direito à desconexão nas relações sociais de trabalho

Transcrição

direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
DIREITO À DESCONEXÃO NAS
RELAÇÕES SOCIAIS DE TRABALHO
Almiro Eduardo de Almeida
Juiz do Trabalho, Mestre em Políticas Públicas pela UNISC/RS, membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital.
Valdete souto severo
Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, Doutoranda em Direito do Trabalho pela USP/SP,
professora e pesquisadora da FEMARGS — Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS,
membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital.
Direito à desconexão nas
relações sociais de trabalho
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Julho, 2014
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Versão digital - LTr 8001.8 - ISBN 978-85-361-3059-0
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Almeida, Almiro Eduardo de
Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho / Almiro Eduardo
de Almeida. Valdete Souto Severo — São Paulo : LTr, 2014.
Bibliografia.
1. Direito do trabalho — Brasil 2. Relações de trabalho — Brasil I. Título.
14-05735
CDU-34:331 (81)
Índice para catálogo sistemático:
1. Brasil : Direito do trabalho
34:331 (81)
É a verdade o que assombra
o descaso que condena
a estupidez, o que destrói
eu vejo tudo que se foi
e o que não existe mais
tenho os sentidos já dormentes
o corpo quer, a alma entende
esta é a terra de ninguém
sei que devo resistir
eu quero a espada em minhas mãos
Metal contra as nuvens
legião urbana
SUMÁRIO
aPresentação — Jorge Luiz Souto Maior .................................................................
9
introDução.........................................................................................................................
11
1.
a imPortÂncia Do temPo De trabalho e Do temPo De laZer ...
1.1. o tempo de trabalho e o tempo de lazer como elementos de preservação da dignidade da pessoa humana ...........................................
1.2. a importância do tempo para a constituição do sujeito ..................
1.3. a passagem da lógica liberal para a lógica social: repensando o
tempo de trabalho a partir de sua fundamentalidade......................
1.4. algumas considerações sobre a limitação do tempo de trabalho
no mundo ..........................................................................................................
1.5. algumas considerações sobre a limitação do tempo de trabalho
e o direito à desconexão no brasil ............................................................
15
o Direito à Desconexão ....................................................................................
2.1. Definindo o direito à desconexão.............................................................
2.2. a proibição de retrocesso social como argumento de defesa do
exercício pleno do direito à desconexão................................................
2.3. o direito à desconexão em algumas situações práticas específicas
2.3.1. no trabalho a distância ..............................................................
43
43
48
53
53
2.3.2. no tempo de deslocamento ....................................................
65
2.3.3. no idôneo registro da jornada pelo empregador ............
68
2.3.4. nos períodos de descanso ........................................................
73
2.
16
22
26
28
33
8
Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
2.3.5.Na compensação da jornada por folgas............................... 92
2.3.6.Em algumas situações especiais: bancários e motoristas
97
3.A sociedade que temos x a sociedade que queremos.................... 107
3.1.A sociedade que temos: tudo que é sólido se desmancha no ar..... 111
3.2.A sociedade que queremos: nossa responsabilidade pela efetividade do direito à desconexão..................................................................... 114
Conclusão............................................................................................................................ 131
Referências Bibliográficas...................................................................................... 133
APRESENTAÇÃO
tenho a grande honra de apresentar à comunidade jurídica e aos trabalhadores
em geral a mais recente obra conjunta de almiro eduardo de almeida e Valdete
souto severo, que trata de tema extremante importante, o direito à desconexão
nas relações sociais de trabalho.
os autores, ambos juízes do trabalho e grandes estudiosos do direito trabalhista, com qualificação em nível de pós-graduação, abordam a questão com
extrema qualidade teórica, mas também com necessária acuidade, a do destaque
ao trabalhador como ser humano, o que é, dirão alguns, algo óbvio, mas que tantas
vezes se vê relegado ao esquecimento.
