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opúsculo 19 — Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura — Pedro Bismarck le décollage du zyx24 dafne editor a opúsculo 19 * dafne editora, Porto, Agosto 2009 * * edição André Tavares * design Granjam * d.l. 246357/06 issn 1646–52 53 www.dafne.com.pt le décollage du zyx24 arquitectura, escrita e voo Prólogo Só podemos dar aquilo que já foi dado. Só podemos dar aquilo que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. — Jorge Luis Borges1 Há alguém que escreve, deitado na sombra secreta dessas colunas laminadas pelo sol. Na luz, no vento, no mar, no tempo que se faz pedra, constroem-se, uma a uma, as colunas brancas de Sunion. Mas no limite obscuro da sua sombra, que é afinal a memória, cresce o seu sentido. A pedra faz-se coluna e a coluna faz-se palavra. Não é que toda a pedra será um dia areia fina, mas que toda a pedra já foi outrora areia fina. 3 —De humani corporis fabrica, Andreas Vesalius, 1555— le décollage du zyx24 I Escrita — da indagação A relação que construímos hoje entre escrita e arquitectura produz, correntemente e, por vezes, ingenuamente, duas palavras: crítica e teoria. Mas duas palavras que se provocam dentro de um campo, de algum modo, exíguo e que chegam até nós contaminadas por longos séculos de intensa acumulação de sentidos/estratégias. E se, por um lado, crítica (Grego kritikós), que significava apto a discernir…2, tem ainda um significado etimológico reconhecível, já a origem da palavra teoria (Grego theoria) apresenta-se menos evidente. Para os Gregos, a theoria relacionava-se, sobretudo, com contemplação; olhar para…; examinar,3 e era igualmente, um dos três pilares da doutrina pitagórica (…) a contemplação, a visão absolutamente clara e distinta do cosmos, ou seja, da ordem subjacente a todas as coisas.4 A theoria que é, também, filosofia5 era, assim, a concretização de um olhar outro sobre as coisas, de ver o outro lado, o lado não imediato dos objectos. E, nesse sentido, também na tradição vitruviana, a theoria não era exactamente aquilo que a palavra nos sugere hoje, mas era bem mais uma espécie de campo discursivo de contemplação e acção6. Como nos explica Alberto Pérez-Gómez, theoria relacionava-se com splanchna e era, originariamente, o processo de dissecação das entranhas humanas para uma compreensão do desenho divino do corpo humano, mas igualmente, dos próprios deuses (natureza). Theos era o conhecimento da verdadeira natureza divina e splanchna era o espelho das qualidades divinas do universo que estavam presentes no desenho do corpo humano.7 Não deixa de ser interessante esta permanente relação entre entranhas e céu mitológico que, aliás, vem já desde tempos babilónicos — o labirinto é precisamente a formulação dessa inter-relação que vai da Terra até ao Céu. Nesse sentido, theoria era a compreensão da forma natural e divina que, para Vitrúvio, se deveria reproduzir na construção da forma artificial (humana) — isto é, a arquitectura como reprodução da ordem cósmica. Mas, sobretudo, o que interessa reter aqui é que na tradição vitruviana, nessa continuidade operativa entre corpo e máquina, também teoria e prática se formulam dentro do mesmo corpo (humano e disciplinar) e se produzem e reproduzem mutuamente. 5 —The essential is no longer visible. Atlantic Wall, Magdalena Jetelová, 1994–1995— le décollage du zyx24 II Escrita — do reconhecimento Theoria é essa compreensão do desenho misterioso que se esconde por detrás das coisas. Um reconhecimento das coisas, dos objectos, das circunstâncias, das contingências, para além do seu sentido imediato — na sua formulação meta-física. A escrita como theoria, como indigação-digressão na profundidade concreta dos corpos e do espaço, é a concretização de um sentido que vai para além da simples aparência dos objectos. Por isso, a escrita é, em primeiro lugar, a construção de um reconhecimento (ou a possibilidade de um reconhecimento), a provocação de uma nova ordem de re-coordenadas que se suspende sobre os objectos. Escrever é a possibilidade de re-colocar os objectos, as coisas no mundo. E, para isso, basta compreender aquilo que Foucault nos diz, que não há, propriamente, ordens a priori, pré-definidas e encerradas, o espaço não é uma geometria fixa, euclidiana, mas sim, uma geometria momentânea comprometida irrevogavelmente no carácter voador das próprias coisas.8 Ou, como diria Peter Sloterdijk, a realidade não será exactamente um contigente seguro de feitos,9 mas uma estância