batu marina uban

Transcrição

batu marina uban
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SARIZA OLIVEIRA CAETANO VENÂNCIO
Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc:
a Umbanda em Araguaína
São Luís
2013
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SARIZA OLIVEIRA CAETANO VENÂNCIO
Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc:
a Umbanda em Araguaína
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão, para a obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais.
Área de concentração: Sociabilidades e sistemas
simbólicos – cidade, religião e cultura popular.
Orientadora: Profa. Dra. Mundicarmo M. Rocha
Ferretti
São Luís
2013
3
SARIZA OLIVEIRA CAETANO VENÂNCIO
Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’arc:
a Umbanda em Araguaína
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão, para a obtenção do grau de Mestre, aprovada em 12 de
abril de 2013, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________
Profa. Dra. Mundicarmo M. Rocha Ferretti – UFMA
Presidente da Banca
___________________________________________
Profa. Dra. Taissa Tavernard de Luca – UEPA
Membro Titular
___________________________________________
Profa. Dr. Lyndon de Araújo Santos – UFMA
Membro Titular
___________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti – UFMA
Membro Suplente
4
Para você que suportou a insustentável leveza do
meu ser.
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), pela bolsa de incentivo
à pesquisa. Agradeço também ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão; e à Mary, sempre prestativa em nos atender na secretaria
do programa.
À profa. Mundicarmo Ferretti pela confiança e orientação, com quem tive a
oportunidade de aprender que o trabalho de campo vai além da teoria, e que este deve contar
com criatividade, sensibilidade e disposição. Agradeço por aceitar me orientar mesmo à
distância e por ter paciência de ficar horas no telefone comigo.
À profa. Sandra Nascimento Souza e prof. Lyndon de Araújo Santos pelas leituras
generosas e pelas críticas e sugestões durante a qualificação que contribuíram para a
elaboração final deste trabalho.
Aos professores que, devido às disciplinas, tive maior proximidade: Marcelo D.
Sampaio Carneiro, Igor Gastal Grill, Maristela de Paula Andrade, Benedito Souza Filho
(Biné), Sandra Nascimento Souza e Sergio Figueiredo Ferretti. Obrigada por me apresentarem
as Ciências Sociais.
Aos amigos que ingressaram (2011) juntamente comigo nessa jornada. À Carol
por me fazer olhar para os ônibus sob uma nova perspectiva. Ao Romário, Rafael e Hugo que
mostraram que é possível se apaixonar por política. À Maria Tereza pela paixão à dança e por
me apresentar os florais. À Cris por expressar o desespero, comum a todos, durante as aulas, e
por me iniciar gastronomicamente nas delícias do mangue. À Michelle por me mostrar que
temos que ser acadêmicos, “pero sin perder la ternura jamás”. Ao Paulão por nos proporcionar
viagens cósmicas ao seu universo poético. À Andréa por dividir comigo as apreensões pósmestrado e muitos vinhos e queijos. À Bell por me apresentar os encantos musicais
ayuasqueiros e o Centro Histórico em uma única caminhada. À Nelma pelas intermináveis
conversas via SMS e por me dar uma família em Pinheiro. Ao Allyson pelas caronas
mediadas pelo samba e música clássica, e pelo ombro amigo.
Ao meu esposo por ter me encorajado a cada desânimo, por ter me centrado a
cada surto, por ter lido os textos a cada insegurança e por ter me amado a cada dia.
Aos meus pais e familiares por compreenderem minha pesquisa e aprenderem um
pouco com ela.
6
Aos amigos Braz, Márcio e Plábio que contribuíram para algumas reflexões
teórico-metodológicas e para soluções práticas em momentos decisivos.
Às amigas Leide e Mariana por não me abandonarem e por me tirarem da
pesquisa quando necessário.
Às amigas Laura e Viviane por acreditarem na validade da minha pesquisa e
verem beleza nela.
Às amizades construídas em São Luís, especialmente, Marilda, Eugênia, Bacelar,
Ísis, João Leal, Heriverto e Raimundo Inácio.
Ao Thiago por ter colaborado com os desenhos dos mapas, à Bruna com as
transcrições e Saymon com as fotos.
Por último, mas não menos importante, a todos os meus informantes, pois sem
eles a pesquisa não tomaria os caminhos que tomou. Em especial agradeço a Dona Valdeci e
família por ter aberto não somente as portas da Tenda Santa Joana D’Arc para a realização da
pesquisa, mas também as portas de sua residência fazendo me sentir em casa. Agradeço aos
dirigentes Nazareno, José Rodrigues, Gildete, Maria dos Santos, Maria Alice, Maria Muniz,
Maria do Socorro, Maria Maciel, Percília, Cida, Luís Maranhão, Clezio e Pescocinho por me
doarem um pouco de tempo para contar suas histórias de vida. Agradeço também aos médiuns
das casas visitadas, assim como muitos assistentes que contribuíram, cada qual ao seu modo,
para o desenrolar da pesquisa.
7
“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco
ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água
de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não
me chegue”.
Riobaldo – Guimarães Rosa (2001, p.32)
8
RESUMO
A presente investigação tem por base o trabalho de campo realizado em Araguaína no norte
do Tocantins. A cidade, assim como a região, é marcada por diversos fluxos migratórios
responsáveis por seu povoamento. Os principais fluxos são oriundos de Estados como
Maranhão, Piauí, Pará e Goiás, principalmente após a década de 1940. Esta dissertação visa
analisar os processos de institucionalização e ressignificação da Umbanda a partir do contexto
de fronteira marcado por estas diversas migrações. Assim, um terreiro foi escolhido para
compreender como alguns símbolos, significados e significantes são readaptados e traduzidos
num contexto plural e em constante modificação como é o caso da cidade de Araguaína.
Alguns destes elementos são do Tambor de Mina ludovicense, do Terecô codoense, da
Umbanda piauiense influenciada pela tradição juremeira nordestina e da pajelança do Pará. O
objetivo é entender como tais traduções contribuíram para o hibridismo presente nos rituais da
Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc.
Palavras-chave: Umbanda; Araguaína; Hibridismo.
9
ABSTRACT
The present work is based on fieldwork done in Araguaína, in the north of Tocantins. The city
is marked, as the region, by several kinds of migration, which are responsible for its
settlement. The mainly migrations are from states like Maranhão, Piauí, Pará and Goiás,
especially after the 1940s. This dissertation aims to analyze the processes of
institutionalization and resignification of Umbanda in this context of frontier marked by
various migrations. Thus, a terreiro was chosen to understand how some symbols, meanings
and signifiers are readapted and translated into a plural context changing constantly as
Araguaína city. Some of these elements are from Tambor de Mina ludovicense, Terecô
codoense, Umbanda piauiense influenced by the northeastern tradition of Jurema and
pajelança of Pará. The objective is to understand how such translations contributed to the
hybridity in the Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc rituals.
Keywords: Umbanda; Araguaína; Hybridity.
10
LISTA DE FIGURAS
FIGURA I – Mapa do Tocantins ............................................................................................14
FIGURA II – Primeira incorporação da jovem Valdeci ...................................................... 111
FIGURA III – Salão, residência e loja em Araguatins ........................................................ 120
FIGURA IV – Jovem Valdeci com José Bruno de Morais ...................................................121
FIGURA V – Certificado de batismo de Valdeci Pereira Reis ............................................ 122
FIGURA VI – Salão e médiuns de Dona Valdeci em Araguatins ....................................... 124
FIGURA VII – Rei Sebastião em 27 de setembro de 1980 ................................................. 127
FIGURA VIII – Lago de Iemanjá ....................................................................................... 137
FIGURA IX – Altar da Tenda Santa Joana D’Arc .............................................................. 139
FIGURA X – Planta baixa do terreno de Dona Valdeci ...................................................... 142
FIGURA XI – Lavagem de cabeça e Amassi ...................................................................... 171
FIGURA XII – Reza do terço no dia 20 de janeiro de 2013 ............................................... 172
FIGURA XIII – Foto Rei Sebastião na festa de 2013 ......................................................... 175
11
LISTA DE QUADROS E TABELAS
QUADRO I - Indígenas na Capitania de Goiás no séc. XVIII .............................................. 34
QUADRO II - Igrejas Católicas em Araguaína (2012) ......................................................... 56
QUADRO III - Escolas conveniadas de Araguaína e seus mantenedores ............................. 63
QUADRO IV - Campo religioso afro-brasileiro de Araguaína ............................................. 76
QUADRO V - Dirigentes e suas tendas por dias de trabalhos semanais ............................... 90
QUADRO VI - Estado e data de nascimento dos dirigentes por ano e motivo da migração
para Araguaína .............................................................................................. 91
QUADRO VII - Umbandistas de Mesa ................................................................................. 98
QUADRO VIII - Linhas da Umbanda na Tenda Santa Joana D’Arc .................................. 145
QUADRO IX - Entidades de Dona Valdeci ........................................................................ 164
QUADRO X - Calendário festivo da Tenda Santa Joana D’Arc ......................................... 168
TABELA I - Crescimento populacional de Araguaína (1970–2010) .................................... 47
TABELA II - Residentes no Tocantins por unid. da federação de nascimento (1991–2000) ...................... 48
TABELA III - População residente em Araguaína segundo as religiões principais ............. 56
TABELA IV - População total residente em Araguaína por religiões afro-brasileiras ......... 82
12
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................................. 15
Capítulo I – “Aqui não tem isso não, professor”................................................................. 32
1.1 – E nasce um estado........................................................................................................... 34
1.2 – Nasce uma rodovia e surgem cidades............................................................................. 39
1.3 – Denominações religiosas em Araguaína......................................................................... 51
1.3.1 – Saúde, Educação e Religião com os Orionitas............................................................. 52
1.3.2 – Protestantes e Pentecostais: velhas disputas em novos lugares .................................. 57
1.3.3 – Umbandistas e a caridade............................................................................................. 63
Capítulo II – Campo religioso afro-brasileiro em Araguaína............................................ 72
2.1 – Entre lembranças dos que se foram e atividades dos que ficaram.................................. 76
2.1.1 – “Os antigos que trabalhavam perfeitamente morreram”.............................................. 78
2.1.2 – “Esses são os que desistiram”. .................................................................................... 84
2.1.3 – Salões com gira em atividade....................................................................................... 88
2.1.4 – Umbandistas de mesa, “os cientistas”. ........................................................................ 97
Capítulo III – “Lá vem ela Joana D’Arc e já estava guerreando”.................................. 106
3.1 – “A Umbanda só tem porta de entrada, não tem de saída”. ........................................... 110
3.2 – “Dai de graça tudo aquilo que recebestes de graça”. ................................................... 125
Capítulo IV – Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc ..................................... 136
4.1 – Entidades espirituais cultuadas .................................................................................... 143
4.1.1 – Entidades das águas .................................................................................................. 147
4.1.2 – Entidades das matas .................................................................................................. 150
4.1.3 – Linha do Oriente ....................................................................................................... 153
4.1.4 – Linha dos Ibejis ......................................................................................................... 156
4.1.5 – Outras divisões .......................................................................................................... 158
4.2 – Atividades, festas e rituais realizados. ......................................................................... 167
4.2.1 – Festa do Rei Sebastião de 2013. ................................................................................ 170
4.2.2 – Ritual de Mina de Cura Pena e Maracá ..................................................................... 176
4.2.3 – Ritual da Roça de Jurema .......................................................................................... 179
13
4.3 – Adaptações e ressignificações ...................................................................................... 187
Considerações Finais ........................................................................................................... 189
Referências ........................................................................................................................... 194
Anexo encartado .................................................................................................................. 200
14
FIGURA I – Mapa do Tocantins
15
INTRODUÇÃO
Aprendi depois, que o medo vem daquilo que não se
entende e não se consegue decodificar (CONCONE,
1987, p.14).
Era abril de 2011 quando os pesquisadores e professores Sérgio e Mundicarmo
Ferretti nos convidaram para assistir a um ritual afro-religioso no Ilê Axé Ogum Sogbô, um
terreiro1 de Tambor de Mina no bairro da Liberdade em São Luís, MA, cujo zelador da casa é
conhecido como Pai Aírton. Era a primeira vez que estávamos tendo contato com tal religião.
Ali, na casa, vimos que se tratava de uma festa e nos deparamos com diversas pessoas
vestidas de branco, as quais andavam em círculo dentro do salão. Sentamo-nos nas laterais da
sala e pudemos ver uma mesa repleta de colares coloridos e de todos os tamanhos; diante de
tanta beleza e com certo interesse, indagamos ao professor Sérgio Ferretti em qual momento
venderiam aqueles colares; ele olhou como se não acreditasse na pergunta e respondeu, entre
sorrisos, que aqueles colares eram das entidades. Nosso desconhecimento dos rituais em
particular e da religião em geral ficou claro para os dois pesquisadores naquele momento. Mas
a partir daí um interesse antigo e uma curiosidade de infância pelas religiões afro-brasileiras2
ressurgiram em nós.
O fato de termos uma mãe maranhense e termos crescido ouvindo histórias de sua
experiência “real, maravilhosa e fantástica” com as religiões mediúnicas contribuiu para nossa
curiosidade pelo assunto. Ela sempre apresentava um lado mágico de seus contatos com o
kardecismo ou mesmo com o “terecô”.3 Para uma criança, tais narrativas soavam como um
verdadeiro conto de fadas, em que poções mágicas, poderes, milagres e segredos encantavam
e faziam desejar ver e viver tal experiência. Ainda que crescessemos ouvindo essas histórias,
frequentávamos uma igreja protestante, a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que nada via de
1
Os termos terreiro, tenda, centro, casa e salão, entre outros, são utilizados pelos frequentadores e
pesquisadores para se referirem ao local onde são realizados os rituais religiosos afro-brasileiros. Em Araguaína,
ainda encontramos dirigentes que se referiam aos seus salões como igreja ou casa de oração. Contudo,
acreditamos que nestes últimos dois casos, de forma especial, o uso dos termos pelos dirigentes faz referência
aos templos cristãos. Essa apropriação de termos do cristianismo nos parece ser uma tentativa de diminuir o
preconceito e estigma, buscando maior aceitação local.
2
Utilizo o termo religiões afro-brasileiras por acreditar que este “designa uma pluralidade de manifestações
religiosas [crenças e práticas voltadas para o sagrado] organizadas geralmente no Brasil bem antes da abolição,
por africanos e seus descendentes, onde são cultuados e se entra em transe com entidades espirituais dos povos
ou ‘nações’ jeje, nagô, angola, ketu e banto, como: voduns, orixás e inquices” (FERRETTI, M., 2008).
3
Religião afro-brasileira iniciada em Codó, Maranhão, bastante difundida na capital e no interior do estado. São
cultuados voduns africanos jeje-nagô, mas os transes ocorrem principalmente com “voduns da Mata” ou
caboclos. Embora o Terecô seja um culto afro-brasileiro, este dá maior ênfase às práticas curativas do que o
Tambor de Mina (FERRETTI, M., 2001).
16
mágico e maravilhoso nas religiões afro-brasileiras. Assim, foi com duas noções dessas
religiões que crescemos: uma “mágica real maravilhosa”, proferida pela mãe, autoridade
familiar; outra “demoníaca” proferida pela igreja, autoridade religiosa. As duas noções
convivem de forma confusa, ainda hoje. O medo e temor de visitar os terreiros são
desencorajados diariamente pela “criança” curiosa e sedenta de viver sua experiência mágica.
Mas essa “criança”, muitas vezes, se reprime e se assusta quando as lembranças dos dogmas
cristãos baseados na dicotomia entre o bem e o mal resolvem vir à tona. Durante toda a
pesquisa, este foi nosso maior desafio: conciliar duas visões antagônicas.
Aprendemos muito cedo nas disciplinas cursadas no Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais que devemos estar atentos aos obstáculos que impedem o
desenvolvimento do conhecimento científico4. As pré-noções, muitas vezes adquiridas pelas
experiências repetidas e resultantes do conhecimento do senso comum — que é levado pela
ilusão da transparência imediata das coisas —, foram o primeiro obstáculo a ser vencido.
Assim, as literaturas científicas específicas sobre religiões afro-brasileiras foram sendo
estudadas, compreendidas e apreendidas, em detrimento das nossas noções primeiras.
Nosso primeiro contato foi com o Tambor de Mina. O termo mina deriva do Forte
de São Jorge da Mina, na Costa do Ouro, atual República de Gana. Dali, foram trazidos
diversos grupos africanos escravizados para o Brasil. Aos grupos que de lá vieram e que eram
procedentes, especialmente da região do Golfo de Benin, África Ocidental, é comumente
usado o termo mina para designá-los (FERRETTI, S., 2009). Acredita-se, pela tradição oral,
que seja desses grupos que surgiu no Maranhão o Tambor de Mina: manifestação religiosa
afro-brasileira conhecida, sobretudo, no norte do Brasil e iniciada com a Casa das Minas-jeje
e a Casa de Nagô, em São Luís. Na primeira, em especial, são cultuadas e recebidas, em
transe, entidades espirituais africanas (voduns); na segunda, além das entidades africanas,
ocorrem cultos para entidades espirituais que passaram a ser conhecidas pelos negros no
Brasil como gentis, nobres europeus associados a orixás, e caboclos ou encantados, entidades
de etnias e nacionalidades diversas (FERRETTI, M., 2000).
Nos estudos sobre o Tambor de Mina, o termo “encantado” aparece como
representativo das religiões do Norte e Nordeste do Brasil. Na análise mítica dos encantados,
estes são apresentados como seres que teriam vivido na Terra e não experimentaram a morte.
Teriam se encantado, tornando-se invisíveis. Entre estes podemos encontrar espíritos de reis,
nobres, índios, turcos e até de animais (FERRETTI, M. 2000, 2008; PRANDI, 2004). Mircea
4
Ver BACHELAR, Gaston (1996); BOURDIEU, Pierre (2004).
17
Eliade (1994), nas suas pesquisas sobre mitologias, detalha como ocorreu a mudança de
perspectiva nos estudos dos mitos do século XIX para o XX. Se antes estes eram
compreendidos como “fábula”, “invenção”, “ficção”, agora passam a ser analisados à luz da
compreensão de seus povos, em que o mito narra uma “história verdadeira” e “preciosa por
seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 1994, p.07). O mito, assim, seria
uma narrativa que “conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial” pelos deuses ou Entes Sobrenaturais (ELIADE, 1994, p.11).
Tais quais as pesquisas no âmbito mitológico “mineiro”, encontramos os mitos
dos orixás. São diversas narrativas que contam a criação do mundo e de como ele foi repartido
entre os orixás, assim como diversas situações que relacionam os deuses com os homens, com
os animais e as plantas, com os elementos da natureza e a vida em sociedade. Autores como
Reginaldo Prandi (2001), Lydia Cabrera (2004), Roger Bastide (1978) e Pierre Verger (1981)
nos agraciaram com histórias semelhantes em suas obras sobre o mesmo tema com narrativas
recolhidas no Brasil, na África e em Cuba. Além de tais estudos, há monografias,
dissertações, teses e artigos diversos sobre os mitos não só dos orixás, mas também de outras
entidades do panteão das religiões afro-brasileiras.
A partir dos primeiros contatos com a extensa bibliografia e as visitas esporádicas
a alguns terreiros, começamos a delimitação do tema de nossa pesquisa em 2011; mas não
sem outro obstáculo: a “tentação do pitoresco” (BEAUD, S. e WEBER, F. 2007) quando da
escolha de um tema e um campo. Assim, temas exóticos, estranhos e bizarros buscando uma
descrição minuciosa de detalhes, mas de maneira descontextualizada no universo das religiões
afro-brasileiras, pareciam emergir com facilidade. Somente quando voltamos à cidade de
Araguaína, local de nossa residência, e entramos em contato com seu campo religioso foi que
nos deparamos com uma religiosidade distintamente configurada daquela encontrada em São
Luís. Foi assim que o nosso primeiro contato com a Umbanda e a delimitação do tema
ocorreram, pois todos os dirigentes5 dos terreiros de Araguaína se autodenominavam como
umbandistas.
Para Bourdieu (2005), a constituição de um campo religioso está formada por um
corpo de especialistas detentor do conhecimento e da gestão dos bens de salvação e por leigos
que são destituídos do capital religioso. Essa noção de especialistas está ligada à noção de
sacerdotes e intelectuais, que por sua vez se liga ao discurso e à escrita (p.38). Há, nesse
5
Os termos pai de santo e mãe de santo são os mais conhecidos na literatura especializada. Mas aqui usamos
dirigente ou presidente de mesa quando nos referirmos a eles/as porque não aceitam tais termos. Dizem que pai
de santo é Deus, e mãe de santo é Maria. Eles simplesmente zelam dos santos, sendo até mesmo chamado pelos
médiuns de padrinho e madrinha, referência ao batismo realizado quando da iniciação à religião.
18
campo religioso, conflitos e disputas pelo poder simbólico, pelo poder de produzir práticas e
crenças religiosas para legitimar e justificar o interesse e a posição social daqueles
pertencentes às classes dominantes. O discurso entre dominantes e dominados socialmente é
dissimulado pela oposição, no campo das religiões, entre religião e magia, sagrado e profano;
e “toda prática e crença dominada está fadada a aparecer como profanadora, na medida em
que (...) constitui uma contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado e, portanto, da
legitimidade dos detentores deste monopólio” (p.45).
De fato empregamos aqui o termo campo religioso proposto pelo autor; mas
fazemos ressalvas quanto à sua aplicação no caso das religiões afro-brasileiras.
Compreendemos que uma maioria expressiva dos “especialistas” nessas religiões não pode ser
comparada com os sacerdotes cristãos, já que a tradição cristã (católica e protestante) se apoia
na escrita, e a tradição das religiões de matriz africana se baseia na oralidade. Outro fator que
deve ser levado em consideração ao utilizarmos o termo é que as religiões afro-brasileiras não
são religiões salvacionistas (PRANDI, 2008), mas integracionistas que visam integrar todos
os “elementos do cosmos” (natureza/homem/deuses). Acreditamos que, com essas ressalvas,
seja possível o uso do conceito de campo religioso; sem elas estaríamos contribuindo para a
negativização das religiões afro-brasileiras em geral e da Umbanda em particular, pois em
Araguaína o domínio da produção dos sistemas simbólicos religiosos estaria relegado às
igrejas de matriz cristã (católicos e evangélicos).
Quando da procura na cidade por terreiros, descobrimos que as palavras terecô e
terecozeiro eram muito usadas pela população em geral para se referir a religiões afrobrasileiras da cidade e seus praticantes ou frequentadores. Porém, percebemos que, embora
tais designações fizessem referência à religião afro-brasileira surgida em Codó, MA, e fosse
conhecida em todo esse estado, não era dessa religião especificamente que os dirigentes dos
terreiros encontrados diziam ser praticantes; e mesmo com as diversas variações rituais e
míticas encontradas entres as casas em Araguaína, todos se definem como umbandistas. Nesse
sentido, notamos que o termo “terecozeiro” está inserido num campo semântico e discursivo
muito semelhante ao da palavra macumba, pois é usado no senso comum da região como
sinônimo pejorativo, de acusação para todo praticante de qualquer religião afro-brasileira.
Contudo, ainda que o termo “terecozeiro” indicasse uma acusação de magia negra
e feitiçaria dentro e fora dos terreiros, muitas vezes o termo era utilizado em tom jocoso. Por
diversas vezes, a dirigente da Tenda Esp. Umb. Santa Joana D’Arc, Valdeci Pereira Reis, após
19
tardes de explicações sobre seus rituais, pontos cantados6 e sua história de vida, nos sorria e
perguntava, de forma brincalhona: “Quando você vai abrir seu terecô?”; ou afirmava: “Agora
você já pode abrir seu terecô!”. Assim, percebemos que o contexto onde os dados são
recolhidos, em especial as narrativas, são de extrema importância para compreendermos a
flexibilidade dos termos nativos.
A princípio, a Umbanda surge como resultado da integração e síntese de tradições
africanas, espíritas e católicas. Autores como Reginaldo Prandi (1995/1996), Renato Ortiz
(1991), Ismael Pordeus Júnior (2008), Candido P. F. de Camargo (1961), Maria Helena V. B.
Concone (1987), assim como outros pesquisadores, têm escrito sobre seu surgimento, dentre
outros recortes diversos. Concone (1987) defende que esse caráter integrador da Umbanda
está situado historicamente em dois movimentos para legitimação da religião: o primeiro — o
“branqueamento” — vincularia a Umbanda ao cristianismo e kardecismo, procurando
distanciá-la da influência negra; no segundo movimento — a “negritude” —, ocorre o oposto:
a valorização da origem africana é assumida num movimento de autovalorização.
Concone (1987) ainda acrescenta que uma tendência de supervalorização dos
elementos indígenas poderia também ser apontada, pois este discurso buscaria uma ênfase no
caráter brasileiro da religião negando vínculos com elementos negros. Porém, a autora pontua
a ambiguidade desta tendência uma vez que na Umbanda alguns caboclos (índios) são
frequentemente visto como negros. Bastide (2006), em direção oposta, vê essa valorização do
índio como o primeiro de vários motivos que levaram “o encontro entre deuses africanos e
espíritos indígenas” nas religiões afro-brasileiras. A este motivo se seguiriam outros como um
nacionalismo com discurso da miscigenação, mudanças nas divisões de origem racial para a
de classes sociais etc.
Uma das narrativas de fundação da Umbanda mais divulgadas pela literatura
acadêmica especializada e pelos umbandistas conta que esta teve seu marco mais importante
em 1908, quando Zélio Fernandino de Moraes, em Niterói, recebeu pela primeira vez o
Caboclo das Sete Encruzilhadas; além disso, ainda no mesmo ano foi realizado o primeiro
culto umbandista. Somente em 1920 foi construído o primeiro centro de umbanda, o qual em
1938 teria ido se instalar numa área mais central no Rio de Janeiro (PORDEUS JR, 2000;
PRANDI, 1995/1996).
Em sua forma clássica, a Umbanda se caracteriza pelo culto a espíritos de pessoas
que já morreram e pela manifestação destes através do transe de possessão. O transe é visto
6
Pontos cantados ou doutrinas são os termos utilizados pelos umbandistas para se referirem às canções entoadas
durante os rituais.
20
como um estado, segundo Concone (1987), de alterações de consciência e comportamento;
enquanto a possessão remete “a um quadro extra somático, cultural, denotando por sua vez
uma crença” (CONCONE, 1987, p.16). Os transes ocorrem, sobretudo, com entidades que
podem ser agrupadas em duas categorias: espíritos de luz — caboclos, pretos velhos e
crianças; e espíritos das trevas — os exus (ORTIZ, 1991). Originalmente, os caboclos nessa
religião se diferenciam daqueles recebidos na Mina, em que são conhecidos também como
encantados; enquanto os exus da Umbanda se diferem das entidades de mesmo nome
cultuadas no Candomblé e em outras denominações religiosas afro-brasileiras (FERRETTI,
M., 2000). Veremos, porém, que a Umbanda realizada em Araguaína agrega, a seu panteão,
os encantados ‘mineiros’, ou seja, “espíritos de pessoas que não morreram”, que são recebidos
durante os rituais, mas numa nova tradução cultural.
Como foi apresentado, o Tambor de Mina é uma religião afro-brasileira iniciada,
segundo estudos, no Maranhão. Porém, assim como a Umbanda teve seu marco no estado do
Rio de Janeiro e se difundiu pelo país (ORTIZ, 1991), o que percebemos é que também o
Tambor de Mina não ficou restrito ao estado maranhense. Segundo Reginaldo Prandi (2004),
foi através da migração que o Tambor de Mina chegou a São Paulo e ao Rio de Janeiro. Da
mesma forma, a Mina chegou ao Pará e ao Amazonas, como demonstraram outros estudos
citados por Prandi (2004), Anaíza Vergolino (1976), Raymundo Maués (2005) e Taissa
Tavernad de Luca (2007). Acreditamos que esta pesquisa tenha ajudado a delinear não só a
chegada da Umbanda a Araguaína, norte do Tocantins, mas também suas adaptações a um
cenário multicultural fruto de diversos entrecruzamentos de povos ao longo da história dessa
região. Assim, foi através da análise da trajetória da dirigente umbandista Valdeci Pereira
Reis e dos rituais observados na Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc que pudemos
cumprir tais objetivos.
Compreendemos que os fluxos migratórios ocorridos, em especial, na região de
Araguaína motivados pela extração de ouro, criação de gado, construção da BR-153 e criação
do Estado do Tocantins contribuíram para as configurações múltiplas das religiões afrobrasileiras na cidade mediante contatos culturais entre pessoas do Pará, Maranhão e Piauí,
estados responsáveis por grande parte da presença populacional migrante em Araguaína. Foi
essa pluralidade de intersecções econômicas, sociais, políticas e culturais que nos fez escolher
tal cidade como recorte espacial para esta pesquisa. Acreditamos que a configuração da
Umbanda analisada por nós ocorreu devido ao fato de que, no processo dessas interações de
povos diversos, surgiam elementos e demandas não familiares. E na ausência do conhecido,
redefinições acabaram por ocupar a cena.
21
É certo que os encontros de povos ao longo da história colaboraram — e
colaboram — para diversificar as religiões e outras áreas. Como já afirmou Sérgio Ferretti
(1995), o sincretismo não é uma especificidade das religiões afro-brasileiras; antes, é
“fenômeno existente em todas as religiões” (p. 91). Historicamente, no caso das religiões
afro-brasileiras, o sincretismo se deu visando adaptar o negro à sociedade colonial e católica
dominante. No caso da Umbanda analisada na cidade de Araguaína, o que vemos é que essas
adaptações ainda ocorrem na tentativa de reconhecimento social. Porém, os sincretismos vão
além daqueles “tradicionalmente” relacionados ao catolicismo, kardecismo e tradições
religiosas africanas. O que encontramos foram adaptações no próprio seio das religiões afrobrasileiras, a exemplo de uma Umbanda que sincretizou elementos do Tambor de Mina e do
Terecô maranhense, da Umbanda piauiense influenciada pela Jurema7 nordestina e da
Pajelança8 paraense e/ou maranhense.
Sérgio Ferretti (1995), escrevendo sobre sincretismo, aponta que há dezenas de
palavras para esclarecer o significado desse vocábulo, mas afirma três variantes que podem
agrupar alguns desses significados: “1 – mistura, junção, ou fusão; 2 – paralelismo ou
justaposição; 3 – convergência ou adaptação” (p.91). Vale ressaltar que não necessariamente
todas essas variantes ocorrem ao mesmo tempo em dada circunstância; mas em diferentes
momentos rituais é possível encontrar a presença de todas elas. Desse modo, não acreditamos
que somente a análise de um ritual na Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc pudesse
nos indicar os sincretismos presentes ali entre as diversas religiões afro-brasileiras; por isso a
observação de diversos e diferentes rituais foi realizada, assim como entrevistas com a
dirigente Valdeci Pereira Reis, a fim de compreender como essas religiões foram se
separando, se misturando, se justapondo, se convergindo e se adaptando no contexto
sociocultural múltiplo de Araguaína.
Concordamos com Geertz (1987) quando este esclarece que cultura,
[...] denota um padrão de significados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas
expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida (GEERTZ, 1987, p. 103).
7
Deriva do Catimbó nordestino, que é apresentado como de origem indígena e tem tido forte influência na
Umbanda, assim como esta nos rituais daquele. Em Araguaína, não encontramos casa que faça uso da bebida da
jurema, mas pontos que se referem a ela são presentes nos terreiros. A Jurema na cidade é mais associada a uma
linha das matas.
8
Também conhecida como pajelança, cura, linha de cura, linha de pena e maracá, linha de maracá ou linha de
mãe d’água. Todos são cultos voltados para a cura (PACHECO, 2004).
22
Assim, as noções e ideias construídas sobre as religiões afro-brasileiras podem ser
expressas mediante símbolos diversos e seus significados nos rituais, os quais são ordens de
significados socialmente estabelecidos e transmitidos ao longo dos anos. Significados
construídos e partilhados socialmente para poder explicar o mundo que os cerca através de
formas simbólicas.
A análise do contexto social do terreiro de Dona Valdeci, assim como de sua
trajetória, foi primordial para estudar os símbolos e seus significados dentro dos rituais, seja
festas, benzimentos ou trabalhos9. Por ser a dirigente uma mulher branca e esposa do
responsável pelos alvarás de funcionamento dos demais terreiros10; por ter sua tenda
localizada em ponto central da cidade (diferentemente dos demais); por ter a única loja de
produtos para Umbanda e por ter tido contatos com dirigentes de terreiros do Maranhão e
Pará, acreditamos na possibilidade e na importância de articular diversas variantes para uma
melhor análise dos rituais, uma vez que parece ser o conjunto dessas diferenças que nos
permite compreender mais os contextos de produções sociais e culturais.
Consideramos o ritual como um sistema de símbolos em que estes são parte
daquele e não devem ser analisados de forma separada, uma vez que os símbolos podem
representar muitas coisas ao mesmo tempo (Turner, 1974). David Cannadine (2006) aponta
que um ritual, para ser mais bem compreendido, deve ser entendido como algo “elástico” e
“dinâmico”. Deve-se considerar suas relações nos contextos sociais, políticos, econômicos e
culturais para chegar aos significados envolvidos em determinado ritual. Desse modo, não
somente o ritual, mas também seus significados estão sujeitos a modificações.
Os trabalhos de Marshall Sahlins (1990) parecem apontar este mesmo caminho. O
autor explica que, quando as práticas são colocadas em ação, ocorre o risco de mudança nelas
e em seus significados. As ressignificações tomam a cena em razão da nova realidade
econômica, regional e social de cada contexto. Assim, acreditamos que os rituais mudam,
assim como seus significados, porque são sistemas simbólicos compostos por significações
transmitidos historicamente. As diferenças entre sistemas simbólicos, segundo Sahlins (1990),
se dariam devido às diferenças de experiências sociais e dos interesses de cada grupo. Desse
modo, a Umbanda realizada na tenda referida, quando do contato com novos contextos
9
Trabalho, sessão, gira, batuque, toque são nomes utilizados para se referir a rituais públicos (cultos) na
Umbanda em Araguaína.
10
Osmar Reis, esposo de Dona Valdeci, é o fiscal da CEUB responsável pela fiscalização, pelo cadastramento e
recadastramento de dirigentes através dos alvarás de funcionamento das tendas e das carteirinhas individuais de
cada médium das casas. Atualmente, Dona Valdeci auxilia o esposo nesta tarefa uma vez que este está
impossibilitado por motivos de saúde de exercer a atividade.
23
religiosos — como é o caso do Tambor de Mina, do Terecô e de uma Umbanda ajuremada —,
diferencia-se do que “originalmente” seria quando da sua criação, no estado do Rio de
Janeiro, e de outras umbandas em que o contexto geográfico não permitiu tais interações.
Em diálogo com a dinamicidade das culturas de Sahlins (1990), encontramos
Homi K. Bhabha (2001) defendendo um conceito de cultura como algo híbrido, produtivo,
dinâmico, aberto e em constante transformação. A cultura seria não mais um substantivo, mas
um verbo (SOUZA, 2004, p.125); verbo este colocado em ação no contexto múltiplo da
cidade de Araguaína, que pode ser compreendida como um “entre-lugar”, com espaço e
tempo intersticiais (BHABHA, 2001); ou seja, um lugar e um momento em que processos
estão sendo produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” propiciam
negociações complexas — e nem sempre pacíficas — de valores culturais distintos que, por
conseguinte, dão início a novos signos e significados de identidade. É assim que olhamos para
a cidade de Araguaína, como uma cidade de fronteira, não onde as coisas terminam, mas “o
lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente” (BHABHA, 2001, p. 24; grifos do
autor), de forma aberta e em constante transformação. Através do estudo da Tenda Esp. Umb.
Santa Joana D’Arc, compreendemos como, nesse espaço fronteiriço, novas identidades afroreligiosas são forjadas em processos de interação simbólica. Por se tratar de uma religião que
não tem, se comparada com o catolicismo, os protestantes históricos e pentecostais, uma
institucionalização expressiva e um código escrito doutrinário e ritualístico; e se a tudo isso
agregarmos as narrativas de migração de seus dirigentes, compreenderemos que é nesse
sentido que a fronteira é um espaço de movimento onde há constantes intervenções e
traduções culturais na religiosidade afro-brasileira da região. Eis por que operar nesse lugar
intersticial é operar com uma gama de práticas diferentes todo o tempo, exigindo um recriarse contínuo de todos.
O recriar-se é pensado à luz do conceito fluido de cultura, que é transnacional e
tradutório — diria Bhabha. Transnacional “porque carrega as marcas das diversas
experiências e memórias de deslocamento de origens”; tradutório “porque exige uma
ressignificação dos símbolos culturais tradicionais” (SOUZA, 2004, p. 125). Assim, no
deslocamento/migração dos indivíduos, os símbolos são traduzidos como signos que passam a
ser interpretados segundo uma multiplicidade de contextos e sistemas de valores culturais, o
que remete ao fato de que “as culturas são construções e as tradições são inventadas”
(SOUZA, 2004, p.126). Assim, compreendemos como entidades símbolos do panteão da
Mina — os encantados — são traduzidas por Dona Valdeci no seu contexto da Umbanda no
Tocantins. Os encantados passam a adquirir outros significados e performances quando
24
traduzidos à luz das experiências religiosas da dirigente. As histórias míticas destes são
reinventadas, reconstruídas a fim de ser abrigados na cosmogonia umbandista como se ali
estivessem desde os primórdios.
Acreditamos que, com essa teoria da tradução cultural proposta por Bhabha, as
três variantes apresentadas por Sérgio Ferretti — que agrupam os diversos significados de
sincretismo — podem ser negociadas à luz da dinamicidade dos processos de interação
cultural. Desse modo é que o conceito de hibridismo do autor indiano parece se comportar,
uma vez que este nega a existência simultânea e pacífica de vários grupos, culturas, línguas,
etc., pois geraria uma homogeneidade. Ele afirma que sua teoria não implica superação da
diferença, em que um terceiro termo surge, formando também uma homogeneidade final. O
autor escreve no contexto do pós-colonialismo, procurando refletir sobre o local da cultura
nesses espaços historicamente marcados pelos contatos entre povos. É num cenário
geográfico e historicamente de encontro de diferenças culturais que se encontra Araguaína,
onde inúmeras formas culturais surgem dessas interações, onde cada grupo se apropria, traduz
e negocia distintamente os elementos culturais. A nós coube analisar o caso específico de um
centro umbandista na cidade para perceber esses processos tradutórios.
A pesquisa foi concentrada na Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc. O
motivo que nos levou a escolhê-la como campo principal de nossa pesquisa se deve a alguns
fatores que a fazem se diferenciar dos demais terreiros da cidade: nele não há instrumentos
musicais nos rituais — usam-se só palmas acompanhando as músicas cantadas (o que
facilitou a tomada de notas para registrar as letras das canções); não há trabalhos nem menção
a Exu (entidade africana) ou a exus (entidades de linha negra existente em muitos terreiros de
Umbanda) como parte integrante dos rituais, seja privados ou públicos; há presença marcante
do binarismo bem-versus-mal no discurso da dirigente; há transe com entidades encantadas
próprias do panteão do Tambor de Mina; a dirigente tem sua trajetória marcada por diversos
contatos interculturais; é a única na cidade que possui um ritual chamado Mina de Cura Pena
e Maracá; o esposo de Dona Valdeci é o responsável pela Confederação Espírita Umbandista
da Brasil11 na cidade.
Além dos fatores objetivos, um aspecto subjetivo nos levou à escolha da casa a ser
estudada: o fato de ser a tenda que, inicialmente, menos nos causava estranheza e medo. É
11
Na casa de Dona Valdeci há documentos referentes a duas instituições: a Federação Brasiliense de Umbanda e
Candomblé (FBUC) e a Confederação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB). Acreditamos que isso ocorra
porque inicialmente Seu Osmar trabalhava como fiscal da FBUC. Contudo, ainda na década de 1970, a CEUB
lança um novo estatuto prevendo a união de todas as federações estaduais a ela. Acreditamos que tenha sido
neste momento a mudança da documentação. Mas essa transição se deu de forma gradual, sendo possível
encontrar fichas cadastrais emitidas ainda na década de 1980 e 1990 com os dados da FBUC.
25
certo que todas essas sensações se dissiparam com o desenrolar da pesquisa, sobretudo
quando das visitas a outros terreiros. Embora seja um estudo mais centrado na Tenda Esp.
Umb. Santa Joana D’Arc, as comparações com outras tendas de Araguaína contribuíram para
compreender a Umbanda praticada e vivida por Dona Valdeci. Nessa casa foram realizadas
entrevistas com a dirigente, assim como observações, para descrever, categorizar e analisar
símbolos, ritos e pontos cantados/canções.
Realizamos a pesquisa em um estudo etnográfico de rituais mais cotidianos, como
os trabalhos semanais, e de algumas festas, os quais nos possibilitaram coletar diversos
elementos para análise e observar os processos e as dinâmicas sociais e religiosas desse grupo.
Acreditamos que esse método tenha sido fundamental para atingir nossos objetivos, uma vez
que tiveram informações que não puderam ser adquiridas através das entrevistas com a
dirigente Valdeci. As observações na casa dela se iniciaram em junho de 2011. Contudo,
somente após o mês de dezembro do mesmo ano que as visitas foram intensificadas. De certa
forma a pesquisa foi encerrada no mês de fevereiro de 2013. Muita das observações realizadas
ocorreram nos dias em que houve trabalhos/rituais abertos ao público — a maioria nas noites
de quarta-feira. Nos dias em que não ocorriam trabalhos, acompanhamos as rezas do terço.
Em diversos momentos, fomos à casa da dirigente durante o dia para observar atividades
como benzimentos e consultas. Normalmente, os atendimentos ocorriam durante a semana,
exceto aos domingos, e sempre no período diurno até às 18h. Seis da tarde era o momento em
que Valdeci firmava12 os pontos do terreiro, ritual este acompanhado por nós algumas vezes.
Roberto Cardoso de Oliveira (2000), assim como outros autores, pontua a
importância de apreender os fenômenos sociais pelo olhar, pelo ouvir no campo e pelo
escrever fora dele. Essas maneiras fazem parte de um todo cognitivo pelo qual se realizam
nossas percepções e nossos pensamentos. Seja no momento da observação ou no momento da
escrita, as três ações se articulam de forma a produzir um trabalho final, em que as condições
de produção dos dados e da escrita devem ser levadas em consideração sempre.
As entrevistas realizadas com Dona Valdeci e os rituais não puderam ser gravados
em áudio ou vídeo, com exceção da festa de São Sebastião em janeiro de 2013, devido à
resistência dela. Em diversos momentos, insistimos na importância da gravação, mas Dona
Valdeci somente sorria, indicando de forma discreta a não aprovação. Assim, todos os dados
referentes à vida da dirigente, bem como suas explicações e opiniões sobre a Umbanda, foram
anotados de próprio punho no caderno de campo durante as conversas. Porém, tomamos o
12
Ritual em que a dirigente acende velas em pontos físicos no terreiro e reza pedindo proteção a entidades.
26
cuidado de cruzar as informações obtidas nas entrevistas com Dona Valdeci com informações
advindas de outras fontes, tais como registros de cartórios, outros informantes, certificados,
diplomas, etc. Quando questionada sobre as razões que a levavam a não querer ter as
informações gravadas ou fotografadas, ela afirmava que “as pessoas podem usar tais
elementos para fazer o mal”.
No sentido simbólico, entendemos a força normativa da crença que rege as ações
dos indivíduos; mas, embora compreendamos que sua realidade seja pautada e informada por
um sistema mítico religioso, acreditamos que o contato da dirigente Valdeci, em momento
anterior ao nosso, com pesquisadores do ITPAC (Instituto Tocantinense Presidente Antônio
Carlos) da área de Pedagogia ajudou a construir sua desconfiança. Ela narrou o fato de que
foram até a casa dela para pesquisar e acabaram estragando uma fita de vídeo VHS dela
contendo filmagens da festa de Rei Sebastião. Também alegou que os pesquisadores do
instituto colheram informações para um livro que seria feito e nunca deram resposta sobre o
material produzido. Acreditamos que a história possa ter fundamento, uma vez que chegou ao
nosso conhecimento que um membro do ITPAC, em dado evento, falou sobre uma pesquisa
que tinha sido realizada nas casas de culto afro-brasileiras da cidade. Porém, quando
buscamos informações no Instituto, não encontramos tal material — tudo indica que o livro
nunca foi publicado; nem conseguimos saber o que foi feito dos dados recolhidos, já que na
biblioteca da instituição não consta nenhum trabalho de conclusão de curso ou outro material
sobre o tema.
Segundo Malinowski (1997), a etnografia deve se pautar nas descrições “das
condições sob as quais as observações foram efetuadas e as informações recolhidas” (p. 18).
Assim, o autor introduz o problema do ambiente social dentro do qual o objeto da descrição
etnográfica está inserido. Tal método nos permitiu a coleta de dados no tempo de sua
ocorrência, ou seja, no momento exato dos rituais, para interpretação posterior. Como modo
de complementar as observações realizadas, lançamos mão de entrevistas, uma vez que estas
são, muitas vezes, a rememoração de um tempo que não nos é possível observar. Assim,
procuramos analisar as entrevistas, linguagem verbal e não verbal, confrontando-as com os
dados já observados. As entrevistas foram realizadas somente com os dirigentes; e, apesar de
não seguirem um roteiro específico, tinham como principal eixo a vida dos dirigentes e sua
iniciação no campo religioso afro-brasileiro. Todas as entrevistas foram realizadas na casa ou
no terreiro dos líderes religiosos. Algumas foram gravadas com recursos de áudio13, outras
13
Alguns dirigentes ainda nos possibilitaram gravação de áudio e vídeo de seus rituais.
27
foram registradas mediante tomada de notas no caderno de campo. As entrevistas foram todas
autorizadas de forma oral pelos informantes; depois foram transcritas e analisadas.
A observação levou em consideração o contexto social dos informantes e o nosso.
No caso daqueles, procuramos abordar questões que dizem respeito ao conhecimento social,
histórico e cultural deles a fim de perceber como tais conhecimentos informaram e informam
sobre as ações deles em sociedade. Nós, pesquisadores, por sua vez, procuramos tornar
familiar aquilo que nos era estranho e estranhar/questionar aquilo que nos era familiar.
Sabemos que nossa presença, por diversas vezes, perturbou o campo empírico, levando tanto
participantes dos rituais a questionarem nossa presença constante nos trabalhos quanto
dirigentes a modificarem rituais por acreditar que fôssemos fiscais de alguma federação de
Umbanda — ainda que nos apresentássemos como estudantes; suscitando em alguns
dirigentes questionamentos sobre seus rituais e mitos; levando diversas pessoas a despertarem
o desejo pelas discussões acadêmicas sobre o tema; por fim, fazendo dirigentes mais velhos
lamentarem o fato de não ter tido oportunidade, quando mais jovens, de estudar e divulgar a
Umbanda nos meios de comunicação. Assim, as relações sociais que se constroem na
pesquisa exercem efeitos sobre os resultados obtidos. O que coube a nós foi reconhecê-las e
analisá-las (BOURDIEU, 2003).
Compreendemos que a reflexão sobre a neutralidade do pesquisador em campo já
nos aponta o fato de que ele é sempre alvo de percepções e impressões de seus pesquisados
(BEAUD; WEBER, 2007). Quando “estamos lá”, em campo, em especial no que tange à
pesquisa etnográfica em religiões afro-brasileiras, acreditamos que a participação é inevitável,
mesmo quando se procura evitá-la. Assim, em muitas casas que visitamos, ainda que fosse
pela primeira vez, várias vezes nos chamavam indicando que a entidade incorporada no
dirigente do salão umbandista queria falar conosco. Em outro caso, nos foi solicitado pedir
permissão à entidade-chefe do salão para que entrevistássemos seu aparelho14 e estudássemos
sua casa. Além do mais, muitas vezes queríamos conversar com as entidades incorporadas nos
dirigentes para saber detalhes de suas histórias míticas. Então, entrávamos nas salas de
consulta a fim de entrevistá-las15. Só nas casas que trabalham com Umbanda de mesa nos
14
Aparelho e cavalo são termos utilizados nos terreiros de Umbanda em Araguaína para se referir ao médium
que recebe em transe uma entidade. Os termos nos levam à compreensão do uso que se espera que a entidade
faça do corpo do médium, sendo este apenas um instrumento utilizado pela entidade para desenvolver suas
atividades, não tendo este domínio nenhum sobre seu corpo e seus atos.
15
Nenhuma entrevista foi gravada em áudio. Em algumas casas a cambona nos acompanhava durante a
conversa. Em outras tínhamos maior privacidade. Outra diferença entre as casas foi o fato de que em algumas as
entidades nos dirigentes eram mais extrovertidas ao narrar suas histórias. Em outras as entidades se
comportavam com tamanha reserva quando o assunto era a trajetória de vida delas.
28
restringimos às informações obtidas mediante entrevistas e observações diretas do ambiente e
da clientela que chegava.
O fato de entrevistarmos e pedirmos permissão para realizar determinadas
atividades para as entidades incorporadas nos dirigentes não significa que estejamos a
hipostasiar o nosso universo empírico. Acreditamos que, para as pessoas que vivem nesse
sistema de crença, é essa realidade mítica — a crença na realidade dos objetos e seres míticos
— que ordena e informa a vida delas. Assim, não poderia “estar lá” se não fosse dando
legitimidade às práticas e noções ali vivenciadas. Os laços de amizade e confiança adquiridos
não nos tornaram membros do grupo, mas nos possibilitaram o reconhecimento como sendo
“de casa”: nos permitindo ter acesso a benzimentos, discussões internas e consultas mais
privadas que em outro contexto não teríamos.
Com base na etnografia e nas entrevistas, buscamos apreender o modo de
configuração da Umbanda na Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc. Isso foi possível
pela análise dos símbolos e significados aos rituais associados, assim como pela análise das
entrevistas sobre a trajetória da dirigente Valdeci e através da comparação com os estudos já
realizados sobre o tema.
Ao final da dissertação apresentamos a bibliografia onde constam todas as obras
referenciadas no texto, assim como as fontes escritas e websites utilizados neste trabalho. Em
anexo se encontra o Mapa Afro-religioso de Araguaína que oferece uma dimensão espacial
dos dirigentes que trabalhavam na cidade, e daqueles que ainda trabalham. As especificidades
destes dirigentes poderão ser observadas nos capítulos do trabalho. Estes estão organizados de
forma a apresentar, primeiramente, uma visão mais geral do campo para só então nos
dedicarmos à análise mais específica.
No primeiro capítulo, procuramos contextualizar historicamente o nosso campo
empírico situado na cidade de Araguaína, estado do Tocantins. Para tanto, narramos a história
dessa região a fim de dar a conhecer seus primeiros nativos — os indígenas — e compreender
a criação do estado no contexto das disputas com Goiás e a criação e o crescimento
econômico e demográfico de Araguaína através dos diversos ciclos econômicos da região. A
construção de tal narrativa foi possibilitada pela análise de dados do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), assim como de algumas obras da historiografia
acadêmica e de obras memorialistas tocantinense. Embora a criação do Tocantins seja recente,
alguns autores já figuram no cenário acadêmico nacional como representantes dessa
historiografia: Palacin (1990), Cavalcante (1999; 2003), Parente (2003; 2005), Giraldin
(2004) e outros. No mesmo caminho seguem pesquisadores que, ao defenderem suas
29
dissertações e teses, passam a integrar esse rol historiográfico: Caixeta (2011), Lopes (2009),
Rodrigues (2008), Motter (2010), Lunckes (2011), Medeiros (2012) etc.
No que tange às obras memorialistas, compreendemos aquelas escritas por
jornalistas, políticos, padres etc. fora do âmbito acadêmico e sem o rigor da pesquisa e análise
científica. São relatos de lembranças pessoais, relatos estes contextualizados historicamente
por eles. As obras dos padres Corazza (2000; 2004) e Tonini (1996) e a de Bruno (2009) são
representativas desse gênero literário. Embora tal gênero esteja vinculado com a articulação
do “eu” e do contexto histórico-social, optamos por agregar-lhe obras que tratam da história
política, social e cultural do Tocantins e de Araguaína, mas que não são narradas pela via do
universo autobiográfico. Estas são de autores como o jornalista, poeta e escritor Jauro J.
Studart Gurgel (1998), do jornalista, músico, compositor e escritor Claudivan Santiago
(2000), do jornalista Otávio Barros da Silva (1996), dentre outros. É interessante apontar que,
neste último caso, todos os memorialistas têm ligação direta ou indireta com a Academia
Tocantinense de Letras (ATL) e/ou com a Academia de Letras de Araguaína e Norte
Tocantinense (ACALANTO).
Dando sequência ao primeiro capítulo, a configuração religiosa do município nos
primeiros anos de sua criação é apresentada com a finalidade de compreender o cenário
religioso atual, assim como as relações pautadas na animosidade entre as religiões cristãs e
afro-brasileiras na cidade. Para traçar esse cenário, realizamos um levantamento das principais
igrejas, as mais antigas da cidade, nos anos de 2011 e 2012. No que se refere às igrejas de
matriz cristã, como é o caso da Católica, da Assembleia de Deus e da Batista, fomos até suas
secretarias, localizadas nas matrizes das igrejas na cidade, a fim de tomar conhecimento da
quantidade de igrejas vinculadas a elas. As secretarias nos apresentaram de forma impressa ou
oral números precisos, mostrando-nos certo controle sobre as igrejas pertencentes a tais
grupos.
Quando da procura dos terreiros, a dificuldade foi maior devido à falta de
organização hierárquica entre eles. Mesmo havendo representantes da CEUB na cidade, de
início não nos foi possível ter acesso à documentação das casas registradas. Assim,
primeiramente, conseguimos informações sobre os terreiros existentes e os que existiram em
entrevistas realizadas com os dirigentes que encontrávamos e com habitantes da cidade que,
em conversas informais, indicavam a presença de algum terreiro em determinado bairro —
mas quase sempre sem dar a localização exata. Por fim, o levantamento foi se completando
com as fichas cadastrais a que Seu Osmar, o fiscal da CEUB, nos deu acesso. Com esse
quadro religioso local, pontuamos os trabalhos assistencialistas da Igreja Católica, da Batista,
30
da Assembleia de Deus e dos terreiros a fim de apresentar as contribuições destes para a
sociedade araguainense.
No segundo capítulo, apresentamos as dificuldades encontradas quando do
trabalho de mapeamento dos terreiros na cidade. O levantamento foi importante para desenhar
o campo religioso afro-brasileiro da região atualmente e rascunhar esse campo no passado.
Para melhor explicação, categorizamos os dados obtidos entre os dirigentes que ainda estão
vivos e os já falecidos. Num segundo momento, dentre os que estão vivos, fizemos outras três
divisões: os dirigentes vivos, mas sem atividade atualmente; os dirigentes que trabalham com
mesa16; enfim, aqueles que têm salão com gira17. Porém, resolvemos não falar da tenda de
Dona Valdeci nesse tópico, uma vez que o capítulo terceiro será dedicado a ela.
No capítulo III, centramos as atenções na trajetória de vida da presidente da Tenda
Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc, Valdeci Pereira Reis. Seus primeiros contatos com o
universo afro-brasileiro se dão ainda quando era criança, mesmo que venha de família
católica, mas é somente após o casamento que se efetiva sua aproximação da Umbanda de
modo mais sistemático. No fim da década de 1970, já em Araguaína, Dona Valdeci se instala
por definitivo, construindo uma significativa trajetória na Umbanda da cidade. As entrevistas
que realizamos sobre a trajetória religiosa da dirigente, assim como algumas de suas noções e
interpretações sobre a Umbanda, apontam o fato de que as diversas migrações e os contatos
que Dona Valdeci vivenciou durante sua vida contribuíram para suas escolhas e concepções.
O quarto e último capítulo é onde centramos a descrição e análise da tenda. Esta é
compreendida tendo em vista seu espaço físico, suas entidades, suas festas e seus rituais.
Embora tenhamos assistido a dezenas de trabalhos e festas, resolvemos descrever aqui aqueles
rituais que mais evidenciam as interpretações da Umbanda de Dona Valdeci. Assim, a festa de
Rei Sebastião, um ritual de Mina de Cura e um trabalho na Roça de Jurema foram os
escolhidos para ser descritos. Poderemos perceber que um discurso pautado pelo dualismo
cristão entre o bem e o mal, em que se pressupõe antagonismo entre as partes, é marcante nas
falas e práticas do corpo mediúnico desse terreiro — dirigente, médiuns, sócios. Com as
descrições e análises realizadas, buscamos demonstrar como as traduções culturais, mediante
negociações, misturas, justaposições, adaptações, adesões e outros procedimentos, foram
16
Atividade espiritual realizada por algumas pessoas de forma individual, sem envolvimento de grupo. A mesa
é, muitas vezes, sinônimo de altar, onde ficam, além dos santos, as cartas de tarô, a bola de cristal etc. para ser
utilizadas nos jogos divinatórios durante as consultas particulares.
17
Termo utilizado em referência ao movimento circular no sentido anti-horário realizado pelos médiuns durante
os trabalhos, rituais.
31
contribuindo para a configuração específica que a Umbanda assume na Tenda Espírita
Umbandista Santa Joana D’Arc.
32
CAPÍTULO I
“AQUI NÃO TEM ISSO NÃO, PROFESSOR”
Neste capítulo, procuramos contextualizar nosso campo empírico, situado na
cidade de Araguaína, localizada no norte do estado de Tocantins. Para tanto, faz-se necessário
um retorno à história da região a fim de conhecer seus primeiros habitantes e os contatos
colonizadores a partir do século XVIII, compreender a criação do estado à luz das disputas
entre sul e norte de Goiás, assim como a fundação e o crescimento econômico e demográfico
de Araguaína com a construção da BR-153. A configuração religiosa do município em seus
momentos iniciais será apresentada com a finalidade de compreender o cenário religioso
atual, assim como as relações pautadas pela animosidade entre as religiões cristãs e as afrobrasileiras na cidade.
A história do estado é ainda muito recente, e pesquisas sobre sua política, cultura,
religiosidade, dentre outros assuntos, ainda estão por ser realizadas. Muito do que se tem feito
até o presente momento está voltado para fatores políticos e econômicos. Na tentativa de
contar um pouco da história de Tocantins e Araguaína, deparamo-nos com dezenas de
informes produzidos e/ou financiados pelo governo estadual e/ou municipal e com uma
dezena de memórias publicadas. Alguns elementos são recorrentes nas narrativas —
memoriais ou científicas — sobre a região: separação de Goiás, construção da BR-153,
chegada e instalação da Ordem Católica Orionita na cidade de Araguaína, fundação desta e
suas transformações sociais e econômicas.
Sobre as religiões afro-brasileiras, por parte da população araguainense, pareceunos haver certa negação e silenciamento sobre a presença das denominações religiosas
pertencentes a tal matriz. A frase que titula este capítulo foi proferida por um aluno da
Universidade Federal do Tocantins na disciplina História da África do curso de História,
campus de Araguaína, em resposta a esta pergunta do professor: “Onde tem algum terreiro na
cidade?”. Essa resposta negativa não foi um caso em particular; outras semelhantes foram
ouvidas por nós dezenas de vezes ao abordarmos as pessoas nas ruas com tal questionamento
quando tentávamos fazer o levantamento dos terreiros presentes na cidade.
Analisando a frase, podemos perceber que o tempo verbal que o aluno emprega é
o tempo presente. O que nos leva a poder interpretá-la de duas formas: a) atualmente não
existem terreiros em Araguaína, mas no passado existiu; b) Araguaína não tem nem nunca
teve terreiro, quem sabe nunca terá. Outros elementos que se agregam à linguagem do
referido aluno são os sinais corporais (de espanto e repúdio) e a ênfase na resposta. Esse
33
conjunto de signos verbais e não verbais pode ser lido como referência à interpretação “b”
proposta por nós. Mas não descartamos a possibilidade da interpretação “a”, uma vez que
muito se tem dito, pelo povo de santo18 de Araguaína, sobre a quantidade de terreiros que
havia na cidade e como tem diminuído. Mesmo com a tentativa do aluno19 de esconder e
negar a presença dos terreiros, descobrimos depois que “aqui” — em Araguaína — “tinha” e
“tem isso” sim!
O silenciamento foi percebido também no meio acadêmico da cidade. Em
Araguaína estão a Universidade Federal do Tocantins (UFT), que iniciou suas atividades em
2003, e duas instituições de ensino superior particulares: uma fundada em 1999 — o ITPAC
(Instituto Tocantinense Presidente Antônio Carlos); outra, em 2005 — a FACDO (Faculdade
Católica Dom Orione). Percorrendo o acervo de monografias produzidas ao fim da graduação
e das especializações das duas primeiras instituições citadas20, constatamos que três21
monografias foram realizadas até o presente com o tema voltado para religiões afro-brasileiras
em Araguaína. Duas delas foram defendidas no curso de História, uma no curso de Geografia
da UFT.
