Evangelho segundo S. Marcos 7,1-13.

Transcrição

Evangelho segundo S. Marcos 7,1-13.
Evangelho segundo S. Marcos 7,1-13. – cf.par. Mt 15,1-20
Os fariseus e alguns doutores da Lei vindos de Jerusalém reuniram-se à volta de Jesus, e
viram que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar. É
que os fariseus e todos os judeus em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as
mãos, conforme a tradição dos antigos; ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e
há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das
vasilhas de cobre. Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e doutores da Lei: «Porque é que os teus
discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?»
Respondeu: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu: Este povo
honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Vazio é o culto que me
prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. Descurais o
mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.» E acrescentou: «Anulais a
vosso bel-prazer o mandamento de Deus, para observardes a vossa tradição. Pois Moisés
disse: Honra teu pai e tua mãe; e ainda: Quem amaldiçoar o pai ou a mãe seja punido de
morte. Vós, porém, dizeis: Se alguém afirmar ao pai ou à mãe: 'Declaro Qorban’ isto é, oferta
ao Senhor aquilo que poderias receber de mim..., nada mais lhe deixais fazer por seu pai ou
por sua mãe, anulando a palavra de Deus com a tradição que tendes transmitido. E fazeis
muitas outras coisas do mesmo género.»
Beata Teresa de Calcutá (1910-1997), fundadora das Irmãs Missionárias da Caridade
Oração: Procurar o Coração de Deus, com o Irmão Roger
“O seu coração está longe de Mim”
Permitir que o amor de Deus tome inteira e absoluta posse de um coração; que se torne, para
esse coração, como que uma segunda natureza; que o coração nada deixe entrar em si que seja
contrário a ele; que se aplique continuamente a fazer aumentar este amor de Deus, procurando
agradar-lhe em tudo, não lhe recusando nada do que pede; que aceite como vindo das mãos de
Deus tudo quanto lhe acontece.
O conhecimento de Deus produz o amor, e o conhecimento de si, a humildade. A humildade
nada mais é do que a verdade: “Que tens tu que não hajas recebido?”, pergunta São Paulo
(1Cor 4, 7). Se tudo recebi, que bem tenho que o seja por mim mesma? Convencidos disso,
jamais ergueremos a cabeça de orgulho. Se formos humildes, nada nos perturbará, nem o
louvor nem o opróbrio, porque sabemos o que somos. Se nos acusarem, não nos sentiremos
desencorajados. Se nos proclamarem santos, não nos colocaremos sobre um pedestal. O
conhecimento de nós próprios leva-nos a pormo-nos de joelhos.
Santo [Padre] Pio de Pietrelcina (1887-1968), capuchinho
T, 74 ; CE, 39-40 (trad. Mediaspaul, Une pensée, p. 23)
«Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim.»
A oração é um coração a coração com Deus. [...] A oração bem feita toca o coração de Deus,
incitando-O a ouvir-nos. Quando rezamos, que todo o nosso ser se volte para Deus: os nossos
pensamentos, o nosso coração. [...] O Senhor deixar-Se-á vencer e virá em nosso auxílio. [...]
Reza e espera. Não te agites; a agitação é inútil. Deus é misericórdia e há-de escutar a tua
oração. A oração é a nossa melhor arma: é a chave que abre o coração de Deus. Deves dirigirte a Jesus, menos com os lábios do que com o coração.
Evangelho segundo S. Marcos 7,1-8.14-15.21-23.
Os fariseus e alguns doutores da Lei vindos de Jerusalém reuniram-se à volta de Jesus, e
viram que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar. É
que os fariseus e todos os judeus em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as
mãos, conforme a tradição dos antigos; ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e
há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das
vasilhas de cobre. Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e doutores da Lei: «Porque é que os teus
discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?»
Respondeu: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu: Este povo
honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Vazio é o culto que me
prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. Descurais o
mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.» Chamando de novo a
multidão, dizia: «Ouvi-me todos e procurai entender. Nada há fora do homem que, entrando
nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro. Porque é do
interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos,
assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência,
orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro.»
Pregador do Papa: Jesus ensina «a ecologia do coração»
Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre liturgia do próximo domingo
ROMA, sexta-feira, 1º de setembro de 2006 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do Pe.
Raniero Cantalamessa, ofmcap. -- pregador da Casa Pontifícia – sobre a liturgia do próximo
domingo, XXII do tempo comum.
***
O que contamina o homem
XXI Domingo do tempo comum (B)
Deuteronômio 4, 1-2. 6-8; Tiago 1, 17-18. 21. 27; Marcos 7, 1-8. 14-15. 21-23
“Escutai , todos, e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo
de fora, mas o que sai do seu interior. Pois é de dentro do coração humano que saem as más
intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades,
fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulhos, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de
dentro e são elas que tornam impuro o homem.”
Na passagem do Evangelho deste domingo, Jesus arranca pela raiz a tendência a dar mais
importância aos gestos e aos ritos exteriores que às disposições do coração, o desejo de
aparentar que se é -- mais que de sê-lo -- bom. Em resumo, a hipocrisia e o formalismo.
Mas podemos tirar hoje desta página do Evangelho um ensinamento de ordem não só
individual, mas também social e coletivo. A distorção que Jesus denunciava de dar mais
importante à limpeza exterior que à pureza do coração se reproduz hoje em escala mundial.
Há muitíssima preocupação pela contaminação exterior e física da atmosfera, da água, pelo
buraco de ozônio; e pelo contrário, silêncio quase absoluto sobre a contaminação interior e
moral. Nós nos indignamos ao ver imagens de pássaros marinhos que saem de águas
contaminadas por manchas de petróleo, cobertos de óleo, incapazes de voar, mas não fazemos
o mesmo por nossas crianças, precocemente viciados e apagados por causa do manto de
malícia que já se estende sobre cada aspecto da vida.
