia é hoje?” Ela respondeu prontaera o coordenador. Ele respondeu que a reunião havia mente: “Antes de qualquer coisa, bom dia; hoje é terça-feira
sido no dia anterior e ela retrucou que era hoje, quarta- e não se esqueça de ligar para sua irmã para dar os parafeira, e que era melhor ele se apressar porque já estavam béns pelo aniversário dela. Não chegue muito tarde porque
todos na sala de reunião esperando por ele. Olhou para hoje vamos jantar na casa dela para comemorar”.
o relógio e descobriu que realmente ele marcava quartafeira. Ficou sem entender o que estava acontecendo e Vestiu-se e foi para o trabalho, preocupado com o que
encontraria. Chegando lá, constatou que tudo que
resolveu ir para a sala de reuniões.
havia feito nas duas quartas-feiras e na terça-feira havia
Ao entrar na sala, verificou que sua secretária estava sumido. Verificou também que em cima de sua mesa
falando sério; todos os membros do comitê estavam ali estava a pasta de um cliente que ele tinha certeza que
sentados esperando por ele. Achou que deveria ser al- não deixara ali na véspera. Lembrou-se então de que na
guma brincadeira e decidiu colaborar. Sentou-se e abriu última terça-feira teve uma reunião com aquele cliente
a pasta com a pauta com os itens que seriam discutidos e, pelo visto, teria que ter novamente. Não lhe restava
e notou que todas as anotações que ele havia feito na outra opção senão refazer o trabalho dos últimos dois
véspera haviam sumido. Se fosse uma brincadeira, já dias. O que estava acontecendo com ele, fosse o que
estavam indo longe demais; e como explicar o caso do fosse, estava começando a irritá-lo.
jornal e da data no seu relógio? Deu seguimento à reunião e notou que tudo transcorria exatamente como na À noite comemorou pela segunda vez na semana o
véspera; as sugestões, as discussões e os apartes eram os aniversário da irmã e, ao voltar para casa, pouco antes
mesmos. Era como se fosse um replay da reunião anterior. da meia-noite, resolveu fazer um teste. Ficou sozinho
na sala, olhando para o relógio; quando deu meia-noite,
Estava confuso e não sabia o que pensar.
sentiu tudo apagar em sua volta, como se a energia de
Terminada a reunião, voltou para sua sala e verificou que o seu corpo tivesse sido desligada, até que, em fração
relógio do seu computador também marcava quarta-feira. de segundos, viu-se deitado na cama, lendo o jornal
Estava convencido que o dia era realmente quarta-feira e de domingo. Olhou assustado em volta e checou o
ele estava vivendo pela segunda vez aquele dia. Lembrou- relógio na mesa de cabeceira que marcava zero hora
se de que na primeira quarta-feira havia preparado um de segunda-feira. Sentiu vontade de chorar; aquele
importante relatório e enviado para um cliente. Não pesadelo ia continuar.
encontrou qualquer cópia e registro do relatório nem na
pasta do cliente nem nas correspondências enviadas. Foi E a vida continuou assim para ele, sempre andando para
obrigado a refazer o relatório e enviá-lo novamente. Pas- trás no tempo. Sua semana começava numa sexta-feira
sou o resto do dia sem saber exatamente o que fazer e não e terminava num sábado. Via-se obrigado a refazer tudo que já havia feito antes. Aos poucos foi perdendo o
sentiu ânimo para comentar o que estava se passando.
interesse pelo que fazia já que, além de estar fazendo
Em casa, não notou nada diferente na sua família; todos novamente, não tinha como verificar o resultado de suas
agiam como se fosse uma quarta-feira como todas as ações. Acordava sempre com a esperança de aquilo tudo
outras. Durante o jantar seu filho lembrou do jogo do terminar e sua vida voltar ao normal, mas à medida que
time deles que ia ser televisionado. Eles haviam assistido constatava que continuava retrocedendo no tempo foi
ficando deprimido. De que adiantava viver se não sentia
prazer no que fazia? Descobriu que era um homem sem
futuro e passou então a reconhecer o valor exato dessa
palavra. Tudo que se faz na vida, se faz com a intenção
de tirar algum proveito no futuro; e se o futuro dele era
o passado... Pensou em se aproveitar daquela situação
já que tinha condições de voltar ao passado. Poderia,
por exemplo, sabendo o resultado da loteria, apostar
e ficar milionário. Mas de que adiantaria, se ele nunca
poderia usufruir o dinheiro do prêmio? De que adiantaria
assistir a um jogo de futebol, se ele já sabia de antemão
o resultado? O campeonato para ele começava com o
anúncio do time campeão e terminava na primeira rodada. A angústia foi tomando conta dele, que já não tinha
mais prazer em viver nem esperanças de retornar à vida
normal. Outro ponto que o incomodava é que todos em
volta não notavam qualquer mudança nas suas atitudes
e agiam como se ele estivesse normal. Descobrir o que
estava acontecendo tornou-se uma obsessão.
Tudo havia começado naquela quarta-feira, e ele fez
então um esforço para se lembrar de tudo que havia se
passado naquele dia. No trabalho, havia participado da
tal reunião pela manhã e, à tarde, preparado o relatório;
nada de anormal. Em seguida, lembrou-se muito bem
de por que e quando começaram a viver novamente o
dia anterior. À noite, após o jantar com a família, assistiu
com o filho ao jogo do seu time. Com esforço, foi se lembrando do que se passou após o jogo e, finalmente, tudo
ficou claro. Havia passado mal após o segundo gol do
seu time, suando frio, com falta de ar e uma dor no peito.
Ao terminar o jogo, entrou no banheiro pensando em
lavar o rosto, quando se sentiu sem forças e caiu no chão.
Tentou pedir socorro, mas sua voz não saiu da garganta.
Ficou por algum tempo caído no chão do banheiro até
ouvir vozes em volta, mas tudo muito longe. No início
sentiu frio, mas depois se sentiu bem, livre de qualquer
sensação de dor e incômodo.
