O movimento comunista e as particularidades da - PPGHC
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O movimento comunista e as particularidades da - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA PPGHC Felipe Santos Deveza O MOVIMENTO COMUNISTA E AS PARTICULARIDADES DA AMÉRICA LATINA: Um Estudo Comparado do México, do Brasil e do Peru (1919-1930) Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira Tese apresentada como requisito para a obtenção do título de doutor no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rio de Janeiro Março de 2014 i ii Felipe Santos Deveza O Movimento Comunista e as Particularidades da América Latina: Um Estudo Comparado do México, Brasil e Peru (1919-1930) Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira iii FELIPE SANTOS DEVEZA O Movimento Comunista e as Particularidades da América Latina: Um Estudo Comparado do México, do Brasil e do Peru (1919-1930) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor. Área de concentração: História Comparada Linha de pesquisa: Poder e instituições Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira Aprovada em: 30/04/2014 BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Orientador) _________________________________________ Profa. Dra. Camila Oliveira do Valle (PPGCP-UFF) _________________________________________ Profa. Dra. Nazira Correia Camely (PPGEO - UFF) _________________________________________ Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (PPGHC - UFRJ) _________________________________________ Prof. Dr. Ivo José e Aquino Coser (PPGHC - UFRJ) iv A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis. (MARX - Teses sobre Feuerbach) v Dedico este trabalho a Adriana Cruz, minha companheira e exemplo diário de solidariedade, rebeldia e amor... vi Agradecimentos Em primeiro lugar eu preciso agradecer a minha companheira, Adriana, que acompanhou esse trabalho de perto, sendo obrigada a suportar ausências, e de diversas formas foi “vítima” de tudo que um trabalho de pesquisa deste demanda. Essa tese é um pouco dela também. Em segundo lugar, preciso agradecer a Professora Maria da Conceição de Góes, que acreditou neste trabalho lá no início, quando ainda era um esboço de projeto. E, naturalmente, preciso agradecer ao professor Wagner Pinheiro Pereira, que assumiu a orientação no meio, sempre preocupado em ajudar da melhor forma possível, crítico sincero e solidário. Sem a sua orientação teria sido muito difícil dar sentido a uma infinidade de questões e hipóteses que eu havia chegado quando nos conhecemos. Agradeço especialmente a professora Gracilda, que dirigiu o dia-a-dia do PPGHC enquanto estive cursando o doutorado, nos apresentando possibilidades, oportunidades e fazendo dos editais da CAPES algo realizável para todos nós. E nessa tarefa, a professora Gracilda contou sempre com a diligência e o trabalho sério da Márcia e da Leniza, e depois também da Andrea, funcionárias do PPGHC com quem sempre pudemos contar. Não posso deixar de agradecer a minha mãe, que me possibilitou uma educação formal e moral de qualidade, um privilégio neste país, sem o qual eu sequer poderia pensar em começar essa empreitada. Para a minha mãe são tantos agradecimentos... enumerá-los aqui seria impossível. Agradeço aos companheiros e alunos do PPGHC com quem dividi algumas aulas, conversas e momentos importantes na minha formação como historiador. Agradeço aos professores Ricardo Castro e a professora Sabrina Evangelista que avaliaram este trabalho na fase de qualificação, indicando importantes questões para que eu pudesse concluir a pesquisa. Agradeço ao professor Horácio Crespo, que orientou esta tese no México e teve um papel fundamental no debate das hipóteses e na indicação de fontes e arquivos. No México, tenho muitos para agradecer. Primeiramente ao amigo e colega, o professor Irving Reynoso e sua companheira Elsa, que me receberam e me possibilitaram todas as coisas que necessitei na estadia que tive na Cidade do México. Sou muito grato aos dois. Com Irving pude aprender muito sobre o movimento camponês mexicano, e sobre os mais variados assuntos da história do México. Foi imprescindível a sua solidariedade intelectual. No México também pude conviver por vários meses com alguns estudantes que me deram verdadeiras aulas do verdadeiro espanhol-mexicano, sempre com muita alegria e vii solidariedade. Foram eles: Nuria, Marta Sofia, Juan David, Estefania, Erick e Erik. Tive também a oportunidade de aprender muito sobre muralismo mexicano com um estudioso e praticante desse movimento artístico, Daniel Zaynos, que me guiou e apresentou a várias obras murais pela Cidade do México. Agradeço a equipe do CEMOS, que me ajudou na pesquisa dos arquivos do movimento operário mexicano. Agradeço especialmente ao amigo de longa data, Hugo Vellozo, que me ajudou a projetar e tocar o arquivo digital Memória Vermelha. Tenho que agradecer a diversos trabalhadores que se dedicam a organização das bibliotecas, arquivos, bem como aos que fornecem outros suportes para o trabalho acadêmico, seja limpando as salas, trabalhando em cantinas e cafés, além de todo tipo de trabalhos de manutenção que a infraestrutura universitária demanda. Agradeço aos meus companheiros de trabalho na Petrobras, que de diversas formas me ajudaram, apoiando e se solidarizando nos momentos em que eu precisava terminar alguma diligência acadêmica, ou parte desta tese. O convívio e a luta com os companheiros petroleiros foi fundamental para que eu pensasse sobre diversos aspectos do movimento operário. Agradeço especialmente ao Mauro Bonfim e ao Anderson Torres que sabem o quanto me ajudaram. Não posso esquecer da equipe do CEDEM, que me apresentou todo o material disponível no arquivo, particularmente o Luis Alberto Zimbarg e o professor Antonio Celso Ferreira. Agradeço ao André, pelo debate e crítica, que me ajudaram a encontrar respostas para várias hipóteses e a avançar por esse sendero complexo que é a história do movimento comunista. É importante, e formalmente obrigatório, registrar minha gratidão à CAPES, instituição que me forneceu recursos para uma bolsa sanduíche no México. E por fim, agradeço a juventude que tem resistido nas ruas à truculência terrorista do Estado brasileiro desde junho de 2013. A experiência deste momento de rebeldia na juventude me inspirou importantes reflexões e certamente o resultado deste trabalho teria sido muito diferente sem essa importante influência. viii O MOVIMENTO COMUNISTA E AS PARTICULARIDADES DA AMÉRICA LATINA: Um Estudo Comparado do México, Brasil e Peru (1919-1930) Esta pesquisa visa demonstrar como os comunistas desenvolveram suas primeiras interpretações acerca da realidade particular latino-americana ao longo da década de 1920. Nossa pesquisa inicia com o desenvolvimento do liberalismo em meio aos setores marginalizados das três repúblicas oligárquicas (Brasil, Peru e México), que encontraram a agitação anarquista, fermentando as rebeliões radicais anti-oligárquicos. Esse encontro entre anarquismo e rebelião antioligárquica obteve expressão em alguns movimentos de camponeses, em meio a intelectualidade marginalizada e em grupos do emergente proletariado das cidades. Com a ruptura provocada pela Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique em 1917, aparecem os primeiros grupos inspirados pela Internacional Comunista na América Latina. Esses primeiros grupos trazem e divulgam as primeiras obras marxistas. Após uma ruptura efetiva com a tradição libertária, esses grupos iniciam o processo de construção partidária e interpretação das realidades nacionais a partir do marxismo-leninismo. No México o esforço por interpretar a realidade mexicana esteve relacionado com o Muralismo Mexicano, com a formação da Liga Nacional Camponesa e com a formação das Ligas Antimperialistas, que por algum tempo estiveram sob a hegemonia do PCM. No Brasil as resoluções do II Congresso do PCB e o livro de Octávio Brandão, Agrarismo versus Industrialismo, foram o primeiro esforço em interpretar a tática dos comunistas para a Revolução Brasileira. E esse também foi o contexto e o sentido da obra do peruano José Carlos Mariátegui. Por último tratamos as rupturas nas frentes com as organizações e as classes nãoproletárias, que ocorreria até o ano de 1930. Procuramos analisar o conteúdo teórico da luta política que influenciou as rupturas do final da década de 1920, bem como compreender o papel da Internacional Comunista nesse processo. Palavras Chave: Comunismo, Marxismo-Leninismo, José Carlos Mariátegui, Internacional Comunista, marxismo na América Latina ix EL MOVIMIENTO COMUNISTA Y LAS PARTICULARIDADES DE LA AMÉRICA LATINA: Un Estudio Comparativo de México, Brasil y Peru (1919-1930) Esta investigación ha pretendido demonstrar como los comunistas desarrollarón sus primeras interpretaciones acerca de la realidade particular de latinoamerica, apartir de uma comparación de tres reaalidade, Brasil, Peru y México en los años 1920. Empezamos com el desarrollo del liberalismo de los setores marginados de las repúblicas estudiadas que encontrarón la agitación anarquista, fermentando las rebeliones radicales antioligarquicas. Este encuentro entre anarquismo y rebelión antioligarquica obtiene expression en algunos movimientos campesinos, em medio a la intelectualidad marginada y en grupos del emergente proletariado de las cidades. Con la ruptura provocada por la interrupción causada por la Primera Guerra Mundial y la Revolución Bolchevique en 1917, aparecen los primeros grupos inspirados por el significado de la Internacional Comunista en América Latina. Estos primeros grupos traen y dan a conocer las primeras obras marxistas. Después de una ruptura efectiva de la tradición libertaria, estos grupos comienzan el proceso de construcción del partido y la interpretación de la realidad nacional desde el marxismoleninismo. En México el esfuerzo de interpretar la realidad mexicana estaba relacionado con el muralismo mexicano, con la formación de la Liga Nacional Campesina y la formación de Ligas Antimperialistas, que durante algún tiempo estuvo bajo la hegemonía del PCM. En Brasil las resoluciones del II Congreso del PCB y el libro de Octavio Brandão, industrialismo vs agrarismo, fue el primer esfuerzo por interpretar la táctica de los comunistas para la revolución brasileña. Y este fue también el contexto y el significado de la obra del peruano José Carlos Mariátegui . Por fin tratamos las rupturas en las frentes con las organizaciones y las clases noproletarias, que tendrían lugar en el año 1930 . Tratamos de analizar el contenido teórico de la lucha política que influyó en las interrupciones de la década de 1920, así como la comprensión del papel de la Internacional Comunista en el proceso. Palabras Clave: Comunismo, Marxismo-Leninismo, José Carlos Mariátegui, Internacional Comunista, marxismo en la América Latina x THE COMMUNIST MOVEMENT AND LATIN AMERICA’S PARTICULARITIES: A compared study between Mexico, Brazil and Peru (19191930) This research aimed to demonstrate how communists developed their first interpretations concerning to the particular Latin-America reality throughout the 1920’s. Our research begins with the development of liberalism among marginalized sectors of the three oligarchic republics (Brazil, Peru and Mexico), which had faced the anarquist turmoil, fermenting the antioligarchic radical rebellions. This encounter between anarquism and antioligarchic rebellion obtained expression in a few peasant movements, amid the marginalized intellectuality and in groups of the emergent city proletariat. With the disruption caused by World War I and the Bolshevik Revolution in 1917, the first groups inspired by the Latin America International Communist movement appeared. After an effective disruption with the libertarian tradition, these groups began the party construction and interpretation of national realities from Marxism-Leninism. In Mexico, the efforts to interpret the Mexican reality had been related with the Mexican Muralism, with the formation of the National Peasant League and the Antiimperialist Leagues, that had been under PCM’s hegemony for a while. Agrarianism versus Industrialism was the first efforts to interpret the communist tatic for the Brazilian Revolution. And this was also the context and the meaning of the Peruan’s work José Carlos Mariátegui. Finally, we also covered the front disruption with the organizations and nonproletarian classes, which occurred up to the end of 1930. We tried to analyze the theorical content of the political fight that influenced the disruptions in the late 1920’s, as well as to comprehend the role of the International Communist movement in this process. Keywords: Communism, Marxism-Leninism, José Carlos Mariátegui, International Communist movement, Marxism in Latin America. xi Indice de ilustrações Figura 1 - "Homenagem a Posada", Leopoldo Mendez, linoleogravura s/papel, s/d.. ........ 44 Figura 2 – Botoncito do Partido Liberal Mexicano ............................................................. 47 Figura 3 - Representação do zapatismo em uma gravura de Posada. .................................. 51 Figura 4 – Francisco “Pancho” Villa na silla presidencial, ao lado de Zapata .................... 56 Figura 5- Gravura de Posada representando a destruição da Primeira Guerra .................... 72 Figura 6 - "Batalhas do Ocidente", José Clemente Orozco ................................................. 80 Figura 7 - Capa do Jornal O Cosmopolita tratando os mártires de Chicago. ...................... 88 Figura 8 – Charge publicada em Fon-Fon que relaciona os “maximalistas” como o gado da Alemanha ............................................................................................................................. 94 Figura 9 – Charge de Fon-Fon em que um “maximalista” russo está sendo manipulado por um mascarado em Brest-Litovski ........................................................................................ 95 Figura 10 – Jornal A Época apresentando Kerenski como a “alma da democracia Russa” 96 Figura 11 - "Pleito de Vencidad", José Guadalupe Posada ................................................ 121 Figura 12 - Desenho de Emiliano Zapata na Revista Amauta, por Diego Rivera ............. 123 Figura 13 - Ilustração do livreto publicado para a Convenção Agrarista de Tamaulipas (1927) ................................................................................................................................ 129 Figura 14 - Ilustração interna da brochura para as ligas agraristas. .................................. 130 Figura 15 - Aliança operária e camponesa, desenho de Rivera (1924) ............................. 135 Figura 16: Primo Tapia e Úrsulo Galván em 1924 ............................................................ 141 Figura 17: Desenho de José Guadaalupez Rodriguez, feito por Diego Rivera, publicado na Classe Operária .................................................................................................................. 142 Figura 18 - Agraristas enforcados. Detalhe do Mural do Palácio do Governo, de Diego Rivera (1929-1930) .......................................................................................................... 144 Figura 19 - Livro Fermín, divulgação agrarista ilustrada pelos muralistas. ...................... 145 Figura 20 - Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera. .............................................. 145 Figura 21 – Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera............................................... 146 Figura 22 – Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera............................................... 146 Figura 23: A imagem da comunista Frida Kahlo em um rótulo de cerveja mexicana. ...... 148 Figura 24 – Autortrato com Stalin, 1954, Frida Kahlo ...................................................... 149 Figura 25 - Pesadilla de Guerra y sueño de paz, Diego Rivera (1952) ............................. 150 Figura 26 - Inovações técnicas de Siqueiros, o movimento no mural. .............................. 151 Figura 27 – Barda Mural em homenagem ao Cinquentenário do Movimento Muralista Mexicano ........................................................................................................................... 155 Figura 28 - Vasconcelos na Revista Amauta ..................................................................... 157 Figura 29 - Almoço em que aparecem Rivera e Vasconcelos em Chapultepec (1923) ..... 160 Figura 30: "Episódios da Conquista", Felix Parra, 68 x 109 cm (1877) ........................... 162 Figura 31 – Siqueiros durante o período que serviu nas forças constitucionalistas, durante a Revolução Mexicana. ........................................................................................................ 164 Figura 32:"La Creación" de Diego Rivera, Auditório Simon Bolívar do Antíguo Colegio San Ildefonso (1923) ......................................................................................................... 165 Figura 33 - Alegoria de la Virgen de Guadalupe, Fermn Revueltas (1923) ...................... 167 Figura 34 - Los Elementos Siqueiros (1922-23) ............................................................... 167 Figura 35 - La Catrina, as caveiras popularizadas pelo gravador José Guadalupe Posada 169 Figura 36 - Dia dos Mortos, Diego Rivera, Pintado na SEP (1923-4) .............................. 170 Figura 37 – Orozco de macação, em cima de uma escada, uma imagem típica dos "pintores proletários" muralistas. ...................................................................................................... 171 xii Figura 38- Ilustração de Rivera na capa da revista soviética Krasnaya Niva (1928) ....... 173 Figura 39 - A aristocracia, de José Clemente Orozco. ....................................................... 176 Figura 40 - La Siembra, de Fermín Revueltas (1932) ....................................................... 178 Figura 41 – Desenho de Fermín Revueltas (1934) ........................................................... 179 Figura 42 - Quetzalcóatl antimperialista .......................................................................... 180 Figura 43 - Planta do 3º andar da SEP, com a numeração dos murais. ............................. 181 Figura 44 - Rascunho para “La Cooperativa”, Diego Rivera, (1928) .............................. 182 Figura 45 – “La Cooperativa”, Diego Rivera (1928) ........................................................ 182 Figura 46 – “El Trabajo”, Diego Rivera, 2º andar da SEP (1924) ..................................... 183 Figura 47 - Mural simbolizando a aliança operária e camponesa, Diego Rivera (SEP) ... 183 Figura 48 – “Simbolos da Nova Ordem”, Diego Rivera, Chapingo.................................. 184 Figura 49 – Coatlicue, deusa mexica ................................................................................. 185 Figura 50 – Foto de Tina Modotti, representação do comunismo mexicano. ................... 185 Figura 51 – “El Arsenal”, Diego Rivera, terceiro andar da SEP (1928) ............................ 188 Figura 52 – “Reparto de tierras”, Diego Rivera, Chapingo (1924) ................................... 189 Figura 53 - Porta da Capilla Riveriana, desenho de Diego Rivera, Chapingo (1929) ...... 191 Figura 54 - Porta da Capilla Riveriana, desenho de Diego Rivera, Chapingo (1929) ...... 192 Figura 55 - Mural de Rivera em que os trabalhadores decidem o seu destino. ................. 192 Figura 56 - Detalhe do Mural de Chapindo, em que o capataz dos fazendeiros seguram um papel dizendo: "eu defendo meus amos contra meus próprios irmãos" ............................ 193 Figura 57 - Detalhe do teto da Capilla Riveriana, em Chapingo. ...................................... 193 Figura 58 – Aliança operário e camponesa, Chapingo. ..................................................... 194 Figura 59 - Comando da Coluna Prestes (1925) ............................................................... 196 Figura 60 - Trecho do Jornal A Nação em que aparecem analises da direção do PCB derivadas da tese Agrarismo x Industralismo. ................................................................... 205 Figura 61 – Manchete do Jornal A Classe Operária defendendo a candidatura do BOC no pleito eleitoral .................................................................................................................... 206 Figura 62 – "Los Sabios", Diego Rivera, SEP, México. Representa a elite intelectual burguesa. ............................................................................................................................ 207 Figura 63 – Detalhe da imagem ao lado, com uma lista de autores liberais e positivistas preferidos pela antiga elite intelectual porfirista ............................................................... 207 Figura 64 – “El que quiera comer que trabaje”, Diego Rivera, SEP (1928) ..................... 208 Figura 65 – Retrato de Barbusse em Amauta .................................................................... 214 Figura 66 – Credencial de Mariátegui no Congresso de Livorno..................................... 220 Figura 67 - Lenin na Revista Amauta ................................................................................ 223 Figura 68 - APRA na Revista Amauta ............................................................................... 226 Figura 69 - Dzerchinsky no primeiro número de Amauta ................................................. 227 Figura 70 - Artigo de Martínez de La Torre em Amauta, sobre a estabilização capitalista. ........................................................................................................................................... 270 Figura 71 - Desenho de Rivera para o Congresso de Bruxelas (1927) ............................. 281 Figura 72 - Artigo da Revista Amauta acompanhando os acontecimentos na China. (1928) ........................................................................................................................................... 287 Figura 73 – A Revista Amautta aderiu a campanha internacional em defesa da vida dos anarquistas Sacco e Vanzetti (1927) .................................................................................. 296 Figura 74 - Capa da Revista Amauta, com uma gravura indigenista de Sabogal. ............. 304 Figura 75 – “Família Russa”, Diego Rivera (1928) .......................................................... 313 Figura 76 – Ilustração de Rivera no livro Fermín comemorando os 10 anos da Revolução Russa.................................................................................................................................. 315 xiii Figura 77 - Retrato de Stalin em Amauta .......................................................................... 317 Figura 78 - A revista Amauta publicou notícias do Plano Quinquenal soviético. ............. 327 Figura 79 - Capa do Jornal El Machete expondo a ruptura entre comunistas e Sandino. . 349 xiv Lista de abreviaturas e siglas APRA – Aliança Popular Revolucionária Americana ASMOB – Archivo Storico del Movemento Operaio Brasiliano BO – Bloco Operário BOC – Bloco Operário e Camponês CCE – Comissão Central Executiva do Partido Comunista do Brasil CEIC – Comitê Executivo da Internacional Comunista CGT – Central Geral dos Trabalhadores COB – Confederação Operária Brasileira Comintern – Internacional Comunista IC – Internacional Comunista ou III Internacional ICCLA – Primeira Conferência Comunista Latino-Americana ISV – Internacional Sindical Vermelha (ISR, em espanhol) IWW – Industrial World Worker KPD- Kommunistische Partei Deutschlands Krestintern – Internacional Camponesa LCAEV – Liga de Comunidades Agrarias do Estado de Veracruz LNC – Liga Nacional Campesina OIT – Organização Internacional do Trabalho PAP – Partido Aprista Peruano PC – Partido Comunista PCA – Partido Comunista da Alemanha PCB – Partido Comunista do Brasil PCI – Partido Comunista da Itália PCM – Partido Comunista do México PCP – Partido Comunista do Peru PLM – Partido Liberal Mexicano PNA - Partido Nacional Agrarista PRI - Partido Revolucionario Institucional (México). PRM - Partido de la Revolución Mexicana. PSI – Partido Socialista Italiano PSP – Partido Socialista do Peru xv SOTPE – Sindicato de Operários, Técnicos, Pintores e Escultores SRI – Sindicato Revolucionário Inquilinário SSAIC – Secretariado Sulamericano da Internacional Comunista TUC- Trade Union of Commonwealth. xvi Sumário INDICE DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................................... XII INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 3 1º CAPÍTULO – O MOVIMENTO RADICAL ANTES DOS COMUNISTAS ....................................... 20 A HIPÓTESE DE ARICÓ ................................................................................................................................. 21 O LIBERALISMO RADICAL QUE SE TORNA ANARQUISTA: A CRÍTICA SOCIAL DE MANUEL GONZÁLEZ PRADA 28 A REBELDIA DE RICARDO FLORES MAGÓN .................................................................................................. 37 REBELIÃO ZAPATISTA E ANARQUIA NOS ANDES ........................................................................................... 48 REBELIÃO INDÍGENA E O ANARQUISMO ....................................................................................................... 58 A GRANDE RUPTURA: A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E A REVOLUÇÃO RUSSA ......................................... 68 A REFUNDAÇÃO LENINISTA ......................................................................................................................... 79 REPERCUSSÕES DA REVOLUÇÃO RUSSA NO BRASIL .................................................................................... 84 OS PRIMEIROS “BOLCHEVIQUES” MEXICANOS ........................................................................................... 100 2º CAPÍTULO – OS COMUNISTAS LATINO-AMERICANOS DESCOBREM AS CLASSES NÃOPROLETÁRIAS .......................................................................................................................................... 103 O LENINISMO PARA A PERIFERIA................................................................................................................. 104 OS COMUNISTAS ALÉM DO MOVIMENTO PROLETÁRIO .................................................................................113 ESTOU DE GREVE, NÃO PAGO ALUGUEL! .....................................................................................................119 O NASCIMENTO DA LIGAS CAMPONESAS E DO AGRARISMO ROJO ............................................................. 122 ÚRSULO GALVÁN, O LÍDER CAMPONÊS COMUNISTA................................................................................... 126 OS COMUNISTAS COMBATEM A REBELIÃO DELAHUERTISTA DE ARMAS NA MÃO ........................................... 127 O PCM ENCONTRA OS ARTISTAS, QUE DESCOBREM UM MOTIVO: A REVOLUÇÃO SOCIAL .......................... 147 DIEGO RIVERA, O MURALISTA ................................................................................................................... 159 SIQUEIROS, O “TEÓRICO” DO MURALISMO ................................................................................................. 163 O SINDICATO DE OPERÁRIOS, TÉCNICOS, PINTORES E ESCULTORES .......................................................... 175 AS PRIMEIRAS INTERPRETAÇÕES VISUAIS MARXISTAS DA HISTÓRIA DO MÉXICO: OS MURAIS DA SEP E DE CHAPINGO ................................................................................................................................................. 180 CHAPINGO, OS MURAIS DO PROBLEMA AGRÁRIO MEXICANO ...................................................................... 189 A CRISE DO ESTADO BRASILEIRO E O TENENTISMO .................................................................................... 195 AGRARISMO E INDUSTRIALISMO ................................................................................................................ 198 JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI E OS BOLCHEVIQUES ...................................................................................... 209 MARIÁTEGUI E SEU APRENDIZADO EUROPEU ............................................................................................. 215 O MODELO POR TRÁS DOS SETE ENSAIOS.................................................................................................... 230 A NACIONALIDADE EM FORMAÇÃO E O PROCESSO DA LITERATURA............................................................ 253 3º CAPÍTULO – TENSÕES COM OS NACIONALISTAS “PEQUENO-BURGUESES” E A RUPTURA DA FRENTE ÚNICA. .............................................................................................................. 259 O V CONGRESSO DA INTERNACIONAL COMUNISTA, BOLCHEVIZAÇÃO DOS PARTIDOS COMUNISTAS E CONSTRUÇÃO DE FRENTES ÚNICAS PARA GANHAR AS AMPLAS MASSAS ..................................................... 260 A BOLCHEVIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA.................................................................................................... 268 O QUE É O ARPA? ..................................................................................................................................... 297 A REVISTA AMAUTA .................................................................................................................................. 302 O VI CONGRESSO DA IC E OS COMUNISTAS LATINO-AMERICANOS ............................................................. 312 A PRIMEIRA CONFERÊNCIA COMUNISTA LATINO-AMERICANA DE BUENOS AIRES ..................................... 327 A AMÉRICA LATINA NA REVOLUÇÃO MUNDIAL E O “PROBLEMA DA TÁTICA DOS PARTIDOS COMUNISTAS” .................................................................................................................................................................. 329 O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO DA REALIDADE COLONIAL E SEMICOLONIAL PARA A AMÉRICA LATINA (1929) .................................................................................................................................................................. 334 O PROBLEMA DAS RAÇAS NA AMÉRICA LATINA NA LINHA DO VI CONGRESSO DA INTERNACIONAL COMUNISTA ............................................................................................................................................... 343 CONCLUSÃO ............................................................................................................................................. 350 CRONOLOGIA: ......................................................................................................................................... 366 xvii ARQUIVOS E BIBLIOTECAS CONSULTADAS: .................................................................................. 384 FONTES ....................................................................................................................................................... 384 PERIÓDICOS CONSULTADOS ....................................................................................................................... 384 CONJUNTOS MURAIS CONSULTADOS .......................................................................................................... 385 CATÁLOGOS DE ARTE E SOBRE O MURALISMO........................................................................................... 385 DICIONÁRIOS ............................................................................................................................................. 387 FILMOGRAFIA ............................................................................................................................................ 387 MEMÓRIAS ................................................................................................................................................ 387 DOCUMENTOS, RESOLUÇÕES, LIVROS, CARTAS E FOLHETOS IMPORTANTES ................................................ 388 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 394 ANEXOS ...................................................................................................................................................... 409 ANEXO A – O POVO MEXICANO ESTÁ APTO PARA O COMUNISMO ........................................................... 409 ANEXO B - TRECHOS DAS RESOLUÇÕES 2º CONGRESSO DA INTERNACIONAL COMUNISTA: “TESES E ACRÉSCIMOS SOBRE AS QUESTÕES NACIONAL E COLONIAL” .....................................................................411 xviii Introdução Em 1980, José Aricó publicava pela primeira vez o livro Marx y América Latina1, a partir do exílio no México. Entre as questões que ele tratou nesse texto, estava a tentativa de responder a uma antiga preocupação dos marxistas latinoamericanos e que mobilizava esforços do grupo que debatia marxismo em torno da Revista Pasado y Presente2,3: onde buscar as razões do desencontro entre socialismo e América Latina? Se socialismo e movimento operário são ainda hoje na Europa dois aspectos de uma mesma realidade – por mais contraditórias e nacionalmente diferenciadas que se evidenciem suas relações –, na América Latina constituem duas histórias paralelas que em contadas ocasiões se identificaram e que na maioria dos casos se mantiveram separadas e até opostas entre si. (ARICÓ, 1999, p. 23). A preocupação acadêmica e militante de Aricó não era solitária e nem apenas vinculada apenas ao grupo de Pasado y Presente. Outros intelectuais marxistas buscaram na história a explicação para a dificuldade do socialismo em nosso continente. No Brasil, Leandro Konder foi um exemplo. Imbuído por um similar sentimento de perplexidade frente às derrotas da esquerda e às equivocadas avaliações do Partido Comunista Brasileiro4 no contexto do Golpe Militar de 1964, buscou compreender melhor a formação do movimento comunista brasileiro e as formulações políticas que o guiaram5. Essa busca por explicar os desencontros entre marxismo e América Latina levou 1 ARICÓ, José de. Marx e América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. A partir da revista Pasado y Presente desenvolveu-se uma série de publicações agrupadas na coleção Cuadernos del Pasado y Presente que até os dias atuais são uma das mais importante compilação de documentos, coleções de textos e analises acerca de Marx, do marxismo e da história do socialismo na América Latina. Por trás dessa publicação e como principal animador desse grupo de intelectuais e ativistas esteve José de Aricó (1931-1991). Outros nomes importantes de grupo foram: Juan Carlos Portantiero, Oscar del Barco, Hector Schmucler, entre outros. Os Cuadernos del Pasado y Presente tiveram 98 números e podem ser divididos em três períodos, 1968-1970 (1 ao 16), em Córdoba; o segundo, 1970-1975 (17 ao 65) em Buenos Aires, o último, 1976-1983 (63 ao 98) no México. 3 Cf. CRESPO, Horácio. En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente, 1968-1983, s/d. Disponível em: <http://shial.colmex.mx/textos/crespo.pdf>. Acesso em: 17 set. 2011. 4 Referimo-nos ao PCB de Prestes, já que o PCdoB, que desde 1962 havia rompido com o PCB, estava transferindo militantes para o campo e dirigindo a luta dos comunistas para a estratégia da Guerra Popular Prolongada, estratégia que havia sido vitoriosa na China, na Coreia e depois seria também na luta anticolonial em vários países, particularmente os da antiga Indochina. 5 O livro de Konder que tratou a recepção do marxismo no Brasil foi: KONDER, Leandro. A Derrota da Dialética: A recepção das Ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 2 3 ao debate do que seria particular no Brasil e qual a relação entre especificidade regional e marxismo. José de Aricó estudou os textos de Marx sobre Bolívar; as edições de Pasado y Presente, que ele dirigia, publicaram compilações sobre escritos de Marx que tratavam da América Latina, e também escreveu uma reflexão inovadora acerca da recepção do marxismo na América Latina, “A Hipotesis del Justo”6. Em meio às investigações sobre a trajetória das ideias marxistas em nosso continente, Aricó chegou aonde muitos que seguiram esse raciocínio chegaram: na obra do peruano José Carlos Mariátegui. Mariátegui, ao longo da década de 1920, havia produzido uma interessante e inovadora reflexão acerca da realidade peruana a partir do marxismo. Depois de sua morte, em 1930, a obra de Mariátegui havia sido criticada pela direção do Partido Comunista do Peru – partido que havia ajudado a fundar – e foi esquecido pelo movimento comunista. Somente a partir da década de 1950 a obra de Mariátegui seria retomada e, a partir da década de 1970, estudada sistematicamente pelas correntes da esquerda latinoamericana, que buscavam uma alternativa para os modelos soviéticos de Partido Comunista7. Nesse contexto, Aricó descobriu Mariátegui e publicou um ensaio intitulado “Mariátegui y los Orígenes del Marxismo Latino-americano”8, em que ressaltava o que depois Michel Lowy9 denominaria de “heterodoxia” do pensamento de Mariátegui. O que chamava a atenção desses autores para o pensamento de Mariátegui eram algumas inovações conceituais que o afastavam da “ortodoxia” da Internacional Comunista, e uma análise original da formação histórica peruana, grande parte presente nos “Siete Ensayos”10. 6 ARICÓ, José de. La Hipótesis del Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999. 7 É importante sublinhar que, quando falamos de modelo soviético, não estamos nos referindo ao modelo leninista de PC, mas da estrutura que a partir de meados dos anos 1950 dominou a maioria dos Estados do que ficou conhecido como “bloco socialista”. É importante verificar que a China produziu uma crítica importante ao “modelo soviético”, bem como o chamado “guevarismo” ou “castrismo” nascido da revolução cubana, e possuía uma importante crítica à burocracia do PCUS pós-1956. Trataremos essa questão ao longo do texto. 8 ARICÓ, José de. “Mariátegui y los Orígenes del Marxismo Latino-americano”. In: _______. La Hipótesis de Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999. 9 LÖWY, Michael (Org.). O Marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Tradução de C. Schilling e Luís C. Borges. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999. 10 Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana é a principal obra de José Carlos Mariátegui e até hoje o livro mais vendido de um autor peruano no mundo. MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de 4 O que Mariátegui trazia de diferente e original era o papel das comunidades indígenas na Revolução Socialista no Peru, a inversão da lógica “progressivista”11 da conquista espanhola no Peru e o papel do mito para a revolução peruana, além de seu estilo pouco programático e mais ensaísta. Para a esquerda, um trecho de um dos textos de Mariátegui sintetizava a percepção que se tinha da obra de José Carlos Mariátegui: “O socialismo no Peru não será nem cópia, nem decalque, mas criação heroica”. (MARIÁTEGUI, 1994). E, sobre o que seria essa criação, socialistas12, comunistas e até apristas têm debatido em milhares de páginas na América Latina e no mundo. O que Mariátegui passava a simbolizar nos debates da esquerda latino-americana era a crítica ao espelhismo (reprodução acrítica e mecânica) do marxismo produzido em outras experiências sociais, particularmente europeias e soviéticas, sem uma análise do que teríamos de particular. Essa reprodução automática de fórmulas explicaria grande parte das derrotas da esquerda latino-americana em construir uma alternativa socialista no continente, ou, ao menos, explicava a dificuldade em fundir o socialismo às tradições radicais do movimento popular. interpretação da realidade peruana. Tradução de S.O. de Freitas e Caetano, prefácio de F. Fernandes. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. 11 Utilizamos o termo progressivista, para substituir evolucionista ou positivista, conforme trataremos nos capítulos que seguem. Ambos os termos são insuficientes para tratarmos a corrente do marxismo que defendeu a sucessão de modos de produção, do escravismo ao socialismo, de forma mecânica e simplista. Evolucionismo e positivismo são correntes do pensamento liberal, e seguem outros pressupostos estranhos ao marxismo. 12 O termo socialista tem contexto e história, e não pode ser definido com poucas palavras. Os marxistas anteriores à Revolução Russa, em oposição às correntes anarquistas, libertárias e sindicalistas, utilizaram dois termos para si: social-democratas ou socialistas. Ou seja, as correntes marxistas filiadas na Segunda Internacional (1889-1914), se reconheciam pelo nome de socialistas, e em vários países denominavam seus partidos como social-democratas. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa impõe uma cisão entre os marxistas, de forma que os “social-democratas de esquerda”, os que se opuseram à guerra imperialista, e estiveram presentes na Conferencia de Zimmerwald (setembro de 1915), fundaram a Internacional Comunista em 1919, e resolveram denominar esses marxistas revolucionários, como comunistas. O discurso inaugural de Lenin no Primeiro Congresso da IC deixa claro o problema do nome e a opção por comunista. O problema é que os comunistas jamais abriram mão do nome socialista, geralmente atacando a corrente reformista do marxismo como social-democrata, por vezes também como socialistas, ou socialistas reformistas. Na obra de José Carlos Mariátegui, muito próxima em tempo a essa cisão do marxismo, é utilizado o termo socialismo para definir muitas coisas diferentes, e por isso, normalmente a palavra socialista aparece com adjetivos, como “socialismo revolucionário”, “socialismo reformista”, “socialistas de Amsterdam” para se referir aos comunistas ou social-democratas, afora quando socialista designa algo da economia soviética, ou mesmo uma postura ideológica antiliberal. Enfim, socialismo não é uma palavra precisa nas fontes, sempre necessita de contexto. Nós, em termos de definição de correntes políticas, utilizaremos apenas para tratar o marxismo reformista, ou o que atualmente denominamos como social-democracia. Naturalmente socialismo está, em economia e como descrição de uma sociedade, referindo-se a um sistema político, que na versão de Lenin, presente no Estado e a Revolução (1918), trata-se da “ditadura do proletariado”, a forma de Estado intermediário entre o capitalismo e o comunismo, este último a sociedade sem classes. 5 Esses debates acerca da particularidade da revolução na América Latina estavam diretamente relacionados aos ecos da Revolução Cubana na esquerda. O próprio Aricó havia militado em uma organização guevarista na Argentina, e tudo indicava que a dificuldade em se tratar a particularidade latino-americana era um importante fator para a explicação das dificuldades da esquerda em obter êxitos no continente. O debate foi interrompido pelos efeitos da queda do muro em Berlin e a fragmentação da URSS, que trouxeram novas preocupações para os estudos acadêmicos, distanciando o marxismo e o movimento comunista das preocupações historiográficas da década de 1990. Foi apenas depois das consequências negativas das políticas denominadas como “neoliberais”, a partir do início do século XXI, e a vitória eleitoral de governos que reivindicavam, ao menos em discurso, um projeto de esquerda, como Hugo Chávez, Evo Morales, o casal Kirchner e o governo do PT no Brasil, que Mariátegui voltou a aparecer como o centro das preocupações de alguns estudiosos do movimento popular latino-americano, especialmente quando se tratava da questão indígena (tema importante para os países andinos) e das particularidades do continente latino-americano no marxismo. Como acontece com muitos autores importantes, Mariátegui passou a representar muito mais que a sua própria obra. Desde sua redescoberta na década de 1950, ele foi referência para muitas lutas políticas entre os partidos peruanos e seu pensamento tornou-se tão multifacetado que é difícil apreender sua figura histórica em meio ao tanto que se citou, se escreveu e se reivindicou em seu nome. A obra de Mariátegui descolou-se de sua própria trajetória política, e por muitas vezes de seus próprios textos13. Alberto Flores Galindo14 chamou atenção para essa perda da figura histórica de Mariátegui e concentrou-se na tentativa de reconstruir o ambiente em que viveu Mariátegui, suas influências e experiências políticas. Galindo buscou nos mais diversos dados daquela realidade, como na economia peruana, na demografia, nas influências ideológicas e até nas polêmicas entre o aprismo e a Internacional Comunista, as fontes do pensamento de Mariátegui. Ao longo do texto, demonstraremos que o que se denomina como “Obra de Mariátegui”, pode, inclusive, ter contradições com o próprio texto escrito por Mariátegui, tamanha a importância que as interpretações alcançaram para os estudos sobre o amauta peruano. Esse fenômeno pode ser facilmente observado com a “Obra de Marx”, de Gramsci, entre outros. 14 FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Lima: SUR, 1994. 13 6 Nesse esforço por compreender o pensamento de Mariátegui, as conclusões costumaram isolar Mariátegui de seu meio e militância política, sempre solitário e excepcional no seu tempo. Tanto Flores Galindo15 quanto José Aricó e mesmo Michel Löwy tenderam a isolar Mariátegui dos coletivos comunistas e a explicá-lo como exceção ao ambiente “superficial” do movimento comunista na América Latina. Os textos de Aricó e de Flores Galindo16 contribuíram para os estudos do pensamento de Mariátegui e acrescentaram muitos dados na explicação das dificuldades que as ideias socialistas encontraram para fundirem-se ao movimento popular latinoamericano. Mas ainda permanecia uma pergunta materialista: por que as condições que propiciaram o desenvolvimento do pensamento de Mariátegui no Peru não possibilitaram o mesmo em outros países, como Brasil, México e Argentina? Seria mesmo Mariátegui o único exemplar do comunismo latino-americano que conseguiria interpretar à luz do marxismo a realidade peruana ou latino-americana? A direção de pesquisa desses autores tratou Mariátegui como um autor excepcional, distinto de tudo o que havia no movimento comunista latino-americano da época, e foi em busca das influências e peculiaridades que explicavam essa excepcionalidade. Aricó escreveu: Não é casual que em uma etapa que se coloca como tarefa inescusável a reflexão crítica sobre toda uma tradição histórica, consolidada pela força que se outorgou em décadas de ação teórica e política em formações estatais emergentes, dessa luta reapareça em um plano destacado a figura excepcional de Mariátegui. Ocorre que, igual a outros heterodoxos pensadores marxistas, ele pertence à estirpe das rara avis, que em uma etapa muito difícil e de cristalização dogmática da história do movimento operário e socialista mundial se esforçam por estabelecer uma relação inédita e original com a realidade. (ARICÓ, 1978, p. XIII, grifos nossos). O que houve de peculiar na vida de Mariátegui foi a sua passagem pela Europa, particularmente pela Itália, onde pôde conhecer o pensamento de Sorel, Croce, Gobetti e, principalmente, Lenin. Ou seja, pelo filtro de um tipo de pensamento revolucionário socialista que explicava, do mesmo modo, a excepcionalidade de Gramsci. Em uma 15 Idem. O texto de Alberto Flores Galindo que trata da relação entre Mariátegui e a Internacional Comunista está no capítulo intitulado “La agonia de Mariátegui”. In: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un inca: identidad y utopía en los Andes. México: Grijalbo, 1993. 16 7 recente tese de doutorado17, acerca da obra de José Carlos Mariátegui, a professora Leila Escorsin Netto partiu de uma hipótese muito próxima ao que a historiografia havia concluído acerca da excepcionalidade de Mariátegui. Para Escorsin, Mariátegui era não apenas a rara avis, mas também quem havia trazido para o Peru a “modernidade” emergente que se desenvolvia na Europa, o movimento socialista. Mariátegui era excepcional, um sujeito de qualidades raras que havia se alimentado dos debates e experiências políticas do que existia de mais avançado na Europa para interpretar a realidade peruana, e também, para muitos, latino-americana. Em um trabalho anterior18, acerca da questão indígena, identidade nacional peruana e aprismo19 no Peru, deparamo-nos com uma série de personagens, fontes periódicas e textos que nos permitiram perceber que, embora os textos de Mariátegui tivessem qualidades pouco comuns, se comparadas às de outros militantes comunistas da época, suas reflexões não se desenvolveram solitárias, nem se alimentaram apenas do que ele aprendeu na viagem pela Itália, mas foi fruto de um período germinal e importante do movimento comunista na América Latina. Trata-se de um período inicial do marxismo na América Latina, em que se buscou compreender pela primeira vez a realidade regional em suas particularidades, à luz de um projeto político internacional de emancipação dos trabalhadores, audacioso em suas metas e que iria influenciar diversas gerações posteriores de revolucionários. Partimos da negação da excepcionalidade de Mariátegui20 e fomos à busca de outros militantes que durante a década de 1920 tentaram aplicar o marxismoleninismo21 à realidade latino-americana. O país que reunia as condições mais 17 ESCORSIN MACHADO, Leila. J. C. Mariátegui: Marxismo, Cultura e Revolução. Rio de Janeiro: UFRJ (Tese de Doutorado), 2004. 18 DEVEZA, Felipe. Mariátegui, A Comunidade Indígena e a Indo-américa – Mariátegui, APRA e Haya, Rio de Janeiro: UFRJ (Dissertação de Mestrado), 2006. 19 Aprismo é a corrente nacionalista que se desenvolveu em torno de Victor Raúl Haya de La Torre, fundada no México em 1924, mas que se desenvolveu a partir da década de 1930 no Peru como partido, o Partido Aprista Peruano (PAP). O termo aprismo faz referência ao nome da organização Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). 20 Não existiu entre os estudiosos do marxismo de José Carlos Mariátegui uma tese acerca da excepcionalidade de Mariátegui. Existe um esforço por estudar a obra deste peruano e de valorizar seu pensamento, contrapondo os Siete Ensayos com o que se costuma denominar genericamente como “teses stalinistas”. Nossa crítica à ideia de excepcionalidade de Mariátegui não está dirigida a nenhum autor específico, mas serve para apontar a falta de estudos da obra de outros teóricos comunistas do período e seus esforços “criadores”. 21 Os comunistas, após a morte de Lenin, denominaram a sua doutrina e ideologia como marxismoleninismo. Como veremos no capítulo 3 deste texto, após 1924 a Internacional sistematizou o que seria marxismo-leninismo. Utilizaremos marxismo ou leninismo separadamente quando tratarmos de questões específicas que remetem diretamente a um ou outro desses autores, mas, principalmente, quando tratamos 8 “excepcionais” da América Latina, onde poderíamos encontrar outro “Mariátegui”, seria o México pós-revolucionário, no qual diversas características, potencializadas pela Revolução Mexicana e pelo nacionalismo oficial, poderiam ter impulsionado um tipo de marxismo original, um movimento comunista preocupado com as particularidades do México, e por consequência, da América Latina. Comparando o percurso de Mariátegui e dos militantes em seu entorno com a experiência dos comunistas mexicanos, poderíamos encontrar explicações, verificar se a obra de Mariátegui era excepcional em sua época e até que ponto a compreensão de uma particularidade latino-americana, ou mesmo nacional, nas teorias marxistas poderiam contribuir para o êxito ou o fracasso das organizações comunistas no continente. *** O conceito que percorrerá todo este trabalho é o que denominamos de particularidade latino-americana, que não possui um significado absoluto e nem será definido em um sentido rígido e estático. A particularidade latino-americana foi em cada realidade percebida de maneira distinta, com muitos elementos, e variou entre os grupos políticos e ao longo dos anos. Aqui, tratamos a particularidade latino-americana como pensaram os primeiros comunistas da região, com referência no marxismoleninismo, ao longo da 1ª década do movimento comunista na América Latina, entre 1919 e 1930. Para o movimento comunista, particularidade foi a especificidade nacional22, e para a Internacional Comunista, as especificidades de cada seção nacional, que em termos gerais foram as características diferentes da realidade industrial e urbana da Europa Ocidental. No caso latino-americano, essa particularidade esteve associada a duas características estruturais presentes em todos os países: a situação periférica e subordinada em relação ao centro capitalista (a situação semicolonial ou colonial conforme a conceitualização utilizada pela Internacional Comunista) e a predominância do debate mais teórico. A ideologia e doutrina do movimento comunista, ao menos até o fim da Internacional Comunista em 1943, chama-se marxismo-leninismo. 22 Em uma interpretação marxista mais rígida, a particularidade nacional estaria associada à burguesia. Analisaremos mais detalhadamente ao longo deste trabalho essa questão, mas importa desde já dizer que, para o contexto latino-americano e para a Internacional Comunista, a particularidade nacional pode estar relacionada a um país específico, como pode tratar de uma região ou sub-regiões da América Latina. Não faremos uma distinção mais que pontual, para cada momento ao longo do texto, entre particularidade nacional e latino-americana. 9 da economia agrícola sobre a industrial (a questão camponesa, feudal ou semifeudal); para a maioria dos países latino-americanos, particularmente os andinos e os mesoamericanos23, essas características específicas se somam ao complicador que Melgar Bao denomina de questão etnoclassista, a questão de raça ou questão indígena24, que se mistura com uma série de questões, como economia comunal, identidade étnica e nacional, cooperativismo indígena, Ejido, Ayllu entre outras. Grande parte da bibliografia acerca da história do movimento comunista na América Latina tendeu a subestimar o papel que questões endêmicas da região tiveram nas opções dos dirigentes comunistas e na própria dinâmica de inserção desses revolucionários nos movimentos populares. São essas características, subestimadas pela historiografia tradicional, que pretendemos utilizar amplamente, sendo para nós uma importante fonte para a especificidade do movimento comunista latino-americano e para o que temos denominado como particularidades latino-americanas no movimento comunista. Barry Carr chama a atenção para essas características que distinguem as particularidades do movimento comunista em cada país. [...] durante os cinco primeiros anos de existência da Comintern o processo de criação da famosa estrutura disciplinada e centralizada que funcionaria nos anos posteriores foi lenta e frequentemente contraditória. As comunicações e outros problemas obstaculizavam e desorganizavam a compreensão e o manejo das situações europeias pela Comintern. Por isso resulta ainda mais difícil aceitar a seriedade daqueles estudos históricos que sustentam de uma maneira rigidamente teleológica que havia uma correspondência exata, desde o princípio, entre as ações do Partido Comunista do México e o Comitê 23 Segundo Wagner Pinheiro Pereira, o termo Mesoamérica foi utilizado pela primeira vez pelo filósofo e antropólogo alemão Paul Kirchhoff (1900-1972) em seu texto “Mesoamérica: seus limites geográficos, composição étnica e caracteres culturais”, de 1943, no qual desenvolveu esse conceito com base nas reflexões de outros estudiosos que, desde o século XIX, se dedicavam aos estudos das antigas civilizações do México e da América Central. Trata-se de uma macrorregião cultural de grande diversidade étnica e linguística, onde se desenvolveram as civilizações pré-colombianas consideradas as mais avançadas e complexas, tais como a olmeca, teotihuacana, maia e asteca. Em termos territoriais, a Mesoamérica é composta pelas áreas de agricultura estável situadas no México – ao sul dos desertos setentrionais –, Guatemala, Belize, oeste de Honduras, sudoeste da Nicarágua, e a península de Nicoya na Costa Rica. Cf. PEREIRA, Wagner Pinheiro. História da América Pré-Colombiana. Rio de Janeiro: Mimeo, 2010. 24 Para Melgar Bao, “é necessário avançar na aproximação e recuperação do código etnoclassista do político e do sindical, em uma América Latina que apresenta um arraigado mosaico etnoclassista do qual emerge um proletariado misto. Este se apresenta como principal componente de uma classe subalterna de perfil impreciso, que a historiografia operária reivindica implicitamente como o principal enlace de seu objeto de estudo” (MELGAR BAO, Ricardo. El Movimento Obrero Latinoamericano – Historia de una Clase Subalterna, México: Alianza, 1988, p. 18). A questão etnoclassista inclui também a questão negra em países como o Brasil e Cuba, mas, por ser predominantemente indígena, no Peru e no México, nos concentraremos nesta parte do “mosaico”. 10 Executivo da Comintern. […] Uma última advertência se refere ao perigo de aceitar sem reservas a homogeneidade internacional do movimento comunista. Todos os Partidos, sem importar o quanto estalinizados e servis fossem, invariavelmente assimilam muitas das características peculiares da cultura nacional e das tradições radicais de seu país. (CARR, 1996, p. 23). Essas características peculiares de que nos fala Carr, base para o que os comunistas entenderam como suas particularidades nacionais e regionais, foram pouco exploradas pela historiografia de maneira integrada e, ainda menos, de forma comparativa. Quando o movimento comunista latino-americano foi tema de investigações históricas, com raras exceções, foi estudado apenas em manifestações nacionais ou pelas experiências das seções nacionais em relação ao Comitê Executivo e os Congressos da Internacional Comunista25. *** A primeira hipótese que guiou essa investigação foi a de que a década de 1920 reuniu características que propiciaram uma reflexão frutífera acerca da particularidade latino-americana entre os primeiros marxistas do continente. Entre essas características, estiveram, principalmente, a influência de um emergente nacionalismo regional, a crítica radical gonzález pradista e magonista (nos casos peruanos e mexicanos) e a emergência de movimentos populares que inspirariam a reflexão de particularidades no movimento popular latino-americano, tais como: a insurreição indígena no Peru, o agrarismo no México, o muralismo, o nacionalismo pós-revolucionário no México e os movimentos anti-imperialistas que se desenvolveram ao redor do Partido Comunista do 25 Utilizaremos o termo Internacional Comunista para designar a organização comunista fundada a partir da Revolução Bolchevique de 1917. Outras opções seriam Comintern, Komintern e 3ª Internacional. Optamos por Internacional Comunista por parecer o nome que melhor define a organização, que se pretendeu Internacional, seguindo as Internacionais, desde a I Internacional de Marx (fundada em 1864), somado ao termo Comunista, que acompanha o nome dos partidos, as seções nacionais: os Partido Comunista. Internacional Comunista em português foi a forma com que os brasileiros que militaram sob sua influência denominaram a organização. Pierre Broué, na apresentação do seu livro História da Internacional Comunista, abre um debate sobre o nome da organização, optando por a Comintern (BROUÉ, 2007, p. 5). Embora não seja uma questão fundamental, esse termo ajuda a reforçar a ideia de que a Internacional Comunista era uma espécie de agência de espionagem russa, uma típica interpretação da propaganda anticomunista da Guerra Fria. Não é por outro motivo que William Waack utiliza o termo “agente” para se referir aos militantes dos Partidos Comunistas e membros da Internacional Comunista. (WAACK, Willliam. Camaradas – Nos arquivos de Moscou: a história secreta da revolução brasileira de 1935, São Paulo: Companhia das Letras, 1993). 11 México, entre eles o sandinismo, o aprismo e a luta contra a intervenção norteamericana em Cuba. No Brasil, o movimento tenentista foi revelador para a necessidade de uma análise da situação política nacional que superasse as análises baseadas na dicotomia simples da contradição proletariado x burguesia. Durante a década de 1920, houve esforços para ampliar a frente composta pelas classes oprimidas, aliadas do proletariado (ou do Partido Comunista) na estratégia da Internacional Comunista. Isso significou, para muitos Partidos Comunistas, uma busca pelo nacional, pelo específico e pelo característico dos povos. É possível identificar uma tentativa de adaptar e “latino-americanizar” a doutrina, ao mesmo tempo que se tenta conceitualizar o papel político-econômico das classes não proletárias aliadas (camponeses pobres e pequena burguesia) para a Revolução. Esse período rico para o marxismo latino-americano, não maior que uma década, produziu novas visões acerca da questão indígena, agrária, colonial e do imperialismo, que podem ser bem representadas pela obra de José Carlos Mariátegui e também pelo muralismo mexicano, entre os anos de 1919, quando chega o leninismo na América Latina, e 1930, quando morre Mariátegui e o PCM entra na ilegalidade26. O corte temporal desta pesquisa está delimitado pelo início da atividade comunista na América Latina, em 1919, e o fim do período de debates em torno da construção dos Partidos Comunistas na América Latina, marcado pela primeira Conferência Latino-Americana de Partidos Comunistas, em Buenos Aires no ano de 1929, onde se tentou sistematizar a estratégia e tática dos PCs latino-americanos. Como desdobramento imediato da hipótese acima, chegamos à segunda hipótese, que se insere no debate acerca do lugar da teoria na atividade política, tentando responder à seguinte questão: qual a importância que as interpretações acerca da particularidade latino-americana tiveram na atividade política dos primeiros comunistas latino-americanos? Como essas formulações podem ter afetado o êxito ou o fracasso da atividade política comunista na América Latina? E até que ponto esse elemento subjetivo da prática política condiciona, potencializa ou limita a ação social, assim como a capacidade de mobilização das organizações políticas e a manutenção dos vínculos com suas bases sociais? Até que ponto determinadas interpretações da realidade condicionam a inserção dos militantes partidários e até onde as doutrinas 26 O PCM entra na ilegalidade exatamente em 1929. Diferente do caso brasileiro, a ilegalidade do PCM foi exceção à regra, durou pouco mais do que meia década e ao contrário do PCB, teve, antes da década de 1980, um curtíssimo período de legalidade de menos de 3 anos, logo após a 2 ª Guerra Mundial. 12 podem deslocar-se da realidade e conseguir flutuar como dogmas abstratos em programas partidários sem sofrerem questionamentos por seus militantes? Compartilharemos do que denominamos como a Hipótese de Aricó, de que existe uma relação dialética entre formulação teórica com a prática política dos movimentos populares, mas ampliamos nosso objeto de estudo para o movimento comunista que surgiu em torno de Mariátegui, em comparação ao movimento comunista mexicano e brasileiro durante a década de 1920, não apenas na trajetória específica de José Carlos Mariátegui. Assim, formulamos a segunda hipótese que guia este trabalho. Na medida em que os comunistas conseguiam perceber o que era específico da realidade latino-americana, inclusive mobilizando artifícios simbólicos que possibilitassem uma identidade nacional, como a questão indígena, ou a inserção em movimentos emergentes do contexto latino-americano, como o agrarismo e a luta antiimperialista, ampliavam a influência e a participação no cenário político nacional. Para testar nossas hipóteses, confrontamos o ambiente em que viveu Mariátegui e sua obra com o movimento comunista que se desenvolveu no México, o mais rico em experiência política, e que mais interessou à Internacional Comunista ao longo da década de 1920, a qual atuou como organização legal, e entre os PCs latino-americanos, alcançando maior penetração e influência nacional, embora não tenha produzido uma sistematização teórica como a elaborada por José Carlos Mariátegui nos Siete Ensayos. Nossa metodologia de investigação passou primeiramente pela análise e a busca de artigos, discursos e definições programáticas que tratassem dos temas que estivessem relacionados a uma particularidade latino-americana, como a Revolução Mexicana; a questão indígena; temas relacionados ao anti-imperialismo na América Latina e à questão agrária quando tratada em relação às formas específicas de propriedade da terra, como os Ayllus, Calpullis ou Ejidos27. Através do método que se denomina como análise dos conteúdos, buscamos alguns conceitos e temas pertinentes e chaves para uma caracterização da “particularidade latino-americana”, ou mesmo sua ausência. A partir dessa primeira análise, procuramos datar e contextualizar os debates com os acontecimentos políticos nacionais, com o Movimento Comunista em uma dimensão mais global e com os fatos importantes da situação internacional, que tiveram influência para os militantes do PCM, do PCB e em torno do núcleo fundador do PCP (até 1930, 27 Ayllu, Calpullis e Ejidos são os nomes dados às diversas formas de propriedade comunal da terra no Peru e no México. Trataremos em detalhes essa questão ao longo das próximas páginas. 13 Partido Socialista do Peru). *** O primeiro ponto de reflexão de definição metodológica está relacionado aos problemas de determinação que qualquer reflexão à luz do marxismo inevitavelmente provoca. Para nós, a ideia de determinação é inerente a qualquer possibilidade de entender a história enquanto ciência e é diferente da crítica caricata ao que se chamou de determinismo. Como assinala Raymond Williams28, não pode existir marxismo sem determinação e isso muitas vezes significou o estabelecimento de uma relação direta entre o que se convencionou chamar de estrutura e superestrutura. Na explicação simplista e mistificadora, a estrutura (basicamente a economia) de uma dada sociedade determina a superestrutura (política, ideologia, leis, religião e demais aspectos “subjetivos” da sociedade). Assim, a economia como base estrutural produz em cada época histórica a superestrutura equivalente. Para entender uma época, bastaria investigar e definir a economia para desvelarmos todos os outros aspectos da sociedade. Essa forma simplificada e caricata de marxismo foi muito propagada pelos seus detratores29. A outra face da importante contribuição do marxismo para a história foi o reconhecimento da dialética em oposição à perspectiva positivista e metafísica dos conceitos sociais. Dialética, além do esquema hegeliano tese, antítese e síntese, pressupõe interrelação, significa ver o conjunto dos fenômenos e não apenas categorias abstratas, fechadas em limites rígidos e estáticos. O próprio conceito de modo de produção30 é expressão dessa dinâmica de totalidade com que o marxismo procura interpretar os 28 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Uma das fontes mais conhecidas nos textos de Marx e Engels que tratou de forma sintética o problema da determinação no materialismo dialético está na “Carta de Engels a Bloch”, de 23 de setembro de 1890: ENGELS, F. “Letters on Historical Materialism to Joseph Bloch”. In: TUCKER, Robert C. (Org.). The Marx-Engels reader. New York: W. W. Norton & Company, 1978. p.760-765. Traduzido para publicação eletrônica por Vinicius Valentin Raduan Miguel. Disponível em: <http://www.marxists.org/espanol/me/cartas/e21-9-90.htm>. Acesso em: 30/03/2014 30 Pierre Vilar explica o conceito de modo de produção em sua perspectiva de História Total, sem margens para reduções mecânicas, composto pelos seguintes elementos: “1) As regras que presidem a obtenção pelo homem de produtos da natureza e a distribuição social desses produtos; 2) As regras que presidem as relações dos homens entre eles, por meio de agrupações espontâneas ou institucionalizadas; 3) As justificativas intelectuais ou míticas que dão destas relações, com diversos graus de consciência e de sistematização, os grupos que as organizam e se aproveitam delas, e que se impõem aos grupos subordinados”. (VILAR, 1982, p. 67). 29 14 fenômenos sociais. Nosso esforço de investigação está concentrado nas práticas políticas, na luta de ideias e no esforço de construção partidária, mas sem que isso signifique esquecer o contexto socioeconômico em que esses homens e mulheres estavam submetidos e determinados. É útil a reflexão que Raymond Willians desenvolveu acerca da ideia de determinação e da superação da ideia de limites ao tratar qualquer possibilidade de determinação. Na prática determinação não é apenas fixação de limites, mas a existência de pressões. Pressões sobre limites […] por formações novas. Qualquer objetivação categórica de estruturas determinadas ou superdeterminadas é uma repetição do erro básico do “economismo” em um nível mais sério, já que agora pretende resumir (por vezes com certa arrogância) toda a experiência vivida. (WILLIAMS, 1979, p. 30)31. Colocada nesses termos, a ideia de determinação, inerente à própria ciência, perde sua conotação pejorativa e pode servir na investigação que se segue, finalmente sintetizadas nas palavras de Konder: O que os seres humanos pensam depende também de como eles vivem. A história das ideias é sempre parte da história geral da sociedade, e só faz sentido quando relacionada ao movimento global da transformação social. Esse condicionamento da produção cultural pelas tensões internas do quadro em que funciona a produção de bens materiais, na sociedade, constitui o que alguns costumam chamar de “dimensão ideológica da cultura”. A história das ideias é, assim, uma história de ideologias. Mas a ideologia não é um acompanhamento mecânico, automático, das atividades práticas; não é mera reprodução ou registro passivo, na consciência, das ações que os seres humanos realizam. A consciência é, não só o plano em que os homens percebem as coisas, mas também o plano em que eles fazem suas escolhas e tomam suas decisões. Como observou o historiador francês Georges Duby, “a ideologia não é reflexo do vivido, mas um projeto de agir sobre ele”. Por isso na sua riqueza, a história das ideias não se deixa reduzir a um simples apêndice da história econômica ou da história política. (KONDER, 2003, p. 7-8). O método comparativo trouxe questões que seriam imperceptíveis em uma análise baseada na singularidade dos fenômenos. Assim pudemos enxergar ausências, similitudes e continuidades nos projetos políticos do Partido Comunista do México 31 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 15 (PCM), do Partido Comunistado Brasil (PCB) e do Partido Comunista do Peru (PCP) e melhor formular as hipóteses. Ao encontro de nossas pretensões em história comparada, destacamos Cardoso, citando Henri Sée e Henri Pirene, para o qual “O método comparativo seria um instrumento capaz de transformar a história em uma ciência, ao permitir a passagem da descrição para a explicação dos processos históricos”. (CARDOSO, 1983). *** Até algum tempo atrás, estudar o movimento comunista na América Latina era atividade custosa, difícil e até subversiva. Isso deveu-se a alguns fatores, entre eles a repressão ao movimento comunista em quase todos os países do nosso continente, a dispersão das fontes em pequenos arquivos públicos ou mesmo particulares e a falta de estímulo e recursos disponíveis nas universidades latino-americanas. Hoje, essa realidade mudou; a perseguição aos comunistas não ocorre como na década de 197032, muitos pesquisadores dedicados ao movimento operário, ao longo da década de 1980 e 1990, conquistaram importantes espaços nas universidades públicas, e os arquivos se desenvolveram com a assimilação de coleções particulares que chegaram com as centenas de exilados que voltavam para os seus países. Hoje, a possibilidade de digitalização de fontes facilitou o acesso aos documentos e até às traduções33. Os estudos separados das diversas seções nacionais do movimento comunista na América Latina, sem uma relação integrada, tenderam a elaborar uma cronologia do movimento, em termos regionais, muito dependente dos acontecimentos na Internacional Comunista e da URSS. Foi comum entre os historiadores que estudaram o movimento comunista na América Latina o estabelecimento de uma periodização que se referenciava no movimento europeu ou mais especificamente na URSS. Nesse sentido, da mesma cronologia que se dividiam as fases do processo histórico que tinha como centro a União Soviética, dividiam o desenvolvimento das seções nacionais da Internacional 32 É importante destacar que, nos países em que há atividade dos partidos comunistas, há também diversas formas de repressão política. Atualmente, há comunistas presos em diversas partes da América Latina. 33 Um importante esforço para a disponibilização de fontes sobre a atividade da Internacional Comunista na América Latina foi iniciado pelo projeto Memória Vermelha/Roja, relacionado ao Laboratório do Tempo Presente, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que visa a organização digital e a disponibilização na Internet de fontes e dados sobre a atividade da Internacional Comunista na América Latina. O Portal Memória Vermelha/Roja está disponível em www.memoriavermelha.com. 16 Comunista na América Latina. Embora fossem organizações com fortes vínculos e referenciadas pela experiência bolchevique, o exame detido das fontes tem demonstrado que existiu uma significativa descontinuidade entre o centro e a periferia, e, por diversos momentos, as demandas políticas nacionais, ou até regionais, forçaram reinterpretações e criaram situações em que as orientações da Internacional Comunista foram ignoradas ou mal assimiladas na prática política militante, particularmente na década de 1920. É importante também ressaltar que muitos autores superestimaram a importância que a Internacional Comunista deu às realidades dos países periféricos e à ingerência que os comunistas estrangeiros tiveram nos Partidos Comunistas latino-americanos34. De maneira geral, repassavam orientações bastante gerais sobre as realidades latinoamericanas, na maioria das vezes alimentados pelos informes dos comunistas latinoamericanos. E os próprios militantes tinham muita dificuldade em digerir, quando recebiam, as resoluções dos Congressos da Internacional. Procuramos não nos prender a periodização que fez referência à história soviética e europeia e que viu o movimento operário latino-americano como extensão sem vida própria. Organizamos os capítulos desta tese em divisões, tendo como bússola a cronologia e levando em consideração a política nacional, os desencontros e descontinuidades entre centro e periferia do movimento comunista internacional. Além do exposto, tivemos como eixo o desenvolvimento das formulações acerca da particularidade latino-america, das primeiras tentativas de se formular as táticas nacionais, até a organização de sínteses mais elaboradas, como as apresentadas na Conferência de Partidos Comunistas de Buenos Aires (ICCLA) em 1929. No primeiro capítulo, serão apresentados a realidade política e econômica da América Latina e o desenvolvimento dos movimentos populares, que constarão no espólio herdado pelos primeiros comunistas latino-americanos. Durante o século XIX, o movimento operário foi quase inexistente e os centros industriais que surgem no final do século carregam características distintas da Europa Ocidental, como a origem estrangeira da classe operária e o vínculo com o campo. Para alguns autores, essas condições foram responsáveis por características particulares na formação da classe operária latino-americana e propiciaram o crescimento das correntes 34 Diversos episódios da história do movimento comunista latino-americano demonstram que a ingerência do Comitê Executivo da Internacional Comunista nos países da América Latina foi muitas vezes mais um pretexto para a repressão que uma realidade. O mito da infiltração de estrangeiros a serviço dos russos foi repetido e exagerado a tal ponto que a própria historiografia acabou acreditando. O levante de 1935 é um bom exemplo. 17 libertárias em detrimento à social-democracia e às correntes ligadas à 2ª Internacional e o marxismo. Tratamos de alguns movimentos revolucionários anteriores à Primeira Guerra Mundial, da radicalização dos liberais e da aproximação de alguns desses com o anarquismo, principalmente entre os dois mais importantes teóricos radicais latinoamericanos desse período, Flores Magón e González Prada, que conseguiram incluir no projeto anarquista temas latino-americanos, particularmente a questão camponesa e indígena no Peru e no México. O movimento operário anterior à Revolução Russa vai se alimentar da radicalização do liberalismo do século XIX, que se encontra com um tipo de anarquismo bastante eclético e tem contatos com as rebeliões camponesas e indígenas. Muitas dessas rebeliões estão identificadas com a defesa do modo de vida tradicional nas comunidades rurais latino-americanas ameaçadas pela expansão do imperialismo na virada do século. Assim, diferente da lógica europeia e da ordem que comumente se utiliza para classificar a “fase” anterior ao socialismo moderno do século XX: ludismo, jacobinismo, socialismo utópico, etc.35. Relacionados à herança de Flores Magón e González Prada, alguns acontecimentos na América Latina terão profunda influência no movimento popular que conheceu a Revolução Bolchevique: a Revolução Mexicana e as rebeliões indígenas no sul do Peru. No Brasil, o movimento operário radical não estabeleceu relações com outros setores antioligárquico antes da década de 1920, mantendo-se restrito aos centros urbanos e à vida nas fábricas. O segundo capítulo pretende apresentar as primeiras tentativas de interpretação das realidades latino-americanas no contexto de construção dos primeiros núcleos comunistas do Peru, do México e do Brasil. Concentramo-nos nas expressões mais importantes das primeiras interpretações marxistas latino-americanas produzidas na década de 1920: o Agrarismo Rojo, o muralismo mexicano, a tese agrarismo e industrialismo de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, e a obra de José Carlos Mariátegui, os Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. O terceiro e último capítulo está dedicado ao tratamento da luta política e às interpretações produzidas a partir de 1925, com a criação do Secretariado Sul- HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos – Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIX y XX. Barcelona: Ariel, 1983. 35 18 americano da Internacional em Buenos Aires. Estabelecido esse secretariado, a particularidade latino-americana seria tratada de forma sistemática pela Internacional Comunista. Avaliamos o impacto do chamado “terceiro período” da IC, a bolchevização e o significado desse processo nas elaborações teóricas produzidas pelos comunistas acerca da realidade da América Latina em geral, e do Brasil, Peru e México em particular. 19 1º Capítulo – O movimento radical antes dos comunistas Vê-se, pois, que o povo mexicano é apto para chegar ao comunismo, porque o tem praticado, ao menos em parte, desde faz séculos, e isso explica porque até quando na sua maioria é analfabeta, compreende que melhor que fazer parte em farsas eleitorais para elevar verdugos, é preferível tomar posse da terra, e a está tomando para o grande escândalo da ladrona burguesia. Agora, só resta que o operário tome posse da fábrica, da oficina, da mina da fundição, da estrada de ferro, do barco, de tudo, em uma palavra; que não se reconheçam amos de nenhuma classe e esse será o final do presente movimento. Adiante, Camaradas!36 (FLORES MAGÓN, 1911, p.1) FLORES MAGÓN, Ricardo, “El Pueblo Mexicano es apto para el comunismo”, Regeneración, nº 53, Los Angeles: 2 set. 1911. 