Que fique bem claro: não se trata de opor entre si os dois tipos de contaminação. A luta contra
a contaminação física e o cuidado da higiene é um sinal de progresso e de civilização ao que
não se pode renunciar a nenhum preço. Jesus não disse, naquela ocasião, que não era preciso
lavar as mãos ou os utensílios e tudo o demais; disse que isso, por si só, não basta; não vai à
raiz do mal.
Jesus lança então o programa de uma ecologia do coração. Tomemos alguma das coisas
«contaminadoras» enumeradas por Jesus, a calúnia com o vício a ela emparentado de dizer
maldades à custa do próximo. Queremos fazer de verdade um trabalho de saneamento do
coração? Empreendamos uma luta sem tréguas contra nosso costume de fofocar, de fazer
críticas, de participar em murmurações contra pessoas ausentes, de lançar juízos rapidamente.
Isto é um veneno dificílimo de neutralizar, uma vez difundido.
Uma vez, uma mulher foi confessar-se com São Felipe Néri acusando-se de ter falado mal de
algumas pessoas. O santo a absolveu, mas lhe deu uma estranha penitência. Disse-lhe que
fosse para casa, tomasse uma galinha e voltasse onde ele estava, despenando-a pouco a pouco
ao longo do caminho. Quando chegou de novo ante ele, este lhe disse: «Agora volte para casa
e recolha uma por uma as penas que você deixou cair quando vinha para cá». «Impossível! -exclamou a mulher. O vento já as dispersou em todas as direções.» É aí onde queria chegar
São Felipe. «Viu – disse-lhe -- como é impossível recolher as penas uma vez que o vento as
levou? Igualmente, é impossível retirar as murmurações e calúnias uma vez que saíram da
boca.»
[Traduzido por Zenit]
ZP06090101
«Vós abandonais o mandamento de Deus» - Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte (Brasil)
BELO HORIZONTE, domingo, 27 de agosto de 2006 (ZENIT.org).- Publicamos artigo de
Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte (Minas Gerais), difundido
pelo site da arquidiocese de Belo Horizonte essa semana.
«Vós abandonais o mandamento de Deus»
(Mc 7,8)
É muito grave quando Deus não apenas faz advertências a respeito da conduta do seu povo,
mas o acusa da gravidade de suas escolhas. As escolhas têm conseqüências muito sérias na
vida de todos. Não apenas na própria vida. O cenário conjunto da vida é resultado das
escolhas de cada um. Quando Jesus diz que ‘vós abandonais o mandamento de Deus para
seguir a tradição dos homens’ está apontando o núcleo inspirador de atitudes
comprometedoras de um povo que se apresenta como religioso, guardião da prática religiosa
correta. No entanto, desloca, friamente, e com uma convicção inquestionável, a Deus do seu
lugar insubstituível de centro da vida dos que crêem. Nada é tão grave. Nada é tão grave
quando o coração humano e sua inteligência passam a ser a única medida correta de
arbitragem do que é certo e do que é errado. Tudo é possível quando cada pessoa, ancorada
em práticas religiosas, ritualmente obedecidas com rigor, se torna a medida única e última de
tudo. Os resultados são arbitrariedades e insolências, impiedades e maldades que eliminam
tudo e todos os que não se localizam no enquadramento estreito desta pretensão humana. O
absurdo deste procedimento alcança o ápice de pretender envolver a Deus, colocando-se ao
seu redor, como os conterrâneos religiosos de Jesus fizeram com Ele, certos de sua condição
moral questionável, para apresentar questionamentos de tal modo a assumirem o próprio lugar
de Deus quando o julga e aos seus como incorretos, desrespeitosos e sem autoridade.
O veneno da hipocrisia
O centro da questão para a disputa estabelecida com Jesus Mestre, fruto da posição
pretensiosa assumida pelos fariseus e mestres da lei, é o fato de os discípulos de Jesus comer
sem lavar as mãos. A tradição incluía abluções rituais. Havia um escrúpulo de se ter tocado
coisas impuras antes da refeição com o conseqüente risco de contaminação. É bom entender
que a higiene focalizada não se refere àquela necessária para que não se corra o risco de
comprometimentos sanitários. A preocupação e a ritualidade assumida se deve a uma
concepção de puro e impuro, segundo critérios muito próprios que chegam às raias de
doentios e até perversos, criando preconceitos e transformando a vivência religiosa em
maldosa consideração dos outros para verificar a quem condenar ou criar condições de
desmoralizações. Jesus reage à tentativa de desmoralização que buscar aplicar sobre ele. Na
verdade, em Israel um Mestre não tinha autoridade se não conseguisse que os seus discípulos
obedecessem à risca todos os preceitos e ritos previstos pela prática religiosa. Certamente,
com satisfação, que é o sentimento dos perversos e dos convencidos de sua oca dignidade
moral, os interlocutores de Jesus pensavam ter encontrado um meio de desmoralização do
Mestre e condenação dos seus discípulos. Este é o único caminho comum e sempre muito
explorado dos hipócritas. Buscam conquistar autoridade e validar suas posições com a
desmoralização dos outros, ainda que seja fruto de suas perversas e obscuras pretensões. Os
honestos, de verdade, não necessitam atacar, destruindo os outros, para encontrar o seu
próprio lugar de autoridade e reconhecimento. Jesus chama todos estes de hipócritas. Não são
poucos. A hipocrisia se vence com algo mais que ultrapassa o simples cumprimento, tantas
vezes rígidos e só na aparência, de ritos e normas que encobrem mentiras e interesses espúrios
que estão alimentados no fundo do coração. Hipócrita é, pois, uma condição que define aquele
que é capaz de fazer e falar sem deixar transparecer os enganos, critérios perversos e mentiras
que estão sempre guardadas com força de cálculo no fundo do coração. A hipocrisia é uma
verdadeira cultura que muitos dela vivem sem perceber, outros a adotam como artimanha para
conseguir seus propósitos e não poucos se gabam das práticas que engambelam os outros para
se alcançar os próprios interesses, tantas vezes imorais, prejudiciais ao bem comum, perversos
e maldosos para com os outros.