Ao recordar tudo aquilo, descobriu finalmente o que
acontecera: ele havia morrido naquela noite de quartafeira, no chão frio do banheiro. A descoberta, ao invés de
assustá-lo, trouxe-lhe uma paz interior muito grande. O
que se passava devia ser o caminho natural após a morte.
Ele estaria vivendo a segunda metade de sua passagem
por esse mundo, como se alguém estivesse rebobinando
o filme da vida. Sua missão dali para frente não seria mais
de realizar algo, de deixar sua marca no mundo, mas
sim de participar como mero espectador. Não estava
vivendo para mudar o que já havia feito na vida, mas
sim para refletir. Era uma chance de repensar seus atos;
de rever tudo que havia feito de bom e de ruim, seus
erros e acertos, suas alegrias e tristezas. Reencontraria
pessoas queridas que já haviam partido e de quem sentia
saudades. Veria seus filhos novamente crianças e sentiria
uma vez mais a alegria de vê-los nascer. Seria jovem outra
vez e poderia rever seus amigos de infância. Voltaria a
ser menino até chegar ao útero materno, quando cairia
o pano do último ato da sua existência.
Fabio Bastos
7
POR DENTRO DO TOM
por Santuza Cambraia Naves
O mestiço e o negro na música brasileira
O negro (3) - Convidado Frederico Oliveira Coelho
o enxugamento da parte percussiva ao mínimo. Uma das prin- sobre sua condição étnica em suas canções — reflexão que
cipais contribuições africanas para o samba, isto é, sua base viria com força total quase dez anos depois, em trabalhos
rítmica, de batucada e pressão, foi desmontada e deslocada por como Refavela e Realce.
grandes como Jobim e João Gilberto, em direção a um novo
formato, conciso e distante dos barracões das Escolas ou dos O tropicalismo, em todas suas manifestações públicas, tamterreiros e das rodas.
bém foi um movimento em que as bases étnicas da nossa
música e da nossa cultura ficaram em segundo plano, ou
O que eu gostaria de destacar na letra de Chico Buarque é uma Baden Powell e Vinicius de Moraes foram uns dos poucos mú- melhor, em um plano silencioso. É interessante pensarmos
ressalva. Ele diz, na voz em primeira pessoa de Tom, que, mesmo sicos que atuaram nos anos 1960 a abordar a questão racial e a em trabalhos posteriores de Gil e Caetano dedicados por
que sua música não seja de levantar poeira, ela pode entrar no presença da cultura negra e mestiça na música popular de seu completo a esses temas, como os referidos de Gil e o embarracão. Essa deferência ao universo do carnaval e das escolas tempo. Em seus antológicos Afrosambas (1966), eles revertem ra- blemático Noites do Norte, de Caetano. Ao contrário de Chico
de samba é, ao mesmo tempo, uma demarcação de espaços dicalmente o tratamento antipercussivo da bossa nova e injetam Buarque — ou até mesmo de João Gilberto —, o samba não
da cidade. Afinal, o piano (que está na rua, na Zona Sul) precisa atabaques e agogôs em quase todas suas canções sobre Orixás, esteve sempre no centro do interesse estético dos tropicasubir o morro, chegar ao coração da escola (e do samba?) para sobre a negritude, sobre a Bahia e nos demais temas ligados a listas. Durante o período do movimento (1967-1969), não há
que finalmente Tom realize os versos proféticos de Vinicius em esse universo. Vale registrar que, ao longo de sua carreira, Tom um só samba composto por eles a não ser “Aquele abraço”,
“O morro não tem vez”: “quando derem vez ao morro, toda ci- Jobim não gravou trabalhos parecidos, dedicados ao estudo de Gil. Caetano e Gil seriam depois exímios compositores de
dade vai sambar”. Se toda a cidade não samba, ao menos Tom desses ritmos — mesmo gravando canções de Pixinguinha e samba, mas no período tropicalista tinham mais interesse
e sua música sambam em perfeita harmonia. O interessante é Ary Barroso. Tom dialogava com Radamés Gnatalli e Villa Lobos, na cultura negra norte-americana do que na cultura negra
que a ressalva da música que não é de levantar poeira faz uma e não com os sambistas tradicionais. É por isso que a subida de brasileira. E isso, claro, não é acusação ou tentativa de crítica
alusão direta às composições de Tom, cuja marca camerística seu piano ao morro é quase um acerto de contas entre o ma- aos seus trabalhos, mas uma forma de constatarmos certos
e apolínea não estão diretamente relacionadas ao universo estro e o mundo do samba que ele tanto prezou e divulgou ao traços de uma relação (in)tensa entre a música popular brapopular e dionisíaco do carnaval, sintetizados na imagem do longo de sua vida — mas não ao longo de sua música.
sileira e a questão racial.
barracão. Chico nos fala, de certa forma, que o piano sempre
Os Afrosambas foram gravados em um período quando o país Tom Jobim nunca precisou fazer uma música cujo tema fosse
esteve distante das ladeiras sonoras das favelas cariocas.