É por isso que os autores iniciam sua obra com uma expressão que soa como
advertência: “Jornada é tempo de vida”!
essa frase, pode-se dizer, sem romantismo, já vale a obra, pois inverte todo
o direcionamento teórico jurídico sobre o tema da jornada de trabalho, instituto
tratado pelos juristas trabalhistas como limitação do tempo de trabalho, que se
perde em equacionamentos econômicos a respeito do valor do trabalho além da
considerada “jornada normal”, como se houvesse alguma normalidade em ser explorado por um tempo específico e sem o recebimento do equivalente do trabalho
realizado.
se jornada é tempo de vida, o tempo destinado ao trabalho é subtraído de
outros valores que, igualmente, são importantes ao ser humano.
assim, os autores, acertadamente, quero crer, seguindo a trilha traçada por
otávio calvet(1), dão destaque ao tempo de lazer como elemento da dignidade
humana, que, por óbvio, não pode ser furtado pelo tempo de trabalho, por mais
(1) calVet, otávio amaral. Direito ao lazer nas relações de trabalho. são Paulo: ltr, 2006.
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Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
importante que o trabalho seja para o ser humano e para a sociedade. É que não
existe sociedade sem seres humanos, os quais se constituem por valores que se
desenvolvem, sobretudo, fora da dinâmica do trabalho, que no caso do modelo
de produção capitalista, é, antes de tudo, um trabalho alienado. Como dizem os
autores, “O tempo de vida não pode ser utilizado para servir ao outro, na condição
de objeto.”
Daí falar-se em direito à desconexão, que pode ser traduzido como o direito
ao resgate da subjetividade, que se perde quando o ser humano resta conectado
ao trabalho reificado.
E não é apenas uma questão de lazer, mas uma questão de saúde. Os autores
destacam que sem o tempo necessário para si, abre-se a porta à depressão e ao
suicídio(2).
Esta obra, portanto, é de leitura obrigatória para que se consiga perceber
(juristas e trabalhadores em geral) o quanto a importância dos temas pertinentes
à limitação da jornada para a condição humana — e para a sociedade em geral —
tem sido negligenciada.
Os autores, ademais, fazem esse alerta expressamente ao trazerem o questionamento em torno do tipo de sociedade que, de fato, queremos (e devemos)
construir.
Do ponto de vista técnico, o destaque está na advertência de que o desrespeito
das normas de limitação da jornada constitui “ato ilícito” e não “mero descumprimento”, como quase sempre denominam doutrina e jurisprudência.
Em suma, os autores apresentam todas as razões socialmente relevantes e
os instrumentos jurídicos postos a serviço dos juristas para que se minimizem os
problemas da exploração do trabalho. Isso, por outro lado, acaba fazendo tombar
sobre os ombros dos próprios juristas a responsabilidade pela persistência dos
graves problemas sociais da superexploração do trabalho, que os autores, com
bastante perspicácia, qualificam de “escravidão moderna”. Trata-se de um convite,
para contribuir com a melhora efetiva da condição de vida dos trabalhadores, com
reflexos em toda a sociedade.
A pergunta que fica para quem se dedicar a ler a obra, o que vivamente recomendo, é: vai recusar?
Jorge Luiz Souto Maior
(2) É exemplo a série de reportagens sobre a Foxxconn, fábrica de produtos eletrônicos localizada na
China, que chegou a instalar redes ao redor do prédio, para evitar novas tentativas de suicídio. Existem
vários documentários disponíveis na internet sobre o tema.
INTRODUÇÃO
Jornada é tempo de vida. o ser humano passa a maior parte de seu período
ativo trabalhando, o qual transcorre com as limitações impostas pela “venda” da
força de trabalho dentro de uma relação jurídica. É sob essa perspectiva que as
regras sobre jornada e descanso devem ser examinadas e é exatamente aqui que
o direito à desconexão se inscreve.