O coração humano
Jesus contrapõe a proposta de prática religiosa dos seus conterrâneos. Não é uma simples
contestação dos ritos, menos ainda um desleixo e ou uma atitude de simplesmente contestar e
desconsiderar, como ato de insolência e de arbitrariedade. O coração de Deus é misericórdia,
amor, sinceridade a toda prova. Deus não usa artimanhas. Quem usa artimanhas não é capaz
de amar de verdade. Interessa alcançar os próprios propósitos, mesmo que estes sejam
destrutivos e comprometedores do bem de instituições e de pessoas. Jesus reorienta o sentido
da prática religiosa mostrando que sua essência, para dar vida aos ritos de não deixá-los cair
numa complicada esterilidade, supõe um cuidado especial com o próprio coração. O
discípulo, então, é aquele que nutre no coração uma experiência inspirada nos sentimentos do
coração de Deus. A interioridade é, na verdade, a força sustentadora da autêntica experiência
de fé, de culto a Deus e de sinceridade no relacionamento com os outros. Jesus pede dos seus
discípulos esta construção e esta conquista. O de fora se sustenta autenticamente a partir do
que está no fundo do coração. Manter as aparências e enganar é hipocrisia. O discípulo de
Jesus não pode descambar na direção da hipocrisia. Isto só é possível na medida em que o
discípulo compreende que o impuro não é o entra nele vindo de fora, explicou Jesus
chamando para perto de si a multidão. Impuro é o que sai do interior. Ele recorda em
linguagem bem direta que o que sai do interior é que é impuro: as más intenções,
imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes,
devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Jesus conclui: ‘Todas estas coisas más
saem de dentro e são elas que tornam impuro o homem’. É fácil colocar capaz, roupas e cores
que indicam outras coisas, até nobres. O que vale é verificar o fundo do coração, diante de
Deus e da própria consciência. Deus, não se engana. Ele, mais do que qualquer outro, mesmo
a própria pessoa, conhece o mais escondido do coração. Ao discípulo só resta uma alternativa.
Passar a limpo a própria interioridade, permanentemente, e escolher sempre o caminho do
amor que resgata, recria, perdoa e reconcilia. Outra opção é hipócrita. Isto é, a condição de
um povo que ‘louva com os lábios, mas o coração está longe de Deus’. O coração do
discípulo verdadeiro é íntimo de Deus. Para ele valem como preceito e norma a vontade de
Deus.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte
ZP06082715
Imitação de Jesus Cristo, tratado espiritual do século XV
Livro II
"Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim"
Por vezes, não nos apercebemos de quanto somos cegos. Agimos mal e damos as piores
desculpas. Somos frequentemente movidos pela paixão e tentamos fazer passar isso por zelo.
Notamos pequenas faltas nos outros e permitimo-nos algumas bem mais graves. Estamos
prontos a apontar e a condenar os erros dos outros mas não reparamos naquilo que lhes
fazemos suportar. Quem se julgasse a si mesmo com equidade não teria coragem para julgar
severamente os outros.
Um cristão toma conta em primeiro lugar da sua própria vida e quem se vigia atentamente
guarda-se bem de criticar depois a conduta dos outros. Nunca serás verdadeiramente um
homem interior se não te esforçares por te calar a propósito do teu próximo para te ocupares
principalmente de ti... Quem ama Deus dá pouca importância a tudo o que está abaixo de
Deus, porque só Deus, eterno, imenso, que tudo preenche, é o reconforto da alma e a
verdadeira alegria do coração...
O teu repouso será tranquilo se o teu coração não te acusar de nada; não procures outra alegria
senão a de ter feito o bem. Os maus nunca conhecerão a verdadeira alegria; não possuirão a
paz interior porque "não há paz para os ímpios" (Is 57,21)... Os que têm a consciência pura
serão facilmente calmos e felizes. Não te tornarás mais santo por te louvarem, nem mais vil
por te caluniarem. Permanecerás o que és; tudo o que puderem dizer de ti não te fará parecer
maior aos olhos de Deus. Se deres apenas atenção ao que verdadeiramente és, pouco te
inquietarás com a opinião dos homens a teu respeito. "O homem vê o rosto, mas Deus vê o
coração" (1 Sm 16,7).
São Maximiliano Kolbe (1849-1941), franciscano, mártir
Escritos espirituais inéditos
"O seu coração está longe de mim"
A vida interior é primordial. A vida activa é uma consequência da vida interior, e só tem valor
se dela depender. Queremos fazer tudo o melhor possível, com perfeição. Mas, se o que
fazemos não estiver ligado à vida interior, de nada serve. O valor da nossa vida e da nossa
actividade releva por completo da vida interior, da vida de amor a Deus e à Virgem Maria, a
Imaculada; não de teorias e doçuras, mas da prática de um amor que consiste na união da
nossa vontade com a vontade da Imaculada.
Antes de tudo e sobretudo, devemos aprofundar esta vida interior. Se verdadeiramente se trata
da vida espiritual, é necessário accionar os meios sobrenaturais. A oração, a oração – e apenas
a oração – é necessária para manter e fazer desabrochar a vida interior; o recolhimento interior
é imprescindível.
Não nos preocupemos com coisas desnecessárias, antes procuremos, em paz e com suavidade,
manter o recolhimento de espírito e estar preparados para a graça de Deus. É isso que o silênc
io nos ajuda a conseguir.