se encontrava na transição do pêndulo descrito mais acima. explicitamente sua opinião ou visão particular sobre a questão
Essa subida tardia do piano de Jobim até a Mangueira é talvez Durante a primeira metade da década de 1960, os músicos racial brasileira, seus dilemas, derrotas e vitórias. Suas canções
uma pista para entendermos por que alguns dos principais envolvidos com a bossa nova iniciaram divisões ideológicas a de inspiração impressionista e eruditas conseguem sintetizar
nomes e movimentos da música popular brasileira passaram respeito do papel do músico popular frente às questões políticas em seus acordes e melodias um imaginário sonoro do que
ao largo da questão da mestiçagem e da negritude em sua e sociais que os rodeavam. Durante os anos de funcionamento podemos chamar aqui de ser brasileiro. E todos entendem isso,
história. A distância entre as classes sociais cariocas — resumi- dos CPCs da UNE (1961-1964), Carlos Lyra, Nara Leão, Vinicius seja qual for sua etnia, sua tradição cultural, sua história de vida
das esquematicamente no binômio morro/asfalto — sempre de Moraes e outros se aproximaram dos sambistas ditos de e de bolso. É por isso que, em “Piano da Mangueira”, vale a pena
foi, de algum jeito, uma força-motriz de nossa música popular. raiz, como Zé Ketti, Cartola, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva ressaltarmos a felicidade poética de Chico Buarque quando
Força ativada tanto para o bem quanto para o mal. Em um e passaram a divulgar seus trabalhos — principalmente Nara mostra a conciliação — não de uma briga, mas de uma distânmovimento pendular, ora músicos ricos e pobres, brancos e Leão. Foi a época áurea do espetáculo Opinião (1964), do Bar cia histórica — entre o piano do compositor mais brasileiro e
negros, espontâneos e acadêmicos se reúnem criativamente, Zicartola e dos textos e livros como Música popular: um tema os morros e as favelas do Rio de Janeiro. Espaços por excelência
em debate (1966), de José Ramos Tinhorão; um momento em do que muitos chamam de raízes ou tradição da música poora se afastam radicalmente.
que se acusavam formalmente de colonizados e alienados (acu- pular, os morros e as favelas eram distantes na vida cotidiana
Nos anos modernistas das décadas de 1920 e 1930, por exemplo, sações estéticas e políticas) os compositores da bossa nova que dos compositores da bossa nova ou dos músicos tropicalistas.
o pêndulo pendeu decisivamente para o lado da integração das permaneciam alheios — ao menos musicalmente — a esse Era justamente essa distância cotidiana que críticos como José
partes, nos dando compositores como Noel Rosa e Assis Valente, universo autêntico do samba.
Ramos Tinhorão usavam como arma para acusar tais músicos
Lamartine Babo e Ismael Silva, Ary Barroso e Geraldo Pereira,
de ladrões do verdadeiro samba, o que era feito não nas areias
propiciando a expansão da cultura das escolas de samba e a Esse breve acerto de contas entre os músicos ditos de classe de Copacabana, mas sim nas ruelas do Buraco Quente e do
invenção de uma linguagem carioca, mestiça e popular. Já no média e os sambistas populares (pobres e negros em sua Pendura Saia.
período desenvolvimentista da bossa nova, da poesia concreta e maioria), mesmo assim, não transforma substancialmente as
de JK, quando as cidades e sua modernidade urbano-industrial fronteiras entre classes e cores no tecido da música popular Seja em Copacabana seja na Mangueira, o que precisa ficar
passaram a ser o foco dos projetos nacionais, a música popular brasileira. Basta pensarmos que o movimento musical que registrado é que a música popular brasileira e a questão da
definiu claramente as fronteiras entre uma música sofisticada, marcaria o país de forma tão intensa quanto a bossa nova — mestiçagem e da cultura negra demoraram muitos anos para
classe média, moderna e branca e uma música folclórica, brega, o tropicalismo — também não tematizou a questão racial ou serem vistas como elementos de um mesmo universo criativo.
popularesca, nordestina e pobre. A aversão ao samba-canção, a cultura mestiça brasileira como valor positivo e identitário. A bossa nova e o tropicalismo foram momentos fundamentais
às batucadas dos sambões e aos ritmos nordestinos — do baião Apesar de seus membros serem baianos e paulistas, mulatos, na constituição de um imaginário e de um cancioneiro popular
ao forró — era uma das marcas da juventude dourada carioca brancos e negros, o Brasil moderno, urbano, caótico e desi- e nacional, mas deixaram de lado algumas das matrizes étnicas
gual era maior como tema de crítica e pesquisa do que essas e culturais que formam hoje em dia a variedade desse imagique criou e ratificou a bossa nova.
questões. Caetano celebra a mulata e a bossa nova, Carmem nário e desse cancioneiro. Na década de 1970, essas matrizes
É claro que a bossa nova entrou para a história como o ritmo Miranda, Iracema e Ipanema, mas não celebra orixás ou a cul- foram incorporadas de forma definitiva — seja na ampliação
que incorporou e modernizou de forma definitiva o samba e tura africana como Vinicius e Baden celebraram. Gil narra as da base étnica da canção popular, seja na penetração maciça
suas contribuições melódicas, harmônicas e líricas na música complexidades da vida capitalista no terceiro mundo, a morte dos lemas e dos estilos do Black Power norte-americano e do
popular brasileira. O samba da bossa nova, porém, é um samba e a geleia geral, o misticismo da contracultura ou o surgimen- reggae jamaicano, no âmbito da cultura pop brasileira. Mas
de piano e violão, em que a grande invenção era justamente to de uma cultura eletrônica, porém não reflete criticamente aí já são outras histórias e outras canções.
Em 1994, Tom Jobim grava em seu último álbum, Antonio Brasileiro, a canção “Piano na Mangueira”. Parceria com Chico Buarque,
sua letra diz, trinta anos após o período da bossa nova, que o
morro veio chamar o compositor e que ele aceita o convite. No
carnaval de 1992, Jobim foi tema do enredo da Estação Primeira
de Mangueira na avenida.