36 20 A Hipótese de Aricó Durante as décadas de 1960 e 1970, um grupo de pesquisadores marxistas argentinos passou a editar uma revista de crítica marxista denominada Pasado y Presente. Essa publicação, com vida curta e poucos números, foi muito influente entre a esquerda latino-americana e renovou significativamente o olhar sobre o marxismo na América Latina. Entre os temas que mais despertaram interesse, estavam: marxismo e América Latina, que engloba outras questões como colonialismo, especificidade da Revolução no continente e a própria história das correntes marxistas em nossa região. A partir dessa revista, desenvolveu-se uma série de publicações agrupadas na coleção Cuadernos del Pasado y Presente, que até os dias atuais são a mais importante compilação de documentos, coleções de textos e análises acerca de Marx, do marxismo e da história do marxismo na América Latina. Por trás dessa publicação e como principal animador desse grupo de intelectuais e ativistas, esteve José de Aricó (1931-1991). Outros nomes importantes de grupo foram: Juan Carlos Portantiero, Oscar del Barco, Hector Schmucler, entre outros. Os Cuadernos del Pasdo y Presente tiveram 98 números e podem ser divididos em três períodos: 1968-1970 (1 ao 16), em Córdoba; o segundo, 1970-1975 (17 ao 65), em Buenos Aires; o último, 1976-1983 (63 ao 98), no México. (CRESPO, s/d, s/p.)37. Aricó mesmo definiu assim os objetivos destas publicações38: Os Cuadernos representaram uma tentativa por implementar uma perspectiva crítica do marxismo que admitisse a dimensão pluralista e que reconhecesse a natureza múltipla do próprio objeto. O que os Cuadernos tratou de afirmar, não meramente como declaração de princípios, senão como maneira de construir cada um de seus números, era a ideia de que não existia “o” marxismo, que desde seu início existiram “os” marxismos, que distintas perspectivas teóricas e políticas haviam coabitado nas instituições internacionais e as que se expressaram, que discutiram arduamente uma diversidade de CRESPO, Horácio. “En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente”, 1968-1983, s.d, s/p.. Disponível em: <http://shial.colmex.mx/textos/crespo.pdf>. Acessado em: 17 set. 2011. 38 A melhor definição do grupo foi feita por Aricó nos seguintes termos: “Em uma primeira etapa de sua existência, Pasado y Presente foi um órgão político e cultural da esquerda cordobesa com forte prestígio em certos meios intelectuais e vinculada ao campo ideológico do leninismo castrista. O que nos diferenciava das demais correntes similares surgidas do partido comunista, ou de raiz católica, era nossa filiação ‘gramsciana’. Reconhecendo a potencialidade revolucionária dos movimentos terceiro-mundistas, castristas, fanonianos, guevaristas, etc., tratávamos de estabelecer um nexo com os processos de recomposição do marxismo ocidental, que para nós tinha seu centro na Itália. Éramos uma mescla rara de ‘guevaristas togliattianos’. Se alguma vez essa combinação foi possível, nós a expressamos”. (ARICÓ, 1987 apud CRESPO, En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente, s.d.). 37 21 problemas e nessa complexa batalha ideal houve triunfadores e perdedores circunstanciais; enfim, que toda a história do socialismo, em cujo interior o debate marxista encontrou significação, havia sido, e seguia sendo um processo infinitamente mais complexo que as simplificações bizarras de uma historiografia a serviço da política. (ARICÓ, 1999, p. 22). Independente dos objetivos e de qual corrente do marxismo militou Aricó, os cadernos trouxeram muitos elementos para o aprofundamento do debate marxista na América Latina, particularmente a coletânea de trechos da obra de Marx e Engels sobre a América Latina39. Outros dois livros que ficaram famosos e seguem até hoje como importantes referências para os estudos de Marx na América Latina foram os livros de Aricó: La Hipótesis de Justo – escritos sobre el socialismo en América Latina, Marx e a América Latina (único publicado em português) e Mariátegui y los orígenes del marxismo latinoamericano40. Embora faça parte do pensamento de Aricó um esforço por afastar-se das simplificações e fórmulas simplistas, podemos encontrar uma ideia que percorre todos os três livros e que se resume na constatação de que o marxismo e o movimento popular na América Latina não tiveram um relação orgânica, como ocorreu na Europa. Nas palavras de Aricó: Se socialismo e movimento operário são ainda hoje na Europa dois aspectos de uma mesma realidade – por mais contraditórias e nacionalmente diferenciadas que se evidenciem suas relações –, na América Latina constituem duas histórias paralelas que em contadas ocasiões se identificaram e que na maioria dos casos se mantiveram separadas e até opostas entre si. (ARICÓ, 1999, p. 23). Para Aricó, importava responder onde estavam as respostas para essa dificuldade do marxismo na América Latina. Responder essa questão estava diretamente relacionado à estratégia que os marxistas deveriam empregar no continente. Aricó era assumidamente um militante e buscava na teoria respostas para a conjuntura política que 39 O Cuaderno a que fazemos referência é uma coletânea traduzida pelo grupo de Pasado y Presente diretamente do alemão e cuidadosamente editado: MARX, Karl e ENGELS, F. Materiales para La Historia de América Latina. México: PyP, 1972. 40 Respectivamente: ARICÓ, José. La Hipótesis de Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999; ARICÓ, José. Marx e a América Latina. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1982 e ARICO, José. “Introdução”. In: Mariátegui y los origenes del marxismo en Latinoamericano, Cuaderno 60, México: Pasado y Presente, 1978. 22 viviam os comunistas argentinos. Sua conclusão não é simples, e procurou afastar-se dos caminhos fáceis, como o que levava a uma conclusão de que existia um europeísmo intrínseco em Marx e Engels, que impossibilitava a utilização do conjunto teórico dos fundadores do comunismo para a transformação da América Latina. Por outro lado, era inegável que a perspectiva de Marx estava impregnada de sua própria realidade, que cobrava diversas imprecisões fruto da distância e da falta de informação de meados do século XIX na Europa. Leopoldo Zea cita as palavras de Che Guevara sobre os limites da análise de Marx acerca da América Latina, colocando essas dentro do devido contexto e que representa também a percepção de Aricó sobre as limitações da análise de Marx para a América Latina. Marx, como pensador – dizia Che Guevara –, como investigador das doutrinas sociais e do sistema capitalista em que viveu, podem evidentemente, objetar certas incorreções. Nós, os latino-americanos, podemos, por exemplo, não estar de acordo com a sua interpretação de Bolívar ou com a análise que fizeram Engels e ele dos mexicanos, dando por certas algumas teorias sobre as raças inadmissíveis hoje. [...] Mas os grandes homens descobridores de verdades luminosas, vivem apesar de suas pequenas falhas, e estas servem somente para nos demonstrar que são humanos, ou seja, seres que podem incorrer em erros, ainda com a clara consciência da altura alcançada por estes gigantes do pensamento. (GUEVARA, 1960 apud ZEA, 1980, p. 5941). Reconhecendo e colocando Marx em seu contexto histórico, Aricó foi buscar na própria obra de Marx os limites interpretativos para a América Latina e o contexto da América Latina em que esses fatores limitantes foram desenvolvidos. Pedro Scaron42 é quem elabora a introdução do Cuaderno de número 30 com trechos de Marx e Engels sobre a América Latina e propõe uma periodização do pensamento dos dois alemães acerca da questão nacional. (SCARON, 1972, p. 5-19). A primeira etapa começa em 1847 e termina com a Guerra da Crimeia (18531856). Nesse período, Marx esperava que o capitalismo fosse exercer um papel “civilizador” e progressista no mundo não-europeu, desestruturando antigas relações servis ou pré-capitalistas, como havia ocorrido na Europa Ocidental. Marx repudiou as atrocidades do colonialismo, mas acabou por justificá-lo, já que vê nessas forças o 41 ZEA, Leopoldo. Visión de Marx sobre a América Latina, Nueva Sociedad, n. 66, México, maio/jun. 1983, p. 59-66. 42 Pedro Scaron foi um dos tradutores para o espanhol do texto de Marx intitulado Elementos fundamentais para a Crítica da Economia política, os famosos Gründrisse de Marx. 23 progresso, que, enfim, levaria a humanidade à sociedade sem classes. É desse período o Manifesto Comunista e, principalmente, nos escritos dessa época que se encontram as citações que “comprovam” o “positivismo eurocêntrico” de Marx. Fica claro que Marx via a burguesia e o capitalismo como um fator revolucionário de desenvolvimento econômico e social. Sua formulação, embora carregue uma crítica à exploração capitalista, possui uma crítica ainda maior às relações feudais. Toda a lógica histórica apresentada no Manifesto está orientada para a superação do capitalismo, e, embora não de maneira explícita, segue uma lógica de processo. A ideia de egoísmo, que substitui as relações feudais e idílicas, embora para muitos soe como um juízo de valor, é a análise de um processo que contribuiria para criar as condições de um futuro comunismo. A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento a pronto”. Afogou o frêmito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, direta, despudorada, aberta. (MARX, 1997, s/p.). Esse foi o texto que a maior parte das pessoas leu. Alguns conhecem Marx apenas por esse pequeno livro e não é difícil entender o materialismo histórico e a questão nacional como um processo evolutivo conduzido progressivamente pelo capitalismo até a redenção comunista. A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, tirou à indústria o solo nacional onde firmava os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas, e são ainda diariamente aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que já não laboram matériasprimas nativas, mas matérias-primas oriundas das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não só no próprio país como simultaneamente em todas as partes do mundo. Para o lugar das velhas necessidades, satisfeitas por artigos do país, entram [necessidades] novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos 24 países e dos climas mais longínquos. Para o lugar da velha autossuficiência e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio unilateral, uma dependência das nações umas das outras. E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os artigos espirituais das nações singulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial. A burguesia, pelo rápido melhoramento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos das suas mercadorias são a artilharia pesada com que deita por terra todas as muralhas da China, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros ao estrangeiro. Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da burguesia, se não quiserem arruinar-se; compele-as a introduzirem no seu seio a chamada civilização, i. é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem. (MARX, 1997, s.p.). O segundo período, de 1856 até 1864, foi quando a Marx produziu mais textos sobre a questão nacional e sobre o mundo não europeu. Prevalece a denúncia contra o colonialismo das grandes potências e a reivindicação dos direitos dos chineses e indianos de resistir contra os agressores e invasores. (SCARON, 1972, p. 943). A partir de 186444 até a morte de Marx, diversos dos seus textos demonstram que sua percepção acerca da consequência da expansão capitalista inglesa havia mudado. Marx passou a questionar se essa expansão colonial levaria necessariamente ao capitalismo. O caso irlandês será o objeto de estudo para essa mudança de posição sobre a questão nacional e colonial. Marx passou a perceber que o capitalismo inglês poderia ter um efeito desindustrializador “ao retirar as tarifas protecionistas estabelecidas pelo parlamento irlandês, a Inglaterra destruiu toda a vida industrial na Irlanda”45. (MARX, 1869, s.p.). Nesse período de nascimento do imperialismo, Marx percebeu o valor das barreiras protecionistas para o desenvolvimento industrial na periferia do sistema capitalista. (SCARON, 1972, p. 11). A maior parte dos historiadores que se dedicou ao estudo do marxismo esteve 43 SCARON, Pedro. A modo de introducción. In: MARX, Karl; ENGELS, F. Materiales para La Historia de América Latina. México: PyP, 1972. 44 1864 é o ano de fundação da Internacional dos Trabalhadores, a 1ª Internacional. 45 “Eis porque a Internacional deve sempre dar prioridade ao conflito entre a Inglaterra e a Irlanda, tomando abertamente o partido desta última. A tarefa especial do Conselho Central em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela uma abstrata questão de justiça e de humanitarismo, mas a condição primeira de sua própria emancipação social”. In: MARX. “A Questão Irlandesa”, edição eletrônica, 2004, s.p. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1869/11/questao.htm>. Acesso em: 27 mar 2014; 25 ligado ao movimento socialista e comunista, ou se opunha ferozmente a este. O marxismo não foi, nesse contexto, ausente de paixões e sempre houve entre os militantes marxistas uma preocupação pela defesa dos escritos de Marx como uma referência simbólica. Afinal, da credibilidade de Marx dependia o projeto revolucionário. Qualquer crítica que pudesse ser retirada da obra de Marx por seus detratores seria logo propagandeada de maneira generalizada para apontar para o conjunto de seu pensamento como obsoleto. Esse sempre foi o ambiente de debate do marxismo. E não podia ser diferente, já que, ao debater o marxismo, debatemos um projeto de sociedade, um programa político que tem profundas consequências sociais. Tamanha polarização não estimulou os marxistas a exporem, e normalmente evitarem, a questão colonial e a questão camponesa na obra de Marx e Engels. Preferiu-se, sobre esse tema, citar Lenin, Stalin, Mao Tsetung e criticar a posição de Kautsky46 e outros marxistas que trataram de maneira mais concentrada o tema. Ao crítico com dificuldades de perceber os homens em seu tempo, é fácil encontrar trechos que exortam a Inglaterra para avançar na ampliação do império colonial. Como todos nós, Marx não podia conhecer o que ainda não existia. Ao final de sua vida, Marx já percebia que a expansão inglesa não trazia necessariamente o progresso, com o sistema capitalista suplantando as formas arcaicas de produção. Para a Irlanda, chegou a propor medidas protecionistas como forma de desenvolver o capitalismo. Será a partir da constatação de como se apresentou inicialmente o marxismo que seguiremos as conclusões de Aricó na explicação da quase ausência do marxismo na América Latina antes da Revolução Bolchevique, e também a atração de parte da intelectualidade marginalizada pelo anarquismo e pelo movimento operário revolucionário. *** Nos últimos anos de vida de Engels, os socialistas começaram a alcançar “espaços” nos Estados liberais europeus. A dura repressão que viveram logo após 1848 46 Kautsky é o autor de uma obra fundamental do debate sobre os camponeses. Até que se avançasse nesse tema, após a Revolução Russa e a fundação da Internacional Comunista, a obra de Kautsky foi a referência para todos os debates marxistas acerca do problema camponês. Ver: KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986. 26 foi se transformando e pareceu para muitos que o caminho para a sociedade sem classes seguiria sem violência, de maneira progressiva como consequência de um processo de desenvolvimento civilizatório em direção ao comunismo. Depois viria a Primeira Guerra Mundial e esse estado de espírito mudaria radicalmente. Nos últimos anos do século XIX, a ascensão do movimento socialista e uma forte influência do liberalismo positivista estimulavam e alimentavam essa perspectiva. Diferente da Europa, na América Latina a classe operária nascia em um ambiente de quase inexistente representação popular no parlamento, com liberais na oposição e uma hegemonia da oligarquia conservadora no Estado. Diversos episódios em que os liberais reivindicavam simples reformas democráticas foram reprimidos com violência pelas forças do Estado. Em uma população com altos índices de analfabetismo, de população fragmentada por um grande território em algumas dezenas de cidades, o marxismo da 2ª Internacional47, progressivista, pacifista e parlamentar, tinha dificuldades em conquistar adeptos. Nas palavras de Aricó: A segunda consequência se refere às expressões ideológicas de todo esse processo. Porque é evidente que as dificuldades objetivas com que a classe operária enfrentava para constituir-se como tal se davam no interior de um tecido nacional e continental em que predominavam uma multiplicidade de correntes democráticas revestidas de um forte caráter social, duradouras esperanças messiânicas em uma regeneração universal, sem que existissem entre elas as fronteiras mais ou menos precisas que a Revolução de 1848 foi estabelecendo na Europa [...] Nesse mundo de violência e messianismo, de mitos e milenarismos que marcaram a luta das classes subalternas contra a desagregação social e a opressão capitalista, o socialismo moderno proposto pela doutrina de Marx encontrava obstáculos muito difíceis de evitar para a sua difusão. (ARICÓ, 1999, p. 30). Nesse contexto, foi o anarquismo que encontrou espaço, primeiramente entre a intelectualidade liberal marginalizada, e, posteriormente, entre os operários, muitos deles estrangeiros. Foram as correntes anarquistas as que, pelo menos até os anos 20 do presente século [XX], mostram extrema ductilidade para representar boa parte de todo este hibrido mundo de pensamentos inspirados em 47 É importante assinalar que a Segunda Internacional assume uma posição cada vez mais progressivista nos últimos anos do século XIX, e principalmente na primeira década do século XX. Para acompanhar os debates na Segunda Internacional, ver: LA SEGUNDA INTERNACIONAL y el Problema Colonial (primera Parte) Caderno 73, México: PYP, 1978 e LA SEGUNDA INTERNACIONAL y el Problema Colonial (segunda Parte) Caderno 74, México: PYP, 1978 27 projetos de reformas sociais e de justiça econômica, mantendo, contudo, uma estreita vinculação com as classes operárias urbanas. (ARICÓ, 1999, p. 33). Para Aricó, a impossibilidade em se participar do jogo político institucional, a repressão e o controle político conservador propiciavam um ambiente de desespero político, em que a única opção seria uma ruptura total com o Regime Oligárquico, um tipo de resolução catastrófica que combinaria com muitas visões milenaristas que se desenvolveram entre as comunidades serranas do altiplano andino e entre as comunidades camponesas que tinham suas terras usurpadas pela expansão das monoculturas. A reação imediata contra a “desordem social” imposta pelas classes dominantes encontrava nas doutrinas libertárias uma ideologia acorde com uma visão que se fundava na eliminação física de toda a estrutura autoritária e repressiva a possibilidade de liberação dos homens. As esperanças postas em uma resolução catastrófica e imediata do presente, que é típica do mundo de nosso século e particularmente de suas zonas periféricas, tornava definitiva e prescindível toda a estratégia que se colocara objetivos futuros em longo prazo. (ARICÓ, 1999, p. 33). O liberalismo radical que se torna anarquista: a crítica social de Manuel González Prada Para a maior parte da historiografia que trata a independência latino-americana, o processo de ruptura com a metrópole não significou mudanças substanciais para a maioria da população, pois a estrutura social e econômica, mesmo que com a ausência das autoridades espanholas, permaneceu muito próxima à existente na época colonial. Na linguagem dos revolucionários do início do século XX, precisávamos de uma revolução social e econômica, e não apenas política. Na estrutura oligárquica que os países independentes herdaram, a população estava alijada da política oficial. Entre as facções da oligarquia latino-americana, acostumou-se a serem divididos liberais e conservadores. De maneira geral, os liberais estiveram geralmente associados a posições modernizantes, com discurso laico e algumas vezes com preocupações por democracia, sufrágio etc. Os conservadores estavam alinhados mais diretamente à manutenção do status quo, aos interesses dos latifundiários e da Igreja Católica. A diferença entre conservadores e liberais varia muito 28 no tempo e no espaço, permitindo apenas definições parciais. No México, os liberais levantaram a bandeira da laicidade do Estado com muito mais veemência do que os liberais brasileiros, por exemplo48. Por definição, os liberais estão agrupados em algumas crenças, que, inclusive, os nomeiam. No raciocínio liberal clássico, o desenvolvimento material e o progresso da civilização são consequências naturais da liberdade do mercado. O que está implícito nessa concepção, e que realmente nos importa aqui, é a defesa da diminuição do Estado, necessário apenas para a manutenção da ordem e da propriedade privada. Para os liberais, o Estado é sinônimo de entrave, burocracia e atraso. Córdova, ao tratar do anarquismo de Ricardo Flores Magón, que surge do interior do movimento liberal, em oposição ao Governo Diaz, pontua a relação entre o liberalismo radicalizado e o anarquismo em uma nota de seu livro. O anarquismo é sem dúvida uma etapa, a mais radical no processo de desenvolvimento lógico do liberalismo, tanto política como economicamente. Em ambas as doutrinas é preocupação fundamental a atividade reservada ao Estado dentro da sociedade, dessa maneira, da restrição do poder estatal dos liberais, os anarquistas passam à abolição de todo Estado, sem estabelecer nenhuma diferença, nem sequer de matiz, entre as formas que este pode adotar, ou a serviço de que classe ou grupo a adota. Da fórmula clássica de que o melhor governo é o que governa menos, o anarquismo sem gradação alguma conclui que o melhor governo é o que não existe; a dicotomia autoridade-liberdade é para ele absoluta. (BLANQUEL apud CORDOVA, 1991, p. 175). Essa relação de hereditariedade entre o radicalismo anarquista e o liberalismo latino-americano possibilitou aos anarquistas mexicanos e peruanos a posição de vanguarda no debate acerca da realidade em que estavam inseridos. Assim superaram uma tendência ao isolamento que o radicalismo de origem bakuninista poderia impor em uma sociedade agrária, com uma ínfima e recente classe operária, em que as relações pessoais regulavam a organização do trabalho. Por essa origem no liberalismo que os anarquistas mexicanos e peruanos procuraram se organizar em partido, além de terem sido flexíveis quanto a algumas formas de participação política, as quais, para os anarquistas europeus, seriam incompatíveis e conciliadoras. É também por essa dupla 48 Em vários documentos escritos pelos militares rebelados, na década de 1920, no Brasil, podemos perceber típicas reivindicações liberais, inclusive a separação entre Igreja e Estado. Em uma “mensagem aos revolucionários de Pernambuco, enviada do Piauí, em janeiro de 1926”, reivindicavam como ideais: “Voltar ao regime liberal assegurado pela Contituição de 24 de fevereiro”. Cf.: “Anexos nº 3 e 13”. In: PRESTES, Anita. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 401 e 417. 29 filiação que foram os anarquistas que agitaram as mais latentes questões das sociedades peruana e mexicana, as quais ultrapassaram o âmbito da fábrica urbana e iniciaram reflexões importantes sobre as questões étnicas, nacionais e, principalmente, agrárias. González Prada foi emblemático: um anarquista que tentou fundar um partido e que ficaria conhecido pela sua crítica nacionalista-popular ao tratar a identidade nacional de seu país. Paradoxal para o que se espera encontrar no anarquismo. *** A ocupação da cidade de Lima pelas tropas chilenas em 1876 foi um fato traumático para a oligarquia peruana. Além das perdas territoriais, os chilenos arrancaram o orgulho criollo49 dos conservadores capitalinos, situação que propiciou um debate sobre a nacionalidade peruana. Para a maioria dos letrados e políticos da época, toda falta de unidade do povo peruano recaía sobre as deficiências e a falta de patriotismo da população mestiça e indígena. Em geral, tal interpretação apontava para os índios como os males do qual vivia o Peru, incompatibilizando os ideais republicanos e nacionais com a população da Sierra e os mestiços do litoral. Era cômodo para a oligarquia, derrotada e humilhada após a ocupação chilena, explicar a debilidade do Estado peruano apoiando-se em arraigados preconceitos racistas, que os eximiam da responsabilidade pela crise política. Os jornais da época estamparam manchetes que “denunciavam” a falta de patriotismo e a covardia dos indígenas. Com episódios de alianças entre latifundiários peruanos e o exército chileno, e a indiferença de várias comunidades indígenas frente à “defesa da pátria”, as palavras do oficial britânico, delegado de um quartel general peruano, foram sintomáticas. A maioria dos oficiais, sobretudo os superiores, são descendentes dos antigos colonizadores espanhóis e, por isso, têm pouco em comum com os seus homens. O espírito da corporação é desconhecido e, embora o soldado peruano grite invariavelmente “Viva o Peru!”, antes de cada ataque ou fugindo do inimigo, não sabe o que essas palavras significam e repete simplesmente o que lhe foi ordenado. Muitos eram totalmente ignorantes da causa pela qual lutavam, imaginando tratar-se de uma revolução cujas partes em conflito eram o “general Chile” [sic] e Piérola. Fui informado também por um oficial que muitos 49 Criollo foi o termo utilizado para denomiar os espanhóis nascidos nas colônias americanas. Após a iundependência, esses criollos tornaram-se a elite dirigente dos novos Estados. 30 soldados tinham dito que “não se deixariam matar por causa dos brancos”. (BONILLA, 1977, p.59-60 apud COTLER, 2006, p. 98). Coube a Manuel González Prada (1844-1818) denunciar o racismo, inverter a lógica da “culpa” indígena e apontar a aristocracia como a responsável pelas mazelas do povo peruano. Manuel González Prada nasceu em Lima no ano de 1844. Pertencente a uma das famílias mais aristocráticas da capital, renunciou a sua origem e colocou-se em defesa dos indígenas, agricultores, trabalhadores e marginais do Peru. Viajou pela Europa e no Peru fundou um circulo literário que, posteriormente, constituiu-se como um partido político, a União Nacional50. Frente ao fracasso peruano na Guerra contra o Chile, na qual lutou, Prada denunciou a miséria da maioria da população e nestas condições buscou a explicação para a falta de mobilização e interesse das camadas populares em defender o território peruano. Sua trajetória política segue o curso de uma radicalização crescente contra as classes dominantes e a estrutura oligárquica das instituições estatais peruanas. Na Europa, descobriu o anarquismo de Kropotkin, Proudhom, Malatesta e Bakunin, que o vinculou cada vez mais aos operários anarquistas peruanos. Seus escritos foram amplamente divulgados entre os círculos anarco-sindicalistas51 da primeira década do século. Ficou conhecido pela defesa do anarquismo, pela crítica à religião e contra a ordem oligárquica, mas foi na defesa dos índios, com o artigo “Nuestros Indios”, escrito em 1904, que seu nome seria lembrado na América Latina como um dos primeiros indigenistas contemporâneos. O “redescobrimento” da importância do componente indígena no Peru a partir de González Prada foi o ponto de partida para que, entre 1900 e 1930, surgissem duas maneiras – contrárias e similares – de pensar os componentes culturais daquele país. Ambas as maneiras, hispanismo e indigenismo, marcaram profundamente o pensamento social peruano ao longo deste século. A base comum dessas interpretações e de suas propostas foi o dualismo. Tal dualismo, isto é, o esquema binário, a ênfase na distância e oposição dos componentes culturais e o conflito como única ou principal maneira de 50 A União Nacional ou o Partido Radical criado a partir do grupo literário que rodeava Prada teve vida efêmera e pouca vocação para a militância organizada. Nas palavras de Mariátegui: “O programa do Partido Radical, que, por outro lado, não foi elaborado por González Prada, permanece como um exercício de prosa política de um ‘círculo literário’. Já vimos que a União Nacional, efetivamente, não passou disso” (MARIÁTEGUI, 1975, p. 186). 51 O termo anarco-sindicalismo designa o movimento sindical radical que se baseava em certos autores anarquistas e atuava nos sindicatos. 31 relacionamento entre eles conforma, desde então, a principal herança intelectual que sucessivas gerações – salvo exceções – pouco questionaram. (URIARTEL, 1998, s.p.)52. Hispanistas (ou arielistas53) e indigenistas opuseram duas versões acerca do papel do índio. Em uma apresentação em Genova, em 196654, José Maria Arguedas, um importante arqueólogo peruano, fez um histórico dessa dualidade e resgatou na conhecida generación del 900 os primeiros representantes destas duas correntes: Riva Aguero (1858-1923) e Vitor Andrés Belaúnde (1883-1966) (hispanismo) e Julio O. Tello (1880-1947) (indigenismo). Como o oposto ao indigenismo, os hispanistas caracterizavam-se pela afirmação da superioridade e a predominância da cultura hispânica no Peru. (ARGUEDAS, 1997, p. 328-329) No outro polo estaria o arqueólogo Tello, que buscou aprofundar seus conhecimentos acerca das culturas inca e pré-inca. Embora fosse um grande entusiasta da cultura inca, seu ânimo limitou-se a um estudo acadêmico do passado indígena, não tendo consequências diretas na atividade política e na identidade nacional peruana. Mas o mesmo Tello, como arqueólogo, perde de vista o índio vivo. Admira o folclore; entretanto, forma um conjunto de bailarinos de seu povoado nativo, Huarochiri, e os veste com trajes “estilizados” por ele, criados por ele, inspirando-se em motivos arqueológicos com menosprezo aos vestidos típicos do povoado de Huarochiri. A monumental obra de Tello guarda certa semelhança com a de Riva Aguero e Belaúnde quando exalta os já indiscutíveis valores da antiguidade peruana; existe, por outro lado, uma diferença clara, uma contraposição na atitude; Tello se proclama índio com orgulho aparentemente sincero. (ARGUEDAS, 1997, p. 329). Embora tenha consequências para a conformação da identidade nacional peruana, os estudos de Tello alcançaram êxitos importantes no campo da ciência 55, mais 52 URIARTEL, Montoya Urpi. Hispanismo e Indigenismo: o dualismo cultural no pensamento social peruano (1900-1930). Revista de Antropologia, São Paulo, v. 41, n. 1, 1998. 53 O termo arielistas faz referência a obra de José Enrique Rodó, Ariel, que influenciou os que procuraram na herança espanhola a identidade nacional para a América Latina, em oposição a um panamericanismo, que durante a Guerra entre Espanha e Estados Unidos passou a influenciar a emergente intelectualidade do continente. 54 ZEA, Leopoldo. Fuentes de la Cultura Latinoamericana. México DF: Fondo de Cultura Economica, 1997. v. 1-3. 55 Vargas Llosa descreve a obra de Tello: “Levou a cabo uma extraordinária obra de investigação arqueológica, que contribuiria de maneira decisiva para revelar ao mundo a antiguidade e a riqueza de um passado que remontava há muitos séculos antes do Império dos Incas, e a importância das culturas préincaicas da Costa, entre elas a de Paracas e seus belíssimos tecidos, que o próprio Tello descobriu” (LLOSA, 1996, p. 57). 32 que na política. A inserção da questão indígena no debate sobre identidade nacional surgiria pela crítica de Manuel González Prada, que denunciou as condições de exploração do índio e assentou nas classes dominantes a responsabilidade pela fragmentação nacional. A crítica gonzalezpradista seguiu o caminho da radicalização crescente, do liberalismo democrático, à descoberta das mazelas da população e da literatura radical europeia. Prada foi considerado o primeiro modernista peruano, e, embora tenha contribuído com novos ares para a literatura peruana, particularmente na poesia, inaugurando uma nova estética com elementos populares, de sentido realista e político, não foi na literatura que repousou seu mais importante legado. Na virada do século, González Prada reconheceu que é no regime latifundiário que se encontravam os problemas peruanos. Como solução, apresentou uma revolução próxima e inevitável, embora essa apareça em sua obra de forma vaga e apocalíptica. (ANDERLE, 1985, 94). As concepções políticas expressas em seus discursos e artigos não possuem uma estrutura que possa representar um programa de ação, nem uma perspectiva de futuro. Suas ideias refletem mais a solução e a perspectiva anarquista da época. A análise de González Prada é mais uma crítica, um estado de espírito – como diz Mariátegui – contra a política oligárquica, o latifúndio e a Igreja, do que uma análise sistemática da realidade peruana. Prada ajudou a romper a despolitização no movimento operário – que nos seus primeiros anos estava hegemonizado por concepções mutualistas e por um sindicalismo economicista56 –, contribuindo na introdução dos temas mais amplos da realidade nacional, como as condições de vida no campo e a exploração gamonal57. No texto mais contundente sobre o problema indígena, “Nuestros Indios”, González Prada, conhecedor dos autores influentes da época, introduziu o tratamento da questão indígena pela crítica as ideias pseudocientíficas do positivismo comtiano e outras variantes, como o darwinismo social, de Spencer, bastante em voga na época. 56 Economicismo é o termo utilizado no movimento operário para designar um tipo de sindicalismo que privilegia as lutas por melhorias econômicas e despreza a luta política. 57 Gamonal refere-se ao sistema latifundiário típico da região andina. Mariátegui (2008) afirma que o gamonalismo não é apenas um sistema econômico, ou uma relação de produção, é um modo de produção, com consequências políticas e superestruturais. 33 [...] Cômoda invenção da Etnologia nas mãos de alguns homens! Admitida a divisão da Humanidade em Raças superiores e raças inferiores, reconhecida a superioridade dos brancos e por conseguinte seu direito de monopolizar o governo do planeta, nada mais natural que a supressão do negro na África, de pele vermelha nos Estados Unidos, do tálago nas Filipinas, do índio no Peru. Como na seleção ou eliminação dos débeis e inadaptados, se realiza a suprema lei da vida, os eliminadores ou supressores violentos não fazem mais que acelerar a obra lenta e preguiçosa da natureza: abandonam a marcha de tartaruga pelo galope do cavalo. Muito não o escrevem, mas deixam ler nas entre linhas, como Person quando se refere à “solidariedade entre os homens civilizados da raça europeia frente a Natureza e a barbárie humana”. Onde se lê “barbárie humana” traduz-se “homem sem pele branca”. (GONZALEZ PRADA, 1908, s.p.). E, da politização do racismo, Prada passou à questão indígena e a sua origem colonial, que está na raiz da divisão da sociedade peruana entre indígenas e brancos. Gonzalez Prada, já um anarquista assumido, encontrou no Estado o seu inimigo. Sob uma constatação demográfica que seria repetida por Mariátegui anos depois, fundamenta a rebelião: o Estado peruano, a “grande mentira”, mantém dois ou três milhões fora da lei. Primeiro os Conquistadores, em seguida seus descendentes, formaram nos países da América um elemento étnico bastante poderoso para subjugar e explorar aos indígenas. Embora se tache de exageradas as afirmações de Das Casas, não se pode negar a avarenta crueldade dos conquistadores [...] No Peru vemos uma sobreposição étnica: excluindo aos europeus e ao curtíssimo número de brancos nacionais ou criollos, a população se divide em frações muito desiguais pela quantidade de “encastados” ou dominadores e os indígenas ou dominados. Cem a duzentos mil indivíduos se sobrepõem a três milhões. Existe uma aliança ofensiva e defensiva, uma troca de serviços entre os dominadores da capital e os da província: se o gamonal da Sierra serve de agente político ao senhorio de Lima, o senhorio de Lima defende o gamonal da Sierra quando abusa barbaramente do índio. (Ibidem, s.p.) Nas atitudes governamentais que se pretendem redentoras da situação do índio e carregadas de filantropia, González Prada acusa sua insuficiência perante uma classe latifundiária que não respeita a lei. Em relação às atitudes governamentais, afirma: […] Se na costa se percebe um vislumbre de garantías ou um remendo de república, no interior se sente a violação de todo direito sob um verdadeiro regime feudal. Ali não regem Códigos nem imperam tribunais de justiça, porque os fazendeiros e “gamanais” dirimem toda questão arrogando-se o papel de juízes e executores das 34 sentenças. (Ibidem, s.p.). Na sequência, Prada denuncia o racismo, desnaturaliza a desigualdade e desvela a essência do Estado peruano. Por fim, relaciona os problemas da sociedade peruana à manutenção do sistema gamonal-feudal da Sierra, parte da dominação do Estado. […] Uma fazenda se forma pela acumulação de pequenos lotes arrebatados de seus legítimos donos, um patrão exerce sobre seus peões aautoridade de um barão normando. Não só influí no nomeamento de gobernadores, prefeitos e juizes de paz, senão que faz matrimônios, designa herdeiros, reparte as heranças, e para os filos que satisfaçam as dívidas do pai, os submete a uma servidão que frequentemente dura a vida inteira. Impõe castigos tremendos como a “corma”, a flagelação, o “cepo de campaña”58 e a norte; risíveis como a raspagem do cabelo e o banho de água fria. Quem não respeita vidas nem propiedades realizaría um milagre se resgardasse à exposição da honra das mulheres: Toda índia, solteira ou casada, pode servir aos desejos brutais do “senhor”. [...] Em resumo: as fazendas constituem reinos no coração da República, os fazendeiros exercem o papel de autocratas no meio da democracia. [...] A questão do ínido, mais que padagógica, é económica e social. Como resolve-la? (GONZÁLEZ PRADA, op.cit., s.p., grifo nosso). A citação acima é importante para desvelarmos a contribuição de Prada ao problema indígena. Em Nuestros Indios, pela primeira vez seria vista a ligação entre a situação dos índios e a ordem feudal da Sierra. Essa análise sobre a subsistência de um regime de servidão que se apresenta não somente em uma divisão social – entre classes gamonales e camponeses explorados –, mas também em suas características étnicas, vai influenciar toda uma geração posterior e é o traço mais marcante do pensamento de González Prada. Como solução, que não é um programa, mas uma exaltação a rebeldia, conclui: A condição do indígena pode melhorar de duas maneiras: ou o coração dos opressores se comove ao extremo de reconhecer o direito dos oprimidos, ou o ânimo dos oprimidos adquire a virilidade suficiente para castigar os opressores. [...] Que não se pregue ao índio a humildade e a resignação, senão orgulho e rebeldia. O que tem ganho com trezentos ou quatrocentos anos de conformismo e paciência? De quanto menos autoridades sofram, de maiores danos se liberta. Há um fato revelador: reina maior bem-estar nas comarcas 58 Tanto a corma como o cepo de campaña são instrumentos de tortura que consistem em em duas madeiras que aprisionam membros ou a cabeça da vítima. Utilizado para criar extremo desconforto, humilhação e imobilização. 