Clemente de Alexandria (150-cerca de 215), teólogo
O Pedagogo
A nova lei, inscrita no coração dos homens
Nós temos o Decálogo, dado por Moisés... e tudo o que a leitura dos livros santos nos
recomenda. “Lavai-vos, purificai-vos, retirai toda a malícia de diante dos meus olhos!
Aprendei a agir bem, procurai o que é justo; tomai a defesa do oprimido, da viúva, do órfão:
Vinde e falemos, diz o Senhor” (Is 1, 16-18)... Mas temos também as leis do Verbo, as
palavras de exortação que não foram escritas em tábuas de pedra pelo dedo do Senhor (Ex
24,12); foram inscritas no coração dos homens (2 Co 3,3)... Por isso, as tábuas de pedra foram
quebradas (Ex 32,19); a fé das crianças deixa as suas marcas nos espíritos dóceis. Estas duas
leis serviram ao Verbo para a pedagogia da humanidade, primeiro pela boca de Moisés,
depois pela dos apóstolos...
Mas precisamos de um mestre para nos explicar estas palavras santas... É Ele quem nos
ensinará as palavras de Deus. A escola é a nossa Igreja; o nosso único mestre é o Noivo,
vontade boa de um Pai bom, sabedoria primeira, santidade do conhecimento. “Ele mesmo é
propiciação para os nossos pecados” (1 Jo 2,2). É Ele quem cura os nossos corpos e as nossas
almas, o homem inteiro; Ele, Jesus, que é “propiciação não só para os nossos pecados mas
para o mundo inteiro. Sabemos que o conhecemos pelo fato de observarmos os seus
mandamentos. Aquele que diz que O conhece e não guarda os seus mandamentos é um
mentiroso e a verdade não habita nele” (1 Jo 2, 3-4).
Instruídos por esta bem-aventurada pedagogia, completemos o belo rosto da Igreja e corramos
como crianças para esta mãe cheia de bondade. Tornemo-nos ouvintes do Verbo;
glorifiquemos a bem-aventurada providência que nos guia pela mão deste Pedagogo e nos
santifica como filhos de Deus.
Evangelho segundo S. Marcos 7,14-23.
Chamando de novo a multidão, dizia: «Ouvi-me todos e procurai entender. Nada há fora do
homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o
torna impuro. Se alguém tem ouvidos para ouvir, oiça.» Quando, ao deixar a multidão,
regressou a casa, os discípulos interrogaram-no acerca da parábola. Ele respondeu: «Também
vós não compreendeis? Não percebeis que nada do que, de fora, entra no homem o pode
tornar impuro, porque não penetra no coração mas sim no ventre, e depois é expelido em
lugar próprio?» Assim, declarava puros todos os alimentos. E disse: «O que sai do homem,
isso é que torna o homem impuro. Porque é do interior do coração dos homens que saem os
maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade,
má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de
dentro e tornam o homem impuro.»
Santo Isaac, o Sírio (séc. VII), monge em Nínive, perto de Mossul no actual Iraque
Disxcursos Espirituais, 1ª série
"Cria em mim, ó Deus, um coração puro" (Sl 50,12)
Está dito que só a ajuda de Deus salva. Quando um homem sabe que não há mais nenhum
socorro, reza muito. E, quanto mais reza, mais o seu coração se torna humilde, porque não se
pode rezar e pedir sem se ser humilde. "Não desprezarás, ó Deus, um coração oprimido e
humilhado" (Sl 50,19). Com efeito, enquanto o coração não se torna humilde, é-lhe
impossível escapar à dispersão; a humildade faz o coração virar-se sobre si mesmo.
Quando o homem se torna humilde, imediatamente a compaixão o envolve e o seu coração
sente então o socorro divino. Descobre que nele sobe uma força, a força da confiança. Quando
o homem sente assim o socorro de Deus, quando sente que Ele está ali e vem em sua ajuda,
imediatamente o seu coração fica cheio de fé e compreende então que a oração é o refúgio do
socorro, a fonte da salvação, o tesouro da confiança, o porto livre da tempestade, a luz dos que
estão nas trevas, o amparo dos fracos, o abrigo no tempo da provação, a ajuda no auge da
doença, o escudo que defende nos combates, a flecha lançada contra o inimigo. Numa
palavra, a abundância dos bens entra nele pela oração. Doravante tem as suas delícias na
oração da fé. O seu coração irradia confiança.
S. Gregório de Nissa (cerca de 335-395), monge e bispo
Homilia 6 sobre as Bem-Aventuranças
“Cria em mim, ó Deus, um coração puro” (Sl 51,12)
Se, a partir dum esforço de perfeição, conseguires limpar as impurezas da tua vida, a beleza
divina brilhará de novo em ti. É o que acontece a um pedaço de metal, quando a lixa o
desembaraça da sua ferrugem. Até então, estava enegrecido, mas agora brilha e resplandece
ao sol. Também o homem interior, aquilo a que o Senhor chama o “coração”, quando tiver
retirado as manchas de ferrugem que alteravam e deterioravam a sua beleza, reencontrará a
semelhança ao seu modelo (Gn 1,27) e será bom. Porque aquilo que se torna semelhante à
Bondade é necessariamente bom...
Assim também aquele que tem o coração puro se torna feliz (Mt 5,8) porque, ao redescobrir a
sua pureza, descobre, através dessa imagem, a sua origem. Aqueles que vêem o sol num
espelho, mesmo se não fixam o céu, vêem tão bem o sol na luz do espelho como se olhassem
directamente para o disco solar. Também vós, que sois demasiado fracos para captar a luz, se
vos virardes para a graça da imagem que em vós foi colocada desde o princípio dos tempos,
em vós mesmos encontrareis aquilo que procurais.
Com efeito, a pureza, a paz da alma, o afastamento de todo o mal, eis o que é a divindade. Se
possuíres tudo isso, possuis certamente Deus. Se o teu coração estiver livre de toda a conduta
perversa, livre de toda a paixão, puro de toda a mancha, tu serás feliz, porque o teu olhar é
límpido.