Somos, enquanto trabalhamos. É da essência da condição humana a impossibilidade de despir-se de suas circunstâncias psicológicas, de suas necessidades
físicas, de seus anseios e aspirações, durante a realização de uma atividade criativa
ou laboral. Por isso mesmo, o direito à desconexão pode ser visualizado tanto no
ambiente de trabalho, nos interregnos do trabalho, quanto fora dele, após o encerramento da jornada.
a expressão é tomada de empréstimo do colega e amigo Jorge luiz souto
maior, que a utilizou em belíssimo artigo sobre o tema. temos aqui a pretensão de
prosseguir o estudo por ele iniciado, acerca da compreensão da limitação da jornada desde a perspectiva da necessidade que temos de efetivamente viver também
fora do trabalho.
o modelo capitalista de produção, embora tenha capacidade ímpar para se
reinventar e superar crises que lhe são inerentes, já dá nítidos sinais de esgotamento.
a europa, que, após as drásticas experiências de guerra do século xx, procurou
instaurar um capitalismo social, novamente está submersa em uma crise da qual
não sabe como escapar.
os países emergentes da américa latina, que sequer cumpriram as chamadas
“promessas da modernidade”, pois não conseguiram de fato instaurar um regime
democrático inclusivo e socialmente comprometido (apesar — e mesmo diante
— de textos constitucionais ricos em um dever-ser pleno de esperanças), estão
também às voltas com uma nova lógica. a lógica neoliberal, que propõe um nítido
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Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
retorno ao passado, apregoa uma vez mais o afastamento do Estado das relações
privadas, especialmente daquela que se estabelece entre capital e trabalho, como
medida para o desenvolvimento e o progresso social.
Já vivemos essa experiência e talvez o que mais nos angustie atualmente seja
a percepção de que as propostas que se apresentam são insuficientes. Sabemos o
que ocorre quando o Estado “sai da jogada” e permite aos “contratantes”, em condições objetivamente díspares, uma “livre negociação”. Em contrapartida, parece
cada vez menos crível que os indivíduos organizados em sociedade estejam realmente dispostos a ceder ao ideal socialista, colocando em prática as noções de
boa-fé objetiva, solidariedade, confiança, lealdade e, especialmente, submissão
dos mais caros institutos capitalistas (propriedade e contrato) a uma finalidade
social.
Nossa Constituição é exemplo de um pacto entre os ideais capitalista e socialista de sociedade, propondo um capitalismo socialmente inclusivo e responsável.
A prática das relações privadas, especialmente na seara trabalhista, é exemplo de
quanto esse ideal é difícil de ser efetivado.
A lógica que fomenta discussões entre intérpretes/aplicadores do Direito
do Trabalho, o senso comum reforçado pela grande mídia, a clara tendência das
decisões dos tribunais superiores: é nítida a impressão de que tudo de certo modo
“conspira” contra o projeto consitucional, como se em lugar de tentar efetivá-lo,
estivéssemos fazendo um grande esforço para negá-lo.
Dois direitos fundamentais se complementam e assumem especial importância nessa realidade: o direito à limitada duração do trabalho e o direito à desconexão.
A partir dessa temática e assumindo os paradoxos do atual estágio do nosso
sistema capitalista, reforçamos nossa convicção de que o retorno ao liberalismo
em nada auxiliará o desenvolvimento social ou a superação das sucessivas crises
que se apresentam. Pelo contrário, será a efetivação do projeto da Constituição de
1988 que permitirá avanços.
No que diz respeito aos direitos à limitação da jornada e à desconexão do
trabalho o projeto é claro: o trabalho é direito fundamental social contido no
art. 6º da Constituição. O direito a trabalhar não exclui, porém, o direito ao descanso, ao lazer, ao convívio familiar e social — enfim, o direito ao não trabalho.
É preciso pontuar: não estamos aqui tratando do lazer como um fim em si mesmo.
O direito à desconexão do trabalho consubstancia-se no direito de trabalhar
e de, também, desconectar-se do trabalho ao encerrar sua jornada, fruindo verdadeiramente das horas de lazer. Abarca o direito à limitação da jornada e ao efetivo
gozo dos períodos de descanso, que lhe permitem, justamente, a vida fora do ambiente laboral.
