Ponderações sobre a prova de títulos nos concursos públicos

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Ponderações sobre a prova de títulos nos concursos públicos
revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
Edição Especial — ano XXVIII
Ponderações sobre a prova
de títulos nos concursos públicos
Cristiana Fortini
Doutora em Direito Administrativo pela UFMG. Presidente
do Instituto Mineiro de Direito Administrativo. ProcuradoraGeral Adjunta de Belo Horizonte. Professora da Faculdade
de Direito da UFMG e de diversas outras instituições.
Coordenadora da área de Direito Administrativo da Escola
Superior da OAB/MG.
Virginia Kirchmeyer Vieira
Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Especialista em
Direito Municipal pelo JN&C IDM. Gerente de Atividades em
Controle Externo da Procuradoria Geral de Belo Horizonte.
Co-coordenadora do Curso de Especialização em Direito
Municipal do CEAJUFE.
Resumo: O concurso público para ingresso em cargo ou emprego público, nos termos da
Constituição de 1988, dá-se por meio de provas ou provas e títulos, observada a natureza
e a complexidade do cargo ou emprego. Caberá à lei fixar as situações que demandarão a
análise de títulos. A fase de títulos assume feição ancilar, pelo que apenas os aprovados poderão
ter os títulos apreciados. O princípio da proporcionalidade é de indeclinável observância na
apreciação dos títulos.
Palavras-chave: Concurso público. Provas. Títulos. Caráter complementar. Proporcionalidade.
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Abstract: Public examinations used for hiring public servants or employees of public companies,
as demanded by the 1988 Brazilian Constitution, consist of written and/or oral tests, or tests
and professional qualifications evaluation, in accordance with the nature and complexity of
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the function to be performed. The functions that require professional qualifications should
be defined by a statute. Only those approved in the written and/or oral tests may have their
qualifications evaluated. The principle of proportionality is the mandatory observation in
assessing professional qualifications within public examinations.
Keywords: Public examinations. Tests. Professional qualifications evaluation. Supplementary
character. Proportionality.
1 Concurso: contornos constitucionais
A Constituição da República de 1988 elegeu o concurso público como a via exclusiva para a
investidura em cargo público e emprego público efetivos. Não é por outra razão que o Supremo
Tribunal Federal decidiu que os modos derivados de investidura não teriam sido acolhidos pela
nova ordem jurídica.1
O art. 37, II, da CR previu que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo
em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
A Emenda Constitucional n. 19/98, que entabulou a Reforma Administrativa, acrescentou que o
concurso de provas ou provas e títulos será definido de acordo com a natureza e a complexidade
do cargo ou emprego público, na forma prevista em lei.
Com esse regramento, o Texto Constitucional coroou o Estado Democrático de Direito, permitindo
a todos que desejam atuar de forma efetiva e permanente para o Poder Público concorram em
igualdade de condições.
Nesse viés, o inciso V, do mesmo art. 37, determina que as funções de confiança sejam exercidas
com exclusividade por servidores efetivos, ou seja, concursados. Define, também, que os cargos
em comissão destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento, devendo
ser ocupados por servidores de carreira, nos casos, condições e percentuais mínimos delimitados
por lei. Tudo isso como forma de salvaguardar a regra da ampla e prévia seleção pública.
1
Chamam a atenção o Recurso Extraordinário n. 209.174-0, relatado pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence e a Adin n.
1.150-2, relatada pelo eminente Ministro Moreira Alves, ambos a combater provimentos de cargo público por via oblíqua, desvirtuada do comando do art. 37, II.