8
NOTAS NO PLÁSTICO
por MAURO FERREIRA
Ilessi segue tradições da MPB no belo ‘Brigador’
As Apostas
Afirma Paulo César Pinheiro, em texto feito para o encarte do primeiro álbum de Ilessi, Brigador, que a
cantora carioca começa bem. Embora suspeito, já que é um dos compositores da parceria celebrada
no disco, Pinheiro tem razão ao listar adjetivos como afinada, segura e corajosa quando se refere à
intérprete diplomada pela professora Amélia Rabello na Escola Portátil (RJ). De fato, Ilessi se mostra
afinada, segura e corajosa ao abordar a obra (bela e ainda pouco ouvida), composta por Paulo Pinheiro,
em parceria com o bandolinista Pedro Amorim, convidado afetivo do samba Julgamento. Já no afrosamba que abre e dá título ao ótimo CD, gravado em 2007 mas circunstancialmente lançado somente
neste ano (de 2009), em que estão sendo festejados os 60 anos de Pinheiro, as qualidades vocais de
Ilessi saltam aos ouvidos com seu timbre, que evoca ligeiramente o de Maria Rita. Entre o suingue
nordestino de “Barraqueiro de Caruaru” e a melancolia de “Ponto de punhal” (choro no qual a aluna já
profissional dueta com a professora Amélia Rabello, ao som da flauta chorosa de Marcelo Bernardes), a
voz de Ilessi realça a poesia lírica da canção “Olhos Azuis”, se embrenha pelos campo na toada “A Pena
do Sabiá” (faixa em que a viola de João Lyra acentua o clima ruralista) e sustenta bem o tom camerístico de “Serena”, valsa-canção que conta com o piano e o arranjo de Cristóvão Bastos (nas demais faixas,
os bons arranjos são de Luis Barcelos, produtor do CD, ao lado da própria Ilessi). No fim, tudo acaba
em samba. “Sestrosa” tem balanço buliçoso que evoca as rodas baianas. “Linha de Caboclo” — o tema
veloz que Maria Bethânia acabou tendo a primazia de apresentar no recém-editado álbum Encanteria
— reforça o elo afro de Amorim e Pinheiro. Já “A Sina do Negro” destila o orgulho da raça no compasso
majestoso de um samba-enredo. Todo gravado à moda tradicional, sem concessão aos sons eletrônicos que adornam a atual música brasileira, Brigador segue tradições da MPB e põe a promissora Ilessi
na briga pelo título de intérprete de um dos melhores discos deste ano de 2009.
ao Leonardo Gandolfi
Pedro Sá azeita rock-samba de Ronei
e os Ladrões de Bicicleta
Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta é
um grupo da Bahia que cruza samba com
rock sem fazer exatamente samba-rock.
O fato de Pedro Sá — o guitarrista que
é a alma da BandaCê — ser o produtor
do segundo álbum da banda já informa
muito a respeito de Frascos comprimidos
compressas. Pedro Sá não toca no disco, porém azeita o rock-samba de Ronei
Jorge. A guitarra roqueira que conduz o
ritmo do samba “Você sabe dessas coisas” (Nega) evoca a guitarra tocada por
Pedro em Zii e Zie, cuja ambiência também está refletida de alguma maneira
no instrumental da balada “A respeito do
sono”. Enfim, o CD tem lá seus encantos
próprios — apesar de o repertório nem
sempre ser inspirado — e vai contentar
os fãs da sonoridade indie de Ronei Jorge e dos Ladrões.
Para ler mais notas musicais, acesse
http://blogdomauroferreira.blogspot.com
um pardal
ruinado
de regresso
de Las Vegas, ou qualquer
outro povoado de roletas;
este poema se posta à tua frente
e te adversa — quieto. Já
o desafio que
te coloco — trato-me
duma terceira
separação — é, senão
claro, bem menos
tortuoso — descobrir
ao pássaro que,
parado (lentes
fundas) à tua frente,
dá de asas — alguma ternura,
vexada que seja. Acho
que não sei transbordar
para lá
Poema do cajueiro
Ismar Tirelli Neto
O cajueiro se esparrama
e acaricia o chão
com dedos retorcidos de desejo.
Não há delicadeza no desenho
ou na textura de suas folhas
mas parasitas laboriosas
aplicam refinados arranjos florais
em seus galhos rugosos.
A cidade em rewind
Não é tempo de frutos
nem cabem ninhos
em sua fronde sem aconchegos
mas há sempre passarinhos
e amantes eternos
em sua sombra.
todo caminho
é de volta.
Telhados e
diagonais
Sentado de
costas no trem
a cidade
vai em rewind –
rasgam o céu
cinza de São
Paulo, traçam
Sábio é o cajueiro
impassível a assistir
à passagem das flores
dos frutos
dos pássaros
e dos apaixonados.
minha volta
do Tietê
pro Paraíso.
Carlos AA. de Sá
Miguel Del Castillo
9
Anu
Defesa do Amor
de Cleo e Toni
Mote: Para ambos, o suicídio
não foi pecado, mas castigo.
O que seria o suspiro
Sem ter por quem suspirar?
Contra a solidão conspiro
A favor de suplicar
O perdão para o casal
Que junto permaneceu
No pecado mais mortal.
Conhecemos Prometeu
Cujo fogo tem trazido
Não só a sabedoria
Para humanos mais franzinos,
Mas também a orgia
Para os mais desinibidos.
Já diante dos seus olhos
Senhores do júri, eu rogo:
Lembrem de Cleo como era,
Que maldição ser tão bela!
Concedam o seu perdão,
Que Toni já tem sofrido
De embriaguez de paixão:
Enquanto trocavam beijos
Era um colar com calor
Línguas loucas de tremor,
Seios duros como seixos
Apertados contra o peito
Muito antes de no leito
Consumarem seu amor.
Wilmar Silva
Olhares
Para as criaturas digo:
Não há pior castigo!
É notável a presença do rato em cima dos livros. Ele é grande, robusto, cinza e fedorento.
O gato, oculto em sombras, observa sua presa
com seus olhos vis e brilhantes. Um homem
chega, puxa a cadeira e se senta diante do animal cinzento e dos livros. O roedor, assustado,
foge; o predador, decepcionado, vai embora;
o recém-chegado, entediado, apanha um livro e lê. Logo mais, dorme. O dia amanhece
e o cão observa o galo cantar.
Como pena alternativa
Que eles juntos permaneçam
Como os dois eram em vida
Pois que ambos só mereçam
O veneno que os matou.
Pior pecado seria
viver como quem nunca amou.