Dentre as monografias encontradas na biblioteca da UFT/campus de Araguaína,
percebemos uma ênfase maior nos temas voltados à política regional, a questões indígenas e
agrárias e à formação docente. Os trabalhos voltados para a religiosidade na região são
poucos. Estes, na sua maioria, são frutos de pesquisas realizadas com os católicos ou os
evangélicos da cidade. O mesmo parece ocorrer quando lidamos com obras dos memorialistas
regionais: há sempre uma ênfase no catolicismo, nos batistas e nos pentecostais, mais
especificamente na Assembleia de Deus, dependendo da profissão de fé do autor. Assim,
concluímos que o silenciamento inclui não só o não dito; também o não escrito, o não
pesquisado. Mais que isso, a resposta do aluno — ouvida tantas vezes — e o silenciamento
escrito nos fizeram questionar quando chegaram os primeiros adeptos das religiões afrobrasileiras em Araguaína, de onde vinham essas pessoas, como foram negociando e adaptando
espaço físico e simbólico, qual é sua representatividade numérica atual e como se dá o
18
Termo usado para designar os adeptos das religiões afro-brasileiras.
Vale ressaltar que esse aluno é policial militar. Assim, não acreditamos que em seu trabalho externo ou interno
ao batalhão ele nunca tivesse ouvido falar das queixas de vizinhos pelo som dos tambores ou outras reclamações
averiguáveis pela polícia.
20
A biblioteca da FACDO não foi pesquisada porque essa faculdade conta com dois cursos — Direito e
Administração.
21
Cabe salientar que, em média, são defendidas 25 monografias por ano no ITPAC e na UFT nas licenciaturas
em História, Letras, Geografia e Pedagogia. No campus de Araguaína da UFT, três cursos são da área das
ciências humanas: História, Letras e Geografia; no ITPAC, Pedagogia e Direito.
19
34
imaginário dessas religiões em uma região predominantemente católica; porém, marcada
pelas igrejas evangélicas.
1.1 – E nasce um estado
A história do Tocantins, quando comparada com a de outros estados, é recente.
Antes da colonização portuguesa, iniciada no século XVIII, a região era habitada por grupos
indígenas que, com a mineração a princípio, depois com a expansão pecuária, sofreram
drásticas reduções populacionais. Segundo Leandro Mendes Rocha (1998), no início da
mineração, a população indígena somava quase 30 mil índios; a maioria pertencia ao tronco
linguístico macro-jê, mas havia também — em menor quantidade — povos pertencentes ao
tronco tupi. Esse autor acredita que, caso se considerem alguns aspectos culturais que não o
linguístico, os primeiros indígenas da então Capitania de Goiás possam ser classificados
assim:
QUADRO I – Indígenas na Capitania de Goiás no séc. XVIII
OS JÊ
•
•
•
•
•
•
Timbira ocidental (Apinajé)
Timbira oriental (Krahó)
Kayapó meridional (Kayapó de
Mossâmedes)
Kayapó setentrional (Gorotire e
Gradahu)
Karajá (Xambioá, Karajá e Javaé)
Akwen (Xavante e Xerente)
OS TUPI
•
•
•
Tapirapé
Tenetehara (Guajajara)
Avá-canoeiro
Como veremos, a extração de ouro, a criação de gado e a construção de presídios
às margens do rio Araguaia e Tocantins contribuíram de forma significativa para expulsar os
índios de suas terras, assim como para o extermínio de muitos deles através de doenças ou
conflitos armados22. Segundo Rocha (1998), foi ainda no século XVIII que ocorreram as
primeiras descobertas de ouro na região da capitania, que atraiu colonos brancos de São
Paulo, da Bahia e do Rio de Janeiro. Em consequência dessa atividade econômica, vários
povoados surgiram de sul a norte do território. A exploração do ouro não durou muito tempo,
22
Mesmo com conflitos e extermínio de boa parte da população indígena na região, o Tocantins conta com
13.131 indígenas. Esse número representa a soma dos índios de sete etnias — Karajá, Krahô, Xerente, Apinayé,
Javaé, Karajá-Xambioá e Krahô-Canela —, além de representações étnicas oriundas de outros estados. Fontes:
IBGE, Censo Demográfico 2010.
35
cedendo lugar para uma nova frente econômica: a pecuária. Se o sul recebia pecuaristas de
mineiros e paulistas, o norte era o lugar de chegada de maranhenses. Referindo-se à região
norte da Província de Goiás23, atual Tocantins, o autor trata de outra leva populacional que
chegou à região no início do século XIX: os “curralistas baianos”, também conhecidos como
maranhenses porque vinham do sul do Maranhão. Tal qual durante a mineração, essas frentes
pecuárias contribuíram para o surgimento de diversas cidades. No caso do Tocantins, foi
quando surgiram São Vicente (atual Araguatins), Boa Vista (Tocantinópolis) e outras. No
Maranhão, nesse mesmo período surgiu Carolina.
A pecuária proporcionou vantagens econômicas para a região. Mas seus principais
representantes, que se viam, de certa forma, isolados do resto do país, percebiam a dificuldade
da exportação e importação terrestre dos produtos gerados pelo gado e pela agricultura, ainda
que esta fosse pequena. Desse modo, “a navegação dos rios Araguaia e Tocantins surgia como
a melhor solução para o problema do isolamento da província e do elevado custo do
transporte de gêneros” (ROCHA, 1998, p. 24). Até 1840, alguns problemas comprometiam a
navegação: a dificuldade de abastecimento para os navegantes, a escassez de mão de obra
para a tripulação e os ataques indígenas. Com relação aos índios, sabemos que, expulsos das
terras pela expansão pecuária, teriam ido habitar nas margens dos dois principais rios da
região, dificultando o transporte fluvial de mercadorias através de ataques constantes.
Esse problema do isolamento da Província de Goiás foi resolvido, segundo Rocha
(1998, p.59), com a criação de presídios e o estabelecimento de aldeamentos sob a direção dos
frades capuchinhos ao longo dos rios Araguaia e Tocantins,
No final da década [1840], o Governo Imperial, com o objetivo de dinamizar a
catequese, funda novos aldeamentos e reforma os já existentes [para promover a
fixação dos índios e utilizá-los como tripulação dos barcos que desciam rumo ao
Pará]. Paralelamente, instala presídios e colônias militares para viabilizar a
navegação, assegurando a mão-de-obra necessária, garantindo o reabastecimento
dos barcos, controlando os ataques indígenas e preparando o terreno para a
expansão da frente pecuária (ROCHA, 1998, p. 59).
Sobre esses presídios, podemos perceber, pelo que diz o autor, não teriam as
características dos presídios atuais como centros de reeducação social para presos. Embora
fossem estabelecimentos penais, eram também — e de forma mais significativa — colônias
agrícolas e estabelecimento militar. “Constituíam um ‘pequeno mundo’, composto de casas
arruadas cobertas de telhas e instalações diversas e complexas: residência do comandante,
enfermaria, casa de arrecadação, carpintaria, ferraria, quartel, casa de administração, casa de
23
A partir do Império, em 1822, a capitania passa a ser chamada de província.
36
engenho e casa de escola” (ROCHA, 1998, p. 71–2). Esse autor aponta os aldeamentos
principais estabelecidos entre 1840 e 1860 e os presídios militares centrais.
Aldeamentos na região do Araguaia:
Janimbú e Santa Maria;
Presídios na linha do Araguaia:
Santa Izabel, Leopoldina, Januária, Santa
Maria, Monte Claro, Jurupensen e São
José dos Martírios;
Aldeamentos na região do Tocantins:
Boa Vista, Pedro Afonso e Tereza
Cristina;
Presídios na linha do Tocantins:
Santa Tereza, Santa Cruz, Santa Bárbara e
Santo Antônio.
É nesse contexto de maiores fluxos da navegação fluvial que retomamos o mito24
fundador do estado. Muitos pesquisadores defendem a tese de que a criação de Tocantins
ocorreu após diversas sucessões de movimentos separatistas desde 1821; outros apontam
1809 como ponto de partida para as ideias separatistas. Joaquim Theotônio Segurado teria
contribuído imensamente para desenvolver a navegação no rio Tocantins, o que, por sua vez,
aumentara o comércio com o Pará. Como líder local e defensor dos interesses regionais, ele
reivindicou legalmente a autonomia político-administrativa da região e foi atendido com a
publicação do alvará, em 18 de março de 1809, que dividia a Capitania de Goiás em duas
comarcas: a do Sul e a do Norte (RODRIGUES, 2008). Segurado foi nomeado ouvidor para
administrar a Comarca do Norte, onde estavam Porto Real (atual Porto Nacional), Natividade,
Conceição, Arraias, São Félix, Cavalcante, Traíras, Flores e outras cidades25. Esse momento
ficou conhecido pela história oficial como o marco inicial da luta pela emancipação de
Tocantins.
Para os historiadores regionais, os momentos mais importantes desse conflito de
emancipação foram 1821–3, 1956–60 e 1985–8. Todos esses movimentos teriam sido
liderados por pessoas da região norte de Goiás em oposição ao centro-sul (CAVALCANTE,
2003). No período 1821–3, Segurado, longe de se articular com o movimento de
24
Outra compreensão do mito, além daquela em que se busca atribuir sentidos à existência da humanidade,
diretamente relacionada ao sagrado e aos entes sobrenaturais (ELIADE, 1994), é aquela em que estes são vistos
como discursos fundadores elaborados para fins políticos. No caso do Tocantins, o recurso à mitologia ou a
“uma linguagem próxima a uma cosmogonia mítica” procura criar uma representação imaginária de uma
unidade construindo heróis, reatualizando a história e nomeando herdeiros de um “povo” (RODRIGUES, 2008).
25
Os dados apresentados podem ser encontrados no website do governo estadual, os quais são divulgados pelo
estado como a história oficial do Tocantins. < http://www.to.gov.br/>
37
Independência do Brasil, manteve-se fiel a Portugal, mas pleiteava uma administração
independente daquela do capitão-general Sampaio, instalado no centro-sul da província. A
principal reivindicação dos nortistas nesse período era a cobrança de impostos de captação de
ouro, uma vez que as minas do norte tinham valores mais elevados a ser pagos aos cofres
públicos do governo que as minas da Comarca do Sul (CAVALCANTE, 2003).
Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante (2003) enfatiza que de 1956 a 1960 os
projetos do governo federal de expansão do Estado nacional rumo ao interior e de integração
do território nacional contribuíram para reforçar a emancipação do norte de Goiás em relação
ao centro-sul. Esses projetos tiveram como seus principais expoentes a construção da nova
capital, Brasília, no planalto central goiano, e a construção da BR-153 ligando a nova capital a
Belém, Pará. Enfatizaremos esse período mais adiante, embora seja poucas décadas antes do
estado ser criado. Trata-se de um período de grande importância por ter sido o contexto que
propiciou o crescimento populacional e econômico da cidade de Araguaína.
Sobre a terceira etapa da luta emancipatória (1985–8), a autora aponta que as
discussões eram pautadas, sobretudo, nas diferenças culturais e econômicas entre o norte e o
sul de Goiás. Enquanto o
Centro-Sul goiano evidenciava uma sólida integração econômica com o mercado
da região Sudeste do Brasil, acentuavam-se as diferenças internas entre o norte e o
sul do estado [...] A expressividade dessa diferença foi tomada na construção do
discurso autonomista regional a partir das peculiaridades que identificariam,
diferentemente, o Estado do Tocantins e o Estado de Goiás. Dessa forma, observase que cada momento histórico, caracterizado por diferentes contextos, produziu
suas argumentações que justificassem a formação do Estado do Tocantins
(RODRIGUES, 2008, p. 39–40).
Em seu trabalho, Jean Carlos Rodrigues (2008) aponta os discursos produzidos
pelos movimentos separatistas em seus diversos momentos para apresentar uma diferenciação
entre o norte e o sul de Goiás e, assim, construir uma identidade nortista ou tocantinense em
oposição à sulista ou goiana. A historiografia acadêmica tocantinense ou as obras
memorialistas reforçam a diferenciação histórica, social, política, econômica e cultural entre
as duas regiões. Otávio Barros da SILVA (1996) afirma que “[...] desde os primórdios do
desbravamento e povoamento destas ribeiras, sempre existiram dois Goiás: o Sul, colonizado
pelos paulistas e o Norte, colonizado pelo vaqueiro e dono de curral, vindos do Nordeste
brasileiro” (p. 25). Tal afirmação parece procurar a existência de uma separação das regiões
muito antes da criação das duas comarcas. A diferença entre o “desbravamento” pelos
vaqueiros nordestinos e pelos mineradores paulistas trazidas por muitos memorialistas parece
38
guiar nessa direção, uma vez que teriam sido os criadores de gado, e não mineradores de ouro,
que instalaram o governo separatista do norte entre 1821 e 1824 (SILVA, 1996).
Rodrigues (2008) ressalta também o papel da religião como elemento importante
para construir as diferenças entre sul e norte nos discursos na década de 1980. Segundo o
autor, algumas de suas fontes enfatizam que “a ocupação do norte de Goiás no século XVII
foi realizada pelos jesuítas partindo de Belém (Grão-Pará), enquanto o sul foi ocupado pelos
bandeirantes originários de São Paulo” (RODRIGUES, 2008, p. 42). A religião, no caso o
cristianismo, também é analisada pelo autor quando do uso de seus símbolos e significados
por líderes políticos nortistas, como Siqueira Campos na década de 1980, para a construção de
discursos políticos fundadores do Tocantins.
O terceiro momento dos movimentos separatistas se encerra com a criação de
Tocantins, em 5 de outubro de 1988 — pela Assembleia Nacional Constituinte, isto é, com a
promulgação da Constituição Federal — e sua instalação, em 1º de janeiro de 1989. O estado
nas suas regiões limítrofes faz fronteira com Mato Grosso, Pará, Bahia, Goiás, Piauí e
Maranhão. A criação do novo estado pode ser constatada no artigo 13 das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988: “Art. 13. É criado o estado do
Tocantins, pelo desmembramento da área descrita neste artigo, dando-se sua instalação no
quadragésimo sexto dia após a eleição prevista no § 3º, mas não antes de 1º de janeiro de
1989” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Agora, centrando uma análise maior no segundo momento dos conflitos em torno
da emancipação (1956–60), percebemos que todas as mudanças citadas no cenário do CentroOeste têm seus primórdios anos antes. Projetos do presidente Getúlio Vargas na década de
1940 para incentivar a ocupação do Centro-Oeste com o lema “Marcha para o Oeste”, assim
como o Plano Nacional de Desenvolvimento do presidente Juscelino Kubitscheck na década
de 1950, foram fundamentais para criar Brasília, a BR-153 e, depois, Tocantins. O projeto
desenvolvimentista do Governo JK foi, em certa medida, um dos principais responsáveis
pelas transformações sociais, econômicas e culturais de Goiás e, em especial, para o norte
goiano — atual Tocantins (CAVALCANTE, 2003).
No governo de Juscelino Kubitscheck (1956–61), a implementação do plano de
metas com o célebre lema “Cinquenta anos em cinco” e a construção da nova capital do país
— Brasília — fez que houvesse a necessidade de construir uma rodovia que ligasse
geográfica e economicamente as regiões à nova capital. Brasília desempenhava o papel,
segundo Sônia Maria de Souza (2004), de consolidadora e integradora do espaço geográfico
nacional, do país. A construção de rodovias se tornou um ponto central no plano de metas,
39
que procurava ultrapassar os limites do litoral, voltando-se ao centro do Brasil (AQUINO,
2004). No período da construção das rodovias, a economia brasileira estava alicerçada no
crescimento da indústria automobilística e já não era possível depender do transporte fluvial
— por causa da demora — nem do aéreo — por causa do custo. O presidente Juscelino
Kubitscheck, mesmo com oposições políticas, consegue implantar um investimento na
infraestrutura do transporte rodoviário, garantindo assim mais rapidez e economia na ligação
dos principais centros urbanos industriais (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) com as
áreas de produtoras de matéria-prima.
Nesse contexto se encontra Goiás como fornecedor de alimentos para estas outras
regiões e que passou a ter importância no cenário nacional com a construção de Goiânia e,
depois, Brasília. Passa, assim, a ser um estado com desenvolvimento econômico em potencial.
Embora o governo estadual, entre 1956 e 1960, tenha criado políticas em consonância com a
política federal para o desenvolvimento da região, podemos perceber que tal desenvolvimento
se dá em primeira instância nas regiões centro e sul do estado.
Muito se tem escrito na historiografia acadêmica e na literatura memorialista
sobre o “abandono” da região norte e como tal região era quase totalmente isolada das demais
partes do estado e do país. Livres de julgamentos de verdadeiro ou falso, tais discursos devem
ser analisados como construções narrativas dentro de um contexto histórico. Rodrigues (2008)
mostra, em seu trabalho, como o discurso do abandono, do descaso e da exploração contribuiu
para a construção do mito fundador do estado e para suas figuras heroicas — Joaquim
Theothônio Segurado e Siqueira Campos. Desse modo, independentemente de o abandono e a
exploração ser reais ou não, a criação da rodovia Belém–Brasília, ou BR-153, ou rodovia
Bernardo Sayão26, permitiu maior acesso à região norte e à sua população como veremos nos
relatos de padre Remígio Corazza27.
1.2 – Nasce uma rodovia e surgem cidades
Sônia Maria de Souza (2004) aponta que a ideia de construir uma ligação terrestre
entre norte e sul do Brasil já se fazia presente havia, pelo menos, 250 anos. Contudo, as
dificuldades políticas, financeiras e técnicas não tinham ainda permitido tal empreitada.
Assim, só em 1940, ainda no governo de Getúlio Vargas, iniciam-se os primeiros trechos da
26
A rodovia Belém–Brasília é batizada de Bernardo Sayão em 1969 após a morte do engenheiro agrônomo
Bernardo Sayão de Carvalho Araújo, em pleno trabalho.
27
Entrevista realizada em 10 de maio de 2012, no Santuário Sagrado Coração de Jesus, situado no bairro Central
de Araguaína.
40
rodovia que viria a ser chamada de Belém–Brasília. O primeiro projeto, criado pelo deputado
Jales Machado, em 1947, previa um sistema de ligação rodofluvial de Anápolis a Belém; ou
seja: as estradas iriam até o ponto onde os rios eram navegáveis. Em 1956, quase dez anos
após o primeiro projeto, o governo federal aprovava o projeto definitivo da rodovia com
algumas modificações, em especial o abandono das ligações rodofluviais. Somente em 1958 é
que o engenheiro Bernardo Sayão assumiu a direção da rodovia para construí-la nos traçados
que atualmente conhecemos.
Silva (1996) traz informações sobre o advento da Belém–Brasília ainda muito
antes de 1947, completando as informações de Souza (2004). Para o autor, o primeiro projeto
é de 29 de junho de 1934, com o Plano Geral de Viação — decreto 24.497 —, onde consta a
ligação entre Formosa (GO) e Belém. Em 27 de novembro de 1956, com a lei 2.975, o traçado
da rodovia foi modificado: abandona-se o Vale do Tocantins para seguir o divisor das águas
dos rios Tocantins e Araguaia até cruzar a linha divisória entre Goiás e Maranhão. Aquino
(2004), por sua vez, procura apontar que a estrada é anterior ao governo de Juscelino
Kubitschek; noutros termos, na década de 1940 a estrada já conectava as cidades de Anápolis,
Ceres e Rialma, em Goiás. Segundo o autor, em trecho em que cita o ex-presidente Juscelino,
a rodovia “já contava com vários trechos abertos” quando este assume o governo, “porém sem
nenhuma perspectiva de chegar a Belém” (AQUINO, 2004, p. 323).
Com a política rodoviária federal, problemas como acesso a certas regiões e o
escoamento de mercadorias seriam solucionados:
Essa política refletia a preocupação do governo em solucionar problemas ligados à
ocupação do território para deslocar o excedente de mão-de-obra não qualificada.
Desta forma, reduzia-se a pressão populacional nos grandes centros, favorecendo
uma expansão da produção de alimentos e efetivando a integração nacional para
que houvesse um maior domínio sobre o país (SOUZA, 2004, p. 365).
A criação de Goiânia, inaugurada em 1943, a de Brasília, em 1960, e a da rodovia,
pavimentação concluída na década de 1970, formaram o tripé para o desenvolvimento de
Goiás e sua integração ao cenário econômico e político nacional. Além disso, segundo Célio
Costa citado por Souza (2004),
se de um lado proporcionou a integração de Goiás ao Brasil, aquela rodovia
possibilitou ainda a articulação regional dentro do próprio Estado, que vivia com
sua parte norte isolada da outra metade do sul, por absoluta ausência de meios de
comunicação viária. Anteriormente, o intercâmbio mais freqüente do centro-norte
goiano era feito com o norte do país, através da navegação do Rio Tocantins,
41
sujeito a oscilações sazonais, à exceção de alguns trechos de navegabilidade
regular durante o ano inteiro (COSTA, 1985 apud SOUZA, 2004, p. 368).
Para Silva (1996), “o estradão Belém–Brasília veio mudar completamente a
realidade socioeconômica da região Araguaia–Tocantins. O fluxo migratório não parou mais
de crescer” (SILVA, 1996, p. 92). Segundo estudo realizado por Aquino (2004), nos censos
de 1950 e 1980 a população teria quadruplicado na região norte: de 204.041 habitantes passou
para 738.688 na década de 1980. O autor aponta o crescimento da população urbana e redução
da rural, mas enfatiza que não foi somente o êxodo rural interno que contribuiu para tais
modificações; também as migrações de pessoas de outros estados para a região tiveram sua
contribuição. Araguaína, Colinas de Goiás, Guaraí, Miranorte, Paraíso do Norte, Gurupi,
Alvorada e outras são exemplos de cidades que surgem ou se expandem com a presença da
rodovia Belém–Brasília. Para Aquino (2004), a especulação das terras, dada a perspectiva de
sua valorização, foi um grande impacto provocado pela presença da rodovia no norte de Goiás
(atual Tocantins).
A presença de grileiros, o êxodo rural pela incapacidade de muitos moradores de
conservar suas terras e a devastação do meio ambiente, também, fazem parte do rol de
impactos socioculturais apontados pelo autor. Percebe-se, ainda, que a rodovia acaba por
redirecionar de forma desproporcional a economia da região norte, mudando a importância no
cenário estadual de localidades antigas — de acesso exclusivamente fluvial — para novas
cidades próximas à BR-153. Essas mudanças sociais são descritas por Silva (1996) tendo em
conta as transformações do cotidiano dos antigos moradores. “Se antes tinham na caça, pesca
e extrativismo vegetal a sua labuta diária [agora] desconhecendo seus direitos de posse, ou
alheios a suas garantias legais”, esses moradores abandonam suas terras e vão com suas
famílias para os povoados em formação ao longo da Belém–Brasília (SILVA, 1996, p. 92).
Segundo Silveira (2009), são os “novos pioneiros28” vindos do centro-sul que passaram a
adquirir as terras devolutas — áreas que várias décadas atrás vinham sendo ocupadas por
camponeses — e/ou passaram a “grilar” as terras pertencentes a antigos lavradores. Para o
autor, a súbita valorização das terras, as “facilidades econômicas e fiscais oferecidas pelo
governo militar para aqueles que se estabelecessem na Amazônia Oriental eram atrativos
suficientes para os novos pioneiros” (SILVEIRA, 2009, p. 117).
Até a chegada da rodovia, o rio Tocantins era a principal via de acesso,
comunicação e comércio do norte de Goiás com Pará, Maranhão e Piauí. As narrativas
28
Fazendeiros, empresários e grileiros financiados e legitimados pelos representantes do governo estadual e pela
pistolagem.
42
analisadas por Vera Lúcia Caixeta (2010), quando da chegada dos primeiros padres e médicos
ao sertão goiano, nos séculos XIX e XX, descrevem a lentidão das viagens terrestres em
decorrência da “inexistência de estradas. Antes da abertura da BR-153, os tais caminhos
‘reais’, que ligavam as cidades, não passavam de trilhas traçadas pelo gado e pelos pés dos
homens, que desapareciam no cerrado e no interior da mata virgem” (CAIXETA, 2010, p.
143). A dificuldade aumentava em rios que não tinham ponte; o improviso era o que garantia
a travessia. O norte de Goiás, assim, enfrentava muita dificuldade de comunicação com o sul
devido aos problemas de acesso, daí manter mais comunicação com a região Norte, sobretudo
localidades banhadas pelo rio Tocantins.
Silva (1996) aponta o fato de que a construção da rodovia fez que chegassem
vários estabelecimentos de crédito na região, ao contrário de antes da abertura da Belém–
Brasília, quando a população do norte contava só com duas agências do Banco do Brasil: a de
Novo Descoberto (hoje Porangatu, GO) e a de Carolina, MA. Segundo o autor, foi nesse
período que se deu a instalação dos primeiros parques industriais (Araguaína e Gurupi) para
beneficiar a matéria-prima local e quando o SENAI, nas duas cidades já citadas, e as escolas
agrotécnicas, em Pedro Afonso e Araguatins, chegaram a fim de qualificar a população para o
crescimento econômico. Porém, Silva (1996) aponta que, enquanto ao longo da Belém–
Brasília cresciam e se desenvolviam centros populacionais, “os barcos-motores são retirados
de circulação. As linhas hidroviárias Porto Nacional–Lajeado, Tocantínia–Pedro Afonso–
Carolina, Carolina–Tocantinópolis–Belém são desativadas” (SILVA, 1996, p. 93). As
constantes transformações, principalmente populacionais, podem ser notadas nos trabalho de
Aquino (2004) através do Censo do IBGE. Em pesquisa recente no mesmo banco de dados
encontramos Tocantins com um total de 920.116 habitantes em 1991, 1.157,690 habitantes
em 2000 e 1.383,445 habitantes em 2010. Além dos nascimentos, sabemos que as migrações
contribuíram e contribuem para o crescimento expressivo visto nas cifras.
Porém, como já apontamos com base nas pesquisas de Rocha (1998), não foi
somente com a construção da rodovia que o norte de Goiás ganhou visibilidade. Muito antes
da década de 1940 e 1950, a região norte de Goiás sofreu processos migratórios devido às
grandes descobertas de ouro no Brasil nos séculos XVIII e XIX, e com o declínio do ouro na
região a pecuária assumiu o posto de grande atrativo para as imigrações locais. As primeiras
povoações na região norte decorrentes da exploração do ouro no século XVIII foram lusobrasileiras. Segundo Silveira (2009), mesmo com a grande procura por ouro, a ocupação do
norte não ultrapassava a localidade de Porto Real (atual Porto Nacional). As primeiras vilas e
os povoados no extremo norte goiano nasceram às margens do rio Tocantins, como é o caso
43
de Boa Vista, Filadélfia, Nova Aurora (Babaçulândia) — todas no território goiano — e
Carolina, no Maranhão. Ao longo do século XIX e XX houve a ampliação da malha urbana,
criação de povoados e cidades, desenvolvimento da pecuária e da lavoura, intensificação do
comércio e da migração. Os imigrantes oriundos, especialmente, do Piauí e Maranhão
atravessavam o rio Tocantins através da cidade de Carolina. Nesta, assim como em Filadélfia
e Babaçulândia, devido a suas posições estratégicas, foram desenvolvidos comércios, igrejas e
escolas a fim de atrair e concentrar as pessoas naquelas localidades. Como veremos mais
adiante, são nessas três localidades que escolas e igrejas católicas, batistas e da Assembleia de
Deus em Araguaína ergueram-se a partir da década de 1950.
De acordo com Napoleão Araújo de Aquino (2004), as diversas migrações
ocorridas na região norte de Goiás, atual Tocantins, foram as responsáveis pelo rápido
inchaço populacional que a região teve em poucas décadas, sobretudo entre 1960 e 1980,
tendo como principais destinos as cidades próximas à rodovia. Segundo o autor, foram os
imigrantes do Maranhão, do Piauí e da Bahia que mais chegaram à região; fazendo que,
assim, a “identidade tocantinense”, que estava e ainda está sendo forjada, sofresse influências
de diversos quadros socioculturais do país.
Souza (2004) diz que a cidade de Boa Vista (atual Tocantinópolis) surgiu na
primeira metade do século XIX, assim como outras, do resultado da catequese dos indígenas.
Contava com o porto fluvial mais importante da região norte devido à proximidade com o sul
do Maranhão e das conexões com Belém, que tinha um porto marítimo que ligava o Brasil
com outros países: era a porta de saída de matérias-primas para o mundo e de entrada de
manufaturados e industrializados. A capital paraense era, desse modo, a referência central
para o norte goiano.
Boa parte das margens do rio Tocantins, antes da rodovia ser construída, foi aos
poucos povoada por imigrantes oriundos de diversos lugares, em especial das regiões Norte e
Nordeste. Com a construção da rodovia, esse processo mantém seu curso, mas com o
diferencial das margens das águas para as margens de um asfalto. Portanto, depois do ouro e
da pecuária,
a rodovia contribuiu para a urbanização do norte de Goiás (atual Tocantins), com
destaques para a cidade de Alvorada, Figueirópolis, Gurupi, Fátima, Miranorte,
Guaraí, Presidente Kennedy, Colinas de Goiás, Nova Olinda, Wanderlândia
(SOUZA, 2004, p. 380).
44
Tal urbanização foi efetivada pelas migrações internas e externas no estado:
migração interna (de ribeirinhos devido às mudanças em sua economia) para as cidades
próximas a rodovia; e migração externa de povos de outros estados atraídos pela propaganda
do “progresso e desenvolvimento” (SILVEIRA, 2009). Araguaína é uma dessas cidades que,
em 1960, era reconhecida como uma das principais do norte. Todavia, percebemos através de
outros estudos sobre a história de Araguaína que esta é anterior à rodovia Belém–Brasília. De
acordo com Jauro José Studart Gurgel (1998), em 1904 João Batista da Silva e sua família
(esposa, Rosalina de Jesus Batista, e dez filhos) vindos de Paranaguá, PI, foram os primeiros
habitantes a criar um núcleo de povoamento na região. Para esse memorialista, o local onde
eles se instalaram às margens do rio Lontra ficou conhecido na época como Livra-nos Deus.
Esse nome teria sido escolhido em razão dos ataques que os habitantes do povoamento
sofriam por parte dos grupos indígenas locais e animais selvagens.
Silveira (2009), porém, traz outra versão. Ele afirma, após reunir relatos de velhos
moradores da região, que esse nome é homônimo do córrego junto ao qual o povoado foi
estabelecido. Mesmo com as conversas e entrevistas coletadas sobre o medo que os habitantes
tinham de animais e grupos indígenas, Silveira (2009) aponta em sua obra que, desde o início
do século XX, os indígenas já não habitavam mais a região do rio Lontra. Para esse autor,
desde meados do século XIX a expansão das fazendas de criadores de gado contribuiu para
que os nativos fossem se afastando da região daquele rio e se concentrassem nas margens do
rio Araguaia e Tocantins, como foi também observado por Rocha (1998), citado antes no que
se refere às construções dos aldeamentos.
Sobre a divergência com relação aos rios onde se encontravam esses primeiros
grupos na região de Araguaína, o historiador Silveira complementa que
por volta de 1906, alguns moradores do lugar, juntamente com outros migrantes
sertanejos [oriundos do Nordeste], ocuparam uma outra área de beira-rio, no caso
do riacho Neblina, tendo ali estabelecido outra povoação, também batizada com o
nome do córrego. Não muito tempo depois surgiu — num lugar chamado “Brejo
Danta”, na beira do rio Lontra um outro centro de lavradores. Quando a família de
Ezequiel Tubá migrou da beira do rio Manoel Alves Grande, sul do Maranhão,
para o povoado em 1926 — atraídos pela disponibilidade de “terras livres” e “boas
para roça”, inclusive com vistas ao plantio de café — o lugar era conhecido como
Neblina (nome do riacho e do povoado), mas também por Lontra, nome do
principal afluente do Araguaia na localidade e que acabou prevalecendo sobre o
topônimo antigo (SILVEIRA, 2009, p. 55).
Como se lê, Gurgel (1998) não estava totalmente equivocado quando cita o Lontra
como local do primeiro povoado, mas o autor não levou em consideração as mudanças
45
ocorridas na nomenclatura. Mais que isso, Silveira (2009) no trecho acima chama a atenção
para os motivos que fizeram a família Tubá vir para a região, em 1926. A propaganda de
“terras livres e boas para roça” marcam as oportunidades de trabalho e sustento que a região
podia oferecer. Décadas mais tarde, com a abertura da BR-153 e a separação do estado do
Tocantins, a propaganda de progresso e desenvolvimento — agora anunciada por dirigentes
governamentais — continuaria atraindo diversas pessoas para a região. Embora o autor, em
certo momento de seu texto, conteste as afirmações de que realmente haveria trabalho para
todos, com base em relatos de pessoas que chegaram à região e não conseguiram emprego, ele
analisa que tais oportunidades eram ainda maiores quando comparadas com as das localidades
de onde os imigrantes vinham. Ele acredita, embasando-se em narrativas de outros moradores
que não viam prosperidade, mas reservas — que,
a visão de Araguaína como uma terra de “fartura de serviço”, por parte dos
migrantes pobres, decorria menos da realidade econômica da localidade, pecuária
semi-extensiva e urbanização com escassa geração de emprego, e mais daquilo que
os sertanejos deixavam para trás, isto é, a estagnação econômica e a miséria social
do sertão nordestino (SILVEIRA, 2009, p.201).
Todavia, mesmo concordando com a tese do autor, devemos lembrar que foram as
propagandas e o discurso oficial da elite política e econômica regional que acabaram por
atrair milhares de pessoas para a região em busca de melhores condições de vida. Esse autor
descreve, de forma minuciosa, os principais trabalhos urbanos e rurais nas décadas de 1960 e
1970: operários de frigorífico, de indústria, de serraria e marcenaria, caminhoneiros, pedreiros
e serventes para a construção civil, biscateiros, lavadeiras, costureiras, domésticas,
engraxates, prostitutas e peões, além de serviços nos pequenos mercados, restaurantes e
hotéis. A nosso ver, independentemente da real oportunidade de emprego quando chegavam,
o que motivava a migração de milhares de pessoas era a promessa que as propagandas
veiculavam.
Para exemplificar essas propagandas, as quais se estenderam às décadas seguintes,
lançamos mão de uma revista encontrada na Biblioteca Municipal de Araguaína, a Revista
Municipalista, de 1986. Suas manchetes deixam claro o discurso de desenvolvimento
econômico da região: “Araguaína: a princesa do Norte”, “A terra prometida”, “A quarta maior
cidade goiana”, “Riquezas minerais: um potencial pouco explorado” etc. O dirigente da Tenda
Santa Bárbara, José Rodrigues, nos contou que veio de São João do Piauí para Araguaína
ainda jovem, em meados da década de 1960. Segundo ele, muitas pessoas em sua cidade natal
falavam das oportunidades de emprego na cidade. Assim que chegou, disse ele, ficou dois ou
46
três dias sem emprego; foi recrutado para trabalhar na derrubada da floresta Amazônica no
Pará, depois em fazendas na cidade de Araguaína. Chaul (2002) aponta que a propaganda de
progresso e desenvolvimento da “Marcha para Oeste” contribuiu para a migração de pessoas
de diversos estados para Goiás. Ainda que o autor analise especialmente o caso de Goiânia e
adjacências, acreditamos que a análise possa se estender ao caso de Araguaína, uma vez que a
fala de José Rodrigues aponta nessa direção.
Retomando a história da cidade, o memorialista Claudivan Santiago (2000) afirma
que o povoado de Lontra pertencia, inicialmente, ao município de São Vicente do Araguaia,
atual Araguatins, depois passou a pertencer ao município de Boa Vista, então sob o comando
do padre João de Souza Lima, do qual falaremos mais adiante. Silveira (2009) e Gurgel
(1998) são detalhistas quando narram que o povoado era o núcleo populacional mais denso da
região; além dos lavradores, contava com “pessoas de melhor condição”, comércio, capela,
cemitério, salões de festa, alguns serviços de saúde e educação oferecidos na paróquia desde
1937. Segundo informantes de Silveira, na década de 1920 o povoado era frequentado por
caçadores, agricultores e quebradeiras de coco, que, além do uso para sua subsistência,
vendiam seus artigos em Carolina e Balsas (MA), Belém (PA) e noutras cidades à beira do rio
Tocantins.
Silveira (2009) ainda chama a atenção para o fato de que a corrida pelo ouro e por
pedras preciosas na região do Araguaia nas décadas de 1930 e 1940 fez que o povoado, dada a
sua localização geográfica, servisse como entreposto comercial aos catadores e traficantes de
pedras. Na década de 1950, com o estabelecimento da fábrica Dirce S. A., a região de certo
modo internaliza a cadeia produtiva do coco-babaçu29, o que leva Araguaína a ganhar
expressão demográfica e econômica. Em 1948, o município de Filadélfia é criado pela lei
estadual 154, no ano seguinte o povoado de Lontra passa a integrá-lo, com o nome de
Araguaína, “[...] em decorrência do rio Araguaia, que serviria posteriormente de limite entre o
município e Conceição do Araguaia, no Pará” (SOUZA, 2004, p. 387).
Contudo, Araguaína ainda pertencia à comarca de Filadélfia (de Goiás). O
povoado é transformado em Distrito de Araguaína em 1953, pela lei municipal 86, mas só é
instalado em 1954, quando é designado Cassimiro Ferreira Soares como seu primeiro
subprefeito. Quatro anos mais tarde, com a lei 52 de 20 de julho de 1958, é que o distrito
recebe a autorização para sua emancipação de Filadélfia. Em 14 de novembro de 1958, o
município é criado, mas só tem sua instalação em 1959. Após sua criação e instalação,
29
A fábrica produzia óleo e cosméticos a partir da amêndoa do babaçu.
47
durante os primeiros anos, o município ficou subordinado à jurisdição da Comarca de
Filadélfia. Apenas em 1970 o governo de Goiás aprovou na Assembleia Legislativa a lei
4.495, criando a Comarca de Araguaína, a qual teve sua instalação oficial em 11 de abril de
1971.
Localizada no norte de Tocantins, Araguaína está na latitude 07º11'28"sul e na
longitude 48º12'26" oeste. Fica a 350 quilômetros da capital, Palmas. O fato do estado fazer
fronteira com Mato Grosso, Bahia, Goiás, Pará, Piauí, e Maranhão, levou grande parte da
população desses últimos três estados, ou ao menos das cidades fronteiriças com Tocantins
em cada um, a tomar Araguaína como referência econômica e consequentemente como
destino migratório (SILVEIRA, 2009). De acordo com alguns dados encontrados no website
do IBGE, pelo menos com base nas últimas cinco décadas, percebemos que houve momentos
mais intensos nas migrações, como mostra a Tabela I, em especial se observarmos a
porcentagem de crescimento populacional da cidade de 1970 para 1980. Acreditamos que isso
seja resposta ao término da construção da BR-153 na região, resultado da propaganda sobre o
“progresso e desenvolvimento” local, devido à construção do Frimar, primeiro frigorífico da
região, e à implantação das usinas hidrelétricas do Lajes e do Corujão, responsáveis pela
energia elétrica da cidade.
Tabela I – Crescimento populacional de Araguaína (1970–2010)
Censo
População total de Araguaína
1970
37.780
Porcentagem de crescimento da
população
—
1980
72.063
90%
1991
103.315
43%
2000
113.143
9%
2010
150.484
33%
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Como vemos, entre 1991 e 2000, o crescimento populacional é consideravelmente
reduzido se comparado aos outros períodos. Acreditamos que isso ocorra por causa da
construção de Palmas, a capital, implantada em 1º de janeiro de 1990. Assim como no caso de
Brasília e Goiânia, cidades planejadas, a construção da capital foi marcada pela presença de
milhares de migrantes oriundos, sobretudo, do norte e nordeste do país. Assim, o fluxo
migratório que era direcionado até então ao centro financeiro do Tocantins, Araguaína, é
deslocado para essa nova cidade que surge.
48
Entretanto, percebemos que essa desproporcionalidade no crescimento de
Araguaína dura pouco; já sendo possível perceber na década seguinte um aumento
significativo. Ainda que não tenhamos os dados desses períodos e de anteriores sobre a
origem dos fluxos migratórios para a cidade em questão, podemos lançar algumas hipóteses
quando analisamos tais informações referentes a Tocantins nos anos 1991–2000, ou seja, após
a criação do estado. Podemos perceber, na Tabela II, que das pessoas que moravam na região
boa parte delas veio de outros estados. Chama atenção a quantidade de habitantes naturais de
estados como Maranhão, Piauí, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pará e Goiás. Destes, o único que
apresenta um crescimento porcentual maior que o crescimento populacional total de Tocantins
é o Maranhão. O estado tocantinense cresceu 26% em uma década, e a quantidade de pessoas
oriundas do estado maranhense aumentou em 30%. Com base nesses dados, acreditamos ser
possível traçar, senão as mesmas estatísticas, ao menos a origem de boa parte da população da
cidade; e que esta seja mais propensa a receber pessoas dos estados com fronteiras mais
próximas. Parece-nos que a presença de mineiros, baianos, cearenses e goianos é menor que a
de pessoas naturais de outros estados já citados.
Tabela II – Residentes no Tocantins por unid. da federação de nascimento (1991–2000)
UNIDADE
FEDERATIVA
1991
2000
918.093
1.157.109
Rondônia
289
936
Acre
51
157
Amazonas
166
360
Roraima
118
70
11.169
25.691
40
145
Tocantins
624.623
781.958
Maranhão
94.726
123.375
Piauí
29.305
34.368
Ceará
17.761
20.396
Rio Grande do Norte
1.841
2.596
Paraíba
3.826
4.411
Pernambuco
6.461
9.013
Total
Pará
Amapá
TOCANTINS
ANO
49
Alagoas
1.998
2.759
Sergipe
307
792
Bahia
13.081
15.296
Minas Gerais
23.745
23.959
Espírito Santo
739
1.231
Rio de Janeiro
853
1.430
São Paulo
7.319
10.905
Paraná
2.896
4.421
765
967
Rio Grande do Sul
4.476
4.860
Mato Grosso do Sul
703
1.106
Mato Grosso
2.039
3.213
Goiás
65.555
77.185
Distrito Federal
1.945
5.238
Brasil sem especificação
1.296
273
Santa Catarina
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
A importância dessas migrações no processo de formação da cidade pode ser
percebida quando se analisa a trajetória de seus primeiros prefeitos. Desde a criação do
distrito, a história de Araguaína foi marcada, politicamente, por momentos de grandes
turbulências devido às acirradas brigas políticas entre líderes locais. Até este momento, a
cidade contou com a presença de 32 prefeitos — os três primeiros (Cassimiro Ferreira Soares,
Henrique Ferreira de Oliveira e Anatólio Dias Carneiro) eram maranhenses. Esse último foi o
primeiro eleito da cidade (1961–6), e no seu mandato muitas melhorias econômicas e sociais
foram implementadas, realizadas por ele ou não, a saber: chegada da energia a motor na
cidade, criação da primeira escola municipal, atual Colégio Estadual de Araguaína,
construção do prédio da prefeitura, criação do plano diretor da cidade, instalação do primeiro
Banco do Brasil e construção do primeiro colégio particular, o Colégio Santa Cruz. Mesmo
após a saída de Anatólio da prefeitura, ele continuou contribuindo para o enriquecimento da
cidade: foi trabalhar com gado, vendendo e comprando; um dos frutos de seu empenho nesse
ramo foi a criação da primeira Exposição Agropecuária de Araguaína, que impactou na
política agropecuária da região, fazendo que a cidade ficasse conhecida como “capital do boi”
nas décadas seguintes.
50
Outro prefeito de destaque na literatura memorialista (SANTIAGO, 2000) como
um dos homens “mais realizadores da história de Araguaína, mesmo tendo o mandato sido
suspenso”, foi Raimundo Gomes Marinho (1970–1 e 1972–3). No seu governo foram
implantadas as usinas hidrelétricas do Lajes e Corujão. Esta foi a responsável por gerar
energia elétrica para a cidade. Foi construída, também, a praça das Nações, em volta da qual
se achavam a matriz da Igreja Católica, o Cine Natal, o Colégio Santa Cruz e a Churrascaria e
Restaurante Carroção. Data desse momento, também, a construção da Usina de Beneficiar
Arroz. Nesse mesmo período, segundo Santiago (2000), tem-se a primeira sede dos Correios e
Telégrafos, mas só em 1974 as correspondências passaram a vir direto para Araguaína, sem
ter a necessidade de passar por Carolina, MA. Em janeiro de 1971, a sede do 2º Batalhão da
Polícia Militar é inaugurada.
Mesmo com os muitos detalhes sobre as transformações da região, pouco se tem
escrito na historiografia acadêmica sobre tal processo. Muito do que se encontra são relatos e
narrativas dos memorialistas financiados ou não pelo governo estadual. Porém, vale ressaltar
o trabalho que o historiador Marcos César Borges da Silveira (2009) fez sobre a região norte
do antigo Goiás, com detalhes para Araguaína, nos anos de 1960 a 1975; ele analisou a
situação dos lavradores nos processos de modernização da agricultura e urbanização que
modificaram as paisagens e relações sociais na cidade referida. Aqui nos interessa o
levantamento que o autor faz de uma das principais fábricas que existiram na cidade: a
Companhia Industrial e Mercantil da Bacia Amazônica (CIMBA), fruto da expansão
econômica ocorrida nos anos 1960–70. A fábrica é uma continuação da fábrica Dirce S. A. da
década de 1950. Foi na década de 1960 que os irmãos Boa Sorte compraram a fábrica,
ampliaram suas dependências, aumentaram a produção de óleo, passaram a produzir sabão do
coco-babaçu e mudaram seu nome para CIMBA. Outra fábrica importante contemporânea da
CIMBA no norte de Goiás foi a Tobasa S. A. Situada na cidade de Tocantinópolis, também
tinha sua produção baseada no coco-babaçu. Assim, Silveira acredita que seja possível pensar
em
sincronizar a construção da Belém–Brasília, o surgimento de Araguaína, a criação
de grandes fazendas de gado e o estabelecimento da Cimba com o processo de
modernização acelerada experimentada pelo norte goiano no período em tela
(SILVEIRA, 2009, p. 14).
No entanto, esse autor salienta o fato de a fábrica começar a funcionar em 1964 e
ter fechado as portas no início da década seguinte; ele acredita que isso ocorreu porque um de
51
seus proprietários, Ademar Vicente Ferreira, foi assassinado, em 1974, e as florestas, o cocobabaçu, os maquinários e a mão de obra tinham sido explorados de forma predatória. Silveira
(2009) ainda aponta outra frente em expansão na década de 1970, que ele crê ser reflexo da
desaceleração de uma economia baseada nas extrações naturais, que eram as fazendas de
gado. O próprio Ademar Vicente Ferreira, em 1972, estabeleceu um frigorífico em Araguaína,
o Frimar, o que, para o autor, já sinalizava uma preocupação da fábrica com o futuro de seus
negócios.
Estudos sobre o trabalho escravo na região como o de Alberto Pereira Lopes
(2009) indicam outro aspecto desse desenvolvimento econômico e social. Nesse cenário, a
cidade se torna o principal lugar de aliciamento de mão de obra para trabalhar nas fazendas da
região e do Pará. Devido a sua privilegiada localização, Araguaína possibilitava a entrada e
saída dos aliciadores para a conflituosa região do Bico do Papagaio. Silveira (2009) salienta,
em sua pesquisa, que esses aliciadores, mais conhecidos como “gatos”, eram os responsáveis
por buscar peões para trabalhar em Araguaína. Recordemos que o umbandista José Rodrigues
relata que logo que chegou à cidade conseguiu trabalho no Pará, e depois em fazendas
próximas de Araguaína. É possível que seus empregos tenham sido agenciados por esses
“gatos”.
Percebemos que os processos migratórios para a região antes ou depois da rodovia
eram constantes e tiveram sua intensificação na década de 1960 e 1970. Com as migrações,
grupos religiosos de matriz cristã ávidos por disseminar o Evangelho e os “bons costumes
morais”, também, chegaram e se instalaram em Araguaína. Como a história da cidade se
mistura com a história desses grupos religiosos na região uma atenção será dada a esses
grupos no que se refere a desenhar o campo religioso da cidade, que fornece indícios do
porquê do silenciamento social, acadêmico e memorialista sobre grupos religiosos de matriz
africana que já se encontravam na cidade, segundo informantes, desde a década de 1950.
1.3 – Denominações religiosas em Araguaína
Durante a pesquisa sobre a história da região e da cidade, encontramos na
historiografia e nos relatos de memorialistas relações entre a construção da cidade e
movimentos religiosos. As principais relações estabelecidas dizem respeito à chegada dos
padres orionitas e seu trabalho voltado à saúde e educação, à presença no setor educacional
dos batistas e o conflito interno ocorrido na Assembleia de Deus/Ministério SETA (Serviço
52
de Evangelização Tocantins e Araguaia) — atual CIADSETA30 —, que resultou na divisão da
igreja e na criação do Ministério CADETINS (Convenção das Assembleias de Deus do
Estado do Tocantins).
É interessante observar que a Ordem Religiosa Católica dos Orionitas chegou ao
norte goiano em 1952, auge das discussões sobre a construção da rodovia e do início de sua
implementação. Do mesmo modo como esse grupo religioso, os batistas e os assembleianos
se instalaram na região, empenhados na “divulgação da palavra de Deus”, mas apoiados e
incentivados pelos projetos da rodovia, o que veio a facilitar a entrada desses grupos na
região. Outros grupos religiosos como aqueles de matriz africana são esquecidos pela
literatura; um esquecimento que deve ser compreendido à luz do viés do silenciamento, do
não dito, do reprimido e da invisibilidade. Assim, muitas vezes os silêncios encontrados, os
não ditos, podem ser compreendidos através de uma “memória coletiva organizada que
resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor”
(POLLACK, 1989, p.08). Desse modo, um breve relato das histórias dos grupos religiosos
citados antes, assim como respostas às perguntas de por que, como e quando teriam chegado
os primeiros fundadores dos terreiros para a região orientarão o texto daqui em diante.
1.3.1 – Saúde, educação e religião com os Orionitas
A tese da historiadora Vera Lúcia Caixeta (2011) é um dos mais recentes
trabalhos produzido sobre a região abordando a temática religiosa. Esse estudo analisa as
diferentes visões construídas pelas narrativas de médicos/cientistas, padres e médicos locais
do que é chamado, pelos documentos analisados pela autora, de “sertões goianos”, entre 1916
e 1959. A chegada e a instalação, primeiramente dos dominicanos, depois dos orionitas à
região são traçadas e descritas pela autora. Vale ressaltar que, antes da presença destes na
região norte de Goiás, já havia aí capuchinhos italianos (1842) evangelizando os índios dos
rios Araguaia e Tocantins, segundo essa mesma autora.
O estabelecimento, no Brasil, da Ordem dos Frades Pregadores, mais conhecidos
como dominicanos, data de 1881; no norte de Goiás, estão presentes desde 1886. A chegada
dessa ordem é contextualizada pela autora com a implantação da República e o fim do
padroado régio, quando a Igreja “se livra” das ingerências do Estado e fortalece seu aparato
30
Convenção Interestadual de Ministros da Assembleia de Deus no Tocantins e Araguaia.
53
institucional. É nesse período que “ocorreu uma ‘verdadeira avalanche de novas congregações
tanto masculinas como femininas’ para o Brasil” (CAIXETA, 2010, p.102).
A diocese de Goiás já existia desde o início do século XIX, e no fim desse século
teve início o processo de reforma românica ultramontana31 da Igreja em Goiás por dom
Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão. Quando dom Cláudio chegou à diocese de Goiás,
percebeu que recebeu uma extensa e pobre diocese que abrangia toda a província de Goiás e o
Triângulo Mineiro. Segundo Caixeta (2010), em 1891, com a saída de dom Cláudio, foi a vez
de o bispo dom Eduardo e Silva assumir a diocese até 1909. Porém, em 1907 foi criada a
diocese de Uberaba, retirando o Triângulo Mineiro da supervisão da diocese de Goiás. Tal
criação foi resultado de impasses entre a Igreja e grupos políticos locais (família Bulhões)
ligados à maçonaria.
Sucessor de dom Eduardo e Silva, dom Prudente Gomes da Silva (1909–21) viu,
durante seu bispado, a conquista dos dominicanos da prelazia de Conceição do Araguaia em
1911, e a separação realizada pela Igreja entre o norte e o sul com a criação do bispado de
Porto Nacional, em 1915. Em 1922, quem sucede dom Prudente foi dom Emanuel Gomes de
Oliveira, que fica no cargo até 1955. A autora chama atenção em seu trabalho para o fato de
que:
Quanto aos dominicanos, nos primeiros cinquenta anos de atuação no Brasil, eles
se concentraram no interior da diocese de Goiás e de Minas Gerais. Eles fundaram
seus Conventos em Uberaba (1882), na cidade de Goiás (1883), em Formosa
(1905), Porto Nacional (1886) e Conceição do Araguaia (1896). Depois, eles
partiram para as grandes cidades, como Rio de Janeiro (1927), São Paulo (1938) e
Belo Horizonte (1946) e seus Conventos em Goiás foram fechados (CAIXETA,
2010, p.106).
É justamente pelo fato de os dominicanos ocuparem um vasto território que se
encontrava repartido em cinco centros de apostolado — Uberaba, Goiás, Formosa, Porto
Nacional e Conceição do Araguaia — que a autora resolveu analisar o olhar deles sobre o
clero goiano e sobre o sertão de Goiás. E é pela diocese de Porto Nacional que poderemos
compreender como se instituiu a presença da Igreja Católica em Araguaína.
Foi em 1915 que a paróquia de Porto Nacional se tornou diocese. Nessa
localidade, os dominicanos procuraram, sobretudo, atingir o público mais jovem da região
através da educação, de seminários e das pastorais. Em 1904, na cidade de Porto Nacional, foi
fundado o Colégio Sagrado Coração de Jesus, que em 1906 já tinha sede própria. Mas quando
31
Conhecido como a reforma da Igreja, esse projeto tinha por finalidade adequar as práticas religiosas populares
ao catolicismo oficial e aproximar o episcopado brasileiro de Roma e da Cúria Romana.
54
os dominicanos chegaram à paróquia de Boa Vista (atual Tocantinópolis), depararam-se com
o padre João de Souza Lima, descrito em cartas paroquiais, assim como outros, como
“sacerdotes idosos, de insuficiente preparo moral, intelectual e, sobretudo, espiritual,
ocupados em política local ou em negócios temporais e cuidados de família” (AUDRIN, 1947
apud CAIXETA, 2010, p.110).
O padre João de Souza Lima tinha sido “recrutado” por dom Cláudio em 1883
para estudar no seminário Santa Cruz, onde após seus estudos e sacramentos recebeu a
paróquia de Boa Vista em 1897. Caixeta (2010) aponta que a trajetória de padre João vai além
da vida religiosa. Ele se transforma em líder político, tornando-se deputado estadual, entre
1910 e 1914, e prefeito municipal, em 1945, para citar alguns exemplos. Sua trajetória política
é, muitas vezes, comparada com a de padre Cícero do Ceará por pesquisadores acadêmicos e
memorialistas. Tal trajetória colocava o pároco na lista de sacerdotes que os dominicanos
queriam distância, mas tiveram de aceitar sua presença incômoda na diocese até sua morte,
em 1947.
Após o falecimento do padre João, o bispo dominicano de Porto Nacional dom
Alano Du Noday convidou, para assumir a região, a Congregação Pequena Obra da Divina
Providência, fundada por dom Orione, na Itália, em 1903. Segundo Caixeta (2010), era “uma
Congregação religiosa não conventual e com jovens missionários dispostos a cuidar da saúde
do corpo e da salvação da alma dos sertanejos” (p.148). No fim de 1951, a Paróquia de Nossa
Senhora da Consolação foi assumida por essa congregação, ocorrendo nos anos seguintes a
formação de agentes de saúde e a construção de postos médicos, hospitais, escolas e colégios.
Foi no início da década de 1950 que a Ordem Religiosa Orionita chegou ao
extremo norte de Goiás (atual Tocantins). Nessa região, a única paróquia estava situada em
Tocantinópolis32, ainda sob a jurisdição da diocese de Porto Nacional. Com a chegada da
nova ordem religiosa, a paróquia foi entregue aos cuidados desta, em 1952, e, em 1954,
elevada à prelazia de Tocantinópolis, sendo assumida pelo padre Quinto Tonini, em 1956.
Na tese de Caixeta (2010), encontramos referências a uma obra escrita pelo padre
Tonini intitulada Dom Orione: entre diamantes e cristais. Cenas vividas pelos missionários
de Dom Orione nas matas do Norte de Goiás — Brasil publicada em 1996. Em visita à
secretaria do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, para tentar encontrar a obra, tivemos o
prazer de conhecer padre Remígio Corazza. Com seus 94 anos de idade, contou-nos, em
entrevista, que chegou à região em 1953, vindo da Itália. Padre Remígio foi quem nos
32
Até 1943, Tocantinópolis era denominada Boa Vista.
55
emprestou seu exemplar da obra de seu colega missionário Tonini e ainda nos apresentou dois
outros livros escritos por ele mesmo contando suas memórias: Antologia de memórias: um
passeio pelo tempo (2004) e Silêncio prudente (2000). Tais obras, com as outras fontes, foram
importantes para compreendermos o processo de inserção e estabelecimento da ordem
orionita na região norte do Tocantins.
Caixeta (2010) aponta que, de frente à cidade de Boa Vista, estava a cidade de
Porto Franco, MA, com uma única vantagem sobre aquela: havia os Correios. A chegada da
congregação orionita à, até então vila, Filadélfia, situada de frente para Carolina, sede da
organização religiosa protestante da região (batistas), fez que a vila fosse elevada à condição
de cidade em 1952, tendo padre Tonini como principal dirigente da paróquia recém-criada.
Ainda na mesma localidade padre Tonini iniciou a formação de professores e enfermeiros
para atender na região.
Na entrevista, padre Remígio (2012) nos contou que ele e os padres Tonini e
Pacífico eram quem cuidavam “da parte sul da região norte do estado”. Segundo ele, as três
bases que alicerçavam o trabalho deles era a saúde, a educação e a religião. Contudo, ele
confessou, entre risos, que a parte da religião teve mais ênfase na vida deles do que da
população local, pois esta estava mais carente de médicos e professores.
Em Araguaína, a primeira paróquia foi criada em 1955 (Paróquia do Sagrado
Coração de Jesus). Ainda que o Colégio Santa Cruz e o Hospital e Maternidade Dom Orione
surgissem anos mais tarde com prédios específicos para tais atividades, a educação e a saúde
para a população eram improvisadas em “salas velhas” próximas a paróquia. Segundo o
padre, quando aqui chegaram, viram um catolicismo popular em que “somente duas coisas
mantinham o povo fiel: a Festa do Divino Espírito Santo e a Folia de Reis”.
A presença de protestantes ingleses e norte-americanos na região era algo que
preocupava os missionários católicos. De acordo com documentação analisada por Caixeta
(2010), em 1925 já eram presentes nas cartas do bispo da diocese de Porto Nacional os
pedidos de ajuda para combater as “invasões estrangeiras”. Quando perguntado sobre a
presença de protestantes e mesmo de pais de santo na região, padre Remígio disse que, depois
que o Ginásio (colégio) Santa Cruz foi construído (1963), apareceu um professor que era da
Igreja Batista. O trabalho de Caixeta (2010) com as cartas apresenta as irritações dos
missionários orionitas com os protestantes, em especial os batistas, os quais, assim como
aqueles, chegavam à região instalando uma educação que tinha como base doutrinas e
princípios religiosos.
56
Com relação aos terreiros, padre Remígio disse que na cidade havia “pessoas que
mexiam com isso” quando ele chegou. Disse que as pessoas vinham de fora e “traziam seus
costumes”. Perguntei se a maioria das pessoas que aqui chegavam era do Maranhão, ele disse
que sim, porque, afinal de contas, a “pior macumba vem de São Luís”. Perguntei sobre
Salvador na Bahia, e ele me disse que ali era diferente, porque “lá já é algo oficial, mas que
no Maranhão, não”. Mesmo com a ênfase na presença de religiões afro-brasileiras em
Araguaína, o padre em momento algum citou nomes ou localidades que pudessem ajudar na
pesquisa.
A cidade conta, atualmente, com 46 igrejas católicas, das quais seis são matrizes
que têm sob sua responsabilidade capelas por toda a cidade, assim divididas entre as matrizes:
QUADRO II – Igrejas Católicas em Araguaína (2012)
Bairro Central
Nove capelas
Setor Couto
Cinco capelas
Bairro JK
Nove capelas
Matriz Sagrado Coração de Jesus
Bairro Central
Sete capelas
Matriz São Paulo Apóstolo
Setor Neblina
Sete capelas
Matriz Nossa Senhora Aparecida
Setor Noroeste
Três capelas
Matriz São Sebastião
Matriz São Vicente de Paula
Matriz São José Operário
Dados: Matriz Sagrado Coração de Jesus
Conforme o Censo mais recente disponibilizado pelo IBGE — com base no ano
de 2010 —, a maior parte da população de Araguaína declara ser católica. Segundo esses
dados, 97.884 pessoas de um universo de 150.484 entrevistados declaram ser pertencentes à
religião católica. Numa comparação com o Censo anterior — de 2000 —, percebemos que
houve uma redução porcentual na última década em relação ao crescimento da cidade e dos
evangélicos.