35 mais distantes das grandes fazendas, se disfruta de mais ordem e tranquilidade nos povos menos frequentados pelas autoridades. Em resumo: O índio se redimirá graças ao seu próprio esforço, não pela humanização de seus opressores. Todo branco é, mais ou menos, um Pizarro, um valverde ou um Areche. (GONZÁLEZ PRADA, op. cit, p. 438). Além da classe operária, o pensamento de González Prada contribuiria na ventilação de novos ares entre os intelectuais e as classes médias 59 progressistas, preparando terreno para os debates que irão dominar a intelectualidade da geração posterior à sua morte, levantando temas como a questão agrária, a solução revolucionária para o problema indígena e a urgência de uma autêntica democracia. (ANDERLE, 1985, p. 97). A herança que González Prada deixaria para a geração dos anos 20 seria a crítica frontal às condições econômico-sociais do Peru, a denúncia do racismo contra o índio e a colocação do problema indígena como formador da identidade nacional peruana. A historiografia peruana afirma que coube a González Prada, depois de séculos de silêncio, denunciar a situação de exploração do índio e ligar essa situação aos problemas nacionais. Diversos aspectos da agitação gonzalezpradista confirmam a Hipótese de Aricó sobre as dificuldades de difusão do marxismo na América Latina e, principalmente, explicam a difusão do anarquismo no continente. Cabe pontuar o papel das classes médias que emergiam com as transformações das cidades latino-americanas no início do século XX. Um fato ao que se deveu em boa parte a grande difusão do anarquismo, tanto em sua variante individualista, primeiro, e na sindicalista, depois, foi a capacidade de atração que teve frente à intelectualidade de origem pequeno-burguesa. (ARICÓ, 1999 p. 35). 59 Classe média é um conceito vago, não define uma posição econômica na produção, não se relaciona a uma camada política definida, mas tem um uso corrente nas análises sociais de todas as épocas. Entendemos tratar-se de um conceito mutável que para ser usado necessita ser definido no tempo, mas que geralmente tenta abarcar uma camada social não proletária e urbana. Na América Latina, essa categoria assume uma importância grande ao tentar agrupar um setor politicamente significativo nos anos 1920. Seriam pertencentes à classe média os pequenos comerciantes, os intelectuais e artistas não orgânicos ao Estado Oligárquico, os militares de patente média, funcionários públicos com baixos salários e por vezes pequenos agricultores, mas geralmente esse termo se relaciona a uma população urbana. Conforme uma conceitualização aprista, o setor social que Haya de La Torre e a APRA vinculam ao termo tem uma definição tão ampla, que chega a permitir um peculiar exagero demográfico: “[…] el pequeno proprietario, el pequeno productor minero; el pequeno comerciante; esa clase que constituye, quizás, la mayoria [sic] del país”. (HAYA DE LA TORRE, 2000, p. 179). 36 Mas, se por um lado, Aricó explicou a dificuldade do socialismo na América Latina, não deu o devido valor à importância dos anarquistas latino-americanos em agitar a crítica aos problemas estruturais em seus países, que, em muitos casos, não se limitavam ao binômio patrões e empregados, ou propriedade privada e comunismo. González Prada é uma boa representação dessa capacidade de utilizar a crítica anarquista para compreender melhor a sociedade peruana. A rebeldia de Ricardo Flores Magón Na falta de novas perspectivas para uma realidade de opressão e miséria, os homens, muitas vezes, olham para o passado, o idealizam como alternativa para transformar e criar algo novo. Assim, no México porfirista, as ideologias da Revolução nasceram acompanhadas da defesa do passado liberal. Desde o início, o passado não era o porfirismo, senão a tradição libertária que se deu a partir da Revolução de Independência, se desenvolve em um longo período de luta dos liberais contra os conservadores e culmina com o triunfo da República nas guerras da Reforma e contra a intervenção francesa. (CORDOVA, 1991, p. 87). Com um incipiente proletariado e com revoltas camponesas de caráter local e sem perspectivas nacionais, coube aos intelectuais médios da cidade a organização de um movimento de oposição. Os fundamentos dessa oposição seriam encontrados no antigo liberalismo juarista60, em que era possível encontrar inspiração de democracia política que almejavam61. A faísca que incendiaria os meios liberais da época porfirista seria o discurso do bispo de San Luis de Potosi, em junho de 1900. Proclamado na Assembleia Geral do 60 Benito Juárez promungou uma série de leis de cunho liberal em meados do século XIX, como a Lei do Matrimônio Civil, a que nacionalizava os bens eclesiásticos ou o decreto de secularização dos cemitérios. Na História Independente do México, as diferenças entre liberais e conservadores estiveram muitas vezes relacionadas à luta contra os privilégios da Igreja e na defesa do Estado laico. 61 Cockcroft nos conta que: “[...] [Félix Palacini] cria que a próxima revolução social do México se iniciaria com os ‘intelectuais da classe média’ e com o 'proletariado intelectual' [...] cria que os intelectuais do México haviam sido a principal força dinâmica de toda a história da República desde a Guerra da Independência [...] advertia: ‘a classe média intelectual’, quando se enfrente com a ‘fome chamando às portas’, com os salários reduzidos, com a carência de vestido, com o indecente alojamento, com o pão caro e a carne ‘ruim e cara’, ‘será revolucionária’: ‘O proletariado intelectual iniciará sua defesa’”. (COCKCROFT, 1981, p. 46). 37 Congresso Nacional de Agências Católicas, o bispo afirmou que no México a Igreja havia progredido apesar das restrições impostas pelas Leis da Reforma, denunciava a separação entre a Igreja e o Estado e que, sob o benévolo governo de Diaz e o apoio das mulheres mexicanas, as Leis da Reforma não passavam de letra morta. (COCKCROFT, 1981, p.90; CORDOVA, 1991, p. 90). O discurso do bispo Montes de Oca y Obregón (1840-1921) fez com que Camilo Arraiga (1862-1945), apoiado por outros liberais de San Luis de Potosi, publicasse um manifesto convidando os clubes liberais a reunirem-se em uma Convenção Nacional em San Luis de Potosi, em fevereiro de 1901. (COCKCROFT, 1981, p. 90). Camilo Arraiga era um engenheiro de minas, membro de uma das famílias mais abastadas da região, que havia passado um período pela Europa, de onde havia trazido muitos livros. De sua biblioteca particular liam-se muitos dos autores radicais, principalmente anarquistas, que influenciariam todo o grupo de liberais reunidos no entorno de Camilo62. No manifesto de Arraiga estava definido que se discutiria e se necessitaria decidir os meios “de levar a prática a unificação, a solidariedade e força do Partido Liberal, a fim de conter os avanços do clericalismo e conseguir dentro da ordem e da lei a vigência efetiva das Leis da Reforma”. (Ibidem, p. 69)63. A reunião liberal ocorreu em fevereiro de 1900 e contou com muito mais delegados do que estavam esperando inicialmente. Entre os delegados, estava o jovem Ricardo Flores Magón (1874-1922), que do seu jornal Regeneración passou à oposição ativa ao governo com denúncias e um crescente radicalismo. Inicialmente, o objetivo do jornal era essencialmente legalista: combater e denunciar as falhas da justiça, os juízes venais, os litigantes imorais e as autoridades arbitrárias (CÓRDOVA, 1991, p. 91). Regeneración noticiaria no número 2664 detalhes do Congresso, e reconheceria a liderança de Arraiga sob o movimento liberal mexicano. A transformação de um liberalismo legalista, crente nas possibilidades de conquistar reformas políticas pelo Estado, vai desenvolvendo-se e radicalizando o seu discurso. Esse processo é facilmente “Santiago de la Veja declarou mais tarde: ‘Graças a Camilo – Camilito, como o chamávamos – toda a biblioteca Stock de Paris fez parte de nossas bagagens de prisioneiros’ A Biblioteca Stock foi uma proeminente casa de publicações e livraria em Paris da qual através de sua Biblioteca Anarchiste distrbuía as obras dos líderes anarquistas europeus, e a través de sua Bibliothèque cosmopolite” oferecia as obras de autores mundialmente conhecidos (Tolstoi, Ibsen, Hugo, Kipling e outros.)”. In: COCKCROFT, 1981, p. 69. 63 Ibidem, p. 78. 64 REGENERACIÓN, El Gran Congreso Liberal. Regeneración, México, DF, n. 27, 15 fev. 1901. 62 38 acompanhado pelas páginas de Regeneración. Em 1900, pouco antes da Convenção (ou Congresso) Nacional do movimento liberal, o periódico, antes dedicado às questões jurídicas, avança para o tratamento de questões mais amplas. A partir do número 2065, o jornal dos irmãos Flores Magón passou a denominar-se Reneración, Periódico Independiente de Combate e apresentou suas proposições: A justiça, mal administrada como tem estado até esta data, foi o que primeiro nos induziu a fundar nosso periódico [...] Nossa luta tem sido dura. Tem tido todas as características de uma luta de pigmeus encarando titãs [...] Nossa luta por Justiça, não era mais que um reflexo de nossos princípios; mas essa luta se via circuscrita a um mesquinho raio de ação: não podíamos tratar mais que de assuntos jurídicos. [...] Por outra parte, continuaremos tratando os assuntos jurídicos, como até esta data, e seguiremos fazendo as críticas, quiçá um tanto amargas, mas não por isso menos justas, dos atos dos empregados judiciais. (REGENERACIÓN, n. 20, 31 de dez. 1900). As críticas amargas vieram cada vez mais dirigidas a Porfírio Diaz. No número 34, dizia: “Não acredite que nos dirigimos a esta personalidade para adular [...] Nos dirigimos ao presidente para por em manifesto o grave mal que tem ocasionado com seu sistema político, ditatorial, absorvente, absoluto, autocrático” (REGENERACIÓN, n. 34, 15 abr. 1901, p. 1)66. Frente ao sucesso do Congresso e ao crescimento da oposição liberal, Enrique e Ricardo Flores Magón são presos, logo depois seria encarcerado também Antonio Diaz Soto y Gama (1880-1967), outro importante participante do chamado grupo precursor da Revolução Mexicana. A ideologia de oposição ao Governo Diaz nasceu liberal e foi transformando-se ao longo dos conflitos. Fechada qualquer via de transição política, a radicalidade crescente de Reneración vai conquistando leitores. O jornal havia sido fundado pelos irmãos Jesus e Ricardo Flores Magón, e depois se incorporaria o irmão mais novo, Enrique. O destaque seria para Ricardo, mas, além dos irmãos, no círculo do jornal teriam destaque também Práxedes Guerrero (1882-1910), Librado Rivera (1864-1932), Antonio I. Villarreal (1879-1944) e Juan Sarabia (1882-1920). Com Ricardo ainda preso e a fim de ampliar o movimento liberal, Arraiga e José Maria Facha convocam o 2ª Congresso do Partido Liberal Mexicano, em que se especificam os temas a serem debatidos, entre outros a liberdade de imprensa e a 65 66 Idem. Periódico independiente de combate. Regeneración, México, DF, n. 20, 31 dez. 1900. Idem. Al Presidente de la República, Regeneración, México, DF, n. 34, 15 abr. 1901. 39 resolução do problema agrário. Como González Prada havia conseguido tocar na ferida que envolvia ¾ da população peruana, a questão indígena, os liberais em processo de definição programática esbarravam na questão que assolava os também ¾ da população mexicana, o problema agrário.67. Sem condições de fazer oposição de forma legal, Ricardo Flores Magón se exila em San Antonio, no Texas, e do território norte-americano continua a publicar Regeneración. Em 1903, um agente de Porfírio Diaz tenta assassiná-lo, sem êxito. A partir de 1905, forma-se uma Junta Organizadora do Partido Liberal Mexicano, com Ricardo à cabeça. Na situação de repressão política, fechados os caminhos institucionais, o tom legalista perdeu espaço nos clubes liberais, e os mais radicais, que permaneceram politicamente mais ativos, foram ganhando maior importância entre os que se opunham à ditadura de Diaz. É nesse momento, por volta do ano de 1904, que o liberalismo radicalizado de Regeneración vai sendo substituído pelo anarquismo, estabelecendo relações cada vez mais fortes com os operários. Entre os dias 1 e 3 de junho de 1906, seria deflagrada uma greve que se tornaria historicamente importante, em Cananea, por marcar a primeira manifestação da Rebelião que conflagraria o México a partir de 1910. Os organizadores dessa greve estavam reunidos na União Liberal Humanitária. Os protestos por melhores salários e equiparação com os salários pagos aos norte-americanos foram reprimidos pela força particular da empresa de mineração com o auxílio de alguns mineiros de nacionalidade norte-americana. O dono da empresa solicitou a intervenção de tropas norte-americanas, que atravessaram a fronteira do México com o Arizona, e os mineiros foram atacados e reprimidos. Essa greve foi duramente reprimida pelo Governo e descrita em um artigo de Ricardo Flores Magón, assinado com o pseudônimo de Netzahualpilli, da seguinte maneira68: Declarou-se a greve. Ninguém voltaria a entrar nas minas para trabalhar, já que as famílias dos trabalhadores eram colocadas na miséria para que se engordassem e gozassem a vida das famílias dos 67 Como no Peru a questão indígena, embora evidente, mantinha-se sob desinteresse dos letrados da capital, no México a questão agrária somente havia sido tratada em favor do campesinato por Wistano Luis Orozco, com o livro: “Legislación y jurisprudência sobre terrenos baldios” ver: OROZCO, Wistano Luis. “Legislación y jurisprudência sobre terrenos baldios.” Disponível em: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/2/940/40.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014. 68 Netzahualpilli ou Nezahualpilli foi o tlatoani de Texcoco entre 1473 e 1515, conhecido por abolir a pena de morte para escravos e soldados em alguns crimes. 40 que não suavam. Seis mil homens deixaram cair a ferramenta, animado pela esperança de que, arrependidos, os amos atenderiam suas reclamações. Vã esperança. Os amos armaram seus lacaios e assassinaram o povo. O governo, por sua parte, mandou soldados que fizeram o mesmo e, covarde e traidor, tolerou que foragidos estrangeiros violassem as leis de neutralidade para exterminar aos mineiros mexicanos. [...] Que espantoso crime os mineiros haviam cometido para serem caçados como bestas selvagens? Um crime realmente e muito grande, um monstruoso crime: o de reclamar seu direito com as mãos vazias. Esse é o crime dos povos submetidos e escravos. [...] Os direitos não se reclamam cruzando os braços, senão com o ferro e com o fogo. Armem-se os operários e reclamem seus direitos, só assim se conquista a liberdade e o bem estar. (FLORES MAGÓN, 1908)69. Depois, no final de 1906, trabalhadores de Rio Blanco reagiriam a um lockout70 nas indústrias têxteis, atacando e destruindo a fábrica. O governo não hesitaria em reprimir os operários. Alguns autores chegam a contar a morte de 800 pessoas nesse conflito. (BARBOSA, 2010, p. 55). Um mês depois da Greve de Cananea, o PLM lançaria seu programa revolucionário, que definiria dois campos no liberalismo mexicano pré-revolução. Por um lado, uma tendência puramente liberal (CORDOVA, 1991, p. 96), que depois seria encarnada pela figura de Francisco Madero, e outro campo, agitado pela prédica anarquista de Ricardo Flores Magón, avançando do liberalismo radicalizado para um anarco-sindicalismo com características particulares, que receberia o nome de magonismo71. Melgar Bao explica os motivos que levaram o liberalismo mexicano ao encontro da parte mais radical do movimento anarquista: A repressão constante contra os clubes liberais e seus órgãos de imprensa, foi acelerando o processo de radicalização ideológica e política destes setores até os fazer convergir com o movimento operário que se desenvolvia de maneira espontânea, autônoma e que igualmente era objeto de repressão governamental (MELGAR BAO, 69 NETZAHUALPILLI (Pseudônimo de Ricardo Flores Magón), Libertad y Trabajo, Los Angeles, 30 maio 1908. Disponível em: <http://www.fte-energia.org/E80/e80-17.html> e em Memoria, México, n 245, p. 39-40, ago. 2010. 70 Lockout é o termo utilizado para definir o ato dos donos de uma empresa para impedir que os funcionários exerçam suas funções. Como uma “greve” patronal. Essa tática é utilizada para impedir e dificultar negociações em meio a uma greve de trabalhadores, ou a ameaça de uma. Na maioria dos países, essa prática é proibida por lei. 71 Denominamos como magonismo o conjunto de ideias que fizeram parte do pensamento de Ricardo e Enrique Flores Magón, bem como de seus companheiros do PLM na fase anarquista, como Práxedes Guerrero. 41 1988, p. 179). O próprio Ricardo Flores Magón explica a transição de seu pensamento e confirma a assertiva de Melgar Bao: O avanço das minhas ideias é lógico, não tem nada de estranho nele, nada de postiço. Primeiro acreditei na política. Eu acreditava que a lei teria a força necessária para que houvesse justiça e liberdade. Mas vi que em todos os países ocorria o mesmo que no México, que o povo do México não era o único desgraçado e busquei a causa da dor de todos os pobres da terra e a encontrei: o capital. (FLORES MAGÓN apud CORDOVA, 1991, p. 175). O Programa do PLM é interessante por demonstrar algumas desconfianças de um anarquismo ainda incipiente, que depois seria mais pleno e claro. Em 1906, o PLM ainda recomendava receio frente ao governo, e não a negação de qualquer participação. [...] é preferível impor aos liberais a obrigação de velar pelo cumprimento do programa, para que assim recorde continuamente que não deve fiar demasiado em nenhum governo, por exemplar que pareça, senão que devem vigiá-lo para que chegue a seus deveres. Esta é a única maneira de evitar tiranias no futuro e de assegurar que o povo goze e aumente os benefícios que conquiste. (PARTIDO LIBERAL MEXICANO, 1906, s.p.)72. O programa, que depois Ricardo recordará como muito ameno, declarava-se contra a reeleição e pela redução do mandato presidencial para 4 anos. Opunha-se ao serviço militar obrigatório, pela liberdade de imprensa, igualdade jurídica para militares e civis, abolição da pena de morte (exceto por traição), pela expansão da educação pública laica, valorização do magistério, valorização dos mexicanos sobre os estrangeiros, proibição da imigração chinesa73, limitação do poder do clero, melhoria das condições de trabalho, 8 horas de trabalho, salário mínimo, proibição do trabalho infantil, descanso dominical, reforma agrária, fortalecimento dos laços com os países latino-americanos, proteção da raça indígena, entre outros. (PARTIDO..., 1906, s.p.). O grupo do PLM continuou organizando a resistência, através da propaganda e da agitação política pelos jornais. Depois formaria grupos clandestinos pelo país, que 72 PARTIDO Liberal Mexicano, Programa del Partido Liberal y Manifiesto a La Nación, St. Louis, 1º jul. 1906. Disponível em: <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/programa/44.html>. Acesso em: 27 mar 2014. 73 A proibição de imigração chinesa é um ponto do programa do PLM que depois se repetirá em outras organizações na década de 1920, e seria combatido intensamente pelos comunistas, e particularmente através da Liga Anti-imperialista, conforme veremos no capítulo 3 deste trabalho. 42 animaram diversas mobilizações, como a Greve de Cananea, de Orizava, em Veracruz, uma guerrilha em 1908 em Yucatán, até que o PLM passasse à organização e defesa aberta da revolução social através da luta armada74. [...] en defensa de la Justicia, ultrajada sin tregua por el puñado de bandoleros que nos oprimen, nos rebelamos contra la dictadura de Porfirio Díaz, y no depondremos las armas que hemos empuñado con toda justificación, hasta que en unión de todo el Partido Liberal Mexicano, hayamos hecho triunfar el Programa promulgado el día 1° de julio del corriente año, por la Junta Organizadora del Partido Liberal. (PARTIDO..., 1906)75. Quando Madero lança o Plano de San Luis de Potosí, e conclama o povo mexicano às armas, os magonistas levantam-se em várias partes do país, mas concentram-se no território isolado da Baixa Califórnia onde imaginavam conseguir resistir.76 O magonismo maduro combinou radicalismo, levante camponês armado e coletivismo agrário, e argamassa para as mais radicais correntes do agrarismo mexicano, anos depois. Cockcroft (1981, p. 135) “[...] também nasceu uma revolução durante 1906-1908, tanto em termos ideológicos, como de preparação militar; o PLM aportou contribuições-chave ao desenvolvimento da Revolução de 1910-1917. Ainda que não tivessem alcançado êxito na derrubada de Porfírio Diaz, as revoltas do PLM ajudaram a sovacar seu regime. As ideias do Programa do PLM começam então a receber uma ênfase mais militante em benefício da classe operária”. 75 PARTIDO Liberal Mexicano, Proclama a la nación, St. Louis, set. 1906. Disponível em: <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/programa/45.html>. Acesso em: 27 mar 2014 76 Ricardo Flores Magón noticia, em uma carta de 28 de junho de 1911, o andamento dos combates no norte do México. Emílio campa foi um dos que assinaram o Plano de Empacadora, conhecido como Plano Orozquista. O trecho abaixo demonstra a relação direta entre Ricardo e as forças revolucionárias, particularmente Pascual Orozco. “Por falta de parque se perdió Tijuana. Los bravos compañeros lucharon ahí como leones hasta que quemaron su último cartucho. [...] Agotado el parque, los compañeros se pasaron al lado americano. Mexicali se perdió por la traición de Rodolfo Gallegos, un miserable que nos engaño vilmente y se vendió a los capitalistas americanos del norte de la Baja California. Sin embargo, los pesimistas no deben desalentarse, pues sería ridículo pretender que la Revolución Social estaba confinada en un rincón del territorio mexicano. Acabo de recibir cartas muy interesantes de los Estados de Chihuahua y Coahuila. Una es del firme y valeroso compañero José María Rangel, quien con el no menos firme y valeroso Inés Salazar, hacen la campaña liberal en el norte de Chihuahua. [...] Me dice Rangel en carta del 20 de este mes, que estaba ya para unir a su columna otra columna liberal que anda por el rumbo de San Antonio, Chihuahua. Si ya se unieron, muy pronto será dueña la bandera roja de una gran extensión territorial del Estado de Chihuahua. [...] Como es muy difícil la comunicación, no tenemos detalles de más operaciones de dichos compañeros.” Disponível em: <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/politica/reflexiones/5.html>. Acesso em: 27 mar 2014. 74 43 Figura 1 - "Homenagem a Posada", Leopoldo Mendez, linoleogravura s/papel, s/d..77 Oficialmente, a Revolução Mexicana começou com a convocação de Madero em novembro de 1910. Para conseguir apoio dos magonistas, chegaram a espalhar um boato de que Ricardo poderia ser o vice em uma futura presidência de Madero após a Revolução. A essa altura, Ricardo já estava plenamente convencido do anarquismo, e fez questão de responder, pelas páginas de Regeneración com um rotundo “não” e muita propaganda anarquista ao convite oficioso maderista. Os magonistas se lançaram à luta e no norte de Chihuahua fizeram uma série de ataques contra as forças federais, conquistando posições e agrupando combatentes. Em uma dessas lutas, morreu Práxedes Guerrero, um dos mais importantes membros da direção do PLM em uma das frentes de batalha próximas a fronteira. Práxedes Guerrero foi um importante militante anarquista e seus artigos possuem muitas posições próximas ao que depois seria considerado como as bases do leninismo em termos de organização clandestina. Barbosa (2010, p. 57) chama a atenção para a proximidade do magonismo78 e a forma de organização do PLM, em células centralizadas e clandestinas, com o modelo de organização partidária leninista. Entre os diversos grupos do PLM que lutaram na primeira fase da Revolução Mexicana, estiveram os magonistas, os quais em 1911 tomaram algumas cidades do 77 A Gravura de Leopoldo Mendez mostra uma cena hipotética, em que aparece o gravador José Guadalupe Posada preparando uma gravura enquanto Ricardo Flores Magón prepara um número de Regeneración. Pela janela Posada observa as tropas porfiristas reprimirem a população. Fonte: PEREIRA, Lucésia. “A Revolução Mexicana nas gravuras do Museu de Arte de Santa Catarina: entre aparição e nostalgia” Disponível em: <http://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00496214 > Acesso em: 23 mar 2014. 78 Ver nota 65. 44 Território de Baixa Califórnia, que alguns afirmam ser o primeiro intento de fundação de um Estado socialista no século XX, seis anos antes dos bolcheviques tomarem o poder na Rússia. O Governo Diaz manteve a repressão a qualquer dissidência política e com isso prejudicou os liberais mais moderados, que nesse contexto sucumbiam como alternativa frente aos radicais do PLM. Sem muitas opções, os liberais que representavam a oligarquia marginalizada no porfiriato se reuniram em torno da figura de Madero, que única e exclusivamente propunha uma transição política e não uma transformação revolucionária da sociedade. O tom conciliador do liberalismo que Madero representava ficou claro em seu livro Sucessión Presidencial79 (CORDOVA, 1991, p. 100). Espírita kardecista, Madero imaginava-se realizando uma missão transcendental. A sua proposta de governo, expressa no Plano de San Luis de Potosi, além da reivindicação por democracia política, estava bem limitada em relação a uma proposta de transformação social. Definidos os campos, Magón aprofundaria sua posição anarquista e se ligaria mais e mais aos operários e camponeses, ao mesmo tempo que se incompatibilizava com o maderismo. As ideias de Magón, muito depressa, passaram a ser divulgadas, associando-se a elas, segundo Angel Capelletti, o grito revolucionário de Tierra y Liberdad. O referido lema teria sido entoado primeiro pelo poeta e militante anarquista Práxedis Guerrero e depois disseminado pelos magonistas. Entretanto, foi Soto y Gama, um magonista muito próximo a Emiliano Zapata, que viria a popularizá-lo junto ao exército zapatista. (SAMIS, 2003, p.19)80,81. Da visão bakuninista que associa o Estado ao Capital, o grupo de Regeneración evolui para a associação da propriedade do solo ao Capital (CORDOVA, 1991, p. 178). Na lógica do comunalismo kropotiano, Magón encontra a comunidade indígena, os Capullis e os Ejidos, que possibilitaram novos elementos radicais para a Revolução Agrária que seguiria pelos próximos anos. 79 MADERO, Francisco, Sucesión Presidencial, INEP AC, 1910. Disponível em: <http://www.memoriapoliticademexico.org/Textos/6Revolucion/1910LSP.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014 80 SAMIS, Alexandre. Apresentação. In: FLORES MAGÓN, Ricardo. A Revolução Mexicana. São Paulo: IEL – Imaginário, 2003. 81 Embora Samis (2003, p.19) afirme que o lema Tierra y Libertad tenha sido popular entre os zapatistas, a verdade é que essa consigna nunca fez parte de nenhum documento zapatista, que assinavam normalmente: Reforma, Libertad, Justicia y Ley (um exemplo: o comunicado de Zapata, “Comunicado de Emiliano Zapata a los miembros del ejercito libertador”, 13 fev. 1915. Disponível em: <http://www.bibliotecas.tv/zapata/1915/z13feb15.htm>. Acesso em: 27 mar 2014. 45 O apoio mútuo era igualmente a regra; as casas se fabricavam em comum; a moeda quase não era necessária, porque havia intercâmbio de produtos, mas a Autoridade se robusteceu e os bandidos da política e do dinheiro roubaram descaradamente as terras, os bosques, tudo. [...] o povo mexicano está apto para chegar ao comunismo, porque o tem praticado, ao menos em parte, desde vários séculos, e isso explica porque embora em sua maioria seja analfabeta, compreende que, melhor que fazer parte em farsas eleitorais para elevar verdugos, é preferível tomar possessão da terra e a está tomando, para o grande escândalo da ladrona burguesia. (FLORES MAGÓN, 1910, p. 1)82. Ao chegar à questão da propriedade da terra, Flores Magón alcançou o problema de grande parte dos camponeses mexicanos que sofria sob o porfirismo. Foi a prédica magonista que agregou densidade política às rebeliões camponesas, mas seu tom apocalíptico não proporcionou uma solução objetiva para os camponeses, embora tenha instrumentalizado ideologicamente a combatividade insurgente. 82 FLORES MAGÓN, Ricardo. El Pueblo Mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, Los Angeles, n. 53, 2 set. 1911. 46 Figura 2 – Botoncito do Partido Liberal Mexicano83 Fonte: Regeneración, n. 66, Los Angeles: 2 dez. 1911, p. 1 Aos 48 anos de idade, morreu Ricardo Flores Magón, depois de suportar mais de 13 anos de clausura em diferentes prisões nos EUA e no México. Manteve, através de Regeneración, sua agitação, mesmo dentro das piores condições de repressão política. A câmara dos deputados, por ocasião da morte de Ricardo em uma prisão dos EUA, em 1922, rendeu homenagens, que foram rechaçadas pelos companheiros de Ricardo. Por outro lado, a confederação de sindicatos ferroviários trouxe por sua própria conta o corpo de Magón. Pelo caminho, operários lhe renderam diversas homenagens. Ricardo Flores Magón foi o mais rebelde entre todos que lutaram na Revolução Mexicana e, dessa maneira, é lembrado pelo povo mexicano. O magonismo não possuía um projeto de poder político nacional, mas a negação 83 Fonte: REGENERACIÓN, Los Angeles, n. 66, 2 dez. 1911, p. 1. Abaixo da gravura, aparece o seguinte texto: “Temos à venda botoncitos contendo a figura que reproduz a gravura. Cada botoncito vale 10 centavos ouro. Compre os botoncitos, pois tudo o que se reúna por esse meio servirá para o fomento da propaganda. O homem que sustenta a Bandeira vermelha é um trabalhador que acaba de fazer um esforço, tem rompido seus grilhões e se lança à luta contra o atual sistema. Na bandeira se pode ler com claridade o lema dos liberais mexicanos: Terra e Liberdade! Essa bela bandeira é a que nesses momentos aterroriza a burguesia e as autoridades em toda a extensão do território mexicano. O botoncito constitui um meio de propaganda, pois ao vê-los nas blusas de nossos irmãos deserdados, muitos procuraram indagar pelo Partido e os princípios que o defende”. 47 dos outros projetos em busca de um horizonte distante. Mais adiante, veremos que, como Madero não solucionava a questão agrária, os zapatistas receberam influências da prédica magonista para manter suas reivindicações pela democratização da terra e para opor-se ao governo maderista. No México, a oposição ao porfiriato se organiza em torno do liberalismo, reivindicando as conquistas juaristas. Os liberais mexicanos, diferente do que ocorreu no Peru, haviam alcançado maiores êxitos, emplacado importantes reformas e consolidado uma tradição política entre a intelectualidade marginalizada pela ditadura de Diaz. Essa influência liberal alcançou tamanha importância que de uma maneira ou de outra as correntes que se insurgem durante a Revolução Mexicana (1910-1920) reivindicam o liberalismo de Benito Juárez, ou as correntes mais populares e radicalizadas como o zapatismo inspiram-se em ideias facilmente associáveis à agitação anarquista, que nascem com a radicalização do programa do Partido Liberal Mexicano. Mas, se a oposição liberal e anarquista foi mais densa no México porfirista que no Peru civilista, a repressão do Governo Diaz foi também mais violenta, a ponto de Ricardo Flores Magón passar parte de sua vida e atividade política entre o exílio norteamericano e a prisão. González Prada seria o inspirador dos primeiros movimentos operários no Peru, foi a voz crítica ao sistema oligárquico civilista e o seu legado foi reivindicado por todas as correntes radicais do Peru contemporâneo. A vitória do magonismo e do gonzalezpradismo era irrealizável, mas o legado da agitação que promoveram alimentou outros movimentos, tornando-os mais combativos, encontrando na rebeldia dos dois anarquistas a densidade doutrinária para sustentar projetos radicais em tempos anteriores à possibilidade de poder bolchevique, quando toda a alternativa social era apenas um projeto irrealizável. Rebelião Zapatista e Anarquia nos Andes Entre nós o anarquismo foi mais a expressão de um subversivismo espontâneo das massas populares, que a busca de uma resolução positiva da “questão social”. (ARICÓ, 1999, p. 33). No subcapítulo anterior, analisamos duas importantes figuras do movimento radical no Peru e no México, com diversas semelhanças de trajetória: ambos utilizavam 48 a imprensa para divulgar novas ideias e encontraram no anarquismo a saída para os limites do liberalismo radical que reivindicavam anteriormente. As diferenças entre o pensamento de González Prada e Flores Magón estão relacionadas às diferenças entre a realidade política de seus países. Se por um lado o Peru esteve sempre tensionado pela dualidade entre indígenas da Sierra e brancos da Costa, no México as contradições entre as classes se manifestou sob outros aspectos, claramente na questão agrária e na pressão exercida pela pesada fronteira com o vizinho do norte. É em torno da luta pela terra que os movimentos radicais se organizarão e fundamentarão toda a rebeldia popular, alternando momentos de nacionalismo anti-imperialista. O movimento revolucionário dirigido por Emiliano Zapata em Morelos foi provavelmente o movimento camponês mais bem-sucedido de toda a América Latina, por dois motivos: primeiro, chegou junto com as tropas da Divisão Norte, comandadas por “Pancho” Villa, ao centro do poder político. Ambos chegaram a sentar na silla84 presidencial, tomaram a capital e derrotaram as tropas federais. No caso dos zapatistas, formulou-se o mais avançado programa de Revolução Agrária da época, o Plano de Ayala, e o defenderam de forma intransigente e com clareza política os seus objetivos. O segundo motivo que torna a organização político-militar liderada por Zapata tão importante foi o seu legado para o movimento camponês mexicano posterior, inspirando o que seria denominado como agrarismo mexicano, com várias vertentes, mas reivindicando uma mesma origem histórica. Pela importância que o zapatismo alcançou, a busca das origens do agrarismo se deu nas mais remotas origens: econômicas, relacionadas à propriedade da terra em diferentes épocas, inclusive préhispânicas; em conflitos regionais provocados pela política porfirista; e em uma tradição mesoamericana de levantes agrários desde antes da Conquista. A mais aceita explicação para a rebelião zapatista de Morelos foi econômica. Os ejidos que sobreviveram e até conviveram como o domínio colonial espanhol se organizaram a partir de uma derivação dos calpullis mexicas. A propriedade da terra coletiva teria mantido uma certa autonomia política durante a administração colonial. Quando os liberais alcançaram o poder, depois de expulsarem os franceses, promoveram algumas reformas liberais e criaram alguns precedentes privatizadores com a chamada Ley Lerdo, que depois seria utilizada por Porfírio Diaz para transferir as 84 Silla em espanhol tem dois significados, que em português tem nomes bastante diferentes: significa tanto cadeira de sentar como cela para cavalos. A “silla” presidencial carregava um duplo sentido aos críticos do Governo: era a cadeira de onde o presidente montava e oprimia o povo. 49 terras comunais à exploração de cana-de-açúcar no Estado de Morelos. Os dados desse processo de concentração de terra são muito conhecidos pela historiografia mexicana, e o ressentimento dessas comunidades transformadas em peones nas lavouras de açúcar e sem-terras é uma consequência presumível. Assim teria nascido o movimento zapatista e explodiria a rebelião agrarista. Uma linha de pesquisa inovadora da historiografia sobre a Revolução Mexicana foi o livro de Womack, Zapata y La Revolucion Mexicana, publicado em 1969, em que o autor narra, a partir do contexto regional da política porfirista em Morelos, a rebelião zapatista, renunciando a esquemas “sociológicos abstratos”, como as tentativas frustradas de enquadrar em classes abstratas as motivações do movimento. Uma das hipóteses de Womack é de que os camponeses se rebelaram para não mudar, e encontraram mudanças ainda maiores, das quais fizeram parte. “Este é um livro acerca de camponeses que não queriam mudar e que por isso mesmo, fizeram uma revolução.” (WOMACK, 1999, p. XI). Como na obra de Womack, foi comum na sociologia, inclusive marxista, a associação de movimentos camponeses ao conservadorismo, às forças retrogradas que, geralmente, quando se rebelaram, o fizeram para manter seus antigos direitos85. Frederich Katz organizou um livro com vários autores, publicado em 1998, em que busca novas hipóteses para a explicação da rebeldia camponesa e sua tradição de violentos levantes. “Os camponeses mexicanos têm desempenhado um papel único na História da América Latina. O México é o único país do continente americano em que todas as transformações sociais têm estado vinculadas a levantamentos rurais.” (KATZ, 2008, p. 18). Atualmente, muitos historiadores têm explorado uma influência indígena no agrarismo de Emiliano Zapata, em uma perspectiva comunalista e autonomista. Essa preocupação está muito relacionada à influência da perspectiva indígena insurgente introduzida pelos membros do EZLN (Exército Zapatista de Liberação Nacional) em Chiapas. Em que pesem os exemplos das diferentes visões sobre o zapatismo, para nós tanto as transformações econômicas, fruto da expansão do imperialismo norte“[...] de forma pouco clara e persistente se tem infiltrado a ideia, quase um dogma, de que os grupos camponeses, mais estritamente a classe camponesa não pode gerar um projeto global para a transformação da sociedade complexa” (WARMAN, Arturo. El Proyecto Político de Zapatismo. In: KATZ, Friedrich (compilador). Revuelta, Rebelión y Revolución – La Lucha Rural en México del Siglo XVI ao Siglo XX. México: ERA, 2008, p. 291). 85 50 americano durante o porfiriato, quanto o contexto da crise da oligarquia em Morelos ajudam a explicar por que camponeses de Morelos levantaram-se em rebeldia, como tem acontecido, particularmente no México, desde os tempos da Conquista, conforme nos demonstra Katz. O que nos chama atenção, em todos esses estudos, é a pouca importância que o anarquismo assume como influência para o zapatismo. Figura 3 - Representação do zapatismo em uma gravura de Posada. Fonte: POSADA, 2012, p. 162 O chamado às armas de Madero, marco oficial da Revolução Mexicana, foi herdeiro direto do movimento liberal, e, de uma maneira ou de outra, todos os movimentos que resistiram ao porfiriato estavam vinculados aos clubes liberais. Madero representava o liberalismo das classes abastadas, com um programa de 51 reformas democráticas limitadas e que não tocavam de maneira significativa na questão agrária, exceto pelo artigo 3º no parágrafo 3 do Plano de San Luis de Potosi, em que se dizia: Abusando da lei dos terrenos baldios, numerosos pequenos proprietários, na maioria indígenas, foram despojados de seus terrenos, por decisão da secretaria de Fomento ou por falha dos tribunais da República. Sendo de toda justiça restituir a seus antigos possuidores os terrenos de que se despojou de um modo tão arbitrário, se declaram sujeitas a revisões tais disposições e falhas, e se exigirá aos que os adquiriram de um modo tão imoral ou a seus herdeiros, que os restituam a seus primitivos proprietários, a quem pagarão também uma indenização pelos prejuízos sofridos. Só em caso em que esses terrenos tenham passado a terceiras pessoas antes da promulgação deste plano, os antigos proprietários receberão indenizações daqueles em cujo benefício se verificou o despojo. (MADERO, 191086). A parte mais radicalizada do movimento liberal estava vinculada ao Jornal Regeneración de Ricardo Flores Magón, que nesse tempo já fazia propaganda abertamente anarquista. Foi essa propaganda que chegou a Morelos, foram essas ideias, que desconheciam a propriedade privada, que olhava com desconfiança os governos e que chamava para a ação direta os trabalhadores, que consolidaram a intransigência zapatista frente às negociações contra as diversas facções revolucionárias e que possibilitaram maturidade e clareza política aos chefes militares para não desarmarem seus exércitos e aceitarem os engodos e as promessas. Essa desconfiança armada de Zapata foi muito bem apresentada no filme norte-americano Viva Zapata87, no qual Emiliano Zapata (interpretado por Marlon Brando) aparece apontando uma arma para Madero e logo depois entregando sua arma para que o presidente lhe apontasse. Assim foi explicando noções de ciência político-militar ao mandatário, e demonstrando que quem está com o controle das armas é quem tem a independência política. A influência da propaganda anarquista para os revolucionários zapatistas é clara, e Herzog, que teve participação na Revolução, chegou a afirmar: O autor deste livro pode assegurar, porque constatou pessoalmente que muitos chefes revolucionários na etapa constitucionalista da Revolução conheciam bem o manifesto e o programa do PLM e que indubitavelmente influiu em seu pensamento [...]