Renan Mendonça Ferreira
 10 
Bruno Papito Nascimento
Yoga Karana – Hatha Yoga – Yoga para Gestantes
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Telefone: (21) 3982-2324 - [email protected]
DESAFIO POÉTICO
Nesta edição, nossos astutos
Súbito, senti
de longe um forte aroma...
Dama-da-noite!
leitores foram convidados a
Yara Shimada
brincando de nada
enviar seus haicais ou poeminhas
curtos. Veja aqui treze dos
selecionados. Para a próxima
edição, o Desafio é enviar um
saltita no lago
a pedra depois submerge
dois olhos no vago
ontem chorei
hoje chorinho
amanhã chope
Octávio Roggiero Neto
Jovino Machado
poema inspirado em um filme. O
resultado: em breve num Plástico
Bolha perto de você!
Envie seus poemas para
[email protected]
Além da fronteira
Continua sempre o mesmo
O Verde sumindo
Leonardo J. Melo
Marcos Queiroz
mas que frio no pé!
o menino descalço
depois do xixi
poeminha sujo
versinhos
Me lamba, se lambuze
Me abra com cuidado
Que eu sou só uma lata
De leite condensado.
whisky com guaraná
tequila com limão
seu copo eu aceito
você eu não quero não
Daisy Miller
Bovarismo
seu corpo no meu
recheio de nós
café da manhã
Taiyo Omura
Luciana Mutti
No morro só há
Bem lá no topo um pé
De jequitibá
Luisa Noronha
Brisa
De tanto ler
Ficou com L.E.R.
Nicole O’Hara
Assopro de inverno
na flor de maracujá.
Desgostos eternos.
haicai de verão
Franklin Pacífico
de infinitas lágrimas
e farelo de polvilho
são feitas as praias
Lucas Viriato
Navalhas
No mundo parede
Nunca chove nem navalhas
Ninguém sente sede
Felipe Ribeiro
Veja outros Desafios Poéticos
em nosso site:
www.jornalplasticobolha.com.br
 11 
ORÁCULO
por Antonio Mattoso
Cinema Cantado, Cinema Falado ou Tudo Azul
Passar(o)
Exibido em 2008 e agora disponível em dvd, O
mistério do samba, documentário dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda, pretende
resgatar o samba carioca de Oswaldo Cruz por sua
melhor representação, a Velha Guarda da Portela. O
documentário se constitui a partir de duas fontes:
tanto de imagens de arquivo — isto é, fotografias e
filmes quanto de imagens e depoimentos captados
pelos próprios diretores. Desde 1998 Marisa Monte, para produzir o cd Tudo azul da Velha Guarda
(EMI, 1999), inicia sua pesquisa conversando com
seus componentes, ouvindo e redescobrindo seus
sambas, até 2007, quando foram feitas as últimas
tomadas, em uma roda de samba na Portelinha,
em Oswaldo Cruz. No filme, essa pesquisa funciona
como um singelo enredo, organizando a narrativa e
o material filmado, porém não é senão um pretexto
para aflorar, a nosso ver, suas principais questões:
a memória e a inspiração de seus compositores. O
filme conta ainda com a participação de Paulinho
da Viola e Zeca Pagodinho, que possuem vínculos
afetivos e efetivos com a Velha Guarda. Paulinho
produziu o primeiro registro fonográfico da Velha
Guarda, o antológico Passado de glória (RGE, 1970);
Zeca, por outro lado, afirma que sua referência de
samba bom ocorreu no terreiro da tia Doca.
na massa do trânsito
por entre as buzinas de atraso
um passarinho imperturbável
pousado no teto de um ônibus
à procura do tempo
Na mitologia grega, Mnemósina (Mnemosýne),
Memória, uma abstração divinizada, é uma titânida, filha de Úrano e Gaia, portanto uma deusa de
primeira geração a qual unida a Zeus concebeu
as nove Musas. A raiz indo-europeia *mna, que
se realiza em grego sob a forma mne, significa
tanto lembrança, em relação a um objeto material
por exemplo, monumento, tumba — como memória enquanto faculdade de lembrar, de suma
importância para as culturas orais. É justamente
esse sentido de memória a que assistimos no
filme. Originalmente as Musas eram divindades
das montanhas e das fontes, mas foram logo
associadas ao Olimpo e ao Hélicon — segundo
Homero e em Hesíodo, respectivamente. Além
disso, tinham como função presidir à inspiração
poética. A antiguidade considerava o poeta um
intérprete e um veículo das Musas.
Os depoimentos, além de recuperar o passado
atualizando-o, revelam a intimidade e o cotidiano
de cada componente, fonte de inspiração para seus
sambas. O samba, segundo Casquinha, “entra numa
inspiração mesmo forte, bate no coração, aquele
entra e fica”. Fundamentalmente são os homens
que compõem, fazem melodia e letra oferecendo
a segunda parte ao parceiro. Seus temas versam
A primeira palavra dita no filme é antigamente, en- sobre a mulher, o amor e a própria escola. Embora as
quanto a câmera percorre pelo bairro, em uma de mulheres não compusessem, eram determinantes
suas casas está inscrito 1927. Coincidentemente foi para o sucesso do samba no terreiro. Se as pastoras
nos anos vinte que o samba, então um ritmo novo, foi não cantassem, como diz Monarco, o samba não
levado do Estácio para Oswaldo Cruz e que a Portela acontecia.
foi fundada, tendo se originado dos blocos do bairro.
Desfilou primeiramente com o nome Vai Como Pode O mistério do samba retrata o subúrbio carioca de
entre 1932 e 1934, adotando em 1935 o nome Grêmio Oswaldo Cruz com sua linha do trem, com seus
Recreativo Escola de Samba Portela. Desde o início do quintais, com suas rodas de samba e seu miudinho
filme, fica caracterizado o afastamento temporal evo- — enfim, o universo ao redor de seus bambas. Eticado pela palavra antigamente e trará de volta esse mologicamente, a palavra mistério provém do grego
passado a memória viva dos componentes da Velha mystérion e significa segredo revelado pelos deuses.