Tabela III – População residente em Araguaína segundo as religiões principais33
Censo 2000
Censo 2010
% de crescimento
População total
113.143
150.484
33%
Católicos
83.886
97.884
16%
Evangélicos
20.657
36.308
75%
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
33
O adjetivo utilizado leva em consideração a quantidade de membros das religiões na cidade com base nos
dados do IBGE.
57
Todavia, mesmo com essa redução, o que se nota é que isso não fez com que a
hegemonia religiosa da cidade saísse das mãos dos orionitas, mesmo com a crescente
presença dos evangélicos. Nos dias atuais, quando comparamos os três censos mais recentes
— 1991, 2000 e 2010 — no que diz respeito à religião em Araguaína, o que percebemos é um
crescimento de fiéis na vertente evangélica. De acordo com o Censo de 2010, percebe-se que
houve crescimento de 75% dos praticantes de igrejas evangélicas na cidade, enquanto o
crescimento dos fiéis católicos foi de 16%. Em Araguaína foi possível encontrar a presença de
74 igrejas da Assembleia de Deus Ministério SETA, 15 do Ministério CADETINS, 27 do
Ministério Madureira, 14 batistas e 58 da Igreja Universal do Reino de Deus. Esses dados
foram recolhidos nas secretarias das respectivas igrejas. É certo que muitas outras
denominações religiosas como os adventistas do Sétimo Dia, os presbiterianos, as
testemunhas de Jeová, os kardecistas e outras estão presentes em Araguaína. Mas não nos
coube aqui fazer um mapeamento completo das igrejas da cidade; apenas daquelas com maior
quantidade de templos.
1.3.2 – Protestantes e Pentecostais: velhas disputas em novos lugares.
A presença dos protestantes no Brasil data do período colonial, quando franceses
chegam ao Rio de Janeiro e ali realizam, em 1556, o primeiro culto protestante em solo
brasileiro. Em 1624, os holandeses invadem o território da Bahia e, logo depois, Pernambuco,
promovendo, em meio aos saques, os cultos reformados em oposição à Igreja Católica. Essa
primeira leva que chega ao país é conhecida como protestantismo colonial. Outras três levas
são marcadas pela literatura especializada: o protestantismo de imigração (primeira metade do
século XIX com ingleses e alemães), o protestantismo missionário (segunda metade do século
XIX com povos anglo-saxões) e pentecostalismo (início do século XX, com a presença de
diversos povos). Os grupos neopentecostais, que começaram a surgir no Brasil no fim da
década de 1970, contribuíram e contribuem para a pluralidade do protestantismo no país
(SILVA, SANTOS & ALMEIDA, 2011).
Devido a grande quantidade de igrejas protestantes missionárias, pentecostais e
neopentecostais em Araguaína atualmente, resolvemos abranger nesta pesquisa apenas duas: a
Igreja Batista e a Assembleia de Deus. Essa escolha se deu porque, na análise da história de
Araguaína, vimos que, com a Igreja Católica, essas duas denominações religiosas eram as
mais antigas, não só na cidade, mas também na região de forma mais ampla. Segundo Elizete
58
da Silva (2011), os primeiros batistas que chegaram ao Brasil eram provenientes dos Estados
Unidos e desembarcaram no Rio de Janeiro. São Paulo e Bahia foram os estados que, em
seguida, contaram com a presença dos “irmãos protestantes” em meados da década de 1880.
De acordo com a autora, no fim dessa década, os batistas já haviam fundado comunidades em
Recife, Maceió, Rio de Janeiro e no interior da Bahia. Em 1934, já estavam presentes em todo
o território nacional, e é a partir daqui que nos interessa sua história de expansão, que permite
a chegada à cidade de Araguaína.
Na conversa com padre Remígio, ele nos contou que o Colégio Santa Cruz da
cidade foi fundado em 1963, por ele, e que as dificuldades de se encontrarem professores na
época para lecionar no “ginásio” eram enormes. Ele mesmo teria dado diversas aulas por falta
de professores capacitados. Não se lembra o ano, mas nos contou que tiveram um professor
que era da Igreja Batista: recém-chegado à cidade e sem emprego, ele foi trabalhar com eles.
Remígio contou que, em 1953, quando chegou à região do que hoje é Araguaína, não havia
nenhuma outra denominação religiosa na localidade.
Entretanto, Maiza Pereira Lôbo (2012) em estudo sobre a educação batista na
região, mostra que isso não demorou a acontecer:
A instalação da primeira Igreja Batista em Araguaína fez parte do processo
expansionista do evangelho na região. Essa igreja foi organizada em 1954, por
membros oriundos de cidades do Estado do Maranhão. Entre seus 14 membros
iniciais contavam pessoas de Carolina, Nova York e Babaçulândia. [...] A
instalação de colégios de educação regular batista, só foi possível em Araguaína
alguns anos após a instalação destes religiosos. A Escola Estadual Batista [...] foi
criada em 1989, e funcionou até 1992 num sistema de convênio com o município.
Entre os anos de 1993 e 1996, transformou-se em extensão da Escola conveniada
Assistência Social Pentecostal de Araguaína — ASPA (...). Apenas em 1997, a 1ª
Igreja Batista assinou o convênio com a Secretaria de Educação e Cultura, assim a
escola passou a fazer parte do Programa Escola Autônoma de Gestão
Compartilhada do Estado do Tocantins (LÔBO, 2012, p. 170).
Assim como os orionitas, os batistas procuraram, por meio da educação, levar
suas crenças a todos os lugares. Caixeta (2011) afirma que católicos e batistas viam uma
estreita vinculação entre prática religiosa e prática escolar. Segundo a autora,
organizar igrejas e escolas não eram práticas estanques porque para ambos a
missão de evangelizar incluía romper com as superstições, ignorância e práticas
arcaicas que se acreditavam amplamente enraizadas na sociedade sertaneja
(CAIXETA, 2011, p. 164).
59
Tal pensamento, de certa forma, era compartilhado por ambos os grupos
missionários. Porém, Elizete Silva (2011) chama a atenção para um fato que tocava
especialmente os batistas. Estes viam o analfabetismo como um duplo problema: dificultava a
expansão e consolidação de seu trabalho e dificultava o desenvolvimento social do país.
Contrariando a fala de padre Remígio34, padre Tonini (1996) conta em sua obra
que, quando chegou a Babaçulândia, em 1952, não existia igreja ou escola pertencente aos
católicos, mas já havia igreja e escola batista, as quais são mencionadas por Tonini como
“boas e bem frequentadas”. Mas isso não o impediu de, após construir a igreja, a casa e a
escola paroquial, proibir os filhos dos católicos de estudarem na escola batista (TONINI,
1996, p.159). Assim, podemos compreender, como práticas e discursos inseridos numa
disputa por fiéis, o silenciamento de padre Remígio sobre a chegada dos batistas quase
concomitante à dele, assim como as medidas tomadas em Babaçulândia por padre Tonini para
recatolicizar uma população influenciada pelos protestantes.
Esse espaço geográfico não foi exclusividade da disputa simbólica entre batistas e
católicos: outra se fazia presente. O movimento pentecostal, segundo Maria das Dores
Machado (1996), desde o princípio teve sua base social nos segmentos populares e sua base
bíblica no livro Atos dos apóstolos35. A leitura dessa obra por alguns gerou a crença de que o
mesmo fenômeno ocorrido com os apóstolos no dia de Pentecostes — o “batismo do Espírito
Santo” — poderia se repetir entre os fiéis, proporcionando-lhes dons de cura, profecia e
glossolalia36.
O movimento pentecostal teria começado em 1906, em Los Angeles, estado da
Califórnia, Estados Unidos. William Joseph Seymour teria sido aquele que iniciara o
Avivamento Azusa37 com o “recebimento do Espírito Santo” por alguns fiéis mediante suas
pregações. O chamado reavivamento espiritual, caracterizado pela fala de “línguas estranhas”,
começou a se difundir pelo mundo, em especial na Américas do Norte e do Sul nos anos que
se seguiram.
34
Quando dizemos que este contrariava a fala de padre Remígio nos referimos à questão da região, pois
Babaçulândia está a 62 quilômetros de Araguaína. Mas quando tomamos essa cidade como referência na fala do
padre, compreendemos a inexistência dos protestantes ali.
35
No livro Atos dos apóstolos capítulo 2, versículos de 1 a 4, Lucas narra a descida do Espírito Santo no dia de
Pentecostes e segue o capítulo indicando que essa descida seria o dom de línguas dado aos homens por Deus.
36
Paulo, no livro de I Coríntios, descreve o fenômeno: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um
visando a um fim proveitoso. Porque a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, pelo
mesmo Espírito, a palavra da ciência; a outro [...] dons de curar; a outro operações de milagres; e a outro a
profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das
línguas” (I Coríntios 12:1–10).
37
O nome do avivamento se dá devido ao nome da rua (Azusa street) na qual se encontrava a casa onde foi
realizado o encontro em que, pela primeira vez, constatou-se a glossolalia nos Estados Unidos.
60
De acordo, com os sites oficiais da Assembleia de Deus e com suas publicações
em forma de livros ou revistas, por exemplo, a revista Jovens em Ação da UMADA (União da
Mocidade das Assembléias de Deus de Araguaína), os suecos Daniel Högberg (ou Berg) e
Gunnar Adolf Vingren teriam desembarcado em Belém, em 19 de novembro de 1910, vindos
dos EUA. Os dois são considerados pela Assembleia de Deus como os fundadores da igreja
no Brasil. Segundo Sousa (2011), após 1910, iniciou-se a expansão da Assembleia de Deus
pelo norte do país. Nas décadas seguintes, a expansão assumiu novas proporções em direção
às outras regiões. No início dos anos 1960, ela é considerada a maior igreja protestante da
América Latina38. Contudo, não era a única de cunho pentecostal no Brasil: a Congregação
Cristã estava presente desde 1910, na região Sudeste, no bairro paulistano do Brás. Para
Rolim (1994), enquanto esta buscava em São Paulo seu “enraizamento e legitimidade”, a
Assembleia de Deus ia se espalhando pelo Norte e Nordeste através das camadas pobres da
população. Tais camadas, já desanimadas com a não participação nas liturgias católicas,
foram motivadas por uma religião que ajudavam a construir e que aceitava a participação
ativa nos rituais (PACHECO, SILVA e RIBEIRO, 2007). A Assembleia de Deus se espalhou
no Brasil durante o mesmo período em que projetos do governo federal estavam sendo
implementados sob a chamada “Marcha para o Oeste”. A expansão dessa denominação,
sobretudo em Goiás, insere-se no contexto das diversas ações oficiais que surgiram na década
de 1930 para concretizar projetos governamentais.
A chegada da estrada de ferro, em 1935, à cidade de Anápolis conectou, também e
por definitivo, o centro de Goiás — e sua capital, Goiânia — com o centro-sul. Isso
possibilitou o aumento das atividades econômicas do estado, em especial da região CentroOeste. Nesse momento de mudanças econômicas e sociais, tem início a história da
Assembleia de Deus em Goiás. Segundo Conde (1982), foi através de missionários vindos da
Assembleia de Deus em Madureira, Rio de Janeiro, que “as boas novas do evangelho”
chegaram a Goiânia, em 1936. Boa parte da literatura atual vinculada à Assembleia de Deus
trata desses missionários como membros da Assembleia de Deus do Ministério Madureira,
mesmo este sendo criado só na década de 195039. Esse anacronismo da literatura pode ser
interpretado como um modo de traçar um legado e uma memória de um passado
38
FRESTON (1994) apud SOUSA (2011).
Em 1930, Paulo Leivas Macalão, ícone principal do Ministério Madureira, foi consagrado como pastor. Sete
anos depois, tornou-se o primeiro brasileiro a assumir a presidência da Convenção Nacional das Assembleias de
Deus. Na década de 1950, o templo no bairro de Madureira ficou pronto. Antes dos anos 50, as convenções não
se reportavam a Madureira como ministério, mas enfatizavam o papel de Paulo Leivas Macalão como
disseminador do Evangelho por diversas regiões. Essa disseminação gerou protesto de outros pastores que
reclamavam a abertura de templos pela igreja de Madureira, na figura do pastor, em regiões onde já existiam
igrejas da Assembleia de Deus em atuação (CPAD, 2004).
39
61
evangelizador para esse ministério antes mesmo de sua cisão com o Ministério Missão de
Belém do Pará. No trabalho monográfico de Coelho (2010), ela afirma que o Ministério
Madureira chegou a Araguaína em 1983, com a autorização de funcionar como congregação,
mas ainda seria subordinada à igreja de Gurupi. A presença da Assembleia de Deus nesta
cidade data de 1956, quando chegam os primeiros missionários, incentivados pela abertura da
BR-153. Em 1993, a igreja de Araguaína recebeu sua autonomia, como foi verificado pela
autora nas atas de registros das reuniões da igreja local.
A Assembleia de Deus não conta somente com um ministério. Outro muito
importante para a região norte de Goiás, atualmente Tocantins, foi o Ministério SETA. Essa
igreja surgiu na região com base em seu crescimento no Maranhão entre os anos 1940 e 1970.
A organização de uma expansão para as regiões próximas aos rios Araguaia e Tocantins
proporciona o surgimento da igreja em Carolina, sul do Maranhão. Bertone de Oliveira Sousa
(2011) nos conta que:
O Seta (Serviço de Evangelização dos Rios Tocantins e Araguaia) foi o nome dado
à primeira organização regional da AD no Sul do Estado [do Maranhão], fundada
em 1948 por Armando Chaves Cohen, um ano após ele ter celebrado o primeiro
culto assembleiano nessa região, em Carolina. O Seta foi oficialmente estabelecido
em 1952, por decisão da Convenção Estadual do Pará (Belém), realizada naquele
ano (SOUSA, 2011, p.66).
De acordo com o website oficial da Igreja Assembleia de Deus SETA, em 1953
esse ministério contava com nove igrejas ao todo no Maranhão e em Tocantins (ainda Goiás);
neste último estado, elas se localizaram em Porto Nacional, Tocantinópolis e Araguaína. Após
1954, o processo de expansão para o interior de Goiás e de outros estados foi intensificado.
Em Araguaína, o que se relata é que em uma reunião na congregação de Babaçulândia em
1948 os pastores incentivaram a vinda de moradores para o Lontra a fim de pregar o
evangelho (ARRUDA, 2011). Quando ali chegaram, encontraram uma família já instalada
que era integrante da Assembleia de Deus/Ministério SETA e a presença da Igreja Católica. O
fato de chegar à região e encontrar os orionitas nos indica que os assembleianos da
congregação de Babaçulândia só adentraram às terras da cidade na década de 1950, e não nos
anos 1940. A primeira igreja do SETA teria sido construída em 1966; tempos depois foi
incendiada.
Nos relatos analisados por Dionísio Pereira de Arruda (2011), percebe-se o
descontentamento e a rivalidade entre membros do SETA não só com os católicos, os quais
são descritos como acomodados na região, mas também, tempos mais tarde (1983), com o
62
Ministério Madureira, acusado de “invadir o campo de Araguaína” (p.23). As disputas não
cessam por aqui. Segundo o mesmo autor,
Posteriormente esta instituição [o SETA] dissolveu-se, formando dois ministérios
independentes, embora comungando a mesma doutrina e fé. Apareceu então uma
nova organização, chamada Conselho das Assembléias de Deus do Estado do
Tocantins (CADETINS), atualmente Igreja Evangélica Assembléia de Deus em
Araguaína, TO (IEADA-TO), numa ruptura emblemática e envolta a crises e
conflitos (ARRUDA, 2011, p.21 e 22).
As crises e os conflitos foram além das divergências teológicas. O caso mais
emblemático foi uma briga40 envolvendo dois dirigentes da Assembleia de Deus em 2000: o
pastor Francisco Bueno de Freitas, presidente do Campo Missionário de Araguaína, e o pastor
Alfredo Alves de Sá, dirigente do templo-sede na rua Rui Barbosa. O caso foi parar na
delegacia e, depois, na justiça comum para que fosse realizada a divisão de bens do SETA41.
Ao que tudo indica do ponto de vista teológico e comportamental, o SETA é conhecido como
o ministério mais tradicional, enquanto a CADETINS é vista como o ministério mais liberal,
aberto às mudanças doutrinárias e litúrgicas. Esta não pertence, assim como a Madureira42, à
CGADB (Convenção Geral Assembleias Deus Brasil). A sigla CADETINS, apesar de não se
tratar de uma convenção, mas de um conselho, indica separação e independência segundo
seus membros.
Seguindo os exemplos dos batistas e católicos, os assembleianos se dedicaram, em
Araguaína, ao assistencialismo social e educacional. Ari Oro (2006) enfatiza que os
evangélicos, com seu trabalho assistencial e na área da educação, participam da vida pública
nacional desde a sua chegada ao país, no século XIX; e assim se comportaram quando
chegaram ao norte do Tocantins. A Assembleia de Deus criou uma instituição chamada
Assistência Social Pentecostal de Araguaína (ASPA), em 1975, a fim de amparar crianças
carentes. Desde então, contando com convênios municipais, estaduais e privados, a ASPA
oferece aulas regulares, alimentação balanceada, tratamento médico e educação religiosa. Mas
40
O caso ficou tão conhecido na cidade que, em pesquisa realizada na Matriz Católica Sagrado Coração de
Jesus, um senhor que se encontrava na secretaria da matriz no dia da nossa visita e que era um dos responsáveis
por uma das capelas da cidade, fez questão de enfatizar a longevidade da Igreja Católica dizendo que esta não
teria surgido “de uma briga entre dois pastores”.
41
Em entrevista informal com os secretários das igrejas matrizes do SETA e do CADETINS pode-se perceber as
mágoas decorrentes da divisão. Ambos representantes fizeram questão de contar suas versões, cada um a seu
modo, buscando legitimar seu grupo.
42
Ressalta-se que o Ministério Madureira não faz parte, desde 1989, da CGADB (Convenção Geral Assembleias
Deus Brasil) por “manter paralelamente uma convenção nacional, contrariando o estatuto da Convenção Geral”.
Esse ministério conta com sua própria convenção, a CONAMAD — Convenção Nacional das Assembleias de
Deus no Brasil Ministério Madureira (CPAD, 2004).
63
só em 1996 eles passaram a oferecer escola regular para crianças. Em sua unidade é oferecida
turmas de educação infantil e ensino fundamental. Conforme documentos da Delegacia
Regional de Ensino de Araguaína, 11 escolas são cadastradas como conveniadas, das quais
parte é mantida pelo governo estadual e/ou municipal e parte, por outra instituição. Oito
aparecem como tendo instituições religiosas como suas mantenedoras; e destas cinco estão em
Araguaína:
QUADRO III – Escolas conveniadas de Araguaína e seus mantenedores
ESCOLA
MANTENEDORES
Assistência Social Pentecostal de Igreja Evangélica Assembleia de Deus
Araguaína (ASPA)
Escola Batista Margarida Lemos Primeira Igreja Batista em Araguaína
Gonçalves
Escola Espírita André Luiz
Assistência Social de Araguaína (ASA)
Escola Paroquial Luiz Augusto
Peq. Obra Div. Providência Dom Orione
(Paróquia Sagrado Coração de Jesus)
Escola Paroquial Sagrado Coração de Peq. Obra Div. Providência Dom Orione
Jesus
(Paróquia Sagrado Coração de Jesus)
Dados: Delegacia Regional de Ensino
Vimos que antes mesmo da construção da rodovia as disputas na cidade de
Araguaína eram intensas. A disputa por alunos e, consequentemente, fiéis entre as igrejas é o
que mais chamou nossa atenção. Percebemos que, mediante um assistencialismo social
evangelizador, católicos, batistas e assembleianos pregam sua fé e suas doutrinas; porém não
eram somente essas igrejas de matriz cristã que se encontravam nas redondezas: também as
religiões afro-brasileiras se faziam presentes, mas com um assistencialismo e uma visibilidade
em proporção menor.
1.3.3 – Umbandistas e a caridade
Durante o processo de levantamento/mapeamento das casas religiosas afrobrasileiras na cidade de Araguaína realizado por nós durante os anos de 2011 e 2012,
deparamo-nos com diversos dirigentes que se autoidentificavam como pertencentes à
Umbanda. Embora se notarem certas influências de outras religiões de mesma matriz (Tambor
de Mina, Terecô, Candomblé e Catimbó) nos rituais e em entrevistas com os dirigentes,
decidimos, por fim, compreender o povo de santo dessa cidade como querem ser vistos, ou
64
seja, como umbandistas. Procuramos, em um primeiro momento, levantar dados que nos
ajudassem a traçar a história dos primeiros umbandistas.
Autores como Reginaldo Prandi (1995/1996), Renato Ortiz (1991), Ismael
Pordeus Jr. (2008), Maria Helena Vilas Boas Concone (1987), assim como outros
pesquisadores, têm escrito, dentre diversos outros temas, sobre o surgimento da Umbanda.
Em algumas datas e outros detalhes, há divergências entre autores sobre a gênese dessa
religião, mas há um ponto em que todas as análises se convergem: é uma religião brasileira
por excelência e resultado da integração e síntese de religiões de tradições africanas, do
catolicismo e do kardecismo. Segundo Pordeus Jr. (2008), a Umbanda teria surgido em 1908,
quando Zélio Fernandino de Moraes, em Niterói, entrou em transe pela primeira vez com a
entidade Caboclo das Sete Encruzilhadas numa sessão religiosa kardecista, em que tal
entidade não foi aceita. Ainda no mesmo ano, segundo o autor, fora realizado o primeiro culto
umbandista. Outros dados sobre os primeiros passos da Umbanda são apresentados por Prandi
(1995/1996):
No Estado do Rio de Janeiro, cerca de 1920, foi fundado o primeiro centro de
umbanda, que teria nascido como dissidência de um kardecismo que rejeitava a
presença de guias negros e caboclos, considerados pelos espíritas mais ortodoxos
como espíritos inferiores. De Niterói, esse centro foi se instalar numa área central
do Rio em 1938. Logo seguiu-se a formação de muitos outros centros desse
espiritismo de umbanda, os quais, em 1941, com o patrocínio da União Espírita
Brasileira, promoveram no Rio o Primeiro Congresso de Umbanda, congresso ao
qual compareceram umbandistas de São Paulo (PRANDI, 1995/1996, p.68-69).
Independentemente das versões sobre a fundação dessa religião, o que nos
interessa é que ambos concordam que, a partir da década de 1930, inicia-se uma difusão da
Umbanda pelo país. Prandi chega a afirmar que a década de 1950 foi o marco para sua
consolidação como religião aberta a todos. Essa religião passa a se caracterizar pelo culto a
espíritos de pessoas que já morreram e pela manifestação destes através do transe em
médiuns. Os transes na Umbanda ocorrem, em especial, com entidades que podem ser
agrupadas em duas categorias: espíritos de luz — caboclos, preto-velhos e crianças; e
espíritos das trevas — os exus (ORTIZ, 1991) —, que vêm para, sobretudo, orientar e curar
aqueles que procuram por ajuda. Vale ressaltar que originalmente os caboclos nessa religião
se diferenciam daqueles recebidos na Mina, onde também são conhecidos como encantados, e
que os exus da Umbanda diferem do orixá de mesmo nome cultuado no Candomblé
(FERRETTI, M., 2000).
65
Mesmo com as diferenças apontadas, as semelhanças encontradas nos trabalhos
— como são chamados os rituais religiosos da Umbanda — de outras religiões são imensas. O
caráter híbrido da Umbanda lhe permite ter uma capacidade de absorção e redefinição de
traços religiosos diversos. Os santos católicos estão presentes no altar e nas paredes, assim
como as rezas e os benditos (rezas cantadas) em seus rituais. Cada orixá do Candomblé é
agregado a uma linha da Umbanda, dentre sete, como a entidade principal da linha
correspondente. Em geral, os caboclos recebidos durante os trabalhos devem vir para
trabalhar, ou seja, para ajudar as pessoas na terra através de conselhos e curas, a fim de que
consigam evoluir no plano espiritual, tornando-se espíritos de luz. Algo semelhante ocorre
com alguns espíritos no Kardecismo. Essas e outras especificidades das três religiões citadas
fazem parte dos mitos e ritos dentro da Umbanda. Mas é importante ressaltar que não são só
essas três religiões que podem ser adaptadas, negociadas e hibridizadas pela Umbanda.
Nas casas visitadas em Araguaína é comum encontrar traços do Tambor de Mina,
religião afro-brasileira predominante no Maranhão, do Terecô codoense e da Umbanda
nordestina, marcada pela tradição juremeira. Acreditamos que esses traços presentes nos
terreiros da cidade refletem as trocas culturais ocorridas quando dos contatos entre grupos
distintos vindos de diversos lugares para Araguaína. Sabemos que quando há processos
intensos de migrações, como o que aconteceu na região, as trocas, negociações e relações
entre os diferentes se intensificam, possibilitando a construção de novas experiências,
significados e práticas.
Na procura dos terreiros, encontramos primeiramente a Tenda Espírita
Umbandista Santa Joana D’Arc, no centro da cidade. De acordo com a documentação da
tenda, seu registro de fundação foi em março de 1979; mas, segundo relatos da dirigente,
Valdeci Pereira Reis, e de seu esposo, Osmar, eles já estariam na cidade trabalhando desde
1978. Dona Valdeci é maranhense, mas antes de sua vinda para Araguaína, ela e a família
viveram em Ananás, depois em Araguatins, onde começou a ser desenvolvida
espiritualmente. Embora tenha iniciado seu desenvolvimento na Umbanda na cidade
tocantinense, com um dirigente paraense, foi em Nazaré, MA, com José Bruno de Morais, que
ela foi batizada. Quando questionamos sobre a presença de outros terreiros quando de sua
chegada, Dona Valdeci nos informou que o senhor José Rodrigues já se encontrava na cidade
com seu salão, assim como Ana Terezinha do Nascimento de Jesus (Terezona), Luís
Maranhão, Osmar, Pescocinho, Zefinha, Maria dos Reis, João Raimundo, Dedé, Gama,
Felinha e Pedro da Carroça. Destes, estão vivos José Rodrigues, Luís Maranhão — com quem
tivemos contato — e Pedro da Carroça — que não reside mais na cidade.
66
Depois de Dona Valdeci, entrevistamos José Rodrigues, dirigente da Tenda Santa
Bárbara. Ele disse que nasceu em São João, PI, em 1943. Em 1955, ele e a família foram para
Nazaré do Bruno, MA, para tratá-lo espiritualmente. Ali ele permaneceu por quase cinco
anos, período em que ficou sendo desenvolvido na Umbanda. Ele contou que, ao sair de lá, foi
para São Paulo à procura de emprego, mas logo regressou para Floriano, PI, onde ficou
sabendo das oportunidades de emprego em Araguaína. Assim, como foi dito, ele chegou à
região do norte goiano por volta de 1963, onde conseguiu o que procurava: emprego. José
Rodrigues tem seu salão de Umbanda, na rua das Jaqueiras, bairro Araguaína Sul, que ele
abre toda sexta-feira, a partir das 20h, para os trabalhos serem realizados. Ainda que a
Confederação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) faça exigência para os trabalhos irem
somente até às 22h, em especial os que utilizam tambor, os trabalhos na Tenda Santa Bárbara
começam sem hora exata para terminar. Mas nunca presenciamos trabalhos que fossem além
da meia-noite. Mesmo tendo chegado por volta de 1963, José Rodrigues, assim como outros
dirigentes, é enfático ao dizer que o mais velho da região, ainda vivo, é Luís Maranhão,
sempre mencionado por outros dirigentes como um “bom feiticeiro43” ou realizador de “bons
trabalhos”.
Encontrar Luís Maranhão foi mais complicado do que José Rodrigues ou Dona
Valdeci. A dificuldade surgiu do fato de que ele não trabalha mais com salão, médiuns ou
gira. Apenas dá consultas com auxílio de baralho e bola de cristal num pequeno cômodo de
sua casa. Como havia se mudado diversas vezes, conseguimos, por intermédio de Osmar —
fiscal da CEUB e esposo de Dona Valdeci —, o nome de uma das ruas onde ele teria morado,
a rua Sucupira. Abordamos diversas pessoas nessa região tentando saber se alguém o
conhecia, e um senhor nos informou que quem morava na rua era a ex-mulher dele, Dona
Joana. Simpática e alegre, ela teceu vários elogios ao ex-marido e nos deu o telefone de Luís
Maranhão para que ele nos ensinasse onde morava. Os elogios feitos por Dona Joana puderam
ser comprovados não só na ligação realizada por nós, como também no encontro logo em
seguida, onde o mesmo nos recebeu de forma gentil e educada.
Luís Maranhão Souza, que nasceu em Uruçuí, PI, em 25 de abril de 1940, narrou
seu nascimento na pequena cidade, os males físicos — segundo ele, também espirituais —
que sofreu quando criança, as promessas e os tratamentos feitos para sua cura. Na década de
43
Ressaltamos que, apesar do termo feiticeiro não ser usado como autodefinição por nenhum dirigente — sendo
o feiticeiro sempre o outro e uma categoria de acusação (FERRETTI, M. 2001, p.166) —, os dirigentes da cidade
reconhecem a eficácia ou não das magias realizadas por quem eles acreditam ser feiticeiro, podendo assim os
classificar enquanto bons ou ruins segundo os resultados de seus trabalhos, ainda que sejam para o bem ou para o
mal.
67
1960 — disse —, ele e sua família se encontravam na região do que hoje vem a ser
Araguaína. Foi ali que conseguiu achar alguém que o ajudasse a resolver seus problemas, um
senhor por nome de Raimundinho. Este vivia numa região chamada Jussara, ao sul do que
hoje é a região de Araguaína, enquanto Luís Maranhão morava no Centro Novo, região oposta
à de Raimundinho. Esse senhor era de Mearim, MA, mas há muito tempo vivia no norte do
então Goiás, e embora tenha curado Luís Maranhão, não foi com ele que o dirigente se
desenvolveu espiritualmente na Umbanda. Assim ele narra sua experiência,
LM: Aí, finalmente eu parti para um terreiro que tinha chegado do Pará, da Maria
Matos. Quando eu cheguei naquele terreiro da Maria Matos [...] Ela chegou para o
Escondido, um povoado chamado Escondido que tinha lá abaixo de onde eu
morava. Aí eu fui lá visitar ela, aquele terreiro dela, aquele serviço que era um
espanto, ninguém conhecia o que era a Umbanda.
S: E não tinha outro pela cidade ainda?
LM: Não, não existia outro e ninguém conhecia. Era a coisa mais perseguida que
tinha da polícia aqui. [...] Daí, eu fui para a Maria Matos, quando cheguei lá ela
falou pra mim, “Olha você tem que desenvolver, porque se você não desenvolver,
futuramente você ficará louco, porque você tem uma potência espiritual maior do
que a minha e do que de muitas outras pessoas que eu conheço”. Eu disse, “Rapaz,
como é essa potência?”. Aí ela foi e falou: “Olha, você é capacitado a adivinhar, a
curar, a fazer coisas estrondosas que ninguém nunca viu na vida”. “E é Dona
Maria?”. “É!”. “Pois se for assim... só eu, minha mãe e minha irmãs, como é que
eu vou fazer?”. Ela foi e falou: “Não, se você quer a sua saúde, então você muda de
onde você está pra cá e aí vai trabalhar” (Luís Maranhão, 14/05/2012).
Foi trabalhando com Maria Matos que Luís Maranhão começou seu
desenvolvimento. Contudo, seu desenvolvimento não se encerra com ela. Segundo ele, depois
que saiu da casa dela, foi para Imperatriz, MA, onde continuou o desenvolvimento com os já
falecidos dirigentes Chaviano e Maria e encerrou todo o processo sendo batizado e cruzado
por José Bruno, em Nazaré, por volta de 1976, 1977. Logo após, retornou a Araguaína, onde
abriu seu terreiro.
Na entrevista realizada com padre Remígio, ele nos contou que existia no Setor
Brasil (antigo bairro Exu44) um colégio que disputava campeonatos de futebol contra o time
do Colégio Santa Cruz. Ele disse que tinha uma grande rivalidade entre os times. O padre não
44
O referido bairro ainda é conhecido pelos moradores mais antigos como Exu da Sabina, Exu da Sabina Preta
ou Exu Preto da Sabina. É um dos espaços mais antigos de Araguaína. Através de relatos orais sabe-se que seus
primeiros moradores datam do fim da década de 1940 e o início da década de 1950. A origem do nome não se
sabe ao certo. Uns dizem que era por causa dos despachos que eram feitos na região, por esta ser mais isolada e
mais próxima da mata; outros afirmam ser devido a uma negra, Sabina, louca, alcoólatra e pedinte de dinheiro
que morava na região e que se dizia dona de Exu; outros porque a região não tinha uma infraestrutura boa e ali
moravam muitos negros. Independentemente das versões apresentadas, encontramos um elemento de
convergência nas falas de padre Remígio e do umbandista Luís Maranhão: o bairro só foi para frente depois que
mudou de nome.
68
seguiu o raciocínio, mas tudo indica que as disputas iam além do campo futebolístico; as
disputas religiosas deviam ser centrais. Apesar de não termos dados sobre a presença de
terreiros no bairro citado, Luís Maranhão, em entrevista, quando questionado sobre a presença
da Igreja Católica na cidade, conta, entre risos, que padre Remígio não gosta dele; acrescenta
que ele e Terezona tinham um time de futebol que disputava campeonatos com o time dos
padres e que os jogos “eram sempre uma festa”. Parece-nos que ambos, padre Remígio e Luís
Maranhão, falavam da mesma coisa. Desse modo, fica claro a presença de uma tensão na
relação entre ambos os grupos religiosos.
Outra história que demonstra essa animosidade, mas que servirá para entendermos
o assistencialismo praticado pelo povo de santo de Araguaína, é o caso narrado, de forma
confusa, por padre Remígio sobre uma mulher que estava grávida e parece ter procurado
ajuda de algum dirigente umbandista para fazer o parto dela ou um aborto. Padre Remígio
enfatiza que acabaram deixando-a jogada na porta da igreja sangrando, e eles tiveram que
socorrê-la. O fato de a mulher ter procurado um terreiro para resolver qual fosse seu problema
nos mostra as dificuldades enfrentadas na região no que se refere ao sistema de saúde público.
Se as outras igrejas chegavam com discursos e práticas de um evangelismo mediado pela
educação e saúde, os terreiros focalizam sua assistência à população através das consultas
com as entidades incorporadas nos dirigentes oferecendo conselhos e curas, no plano físico e
espiritual. Em entrevista dada para o quadro “O que vi da vida45” do programa televisivo O
Fantástico, o cantor e compositor Zeca Pagodinho, assumidamente frequentador de terreiro,
ajuda-nos a compreender o assistencialismo destes. Quando narrou as dificuldades vividas na
sua infância devido à falta de dinheiro na família, ele recordou que muitas vezes fora atendido
nos terreiros com consultas e remédios quando estava doente, porque, afinal, “médico de
pobre é pai de santo”.
Partindo dessa ideia podemos compreender por que em muitos rituais assistidos
por nós diversas pessoas vão especialmente para consultar com a Princesa Mariana na Tenda
Santa Joana D’Arc ou com Pai Joaquim na Tenda São Sebastião, da dirigente Maria Maciel,
dentre outros. Compreendemos, também, a grande quantidade de pessoas que se acercam à
casa de Dona Valdeci durante as manhãs e as tardes para consultar com a dirigente. Seja
individualmente ou em casal, homens e mulheres adentram os salões nos dias de rituais ou
mesmo diariamente na esperança de ser curados de doenças físicas e espirituais através de
45
Programa exibido em 7/8/2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acessado
em 24/6/2012.
69
rezas, oferendas, banhos e benzimentos ou na esperança de obter conselhos dos santos ou de
seus zeladores para inquietudes de cunho emocional, financeiro, existencial etc.
Esse viés assistencialista é analisado por José Henrique Motta de Oliveira (2007)
como a “fonte de todas as bênçãos” da doutrina espírita kardecista. Ele mostra como esse
assistencialismo é transformado em caridade nos centros espíritas e nos terreiros através de
serviços de ajuda mútua e para a comunidade. É a partir dessa influência que a Umbanda
passaria a assumir um caráter de religião assistencialista, onde “os espíritos trazem palavras
de consolo, proporcionando lenitivos para os males físicos e espirituais” (OLIVEIRA, 2007,
p.94). Na mesma direção aponta os estudos de Ricardo Oliveira de Freitas (2009). Esse autor
aponta a influência não somente do kardecismo, mas também do catolicismo popular no que
tange à prática caritativa presente nos terreiros de umbanda:
Terreiro de umbanda caracterizou-se pela oferta de doações e pela prática do
assistencialismo e caridade, característicos do “fazer o bem sem olhar a quem”
praticados pelo kardecismo e pelo catolicismo brasileiros. Tomou como “missão”,
“obrigação” ou compromisso determinado pelos “encantados” (para além da razão
explicativa da vida prática) a tarefa de realização de atividades que caracterizariam
o trabalho de ajuda mútua, articulação, negociação, doação, recepção, retribuição e
troca (FREITAS, 2009, p. 214).
Assim, a cura de doenças, cuidados com saúde, conflitos amorosos, problemas
com desemprego, entre outros problemas, levam diversas pessoas a procurar a assistência
umbandista através de consultas com os dirigentes em transe, sendo as entidades os
responsáveis pela solução dos problemas ou ainda com o próprio dirigente puro, ou seja, sem
estar incorporado.
A cidade conta com uma loja de artigos para umbanda, a Cabana Rompe Mato,
pertencente à Dona Valdeci. Numerosas vezes foi possível presenciar dezenas de pessoas indo
à loja durante o dia em busca de banhos, velas, sabonetes, defumadores, perfumes, etc. que
auxiliassem no desfecho de seus anseios. Do mesmo modo, vimos diversas pessoas irem até
Dona Valdeci pedir remédios naturais à base de plantas para enfermidades que variam de
dente inflamado a derrames, assim como benzimentos para diversos males físicos e
espirituais. O vasto quintal na casa dela contribui para sua prescrição e doação dos remédios,
uma vez que cultiva diversas plantas ditas medicinais, as quais são apresentadas pela dirigente
com suas propriedades curativas seguidas de histórias exemplares de seus usos.
70
Encontramos seis terreiros que se autoidentificam como Umbanda na cidade que
trabalham com gira e mais seis46 pessoas que “trabalham na mesa” fazendo consultas com
cartas, búzios, bola de cristal ou somente através da vidência sem uso de recursos materiais.
De acordo com o Censo de 2000, 57 pessoas teriam se identificado como umbandistas na
cidade. No que tange as religiões afro-brasileiras, o Censo apresentava duas categorias:
umbanda e candomblé; não tendo deste último ninguém na região. Porém, no Censo realizado
em 2010, a quantidade de umbandistas cai para 14 e há presença de 14 praticantes de
candomblé na cidade, ainda que não tenhamos encontrado terreiros que se autoidentificassem
com tal religião. Mais detalhes sobre o campo afro-religioso de Araguaína, assim como uma
análise dos dados do IBGE, serão apresentados no capítulo que se segue.
A constituição do campo religioso da cidade, à parte as disputas e os conflitos
entre igrejas — e aqui os terreiros sendo entendidos como tal por compreendermos igreja
como uma sociedade cujos membros de forma coletiva comungam concepções, crenças e
práticas idênticas (DURKHEIM, 2008) —, parece ser marcada pelas atividades
assistencialistas; ou seja, pela preocupação em proporcionar bem-estar às pessoas,
contribuindo para um melhor funcionamento da vida destas. No caso das igrejas de matriz
cristã espera-se que o assistencialismo esteja conectado diretamente com o espírito
evangelizador e missionário delas. A aceitação da assistência social pelo necessitado estaria
sempre margeada pela expectativa da conversão religiosa; conversão esta que deve ser
demonstrada através do rompimento súbito e radical com práticas e redes sociais anteriores.
No caso dos terreiros, o que parece ocorrer é a oferta de uma assistência independentemente
do credo professado pelo assistido. Não seria necessário o abandono de práticas cotidianas,
assim como a conversão não é sumariamente exigida.
Contudo, isso não significa a inexistência de uma cobrança dos terreiros. Aqui não
falamos de valores financeiros cobrados por consultas ou trabalhos realizados, porque, se
assim o fosse, as discussões dos dízimos e das ofertas realizadas nas igrejas cristãs
evangélicas deveriam vir à tona, e este não é nosso foco.
Reginaldo Prandi (1991), analisando as relações dos frequentadores de diversas
religiões no Brasil, chega à conclusão de que:
O candomblé e a umbanda não pressupõem a conversão de quem os busca para a
solução de problemas. Já o kardecismo implica uma adesão um pouco mais
46
É possível que esse número seja maior do que o encontrado porque muitos filhos de santo/médiuns, ao final do
desenvolvimento, com o batizado, realizem pequenas consultas e benzimentos em suas casas mesmo,
continuando a fazer parte do terreiro em que foi desenvolvido.
71
comprometida; e o pentecostalismo, completamente. O kardecismo e o
pentecostalismo são antes religiões de salvação que religiões rituais.
Fundamentam-se na “palavra” e prometem a salvação para aqueles que forem
capazes de se porem no mundo do modo como a Palavra prescreve (...). Para se
pertencer a essas religiões, é necessário assumir seus códigos de interpretação e de
conduta; não basta simplesmente participar recorrentemente do rito, como se faz no
catolicismo tradicional (...). Essas religiões pressupõem um envolvimento
doutrinário, ético, moral, em direção à conversão e adesão ao grupo religioso no
interior do qual se realiza a cura, a solução de múltiplos problemas e a mudança da
conduta de vida (PRANDI, 1991, p.27).
Dessa maneira, percebemos que, no caso dos terreiros, diferentemente da
expectativa de uma conversão religiosa, a fé em Deus e nas entidades é a principal exigência
cobrada para efetivação da ajuda procurada. Todos os dirigentes são unânimes em dizer que a
fé do consulente é mais importante para que os trabalhos ou pedidos tenham resultados
positivos. Alguns enfatizam que, mesmo com a falta da fé de quem pede, os trabalhos podem
ser realizados, porém estes tomariam mais tempo para se concretizarem do que aqueles em
que a fé do consulente está presente.
72
CAPÍTULO II
CAMPO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO DE ARAGUAÍNA
Nesse tempo [década de 1960] tinha centro aqui, que se
você dissesse assim: “Vou passar a semana todinha
caminhando em centro, você passava”. Era de segunda a
sábado47.
Como foi dito antes, encontrar as casas de culto afro-brasileiras em Araguaína foi
tarefa difícil. Primeiramente, esbarramos no preconceito de boa parte das pessoas da cidade,
as quais procuravam negar a presença dos terreiros, silenciando-se ou escondendo
informações caso soubessem. Acreditamos que tais comportamentos tenham sua base na
intolerância religiosa praticada por muitas religiões de matriz cristã na cidade. Se, de modo
geral e historicamente, as religiões afro-brasileiras foram e ainda são alvos de perseguições no
Brasil, pensamos que não poderia ser diferente em Araguaína, cidade que já surge com as três
principais religiões da tradição cristã: os católicos, os protestantes e os pentecostais. Vimos
também que os cultos afro-brasileiros estavam presentes quando do surgimento da cidade.
Porém, o caráter missionário e proselitista das religiões cristãs fizeram que estas se
espalhassem pela região, disseminando crenças e doutrinas que, margeadas pela rejeição e
demonização do outro — as religiões não cristãs —, marcavam uma oposição aos terreiros. É
certo que entre aquelas há disputas simbólicas e políticas pelos fiéis, pela verdade, pelo poder.
Mas o que vemos é a materialização de um inimigo, um mal comum a todas elas — as
religiões afro-brasileiras.
A questão da intolerância remonta ao período colonial, quando a liberdade
religiosa era inexistente. A religião oficial era a católica, que continuou até o império. Durante
o processo de laicização e secularização, a Constituição de 1824 avançou, pois ninguém
poderia ser perseguido por motivos religiosos (ORO, 2008). Assim, uma tensão entre Estado e
Igreja Católica começa a se configurar, dentre outros fatores, devido às disputas no campo
religioso, que agora estavam abertas de forma legal. A intolerância dos católicos relativa a
religiões protestantes, indígenas e de negros se intensifica nesse processo. Vagner Gonçalves
da Silva (2007) resume assim o modo como foi se configurando a intolerância às afrobrasileiras:
47
Trecho extraído da entrevista realizada com José Rodrigues em 24/10/2011.
73
Foram perseguidas pela Igreja Católica ao longo de quatro séculos, pelo Estado
republicano, sobretudo na primeira metade do século XX, quando este se valeu de
órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene mental, e,
finalmente, pelas elites sociais num misto de desprezo e fascínio pelo exotismo que
sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus
descendentes no Brasil. Entretanto, desde pelo menos a década de 1960, quando
essas religiões conquistaram relativa legitimidade nos centros urbanos, resultado
dos movimentos de renovação cultural e de conscientização política, da aliança
com membros da classe média, acadêmicos e artistas, entre outros fatores, não se
tinha notícia da formação de agentes antagônicos tão empenhados na tentativa de
sua desqualificação (SILVA, 2007, p. 23–4).
O autor, quando fala de agentes antagônicos, está se referindo às igrejas
pentecostais e à ênfase destas na “guerra espiritual” do bem contra o mal e contra seus
representantes na Terra — nesse caso específico aqui por nós analisado, as religiões afrobrasileiras. É certo que, no caso das religiões de negras e indígenas, não só as diferenças
dogmáticas com os católicos e protestantes marcaram e marcam a intolerância; também o
preconceito racial fortificou e acentuou um discurso demonizador dessas religiões contra
aquelas. Outro fator que, em Araguaína, parece contribuir para estigmatizar as religiões afrobrasileiras é a relação que a cidade tem com os migrantes nordestinos, em especial aqueles
vindos do Maranhão. A hostilidade a estes pode ser percebida de forma velada através das
piadas contadas no cotidiano das pessoas da cidade ou de forma explícita em brigas e
reclamações48.
A segunda dificuldade no levantamento dos terreiros surgiu quando encontramos
os primeiros. Uma nova disputa simbólica passou a se configurar diante de nós. Os dirigentes
dos terreiros, quando perguntados sobre a localidade de outros, diziam alguns nomes, mas
sempre seguidos de um comentário negativo: “feiticeiro”, “fazedor de magia negra” etc. A
princípio, alguns dirigentes negavam saber a localização de outros terreiros, o que nos levou a
pensar que não havia contato entre eles; essa percepção, porém, mudaria com o desenrolar da
pesquisa. Como Dona Valdeci, dirigente da Tenda Santa Joana D’Arc, e seu esposo, Osmar,
são os representantes da Confederação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) na cidade49,
acreditamos poder ter acesso às fichas de cadastro dos terreiros de Araguaína. Todavia, de
início vimos na dirigente certa resistência em falar das casas que ainda funcionavam na
cidade; quando pedimos para ter acesso à documentação da CEUB, a resposta foi que não era
possível devido ao sigilo exigido por esta. Assim, coube a nós, com paciência, ir ouvindo ali e
48
Análise de comportamentos semelhantes, contudo no sudeste do Pará, pode ser visto no trabalho de Idelma
Santiago da Silva (2010).
49
Tocantins não tem Federação regional para as religiões afro-brasileiras; o esposo de Dona Valdeci representa
como fiscal a Confederação Espírita Umbandista do Brasil com sede em Brasília/DF.
74
acolá (no tempo e no espaço) nomes de dirigentes que surgiam durante as conversas formais
ou informais.
As lembranças daqueles dirigentes vinham com o ato de narrar. Após ter
recolhido nomes de diversos dirigentes umbandistas, ouvíamos histórias envolvendo outros
nomes. Quando questionávamos o fato de não terem falado ainda sobre aquela pessoa
específica, a resposta era sempre a mesma: “É que não lembrava dele/dela”. Ainda que
ansiássemos por relatos lineares e precisos, percebemos que a memória tem seus modos e
tempos próprios de organização e funcionamento. É certo que, após dez meses de pesquisa
intensa na tenda de Dona Valdeci, seu esposo, Osmar, permitiu-nos ter acesso a algumas
fichas cadastrais de dirigentes que não mais estão em atividade. Foi com base nas informações
contidas nessas fichas e nas conversas e entrevistas com dirigentes que conseguimos mapear
os terreiros que existiam na cidade. Mesmo sabendo que a memória depende do narrar, o
surgimento de comportamentos silenciadores e de negativização entre os dirigentes
umbandistas vivos nos fez compreender as disputas simbólicas que as casas têm entre si;
disputas já analisadas em outras regiões por pesquisadores como Ari Oro (2002) e Reginaldo
Prandi (1991) à luz da estrutura e do ethos das religiões afro-brasileiras.
O contexto socio-histórico africano, redefinido no seio das religiões afrobrasileiras, permite compreender que os terreiros são,
todos ao mesmo tempo autônomos e rivais entre si. Como não existe, no âmbito
desta religião, uma única hierarquia religiosa, um poder centralizador e aglutinador
dos centros religiosos, estes constituem-se autônomos e, por isso mesmo,
concorrentes entre si. […] Ora, este ethos constituído de permanente disputa,
rivalidade entre terreiros e desqualificação do outro, torna, como reconhece R.
Prandi, bastante remota a possibilidade de união entre terreiros e grupos (ORO,
2002, p.368, grifo do autor).
Assim, é comum em diálogos com os dirigentes umbandistas em Araguaína
ouvirmos acusações de feitiçaria, magia negra, cobrança indevida, trabalhos mal-feitos e
pouca sabedoria de uns para com os outros. Prandi (1991) chama a atenção para o fato de que
“no candomblé a guerra é constitutiva, a disputa é constante e a afirmação pessoal é
imperativa, o que, de certo modo e num certo grau, reproduziu-se na umbanda” (PRANDI,
1991, p. 24). Logo, o que passamos a ver no campo foi uma disputa por reconhecimento e
legitimação por cada dirigente.
Um dos pontos de legitimação nas narrativas dos dirigentes é o fato de muitos
terem passado ou conhecido José Bruno de Morais de Nazaré, MA. O “padrinho Bruno”,
75
“Mestre Zé Bruno” ou “O velho”, como muitos o chamam, foi na Umbanda maranhense “um
mito” (COSTA, s. d.). José Bruno nasceu em 1897, no Piauí, mas foi no Maranhão, após sua
chegada, em 1938, que ele, através de seus dons de cura e sabedoria da Umbanda, tornou-se
referência para quem precisava de ajuda espiritual. Diversos foram os dirigentes encontrados
que relataram ter conhecido José Bruno e se desenvolvido com ele: Dona Valdeci, José
Rodrigues, Luís Maranhão, Maria dos Santos, Maria Alice e Pescocinho. Há dirigentes que
não acreditam na passagem de alguns outros por Nazaré; mas, independentemente de ser
“verdade ou não” a passagem destes, o que importa aqui é compreender a importância desse
umbandista emblemático para a construção e valorização da memória daquele que garante têlo conhecido. O fato de ter passado por Nazaré e ter sido desenvolvido por José Bruno parece
legitimar, na região, a identidade de uma pessoa como dirigente umbandista e
consequentemente valoriza seu trabalho. Assim, além do silêncio e da negativização
encontrados, a luta por legitimação e reconhecimento através da disputa pela “herança ou
legado” religioso deixado por Bruno de Nazaré foi outro fator que contribuiu para
compreendermos as relações entre os terreiros em Araguaína.
Mesmo
com
as
dificuldades
expostas,
conseguimos
um
levantamento
considerável do campo religioso afro-brasileiro na cidade. Dessa forma, resolvemos
categorizar os dados obtidos, separando-os entre os dirigentes vivos e os já falecidos — dentre
os que estão vivos, ainda fizemos outras três divisões: dirigentes vivos, mas inativos; aqueles
que têm salão com gira; enfim, os que trabalham com mesa.
76
QUADRO IV – Campo religioso afro-brasileiro de Araguaína
DIRIGENTES VIVOS
DIRIGENTES
FALECIDOS
“DESISTENTES”
Maria Matos
Terezona
Zefinha
Maria dos Reis
Felinha
Olinda
Nikita
Maria José
Mauro
Osmar
João Raimundo
Gama
Dedé
Raimundinho
Brasil
Mestre Euclides
Cego do Bambu
Raimunda Batista
COM SALÃO
COM MESA
Rogério
Valdeci
Madame Socorro
Naldinho
José Rodrigues
Maria Muniz
Deusdete
Clezio
Luís Maranhão
Inácio
Nazareno
Cida
Pescocinho
Maria Alice
Percília
Pedro da Carroça
Maria Maciel
Maria dos Santos
2.1 – Entre lembranças dos que se foram e atividades dos que ficaram
A epígrafe deste capítulo, com as palavras do dirigente José Rodrigues, dá um
panorama da presença da Umbanda em Araguaína logo após sua criação, em 1958. Zé
Rodrigues, como é conhecido, ainda é enfático sobre o número de terreiros na época: ele
chegou a nos contar que havia “mais de 200 centros por aqui”. Com bastante entusiasmo pela
afirmativa, resolvemos então saber sobre esses dirigentes e por onde andavam. Assim,
percebemos que o valor dado pelo dirigente correspondia menos a um número exato do que a
uma ênfase na quantidade de terreiros na cidade. Como lidamos com uma religião de tradição
oral, ainda que mediada por uma instituição da tradição escrita, como é o caso da
confederação, a quantidade exata de terreiros é difícil de precisar. Mas, segundo dados
recolhidos com os dirigentes vivos e com o fiscal Osmar, chegamos a 36 umbandistas,
incluídos nas categorias de trabalho com mesa ou salão, que estejam vivos ou falecidos.
Muito do que se sabe sobre o passado das religiões afro-brasileiras na cidade ficou
a cargo da memória dos que nela permaneceram. Sabemos que a memória é passível de
fragmentação, ainda mais quando esta é transmitida oralmente. Ao procurar ouvir os
dirigentes com chegada mais recente em Araguaína (Maria Maciel, Clezio, Maria Alice) sobre
77
a história da Umbanda na cidade, ainda se lembram de um terreiro ou outro, mas são sempre
enfáticos ao dizer que o ideal seria conversar com Dona Valdeci, por ser representante da
confederação e uma das mais velhas na cidade, e com os dirigentes Luís Maranhão e José
Rodrigues, por serem os umbandistas mais velhos na região. Assim, vemos que, mesmo com
a presença da tradição escrita de uma confederação, as memórias dos três dirigentes são
colocadas e consideradas como arquivos vivos da Umbanda na cidade devido ao maior tempo
de ambos na região e na religião. Os três solidificariam e dotariam de duração e estabilidade
os fatos. Agiriam intervindo no trabalho de constituição e formalização de memórias
“esquecidas” pelos discursos oficiais da cidade.
Em entrevistas realizadas com esse três dirigentes, percebemos que as lembranças,
em especial dos dirigentes falecidos, iam se organizando à medida que a conversa fluía e que
trazíamos dados coletados com outros. Convergências e divergências de informações se
tornaram presentes durante as entrevistas. Porém, antes de significar invenção ou mentira,
devemos compreender — como Portelli (2002) afirmou — que diferentes pontos de referência
estruturam nossa memória, ressaltando que o silêncio também é referência estruturante. Os
silêncios e os não ditos são moldados “pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser
punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos” (POLLAK, 1989,
p.08).
É certo que muitas informações silenciadas para um público externo encontram
sonoridade no seio familiar ou entre os pares. Assim, muitas “lembranças [que] são
transmitidas no quadro familiar, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou
política. [...] lembranças proibidas [...] zelosamente guardadas em estruturas de comunicação
informais” (POLLAK, 1989, p.09) passam “quase” despercebidas pelo pesquisador. Dizemos
“quase” porque, devido às diversas visitas aos dirigentes e ao longo tempo que
permanecíamos com eles, pudemos capturar algumas lembranças compartilhadas com seus
parentes e amigos que se traduziram em dados para a pesquisa. Assim, foi possível, com base
nos fragmentos memoriais, ordenar esse passado; reconstruído com (re)interpretações das
lembranças conforme as circunstâncias apareciam. Nesse caso, percebemos que sempre há
uma reflexão dos dirigentes sobre a utilidade de falar e transmitir seu passado ou, neste caso,
o passado dos outros, dos mortos.
O fato de ter tido muitos terreiros no passado é narrado com saudosismo quando
comparado com a quantidade em atividade: seis salões com giras e seis trabalhos de mesa. Por
mais que as narrativas apontem a presença de muita disputa e muito confronto através do
plano espiritual entre algumas casas (trabalhos e feitiços realizados de alguns para outros), o
78
fato é que a memória selecionada aponta, ainda, os bons trabalhos que eram realizados em
prol da população araguainense. Ainda que tenha ocorrido grande redução no quadro religioso
umbandista na cidade, a memória sobrevive, assumindo um caráter geral mítico que, não
encontrando apoio no cenário atual, engrandece o passado numa tentativa de legitimação
individual e coletiva dos que restaram.
A ênfase dada por José Rodrigues na quantidade de terreiros no passado encontra
cumplicidade na ênfase que Dona Valdeci dá à religiosidade afro-brasileira na cidade. Esta,
em duas ou três referências a disputas, brigas e demandas — sinônimo de feitiço e magia
negra no universo umbandista — entre dirigentes e em meio à população que os procura,
disse que “Araguaína é pior do que Codó”. Sua frase faz menção à tão conhecida fama, ao
menos no Norte e Nordeste do Brasil, desta cidade maranhense como a “capital da magia
negra50”. Desse modo, ainda que Dona Valdeci se refira ao presente, percebemos que
independentemente da quantidade de casas umbandistas na cidade, o que importa é a
qualidade de seus trabalhos — muitas vezes mensurados por feitiços e curas realizadas pelos
dirigentes.
Para dar conta da quantidade de dirigentes encontrados até o presente momento,
resolvemos organizá-los, primeiramente, nos que já faleceram, não importa se realizavam
trabalhos com gira ou mesa; em segundo lugar, trataremos dos umbandistas vivos que, por
diversas razões, não trabalham mais, seja com gira ou com mesa. Os terreiros com gira em
atividade serão foco de nossa atenção no item seguinte. Por fim, detalharemos os umbandistas
de mesa, como são chamadas, em Araguaína, as pessoas que trabalham com tarô, cartas,
búzios etc.
2.1.1 – “Os antigos que trabalhavam perfeitamente morreram51”
Até o presente momento, foram obtidos relatos sobre 18 dirigentes que estavam
em atividade em Araguaína e faleceram. Os dados que se seguem (nomes e outras
informações) foram recolhidos em conversas formais (gravadas) e informais com alguns
dirigentes, em especial Dona Valdeci, José Rodrigues e Luís Maranhão, e fichas cadastrais da
confederação. Apesar de não termos conseguido recolher as mesmas informações
questionadas sobre todos, pois nossos informantes nem sempre tinham estreito contato com os
que morreram, chamou nossa atenção o fato de que todos são lembrados por seus “bons
50
51
Ver FERRETTI, M. (2001).
Trecho anotado de uma conversa com Luís Maranhão no dia 28/6/2012.
79
trabalhos”, “por trabalharem bem”. Essas afirmativas podem ter uma multiplicidade de
compreensões: podem se referir ora ao fato de uma gira ter início, meio e fim, ora a outro tipo
de organização ritual, mas coerente para o dirigente que assiste, ora ao fato de um trabalho,
uma cura ou outra atividade ser realizada com êxito, enfim, ora ao universo binário cristão
(bem/mal), sendo um “bom trabalho” uma oposição aos trabalhos de “magia negra”.
Independentemente do significado desse passado para cada narrador, as memórias
selecionadas, para ser transmitidas ao público externo aos terreiros, são sempre positivas.
Como veremos, os problemas enfrentados e os desafios vividos ficaram para ser narrados
sobre a vida dos que ainda estão vivos. Os problemas parecem ser encarados como
atribulações a ser superadas para haver purificação espiritual desses dirigentes. No caso dos
que já morreram, a morte parece cumprir essa tarefa purificadora.
Aqueles referidos na memória oral dos terreiros, em especial pelos dirigentes
citados, transmitidos a nós através da oralidade, são: Maria Matos, Terezona, Zefinha, Maria
dos Reis, Felinha, Olinda, Raimunda Batista, Nikita, Maria José, Mauro, Osmar, João
Raimundo, Gama, Dedé, Raimundinho, Brasil, Mestre Euclides e Cego do Bambu. É difícil
precisar a data de chegada a Araguaína dessas pessoas. Mas, com base em relatos de Dona
Valdeci e Luís Maranhão, podemos levantar algumas hipóteses. Se Luís Maranhão conta ter
chegado à região em meados da década de 1950, já encontrando Maria Matos com salão em
atividade, podemos acreditar que esta tenha chegado à região entre o fim da década de 1940 e
início da seguinte. Segundo alguns informantes, ela seria natural de Marabá, PA. O dirigente
Osmar parece ter chegado à cidade, mais ou menos, no mesmo período que Luís Maranhão,
uma vez que este afirma que aquele era contemporâneo seu no terreiro de Maria Matos, tendo
sido os dois desenvolvidos por ela. Osmar teria fechado seu salão na cidade e ido embora para
Xinguara, Pará, onde acabou por ser assassinado. A sua ida para o Pará pode nos indicar
algum vínculo anterior com esse estado, permitindo assim seu retorno.