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As exceções à imperativa regra estão registradas na Constituição da República, no mencionado
inciso II, do art. 37 (cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração) e no
inciso IX, do mesmo dispositivo constitucional, esta última na hipótese de contratação por tempo
determinado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Além dessas,
também escapam à regra de concurso público as nomeações para os cargos vitalícios de Ministros ou
Conselheiros de Tribunais de Contas (art. 73, § 2°, c/c art. 84, XV) e de Magistrados dos Tribunais
(Ministros do STF, art. 101; STJ, art. 104; TST, art. 111-A e STM, art. 123, VI). Ainda prescinde de
concurso público a nomeação de um quinto dos cargos de Magistrados de segunda instância (art. 94)
e, em caráter temporário, dos Ministros do TSE (art. 119) e dos Juízes dos TREs (art. 120).
Constata-se, pois, que o concurso público não constitui faculdade do administrador, mas
obrigação imposta pela Constituição da República, cuja inobservância, além das ressalvas
constitucionais, implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável (art. 37,
§ 2°, CR/88).
O concurso público encontra suporte nos princípios constitucionais que regem a Administração
Pública, especialmente nos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.
Com base nesses princípios, a Administração Pública busca, para o exercício das funções
públicas, aquele que estiver mais bem preparado, a partir de regras claras e isonômicas, sem
nenhum tipo de favoritismo.
O Texto Constitucional não definiu o modus operandi do procedimento seletivo, transferindo
o mister à lei, a ser editada por cada ente federativo, observados, é claro, os contornos
constitucionais.
2 A previsão da fase de títulos
Para a seleção do seu pessoal efetivo, a Administração Pública deve submeter os candidatos ao
concurso de provas ou de provas e títulos. É o que prescreve o inciso II do art. 37 da Constituição
da República.
A vigente Constituição admite duas modalidades de concurso: aquele em que há apenas
as provas e a segunda modalidade em que, para além das provas, analisam-se os títulos. A
última modalidade será implementada de acordo com a complexidade e natureza do cargo e
emprego.
A decisão sobre a realização de concurso público de provas e títulos, a afastar o concurso
público em que há apenas as provas, competirá como regra ao legislador infraconstitucional,
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a quem caberá concluir pela necessidade, mais do que a simples conveniência, de se valorar a
vida profissional e intelectual do candidato.2
O legislador, responsável pela definição das exigências que devem ser cumpridas pelos candidatos
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no que concerne ao sexo, à idade, ao grau de instrução, também assume o ônus de estabelecer,
ou não, a fase de títulos. Não se olvide que a liberdade que a Constituição da República lhe
confere no art. 37, II, não traduz autorização para que o legislador crie a fase de títulos
em concursos a envolver cargos e empregos cuja natureza e baixa complexidade das tarefas
dispensam a aferição da vida profissional e intelectual dos postulantes. Importa reconhecer
que a impessoalidade é princípio reitor a conduzir os certames. A previsão da fase de títulos
quando injustificável, à luz da simplicidade dos afazeres correlatos ao cargo e ao emprego,
poderá acarretar, em última análise, privilégio àqueles que possuem melhor histórico, embora
irrelevante tal fato para a boa execução das tarefas públicas.
O edital, instrumento condutor do certame, estará adstrito à coloração que a lei atribuir à fase
de títulos, espelhando, portanto, a valoração realizada prematuramente pelo legislador. Assim,
da mesma forma que se inadmitem restrições relativas à idade e à formação profissional, entre
outras, fora as situações contempladas na lei, não prospera a fase de títulos acaso inexistente
lei que assim prescreva.
O Supremo Tribunal Federal por inúmeras vezes condenou regras editalícias que impunham
fixação de limite de idade ou que estabeleciam altura mínima via edital, reconhecendo a
reserva legal.3 Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que a
validade do exame psicotécnico condiciona-se, entre outras coisas, à previsão em lei, além de
repudiar que experiência profissional esteja prevista exclusivamente no edital.4
A ausência de uma lei de concursos,5 que deveria ser editada não pela União, mas por cada
um dos entes federados,6 em que pese poder significar algum grau de prejuízo na condução
2
A própria Constituição da República estabelece a obrigatoriedade da apreciação dos títulos em alguns casos. É o que ocorre com
o concurso público para a Magistratura (art. 93, I), para o Ministério Público (art. 129, § 3°), para a Advocacia Pública (arts. 131,
§ 2° e 132, caput), Defensoria Pública (art. 134, § 1°), Magistério (art. 206, V) e, finalmente, para as atividades notarial e de
registro (art. 236, § 3°).