Guarda, daqueles que conviveram com os fundadores O filme busca elucidar e desvendar o segredo e o
e puderam, portanto, compartilhar do tempo forte mistério do samba; mas, pelo fato de ser mistério,
da fundação da escola trará de volta esse passado. contém algo que só o verdadeiro sambista, como
Eloquentes, nesse sentido, são os depoimentos de um iniciado, conhece e sabe. O filme é dedicado a
Seu Jair do Cavaquinho, dizendo que originalmente dois sambistas da Velha Guarda falecidos durante
a Portela não saía com bateria, mas com trombone, as filmagens, seu Argemiro e seu Jair — e mais reclarinete, flauta, violão, cavaquinho e violino — e centemente, tia Doca. Ficamos todos gratos a Marisa
também o depoimento de tia Eunice. Ensinando o Monte e ao seu selo Phonomotor pelo quanto têm
miudinho às crianças, ela afirma que aprendeu com feito em prol da Música Popular Brasileira ao registrar
Paulo da Portela, com Paulo Benjamin, figura emble- em vídeo e áudio esses sambas e preservá-los para
sempre em nossa memória. Salve Marisa.
mática para a escola.
 12 
Chiara di Axox
O objectivo é tentar conciliar a vida mental
com a minha vida prática. Em caso de dúvida contactar o nº 960043006. As manhãs
e as tardes estão por conta da Dona Rita. A
senhora, que dorme durante a noite, ficava toda contente se fosse lá dizer-lhe olá,
entregar-lhe esta carta de recomendação
para se manter acordada.
Há frustrações que se sente que ninguém
percebe.
Rita Brás
POEMA DO IMORTAL
Carne Viva
I – Do nada, do tudo
No trabalho, pegando elevador
Na poesia, dum trovador, desses de taverna e bar, viola e cantar, um homem vislumbrou ser tudo.
A caminhar, sem muito que pensar, levou suas pernas a um caminho que outrora jamais imaginou
trespassar. Foi-se em direção a um rio: não era o Nilo nem o Eufrates; não era Tigre nem o Ganges.
Foi-se e, na ida, a cambalear com o sol, com o calor, com as noites inversas, teve sua mão decepada
num duelo que ele mesmo viu motivar. A delirar a dor no torpor com o horror de sua fisionomia
(refletida no estúpido espelho que levara), viu seu rio correr no leito da secura.
II – De nada ao tudo
— Ai, quem me dera ter um cabelo liso e bonito assim. Cê é filho de índio?
— É, eu tenho ascendência — mas pensei
mesmo é em dizer: “Se cê quiser, gostosa,
eu te faço um menino lindo com um cabelo
igual a esse...”
Frango-assado
Era curto, porém suntuoso, profundo e veloz. Ao ver, descer da quase ausência, tomando para si
tudo o que o circundava; apoteótico, a pairar na prostração do nada, o homem, agora ferido, carcomendo a própria angústia (da dor), mergulhou seu corpo quase por inteiro naquelas águas. Não
eram límpidas nem agradáveis. A textura de argila a carregar seu corpo numa veleidade imprópria
para as águas de um rio atribuiu à dor o irremediável. A ferida ardida em seu peito fundou a frustração de encontrar no nada tudo o que um trovador lhe confessou. Era agora tudo: a ferida não
lhe gritou, a pele — dilacerada — reconstituiu-se, dando-lhe novo membro; a morte não podia
mais digerir as entranhas: era infinito o homem.
— Esses ricaços devem achar que vão conseguir comer meu cu! Babacas, eles nem
— Carlinhos!!!
— Oi... vai querer alguma coisa, Marajá?
Jovenzinhos
Foi depois do aborto... e o jovem casal sentiu
III – De tudo ao nada
alívio, suas vidas não tavam mais condenadas
Pois de infinitude e longevidade seus passos remoeram. Caminhou terras demais para uma só
memória; fornicou até não ver na sexualidade o torpor; viu a morte e nela depositou, ao par da
condição, a ambição. Não mais sozinho se fazia, mas na sua lida o outro se jazia. Era pernóstico, não
por se fazer assim (as circunstâncias o faziam); era angustiado, carregado na sobriedade do infinito.
Não era tudo e, no vazio, faziam-se suas motivações. Morrer nada mais é do que findar, dizia; mas
sua fala, sabia, era para os tolos, sorria. Ao sorrir, encabulado, resignado, sem se envelhecer, sem
morrer, sem viver, doía. E ao doer — a dor do imortal, do infinito, do infindável — queria que, na
canção dum trovador, ou nalgum escrito, achasse, porém, a mística do fim. Deu-se a impostura da
procura: correu bibliotecas, frequentou trova e poesia, estudou séculos a fio. Por fim, já desgostoso
com o saber, inconstante com o querer, o homem — o mesmo que há muito percorreu geografia — desejou ser nada, desejou findar. E no seu desejo, ímpar na vontade e par na grandiosidade,
fez-se seu abrigo: o que julgava ser tudo agora era nada; do nada, porém, fez-se tudo e agora, sim,
podia morrer.
naquele tipo de prisão invisível. Agora, depois
do feto estar no formol, cada um foi pro seu
canto e se esqueceram mutuamente, como
se não fosse nada...