Assim como os já citados, acreditamos que dirigentes como Nikita, Maria José e
Maria dos Reis tenham chegado a Araguaína no início dos anos 1970. Tal hipótese se sustenta
no fato de que Dona Valdeci, ao se mudar para a cidade, em 1978, conta que essas pessoas já
se encontravam ali e que não tinham muito tempo de residência na região. Dona Maria José
teria chegado de Tocantinópolis e Maria dos Reis, mesmo sendo esposa de José Rodrigues à
época, não teria vindo com ele do Piauí. Em entrevista realizada com José Rodrigues, ele nos
contou que chegou sozinho à cidade, por volta de 1968, e só então se casara.
A chegada de Mauro também parece datar da década de 1950. Em uma das visitas
realizadas à casa de Dona Valdeci, conhecemos uma senhora consulente do centro que nos
80
contou que era natural do Maranhão e chegara à cidade por volta de 1957, 1958. Ela disse
que, quando chegou, ouvira falar de Mauro, o que nos leva a crer que ele já estava instalado
em Araguaína havia alguns anos. De onde Mauro teria vindo, não soubemos; assim como
muitos dos dirigentes falecidos. Mas, pelas informações recolhidas sobre alguns deles —
Maria Matos e Terezona serem do Pará; Olinda e Dedé, do Maranhão; e João Raimundo ser
do Piauí — e com base nos dados apresentados no primeiro capítulo sobre a forte migração
para a região nas décadas de 1960 e 1970 de pessoas provenientes desses três estados,
acreditamos poder levantar a hipótese de que os outros dirigentes poderiam ser também
oriundos de tais regiões.
É interessante observar que nesse grupo todas as dirigentes trabalhavam com
salão e tinham grande quantidade de médiuns. A tenda de Terezona é lembrada por sua
organização: dizem que era bem arrumada e comportava 300 pessoas na assistência52. Olinda
era a dirigente do maior salão em quantidade de médiuns da cidade. Não sabem dizer ao certo
a quantidade de dançantes da casa dela, mas podemos imaginar que esse número superasse a
casa dos 30, uma vez que, quando comparados com os das tendas de Nikita e Maria José, que
tinham quase 25 médiuns trabalhando com elas, os informantes dizem que o centro de Olinda
“nem se comparava com o delas” em quantidade de pessoas na gira.
Entre os homens, temos uma diversificação nos trabalhos realizados. Dentre os
nove, cinco trabalhavam com gira: Osmar, João Raimundo, Dedé, Raimundinho e Brasil. João
Raimundo era médium de Terezona. Com o falecimento desta, ele assumiu o salão; mas
dizem que, logo após, ele fechou a gira e passou a trabalhar somente na mesa. Raimundinho e
Brasil eram os dirigentes que mais tinham médiuns em seus centros: ao que tudo indica,
pareciam superar o centro de Olinda nesse quesito. Dizem que o de Raimundinho era o “mais
famoso entre os ricos da cidade”.
Fora os dirigentes que trabalhavam com gira, havia quem trabalhava só com
mesa: Gama, Mestre Euclides e Cego do Bambu. Gama foi o mais famoso dos umbandistas
de mesa da cidade; dizem que todos gostavam dele dentro da Umbanda araguainense, e os de
fora também. Disseram que era muito querido pelos políticos da região, o que parece verdade,
pois após sua morte, a rua onde residia ter o nome alterado para o dele: rua Gama. Tanto ele
como o Cego do Bambu são descritos como “bons cientistas” por trabalharem com “ciências
ocultas”. Dona Valdeci explica que esses trabalhos são aqueles realizados de forma secreta,
sem ter a presença de ninguém. Não necessariamente se trataria de “coisa ruim”. O fato de
52
Pessoas que vão aos terreiros para consultarem ou somente assistirem.
81
serem “bons cientistas” é explicado pela mesma dirigente com base na compra de materiais
realizadas por eles na loja de artigos para umbanda dela. Ela dizia que eles compravam
banhos, pembas, perfumes etc.: “somente coisas certas para os fins certos”. Dos que
trabalhavam com mesa, parece que só Mestre Euclides incorporava durante as consultas. Ele
dizia ‘receber’ padre Cícero e Maria Madalena. Os outros jogavam cartas para os consulentes,
mas sem estarem em transe.
Mauro é um caso à parte dentre os umbandistas aqui descritos. Ele não tinha
salão, não tinha mesa e — dizem — nem altar. Vivia numa chácara onde recebia as pessoas
que quisessem ser ou ter suas propriedades benzidas. Luís Maranhão disse que ele fazia muito
trabalho, despacho para assuntos de dinheiro e amor. Também disse que sabia que ele
realizava, incorporado, os benzimentos e despachos; mas não soube informar com quais
entidades Mauro trabalhava.
Dona Valdeci conheceu boa parte dos dirigentes de tendas de Araguaína devido
ao trabalho de seu esposo como representante da CEUB53. E pôde assistir a rituais realizados
por quatro deles: Terezona, Dedé, Raimunda Batista e Maria dos Reis. Foi justamente por
causa dessas visitas que Dona Valdeci pode nos contar, por exemplo, que Terezona trabalhava
com Umbanda Omolokô54 e com Mina de Cura55 e que tinha como principais entidades
Jarina, João da Mata e Zé Raimundo de Légua. Contou também que Raimunda não tinha
tambor no salão dela e ‘recebia’ Príncipe Légua e Índia Perpétua durante os trabalhos.
Quando visitou o terreiro onde Maria dos Reis trabalhava, esta ainda era casada com José
Rodrigues.
Outras relações e vínculos entre os dirigentes foram aparecendo no decorrer da
pesquisa: Luís Maranhão e Osmar foram desenvolvidos por Maria Matos; Maria dos Reis foi
esposa de José Rodrigues; João Raimundo foi médium de Terezona; e descobrimos que
Felinha era médium de uma dirigente cuja tenda está atualmente fechada: Maria dos Santos,
que por sua vez fora iniciada por Luís Maranhão. Mesmo com essas relações mais diretas
entre os dirigentes, notamos que as visitas entre as casas de Umbanda em dias de trabalhos ou
datas festivas não eram nem são hábito comum na cidade.
53
Os dirigentes de outros centros devem, todo ano, ir à residência de Dona Valdeci para a retirada do alvará de
funcionamento.
54
Omolokô ou Omolocô é um culto afro-brasileiro que admite, no mesmo ambiente, práticas do Candomblé e da
Umbanda. Há o culto aos orixás de forma semelhante, mas não idêntica ao Candomblé; e aos caboclos, às
crianças, aos exus, às pombagiras, pretos velhos etc., como ocorre na Umbanda.
55
Esse ritual será explicado de forma mais detalhada no capítulo III por se tratar de um ritual muito específico da
Tenda Santa Joana D’Arc. Mas adiantamos que tem forte influência da pajelança maranhense e paraense.
82
Por fim, acreditamos ser necessário apontar a localização desses dirigentes em
56
Araguaína . Ao contrário do que se poderia imaginar, estes estavam, a maioria, na região
considerada central da cidade. O bairro São João parece ser o bairro com maior concentração
de terreiros; ali estavam dirigentes como Terezona, Nikita, Maria José, João Raimundo e
Gama. Nas imediações do São João, temos o setor central, onde trabalhava Raimundinho e
Raimunda Batista; na região da Feirinha (Vila Aliança), estava Dedé; e nas proximidades do
Cemitério São Lázaro estava Osmar. No bairro Neblina trabalhavam Mestre Euclides e Cego
do Bambu. Maria Matos tinha seu salão num local conhecido antes como Escondido, que é a
atual região do bairro JK, onde Zefinha residia e trabalhava também. Brasil tinha seu salão
num bairro que era seu homônimo. Na saída da cidade em direção ao rio Jacuba, onde está o
bairro Patrocínio, trabalhavam Mauro e Olinda. Foi no bairro Araguaína Sul que Maria dos
Reis começou a trabalhar com José Rodrigues e onde abriria seu salão após se separar dele.
Nesse mesmo bairro ainda era possível ouvir os tambores de Felinha.
Com exceção de alguns terreiros, como o da dirigente Terezona, cujo salão João
Raimundo assumiu após a morte dela, os demais tiveram suas portas fechadas após o
falecimento de seus fundadores porque não havia quem os conduzisse. Intriga-nos a
quantidade de médiuns que se dizia haver nos salões mencionados e a redução de casas e
umbandistas na cidade. No Censo de 1991, 39 pessoas se declaravam como pertencentes à
Umbanda e ao Candomblé. Em 2000, esse número chegou a zero, mas volta a ter certa
expressão — 14 pessoas — no Censo de 2010. Sobre a categoria Umbanda, utilizada pelo
IBGE, o Censo apresenta que, em 1991, ninguém se declarava pertencente a essa religião.
Mas o levantamento de 2000 aponta 57 pessoas se declarando como umbandistas. Esse
número caiu para 14 no Censo seguinte.
Tabela IV – Pop. total residente em Araguaína por religiões afro-brasileiras
Censo 1991
Censo 2000
Censo 2010
103.315
113.143
150.484
Umbanda e Candomblé
39
—
14
Umbanda
—
57
14
População total
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
A fim de compreender a metodologia e categorização utilizada pelo IBGE na
pesquisa realizada por eles, escrevemos e telefonamos diversas vezes, solicitando tais
56
Ver Anexo Encartado — Mapa Afro-religioso de Araguaína.
83
informações; porém, até o presente momento, não recebemos retorno das solicitações feitas
por nós. Acreditamos que um dos fatores que contribuíram para a pouca quantidade de
umbandistas apresentada pelo IBGE na cidade, além da metodologia de amostragem utilizada
por esse instituto, seja o fato de que muitos umbandistas, quando questionados sobre qual
seria sua religião, tenham se declarado “espíritas” ou “católicos”. Assim, compreendemos por
que os dados do Censo de 2010 se distanciam — e muito — daqueles encontrados por nós,
uma vez que sabemos, através das observações diretas realizadas em diversos terreiros, que a
quantidade de umbandistas na cidade apresentada pelo Censo corresponderia somente à
quantidade de médiuns de uma das casas visitadas.
Voltando às décadas anteriores, indagamos onde estaria a grande quantidade de
médiuns que as casas fechadas tinham? O dirigente José Rodrigues conta que “um bocado
morreu, outros foram embora, e o lugar foi crescendo e o povo, não”. Por intermédio de
outros dirigentes, soubemos que muitos se tornaram evangélicos. Em conversas trocadas e
ouvidas em algumas casas, percebemos também a dificuldade de trabalhar com os jovens: os
dirigentes mais velhos queixam-se da imaturidade e falta de interesse e responsabilidade da
juventude; não acreditam que queiram pensar em religião e nas obrigações que vêm com esta,
daí a resistência de algumas casas quando lhes é sugerida a iniciação de médiuns mais jovens.
Além das obrigações rituais inerentes a todas as religiões afro-brasileiras em
geral, e a Umbanda em particular, as dificuldades e os problemas enfrentados na vida
cotidiana contribuem para a não aceitação ou desistência dessas religiões. É sobre esses
dirigentes umbandistas que, por diversos motivos, cessaram suas atividades de que trataremos
a seguir.
2.1.2 – “Esses são os que desistiram57”
No decorrer da pesquisa realizada por nós para mapear os terreiros, deparamo-nos
com um grupo de dirigentes que, no passado, trabalhavam com Umbanda de mesa e/ou de
gira, mas que não estão mais em atividade. Entre tantos dirigentes encontrados, os que se
encaixam nessa categorização são: Rogério, Naldinho, Inácio, Pescocinho, Pedro da Carroça e
Deusdete. Não nos foi possível encontrar e entrevistar tais dirigentes, com exceção de
Pescocinho. A dificuldade, no caso de Deusdete, Pedro da Carroça e Inácio foi o fato de não
morarem mais na cidade. No que diz respeito a Naldinho, encontra-se preso fora da cidade de
57
Frase proferida por Dona Valdeci em conversa no dia 9/7/2012.
84
Araguaína, sob acusação de envolvimento em assassinato. Por algumas vezes, entramos em
contato com Rogério, porém somente por uma vez conseguimos falar com ele, por telefone;
fora isso, não atendeu as outras ligações nem respondeu aos e-mails. Assim, a maior parte das
informações trazidas sobre esses dirigentes é fruto dos relatos de outros.
Todos os dirigentes mencionados trabalhavam inicialmente com salão.
Pescocinho e Inácio tinham seus centros no bairro São João; os outros estavam espalhados
pela cidade: Rogério, no bairro São Miguel; Naldinho, no Céu Azul; Pedro da Carroça, no
Araguaína Sul; Deusdete, no Patrocínio, próximo ao terreiro de Olinda. Deste último tivemos
informação de que seu terreiro era grande e tinha muitos médiuns. Deusdete era pai de santo
de Naldinho. Contudo, afirmam que este deixou o terreiro daquele ainda jovem e abriu um
para si. Rogério também teve muitos filhos de santo, sendo Clezio um deles. Dizem que o
terreiro dele era “frequentado por gente rica” e que a maioria dos filhos de santo dele eram
“médicos e enfermeiros formados”.
Pescocinho nos contou que nascera em 1934, na cidade de Novo Exu,
Pernambuco. Contou que parou de trabalhar porque ficou doente e velho. Luís Maranhão
disse que quando ele adoeceu, a esposa o largou; mas ele vive com outra mulher que, segundo
ele, “está constantemente embriagada”. Na visita realizada, percebemos a dificuldade de
Pescocinho em caminhar, ouvir, falar e lembrar dados de sua vida. Seu nome verdadeiro é
Odival Gomes da Silva e faz 50 anos que vive em Araguaína. Segundo ele, teria sido
desenvolvido por Bruno de Nazaré no Maranhão, assim como Dona Valdeci, Luís Maranhão,
Maria dos Santos, José Rodrigues e Maria Alice. Ele contou que, quando trabalhava com gira,
chegou a ter quase 20 médiuns no seu salão. Suas principais entidades eram Rei Lorival, da
linha das águas, segundo ele, e Manezinho da Jurema, representando a linha das matas.
Os motivos que levaram esses dirigentes a fechar suas casas e encerrar, em alguns
casos, suas atividades espirituais umbandistas variam de caso para caso. Sobre Deusdete, foinos dito que teria se mudado para Tocantinópolis e, lá, teria se tornado evangélico. As
histórias ouvidas sobre a “desistência” de Inácio e Pedro da Carroça têm suas semelhanças.
Ambos pararam com seus trabalhos após perderem suas esposas. No caso de Pedro da
Carroça, contaram que, após a morte da esposa, ele ficou “desgostoso da vida e da Umbanda”
e parou de trabalhar. Inácio, por sua vez, era médium vidente vindo do Piauí e sua esposa era
médium de incorporação. Esta teria se separado daquele fazendo com Pedro se “desencantasse
85
da vida”. Assim, o salão foi fechado. Valdeci conta que, apesar de Pedro não ter mais o salão,
ouvira dizer que ainda benze as pessoas e receita banhos58 para elas.
Outro que, embora tenha fechado seu salão ainda continua com algumas
atividades, é Naldinho. Tomamos conhecimento desse dirigente devido à morte de uma
professora na cidade em 2006, na qual ele estaria envolvido. O caso já foi julgado, e ele foi
condenado à prisão após confessar ter dado uma porção de veneno para a professora e depois
atirado nela a mando da sogra da vítima. Ele alegou que estava incorporado por espíritos
obsessores59 no momento do crime. Quando questionamos aos outros dirigentes as práticas de
Naldinho, muitos dizem que ele era “quimbandeiro60” e que “nunca tinha mexido com coisas
boas”. Um dos dirigentes chegou a dizer que Naldinho “nunca teve um desenvolvimento de
qualidade”, por isso “aceitou cinco mil reais para matar a professora”. Os dirigentes
entrevistados são unânimes em dizer que ele mente quando diz que estava incorporado.
Segundo eles, Naldinho só estaria tentando se livrar do que fez. Convém pontuar que, em
conversa com uma aluna da UFT que é jornalista local, ela nos contou que à época do
assassinato alguns dirigentes foram procurados por ela para saber da relação deles com
Naldinho. Ela disse que todos disseram que ele não era pai de santo. Seis anos depois,
conversando com eles, sabemos que ele realmente tinha salão.
Entretanto, acreditamos que o medo e a vergonha possam ter influenciado nas
respostas dadas à jornalista. Vergonha de ter alguém como ele no seio da Umbanda
contribuindo para a negativização da religião e medo de ser perseguidos e/ou responder por
um crime que não cometeram. Dona Valdeci contou que seu esposo, como representante da
confederação, tinha fechado a casa de Naldinho meses antes por “irregularidades”. As notícias
mais recentes que os dirigentes da cidade têm dele é que ainda está preso e que continua
trabalhando com sua Umbanda de mesa dentro do presídio.
Em agosto de 2010, quando fizemos o primeiro contato com Rogério por telefone,
este nos contara que estava com seu salão fechado devido à morte de seu filho, mas que em
outubro daquele ano retomaria os trabalhos, após completar um ano do falecimento da
criança. Assim, ele nos passou o telefone de seu filho de santo Clezio caso precisássemos de
algo. Mas a reabertura de seu salão não ocorreu até o presente momento. Na entrevista
58
É uma das formas de utilização das ervas pela Umbanda. Banhos de descarrego, de limpeza, abre caminho etc.
são receitados para pessoas que sofrem de males espirituais, econômicos, afetivos etc.
59
Espíritos obsessores é um termo utilizado pelos kardecistas, e apropriado pela Umbanda, em referência a
espíritos desencarnados que ainda não alcançaram o arrependimento para se reencarnar. São considerados
inferiores e, ao obsidiarem alguém, estariam indo contra o livre-arbítrio do obsidiado, causando “perturbação
completa do organismo e das faculdades mentais” (CAVALCANTI, 1983, p.81).
60
Quimbandeiro é um termo nativo que faz referência às atividades de alguns dirigentes para prejudicar pessoas.
Por trás da realização dessas práticas, estariam trabalhos e oferendas para os exus.
86
realizada com Clezio em março de 2012, ele nos forneceu alguns dados sobre Rogério:
soubemos que a Umbanda dirigida por ele era Omolokô; assim, Clezio oferece uma
explicação sobre a umbanda praticada por Rogério e, consequentemente, por ele:
Umbanda Omolokô é uma mistura do Candomblé, da Umbanda e do Espiritismo.
Ainda pega um pouco da Igreja Católica. A diferença na Omolokô, por exemplo,
que são os rituais para os orixás. Que nós chamamos ritual para orixá, porque nós
dançamos para os orixás, damos obrigação para orixá, às vezes usamos até o
dialeto. Temos algumas canções que são em iorubá, mas o princípio é a Umbanda.
Então a gente trabalha com o caboclo, a gente trabalha com o preto velho, trabalha
com erê (Clezio, 3/3/2012).
Acreditamos que Rogério, após o falecimento de Terezona, possa ter sido o
primeiro dirigente a trabalhar nessa linha na cidade. Segundo Clezio, Rogério teria sido feito
em Goiânia e, após sua chegada à cidade, montou seu salão e começou a trabalhar com gira
no bairro São Miguel. Ao contrário dos outros dirigentes, Rogério é novo — aparenta ter uns
40 anos de idade —, é formado em Biologia e leciona em um colégio particular. Apesar de
não ter reaberto sua casa, o dirigente cumpre suas obrigações, agora na casa de Clezio.
Notamos que, diferentemente dos mais antigos dirigentes, Rogério não vivia só para a
Umbanda: percebe-se que está no grupo dos mais letrados/escolarizados entre os dirigentes e
com atividades empregatícias à parte do salão. Assim também são Clezio, seu filho de santo, e
Nazareno, outro dirigente. Desse modo, poderíamos dizer que não vivem exclusivamente do e
para o santo, como acontece com os outros dirigentes que não têm emprego fora dos limites
do terreiro.
Por fim, buscamos compreender a frase proferida por Dona Valdeci que indica os
dirigentes citados como “desistentes”. Foi como resultado da pergunta sobre quem seriam
esses umbandistas que, por diversos motivos, pararam com seus trabalhos que surgiu essa
resposta. Ainda que durante a conversa tal frase tenha nos levado à interpretação primária de
que as desistências eram decorrentes dos motivos citados antes, tais casos nos remeteram a
outras histórias tantas vezes ouvidas e contadas, as quais, por sua vez, nos levaram a outros
caminhos interpretativos. Muitas histórias de dificuldades financeiras, problemas de
intolerância religiosa com vizinhos, familiares e evangélicos, problemas de saúde, dentre
outros, foram relatados por vários dirigentes que ainda continuam trabalhando. Frente a tantos
percalços, as respostas sempre dadas para a superação destes eram que “Deus é maior”, “tem
que entregar nas mãos de Deus e confiar”.
87
Com base nesses enunciados, temos uma compreensão maior do que, também,
poderia vir a ser o “desistir” explicado por Dona Valdeci quando faz menção aos dirigentes
citados. Percebemos que ela e Maria Maciel, outra dirigente em atividade, acreditam que a
Umbanda e a mediunidade lhes foram dadas como “missão a ser cumprida nesta vida”;
missão esta que está acompanhada de bônus e ônus. Os bônus derivam das caridades
realizadas para com as pessoas e os espíritos; o ônus é fruto de deveres não cumpridos ou
mesmo de provações enfrentadas. Acreditamos que os problemas enfrentados pelos
dirigentes, muitas vezes, são vistos por outros como provações e/ou tentações, as quais fazem
parte da missão dada por Deus a eles e devem ser enfrentadas e/ou resistidas com o auxílio
celestial. Essa interpretação dos problemas pode ser compreendida à luz das relações
estabelecidas com o sagrado e as experiências vividas: quando não há boas relações com o
plano espiritual, uma série de problemas materiais, físicos e espirituais recai sobre o ser
humano, os quais são interpretados como provação, intervenção do sagrado para alertar dos
erros cometidos. O oposto desses problemas são indicadores de uma relação harmoniosa entre
o universo material e o espiritual. Assim, a experiência se torna o uma espécie de medidor do
elo entre os dois universos (HENRY, 2000).
Desse modo, parece-nos que, para os dirigentes ainda em atividade, a desistência
como explicação para a não continuidade das atividades dos dirigentes mencionados pode ser
compreendida como a não confiança em Deus e nas entidades. Essa não confiança na
resolução dos problemas, assim como a não aceitação das provações, parece resultar na
desistência das missões celestiais dadas a eles. Se estes estavam preparados para assumir as
responsabilidades da Umbanda, é uma pergunta que fica sem resposta; mas podemos, com
esses casos, entender mais um dos motivos que fazem os dirigentes mais velhos não quererem
iniciar pessoas jovens em seus salões. A dificuldade de saber se as pessoas levarão a missão
adiante de forma responsável e séria parece pesar na hora dessa decisão. A responsabilidade a
ser observada não estaria só nos trabalhos que não devem ser feitos de “magia negra” para
prejudicar alguém ou no não cumprimento das obrigações; a responsabilidade também paira
sobre a caridade, que deve ser realizada sem ganho financeiro.
Há uma constante discussão entre os dirigentes sobre esse tema: segundo alguns
dos informantes, é papel do umbandista auxiliar as pessoas sem nada cobrar em troca; de
acordo com outros, é um modo de obtenção de renda, uma vez que vivem somente para a
missão religiosa. É comum, dentre os umbandistas que trabalham com mesa, a prática de
cobrar por consultas e serviços prestados. Por fim, dentre os dirigentes que têm salão, são
poucos os que realizam trabalhos ou dão assistência à comunidade sem cobrar, seja
88
financeiramente ou de outro modo. Eles justificam tal procedimento dizendo não ter
condições para arcar com os gastos materiais dos trabalhos pedidos pelos clientes.
2.1.3 – Salões com gira em atividade
Dando sequência à descrição do campo religioso afro-brasileiro de Araguaína,
vamos falar de centros umbandistas com gira que estão em atividade. São seis terreiros que se
encontram nessa categoria: Tenda São Sebastião, dirigida por Maria Maciel e localizada no
bairro Araguaína Sul; Tenda Santa Bárbara, conduzida por José Rodrigues e localizada,
também, no Araguaína Sul; Cabana Rei Oxóssi e Rainha Iemanjá, que tem como pai de santo
Clezio61 e está no bairro Vila Ribeiro; Centro Espírita Santa Bárbara, chefiado por Nazareno e
situado no bairro Céu Azul; Tenda São Jorge Guerreiro, representada por Maria Alice e
localizada no bairro Nova Araguaína; enfim, Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc,
que tem Dona Valdeci como responsável e se localiza no Centro da cidade.
Ainda que quiséssemos, a princípio, fazer um estudo sobre os hibridismos
culturais de todas as casas da cidade, dois fatores contribuíram para que nos distanciássemos
dessa ideia. O primeiro deles foi quando lemos em Repensando o sincretismo (1995) a
experiência do antropólogo Sérgio Ferretti e as suas dificuldades em lidar com diversas casas
quando dos primeiros contatos do pesquisador com os terreiros de São Luís/MA. Ele chama a
atenção para o fato de que “todas as religiões se pretendem como a única válida, correta,
verdadeira, a melhor. (...) no tambor de mina, como em outras religiões, a exclusividade é
uma exigência para a participação” (FERRETTI, S., 1995, p.32). Essa característica
exclusivista como exigência para participação nos rituais de terreiros encontra contraste com
o fato de as religiões afro-brasileiras não serem exclusivistas quanto a seus membros
participarem delas e de outras que não são de mesma matriz, como a católica, budista,
messiânica, kardecista, etc. Noutros termos, o discurso de exclusividade se aplicaria quando
se opera na mesma matriz, reenfatizando a lógica tribal africana transposta nos terreiros
(ORO, 2002). Não se pode ser da tenda X e da tenda Y ao mesmo tempo, mas se pode ‘baiar’
no salão com seu encantado no sábado à noite e, domingo de manhã, ir à missa e comungar.
Assim, compreendemos uma das razões que levaram alguns dirigentes
umbandistas de Araguaína a tecer comentários negativos sobre outros e seus trabalhos. Em
nenhum momento nos foi exigido, de forma direta, que escolhêssemos uma tenda ou outra;
61
Esse dirigente é o único que se declara como pai de santo; talvez porque seja um dos terreiros que têm mais
influência do Candomblé.
89
porém, de forma indireta, diversos dirigentes nos indicavam a importância de seus trabalhos
em expressões como “Aqui é a única Umbanda linha branca da cidade”, “Aqui a gente não
esconde nada de ninguém”, “Os outros mexem com coisas erradas”, etc. Essa autoafirmação
de seus trabalhos por parte dos líderes umbandistas busca legitimá-los, deslegitimar os outros
e nos indicar o “caminho certo” a seguir ou a estudar.
Percebemos, com exceção de Clezio e Nazareno, que os outros dirigentes não têm
uma relação estreita com o universo acadêmico, diferentemente do que percebemos em
muitos pais de santo de São Luís. A ideia do pesquisador e estudante não foi muito bem
assimilada por algumas casas, sendo estas entendidas em sua totalidade: dirigente, médiuns e
assistência. Muitas vezes, era visível o incômodo, em especial dos frequentadores e dos
médiuns, com nossa presença, as anotações e a proximidade com os dirigentes. Em um dos
casos, fomos confundidos com fiscais de alguma federação umbandista, como se ali
estivéssemos para investigar no sentido mais policial possível.
Clezio e Nazareno apresentaram comportamento mais aberto ao diálogo com a
academia. Isso ocorre, talvez, porque sejam os dirigentes mais jovens da cidade; tenham
formação em nível superior; sejam professores; tenham, em seus terreiros, a maior quantidade
de médiuns jovens de Araguaína; ou por causa da confluência desses fatores. O certo é que
nessas casas a presença de um pesquisador, ao menos num primeiro momento, pareceu para
os dirigentes algo comum à realidade vivida por eles. Nas outras casas, essa inserção se deu
de forma processual: enquanto nos identificávamos com os membros e adquiríamos sua
confiança — percebida nas brincadeiras de alguns médiuns da casa e dos dirigentes conosco;
tais brincadeiras sempre faziam menção a nossa possível mediunidade e sobre a possibilidade
de nossa iniciação no centro.
O segundo fator que nos levou a não continuar com a ideia de pesquisar todas as
casas foi o fato de que algumas têm seus trabalhos públicos acontecendo no mesmo dia da
semana. Com exceção de José Rodrigues, que é o único que trabalha às sextas-feiras, dentre
os outros dirigentes há coincidência nos dias de trabalhos. Maria Maciel, Clezio e Maria Alice
trabalham aos sábados à noite; Dona Valdeci e Nazareno trabalham às quartas-feiras à noite
— este último ainda tem seus trabalhos abertos aos domingos das 12h às 18h.
90
QUADRO V – Dirigentes e suas tendas por dias de trabalhos semanais
José Rodrigues
Nome da tenda
Domingo
Cabana Rei Oxóssi e
—
Rainha Iemanjá
T. Santa Bárbara
—
Maria Alice
T. São Jorge Guerreiro
Maria Maciel
T. São Sebastião
Nazareno
Centro Esp. Sta. Bárbara
Valdeci
T. Santa Joana D’Arc
Dirigente
Clezio
Dias da semana com trabalhos
Quarta-feira Sexta-feira
Sábado
—
—
Noite
—
Noite
—
—
—
—
Noite
—
—
—
Noite
Tarde
Noite
—
—
—
Noite
—
—
Além das datas de trabalhos semanais, outras datas coincidiam: as festas. Alguns
dirigentes realizam suas festas dedicadas a santos e guias espirituais nas datas específicas do
santo no calendário católico, não importa se no dia da semana há trabalho ou não. Outros já
marcam o calendário festivo da casa colocando as festas para os dias da semana em que
abrem a casa. Por exemplo, a festa de Cosme e Damião de 2012, em algumas casas, foi
realizada em 27 de setembro, quinta-feira, dia da semana em que nenhuma casa funciona
normalmente; noutras, os dirigentes celebravam a data nos dias em que iam trabalhar, fosse
no sábado ou na sexta-feira. Assim, seja com relação aos trabalhos semanais ou às festas, o
fato de alguns trabalharem em dias semelhantes impossibilitou que acompanhássemos todos
os rituais públicos de algumas casas. Isso, sem dúvida, pesou na decisão de nos dedicarmos
mais a uma tenda, uma vez que a presença intensiva e constante nos terreiros é — e foi —
fundamental para a realização do trabalho etnográfico.
A idade dos dirigentes em atividade com salão varia. Clezio e Nazareno são
nascidos na década de 1970; o primeiro tem 35 anos de idade; o segundo, 41. Na sequência,
temos os outros dirigentes: Maria Alice, que está com 44 anos; Maria Maciel, com 57; Dona
Valdeci, com 61; e José Rodrigues, com 69. Quando questionamos a localidade de
nascimento, percebemos que a assertiva de Stuart Hall (2003) de que “todos que estão aqui
pertenciam originalmente a outro lugar” encontra lugar, também, no contexto de Araguaína,
que tem 150.484 habitantes, embora a maioria — 51% — não seja natural do município.
91
QUADRO VI – Estado e data de nascimento dos dirigentes por ano e motivo da
migração para Araguaína
Dirigente
Estado natal
Ano de nascimento
(idade)
Data migração
Motivo migração
Clezio
Pará
1977 (35 anos)
2001
Trabalho
José Rodrigues
Piauí
1943 (69 anos)
+/– 1963
Trabalho
Maria Alice
Piauí
1968 (44 anos)
1994
Trabalho
Maria Maciel
Ceará
1955 (57 anos)
1980
Família
Nazareno
Tocantins
1971 (41 anos)
—
—
Dona Valdeci
Maranhão
1951 (61 anos)
1976
Trabalho
São os fluxos migratórios distintos e de locais diversos, como vimos na Tabela II
do capítulo I, que acabaram por levar à configuração populacional atual de Araguaína. Assim,
encontramos os representantes dessas migrações na história de vida dos dirigentes dos
terreiros. José Rodrigues e Maria Maciel são do Piauí e chegaram a Araguaína no início da
década de 1960 e 1980, respectivamente. Dona Valdeci é nascida no Maranhão e Clezio, no
Pará. O único que nasceu e cresceu na cidade foi Nazareno, embora seja filho de pais vindos
do Maranhão na década de 1960. Dona Valdeci chegou em meados da década de 1970,
acompanhando o esposo, policial militar. Nas décadas seguintes, 1990 e 2000, foi a vez de
Maria Alice, piauiense, e Clezio, paraense, deixarem sua terra natal e se aventurarem em
terras novas onde se prometiam trabalho e prosperidade financeira. Todos traziam consigo
experiências umbandistas já vivenciadas em outras cidades.
Ao narrarem suas histórias, percebemos como é mobilizada a memória para
construir um passado. Vemos como essa memória é seletiva, não permitindo a gravação nem
o registro de tudo (POLLAK, 1992). Ao narrar sua trajetória de vida, o sujeito procura
imprimir o que quer ser gravado e tornado memória, muitas vezes de forma inconsciente ou
não. Assim, o passado trágico, sofrido, repleto de doenças, perseguições e incertezas
religiosas, ou mesmo histórias felizes e marcadas pelo contato com o sagrado, parece
legitimar a posição de cada dirigente no meio umbandista. Pollak (1992) afirma que existe
uma
ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais
superficial, mas que nos basta no momento, que é o sentido da imagem de si, para
si e para os outros, é a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente
a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para
acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira
92
como quer ser percebida pelos outros. [...] A construção da identidade é um
fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da
negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem
perfeitamente ser negociadas, a memória e a identidade são valores disputados em
conflitos sociais e intergrupais (POLLAK, 1992, p.204 e 205).
Nesse contexto, cada dirigente busca legitimar e valorizar sua história com base
em fatos, locais e pessoas importantes para aqueles que constituem o campo em que atua.
Maria Alice é piauiense e nos contou ter sido desenvolvida, batizada e cruzada pelo dirigente
umbandista Raimundo Rimualdo, no Piauí, onde ‘recebera’ pela primeira vez seu guia
espiritual, Oscar Légua. Ela teria passado por Bruno de Nazaré, Maranhão, onde completara
seu desenvolvimento com ele e com mãe Menininha do Gantois, que teria visitado Bruno na
ocasião. O aparecimento dessas duas figuras emblemáticas no âmbito nacional e regional nas
memórias da dirigente reforça o que dissemos sobre a importância da legitimação e do
reconhecimento. Devido a essas influências recebidas, Maria Alice diz que trabalha com linha
cruzada. Ela explica essa categorização dizendo que sua Umbanda tem traços do Candomblé.
A categoria linha cruzada será explicada por outros pela presença nos rituais não só da linha
branca da Umbanda, como também da “linha da esquerda”, na qual estão presentes exus.
Maria Maciel é cearense. Quando era criança, mudou-se com a família para Picos,
Piauí. Toda sua experiência e sabedoria na Umbanda teriam sido adquiridas nessa cidade com
a mãe de santo Francisca, entrevistada por Luiz Assunção (2010) e cujo relato ele publicou no
livro O reino dos mestres, a tradição da jurema na umbanda nordestina. Maria Maciel conta
que sua iniciação na Umbanda se deu por motivos de saúde, por “perturbação espiritual”.
Disse que desde criança via os espíritos e que estes a perturbavam, o que a fez ter medo do
escuro. Somente após um pagamento de promessa feita a São Francisco por sua mãe foi que
ela ficou boa. Ela diz ainda que, com 19 anos de idade, já casada e mãe de duas crianças,
adoecera: teria perdido a consciência e ficado quatro meses sem ver o que acontecia com ela,
aí me levaram, fiquei esses quatro meses com o médico. Só que aquele remédio
não servia — os remédios que o médico estava passando, que era de cabeça. Aí já
com quatro meses (...) eu magrinha de não dormir, não comer, nada disso eu fazia
(...). Aqueles remédios num servia de maneira alguma, era mesmo que num tá
dando remédio nenhum pra mim, num tinha remédio que fizesse eu dormir e nem
comer e nem nada. Aí, com quatro meses, a pessoa [médico] falou pra ela [a mãe]
ir embora me internar, que lá não tinha casa de botar gente doida. Falou que se ela
assinasse [me] levava pra Teresina [...] minha mãe assinou, só que eu não cheguei a
ir porque Deus não deixou. [...] Aí, eu fugi de dentro do hospital [...] aquela
meninazinha [uma entidade] que você já viu baixar foi quem me tirou de dentro do
hospital. Então, Deus mandou essa criança já pra me pegar e tirar aquela coisa que
93
estava em mim e entrar no lugar deles. Foi Deus mesmo, minha mãe falou que foi
Deus mesmo. E aí cheguei na casa dessa mulher, que eu falo que é a mãe de santo,
com essa criança (Maria Maciel, entrevista 26/1/2012).
Foi com o atestado médico de “louca” que Maria Maciel chegou à casa de
Francisca, sua mãe de santo. Porém, ela diz que foi até lá de forma involuntária, pois teria
sido a entidade criança que a levara. Ali, ela descobriu a Umbanda, já que vinha de uma
família católica, e iniciou o tratamento das suas “perturbações espirituais”. Também ali ela
descobriu que era médium e passou a ‘receber’ o preto velho Pai Joaquim e essa
“meninazinha” de nome Fátima como seus principais guias.
Outro piauiense que conhecera a Umbanda por causa de “problemas de saúde” foi
José Rodrigues. Este, assim como a maioria, veio de família católica sem conhecimento das
religiões mediúnicas. José Rodrigues narra assim sua história:
Primeiramente, eu vivia com uma dor de cabeça. Depois dessa dor de cabeça eu
andava daqui pra ali e já caía. Nesses tempos, lá pra nós não tinha esse negócio de
hospital. Aí era só remédio do mato mesmo. Aí dava uma coisa e dava outra, até
que um dia chegou uma mulher lá em casa e disse: “Oh, esse menino aí só tem um
remédio pra ele ficar bom”. E eu só escutando. Aí minha mãe disse: “qual é o
remédio?” E ela disse: “esse menino tem é mediunidade”. Lá em casa ninguém
sabia o que era esse negócio de mediunidade (José Rodrigues, entrevista
24/10/2011).
Ele conta, ainda, que na região eles não conheciam ninguém que pudesse ajudá-lo,
motivo por que o levaram ainda muito jovem, com mais ou menos 12 anos de idade, para
Nazaré, MA. Ali, ele fora desenvolvido na Umbanda com José Bruno de Moraes, durante
cinco anos. Ao sair de lá, ainda teria andado por São Paulo e voltado para o Piauí antes de se
instalar em Araguaína. Quando saiu de Nazaré, José Rodrigues disse que estava “bom”, ou
seja, não ficava caindo ou com dor de cabeça, e que não queria mais trabalhar com a
Umbanda. Porém, quando chegou à região norte do Tocantins, disse que, por mais que
tentasse, não conseguia deixar de visitar os salões abertos na época, mas como parte da
assistência. Foi numa dessas visitas, na casa do já falecido Osmar, que ele entrou em transe
mais uma vez com seu guia, Mestre Florêncio, e decidiu abrir um salão pra si.
Outros dois que tiveram seus primeiros contatos com a Umbanda em razão de
questões de saúde foram Nazareno e Dona Valdeci. Sobre a história de vida da dirigente,
falaremos com mais detalhes no capítulo III, mas adiantamos neste tópico que ela nascera no
Maranhão e mudou ainda muito nova para o Tocantins. Mas, antes de se mudar para
Araguaína, vivera em Ananás e Araguatins, onde começara seu desenvolvimento espiritual
94
com um dirigente umbandista oriundo do Pará. Seu desenvolvimento foi concluído com
Bruno de Nazaré.
Ainda que Nazareno seja o único dirigente nascido em Araguaína, seus pais e
avós são maranhenses. Ele conta que, embora estes se declarassem católicos, vivenciavam
experiências mediúnicas. O avô ouvia e conversava com os espíritos recém-falecidos, os
eguns. Com frequência, uma tia entrava em transe com pombagira. Sua avó era
constantemente perturbada por espíritos ruins, o que fez seu esposo levá-la diversas vezes a
alguns terreiros da região a fim de “libertá-la” desses espíritos obsessores. Além disso, seus
avós eram benzedores. Assim, foi num ambiente marcado por essas experiências que
Nazareno cresceu, uma vez que foi criado por seus avós. Ele narra que, ainda jovem, começou
a trabalhar para sustentar a família. Teria ido para Tucumã, PA, onde ficara por seis meses;
depois foi a Minas Gerais para fazer o curso de Técnico em Agropecuária, aos 19 anos de
idade, onde “começou a passar mal”: teve crises e caía no chão, segundo ele, com o coração e
os pulmões ruins. Os médicos diagnosticaram um problema nas suas artérias e, de acordo com
ele, foi neste momento que sua vida se voltou de forma significativa para a religião.
Entretanto, antes de se tornar umbandista, foi seminarista. No seminário católico, ele passou a
ouvir “as vozes” e a ver vultos. Por mais que não tenha se tornado padre, desempenhou
atividades no seio da igreja como diretor diocesano da matriz de Araguaína antes de se tornar
umbandista.
Nazareno contou que ainda muito jovem a encantada Mariana teria suspendido
suas correntes62. Porém, com 26 anos de idade, as entidades começaram a cobrar seu retorno
às atividades mediúnicas. Ele narra que “eles”, os espíritos, começaram a envolvê-lo com
“bebedeira”: “Eu só embebedava até meia-noite, de meia-noite pra lá eu ficava bom, porque
eu não bebia só: eles chegavam perto de mim, faziam eu beber, eles consumiam o álcool e
carregavam e me deixavam com a água”. Segundo explica, foram “eles” que o tiraram da
igreja. Faziam que ele perdesse a consciência quando bebia. Afetaram sua vida amorosa e
financeira, o que acabou por levá-lo à depressão. Foi nesse período e contexto pessoal que
Nazareno conheceu, em Araguaína, Gildete, maranhense de São Raimundo das Mangabeiras
“que mexia com os pauzinhos63”. Ela o ajudou no seu desenvolvimento com as entidades Zé
Pilintra, Tereza Légua, Firmino Légua, o próprio Légua Boji Buá, Rei Sebastião, Rei Jorge e
62
Termo utilizado para explicar o fato de alguém apresentar sinais de mediunidade ainda muito jovem e ser
solicitado às entidades para que esse processo seja interrompido e só retorne anos mais tarde. O termo ‘corrente’,
em geral, é usado para designar todas as entidades que pertencem a alguém. Contudo, como veremos em muitos
casos a palavra ‘corrente’ é usada como sinônimo de ‘linha’, ex.: corrente das águas = linha das águas.
63
Expressão que faz referência às atividades umbandistas de Dona Gildete.
95
Mariana. Segundo Nazareno, teria sido essa última entidade quem fizera o desenvolvimento
dele com os exus, dando força para ele “ir até o inferno e voltar”. Ele é um dos poucos
dirigentes que assumem, de forma despreocupada, seus trabalhos com exus nos rituais:
Eu sou umbandista quimbandeiro, porque eu tenho as duas bandas. Eu trabalho na
linha branca, mas eu conservo os exus. Entendeu? Eu despacho eles, eu só chamo
eles naquele horário, entrego as bebidas, os cigarros e tudo, e mando de volta
(Nazareno, entrevista 11/8/2012).
Outro que trata de forma aberta de seus rituais com essas entidades é Clezio. Esse
dirigente, assim como algumas outras casas, abre seus trabalhos saudando os exus e tem em
seu calendário festas específicas para estes. Apesar de algumas destas casas não tratarem de
forma aberta a presença destes espíritos, não é o que ocorre com Clezio que não se constrange
de falar sobre sua relação com essas entidades. Apresentando alguma semelhança com o
Candomblé, é assim que Clezio explica a presença do Exu em seu terreiro:
ele é um mensageiro, ele é igual a todos os orixás, tem a sua força, tem a sua
energia. Inclusive, a gente fala que ele é mensageiro, porque, antes de nós nos
comunicarmos com os orixás, a gente tem que dar oferenda para o Exu. Primeiro,
agradar ao Exu, que ele faz a ligação. O Exu é terreno, o orixá é celestial, então é
ele que faz essa ligação. Então por isso que tem um ponto que a gente fala assim:
“sem os exus, não se pode fazer nada”. Então quando a gente chega aqui a gente
tem que rezar pro Exu, despachar, ir na tenda, né? Que é pra lembrar ele que a
gente tá fazendo um pedido, que tudo ocorra bem. Então a gente tá agradando o
Exu, ele que é o responsável de fazer essa ligação do terreiro com o plano astral,
por isso que antes de qualquer ritual de trabalho, de chamar as correntes, a gente
tem que primeiro alimentar, agradar o Exu (Clezio, entrevista 3/3/2012).
Procuramos compreender a narrativa de Clezio segundo sua trajetória de vida,
marcada por uma migração única: do Pará para o Tocantins. Ele nasceu em Belém e saiu de
sua cidade para Araguaína devido a uma oferta de emprego. Da capital paraense ele trouxe
consigo sua experiência com o Tambor de Mina. Ele conta que essa experiência começou com
sua mãe, que era filha de santo da casa de Celeste em Belém, Pará. Esta se tornara sua mãe de
santo e sua madrinha. Contou ainda que teria sido a encantada Mariana quem fez seu parto
incorporada na mãe de santo Celeste, ato esse que estreitou suas relações com essa entidade,
que “trabalha em cima” dele, apesar de não ser essa sua chefe de cabeça.
Todavia, é importante ressaltar que, antes de se iniciar no Tambor de Mina, com
quase 16 anos de idade, Clezio participara de forma ativa das atividades da Igreja Católica e
da Igreja Universal do Reino de Deus em Belém. Sua decisão por ser iniciado numa religião
96
afro é oposta a todas aquelas apresentadas neste tópico. Nazareno diz que “ou você vem pela
dor, ou você vem pelo amor”. Nos casos até agora vistos, todos os dirigentes se tornaram
umbandistas “pela dor”, ou seja, estavam passando por problemas de saúde e viam na
Umbanda a “única” solução para suas aflições. A história de Clezio foge à regra: por vontade
própria decidiu participar dos trabalhos após o falecimento de seu padrinho:
eu pedi, num dos trabalhos que coincidiu com o meu aniversário, que é dia 12 de
maio, e a festa dos pretos velhos é dia 13, e nesse dia coincidiu o dia da festa com
meu aniversário. Aí veio aquela coisa no meu coração, aí peguei e disse:
“Madrinha, eu posso te pedir uma coisa?”. Todo mundo se aprontando lá pro ritual,
“eu queria entrar pra corrente hoje”, aí escorreu [lágrima] dos olhos [dela] porque
nunca obrigou a nada, né? (Clezio, entrevista 3/3/2012).
Assim, sua integração ao Tambor de Mina se deu “pelo amor”. Foi vivenciando
essa religião que Clezio desembarca em Araguaína e com a qual, pouco tempo depois, chega
ao terreiro de Umbanda Omolokô do pai de santo goiano Rogério, onde aprendera a negociar
as duas religiões. Clezio, em seu próprio terreiro, procura de forma harmoniosa agregar o
Tambor de Mina à Umbanda nos seus rituais. Ele confessa que sua maior influência hoje vem
do Candomblé, devido a sua feitura na Umbanda Omolokô; mas que procura com frequência
fazer as festas para suas entidades “mineiras” a fim de saudá-las.
Dito isso, a influência das religiões afro-brasileiras do Maranhão, Piauí e Pará nos
dirigentes nos faz compreender, por exemplo, a presença da categoria “encantado” no panteão
da Umbanda em Araguaína. Clezio deixa claro o desconhecimento dessas categorias por
outros dirigentes que são de fora da região. Ele conta que Rogério só teve conhecimento do
que era um encantado ou do Tambor de Mina quando Clezio se tornou médium seu. Assim, é
o encontro dessas diversas referências religiosas que configuram e definem o universo afroreligioso dos terreiros de Araguaína. Mas o que observamos é que as diferenças marcadas
pelas influências externas não estão presentes só nos trabalhos de gira nos salões: há outras
formas de vivenciar a Umbanda na cidade que carregam consigo o emaranhado cultural da
região. Estamos falando dos umbandistas de mesa, adeptos de práticas não coletivas como
uma gira e terreiro; de algumas pessoas que não entram em transe de possessão; de pessoas
que dedicam suas vidas a adivinhar o passado, o presente e o futuro dos outros; enfim, de
pessoas que vivem uma religiosidade de forma mais privada e individual com uma clientela
específica que as procura.
97
2.1.4 – Umbandistas de mesa, “os cientistas”.
Para encerrar a descrição do campo afro-religioso de Araguaína, centraremos as
atenções em um grupo de pessoas que se autodefinem como umbandistas ou são reconhecidos
por outros do meio afro-religioso como tal: os umbandistas de mesa. Dentre as acusações de
alguns dirigentes sobre o fato de uns cobrarem dinheiro pelos serviços espirituais realizados, a
maioria deles considera os trabalhos de mesa de algumas pessoas como charlatanismo e
extorsão financeira das “pessoas ingênuas e desesperadas”. É certo que os trabalhos de mesa
realizados por Luís Maranhão e Maria dos Santos não são vistos, pelos outros dirigentes,
como pertencentes a esse grupo acusado de ser charlatão. Acreditamos que isso se deva ao
fato de estes dois terem trabalhado com gira antes. Porém, independentemente de seu
prestígio, há severas críticas, ao menos daqueles que não o fazem, à cobrança financeira
realizada por estes e outros nas consultas.
O termo “Umbanda de mesa” é usado em Araguaína entre os dirigentes
umbandistas para se referir àqueles que trabalham só com sistemas de adivinhação,
incorporados ou não com entidades fora dos trabalhos com gira. Essa característica diferencia
tal prática daquela realizada em centros kardecistas conhecida como sessão de mesa branca64
ou mediunidade de incorporação65, em que os médiuns ‘recebem’ os espíritos recémdesencarnados para ser doutrinados. Marilande Martins Abreu (2005) define a mesa branca
ou mesa astral como “ritual realizado em terreiros de religião afro-brasileira, onde os adeptos
recebem espíritos de mortos como no Espiritismo Kardecista, diferentemente de outros rituais
de tambor de mina, onde recebem entidades que são seres encantados” (ABREU, 2005, p.14,
grifos da autora).
No entanto, percebemos que no campo afro-religioso de Araguaína ocorre algo
distinto do encontrado pela autora em São Luís do Maranhão: há incorporação ou não de
entidades (encantados, caboclos indígenas, pretos velhos, crianças, pombagiras etc.) durante
as consultas na mesa, mas mesmo aqueles que não incorporam afirmam poder ouvir e/ou ver
as entidades, as quais os auxiliam nas revelações do passado, presente e futuro do consulente;
revelações essas realizadas com o auxílio, também, de diversos recursos oraculares como
cartas, búzios, bola de cristal e terços. De acordo com Ribeiro (2011), os búzios são
incorporados nos cultos afro-brasileiros com base na tradição africana, sobretudo o iorubá,
enquanto o baralho cigano, diversas modalidades de tarô, a bola de cristal, o terço e outros
64
65
Ver ABREU (2005).
Ver CAVALCANTI (1983).
98
recursos teriam procedência europeia. Das seis pessoas que encontramos na cidade que
trabalham com Umbanda de mesa, o único homem é Luís Maranhão. Encontramos ainda
Maria Muniz, conhecida como mãe Maria, Percília Ivanovich, Maria do Socorro, conhecida
como madame66 Socorro, Maria Aparecida, mais conhecida como Cida, e Maria dos Santos.
Com exceção das duas primeiras, o contato com os outros dirigentes foi agradável;
mostraram-se bastante dispostos a colaborar com a pesquisa.
Diferentemente do que ocorre nas outras categorizações, as localidades onde estão
situados os dirigentes que trabalham hoje com mesa são todas distintas. No Centro de
Araguaína, está Madame Socorro; no Setor Anhanguera, bairro nobre da cidade, está Percília.
Mais afastados do Centro, estão mãe Maria, no bairro Nova Araguaína, Maria dos Santos, no
Jardim Paulista, Luís Maranhão, no Tereza Hilário, e Cida, no Setor Coimbra.
QUADRO VII – Umbandistas de Mesa
Dirigente
Estado natal
Idade
Recursos Oraculares
Luís Maranhão
Piauí
72 anos
Bola de cristal e cartas
Cida
Goiás
50 anos
Terços
Madame Socorro
Piauí
61 anos
Cartas e tarô
Percília
Pará
(?)
Joga búzios, carta, tarô, vidência
Mãe Maria
Maranhão
(?)
Vidência
Maria dos Santos
Maranhão
73 anos Vidência, quiromancia, ouvir concha do mar
Ainda que todos trabalhem com mesa, percebemos que há uma diversificação nos
recursos oraculares durante as consultas. Em alguns casos, acreditamos que a trajetória da
pessoa tenha contribuído para a escolha do recurso a ser utilizado. Assim, no caso de Percília,
esta diz ter tido uma avó que era médium na Bahia. Isso poderia explicar por que ela é a única
pessoa encontrada na cidade nessa categoria que joga búzios, sistema de adivinhação
considerado como divisor de águas entre Candomblé e Umbanda (PRANDI, 1991). Além dos
búzios, Percília utiliza cartas, tarô e vidência durante suas consultas. Outras que se valem da
vidência para trabalhar são mãe Maria e Maria dos Santos, as quais alegam que seus guias são
vistos e ouvidos por elas e que lhes ajudam na hora das consultas. Mãe Maria ‘recebe’ a
Cabocla Jurema e Maria dos Santos, uma infinidade de guias. Assim, o cliente pode, muitas
vezes, ser atendido por elas ou pelas entidades. No caso de Maria dos Santos, temos, em
66
Mesmo com o pronome de tratamento, estamos lidando com alguém que se autodefine como umbandista, e
não cartomante.
99
especial, Zé Pilintra, preta velha Benedita, Benedita Légua e Maria de Nazaré. Ela atende os
consulentes, em geral, pela manhã, das 6h30 às 10h30, como consta no cartaz afixado em uma
das paredes de sua varanda. Além da vidência dos espíritos, ela nos conta que, às quartasfeiras, faz consultas com leitura de mão, devido à sua corrente de pretos velhos; e, às terças e
sextas-feiras, consulta ouvindo os sons de uma concha, símbolo da corrente das águas, à qual
pertence uma das suas principais entidades: João de Una.
Luís Maranhão e Madame Socorro utilizam as cartas para ter os problemas de
seus consulentes/clientes desvendados e solucionados. Esta última não trabalha com
incorporação e, ao contrário de todos que afirmam ter o dom da adivinhação desde o
nascimento, afirma que este não foi o caso dela. Ela teria ido morar na Bahia, onde fizera
diversos cursos sobre como ler cartas de tarô, os quais a fizeram receber o diploma de
cartomante pela Federação de Umbanda da Bahia. Outros cursos foram realizados quando de
sua passagem por São Paulo. Ela diz que trabalha com tarô há 43 anos e que nunca parou de
estudar; e que complementa sua consulta com orações na Igreja Messiânica Mundial do
Brasil67 (IMMB), da qual é fundadora na cidade. A igreja seria o local onde ela diz ser
possível afastar os espíritos ruins de perto de alguém. Enfim, ela acredita que possa ter o dom,
mas que este não é inerente à pessoa; também crê que, se não tivesse ido estudar, não teria se
desenvolvido.
O fato de Madame Socorro ser da Igreja Messiânica não faz que outros
umbandistas da cidade não a reconheçam como tal. Ela também negocia as duas religiões,
messiânica e umbandista, de forma harmônica. Mantém em sua casa três estátuas: uma do
Caboclo Tupinambá, uma de João de Una e uma do Príncipe Boto, cada qual com quase um
metro e meio de altura; segundo ela, eram de um amigo, que lhe pediu para zelar delas, e
assim ela vem fazendo, durante anos. Ela disse ainda que sua relação com Tupinambá é mais
antiga; que ele era como um pai para ela, pois sua avó, que era médium, a teria dado para essa
entidade quando de seu nascimento. E é esse mesmo caboclo que empresta seu nome para o
registro da casa de Madame Socorro: Tenda de Ciências Ocultas Caboclo Tupinambá.
Embora leve o nome de tenda, não há atividades com gira nem reuniões com outros membros.
Os encontros coletivos que ocorrem na sua casa são provenientes da Igreja Messiânica.
67
Mokiti Okada fundou a Igreja Messiânica no Japão, em 1935. No Brasil, a religião foi introduzida em 1955.
De 1955 a 1965, a expansão ficou restrita a comunidades de descendentes de japoneses. A partir de 1965, com a
vinda do reverendo Tetsuo Watanabe, a expansão adquiriu outra natureza, passando a ocorrer entre brasileiros
sem origens japonesas. A doutrina messiânica se baseia em três pilares: Johrei (transmissão da energia divina
pelas mãos), agricultura natural (alimentação sem o uso de agrotóxicos e nem adubos) e o belo (elevação e
purificação do espírito através das artes) (GONÇALVES, 2008). No Brasil há 103.716 praticantes da IMMB. O
Tocantins conta com 70 fiéis e Araguaína, com 14, segundo dados do Censo de 2010.
100
Luís Maranhão, por sua vez, acredita que nasceu com vários dons, mas perdeu
alguns com o passar dos anos devido, segundo ele, a vários erros cometidos durante sua vida,
dos quais enfatiza um: “Deus não faz milagre pra pecador fazer propaganda, pra se
engrandecer (...) isso que Ele me deu era um milagre que eu fazia, como eu comecei fazer
propaganda, acabou”. Porém, mesmo que tenham acabado alguns de seus “milagres”, outros
restaram. Atualmente, ele lança mão de cartas e uma bola de cristal em suas consultas; através
delas, vê passado, presente e futuro, passa banhos e realiza benzimentos.
Outro recurso encontrado por nós utilizado para benzer e fazer adivinhações foi
um terço, ou melhor, vários. Quem utiliza é Cida. Ela coloca um terço na mão do cliente e
fica com uns dez terços em suas mãos; o que fica nas mãos do consulente é bem pequeno — e
percebemos que está bem velho, com as miçangas e a linha de náilon que as une bem
desgastadas. Os que Cida segura em suas mãos têm a aparência de ser mais novos. Segundo
ela, esse dom também teria surgido com ela de berço. Algo difere Cida dos outros
entrevistados, seja nessa categoria ou em outras: ela não se considera umbandista68, mesmo
que tenha o alvará de funcionamento da confederação afixado na parede. Acreditamos que a
não identificação com a Umbanda é porque, quando apresentou, ainda na infância, sinais de
vidência sobre o futuro, seus pais não procuraram nenhum centro kardecista ou umbandista
para ajudá-la. Eles a enviaram para um convento católico em Goiás. Assim, Cida se
autoidentifica como católica vidente e justifica sua filiação à CEUB porque esta possibilita a
realização de suas consultas sem problemas com a polícia ou os vizinhos.
Ainda que haja uma diversificação no modus operandi do sistema de adivinhação
nas casas observadas, o que vemos é que entre os umbandistas de gira o termo “cientista” é
usado para se referir aos que trabalham com a Umbanda de mesa. Assim, é comum ouvir
comentários sobre estes dentre daqueles: “Ele é um bom cientista”, “Ele domina bem as
ciências ocultas”, “Ela trabalha com a ciência”. Dentre eles, só Madame Socorro se
autodeclara como cientista, devido ao fato de ter estudado para compreender os tarôs, sempre
enfatizando os diplomas que teria recebido quando do término dos cursos. É com base na
noção de “ciências ocultas” que os umbandistas de mesa são classificados como cientistas.
De acordo com alguns dirigentes de salão, o termo “ciências ocultas” é uma
referência aos trabalhos de adivinhação realizados sem a presença de alguém ou trabalhos em
que só o consulente e o umbandista estariam presentes. Desse modo, a explicação do termo
68
Embora não se reconheça como umbandista, resolvemos adicionar Cida a essa categoria por duas razões: os
outros dirigentes umbandistas da cidade a consideram como tal e ela possui alvará de funcionamento expedido
pela CEUB.
101
diz muito sobre o ritual da consulta em uma mesa: o consulente entra sozinho no quarto onde
está disposta a mesa de consulta e um altar com várias fotos e/ou estátuas de santos, caboclos
e orixás; ali, é realizado o trabalho com cartas, bola de cristal, búzios e/ou terços, mediante
perguntas feitas pelo cliente. Devido a essa privacidade da consulta, não nos foi possível
presenciar nenhuma. A descrição realizada nos foi contada por Cida.
Para os outros entrevistados que se declararam umbandistas, questionamos a
participação desses em salões como dirigentes ou filhos de santo no passado. Madame
Socorro e mãe Maria disseram nunca ter participado de terreiros. Mas encontramos pessoas
que narraram conhecer mãe Maria de outra cidade, onde ela era médium de um salão.