3
RE 559.823—AgR Relator Joaquim Barbosa; RE 559.171—AgR Relatora Ministra Cármen Lúcia; RE 558.833—AgR Relatora Ministra
Ellen Gracie. Sobre altura mínima, vide AI 723.748—AgR Relator Ministro Eros Grau.
4
Sobre a ilegalidade de fixação de experiência profissional apenas no edital, vide RE 558.833— AgR Relatora Ministra Ellen Gracie.
Sobre exame psicotécnico, vide AI 625.617 AgR Celso de Mello.
5
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 252/2003, que regulamenta o art. 37, II, da CR/88, dispondo sobre normas gerais
relativas a concursos públicos no âmbito da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Apensados ao PL n. 252/2003 também tramitam os PL n. 1.716/1999, PL n. 2.945/2004, PL n. 745/2007, PL n. 985/2007, PL n. 1.009/2007
e PL n. 6.837/2010, que disciplinam a mesma matéria. Referido projeto tem sua origem no Senado Federal (PL n. 109/1989), o que enseja
discussão sobre a constitucionalidade, em virtude de a matéria ser de iniciativa privativa do Chefe do Executivo (art. 61, § 1°, inciso II,
alínea c, CR/88). O TJDFT julgou inconstitucional, em 10/10/2006, a Lei Complementar Distrital n. 3703/2005, que estabelecia normas
sobre provas de concursos públicos, por violação à Lei Orgânica do Distrito Federal, que estabelece ser a matéria de iniciativa privativa do
Governador do Distrito Federal (ADI 2006 00 2 007291-8 — 0007291-75.2006.807.0000 / Acórdão n. 258354).
6
Em verdade, a possibilidade de se editar uma lei geral de concursos públicos é objeto de polêmica já que o assunto relativo a
pessoal é matéria que se insere na autonomia assegurada a cada ente da federação.
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dos referidos certames, porque eliminaria discussões que não raramente batem às portas
do Judiciário, não impede que se estabeleçam as exigências para o provimento de cargos e
empregos nas leis responsáveis pela sua criação. Em verdade, ainda que a lei geral exista não
lhe será permitido exaurir o tratamento da matéria, fixando de antemão todos os casos em que
os títulos deveriam ser apreciados ou ainda discorrer sobre o que deveria ser compreendido
como tal. À citada lei cumpriria traçar diretrizes, sem esgotar a disciplina sobre a matéria,
diante da necessidade de se avaliar casuisticamente cada cargo e emprego. A lei criadora do
cargo fixaria a fase de títulos.
A previsão legal a favor da fase de títulos não esgota a previsão, dado que ao edital cumprirá
estabelecer o que será computado como títulos, definindo, ainda, a pontuação a ser atribuída
a cada documento, o momento e a forma da apresentação.
O candidato tem o direito de conhecer de antemão a forma como a banca examinadora avaliará
os documentos, evitando a possibilidade de que a decisão ocorra sem apreço aos princípios da
moralidade e da impessoalidade.
Previsões editalícias que não estabeleçam satisfatoriamente o que será admitido como
título, permitindo à banca examinadora espaço exageradamente amplo e retirando do
candidato o direito de previamente conhecer os critérios que serão empregados, não se
amoldam à ordem jurídica.
Nesse sentido, os critérios para a avaliação dos títulos têm que ser definidos de forma clara
e objetiva, para que todos os concursandos tenham conhecimento das regras previamente ao
início do procedimento seletivo.