Poligamia
E na festa de aniversário do Sheik, as esposas
rolavam no chão, uma puxando os cabelos
da outra, espumando de ciúmes uma com a
outra, devido aos presentes melhores que os
seus, uma com a outra
A perda da libido
IV – De novo tudo
Rumou para o leito daquele rio, ajoelhou-se, quieto, agora sem resignação no olhar ou prostração
no cantar, e começou, devagar, a entoar a melodia de sua danação. Devagar, com curtos passos,
ainda a cantar, foi entrando novamente no rio. As águas, que outrora com argila parecia, agora
leve corriam e, sem o levar, deram a sangrar. A mão se desfez e o peito novamente encheu. A sua
amargura, na secura, agora era anterior à dor. E, em vez de agonizar, o tolo homem, mais humano
que nunca, continuou a cantar e sorrir, deixando que o rio — lúcido e suave — o levasse, sem
qualquer dor ou rancor. E muito do sofrimento e da angústia concerniu para seus olhos; olhos
esses que viram coisas demais pra um homem só, pois a imortalidade — para esse homem — foi
senão o monótono exercício da solidão.
Não foi de uma hora para outra, ah, não. Veio
com as viagens, o prazer de estar só, a fatiga
do antigo namoro, novas prioridades da maturidade adultinha. Daí apareceu o egoísmo,
cês sabem... Mais tarde nem punheta me
acendia, nada, nada e nada vinha, já que não
conseguia pensar no assunto... Nem é triste,
é loucura!!!
Paulo Vitor Grossi
Felipe Aguiar Chimicatti
 13 
DOBRADINHAS
por ALICE sANT’ANNA & Mariano Marovatto
O CORAÇÃO, O CORAÇÃO
praia do leblon
Eu que nunca fui marinheiro
tomaria um barco, envolto em visões
de países distantes, no ressoar do calor
náutico, cheirando a beira de cada mar do mundo
enquanto você me cruza a jato o coração, o coração
te ver no inverno
é como verter pela metade
meus pés afundados
na areia, às cinco a luz
é pouca: hoje é terça de tarde
e não me sinto de férias
nesse verão ao avesso
te dobro um barquinho
pra navegar no mar
Mariano Marovatto
Alice Sant’Anna
CLIQUE AQUI
http://chacalog.zip.net
O blog do poeta Chacal, um dos autores mais ativos da geração mimeógrafo, divulga poesias novas
e antigas desde 2004. O poeta carioca mantém o
espaço sempre atualizado com poemas, relatos,
fotos, imagens e divulgação de eventos.
http://palomarorizespinola.blogspot.com/
O Jardim de Filiana é o nome do blog criado recentemente por Paloma Espínola. Nele a poeta, que
já publicou diversos textos no jornal, mostra seus
demais talentos ilustrando os textos com pinturas
de sua autoria.
http://lucasviriato.blogspot.com/
O Atos de Medeiros é o blog do poeta e escritor Lucas
Viriato de Medeiros, autor dos livros Memórias Indianas e Retorno ao Oriente, além de editor do jornal
literário Plástico Bolha, que você tem em mãos neste
exato momento.
Raïssa Degoes
MASSAS - MOLHOS - PÃES - DOCES
Leblon: 2259-1498
Barra: 2431-9192
Laranjeiras: 2285-8377
CONSULTORIA DE NEGÓCIOS E MARKETING ESPORTIVO
AGENCIAMENTO DE CARREIRAS DE ATLETAS
EVENTOS CORPORATIVOS
CAPTAÇÃO E GESTÃO DE PATROCÍNIOS
www.massascantinella.com.br
Av. Luis Carlos Prestes, nº 180 / 3º andar – Barra Trade V Barra da Tijuca – Rio de Janeiro / RJ.
CEP: 22.775-055. Tel.55 21 2112 – 4909 / Fax. 55 21 2112 – 4601 / www.kpaz.net
Entregas em Domicílio
 14 
http://www.livralivro.com.br/
Com o objetivo de democratizar o acesso aos livros,
Samur Araujo, mestre em Web Semântica pela PUCRio, desenvolveu um projeto para troca de livros
pela Internet, motivado pela própria necessidade e
pelo desejo de aplicar seus conhecimentos. O site
é gratuito e apenas faz o link entre os usuários, a
quem caberá pagar a postagem. O site hoje conta
com 130 mil cadastrados em português, e cada usuário cria um lista com os livros que possui e os que
deseja. Um mecanismo inteligente permite a troca
simultânea entre múltiplos usuários, maximizando
as possibilidades de troca.
ENTREVISTA
por Paulo Gravina
Georges Lamazière — Da investigação à criação
Você declarou em sua dissertação de mestrado
que a poesia e a filosofia seriam maneiras de a linguagem sair de férias. Você diria que tenta realizar
esse projeto em seus romances?
autores, do acervo histórico da literatura mundial. A
vida cotidiana me é crucial como material literário,
na medida em que permite experiências e observações que acabam nos livros, conscientemente
ou não. Provavelmente, tanto faz a profissão de
cada um, a não ser pelo que possa proporcionar
como ocasiões para experimentar e observar. Neste
sentido, e neste sentido apenas, a vida diplomática
sem dúvida permite uma gama muito variada de
vivências.
Acervo pessoal
Georges Lamazière é o que pode se chamar de um intelectual antenado. Estudou direito, filosofia e ciência
política; após ter sido professor universitário, ingressou
na carreira diplomática e chegou a atuar como portavoz da Presidência da República. Pode-se considerar
que a carreira literária começou com sua tese de mestrado, que trata do filósofo Ludwig Wittgestein, autor
até hoje bastante estudado nas teorias de literatura e
linguística. Lamazière publicou dois romances policiais
— “Um crime quase perfeito”, em 1995, e Bala perdida
em 1999 — e um ensaio sobre o pós-guerra do Golfo
chamado “Ordem, hegemonia e transgressão”. Seus
livros são coroados por uma vasta erudição e por um
humor refinado — marcas quase sempre presentes no
grande escritor brasileiro. A dissertação de mestrado já vai longe, assim como
Wittgenstein. Agora, não há dúvida de que qualquer
uso não utilitário da linguagem tem esse caráter de
gratuidade, de algo lúdico, de feriado. Só que a filosofia
leva, talvez, a umas férias meio chatas, pretensiosas,
que lembram o anátema francês contra bronzer idiot,
algo como a obrigação de ter férias inteligentes, talvez
levando Proust para a praia. Já a poesia, e por extensão
a literatura, seria a linguagem de férias com tudo o que
isso conota de liberdade, imaginação, prazer.