Acreditamos que o sentimento de pertença à Umbanda nessas mulheres que afirmam não ter
se iniciado em tal religião se deva, por um lado, à crença de ambas nas entidades cultuadas,
pois mãe Maria diz ‘receber’ Cabocla Jurema e Madame Socorro zelar das entidades já
mencionadas. Outro fator que poderia explicar a legitimidade delas entre os umbandistas é o
fato de todas as duas serem registradas na confederação e terem seus alvarás de
funcionamento expedidos pela mesma instituição.
Maria dos Santos e Luís Maranhão contaram ter trabalhado com terreiro no
passado. O de Luís Maranhão ficava, a princípio, no Escondido, depois no bairro Central, por
fim no Araguaína Sul. Em Araguaína, foi onde ele iniciara seu desenvolvimento com Maria
Matos; quando esta voltou para o Pará, ele foi para Imperatriz, a fim de terminar seu preparo
com Chaviano e sua esposa, Maria. Dali, seguiu para Nazaré, onde foi batizado e cruzado por
José Bruno, por volta de 1977. Luís Maranhão nos contou que ‘recebia’, dentre outras
entidades, Príncipe Légua Boji Buá, Doutor Gadeias, Caboclo Urubatã, Benedita Légua,
Cabocla Jurema, Príncipe Zezinho, Príncipe Ariolino, Rei Bernaldino, Doutor da Pedra Fina,
Doutor Augusto, Rei Sebastião, Zé Pilintra e Princesa da Pedra Fina, sendo esta sua guiachefe. Ele disse que trabalhava com tambores e que seus trabalhos eram realizados às terçasfeiras, às quartas-feiras e aos sábados69. Encerrou seus trabalhos com gira em 1985,
continuando depois disso apenas com a mesa.
Luís Maranhão diz ter encerrado seus trabalhos, primeiramente, porque as
entidades falavam que sua “missão era só até a idade de 45 anos”:
Então, quando eu completei 45 anos, ali acabou aquilo, eu deixei de trabalhar,
larguei o serviço e não sinto nada, nada, nada, nada. Eu rezo pros guias, eu sei que
69
Esses dias da semana variavam a cada visita que fazíamos. Assim, não sabemos ao certo em que dia o
dirigente trabalhava.
102
tem os guias, eu rezo pras almas, eu faço tudo quanto é penitência pra eles e tal,
mas eu não sinto [nada] (Luís Maranhão, 14/5/2012).
Num segundo momento, enfatizando a década de 1980, quando o crescimento
populacional de Araguaína foi de 90%, Luís Maranhão diz que se tornou perigoso trabalhar:
eu parei porque é muito dispendioso, e os médium que eram de confiança, todos
tomaram de conta de si. E aí, por terem tomado conta de si, os novos povos que
vieram, começou essa bandidagem de 1984 pra cá. Começou a droga, a
bandidagem, ladrão, aí eu fui obrigado a parar, porque não tinha quem olhasse pra
mim. Porque, se eu vinha trabalhar aqui, aí fecha o tempo pra mim, eu não vejo
nada, por eu não ver e não ter quem tome de conta, os outros vão carregar, tá
compreendendo... aí realmente eu parei proveniente disso (Luís Maranhão,
14/5/2012).
Mesmo com as razões espirituais (entidades suspenderem suas correntes) e
materiais (roubos em sua residência durante os trabalhos) de Luís Maranhão por ter encerrado
as atividades com salão, isso não impediu que surgissem diversas perguntas e, com elas,
hipóteses entre os outros dirigentes sobre os motivos que o levaram a tal atitude. Dentre as
especulações ouvidas, aquelas mais mencionadas dizem respeito ao fato de ele ter
desenvolvido sua esposa, Maria dos Anjos. Muitos dirigentes acreditam que isso é uma
quebra de tabu, uma vez que ela, tornando-se filha de santo dele, não poderia continua casada
com ele. Assim, em 1985, ela se separa, e muitos dizem que foi por essa razão. Tendo
correntes espirituais mais fortes que as de Luís Maranhão, ela teria levado consigo as
entidades dele. Quando perguntamos, na entrevista, ao dirigente em que ano ele teria parado
de trabalhar, ele diz: “Tem muito tempo já que eu parei, quando a mulher foi embora, em 85.
Eu parei em 85”. O fato de sua memória marcar o encerramento de suas atividades quando
sua mulher se separou dele pode justificar a afirmação de outros dirigentes.
Outro fator que se agregam a essa história é o fato de Luís Maranhão ter
começado a “trabalhar com Exu”, frase essa proferida para dizer que o dirigente começara a
realizar trabalhos que prejudicavam outras pessoas. O fato de ter feito isso, segundo alguns
dirigentes, teria gerado o desagrado de Deus, que teria lançando sobre o dirigente uma série
de repreensões, atingindo sua família e seus dons espirituais. Quando Luís Maranhão declara
ter “se engrandecido” por seus dons e Deus tê-los “tirado” dele, como dissemos antes, isso
tem ressonância nas explicações dos outros dirigentes. Assim, independentemente das
explicações de terceiros ou mesmo as de Luís Maranhão sobre o encerramento de suas
atividades com salão, percebemos que todo o universo dessas pessoas é explicado e ordenado
pela religião.
103
Uma das médiuns de Luís Maranhão que, de certa forma, deram sequência a seus
trabalhos, mas com terreiro próprio, foi Maria dos Santos. Ela teria chegado até ele “louca”.
Após o tratamento, começou a ser desenvolvida por ele, ainda em Escondido, TO. Já
independente de Luís Maranhão espiritualmente, teria aberto seu terreiro numa chácara
próxima ao terreiro dele. Ela conta que foi embora para São Geraldo no Pará, onde ficara
quase dois anos; depois voltou para Tocantins, para a cidade de Xambioá, a quase 120
quilômetros de Araguaína, e lá morou por 16 anos. Quando veio para Araguaína, abriu seu
salão no bairro Jardim Paulista, onde trabalhava aos sábado e domingo e onde vive. Maria dos
Santos disse ter ido até José Bruno de Nazaré diversas vezes. Ela se emocionou muito ao se
lembrar de seu “padrinho”. Segundo Maria dos Santos, teria sido Zé Bruno o responsável por
firmar sua linha das águas, que tem João de Una como chefe principal. Ela disse que seu chefe
de cabeça é um caboclo índio Xavante, Caboclo Sete Estrelas. Segundo Dona Valdeci, uma
das entidades principais de Maria dos Santos é Maria de Nazaré. Quando questionada sobre
essa entidade, conta que Maria de Nazaré não é encantada. Ela era uma amiga de infância
filha de um médico e que faleceu ainda jovem; então a dirigente passou a ‘recebê-la’ ainda
quando estava se desenvolvendo. Essa entidade é a responsável, segundo Maria dos Santos,
por fazer as curas e cirurgias espirituais para ela.
Boa parte da família de Légua Boji também ‘desce’ na sua ‘coroa’, assim como
Rei Sebastião. O próprio José Bruno de Nazaré é ‘recebido’ por ela, segundo informações
dela — ele teria vindo cinco anos após falecer. Perguntamos a ela qual é o ponto dele, e ela
tentou lembrar, mas disse que não conseguia e se explicou dizendo que podia ser que Zé
Bruno não quisesse que eu soubesse.
Ainda que Maria dos Santos não abra mais seus trabalhos de gira, pudemos
presenciar algumas vezes Maria dos Santos, sozinha, tocando seu tambor vertical, cantando
pontos e, por consequência, ‘recebendo’ Martim Boji, que, ‘montado’ nela, veio conversar
conosco. Além dele, pudemos presenciar a dirigente em transe com Caboclo Sete Estrelas e
Benedita Légua na presença de outras pessoas amigas em sua casa. Assim como Luís
Maranhão, Maria dos Santos reclama da falta de médiuns comprometidos com os trabalhos;
ela conta que desenvolveu 110 médiuns, mas que hoje não há ninguém com ela para trabalhar
ou mesmo dar continuidade a seus trabalhos.
Uma característica comum a todos é o fato de ter suas salas de consultas na
residência onde vivem. No geral, as salas são muito parecidas: há sempre a presença de uma
mesa onde ficam dispostas as cartas, uma Bíblia e outros livros, terços, estátuas e fotos de
santos, orixás e caboclos, os quais podem ser encontrados nas paredes e no chão. O fato de as
104
consultas serem realizadas no ambiente familiar, dentre outras coisas, sugere que, de algum
modo, a família apoia a atividade religiosa deles e que vivem, senão do e para o santo, ao
menos dos sistemas de adivinhação. Como a idade da maioria já passa dos 60 anos, muitos
vivem financeiramente da aposentadoria; outros contaram que amigos ajudam com doações e
pequenos agrados. Mas a maioria das consultas é cobrada. Madame Socorro cobra R$ 20 no
jogo das cartas; Maria dos Santos e Luís Maranhão cobram R$ 50 pelos trabalhos; e Percília
divulga em panfletos a cobrança de cinco quilos de alimento não perecível. No caso de mãe
Maria, não soubemos ao certo o valor de sua consulta. Cida garante não cobrar nada. Maria
dos Santos nos contou que, no início de suas atividades umbandistas, não cobrava consultas;
mas, segundo diz, certa vez teria vindo um representante da confederação diretamente de
Brasília em sua casa dizendo que deveriam cobrar pelos serviços prestados. Ela disse que, na
época, eram Cz$ 20. Foi assim que começara a cobrar. Convém apontar que a visita do
representante foi narrada por outros dirigentes, dos quais alguns adotaram a cobrança
também.
Entretanto, mesmo entre os que realizam a cobrança financeira, todos afirmam
ganhar presentes dos clientes em forma de agradecimento pelos serviços — clientes que
muitas vezes são chamados de amigos. Esses presentes podem ser compreendidos à luz da
teoria formulada por Marcel Mauss (2003) sobre a dádiva: logo, teriam um “caráter
voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e
interessado” (MAUSS, 2003, p.188). O dirigente de mesa, ao prever o futuro de seus clientes
e lhes ajudar na solução de problemas com conselhos, benzimentos e administração de
banhos, introduz o cliente na dinâmica das dádivas e contradádivas. Desse modo, ainda que as
consultas não sejam declaradamente cobradas por alguns, a obrigação de retribuir a ajuda
recebida é inerente ao sistema da dádiva descrito pelo autor. Os clientes, ainda que não
cheguem à casa do dirigente no momento da consulta portando presentes, procuram retornar
depois com regalos. Os dirigentes relatam ter ganhado desde tijolos, telhas, mobílias e
pequenas quantias financeiras até lotes, casas e carros.
Essas narrativas não são exclusivas de pessoas que trabalham com mesa. Os
mesmos relatos foram ouvidos de dirigentes que trabalham com gira. Um caso que chamou
nossa atenção foi a história de Percília. Segundo ela, embora trabalhe na cidade com mesa,
tem uma tenda em funcionamento em Belém, a Tenda Caboclo Pena Verde. Durante a
entrevista, Percília buscou enfatizar o não pertencimento dela à cidade de Araguaína. Foi
contundente ao dizer que não era da cidade, mas sim de Belém, e que vinha a Araguaína só
algumas vezes por mês por conta de seu esposo, que trabalha na região. Mesmo com nosso
105
grande interesse por causa da peculiaridade de seu caso, Percília não aceitou as perguntas de
forma amigável; mostrou-se desconfortável e desconfiada dos motivos por nós apresentados,
baseados na relevância da pesquisa.
O fato de ela ser de Belém nos leva a perceber as diversas origens regionais dessas
pessoas. Madame Socorro e Luís Maranhão são do Piauí; assim como Maria e Maria dos
Santos. Cida é de Minas Gerais, mas foi criada em Goiás, Centro-Oeste. Com exceção de
Maria dos Santos e Luís Maranhão, as outras entrevistadas, quando chegaram à cidade,
traziam consigo experiências religiosas mediúnicas. De todos, os mais velhos na região são os
dois citados primeiramente, segundo os quais estariam em Araguaína desde 1958. Em seguida
chegou Cida, na década de 1970, mãe Maria, na década de 1980, e Madame Socorro, na
década seguinte. Sobre Percília não obtivemos essa informação.
Mais uma vez, observamos como as diferenças culturais que se encontram em
Araguaína contribuem para uma pluralidade da Umbanda. O hibridismo cultural dessa
religião na cidade é intensificado pelos processos migratórios que levam e trazem milhares de
pessoas com experiências culturais diversas, fazendo que se encontrem, troquem, negociem e
misturem tais experiências. Acreditamos que esta seja um dos porquês de a religião e
religiosidade umbandistas terem caráter tão heterogêneo, híbrido e plural, não só na região,
mas também no Brasil. Na cidade, o que pudemos perceber com a pesquisa foi a presença de
umbandas, marcadas ora pelas diversificações nos rituais, ora pelas diversificações nas noções
míticas, ora por ambas. Assim, vamos encontrar centros que trabalham só com palmas e
outros que trabalham com instrumentos como tambores, ganzá, triângulo, pandeiro, etc.
Encontramos casas onde a presença dos exus é aceita e onde não é; casas com diferentes
noções dessas entidades: umas negativas, outras positivas; casas com mais influência do
catolicismo em seus rituais e mitos; casas com mais influência do kardecismo; e casas
marcadas fortemente pelo Candomblé; algumas apelam mais a práticas caritativas; outras não.
Há tendas que reúnem diversas pessoas em rituais de giras abertos ao público e tendas onde
não há reuniões; apenas consultas individuais. Dada essa tamanha diversidade no campo
empírico, dentre outros fatores já citados, resolvemos optar pelo estudo mais detalhado da
Tenda Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc para compreender como a Umbanda na cidade
se institucionaliza e se ressignifica num contexto de fronteira marcado por diversas
migrações.
106
CAPÍTULO III
“LÁ VEM ELA, JOANA D’ARC, E JÁ ESTAVA GUERREANDO”
Uma pessoa a quem nunca ninguém perguntou quem ela
é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida,
tem muita dificuldade para entender esse súbito interesse
(POLLAK, 1992, p.213).
Era início da década de 1970 quando uma jovem católica adentrou o terreiro de
Umbanda de dona Maria Cuiabana, em Araguatins (TO). Ela estava em busca de tratamento
para um mal-estar físico que muitos diziam ser de caráter espiritual. José Odenir Rodrigues,
em transe com João da Mata, foi quem recebeu a jovem, dando início a uma nova etapa na
vida dela. A jovem, Valdeci Pereira Reis, nasceu no seio de uma família católica na fazenda
São Bernardo, que pertencia a seu avô, no município de Carolina, MA, em 29 de julho de
1951. Quando ainda era criança, seus pais se mudaram para São Raimundo, distrito da cidade
de Ananás, então pertencente a Goiás. Ali, Valdeci tivera seus primeiros contatos, segundo
suas lembranças, com o mundo da encantaria.
Existia uma menina chamada Maria que Valdeci, de vez em quando, encontrava
nas missas nos fins de semana. Maria tinha quase a idade de Valdeci e morava no vilarejo
Bom Jesus, próximo ao córrego Cruz, que desemboca no rio Corda, o qual deságua no
Araguaia. Maria gostava de tomar banho no córrego e, vez ou outra, contava para as pessoas
que via na beira d’água uma mulher muito bonita sentada numa tábua. Ela tinha cabelos
negros e compridos e sempre chamava a menina Maria para perto de si. Certa vez, Maria foi
se banhar e não voltou naquele dia nem nos três dias que se seguiram. Somente suas roupas
foram encontradas às margens do rio. Quando a menina Maria apareceu, chorava
constantemente e chamava por sua mãe. Ela contou a todos que a Moça bonita a tinha levado
para a casa dela, dentro da água. Disse que a casa era grande, muito bonita e cheia de
riquezas. A Moça queria convencê-la a ficar ali com ela, mas Maria disse que queria ficar era
com sua mãe. A Moça ainda insistiu dizendo para ela que ali ela nunca morreria, porque ali
ela estava na encantaria. Mesmo com os esforços da Moça por convencer Maria a ficar, esta
estava decidida a voltar para sua família. Antes de partir, a Moça fez Maria prometer que tudo
ela poderia contar sobre o que vira, mas três coisas eram proibidas, as quais Valdeci disse que
Maria nunca contou para ninguém. O segredo ficou restrito a ela e aos encantados.
Embora tenha achado a história fantástica, a menina Valdeci — ainda sob a
influência católica — brincava com sua amiguinha Maria dizendo que esta tinha “ido era no
inferno”. Maria, porém, sempre dava a mesma resposta para as brincadeiras de Valdeci: “Não,
107
eu estava era na encanteria70”. Atualmente, relembrando o momento, Dona Valdeci tem
certeza que fora uma Mãe d’Água que levara Maria.
Tempos depois, foi a vez de a menina Valdeci viver sua própria experiência. Ela
tinha quase 8 anos de idade quando Tio José, um senhor que morava na casa da família, a
levou para pescar no rio dos Porcos, que desemboca no córrego Cruz. Entre uma brincadeira e
outra próxima às margens, ela conta que viu quando as águas do rio foram se abrindo ao meio
até ser possível ver o fundo cheio de areia. Ela disse que se arrepiou toda, mas que achara
aquilo muito bonito e começara a gargalhar sem parar e andar em direção da água. O velho
Tio José que acompanhava suas peraltices à distância, percebendo o que acontecia com ela,
correu ao seu encontro, a pegou no colo e foram embora às pressas. Chegando em casa, ele
contou para os pais de Valdeci que viu, no meio do rio, uma moça branca com manto
vermelho que ia em direção de Valdeci para abraçá-la e que, se não fosse pelo fato de ele ser
vidente e conhecer o que era “encantoria”, eles teriam ficado sem a filha, pois ela teria se
encantado. Assim, ele advertiu os pais dela: “nunca deixem essa menina perto de água”. É
possível que o velho, com sua sabedoria dos encantados, tenha tido medo de que acontecesse
algo semelhante ou ainda pior do que acontecera com a pequena Maria tempos atrás.
A dirigente relata que, ainda criança, começou a vivenciar diversas experiências
mediúnicas: via quando alguma pessoa ia morrer, sentia como se alguém estivesse andando
com ela o tempo todo, sentia que algo/alguém a empurrava, fazendo que ela caísse no chão,
quando dormia, via sua alma sair do corpo (desdobramento) etc. Mesmo com os indícios de
mediunidade, seus pais, católicos, não tinham conhecimento do universo espiritual que
compõe as religiões afro-brasileiras. Assim, as reclamações e previsões de Valdeci não
passavam, aos olhos deles, de invenções da cabeça de uma criança. A explicação dos pais e
amigos para o que acontecia com ela encontrava respaldo na criança arteira que Valdeci era:
suas peraltices e constantes quedas nas ruas lhe renderam o apelido de “doida do Raimundo
Branco”, fazendo referência ao pai dela. Seu pai a apelidara de Joana D’Arc. Valdeci conta
que sempre que ele a via chegando da rua descabelada e suja, com sinais de ter brigado, dizia:
“Lá vem ela, Joana D’Arc, e já estava guerreando”. Valdeci vivia brigando e metida em
confusão com outras crianças da vizinhança. Assim, o nome de sua futura tenda seria uma
lembrança e homenagem a seu pai e também porque ela se identificaria com a santa guerreira.
Além de ter tido suas experiências com o mundo encantado das entidades ainda
sem o conhecer, Valdeci experimentou os milagres vindos da sua fé católica. Ela contou que
70
A grafia correta é encantaria. Porém, é comum nos terreiros de Araguaína ouvir encanteria e encantoria.
108
teve uma febre muito alta quando ainda era criança e que, durante o período febril, sonhou
que tinha uma escada gigante que ia até o céu. Disse que começou a subir a escada e, depois
que atravessou as nuvens, viu que vinha uma mulher descendo na mesma escada em sua
direção. Essa mulher estava vestida com um manto, seu cabelo era loiro e encaracolado. Ela
vinha com as mãos postas como em oração. Quando chegou perto, disse para Valdeci: “Volte,
não é seu dia. Volte”. Valdeci conta que iniciou a volta, descendo a escada aos poucos.
Quando acordou, já estava melhor e a febre tinha cessado. A dirigente acredita que se tivesse
terminado de subir a escada estaria morta. Mas foi essa mulher, a qual ela acredita ser Santa
Verônica ou Nossa Senhora das Graças, que não a deixou terminar o trajeto, protegendo-a.
Desse modo, foi entre uma experiência católica, pertencente ao conhecido, e
outras “umbandistas”, de um universo desconhecido até então para ela, que Valdeci passou
sua infância e adolescência na pequena localidade de São Raimundo. Porém, ali permaneceu
por apenas dez anos, mudando-se em seguida com sua família para Ananás, Goiás (cidade que
pertence atualmente ao Tocantins). Ainda muito jovem, com 18 anos, Valdeci se casara com o
policial militar Osmar Souza Reis. Ele teria sido destacado para a cidade de Ananás, onde a
conhecera. Ela recorda que antes de se casar já sofria com a sensação de que vivia sendo
empurrada por alguém, resultando sempre em quedas. Após o casamento, começou a ver
clarões em tons de azul no seu quarto, ainda que seu esposo não os visse.
Em 1972, seu esposo foi transferido para Araguatins. Sua sogra, Maria de Jesus
dos Reis, que já residia com ela, foi com o casal para a cidade, onde já tinham uma casa
construída. Nessa nova localidade, seus problemas foram intensificados. Ela passou a ter
desmaios, principalmente quando estava sozinha, e achava estranho o fato de desmaiar
quando estava rezando ajoelhada no seu quarto e acordar sentada na cama, curvada para frente
e toda suada. Além dos desmaios, ela contou que sentia muita fraqueza, fortes dores de
cabeça, que ficava sempre gelada, assim como o resto do corpo. Muitas vezes, suas tarefas
domésticas eram prejudicadas por conta desses problemas; mas, com vergonha do marido e
achando que estava com epilepsia, ela escondia o problema de todos.
De acordo com Valdeci, ela e sua sogra se davam muito bem. Esta teria auxiliado
a nora nas tarefas de casa quando ela passava mal e foi sua sogra quem começou a procurar
tratamento para ela. Segundo a dirigente, além dos desmaios, sua mão direita não tinha mais
força para nada, “só ficava caída”, como se os músculos e tendões não mais existissem. Foi
após procurarem diversos médicos e até pensarem em sair da cidade em busca de cura para os
problemas de Valdeci que uma amiga da família, Dona Joana Borges, disse que os problemas
dela eram espirituais e que sabia de alguém que poderia ajudá-la, Mestre José Odenir. A
109
princípio, a jovem Valdeci não queria ir ao terreiro, por desconhecer não só o ambiente, como
também a religião, mas foi sua sogra que insistiu de forma veemente para que ela fosse até lá,
dizendo que iria com ela. Assim, após muita insistência, ela resolveu ir conhecer Mestre
Odenir, que estava na cidade naquele dia. Ele, inicialmente, residia em Marabá, PA, e ia para
Araguatins toda quarta-feira realizar trabalhos de Umbanda no terreiro de Dona Maria
Cuiabana. Osmar, esposo de Valdeci, mesmo que aprovasse a ida ao terreiro, não as
acompanhou até o local.
Foi ali, na frente de João da Mata e usando José Odenir como aparelho, que
Valdeci começou a compreender o que se passava com ela. Segundo ela, a entidade teria dito
que poderia ajudá-la, mas que precisava da presença do esposo dela ali. Dona Valdeci disse
que não sabia onde ele estava, e João da Mata sorrindo disse que Osmar estava na beira do rio
Araguaia bebendo, mas que não precisava se preocupar que ele iria buscá-lo. Assim, João da
Mata teria deixado o corpo de José Odenir, permitindo que esse ficasse “puro” novamente.
Pouco tempo depois, João da Mata voltou a incorporar seu aparelho. Em seguida, entrou pela
porta do salão o esposo de Valdeci. A entidade avisou para o marido que sua esposa era
médium e que precisava trabalhar como umbandista para poder se curar. Dona Valdeci lembra
que Osmar aceitou tudo o que a entidade falou e as instruções de Mestre Odenir após a partida
de João da Mata. O problema foi que a jovem Valdeci não aceitara o tratamento de forma tão
fácil. Porém, os problemas de saúde pelos quais vinha passando foram convincentes para sua
decisão de começar a trabalhar como umbandista.
É certo que, no período que João da Mata se ausentou do terreiro para ir buscar
Osmar na beira do rio, outra entidade viera se encontrar com Dona Valdeci no terreiro.
Utilizando o mesmo aparelho, José Odenir, arriara ali a encantada Mariana. Ela teria dito que
a jovem Valdeci era sua filha, por isso iria ajudá-la. Enfatizou ainda que ela faria da dirigente
uma grande médium e que iria usá-la para curar muitas pessoas. Por fim, Mariana contou que
sabia dos sofrimentos pelos quais Valdeci estava passando e passaria e que, por isso, quis
levá-la deste mundo para a “encantoria” quando ela era criança. Disse ainda que ela teria
muitos problemas na vida, mas que passaria por todos com “dignidade, força e coragem”, pois
agora ela — Mariana — estava ali para ajudar Valdeci em seu desenvolvimento e no que
fosse preciso.
3.1 – “A Umbanda só tem porta de entrada, não tem de saída”.
110
Era virada do ano de 1977 quando Valdeci e sua família saíram de Araguatins em
cima de um caminhão rumo à cidade de Araguaína. Na rua 2 de julho, no Centro da cidade,
estava sua casa, onde foi reservado um quarto para ela realizar as consultas e os trabalhos da
Umbanda, dando continuidade ao que aprendera em Araguatins e depois em Nazaré, MA,
com o afamado Mestre Bruno, por quem foi batizada e autorizada a prosseguir com seus
trabalhos. Após a longa conversa que tiveram, em 1972, com João da Mata e, logo em
seguida, com Mestre Odenir, o esposo de Valdeci viajou até a cidade de Araguaína a fim de
comprar banhos de descarga, defumadores e outros artigos para iniciar o desenvolvimento
dela, uma vez que em Araguatins não havia loja especializada nestes produtos71.
Quando Dona Valdeci começou a se desenvolver com José Odenir, este passou a
ir duas vezes por semana à cidade. Com sua clientela se expandindo, ele resolveu construir
um salão para si, parando de trabalhar no terreiro de Maria Cuiabana. Antes de o salão ficar
pronto, ele continuou seus trabalhos na casa de uma médium dele, Maria do Carmo. Foi com a
ajuda de amigos e médiuns que a tenda foi erguida. O terreiro foi construído na rua Pedro
Ludovico Teixeira, à beira do rio em Araguatins.
Dona Valdeci não sabe ao certo quem seria o pai de santo de José Odenir. Sabe
que mesmo morando em Marabá teria sido desenvolvido, de início, em Belém. Ainda em
Marabá teria começado sua “feitura na Omolokô”. Em uma das viagens para Tucuruí, José
Odenir começou seu desenvolvimento na Mina de Cura72 com Mestre João Torneiro, e
também “pegou preparo” em São Luís, MA. Quando chegou a Araguatins, mesmo com
diversas “correntes cruzadas” — como diz Dona Valdeci —, Mestre Odenir começou a
trabalhar na “Umbanda branca”, sinônimo da ausência de exus e tambores. A dirigente lembra
que ele passou a usar tambores e realizar “trabalhos com a esquerda” somente quando ela saiu
de lá.
Ainda no mesmo ano em que conhecera Mestre Odenir e iniciara seu tratamento e
desenvolvimento, a jovem Valdeci entrou em transe pela primeira vez com a encantada
Mariana.
71
Naquele momento, em Araguaína, quem tinha este tipo de comércio era Terezona. A loja se chamava “Cabana
José Tupinambá” e ficava na Av. Cônego João Lima (a principal da cidade). Com o falecimento de Terezona a
loja fechou. Mas outra foi aberta na mesma avenida por Antônia do Raimundo Pantaleão, a “Loja Iemanjá”. Esta
senhora, ao contrário de Terezona, não pertencia ao povo de santo, e devido a problemas de saúde do marido
teriam se mudado para Palmas/TO em busca de melhores tratamentos. A próxima loja na cidade viria a ser a
“Cabana Rompe Mato” de Dona Valdeci.
72
Também conhecido como “pena e maracá”, termo usado em Belém/PA como sinônimo de pajelança.
111
FIGURA II – Primeira incorporação da jovem Valdeci
Fonte: Acervo Dona Valdeci
Com José Odenir, a jovem médium conheceu, além dos segredos da Umbanda, os
segredos que pertenciam à Mina de Cura e seus cavaleiros. Ainda se lembra de quando os
recebera pela primeira vez. Mestre Odenir mandou que se sentasse, antes de receber as
entidades, pois, segundo ele, ela “não iria resistir ao peso deles se ficasse em pé”. Assim, ela
“deu passagem73” para todos os cavaleiros que quiseram vir curar naquela noite. Foi ainda no
mundo encantado da Mina de Cura que a jovem Valdeci pôde ver que nem todos os
encantados vinham em forma de gente. Presenciou botos74, cobras, jacarés, peixes e outros
animais incorporarem no Mestre Odenir e nos médiuns da casa, assim como ela futuramente
também os receberia. Ela passou a incorporar a Cobra Buiuna, grande figura mítica das águas
da região amazônica. Segundo Dona Valdeci, a primeira vez que Buiuna veio no terreiro de
José Odenir ela estava presente e compreendeu, naquele momento, a história do encantamento
dessa entidade.
73
Expressão que designa uma sucessão de entidades que incorporam em um médium de forma sequencial. Estes
chegam, cantam sua doutrina e logo em seguida vão embora dando a possibilidade para que outros venham.
Segundo Galvão (1976), uma das características principais da pajelança, se comparada com as religiões afrobrasileiras, é o fato do pajé receber uma enorme quantidade de espíritos por trabalho e não somente uma ou outra
entidade.
74
Os botos procuram ser evitados pelos ribeirinhos por acreditarem que são seres encantados. Casos de mulheres
doentes ou grávidas por conta de botos que se transformaram em homens e se relacionaram com elas são
recorrentes nas narrativas. A figura da cobra de grandes proporções que habita a parte mais funda do rio – os
poções – faz também parte das crenças amazônicas. Assim como, os efeitos medicinais e “mágicos” de partes
corporais destes animais (GALVÃO, 1976).
112
De acordo com a dirigente, há mais ou menos uns 40 anos, em Araguatins, uma
moça ficou grávida. A família escondeu o fato de toda a cidade, e quando a moça deu à luz ela
jogou a criança no rio Taquari, que deságua no Araguaia. Foi justamente em um ritual de
Mina de Cura oficiado por Mestre Odenir que Buiuna veio sobre a cabeça do chefe da casa.
Dona Valdeci contou que Mestre Odenir, com a encantada, chorava muito e que esta pedia
para ser batizada. Entre lágrimas, ela contava que sua família era de Araguatins, mas que ela
não poderia dizer quem era, pois ainda não tinha autorização para se revelar. Porém, uma
coisa lhe era permitido contar, que tinha sido Buiuna que a encantara.
Dona Valdeci recebe, na sua “coroa”, a mesma menina encantada na cobra, a qual
chega sempre cantando um dos seus dois pontos que, resumidamente, contam sua história e
sobre quem ela é:
A minha mãe ingrata
Que me jogaste nas águas
Eu sou a Buiuna grande
A flor do Taquari.
Ou
A Buiuna é moça (2x)
Eu sou Buiuna
Eu sou Buiuna
Sou cobra do fundo.
Mas nem só de cavaleiros, como Rei Ricardinho, Mestre Badé, Tango do Pará,
entre outros, e animais encantados está composto o panteão da Mina de Cura. A jovem
Valdeci viu Francisquinho vir pela primeira vez no dirigente do salão antes de passar a
recebê-lo. Quando esse menino encantado chegou, ele cantou o seguinte ponto narrando sua
história e explicando quem o teria encantado:
Eu andava na canoa quando eu me alaguei
Por cima do Travessão eu sou morador
Foi Seu João Silva75 que me trouxe aqui
Boa noite meus irmãos eu já vou me despedindo.
Ao terminar sua canção, o encantado colocou as mãos no rosto e começou a
chorar. O pai do pequeno Francisquinho estava presente nos trabalhos naquele dia e,
reconhecendo o filho “desaparecido”, pôs-se a chorar também.
75
Outra entidade encantada no Rio Araguaia que era recebida por Mestre Odenir.
113
Dona Valdeci lembra que Francisquinho era uma criança conhecida por todos na
cidade. Ele tinha mais ou menos 12 anos de idade quando estava na canoa no meio do rio
Araguaia, em um local chamado Travessão, por ser a parte mais funda do rio, pescando e
brincando. Sua canoa começou a encher de água e afundar. As pessoas que passavam por
perto jogavam corda e objetos na tentativa de ajudar o garoto, mas ele afundava e voltava
várias vezes, e sempre que retornava à superfície as pessoas o viam sorrindo. Isso aconteceu
durante certo tempo, até que o menino não mais emergiu, desaparecendo na imensidão das
águas. No salão de José Odenir, ao ver o pai chorando, Francisquinho foi até ele e disse,
procurando confortá-lo: “Papai, não chora, eu não morri, eu só me encantei”.
Ao conhecer essa história e outras que, mais tarde ouviria e presenciaria, e
recordando-se da conversa primeira que tivera com Mariana, a jovem Valdeci compreendia
cada vez mais o que acontecera com ela na infância às margens do rio dos Porcos. Assim,
além dos ensinamentos da Umbanda e da Mina de Cura dados por José Odenir, a dirigente
contou que sua sogra ajudou bastante durante todo o processo, sobretudo no que dizia respeito
às rezas. Dona Valdeci não sabia “se quer rezar um terço” e foi sua sogra quem a ensinara. O
apoio recebido de diversas pessoas durante o desenvolvimento da dirigente é sempre
lembrado com gratidão. Mas, segundo ela, quem mais ajudou durante esse processo foram as
entidades, algumas de forma especial. Além de Mariana, que a acompanharia por toda a vida,
uma entidade chamada Índio Luzimar ajudou, segundo seus relatos, “dando força” nos
momentos em que ela “tinha vontade de abandonar tudo”. Ela conta que sempre que ele
“chegava nela” todos os médiuns presentes sentiam sua presença e sua luz, inclusive seu
esposo, Osmar.
Dona Valdeci relata que não gostava de “ficar sem ver o mundo” — expressão
que explica o fato de que, quando incorporada, não tem consciência do que se passa a sua
volta. Contou que, por diversas vezes, “apanhou76” das entidades por desrespeitá-las e por
negar e lutar contra sua mediunidade. A jovem Valdeci xingava, em especial os caboclos, de
“bando de bêbados”, porque ela via as pessoas cambaleando quando incorporavam. Ela diz
que nem todas as pessoas podem escolher se querem ou não a mediunidade. No seu caso, ela
não queria, mas as entidades não a “deixavam em paz”, infligindo sobre ela sofrimento
76
A surra de santo são castigos a que os orixás e demais entidades submetem os médiuns por diversos motivos e
de diversos modos. Os motivos variam de desrespeito a entidade, não cumprimento das obrigações, etc. Os
modos da surra vão desde bater com as mãos ou outras partes do corpo no biaiá (pedra específica de castigo)
durante os rituais, ou castigos não tão imediatos, mas a longo prazo como é o caso de doenças, desmaios,
loucura, e uns dizem que até a morte. No caso da surra realizada nos rituais, alguns dirigentes dizem que o
médium estaria inconsciente na hora do castigo, recebendo as dores somente quando volta à consciência. Outros
falam que este poderia estar parcialmente consciente, fazendo com que no ato da surra este sofresse o castigo,
mas sem conseguir evitá-lo.
114
corporal durante as diversas surras recebidas. Porém, de acordo com ela, tudo cessou quando
“parou de resistir” e “aceitou sua missão”.
Outra entidade que contribuiu de forma marcante para Dona Valdeci em seu
desenvolvimento foi Dom João Soeira. Segundo disse, ele teria estudado para ser padre
quando ainda “era gente como nós” e que a ensinara muito sobre a Bíblia. Ele começou
mandando que ela lesse o livro de Salmos capítulo 23, 37 e 91. Disse que, quando ela
estivesse precisando de ajuda e não soubesse como resolver, era “para ir a algum lugar
tranquilo, se concentrar de 5 a 10 minutos com o Evangelho fechado entre as mãos, sempre
descalça77, com os olhos fechados e elevando o pensamento a Deus”. Após esse período, ela
deveria dizer: “Senhor, através da tua palavra sagrada me mostra um caminho por onde eu
seguir”. Dona Valdeci conta que, quando terminava de dizer essas palavras e abria o
Evangelho, ali estavam as respostas para tudo que ela precisava — assuntos relacionados com
viagens, curas, trabalhos etc.
Após oito meses desenvolvendo sua mediunidade e se sentido fisicamente melhor,
a jovem Valdeci resolveu que não queria continuar trabalhando com a Umbanda. Assim,
conversara com o esposo dizendo que não continuaria indo mais ao terreiro. Mas, depois de
uma semana de distanciamento dos trabalhos mediúnicos, começara a passar mal de novo; sua
mão que já tinha recobrado os movimentos “voltou a cair” e o mal-estar físico reapareceu.
Naquele momento, a jovem compreendeu que “a Umbanda só tem porta de entrada, não tem
de saída”. Foi então, com a desculpa de que estava viajando, por isso se ausentara durante
certo período, que Valdeci voltou ao salão de Mestre Odenir, onde ficara por um ano e seis
meses. Foi neste período de um ano e meio que a jovem viu e aprendeu muito sobre a
Umbanda, seus trabalhos, suas consultas e suas curas. De acordo com Dona Valdeci, eram
muitas as curas realizadas no salão; mas foram as curas realizadas à distância que mais
marcaram sua vida. Esse tipo de cura é realizado, segundo a dirigente, sem a presença física
do consulente; os médiuns, durante o sono ou meditação, têm seus corpos (a matéria)
abandonados por seus espíritos, os quais viajam até dada localidade78 para atender aquele que
necessita de ajuda. As curas, em geral, eram realizadas apenas por Mestre Odenir, porém para
outras ele contava com o auxílio dos médiuns.
Em uma dessas curas, José Odenir tinha viajado para Belém, Pará, e a jovem
Valdeci e uma amiga, Rosa Preta, estavam em Araguatins. A dirigente disse que era no
77
Segundo a dirigente, o fato de sempre realizar os rituais descalça é porque há um maior contato com a natureza
criada por Deus e, também, porque é sinal de humildade.
78
Na doutrina Kardecista esse fenômeno é conhecido como desdobramento. O episódio se assemelha, também,
ao fenômeno narrado por informantes de Galvão (1976) sobre pajés chamados de sacacas do Baixo Amazonas.
115
período vespertino quando, de forma repentina, abateu-lhe um sono. Sem conseguir ficar
acordada, resolveu ir se deitar. Quando dormiu, sonhou que José Odenir passava na casa dela
e na de Rosa convidando-as para ir a uma cidade chamada São Domingos das Latas, no Pará,
para curar um homem. Ela lembra que, quando chegaram lá, havia um homem amarrado com
correntes pelo pé num mourão na porta do terreiro. O pai de santo desse salão, Geraldo, os
recebeu na entrada e disse que chamou o espírito deles ali para curar aquele homem; disse
ainda que não conseguiu fazer nada por ele, mas sabia que poderiam fazer, pois conhecia o
trabalho deles. Mestre Odenir foi quem comandou o ritual. Ele colocou a cabeça da jovem
Valdeci encostada na cabeça do homem, a cabeça de Rosa nas costas e sua mão dele na
cabeça, proferindo diversas rezas. Dona Valdeci disse que, quando eles terminaram e estavam
indo embora, o dirigente Geraldo já estava desamarrando o homem, o qual já estava melhor.
Antes de partirem, José Odenir pediu para Geraldo “nunca mais chamar eles dessa forma,
porque era muito perigoso”. A dirigente se lembra de acordar em casa e ainda ser dia, o que
indica que o sono foi por um curto período de tempo. Como era jovem e “ainda não sabia
direito das coisas”, Valdeci ficou na dúvida se aquilo teria sido ou não apenas um sonho.
Na manhã seguinte, Rosa Preta foi até sua casa. Quando Valdeci avistou a amiga,
ela foi logo perguntando: “Aonde a gente foi curar ontem e quem estava com a gente?”. Rosa
prontamente respondeu que tinham ido a São Domingos das Latas e que estavam com Mestre
Odenir. Sem compreenderem o que aconteceu realmente, esperaram até o retorno dele para
obter mais informações. Quando José Odenir chegou de Belém, fizeram a mesma pergunta, à
qual ele deu as mesmas respostas. Então, o dirigente explicou que Geraldo o chamara, ou
melhor, “seu espírito”, através de um ritual especial para ajudá-lo com o homem enfermo.
José Odenir disse que precisava da ajuda de mais pessoas para realizar o trabalho, assim ele
resolveu passar na casa delas e chamá-las para auxiliá-lo naquela tarefa. Ele explicou que o
ritual realizado por Geraldo é muito perigoso, pois expõe muito o espírito79 da pessoa. Ainda
contou que o perigo maior é quando este retorna para o corpo, pois se o espírito encontrá-lo
curvado não teria como entrar novamente, causando assim a morte do médium. Mestre Odenir
falou que “ia fazer um trabalho para elas preservarem o anjo da guarda delas sempre junto,
para não deixar qualquer pessoa ficar chamando eles”. Dona Valdeci contou que tempos mais
tarde a mãe-pequena do terreiro de Mestre Odenir foi até a cidade de São Domingos das Latas
visitar alguns parentes e, quando retornou, trouxe notícias da cura realizada, o que certificava
a ida e o feito deles naquela localidade.
79
O espírito do ser humano é muitas vezes chamado pelos dirigentes, também, de “Anjo da Guarda”.
116
A jovem Valdeci aprendeu também que nem sempre quem diz estar incorporado
realmente está. Ela conta que é muito comum ver as pessoas “mistificando”. Algumas o
fazem intencionalmente; outras ela acredita que o fazem por ainda não saberem a diferença
entre ficar irradiado e incorporado. No primeiro caso, a pessoa somente sente a força e a
presença do guia, sem ser “tomado” por ele. Embora veja isso acontecer repetidamente, a
dirigente garante não desmentir ninguém durante os rituais, e às vezes nem depois dele,
porque, segundo ela, “quem tem vergonha não faz vergonha aos outros”. Dona Valdeci narrou
que, certa vez, na casa de Mestre Odenir, ela estava entrando para a sala de consulta para
conversar com Jarina incorporada nele, quando ouviu uma das médiuns da casa puxando o
ponto de Seu Sete Flechas, indicando tê-lo recebido. Nesse exato momento, Valdeci recebera
uma entidade que foi ao encontro da moça, colocou a mão no ombro dela e falou: “Eu sou
Sete Flechas. E você quem é?”. Dona Valdeci disse que, quando voltou a si, todos riam no
salão, e ela não sabia o motivo. Quando ficou sabendo o que aconteceu, ficou com muita
vergonha e pediu para que as pessoas não deixassem que suas entidades passassem vergonha
nas pessoas outra vez.
Ela descobriria, ainda com Mestre Odenir, as peraltices das entidades infantis, os
ibejis. A criança chefe na corrente de Dona Valdeci nessa linha tem por nome Mariazinha. Foi
por causa dela que muitas vezes a jovem Valdeci, quando voltava do transe, encontrava-se
completamente molhada ou suja de barro. Descobriu, depois, que não só ela “era castigada
pelas entidades”, como também havia uma hierarquia no mundo espiritual que fazia, por
exemplo, que a entidade Mariazinha respeitasse e obedecesse a Mariana, a “chefe de sua
coroa”. Certa vez, a entidade infantil teria vindo em Valdeci antes de Mariana durante um
trabalho. Quando a encantada turca chegou, “encontrou seu aparelho todo sujo e molhado”.
Sabendo a quem pertencia tal arte, Mariana deixara Mariazinha de castigo na Bahia80 por seis
meses, significando com isso que durante esse tempo ela não arriaria no terreiro.
Dona Valdeci lembra que, nesse período todas as vezes que trabalhava, ouvia ao
longe o choro de Mariazinha querendo ir brincar. Assim como as “surras” serviram de lição
para a jovem Valdeci aceitar sua condição mediúnica, o castigo dado em Mariazinha serviu
para que esta nunca mais sujasse seu aparelho. Contudo, negociar também foi preciso. Desde
então, talco é oferecido à menina Mariazinha para que continue com suas meninices, ou seja,
em vez da terra, ela passou a utilizar o talco para se “lambuzar”.
Valdeci compreendeu, ainda, no período que esteve em Araguatins, que as
80
A Bahia é considerada por vários dirigentes como a casa de Cosme e Damião como veremos no próximo
capítulo.
117
relações na Umbanda entre alguns terreiros e dirigentes nem sempre são amistosas. Descobriu
as muitas disputas, invejas e demandas presentes nas relações entre o povo de santo. Em uma
das visitas realizadas a sua família na cidade de Araguaína81, ainda no período que estava se
desenvolvendo espiritualmente com José Odenir, a jovem Valdeci escutou os tambores de um
salão que tinha próximo à casa de seus pais. Ela, mais a irmã (Antônia), o cunhado e o irmão
mais novo foram até lá para ver os trabalhos. Dona Valdeci contou que o dirigente começou o
trabalho chamando a linha dos exus, os quais foram tomando os médiuns. O dirigente chegou
perto dela com uma vela preta e a quebrou na sua frente, levando a vela quebrada em seguida
para o altar. A jovem não sabia exatamente do que se tratava, mas sabia que “boa coisa não
era”. Assim, pôs-se a pedir proteção para Deus, quando nesse momento ‘arriou’ nela Caboclo
Rompe Mato.
O que Dona Valdeci narrou a seguir, segundo ela, foram o que seus irmãos
contaram, uma vez que ela estava incorporada. Rompe Mato pediu permissão para o dono do
salão para dar seu ponto. Após cantar, a entidade disse para os presentes que “aquilo ali não
era lugar para a médium dele ficar, não”. Quando ele saiu da jovem Valdeci, quem chegou foi
Seu Zé Pilintra82. Dona Valdeci conta que, “naquele tempo, não era como hoje, que as pessoas
não reconhecem o poder de uma entidade. Antigamente, onde ele [Zé Pilintra] descia o povo
ia se curvar de joelho aos pés dele e tomar bênção”. E foi assim que aconteceu no salão
naquela noite.
Contudo, antes de irem embora, ainda veio a Princesa Mariana, sua guia chefe,
avisando a todos que levaria sua médium embora, porque ela “não era mãe de santo, era só
uma médium que estava se desenvolvendo e que ela não tinha ido preparada para trabalhar”.
Dizendo isso se despediu do povo e saiu pela porta, com a família de Valdeci, sem dar as
costas para o salão83. Dona Valdeci contou que, quando tornou a ter consciência, estava
sentada na cama dela, na casa de seu pai. Disse que ficou triste com o que eles fizeram,
porque ela só queria ver como eles trabalhavam, pois não conhecia como era realizado um
trabalho com tambor, o que por fim, não foi possível devido aos acontecimentos.
Experiências como essas e o fato de “ter medo e achar feio as incorporações com
exus por conta dos médiuns ficarem todos retorcidos e grunhindo como animais” podem ter
influência na escolha de Mariana, segundo Dona Valdeci, de não aceitar essa linha em sua
81
Seus pais e irmãos se mudaram para Araguaína/TO pouco tempo após Dona Valdeci se casar.
Apesar de muitas casas considerarem esta entidade como pertencente, também, à linha dos exus, na casa de
Dona Valdeci ele é um velho médico que vem somente para fazer curas.
83
Esse tipo de saída, neste contexto, é explicado pela dirigente como modo de evitar que “façam o mal pelas
suas costas”.
82
118
corrente. Apesar de José Odenir trabalhar com exus, a dirigente conta que, durante os rituais,
ficava o tempo todo rezando baixinho, o que causava a ira dessas entidades. Ela ainda conta
que Mestre Odenir estava sendo preparado na Mina de Cura pelo paraense João Torneiro
quando resolveu começar a trabalhar com exus. O “povo do fundo”, como ela diz, “não aceita
esse tipo de linha na corrente onde eles trabalham”. Teria sido um dos motivos que levaram
José Odenir a não concluir seu desenvolvimento na Mina de Cura, ou melhor, que levaram os
cavaleiros a não quererem mais usá-lo como aparelho, segundo Dona Valdeci.
Com sua saída da casa de Mestre Odenir, Valdeci, seguindo ordens de Mariana,
resolvera construir um salão para ela. Todo o processo da construção do primeiro salão, ainda
em Araguatins, foi realizado sob o comando de Mariana. A encantada ordenara que o salão
devesse ter quatro metros de largura por seis metros de comprimento. Ela ainda ordenara que
um pequeno quarto devesse ser deixado reservado na área construída. Dona Valdeci conta que
ninguém sabia para o que era, mas tempos depois descobririam que o local teria sido
escolhido para abrigar a loja de onde viria o sustento da dirigente. Naquele momento, Dona
Valdeci e sua família não tinham condição financeira de arcar com a obra, mas por
“providência de Mariana”, segundo Seu Osmar, um homem que devia dinheiro para ele havia
uns 15 anos, o procurou perguntando se ele não queria receber o dinheiro em alvenaria
(tijolo). Foi assim que, após 30 dias do início das obras, a tenda estava pronta. Com seu
término, Mariana retornara na jovem Valdeci para receber seu mais novo salão.
O nome do salão, de acordo com a dirigente, fora escolhido por ela e por Mariana.
A encantada teria dito que o terreiro se chamaria tenda, porque em muitas das histórias do
povo de Deus na Bíblia o povo construída tendas para Lhe adorar. A parte espírita, segundo
ela, faz menção ao fato de acreditarem e trabalharem com os espíritos. Umbandista para
lembrar que “a primeira religião no mundo foi a Umbanda”. Dona Valdeci narra que na
criação do mundo e de Adão e Eva, segundo a Bíblia84, Deus teria dito: “Desça a luz da
Umbanda na terra para defender o homem de toda inveja, perseguição, vaidade, egoísmo,
presunção e maldade”. Para a dirigente, a Umbanda é “Um culto prestado a divindade
suprema” em que os médiuns “são grandes filhos de fé que com grande renuncia emprestaram
seu corpo físico para que os espíritos possam focalizar e prestar caridade aos irmãos aqui na
terra”. A escolha do nome da santa foi a única parte que Mariana teria deixado para a
dirigente. Santa Joana D’Arc, como já vimos, foi homenagem ao pai de Dona Valdeci por
perceber nela as características guerreiras da santa.
84
Apesar de fazer referência a Bíblia não é apresentado pela dirigente os locais específicos de tais passagens.
119
Quando indagada sobre a passagem da Bíblia onde estaria a ordem divina, Dona
Valdeci diz que não sabe o lugar específico onde está. Ela conta que tudo que está relacionado
com a Bíblia quem a ensinara foi Dom João Soeira. Diz que, quando do início das suas
atividades como dirigente, ele vinha e deixava escrito para ela perguntas para refletir e
ensinamentos. Exemplificando isso, ela conta que certa vez ele deixou a seguinte pergunta:
“Se você não tem um objeto, você pode dar ele?”. Ela disse que sabia que a resposta era não,
mas não compreendia o que estava por trás da pergunta. Um dia ele veio e explicou “que
quem não tem paz não pode transmitir paz; quem não tem amor não pode dar amor”. Dona
Valdeci conta que nesse período andava muito nervosa devido a problemas familiares e que
compreendeu que, se ela não estivesse bem consigo mesma, como poderia ajudar e aconselhar
as pessoas que a procuravam. Assim como essa pergunta de caráter instrutivo foi deixado para
ela, as explicações bíblicas também o foram.
A dirigente contou que, mesmo com a tenda aberta, não sabia abrir um trabalho,
conduzi-lo nem encerrá-lo. Ela somente se ajoelhava no altar e iniciava as rezas. Logo em
seguida, as entidades “chegavam nela” e tomavam conta do ritual, fazendo a abertura,
chamando as correntes, dando consultas, fazendo curas e encerrando a sessão. Sua primeira
médium teria sido Alzira Pereira dos Santos. Ela era “surda”, mas, segundo Dona Valdeci,
quando a médium estava incorporada, “ouvia perfeitamente o que as pessoas falavam com
ela”. A dirigente, embora tenha ajudado no desenvolvimento dela, também se vê como
médium de Alzira, uma vez que as duas estavam se iniciando na Umbanda e trocando
conhecimento entre si. Foi Alzira, por exemplo, que ensinou muitas rezas de benzimentos à
jovem Valdeci.
Dona Valdeci contou que, por volta de 1975, Mariana veio nela e pediu
emprestado para Seu Osmar a quantia de “sete mil bandeiras85” para construir uma loja para
“sua filha Valdeci”, pois, diz esta, “ela [Mariana] disse que ia me dar uma forma de sustento
para ajudar nas despesas de casa”. Mariana pedira para Seu Osmar ir a Belém, PA, e comprar
os materiais para ser vendidos na loja. Ele anotou tudo e partiu para a capital paraense, onde
comprou o que fora encomendado por Mariana86. Dona Valdeci se lembra que nas primeiras
vezes ela comprou com o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) de Zefinha, uma
senhora que morava em Marabá, PA, e era madrinha de batismo (católico)87 de Mestre
85
Termo utilizado pela entidade para se referir a dinheiro, independente da moeda vigente no período.
Dona Valdeci conta que a maioria das coisas foi comprada na loja, que também é fábrica, A Milagrosa. Loja
que existente até hoje, e com a qual a dirigente Valdeci ainda faz compras.
87
O tratamento madrinha e padrinho pode, muitas vezes, ser utilizado pelos umbandistas para se referir aquele
(a) que os iniciou, neste caso Zefinha era madrinha de Mestre Odenir no sentido católico do termo, ou seja, ela
86
120
Odenir. Seu Osmar, assim como Dona Valdeci, contou que, passado um mês das compras que
tinham sido feitas, Mariana voltou e falou para ele ir ao caixa da Cabana Rompe Mato e
retirar o dinheiro do empréstimo, comprovando assim sua promessa de pagamento da dívida.
O sucesso financeiro da loja era explicado, assim como ainda o é, pelas bênçãos vindas de
Deus e das entidades, assim como da inteligência e do suor da dirigente nas tarefas referentes
à loja. Ainda devemos lembrar que, naquele momento, não existia outra loja de artigos para
Umbanda na cidade, pois o próprio Osmar teria ido até Araguaína fazer compras quando do
início do desenvolvimento de Valdeci88.
FIGURA III – Salão, residência e loja em Araguatins
Desenho: Sariza Venâncio
Foi ainda no ano de 1975 que a jovem Valdeci e seu esposo viajaram até Nazaré,
MA, em busca de José Bruno de Morais, que teria sido indicado para ela por sua “mãe
Mariana” para terminar seu desenvolvimento. Quando chegou a Nazaré, José Bruno já estava
esperando por ela, pois “os espíritos já tinham falado da minha chegada”.
foi quem o batizara na Igreja Católica. Dona Valdeci utilizou algumas vezes o CNPJ de Zefinha, mas foi
somente em Araguaína que a dirigente fez o registro da sua loja.
88
Cena que ainda se repete em Araguaína nos dias atuais quando se tem a Cabana Rompe Mato como a única
loja especializada em artigos de Umbanda na cidade.
121
FIGURA IV – Jovem Valdeci com José Bruno de Morais
Fonte: Acervo Dona Valdeci
Foi com ele, o Padrinho Bruno, como muitos o chamam, que ela se batizou,
cruzou e confirmou na Umbanda. De acordo com a dirigente, em geral entre uma etapa e
outra se passam sete anos; mas, como ela não poderia se ausentar todo esse tempo de
Araguatins por causa de sua loja, da profissão do marido e de outras obrigações na cidade,
todas as etapas foram resolvidas em oito dias. Dona Valdeci contou que estar trabalhando,
com seu terreiro montado, desenvolvendo médiuns e seu trabalho ser muito parecido com o
que o Bruno realizava fez que seu processo de aprendizado “fosse apenas lapidado” pelas
mãos do dirigente.
Em Nazaré do Bruno, a jovem Valdeci ouviu falar muito de uma mãe de santo
chamada Josefa Soeira, então já falecida. Diziam que era muito amiga de José Bruno e,
sempre que ele precisava de ajuda, ela vinha socorrê-lo e vice-versa. Essa senhora morava
122
numa fazenda entre Caxias e Nazaré. Dona Valdeci não sabe se Soeira era sobrenome da
mulher ou se era o nome da fazenda onde vivia. Com base nessa referência, a dirigente lança a
hipótese de que a palavra Soeira (Barba Soeira/Santa Bárbara) “podia ser algum sobrenome
referente a algum lugar”.
Mesmo com os diversos ensinamentos que aprendera com José Bruno, a jovem
Valdeci percebeu que podia ensinar algo ali, em Nazaré. Segundo a dirigente, Bruno não
trabalhava com Mina de Cura no terreiro dele: “ele nem conhecia isso”; só teria ouvido falar
da Mina de Cura quando ela chegou. Também disse que o “Padrinho Bruno” recebia Príncipe
José Falcão e Príncipe Ariolino Juremal, entidades que a ajudaram quando esteve em Nazaré.
Essas duas entidades, embora realizem curas, não são consideradas por Dona Valdeci como
pertencentes ao panteão da Mina de Cura; segundo ela, trabalham mais na Jurema e nas águas.
Com o batismo em 5 de agosto de 1975, ela foi reconhecida como “médium de
incorporação” e recebeu a autorização para ser “Chefe de Congá”, como consta em seu
certificado assinado por José Bruno, que assina como presidente e chefe espírita.
FIGURA V – Certificado de batismo de Valdeci Pereira Reis
Fonte: Sariza Venâncio
O certificado recebido em Nazaré do Bruno naquele momento só vinha legitimar e
123
reafirmar o trabalho que a jovem já vinha realizando; afinal, apesar do pouco tempo de
umbandista, Valdeci já estava com seu salão construído em Araguatins, consultando as
pessoas e desenvolvendo médiuns. É o filho consanguíneo de José Bruno, Vicente Pereira de
Morais, que assina ao lado como secretário e coordenador da Tenda Espírita de Umbanda
“Santa Bárbara Sueira”. Dona Valdeci diz que chegou a voltar a Nazaré anos mais tarde, após
a morte “do padrinho” que ocorreu em 1981. Na sua última visita ao local, foi realizado o
ritual de “retirada da mão” de José Bruno de sua coroa. Esse ritual consiste em retirar as
vibrações daquele que iniciou e batizou o médium. As vibrações e energias são transferidas,
geralmente, para o sucessor do pai de santo daquele terreiro. Assim foi o que aconteceu no
caso de Dona Valdeci. Vicente, filho de Bruno, foi quem “colocou a mão” na cabeça da
dirigente em seguida.
O fato de ter ficado uma semana em Nazaré e ter sido batizada por José Bruno não
influenciou, de forma significativa, os trabalhos realizados por Dona Valdeci. Foi seu
desenvolvimento com Mestre Odenir que marcaria de forma mais clara o fato de não trabalhar
com tambor. Segundo a dirigente, durante o tempo em que esteve no salão de José Odenir,
este trabalhava só com palmas; após sua saída, ele teria adotado o uso do tambor depois de
um período que passara em Belém se desenvolvendo na Omolokô. Além disso, Dona Valdeci
conta que suas entidades da Mina de Cura e “Mãe Mariana” não aceitam o trabalho com
tambor. A dirigente, por sua vez, não reclama, pois diz que ela mesma não sabe trabalhar com
instrumentos musicais.
No princípio, o salão de Dona Valdeci tinha apenas quatro médiuns.
124
FIGURA VI – Salão e médiuns de Dona Valdeci em Araguatins
Fonte: Acervo Dona Valdeci
Eles se sentavam ou ficavam de pé, parados, cantando e batendo palmas até
receber as entidades que chegavam, doutrinavam, davam consultas, realizavam curas e iam
embora. Foi em um dia de trabalho normal como esse descrito que a jovem Valdeci pôde
experimentar e vivenciar as dificuldades que enfrentaria como presidente de salão. Dona
Valdeci conta que, antigamente, a encantada Mariana, quando vinha nela, identificava-se
cantando seu ponto ou desenhando no chão seu ponto riscado. Certo dia, um homem pediu
para consultar com Mariana, que tinha riscado seu ponto no chão naquela noite; o homem
copiou o ponto e o refez em casa, querendo assim “prender” Mariana no salão dele, retirando
a entidade do salão da jovem dirigente. Quando foi no trabalho seguinte, Mariana chegou e
mandou um dos médiuns do salão — Paulo — ir à casa daquele homem e buscar a tábua onde
ele desenhou seu ponto. E assim foi feito pelo médium; ele voltou com a tábua onde estava o
ponto riscado e entregou para Mariana, que, tomando o objeto nas mãos, o quebrou. Dona
125
Valdeci disse que desde então raramente Mariana risca seus pontos.
Foi também já no seu terreiro, em 1976, que a jovem dirigente recebeu, por
intermédio de sua encantada Mariana, a notícia de que receberia a visita de Rei Sebastião.