Balduíno de Ford (?-c.1190), abade cisterciense
Homilia 10, sobre Ct 8, 6; PL 204, 513 ss. (trad. breviário)
«Cria em mim, ó Deus, um coração puro» (Sl 50, 12)
«Grava-me como selo em teu coração [...], porque forte como a morte é o amor» (Ct 8,6).
«Forte como a morte é o amor» porque o amor de Cristo é a morte da morte. [...] Da mesma
forma, o amor com que amamos a Cristo é, também ele, forte como a morte, porque constitui,
à sua maneira, uma morte: uma morte que põe fim à vida velha, em que os vícios são abolidos
e as obras mortas são abandonadas. De facto, o amor que temos a Cristo [...] – mesmo estando
longe de igualar aquele que Cristo tem por nós – é à imagem e semelhança do Seu. Cristo, de
facto, «amou-nos primeiro» (1Jo 4,19) e, através do exemplo que nos deu, tornou-Se para nós
um selo, a fim de que nos tornemos conformes à Sua imagem [...].
É por isso que Ele nos diz: «Grava-Me como selo em teu coração», como se dissesse: «Amame como Eu te amo. Guarda-Me no teu espírito, na tua memória, no teu desejo, nos teus
suspiros, nos teus gemidos, nos teus soluços. Lembra-te, homem, de que natureza te criei: de
quanto te preferi às outras criaturas, de que dignidade de enobreci, de que glória e de que
honra te coroei e como te fiz pouco inferior aos anjos e como tudo coloquei sob os teus pés
(Sl 8,6-7). Lembra-te, não apenas de tudo o que fiz por ti, mas ainda de tudo aquilo que, de
facto, suportei da tua parte, em sofrimento e desprezo. E vê se não és injusto para coMigo,
não Me amando. Quem, de facto, te amou como Eu? Quem te criou, se não Eu? Quem te
resgatou, se não Eu?» [...]
Senhor, arranca de mim este coração de pedra, este coração gelado, este coração incircunciso.
E dá-me um coração novo, um coração de carne, um coração puro (Ez 36,26). Tu, que
purificas o coração e que amas o coração puro, vem possuir e habitar o meu coração; envolveo e enche-o, Tu que ultrapassas tudo o que sou e que me és mais interior e íntimo do que eu
mesmo. Tu, o modelo da beleza e o selo da santidade, confirma o meu coração à tua imagem,
marca o meu coração com a tua misericórdia, Deus do meu coração, meu refúgio e minha
herança para sempre [Sl 72,26].
Evangelho segundo S. Marcos 7,24-30. – cf.par. Mt15,21-28
Partindo dali, Jesus foi para a região de Tiro e de Sídon. Entrou numa casa e não queria que
ninguém o soubesse, mas não pôde passar despercebido, porque logo uma mulher que tinha
uma filha possessa de um espírito maligno, ouvindo falar dele, veio lançar-se a seus pés. Era
gentia, siro-fenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demónio. Ele respondeu:
«Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar
aos cachorrinhos.» Mas ela replicou: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem
debaixo da mesa as migalhas dos filhos.» Jesus disse: «Em atenção a essa palavra, vai; o
demónio saiu de tua filha.» Ela voltou para casa e encontrou a menina recostada na cama. O
demónio tinha-a deixado.
S. Beda Venerável (cerca de 673 - 735), monge, doutor da Igreja
Homilias sobre os Evangelhos I, 22
A fé da Cananeia
"Ó mulher, grande é a tua fé! Seja feito como desejas" (Mt 15,28). Sim, a Cananeia tem uma
fé muito grande. Sem conhecer os antigos profetas nem os recentes milagres do Senhor, nem
os seus mandamentos nem as suas promessas, e para mais repelida por ele, persevera no seu
pedido e não se cansa de insistir junto daquele que apenas a fama lhe tinha indicado ser o
Salvador. Por isso, a sua oração foi atendida de forma tão espantosa...
Quando um de entre nós tem a consciência manchada pelo egoismo, pelo orgulho, pela
vanglória, pelo desdém, pela cólera, pelo ciume ou por qualquer outro vício, tem
verdadeiramente, tal como esta mulher de Canaan, "uma filha cruelmente atormentada por um
demónio". Que ele corra pois a pedir ao Senhor que o cure... Que o faça com humilde
submissão; que não se julgue digno de partilhar a sorte das ovelhas de Israel, isto é, das almas
puras e que se considere indigno das recompensas do céu. Que o desespero, contudo, não o
leve a abrandar a insistência da sua oração mas que o seu coração tenha uma confiança
inquebrantável na imensa bondade do Senhor. Porque aquele que pôde fazer do ladrão um
proclamador da fé (Lc 24,39s), do perseguidor um apóstolo (Act 9) e de simples pedras filhos
de Abraão (Mt 3,9), esse mesmo é também capaz de transformar um cachorrinho em ovelha
de Israel.
Guigues de Chartres (1083-1136), Prior da Grande Cartuxa
Carta sobre a vida contemplativa, 6-7 (trad. Orval ; cf SC 163, p. 95)
«Ela veio lançar-se a Seus pés»
«Senhor, Tu que só os corações puros podem ver (Mt 5, 8), eu procuro, na leitura e na
meditação, encontrar a verdadeira pureza do coração e a forma de a obter para poder, graças a
ela, conhecer-Te, por pouco que seja. Procurei o Teu rosto, Senhor, procurei o Teu rosto (Sl
26, 8). Meditei muito dentro do meu coração, e um fogo se iluminou na minha meditação: o
desejo de Te conhecer melhor. Quando Tu partes para mim o pão da Sagrada Escritura, eu
reconheço-Te nessa fracção de pão (Lc 24, 30-35). E quanto melhor Te conheço, mais desejo
conhecer-Te, não só no sentido do texto, mas no sabor da experiência.