. Os autores do documento político que citamos continuaram, depois da distribuição 86 MADERO, Francisco. Plano de San Luis de Potosi. San Luis de Potosi, 5 out. 1910. Disponível em: <http://es.wikisource.org/wiki/Plan_de_San_Luis_Potos%C3%AD>. Acesso em: 30 mar 2014. 87 VIVA Zapata!. Direção: Elia Kazan. EUA: Fox Filmes, 1952. 1 filme (113 min.). 52 do mesmo, semeando ideias de inconformidade e agitando a massa trabalhadora por meio do jornal Regeneración, que publicavam nos EUA e que era enviado pelo correio aos assinantes no México. (HERZOG, 1988, p. 69). O magonismo chegou em Ayala pelos intelectuais liberais radicais, influenciados pelo anarquismo de Regeneración. Para os camponeses, a reinvindicação imeditada estava clara: democratização do acesso à terra, principal meio de subsistência do campesinato. A prédica anarquista, que a princípio parece mais adequada a uma realidade fabril, vestia como uma luva o tipo de luta que os camponeses buscavam organizar, embora não em uma totalidade lógica e doutrinária, mas, principalmente, em aspectos da crítica contra a propriedade privada, a opressão do Estado e na ação direta como método de luta. Não foram os anarquistas que influenciaram os camponeses, se tomamos como referência a ideia comumente passiva de quem é influenciado. Foram os camponeses que escolheram entre as ideologias que melhor poderiam armá-los subjetivamente para a luta em torno de suas demandas. O Plano de Ayala, que Womack chama de a “sagrada escritura” zapatista, é o documento fundador, e é defendido em todo processo da luta como programa do Estado Maior zapatista. Nenhum documento é melhor para analisarmos o zapatismo. O Plano de Ayala foi assinado pelos comandantes militares que representavam a rebelião de Morelos e os quais, depois de várias tentativas em garantir o cumprimento efetivo da parte do Plano de San Luis de Potosi, que prometia a restituição das terras usurpadas pelo porfirismo, decidem-se em iniciar a luta armada novamente, agora contra Francisco Madero. O Plano zapatista começa desconhecendo Madero e colocando a traição maderista como justificativa para o levante. O tom de pronunciamento público contrasta com as soluções práticas e antiburocráticas: como definir como um dos critérios para a expropriação das terras a opções que cada latifundiário faça entre o apoio ou não a Revolução: “Os fazendeiros, científicos ou caciques que se oponham direta ou indiretamente ao presente Plano, se nacionalizarão seus bens”. (PLANO DE AYALA, 1911, s.p.). O que define e caracteriza o documento zapatista é sua forma de tratar a questão da propriedade privada da terra, não como direito individual, mas pela sua função social, sujeita à expropriação em nome da melhoria, da prosperidade e do bem-estar dos mexicanos. Nesse ponto, os camponeses zapatistas se afastavam da sacralização liberal 53 da propriedade privada e se aproximam do magonismo, que denunciava a propriedade privada, junto ao Estado e à Igreja, como os grandes males da sociedade. [...] Em virtude de que a maioria das comunidades e cidadãos mexicanos não são mais donas do território onde pisam, sem poderem melhorar em nada a sua condição social, nem poderem se dedicar à indústria ou a agricultura, por estas estarem monopolizadas por umas quantas mãos, as terras, montes e águas;por esta causa se expropriarão prévia indenização, da terceira parte desses monopólios, aos poderosos proprietários deles a fim de que os povos e cidadãos do México obtenham ejidos, colônias, fundos legais para comunidades ou campos para semear ou trabalhar e se melhore emtudo e pata tudo a falta de prosperidade e bem-estar aos mexicanos. (Ibidem, s.p.). O corte imediato das propriedades expropriadas pelos zapatistas são a versão camponesa da Ação Direta anarco-sindicalista e fizeram parte fundamental da agitação magonista88. […] que os terrenos, montes e águas que os fazendeiros, científicos ou caciques tenham usurpado à sombra da justiça venal ficarão em posse desses bens imóveis desde logo, as comunidades ou cidadãos que tenham seus títulos, correspondentes a essaspropriedades, das quais tem sido despojados pela má fé de nossos opressores, mantendo em todo o processo, as armas nas mãos, durante mencionada posse. E os usurpadores que se considerem com direitos a eles, o deduzirão ante aos tribunais especiais que se estabeleçam com o triunfo da Revolução. (Ibidem, s.p.) A desconfiança frente aos governos foi talvez o mais importante aprendizado de ciência política absorvido pelo Estado Maior zapatista da experiência e agitação política magonista, mas padeceu da mesma falha que os anarquistas em outros contextos históricos. A agitação revolucionária em busca da sociedade sem classes não possuía um meio-termo de ordem social que possa servir de acúmulo de forças, ou estágio antes da sociedade sem classes, a anarquia. No caso dos comunistas, em várias situações estavam abertas diversas possibilidades, desde a participação política no parlamento, 88 Em 1918, o zapatismo tinha claros os meios para conquistar a terra, próximo da propagada Ação Direta anarquista: “En cambio, la revolución ha hecho promesas concretas, y las clases humildes han comprobado con la experiencia, que se hacen efectivos esos procedimientos. La revolución reparte tierras a los campesinos, y procura mejorar la condición de los obreros citadinos; nadie desconoce esta gran verdad. En la región ocupada por la revolución no existen haciendas ni latifundios, porque el Cuartel General ha llevado a cabo su fraccionamiento en favor de los necesitados, aparte de la devolución de sus ejidos y fundos legales, hecha a las poblaciones y demás comunidades vecinales”. In: ZAPATA, Emiliano. Manifiesto de Zapata: Llamamiento patriótico a todos los pueblos engañados, Tlaltizapán, 22 ago. 1918 Disponível em: <http://www.bibliotecas.tv/zapata/1918/1918.html>. Acesso em: 27 mar 2014. 54 como forma de acumulação de forças e conquistas parciais, até a ditadura do proletariado; a transição socialista até o comunismo. Para os comunistas, mesmo quando defendiam meios radicais e agitaram a luta armada e a insurreição revolucionária, apresentaram o que foi chamado de programa mínimo da revolução, com medidas imediatas e um plano de transição até a sociedade comunista, a sociedade sem classes. As principais correntes anarquistas que tiveram eco no México propagaram uma perspectiva apocalíptica e de ruptura revolucionária, em que a velha sociedade daria lugar a nova, em todos os lugares e em todos os aspectos. Nessa perspectiva, não era possível nenhum recuo tático, e assim, não chegando à sociedade anarquista, só restavam a derrota e o aniquilamento. Politicamente, essa concepção tem duas consequências bem claras, e que estiveram presentes no zapatismo. O movimento revolucionário quando alcança representatividade sustenta uma grande combatividade, mas, ao mesmo tempo, não consegue constituir um programa mínimo, e, quando alcança o poder, pouco se tem a fazer. Outras forças políticas com propostas imediatas conquistam as bases sociais do movimento, isolam os líderes anarquistas e a resistência é eliminada com repressão. Assim ocorreu com as forças zapatistas e villistas, que, ao chegarem à cadeira presidencial, com o controle do território e o poder militar, não conseguiram impor um programa, apenas mantiveram a disposição de lutar contra uma tirania que oscilava entre abstração e personalismo. Entre os zapatistas, manteve-se sempre como fim a Revolução Agrária. Zapata e Villa tomaram o poder sob custódia, mas não tinham planos para a consolidação da revolução. A ideia de revolução sustentada pelo zapatismo requer atenção. Parece claro que para Emiliano Zapata havia uma clara distinção entre a tomada do governo e a tomada do poder. A transcrição da conversa entre Zapata e Villa em Xochimilco ilustra com claridade esse ponto. O governo era concebido como um instrumento de opressão pelo seu centralismo, pelo seu controle por uma casta profissional desarraigada do povo, por sua natureza repressiva e expropriatória. O governo concebi-se como uma camisa de força para a revolução; a condenava a repetir práticas opressivas em virtude de que todo aparato governamental estava orientado nessa direção. O problema da revolução não era a captura do governo, senão a sua dissolução para proceder a reformulação do Estado. A revolução era concebida como um processo e não como um ato de tomada de controle. O processo revolucionário devia desenvolver-se na base da sociedade e não pelo alto. A transformação da existência, estabelecida e defendida com as 55 armas, devia preceder a transformação do Estado, só assim seria definitivo, irreversível. Primeiro devia entregar a terra, o poder militar e a autonomia política às unidades constitutivas da sociedade, para refazer o Estado como uma unidade coletiva de serviço. (WARMAN, 2008, p. 305)89. Nos últimos anos antes de seu assassinato, o linguajar das declarações do Estado Maior zapatista estava tão próximo da agitação magonista que seria pouco provável, como diria Wommack (1999, p. 397), que alguma outra facção revolucionária pudesse aliar-se aos zapatistas que não fossem os anarquistas. Figura 4 – Francisco “Pancho” Villa na silla presidencial, ao lado de Zapata90 Fonte: Archivo fotográfico Casasola O habitat do anarquismo não poderia ser no Estado, mas na oposição a ele. Assim, quando Zapata e Villa passaram novamente à resistência guerrilheira contra as tropas constitucionalistas, a partir de 1915, suas posições se aproximassem ainda mais 89 WARMAN, Arturo. El Proyecto Político de Zapatismo. In: KATZ, Friedrich (compilador). Revuelta, Rebelión y Revolución – La Lucha Rural en México del Siglo XVI ao Siglo XX. México: ERA, 2008. 90 Fonte: Archivo fotográfico Casasola, “Francisco Villa em la Silla presidencial”, fundo Casasola, autor Casasola, México, 6 dez. 1914. Disponível em: <http://www.sinafo.inah.gob.mx/galerias/fotoperiodismo/fotoperiodismo.swf>. Acesso em: 56 às anarquistas, e cada vez menos aos antigos liberais. Esses últimos, a essa altura, já estavam compondo o novo governo, discutindo a nova constituição e disputando espaços no Estado que se reestruturava a partir das lutas entre facções do constitucionalismo. O espaço de desenvolvimento do zapatismo estava cada vez mais relacionado ao movimento operário, e ao magonismo desses anos. Flores Magón, inclusive, só reconheceria como verdadeiros revolucionários os que lutavam ao lado de Zapata. Um dos mais interessantes documentos assinados por Zapata e que demonstra com clareza a separação dele de toda a tradição liberal e seu esforço por aliar-se aos operários está no documento dirigido aos operários, redigido desde o quartel general zapatista, em 15 de março de 1918. Falaz e astuto, o carrancismo, essa burguesia uniformizada de amarelo envolto de cartucheiras, vestiu ontem a roupa da fábrica e fingiu [...] A ilusão foi cruel e não se fez esperar. Em vez da ajuda prometida aos seus sindicatos, veio a imposição governativa, exigente e tirânica; se quis fazer do operário a criatura dócil do governo, para preparar quando a farsa das eleições chegasse, a exaltação ao dos cupinchas do carrancismo, ou seja, se quis transformar-los em uma arma que servisse à tirania e a seu aliado, o capital, nada menos que dos sindicatos , ou seja as agrupações criadas para defender o trabalho contra as expoliações e abusos desse mesmo capital, e por haver querido resistir a essa pressão governativa, vocês o sabem, o carrancismo cjegou onde o próprio Huerta não chegou, a fechar as suas casas, os seus templos de liberdades, a Casa do Operário Mundial! Não foi tudo, bem sabem; quando a greve veio, os negou o direito de greve, em vez dos patrões o fazer, Carranza impôs suas condições, de acordo, claro, com eles. E como se não fosse o bastante: aos que protestaram, a prisão! Como se não fosse demasiado, aos que resistiram, a forca! Querem mais?querem maior infâmia! (ZAPATA, 1918, s.p.)91. Podemos encontrar, em menor grau, as influências do anarquismo nas decisões do Comandante da Divisão Norte, Francisco Villa, que continham essa mesma característica antiburocrática, de soluções pouco comuns à tradição da administração estatal na América Latina. Uma característica do documento zapatista que evidencia um desprezo pela lógica burocrática do Estado está na afirmação da decisão municipal em detrimento da imposição estatal central. Foi característica do zapatismo a valorização pelas decisões 91 ZAPATA, Emiliano. A los obreros de la república, Tlaltizapán, 15 mar. 1918. Disponível em: <http://www.bibliotecas.tv/zapata/1918/z15mar18a.html>. Acesso em: 27 mar 2014. 57 locais, no âmbito dos pueblos, longe dos “corruptos” do poder central, e carregado da sabedoria da experiência cotidiana da vida municipal, em que todos se conheciam e mantinham outras formas de mediação e convivência sem a necessidade da mediação do Estado e sua burocracia administrativa. Como temos colocado, embora o anarquismo seja peça-chave para se entender o a ideologia zapatista, essa influência não é reconhecida pelos próprios, nem o termo anarquia ou anarquista tem conotação positiva, como demonstra um pequeno trecho do Plano de Ayala, em que anarquia aparece com a conotação pejorativa e sinônimo de desordem: pues ha sido claro y patente que ha ultrajado la soberanía de los Estados, conculcando las leyes sin ningún respeto a vida ni intereses, como ha sucedido en el Estado de Morelos y otros conduciéndonos a la más horrorosa anarquía que registra la historia contemporânea (PLANO DE AYALA, 1911, s/p., grifo nosso)92. Rebelião Indígena e o anarquismo Como ocorreu no México, a expansão do imperialismo trouxe mudanças significativas também para o Peru. O crescimento das culturas de açúcar, da mineração e as ferrovias pressionaram as terras tradicionais indígenas e desorganizaram a antiga ordem da Sierra. Como no caso da rebelião zapatista, a rebelião indígena também foi analisada como uma revolta que tinha como objetivo de retornar ao passado. Nas descrições de Chevalier do início do século, os Andes aparecem como um paraíso comunalista93. 92 Acreditamos que ao longo da Revolução, de 1911 até 1918, o Estado-Maior zapatista tenha modificado sua percepção acerca do sentido da palavra anarquismo. Em nosso modo de ver, as palavras não têm um significado único para todos os contextos. Os homens se apropriam das palavras, dando significados diferentes no tempo e espaço. Em meio aos movimentos emancipatórios, frente às intensas lutas políticas, uma mesma palavra pode ter um significado para um, e outro para um grupo diferente em uma mesma época, além de ter conotações distintas em cada época e lugar. Por outro lado, o Plano de Ayala é do início da década, e tudo leva a crer que o Estado-Maior zapatista foi se aproximando de antigos membros do PLM, como Soto y Gama, o que nos faz pensar que, se houvesse uma “revisão” do Plano de Ayala por Zapata nos anos de 1917-8, certamente esse trecho “horrorosa anarquia” seria suprimido. Zapata não foi anarquista, e aqui não nos importa definir um simples rótulo, mas, acima de tudo, demonstrar como a agitação anarquista influenciou um movimento camponês revolucionário com características particulares, e como essa tradição política radical será retomada pelo PCM na década de 1920. 93 Utilizamos a palavra comunalista para identificar a organização comunal típica de algumas experiências rurais na América, e também em outras regiões do mundo. Diferente de comunismo, que está associado a uma corrente política contemporânea, marxista, e que prevê uma sociedade sem classes, póscapitalista e industrializada. 58 A ampla puna era para todo mundo, não havia pastos cercados por pedras ou alambrados; a extensa puna não tinha dono. Os índios viviam livremente onde melhor os parecia. Os mistis94 e mestiços despertaram, então, à existência da puna: pastos, gados, índios, estúpidos adormecidos pelo frio! Vamos, e todos juntos correram para se apoderar da puna. Eles empreenderam a limpeza, para sempre, das chukllas, como também das aldeias, e fizeram mais altas as cercas de arame farpado e de pedras na puna livre. (CHEVALIER apud ANDERLE, 1985, p. 20)95. As mudanças provocadas pelo avanço do capital estrangeiro geraram insatisfações e pressionaram as terras comunais, mas o que nos parece significativo durante a década de 1920 foi a combinação de anarquismo com a precarização da vida camponesa e indígena. Foi dessa combinação que surgiu um movimento de magnitude que pudesse depois ficar conhecido como “La Gran Rebelión Indígena”. Os levantes indígenas contra a ordem gamonal foram comuns, de tempos em tempos explodiam nos Andes com violência. Esses movimentos provavelmente foram mais comuns do que existe registrado. Galindo nos apresenta uma série de notícias de levantes indígenas, em 1886, 1887, 1895, 1906 até 1911. Em todas essas rebeliões um mesmo padrão: [...] inicia-se com motins ou tumultos antifiscais; dirigem-se contra as autoridades locais, questionam o sistema de fazendas, proclamam-se os autênticos proprietários das terras, declaram guerra ao misti ou branco e são conduzidos pelos mestiços que viviam fora dos grupos camponeses. (GALINDO, 1991, p. 181). O autor analisa particularmente a última rebelião indígena que precede a “Gran Rebelión Indígena del Sur”, dirigida por Rumi-Maqui, no ano de 1916. Teodomiro Gutierrez Cuevas (1864-?), um sargento do exército peruano, havia sido subprefeito de Chucuito entre os anos de 1903-04, e nessa gestão havia suprimido os trabalhos gratuitos, o reparto da lã, além de ter aberto uma escola para os filhos dos camponeses. (GALINDO, 1999, p. 181). Embora fossem medidas legais, a atividade de Teodomiro Gutierrez logo tornou seu nome conhecido entre os indígenas e, principalmente, entre os gamonales, que logo conseguiram que ele fosse destituído. Em 1913, Teodomiro novamente entrará na cena política, convidado pelo 94 Misti é a palavra quéchua usada pelos indígenas para se referir ao branco. Pode ter significado próximo a patrão, a chefe; ou pode ser usado pejorativamente. 95 Este trecho está em Chevalier, Imperialismo y agro peruano, sem data e sem numeração de páginas, citado por Anderle. (1985, p. 20). 59 presidente Guillermo Billingurst (1851-1915) para investigar a situação conflituosa entre indígenas e fazendeiros da região do altiplano. Os gamonales voltam a pedir a destituição de Teodomiro, e, em 1914, com a queda do presidente, ele perde também o cargo, como inclusive sua patente militar, e tem de fugir do país, inicialmente atravessando a fronteira com a Bolívia, depois seguindo para a Argentina. Em 1916, retorna a Puno, com um programa: “reativar a rama [...] organizar um exército camponês e preparar um levante para o domingo de carnaval. Muda seu nome para Rumi-Maqui [que significa mão de pedra em quéchua] e se propõe a restaurar o Tahuatinsuyo”. (GALINDO, 1999, p. 182). Antes do planejado, em 1º de dezembro de 1915, à frente de algumas centenas de camponeses controla algumas fazendas, e em San José perde uma batalha para as forças paramilitares dos gamonales, sendo preso. Em 1916, consegue fugir da prisão e desaparece. O importante dessa rebelião é um aspecto que acompanharia as outras rebeliões na Sierra peruana: os camponeses opõem-se como indígenas às forças do branco e estruturam suas reivindicações pela ideia de que as terras têm sido usurpadas pelos brancos desde a Conquista. E, por essa razão, as terras lhes pertencem por direito e antiguidade. Assim apareceu também o objetivo último: o restabelecimento do Tahuantinsuyo. Rumi-Maqui lideraria a última das rebeliões locais. Todos os outros levantes camponeses teriam uma dimensão política mais ampla e estariam, em grande parte das vezes, articulados com os movimentos radicais dos centros urbanos, que dariam à reinvindicação pela terra perspectivas programáticas mais amplas. O primeiro encontro do movimento popular com o campesinato indígena da Sierra deu-se através de uma série de associações indigenistas com sede em Lima. Pouco depois que González Prada escreveu Nuestros Indios, a defesa do indígena foi sustentada por um grupo de intelectuais reunidos na Asociación Próderecho Indigena, fundada em 1909 e dissolvida em 1916. Leibner, ao analisar os documentos dessa associação, a descreveu com as seguintes palavras: Quando em fins de 1909 foi fundada a asociación Pró-Indigena [...] o ponto de partida ideológico era liberal e paternalista. Por definição se tratava de uma organização tutelar de criollos e mestiços que se propunham em pôr os indígenas “ao abrigo do abandono, da ignorância, da miséria, das enfermidades, da incúria e dos maus 60 tratamentos de capitalistas donos de fundo, funcionários públicos”. (LEIBNER, 1999, p. 71-72). O curto tempo em que essa associação esteve ativa serviu para atrair militantes anarquistas, algumas lideranças indígenas e intelectuais. Dessa iniciativa, surgiu em 1919 o Comitê Central Pró-derecho Indígena Tahuantisuyo. Dora Mayer (1868-1959), mais tarde, descreveria esse processo com as seguintes palavras: Ainda que a associação Pró-Indígena não teve evidentemente em Lima mais vida que a que a dávamos Zulen e eu, ela havia deixado raízes maiores nas províncias. Ali perduraram na vida autônoma algumas das delegações, ouvindo falar nos sítios mais inesperados de uma “Pró-Indígena”, quando a instituição mãe já não existia mais, e, pouco a pouco, estas sementes deram seu fruto no Comitê ProDerecho Indígena, constituído em Lima em 1919, e no primeiro Congresso Indígena Tahuantinsuyo, uma verdadeira revelação de autêntica iniciativa indígena, celebrado em Lima para o Centenário da Independência Nacional, em 1921. (MAYER, 1926 apud ARROYO, 2004). Pedro Zulen (1889-1925), companheiro de Dora Mayer, e com ela principal instigador da associação indigenista, radicalizaria seu discurso e encontraria na base econômica do latifúndio andino a explicação para as mazelas do índio. Em 1915, escreveria um artigo intitulado “¡Destruíamos o Latifúndio!”96. Diferente da organização criada anos antes por Dora Mayer e Pedro Zulen, o Comitê teria outras mudanças importantes, como a influência anarquista e uma militância mais efetiva entre os indígenas da Sierra. O próprio nome da organização “Comitê” carregava um tom anarquista, termo tradicional nas organizações urbanas anarco-sindicalistas. Outra influência importante, crescente ao longo dos anos posteriores à fundação do Comitê, foi a ideia do ressurgimento do Império Inca enquanto perspectiva utópica, combinada aos pressupostos anarquistas de justiça social e igualdade97. Os princípios que regiam programaticamente o Comitê tinham ainda um sentido legalista e depositavam esperanças na possibilidade de se conseguir – através da mobilização indígena, aliada a um aparato jurídico – o respeito de alguns artigos da 96 ZULEN, Pedro. ¡Destruíamos el latifúndio!, La Autonomia, Lima, n. 19, 27 nov. 1915. Cf. LEIBNER, 1999, p. 82. 97 A ideia de um ressurgimento do Império Inca combinada com a ideologia igualitária anarquista foi frequente entre os jornais operários de Lima, como em La Protesta, o mais importante jornal anarquista peruano da época. 61 constituição que protegiam os índios e suas comunidades. A crença nos instrumentos legais98 como método para se atingir a emancipação indígena não estava baseada somente em artigos constitucionais, mas também no apoio concreto do presidente Augusto Lenguía (1863-1932) ao Comitê. O 1º Congresso Indígena, realizado em 1921 na cidade de Lima, contou com o apoio do mandatário no pagamento do transporte para os delegados da Sierra e suas refeições. Não somente esse apoio material, mas a retórica do presidente, nos primeiros anos de seu governo, também fazia crer que o Comitê poderia contar com o seu apoio. Lenguía havia subido ao poder com um discurso que apontava para o combate ao civilismo e o gamonalismo, anunciando reformas em benefício dos mais pobres. Ele estabeleceu o Dia do Índio, inaugurou um monumento a Manco Capac, proclamou-se o “novo Wiracocha” e pronunciou discursos em quéchua, dando a impressão de que era simpático a um certo indigenismo. (ARROYO, 2004, s.p.). Em 1922, Lenguía criou o Patronato de la Raza Indígena como uma tentativa de vincular o crescente movimento indígena com o governo. Embora a institucionalização do movimento indígena tenha sido recebida com certa desconfiança, o tom legalista da declaração de princípios e o apoio à causa indígena criaram enormes expectativas entre a maioria dos líderes regionais indígenas. O escritório onde funcionava o Comitê era o local em que muitos índios serranos se dirigiam para fazer denúncias contra os abusos dos gamonales e de usurpação das terras. A própria Dora Mayer lembra, em suas memórias, como vivia cheio o pequeno escritório de onde as pessoas solidárias ao problema indígena acolhiam as denúncias dos índios e davam encaminhamento legal. Essa atividade filantrópica tinha limites na própria estrutura da sociedade peruana. Os latifundiários da Sierra e os enganchadores99 98 Essa direção inicial na concepção do Comitê fica clara na declaração de princípios da organização: “Siendo las comunidades de indígenas de la República el coeficiente de su propia existencia, los miembros de este Comité tienen la obligación de llevar a todos los rincones del país a sus hermanos indígenas la convicción de que es necesario exigir del Estado el respeto de su integridad territorial de todas las comunidades del país. [...] de acuerdo con la Constitución de la República: Título I. Comunidades de indígenas: – Artículos 207, 208. 209, 210, 211, 212, y de acuerdo también con la Declaración de Principios de esta asociación indígena, en beneficio de los indígenas en general; por lo que debe denunciarse los abusos cometidos por las autoridades de cualquier orden o gamonales (hacendados) del lugar o sus agentes. En las denuncias por despojo, atropello u otros abusos, a falta de otras personas que testifique el Comité, es suficiente testimonio para que los personeros de la asociación indígena de ésta, o del lugar donde funcione un subcomité, tramiten inmediatamente ante las autoridades superiores, la responsabilidad y el castigo del o de los culpables”. (AYALA apud ARROYO, 2004). 99 Enganchadores se refere a Enganche, um tipo de recrutamento de mão de obra comum no Peru, em que alguns agentes das empresas agrícolas do litoral, necessitadas de mão de obra barata, recrutavam camponeses em suas aldeias prometendo salários relativamente bons, mas, ao chegarem ao local de 62 não respeitavam a ação legal que vinha da capital e nem os funcionários da capital faziam questão de aplicar algum tipo de penalidade aos latifundiários que cometiam abusos contra os índios. Tão logo fosse percebida a ineficácia das denúncias e das atividades de filantropia a favor dos índios, essa direção no movimento indigenista estaria esgotada. E assim foi. Logo no 1º Congresso Indígena, a realidade indígena parecia estar essencialmente ligada ao problema da terra. Esse tema ocupou o centro dos debates entre os delegados presentes. O que garantia ainda a sobrevivência da linha filantrópica100no meio indigenista era o apoio do presidente Lenguía. O Congresso abriu com vivas ao mandatário, contando com o apoio do emergente movimento estudantil e do movimento operário. O apoio e a participação de integrantes do Comitê em rebeliões indígenas101, a crescente politização dos membros que se afastavam gradativamente da filantropia original e a adoção de um tom cada vez mais anarco-sindicalista para a questão indígena começaram a criar reflexos na classe gamonal. Logo que o movimento indigenista passou a orientar-se no sentido da luta pela terra, principalmente na região de Puno, na Sierra Sul foi fundada a Liga de Haciendados del Sur, organização de fazendeiros que passou a fazer uma grande campanha contra o Comitê102. Enquanto o Comitê, já sob a influência determinante do anarquismo, animava a rebelião indígena, incitando o enfrentamento e a insurgência sob uma prédica milenarista do retorno ao incário, os conflitos chegavam a Lima e impunham ao governo um apoio mais resoluto aos camponeses contra os latifundiários. Nos anos de trabalho, acabam presos, sem poderem abandonar a fazenda até que pagassem a “dívida” que contraíram desde o transporte da aldeia, até os bens de consumo que necessitavam para sobreviver e eram obrigados a comprar em um mercado controlado pela fazenda. Esse tipo de relação de trabalho, com características de servidão, em que a mão de obra é aprisionada por uma dívida artificial ou outro compromisso que nunca conseguiam quitar, foi recorrente em toda a América Latina. Conhecida com o nome de Tienda de Raia no México, Casas Aviadoras no Ciclo da Borracha no Norte do Brasil, entre outros. 100 Utilizamos a palavra filantrópica conforme foi caracterizada por Mariátegui à direção do Comitê Indígena nesses tempos, já que essa associação estava composta principalmente por profissionais liberais que, por meio de medidas legais, pedagógicas e “solidárias”, buscavam romper (ou diminuir) o estado de opressão e miséria que viviam os indígenas andinos. Uma melhor definição desta organização por Mariátegui, Cf. MARIÁTEGUI, J.C. Mariátegui Total, Lima: T. I, Editora Amauta, 1994, p. 18-23. 101 As rebeliões camponesas e indígenas que se deram pouco antes do oncenio, até meados da década de 20, foram denominadas como a Grande Rebelião. Segundo Leibner, houve uma expectativa entre os indígenas de que Lenguía interferiria em favor dos camponeses por uma nova repartição de terras. Somava-se a isso o mito do retorno do Inca. O mito do Inkarri é o mais conhecido, mas outros fazem parte da tradição andina de restauração do antigo Império. Cf. CURATOLA, Marco. “Mito y milenarismo en los Andes: del Taki Onqoy a Inkarri. La vision de um pueblo invicto”, Allpanchis, n. 10, 1977; OSSIO, Juan M., Ideologia mesianica del mundo andino, Lima: Ed. de Ignácio Prado Pastor, 1973. 102 Cf. LEIBNER, 1999, p. 178. 63 1922-23, na Região Sul, ocorreram diversos massacres. O que alcançou maior repercussão foi o de Huaconé.103 Ao contrário do que alguns membros do Comitê imaginavam, a resposta de Lenguía foi a perseguição aos dirigentes indigenistas. O ano de 1923 foi significativo por marcar uma fronteira importante na “Nueva Patria” de Lenguía. Ao mesmo tempo em que o Peru vivia as últimas mobilizações da onda de lutas que animavam o movimento popular desde 1919104, o presidente passava a exercer uma repressão generalizada contra os seus oponentes. Em busca de apoio para sua reeleição, em 1924, encontrou a oligarquia latifundiária, a igreja e o capital norteamericano. Essa direção no governo, mais clara depois da prisão de Haya de La Torre, e a deportação de líderes estudantis e operários modificariam a orientação de todo o Comitê. Nesse ano, o movimento indigenista havia conseguido estabelecer uma ligação coordenada entre as comunidades e o centro dirigente em Lima. Muitos dos dirigentes como Ezequiel Urviola (1885-1925), Hipólito Salazar e Carlos Condorena, de clara filiação anarquista, vincularam-se de tal forma às comunidades indígenas que as atividades do Comitê pareciam realmente ameaçar o latifúndio. Os fazendeiros da Região Sul, onde as sublevações alcançaram maior importância, as descreveram com as seguintes palavras: Por todos estes documentos fica comprovado, até a evidência, as complicações das [sic] sublevação indígena de Huaconé, que não apenas tinham por objetivo a destruição de todos os pueblos e todas as propriedades, morte a todos seus habitantes e o roubo e o saque geral, 103 Após o massacre nessa região, o líder indigenista Condorema e um grupo de camponeses-índios se encontraram com Lenguía. Ayala cita esse encontro da seguinte forma: “Carlos Condorena y un grupo de campesinos de Wancho Lima decidieron ir hasta la capital para entrevistarse con Leguía y pedirle justicia. Cuando llegaron al Palacio de Gobierno, el presidente los recibió, pero de inmediato expresó su disgusto: ‘Señor Condorena – dijo – mi opinión como presidente es muy clara, yo apoyo al indio, quiero la revolución del indio, pero lo que no puedo consentir son los actos de vandalismo que se han desatado en la Provincia de Huancané, tengo la información, yo no voy a permitir que en nombre de las escuelas haya gente que se está aprovechando para amenazar, liquidar, matar a la población que tiene todo el derecho de trabajar sus tierras. Estoy profundamente disgustado…’.Cuando Leguía terminó de hablar, Condorena inmediatamente le respondió lo siguiente: ‘Señor Presidente, lo que nosotros queremos es que usted cumpla con su palabra, he leído sus discursos, sé todo lo que usted ha dicho, igual que Ezequiel Urviola yo también le pido Señor Presidente que cumpla con lo que usted dice, porque mientras usted dice una cosa, las autoridades, los gamonales hacen otra.’ Lo cierto fue que, cuando la reunión estaba por acabar, Leguía se encontraba tan enojado que ni siquiera quería recibir el memorial que los campesinos habían ido a dejarle. De ahí que, una vez fuera del Palacio de Gobierno, Condorena les comentase lo siguiente a sus paisanos: ‘Ha pasado tal como yo estaba pensando, los campesinos hemos comenzado a caminar por nuestro propio camino y Leguía ha escogido el suyo. Desde ahora habrá que luchar sin Leguía, desde este momento estamos solos’”. In: AYALA apud ARROYO, 2004, s/p. 104 No capítulo 2, trataremos o movimento operário e estudantil de 1919, até 1923, com o exílio de Haya de la Torre. 64 senão a Revolução Social mais espantosa o aniquilamento de todas as instituições nacionais, a destruição de todos os poderes públicos e, por fim, o caos. (FISANCHO PIÑEDA apud LEIBNER, 1999, p. 179). El Heraldo de Arequipa informava que em Azángaro “existiam sérios problemas de que se produza uma sublevação das parcelas indígenas instigadas por elementos estranhos para estabelecer o comunismo” (EL HERALDO DE AREQUIPA, 1923 apud GALINDO, 1999, p.183). Em 1923, o jornal La Verdad de Sicuan, em 5 de dezembro de 1922, dizia: A estas horas como dizíamos ontem, nem eles mesmo sabem o que querem porque os agitadores os têm feito perder a noção clara de suas reivindicações. O que pretendem é saquear as fazendas, queimar populações, exterminar os mistis, repartir as propriedades territoriais e os capitais ‘senovientes’ da criação de gado, destruir tudo e restaurar o império do Tahuantinsuyo. (GALINDO, 1999, p. 183). O governo Lenguía, demonstrando os limites de seu apoio à causa indígena, passou a perseguir os dirigentes indigenistas, particularmente os que atuavam no sul. Em 1924, o 4º Congresso Indígena teve de realizar-se quase que clandestinamente e a perseguição aos líderes do movimento desenvolveu-se até 1927, quando Lenguía proibiu definitivamente o funcionamento da organização. Os argumentos para esse fechamento foram os mesmos utilizados pelos líderes gamonales desde 1921. Segundo a Liga dos Hacendados del Sur – organização dos fazendeiros da região Sul –, os membros do Comitê exploravam os índios com o pretexto de lutar pelos seus direitos. Utilizavam os índios para engrossar as fileiras dos sindicatos e desorganizar o governo. Para tirar a legitimidade do movimento indigenista e angariar simpatia e medo entre a elite criolla de Lima, um dos argumentos que os fazendeiros mais utilizavam era o de acusar os militantes indigenistas de rameros, bolcheviques e vermelhos. Ramero referiase a uma contribuição – a rama – que o movimento recolhia entre os índios para o sustento e de sua atividade política. Essa contribuição era colocada pelos latifundiários como uma forma de exploração e manipulação contra os camponeses. Em 1927, quando Lenguía havia proibido o funcionamento do Comitê, muitos dos líderes já estavam migrando para os novos movimentos sociais que surgiam. Urviola, Salazar, Eduardo Quispe y Quispe ligaram-se ao marxismo de Mariátegui; Juan Hipólito Pevez e Demétrio Sandoval por sua vez, ingressariam nas fileiras do Partido Aprista Peruano. (ARROYO, 2004). 65 No México, os que atravessaram com vida a Revolução Mexicana optaram pelas facções que consolidavam o poder. Muitos anarquistas continuaram anarquistas, outros, zapatistas, villistas ou magonistas fundaram o Partido Nacional Agrarista anos depois, e uma parcela significativa de militantes da causa da “Revolução Social” ingressou no PCM. Como deve ter ficado claro até aqui, o anarquismo latino-americano não é facilmente classificável, faz parte mais da experiência política das classes marginalizadas contra o sistema que as oprime, que uma formulação doutrinária lógica, organizada e sistemática. Do mesmo modo, como o comunismo anos depois, não foi uma ideologia estranha, “importada desde o exterior”, mas uma série de formulações políticas que surgiram na Europa, e que na América Latina assumiram formas próprias, de acordo com as necessidades doutrinárias do movimento em luta. Assim, Magón não poderia ser um europeísta, muito menos poderíamos afirmar que desconhecia as ideias anarquistas em seus detalhes. Na medida em que a luta contra a ditadura de Diaz exigia novas respostas, seus olhos encontravam nas ideias anarquistas a fundamentação para continuar a luta. Não encontrou receitas, ousou e observou a realidade. E por esse caminho González Prada encontrou a questão indígena, coberta pelo racismo e pelo positivismo das oligarquias letradas. O anarquismo, tanto para González Prada como para Ricardo Flores Magón, foi um importante instrumento, sem o qual seria impossível aos dois elaborar uma crítica social que encontrasse as mazelas populares e armasse de combatividade os movimentos revolucionários que se seguiram a eles. Dessa experiência, surgiram os militantes sociais que fundaram os Partidos Comunistas, que debaterão o leninismo e a Revolução Russa. Leibner nos chama atenção para o significado do que entendemos por influência política e rejeita a ideia de uma influência passiva. A estas interpretações, produto do afã por fechar ou ao menos classificar pensadores latino-americanos originais com categorias ideológicas europeias, quero opor uma interpretação que parte do rechaço do conceito de “influência ideológica”. As ideias criadas em outra sociedade e em outras circunstâncias não influem simplesmente sobre o pensador, senão que é ele quem as escolhe ao responder a certas necessidades de sua reflexão. É a forma em que o pensador percebe ao seu objeto de reflexão a que determina que ferramentas conceituais, elaboradas por outras circunstâncias e com outros objetos de reflexão, adotará em sua própria elaboração (LEIBNER, 1999, p. 12). Os próximos capítulos tratarão da formação dos novos movimentos sociais, do 66 impacto da Revolução Russa e de como foi se constituindo, com o espólio de uma história de luta de classes intensa, o Partido Comunista do Brasil, o Partido Comunista do México e o movimento comunista no Peru. 67 A Grande Ruptura: A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa O jovem jornalista John Reed viajou meio mundo e eternizou em seus artigos os três acontecimentos fundadores do século XX: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e, na América Latina, a Revolução Mexicana. As proezas do general Francisco Villa ao longo da fronteira norte-americana haviam despertado a curiosidade da população norte-americana que consumia as notícias sobre os acontecimentos no vizinho do sul e, inclusive, assistia as batalhas que ocorriam na cidade de Juárez nas coberturas dos prédios do lado norte-americano. O jovem jornalista – formado em Harvard e que teria vivido sua infância em uma confortável família norte-americana – atravessou a fronteira e foi viver com as tropas de Pancho Villa. Escreveu vários artigos e chegou a conquistar a confiança do general revolucionário. Seus artigos se transformaram em um livro, que, traduzido para o português, ficou conhecido como México Rebelde105. A narrativa preocupada com os detalhes da gente simples, entusiasmada pela rebeldia, pela cultura popular e humanista, inovaram por contrastar com as exaltações dos grandes chefes de Estado e as biografias pomposas em batalhas e grandes feitos. Seus artigos e livros logo o tornariam conhecido o suficiente para que conseguisse financiamento para novas viagens. Em 1915, esteve na frente oriental e descreveu os horrores da Guerra Mundial106. Depois assistiria a Revolução Russa de outubro (novembro em nosso calendário) de 1917. Dessa última viagem, nasceu o livro Dez Diaz que abalaram o Mundo107. Reed se tornaria comunista, e seu livro se tornaria um material de propaganda da Internacional Comunista, um dos mais conhecidos relatos da Revolução Russa, recomendado por Lenin e com prefácio de Krupskaya, a companheira de Lenin. A trilha que Reed seguiu é emblemática e nos ajuda a compreender a sequência de acontecimentos internacionais em que se desenvolveu o movimento radical latinoamericano. Em primeiro lugar, temos a Guerra Mundial, as batalhas que em poucos meses tornaram a guerra internacional, envolvendo de alguma forma quase todos os países europeus. A Guerra foi descrita em cenas horripilantes aos que a assistiram e significou um momento importante de inflexão, de transformação para toda uma 105 REED, John. México Rebelde. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978. REED, John. Eu vi um mundo nascer. São Paulo: Boitempo, 2001. 107 REED, John. Os Dez Dias que Abalaram o Mundo. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1982. 106 68 geração. O livro de Reed que trata dessa Guerra é muito claro em demonstrar o caos em que se transformou a Europa. Diferente das narrativas mais comuns nos jornais, Reed procurou não se limitar à descrição das movimentações dos exércitos, à biografia dos generais e aos acontecimentos da política oficial108. O jovem jornalista – como havia feito no México, dormindo e vivendo entre as tropas villistas, descrevendo seus trajes, suas conversas, sofrimentos, alegrias e motivações políticas – descreveu a Europa em Guerra que conheceu. A Europa da Primeira Guerra Mundial estava irreconhecível. Havia morte, tifo, irracionalidades nacionalistas, centenas de refugiados, populações destroçadas e fome, muita fome. Hobsbawm (1995), em seu mais conhecido livro, A Era dos Extremos, apresentou a Primeira Guerra Mundial como o marco do início do século XX, alcançando tanta importância que até hoje na França, por exemplo, ainda é recordada como a Grande Guerra. Essa importância é significativa quando vemos os dados apresentados pelo próprio Hobsbawm. Fazia um século que a Europa não assistia a uma guerra que envolvesse a maioria das potências europeias, e as guerras que existiram foram pontuais, localizadas e rápidas. A Guerra da Crimeia já estava longe o suficiente (1853-1856), a Guerra Franco-Prussiana não envolveu a Inglaterra, a Rússia e tampouco o Império Austro-Húngaro, bem como também, após o seu término, tanto a Prússia não existia como tal, já que a Alemanha terminaria unificada, quanto a França teria a república restaurada109. A Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865) estava longe, e não era exatamente entre potências europeias, as outras guerras, como entre Prússia e Áustria (1866), duraram pouco tempo, tão pouco que ficou conhecida como a Guerra das Sete Semanas, e fez parte mais da recomposição regional das fronteiras e do processo de unificação da Alemanha e da Itália do que um conflito de proporções mundiais (ou europeias), como as Guerras Napoleônicas (1799-1815). Enfim, quando começou a Primeira Guerra Mundial, a Europa não vivia um conflito mundial fazia quase 100 anos, e ao menos desde 1871 vivia-se um período de “Quando me lembro de tudo isso [as viagens em meio a guerra], parece-me que a coisa mais importante a saber sobre a guerra é como os diferentes povos vivem. Seu meio, suas tradições e as coisas reveladoras que fazem e dizem”. In: REED, 2001, p. 14. 109 Em Paris, o mais importante resultado político da Guerra Franco-Prussiana, ainda que brevemente, foi a primeira importante experiência socialista europeia: a Comuna de Paris, em 1971. Serviria como um laboratório social para Marx e Engels, e uma referência para os revolucionários como Lenin, que até a revolução de outubro de 1917 só teriam a Comuna como referência de poder proletário. Mariátegui, quando esteve na Europa no início da década de 1920, ainda teria a oportunidade de conhecer antigos comunards (participantes da Comuna de Paris), que, mesmo velhos, ainda faziam agitações em meio aos grupos revolucionários da capital francesa. Ver: ROUILLON, 1982 e VANDEN, 1975, p. 25. 108 69 paz e expansão econômica sem precedentes dentro do continente, com guerras distantes, contra populações “bárbaras” e “primitivas”. “Entre 1871 e 1914, não houvera na Europa guerra alguma em que exércitos de grandes potências cruzassem alguma fronteira hostil [...] Não houvera, em absoluto, guerras mundiais” (HOBSBAWM, 1994, p. 30). A paz e a prosperidade econômica da expansão imperialista das potências europeias possibilitaram uma riqueza até então inédita para as elites dos centros capitalistas, enquanto para a classe operária dos centros industriais europeus sobravam melhorias materiais110, direitos sociais e políticos, formando o que Lênin denominaria como a aristocracia operária. (LENIN, 1973, t. 5, 145 e 161). A expansão imperialista conseguiu proporcionar uma elevada condição material para a população europeia, e serviria como exemplo para o mundo, que quase em sua totalidade vivia no campo. A Europa industrializada dominava e dividia o mundo entre as principais potências, expandia seu domínio destruindo impérios, controlando as mais diversas populações, mas apresentava-se como o progresso, como a estrela polar que guiaria toda a humanidade em direção à liberdade, à democracia, ao progresso tecnológico e à elevação das condições materiais. O mundo que as duas primeiras décadas do século XX herdou do século XIX era profundamente europeísta. Mesmo entre os rebeldes da periferia residia, em diversos graus, uma certeza de que o desenvolvimento da Europa Ocidental apontava o caminho que todas as nações deveriam percorrer. A técnica e a cultura europeia, através de seus impérios, viria civilizar os “bárbaros” do mundo. No início do século XX, o liberalismo eurocêntrico viveu seu auge. Quando a Europa vencia, “civilizava”, elevava a produtividade, abria estradas de ferro, inventava novas tecnologias, como o avião, o cinematógrafo e a luz elétrica.111 Para grande parte dos que de alguma maneira entravam em contato com as cidades europeias, o exemplo “Pode-se verificar que durante o mesmo período em que o mundo dos negócios conhece, por exemplo, na França uma verdadeira ressurreição, entre 1900 e 1914, ‘La Belle Èpoque’ e em que o salário real da massa dos operários quase duplica entre 1890 e a guerra, o número de imposições baixa no Monte de Piedade e nunca esta instituição registrou tantos empenhos como nas vésperas da Grande Guerra. A difusão da imprensa, o desenvolvimento da instrução, a publicidade, criaram necessidades materiais novas, tais como uma alimentação mais variada, vestimentas cidadãs, louças, bicicletas, etc. Além de ter revelado a possibilidade de viver uma existência mais interessante, mais rica, mais valiosa e se sentem com o direito imprescritível a subir na escala social.” In: FERRO, Marc. La Gran Guerra (1914-1918). Madri: Alianza, 1968, p. 28-29. 111 O cinematógrafo, por exemplo, foi inventado no século XIX, mas no auge da expansão imperialista europeia, no início do século XX, essas invenções chegavam aos mais distantes rincões. 110 70 fascinava e parecia o próprio caminho da humanidade. Contra o próprio “barbarismo”, aos povos do mundo restava apenas seguir o modelo europeu liberal. Era a esse mundo que a primeira Guerra Mundial colocaria fim. Esse choque de 1914 [data de início da Primeira Guerra Mundial] foi – na expressão de Alain Badiou – um dèsastre, uma catástrofe na qual um mundo inteiro desapareceu: não apenas a idílica fé burguesa no progresso, mas também o movimento socialista que o acompanhava. (ZIZEK, 2012, p. 13)112. A historiografia liberal geralmente aponta para o surgimento do nazi-fascismo como uma consequência da crise do liberalismo a partir da crise de 1929, e a emergência de regimes totalitários, e opostos às democracias liberais. De fato, a crise de 1929 demonstrou a fragilidade do sistema econômico capitalista, e a ideia da não intervenção do Estado na economia, parte fundamental da ideologia liberal, foi colocada em xeque pelos acontecimentos desastrosos da quebra da Bolsa de Nova Iorque. Mas a crise que colapsou todo o sistema político e ideológico que sustentou a expansão imperialista no século XIX e início do XX foi do mesmo modo uma crise do liberalismo do século XIX: positivista, eurocêntrica e, através destas características, colonialista também. Antes da crise econômica de 1929, a crise ideológica, ou com um termo muito usado na década de 1990, a crise de paradigmas começou no meio da Primeira Guerra Mundial. Os liberais se esforçaram por separar colonialismo e imperialismo de um liberalismo democrático, mas, antes da guerra, progresso, civilização, parlamento, livre iniciativa e democracia formal eram perfeitamente relacionáveis à invasão de todo o mundo em nome da superação do barbarismo dos invadidos113. 112 ZIZEK, Slavov. As Portas da revolução. São Paulo: Boitempo, 2012. Edição digital. Domenico Losurdo publicou em português um livro que discute o significado do liberalismo na história. Cf. LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. São Paulo: Ideias e Letras, 2010. 113 71 Figura 5- Gravura de Posada representando a destruição da Primeira Guerra114 No início do século, “civilização” europeia (principalmente França, Inglaterra e Alemanha) parecia superior, não apenas economicamente, mas também política e culturalmente. A Primeira Guerra Mundial destruiu materialmente, em meses, o que a expansão imperialista demorou anos para construir. Frente aos impasses que afundaram franceses e alemães em trincheiras de morte, a medicina “civilizada” pouco podia fazer para controlar as doenças que matavam centenas de pessoas. O avanço tecnológico que impressionou as populações “bárbaras” do mundo, que incluiu a invenção do avião, veria essa mesma técnica a serviço do genocídio; a técnica que possibilitou conforto material às massas matava em escala industrial. Foram os horrores da Guerra, sua evidente motivação imperialista, a irracionalidade dos governos, a incapacidade do sistema parlamentar e demoliberal em frear a guerra que desvelou a impossibilidade da Europa “civilizada” em apontar um caminho de progresso para a humanidade. Essa “crise de paradigma”, essa transformação na ideologia dominante, no “espírito da época”, teve duas consequências que não são as únicas, mas são as que nos interessam neste trabalho. A primeira e mais universal consequência da Guerra foi no movimento operário europeu, a Revolução Russa de outubro de 1917. A segunda, importante 114 Fonte: Posada, 2012, p.176 72 particularmente para entendermos os movimentos radicais da periferia do capitalismo, foi a fratura provocada na ideologia colonialista, positivista e liberal que sustentou a expansão imperialista. Temos uma dimensão dessa mudança ideológica quando constatamos que todos os líderes nacionalistas do chamado 3º mundo iniciaram sua atividade anticolonialista a partir da Primeira Guerra Mundial115. Mesmo com a repressão brutal à Comuna de Paris (1871), o socialismo havia alcançado mais popularidade e o movimento operário deixava de ser um movimento marginal e utópico para se apresentar em sua dimensão revolucionária (CARONE, 1989, p. 126). A expansão imperialista das últimas década do século XIX possibilitou melhorias materiais para a classe operária das metrópoles do capitalismo, na mesma proporção em que as organizações sindicais e os partidos operários ganhavam maturidade e alcançavam participação política mais ampla. Mas, ao contrário de desenvolverem seus partidos para a tomada do poder, os socialistas – ou socialdemocratas, dependendo de cada país, mas fazem parte da mesma corrente nesse período anterior à Revolução Russa de outubro de 1917 –, evoluem para um reformismo progressivista muito esperançoso em conquistas parlamentares e colocavam a “revolução social” em um horizonte distante116. Expressão desse reformismo era o Partido Socialdemocrata Alemão (SPD na sigla em alemão), o mais significativo numérica e teoricamente, contando inclusive com um dos herdeiros de Marx e Engels, Karl Kautsky, como dirigente e teórico. O SPD havia evoluído para uma posição reformista, e ainda para uma posição política, a qual tornou possível o abandono das posições internacionalistas que fundaram o socialismo alemão, para o apoio ao governo de seu país na Guerra. Quando a Guerra estourou em 1914, a maioria dos partidos que compunham a 2ª Internacional apoiaram seus respectivos governos na Guerra. “[...] todos os partidos socialistas dos países beligerantes, salvo dois – o sérvio e o russo –, empunharam a bandeira da união nacional, alardeada pela classe dirigente: tornaram-se belicosos”. (BROUÉ, 2007, p. 15). 115 Gandhi, Ho Chi Minh, Sol Plaajte, Sun Yat Sen e outros célebres líderes anticoloniais, até a Primeira Guerra Mundial, viveram muitos anos na Europa, foram figuras marginais no cenário político internacional, e após a Guerra suas vozes ganharam gradativamente mais importância. 116 “Os revolucionários, minoritários no seio de uma sociedade inconsciente, esperam o despertar dos trabalhadores e ao resto dos oprimidos, mas, com exceção dos anarquistas, não sabem ver que organizando Sindicatos e partidos políticos, ou fundando uma Internacional, mantém de outra forma a relação governantes-governados, inclusive dentro dos partidos e grupos revolucionários, esta relação conserva um caráter de classe”. In: FERRO, op. cit., 1968, p. 25. 73 Na periferia do sistema, a situação não era tão convincente, e a mensagem reformista de alternativa socialista progressiva, através de mudanças no parlamento e a tese das mudanças pelo sufrágio universal, tinha dificuldades em angariar adeptos em países como a Itália, Espanha e Rússia, bem como também na América Latina, que trataremos mais adiante. Nesses países onde o sistema parlamentar demoliberal não era desenvolvido, existiam poucos espaços de atuação política aos operários. Os anarquistas, em suas mais variadas correntes, eram a maioria do movimento operário.117 Nos países periféricos e menos industrializados, tendo a Rússia como um caso típico, o Estado Tzarista não permitia nenhuma oposição, nenhuma participação operária no parlamento e inviabilizavam qualquer ilusão de transição pacífica parlamentar, através do sufrágio, em direção a uma república socialista. Com a guerra, o pequeno grupo de membros do Partido Socialdemocrata Russo, com experiência em resistir à repressão do governo tzarista, muitos vivendo no exílio e com uma percepção desde a periferia da expansão imperialista, conseguiu manter uma oposição ideológica com a fração do Partido que, inspirada pelo Partido congênere alemão, insistia no caminho reformista. Perry Anderson é categórico em afirmar a importância de Lenin para a construção do marxismo que conhecemos hoje. A construção sistemática de uma teoria política marxista da luta de classes, ao nível organizativo e táctico, foi obra de Lenine. A envergadura do que conseguiu neste plano transformou irreversivelmente toda a arquitectura do materialismo histórico. Antes de Lenine, o nível político propriamente dito estava praticamente por explorar na teoria marxista. No espaço de vinte anos, ele criou os conceitos e os métodos necessários para a condução de uma vitoriosa luta proletária pelo poder na Rússia, dirigida por um partido operário experiente e devotado. As formas específicas de combinar a propaganda com a agitação, de conduzir greves e manifestações, de forçar alianças de classe, de cimentar a organização partidária, de dirigir a luta pela autodeterminação nacional, de analisar a conjuntura nacional e internacional, de situar tipos de desvios, de utilizar a acção parlamentar, de preparar o levantamento insurreccional – todas estas inovações, que muitas vezes se encara como simples medidas “práticas”, também representavam de facto avanços intelectuais decisivos num terreno até à data virgem (ANDERSON, 1976, p. 21).118 117 Estamos nos referindo aos movimentos que doutrinariamente propunham alternativas mínimas ao capitalismo. Não consideramos os sindicatos financiados pelo Estado, as associações locais mutualistas e as organizações que não possuíam representação. 118 ANDERSON, Perry. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Porto: Afrontamento, 1976. 74 Para compreendermos como se desenvolveu a construção do que posteriormente será conhecido como leninismo, precisamos apontar um traço fundamental da percepção política de Lenin e a maneira com que ele funde a teoria marxista com a prática política do movimento operário. Acossado pela autocracia tzarista, os marxistas russos não tinham a menor possibilidade de manterem uma organização descentralizada e legal. Para resistir à repressão constante, era evidente a importância do centralismo, dos métodos conspirativos e da abnegação e disciplina para a organização partidária. Esse modelo de partido, organizado em células, com um núcleo político de profissionais conspiradores, atento para manterem vínculos com os trabalhadores e um jornal para a luta política e ideológica no movimento operário, foi defendido no livro que se tornou um clássico do movimento comunista, O Que Fazer?119, publicado em março de 1902. Essa luta por tornar o Partido Socialdemocrata uma organização capaz de sobreviver a repressão, ao mesmo tempo que mantinha vínculos com as organizações operárias em crescente expansão e organização, foi fundamental120. A primeira contribuição significativa da obra leninista foi a sistematização da forma de organização operária, ou da vanguarda do movimento operário revolucionário que sustentaria a resistência nas mais duras condições de repressão política e prepararia a tomada do poder político. Se comparamos o modelo leninista com as outras experiências do movimento radical latino-americano, como o magonismo e a organização dirigida por eles, o Partido Liberal Mexicano, podemos perceber que, sob certos aspectos, esse modelo de organização leninista foi aplicado a uma realidade análoga ao regime tzarista, o porfiriato. Mesmo influenciados pelo anarquismo de 119 LENIN, V.I. Obras escogidas. Moscou: Progreso, 1973, p. 3-78. t. 2. Marc Ferro sintetiza as polêmicas dos marxistas russos nos primeiros anos do século: “Mais do que nunca, era preciso unificar suas atividades, e para demonstrá-lo Lenin escreveu Que fazer?, pequena obra que iria determinar o futuro do movimento operário. Lenin examinava todos os problemas que a organização de um partido revolucionário apresenta. Seria necessário aumentar os efetivos, a maneira alemã, para conquistar uma maioria no país, e em seguida tomar o poder. Ou então, como preconizava Lenin, constituir um partido de “revolucionários profissionais de efetivo limitado , mas manejável como um exército de campanha, um Estado-Maior que conduziria a insurreição assim que se reunissem condições de sucesso. Não se pode estabelecer um acordo entre os partidários de uma organização democrática e os campeões de um partido centralizado. Estes, majoritários em 1903, constituíram-se em formação política separada; foram chamados bolcheviques (majoritários). L. Martov e P. Axelrod tornaram-se os líderes da minoria, ou mencheviques”. In: FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 1974. 120 75 Bakunin121 e Kropotkin, a única forma de organização que poderia sobreviver à repressão seria o centralismo vertical, com características quase militares, e não o modelo federativo e antipartido típico das correntes anarquistas dominantes em nosso continente. A organização revolucionária precisaria ser dirigida por um núcleo de “revolucionários profissionais” abnegados, treinados em métodos conspirativos e que, mesmo sob a repressão, pudessem manter os vínculos com os trabalhadores e suas organizações mais amplas, como sindicatos, clubes, associações regionais e operárias. Lenin estava convencido de que a Revolução Social era a única alternativa para o socialismo na Rússia, e, nas acirradas lutas políticas que desenvolveu dentro da socialdemocracia, aprendeu a encontrar e desvelar teorias que encobriam o desejo dos militantes em aliar-se, ou claudicar frente à repressão ou à cooptação do governo. Os textos de Lenin são muito claros em buscar na prática política de seus adversários a explicação para teorias e doutrinas que se apresentavam “inovadoras” e depois desvelálas parte a parte, apresentando seu caráter reformista, conciliador ou revisionista e oportunista122, como ele mesmo denominava. Esse é um típico método de análise política leninista: analisar as teorias políticas de trás para frente, ou seja, primeiro, identificar quem está falando, seus interesses e suas consequências políticas; depois, apresentar suas contradições internas e seu caráter oportunista, antimarxista e contrarrevolucionário. Em polêmica constante, Lenin constrói sua teoria acerca do imperialismo e acusa Kautsky, o dirigente e teórico mais importante da Segunda Internacional, de oportunista, traidor do marxismo e da causa do proletariado internacional. No livro de Lenin, Imperialismo, Fase Superior do Imperialismo123, fica claro esse método de luta política utilizado por Lenin. Em 1916, quando ele redige o texto, a 2ª Internacional estava falida politicamente, os antigos líderes socialistas haviam sucumbido ao 121 Algumas correntes bakuninistas não se opõem à organização de Partidos, nem a uma centralização sob certas condições. 122 Zizek explica a crítica de Lenin ao que chama de oportunismo a partir do que ele identifica como recuos ou covardias da social-democracia em avançar em direção à Revolução: “Para Lenin, assim como para Lacan, a questão é que a revolução nes’autorise que d’elle-même: deveríamos arriscar o ato revolucionário sem o aval do grande Outro – o medo de tomar o poder ‘prematuramente’, a busca da garantia, e o medo do abismo de agir. Essa é a máxima dimensão do que Lenin incessantemente denuncia como ‘oportunismo’, e sua premissa e que ‘oportunismo’ é uma posição que, em si mesma, e inerentemente falsa, mascarando o medo de realizar o ato com uma tela protetora de fatos, leis ou normas ‘objetivas’. Por isso, o primeiro passo para combatê-lo é anunciar claramente: ‘O que, então, se deve fazer? Devemos aussprechen was ist (apresentar os fatos), admitir a verdade de que entre nós, no CC e nos meios dirigentes do partido, há uma corrente, ou opinião…”(ZIZEK, 2012, p. 18-19). 123 LENIN, t. 5, 1973, p.161-211. 76 militarismo dos governos, muitos desses social-democratas chegaram a lutar no front e os contatos estavam desfeitos. Lenin precisava fundamentar a luta político-ideológica contra os grupos socialistas que claudicaram e legitimaram a guerra. Para isso, precisaria encontrar na teoria produzida por esses marxistas o nó que possibilitou passar do reformismo ao que denominou de social-chauvinismo. Kautsky havia construído uma explicação para a expansão imperialista a qual afirmava que em um dado momento a política dos países imperialistas havia se separado de sua lógica econômica; se por um lado a expansão do imperialismo economicamente caminhava em direção à unificação das nações em um governo geral da burguesia, por outro lado, politicamente, apenas por um período, as nações ainda se mantinham separadas e com tensões e guerras. Lenin estava atento ao significado dessa teoria para as perspectivas do movimento socialdemocrata. Se o imperialismo tendia a um superimperialismo econômico que unificaria todas as nações do globo, os revolucionário deveriam esperar esse momento de hostilidades, confiar no papel progressista do capitalismo e aguardar, para um futuro próximo, que o capitalismo internacionalizado cessaria as diferenças políticas, e depois daria lugar ao socialismo. Lenin denunciou essa teoria, demonstrou seu papel perverso que imobilizava toda a social-democracia, justificava a posição em favor dos governos belicistas, mantinha uma visão otimista em relação ao imperialismo e tornava a revolução desnecessária e, portanto, não convocava a sua organização e defesa. Lenin inovou ao explicar a Guerra que opunha as nações europeias pela lógica interna do próprio capitalismo. Diferente do que os liberais apresentavam, o capitalismo não gerava progresso e paz, mas era o responsável pela guerra, pela destruição e abria, através de seu colapso, uma nova era para a história mundial, a Era das Revoluções Proletárias. A tendência ao monopólio não levava a um domínio estável politicamente, mas era a origem da formação de dois polos que se digladiavam pelo controle das fontes de matérias-primas e mercados. O texto primeiro estabelece o monopólio como consequência natural do desenvolvimento do capitalismo de livre mercado, para depois marcar o vínculo natural entre interesses da classe dirigente capitalista e os interesses dos Estados sede do imperialismo pela partilha do mundo: A particularidade fundamental do capitalismo moderno consiste na dominação exercida pelas associações monopolistas dos grandes 77 patrões. Estes monopólios adquirem a máxima solidez quando reúnem nas suas mãos todas as fontes de matérias-primas, e já vimos com que ardor as associações internacionais de capitalistas se esforçam por retirar ao adversário toda a possibilidade de concorrência, por adquirir, por exemplo, as terras que contêm minério de ferro, os jazigos de petróleo, etc. A posse de colônias é a única coisa que garante de maneira completa o êxito do monopólio contra todas as contingências da luta com o adversário, mesmo quando este procura defender-se mediante uma lei que implante o monopólio do Estado. Quanto mais desenvolvido está o capitalismo, quanto mais sensível se toma a insuficiência de matérias-primas, quanto mais dura é a concorrência e a procura de fontes de matérias-primas em todo o mundo, tanto mais encarniçada é a luta pela aquisição de colônias. (LENIN, 1984, s.p.)124. Sempre fazendo referência aos oportunistas, Lenin opõe-se a Kautsky e estabelece a relação final entre imperialismo, guerra e oportunismo reformista. O imperialismo é uma tendência para as anexações; eis a que se reduz a parte política da definição de Kautsky. E justa, mas extremamente incompleta, pois no aspecto político o imperialismo é, em geral, uma tendência para a violência e para a reação. Mas o que neste caso nos interessa é o aspecto econômico que o próprio Kautsky introduziu na sua definição. As inexatidões da definição de Kautsky saltam à vista. O que é característico do imperialismo não é precisamente o capital industrial, mas o capital financeiro. Não é um fenômeno casual o fato de, em França, precisamente o desenvolvimento particularmente rápido, do capital financeiro, que coincidiu com um enfraquecimento do capital industrial, ter provocado, a partir da década de 80 do século passado, uma intensificação extrema da política anexionista (colonial). O que é característico do imperialismo é precisamente a tendência para a anexação não só das regiões agrárias, mas também das mais industriais (apetites alemães a respeito da Bélgica, dos franceses quanto à Lorena), pois, em primeiro lugar, estando já concluída a divisão do globo, isso obriga, para fazer uma nova partilha, a estender a mão sobre todo o tipo de territórios; em segundo lugar, faz parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes potências nas suas aspirações à hegemonia, isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia (para a Alemanha, a Bélgica tem uma importância especial como ponto de apoio contra a Inglaterra; para a Inglaterra, tem-na Bagdad como ponto de apoio contra a Alemanha, etc.). (LENIN, 1984, s.p.). Ao romper com a 2ª Internacional, Lenin rompia também com a ideia progressivista de que apenas um país desenvolvido economicamente poderia construir o 124 Utilizamos as citações de uma versão digital em português, digitalizada de: LENIN, V.I. Obras Escolhidas. Lisboa: Progresso, 1984. t. 2. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/index.htm>. Acesso em: 27 mar 2014 78 socialismo, colocando o imperialismo não como um fator de desenvolvimento, mas como fator de violência, atraso e guerra. A explicação leninista para o caráter reacionário do imperialismo será desenvolvido mais adiante. A posição bolchevique e a de outros revolucionários contrários à Guerra começou a encontrar mais espaço quando a carnificina aumentou e a crise se espandiu. Em 1916, o cansaço pela guerra transformava-se em hostilidade. Os adversários da Guerra, antes isolados, em 1916 sentiam que falavam pela maioria. (HOBSBAMW, 1994, p. 63). Mas a ruptura leninista com a 2ª Internacional ainda precisava avançar em mais um aspecto para transformar o socialismo reformista em uma doutrina revolucionária capaz de tomar o poder político e construir uma alternativa real à democracia liberal. Esse avanço apareceu próximo à revolução de outubro de 1917, primeiro com as Teses de Abril, em que Lenin percebeu uma oportunidade ímpar para a Revolução, depois com a palavra de ordem, Todo Poder aos Sovietes!, em que direcionou o esforço partidário para uma alternativa real de poder, com todas as características que os socialistas revolucionários imaginavam para a democracia operária, conselhos diretamente eleitos pelos operários e soldados. A definição leninista para o problema do Estado seria finalmente sistematizada em um pequeno livro publicado poucos meses antes da tomada do poder pelos bolcheviques. A Refundação Leninista O livro de Lenin, O Estado e a Revolução125, escrito entre agosto e setembro do agitado ano de 1917, é crucial para se compreender a estrutura teórica do movimento que surgiria na esteira da Revolução Russa126. Por isso, é importante uma pequena 125 LENIN, 1973, p. 3-46, t. 7. Zizek, ao iniciar o prefácio de um livros com diversos textos de Lenin, imediatamente anteriores à Revolução Russa de Outubro de 1917, é obrigado a justificar essa escolha, já que nos últimos anos os textos de Lenin foram abandonados pelos estudos sociais na maior parte das universidades do mundo. “A primeira reação pública à ideia de reatualizar Lenin é, obviamente, uma risada sarcástica. Marx, tudo bem – hoje em dia, até mesmo em Wall Street há gente que ainda o admira: o Marx poeta das mercadorias, que fez descrições perfeitas da dinâmica capitalista; o Marx dos estudos culturais, que retratou a alienação e a reificação de nossas vidas cotidianas. Mas Lenin – não, você não pode estar falando sério! Lenin não é aquele que representa justamente o fracasso na colocação em pratica do marxismo? [...] O problema desse argumento aparentemente convincente e que ele endossa de maneira simplista a imagem herdada de Lenin como o sábio líder revolucionário que, após formular as coordenadas básicas de seu pensamento e prática em O que fazer?, simplesmente as aplicou, de modo implacável, a partir de então. Mas, e se houvesse outra história a ser contada sobre Lenin? É verdade que a esquerda de hoje esta passando pela experiência 126 79 introdução para seguirmos a repercussão da Revolução Russa no movimento radical da América Latina, e mais especialmente do Brasil, que nos deteremos de forma mais concentrada nas próximas páginas, e que, a nosso ver, ilustra o impacto, o significado e o potencial ideológico do leninismo logo após a Primeira Guerra na América Latina. Em julho de 1917, Lenin escreveu uma carta a Kamenev, na qual solicitava o envio de seu caderno de notas em que havia separado citações de Marx e Engels e também de Kautsky e do social-democrata holandês Pannekoek, acerca de como o marxismo tratava o Estado127. Esse era o material inicial com o qual Lenin escreveu O Estado e a Revolução. Se pudéssemos determinar um ponto decisivo para que os bolcheviques conseguissem transformar a rebelião popular em um projeto alternativo de poder, o ponto mais importante de inflexão está sistematizado nesse texto. Como disse Zizek (2012, p. 22): “Se algum dia uma caneta serviu como arma, esta foi a caneta com que Lenin escreveu seus textos de 1917”. Figura 6 - "Batalhas do Ocidente", José Clemente Orozco128 A questão do Estado, do governo pós-capitalista, foi tema de debate entre as duas principais correntes do movimento operário, socialista e anarquista. Após a Comuna de Paris (1871), a oposição entre essas duas correntes tornou-se ainda mais clara e em relação à questão do Estado se apresentava inconciliável. Enquanto o socialismo, principalmente marxista, evoluiu de uma posição revolucionária na época de Marx para o reformismo, sobretudo na Alemanha, os anarquistas defendiam a devastadora do fim de toda uma era para o movimento progressista, uma experiência que a obriga a reinventar as coordenadas básicas de seu projeto. Contudo, foi uma experiência exatamente homóloga que deu origem ao leninismo”. In: ZIZEK, 2012, p. 13. 127 Esse caderno foi publicado em espanhol: LENIN, V.I. El Marxismo y el Estado – Materiales preparatórios para el libro El Estado y la Revolución, Moscou: Progreso, s.d. 128 Fonte: ROCHFORT, 1993, p.193 80 revolução, mas pouco conseguiam formular além da destruição do Estado e da Autoridade (segundo a linguagem comumente utilizada pelos anarquistas da época). A prometida Revolução Social carecia de respostas para a construção da sociedade anarquista ou comunista (alguns anarquistas utilizavam o termo comunismo de modo muito similar à anarquia, a sociedade sem classes e sem Estado que surgiria no futuro). Lenin, em 1917, encontrava-se entre duas correntes que pouco tinham a oferecer para a Revolução que se desenvolvia na Rússia. Haviam elaborado a crítica à sociedade capitalista, mas possuíam pouco para a pós-revolução129. Com o Estado russo desabando e os conselhos operários, as organizações que ficaram conhecidas no mundo inteiro pelo seu nome em russo, os sovietes, em ascensão, Lenin percebeu que, para alcançar o projeto revolucionário marxista, necessitava aprofundar-se no problema teórico do Estado. Seguindo a mesma metodologia do livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, Lenin didaticamente começa caracterizando o Estado, reafirmando a posição de Marx e Engels do Manifesto Comunista, ou seja, contrapondo-se à ideia liberal de Estado neutro, e reafirmando o Estado como comitê gestor dos interesses das classes dominantes. Sequer se preocupa em argumentar contra a concepção burguesa do Estado. Seu alvo foi o debate no interior do próprio movimento socialista e socialdemocrata, e suas palavras foram no sentido de desmascarar a posição reformista como sendo a mesma do liberalismo burguês, e contrarrevolucionária, por consequência. Ficando claro que o Estado é o comitê gestor das classes dominantes, que, segundo Marx, o Estado só existe para assegurar os interesses das classes dominantes contra os dominados, o Estado não é geral, não é democrático e não está acima da luta Sobre a posição dos anarquistas acerca da questão do Estado, Lenin disse: “Se dermos agora uma olhada num período histórico completamente encerrado, que vai da Comuna de Paris à primeira República Socialista Soviética, veremos delinear-se com relevo absolutamente definido e indiscutível a posição do marxismo diante do anarquismo. Afinal de contas, o marxismo demonstrou ter razão. E se os anarquistas assinalavam com justeza o caráter oportunista das concepções sobre o Estado que imperavam na maioria dos partidos socialistas, é preciso observar, em primeiro lugar, que esse caráter oportunista provinha de uma deformação e até mesmo de uma ocultação consciente das ideias de Marx a respeito do Estado (em meu livro O Estado e a Revolução registrei que Bebel manteve no fundo de uma gaveta durante 36 anos, de 1875 a 1911, a carta em que Engels denunciava com singular realce, vigor, franqueza e clareza o oportunismo das concepções social-democratas em voga sobre o Estado); e, em segundo lugar, que a retificação dessas ideias oportunistas e o reconhecimento do Poder Soviético e de sua superioridade sobre a democracia parlamentar burguesa partiram com maior amplitude e rapidez precisamente das tendências mais marxistas existentes no seio dos partidos socialistas da Europa e da América”. In: LENIN, V.I “La enfermedad infantil del ‘esquerdismo’ en el comunismo.” in _____. Obras Escojidas. t. 11, Moscou: Progreso, 1973, p.3-43. 