Esta foi a orientação do egrégio TRF-4a Região, quando decidiu que “a análise de títulos requer
a adoção de critérios objetivos, a fim de evitar que paire qualquer dúvida acerca da qualificação
de cada candidato”, não sendo “dado à Administração poder discricionário para agregar maior
ou menor valor ao título” (Remessa Ex Officio em MS n. 1999.04.01.018.974-5/RS, Relator
Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, 3a Turma, DJ, 20/09/2000).
Nesse mesmo diapasão, a ilustre Ministra Laurita Vaz afirmou que a fixação de critérios para
avaliação dos títulos, “após a apresentação dos títulos pelos concorrentes (...) malfere os
princípios da moralidade, finalidade e impessoalidade” (STJ — RMS 18.022-MG, 5a Turma, DJ,
05/09/2005).
E, ainda, o eminente Ministro Gilson Dipp assevera que mesmo
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esclarecimento, posterior, de dúvida interpretativa concernente à natureza dos
trabalhos jurídicos publicados a serem aceitos no Concurso, [...] tão somente
após o início da Prova de Títulos, quando a Administração já estava em poder dos
títulos de todos os recorrentes, ofende os princípios da moralidade administrativa
e impessoalidade (STJ — RMS 17.8678-MG, 5a Turma, DJ, 14/06/2004).
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Entende o colendo Superior Tribunal de Justiça, destarte, que a mera alteração de critérios para
julgamento dos títulos, após a apresentação de tais títulos, configura ofensa à moralidade e à
impessoalidade. Por maior razão, há que se reconhecer idêntica violação quando se faz, não mera
alteração, mas a própria fixação dos critérios de avaliação e pontuação, “quando a Administração
já estava em poder dos títulos de todos os concorrentes” (Ministro Gilson Dipp).
3 Do princípio da proporcionalidade na prova de títulos
Tão importante quanto a identificação da necessidade ou não da realização da prova de títulos
é o estabelecimento da sua extensão no contexto do certame.
Tem-se que para ambas as tarefas, definição da existência da prova de títulos e a pontuação a lhe
ser reservada, o legislador e o gestor público devem valer-se do princípio da proporcionalidade,
para que se reconheçam formações e experiências relevantes para a Administração Pública e
não se atribuam pontos demasiados a títulos corriqueiros.
A eminente Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha7 ensina que para se adotar o princípio da
proporcionalidade, é importante ter em mente a existência de hierarquia entre os princípios
constitucionais, que eles são condicionantes uns dos outros e, ainda, ressalta:
O que se nota é que somente com esta atenção se chegará à Justiça material
buscada concretamente, pois a Constituição existe exatamente para cumprir
tal função básica e não para ser objeto de elocubrações sem face ou força
na realidade.
Também se deve anotar ser frequente a referência encontrada, especialmente
na jurisprudência constitucional, da diferença entre princípios e subprincípios
constitucionais, numa ideia exata e mais fecunda da imprescindibilidade de se
fazer valer o princípio da proporcionalidade entre eles para se concluir pela
interpretação correta a ser conferida ao tema constitucional cuidado.
Os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, economicidade,
razoabilidade, finalidade, dentre outros, devem estar atrelados aos atos decisórios do certame,
a fim de serem estabelecidos critérios claros e objetivos, sob pena de nulidade.
7
ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 52-54.
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A imperiosidade de se ter como base o princípio da proporcionalidade para definição da existência
e limites da prova de títulos evidencia-se, sobretudo, no inafastável cumprimento dos demais
princípios constitucionais na execução do concurso.
Segundo Weida Zancaner,8 os princípios da proporcionalidade e razoabilidade também devem
nortear os concursos públicos, cujos desatendimentos os macula.
Neste caso específico é bom lembrar que o art. 37, II, da Constituição Federal
ao determinar que a ‘investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso público de provas ou provas e títulos, de acordo
com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego’, expressamente assumiu
o princípio da proporcionalidade para nortear os concursos públicos.
Também não pode ser considerado válido concurso público que exige dos
concursandos capacitação física não compatível com o exercício da profissão
que motivou a abertura do concurso. O mesmo se dá quando a exigência de
capacitação técnico-profissional for excessiva para o desempenho de um
dado cargo.