Não o peço, Senhor, pelos meus méritos, mas por causa da Tua misericórdia. Devo confessar
que sou, realmente, pecador e indigno, mas «mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa
as migalhas dos filhos». Dá-me portanto, Senhor, em fiança pela herança futura, ao menos
uma gota da chuva celeste para refrescar a minha sede, pois estou sequioso de amor. [...]»
É através deste tipo de discursos que a alma chama pelo seu Esposo. E o Senhor, que olha
pelos justos e que não ouve apenas as suas preces mas está presente nessa oração, não espera
pelo final. Ele interrompe o discurso a meio; aparece de repente, vem rapidamente ao
encontro da alma que O deseja, fluindo no doce orvalho do céu como o perfume mais
precioso. Ele recria a alma fatigada, alimenta a que tem fome, fortifica a sua fragilidade,
reaviva-a mortificando-a através de um admirável esquecimento de si própria, torna-a sóbria
ao enebriá-la.
Concílio Vaticano II
Declaração sobre a Igreja e as religiões não cristãs "Noatra Aetate", 1-2
"Aquela mulher era pagã"
Hoje, que o género humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as relações entre os
vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões nãocristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os
povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm de comum e os leva à
convivência.
Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem,
pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro género humano; têm também todos
um só fim último, Deus, que a todos estende a sua providência, seus testemunhos de bondade
e seus desígnios de salvação até que os eleitos se reunam na cidade santa, iluminada pela
glória de Deus e onde todos os povos caminharão na sua luz. Os homens esperam das diversas
religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem,
profundamente preocupam seus corações...
Todas as religiões que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das
inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e
também ritos sagrados.
A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com
sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se
afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem não
raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem
mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo. 14,6),
em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou
consigo todas as coisas.
[Referências bíblicas: Ac 17,26; Sb 8,1; Ac 14,17; 1Tm 2,4; Ap 21,23; Jo 14,6; 2Co 5,18-19]
Evangelho segundo S. Marcos 7,31-37.
Tornando a sair da região de Tiro, veio por Sídon para o mar da Galileia, atravessando o
território da Decápole. Trouxeram-lhe um surdo tartamudo e rogaram-lhe que impusesse as
mãos sobre ele. Afastando-se com ele da multidão, Jesus meteu-lhe os dedos nos ouvidos e
fez saliva com que lhe tocou a língua. Erguendo depois os olhos ao céu, suspirou dizendo:
«Effathá», que quer dizer «abre-te.» Logo os ouvidos se lhe abriram, soltou-se a prisão da
língua e falava correctamente. Jesus mandou-lhes que a ninguém revelassem o sucedido; mas
quanto mais lho recomendava, mais eles o apregoavam. No auge do assombro, diziam: «Faz
tudo bem feito: faz ouvir os surdos e falar os mudos.»
Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (Norte de África) e doutor da Igreja
Discurso sobre os salmos, Sl 102, 5-6; PL 37, 1319
«Jesus conduziu-o para longe, afastado da multidão, e colocou-lhe os dedos sobre as
orelhas»
«Deus cura-te de toda a enfermidade.» (Sl 102,3) Todas as tuas doenças serão curadas, não
temas. Dirás que elas são grandes; mas o médico é maior. Para um médico todo poderoso, não
há doenças incuráveis. Deixa-te simplesmente tratar, não rejeites a Sua mão; Ele sabe o que
tem a fazer. Não te alegres só quando Ele actua com doçura, mas suporta-o também quando
Ele talha. Aceita a dor do remédio pensando na saúde que te vai restituir.
Vede, meus irmãos, tudo o que suportam os homens nas suas doenças físicas para
prolongarem a sua vida por alguns dias... tu, ao menos, não sofres por um resultado duvidoso:
Aquele que te prometeu a saúde não se pode enganar. Porque é que os médicos por vezes se
enganam? Porque não criaram o corpo que tratam. Mas Deus fez o teu corpo, Deus fez a tua
alma. Ele sabe como recriar aquilo que criou; Ele sabe como reformar aquilo que formou. Tu
só tens de te abandonar nas Suas mãos de médico... suporta, pois, as suas mãos, ó alma que «o
bendizes e não esqueces nenhum dos seus benefícios: Ele cura-te de todas as doenças» (Sl
102, 2-3).
Aquele que te fez para nunca estares doente, se tu tiveres querido guardar os Seus preceitos,
não há-de curar-te? Aquele que fez os anjos e que, recriando-te, te fará igual aos anjos, não
há-de curar-te? Aquele que fez o céu e a terra não há-de curar-te, depois de te ter feito à sua
imagem? (Gn 1,26) Ele curar-te-á, mas é preciso que tu consintas em ser curado. Ele cura
perfeitamente todo o doente, mas não o cura contra a sua vontade... A tua saúde é Cristo.
Concílio Vaticano II
«Gaudium et Spes», Constituição Dogmática sobre a Igreja no mundo actual, §§ 19-21
Alguns permanecem surdos aos apelos de Deus
A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. É
desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus; pois se
existe, é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele por amor constantemente conservado;
nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se
entregar ao seu Criador. Porém, muitos dos nossos contemporâneos não atendem a esta íntima
e vital ligação a Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal maneira que o ateísmo deve ser
considerado entre os factos mais graves do tempo actual. [...]