Introdução
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Quem primeiro evidenciou o direito ao lazer e à limitação da jornada como
elementos indispensáveis à preservação da personalidade do homem, tanto em
âmbito individual quanto social, foi o colega e professor Jorge Luiz Souto Maior,
em artigo com o título “Do Direito à Desconexão do Trabalho”. Sua defesa intransigente do direito a uma vida individual e socialmente saudável, em um contexto
capitalista em que o acúmulo torna-se quase imperceptivelmente o senhor a
comandar nossas ações, foi a motivação necessária para que déssemos início
a esta empreitada.
O direito à desconexão apresenta-se, portanto, como condição de
possibilidade para que o próprio trabalhar se manifeste socialmente também
como um direito fundamental, e não apenas como um dever. Dito de outra forma,
somente a partir da limitação do tempo de trabalho humano é que podemos
perceber esse trabalho como um direito social fundamental, e não apenas como
ato de exploração.
1. A IMPORTÂNCIA DO TEMPO
DE TRABALHO E DO TEMPO DE LAZER
o trabalho faz parte da existência humana e está presente em sua história
desde o momento em que nos tornamos sedentários. essa afirmação já foi
abordada por nós em outra obra
freud refere que a constituição do ser humano enquanto sujeito depende de
dois aspectos principais: o aspecto erótico ou afetivo e o aspecto social. este último
diz respeito exatamente ao trabalho como condição humana de mundanidade(1),
sem o qual perderíamos a possibilidade de realização social, de reconhecimento
de cada ser humano individualmente considerado como parte do mundo(2).
nesta obra, referimos que:
o conceito de trabalho humano está irremediavelmente relacionado ao
de propriedade privada, marcando as formas de organização, desde que
o homem abandona sua condição nômade. assim, ao estabelecer uma
morada, o ser humano passa a compreender a dupla dimensão do trabalho:
seu caráter social (ser-com-os-outros) e individual (revelador da supremacia
(1) a filósofa hannah arendt ressalta que “[...] o trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo
da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie,
e cuja mortalidade não é compensada por este último. o trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida
individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as atividades individuais”
(arenDt, hannah. A condição humana. 10. ed. rio de Janeiro: forense universitária, 2002. p. 45).
(2) essa noção de vida ativa como parte integrante do espectro social do homem é apropriada astutamente pela era moderna, mediante a disseminação da ideia de que o trabalho passa a representar
meio de resgate da dignidade humana, na mesma proporção em que adquire o status de modo de
sobrevivência do homem moderno.
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Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
do homem sobre as demais formas de vida). Passa a desenvolver sua
capacidade de pertencimento, de tomar para si.
Na medida em que o homem passa a tomar para si, novas necessidades são
geradas, e o trabalho — de meio para a subsistência física e para a realização emocional — passa a constituir o modo pelo qual tal propriedade é
acumulada. Quando a propriedade em si já não é mais suficiente, passa a
ser necessário acumular riquezas(3).
Não é possível negar, assim, que o trabalho possui um valor social intrínseco
e, justamente por isso, apresenta-se como um dos fatores condicionantes da
realização de uma vida digna.
É exatamente por isso que o conceito jurídico de dignidade da pessoa
humana é ainda hoje estudado a partir da teoria de Kant e de seus imperativos
categóricos, dos quais destacamos a máxima de que não devemos tratar o outro
exclusivamente como meio para atingir um resultado.
Não pretendemos, aqui, seguir toda a doutrina que até hoje busca em Kant
o fundamento para a noção de dignidade. Estamos simplesmente pontuando
que, mesmo sob uma lógica estritamente liberal e num contexto completamente
comprometido com a atual forma de organização social, mesmo que não tenhamos
alguma pretensão de emancipação social, dispor do tempo de vida na Terra revela-se condição de possibilidade para uma vida saudável, verdadeiramente humana
e, pois, merecedora do adjetivo ‘digna’.