Porém, ela não iria vê-lo, mas “carregá-lo”. Assim, Dona Valdeci recorda que, para a vinda
dele naquele ano, ela teve de fazer três dias de jejum, tomar banho de descarga e se abster
sexualmente durante nove dias. No dia da festa, teve que tomar banho de cheiro/chama, além
de cumprir outras obrigações particulares. Recorda o medo de não conseguir desempenhar
tamanha responsabilidade, mas lembra que Mariana, a filha do rei, contribuiu para que tudo
acontecesse sem problema.
Foi assim, com todo o aprendizado adquirido por meio de José Odenir, José
Bruno, amigos, familiares e das entidades, que a jovem Valdeci chegou a Araguaína, no início
de 1978, para dar continuidade a sua missão. Foi num quarto reservado na pequena casa que
ela montou seu altar e passou a realizar seus trabalhos e suas consulta com apenas quatro
médiuns.
3.2 – “Dai de graça tudo aquilo que recebestes de graça”.
Era a tarde de 24 de outubro de 2011 quando chegamos à residência de Dona
Valdeci. Não era a primeira visita que realizávamos a ela; mas seria, sem dúvida, a visita que
nos ajudaria a fazer o recorte espacial que a pesquisa ansiava e, por fim, dar início a esta. Nos
primeiros contatos com a dirigente, percebemos certa relutância dela quanto a nos permitir
estudar sua tenda e nos contar sobre sua vida. O fato de outros pesquisadores ter passado por
sua casa e não ter dado resposta de seus trabalhos, assim como danificar materiais
pertencentes a ela, além da cisma e discrição — importantes para a sobrevivência nas disputas
presentes no seio das religiões afro-brasileiras —, nos fez compreender a barreira que Dona
Valdeci impunha entre nossa pesquisa e sua vida e religião. Na tarde referida, sua recepção foi
com um sorriso aberto e um convite para sentar à mesa onde algumas pessoas reunidas
conversavam distraidamente.
Dentre diversas coisas que nossa passagem por São Luís nos ensinou foi a
importância da eficácia simbólica. Três dias antes de chegarmos à casa de Dona Valdeci,
estávamos saindo da capital maranhense para passar uns dias em Araguaína. Devido a um
problema com horário, perdemos o avião, o que provocou nervosismo e ansiedade,
potencializados por sabermos que teríamos de enfrentar 20 horas de estrada até chegarmos em
casa. Foi assim que, frente ao turbilhão de emoções, resolvemos comprar — ainda na capital
126
maranhense — um pingente com o símbolo de uma das principais festas do catolicismo
popular, a pomba do Divino Espírito Santo. Para nós, era um momento de pôr à prova a
eficácia simbólica defendida por Lévi-Strauss. Mas como alguém de origem protestante
poderia lidar com um símbolo não pertencente ao seu universo religioso?
Se no exato momento da viagem não pudemos ver resultados eficazes, não foi o
que comprovamos dias depois, quando chegamos à casa de Dona Valdeci com o medalhão
preso no pescoço. Não importa se foram as três visitas anteriores que fizemos à casa da
dirigente, ou o fato de o Divino Espírito Santo ter realizado seu trabalho, ou a “necessidade de
me conhecer melhor” — diria Dona Valdeci mais tarde; a questão é que foi a partir do dia 24
de outubro de 2011 que passamos a conhecer mais a vida dela e o modo como esta vivencia a
Umbanda.
Ainda que a tenda não estivesse construída e os trabalhos estivessem sendo
realizados em um cômodo separado na residência de Dona Valdeci para determinado fim, em
1º de janeiro de 1979 foi realizada a ata de fundação da Tenda Espírita Joana D’Arc, lavrada
no Cartório do 2º Ofício de Araguaína, em 26 de março de 1979. Quando analisamos a
documentação, percebemos que havia divergências com relação ao ano em que foi realizada a
reunião de que resultou a ata. No documento, a secretária inicia declarando que é 1º de janeiro
de 1978, mas ao final indica que o ano é 1979. Ao questionarmos Dona Valdeci sobre a data
exata da reunião, sabendo que ela teria se mudado na virada de 1977 para 1978 e percebendo
a dificuldade de realizar uma reunião no dia seguinte à mudança, ela nos confirmou que a
reunião teria sido realizada realmente no ano em que fora registrado no cartório, ou seja,
1979. Mas foi somente em 27 de setembro de 1980, com a construção finalizada, que a Tenda
Espírita Umbandista Santa Joana D’Arc foi inaugurada. Rei Sebastião ‘arriou’ no terreiro
naquele dia para receber o novo salão e batizá-lo, assim como o lago de Iemanjá construído
no terreiro de Araguaína.
127
FIGURA VII – Rei Sebastião em 27 de setembro de 1980.
Fonte: Acervo Dona Valdeci
Essa data marcaria de vez a transferência dos trabalhos do pequeno quarto
reservado da residência da dirigente para a tenda. A presença do rei nesse período do ano seria
a última; passaria a vir de dois em dois anos, no dia 20 de janeiro, quando se comemorariam a
festa de São Sebastião e o aniversário do esposo de Dona Valdeci. A data também fora
escolhida pelo rei por ter sido quando ele “desceu” pela primeira vez em seu aparelho, no ano
de 1976.
Foi ainda em 1980, já no salão construído em Araguaína, que Dona Valdeci
resolveu acrescentar aos seus trabalhos a gira, mas sem tambor; fazia uso só das palmas. Ela
conta que a quantidade de médiuns foi crescendo (22 médiuns) e, como “muitos ficavam
cansados e com as pernas doendo e dormentes por ficarem parados”, ela resolveu por se
movimentarem durante os trabalhos utilizando o “passo da Umbanda89”. Em rituais específicos
de Mina de Cura é possível ver e ouvir o chacoalhar de um maracá nas mãos da dirigente. Este,
assim como o tambor, é considerado um instrumento musical sagrado, porém com um
diferencial: é utilizado durante o trabalho com a finalidade de cura quando as entidades estão
de sua posse.
Outro elemento utilizado durante os rituais da Mina de Cura, segundo a dirigente,
era um cigarro por nome de tauari90 cheiroso, feito de ervas cheirosas e medicinais. Mas não é
usado mais desde 18 de junho de 2007, data em que a dirigente fumou seu último cigarro,
abandonando um vício que tinha desde os 10 anos de idade. Ela conta que durante os rituais de
cura alguns “cavaleiros do fundo” pediam o tauari e o fumavam pela ponta da brasa. A fumaça
89
Esse passo é marcado em quatro tempos: uma pisada com a perna direita à frente, uma com a perna esquerda
atrás cruzando a direita. O passo seguinte deve ser dado com a perna direita abrindo e finalizando com a
esquerda marcando na frente novamente.
90
GALVÃO (1976) e QUINTAS (2007).
128
era sempre soltada em cima de alguém que estava doente ou em partes específicas do corpo da
pessoa91. A fumaça era usada como forma de purificação corporal para afastar doenças e maus
espíritos. Mesmo que muitos médiuns da tenda ‘recebessem’ os cavaleiros da Mina de Cura, só
aqueles que ‘baixam’ em Dona Valdeci podiam fumar o tauari, assim como tocar — no sentido
de fazer som e também no sentido de pegar — o maracá, como foi observado no único ritual de
Mina de Cura assistido por nós em 2012, o qual será descrito no próximo capítulo.
Era ainda 1980, ano da inauguração do salão, quando Dona Valdeci deu início ao
registro de tudo o que acontecia na tenda. Desde cadastro de médiuns, atas das reuniões
(realizadas uma vez por mês), arquivamento de ofícios enviados para políticos e empresas em
busca de auxílio até anotações em forma de prontuário das consultas realizadas. Os ofícios e o
bloco de anotações das consultas tinham papel personalizado92. Em 4 de novembro de 1982, foi
publicada no Diário Oficial do estado de Goiás, na seção de “Publicações particulares”, a
fundação da tenda e seu reconhecimento como “pessoa jurídica de Direito Privado”. Nesse
documento, assim como na ata de fundação, consta que a “tenda tem por finalidade promover
as sessões de aperfeiçoamento doutrinário e estudos aos fenômenos espirituais, fundar
sanatório, creche, internato, escolas e dar assistência espiritual” (Diário Oficial, 1982, p.05).
Se as sessões de aperfeiçoamento doutrinário e estudos aos fenômenos espirituais
eram parte dedicada quase exclusivamente aos médiuns, no que tange à assistência espiritual
esse grupo se amplia. Além do auxílio prestado aos médiuns e seus familiares, pessoas de
diversas partes da cidade e de outras regiões passaram a vir para consultar, primeiramente, com
a encantada Mariana durante os trabalhos. Os motivos das consultas variavam de aspectos
financeiros e amorosos até de saúde física ou espiritual. A quantidade de consulentes por noite
de trabalho foi, com o passar do tempo, crescendo cada vez mais, e as sessões passaram a se
estender até a madrugada. Dona Valdeci disse que acabava recebendo somente as entidades que
abriam sua mesa e Mariana, o que “não fazia bem” para ela porque o “médium precisa, em um
trabalho, receber todas as entidades de sua corrente a fim de descarregá-lo, deixando o corpo
leve e sem dores”. Outro problema era que, com a quantidade grande de consulentes por noite,
ela não conseguia desenvolver as pessoas que chegavam precisando de ajuda.
A dirigente conta que não sabia que ela “tinha a capacidade de consultar pessoas
sem incorporar”. Foi então que Mariana deixara o recado para ela dizendo que seu aparelho
iria atender as pessoas durante o dia. Assim, a encantada vinha durante o período diurno e se
91
Prática semelhante pode ser encontrada no Catimbó do Nordeste (ASSUNÇÃO, 2010).
Tivemos conhecimento e acesso a esta documentação tardiamente. Com exceção dos papéis personalizados
que constam em anexo, ainda não foi possível fazer cópia dos documentos. Mas estes serão posteriormente
copiados e analisados.
92
129
aproximava da dirigente sem deixá-la em transe, para auxiliar nas consultas. Mesmo com a
ajuda, a encantada turca deixou para Dona Valdeci três ordens referentes ao trabalho que
esperava dela: “não fazer ninguém voltar com ninguém, não fazer ninguém querer ninguém, e
não fazer cobrança de nenhuma ajuda”. Foi a partir da ordem dada que a dirigente passou a
compreender que devemos dar “de graça tudo aquilo que recebemos de graça”. Ao invocar o
dito popular, ela enfatiza a crença no dom recebido por Deus e pelas entidades de curar e
aconselhar. Se este é compreendido como presente recebido “dos céus”, então deve ser
compartilhado com as outras pessoas sem obtenção de lucro financeiro.
Com a ampliação do horário de atendimento para o período diurno, as pessoas
diminuíram as visitas nos trabalhos noturnos. Dona Valdeci acredita que, além do fato de já
virem receber o passe e fazer as consultas durante o dia, “a violência e os assaltos na cidade
cresceram fazendo, com que as pessoas tivessem medo de sair à noite”. É certo que a não
exigência da frequência nos cultos (dos consulentes) para que curas e outros pedidos fossem
atendidos pelas religiões afro-brasileiras também contribui para rarefação da assistência
durante um ritual. Outro fator presente em Araguaína que pode ter contribuído para o declínio
não só de público, mas também de médiuns nas casas, refletindo o que acontece no país, é a
crescente conversão de pessoas às igrejas evangélicas, conhecidas pela intolerância e a falta
de diálogo com outras religiões.
Além dos motivos já mencionados para uma consulta, percebemos, observando o
dia a dia de Dona Valdeci e conhecendo, através dela, algumas outras histórias, que muitas
pessoas a procuram apenas para conselhos sobre a vida. A dirigente, com seu carisma, parece
assumir uma figura materna e amiga a quem se pode contar segredos e esperar soluções
baseadas na sua sabedoria adquirida pelos anos já vividos. Para exemplificar o que dizemos,
recordamos o caso de uma mulher que vimos no salão: casada e com um filho, mas este não
era do seu atual companheiro, ainda que tivesse dito o contrário para ele. Ela queria se separar
dele para viver com o pai da criança, que após 10 anos tinha retornado para a cidade. O
marido, por sua vez, não queria dar a separação, ameaçando-a de morte caso ela o deixasse.
Foi com essa dúvida que a mulher chegou à casa de Dona Valdeci, perguntando se “largava
ou não do marido”. Nesse momento, compreendemos a responsabilidade nas mãos de uma
conselheira: ou indicava a morte para mulher, ou a infelicidade conjugal dela. Foi com a
sabedoria que todos esperam quando a procuram, com um toque sutil de isenção percebido
por nós, que ela respondeu: “A vida é curta para a gente ser infeliz, mas quem sabe onde está
sua felicidade é você”. É assim, entre conselhos, benzimentos, curas, vendas etc., que os dias
da dirigente se desenrolam.
130
Em 1999, o esposo e a sogra de Dona Valdeci adoeceram gravemente (a sogra
viria a falecer no fim do ano). Se até então os trabalhos eram realizados no período noturno às
quartas-feiras e aos sábados — sábado por ser dia de Iemanjá, quarta-feira por pertencer a
Oxóssi —, depois passaram a ser realizadas só às quartas. Com a diminuição dos dias de
trabalho, Dona Valdeci quase encerra sua produção documental sobre a tenda. Ela conta que
após 1999 passou a cuidar sozinha dos dois doentes de sua família, da Cabana (loja), da
Tenda, das consultas, de duas chácaras de sua propriedade e da casa. Com isso, não tinha mais
tempo para se dedicar à organização documental do terreiro como antigamente; além disso,
não podia contar mais com Seu Osmar (esposo), que era quem cuidava dos “assuntos
burocráticos” da tenda.
O fato de ter um esposo policial militar trabalhando na cidade em que residia e de
este ainda ser fiscal da Umbanda não amenizou as perseguições sofridas por Dona Valdeci em
decorrência de sua religião. Ela recorda que, primeiramente, foram dois vizinhos seus a causar
problemas tão logo se mudara: teriam redigido um abaixo-assinado dizendo que “não queriam
uma terecozeira como vizinha deles”; queriam a ajuda do “Dr. José, dono de hospital e clínica
na época, para ir ao quartel fazer a denúncia”. Porém, esse senhor já tinha visitado a casa de
Dona Valdeci algumas vezes e sabia que o conteúdo do abaixo-assinado não era verdadeiro,
uma vez que a acusavam de tocar tambor e trabalhar até de madrugada, não permitindo que a
vizinhança dormisse. Foi após a negativa de Dr. José e suas explicações em defesa da dirigente
que os homens resolveram não seguir com a perseguição. Tempos mais tarde, o vizinho que
residia ao lado ofereceu a casa à venda e Dona Valdeci comprou; no terreno estão hoje a loja (a
Cabana) e a tenda.
Outros que passaram a incomodá-la por divergências religiosas foram alguns
evangélicos da cidade. Chegaram a ir à porta da cabana (loja) e à porta da tenda (mas não em
horário de ritual) para convidá-la, ao menos a princípio, a visitar a igreja deles. Ela teria
respondido que “visitaria, sim, um culto deles, mas que, antes, eles deveriam vir assistir a um
trabalho” dela. Frente ao “contraconvite”, os evangélicos teriam se exaltado, lançando adjetivos
negativos e demonizadores às práticas da Umbanda e ao espaço físico da residência de Dona
Valdeci, dizendo que “ali não pisariam por ser terreno de Satanás”.
Mesmo passando por isso diversas vezes, a dirigente nunca se abalou tanto por se
tratar de pessoas desconhecidas. Mas sua recordação mais marcante, negativamente, foi ter
ouvido esse tipo de preconceito e repúdio em sua própria residência, vindo de familiares. Ela
lembra, com tristeza, o fato de que, uma vez, estava “lutando no terreiro pra vencer uma
demanda” que estava sobre ela e seus trabalhos; em dado ritual, Mariana teria chegado nela e
131
mandando que uma das médiuns fosse até o interior da casa de seu aparelho para ver o que
estava acontecendo em um dos quartos. Quando a médium voltou, narrou ter ouvido pessoas
“orando e clamando o sangue de Cristo” para que Dona Valdeci fechasse o terreiro dela.
Assim, Mariana falou para todos que “as piores demandas vem de onde a gente menos espera”.
Além dos vizinhos, desconhecidos e familiares, em certos momentos os médicos
questionaram a validade dos remédios naturais e caseiros, além do conhecimento terapêutico de
Dona Valdeci. Ela conta que na época a saúde pública — e até a particular — era restrita e
precária na cidade, o que fazia diversos pacientes virem a óbito. Numa dessas discussões,
quando disseram que suas “garrafadas” e chás herbáticos não funcionavam, ela teria dito aos
médicos que, ao menos, seus “chás nunca mataram ninguém, mas nos hospitais morre um todos
os dias”. Assim, não só com rezas e orações a dirigente vencia suas demandas. Dona Valdeci
diria: “a gente tem que falar as coisas de vez em quando para as pessoas saberem que a gente
não está morta”.
Foi em Araguaína, já trabalhando em prol das pessoas que a procuravam e
desenvolvendo muitos médiuns, que Dona Valdeci se surpreendeu com a vastidão do mundo
espiritual. Ela percebeu que ainda não tinha e — como afirma — “nunca terá visto tudo do que
a Umbanda é capaz”. Ela conta que tinha ouvido falar dos médicos espirituais que faziam
cirurgias nas pessoas. Na cidade era comum, segundo narrativas, ver centros kardecistas
repletos de pessoas em seus ambulatórios para receber cirurgias espirituais realizadas por
médiuns incorporados com espíritos de médicos já desencarnados. Dona Valdeci, porém, não
tinha vivenciado essas curas até o dia em que seu esposo foi acometido de 13 furúnculos
(abcessos) em uma das axilas. Ela conta que ele chorava dia e noite com dores, não conseguia
vestir o uniforme da polícia militar para trabalhar, não conseguia abaixar o braço, por fim não
conseguia dormir.
Ela narra que, após dias, angustiada por ver seu esposo daquele jeito e, também,
por já estar cansada, resolveu fazer uma prece para esses espíritos dos quais tinha ouvido falar.
Era por volta de 6h30 da tarde quando Dona Valdeci acendeu uma vela debaixo de uma árvore
no quintal e pediu para que, “se esses médicos existissem mesmo, viessem ajudá-la em nome
de Jesus”. Quando ela chegou ao quarto, Seu Osmar estava dormindo na rede. Ela se recorda de
colocar uma toalha em cima da axila infeccionada e se deitar na cama para dormir. Já estava
escuro, entre 10h30 e 11h, quando ela acordou com seu esposo a chamando e pedindo que
ligasse a luz, pois “ele estava todo melado”. A dirigente umbandista conta que, quando acendeu
a luz, ela percebeu que os furúnculos haviam sido cortados todos na vertical e que Seu Osmar
“estava todo melado de pus e sangue”. Ela limpou os cortes no local com água oxigenada e
132
mertiolate e polvilhando por cima, ao final, comprimidos anti-inflamatórios esmagados. Seu
Osmar conseguiu ainda na mesma noite abaixar o braço e no dia seguinte ir para o trabalho.
Dona Valdeci conta que não foi ela que realizou os cortes, mas os médicos existentes na sua
corrente. Foi com essa sua experiência particular que ela passou a crer nos “cirurgiões do
espaço”.
Se, em Araguatins, ainda na casa de José Odenir, como médium em
desenvolvimento dele, Dona Valdeci compreendeu o que era a encantaria e como as pessoas se
encantavam, foi em Araguaína que ela descobriu como um encantado poderia se desencantar.
Dona Valdeci conta que na época da construção da Ponte do Estreito93 havia um conhecido
dela — Senhor Sinézio — que trabalhava na empreitada. Era tio do cunhado dela, esposo de
sua irmã Antônia. Foi através dele que elas souberam do acontecido no local. Enquanto a
dirigente narrava a história, a irmã ao lado a ajudava relembrando alguns detalhes.
Assim, segundo elas, como “a construção era enorme, veio gente de todo lado
para trabalhar”; e ali se encontrava um rapaz maranhense94 que, como muitos outros, tinha
deixado mulher e filhos esperando o retorno dele em casa — retorno este só possível após a
finalização da obra. O narrador da história contou para elas que, todos os dias quando os
trabalhos encerravam na ponte, o rapaz ia se banhar no rio Tocantins antes de ir para o
alojamento. Certo dia, estava se banhando quando apareceu uma “bota branca” e começou a
nadar perto dele. Com medo, o rapaz saiu da água, mas todos os dias a mesma bota vinha se
banhar com ele, até que ele percebeu que ela era mansa e não ia machucá-lo. Assim foi que, de
acordo com o relato do Senhor Sinézio, mesmo com a presença de todos os outros
trabalhadores à beira do rio, o rapaz não deixava de, todo fim de tarde, ir se banhar no
Tocantins com sua companheira aquática.
Certa noite, o rapaz foi para seu quarto no alojamento (os quartos eram
individuais) e, após trancá-lo, foi dormir. Era madrugada quando foi acordado por uma moça
loira de pé próxima a sua cama. Assustado com a presença dela, mas encantado com tamanha
beleza, “eles começaram a namorar sem trocar muitas palavras”. Quando ele acordou, antes do
raiar do sol, a moça já tinha ido embora. Assim como essa noite, foram as noites seguintes
durante meses. O rapaz, ansioso por conhecê-la melhor, começou a fazer diversas perguntas,
como de onde era ela, que ela respondia dizendo morar ali perto. Perguntava como entrava no
quarto todas as noites mesmo com a porta trancada, e ela dizia que tinha um segredo para tal
93
Apesar de ser conhecida como Ponte do Estreito na região, o nome oficial da mesma é Ponte Juscelino
Kubitschek de Oliveira. A ponte foi construída na década de 1960 sobre o Rio Tocantins ligando os municípios de
Aguiarnópolis/TO e Estreito/MA.
94
Elas ficaram em dúvida se ele era de Balsas ou de Riachão.
133
façanha. A moça, apreensiva com tantos questionamentos, certa noite contou sua história para
ele: disse que era a bota branca que nadava com ele todo fim de tarde e que aquele era o corpo
no qual ela se encantara. Se ele quisesse que os dois ficassem juntos, ele teria que ajudá-la a se
desencantar. Ela explicou em detalhes para ele o que deveria fazer: ele tinha de ir à beira do rio
onde ela deixava escondido seu “casco/pele de bota” e atear fogo nele. O rapaz, em prantos,
contando a história para Senhor Sinézio, disse ter ido até o rio e encontrado o “casco”, mas que
não tivera coragem de queimá-lo, porque diziam que “as pessoas viam muita coisa feia quando
desencantavam alguém”.
A moça, por sua vez, desapareceu. Mas a bota continuou nadando ao redor do
rapaz sempre que este adentrava as águas do Tocantins. Certo dia, a bota não veio sozinha
para o encontro com o rapaz. Ela trazia junto de si um pequeno boto branco muito semelhante
a ela. Dias mais tarde, durante a madrugada, o rapaz foi acordado de novo pela presença da
moça loira em seu quarto, mas não estava só: trazia nos braços um pequeno menino que dizia
“ser fruto do amor dos dois”. Porém, esta seria a única e última vez que ele veria o filho e ela.
A moça contou para ele que seu espírito tinha sido chamado em um terreiro na cidade onde
ele morava e que ela viu sua esposa com os filhos chorando e procurando notícias dele. Ela
ainda acrescentou que “não veio para esse mundo para fazer ninguém sofrer e que ele deveria
voltar para a família dele”. Dizendo essas palavras, ela partiu do quarto carregando o filho nos
braços.
Senhor Sinézio contou que mais três meses se passaram até a conclusão da Ponte
do Estreito. Nesse período, nem ela nem a bota foram vistas pelos trabalhadores ou pelo
rapaz. Eduardo Galvão (1976), tratando sobre o universo religioso de uma população no Pará,
diz que ali “não se contam histórias de fêmeas de boto que atraiam homens ou os seduza sob a
forma de mulher, tal como se registra para os machos em relação às mulheres” (p. 70).
Contudo, a história contada na Tenda contradiz a afirmativa do autor.
Quando questionada sobre a possibilidade de um encantado se desencantar, Dona
Valdeci diz que “tudo é possível; mas que cada encantado tem uma forma distinta e que só ele
sabe dizer o que tem que ser feito”. Ela contou que Mãe Mariana, filha de Rei Sebastião, disse
que o pai “tem uma chave para desencantar ele e sua família”, mas que a “chave foi encantada
juntamente com um boi brabo, e que ninguém tem coragem de chegar nem perto dele no
mundo da encantoria”; assim o Rei Sebastião ficaria encantado por toda a vida.
Sempre que questionamos a dirigente sobre a Umbanda (entidades, pontos e
134
diversas outras coisas pertencentes à religião), ela lamenta ter estudado só até a quarta série95
do atual ensino fundamental e de ter tido pouco tempo para estudar e “saber mais das coisas”.
Ela diz que o trabalho doméstico e os da tenda consumiam muito seu tempo. Lembra que
“vinham muitas coisas na cabeça” dela quando mais jovem, que as entidades mandavam; e
fala com confiança que, se ela tivesse tido a oportunidade de ir para uma televisão, rádio ou
escrever sobre a Umbanda, então ela “tinha voado”.
Apesar de não ter tido a instrução e a chance que desejava, Dona Valdeci não
pode negar a quantidade de pessoas que, confiando nos conhecimentos e trabalhos dela, a
procuravam e ainda procuram atrás de ajuda. Centenas de pessoas foram curadas através dela
e dezenas, desenvolvidas. Apesar da relutância em desenvolver gente nova e jovem, Dona
Valdeci diz nunca fechar as portas para alguém que precise de sua ajuda. Ela está com quatro
médiuns em desenvolvimento em sua tenda: Seu Rosa, Sued, Edjane e Irene. Dentre os já
desenvolvidos, temos um vasto rol, mas aqueles que frequentam assiduamente as sessões são:
Manelim, Mundica, Zilda, Graça, Vânia, Ana, Aldenora, Senhorinha e Manelão, além da
cambona96 Vita.
Ainda que a frequência contínua desses médiuns nos trabalhos seja exigência da
casa, muitas vezes notamos que problemas pessoais acabam impedindo a vinda semanal de
alguns deles, seja por motivos de saúde ou atritos religiosos dos médiuns com seus parentes.
Dona Valdeci conta que, no passado, antes de iniciar todo o ritual, era feita a chamada para
ver os médiuns que estavam presentes. Com três faltas consecutivas e sem justificativa o
médium era privado de participar dos trabalhos por certo período de tempo. Atualmente,
como os trabalhos são poucos e os médiuns são — a maioria — mais velhos e desenvolvidos,
não há necessidade de tal controle, de acordo com a dirigente.
Mesmo com a quantidade de médiuns desenvolvidos por ela, quando
questionamos sobre o futuro da tenda caso ela venha a falecer, Dona Valdeci acredita que
ninguém ficará como sua sucessora ou sucessor. Sua desconfiança se baseia na idade
avançada de boa parte dos médiuns e nas reclamações em tons de brincadeira de alguns, que
acham que deveriam se “aposentar da Umbanda”, visto que trabalharam muito. Mas uma
coisa é certa, segundo a dirigente: a “Umbanda não tem porta de saída”.
95
A dirigente conta que por motivos de saúde parou de estudar. De acordo com ela, todas as vezes que estava
estudando ela tinha fortes dores de cabeça, seus olhos lacrimejavam e ficavam vermelhos. O pai chegou a levá-la
ao médico, o qual aconselhou que ele retirasse a filha da escola já que não sabiam dizer o que ela realmente
tinha. Apesar do pouco estudo, o que ela aprendeu no curto período na escola e com seu pai no comércio foi de
grande valia para sua vida, pois foi com base nesses ensinamentos que pode gerenciar de forma autônoma sua
loja e aprender mais sobre a Umbanda nos livros, além dos conhecimentos adquiridos através das entidades.
96
Pessoa responsável por auxiliar os médiuns quando em transe.
135
Foi entre muitas visitas, conversas e cafés que, aos poucos, fomos conhecendo a
trajetória de vida de Dona Valdeci. A epígrafe deste capítulo resume de forma clara as
dificuldades encontradas por nós para traçar essa trajetória. Se, a princípio, o interesse foi
visto com desconfiança ou incompreensão da pesquisa, esse interesse foi recebido depois
como confidencialidade, confiança e compreensão do nosso trabalho. Para tanto, as
estratégias e os métodos de abordagem foram se alterando e se modificando a cada demanda
que surgia. Se, de um lado, estávamos procurando conhecer a história de vida de Dona
Valdeci, de outro estava ela “guerreando” entre seu desejo de narrar sua história e escondê-la,
preservá-la; “guerreando” com as memórias que devem ser “esquecidas” e com as que
precisam ser lembradas. Por esse ângulo e por outros, seria possível compreender a analogia
do pai da dirigente com Joana D’Arc e perceber que Dona Valdeci — a presidente de mesa —
não se difere muito da menina que corria pelas ruas de São Raimundo “guerreando” com seus
coleguinhas, nem da jovem que “guerreava” contra doenças, espíritos ruins e demandas em
Araguatins.
136
CAPÍTULO IV
TENDA ESPÍRITA UMBANDISTA SANTA JOANA D’ARC
Vamos meus irmãos, vamos bem unidos
Saudar nossa Tenda de Joana D’Arc
Joana D’Arc, cavaleiro Jorge
Nós trabalhamos contigo também
Vós fostes na terra guerreira
Comandou a batalha e ganhou a guerra.
(Hino da Tenda)
Quando se chega à rua 2 de Julho n. 510 no bairro Central de Araguaína,
encontra-se uma pequena loja que funciona há quase 30 anos. Na fachada dela está escrito
Cabana Rompe Mato. No seu interior, encontramos, à direita de quem entra, uma estátua em
“tamanho real” do índio que dá nome à loja. No seu corpo está pintado um saiote que traz as
cores da cobra coral, que está esculpida em sua cintura em forma de cinto. Ele tem fitas
vermelhas cruzadas no peito e na mão esquerda, e nelas se pode ver várias notas de R$ 2, 5 e
10 reais amarradas; há moedas também, na pequena cuia aos seus pés. O dinheiro é oferenda
dada pelos fiéis em troca de pedidos realizados. Ali ainda está presente uma onça, esculpida
em pedra, deitada; e uma vela de sete dias verde, que, assim como um defumador, está sempre
acesa próxima aos pés da estátua. Atrás do balcão da loja e dentro dele há algumas centenas
de produtos que indicam que o comércio é especializado em artigos para umbanda: velas,
defumadores, sabonetes e banhos de descarga, pólvoras, estátuas, charutos, colares, terços,
alguidares, perfumes, incensos, amuletos e outros objetos específicos da área. A loja é a única
da cidade nesse ramo.
Ao lado, separada por um longo corredor que leva ao fundo do terreno, existe uma
casa cuja frente simples esconde o tamanho e a beleza do interior da residência. É nessa casa
que reside Valdeci Pereira Reis e sua família. Ao atravessarmos o portão e caminharmos ao
longo do corredor, deparamo-nos com um jardim à esquerda, onde estão diversas plantas,
ornamentais e medicinais. Há algumas árvores que circundam uma pequena piscina, redonda
e feita de concreto, onde podemos avistar, dentro d’água, pedras, peixes, moedas e, sobre um
pequeno elevado, uma estátua de Iemanjá branca, com os cabelos negros e vestida de azul. A
seus pés estão duas pequenas sereias e algumas conchas.
137
FIGURA VIII – Lago de Iemanjá
Fonte: Sariza Venâncio
O “lago de Iemanjá”, como é chamado pelas pessoas dali, está de frente para a
varanda da casa de Valdeci, onde existem uma mesa, diversas cadeiras e café, sempre quente,
para os que chegam. É nesse lugar que as pessoas, da família ou não, se sentam para esperar
sua vez de ser benzidas, para conversar com Dona Valdeci, para as refeições familiares etc. O
lago está localizado à frente da Tenda Santa Joana D’Arc, que fica no fim do corredor, no
fundo do terreno. Em sua fachada, está escrito o nome da tenda em vermelho, cor que faz
menção à encantada Mariana e à Santa Joana D’Arc. As letras vermelhas têm o verde como
sombreamento, cor principal de Oxóssi, orixá-rei das matas. Mais abaixo do nome, acima da
porta de entrada, há o desenho de um círculo e, dentro dele, há uma estrela conhecida como
“selo ou símbolo de Salomão” (com seis pontas). Dentro desta há a figura de um peixe e uma
lua crescente, que, de frente um para o outro, dão a ideia de circularidade97.
De acordo com o babalorixá baiano Omolubá (2004, p.103), a estrela de Salomão
simboliza a união e o combate ao mal; a lua é representativa, pois exerce influência nos mares
e em todos os organismos vivos, além de representar as entidades do plano astral superior.
Dona Valdeci acrescenta a essas explicações o fato de ser a lua a morada de São Jorge, local
onde este vence as demandas e onde matou o dragão. O peixe, além de ser um dos primeiros
97
Esse símbolo é o mesmo encontrado nos documentos referentes à Federação Brasiliense de Umbanda e
Candomblé, fundada em 6 de agosto de 1976. Essa federação é filiada à Confederação Espírita Umbandista do
Brasil (CEUB), fundada em Brasília, em 15 de novembro de 1963.
138
símbolos do cristianismo, é interpretado nos terreiros como pertencente ao povo/à linha das
águas. O círculo pode ser interpretado como demarcação de um campo de atividades e/ou
simbolismo da perfeição. Omolubá (2004), ao tratar desse fundamento, recorre à frase célebre
de Lavoisier para explicar esse processo: “Na natureza nada se perde, tudo se transforma”
(p.45).
A tenda tem uma porta de entrada e quatro janelas, que ficam entreabertas.
Olhando para cima, vemos um teto coberto de bandeirolas de festa junina de diversas cores.
Cada cor representa um orixá: branco, Oxalá; verde, Oxossi; vermelho, Ogum e Obá; azulclaro, Iemanjá; amarelo, Iansã; cor-de-rosa, ibejis; azul-escuro, Oxum. O interior do salão está
dividido, na horizontal, em duas partes por uma pequena cerca de madeira pintada de branco.
Próximas da entrada, estão algumas cadeiras para os visitantes. Do outro lado da cerca,
encontram-se, nas laterais, cadeiras e bancos para os médiuns e associados. As paredes estão
adornadas com quadros diversos; pode-se ver o Círio de Nazaré, Jesus, Sagrado Coração de
Maria, Nossa Senhora de Fátima, São Jorge, a Sagrada Família, Nossa Senhora Aparecida,
Santa Terezinha, Maria com Jesus no colo e Santa Bárbara. Na parede de frente para quem
entra, podemos ver o aviso de que é proibido fumar estampado em letras grandes e vermelhas,
assim como a informação linha branca98, indicando a quem chega o tipo de trabalho que ali é
realizado. No mesmo local ainda é possível ver documentos fixados, e só quando nos
aproximamos temos clareza do que se trata: um alvará de funcionamento com data de 2005,
um diploma de umbandista de Dona Valdeci datado de 1987, assim como um certificado de
batismo dela assinado por José Bruno de Morais, outro certificado da médium Raimunda
(Mundica) assinado por Dona Valdeci e a certidão do cartório comprovando a fundação da
Tenda Espírita Joana D’Arc, em 1979.
Duas bandeiras, uma do Brasil, outra do Tocantins, também compõem o cenário
da parede frontal. A dirigente garante que é porque gosta da frase escrita na Bandeira do
Brasil, “Ordem e Progresso”. De acordo com ela, uma tenda tem que ter ordem nos seus
trabalhos para que o terreiro e os médiuns tenham progresso na vida. Sobre a bandeira do
Tocantins, ela afirma que o sol presente nesta deve nascer para todos, e não só para ela. Sua
fala corrobora o significado que foi instituído para o Sol no símbolo do estado: “Uma terra
onde o sol nasce para todos”. No caso de Dona Valdeci, seu sol parece ser a “verdade da
Umbanda”. A presença da bandeira do estado mostra ainda a adesão dela ao projeto de
autonomia e constituição do Tocantins.
98
A dirigente justifica o trabalho na linha branca pelo fato de não trabalhar com exus e pombagiras.
139
Na sala central, ao fundo, temos o altar, dividido em cinco andares, todos cobertos
por toalhas brancas. Nelas podemos observar desenhos como flores, dois cruzeiros, uma
estrela de Davi, com cinco pontas, e um círculo que tem dentro de si uma cruz coberta por
raios vindos do céu com três estrelas pequenas. Nas duas pontas do altar, ainda há fitas verdes
de cetim em formas de laço ornamentando a mesa. No primeiro degrau, de forma centralizada,
está uma estátua de São Jorge. Na sua frente há um prato onde está uma pedra pequena que
serve de suporte para a vela acesa. À direita de São Jorge está a imagem de São Sebastião; à
esquerda, a de padre Cícero. Uma garrafa de vidro com água, um sino, terços, diversos
livretos de rezas, uma Bíblia e dois vasos com flores compõem ainda o cenário próximo aos
três santos99.
Nos outros quatro andares, que se afunilam até o teto, estão dispostos, entre velas,
reis magos, pomba do Divino Espírito Santo e arcanjos, dezenas de pequenas imagens de
outros santos. Ao final dos degraus, na parede de fundo da sala do altar, está pendurada uma
imagem em gesso do Sagrado Coração de Jesus indicando a superioridade deste em relação
aos santos. Na mesma parede ainda há diversos quadros com imagens de São Sebastião, Santa
Luzia, Sagrado Coração de Maria, São Jorge, Jesus Cristo e do Círio de Nazaré em Belém de
2002.
FIGURA IX – Altar da Tenda Santa Joana D’Arc
Fonte: Sariza Venâncio
99
Ainda que a Igreja Católica Apostólica Romana não reconheça padre Cícero como santo, em 1977 ele foi
canonizado pela Igreja Católica Apostólica Brasileira.
140
À direita de quem entra na sala do altar, está uma estátua de quase 1 metro e 80
centímetros de altura da encantada Mariana, vestida com uma roupa branca que se assemelha
a um vestido de noiva; mas essa roupa, de tempos em tempos, pode ser trocada por outra que
parece um uniforme de marinheiro ou por um vestido que tem a parte de cima branca com a
saia azul; na sua cintura, vai amarrado um cordão amarelo de São Francisco; na mão direita,
ela segura o maracá com penas e fitas, usado nos rituais de Mina de Cura e, no braço
esquerdo, ela sustenta as contas/colares e o cordão de São Francisco que Dona Valdeci usa
nos rituais. Na parede ao seu lado, está a bandeira vermelha do Divino Espírito Santo, que a
dirigente ganhou de uma médium, assim como dois quadros com a representação de Iemanjá
como sereia. Nos pés da estátua, está um pequeno poço com água; ao seu redor, estão
dispostas conchas, velas, flores, assim como uma estátua pequena de Mariana dentro de um
pequeno barco; ao lado dela, ainda entre pedras, flores e copos com água, temos uma estatueta
de Iemanjá, Légua Boji Buá, de Jarina, do Caboclo Rompe Mato, de Tapinaré, da Cabocla
Jurema e de um casal de pretos velhos.
Na lateral esquerda do altar temos, nas mesmas proporções que tem a estátua de
Mariana, uma imagem de Joana D’Arc vestida com armadura de guerra. Traz em seu peito
uma fita vermelha cruzada; na mão direita, uma espécie de adaga; e, a seus pés, encontra-se
fincada uma espada ao lado de um copo com água. Próximos desse cenário guerreiro estão
dispostos diversos brinquedos infantis como bonecas, boizinhos, carrinhos etc. pertencentes
às entidades infantis da casa. A visualização desses brinquedos é dificultada pela presença de
uma poltrona feita de madeira e coberta por almofadas e tecidos onde Dona Valdeci recebe
suas entidades. Acima do pequeno móvel se encontra uma pequena lua crescente feita de
gesso na cor-de-rosa que a filha da dirigente teria feito para Mariazinha, guia da corrente dos
ibejis. Mais acima, vemos três quadros: um de Jesus Cristo no alto; mais abaixo, um de Nossa
Senhora Aparecida, tendo ao seu lado a foto do papa João Paulo II, onde está pendurado um
enorme terço feito de madeira. Nessa parede, ainda temos uma das portas que dá acesso à sala
de consulta.
É na sala reservada que Dona Valdeci, incorporada com Mariana, realiza as
consultas nos dias de trabalhos. Ali, encontram-se uma cadeira onde ela se senta e mais uma
cadeira e um banquinho para os consulentes. Há ainda uma mesa onde estão dispostos um
antigo aparelho de som e discos de vinil sobre pretos velhos, caboclos, Ogum, Oxóssi etc.
Temos ainda prateleiras onde estão guardados livros de registro dos médiuns e das consultas,
dentre outros. Pedras, velas e copos com água nos pontos firmados completam o ambiente.
141
Dentro do salão, podemos ver seis pontos marcados de forma especial. Dona
Valdeci diz que ali são “as firmezas das entidades”. Todos os dias, às 18h, alguns pontos de
segurança do terreiro são firmados, ou seja, é acesa uma vela em cada um deles. Pedidos de
força e proteção para os guias dos pontos são realizados, assim como a reza do Pai Nosso e da
Ave Maria. Somente nos dias em que haverá trabalho todos os pontos são firmados, uma vez
que é necessário chamar todas as entidades para trabalhar. Na maioria das vezes, a reza no
ponto firmado é realizada pela dirigente de pé, mas já vimos ela se ajoelhar em alguns pontos
certa vez. Ao perguntarmos o motivo, ela contou que a vela não queria parar na vertical, e isso
poderia ser explicado de dois modos: 1) o local onde a vela vai ficar está com algum
desnivelamento, o que faz com que ela tenha que se ajoelhar para limpar; 2) as entidades
estavam insatisfeitas com alguma coisa e exigiam maior devoção dela. Ela explica que os
pontos não devem ser firmados como se aquilo fosse uma obrigação nem as rezas devem ser
proferidas sem atenção; quando isso ocorre, os guias a fazem se ajoelhar para que se lembre
de que precisa ter respeito e dedicação a eles.
Cada ponto corresponde a uma entidade, corrente ou linha da Umbanda. Com
exceção do ponto de pretos velhos e Ogum, os demais não apresentam objetos que fazem
menção a seus donos. Por exemplo, no ponto firmado de pretos velhos, encontramos cajados e
cachimbos: dois símbolos representativos dessas entidades. No ponto de Ogum há uma
ferradura e uma espada, em referência ao cavaleiro guerreiro que venceu o dragão. Objetos
comuns encontrados em todos os pontos são pedras, copo com água e vela. Cajados de
madeira ou varas de bambus são colocados nos pontos também, mas aquele referente à Iansã e
à Mina não recebe tais artefatos.
Embora o desenho aponte o nome de quase todos os responsáveis por cada ponto,
alguns deles não nos foram possível conhecer. Os pontos do altar, assim como o ponto na
entrada da sala de consultas e no canto externo direito da tenda, são de orixás e entidades que,
“por motivo de segurança” da dirigente e do salão, não podem ser revelados. A única coisa
que nos foi dito é que os caboclos donos dos pontos de proteção do terreiro são das matas, e
não das águas. Esses segredos compreendem o universo das religiões afro-brasileiras, que
encontram nesses detalhes, mantidos em sigilo, sua legitimação e seu “poder espiritual” ante
outras religiões e dirigentes.
142
FIGURA X – Planta baixa do terreno de Dona Valdeci
Desenho: Sariza Venâncio
Em todos os pontos firmados, estão presentes pedras, sobre as quais são acesas
velas. Dona Valdeci diz que as pedras estão presentes no terreiro devido ao seu gosto pela
natureza. Outro elemento constante em todos os pontos é um copo com água, que, segundo
ela, “é para sugar os maus fluidos” que as pessoas trazem para o terreiro e “purificar os
males”. De dois em dois dias, a água dos copos é trocada; dona Valdeci conta que antes
levava mais tempo para trocar a água, mas atualmente, com a dengue, ela é obrigada a trocar
com mais frequência. Sobre a presença dos bambus ou cajados, a dirigente diz que seriam
“amuletos”, lembrando não somente os pretos velhos, mas também o povo de Légua.
Embora sejam os mais visíveis, não significa que esses pontos sejam os únicos.
Existem ainda outros três firmados pelo lado de fora da tenda, mais sete na sala do altar e
mais dois na sala de consulta. Como vemos na Figura X, os pontos desta última sala
pertencem à Oxóssi e a Xangô — o ponto deste é marcado por um pequeno monte de pedras
com cerca de 50 centímetros de altura. Os pontos de Mariana e Joana D’Arc estão nos pés das
estátuas que as representam. E na parte externa do salão temos o ponto das Almas Benditas —
aquelas que recentemente desencarnaram. As velas são acesas na base do cruzeiro que
representa o local. Na entrada do salão, temos o ponto firmado de Herondina, onde, além de
pedras, velas e copos com água, podemos observar garrafas e copos quebrados ao fundo da
pequena casa. Dona Valdeci explica que os cacos de vidro dentro do ponto de Herondina
143
foram um pedido feito por esta. A dirigente acredita que os cacos de vidro representem a
atividade da entidade no terreiro: “quebrar e cortar as influências maléficas contra o terreiro”,
contra ela e contra os médiuns. O ponto cantado da encantada pode indicar tal interpretação:
Ai, não me toque, não me bula, Herondina
Eu vim trabalhar em ponta de agulha, Herondina
Correntes fortes eu tenho quebrado, Herondina
E meus trabalhos é aprovado, Herondina
Ô, é de cocoriô, ô, é de cocoriá
Cabocla Herondina é de Umbanda só.
Assim como no ponto de Herondina, há uma casinha no outro ponto firmado para
caboclo no lado direito externo do salão. Essas construções pequenas servem para proteger do
sol e da chuva.
Na parte interna do salão, vemos que a sala do altar e da consulta, bem como a
sala para os médiuns se trocarem (vestiário), são preservadas por cortinas brancas. Só as
cortinas da sala onde está o altar ficam abertas continuamente. No teto, vemos, no caibro
central, uma lâmpada tubular fluorescente branca e outras seis lâmpadas fluorescentes
compactas nas cores amarelo, verde e azul espalhadas entre as bandeirolas. Normalmente, a
lâmpada branca fica ligada; porém, nos dias de trabalho, é desligada, dando vez às luzes
coloridas e sem maior brilho. Segundo a dirigente, essa troca das luzes é porque as entidades
não gostam de muita claridade. Assim, o salão continuaria iluminado, mas de forma sutil. É
nesse ambiente que os rituais acontecem e no qual boa parte desta pesquisa foi realizada.
4.1 – Entidades espirituais cultuadas
O panteão na Tenda Santa Joana D’Arc é organizado com muita semelhança
àqueles descritos por outros que pesquisam a Umbanda. Zambi, também Olorum ou Deus, é o
ser supremo, criador de tudo e todos: a ele, todas as rezas e todos os cânticos iniciais são
dedicados. Abaixo dessa força suprema se encontram os orixás. Na tenda, podemos observar,
de forma bem visível, somente os pontos de firmeza de Ogum, Oxóssi, Xangô, Iansã e Obá
(Joana D’Arc). Mas isso não significa a inexistência de pontos para outros orixás como
Iemanjá, Oxalá, Oxum, Nanã etc. Através dos santos dispostos no altar, podemos ver uma
maior devoção a São Sebastião e São Jorge.
Segundo Concone (1987), na Umbanda, os orixás são considerados como “o santo
principal que está ligado espiritualmente a qualquer pessoa” (p.140). Dona Valdeci diz que
144
um terreiro precisa ter firmeza para todos os orixás, porque cada médium tem o seu orixá de
cabeça, e ela não poderia desenvolver alguém, por exemplo, de Nanã se não tivesse a firmeza
desse orixá em sua tenda. Os orixás são sempre invocados nos rituais, mas não incorporam.
Dona Valdeci diz que eles são santos, “e santo não baixa em ninguém”. Acrescenta que “todo
orixá tem seu correspondente aos santos católicos”, com a diferença de não ter sido humanos;
mas “nem todo santo pode ser sincretizado com orixá”.
As figuras de destaque nos terreiros umbandistas são as entidades, os guias
espirituais. Assim como no kardecismo não há uma “incorporação dos deuses, e sim um
incorporação das Almas dos Mortos desencarnados” (BASTIDE, 2006, p. 225). O que difere a
Umbanda do Kardecismo é que os espíritos que se manifestam no corpo dos adeptos são as
almas dos antepassados negros, indígenas e portugueses mortos ou encantados que retornam
do mundo sagrado dos deuses para “fazer caridade” no mundo profano dos homens (ORTIZ,
1991, p. 69). Esse retorno é marcado pela possessão dos médiuns pelos guias espirituais
durante os trabalhos. As entidades dentro da hierarquia espiritual estariam abaixo dos orixás;
e sua posição de inferioridade, se comparada à deles, é explicada pelo fato de que os guias
“viveram um dia na terra como a gente”, enquanto os orixás não — ainda que sua
correspondência no universo católico indique santos que foram personagens históricos.
Como vimos no capítulo II, as entidades podem ser agrupadas em duas categorias:
espíritos de luz — caboclos, pretos velhos e crianças — e das trevas ou obsessores — exus,
pombagiras e zombeteiros (ORTIZ, 1991). Essa dicotomia entre o bem e o mal, assim como
sua associação entre exus e o diabo, a morte e a sexualidade desenfreada, estabelece uma
relação com a concepção e estereótipo cristão ao orixá Exu (SILVA, 2005, p.123). Embora
alguns pais de santo umbandistas compreendam a figura do Exu como aquele “que abre os
caminhos”, aquele que faz a ligação entre os homens e os outros orixás, semelhante às
compreensões encontradas no Candomblé, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2005)
afirma que os “exus e pombagiras nem sempre são aceitos nos terreiros de umbanda mais
próximos do kardecismo” (p.124).
Acreditamos, porém, que naqueles em que a proximidade é maior com o
catolicismo, como no caso da Tenda Santa Joana D’Arc, essa rejeição também seja sentida.
Assim, os exus (espíritos) e o Exu (orixá) são identificados como pertencentes à quimbanda
ou à “linha negra”, como Dona Valdeci prefere chamar. É com base nessas interpretações
cristãs dicotômicas que a dirigente parece excluir do panteão de sua tenda esses espíritos.
Os “zombeteiros” — ou eguns — são compreendidos pela dirigente como almas
recém-desencarnadas que, muitas vezes, chegam ao salão nos dias de trabalhos para
145
prejudicar os médiuns. Ao que parece, não teriam intenção de prejudicar ninguém; mas, como
não aceitam o fato de estar mortas, acabam por infringir sofrimento àqueles que as recebem.
A dirigente diz que é errado o dirigente suspender essas entidades sem ajudá-las. Assim,
sempre que um egum chega a um dos médiuns, a entidade que estiver em Dona Valdeci, ou
mesmo ela pura, pede para que “os mentores espirituais levem ele para o Colégio São Vicente
de Paula e Santo Agostinho, onde eles serão doutrinados para o caminho de luz”. Os mentores
espirituais seriam pessoas que viveram na terra como nós e já morreram. Nunca são entidades
como os pretos velhos ou os encantados; são espíritos evoluídos que não encarnaram mais.
Na Tenda Santa Joana D’Arc, os espíritos de luz são agrupados em sete diferentes
linhas. Cada linha leva, em seu nome, a indicação do “chefe supremo”, em geral um orixá ou
seu correspondente católico, ou uma indicação de onde seriam as entidades, como é o caso da
linha do Oriente, onde estariam presentes espíritos hindus, árabes, ciganos, mongóis etc. Nos
rituais a que assistimos, foi possível observar somente ciganos.
Apesar da invocação dos orixás, estes não “baixam” no terreiro “por serem
santos”. Desse modo, em seu lugar são designadas entidades que seriam seus “representantes”
para tal finalidade. Como explica Dona Valdeci, “Se você é dono de uma empresa, mas não
pode frequentar as reuniões, quem você manda? Seu representante”. Por exemplo, a linha de
Iemanjá tem como sua principal representante na tenda a encantada Mariana. Cada uma
dessas sete linhas ainda se divide em sete correntes, das quais cada uma se divide noutras sete
falanges. O número sete é cabalístico: é representativo da perfeição e, segundo Nazareno,
dirigente de outra tenda, o poder desse número vem por todos sermos descendentes de Sete,
único filho de Adão e Eva, que têm sua genealogia traçada no livro de Gênesis na Bíblia.
Embora haja certa variação, entre os dirigentes de terreiro de Umbanda, quanto à
ordem e ao nome das linhas, as variações não são tão importantes a ponto de ser enfatizadas.
As sete linhas da Umbanda, para Dona Valdeci, ordenam-se conforme a distribuição do
quadro a seguir.
QUADRO VIII – Linhas da Umbanda na Tenda Santa Joana D’Arc
Correspondente Católico
Representante
Jesus Cristo
Santa Bárbara
Característic
a da linha
Supremacia
Nossa Senhora dos Navegantes
Mariana
Calmaria
3ª – Ogum
São Jorge
Ogum Beira Mar
Proteção
4ª – Oxóssi
São Sebastião
Cabocla Jurema
Vitalidade
Linha
1ª – Oxalá
2ª – Iemanjá
146
5ª – Xangô
6ª – Ibejis
São João Batista e São
Jerônimo
São Cosme e Damião
Caboclo da Laje
Justiça
Mariazinha
São Cipriano
Zé Pilintra
Alegria e
inocência
Cura,
sabedoria e
humildade
7ª – Oriente
Como vemos, nem todas as linhas recebem nomes de orixás, como a sétima;
nesta, estão presentes entidades como os pretos velhos, os ciganos e os médicos — estes
últimos têm Zé Pilintra como representante maior. Nem todas as linhas têm, como seu
principal representante, um guia/espírito que vai incorporar em algum médium, a exemplo de
Santa Bárbara, na linha primeira. Essa santa, por ser considerada patrona dos terreiros, é
colocada como pertencente à “linha de todos os santos”. Quando cantam para ela na abertura
de um trabalho, isso significaria estar saudando e invocando Oxalá e todos os demais santos e
orixás do astral superior.
Durante um trabalho, não é possível observar com clareza essa divisão
apresentada. É certo que essa categorização é mais elaborada no plano discursivo, pois, nos
rituais, o que observamos foi a predominância da linha de Iemanjá (águas) e de Oxóssi
(mata); só vez ou outra pretos velhos, crianças, ciganos e médicos são convocados para
trabalhar. Os trabalhos normalmente são “abertos nas águas”, onde há predominância de
entidades ligadas a essa linha. Após quase duas horas, a “linha muda para as matas”, em que
caboclos encantados ou não descem para trabalhar. Vale ressaltar que pouquíssimas vezes
foram observadas entidades que não pertencem, por exemplo, às águas “baixarem” nessa
linha durante os rituais, e vice-versa. Sempre que isso acontecia, as explicações eram as
mesmas: “Veio porque viu que alguém precisava de uma cura”. As entidades que mais
“cruzam a linha” — ou seja, vêm na linha que não é a sua — são os caboclos de proteção da
casa e dos médiuns — quando “sentem que algo ruim está acontecendo” — e os cavaleiros da
Mina de Cura — que, se “sentirem que alguém precisa de ajuda, eles descem”, mesmo sem
serem invocados e independentemente da linha que estiver trabalhando no momento.
Ainda que tratemos da tenda de forma geral, as entidades apresentadas a seguir
nas linhas das águas e das matas são aquelas pertencentes à corrente espiritual de Dona
Valdeci, ou seja, aquelas que ela incorpora. Optamos por fazer esse recorte porque a
quantidade de entidades que um médium na Umbanda pode receber é incontável. No que
tange às demais categorizações, como a quantidade de entidades nessas linhas é menor para
cada médium, agregaremos aquelas recebidas pelos médiuns também.
147
4.1.1 – Entidades das águas
Assim que os trabalhos se iniciam na linha das águas, pontos de saudação para
Iemanjá são cantados:
Ela é uma moça bonita
Ela é a sereia do mar
Ê, ê, ê, ê, á. É mamãe de Aruanda
Ela vence demanda, ela vem saravá.
E
Saravá nossa mãe Iemanjá
Saravá ô rainha do mar
Ô mamãe Iemanjá
As águas do mar rolou (4x).
A primeira entidade a vir num dia de trabalho na Tenda Santa Joana D’Arc, na
maioria das vezes, é José de Ribamar em Dona Valdeci. Ele é um dos principais
representantes da linha das águas, ao lado de Mariana e Rei Sebastião. Esta última entidade é
encantada, assim como Mariana. Por se fazer presente somente a cada dois anos, falaremos
mais dessa entidade quando da descrição de sua festa, em 20 de janeiro de 2013. José de
Ribamar sempre chega anunciando, com seus pontos cantados, a importância dos mares:
As águas do mar é verde, meu Deus
É verde que só limão
A sorte quem dá é Deus
Eu trago escrita na mão.
E
Ê no palácio onde eu moro
Só se apanha areia do mar
O meu nome é José de Ribamar
Eu moro em alto mar.
O fato de essa linha ser dedicada a uma orixá vinculada diretamente às águas
salgadas não impede que entidades de água doce (rios, lagos, poções) venham se juntar à gira
no dia em que há ritual. Assim, entre mares, oceanos, ondas e sereias, também “arriam” no
salão entidades que trazem, em seus pontos, rios, cachoeiras, botos etc. Os espíritos que
pertencem a essa linha ainda podem ser divididos, com base em nossas observações, em dois
grupos: 1) cavaleiros da Mina de Cura; 2) demais espíritos das águas. Assim, no primeiro
grupo, teremos entidades como Caboclo Belém, Pedra Lavrada, Adociaba, Rei Ricardinho,
148
Caboclo Ventania, Tibiriça, Tapinaré da Jurema, Tango do Pará, Mestre Costeiro da América
do Sul etc.
Segundo Dona Valdeci, a Mina de Cura é composta por 60 “cavaleiros do fundo”;
noutros termos, todos vêm das “profundezas das águas” e são comandados por Tapinaré da
Jurema, o chefe da linha. Durante um trabalho, costumam consultar e conversar com as
pessoas; receitam medicamentos, “tanto da farmácia [industriais] como remédio do mato
[naturais]”. Nunca “baiam”; ficam sentados; e só a presença deles pode curar as pessoas que
estiverem no salão. Quando estão na dirigente do salão, usam um maracá100 com pena para
benzer/dar passe naqueles que vão até eles. Dona Valdeci relata a dificuldade de receber essas
entidades atualmente. O fato de ela estar mais velha, assim como estão suas médiuns, dificulta
a realização de um ritual puramente na Mina de Cura; o corpo delas já não aguenta o “peso”
dessas entidades. Ela diz que, quando termina o trabalho com eles, sente o peito doer e o
gosto de sangue na boca, o que marcaria a diferença de poder entre essas entidades e outras.
O fato de algumas dessas entidades levar o nome de caboclos encontra respaldo
na explicação de que “nas águas também existem aldeias” e de que muitas dessas entidades
têm seus pontos cantados fazendo referência às matas, como é o caso de Tapinaré:
O grande estrondo que se deu na aldeia
A aldeia balanceou
Tapinaré por entre os morros, meus irmãos
É na aldeia, é na aldeia.
Ou de Tibiriça:
Tibiriça de Jauruna
Tibiriça de Jauruna
Eu sou caboclo de cura
Sou Tibiriça de Jauruna.
Ainda que essas entidades sejam consideradas como “cavaleiros do fundo”, essa
alusão às matas pode ser explicada pelo fato de que, quando uma entidade das águas ou de
qualquer outra linha vem em uma que não é a dela, o ponto cantado deve ser adequado à linha
em que ela chega. A encantada turca Mariana, por exemplo, tem pontos distintos para sua
presença na linha das águas e na linha das matas:
100
Eduardo Galvão (1976), ao descrever os processos de cura da Pajelança, atribui o uso do fumo e da fumaça no
transe e nas extrações de doenças, assim como o uso do maracá como marcador de ritmo, ao grupo indígena tupiguarani.
149
Lá no mar tem dois navios
No meio deles tem dois faróis (2x)
É a esquadra da marinha brasileira Mariana
Lá na praia dos Lençóis
Ela é marinheira, ela é marinheira
Ela é revoltosa da marinha brasileira.
E
Aí, eu subi o morro e desci ladeira
Sou filha de rei
Sou arara cantadeira
Aí, ela subiu o morro e desceu ladeira
É filha de rei
É arara cantadeira.
Mariana, apesar de não ser um dos cavaleiros da Mina de Cura, é considerada, por
Dona Valdeci, como uma entidade que trabalha, também, nessa linha devido às curas que
realiza. Assim como Mariana, entidades como Zé da Luz acabam atuando mais nessa linha de
curadores quando “baixam” para trabalhar. Essas entidades, assim como as demais, fazem
parte do segundo grupo da nossa divisão das entidades das águas. Nesse grupo, temos
entidades como Menino Ubiraci, Rainha Dina, Rei Paruara, Trinca Ferro, Rei Leão, Dalila
etc.
Não existe uma ordem exata para a chegada das entidades pertencentes à linha de
Iemanjá nem de outra. Apenas uma hierarquia entre dirigente e demais médiuns é seguida, ou
seja, sempre que há mudança em alguma linha, a primeira pessoa a receber e a chamar as
entidades é Dona Valdeci. Somente após a entidade que se fizer presente nela cantar seu
ponto é que os médiuns estão “autorizados” a invocar suas entidades da mesma linha.