Enquanto alguns ateus negam expressamente Deus, outros pensam que o homem não pode
afirmar seja o que for a Seu respeito; outros ainda, tratam o problema de Deus de tal maneira,
que ele parece não ter significado. Muitos, ultrapassando indevidamente os limites das
ciências positivas, ou pretendem explicar todas as coisas só com os recursos da ciência, ou,
pelo contrário, já não admitem nenhuma verdade absoluta. [...] Outros concebem Deus de
uma tal maneira, que aquilo que rejeitam não é de modo algum o Deus do Evangelho. Outros
há que nem sequer abordam o problema de Deus: parecem alheios a qualquer inquietação
religiosa e não percebem por que motivo se devem ainda preocupar com a religião. Além
disso, o ateísmo nasce muitas vezes dum protesto violento contra o mal que existe no mundo.
[...]
Não se deve passar em silêncio, entre as formas actuais de ateísmo, aquela que espera a
libertação do homem sobretudo da sua libertação económica.
A Igreja [...], consciente da gravidade dos problemas levantados pelo ateísmo e levada pelo
amor que tem a todos os homens, entende que eles devem ser objecto de um exame sério e
profundo. A Igreja defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à
dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se realiza no próprio Deus. Com
efeito, o homem, ser inteligente e livre, foi constituído em sociedade por Deus Criador; mas é
sobretudo chamado a unir-se a Deus como filho e a participar na Sua felicidade.
Pregador do Papa: Jesus continua «tocando-nos» fisicamente para curar-nos
espiritualmente
Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre a liturgia do próximo domingo
ROMA, sexta-feira, 8 de setembro de 2006 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do Pe.
Raniero Cantalamessa, ofmcap. -- pregador da Casa Pontifícia -- sobre a liturgia do próximo
domingo, XXIII do tempo comum.
***
Efatá. Abre-te!
XXIII Domingo do tempo comum (B)
Isaías 35, 4-7a; Tiago 2, 1-5; Marcos 7, 31-37
A passagem do Evangelho nos refere uma bela cura realizada por Jesus: «Trouxeram então
um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão.
Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus
ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. Olhando para o céu, suspirou e disse:
“Efatá!”, que quer dizer “Abre-te”. Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se
soltou e ele começou a falar sem dificuldade».
Jesus não fazia milagres como quem move uma varinha mágica ou estala os dedos. Aquele
«gemido» que deixa escapar no momento de tocar os ouvidos do surdo nos diz que se
identificava com os sofrimentos das pessoas, participava intensamente em sua desgraça, se
encarregava dela. Em uma ocasião, depois de que Jesus havia curado muitos enfermos, o
evangelista comenta: «Ele tomou nossas fraquezas e carregou nossas enfermidades» (Mateus
8, 17).
Os milagres de Cristo jamais são fins em si mesmos; são «sinais». O que Jesus fez um dia por
uma pessoa no plano físico indica o que Ele quer fazer cada dia por cada pessoa no plano
espiritual. O homem curado por Cristo era surdo-mudo, não podia comunicar-se com os
outros, ouvir sua voz e expressar seus próprios sentimentos e necessidades. Se a surdez e
mudez consistem na incapacidade de comunicar-se corretamente com o próximo, de ter
relações boas e belas, então devemos reconhecer que todos somos, uns mais, outros menos,
surdo-mudos, e é por isso que Jesus dirige a todos aquele grito seu: efatá, abre-te!. A
diferença é que a surdez física não depende do sujeito e é totalmente sem culpa, enquanto a
moral é culpável. Hoje se evita o termo «surdo» e se prefere falar de «incapacidade auditiva»,
precisamente para distinguir o simples fato de não ouvir da surdez moral.
Somos surdos, por exemplo, quando não ouvimos o grito de ajuda que se eleva para nós e
preferimos pôr entre nós e o próximo o «duplo vidro» da indiferença. Os pais são surdos
quando não entendem que certas atitudes estranhas ou desordenadas dos filhos escondem um
pedido de atenção e de amor. Um marido é surdo quando não sabe ver no nervosismo de sua
mulher o sinal do cansaço ou a necessidade de um esclarecimento. E o mesmo quanto à
esposa.
Estamos mudos quando nos fechamos, por orgulho, em um silêncio esquivo e ressentido,
enquanto talvez com uma só palavra de desculpa e de perdão poderíamos devolver a paz e a
serenidade ao nosso lar. Os religiosos e as religiosas têm, no dia, tempos de silêncio, e às
vezes se acusam na Confissão, dizendo: «Quebrei o silêncio». Penso que às vezes deveríamos
acusar-nos do contrário e dizer: «Não quebrei o silêncio».
O que, contudo, decide a qualidade de uma comunicação não é simplesmente falar ou não
falar, mas falar ou não fazê-lo por amor. Santo Agostinho dizia às pessoas em um discurso: É
impossível saber em toda circunstância o que é o justo que se deve fazer: se falar ou calar, se
corrigir ou deixar passar algo. Eis aqui então que se dá uma regra que vale para todos os
casos: «Ama e faz o que quiseres». Preocupa-te de que em teu coração haja amor; depois, se
falas, será por amor, se calas, será por amor, e tudo estará bem porque do amor não brota mais
que o bem.
A Bíblia permite entender onde começa a ruptura da comunicação, de onde vem nossa
dificuldade para relacionar-nos de uma maneira sã e bela uns com os outros. Enquanto Adão e
Eva estavam em boas relações com Deus, também sua relação recíproca era bela e extasiante:
«Esta é carne de minha carne...». Enquanto se interrompe, pela desobediência, sua relação
com Deus, começam as acusações recíprocas: «Foi ele, foi ela...».
É daí de onde é preciso recomeçar cada vez. Jesus veio para «reconciliar-nos com Deus» e
assim reconciliar-nos uns com os outros. Ele o faz sobretudo através dos sacramentos. A
Igreja sempre viu nos gestos aparentemente estranhos que Jesus realiza no surdo-mudo (pôr
os dedos nos ouvidos e tocar a língua) um símbolo dos sacramentos graças aos quais Ele
continua «tocando-nos» fisicamente para curar-nos espiritualmente. Por isso, no batismo, o
ministro realiza sobre o batizando os gestos que Jesus realizou sobre o surdo-mudo: põe-lhe
os dedos nos ouvidos e lhe toca a ponta da língua, repetindo a palavra de Jesus: efatá, abre-te!