1.1. O
tempo de trabalho e o tempo de lazer como elementos de
preservação da dignidade da pessoa humana
O Direito ao trabalho afigura-se como condição necessária, ainda que não
suficiente, para que se possa falar em dignidade. Vida digna, de acordo com Sarlet,
é aquela vivida entre cidadãos que respeitem a integridade física e emocional
(psíquica) e, especialmente, a “dimensão social do homem (liberdade de greve
e de associação sindical, jornada de trabalho razoável, repouso, proibição de
discriminação nas relações de trabalho)”(4).
Por isso, para Sarlet, “sem liberdade (negativa e positiva) não haverá dignidade,
ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e assegurada”(5). Portanto,
somente é possível cogitar de liberdade real quando o homem tem condições
(3) SEVERO, Valdete Souto. Crise de paradigma no Direito do trabalho moderno: a jornada. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 2009.
(4) SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 85.
(5) Idem.
Capítulo 1 • A importância do tempo de trabalho e do tempo de lazer
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razoáveis de conforto e bem-estar material, e está inserido em uma determinada
comunidade, da qual pode participar ativamente.
O trabalho é um dos principais elementos que garantem o exercício
dessas duas facetas da verdadeira autonomia. A garantia da liberdade, e pois da
autonomia, inclusive por meio de um trabalho decente(6), constitui o que a doutrina
tem denominado mínimo existencial.
Não podemos ignorar que há mais de dois séculos vivemos numa sociedade
centrada na relação que se estabelece entre trabalho e capital. Trabalhamos para
sobreviver e para viver em meio a nossos pares. Sem um trabalho decente, a
maioria absoluta da população mundial permaneceria (como tantos efetivamente
permanecem) à margem de qualquer forma civilizada de vida social.
O trabalho é, portanto, elemento inafastável da dignidade da pessoa humana,
seja por constituir fonte de subsistência material, seja por seu caráter de realização
do ser social(7) (da troca que nos constitui).
Quanto à sua função de subsistência, é desnecessário tecer mais comentários.
Pode-se dizer que, desde sempre, sua principal função foi justamente a de proporcionar os meios necessários para garantir a sobrevivência do ser humano.
Na típica relação laboral do sistema capitalista, os indivíduos retiram sua fonte
de renda do seu próprio trabalho (empregado) ou do trabalho de quem emprega
(empregador), por meio da mais-valia(8). No sistema capitalista dos tempos atuais,
(6) Utilizamos aqui, propositadamente, a expressão eleita recentemente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para definir trabalho digno. Reconhecemos o caráter fetichizante de expressões
como “trabalho decente”, na medida em que escondem o fato singelo de que qualquer trabalho, para
ser tolerado na sociedade do século XXI, teria de ao menos ser decente. A expressão, entretanto, vem
sendo utilizada de modo recorrente para justificar medidas de proteção a condições de trabalho que
transitam desde a verdadeira escravidão contemporânea às formas mal disfarçadas de sujeição de
trabalhadores que se acreditam ‘colaboradores’ do capital.
(7) Embora Marx não se refira, em suas obras, à ontologia do ser social, aqueles que o estudaram identificam nele uma nítida preocupação em ultrapassar o caráter individualista das análises econômicas,
políticas e sociais, para alcançar um exame da realidade a partir do caráter social do ser humano. Quando
Marx identifica o conflito entre a classe trabalhadora e a classe burguesa, não está tratando de questões
individuais, mas do caráter social que permeia o indivíduo e o constitui. O trabalho, portanto, longe de
ser apenas uma forma de constituição do sujeito, como pontua Freud, por nós anteriormente citado, é
uma forma de organização e identificação social, é nosso modo de ser-no-mundo.