Na avaliação de títulos, o candidato entrega os documentos comprobatórios da sua formação
profissional e intelectual, que usualmente dizem respeito à formação acadêmica, experiência
profissional, publicações de livros, artigos, premiações, aprovações em outros concursos de
mesma natureza, dentre outros que tiverem pertinência com as atribuições a serem exercidas.
A pontuação dos títulos é sempre limitada, como exemplo, ao número de certificados de
formação (até “x” pós-graduações), à idade do trabalho acadêmico (publicações nos últimos
“x” anos), à área (especializações na área “x”), tudo em consonância com a natureza do cargo
ou do emprego públicos, com a finalidade de se atender ao interesse público.
A apresentação dos títulos não é fase eliminatória, mas é condicionante à classificação. No
entanto, com os títulos, o cenário do concurso pode ser alterado, sobretudo se a diferença
da pontuação das provas ocupar as casas decimais, o que, em última análise, pode levar à
eliminação.
A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o Poder Judiciário não pode substituir
a banca examinadora de concurso público ou mesmo se imiscuir nos critérios de correção
de provas e atribuição de notas, visto que o controle jurisdicional restringe-se à legalidade
do concurso.
No entanto, o Poder Judiciário deve, igualmente, utilizar-se do princípio da proporcionalidade
para afastar, desde o início, os critérios descabidos e ambíguos.
8
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ZANCANER, Weida. In: MOTTA, Fabrício (Coord.). Concurso público e constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 167.
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4 A fase de títulos: seu caráter complementar
Da leitura da Constituição da República se extrai, sem grande esforço, a posição subalterna da
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fase de títulos.
Não bastasse o fato de o art. 37, II, admitir concurso público sem a análise de títulos, mas afirmar
a imprescindibilidade das provas em certame dessa natureza, a investigação sobre a finalidade a
que se destina a referida regra eliminaria qualquer discussão que ainda pudesse ser travada.
Com efeito, se o concurso público é procedimento dedicado a homenagear a impessoalidade, a
moralidade e eficiência, permitindo, sem qualquer forma de prestígio pessoal, a demonstração
de conhecimento pelos interessados em ocupar cargos públicos efetivos ou empregos públicos
efetivos, não seria permitido apontar os futuros servidores estatutários de cargo efetivo e
empregados públicos a partir da mera aferição de sua bagagem intelectual e profissional,
porque, em regra os mais jovens seriam prejudicados, assim como também o seriam aqueles
que por razões sócio-econômicas tiveram menores chances de abastecer seu currículo.
O eminente Ministro Carlos Britto sobre a análise de títulos afirmou:
Servem tão somente como critério de classificação dos candidatos, até
porque se ostentassem natureza eliminatória, fariam com que os candidatos
carecedores de densos currículos (os mais jovens e mais pobres, principalmente)
já entrassem para a prova de conhecimento com a obrigação de saber mais
do que os outros. E é intuitivo que tal obrigação antecipada de saber mais
lesionaria o princípio da igualdade.
Também não se pode ignorar que os títulos podem revelar, no máximo, e a depender da sua
natureza, apenas o conhecimento presumido.
Desde logo se percebe que a análise dos títulos não tem o condão de identificar o candidato
portador de maior conhecimento. As provas, e apenas elas, permitem inferir quão preparado
o concorrente está. Não é por outra razão que a Constituição da República inadmite concurso
público limitado à investigação e valoração dos títulos, exigindo, ao revés, provas em todo
concurso público. Os títulos, ainda que possam revelar experiências, a depender do que venha
a ser reconhecido como título hábil em dado certame, não traduzem o mecanismo correto para
a avaliação do mérito.
Por isso, a avaliação dos títulos assume caráter acessório, complementar e ancilar quando
comparada às provas de conhecimento.