Em particular, o sacramento da Eucaristia nos ajuda a vencer a incomunicabilidade com o
próximo, fazendo-nos experimentar a mais maravilhosa comunhão com Deus.
[Traduzido por Zenit]
ZP06090801
Jean Tauler (cerca de 1300 - 1361), dominicano em Estrasburgo
Sermão 49
"Tudo o que faz é admirável: faz ouvir os surdos e falar os mudos"
Temos de olhar de perto o que é que torna o homem surdo. Por terem prestado ouvidos às
insinuações do Inimigo, por terem escutado as suas palavras, o primeiro par dos nossos
antepassados foram os primeiros a ensurdeceder. Também nós, depois deles, de tal forma que
não podemos nem ouvir nem compreender as amorosas inspirações do Verbo eterno. No
entanto, sabemos bem que o Verbo eterno está no fundo do nosso ser, tão inefavelmente perto
de nós e em nós que o nosso próprio ser, os nossos pensamentos, tudo o que podemos nomear,
dizer ou compreender, tudo isso não está tão perto de nós, não nos é tão intimamente presente
como o é o Verbo eterno. E o Verbo fala sem cessar dentro do homem. Mas o homem não
ouve tudo isso por causa da grande surdez de que foi atingido... Ao mesmo tempo, ele foi de
tal forma atingido nas suas outras faculdades que ficou também mudo e não se conhece a si
mesmo. Se quisesse falar do seu interior, não o poderia fazer, porque não sabe onde está nem
conhece a sua p rópria maneira de ser...
Que é então este sussurrar perigoso do Inimigo? É toda a desordem que ele te faz ver sob o
seu aspecto ilusório e te persuade a aceitar, servindo-se do amor ou da busca das coisas
criadas, deste mundo e de tudo o que se prende a ele: bens, honras, os nossos amigos e
parente, inclusive a tua própria natureza, numa palavra, tudo o que te traz o gosto por este
mundo decaído. De tudo isso é feito o seu sussurrar...
Vem então Nosso Senhor: põe o seu dedo santo na orelha do homem e a saliva na língua, o
que faz que o homem reencontre a palavra.
Santo Efrem (c. 306-373), diácono na Síria, doutor da Igreja
Sermão “sobre nosso Senhor», 10-11
«Pôs-lhe os dedos nas orelhas e...tocou-lhe a língua»
A força divina que o homem não pode tocar desceu, envolveu-se no corpo palpável, para que
os pobres a toquem e, tocando a humanidade de Cristo, percebam a Sua divindade. Através
dos dedos de carne, o surdo-mudo sentiu que tocavam as suas orelhas e a sua língua. Através
dos dedos palpáveis, percebeu a divindade intocável, quando o freio da sua língua se rompeu
e as portas fechadas das suas orelhas se abriram. É que o arquitecto e artesão do corpo veio
até ele e, com uma palavra doce, sem dor, criou aberturas em orelhas surdas; E então, de igual
modo, aquela boca fechada, até aí incapaz de dar à luz a palavra, deitou ao mundo o louvor
daquele que assim fazia dar fruto a sua esterilidade.
Da mesma forma, o Senhor fez lama com a Sua saliva e espalhou-a nos olhos do cego de
nascença (Jo 9,6) para nos levar a compreender que alguma coisa lhe faltava, como ao surdomudo. Uma imperfeição inata da nossa massa humana foi suprimida, graças ao fermento que
vem do Seu corpo perf eito... Para preencher o que faltava àqueles corpos humanos, deu
alguma coisa de Si mesmo, tal como se dá a comer [na Eucaristia]. É por este meio que Ele
faz desaparecer os defeitos e ressuscita os mortos, para que possamos reconhecer que, graças
ao seu corpo «onde mora a plenitude da divindade» (Col 2,9), os defeitos da nossa
humanidade são colmatados e a verdadeira vida é dada aos mortais por esse corpo onde habita
a verdadeira vida.
S. Lourenço de Brindisi (1559-1619), capuchinho, doutor da Igreja
Sermões
“Ele fez bem todas as coisas”
A Lei divina conta as obras que Deus realizou na criação do mundo, e acrescenta: “Deus viu
tudo o que tinha feito: era tudo muito bom” (Gn 1,31)... O Evangelho relata a obra da
Redenção e da nova criação, e diz do mesmo modo: “Ele fez bem todas as coisas” (Mc
7,37)... Certamente, pela sua natureza, o fogo não pode senão espalhar o calor, não pode
produzir o frio; o sol só difunde a luz, e não pode ser causa de trevas. Igualmente, Deus não
pode senão fazer coisas boas, porque ele é a bondade infinita, a própria luz. Ele é o sol que
espalha uma luz infinita, o fogo que dá um calor infinito: “Ele fez bem todas as coisas”...
A Lei diz que tudo o que Deus fez era bom, e o Evangelho que ele fez bem todas as coisas.
Ora, fazer coisas boas não é pura e simplesmente fazê-las bem. Muitos, na verdade, fazem
coisas boas sem as fazer bem, como os hipócritas que fazem certas coisas boas, mas com um
mau espírito, com uma intenção perversa e falsa. Deus, ele, fez todas as coisas boas e fê-las
bem. “O Senhor é justo em todos seus caminhos, fiel em tudo aquilo que fez” (Sl 144,17)... E
se Deus, sabendo que encontramos a nossa alegria naquilo que é bom, fez para nós todas as
suas obras boas e fê-las bem, porquê, de graça, não nos gastamos nós a fazer apenas obras
boas e a fazê-las bem, a partir do momento em que sabemos que Deus encontra nisso a sua
alegria?