(8) Marx trata desse caráter do trabalho, como meio de subsistência, numa passagem extremamente
atual e esclarecedora dessa condição humana: “Il lavoro è però l´attività vitale propria dell´operaio, è la
manifestazine della sua propria vita. Egli vende a un terzo questa attività vitale per procurarsi i mezzi
di sussistenza necessari. La sua attività vitale è dunque per lui soltanto un mezzo di poter vivere. Egli
non calcola il lavoro come parte della sua vita: esso è piuttosto un sacrificio della sua vita. Esso non è
una merce che egli ha aggiudicato a un terzo. Perciò anche il prodotto della sua attività non è lo scopo
della sua attività. Ciò che egli produce per sé non è la seta che egli tesse, non è l´oro che egli estrae
dalla miniera, non è il palazzo che egli costruisce. Ciò che egli produce per se è il salario; e seta e oro, e
palazzo si risolvono per lui in una determinata quantità di mezzi di sussistenza” (MARX, KARL. Lavoro
Salariato e Capitale. Roma: Editori Riuniti, 2006. p. 19). Interessante que, ao retratar o caráter alienado
18
Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho
muito embora existam outras formas de trabalho que não a de emprego, salvo
raríssimas exceções, o trabalho é o que propicia, direta ou indiretamente, os meios
necessários para a subsistência material dos indivíduos.
Sua segunda característica, porém, é ainda mais revelante para o estudo a
que nos propomos: o trabalho é elemento de constituição do ser social.
Isso porque, além de conferir os bens materiais necessários para o exercício de
sua autonomia, o trabalho tem o condão de fazer o ser humano se sentir inserido
em uma comunidade, desenvolvendo-se socialmente, identificando-se com seus
pares e, assim, constituindo-se verdadeiramente como sujeito.
Com o trabalho, formam-se redes de relacionamento tanto entre colegas
de empresa ou de profissão (relações que dão origem à noção de categoria)
quanto entre trabalhadores e consumidores. Por isso, afirmamos com Freud que
a família (instituição em que desenvolvemos nossos laços afetivos mais intensos)
e o trabalho (atividade para a qual dedicamos a maior parte de nosso tempo de
vigília) representam os mais importantes núcleos de convivência e de constituição
do ser. Acrescentamos, apenas, que o trabalho não apenas constitui o ser, mas
o constitui desde a perspectiva da sociabilidade, que é indissociável da própria
condição humana.
Além de sua importância para o desenvolvimento pleno do indivíduo, o
trabalho, portanto, constitui elemento fundamental para a organização do próprio
convívio social. Bem por isso, adquire status de fundamentalidade material nos
ordenamentos jurídicos contemporâneos.
No Brasil, não bastasse tal caráter materialmente fundamental do Direito
Social do Trabalho, temos ainda o reconhecimento de sua fundamentalidade formal
por uma clara opção legislativa(9). Os valores sociais do trabalho aparecem como
fundamento do Estado (art. 1º da Constituição de 1988) e as normas trabalhistas
figuram no título dos Direitos e Garantias Fundamentais.
do trabalho como fonte de subsistência, Marx sublinha a importância da limitação da jornada. Já oferecemos um terço do nosso tempo de vida (oito horas por dia) para a realização de uma atividade laboral
que, mesmo por vezes ajudando a construir nossa identidade como sujeitos, sem dúvida se apresenta,
especialmente em algumas tarefas desumanizadas e repetitivas, como condição de possibilidade da
verdadeira fruição do tempo de vida fora do trabalho.
(9) Segundo Sarlet, os direitos sociais representam decisões fundamentais sobre a estrutura básica do
Estado e da sociedade. Observa que “os direitos sociais de cunho prestacional (direitos a prestações
fáticas e jurídicas)”encontram-se a serviço da igualdade e da liberdade material. Bem por isso, objetivam
“a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com
dignidade”(SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 92. E, no mesmo sentido: SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007). Clara,
aqui, a concepção de liberdade material como efetiva possibilidade de autodeterminação, bem como
da fundamentalidade de que se revestem os direitos que garantem tal autonomia, dentre os quais o
Direito do Trabalho merece destaque.

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