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Cretella Júnior corretamente afirmou que “a prova de títulos nada mais é do que uma das fases
do procedimento seletivo maior — o concurso de provas e títulos — não tendo, assim, o caráter
autônomo do concurso de títulos, tão só.”9
Logo, os títulos devem ser analisados na hipótese de o candidato ter logrado êxito nas provas.
Isso porque, como se extrai da Constituição da República, que prevê concurso público de provas
ou de provas e títulos, estes não estão inseridos nas provas.
Assim, sob pena de ofender não apenas a regra constitucional, mas os princípios que a inspiram,
a apreciação dos títulos de determinado candidato condiciona-se à sua aprovação nas provas.
E, como salienta Diogenes Gasparini,10 o concurso de provas e títulos caracteriza-se por
submeter o candidato a provas escritas e eventualmente orais “e considerar os títulos por ele
apresentados como fator de classificação.”
Isso porque a apresentação de títulos em concursos públicos tem como finalidade valorar a
experiência profissional e o aspecto intelectual do candidato, a formação acadêmica na área
específica de atribuição do cargo e a realização de pesquisas e elaboração de trabalhos técnicos,
mas não pode ser tomada como elemento de aprovação ou desaprovação de candidatos no
certame, sob pena de violação aos princípios norteadores do próprio certame.
A doutrina também é indiscrepante no sentido de que
o concurso de provas e títulos, se observarmos com lógica e coerência o intento
constitucional, indica que os candidatos devem ter seu conhecimento medido
pelas provas a que se submeterem, porque esse é o objetivo delas.
E mais:
a titulação dos candidatos não pode servir como parâmetro para a aprovação
ou reprovação no concurso público, pena de serem prejudicados seriamente
aqueles que, contrariamente a outros candidatos, e às vezes por estarem em
início de profissão, ainda não tenham tido a oportunidade de obterem esta ou
aquela titulação. Entendemos, pois, que os pontos atribuídos à prova de títulos
só podem refletir-se na classificação dos candidatos e não em sua aprovação
ou reprovação. Só assim é possível considerar o concurso de provas e títulos
compatível com o princípio da impessoalidade inscrito no art. 37 da CF.11
9
64
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, v. 4, 1991, p. 2.178.
10
GASPARINI, Diogenes. In: MOTTA, Fabrício (Coord.). Concurso Público e Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 34.
11
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 512.
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Paulo Roberto Ferreira Motta e Raquel Dias da Silveira,12 no artigo publicado em obra que
homenageia o Professor Pedro Paulo de Almeida Dutra, lecionam sobre a análise dos títulos:
O exame de títulos encerra o reconhecimento formal por parte da Administração
Pública dos méritos dos candidatos que procuraram obter uma formação adicional
àquelas exigidas pelo edital. Neste caso, o concurso público na modalidade de
provas e títulos é um poderoso incentivo à qualificação dos indivíduos, sendo
elogiável que o Estado assim atue.
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Todavia, o concurso público nesta modalidade não pode desvirtuar o escopo
maior do certame seletivo, qual seja o de selecionar, isonomicamente,
os melhores candidatos. Assim sendo, o edital deverá, com precisão,
declarar os títulos que serão aceitos, bem como a pontuação de cada um.
A razoabilidade e a proporcionalidade deverão ser observadas com rigor.
[...] O exame e a atribuição de títulos deverão guardar sempre caráter
classificatório (grifos nossos).
Outro não é o entendimento do Colendo Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria:
CONCURSO PÚBLICO — TÍTULOS — REPROVAÇÃO. Coaduna-se com o princípio da
razoabilidade constitucional conclusão sobre a circunstância de a pontuação
dos títulos apenas servir à classificação do candidato, jamais definindo
aprovação ou reprovação. Alcance emprestado por Tribunal de Justiça à
legislação estadual, em tudo harmônico com o princípio da razoabilidade,
não se podendo cogitar de menosprezo aos critérios da moralidade e da
impessoalidade (STF, AI n. 194.188 AgR/RS, Relator Ministro Marco Aurélio, j.
em 30/03/98, DJ de 15/05/1998, p. 48).