129 81 de classes; é apenas a expressão dessa luta e se posiciona pelo interesse de uma classe. Assim, o Estado no capitalismo está a serviço da burguesia, é um Estado burguês, e sua forma demoliberal não atende aos interesses de todas as classes que disputam o seu controle. É um regime que melhor representa e legitima a dominação burguesa sobre toda a sociedade. A omnipotência da “riqueza” está mais segura sob a república democrática, por não depender das imperfeições do envoltório político do capitalismo. A república democrática é a melhor forma política possível para o capitalismo; se o Capital tomar o poder (por intermédio dos Paltchinski, Tchernov, Tsereteli e Cia.) e o assegurar, sólida, e eficazmente, nunca mais será possível abalar esse poder por meio de qualquer mudança de pessoas, de instituições ou de partidos na república democrática burguesa. É preciso notar ainda que Engels é inteiramente categórico quando qualifica o sufrágio universal como instrumento de domínio para a burguesia. O sufrágio universal, diz ele, tendo manifestamente em conta a longa experiência da social-democracia alemã, é: “[...] o índice que permite medir a maturidade da classe operária. Ele não pode servir para nada mais, nem jamais servirá para outra coisa no Estado actual.” Os democratas pequeno-burgueses, tal como os nossos socialistasrevolucionários e os nossos mencheviques, da mesma forma que os seus irmãos gêmeos, todos os sociais-chauvinistas e oportunistas da Europa ocidental, esperam precisamente qualquer “mais” do sufrágio universal. Eles próprios perfilham e inculcam no povo a ideia falsa de que o sufrágio universal, “no Estado atual”, tem capacidade para traduzir com realidade a vontade da maioria dos trabalhadores e para assegurar a realização dessa mesma vontade. Nós não podemos deixar de evidenciar aqui essa ideia falsa, apontando simplesmente que a proposição absolutamente clara, precisa e concreta de Engels é alterada, a cada instante, na propaganda e agitação dos partidos socialistas “oficiais” (ou seja, oportunistas). No decorrer da nossa exposição sobre os pontos de vista de Marx e Engels acerca do Estado “actual” explica em pormenor toda a falsidade da concepção que Engels refuta aqui (LENIN, 1973). Essa definição de Lenin o aparta definitivamente das perspectivas do movimento socialista da 2ª Internacional e seus teóricos, já que impossibilitava teoricamente a transição ao socialismo pelo Estado demoliberal, através do sufrágio universal e da luta parlamentar. A tarefa dos marxistas era, portanto, revolucionária, e significava a destruição do Estado Burguês. “Destruir a máquina burocrática e militar”. Nestas poucas palavras encontra-se expressa, em resumo, a principal lição do marxismo acerca das tarefas do proletariado em relação ao Estado, no decurso da revolução. E foi esta lição que não só foi inteiramente esquecida mas 82 ainda francamente desnaturada pela “interpretação” dominante do marxismo devida a Kautsky! (LENIN, 1973, v. 11). A consequência para a Revolução Russa era o caminho que os bolcheviques deveriam seguir. Para a transformação socialista, não caberia às alianças propostas pela corrente menchevique da social-democracia russa. A transformação precisaria passar pela “quebra do Estado”, não pela disputa do seu controle, seja através de eleições, ou assembleias constituintes. Conforme a posição de Lenin, sem a destruição do Estado tzarista, os russos não alcançariam a paz, não democratizariam o acesso à terra, não teriam pão e nem democracia. Lenin deu um passo adiante, conseguindo dar forma teórica à rebelião popular e legitimar a destruição do aparato estatal tzarista. Até esse ponto, a posição de Lenin é muito parecida com a dos anarquistas, já que defende a destruição do Estado. E, nesse ponto, Lenin faz uma diferenciação fundamental entre a sua posição e a dos socialistas da 2ª Internacional, contra a dos anarquistas, por outro lado. Para os marxistas, o Estado durante o socialismo iria gradativamente se extinguir, já que o socialismo acabaria com as classes sociais e sem classes sociais o Estado se tornaria obsoleto. Os anarquistas, particularmente Bakunin, em polêmicas com Marx, viam o Estado como responsável pelas mazelas e desigualdades, defendendo a sua destruição, a sua abolição. Na tradução para o português, o texto de Lenin vai frisar a oposição entre esses dois termos, e as diferenças entre anarquistas e socialistas. Os anarquistas pretendiam abolir o Estado, e assim chegar à sociedade sem classes, sem a autoridade, sem a opressão e a polícia. A posição dos socialistas da 2ª Internacional, e, particularmente, de Kautsky e Bernstein acabou deixando a perspectiva da sociedade sem classes muito distante, e a ruptura revolucionária ausente. Lenin questiona as duas posições, resgatando o aprendizado de Marx durante a Comuna de Paris, na qual percebeu que a transição para o socialismo deveria ser precedida pela destruição do aparato estatal anterior e a construção de um outro Estado, de ditadura (porque para Lenin todo Estado é uma ditadura de classe) 130 do proletariado “Marx sublinha expressamente – para que se não venha desnaturar o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo – a ‘forma revolucionária e passageira do Estado necessário ao proletariado. O proletariado não tem necessidade do Estado senão durante algum tempo. Não estamos de forma alguma em desacordo com os anarquistas quanto à abolição do Estado como fim. Nós afirmamos que, para atingir este fim, é necessário utilizar provisoriamente os instrumentos, os meios e os processos do poder de Estado contra os exploradores, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável estabelecer a ditadura provisória da classe oprimida. Marx escolheu a maneira mais incisiva e mais nítida de colocar a 130 83 sob a burguesia, a fim de destruir o poder econômico da burguesia, pois, destruindo a burguesia, o proletariado destruía a si como classe. A etapa de transição socialista, antes da sociedade comunista, seria da ditadura do proletariado, o período em que o proletariado se apoiaria em uma estrutura estatal (burocrático e militar) como instrumento de destruição do mundo burguês e da sociedade de classes. Os socialistas advogavam pela extinção do Estado, como um processo em que todo o aparato opressor sumia por falta de utilidade logo após o fim das classes sociais durante a fase de transição ao comunismo, a etapa socialista. A forma desse Estado socialista, dessa etapa de ditadura do proletariado antes da sociedade sem classes e sem Estado, Lenin encontrou nos conselhos operários, os sovietes. Essa forma de organização da democracia operária aparecera como solução política para a formação da República Socialista, a república dos Sovietes Socialistas. As ideias de Lenin e a alternativa que os bolcheviques acabavam de criar entusiasmou todo o movimento socialista e anarquista revolucionário, e inspiraria tentativas de tomada do poder para a implementação do Sistema Soviético em diversos países europeus, como a Alemanha, Hungria, além de se popularizar nos mais diversos meios anarquistas e socialistas os termos da língua russa, como: sovietes, bolcheviques, além dos nomes de Lenin, Gorki, Trotsky; e, mais tarde, Zinoviev, Bukarin e Stalin. Essa experiência de poder soviético chegaria à América Latina por diversos caminhos e de forma bastante confusa, mas com significativa importância política. Repercussões da Revolução Russa no Brasil A primeira fase de industrialização no Brasil ocorreu ao longo da década em que a escravidão foi abolida, quando também foi proclamada a República. Esses dois acontecimentos somam-se as modificações econômicas e sociais que nos ajudam a compreender um ciclo de revoltas rurais que se caracterizaram por se oporem ao Estado brasileiro, sendo a mais significativa dessas revoltas a Guerra de Canudos, entre os anos de 1896-1897. Como ocorreu no Peru e no México, a expansão imperialista das últimas questão contra os anarquistas: devem os operários, depois de derrubar o jugo dos capitalistas, “depor as armas” ou utilizá-las contra os capitalistas a fim de quebrar a sua resistência? Ora, se uma classe usa sistematicamente as suas armas contra outra classe, que é isso senão uma ‘forma passageira’ de Estado?”. In: LENIN, 1973, t. 11. 84 décadas do século XIX e primeiras do século XX trouxe mudanças econômicas no interior rural latino-americano e possibilitou, no caso brasileiro, a partir da expansão da cultura cafeeira e relativa disponibilização de capitais, a formação das primeiras indústrias. (CHILCOTE, 1982, p. 43). Influenciados pelo liberalismo da época, acreditava-se que os trabalhadores europeus eram mais aptos que os nativos para o trabalho na indústria, e a imigração da Europa para o Brasil foi estimulada, inicialmente, para suprir a necessidade de mão de obra nas lavouras de café, e depois para as fábricas (DULLES, 1977, p. 17). A principal origem desses imigrantes foi de países latinos, como Espanha, Portugal e, principalmente, da Itália. Em 1900, cerca de 90% da força de trabalho industrial de São Paulo era formada por estrangeiros. (DULLES, 1977, p. 20). Seria através desses imigrantes que os ideais socialistas e, sobretudo, anarquistas fluiriam para dentro do Brasil e inspirariam a combatividade dos militantes que fundariam os primeiros sindicatos, jornais proletários e organizariam as primeiras greves. Em sua maioria anarquistas, denominavam a si próprios como revolucionários. Everardo Dias, militante anarquista dessa primeira fase, descreve bem esses precursores da crítica radical e militante entre os operários brasileiros. Surgem, nesse momento, alguns intelectuais que se colocam na extrema-esquerda: apelidam-se revolucionários. Uns têm valor indiscutível, são nomes com passado conhecido e notório; outros são obscuros, aparecem sem saber de onde procuram abrir caminho através de suas atitudes singularmente atrevidas. Estes últimos têm ideias confusas, fruto de leituras apressadas de autores de segunda ordem; são palavrosos, demagógicos, sem base na realidade, confundindo teorias com possibilidades. Seus artigos, seus discursos, seus trabalhos são sempre de crítica violenta, trovejante contra tudo que existe, contra a sociedade, contra os privilégios, contra as distinções sociais, contra o estabelecido. Spencerianismo em ação. Niilismo adaptado às circunstâncias. A autoridade é um abuso do poder, uma suplantação insuportável dos direitos naturais do indivíduo. (DIAS, 1977, p. 34-5). Muitos autores procuraram datar as primeiras manifestações do socialismo e, particularmente, do marxismo no Brasil. Hermínio Linhares, por exemplo, nos conta que desde a independência houve por parte das classes pobres planos de “reformas de grande volto, sugerindo mesmo a divisão igualitária de toda a riqueza social”. (LINHARES, 1977, p. 29). Em um levantamento cronológico de periódicos, o autor cita a existência de 85 anarquistas desde 1825 no Brasil, passando antes pelo levante de escravos em 1823, a Balaiada no Maranhão (1838-41) e a Rebelião Praiera de 1848 (LINHARES, 1977, passim), com um programa liberal, e o periódico publicado no Rio de Janeiro entre 1845 e 1847 com o nome de Socialista da Província do Rio de Janeiro, que defendia os princípios de Fourrier. (Ibidem, p. 30). Linhares continua, citando o livro do General José de Abreu e Lima, denominado O Socialismo, como o primeiro a tratar do tema, o primeiro sindicato dos tipógrafos e a primeira greve, dos acendedores de luz. Essa é a tradicional cronologia do movimento operário e socialista (e também anarquista) em sua fase “pré-histórica”. Monis Bandeira (et al., 1989, p.5-19) faz um relato parecido, buscando no período colonial os primeiros operários/escravos da fábrica de Pólvora Estrela, criada por Dom João VI. Cita a Inconfidência Baiana, em que divagaram sobre “igualdade social” e por isso mesmo pagaram no patíbulo o preço de suas ideias subversivas. “[...] na Rebelião Praiera houve muita discussão de ‘ideias sociais’” e ainda cita jornais como O Operário, O Trabalho, O Proletário, O Socialista, O Anarquista Fluminense que surgiram mesmo antes da abolição oficial da escravidão”. (LINHARES, 1977, p. 30). Essa cronologia garimpada pelo esforço dos pesquisadores em prover de marcos a história das ideias socialistas no Brasil, embora apresente dados, não nega que é apenas na última década do século XIX que as ideias de transformação radical da sociedade irão enraizar-se no país e fundir-se aos movimentos sociais que nasciam. Com os imigrantes, o anarquismo se separava com maior clareza dos socialistas, e tornava-se dominante. Autores como Dulles (1977, p. 19) atribuem essa proeminência anarquista à origem dos imigrantes, italianos em sua maioria, que traziam o que mais influenciava o movimento operário em seus países de origem. Na Itália e Espanha, predominava o anarquismo, enquanto que o marxismo crescia na Alemanha e nos países ao redor como as regiões sob domínio austro-húngaro e a Polônia. Por outro lado, Aricó131 explica a predominância do anarquismo pelas características dos regimes aristocráticos latinoamericanos que não permitiam o desenvolvimento da participação política operária na política oficial. Dessa maneira, a oligarquia impedia o desenvolvimento de posições políticas reformistas, parlamentaristas, como as desenvolvidas pela social-democracia alemã do final do século XIX e início do XX. Em nossas sociedades, como disse Carone 131 Tratamos o posicionamento de Aricó acerca dessa questão no subcapítulo: “A Hipótese de Aricó”. 86 (1988, p. 19): A máquina do Estado está nas mãos das classes oligarca-burguesas. Os cargos políticos e administrativos também lhe pertencem. Seu papel é dominante e não é dividido com nenhuma outra classe. Politicamente ela se identifica com o Estado. Como primeira fase de organização do movimento operário, temos as associações de auxílio mútuo, de iniciativa patronal ou do próprio operariado, mas essas organizações não representam uma oposição ao sistema capitalista, e sim uma atitude passiva ao regime. O objetivo geralmente se limita a organização de um seguro para beneficiar seus associados em caso de moléstias, despejos, funerais etc. (CARONE, op.cit., p. 33). Por outro lado, os imigrantes trazem a experiência radical anarquista e a experiência de organização sindical que foram se organizando a partir de uma primeira geração de anarquistas. Inicialmente, a influência da propaganda ácrata estava limitada ao círculo dos pequenos grupos, os sindicatos têm vida efêmera e os jornais poucas vezes ultrapassam mais do que 1 ano de existência. Um dos primeiros a propagar ideais anarquistas no Brasil e organizar um jornal com alguma continuidade e duração foi Oreste Ristori (1874-1943)132, que havia saído da Itália, passando pelas regiões do Prata e chegado ao Brasil após quase ser deportado da Argentina. Em São Paulo, fundou o semanário La Bataglia (DULLES, 1977, p. 20). Escrito em italiano, o semanário de Ristori contava com a colaboração de Gigi Damiani, anarquista que, como outros, fundaria o jornal O Direito, em Curitiba. 132 A biografia de Oreste Ristori foi pesquisada por Carlo Romani. O resultado pode ser lido em: ROMANI, Carlo. A Aventura do Anarquismo segundo Oreste Ristori. Revista de Brasileira de História, v. 17, n. 33, p.130-166, 1997 e ROMANI, Carlo. Oreste Ristori – Uma Aventura Anarquista. São Paulo: Annablume, 2012. 87 Figura 7 - Capa do Jornal O Cosmopolita tratando os mártires de Chicago.133 133 O sindicato de empregados em Hoteis e Restaurantes do Rio de Janeiro convocando a comemoração do Primeiro de Maio, relembrando os mártires de Chicago. Fonte: O Cosmopolita, Órgão dos empregados em Hoteis, Restaurantes, Cafés, Bares e Conjeneres, Rio de Janeiro: 1 de maio de 1918. 88 Outros militantes anarquistas que se destacaram na última década do século XIX e na primeira do século XX foram Florentino de Carvalho (1889-1947), Neno Vasco (1878-1923), Everardo Dias (1883-1966), Manuel Moscoso (-1912), Edgard Leuenroth (1881-1968) e José Mota Assunção. Esses pioneiros organizaram-se em torno dos periódicos, na maioria das vezes com dificuldades para manterem-se, enfrentando a repressão, o que, em diversos momentos, impossibilitava a continuidade. Mas, entre os inúmeros periódicos editados nesse tempo, alguns conseguiram persistir, tornaram-se núcleos de debate e divulgação dos ideais anarquistas, como La Bataglia; Amigo do Povo, dirigido por Neno Vasco; Terra Livre, publicado por 5 anos; Avati; A Laterna; O Trabalhador e outros. Esses periódicos não tratavam de notícias do dia a dia e eram na maioria voltados para as denúncias das mazelas da ordem social urbana vigente, contra o Estado ou a Autoridade (conforme terminologia da época), e para a propaganda dos ideais anarquistas, sem que significasse uma corrente única do movimento. Entre os autores, estava Kropotkin, muito lido entre os militantes anarquistas134 latino-americanos. Edgar Carone (1989, p. 27) afirma, citando inúmeros dados, que o nascente movimento operário é de origem nacional e mantém-se com maioria numérica brasileira, mas também fica claro que os imigrantes têm papel central na formação dos primeiros núcleos de resistência e é através deles que o anarquismo e o socialismo chegam em espanhol francês e italiano. O internacionalismo está entre as características predominantes da parte mais ativa do movimento operário, que contribuiu para que os anarquistas no Brasil se colocassem firmemente contra a Guerra e recebessem com muito entusiasmo as notícias da Revolução Russa. Mas também esse componente internacionalista afastou do debate socialista, e, principalmente, anarquista as revoltas camponesas que ocorreram no Brasil entre 1890 e 1920, particularmente as de Canudos e a Guerra do Contestado. Não existiu qualquer conexão entre os líderes que empunharam armas contra o Estado Brasileiro em Canudos e na divisa de Santa Catarina com o Paraná, e os revolucionários do movimento operário. 134 Florentino afirma que foi o livro Em Defesa do Pão, de Kropotkin, o texto fundamental para a sua conversão ao anarquismo. Esse livro teve importância para muitos anarquistas dessa geração e foi uma das principais fontes de combatividade para esse estágio inicial do movimento anarquista, e parece ter sido bastante difundido na América Latina, já que Ricardo Flores Magón e Astrojildo Pereira o citam como o primeiro livro anarquista a que haviam tido acesso. 89 Ao revisar os jornais disponíveis nos centros de memória operária do Brasil, além da bibliografia, não encontramos qualquer referência significativa às revoltas camponesas. Fabio da Silva (SOUZA, 2012) analisou a repercussão da Revolução Mexicana na imprensa operária brasileira, entre os anos de 1911-1918, e, entre os diversos dados que a pesquisa acrescenta, cabe ressaltar que, acima de tudo, o movimento anarquista brasileiro viu, na revolta camponesa, uma espécie de revolta anarquista. Souza nos apresenta um quadro complexo de interpretações e artigos, que reforça determinados aspectos característicos desse movimento operário brasileiro. Destaca-se, particularmente, o internacionalismo militante, que se expressava em campanhas de arrecadação de fundos em solidariedade, como no acompanhamento pormenorizado dos acontecimentos do México135. Como vimos anteriormente, no México e no Peru as rebeliões camponesas e indígenas se encontraram com os ideais anarquistas, e são esses ideais que conseguem levar os movimentos camponeses a uma dimensão maior, ampliando a combatividade e inspirando a desconfiança contra o Estado e os políticos tradicionais, fornecendo legitimidade política e ideológica para que a luta prossiga de forma independente radical, como foi o caso dos zapatistas em Morelos. No Peru, os anarquistas contribuem para apontar o problema da distribuição e da concentração da terra como sendo o inimigo geral dos camponeses e indígenas, e, principalmente, ampliando e unificando as rebeliões – antes regionalizadas e restritas – em organizações com perspectivas nacionais. No Brasil, as rebeliões camponesas ocorreram paralelas às greves e ao movimento operário e não encontramos relações diretas entre ambos. Podemos, indiretamente, encontrar um vínculo entre movimentos urbanos de emancipação social e Canudos através de Euclides da Cunha. Inicialmente, vendo o movimento de Antônio Conselheiro como regressivo, monarquista, conforme as notícias que se ventilavam na imprensa, o escritor chega a Canudos e acompanha a Guerra como um jornalista do Estado de São Paulo, ao lado das tropas do governo. Ao longo das batalhas, sua simpatia inclinou-se em direção aos 135 Souza (2012, p. 79-83) nos apresenta diversas notícias publicadas em jornais como A Guerra Social e A Lanterna, em que se denuncia a prisão de Ricardo Flores Magón e Librado Rivera, o fechamento de Regeneración em Los Angeles, bem como se organiza, através de um Comitê Pró-Revolucionários Mexicanos, a arrecadação de fundos para ser enviado aos companheiros do México. 90 rebeldes e o resultado foi o clássico da literatura brasileira, Os Sertões. Mais tarde, Euclides faria parte do grupo socialista Emancipação do Trabalho. E escreveria um artigo em que se referiria a Marx e Engels136, mas sem que nenhum desses teóricos, e nem mesmo os autores anarquistas, influenciassem interpretações críticas da realidade brasileira de modo que pudéssemos afirmar que Euclides elaborou uma interpretação marxista do Brasil. Podemos extrair, da própria obra Os Sertões, diversos conceitos evolucionistas e até rascistas que foram comuns a uma sociologia europeia ou mesmo de correntes progressivistas do socialismo do final do século XIX, mas nada comparado às análises da sociedade mexicana e peruana que Ricardo Flores Magón e González Prada produziram. A partir de 1906, após um congresso que pretendeu unificar o movimento operário brasileiro, nasceu a Confederação Operária Brasileira (COB), em 1908. Essa organização possibilitou maior integração dos núcleos radicais do movimento operário, maior propagação de obras e ideais anarquistas, que alimentariam um ciclo de greves entre os anos de 1908 e 1920. Apartados da maioria da população brasileira, restritos aos centros urbanos e com muitos imigrantes, o movimento operário mais ativo esteve até 1922 sob influência anarquista, tendo sido profundamente internacionalista e muito pouco preocupado com a situação nacional. Entre os temas que aparecem nos jornais operários, estavam denúncias sobre as condições de trabalho nas fábricas, exaltação da independência, 136 Sem que adentremos por demais na relação entre Euclides da Cunha e Marx, segue um trecho do artigo de Denilton Azevedo de Morais. “O jornalista e escritor Euclides da Cunha (1866 – 1909), realizou também alguns comentários importantes acerca das ideias de Marx. O autor de Os Sertões soube, como poucos, diferenciar o pensamento de Marx dos demais socialistas. O escritor estava atento para as ‘supostas fragilidades’ dos pensadores socialistas, a esse respeito argumentou: ‘estupendas utopias de Sant-Simon’, ‘alienações de Proudhon’, ‘tentativas bizarras de Fourier’, ‘soçobro completo da política de Louis Blanc’. De acordo com Euclides, foi com Marx, ‘com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva” (CUNHA, apud CHACON, 1981, p. 177). E cita diversos trechos de Euclides da Cunha, retirados do livro de Chacon (1981, p. 177-178): “A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação. [...] A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. [...] põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo. [...] Não se pode negar a segurança do raciocínio. [...] Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário. [...] Porque a Revolução não é um meio, é um fim; embora às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. [...] Porque o seu triunfo é inevitável. [...] Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranquilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração” (CUNHA, s.d. apud AZEVEDO, 2013, p. 203) Cf.: AZEVEDO, Denilton Novais. A fase inicial de difusão das ideias de Marx no Brasil. Revista de Teoria da História, Universidade Federal de Goias, Goiânia, ano 5, n. 9, jul. 2013 91 textos de famosos anarquistas europeus que denunciavam a exploração patronal, a burguesia e o clero. Como contraponto, uma alternativa geral, apresentavam a “Revolução Social”. Em nada, praticamente, diferenciavam-se das organizações europeias em termos de análise da realidade brasileira. Para os anarquistas brasileiros, avessos à política, vendo o meio rural como um resquício ainda mais forte do atraso, a luta estava limitada à classe operária e aos trabalhadores urbanos. Mas se por um lado o movimento operário brasileiro mais ativo esteve distante dos problemas camponeses e pouco preocupado em interpretar aquela realidade, não desenvolvendo nenhuma análise acerca das “particularidades brasileiras”137, por outro lado, o nascente movimento operário, dentre seus congêneres latino-americanos, especialmente no Peru e no México, foi o que mais entusiasticamente recebeu as notícias da Revolução Russa de outubro de 1917. Após o 1º ciclo de greves e certa dispersão do movimento, a COB é reativada em 1912. Em 1913, é organizado um congresso operário. Surgiu uma nova geração 138 de ativistas, expandiu-se o número de sindicatos e greves. Os debates amadureceram e a COB passou a editar um periódico, A Voz do Trabalhador. Os revolucionários dessa nova geração chegariam a enviar militantes para regiões onde a propaganda revolucionária e a organização sindical era praticamente inexistente, como foi o caso de Everardo Dias, enviado para Recife, sua cidade natal, a fim de organizar o movimento na região. Futuros comunistas saíram desse esforço de construção do movimento operário, como foi o caso de Octávio Brandão, futuro dirigente e teórico do PCB, cooptado para o anarquismo a partir do trabalho de propaganda e organização do núcleo fundado por Everardo Dias139, que acabou chegando até Alagoas. O antimilitarismo desenvolveu-se como parte essencial da ideologia anarquista 137 Everardo Dias em suas memórias descreve as perspectivas dos operários estrangeiros no Brasil: “Também não seria com gente [Dias se refere aos imigrantes] assim, com uma massa cujo pensamento estava voltado para suas terras de origem, com ideias arraigadas de nacionalismo, às vezes até exacerbado, deprimindo o próprio país e sua gente, onde vinha viver e ganhar a vida, apontando como estigma as doenças tropicais, as pragas, os insetos, a insegurança pessoal; exprimindo-se mal e olhando com desprezo para os habitantes, considerados tipos inferiores (negros, mulatos, caboclos), vadios, indolentes, dados à embriaguez, malvestidos, mal-alimentados, sem moral, enfim”. In: DIAS, 1977, p. 3940. 138 Dentre as figuras mais significativas dessa geração, estão: João da Costa Pimenta, Domingos Passos, Câncio de Souza, Manoel Campos, Astrojildo Pereira, José Oiticica, Edgard Leuenroth, Florentino de Carvalho, Everardo Dias, Fábio Luz, Adelino de Pinho, entre outros. In: BRANDÃO, 1978, p. 170. 139 Everardo Dias foi preso em 1919, conduzido absolutamente nu a uma prisão em Santos, deixado três dias em uma cela molhada, sem roupas, sem comida e sem água. Após esse período, recebeu 25 chibatadas e foi deportado. Cf.: BRANDÃO, 1978, p. 225. 92 no Brasil, e, em 1908, devido a uma série de provocações que afirmavam a iminência de um conflito entre Brasil e Argentina, publica-se o folheto Não Matarás!, órgão da Liga Antimilitarista Brasileira140. Quando estoura a Primeira Guerra na Europa, os militantes mais ativos da COB já se posicionavam resolutamente contra a guerra. No tradicional comício de 1º de Maio [de 1915], do Rio, foi lido e aprovado manifesto subscrito por dezenove entidades operárias e sindicais em quatro jornais, protestando contra o “crime premeditado da burguesia europeia”, declarando solidariedade ao proletariado internacional contrário à guerra, concitando as classes trabalhadoras e todos os homens livres do Brasil a se manifestarem no mesmo sentido. A Confederação Operária Brasileira, entre 14 e 16 de outubro seguintes, efetuou, no Rio de Janeiro, um Congresso de Paz, no qual tomaram parte, além de delegados de vários Estados, representantes da Argentina, Portugal e Espanha. (PEREIRA, 1979, p. xxiv). Por um lado, estavam os anarquistas, promotores da sindicalização, da greve, da violência revolucionária, da independência da classe operária e da Revolução Social. Por outro, estavam os socialistas, que com esse nome carregavam ideais bastante ecléticos, os quais, com as palavras de Everardo, foram definidos da seguinte forma: Daí que os vocábulos – socialista-comunista, anarquista-comunista, libertário, coletivista – fossem usados pelos nossos jornais indistintamente. Os socialistas denominavam-se “marxistas internacionalistas”, da mesma forma que os anarquistas se declaravam “comunistas libertários”. Não se delimitavam muito as esferas ideológicas nem se faziam rigorosas divisões de tendências, como hoje sucede. Nos jornais escreviam anarquistas e socialistas, indiferentemente. Os anarquistas eram mais conhecidos como libertários. Os “apolíticos” agrupavam-se preferentemente no sindicalismo, ao qual deram forma de ação direta, que predominou desde 1906 até depois da primeira guerra mundial. E foram eles, sem dúvida, que deram maior impulso à organização dos trabalhadores. Sempre manifestavam uma tendência hostil à política e aos políticos. As organizações orientadas pelos sindicalistas moderados – geralmente agrupando proletariado nacional – e que viviam mais ou menos na órbita de certos políticos (isto no Rio de Janeiro) eram denominados “amarelos”. (DIAS, 1977, p. 51-52). É natural que para as duas correntes do movimento operário, a Revolução Russa e os sovietes parecessem mais uma revolução anarquista que socialista. 140 O Arquivo do CEDEM dispõe de um único número deste jornal Não Matarás!, Rio de Janeiro, ano I, n.3, dez. 1908. 93 A Revolução Russa chegou a toda a América Latina através das agências de notícias de países envolvidos na Guerra. E os maximalistas, como seriam chamados os revolucionários russos nos países latinos, seriam tratados como agentes da espionagem alemã, como bandidos arruaceiros, e algumas vezes como sonhadores utópicos e infantis. Até a Revista Fon-Fon, que nada tinha a ver com o movimento operário, estamparia algumas charges, entre os anos de 1917-18, que ilustram bem sob quais perspectivas a Revolução Russa foi recebida pela aristocracia cultural desses anos. Figura 8 – Charge publicada em Fon-Fon que relaciona os “maximalistas” como o gado da Alemanha Fonte: Fon-Fon ano XI, n. 46, Rio de Janeiro: 17 nov. 1917. Foi o militante da COB, um jovem anarquista fluminense, Astrojildo Pereira, que, através da crítica e da investigação, procurou esclarecer o que estava realmente ocorrendo na distante Rússia, governada pelo regime absolutista dos Tzares e que desde fevereiro de 1917 parecia oscilar entre o caos, um regime liberal “de tipo ocidental” e uma novidade que começava a se tomar conhecimento com o nome de sovietes. 94 O Brasil acabava de declarar guerra à Alemanha quando começaram a surgir as notícias sobre os maximalistas russos141. (DULLES, 1977, p. 62). As notícias descreviam a derrota de Lenin e dos maximalistas, informava que os cossacos estavam prestes a invadir São Petersburgo, que Kerenski, Kornilov e outros estavam liquidando os partidários de Lenin, e, principalmente, que Lenin era um “perigoso agente alemão”. O jornal diário de Vicente Piragipe, A Época, fazia alarde contra qualquer “espionagem alemã”, delatava qualquer oposição com acusações de traição e germanismo e, nessa linha, qualquer intenção de saída dos russos da guerra era obra de agentes alemães. Kerenski era tratado como um herói 142. Figura 9 – Charge de Fon-Fon em que um “maximalista” russo está sendo manipulado por um mascarado em Brest-Litovski Em todos os países latinos, a palavra “maximalista” foi usada, tanto pela imprensa comercial quanto pela imprensa operária. Provavelmente, tem origem em uma tradução francesa do próprio movimento operário, e se refere à contraposição, programa máximo (ou revolucionário) e mínimo (reformas e conquistas parciais). Essa terminologia foi comum nos debates do movimento operário do início do século, e podemos encontrar com facilidade essa divisão em diversos autores. Ao traduzir, entendeu-se que bolchevique (maioria em russo) referia-se ao caráter revolucionário do programa, e por isso se assimou esse termo com tanta facilidade. A partir de 1921-22, o termo maximalista vai desaparecer e a palavra comunista passará a prevalecer. 142 No dia 12 de novembro de 1917, o jornal A Época noticiava: “OS ANARCHISTAS DE PRETROGRADO A BRAÇOS COM OS COSSACOS – KERENSKI, NO QURTEÍ. GENERAL – Noticias recebidas de Petrogrodo dizem que na noite de 10 do corrente, o sr. Kerenski conseguiu fugir da capital numa ambulância automóvel e chegou são e salvo ao quartel general. ¦ Actnnutnente, o chefe do governo provisório dispõe dc duzentos mil homens dedicados [...] que conseguiu escapar da censura leninista, anuncia que os cossacos, com o auxílio dos minimalistas, estão prestes a dominar os bolcheviques, com os quais tem travado batalha nas ruas da capital. [...] TROPAS QUE MARCHAM SOBRE PETROGRADO) E TROPAS F1EIS AO GOVERNO PROVISÓRIO [...] o sr. Kerenski chegou quarta-feira a sudoeste da capital. As guarnições das duas cidades declaram-se fieis ao governo provisório. A divisão côssaca da Finlândia marcha sobre Petrogrado, afim de dar combate aos revolucionários, a própria guarnição da capital, que a principio favorece, os maximalistas, começa estar hesitante”. 141 95 Fonte: Fon-Fon, ano XII, n. 3, Rio de Janeiro: fev 1918. Figura 10 – Jornal A Época apresentando Kerenski como a “alma da democracia Russa” Fonte: A Época, n. 1992, Rio de Janeiro: 25 dez. 1917. No natal de 1917, o jornal noticiava a subserviência dos “maximalistas na Conferência de Brest-Litovsky143. As notícias eram confusas e reproduziam as informações que interessavam aos aliados em relação à permanência da Rússia no front contra a Alemanha. Qualquer manifestação em direção à paz ou à retirada da Rússia da Guerra, de forma independente, era considerada traição à pátria, germanismo e espionagem alemã. Foi nesse difícil contexto de confusão e propaganda contra os bolcheviques que 143 A Época, n. 1992, Rio de Janeiro: 25 dez. 1917. 96 Astrojildo Pereira escreveu uma série de cartas argumentando sobre as mentiras e incoerências no que se dizia sobre a Rússia e sobre Lenin. Apenas um jornal publicou uma de suas cartas, o Jornal do Brasil. Astrojildo resolveu reuni-las em uma pequena brochura, publicando por conta própria e difundindo no meio operário em 1918, com a seguinte introdução: As páginas que formam este folheto foram escritas em dias espaçados, no interregno de tempo contado de 25 de novembro do ano findo até 4 de fevereiro último. Algumas delas foram enviadas, em forma de cartas, aos jornais rebatendo injúrias ou deslindando confusões. Reunidas e coordenadas nesta brochurinha, creio valerão como um documento e protesto mais duradouro contra as calúnias e imbecilidades de que se tem servido a nossa imprensa nas apreciações sobre a obra dos maximalistas russos... (PEREIRA, 1918, p. 1)144. O interesse de Astrojildo pelo tema se justificava pela repercussão que a Revolução começava a alcançar no mundo. A partir de fevereiro de 1917, estava claro para todos que acompanhavam a guerra que a autocracia tzarista havia sido substituída por um regime de tipo liberal, visto com bons olhos pelos aliados da Tríplice Entente. Em uma e outra notícia, a imprensa falava de “extremistas”, de anarquistas ou socialistas, mas até o mês de novembro era o nome de Kerensky que ocupava o centro das notícias sobre o front oriental. Em abril, o nome de Lênin começou a surgir como “espião alemão” e “agente do kaiser” na imprensa brasileira. Em julho, em O Combate145, afirmava “Lenin está preso”. Em 1º de outubro de 1917, no mesmo jornal aparecia uma foto falsa de Lenin: “o Governo russo prende o traidor Lenin” (MONIS BANDEIRA, 1967, p. 91). A desinformação, intencional ou não, era sem limites, e a partir de novembro, com a notícia da tomada de poder pelos “maximalistas”, os termos maximalistas, minimalistas, Trotsky e Lenin passaram a se tornar comuns. Monis Bandeira sintetiza bem a lógica da imprensa brasileira. O País, cabeça pensante da política nacional, o jornal onde Rui Barbosa escrevia, era o órgão por excelência das classes dominantes. Somente via na revolução russa, como aliás, quase tôda a imprensa, as repercussões políticas internacionais, do ponto de vista da guerra mundial e dos Aliados, abstraindo-se, quase que inteiramente, do 144 145 Esse texto está reproduzido integralmente ao final desta tese, na parte dos anexos. O Combate, Rio de Janeiro: 27 set. 1917. 97 significado social. O seu comentarista, Alexandre de Albuquerque, no artigo a que deu o nome de “Salada Russa”, limitou-se a profetizar que a História ignoraria Lênin e exaltaria Kerenski. (MONIZ BANDEIRA, 1967, p. 105). Em meio à desinformação e à confusão, as cartas de Astrojildo procuraram entre as evidências e as incoerências, com pouca informação, ligar os pontos, montar o quebra-cabeça e alcançar o significado daqueles acontecimentos na distante Rússia e a identidade daqueles personagens. Com a prática na militância do movimento operário, em que sofria constantes calúnias da imprensa dominante, Astrojildo já havia se tornado um crítico arguto dos interesses por trás das manchetes dos jornais de maior circulação. A argumentação é de uma clarividência impressionante, quando comparamos com os artigos publicados na imprensa dominante da época. Em primeiro lugar, sob o pseudônimo de Alex Pavel, Astrojildo expõe o sentido pernicioso da acusação de “espionagem alemã” que inundava a imprensa: Saudada quando rebentou e deu por terra com czarismo dominante, a Revolução Russa é hoje objeto das maldições da nossa imprensa, que nela só vê fantasmas de espionagem alemã, bicho perigoso de não sei quantos milhões de cabeças e de garras. Provavelmente os nossos jornais desejariam que se constituísse, na Rússia, sobre as ruínas do Império, uma flamante democracia de bacharéis e de negociantes, como a que tem por presidente o sr. Wilson, ou como esta nossa, presidida pela sabedoria inconfundível do sr. Wenceslau. A caída do nosso Império e a implantação desta nossa República, sem gota de sangue, com uma simples e vistosa procissão na rua, parece ter-se tornado, aos olhos dos nossos jornalistas, o padrão irrevogável pelo qual se devem guiar as revoluções antidinásticas que se forem efetuando pelo mundo. Como a Revolução Russa, ao contrário disso, tem tomado um caráter profundo, de verdadeira revolução, isto é, de transformação violenta e radical de sistemas, de métodos e de organismos sociais, levada para diante aos empurrões, pelo povo, pela massa popular, eis que os nossos jornais desabam sobre ela, de rijo, toda a fúria da sua indignação democrática e republicana. É que os nossos jornais partem dum ponto de vista errado, supondo que o povo russo tem a mesma mentalidade do povo brasileiro de 89, que assistiu, “bestializado”, à proclamação, por equívoco, desta bela choldra que nos desgoverna. (PEREIRA, 1918, p. 1). E, para comprovar que essa acusação era falsa, utilizou o argumento de que: Lenin, um velho socialista militante de mais de 20 anos, e como tal, ferozmente perseguido pela autocracia moscovita, mas sempre o 98 mesmo homem de caráter indomável e intransigente146. Como pode, pois, entrar nos cascos de alguém que um homem destes, precisamente quando vê seus caros ideais em marcha, a concretizar-se, numa soberba flor ação de energia vital, vá vender-se a um governo estrangeiro? Lenin, se quisesse vender-se algum dia, bastava esboçar o mais leve sinal e o governo de São Petersburgo rechear-lhe-ia os bolsos fartamente, vencendo pelo dinheiro o inimigo implacável. Não precisava esperar, através de anos inteiros de perseguições e sofrimentos que a revolução social dos seus sonhos se iniciasse para entregar-se ao marco prussiano, como um vulgaríssimo trampolineiro, como um jornalista qualquer, destes que abundam na imprensa desta terra. (PEREIRA, 1918, s.p.). Desfazer a pecha de traidor era o primeiro passo, o segundo seria identificar e defender a ideologia que os revolucionários russos propagavam, e é a partir dessa parte que fica evidente a impressão, entre os anarquistas brasileiros, de que aqueles revolucionários eram uma espécie de anarquistas também147. Nessa fase dos debates entre anarquistas e socialistas no Brasil, embora os segundos fossem pouco expressivos no movimento operário, era claro para os anarquistas que a oposição entre anarquistas e socialistas estava relacionada à oposição entre reforma e revolução; certa defesa da participação na Guerra e antimilitarismo; aceitação ou não da autoridade e autogestão. A revolução “maximalista” possuía todas as características de um movimento anarquista: Revolução Social (na terminologia anarquista), oposição à Guerra, internacionalismo e, principalmente, a derrubada do governo (primeiro a autocracia tzarista, depois o regime burguês de Kerensky para a organização de um governo de conselhos, soviético). Astrojildo é claro no diagnóstico do que entendia acerca da Revolução: A revolução, como se viu, de começo manietada pelo Lvov, pelos Rodzianko, pelos Miliukov, pelos Kerenski, integrou-se finalmente 146 No original, Astrojildo coloca a seguinte nota: A Luta, jornal burguês de Lisboa, estampou os seguintes dados biográficos sobre Lênin: “A autocracia, talvez, por instinto, descobriu um inimigo terrível’ na pessoa de Lênin, quando ele não contava mais de 17 anos de idade. Expulsou-o em 1867 (?) da Universidade de Kazan, com privação do direito de admissão em qualquer outra universidade pelo motivo de seu irmão ter sido executado como criminoso político. Lênin – cujo verdadeiro nome é Ulianov – consagrou-se muito cedo ao estudo do desenvolvimento econômico da Rússia, e muito jovem ainda, tornou-se um perigoso discípulo de Karl Marx. Escreveu muitos folhetos e livros; mas a sua principal obra é um grosso volume intitulado A Evolução do Capitalismo na Rússia, editado em 1881 com o pseudônimo de V. Iline, trabalho sobretudo acadêmico, cheio de números, todo ele apoiado em estatísticas. Mas a atividade de Lenin não se limitou à de economista sábio, e, atraído pelo movimento revolucionário, condenam-no a 4 anos de deportação na Sibéria. De regresso destas paragens, passou ao estrangeiro e fêz-se chefe ativo da Social-democracia russa (Transcrito pelo Cosmopolita, 15 jan.). 