Dona Valdeci e os médiuns narram que, quando estão abrindo os trabalhos nas
águas, é possível sentir o frio da brisa e das ondas vindas do mar. Embora todos os médiuns
tenham e recebam, num ritual, entidades pertencentes a essa linha, as incorporações não
ocorrem de forma “desorganizada”. Prezando a ordem do salão, Dona Valdeci instrui que
cada entidade deve respeitar aquela que “chegar” primeiro, ou seja, tem prioridade para dar o
ponto aquelas que primeiramente “arriaram” na gira. Somente após a entidade encerrar sua
doutrina é que a outra pode cantar, mesmo que aquela ainda não tenha ido embora. Assim, um
a um, os espíritos dão seus pontos, “baiam” e se despedem, dando lugar a outros.
150
4.1.2 – Entidades das matas
As entidades dessa linha são chamadas com pontos diferentes daquelas das águas:
Chama caboclo para trabalhar
Pra ver a força que a Jurema tem
Lá na Jurema (2x)
Eles são lindos caboclos de pena.
E
Abre as portas da Jurema e deixa os caboclos passar
Abre as portas da Jurema e deixa os caboclos passar
É na aldeia de caboclo, tem tambor, tem maracá.
É na aldeia de caboclo, tem tambor, tem maracá.
Nos pontos apresentados, a Jurema é tida como sinônimo de mata e aldeia. É ali
onde estão a força, os caboclos de pena (índios) e seus principais instrumentos musicais:
maracá e tambor. Se o maracá é representativo nos rituais dos povos indígenas, o tambor o é
nos rituais dos povos africanos (SALLES, 1969 apud QUINTAS, 2007). Assim, a Umbanda,
com seu caráter agregador, permite unir instrumentos de povos distintos numa aldeia no meio
das matas, na Jurema.
É, sobretudo, na linha de Oxóssi que se concentram os pontos que enfatizam a
importância dos tambores para as religiões afro-brasileiras. Apesar do não uso dos tambores
nos rituais na Tenda Santa Joana D’Arc, sua presença nos pontos cantados no salão reafirma
sua importância no imaginário da Umbanda:
Abre as portas da Jurema e deixa os caboclos passar (2x)
E na aldeia de caboclo, tem tambor, tem maracá (2x).
E
Tava no meio da mata quando eu ouvi tambor zoar (2x)
Mas eu não fico, eu vou, é na pancada do tambor (2x).
E
Bate o tambor e o atabaque, eu cheguei
João da Mata é mourão que não bambeia
Vim de Aruanda, foi meu pai que me mandou
E abalou, e abalou, e abalou.
Embora os pontos acima deem mais ênfase ao uso dos tambores na linha das
matas, outros fazem referência, apesar de não ser muito comum, ao mesmo instrumento na
linha das águas, como se pode ver a seguir.
151
Ê tambor zuou (4x)
Lá na praia do Lençol,
Ê tambor zuou.
E
Não me chame Zé Raimundo
Que eu não sou seu pareceiro
Eu sou Zé Raimundo
Morador da beira d’água
Sou Zé Raimundo da beira d’água
Oi gente, Zé Raimundo chegou
Oi gente, é arrufador de tambor.
Assim, independentemente do uso real de tambores durante os trabalhos por Dona
Valdeci, a importância deles para as religiões afro-brasileiras não é esquecida. São eles que
chamam os caboclos, que mantêm dançantes e que espalham, com seu som, o axé
(energia/força) pelo salão.
Outra referência que o termo Jurema pode ter é aquela que a relaciona com o chá
alucinógeno, muito comum nos rituais de Catimbó nordestino, feito da casca da árvore
Jurema:
A Jurema tomba aqui, tomba ali, tomba acolá
A Jurema tomba aqui, tomba ali, tomba acolá
Mas olha o tombo da Jurema, olha o tombo que ela dá.
Mas olha o tombo da Jurema, olha o tombo que ela dá.
E,
Você bebeu Jurema e se embriagou
Com a flor da mesma árvore se alevantou.
Mesmo não tendo a presença da bebida nos rituais da Tenda Santa Joana D’Arc, a
doutrina acima lembraria os efeitos colaterais da bebida naqueles que dela bebem.
Com base em nossas observações, percebemos que a categoria caboclo é utilizada
para se referir a duas classes distintas de entidades na linha das matas. O termo, em geral, faz
referência aos espíritos de indígenas (caciques ou não) que após viverem na terra teriam
falecido. Em alguns casos, como vimos, o termo caboclo pode ser usado na linha de Iemanjá,
fazendo menção a entidades que fariam parte de aldeias no “fundo das águas”. Autores como
Bastide (2006), Assunção (2010), Ortiz (1991) e outros relacionam, primeiramente, essa
“valorização do índio” na Umbanda a motivações sociopolíticas criadas no final do século
XVIII e início do XIX. Para esses autores, a literatura, num segundo momento, através de
romancistas como José de Alencar e Gonçalves Dias, reforçou o estereótipo romântico do
índio livre, corajoso, guerreiro e civilizado como ancestral do povo brasileiro.
152
É com essas características que caboclos índios, a exemplo de Cabocla Jurema,
Tupinambá, Seu Sete Flechas, Rei Surrupira, Índia Jupira, Caboclo Pena Verde etc., “baixam”
no salão tendo Dona Valdeci como aparelho. Essas entidades, quando “chegam”, não recebem
nenhum tipo de vestuário ou indumentária que as caracterizem, como pode ser observado em
outros terreiros. Ainda assim, nas doutrinas podemos perceber a importância de alguns
objetos para esses caboclos:
Estrela D’alva brilhou nas matas
Brilhou (3x)
Brilhou no capacete da Cabocla da Arueira
Meu capacete é de pena, minha flecha é de indaiá
Brilhou (2x) brilhou no capacete da cabocla da arueira.
E
Pra onde tu vai, Madalena?
Vou pra uma cidade qualquer
Se passar por a Turquia, dá lembrança a Tapinaré
Tapinaré é uma flor que brilha todos os dias
Salve o caboclo flecheiro, imperador da Turquia
Salve o caboclo Tapinaré, mas ele é homem, não é mulher
Mas eu carrego arco e flecha na ponta do pé
Entrego meu penacho para quem quiser.
A presença dos caboclos nos trabalhos só é percebida pelos seus pontos cantados,
pela dança alegre e pelos gritos de saudação — Okê Caboclo ou Okê Caboclo é de
Bamboclim. O ritmo dos pontos é mais animado do que aquele da linha das águas. Outra
mudança perceptível aos ouvidos é o som estridente e forte das vozes dos médiuns.
Outro modo como o termo caboclo pode ser utilizado é para se referir às entidades
encantadas. Vale ressaltar que, na origem, os caboclos na Umbanda se diferenciam daqueles
recebidos no Tambor de Mina; estes são vistos como pessoas que viveram na Terra e a
deixaram sem passar pela morte (FERRETTI, M., 2000). O que percebemos na Tenda Santa
Joana D’Arc é que a noção de caboclo como encantado não se difere muito da noção na Mina.
Acreditamos que, com os processos migratórios e os contatos entre pessoas de localidades
como Pará e Maranhão, com referências culturais distintas, a noção de caboclo como
encantado pode ter sido adotada na Umbanda tocantinense. Assim, teremos entidades que são
consideradas como caboclos encantados das matas ou das águas, como João da Mata, Trinca
Ferro, Mariana, Jarina, Herondina, boa parte dos cavaleiros da Mina de Cura e toda a família
de Légua Boji Buá. Cabe frisar que entidades que seriam pertencentes às águas como os
“cavaleiros do fundo” e Mariana, quando chegam a essa linha, entoam doutrinas enfatizando
as matas, e não as águas.
153
Os caboclos, especialmente na linha das matas, são tidos como as entidades mais
eficazes nas lutas contra demandas. Essa é uma das razões que fazem a entidade ponta
esquerda de Dona Valdeci e do salão ser um índio caboclo dessa linha. Também por isso
muitos caboclos foram assimilados aos orixás Ogum, Oxóssi e Xangô, isto é, por serem
considerados guerreiros e justiceiros (CONCONE, 1987).
4.1.3 – Linha do Oriente
Na Tenda Santa Joana D’Arc, as entidades mais conhecidas da linha de São
Cipriano ou do Oriente são os pretos velhos. Mas outras entidades como os ciganos e Zé
Pilintra, também, compõem suas falanges. Zé Pilintra é uma entidade muito conhecida do
imaginário umbandista: por uns, é tido como o malandro que trabalha na linha dos exus,
dando conselhos sobre fama, dinheiro e mulher; por outros, é visto como o médico que
trabalha na linha do Oriente curando pessoas que vão à sua procura. Foi reforçando esta
última interpretação que o encontramos cantando no salão
Eu tenho meu terno branco
Meu chapéu agaloado
Ô me chamo Zé Pilintra
Porque sou doutor formado.
Independentemente de ser médico ou não, pelo ponto que ele canta, percebemos
que sua vestimenta se assemelha àquela, amplamente divulgada, do malandro carioca: terno
branco, gravata vermelha e chapéu panamá caído na testa. É rara sua “vinda” ao terreiro se
comparada à de outras entidades. Rara também é a presença dos ciganos: foram vistos por nós
só em um trabalho, no dia 11 de julho de 2012. Na oportunidade que tivemos no mês de julho,
pudemos conhecer Cigana Velha e Cigano Velho, ambos incorporados em Dona Valdeci. A
doutrina cantada dos dois é muito parecida; ele canta assim:
Ô, ganjo [homem], me dê sua mão
Que eu quero é ler sua sorte
Eu sou Cigano Velho da Barra do Araripe.
Ela, por sua vez, canta alegremente da seguinte maneira:
Toda cigana pede
Só eu que nunca pedi
Eu sou uma Cigana Velha da Barra do Araripe.
154
Embora se refiram, no ponto cantado, a uma cidade cearense — Araripe —, Dona
Valdeci afirma que são do Egito. Isso explica a saudação da Cigana Velha ao país africano
quando chegou ao salão. A prática da quiromancia, uma das técnicas mais divulgadas usadas
pelos ciganos para adivinhação do futuro, é enfatizada em um dos pontos. Se a Cigana Velha
não traz em seu ponto cantado suas técnicas de adivinhação, deixa bem clara, quando começa
a conversar, sua predileção pelas cartas de tarô. Dona Valdeci contaria, mais tarde, que
antigamente ela “lia carta” para os outros; depois deixou de fazer isso.
Se o velho Cigano era mais contido na sua fala e na sua dança, não foi o que
observamos com sua companheira. Cigana Velha, toda festeira, cantava e dançava alegre pelo
salão. Sempre que passava perto de um médium, tomava dele sua bandeira/faixa e a amarrava
em seu pescoço. Todos os presentes sorriam com o feito da entidade. Ao final de uma volta
pelo salão, Dona Valdeci — “atuada” com a cigana — tinha, em volta de seu pescoço, uma
dezena de faixas coloridas. Antes de se despedir, entre sorrisos, ela devolve as faixas aos
donos. Ao tomar as faixas dos outros sem pedir permissão, ela nos fez compreender por que,
em seu ponto, ela diz que “toda cigana pede”, e só ela que nunca pediu.
As entidades que vêm com maior frequência quando essa linha é aberta são os
pretos velhos. Essas entidades seriam espíritos de antigos escravos que ao, falecerem, devido
ao grande sofrimento vivido na terra, se tornaram espíritos de luz. As mazelas sofridas pelos
negros nas senzalas repercutem nos pontos cantados:
Vovô não gosta de casca de coco no terreiro
Vovô não gosta de casca de coco no terreiro
É pra vovô não se lembrar do antigo cativeiro.
É pra vovô não se lembrar do antigo cativeiro.
O sofrimento por que passaram no período da escravidão, assim como a idade
avançada, teria rendido aos pretos velhos, no plano espiritual, uma quantidade maior de luz se
comparada à de outros espíritos. Dona Valdeci diz que todos esses fatores influenciam no fato
de os médiuns não conseguirem ficar de pé quando os pretos velhos chegam, por não
suportarem o “peso da luz deles”. A dirigente da tenda e os médiuns narram que, quando eles
vão embora, seus corpos ficam com dores nas pernas e nas costas. Devido aos efeitos
corporais pós-transe, os trabalhos não podem se encerrar com eles. É necessário, de acordo
com relatos de Dona Valdeci, chamar outra linha para carregar as dores deixadas pelo “peso”
dessas entidades. Isso poderia explicar por que observamos poucas vezes trabalhos com eles
durante nossa pesquisa em 2012.
155
No dia 13 de maio é sempre aberto um trabalho especial para os pretos velhos. A
data, não só na Tenda Santa Joana D’Arc, mas também para o povo de santo, é festejada por
se comemorar a Abolição. Nesse dia, Dona Valdeci prepara “café sem areia” (sem açúcar),
“mocororó” (água de arroz adoçado com rapadura e mel) e pipoca doce para servir para as
entidades durante o ritual e para o público ao final. Os espíritos dos antigos escravos são
sempre identificados como de Angola ou outro lugar da África. É com o seguinte ponto que
os pretos velhos são chamados:
Arreia na linha de Congo
É de Congo, é de Congo aruê
Quem trabalha na linha de Congo
É agora que eu quero ver.
Cachimbo, cachaça e cajado são elementos representativos dessas entidades em
muitos terreiros. Mas, como naquela tenda não se permitem fumo nem bebida alcoólica,
pretos velhos como Pai José, Pai Joaquim, Maria Angola, Maria Conga, Pai Miguel, Preta
Velha da Cachoeira, Zé Pretinho de Arengá, Preto Velho Cipriano, Preto e Meio, dentre
outros, recebem apenas seu cajado e o café. A maioria deles raramente dança; em boa parte do
tempo ficam sentados com as costas curvadas. A voz é rouca e baixa; a fala é arrastada.
Duas entidades dessa linha chamaram mais nossa atenção por conta de suas
peculiaridades. Uma delas é Preto e Meio. Embora seja descrito como um velho, sempre que
chega ao salão se põe a dançar de forma altiva e alegre. Ele nunca fica por muito tempo em
Dona Valdeci e sempre que é para ir embora chama uma das médiuns e diz: “Você me
segura!”. Dizendo essas palavras, bate o cajado no chão, abandonando de imediato o corpo da
dirigente e incorporando, no segundo seguinte, o corpo de outra médium escolhida. A outra
entidade é a Preta Velha Caetana, a única entidade dessa linha que é encantada. Se todos os
outros viveram e morreram, esta narra, no seu ponto, a proximidade com o Rei Sebastião e
garante ter sido a cozinheira que fazia mingau para ele. De acordo com Dona Valdeci,
Caetana teria se encantado no mesmo navio em que o rei e toda sua família se encantaram.
A humildade, sabedoria, simplicidade e bondade são características marcantes
dessas entidades. Outra especialidade que teria sido adquirida quando do contato dos negros
com os povos indígenas é o conhecimento das ervas medicinais. Assim como os índios
curandeiros, muitos pretos velhos enfatizam, em suas doutrinas, seus poderes terapêuticos,
como vemos a seguir.
156
Quando eu chego no salão de branco
Estendo logo meu cordão de ouro
E é Maria Angola, e é Maria Angola
Preta velha curandeira.
Percebe-se, assim, que há uma oposição entre o comportamento valoroso e juvenil
dos caboclos e a humildade e velhice dos pretos velhos. Mas também há uma semelhança
quando se trata do conhecimento e manuseio das ervas por essas entidades quando do seu uso
para curas.
4.1.4 – Linha dos ibejis
Se caboclos e pretos velhos celebram a fase adulta do ser humano, as entidades
crianças, por sua vez, celebram a infância, a pureza e a inocência. Ortiz (1991) afirma que
esses espíritos derivam, em parte, da noção de erê do Candomblé, porém com algumas
diferenças. Na Umbanda, as crianças são espíritos individualizados — os ibejis (gêmeos);
representam um orixá em particular — este sincretizado com São Cosme e Damião; e sua
manifestação não se limita aos ritos de iniciação em que desempenham o papel de estado
intermediário de transe entre os orixás. Essa linha, assim como a dos pretos velhos, costuma
ser chamada após a linha de Oxóssi. Mas nada impede que essas entidades sejam invocadas
após a linha de Iemanjá, marcando uma distância entre as águas e as matas, como foi algumas
vezes observado por nós.
A manifestação das crianças na Tenda Santa Joana D’Arc é marcada por bastante
alegria e descontração entre os médiuns e a assistência. Mariazinha, principal guia infantil de
Dona Valdeci, é sempre a primeira a chegar nessa linha. Entre risos e saltitando, ela canta sua
doutrina, que é seguida por um ponto de chamada convocando os outros espíritos infantis a
vir:
Eu não mandei, não mandei
Eu não mandei me chamar
Meu nome é Mariazinha
O grande peso do mar.
E
Porque Bahia é tão forte
É pelas águas do mar
São Cosme e São Damião
Governador da Bahia.
157
A Bahia é compreendida pela dirigente, e comprovada através dos pontos, como o
lugar de morada dos ibejis.
A voz dos médiuns se altera de forma considerável quando “atuados” com as
crianças. O som agudo e uma forma infantilizada de pronunciar as palavras nos indica que
essas entidades têm por volta de 5 anos de idade. Por essa razão, cumprimentam a todos que
encontram como titia e titio, vovô e vovó. Sempre que chegam, pedem seus brinquedos
(carrinhos, bonecas, talcos, gaita etc.) para brincar no início, os quais são abandonados após
um tempo para dar lugar às brincadeiras de roda. É certo que, se estamos lidando com
crianças, brigas entre elas acabam acontecendo. Em geral, as brigas são motivadas por ciúmes
dos pertences ou presentes que uma recebe e a outra, não. Assim, aqueles espíritos infantis
que, por alguma razão, não estão com seus brinquedos no salão, acabam por sentar e chorar,
reclamando do médium que não cuida dos seus objetos.
Balas, doces e bombons são oferecidos pela assistência para essas crianças, as
quais acabam dividindo suas guloseimas com todos os presentes, seja médiuns ou não. Porém,
sempre que um doce é dado a pessoas mais ligadas à casa, as entidades costumam pedir a
quantidade dada em dobro de volta, diferentemente das entidades adultas, que conhecem as
etiquetas sociais da boa convivência. Quando algum presente é prometido a um espírito
infantil e não é levado, este cobra publicamente a promessa feita, muitas vezes
envergonhando o devedor.
Nessa linha, temos entidades como Mariazinha, Zefinha, Joãozinho, Zezinho,
Chiquinho da Lela, Doum, entre outros. Geralmente, são entidades que vêm para brincar,
como dizem os pontos a seguir.
Eu sou Chiquinho da Lela101
Eu só vim foi leliá
Eu sou menino, eu brinco, eu brinco
Eu sou menino, eu vim brincar.
E
Papai me mande um balão
Salve as crianças que vêm lá do céu
Tem doce neném (2x)
Tem doce lá no jardim.
Mesmo que as brincadeiras sejam costumeiras entre essas entidades, o poder de
cura destas é sempre enfatizado pelos médiuns. É comum vermos, durante os rituais, pessoas
101
Em São Luís, MA, outras variações são encontradas: Chiquinho Dalera ou da Lera. Assim como o “leliá” é
encontrado na capital maranhense como “leriá”.
158
pedindo para que as crianças passem em suas casas a fim de realizar alguma benfeitoria de
caráter espiritual. Antes de partir, anunciam sua despedida com o seguinte ponto:
A mamãe me chama, eu não quero ir
A mamãe me chama, eu não quero ir
Eu vou brincar na Bahia
Vou balanciá lá no mar.
É impressionante observar os médiuns já com idade avançada incorporados com
suas entidades infantis, já que conhecemos os problemas de saúde de cada um, em especial
aqueles relacionados com a coluna, os pés e as pernas. Ao questioná-los sobre as possíveis
consequências das estripulias realizadas pelas entidades, como saltitar e correr, nos seus
corpos após o transe, garantiram que não sentem nada. Muitos relatam o alívio das dores e dos
inchaços com a passagem dessas entidades. Assim, nos parece que as brincadeiras realizadas
pelas crianças fazem parte do método adotado por elas para curar, deixando longe o caráter
apenas lúdico das travessuras.
4.1.5 – Outras divisões.
De fato, as entidades se dividem entre as sete linhas da Umbanda, mas há algumas
entidades que, não pertencendo a nenhuma daquelas linhas descritas há pouco, agrupam-se
em correntes102 que não pertencem a nenhuma linha específica. Esse é o caso dos mineiros,
dos baianos, dos Légua e dos boiadeiros. Essas entidades não são exclusivas da Tenda Santa
Joana D’Arc. Com base em relatos orais, em nossas observações em outros terreiros e na
literatura especializada, tivemos conhecimento de sua existência em outros terreiros e lugares
do Brasil.
A corrente de Mina, ou dos mineiros, é representada na tenda por Dom João
Soeira. Essa entidade é a última a incorporar em Dona Valdeci, mas antes dela podem vir
outros mineiros em sua “coroa”. Dom João é a entidade responsável, na tenda, por encerrar os
trabalhos. Quando ele chega e canta seu ponto, todos os médiuns sabem que o trabalho está
encerrando. No ponto de Dom João Soeira, ele canta o fato de ser “Rei de Mina”. Em
seguida, pontos de chamada dos mineiros começam a ser entoado por todos:
102
Dona Valdeci explica que uma linha tem sete correntes. Cada corrente tem sete falanges. Para a dirigente
falange também é sinônimo de entidade, a qual por sua vez tem sete de si. Ex. Linha de Oxóssi tem a corrente
Pena Branca. Dentro dessa corrente temos sete falanges/entidades: o próprio Pena Branca, Pena Azul, Pena
Roxa, Pena Cinza etc.
159
A mina é cocoriô
A mina é cocoriá
Laiá, laiá, laiá, laiá (2x)
Ô, mais cadê Seu João Mineiro, que não vejo ele chegar.
Laiá (3x).
Na parte que se encontra em destaque na doutrina, outros nomes podem ser
chamados. Em tom de brincadeira, mas também devido ao cansaço do final da noite, é comum
vermos os médiuns cantando “ô, mais cadê Dom João Soeira, que não vejo ele chegar...”.
Dentre os mineiros mais conhecidos da casa, temos Dom João, Zé Mineiro, Mineirinho,
Mineiro Curador, João Mineiro, Maria Mineira e outras entidades cujos nomes não nos foram
revelados, embora conhecêssemos seus pontos.
É difícil precisar a referência do termo Mina. Em alguns pontos, vemos menção
ao estado de Minas Gerais, seus sertões e suas minas de ouro e pedras preciosas:
Quando eu venho de Minas Gerais
Venho botando meu cavalo pra correr
Venho montado no meu pensamento
Eu venho de Minas Gerais.
Em outros pontos, vemos a influência maranhense. Um ponto cantado diz, por
exemplo, que a “mina é de holandês”, o que poderia nos remeter à ocupação holandesa da
Capitania do Maranhão em 1641:
Ô mina, ô mina, ô mina de holandês (2x)
Ô mina de moço já, ô mina de holandês (2x)
Essa influência também pode ser cogitada se levarmos em consideração que uma
entidade canta ser Rei de Mina e Rei do Mar, podendo ser uma alusão aos reis do panteão do
Tambor de Mina que se encantaram em águas salgadas103. Contudo, é negada por Dona
Valdeci qualquer ligação daqueles com a Mina do Maranhão, embora saibamos que o estado,
especialmente as cidades de São Luís, Codó e Imperatriz, é muito procurado por pais e mães
de santo do norte tocantinense para complementar seu desenvolvimento — tal qual Dona
Valdeci fizera em Nazaré. A importância dessas cidades para a Umbanda da região, assim
como do estado maranhense, pode ser comprovada através das histórias de vida de muitos
103
Ver FERRETTI, M. (2000, p.81); CAMPOS (2005) documentário.
160
dirigentes e demais médiuns, das brincadeiras entre o povo de santo da cidade, assim como
dos cânticos entoados durante os rituais:
Eu baiei lá em mina, eu baiei lá no mar
Eu baiei lá no Codó, e eu voltei baiei no mar.
E
Eu tenho meus arreios e são de ouro
Eu tenho meu cavalo é pra mim só
E lá na mata, e lá na mata, e lá na mata do Codó eu baiei só.
Codó é a cidade que mais aparece nos pontos ouvidos no salão. Alguns dos pontos
são entoados por entidades indígenas, mineiras, baianas e até por algumas das águas. Porém,
sua maior predominância se encontra nas doutrinas entoadas por entidades pertencentes à
família de Légua Boji Buá. A “família dos Légua” — como também são chamados —, dadas
as suas especificidades e a quantidade de entidades, passou a ter uma corrente para eles na
Umbanda. Do mesmo modo, essa mudança pode ser percebida, especialmente, nos terreiros
de Terecô, que tiveram maior abertura à introdução de elementos da Umbanda (FERRETTI,
M., 2001). Independentemente de a Umbanda ter agregado os Légua ao seu panteão ou de o
Terecô ter agregado a seus rituais elementos da Umbanda, o que percebemos é que esse
processo de negociação nas religiões foi parte de um processo de hibridização cultural
possibilitado pelos intensos processos migratórios pelos quais a região passou e passa. Essas
entidades consideradas encantadas104 teriam Codó como sua moradia. De acordo com relatos
colhidos por Mundicarmo Ferretti (2001) com Pai Jorge Oliveira, Légua Boji seria o mais
antigo encantado do Terecô e teria se tornado famoso em Codó “porque era um orixá que,
quando invocado, vinha mesmo, e em figura de gente — aparecia em Codó em espírito e
matéria (não apenas incorporado em médium)” (p. 160). Alegres, festeiros, debochados e
beberrões: eis alguns adjetivos que se usam para descrever os espíritos dessa corrente. Na
Tenda Santa Joana D’Arc, que não permite bebidas alcoólicas, essas entidades não bebem.
Mas, segundo narrativas de alguns médiuns, é comum ver uma ou outra chegar ao salão
104
De acordo com Tereza Légua incorporado no dirigente Nazareno, ela e toda sua família se encantaram
durante o dilúvio bíblico. Eles teriam perdido a oportunidade de entrar na Arca de Noé. Pai Légua teria feito um
buraco no chão que os abrigou durante os 40 dias e noites em que a terra teria ficado submersa. Quando a terra
secou, eles saíram do abrigo. Como estavam com sede foram beber nas poças de água que ainda estavam
formadas. Deus havia dito que somente as pessoas que estavam na arca sobreviveriam, mas eles conseguiram
sobreviver sem entra nela. Deus precisava resolver essa situação, assim encantou a todos da família de Légua no
momento em que da água do dilúvio beberam.
161
embriagada. Quando questionadas por que estariam bêbadas, respondem que estão vindo de
festas em Codó.
Nessa corrente, obedecendo à hierarquia familiar, quem comanda tudo é Pai
Légua. Ele vem, na maioria das vezes, em Dona Valdeci, primeiramente; depois, assim como
Preto e Meio, ele “pula” para uma das médiuns dizendo que precisa de um aparelho mais
novo. Do mesmo modo como muitos pretos velhos, ele é espírito de muita luz, fazendo com
que quem o receba não consiga se sustentar de pé. Abaixo do velho Légua, encontramos
Maria Légua, Tereza Légua, Adalgiza Légua, Martim Boji, Oscar Légua, Benedita Légua e
Constâncio Légua, dentre outros. É raro um ponto em que a entidade não ofereça detalhes
sobre seu parentesco com o patriarca:
Amarra o touro Pai Légua
Não deixa o touro cair
Maria Légua pesada
Filha de Légua Boji.
E
Quem tem um, tem dois
Quem tem dois não quer me dá
Mas sou Adalgiza Légua
Neta de Boji Buá.
Como diria Mundicarmo Ferretti (2001), “não existe no Maranhão entidade
espiritual mais controvertida do que Légua Bogi” (p.159). Essa característica também é
percebida nos terreiros de Araguaína. Se para alguns ele é considerado um príncipe que
pratica somente o bem, para outros ele assume um caráter dual, podendo realizar o bem e o
mal105. Devido a esta última compreensão, assim como a sua personalidade festeira marcada
por dança e muita cachaça, alguns dirigentes acabam por relacioná-lo com a linha dos exus.
Como esta não é a compreensão adotada por Dona Valdeci, e mesmo pelo fato de não
trabalhar com essa linha, na Tenda Santa Joana D’Arc a família Légua se apresenta, muitas
vezes, como vaqueiros, boiadeiros e alguns até com pontos indicando ter vindo das águas,
como Martim Boji e Antônio Légua. Na corrente dos boiadeiros há a presença de espíritos
que trabalhavam no campo na lida com o gado; boiadeiros ou vaqueiros, como também são
chamados, contam cantando um pouco das dificuldades desse ofício rural, sobre suas
vestimentas e devoções:
105
Ver FERRETTI, M. (2000).
162
Em cima daquela serra, a onça pegou meu cachorro (2x)
Ô, mas chegou boiadeiro com seu jaleco de couro (2x).
E
Quando eu venho por aquele rio de conta
É passeando/caminhando por aquela rua
Olha que beleza é boiadeiro no clarão da lua.
E
Caboclo bom é maiongá, ê, ê, ê maiongá
Seu boiadeiro é maiongá, aê, aê maiongá
Ossaim mora no tempo e meu santo mora na sala
Mas quem quiser saber meu nome sou boiadeiro na vissala
Mas quem quiser saber meu nome é perguntar sempre a Deus
Eu meu chamo é boiadeiro, filho de São Berto Lameu.
O fato de essas entidades representarem a natureza e o homem do sertão — “o
caboclo sertanejo” que percorria diversas regiões “tocando o gado” — pode ser uma
explicação para ser tratados como caboclos também. Na Umbanda, essas entidades costumam,
em geral, usar chapéus de vaqueiros, laços de corda e chicotes de couro. Na Tenda Santa
Joana D’Arc, a única entidade que recebe alguma indumentária nessa corrente é João da Mata
— um chapéu. Conseguimos os pontos cantados de algumas dessas entidades, mas não o
nome.
Diferentemente, obtivemos os nomes daqueles da corrente dos baianos. Baiano
Chapéu de Couro, Baiano Grande Chapéu de Couro, Baiano da Cinta Verde, Baiano Grande,
Chica Baiana, João da Cruz são apenas alguns dos espíritos que pertencem a essa corrente. O
ponto de chamada dessas entidades diz que foi na Bahia onde eles se encantaram. Mas a
forma verbal “encantaram”, que poderia indicar o fato de essas entidades não ter passado pela
morte, não é indicativo de tal interpretação quando consideramos a mitologia desses espíritos.
Nos terreiros, muitas narrativas são contadas sobre a vida e morte desses espíritos de baianos.
Mas se as narrativas de morte ficam restritas às histórias contadas pelo povo de santo, a vida
que tiveram é cantada nas doutrinas:
Na casa de meu pai
Eu sou menino de ouro
Nas águas do Pará
Eu sou Baiano Chapéu de Couro.
163
E
Baiano Grande Chapéu de Couro
Mocotó de requeijão
Quantas quedas deu no boi
Ô quantas quedas deu no chão.
E
Eu governo 12 bois da mata para o sertão
Governa Chica Baiana as matas do Maranhão.
E
Minha boiada estourou lá nas terras de Bahia (2x)
Eu sou Baiano Chapéu de Couro
Sou boiadeiro da Bahia.
Eu sou Baiano Chapéu de Couro
Sou boiadeiro da Bahia.
Como podemos observar, algumas entidades baianas cantam suas experiências em
outras regiões. Isso pode ser motivado em razão das migrações106 ocorridas da Bahia para a
região do sul do Maranhão e do sul e sudeste do Pará, onde muitos migrantes acabaram
trabalhando no desmatamento da floresta e nas fazendas com gado. Esta última atividade,
independentemente de onde é realizada, é a mais enfatizada nos pontos, assim como nos
pontos dos boiadeiros. Contudo, no que se refere à corrente dos boiadeiros, parece-nos que o
que designaria se uma entidade pertence a ela ou não é, antes, o fato de ser “tocador de
boiada”, e não o local de onde ela teria vindo. No que tange à corrente dos baianos, importaria
antes o espírito ter nascido na Bahia do que a atividade profissional exercida por ele. Nessa
mesma lógica, podemos compreender por que algumas entidades da família de Légua Boji
Buá como Maria Légua, embora apresentem características de vaqueiros, não pertencem à
corrente de boiadeiros.
Outras entidades que compõem a corrente da Bahia são os espíritos de
marinheiros:
Ô, mais cadê minha canoa
Eu já quero atravessar
Ô, minha canoa está na espera
Da maré grande do mar.
E
Ô, marinheiro, marinheiro, marinheiro sou
Quem te ensinou a remar, marinheiro sou
Foi o tombo do navio, marinheiro sou
Foi o balanço do mar, marinheiro sou
E eu não sou daqui, marinheiro sou
106
Sobre essas migrações ver SILVA (2010).
164
Nem vim pra ficar, marinheiro sou
Eu sou da Bahia, marinheiro sou
De São Salvador, marinheiro sou.
Essas entidades são trabalhadores dos mares, mas não pertencem à corrente de
Iemanjá. Antes, são reconhecidos como pertencentes à corrente da Bahia, por ser, sobretudo,
nesse estado onde desempenharam tal atividade. Assim como todas, podem vir a qualquer
momento do ritual, mesmo que pertençam a certas correntes — esclarece Dona Valdeci; basta
que pressintam que seu médium necessite da sua ajuda.
Mesmo com tamanha fluidez encontrada nos rituais e relatos sobre todas as
entidades apresentadas, resolvemos ordená-las num quadro segundo as linhas ou correntes a
“que dizem” pertencer.
QUADRO IX – Entidades de Dona Valdeci
ENTIDADES
Adociaba
Antônio Légua
Baiano Chapéu de Couro
Boiadeiro “mina de santê”
Buiuna
Cabocla de Arueira
Cabocla Índia
Cabocla Jurema
Caboclo Belém
Caboclo da Laje
Caboclo de Arueira
Caboclo de Mussussu
Caboclo Rompe Mato
Caboclo Ventania
Cafajé
Cigana Velha
Cigano Velho
Constâncio Légua
Corre Beirada
Dalila (mãe d’água)
Dom João Soeira
Evangelista
Firmino Légua
Francisquinho
Herondina
Índia Flecheira
Índia Iracema
Índia Jupira
Índio Flecheiro
Índio Velho
Jatapequara
LINHAS OU CORRENTES
Mina de Cura
Família de Légua
Bahia
Boiadeiro
Mina de Cura/encantada
Mata
Mata
Mata
Mina de Cura
Xangô
Mata
Xangô
Mata
Mina de Cura
Ogum
Oriente/Ciganos
Oriente/Ciganos
Família de Légua
Mina de Cura
Água
Mineiro
Ogum
Família de Légua
Mina de Cura/encantado
Águas/encantada
Mata
Mata
Mata
Mata
Mata
Mata
165
João Baiano
João da Mata
José de Ribamar
José Tupinambá
Légua Boji Buá
Manoel Baiano
Manuel Légua
Maria Angola
Maria da Soledade
Maria Légua
Mariana
Mariazinha
Marina
Marinheiro Jurandir
Menino Ubiraci
Mestre Costeiro da América do Sul
Mestre Saluzinho da Ponta da Serra
Mineiro de Queiruz
Moço de Cura
Oscar Légua
Pedra Lavrada
Preta-velha Caetana
Príncipe Aledor
Príncipe Gavião
Príncipe Zezinho
Quebra Barreira
Rainha Dina
Rei de Matum
Rei Leão
Rei Paruara
Rei Sebastião
Rei Surrupira
Ricardinho
Seu Baiano
Seu Pena Verde
Seu Sete Flechas
Tango do Pará
Tapinaré
Tibiriça
Treme Terra
Trinca Ferro
Ubirajara
Urubatan
Zé da Luz
Zé Pilintra
Zé Pretinho de Arengá
Zé Raimundo Légua
Bahia
Mata
Águas
Mina de Cura
Família de Légua
Bahia
Família de Légua
Oriente/preta-velha
Água
Família de Légua
Águas/encantada
Ibeji
Oxalá
Marinheiro
Mina de Cura
Mina de Cura
Oxalá
Mineiro
Mina de Cura
Família de Légua
Mina de Cura
Oriente/preta-velha
Oxóssi
Oxóssi
Águas/encantado
Mina de Cura
Água
Mata
Água
Água
Águas/encantado
Mata
Mina de Cura
Bahia
Mata
Mata
Mina de Cura
Mina de Cura
Mina de Cura
Xangô
Água
Mata
Oxóssi
Mina de Cura
Oriente/médico
Oriente/preto-velho
Família de Légua
166
As entidades apresentadas foram aquelas que conseguimos catalogar durante um
ano de observação na Tenda Santa Joana D’Arc. Mas essa lista não representa a totalidade
daquelas recebidas por Dona Valdeci em seus 40 anos de Umbanda. Segundo ela, não há um
limite de entidades a receber; o médium passaria toda a sua vida recebendo novas entidades.
Embora essas entidades apresentadas no quadro sejam recebidas por Dona
Valdeci107, sabemos que na Umbanda há hierarquias entre as entidades recebidas por um
médium; e tal hierarquia é a responsável, por exemplo, por Mariazinha (ibeji) ter ficado seis
meses sem incorporar em Dona Valdeci, como vimos no capítulo anterior, por ter contrariado
Mariana. Em algumas versões sobre a história da encantada esta é considerada como filha do
Rei Darsalam da Turquia. Contudo, esta teria sido adotada por Rei Sebastião após ser
encantada, o que faz com que ela se refira a este rei como seu pai. Apesar de ser esta uma das
versões mais conhecidas, Dona Valdeci diz que segundo o que contaram para ela, Mariana é
filha legítima de Rei Sebastião, mesmo sendo conhecida como princesa turca. A única filha
que adotada seria Herondina.
Mariana é a guia-chefe da dirigente e responsável por realizar as consultas nos
dias de trabalhos e dar as ordens referentes à tenda e à vida da dirigente. Rei Sebastião, seu
pai adotivo, tem lugar de destaque na tenda; ordem dada por ele não é desobedecida por
nenhuma outra entidade. O fato de o rei ser pai de Mariana o deixa em posição privilegiada na
pirâmide hierárquica.
Outra entidade de destaque na corrente de Dona Valdeci é seu caboclo pontaesquerda. Este, porém, não pode ter seu nome revelado, por questões de segurança. A
dirigente conta uma anedota para explicar por que mantê-lo em segredo. De acordo com ela, o
gato ensinou à onça todos os pulos que ela sabe. Certo dia, a onça estava escondida atrás de
uma árvore e, quando o gato passou, pulou sobre ele para comê-lo. Num reflexo, o gato deu
um salto para trás, escapando do ataque. A onça, reclamando para o gato, perguntou por que
ele não ensinou esse pulo para ela, e o gato respondeu que, se tivesse ensinado tudo o que
sabia, já estaria morto. Assim, por razões de estratégia de sobrevivência de Dona Valdeci,
algumas informações não nos foram dadas; e mesmo aquelas que nos foram confidenciadas
não nos foi permitido revelar.
107
A lista apresenta as entidades da dirigente, mas algumas não incorporam somente nela, a exemplo de Légua
Boji, Preto e Meio e outras que, às vezes, são “recebidas” pelos médiuns também.
167
4.2 – Atividades, festas e rituais realizados.
A Tenda Santa Joan D’Arc realiza, no decorrer do ano, uma variedade de
atividades, dentre como festas, consultas, novenas e rituais. Ainda que parte das consultas
ocorra individualmente — entre o consulente e Dona Valdeci “pura” ou não —, podemos
dizer que todos os rituais são de caráter público. Se nas novenas e nos trabalhos há
predominância de pessoas mais diretamente ligadas ao terreiro (médiuns, cambona, sócios,
familiares), não é o que observamos nas consultas e festividades. Nas consultas, sobretudo
aquelas realizadas no período diurno, a quantidade diversificada de pessoas que passam pela
tenda para se benzer, para “levantar a arca caída”, para curar, através de benzimento, “zipa”108
ou “cobreiro”109, para conselhos etc. é bastante acentuada. Independentemente de idade,
gênero, posição social, econômica ou religiosa, dezenas de pessoas foram observadas
adentrando os portões do terreno da dirigente a fim de ter seus males solucionados. É certo
que muitas dessas consultas são privadas, mas algumas vezes Dona Valdeci nos permitiu e até
nos convidou para “ver como ela trabalha”.
Em geral, os trabalhos (rituais) ocorrem às quartas-feiras, a partir das 20h. Com
poucas exceções, devido a festas ou data especial de algum santo de devoção, os rituais
podem ocorrer no sábado ou noutro dia da semana. Normalmente, os trabalhos se encerram à
meia-noite — em poucas vezes ultrapassam meia hora, 40 minutos. Vez ou outra, a casa fica
cheia no período da noite para consultas, realizadas pela encantada Mariana em Dona Valdeci
no início da noite; porém, são raras as pessoas que, após a consulta, permanecem até o final
dos trabalhos. Esse tipo de comportamento, muitas vezes, faz que algumas entidades como
Dom João Soeria reclamem da falta de compromisso e respeito das pessoas com as religiões
alheias. A exigência desse respeito foi observada, também, quando vimos a cambona não
permitir que mulheres com bermudas ou saias acima do joelho entrassem na tenda; quando foi
solicitado às pessoas que não cruzassem braços nem pernas durante o ritual com a explicação
de que “atrapalha na ligação das correntes”, quando foi indicado que, ao adentrar na área
restrita aos médiuns e na sala de consulta, a pessoa deve retirar os sapatos etc.
No que tange às festas, Dona Valdeci conta que boa parte das datas dos santos a
ser festejados ou lembrados foi deixada pelos seus guias. Porém, não há rigidez com relação à
realização de trabalhos em todos eles, embora a reza do terço seja sempre obrigatória. Em
108
109
Abreviação para erisipela, infecção cutânea causada por bactéria.
Nome popular para herpes-zóster.
168
outros casos, fatores pessoais influenciaram na escolha do santo a ser comemorado. A seguir,
o calendário festivo da tenda.
QUADRO X – Calendário festivo da Tenda Santa Joana D’Arc
MÊS
Dia/Santo festejado
01 – Iemanjá (reza do terço Mistério Glorioso)
JANEIRO 11 – Início da novena de São Sebastião
20 – São Sebastião e Rei Sebastião (bianual – festa precedida por novena)
02 – Iemanjá (reza do terço para Nossa Senhora. Trabalho⃰ ).
FEVEREIRO 11 – São Lázaro (terço)
MARÇO 19 – São José (terço e festejo de um dos médiuns - Manelim)
21 – São Bento (terço)
ABRIL 23 – São Jorge (terço e trabalho)
01 – 31 – (reza do terço todos os dias para Maria)
13 – Preto-velho (trabalho)
MAIO
30 – Santa Joana D’Arc (terço e trabalho⃰ )
13 – Santo Antônio/Xangô Abomin (terço e trabalho)
JUNHO 24 – São João Batista/Xangô Alafim (terço e trabalho⃰ )
29 – São Pedro/Xangô Agôjô (terço e trabalho⃰ )
JULHO 26 – Senhora Santana (terço)
27 – Santaninha (terço)
AGOSTO 15 – Nossa Senhora Aparecida (terço)
31 – São Raimundo (terço)
SETEMBRO 27 – Cosme e Damião/Ibejis (terço e trabalho)
OUTUBRO 28 – São Judas Tadeu (terço)
NOVEMBRO 02 – Finados (terço é realizada de forma individual no cemitério pelas
médiuns para seus mortos)
04 – Santa Bárbara (terço e trabalho⃰ )
13 – Santa Luzia (terço e café e bolo)
DEZEMBRO 17 – Início da novena de Natal
24 – Nascimento de Cristo (terço e hino de natal)
31 – Terço e trabalho para todos os orixás agradecendo o ano que passou e
pedindo proteção para o ano que inicia.
⃰ Só há trabalho se a data cair no sábado ou na quarta-feira.
Em algumas festas ou mesmo rezas do terço, são servidos café e bolo ou outras
comidas. Na festa de São Sebastião, é servido almoço para a comunidade ao meio-dia, após a
reza do terço. A reza do terço nesse dia compõe a parte final de uma novena iniciada dias
antes. O ritual com a chegada das entidades é realizado somente no período noturno, após as
20h. Esse horário segue o horário dos rituais da casa. Entretanto, quando a região entra no
horário de verão, Dona Valdeci continua a adotar o “horário de Deus, e não dos homens” —
como ela mesma diz. Assim, seus trabalhos passam a iniciar às 21h, horário de Brasília, já que
com a mudança o relógio é adiantado em uma hora. No dia 13 de maio é servido, para os
169
presentes, pipocas e “mocororó”. No dia de São Pedro/Xangô Agojô, Dona Valdeci e os
médiuns costumavam fazer jejum, mas, devido à idade avançada de quase todos da casa, essa
prática foi suspensa.
A festa das crianças — São Cosme e São Damião — é realizada em dois
períodos: no fim da tarde, para crianças; e à noite, para adultos. À tarde os trabalhos não são
abertos; ocorrem apenas a reza do terço e distribuição de doces, bolos e refrigerantes. Dona
Valdeci diz que decidiu não abrir os trabalhos — ou seja, evitar a incorporação — “para não
prejudicar a fé dos outros, pois nem toda criança que vem está acostumada com a religião dos
espíritos”. Outro fator que pesou na escolha do ritual no período vespertino foi o fato de as
crianças terem de estudar no dia seguinte, por isso precisam dormir cedo. Desse modo,
somente quando anoitece e a “mesa já está aberta” é que começam a chegar Mariazinha,
Luizinho, Chiquinho da Lela, Doum, Zezinho e mais uma dezena de entidades mirins
buscando doces e brinquedos para comemorar seu dia.
Nos dias 28 de outubro e 13 de dezembro, após a reza do terço, são servidos café
e bolo aos que estão no salão. São Judas Tadeu e Santa Luzia são dois santos de devoção de
Dona Valdeci por motivos especiais. Quando ainda muito novo, mas já casado com a
dirigente, Seu Osmar teve um problema nos olhos que o deixou sem enxergar por dias e com
muita dor nos olhos. Assim, foi após a promessa feita por Mestre Odenir para Santa Luzia —
de que rezaria o terço todo ano para ela — que o militar recobrou sua visão. Dona Valdeci
disse que o problema dele tinha sido “trabalho” que fizeram contra ele e que ela, com o
falecimento de José Odenir, assumiu o pagamento da promessa. Com São Judas Tadeu, a
história foi semelhante. Dona Valdeci conta que, quando se mudou para Araguaína, passou a
sofrer diversas perseguições, abaixo-assinados e ameaças — espirituais e no plano material. A
dirigente lembrou que São Judas é famoso por ser o santo das causas impossíveis; assim,
fizeram a promessa de que, se “tudo pelo que estavam passando acabasse”, fariam a reza do
terço e serviriam bolo e café para todos os presentes no dia dele. Desde então assim tem sido.
Essas comemorações são sempre organizadas e financiadas pela dirigente, mas
nenhuma outra segue as proporções ritualísticas, financeiras e de público como a festa
dedicada ao Rei Sebastião. No ano em que se realiza a festa, a estrutura física da tenda passa
por reformas — pintura, consertos no chão, no teto e nas paredes e troca de bandeirolas que
ornamentam o teto do salão. Dezenas de pessoas vêm de outras cidades e estados, assim com
vem mais uma centena de Araguaína, para acompanhar o festejo. As despesas financeiras com
a reforma do salão são agregadas a outras despesas referentes ao preparo do almoço servido
170
ao público. Mesmo com as doações de pagadores de promessas, médiuns e amigos, Dona
Valdeci arca economicamente com a maior parte dos gastos.
4.2.1 – Festa do Rei Sebastião de 2013
De certa forma, a festa começou em 11 de janeiro, com o início da novena para
São Sebastião. Durante oito dias, a reza do terço ocorreu à noite; no dia 20 de janeiro, foi
realizada no período diurno. Durante a reza do terço em todos os dias, foram estouradas três
caixas de foguetes — uma no início da reza, outra quando terminava o terço e começavam a
cantar os benditos, a última no fim de tudo. Ao término, uma salva de palmas era oferecida a
São Sebastião. Antes de irem para suas casas, os médiuns, sob a regência de Dona Valdeci,
ensaiavam a sincronia das palmas para a festa. Percebemos que alguns dos médiuns mais
jovens tinham dificuldade em bater palmas no ritmo dos demais, assim como dificuldade em
coordenar dança, canto e palmas. Meses antes, em setembro, durante a festa de Cosme e
Damião, solicitamos a Mariana incorporada em Dona Valdeci a permissão para fotografar a
festa infantil. Ela negou; mas disse que, na festa “do pai dela”, poderíamos fotografar e filmar.
Com essa autorização, documentamos visualmente boa parte do festejo. O fato de todos
saberem que iríamos fotografar fez que os médiuns, de início, ficassem mais nervosos e
tímidos. Mas, com o desenrolar do festejo, percebemos mais desenvoltura e intimidade com
as câmeras nos integrantes da tenda.
Na segunda-feira, dia 14, e na quinta-feira, dia 17, antes da reza do terço, foi
servido, para os médiuns, um chá preparado pela dirigente. Ele é feito de ervas, mas essas não
nos foram reveladas por Dona Valdeci. Ela apenas disse que o chá é “contra bruxaria e para
limpar a garganta”. No dia 14, ela me deu um pouco para beber. O gosto é amargo, mas é
cheiroso. Esse chá, segundo a dirigente, só é servido em duas ocasiões: na Sexta-feira da
Paixão e na festa de São Sebastião, uma ou duas vezes nos dias que antecedem a festa. Na
quarta-feira, dia 16, mesmo com a reclamação de alguns médiuns, houve trabalho na casa.
Dona Valdeci justificou o ritual dizendo que Mariana queria dar as últimas ordens sobre a
festa de domingo. E assim foi feito. Após a abertura da mesa, a encantada chegou, cantou e
dançou. Ela explicou para algumas médiuns como era para ser realizada a festa, porém não
ouvimos os detalhes porque a conversa se desenrolou na sala de consultas.
Na quinta-feira, começaram a chegar, à residência de Dona Valdeci, amigos e
médiuns que vinham auxiliar nos preparativos da festa e participar dela. Dentre os hóspedes,
destacamos a presença de Dona Iracema e seu esposo, Manoel, que vieram de Belém. O
171
destaque se deve ao fato de que os dois há muitos anos são amigos da família da dirigente e os
responsáveis por coroar Rei Sebastião. No dia 18 (sexta-feira), os trabalhos foram abertos de
novo no período da noite. Dona Valdeci anunciara antes que abriria a mesa apenas para a
“lavagem de cabeça e amassi”110 dos médiuns. Mas os trabalhos se estenderam até 1h — não
sem pequenas reclamações. A lavagem de cabeça é realizada para tirar as impurezas e
fortificar o eledá (orixá de cabeça) dos médiuns. Segundo a dirigente, esse ritual foi escolhido
para ser realizado nessa data por ser o primeiro dia do mês da lua crescente. Rituais como
esses, os batismos, as confirmações e os cruzamentos devem ser sempre realizados na lua
cheia e na lua crescente. Para Dona Valdeci, as fases da lua influenciam no crescimento
espiritual de um médium. A “lavagem de cabeça” e “amassi” foi realizada por Mariana
incorporada na dirigente. Um preparado de ervas, flores e rosas foi derramado aos poucos
sobre a cabeça dos médiuns, à medida que, um a um, batiam cabeça nos pés da encantada.
FIGURA XI - Lavagem de cabeça e Amassi
Fonte: Sariza Venâncio
O banho foi preparado por Dona Valdeci durante o dia. Ela não permitiu que
acompanhássemos o preparo do banho, dentro da tenda. Após a realização do ritual à noite,
ela pedira para que um de seus médiuns, ao retornar para casa, jogasse no rio Lontra o banho
que restara.
110
“Amassi” é um banho de ervas — água com ervas maceradas destinada à purificação dos membros do
terreiro. O termo “amassi” também é usado para designar o primeiro banho ritual de uma pessoa no terreiro e o
seu grau inicial de filiação a uma tenda ou de preparação na religião. A “lavagem de cabeça” seriam outros
banhos rituais que os médiuns teriam no decorrer da vida.
172
O sábado foi dedicado aos preparativos finais da festa. Galinhas, porcos, verduras
e outros alimentos eram preparados por uma grande quantidade de pessoas. Outras se
encarregavam de decorar a tenda, que deveria ter sua decoração marcada pela cor verde em
homenagem à Oxóssi. À meia-noite, foi soltada uma caixa de foguetes; duas caixas ficaram
para as 6h e 12h do domingo. O restante dos fogos deveria ser estourado quando Rei
Sebastião chegasse pela noite.
Era domingo 20 de janeiro, quase meio-dia e meia, quando a reza do terço
oferecida a São Sebastião teve início na tenda. Percebemos que, no “lago de Iemanjá”, um
barco feito de isopor e uma estátua maior da orixá foram colocados próximos às pequenas
Iemanjás que ali já existiam. Diversas mesas e cadeiras foram espalhadas no quintal para
acomodar as pessoas que chegavam para o almoço. Após a reza do terço e cântico dos
benditos, uma fila se formou diante do altar. Os devotos do mártir, um a um, beijavam a
estátua de São Sebastião, proferiam alguma prece e, nos pés da estátua, depositavam pequenas
quantias de dinheiro.
FIGURA XII – Reza do terço no dia 20 de janeiro de 2013.
Fonte: Sariza Venâncio
Quando todos se retiraram do salão, o dinheiro foi recolhido pela cambona, teve o
valor conferido e foi guardado. Dona Valdeci diria mais tarde que todo dinheiro colocado aos
pés do santo é reservado para a próxima festa.
173
Em seguida, temos o almoço servido à comunidade. Enquanto as pessoas se
alimentam, Dona Valdeci e mais duas médiuns realizam as últimas mudanças no salão para a
noite: trocam a toalha do altar, espalham folhas verdes de mangueira pelo chão e derramam
um banho cheiroso sobre elas. As folhas cobriram o chão de forma quase plena. A dirigente
disse que, assim como a água, as folhas atraem para si maus fluidos e, como à noite viriam
diversas pessoas, seria uma forma de purificar o ambiente.
Às 20h, em fila e vindos da residência de Dona Valdeci sob aplausos, entraram no
salão a dirigente e seus médiuns. Após a dirigente se posicionar de frente para o altar e os
médiuns ao seu lado, Dona Valdeci agradeceu a todos por estarem ali e, em especial, duas
médiuns que visitavam o salão. Cumprimentando as duas, ela pediu para que tomassem lugar
no corpo mediúnico da casa. Após cantarem o hino da Umbanda e o da tenda, a dirigente
entrou para a sala do altar, fechando as cortinas atrás de si. Diversas rezas foram proferidas e
pontos com saudações aos orixás foram entoados. Ouvimos que a voz de Dona Valdeci se
altera, indicando que esta já está em transe. Como de costume, quem abriu os trabalhos foi
José de Ribamar, que deu lugar na “coroa”111 da dirigente para Príncipe Zezinho, filho do Rei
Sebastião. Enquanto este saudou o altar, as cambonas centralizaram a poltrona onde a
dirigente recebe suas entidades na sala do altar. Após a partida do príncipe, Rei Sebastião
“arriou” em Dona Valdeci ao som de diversos fogos estourando.
O casal amigo da família Iracema e Manoel, vestidos impecavelmente de branco,
foram até o rei e o auxiliaram, colocando a coroa, limpando o suor da testa da dirigente e
arrumando em seu corpo a faixa. O rei então se pôs a cantar seus pontos que indicavam quem
ele era e de onde tinha vindo:
Tanta gente Maranhão não viu quando eu passei (2x)
Sou Rei Sebastião que de Lisboa cheguei
Sou rei, sou rei, sou rei Sebastião
Quem desencantar Lençóis
Põe abaixo o Maranhão.
E
Naquela estrada de areia
Aonde a lua clariou
Todos os caboclos pararam para ver a procissão de São Sebastião
Okê, okê caboclo
Pai de caboclo é São Sebastião.
E
Sou Rei Sebastião da coroa imperial
111
Em outras regiões pode-se encontrar “crôa”, mas não foi encontrada tal variação em Araguaína.
174
Ei, Xapanã, eu sou Rei Sebastião
Eu sou guerreiro da coroa imperial
Sou Rei Sebastião, sou guerreiro militar
Ei, Xapanã, eu sou Rei Sebastião
Eu sou guerreiro imperial.
Foi repetindo numerosas vezes esta última doutrina que Rei Sebastião atendeu a
todos os presentes que queriam receber um passe dele. Primeiramente, foram os médiuns,
depois os sócios-assistentes da casa, por fim o restante dos visitantes. Fomos até o local onde
ele, incorporado em Dona Valdeci, encontrava-se sentado e nos ajoelhamos aos seus pés.
Segurando nossa mão, ele nos cumprimentou com os três abraços e desejou sucesso no
trabalho, paz, saúde e outros votos positivos para nossa vida. Ao terminar o passe, pegamos
um punhado de pétalas de rosas que estavam em uma bandeja segurada pela cambona de pé
ao lado dele e jogamos dentro de sua coroa, repetindo o gesto que todos vinham fazendo. Ao
final dos cumprimentos, ele solicitou que fosse levado até o “lago de Iemanjá”. Sua coroa foi
trocada por outra, e, com muita dificuldade, Dona Iracema e Seu Manoel levantaram Dona
Valdeci incorporada da poltrona onde estava sentada. Ainda sustentando o corpo dela,
ajudaram na caminhada de dentro do salão até o lago. Ali, Rei Sebastião em Dona Valdeci se
ajoelhou, com muita dificuldade, e iniciou suas preces benzendo o local.
Quando já estava dentro do salão outra vez, Rei Sebastião puxou o ponto:
Ô, salve São Jorge guerreiro
Ô, salve o Rei Sebastião
Ô, salve as forças da Jurema, que nos deu a proteção
Aê, Juremê. Aê, Juremá
Tua flecha caiu serena, jurema, aqui neste congá.
Dona Valdeci explicaria depois que ele cantou esse ponto para saudar as matas da
Jurema, indicando saudação para Oxóssi, saudando ele mesmo e saudando Ogum pela
proteção. Os trabalhos foram abertos na linha das matas, e não nas águas, como de seria de
costume. A dirigente contou que foi porque a festa era para São Sebastião/Oxóssi. Embora
tenha iniciado os trabalhos em uma linha, Dona Valdeci diz que nessa festa é o único
momento em que ela trabalha com linhas cruzadas, ou seja, quando vêm entidades das águas,
das matas, ibejis, pretos velhos etc. Todas misturadas.
Antes de partir, Rei Sebastião pediu a palavra e fez um discurso longo sobre o ano
sofrido que teríamos, sobre a atenção e a ajuda que devemos dar aos pobres, aos drogados, aos
desempregados, aos doentes, às crianças sem lar, às mulheres que apanham dos maridos e aos
idosos. Pediu bênçãos para “esta mulher que está na frente desse governo” (Dilma Rousseff) e
175
que Deus a iluminasse nas suas escolhas e decisões. Agradeceu a todos pela presença e
enfatizou a beleza, a organização e o esmero que todos tiveram para fazer a festa acontecer.
Disse que iria embora, mas que partiria só de manhã.
FIGURA XIII – Foto Rei Sebastião na festa de 2013
Fonte: Sariza Venâncio
Foi após cantar algumas vezes o ponto a seguir que ele, abandonando o corpo de
Dona Valdeci, fez que esta pendesse seu tronco sobre as pernas, indicando seu estado de
“pureza”:
Adeus terreiro, adeus povo meu
Adeus terreiro, adeus povo meu
Adeus minha irmandade
Amanhã cedo vou viajar.
O ritual seguiu até às 2h, com dezenas de entidades “baixando” ainda em Dona
Valdeci, assim como nos médiuns presentes. A dirigente, dias após, relatando e fazendo
perguntas sobre a “vinda do rei”, pôs-se a chorar falando dele. Contou que era “apaixonada
176
por esse pai”, mas que ficava triste após sua passagem, pois sabia que todos tiveram
oportunidade de abraçá-lo, menos ela.
4.2.2 – Ritual de Mina de Cura Pena e Maracá
Dentre outros fatores, o fato de Dona Valdeci realizar um ritual que não foi
encontrado por nós em outras tendas foi decisivo para nossa escolha em tomar a Tenda Santa
Joana D’Arc como principal lócus para a pesquisa aqui descrita. Um ritual com características
que nos fazem lembrar aqueles descritos por autores sobre o Catimbó nordestino
(ASSUNÇÃO, 2010) e sobre a Pajelança amazônica (GALVÃO, 1976; QUINTAS, 2007),
porém com especificidades que poderiam ser interpretadas segundo readaptações e
negociações culturais.