No julgado acima, relativamente à pontuação dos títulos, ressaltou o eminente relator que,
conforme assentou o Colegiado, estes somente servem à classificação do
candidato, jamais à definição de tê-lo como aprovado ou reprovado. Foi esse o
sentido dado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul à norma
de regência, ou seja, ao artigo 20 e §§ da Constituição Estadual, preceitos
que exsurgem consentâneos com a razoabilidade constitucional, levando-se em
conta a exigência inserta no artigo 37, inciso II, da Carta da República.
O exame de títulos possui uma função que será sempre acessória, adjacente, não podendo
superar a fase de provas, sob pena de se romper a regra constitucional.
O Governo Federal editou o Decreto n. 6.944, de 21 de agosto de 2009, que estabelece medidas
organizacionais para o aprimoramento da administração pública federal direta, autárquica e
12
MOTTA, Paulo Roberto Ferreira; SILVEIRA, Raquel Dias da. In: FORTINI, Cristiana (Org.). Servidor público: estudos em homenagem
ao Professor Pedro Paulo de Almeida Dutra. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 332-333.
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fundacional, dispondo sobre normas gerais relativas a concursos públicos. Os §§ 1° e 2° do art.
13 do referido decreto13 determinam que a prova de títulos seja posterior à prova escrita, o que
reafirma seu caráter secundário.
5 Síntese conclusiva
O concurso público é regra constitucional inafastável, tendo apenas como exceção a nomeação
para cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração, e a contratação por tempo
determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.
A avaliação de títulos não se faz isoladamente, quando adotada nos concursos públicos, constitui
fase final classificatória, quando o candidato já ultrapassou todas as provas previstas para a
seleção do cargo ou emprego público em que pretende ingressar.
A doutrina e a jurisprudência pátria não dão azo ao abrandamento da regra constitucional, ao
contrário, reforçam a sua imperatividade ao exigirem o rigoroso cumprimento, como forma de
materializar os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência,
economicidade, razoabilidade e finalidade.
A prova de títulos premia os candidatos com melhor formação e experiência, mas não pode
servir de instrumento de favoritismo ou perseguições, razão pela qual os critérios de avaliação
têm que ser objetivos, claros, prévios e, sobretudo, proporcionais.
Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BRUNO, Reinaldo Moreira; DEL OMO, Manolo. Servidor público: doutrina e jurisprudência. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19 ed. Rio de Janeiro.
Lumen Juris, 2008.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, v. 4, 1991. p. 2.178.
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004.
13
Art. 13. O concurso público será de provas ou de provas e títulos, podendo ser realizado em duas etapas, conforme dispuser a lei
ou o regulamento do respectivo plano de carreira.
§ 1° Quando houver prova de títulos, a apresentação destes deverá ocorrer em data a ser estabelecida no edital, sempre posterior à da inscrição no concurso, ressalvada disposição diversa em lei.
§ 2° A prova de títulos deverá ser realizada como etapa posterior à prova escrita e somente apresentarão os títulos os candidatos
aprovados nas etapas anteriores ou que tiverem inscrição aceita no certame.
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Edição Especial — ano XXVIII
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
FORTINI, Cristiana (Org.); MOTTA, Paulor Roberto Ferreira; SILVEIRA, Raquel Dias da. Servidor
público: estudos em homenagem ao professor Pedro Paulo de Almeida Dutra. Belo Horizonte:
Fórum, 2009, p.332-333.
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GASPARINI, Diogenes. Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coord.).
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MADEIRA, José Maria Pinheiro. Servidor público na atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2006.
MOTTA, Paulo Roberto Ferreira; SILVEIRA, Raquel Dias da. In: FORTINI, Cristiana (Org.). Servidor
público: estudos em homenagem ao Professor Pedro Paulo de Almeida Dutra. Belo Horizonte:
Fórum, 2009, p. 332-333.
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