contínua de objectos, pessoas, situações, momentos, que se sobrepõem, cruzam, tocam e se perdem nessa interminável dobra do tempo. E é precisamente aqui que se desenha a primeira possibilidade operativa da escrita (e da theoria): a de serem ambas instrumentos operativos para o reconhecimento dessa multiplicidade que é o espaço que habitamos — narrativas, programas, ficções. Isto é, que a escrita se consume e se consuma como dispositivo de relação do eu com os outros, do eu com os objectos, que seja um instrumento de conhecimento do mundo de coisas que habitamos e um laborioso e milimétrico trabalho de reconfiguração, reformulação, dessas relações perdidas na dimensão labiríntica do espaço e do tempo. 7 —De Optimo Statu Reipublicae deque Nova Insula Utopia, Thomas Moore, 1516— le décollage du zyx24 III Escrita — do sentido Mas a escrita não se concretiza apenas como coordenadas freneticamente em divagação, isto é, não termina com o mero reconhecimento dos objectos e da sua natureza. A escrita irá sempre pressupor a construção de um sentido. E o que é o sentido senão a forma íntima de nos suspendermos sobre os objectos? Nesse movimento de reconhecimento (de encontro/reencontro com os objectos) há sempre uma inversão da perspectiva,10 isto é, o momento em que regressamos a nós próprios. Onde reconfiguramos o objecto na nossa paisagem individual: nas nossas memórias, experiências, desejos. Há uma reduplicação da realidade,11 um re-situar do corpo na paisagem dialogante do mundo, vemos o objecto mas vemo-nos, também, a nós próprios. Tal como na experiência da obra de arte, como Heidegger nos explica:12 o objecto que vemos e interpretamos não nos dá o seu sentido próprio, mas dá-nos a possibilidade de um sentido que apenas nós podemos construir. É esta a possibilidade última da obra de arte: não há significados a priori. O que há é a construção de um sentido que começa nas entranhas do nosso corpo, uma theoria encarnada na nossa experiência pessoal e íntima, mas que deverá sair dessa obscuridade para alcançar a possibilidade de um sentido e de uma comunicação — isto é, de um fazer, de um experimentar. Na escrita tanto como na arquitectura — a theoria — a continuidade poética da obra humana no mundo. E o que é o sentido senão a nossa forma de ver o mundo, de nos reflectirmos e suspendermos sobre ele. O lugar onde construímos a nossa própria forma de ver os objectos ou, como escreve Agamben, onde se formula o próprio ter lugar das coisas,13 onde estas existem e alcançam um segredo (um sentido), não no mundo, mas para além deste, na configuração própria do espaço humano — a utopia, a própria topicidade das coisas.14 Isto é, as coisas por si mesmo não configuram nenhum sentido, não fazem espaço. O que realiza espaço é o facto de nós as podermos reconhecer como algo: um desejo, uma memória; de as podermos tocar e movimentarmo-nos dentro delas. Formas arremessadas ao espaço para ver o mundo, reconstruções (u)tópicas da realidade a partir do eu — é isso a escrita, e dever ser isso a arquitectura. E ambas irrompem dessa fissura, silêncio-ocupado onde se funda a natureza poética da obra de arte e do próprio homem. 9 —Pormenor de Perseu salva Andrómeda, Piero di Cosimo, 1513— le décollage du zyx24 IV Escrita — da poiesis Que a escrita apareça da obscuridade inquieta da obra e reconstrua um sentido, um sentido pessoal (um reconhecimento), mas que consume, também, um sentido geral (reconhecível). Deverá ser esse o objectivo da theoria. Mas como reproduzir esse sentido geral, comunicativo, se o sentido se constrói na nossa própria forma individual de ver a realidade e isso será, sempre, algo que não poderá ser importado ou imposto? Por isso, este reconhecível só poderá ser comunicado, não no seu sentido, mas na sua capacidade de provocar (outros) sentidos. É essa a força do poema e a força da arquitectura — a capacidade poética de produzir sentidos. E, por isso, voltamos agora às palavras subtis de Borges que aqui ficaram, sempre, a ressoar: só poderemos dar aquilo que já é do outro. Mas este limite-aparente, esse aquilo que já é do outro, não distorce o sentido da obra (escrita e construída), nem a diminui; antes a reforça, amplifica o seu sentido marcadamente poético. Poético, no sentido mais grego de todos os nomes, da poesia definida por Sócrates e Platão, da poiesis como a força invisível de compreendermos a realidade e o mundo, de um conhecimento que não é dado, mas sim, procurado, através da força da imaginação e do amor (o amor à sabedoria: a filosofia). Amor é sempre a palavra-chave, amor e desejo — a força invisível que potencia a construção do conhecimento. A experiência pessoal da realidade, aquela que constrói as nossas memórias e a superfície infinitamente profunda da nossa epiderme, está, também, nessa colecção de experiências, que são as coisas quase reveladas, os objectos quase desvendados, aquilo que aconteceu nessa circunstância inexorável do tempo e que agora já só existe na nossa memória. Como escreveu Borges, o sentido poético da obra de arte é a recuperação secreta daquilo que perdemos, mas que ainda é nosso: Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdições, agora, são o que é meu (…). Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é ansiedade, e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que os paraísos perdidos.15 11 opúsculo 19 E, assim somos nós, splanchna, teoria e obra simultaneamente, palavra e forma. A continuidade operativa das coisas que somos, mas também das coisas que já não possuímos e que agora perdemos. É esta a natureza poética do homem. E é esse o sentido poético da escrita, construir uma forma pessoal de ver o mundo, provocativa. Por isso, só nos resta fazer como o herói grego Perseu: nunca olhar directamente o rosto pérfido da terrível medusa, Górgona (que transforma com o seu olhar terrível tudo num bloco cinzento de pedra), mas olhar através do reflexo no seu escudo de bronze.16 Nunca olhar directamente a realidade, mas sempre através de uma suspensão própria, Herberto Hélder chamarlhe-ia uma ironia dubitativa.17 Podemos chamar-lhe uma superfície, um escudo de bronze ou um sentido — será sempre a nossa própria forma de ver as coisas, o nosso sentido íntimo, o nosso reconhecimento provocativo e sitiador da realidade. 12 —Colunas gregas no Pergamon Museum, Berlim— — Neue Nationalgalerie, Mies van der Rohe, Berlim— le décollage du zyx24 V Da arquitectura, da escrita e do voo Qual pode ser então esse sentido da escrita na forma arquitectónica, se é na poiesis que a construção do sentido pode ser partilhada e se torna reconhecível? E, então, que fique esclarecido: o sentido da nossa construção pessoal nunca poderá ser partilhado na sua forma pura, como super-imposição de uma ordem que será sempre nossa, mas funcionará apenas como provocante de outros/múltiplos sentidos através da poiesis — é esse o fundamento essencial da escrita e da arquitectura. E só na poiesis é possível a comunicação do sentido, só podemos dar aquilo que já é do outro. A escrita nunca será apenas uma fórmula de revelação ou de desvendamento da obra de arquitectura, ou algo que se situe depois como um discurso posterior. Terá sempre de ser algo que advenha dessa continuidade poética vitruviana. A escrita, não como uma mera crítica analítica da obra, mas como forma precisa de construir uma relação de reconhecimento, que consiga ser também reconhecível através do poder da linguagem poética — o poder sedutor das ideias e das imagens. E, por isso, nessas duas formas que tem construído a historiografia da arquitectura pós-vitrúvio: a tratadística que mais recentemente se (re) formulou na enunciação moderna do manifesto, preferiria uma outra, num regresso a essa forma vitruviana da continuidade poética do corpo no espaço, a palavra na obra e da palavra a crescer na coluna. Isto é, não tanto da escrita como imposição, mas da escrita no seu sentido poético, no seu sentido de reconhecimento e disturbação sísmica, de indagaçãopoética por entre os objectos, por dentro do mundo. Em tempos onde os tratados há muito desapareceram, a theoria já não se poderá formular a partir de regras fixas ou na enunciação de fórmulas. Não poderemos impor uma ordem, poderemos impor somente provocações, inputs, disturbações que produzam efeitos e provoquem outros sentidos. Como escreve Italo Calvino, em tempos de hiper-especialização e cepticismo, a escrita, e eu acrescentaria, a theoria (da arquitectura), só sobreviverá propondo-se a objectivos desmedidos, a empresas que mais ninguém ouse imaginar18. Como o próprio escreve: 15 opúsculo 19 Desde que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam sectoriais e especializadas, o grande desafio da literatura é o saber tecer conjuntamente os diferentes saberes e os diferentes códigos numa visão plural e multifacetada do mundo.19 Propor-se a outros objectivos ou, diria, à fabricação poética de imagens, mas já não as imagens transparentes do espectáculo sem espessura da contemporaneidade, mas essas imagens vitais que outrora foram