Era 21 de março de 2012 quando a dirigente, antes de abrir os trabalhos naquela
noite, avisou para seus médiuns que “teria que abrir a mesa na Mina de Cura”, pois as
entidades dessa linha já estavam cobrando. Posteriormente, ela nos diria que não costuma
trabalhar somente na linha de Mina de Cura, por ser muito desgastante fisicamente para ela e
os médiuns. Como não tem data fixa de realização desse ritual, nos pareceu que Dona Valdeci
o realiza quando há cobrança, descontentamento e ameaças das entidades. Foi assim que
tivemos a oportunidade de presenciar, ainda que um pouco, essa Mina de Cura Pena e
Maracá. Os trabalhos se iniciaram às 20h, com um bendito católico cantado especialmente no
período da quaresma:
Ô, lá do céu vem descendo um112 anjinho
Vem iluminado com a bonita luz
Ó, vem pedindo para nós acompanhar
Os santos prantos e o sepulcro de Jesus.
O hino da Umbanda foi cantado em seguida, com um ponto pedindo “Baixai,
baixai, ó Virgem da Conceição, Maria Imaculada, para retirar as perturbações...”. A
defumação da tenda, dos médiuns e da assistência foi realizada ao som de pontos que
enfatizavam a função purificadora dos defumadores. Em uma dessas canções, já pudemos
perceber a invocação de uma das entidades da Mina de Cura: “Defuma defumador, eu quero
ver defumar, eu chamo o Moço de Cura das águas grandes do mar”.
112
O número de anjinhos na canção é aumentado a cada repetição da estrofe até atingir o número de sete.
177
Além de um ponto específico para o Rei Salomão pedindo sabedoria para a
abertura dos trabalhos, ponto este em que foram convocados orixás e diversas entidades como
Príncipe Légua, Príncipe Ariolino, Príncipe José Falcão, ibejis, pretos velhos etc., outros
pontos foram cantados pedindo aos orixás Oxalá, Ogum, Xangô e Iemanjá proteção e força
para abrir a mesa. Na sala do altar, com as cortinas fechadas, estava Dona Valdeci. Os
médiuns, num total de dez, estavam de pé em fila dupla de frente à cortina quando ouvimos lá
dentro o som do maracá acompanhando uma canção. Pudemos perceber, pela doutrina
cantada por Dona Valdeci, que José Tupinambá chegou. O fato de ele abrir os trabalhos, isto
é, ser a primeira entidade a chegar ao salão, não é comum nos rituais semanais; esse papel
cabe à entidade das águas José de Ribamar. Assim, compreendemos que a abertura dos
trabalhos da Mina de Cura difere daqueles em que Dona Valdeci chama de Umbanda ou Roça
de Jurema.
As cortinas foram abertas pela cambona, e a entidade cantou um ponto pedindo
para São Jorge abrir “as portas do mar para deixar passar as correntes do povo do mar”. José
Tupinambá em Dona Valdeci levava, em sua mão direita, um pequeno maracá envolto por
penas escuras. O maracá era sacudido em ritmo acelerado, passando diversas vezes por cima
da cabeça e pelas costas da dirigente. Dona Valdeci, explicando os gestos da entidade, contou
que é para retirar suas preocupações e aliviar possíveis dores que esteja sentindo. Tupinambá
anunciou cantando os motivos de sua presença naquela noite: “Eu sou cavaleiro da estrada e o
trabalho eu vim abrir/Eu vim trazer Mina de Cura para todos bem servir”. Após cantar pontos
fazendo referência ao fato de ser “o grande rei da maresia”, essa entidade foi embora, dando
início à passagem de outras, como Mestre Costeiro da América do Sul, Mestre Ricardinho,
Caboclo Belém e Mariana. Sabemos que na Mina de Cura é comum a presença de encantados
em animais (botos, cobras, peixes etc.), mas nessa noite nenhum deles se fez presente.
Durante a passagem, Dona Valdeci estava sentada e assim permaneceu até a
chegada da encantada turca (recebida como filha do Rei Sebastião). Esta pediu para que uma
das médiuns se deitasse no chão; uma vez deitada, ela foi coberta com uma faixa113 branca
dos pés à cabeça e uma faixa verde na horizontal do seu corpo. A entidade na dirigente
balançava o maracá sobre a médium realizando diversos movimentos, enquanto os outros
médiuns estendiam suas mãos sobre o corpo no chão. Mariana cantou um ponto pedindo para
que as correntes da médium a ajudassem e mandassem os problemas para longe. Nesse ponto,
113
A faixa utilizada durante os rituais pelos componentes da casa normalmente é usada sendo passada pelo
pescoço e deixando cair suas pontas uma em cada lado do corpo. A faixa também recebe o nome de bandeira ou
espada.
178
os problemas foram comparados com serpentes, que, como na tradição cristã, são perigosas e
enganadoras. Todos começaram a dançar em círculo e de mãos dadas em torno da médium
ainda deitada. Quando puxaram pontos saudando Ogum guerreiro, percebemos que a mulher
deitada entra em transe e começa a cantar pontos sobre o mesmo orixá. Tempos mais tarde,
ficaríamos sabendo que Ogum Beira Mar é a entidade ponta esquerda dessa médium que,
naquele dia, estava precisando de cura não só física, mas também espiritual.
Mariana, após deixar o maracá sobre o altar, entrou para a sala de consultas e
deixou o salão, ordenando que “os caboclos que estiverem em terra pode[riam] dar seus
pontos”. Assim, seguiu-se uma variedade de pontos entoados por diversos médiuns
incorporados. Ali, fizeram-se presentes Jarina, Princesa Flora, Mestre Badé, Joana Gunça,
Índia Jacira, Manuel Guerreiro e outras entidades das e/ou nas águas. Com o término das
consultas, Mariana retornou ao salão para se despedir. “Pura” de novo, Dona Valdeci voltou a
tocar o maracá. Em seguida reiniciou-se a passagem de diversas entidades na dirigente como
Corre Beirada, Pedra Lavrada, Jatapequara, Menino Ubiraci, Rei Tapinaré etc. De forma
alternada, os médiuns recebiam também suas entidades. Percebemos a mudança da linha das
águas para as matas (Jurema) com a chegada do Rei Tapinaré, pois ele vinha carregando seu
“arco e flecha na ponta do pé”.
Imaginávamos que estaria encerrada a Mina de Cura com a alteração das linhas,
uma vez que os cavaleiros curadores são das “profundezas das águas”. Mas Dona Valdeci nos
contaria mais tarde que os cavaleiros podem vir a qualquer momento se pressentirem que uma
cura precisa ser realizada. Assim, entendemos por que Adociaba “do fundo do mar”, sendo da
Mina de Cura, “arriou” na dirigente e pegou o maracá entre uma passagem e outra de
caboclos das matas em sua coroa. Para finalizar os trabalhos naquela noite, chegou em Dona
Valdeci Dom João Soeira: entidade responsável por fechar os trabalhos na tenda. Porém, antes
que isso acontecesse, a corrente de Mina — dos mineiros — foi chamada por essa entidade,
que canta ser Rei de Mina. Os cânticos finais do dia 21 de março, com o relógio marcando
alguns minutos após a meia-noite, indicaram a despedida de Dom João Soeira, assim como o
agradecimento ao “pai Oxalá por ter cumprido” a missão e ao Rei Salomão pela sabedoria de
realizá-la. Rezas diversas, como Pai Nosso, Ave Maria e Prece de Cáritas foram proferidas
antes que a entidade partisse, mas não sem antes deixar um recado para Dona Valdeci com os
médiuns, que deveriam informá-la que, logo pela manhã seguinte, ela deveria “fechar a
corrente de Mina de Cura”, significando, segundo a dirigente, “mandar as entidades para o
lugar delas novamente”.
179
4.2.3 – Ritual da Roça de Jurema
Dona Valdeci nos contara que existem três formas de se iniciar um trabalho: na
Mina de Cura — como vimos —, na Umbanda e na Roça de Jurema. Com exceção do ritual
de Mina de Cura Pena e Maracá, os outros dois rituais são muito semelhantes; as variações
ocorrem em sua abertura e seu encerramento. As diferenças correspondem mais aos pontos
cantados do que a qualquer outra ação ritual realizada. Assim, optamos por descrever um
ritual de Roça de Jurema; em momentos em que este se difere daquele que seria de Umbanda
apontaremos as especificidades de cada um. De início, a diferença entre os rituais é marcada,
segundo Dona Valdeci, pela escolha que vai abrir a mesa num dia de trabalho; segundo a
dirigente, quando ela percebe que os médiuns e ela estão com problemas espirituais e
familiares — assim como se, na hora do ritual, a casa estiver muito cheia de gente na
assistência —, ela decide abrir a mesa na Umbanda. Isso significa que na abertura é cantado
um ponto específico para Rei Salomão que invoca todos os orixás e principais guias da tenda.
Por motivos de segurança espiritual, a dirigente nos pediu para não divulgar essa “doutrina”.
Em geral, o ritual é marcado pela grande presença de entidades especializadas em vencer
demandas e tem um caráter mais sério: há poucos pontos em que o ritmo permite às entidades
dançarem com descontração.
Quando Dona Valdeci percebe que todos os seus médiuns estão sem maiores
preocupações espirituais ou familiares e que, no início dos trabalhos, há poucas pessoas na
assistência, ela escolhe abrir a mesa na Roça de Jurema. Não é cantado o ponto para Rei
Salomão; em seu lugar é entoada uma doutrina para Santo Antônio sincretizado na casa com
Xangô Abomin. Esse ponto de abertura invoca apenas alguns orixás para o trabalho. O ritmo
alegre das doutrinas contribui para a leveza e descontração do ritual. (Os detalhes sobre essa
abertura serão descritos a seguir.) Ainda que a frequência contínua dos médiuns da Tenda
Santa Joana D’Arc nos trabalhos seja exigência da casa, muitas vezes o que notamos é que
problemas pessoais acabam impedindo a vinda semanal de alguns deles, seja por motivos de
saúde ou atritos religiosos dos médiuns com seus parentes. Foi por razões como essas que, no
último ritual assistido por nós, em 2 de fevereiro de 2013, estavam presentes no salão somente
nove dos médiuns.
Era manhã de sábado quando recebemos ligação de Dona Valdeci avisando que
trabalharia naquela noite para Iemanjá. Foi a primeira vez que a dirigente nos ligara para
informar de algum ritual que aconteceria na casa. Acreditamos que esse ato possa indicar uma
compreensão maior da dimensão desta pesquisa pela dirigente. Os trabalhos se iniciaram às
180
21h (horário de Brasília e de verão). Como acontece costumeiramente, os médiuns se
posicionaram em fila na porta do altar; a fila é sempre ordenada de forma que se têm os mais
velhos em desenvolvimento próximos do altar, seguidos pelos mais jovens. Dona Valdeci
estava dentro da sala do altar com as cortinas cerradas. Ouvimos, vindo lá de dentro, o som de
um sino tocando, indicando aos médiuns que o trabalho iria começar. A cambona Vita apagou
as luzes fluorescentes tubulares brancas e acendeu as lâmpadas fluorescentes compactas nas
cores amarelo, verde e azul. Diversas rezas foram recitadas, sempre sendo iniciadas pela
dirigente e completadas pelos médiuns. Um bendito católico para Nossa Senhora das
Candeias foi cantado, seguido pelo hino da Umbanda; no trecho do hino que diz “Levando ao
mundo inteiro a Bandeira de Oxalá”, todos os médiuns erguem, com a mão direita, a ponta da
faixa que está pendurada no pescoço. Um dos sinônimos para faixa são a bandeira e a espada
— esta é enfatizada através do gesto de elevação do braço durante o hino.
À Virgem da Conceição foi pedido que “baixasse” no terreiro, assim como foi
pedido a “Maria Imaculada para retirar a perturbação”. Embora o verbo “baixar” seja
utilizado no ponto cantado, isso não significa que a Virgem vai incorporar em alguém; é uma
maneira de invocação dos santos para que mandem seus representantes “baixarem”. Diversos
pontos de defumação foram entoados em coro, enquanto a cambona defumava o terreiro, os
médiuns e a assistência. Saravá para diversos orixás foi pedido por Dona Valdeci ainda dentro
da sala do altar. Um ponto convocando Deus e Nossa Senhora foi cantado, precedendo a
doutrina para Santo Antônio representativa de que os trabalhos serão abertos na Roça de
Jurema:
Eu abro meus trabalhos com Deus e Nossa Senhora
Eu abro meus trabalhos é com a Virgem da Vitória
Eu abro meus trabalhos, eu vou pedir a proteção
A Deus, Pai Todo-poderoso, e à Virgem da Conceição
Eu abro meus trabalhos, eu vou pedir a proteção
A Deus, Pai Todo-poderoso e à Virgem de Nazaré.
E
Santo Antônio de Ouro Fino (2x)
Abaixa a bandeira, vamos trabalhar
Meu Santo Antônio, ajuda eu
Ô, meu Santo Antônio, ajuda eu.
Após esses pontos que enfatizavam a abertura da mesa, as falanges da linha de
Ogum foram chamadas com pontos que indicavam as qualidades guerreiras desse orixá. Em
seguida, uma doutrina para Xangô e outra para Iansã foram cantadas. Foi justamente quando
se repetia o ponto de Iansã que ouvimos Dona Valdeci bater as mãos e a cabeça no chão,
181
indicando, assim, que José Ribamar “chegara”. O som ouvido indicava que a entidade que
incorporara na dirigente estava saudando o altar. Foi somente com a “chegada” da entidade
que a cambona abriu as cortinas da sala do altar, nos permitindo ver Dona Valdeci “atuada”.
José de Ribamar, em cima dela, cantou:
Com a minha chave de ouro na mão
Eu abro a mesa e o salão
Com minha vida ninguém pode
Eu sou um homem de opinião.
Após o cântico, ele repetiu três vezes “Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”;
em resposta, o corpo mediúnico completava: “Para sempre seja louvado”. Pontos enfatizando
a abertura dos trabalhos, assim como aqueles chamando e ligando as correntes para “trabalhar
pra ver a força que a maresia dá”, eram cantados enquanto os médiuns davam as mãos. José
de Ribamar, através do ponto abaixo, indicou quem o chamara:
Minha Santa Bárbara mandou me chamar
Mas o que é, o que é, o que é
Liga as correntes, minha Santa Bárbara
Liga as correntes na mesa de Nazaré.
Foi Santa Bárbara, a patrona dos terreiros, que chamou o guia para trabalhar e foi
a ela que ele pediu ajuda para “ligar as correntes”, ou seja, para que o céu e a terra se unissem
através da incorporação das entidades nos médiuns. Embora fosse a Tenda Santa Joana
D’Arc, em Araguaína, o lugar de onde veio o pedido, era “na mesa de Nazaré”, Nazaré do
Bruno, no Maranhão, que primeiramente a mesa deveria ser aberta, indicando de onde viriam
as forças com as quais iam trabalhar naquela noite. Durante a doutrina, José de Ribamar
“montado” em Dona Valdeci batia as mãos e abria os braços, como se estivesse jogando
energia nos médiuns, os quais ainda estavam na formação de fila inicial. Eles começaram a se
balançar de forma lenta para frente e para trás. Um a um, foram recebendo uma entidade ou,
ao menos, sendo focalizado114 por ela. Aqueles que ainda estão em desenvolvimento têm
dificuldade de concentração, e José de Ribamar ajudou, colocando a mão sobre a cabeça
deles.
Após saudar os pontos de firmeza e o altar da casa, o guia deu boa-noite aos
presentes e cantou dois pontos falando do seu nome e de ser morador de um palácio em alto
114
Focalização, irradiação ou vibração são palavras utilizadas para descrever quando a entidade se aproxima do
médium, fazendo que este sinta sua presença, porém sem perder consciência. São três os pontos de focalização
de um guia no ser humano: cabeça, peito e costas.
182
mar. Assim como todas as entidades que desceram naquela noite, José de Ribamar se
despediu dizendo “Até o próximo trabalho, se Deus assim nos permitir. Viva a Deus. Viva a
quem tem fé. Viva a Nossa Senhora das Candeias”. Os médiuns, em coro, respondiam “Viva”
a cada frase do guia.
Como é característico de Mariana, quando chegou, gritou “Uôôi!”. Nesse
momento, a cambona foi até a sala do altar e pegou um torço vermelho, que foi amarrado na
cabeça de Mariana em Dona Valdeci. Uma faixa de mesma cor foi colocada sobre seus
ombros, enquanto ela começava a saudar o salão, cantando:
Ô, Deus, nos salve a casa santa
Onde Deus fez sua morada
Aonde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada.
E,
Ê, boa-noite, gente
É com Deus e Maria
Mas eu cheguei agora
Foi com Deus e Maria.
À medida que iam repetindo este último ponto, os médiuns, incorporados ou não,
iam, um a um, bater cabeça115 aos pés de Mariana, saudando a encantada. Após a saudação de
todos, ela foi para a gira e começou a dançar, cantando um de seus pontos:
O meu anel de ouro que meu pai me deu (2x)
Ô, quem perdeu, perdeu amor
Quem achou ele foi eu.
Mariana, ainda puxando as doutrinas, cantou uma sobre a oferenda de rosas da
Cabocla Jurema para Iemanjá:
A praia estava tão linda, brilhava a luz do luar
Quando a Cabocla Jurema, levando rosa pra saudar mãe Iemanjá
A cor da rosa pelas águas se espalhou, apareceu a rainha de Nanã
Ô, recolhendo as flores da Jurema, jogou na areia uma estrela-do-mar.
115
Quando entidades de maior grau hierárquico no panteão da tenda incorporam na dirigente (por exemplo,
Mariana e Rei Sebastião), é comum o médium, incorporado ou não, se deitar no chão tendo sua cabeça próxima
aos pés da entidade e batê-la três vezes. Isso mostra sinal de respeito, submissão e saudação ao guia.
183
Aos outros caboclos que estavam no salão “arriados” nos médiuns, foi dada a
oportunidade de se expressarem. Os que já estavam presentes cantaram seus pontos,
mostrando que eram todos da linha das águas. Mariana convidou a todos para ir até o pequeno
lago saudar Iemanjá. Tanto médiuns e encantados como a assistência foram para fora do salão
jogar pétalas de rosas colhidas pela manhã no local. Mesmo não tendo mar próximo, a
dirigente conseguiu negociar as oferendas para o orixá das águas salgadas. Enquanto todos
realizavam o ritual, o ponto a seguir era cantado, acompanhado por palmas:
Eu fui na beira da praia pra ver o balanço do mar
Eu vi um retrato na areia me lembrei da sereia e comecei a cantar
Ô, Janaína, vem ver, ô, Janaína, vem cá
Receber tuas flores que eu vim ofertar.
Quando retornaram para dentro do salão, Mariana cantou um ponto para
Verequete dizendo que ele é rei do mar. Ela diria, mais tarde, que esse é São Benedito e que
“não baixa em ninguém”. Era apenas um ponto de saudação para esse orixá. Após o ponto, ela
entrou para a sala de consultas, onde começou a receber as pessoas que estavam na assistência
à espera dela. Enquanto consultava, os médiuns começaram a dar passagem a suas entidades,
todas da linha das águas. Assim, veio Mãe d’Água, Piaba Dourada, Lavandeira, João de Una,
Princesa Flora, Joana Gunça, Rei Barão do Mar, Rei Evangelista, Nedino, Marquês de
Pombal, Canoeiro, Princesa do Braço da Cruz, dentre outras.
O transe de possessão, ou seja, a incorporação, normalmente ocorre de forma
suave, tanto em Dona Valdeci como nos médiuns. A dirigente “recebe” suas entidades quando
está sentada na poltrona que fica dentro da sala do altar. Só é perceptível pelo fato de que,
quando “chegam”, seu corpo sofre uma única tremura, e um gemido gutural pode ser ouvido.
Os médiuns, em geral, recebem suas entidades enquanto caminham em círculos com os
companheiros. Sons e movimentos corporais variam de médium para médium, devido ao seu
grau de desenvolvimento. Mas uma regra serve para todos da casa: só há giros em torno do
eixo corporal quando se está incorporado. Quem dança, gira e pula são as entidades. Desse
modo, teremos reações distintas quando de sua chegada: umas pulam e brincam, como os
ibejis; outras dançam, como muitos caboclos das matas; outras simplesmente se sentam e
começam a cantar, como os pretos velhos, Légua Boji Buá e os cavaleiros da Mina de Cura.
Do mesmo modo que ocorre a incorporação é também a “subida’” das entidades.
Em alguns casos, elas se despedem do público, batem as mãos e deixam o médium “puro”
outra vez. Em casos mais extremos, quando uma entidade não quer ir embora e está
184
prejudicando fisicamente seu aparelho, a dirigente ou um médium mais velho, incorporados
ou não, assopram no alto da cabeça e nos ouvidos da pessoa. Foi da forma suave como chegou
que Mariana partiu na noite de trabalhos para Iemanjá.
Embora os trabalhos não tenham sido iniciados na Mina de Cura, uma boa
quantidade de “cavaleiros do fundo” veio em Dona Valdeci naquela noite. Ela diria depois
que eles “vêm” por sentir que alguém precisa ser curado, independentemente de a mesa não
ter sido aberta para eles. Assim, vieram Zé da Luz, sendo chamado para “alumiar lá no mar,
para dar força, para desenvolver e para curar”; Adociaba filha de Iabá; e Rei Tapinaré da
Jurema — ele chegou ao salão cantando e anunciando a chegada dos caboclos de aldeia:
O grande estrondo deu na aldeia
A aldeia balanceou
Tapinaré por entre os morros meus irmãos
É na aldeia, é na aldeia.
Observa-se que, com a mudança das linhas, o ritual foi tomado por outro tempo
rítmico — mais animado. É interessante pontuar que as canções proferidas, por ser mais
alegres, contribuíam para sustentar o trabalho e o ânimo dos médiuns — como já eram por
volta de 23h, já se encontravam cansados. Mas a alegria dos pontos fez que muitos dos que
estavam sentados descansando voltassem para a gira. Ressaltamos que boa parte dos médiuns
é mais velha — a maioria tem idade acima dos 55 anos; porém, isso poucas vezes influencia
no desenrolar do ritual. Quando “tomados” pelos guias, se não forem estes pesados116 ou com
idade avançada, como é o caso dos pretos velhos, os médiuns parecem adquirir o vigor físico
dos jovens e crianças que se incorporam neles. Alguns pontos de chamada de caboclos foram
cantados para ajudar os médiuns a receber suas entidades:
Vem da Jurema, ê, vem da Jurema (2x)
Vem da Jurema, Juremê
Vem da Jurema, Juremá
E
Caboclim da mata, o que é que você quer (2x)
Eu quero, quero é folha verde
Eu quero folha de guiné.
116
O povo de santo descreve algumas entidades como sendo pesadas. Diz que isso é resultado do grau de
evolução espiritual de cada entidade. Assim, quando uma dessas entidades “arria” em um médium, poucas vezes
ele consegue permanecer de pé. Aqueles que tentam levantar uma pessoa incorporada com essas entidades do
chão podem perceber o peso corporal que o indivíduo adquire devido à presença do guia. Exemplos dessas
entidades na Tenda Joana D’Arc são Pai Légua, Rei Sebastião, Caboclo Jandiro, a maioria dos pretos velhos etc.
185
Com a ajuda dos pontos de chamada, diversos caboclos “chegaram” para
trabalhar. Nos médiuns, vieram Caboclo Roxo da Pena Cinzenta, Sultão das Matas, Seu Pena
Branca, Rei Leão, Caipora etc. Após Tapinaré ir embora, alguns outros vieram em Dona
Valdeci: Caboclo Seu Pena Verde, Índia Flecheira, Jatapequara, Caboclo Seu Sete Flechas e
João da Mata. Com a chegada deste último, que geralmente recebe um chapéu de palha, os
médiuns abandonaram a gira e foram para perto dele: uns sentados no chão, outros em pé;
pararam para pedir conselhos e ouvir os ensinamentos que o guia tinha para dar. Muitos
levaram seus problemas familiares e pessoais para João da Mata, pedindo que passasse pela
casa deles para resolver os problemas antes de ir embora; alguns trouxeram experiências com
vidência de pessoas mortas, buscando conselho para o que deveriam fazer para que essas
almas não lhes perturbassem mais. A entidade em Dona Valdeci disse que todos deveriam,
nas segundas-feiras, acender velas para as almas benditas e pedir a que Deus carregue essas
almas para “os campos de descanso e de doutrinação”. Além dos conselhos, João da Mata
aproveitou o momento para nomear Dona Santa, uma sócia da casa, como cambona, e a
médium Irene como zeladora dos objetos e das roupas de Mariazinha, principal entidade
infantil da dirigente da tenda.
Com a partida de João da Mata, veio em Dona Valdeci Dom João Soeira. Sua
chegada nos indicou que o ritual se aproxima do fim, já que esta é a entidade que encerra os
trabalhos. Antes de iniciarem os pontos de despedida, o guia chamou a última corrente a ser
trabalhar naquela noite: os mineiros.
Sendo Dom João rei de Mina, como diz um de seus pontos, ele chamou as outras
entidades. Veio nos médiuns Cruzeiro de Mina, Antônio Soeira, Mineiro Curador, Zé Mineiro
e Mineirinho. Já passava da meia-noite quando Dom João Soeira puxou as doutrinas a seguir
indicando que os trabalhos seriam encerrados:
Dom João Soeira, eu sou rei do mar (2x)
Pegue sua canoa mano, vamos atravessar (2x).
E
Ô, Santa Bárbara, já deu hora
No relógio de Mariana titiricou
O relógio de Mariana.
E
Eu fecho meus trabalhos com Deus e Nossa Senhora
Eu fecho meus trabalhos é com a Virgem da Vitória
186
Eu fecho meus trabalhos eu vou pedir a proteção
A Deus, Pai Todo-poderoso e a Virgem da Conceição
Eu fecho meus trabalhos, eu vou pedir a proteção
A Deus, Pai Todo-poderoso, e à Virgem de Nazaré.
E
Santo Antônio de Ouro Fino (2x)
Suspende a bandeira, vamos encerrar
Meu Santo Antônio ajuda eu
Ó, meu Santo Antônio, ajuda eu.
Percebemos que esses dois pontos cantados eram os mesmos do início do ritual.
Mas, em vez de “fecho meus trabalhos” ou “vamos encerrar”, foram cantados “abro meus
trabalhos” e “vamos trabalhar”. A mesma repetição, apenas com troca verbal, ocorre quando o
trabalho é aberto na Umbanda. Se, nesse caso, é cantado no início “vós me abre essa mesa”,
no final dos trabalhos canta-se “vós me fecha essa mesa”.
Os médiuns, por fim, se posicionaram em fila dupla, de novo de frente para o
altar. Uma das médiuns, sentada no chão, apresentou sinais de que estava sendo irradiada por
alguma entidade. A moça começou a reclamar que não iria receber essa entidade. Dom João
Soeira falou para que ela deixasse logo passar o guia. Ela respondeu que a entidade não era
dela e que esta fosse procurar seu “cavalo” que não estava vindo nos trabalhos. Um clima
tenso tomou conta do local até que o guia que estava em Dona Valdeci disse que entidade
“não põe ferro/cabresto em filho de santo nem é exclusivo de ninguém”. Ainda explicou que,
se a médium que recebe não estava indo, era problema dela, mas todos têm a obrigação de
deixar as entidades trabalharem. Assim, a moça, resignada, aceitou sua missão: abaixando a
cabeça, ela começou a se concentrar, e a entidade chegou cantando:
Mamãe chorou
Pra que mandou me chamar
Ô, abalou a baleia
E a sereia do mar.
Com a “subida” da entidade, a médium ficou desmaiada no chão. Tentaram
acordá-la, mas sem resultado. Dom João Soeira explicou que isso era castigo da entidade que
viera, porque a médium estava suspendendo-a, sem deixar que trabalhasse, e ninguém tinha o
direito de fazer isso. Uma das médiuns mais velhas, visivelmente cansada e sem paciência,
assoprou nos ouvidos da médium desacordada, fazendo com que essa recobrasse o sentido.
Dom João Soeira, então, iniciou uma sucessão de rezas como o Credo, o Salve Rainha, o Pai
187
Nosso, a Ave Maria, a Prece de Cáritas etc. Após as rezas proferidas, o guia se despediu de
todos, desejando estar ali no próximo trabalho, mas somente “se Deus assim o permitir”.
Dona Valdeci, já “pura”, se ajoelhou no altar, fazendo suas preces particulares,
enquanto os médiuns foram se trocar, e a assistência — visivelmente reduzida, se comparada
com a do início dos trabalhos — ia embora. É comum ver que a maioria da assistência após se
consultar com Mariana deixa o local. Nesse sábado, em especial, somente nós ficamos até o
final do ritual.
4.3 – Adaptações e ressignificações
A Umbanda praticada no terreiro de Dona Valdeci está constituída por múltiplas
referências. Além das tradições africanas, espíritas e católicas, vemos, devido ao contexto
social e histórico do norte do Tocantins, a presença de elementos que podem ser provenientes
do Catimbó, do Tambor de Mina e de religiões de influências ameríndias do Maranhão e do
Pará. Acreditamos, por exemplo, que o termo “cavaleiros” seja indicativo de uma
reelaboração linguística, devido à tradição oral da religião, do termo “companheiros do
fundo” analisado por Eduardo Galvão (1976) no seu estudo sobre a Pajelança amazônica. O
autor se refere às entidades que habitam o fundo dos rios e igarapés ou dos “poções”, vivendo
em um “reino encantado”. Há semelhanças com a descrição dos cavaleiros da Mina de Cura
de Dona Valdeci quando levamos em consideração a função curadora dessas entidades, assim
como os animais presentes nesses trabalhos. Algumas entidades pertencem aos rios, como o
Araguaia; mas a maioria dos “cavaleiros” é de águas salgadas.
Gianno Gonçalves Quintas (2007) relata uma gama de termos usados pelos
nativos do Pará para se referirem a Pajelança amazônica: “cura”, “linha de cura”, “pena e
maracá”, “linha de pena e maracá”, “sessão de mesa”, “mesa de cura”, “banca de cura”,
“mesinha de cura”, “banquinha de cura”, “linha de sacaca” e “brinquedo de cura”
(QUINTAS, 2007, p.75 e 76). Algumas semelhanças podem ser percebidas com aquele ritual
específico da Tenda Santa Joana D’Arc. Não somente a nomenclatura, Mina de Cura Pena e
Maracá, poderia ser indicativo dessas semelhanças, mas também a fumaça do cigarro tauari
como método de cura. Mesmo com a proximidade dos rituais descritos por Galvão (1976) no
universo religioso de uma população cabocla do Pará, a utilização da fumaça com as mesmas
finalidades e de uso bastante parecido (tragado pela ponta da brasa) encontra semelhança com
alguns rituais descritos por Assunção (2010) no Catimbó do Nordeste. Embora haja
188
semelhanças com estes últimos rituais terapêuticos, quando perguntada sobre a possível
origem da Mina de Cura, Dona Valdeci foi enfática: “Essa Mina de Cura é mais é do Pará”.
A exigência restritiva aos trabalhos com exus na Tenda Santa Joana D’Arc
encontra similaridade não só nas interpretações cristãs provenientes do catolicismo, mas
também da Pajelança indígena. No Tambor de Mina mais apegado aos modelos da Casa das
Minas e da Casa de Nagô, na capital maranhense, também não existem — segundo Sérgio
Ferretti (2009) e Mundicarmo Ferretti (2001) — cultos organizados para Legba/Exu, pois este
é compreendido pelos membros dessa religião como equivalente do diabo/demônio cristão.
Outra proximidade que poderíamos perceber entre a Umbanda da Tenda Santa Joana D’Arc
com a Mina maranhense ou paraense é a presença no panteão de entidades “encantadas”. Com
base nas migrações pontuadas por nós no primeiro capítulo, acreditamos que a partir da
década de 1970 a categoria “encantados” acaba se agregando ao panteão da Umbanda na
região norte tocantinense.
Algumas entidades da Tenda Santa Joana D’Arc ainda são denominadas como
mestres, a exemplo do que ocorre no Catimbó (ASSUNÇÃO, 2010). Ainda dentro do campo
afro-religioso nordestino, podemos ver proximidades com relação a Jurema. Se no Catimbó e
nas casas de Umbanda ajuremadas a Jurema é tida como árvore sagrada, com que fazem a
bebida Jurema para ser utilizada nos rituais; na tenda estudada a Jurema entra como sinônimo
das matas e entra como nome da principal cabocla da linha. Mas a bebida, de certa forma, não
foi esquecida, ainda que seja em pontos cantados como o que apresentamos.
A cada análise, o leque de possibilidades para compreender a hibridização dos
cultos na Tenda Santa Joana D’Arc vai se ampliando, talvez não espacialmente — se
pensarmos nos limites fronteiriços do Tocantins —, mas temporalmente — quando
observamos as diversas práticas religiosas de origem ameríndia ou afro-brasileira analisadas
por pesquisadores no último século. Todas essas semelhanças, proximidades e similitudes
podem ser compreendidas à luz do dinamismo da cultura, que tem os sujeitos históricos como
protagonistas negociando, readaptando e ressignificando os processos culturais.
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando iniciamos uma pesquisa, não se sabe ao certo como se dará sua
construção nem sua finalização. Diversas perguntas nos orientaram no processo: onde
estavam os terreiros em Araguaína? De onde eram seus dirigentes e quais motivos os levaram
a migrar para a região? Como eram percebidas as religiões afro-brasileiras pelas religiões
cristãs e pela sociedade local? Quais estratégias foram sendo adotadas pelos dirigentes dos
terreiros para permanecer no campo religioso da cidade? O que foi excluído, agregado,
ressignificado, readaptado e misturado não somente nos rituais, mas também nas narrativas
míticas contadas pelos dirigentes dos terreiros?
O fato de termos que escolher apenas uma casa entre várias para centrar a
pesquisa acabou direcionando nosso foco para algumas dessas questões, e não para outras. A
Tenda Santa Joana D’Arc, na figura de sua presidente de mesa, Valdeci Pereira Reis,
contribuiu para entendermos a configuração da Umbanda em Araguaína. Mediante
entrevistas, documentos e observações participantes, foi possível perceber como os processos
migratórios e o contato com pessoas de diversos lugares possibilitou, por exemplo, a
hibridização entre elementos da Umbanda, do Tambor de Mina, da Pajelança, do Catimbó no
norte tocantinense.
A cidade de Araguaína foi compreendida neste trabalho como “cidade fronteira”,
não só por causa de sua geografia, mas também por ser um espaço de comunicação e
interação sociocultural. Contudo, não devemos crer que essas interações se deram — e ainda
se dão — de forma harmônica e pacífica entre as diferentes referências culturais. O conflito e
o diálogo são faces da mesma moeda nessa disputa pelo poder simbólico: o poder de quem
terá o direito de classificar, hierarquizar e narrar a história da Umbanda na cidade. Em um
país em que as religiões hegemônicas são de matriz cristã, as religiões afro-brasileiras —
neste caso, a Umbanda — parecem se posicionar à margem na fronteira das disputas
econômicas e políticas nas regiões em que se encontram. Uma “religião-fronteira” que, ao
agregar a seus rituais e mitos outras práticas e mitologias religiosas de diversas matrizes,
lugares e referências, permite não apenas o diálogo entre elas, mas também as disputas entre
diversas referências religiosas.
No campo afro-religioso de Araguaína, parece-nos que a Umbanda adquiriu
hegemonia e legitimidade sobre aquelas outras religiões de mesma matriz. A
institucionalização da Umbanda pelas federações parece contribuir para que esta se posicione
de forma privilegiada ante as outras. Assim, compreendemos que as outras religiões de matriz
190
africana ou ameríndias — Catimbó, Terecô, Tambor de Mina, Pajelança e Candomblé —
perdem em relevância para a Umbanda, segundo boa parte dos dirigentes da cidade. Afinal, a
Umbanda teria sido a “primeira religião do mundo”. Assim, esta se comporta como
hegemônica dentro do campo afro-religioso da cidade, no qual elementos das outras religiões
são agregados e negociados. Muitas vezes, são também “purificados”, como é o caso de
entidades originalmente conhecidas como pertencentes à linha de exus (Zé Pilintra), que
perdem algumas das características que as ligam a essa linha e adquirem outras que as
agregariam às linhas dos espíritos de luz.
Se boa parte das pesquisas realizadas sobre a Umbanda ainda a vê só como síntese
do Kardecismo, Catolicismo e de tradições religiosas africanas, o trabalho que apresentamos
procurou mostrar que diversas religiões de matriz afro e também de matriz indígena
contribuíram para o contínuo exercício de bricolagem da Umbanda no Tocantins. A
localização geográfica de Araguaína, assim como sua história marcada por diversos processos
migratórios, contribuiu para desenhar a Umbanda que observamos na cidade. Migrantes
paraenses, maranhenses e piauienses trouxeram consigo mais do que o desejo de melhores
empregos; trouxeram um emaranhado de experiências culturais regionais, seja no campo da
alimentação, dos costumes ou da religião. Assim foi que a Pajelança, o Tambor de Mina, o
Terecô e a tradição juremeira nordestina parecem ter chegado aos terreiros de Umbanda da
região. Longe de serem desprezados pelos umbandistas, elementos dessas religiões foram
agregados, negociados e ressignificados.
A trajetória de vida de Dona Valdeci está marcada por esses processos
migratórios. As diversas mudanças de cidade, suas viagens e os contatos com outros
dirigentes possibilitaram a formação da Umbanda praticada por ela. Algumas imprecisões nas
datas ou em eventos foram notadas por nós e questionadas; mas esses “erros”, antes de marcar
uma falta de veracidade ou importância dos fatos, mostram que a passagem do tempo é
compreendida à luz de outros critérios que não o da vida pública. Assim, alguns eventos não
foram narrados pelo ano em que aconteceram, mas por ter acontecido antes ou depois de dado
acontecimento. As diversas mudanças de cidade durante sua vida, conhecer José Odenir,
construir suas tendas, ir a Nazaré, MA, a doença do esposo e outros acontecimentos são
experiências que marcaram temporalmente a narrativa de Dona Valdeci sobre sua vida. “O
que importa” — diria Pollak, (1992) — “é saber qual é a ligação real disso com a construção
da personagem” (p.203). Nesse caso, o autor percebe o estreito elo entre memória e
“sentimento de identidade”, pois ao narrar seu passado o sujeito constrói uma imagem de si e
a apresenta aos outros e a si próprio, da maneira como quer ser percebido.
191
A construção não somente de si mesma, mas também dos rituais indica os modos
como a dirigente gostaria de ser vista. Uma mistura de elementos de diversas religiões
compõe o sistema umbandista da Tenda Santa Joana D’Arc. No ritual de Mina de Cura Pena e
Maracá, por exemplo, é visível a semelhança com a Pajelança amazônica. O próprio termo
“pena e maracá”, assim como “linha de cura”, é usado no Pará para denominar a Pajelança.
Outra semelhança se encontra quando comparamos as características descritas por Eduardo
Galvão (1976) dos companheiros do fundo. Essas entidades habitariam o fundo dos rios e dos
igarapés ou dos “poções”, vivendo em um “reino encantado”. Acreditamos que o termo
cavaleiros do fundo utilizado por Dona Valdeci para se referir às entidades da Mina de Cura
possa ser uma releitura linguística dos companheiros. Há, contudo, uma mudança no que diz
respeito à procedência dessas entidades. Para Galvão (1976), essas entidades são de águas
doces, enquanto na Tenda Santa Joana D’Arc podemos encontrar cavaleiros que pertencem
tanto a estas como às águas salgadas.
Ainda nas semelhanças com a Pajelança, temos o uso do maracá e o fato de que,
até 2007, Dona Valdeci usava a fumaça do tauari cheiroso nos rituais de cura. De acordo com
ela, sempre quem usava o cigarro era uma entidade. Isso nos indica que a dirigente só
utilizava ele em estado de transe, não utilizando o tauari para tal fim. A inalação da fumaça
era feita tendo a ponta da brasa na boca de Dona Valdeci. Ela expelia a fumaça em cima dos
enfermos físicos ou espirituais a fim de curá-los.
Este último elemento ritualístico – a fumaça – pode ser encontrado ainda nos
rituais de matriz ameríndias do Catimbó. Nesta religião não há o uso do tauari, mas do fumo,
o qual é aceso em um cachimbo. Assunção (2010) narra que foi encontrado pela Missão de
Pesquisas Folclóricas de 1938 na Paraíba o uso do cachimbo, ou “a marca” como o
denominam. Em determinado momento do ritual a um sinal do mestre, a posição do cachimbo
foi invertida e teve a parte onde está o fumo colocada na boca. A fumaça foi expelida por todo
ambiente para purificação. O mesmo autor, ao apresentar as entidades do panteão juremeiro,
mostra que muitas são denominadas como mestres. Esse mesmo termo é utilizado por Dona
Valdeci para se referir a algumas entidades como Mestre Saluzinho da Ponta da Serra, Mestre
Badé e Mestre Cândido. Um dos mais conhecidos elementos dos rituais do Catimbó, a bebida
da Jurema não é utilizada na tenda da dirigente; porém, a lembrança dos efeitos da bebida
através dos pontos cantados não passa despercebida durante os rituais. O uso do termo “mesa”
nos pontos cantados, principalmente de abertura e encerramento dos rituais da Tenda Santa
Joana D’Arc, encontram similitudes com a definição de sessão do Catimbó (ASSUNÇÃO,
2010).
192
No que tange às semelhanças entre a Umbanda de Dona Valdeci e o Tambor de
Mina encontramos, por exemplo, entidades pertencente à família da Turquia do panteão
“mineiro”: Rei Sebastião, Princesa Mariana, Princesa Herondina e Princesa Jarina. As
histórias narradas nos terreiros maranhenses sobre essas princesas apontam-nas como filhas
adotivas de Rei Sebastião. Na leitura de Dona Valdeci, somente Herondina é filha adotiva do
rei. Outras três entidades são agregadas a essa família real: Princesa Flora, Príncipe Zezinho e
Princesa Rosa, os quais, ao lado de Mariana, Jarina e Herondina, são filhos do rei. Outra
leitura pode ser percebida ao narrar a história de encantamento do Rei Sebastião e sua família.
Dona Valdeci conta que o rei estava vindo em um navio negreiro da Turquia para o Brasil.
Segundo ela, Rei Sebastião foi brincar de fazer “encanteria” no navio durante a viagem; ele
não acreditava que essas coisas acontecessem. Mas o encantamento aconteceu justamente
quando eles se aproximavam dos lençóis maranhenses, encantando, assim, o navio todo. Isso
explicaria por que a entidade Preta Velha Caetana, contrariando a característica mortal dos
pretos velhos, seria encantada. Ela trabalhava como cozinheira do Rei Sebastião no navio que
encantou.
A influência católica na Tenda Santa Joana D’Arc está constantemente presente
nos rituais e na decoração do salão: santos e papas estão espalhados pelas paredes e no altar
na forma de estátuas ou quadros. As novenas, as rezas dos terços, a entoação dos benditos
católicos e a devoção a Maria, mãe de Jesus, marcam os trabalhos realizados na casa. A
dicotomia entre bem e mal, tão característica do cristianismo, encontra lugar nas narrativas da
dirigente e de seus médiuns. Isso poderia ser a explicação do fato de Exu e exus estarem
associados ao Diabo cristão.
Na tenda, a ausência dos tambores, que caracterizam as religiões de matriz
africana, é explicada pela dirigente pela negação, de suas “correntes”, a trabalhar com
instrumentos. Algo muito próximo dessa explicação pode ser encontrado nas pesquisas
realizadas pelo historiador e folclorista Vicente Salles (1969 apud QUINTAS, 2007).
Pesquisando a Pajelança em Belém, PA, ele conta que essa religião ameríndia não admitia o
uso de tambor, utilizando somente o maracá como instrumento musical. Ainda afirma que
parte da “fusão” da Pajelança com os cultos africanos, em especial nas áreas urbanas, se deu
como consequência da perseguição policial aos cultos afros. Desse modo, sob a influência da
tradição e discrição indígena, os tambores africanos eram silenciados.
Se a hibridização de elementos de diferentes referências religiosas no seio da
Umbanda foi possibilitada pelo contexto histórico das migrações, diversas práticas e crenças
atuais, devido o caráter dinâmico das culturas, ainda continuam nesse processo de
193
transformação. É por essa razão que não damos por concluído nosso trabalho. O campo afroreligioso de Araguaína, não somente durante a pesquisa, assim como após ela, permaneceu
em constante mudança. O dirigente Nazareno, por exemplo, se tornou representante na cidade
da Federação Espírita do Brasil, com sede no estado do Espírito Santo. A umbandista Maria
dos Santos, após décadas sem abrir seu salão, retomou os trabalhos com gira, ao menos uma
vez por mês. Percília, umbandista de mesa, foi embora da cidade, retornando para Belém,
Pará.
Além das mudanças apresentadas, outras novidades surgiram no campo. Chegou
ao nosso conhecimento a existência de mais um salão com gira na cidade. Pertenceria a uma
senhora por nome Socorro, que mora no bairro Santa Terezinha. Segundo informações, ela
realiza seus trabalhos com tambor às segundas-feiras. Além dela, outras quatro pessoas estão
em atividade na cidade, mas como “cientistas”: um senhor chamado Napoleão e mais três
senhoras: Dona Raimunda, Dona Joana e Luzia — esta última é filha de santo de Nazareno.
Lembramos que o termo “cientista” é utilizado pelos dirigentes da cidade para designar
aqueles que trabalham com “ciências ocultas”, com adivinhações. Soube-se também que a
maioria dos médiuns dos terreiros possui altar em suas residências. Após serem batizado,
eles/as já estariam aptos a realizar curas, benzimentos, abrir salão, dentre outras atividades
espirituais. Mas, a exemplo da Tenda Santa Joana D’Arc, muitos médiuns após o batismo não
se interessam em “montar” um terreiro e passam anos trabalhando junto do dirigente que os
batizou. Porém, isso não impede que atendam pessoas mais próximas a eles em suas
residências e ali realizem trabalhos espirituais. Essas atividades, assim como o não
cadastramento na Confederação (CEUB) de muitos umbandistas de mesa, dificultaram a
visibilidade do campo afro-religioso de forma mais detalhada.
Por fim, se realmente compreendemos que a cultura é dinâmica e está em
constante transformação, saberemos que observações, entrevistas e análises não cessarão. Do
mesmo modo como os casos de mudanças já apresentados, após o término deste trabalho
outros virão. Documentos até então não acessados também possibilitarão pesquisas futuras.
Ao se referirem às suas vidas, os dirigentes dizem que a “Umbanda só tem porta de entrada,
não tem de saída”. Acreditamos que a afirmativa não sirva apenas para o povo de santo. O
pesquisador “enfeitiçado” por esse campo afro-religioso não consegue mais ver portas de
saída, só portas de entrada para novas pesquisas.
194
REFERÊNCIAS
ABREU, Marilande Martins. Tradição e Tambor de Mina: a tradição como estratégia de
existência dos Terreiros de Tambor de Mina. Dissertação. (Mestrado em Ciências Sociais) –
Faculdade de Ciências Sociais. Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2005.
ALENCASTRE, José M. P. de. Anais da Província de Goiás. Goiânia: SUDECO/Governo de
Goiás, 1979.
AQUINO, Napoleão Araújo de. “A construção da Belém-Brasília e suas implicações no
processo de urbanização do Estado do Tocantins”. In: A (trans)formação histórica do
Tocantins. Goiânia: Ed. UFG, 2004.
ARANTES, Orlando do Carmo. Revista Municipalista – Araguaína: a princesa do Norte.
Goiânia: Ed. América, 1986.
ARRUDA, Dionísio Pereira de. Leituras históricas sobre o Serviço de Evangelização
Tocantins/Araguaia (SETA) em Araguaína: conflitos e estratégias de interação social de uma
igreja pentecostal Assembléia de Deus. Monografia (Licenciatura em História). Universidade
Federal do Tocantins: Araguaína, 2011.
ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. O reino dos mestres, a tradição da jurema na umbanda
nordestina. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
BACHELAR, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise
do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BARBARA, Rosamaria S. A dança das aiabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres de
candomblé. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de São Paulo: São Paulo, 2002.
BARTLEMAN, Frank. A história do avivamento Azusa. 88p. Mimeo.
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Ed. Nacional/Brasília: INL,
1978.
BEAUD, S.; WEBER, F. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados
etnográficos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BÍBLIA Sagrada.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>
Acessado
em:
02/04/2012.
BRUNO, Angelo. Duas pátrias, um só coração. Goiânia: Editora Kelps, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Ofício do Sociólogo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004.
________ . “Compreender”. In: A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
CABRERA, Lydia. Iemanjá & Oxum. São Paulo: EdUSP, 2004.
CAIXETA, Vera Lúcia. Médicos, padres, sertões: o norte de Goiás no relatório de Arthur
Neiva e Belisário Penna e nas narrativas dos seus interlocutores goianos (1916-1959). Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2011.
195
CAIXETA, Vera Lúcia. “Associação das Filhas de Maria em Tocantinópolis na Década de
1950”. In: MANIERI, Dagmar, et al (Orgs.). Ensino e Pesquisa: Teorias, Métodos e
Abordagens em História. Goiânia: Gráfica e Editora Vieira, 2010, v. 1, p. 187-195.
CANNADINE, David. “Contexto, execução e significado do ritual: a Monarquia Britânica e a
“Invenção da Tradição”, c.1820 a 1977”. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Orgs.).
A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
CAMARGO, Cândido Procópio F. de. Kardecismo e Umbanda – Uma interpretação
sociológica. São Paulo: Pioneira, 1961.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo : Palas Athena, 1990.
CAMPOS, Luiz Arnaldo. A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados. 55 min.
Brasil/PA, 2005 (documentário).
CASSIRER, Ernest. Antropología Filosófica. Introducción a una Filosofía de la Cultura.
México:
Fondo
de
Cultura
Económica,
1967.
<http://blogs.enap.unam.mx/asignatura/jorge_flores/wp-content/uploads/2011/08/ErnstCassirier.pdf> Acessado em: 19 de dezembro de 2012.
CAVALCANTE, M. do E. S. R. O discurso autonomista do Tocantins. Goiânia: UCG, 2003.
________ . O movimento separatista do Norte de Goiás (1822-1988). Goiânia: UCG, 1999.
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O Mundo Invisível: cosmologia sistema ritual e
noção de pessoa no Espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
CHAUL, Nasr Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência ao limites da
modernidade. Goiânia: Editora da UFG, 2002.
CIADSETA. Disponível em: <http://www.ciadseta.com.br>. Acessado em: 22/03/2012.
COELHO, Rejane G. da Rocha. Unidade na diversidade: a organização da Igreja Assembleia
de Deus do Ministério Madureira em Araguaína (1993-2003). Monografia (Licenciatura em
História). Universidade Federal do Tocantins: Araguaína: 2010.
CONCONE, Maria Helena V. B. Umbanda, uma Religião Brasileira. São Paulo:
FFLCH/USP, CER, 1987.
CONDE, Emílio. História das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 1982.
CORAZZA, Remígio. Antologia de memórias: um passeio pelo tempo. Fortaleza: Expressão
Gráfica, 2004.
________ . Silêncio Prudente. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2000.
COSTA, Arnaldo Machado da. Conheça a história de um mito da umbanda: José Bruno de
Morais. Teresina: Editora e Gráfica Imprime Ltda, s/d.
CPAD. História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. 2004.
DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE GOIÁS. Ano 143. Nº 14.116. 04 nov. 1982.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.
________ . O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TOCANTINS: Governo do Estado. Disponível em: < http://www.to.gov.br/>. Último acesso
em: 22/06/2012.
196
FERRETTI, Mundicarmo. “A mina maranhense, seu desenvolvimento e suas relações com
outras tradições afro-brasileiras”. In: MAUÉS, R. e VILLACORTA, G. Pajelança e religiões
afro-brasileiras. Belém: EDUFPA, 2008.
________ . Encantaria de “Barba Soeira”. São Paulo: Siciliano, 2001.
________ . Desceu na guma: o caboclo do Tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a
Casa Fanti-Ashanti. São Luís: EDUFMA, 2000.
FERRETTI, Sérgio F. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas do
Maranhão. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
________ . Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Editora
USP; São Luís: FAPEMA, 1995.
FREITAS, Ricardo Oliveira de. “Quando o voluntariado é axé: a importância das ações
voluntárias para a caracterização de uma religião solidária e de resistência no Brasil”. In:
GOMBERG, Estelio; MANDARINO, Ana. (Orgs.). Leituras afro-brasileiras: territórios,
religiosidades e saúdes. Salvador: EDUFBA, 2009.
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas.
São Paulo: Editora. Nacional; Brasília: INL, 1976.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
GIRALDIN, O. (Org.). A (Trans)formação Histórica do Tocantins. Goiânia: Editora UFG,
2004.
GONÇALVES, H. R. “Igreja Messiânica Mundial e suas Dissidências”. Revista Nures, v. 4,
p. 1-8, PUC-SP, 2008. <http://www.pucsp.br/revistanures/revista9/nures9_goncalves.pdf>
Acessado em: 13/12/2012.
FANTÁSTICO. O que vi da vida. Programa exibido em 7/8/2011. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acessado em: 24/6/2012.
GURGEL, Jauro J. Studart. Araguaína – 40 anos. Imperatriz: Ética Editora, 1998.
HALL, Stuart. “Da diáspora: imaginando a terra no exterior”. Da diáspora – identidade e
mediações culturais. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003.
HENRY, Paget. Caliban’s Reason: introducing afro-caribbean philosophy. New York:
Routledge, 2000.
IBGE: banco de dados. Disponível em <http://www.ibge.gov.br>. Último acesso em:
26/06/2012.
LÔBO, Maiza P. “Protestantismo de missão no Brasil: a educação batista em Araguaína, TO”.
In: Histórias e narrativas: regionalidades, ensino e arte. ALMEIDA, et al. (Orgs). Palmas:
Nagô Editora, 2012.
LOPES, Alberto Pereira. Escravidão por dívida no norte do Estado do Tocantins: vidas fora
do compasso. Tese. (Doutorado em Ciências – Geografia Humana). Universidade de São
Paulo: São Paulo, 2009.
LUCA, Taissa T; CAMPELO, M.; “As Duas Africanidades Estabelecidas no Pará”. Revista
Aulas (UNICAMP). V. 4, p. 1-27, 2007.
LUNCKES, Mariseti C. S. A 4ª Companhia Isolada de Pedro Afonso e o cotidiano dos
policiais militares: um projeto de policiamento e 'ordem' para os sertões do antigo norte
197
goiano (1930-1964). Tese. (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Rio de
Janeiro: Rio de Janeiro, 2011.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na
esfera familiar. Campinas, SP: Autores Associados, 1996.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné e Melanésia. São
Paulo: Abril Cultural, 1976.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São
Paulo: Loyola, 2005.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. “Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a
religião”. In: Estudos Avançados. São Paulo, Nº 19 (53), pp. 259-274, 2005.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MEDEIROS, Euclides A. Encontros de sangue: Cultura da Violência na Região dos Vales
dos Rios Araguaia e Tocantins 1830/1930. Tese. (Doutorado em História). Universidade
Federal de Uberlândia: Uberlândia, 2012.
MOTTER, Ana E. Representações do Tocantins na Literatura e na Imprensa (1989-2002).
Tese. (Doutorado em História). Universidade do Vale dos Sinos: São Leopoldo, 2010.
OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma análise
comparativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o Estado Novo.
Dissertação. (Mestrado em História Comparada). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio
de Janeiro, 2007.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; SP:
UNESP, 2000.
ORO, Ari; BEM, Daniel Francisco de.” A discriminação contra as religiões afro-brasileiras:
ontem e hoje”. In: Ciências e Letras. Porto Alegre, vol. 44, 2008.
________ . “Religião e Política no Brasil”. In: Ari Pedro Oro. (Org.). Religião e Política no
Cone-sul, Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial, 2006.
________ . “Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente”. In:
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 2, 2002.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1991.
PACHECO, Éser Técio, SILVA, Samuel Ribeiro da, RIBEIRO, Renata Gomes. “Eu era do
mundo”: transformações do auto-conceito na conversão pentecostal. Psicologia: teoria e
pesquisa. Vol. 23, Nº 01, Jan./Mar., Brasília: UNB, 2007, p. 53-62.
PACHECO, Gustavo de B. F. Brinquedo de cura: um estudo sobre a pajelança maranhense.
Tese. (Doutorado em Antropologia Social). Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2004.
PALACÍN, Luis G. Coronelismo no extremo norte de Goiás: O padre João e as três
revoluções de Boa Vista. Goiânia: CEGRAF; São Paulo: Loyola, 1990.
PARENTE, T. G. O avesso do silêncio: vivências cotidianas das mulheres do Século XIX.
Goiânia: Editora UFG, 2005.
________ . Fundamentos Históricos do Estado do Tocantins. Goiânia: Editora UFG, 2003.
198
POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
vol.05, n.10, 1992.
________ . “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
vol.02, n.03, 1989.
PORDEUS JR, Ismael. “Uma religião brasileira”. In: Enredo: revista da cultura. Secretaria
da Cultura – Governo do Estado do Ceará. Nº01, dez. 2008, pp. 55-61.
________ . Umbanda: Ceará em transe. Fortaleza: Museu Ceará, 2002.
________ . Magia e trabalho: a representação do trabalho na macumba. São Paulo: Terceira
Margem, 2000.
PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de
1944): mito, política, luto e senso comum”. In: AMADO, J. e FERREIRA, M. de M. (Org.)
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
PRANDI, Reginaldo. Converter indivíduos, mudar culturas. Tempo Social: revista de
sociologia da USP, Vol.20, Nº 02, 2008, p.155-172.
________ . (Org.) Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2004.
________ . Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
________ . Os candomblés de São Paulo. Editora Hucitec, EdUSP: São Paulo, 1991.
________ . “As religiões negras do Brasil: Para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros”.
Revista USP. São Paulo, Dez./Fev. 1995/1996, pp. 64-83.
QUINTAS, Gianno G. Entre maracás, curimbas e tambores: pajelança nas religiões afrobrasileiras. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Pará:
Belém, 2007.
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. “Jornada Mítica e Trajetória Humana: Jogos Oraculares em
Espaço Afrodiaspórico”. In: Anais do XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais
- Diversidades e (Des)Igualdades. Salvador/BA, 2011.
RIGONI, Ana Carolina Capellini. Marcas da religião evangélica na educação do corpo
feminino: implicações para a Educação Física Escolar. Dissertação (Mestrado em Educação
Física). Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2008.
ROCHA, Leandro Mendes. O Estado e os índios: Goiás, 1850-1889. Goiânia: Ed. UFG,
1998.
RODRIGUES, Jean Carlos. Estado do Tocantins: Política e Religião na construção do
espaço de representação tocantinense. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade
Estadual Paulista: Presidente Prudente, 2008.
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio-religiosa.
Petrópolis: Vozes, 1994.
SÁ JÚNIOR, Mario Teixeira de. A invenção da alva nação umbandista – a relação entre a
produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da
Umbanda (1840-1960). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Mato
Grosso de Sul: Dourados, 2004.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
199
SANTIAGO, Claudivan. Araguaína: história e atualidade. Araguaína: Prefeitura Municipal
de Araguaína, 2000.
SILVA, E., SANTOS, L. A., ALMEIDA, V. “Fiel é a palavra”: leituras históricas dos
evangélicos protestantes no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011.
SILVA, Idelma Santiago. Fronteira cultural: a alteridade maranhense no sudeste do Pará
(1970-2008). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Goiás: Goiânia, 2010.
SILVA, Otávio Barros da. Breve história do Tocantins e de sua gente. Uma luta secular.
Araguaína : FIETO, 1996.
SILVA, Vagner Gonçalves da. “Prefácio ou Notícias de uma guerra nada particular: Os
ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no
Brasil”. In: SILVA, V. G. da (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo
no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007,
p. 9-27.
SILVEIRA, Marcos César Borges da. Herdeiros de Sísifo: trabalho e trabalhadores no norte
do antigo Goiás (1960-1975). Porto Alegre: Editora Universitária/UFPEL, 2009.
SOUZA, Bertone de Oliveira. Uma perspectiva histórica sobre construções de identidades
religiosas – A Assembleia de Deus em Imperatriz, MA. Imperatriz: Ética, 2011.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. “Hibridismo e tradução cultural em Bhabha”. In:
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Margens da Cultura – Mestiçagem, hibridismo e outras
misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.
SOUZA, Sônia Maria de. “Belém-Brasília: abrindo fronteiras no norte goiano (atual
Tocantins)”. In: A (trans)formação histórica do Tocantins. Goiânia: Ed. UFG, 2004.
TONINI, Quinto. Dom Orione: entre diamantes e cristais. Cenas vividas pelos missionários
de Dom Orione nas matas do Norte de Goiás-Brasil. Fortaleza: Expressão Gráfica, 1996.
TURNER, Victor. O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
VERGER, Pierre. Deuses Yorubanos na África e no Novo Mundo. Corrupio: Salvador, 1981.
VERGOLINO E SILVA. Anaíza. O tambor das flores: Uma análise da federação espírita,
umbandista e dos cultos Afro-brasileiro no Pará. Dissertação. (Mestrado em Antropologia
Social). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1976.
UMADA. Revista Jovens em ação. Jan./Jul. 2009.
200
ANEXO ENCARTADO

Documentos relacionados