Suas experiências pessoais incluem estudos nas áreas
de direito, filosofia e ciência política e trabalhos como
professor, diplomata e embaixador. Você diria que essa diversidade favorece suas construções ficcionais?
O que mais fornece elementos para a construção
ficcional é a vida, claro, além da leitura de outros
O protagonista de Bala perdida declara que os
conhecimentos teóricos seriam vistos como um
simples rito de passagem. Qual sua posição em
relação à teoria literária? Você diria, seguindo
Wittgenstein, que “é preciso jogar fora a escada
depois de ter subido por ela”?
Só posso falar de mim; não tenho nenhuma aspiração a julgar uma disciplina tão respeitável. Mas,
pessoalmente, prefiro cada vez mais ler o original, e
não o comentário — sobretudo se esse comentário
for muito complicado.
Você é um grande defensor e entusiasta do gênero
policial. Por que a preferência por esse gênero?
Em sua obra, há algumas citações da poesia de João
Cabral de Melo Neto, que é, como você, escritor e diplomata. Como o poeta influencia sua escrita e carreira
e que outros autores contribuíram em sua formação?
Tenho admiração sem limites pela obra de João Cabral,
talvez o Prêmio Nobel que a literatura brasileira deveria
ter recebido, na minha opinião pessoal. Nele, como
em Graciliano Ramos, encontro qualidades que prezo
particularmente, como precisão, austeridade, secura da
linguagem. Para além dessa convivência como leitor, não
penso que houve nenhuma influência, nem na escrita
nem na vida profissional, nesta última inclusive porque
nunca cheguei a ter oportunidade de trabalhar com ele
ou conhecê-lo pessoalmente.
que, assim, ficaria melhor naquele caso preciso
para resolver um problema específico, surgido no
próprio fazer do romance, sem querer nem inovar
nem inaugurar nada. É o caso do livro em questão.
Como o personagem era um escritor iniciante, que
tinha seu primeiro manuscrito recusado, surgiu a
ideia de fazer eco, ou reflexo, da história em um
comentário sobre o livro, e a coisa tomou corpo,
nutriu-se de si mesma de forma inesperada. Só
isso. Quanto a perspectivas para o futuro, todas
são possíveis, ao contrário do que pensavam as
vanguardas de tempos atrás. Podemos ter formas
novas com ideias velhas, formas velhas com ideias
novas, fatos novos contados de forma conservadora ou inovadora. Tudo isso será a cada escritor
de decidir, fora de escolas e movimentos, e a cada
leitor de julgar, soberanamente. Seu romance Bala perdida é uma obra comentada, misturando ficção e crítica; além disso, é
admitidamente experimental em termos de gêneros e linguagem. Quais seriam as novas possibilidades de criação literária nos dias de hoje e
quais seriam as perspectivas para o futuro?
Talvez já não seja mais nem tão grande defensor
nem tão entusiasta. Num primeiro momento, tinha
um quê de novidade escrever nessa linha no Brasil,
como reação ao regionalismo do passado, buscando
retratar a vida urbana em uma linguagem mais direta. Aí o marco óbvio é a obra de Rubem Fonseca,
que foi para mim uma libertação. Depois, a coisa
se banalizou e comercializou muito, como sempre,
com uma miríade de coleções especializadas. Fica,
porém, de positivo um traço primordial do gênero
policial: o fato de que, depois de tanta narrativa sem
começo nem fim, sem sujeito e sem desenho claro,
havia a possibilidade de uma estrutura coercitiva,
de uma regra do jogo, mesmo que para brincar com
ela, subvertê-la.
É próprio da teoria literatura, ou da crítica de arte, atribuir intenções mais gerais ou, pelo menos,
efeitos mais abrangentes a decisões singulares e
individuais em determinada obra de determinado
Qual seu conselho a nossos leitores caso se veartista. Pode-se falar da abolição do personagem,
jam confrontados com alguma investigação?
da estrutura narrativa, da rima, da figuração na pintura, etc. etc. E isso pode e deve ter sido o caso da
maioria dos grandes gênios revolucionários da arte. Se investigação policial ou científica, que procurem
Também podemos fazer uma obra porque pensamos ser o sujeito e não o objeto da própria.
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VÁRIOS POEMAS
por Chacal
bem-vinda
Vento Vadio
ressarcir
às vezes vem um vento
engendrar
e levanta a aba do pensamento
jogando meu chapéu
pra lá da possibilidade.
a toda hora
em todo lugar
mirabel
você passa e fica
figura contra o sol
colada na retina
de repente quando
nasce uma palavra
você me ultrapassa
— bem-vinda!
quando perderes o sentido
Prezado cidadão
fica a impressão
colabore com a Lei.
presa você fica
que se eu piscar o olho
colabore com a Light.
esvoaça daqui
mantenha luz própria.
descansa em paz
você passa e brilha
farol na minha neblina
quando você passa
seu ectoplasma fica
Ópera de pássaros
A objetividade da fotografia é uma falácia.
Erra quem acha que ela retrata o real.
O que há é que quando o fotógrafo diz:
— olha o passarinho!!
Uma ave de asas oblongas sai de dentro da câmera
com uma paleta de cores e um embornal de pinceizinhos.
Sobrevoa a cabeça do fotógrafo... sobrevoa a cabeça do fotógrafo
e de lá, pinta a cena.
Em suma, a fotografia é uma ópera de pássaros.
e as couves
deixa pra lá
Drama familiar
sabe essas unhas do pé
mais um berro histérico
que a gente tira com a mão
e mato um
e as couves de bruxelas?
quem
— a não ser eu —
ouve elas?
pra ficar brincando? pois é,
naquela loucura toda
ninguelas
perdi a que mais gostava
ninguelas
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