produzidas pelos antigos Gregos. Como escreve e define lapidarmente Bragança de Miranda, agora dois mil e quatrocentos anos depois das primeiras descrições da Terra vista do espaço, feitas por Platão, agora que já vemos a Terra a partir das escotilhas das estações orbitais: (…) basta para isso não fazer pior do que os poetas antigos, eles que maravilharam a physis com imagens impossíveis, mas vitais: a do voo, da imortalidade, dos milagres. Como disse Rothko, «o propósito da arte em geral é criar novos valores para pôr a humanidade frente a frente como um novo acontecimento, uma nova maravilha».20 Na continuidade poética vitruviana do corpo no mundo e da palavra a fecundar a pedra, é essa a possibilidade poética da arquitectura e da escrita, provocar hipóteses e maquinar desejos. E, por isso, resta-nos fazer como esse singelo avião, o ZYX24, captado pela lente de JacquesHenri Lartigue há quase cem anos atrás: tentar e ensaiar novas formas de nos suspendermos sobre a realidade, criar novos valores e pôr a humanidade frente a frente com um novo acontecimento. 16 —Le décollage du ZYX24, Jacques-Henri Lartigue, Rouzat, 1910— opúsculo 19 Epílogo E, nesse inicio que é, também, o fim, esse só poder dar aquilo que já é do outro, essa pequena subtileza que Borges modestamente nos oferece é em suma, a grande possibilidade da escrita e da arquitectura, o génio último da palavra, da metáfora e da forma construída. Toda a palavra, mesmo a mais frágil, invadirá sempre a pedra mais dura. Na nudez da luz (cujo exterior é o interior) Na nudez do vento (que a si próprio se rodeia) Na nudez marinha (duplicada pelo sal) Uma a uma são ditas as colunas de Sunion —Sophia de Mello Breyner21 18 notas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 Jorge Luis borges, Obras Completas III, Barcelona, Emecé Editores, 1996. <http://en.wikipedia.org/wiki/Critic> <http://en.wikipedia.org/wiki/Theory> José Augusto Ribeiro graça, Os Gregos e o amor da theoria, [Palestra proferida no Departamento de Ciências e técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto], 21 de Novembro de 2001. Idem. Alberto pérez-gómez, Built upon Love, Cambridge, The mit Press, 2006. Idem. Michel foucault, Death and the Labyrinth, London, Continuum, 2004. Peter sloterdijk, Esferas III, Madrid, Siruela, 2006. Foucault, op. cit. Idem. Martin heidegger, A Origem da Obra de Arte. Edições 70. Lisboa, 2007. Giorgio agamben, A Comunidade que Vem, Lisboa, Presença, 1993. Idem. Borges, op. cit. Italo calvino, Seis propostas para o próximo milénio, Lisboa, Teorema, 2006. Herberto helder, Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002. Calvino, op. cit. Idem. José Bragança de miranda «Geografias—Imaginário e controlo da Terra» in José Bragança dee miranda, Eduardo Prado coelho (eds.), Espaços. Revista de Comunicações e linguagens, Lisboa, Relógio de Água, 2005. Sophia de Mello breyner, Geografia, Lisboa, Caminho, 2004. Este texto foi escrito no âmbito do ciclo de conversas sobre livros e arquitectura, Arquitectura à Letra, para a primeira sessão Escrita, organizado pela Dafne Editora, no Porto, em Maio de 2009. pedro levi bismarck (Praia da Granja, 1983) é licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Estudou e trabalhou em Berlim durante dois anos. Escreve regularmente para revistas e magazines online. Organizou a co-organizou diversas iniciativas no âmbito da arquitectura, cidade e cultura urbana. Trabalha e vive no Porto onde está actualmente a preparar o seu doutoramento. i s s n 1 64 6 – 5 2 5 3 opúsculos — Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura — José Capela Pedro Gadanho Godofredo Pereira André Tavares 1 utilidade da arquitectura: 0+6 possibilidades 2 para que serve a arquitectura? 3 delírios de poder 4 as pernas não servem só para andar Rui Ramos 5 elenco para uma arquitectura doméstica Luis Urbano 6 dupli —cidade e a flânerie contemporânea Inês Moreira 7 petit cabanon Susana Ventura Guilherme Wisnik Miguel Figueira Pedro Fiori Arantes João Soares Nuno Abrantes Gonçalo M Tavares Ana Vaz Milheiro Bernardo Rodrigues Miguel Marcelino António Baptista Coelho Pedro Bismarck 8 o ovo e a galinha 9 niemeyer: leveza não tectónica 10 a minha casa em montemor 11 o lugar da arquitectura num «planeta de favelas» 12 o suporte da moral difusa 13 739h/m2 14 arquitectura, natureza e amor 15 as coisas não são o que parecem que são 16 architecture or suicide 17 a beleza invisível das coisas 18 entre casa e cidade, a humanização do habitar 19 le décollage du zyx24