147 Astrojildo Pereira cita Kropotkin para explicar a Revolução Russa. Ver anexos. 99 nas mãos da plebe, tomando uma orientação verdadeiramente popular e libertária, – antiguerrista, antiburguesa, antiautoritária. Nada mais lógico, nem mais justo, pois, que se declarem anulados todos os convênios e tratados anteriormente concluídos entre os governantes da Rússia e os governantes de outras nações. (PEREIRA, 1918, s./p.). E, finalmente, extremamente perspicaz, aponta o significado da Revolução Russa, que por um lado concretizava a utopia como possibilidade realizável e por outro “marca o início da maior revolução social da história”. (MONIZ, 1967, p. 317). Em 1918, a brochura de Astrojildo foi a informação mais correta dos acontecimentos russos e também a que melhor percebeu o significado da Revolução Russa para o futuro da história mundial. Para Astrojildo, a Revolução ainda era anarquista, e, até que os primeiros simpatizantes dos maximalistas rompessem com os anarquistas, ainda haveria muitos debates. Os primeiros “bolcheviques” mexicanos Em 1919, os bolcheviques fundam a Internacional Comunista em Moscou, em meio a um clima de expansão da Revolução. O I Congresso da Internacional Comunista foi realizado nos primeiros dias de março, durante a Guerra Civil na Rússia e ainda sem que o poder soviético estivesse estabilizado. O objetivo era consolidar politicamente a iniciativa revolucionária e impulsionar outras tentativas de tomada do poder, principalmente na Alemanha, e também na Hungria. Esse primeiro congresso não contou com nenhum representante da América Latina, quase todos europeus. Os dois documentos mais importantes desse congresso foram o discurso de abertura de Lenin e a tese sobre democracia burguesa e ditadura do proletariado. Em síntese, o I Congresso da IC apresentou as teses de Lenin sobre o Estado, divulgando os sovietes como forma política da ditadura do proletariado, rompendo com a 2ª Internacional e anunciando a nova era das Revoluções Proletárias. Essa nova posição no movimento operário ganhava uma organização internacional nascida da vitória dos bolcheviques, e assumia o nome de “comunista”. O Congresso [...] demonstra o fim de todas as ilusões da democracia burguesa. A guerra civil se transformou num fato, não só na Rússia, mas nos países capitalistas mais desenvolvidos, por exemplo a Alemanha. 100 O povo percebeu a grandeza e a importância desta luta. Tratava-se de encontrar a forma prática quer permitisse ao proletariado exercer sua dominação. Esta forma é o regime dos Sovietes com a ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado; essas palavras eram “latim” para as massas até nossos dias. Agora, graças ao sistema dos Sovietes, esse latim se traduziu para todas as línguas modernas; a forma prática da ditadura foi encontrada pelas massas populares. Ela se tornou inteligível para a grande massa de operários graças ao poder dos Sovietes na Rússia, aos espartaquistas da Alemanha, às organizações análogas nos outros países, como Shop Stewards Committes na Inglaterra. [...] Tudo isso prova que a forma revolucionária da ditadura do proletariado foi encontrada e que o proletariado está em ação para exercer de fato sua dominação. Camaradas! Penso que depois do que aconteceu na Rússia, depois dos combates de janeiro na Alemanha, importa sobretudo observar que a nova forma do movimento do proletariado se manifesta e se amplia também nos outros países. [...] a vitória da revolução comunista mundial está assegurada. (LENIN, 1919, s.p.). O entusiasmo com que que significou a fundação da Internacional Comunista foi compartilhado em diversos outros países pelo mundo. No México, que se encontrava ainda conflagrado pelas batalhas entre carrancistas, villistas e zapatistas, a bibliografia costuma citar o apoio inicial que Ricardo Flores Magón, preso nos EUA, deu à revolução, e o rompimento depois, em 1921, quando começou a chegar as notícias de que havia anarquistas presos na URSS, em 1921148. Zapata, que morreria em 1919, chegou a comentar em uma carta sua simpatia pela Revolução Russa, que entendeu de forma bastante genérica. Muito ganharíamos, muito ganharia a humanidade e a justiça, se todos os povos da América e todas as nações da velha Europa compreendessem que a causa do México Revolucionário e a causa da Rússia são e representam a causa da humanidade, o interesse supremo de todos os povos oprimidos. [...] Aqui como lá, existem grandes senhores, desumanos, gananciosos e cruéis que vêm explorando de pais a filhos até a tortura as grandes massas camponesas. E aqui como lá os homens escravizados, os homens de consciência adormecida, começam a despertar, a sacudir-se, a agitar-se, a castigar. [...] Não é de se estranhar, pelo mesmo, que o proletariado mundial aplauda e admire a Revolução Russa, do mesmo modo que outorgará toda a sua adesão, sua simpatia e seu apoio a esta Revolução Mexicana, ao dar-se cabal conta de seus fins149. “Nicolai Lenine, o líder russo, e nesses momentos, a figura revolucionária que mais brilha no caos das condições existentes em todo o mundo, porque se encontra à frente de um momento que tem que provocar, querendo ou não os vaidosos, [o fim] do atual sistema de exploração e de crime, a grande Revolução Mundial que já está chamando às portas de todos os povos; a grende Revolução Mundial que opera transformações importantes no modo de conviver dos seres humanos”. In: REGENERACIÓN, Los Angeles, Época IV, n. 262, 16 mar. 1918. 149 Carta de Emiliano Zapata ao General Genaro Amescua, Tlaltizapán, Morelos, em 14 de fevereiro de 148 101 1 O Partido Comunista do México é fundado no mesmo ano em que a Internacional Comunista é fundada em Moscou. O primeiro Congresso da Internacional Comunista não contou com nenhum delegado latino-americano, mas a repercussão que alcançou no México foi imediata, embora bastante confusa e diversa. Como no Brasil, a Revolução Russa chegava ao Peru e ao México através das mesmas agências de notícia com sede nos países que compunham a Entente na Guerra Mundial. Foram os anarquistas os primeiros a captar de forma crítica as confusas informações e tentar aos poucos montar o quebra-cabeça que respondesse o que realmente queria Lenin e o que eram os bolcheviques, “maximalistas”, e como funcionavam os sovietes. 1918. 102 2º Capítulo – Os comunistas latino-americanos descobrem as classes nãoproletárias [...] os anarquistas negam a existência de uma questão nacional, pois o objetivo a ser alcançado seria igual em todas as partes: a fraternidade dos trabalhadores sem pátria nem patrões. O reconhecimento da questão nacional por parte dos comunistas levou-os a introdução de novas reivindicações nos países de 3º mundo, como por exemplo a questão agrária e a luta contra o imperialismo. (FAUSTO, 1996, p.303) 103 O leninismo para a periferia. O marxismo surgiu como uma proposta universal, mas na prática o próprio Marx tratou mais da Europa, o centro do capitalismo, que da realidade colonial ou periférica aos países da Europa Ocidental e dos EUA. Já fizemos um breve histórico do problema colonial e nacional para Marx no primeiro capítulo e não pretendemos repeti-lo. Mas é necessário retomarmos a questão colonial e nacional sob o ponto de vista da prática politica dos comunistas que viviam na periferia do capitalismo, como era o caso da América Latina. Marx, embora tenha tratado de diversas realidades fora da Europa, pouco teve de se preocupar com a prática política dos revolucionários nas colônias, com exceção para o caso da Irlanda, já narrado. Os marxistas da 2ª Internacional também viram as revoluções no mundo extraeuropeu como uma consequência das transformações pelas quais lutavam na Europa Ocidental. As transformações socialistas nos países europeus seriam depois refletidas para a realidade colonial. Quando os revolucionários bolcheviques chegaram ao poder em 1917, a Revolução na atrasada Rússia colocava uma série de questionamentos acerca de como se imaginou a transformação socialista. Como o socialismo era fruto do amadurecimento do próprio capitalismo, seria natural que a Revolução Mundial começasse pelos países mais desenvolvidos, inclusive onde a classe operária estava mais organizada, a Alemanha. Quando é fundada a Internacional Comunista, a expectativa era de que a Revolução na Alemanha seria iminente, e a própria Revolução Russa era apenas uma antessala da revolução alemã. Essa perspectiva seria gradativamente transformada, e os comunistas buscariam explicar a partir do marxismo, ao longo dos anos seguintes, os motivos que levaram à vitória da Revolução proletária em um país rural. A Revolução Proletária foi vitoriosa em um dos países demograficamente menos proletários e mais camponeses da Europa. O problema colonial seguia essa mesma lógica. Por não possuir proletariado e ser predominantemente rural, as colônias e os países periféricos possuíam um protagonismo secundário, e sua realidade se transformaria em função dos movimentos revolucionários que ocorreriam no centro do capitalismo. Demoraria alguns anos até que os países da periferia começassem a aparecer de forma central no programa dos comunistas, e foi depois das formulações, as quais vão surgindo a partir do 2º Congresso da Internacional Comunista, em 1920, que se 104 construiu ao longo da década de 1920 um modelo de análise e prática política para os países coloniais e semicoloniais, como seriam denominados os países periféricos. Esse modelo, que será desenvolvido durante a revolução chinesa e experimentado ao longo da década de 1920, deve ser encarado como guia inicial para entendermos todo o debate dos comunistas do Brasil, do Peru e do México nesse período. O Primeiro Congresso da Internacional Comunista careceu de uma tradicional representatividade formal. Sua importância não pode ser medida em um quórum mínimo representativo dos partidos marxistas revolucionários, mas em estar sendo fundada a partir da primeira revolução socialista vitoriosa. O Congresso fundador da Internacional Comunista foi convocado em meio à Guerra Civil na Rússia; seus delegados estavam compostos por revolucionários que já se encontravam no país soviético, como foi o caso de John Reed, ou por outros que tiveram de atravessar difíceis trajetos, em meio aos fronts que sobraram da guerra150. O debate esteve centrado no problema que diferenciava comunistas, anarquistas e social-democratas, a diferença entre democracia burguesa e ditadura do proletariado. Mas, embora não tenha contado com um número significativo de partidos, a fundação da Internacional Comunista ecoou em todo o movimento radical, e logo começaram a surgir diversos pedidos de filiação de inúmeros partidos. Estar vinculado à Internacional Comunista do país dos sovietes dava legitimidade às organizações que se formavam no meio do movimento operário. O II Congresso da Internacional precisou tratar não apenas de propagar a tese acerca da ditadura do proletariado como forma do Estado socialista, primeira etapa para a transição do capitalismo ao comunismo. Foi necessário criar critérios claros para a filiação dos Partidos na nova Internacional os quais a diferenciassem da 2º Internacional – que funcionava como uma espécie de federação – e impusesse uma centralização de ação que impulsionasse a Revolução Proletária Mundial151. No II Congresso da IC, ainda se mantinha uma esperança de que a Revolução Mundial pudesse, muito brevemente, espalhar-se pelo mundo. A derrota dos comunistas na Hungria já demonstrava que a Revolução Mundial 150 Iza Salles descreve em seu livro o trajeto difícil para se chegar à Rússia, particularmente em meio à Guerra Civil. Ver: SALLES, Iza. Um Cadáver ao Sol. A história de um operário brasileiro que desafiou Moscou e o PCB, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. Há outros relatos em PORTOCARRERO, 1987, TAIBO II, 2008 e RAVINES, 1981. 151 Cf.: LOS CUATRO congresos de la Internacional Comunista, Disponível em: <http://grupgerminal.org/?q=system/files/cuatroprimerosICvolumen1.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014. 105 poderia ser um processo bem mais longo. Seria no III Congresso, em 1921, que a Internacional admitiria uma recomposição de forças da burguesia imperialista, impondo certas mudanças táticas e alianças com outras forças políticas. Essa mudança, a partir do III Congresso da IC, será determinante para a elaboração da tática de alianças dos comunistas nos países coloniais e semicoloniais. Além dos textos de Lenin, anteriores à fundação da IC 152, foram as Teses sobre o Problema Nacional e Colonial153 que inauguraram o tratamento leninista dessa questão para os Partidos Comunistas, e, embora seja claro que o processo formativo do modelo que a IC utilizará para analisar a realidade dos países coloniais e semicoloniais tenha sofrido de rupturas e lutas políticas que não fazem parte de um processo de desenvolvimento linear, estabeleceremos uma cronologia do desenvolvimento deste modelo leninista para o problema colonial até 1928, quando aconteceu o VI Congresso, e o modelo de análise se tornou mais maduro e será aplicado para a análise dos PCs a partir de conceitos mais claros. As teses e os manifestos elaborados pelos congressos da IC foram publicados nos idiomas oficiais da IC (russo, alemão, inglês, francês e chinês), e depois de 1926 contará com publicações diretas da IC em espanhol. Existe uma tendência bibliográfica que explorou outras documentações, como cartas entre dirigentes, informes e relatórios secretos que se tem encontrado recentemente nos arquivos de Moscou154, além de outras fontes “não oficiais”, ou não publicadas pelos dirigentes das organizações comunistas na época em que foram escritas. Depois de uma longa temporada de estudos muito influenciados pela perspectiva da historiografia liberal, motivada por um sentimento anticomunista, ou por um revisionismo que partiu de pressupostos que compararam movimento comunista, com fascismo155, é necessário resgatar a documentação mais básica, que deveria ser obrigatória para o início de qualquer pesquisa, mas que tem sido muito pouco 152 Podemos encontrar na obra de Lenin diversos textos anteriores a 1920 em que são tratadas a questão colonial e nacional. A síntese mais importante está na obra já tratada anteriormente, Imperialismo, fase superior do capitalismo. 153 Ver anexos no final deste trabalho. 154 Trataremos essas fontes mais adiante. 155 Diversos autores ocidentais escreveram livros comparando fascismo com o comunismo. Não é necessário citá-los aqui. Mas há importantes trabalhos que questionam esses pressupostos, em que se destacam a obra de Losurdo (2011), Stalin – História crítica de uma lenda negra, além de um artigo de Horácio Crespo. Para uma historiografia del comunismo: algunas observaciones de método. In: CONCHEIRO, Elvira et al. (Coords.). El Comunismo: Otras miradas desde América Latina. México: Unam, 2007. 106 consultada, e muitas vezes citada através de uma bibliografia secundária. A historiografia liberal parte de uma visão que subestima os debates teóricos, doutrinários e ideológicos do Movimento Comunista, pressupondo que as teses e manifestos são apenas alegorias de uma luta pelo poder, geralmente pessoal entre dirigentes e líderes comunistas156. Nosso ponto de partida está em perspectiva contrária. Nossas investigações demonstraram que o movimento comunista possui uma dinâmica diferente da maioria dos movimentos políticos que se organizam dentro do Estado nos países capitalistas157, onde interesses econômicos, “espaços de poder”, divisão de secretarias, ministérios e verbas fazem parte de uma disputa política em que a parte doutrinária e as formulações políticas representam muitas vezes apenas alegorias para a disputa de interesses pessoais e de grupos. Com o movimento comunista acontece uma dinâmica diferente, que alguns autores acabaram muitas vezes associando a um “fanatismo”158, à ignorância, e até a traumas de infância. Para muitos autores, a convicção e a decisão dos comunistas em se aferrar a uma linha política-ideológica anti-liberal só pode ser explicada através de conspirações de grupos em luta pelo poder; ou quando essa explicação é evidentemente descartada, como no caso do pintor comunista David Alfaro Siqueiros, somente pode ser explicada a partir de adjetivos como “fanatismo” e outros similares. Nossa análise do movimento comunista pretende retomar o debate da década de 1970 e início dos anos 80, revisando com seriedade os manifestos e teses produzidas pelos comunistas ao longo do período analisado, tratando-os como sínteses de parte importante da luta política e ideológica que a prática revolucionária dos militantes produziu. Para compreendermos a formulação da IC para os países coloniais e semicoloniais, iniciaremos pelo primeiro importante documento produzido pala IC, que tenta colocar o mundo colonial na estratégia da Revolução Proletária Mundial. Esse documento tem uma história interessante e se relaciona indiretamente à fundação do 157 Ver: DEVEZA, Felipe. O Conflito Sino-soviético (monografia), Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. A autora da biografia de Siqueiros, Irene Herner, por exemplo, trata a militância de Siqueiros, particularmente sua adesão a corrente que reivindicou Stalin, como fanatismo. Naturalmente, nesse termo está implícita uma ideia contrária à racionalidade, e próxima aos mitos religiosos. Ver: HENER, Irene. Siqueiros, Del Paraíso a la Utopia. México: Secretaria de Cultura del DF, 2010. 158 107 Partido Comunista do México. *** Em meados de março de 1919, no mesmo mês em que se realizou o I Congresso da IC, foi convocado o Primeiro Congresso Nacional Socialista, na Cidade do México. Entre os que assinavam a convocação estavam Adolfo Santibañez, Francisco Cervantes López, Felipe Dávalos e Timóteo Garcia. (TAIBO II, 2008, p. 17). Em um movimento operário dominado por concepções anarquistas por um lado, e com uma posição reformista se desenvolvendo em torno do Grupo Acción de Luis Morones de outro, a convocatória socialista foi recebida sem muito entusiasmo. O congresso encontraria eco nos grupos que não possuíam expressão no movimento sindical, particularmente entre estrangeiros que estavam no México conhecidos como slackers, nos EUA. Esse termo pode ser traduzido como covardes ou frouxos, e se referia a um heterogêneo grupo de norte-americanos que, para não serem obrigados a lutar na Primeira Guerra Mundial, haviam atravessado a fronteira mexicana, e foram viver em uma espécie de exílio no país vizinho neutro no conflito. Dentre eles havia anarquistas, socialistas e pacifistas das mais variadas motivações. Um desses era o indiano nacionalista Narendra Nath Bhattacharya, conhecido como Manabendra Nath Roy (1887-1954), que fugia de seu país por ter participado de movimentos anticoloniais159. No início de 1919, havia entrado em contato com o partido Socialistas de Saltibañes, e teria um protagonismo importante nesse momento de fundação do comunismo peruano. O congresso somente se realizou em 25 de agosto, e contaria com a participação de outros grupos, como o Grupo de Morones, os Jovens Socialistas Vermelhos, de tendência anarquista160, os que publicavam a Gale’s Maganize, dirigida por Linn Gale, um norte-americano de ideologia eclética; representantes de partidos socialistas regionais e outras figuras importantes na vida do Partido Comunista do México nos seus 159 Detalhes do percurso de Roy, tanto em questões político-ideológicas como em suas aventuras por vários países, podem ser encontrados em suas memórias (ROY, Manabendra Nath, M.N. Roy's Memoirs, Bombay: Allied Publisher, 1964) ou no livro de Paco Ignácio (TAIBO II, 2008). Em relação às suas memórias, Taibo II (2008) e Verdugo (1985) chamam a atenção para diversas inconsistências de datas, além de uma possível ampliação de sua importância nos fatos narrados. 160 “O dominante no movimento operário da época era um sindicalismo anarquizante, antipolítico e minoritário nos centros de trabalho, ainda que bastante unânime nos quadros militantes, nas organizações de afinidade e nas redações dos periódicos operários.” (TAIBO II, 2008, p. 53). 108 primeiros anos, como José Allen, Viocente Ferrer Aldana, Jacinto Huitrón, entre outros161. Depois de uma semana de debates, foi elaborada uma declaração de princípios, assinada por 22 delegados, em que se afirmava uma posição revolucionária, contra a posição de Morones, sobre a “Ação Múltipla”. Decidiu-se que o objetivo da luta era a posse e a direção comunista de todos os meios de produção, distribuição e troca. (TAIBO II, 2008, p. 59). Ao longo do ano, apareceria Borodin, um enviado da Internacional Comunista ao México, a fim de apoiar a constituição de uma seção mexicana da IC, e levar delegados para o II Congresso da IC, que se realizaria no ano seguinte. Roy narra em suas memórias como foi o encontro de Borodin com o grupo do Partido Socialista no Final de 1919. Uma tarde, Charlie e Irwin entraram subitamente perturbando a minha sesta pós-matinal. Estavam cheios de emoção. Um líder bolchevique, um verdadeiro bolchevique, de carne e osso, havia chegado secretamente ao México, diretamente desde a terra da revolução proletária. Embora eu mesmo estivesse suficiente animado pelas notícias, o ingênuo entusiasmo deles provocou em mim uma jocosa pergunta: – Como o reconheceram? Tinha barba e uma faca entre os dentes? (ROY, 1964, p. 139162). Com a chegada do bolchevique, reúne-se o grupo mais ativo do PSM e decide-se pela criação do Partido Comunista do México, nomeando Roy e Phillips como delegados para o II Congresso da IC. Roy iria com a sua esposa Evelyn para Moscou e nunca mais voltaria ao México. Em junho de 1920, Phillips e Roy, que haviam tomado caminhos diferentes para chegarem à Rússia, se encontram no 2º Congresso da IC. Roy interviu, mais preocupado com os problemas da Índia que com o México que representava. Nesse congresso, foi tomada a decisão de se formar um escritório da Internacional Sindical Vermelha no México, com dois quadros importantes da IC, Lois Fraina e Sen Katayama. Phillips retornaria junto com os dois e os auxiliaria na tarefa. 161 Para conhecer melhor o período inicial do PCM: SPENSER, Daniela e ORTIZ, Rina, La Internacional Comunista em México: Los primeros tropiezos – documentos, 1919-1922. México, DF: INEHRM, 2006; ______. El triángulo imposible: México, Rusia Soviética y Estados Unidos en los Veinte. Cidade do México, DF.: Ciesas, 2004; GIL, Mario. México y la Revolución de octubre. México: Cultura Popular, 1978. Além de TAIBO II, 2008 e VERDUGO, 1985, já citados. 162 O trecho utilizado foi retirado de uma tradução em espanhol citada por TAIBO II, 2008, p. 75. 109 (TAIBO II, 2088, p. 179). Uma das mais importantes colaborações da delegação mexicana seria a participação de Roy na elaboração da tese sobre o problema nacional e colonial, redigidas em conjunto com Lenin e aprovadas pelo congresso. A posição da resolução sobre o problema colonial seguiu a crítica à democracia burguesa163, presente no centro dos dois primeiros congressos da IC, e reconheceu não apenas a necessidade de uma igualdade formal das nações defendida pelo direito burguês, mas a igualdade real, expressa pela forma federativa de organização da União de Repúblicas Soviéticas. Afirmou-se a necessidade de se considerar objetiva a diferença entre as nações que vivem sob o sistema imperialista. A resolução é extensa, e inclusive chega a tratar de casos específicos, como dos judeus na Palestina164. A posição da IC sobre a questão colonial romperia abertamente com os resquícios de europeísmo, com um estigma de superioridade do proletariado europeu sobre os outros povos, sentimentos presentes na 2ª Internacional. O congresso defendeu o nacionalismo anti-imperialista nas colônias, inclusive para que essa questão fosse vista com paciência, já que derivavam de um odioso preconceito racista oriundo do domínio imperialista. [...] A oposição secular das pequenas nações e das colônias às potências imperialistas fez nascer, entre as massas trabalhadoras dos países oprimidos, não somente um sentimento de rancor para com as nações opressoras em geral, mas também um sentimento de desconfiança em relação ao proletariado dos países opressores. A infame traição dos chefes oficiais da maioria socialista em 1914-1919, quando o socialismo chauvinista qualificou de “defesa nacional” a defesa dos “direitos” de “sua burguesia”, a submissão das colônias e dos países financeiramente dependentes, só pode tornar essa “[...] o Partido comunista, intérprete consciente do proletariado em luta contra o jogo da burguesia, deve considerar como formando a chave de abóbada da (questão nacional, não os princípios abstratos e formais, mas: 1º - uma noção clara das circunstâncias históricas e econômicas; 2º - a dissociação precisa dos interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos explorados, com rejeição à concepção geral dos pretensos interesses nacionais, que significam, na realidade, os interesses das classes dominantes; 3º a divisão mais clara e precisa das nações oprimidas, dependentes, protegidas, e opressoras e exploradoras, gozando de todos os direitos, contrariamente a hipocrisia burguesa e democrática que dissimula a submissão (própria da época do capital financeiro e do imperialismo), pelo poder financeiro e colonialista, da imensa maioria das populações do globo a uma minoria de ricos países capitalistas.” RESOLUÇÕES sobre o Problema Nacional e Colonial, 1920. A resolução está nos anexos deste trabalho. 164 A resolução é critica a posição dos judeus na Palestina: “Como exemplo gritante das mentiras praticadas com relação à classe trabalhadora nos países subjugados pelos esforços combinados do imperialismo dos aliados e da burguesia desta ou daquela nação, podemos citar o caso dos sionistas na Palestina, onde sob pretexto de criar um Estado judeu, num país onde os judeus são em número insignificante, o sionismo abandonou a população de trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra”. (RESOLUÇÃO..., 1920, s.p.) 163 110 desconfiança completamente legítima. Os preconceitos só podem desaparecer com o desaparecimento do capitalismo e do imperialismo nos países avançados, e depois, da transformação radical da vida econômica dos países atrasados, sua extinção será muito lenta, de onde o dever do proletariado consciente de todos os países de se mostrar particularmente circunspecto diante dos resíduos de sentimento nacional dos países oprimidos durante um longo tempo, e de fazer também algumas concessões úteis a fim de promover o desaparecimento desses preconceitos e dessa desconfiança. (RESOLUÇÃO..., 1920). Mas o trecho mais significativo da resolução, e que terá influência nas interpretações futuras da IC, está na definição dos aliados nas colônias para a Revolução Proletária Mundial: os “movimentos revolucionários de emancipação”, “o movimento camponês nos países atrasados contra os proprietários rurais”. Com relação aos Estados e países mais atrasados onde predominam instituições feudais ou patriarcais-rurais, convém ter em vista: 1º – A necessidade da colaboração de todos os partidos comunistas com os movimentos revolucionários de emancipação nesses países, colaboração que deve ser verdadeiramente ativa e cuja forma deve ser determinada pelo partido comunista do país. [...] E de uma importância toda especial sustentar o movimento camponês nos países atrasados contra os proprietários rurais, contra os resquícios ou manifestações do espírito feudal; deve-se, antes de tudo, fazer um esforço para dar ao movimento camponês um caráter revolucionário, para organizar, em todos os lugares onde seja possível, os camponeses, e todos os oprimidos, em Sovietes e assim criar uma ligação bastante estreita do proletariado comunista europeu com o movimento revolucionário camponês do Oriente, das colônias e dos países atrasados em geral (RESOLUÇÃO..., 1920, s.p.). A posição da IC era clara. Os comunistas pretendiam fazer uma revolução mundial, e cabia aos explorados da periferia do capitalismo se aliar à Revolução Proletária: “não há saída possível para os povos fracos e subjugados fora da federação das repúblicas soviéticas”. (Ibidem). E, para tanto, seria necessário que os comunistas buscassem a alianças com os elementos que pareciam propensos a luta contra o imperialismo mundial: Em primeiro lugar, os camponeses pobres, e depois, com ressalvas, os movimentos revolucionários nacionalistas que realmente tivessem em luta pela emancipação nacional, e não manejados por outra potência imperialista. Nos países oprimidos existem dois movimentos que, a cada dia, se separaram mais: o primeiro é o movimento burguês democrático nacionalista que tem um programa de independência política e de 111 ordem burguesa; o outro é aquele dos camponeses e dos operários ignorantes e pobres por sua emancipação de toda espécie de exploração. O primeiro tenta dirigir o segundo e nisso tem sucesso em certa medida. Mas a Internacional Comunista e os partidos que a ela pertencem devem combater esta tendência e procurar desenvolver o sentimento de classe independente nas massas operárias das colônias. (RESOLUÇÃO..., 1920, s.p.). Por fim, aparece uma ressalva importante, que depois dará base programática para as revoluções nos países periféricos: Seria certamente um grande erro desejar aplicar imediatamente nos países orientais os princípios comunistas à questão agrária. Em seu primeiro estágio, a revolução nas colônias deve ter um programa que comporte reformas pequeno-burguesas, tais como a divisão das terras. Mas não decorre necessariamente que a direção da revolução deva ser abandonada à democracia burguesa. O partido proletário deve, ao contrário, desenvolver uma propaganda poderosa e sistemática em favor dos Sovietes e organizar Sovietes de camponeses e operários. Esses Sovietes deverão trabalhar em estreita colaboração com as repúblicas sovietistas dos países capitalistas avançados para chegar à vitória final sobre o capitalismo no mundo inteiro. (RESOLUÇÃO..., 1920, s.p.). Em resumo, como consequência da interpretação revolucionária leninista do fenômeno imperialista, a IC aprovava em sua resolução que o problema nacional não deveria ser tratado a partir de uma igualdade formal apenas, como ocorre na legislação burguesa. O modelo de unificação soviética seria a forma federativa, modelo para a relação solidária entre as nações. Como parte do sistema capitalista mundial, os trabalhadores, que conformavam as classes oprimidas pelo imperialismo nos países periféricos, não estavam formados apenas por proletários, e a Internacional Comunista deveria apoiar a luta pela emancipação nacional e em favor dos camponeses. E, como conclusão, os comunistas não poderiam sustentar um programa imediatamente socialista nesses países, mas defender a aplicação de um programa democrático, principalmente a distribuição de terras aos camponeses, assegurando que o processo fosse dirigido pelo Partido Comunista, que, com o auxílio dos proletários dos países avançados que estavam construindo o socialismo, levaria esses países coloniais e agrários em direção ao socialismo e ao avanço econômico e material. 112 Os comunistas além do movimento proletário Uma das grandes dificuldades da historiografia que tratou da Revolução Mexicana sob um ponto de vista comparativo com outros processos revolucionários no mundo esteve relacionada à dificuldade em se encontrar o sentido, a ideologia política que havia guiado a luta revolucionária. Não faltaram as comparações com a Revolução Russa e até chinesa, e ao menos até a década de 1970 muitos ressaltavam o seu caráter social, particularmente na historiografia oficial mexicana. Wommack (1992, p. 80), em uma síntese escrita para a coleção de História da América Latina organizada por Bethell165, indicou: O que aconteceu realmente foi uma luta pelo poder, no qual diferentes facções revolucionárias não contendiam unicamente contra o antigo regime e os interesses estrangeiros, senão também, frequentemente mais ainda, umas contra as outras, por questões tão profundas como classe social e tão superficiais como a inveja. (WOMMACK, 1992, p. 80). Com a implosão do Estado Porfirista e o início da luta revolucionária, a ausência de um poder central trouxe o fenômeno que marcaria o espectro político mexicano, o caudilhismo. Desde que Madero convocou a rebelião armada em 1910, houve irrupções de rebeliões contra o poder, ao menos nos 20 anos posteriores. Madero enfrentou Zapata e Orozco, depois foi assassinado por Huerta, derrotado em 1914 pelos constitucionalistas. Carranza iniciou um processo de institucionalização em 1917. Obregón se levantou contra a tentativa de Carranza impor Bonillas e enfrentou a Rebelião de De La Huerta. Brading chegou a afirmar que: Os sovietes eram a instituição decisiva da Revolução Russa, com igual justiça podemos dizer que no México a forma social essencial que predominou na Revolução foram as bandas armadas e seus caudilhos. (BRADING apud MONTALVO ORTEGA,1988, p. 2). Enrique Montalvo Ortega caracterizou 3 etapas desse caudilhismo mexicano, que relacionou diretamente ao processo de institucionalização da Revolução Mexicana. A primeira etapa se deu com o surgimento dos chefes locais marginalizados pelo porfirismo (como Zapata) e a luta entre facções lideradas por caudilhos. O governo 165 BETHELL, 1992, p. 80. v. 9. 113 Obregón (1920-1924) seria o início da segunda etapa, e se desenvolveria ao longo de uma estabilidade pouco institucionalizada, dependente dos acertos entre caudilhos e da figura de Obregón. Essa etapa foi do governo Obregón até a o Governo Calles (19241928). A terceira etapa se desenvolveria ao longo do Maximato166, com a fundação do Partido Nacional Revolucionário (PNR), em 1929, até o Governo Cárdenas, a partir de meados da década de 1930. Sob essa institucionalização da Revolução, a realidade política que o PCM atuou difere dos primeiros anos de atividade dos outros grupos comunistas do continente, como o PCB no Brasil e o grupo de Mariátegui, imersos em um sistema político oligárquico e ainda muito bloqueado à participação política das classes sociais que não formavam os pequenos grupos que controlavam o Estado. Os comunistas mexicanos, desde o início da década de 1920, já possuíam possibilidades de alianças amplas com os governos pós-revolucionários, contaram com armamento em algumas circunstâncias e conseguiram apoio entre as diversas instituições do Estado. Essa relação com os caudilhos não seria simples, e por diversas vezes os comunistas foram reprimidos, por uma ou outra facção do poder, mas o espaço de atuação política do PCM era incomparavelmente maior que o encontrado pelos comunistas no Brasil e no Peru. Esse espaço de atuação e a própria aliança estiveram diretamente relacionados com a necessidade que os caudilhos tinham em construir e ampliar a sua base social e assim tentar manter o controle do frágil Estado pós-revolucionário, chegando a fornecer armas aos camponeses das Ligas dirigidas pelos comunistas para lutar contra a ameaça de um golpe por De La Huerta, no final de 1923, por exemplo. Durante os Governos Obregón e Calles se realiza a transição do poder do caudilho às instituições. Contudo ainda existiam muitos caudilhos por aqueles anos. Os mesmos presidentes não ocultavam seus traços tipicamente caudilhescos. (MONTALVO ORTEGA, 1988, p. 3). Como forma de construir uma base social, os caudilhos não podiam ignorar os movimentos populares que se organizavam em meio à ascensão que haviam vivido 166 O termo Maximato se refere ao período compreendido entre os governos de Emilio Portes Gil (19281930), Pascual Ortis Rubio (1930-1932) e Abelardo Rodriguez (1932-1934), presidentes oficiais do México que estiveram sob a influência direta de Calles, o “Chefe Máximo da Revolução”, daí deriva o termo maximato. 114 desde o fim do porfirismo, e não tinham outro meio que negociar, apoiar e tentar cooptar. Se os caudilhos regionais e o próprio presidente precisavam buscar o movimento popular, por outro lado, as organizações que aceitavam colaborar com os governos sentiam a contradição que significava o espaço de atuação sendo ampliado e a ameaça que esse apoio institucional significava para a autonomia política e ideológica das organizações populares. Os governantes atuavam no movimento operário e camponês de forma que favorecessem as organizações mais comprometidas com os governos, isolando os movimentos mais radicais. “Por outra parte, tanto Calles como Obregón se empenharam em frear o nascimento de qualquer forma de organização autônoma”. (MONTALVO ORTEGA, 1988, p. 5). O processo de cooptação por parte do Estado pós-revolucionário deu início a um processo de coorporativização dos movimentos operário e camponês e a Central Regional Operária Mexicana seria a primeira expressão importante desse processo. Após a constituição, se deu um ano mais tarde a fundação da primeira organização operária propriamente dita e de caráter moderno e nacional: a Confederação Regional Operária Mexicana (CROM). Sua criação representou um triunfo dos dirigentes operários que decidiram aproveitar a maior debilidade da classe trabalhadora do país, ou seja, a incapacidade para transformar-se em um foco de ação política independente, com o objetivo de garantir um futuro melhor mediante a aliança com personalidades políticas. Esta estratégia, colocada em marcha em 1919 e 1920, mediante a aliança da nascente CROM com o principal representante da coalizão de caudilhos revolucionários que deram à constituição seu caráter populista. Álvaro Obregón colocou os trabalhadores na arena política, não como protagonistas de uma nova ordem social, senão como fiadores de um regime comprometido em reformar a sociedade mexicana, mas não em alterar o seu caráter capitalista. (CARR, 1976, p. 82). Com o fracasso da Casa del Obrero Mundial de inspiração anarquista, que rechaçava a participação no Estado167, surgiu a primeira central sindical que teria importância nacional, a CROM, fundada em1919. Em um artigo publicado no Jornal A 167 A Casa del Obrero Mundial manteve uma aliança com o Governo Carranza na formação de tropas de operários, conhecidos como Batallones Rojos, que foram utilizados na repressão ao movimento camponês de Morelos. Os batalhões operários estavam formados por anarquistas e sindicalistas radicais, e sua atuação foi muito controvertida na época, e seguiu sendo para a historiografia também. Existe uma relação entre o fim da Casa del Obrero Mundial com a colaboração dessa organização com o carrancismo. Ver: CARR, 1976. 115 Luz, Morones, o principal líder dessa central começou a defender uma nova perspectiva para o movimento operário, até então hegemonizado pelas táticas anarco-sindicalistas de Greve Geral e Ação Direta. (CARR, 1976, p. 87). Morones foi eleito no Congresso Operário que fundou a CROM, em Saltillo, a qual contou com a participação de anarquistas da Casa del Obrero Mundial. Mas, dois anos depois, os anarquistas se retirariam da Central, devido à nova tática que o líder da CROM passava a adotar, denominanda com o termo Ação Multipla, ao invés da Ação Direta, com um slogan que dizia “perseguir menos ideais e mais organização”. (CARR, 1976, p. 92). Essa nova orientação, mais flexível, levou a CROM rapidamente ao estabelecimento de alianças políticas com os chefes revolucionários que buscavam fortalecer a sua base social. Inicialmente, Morones tentou se aliar com Carranza, mas a posição antipopular do chefe do constitucionalismo impediu que se desenvolvesse uma relação consolidada. No final de 1918 e em 1919, a CROM passou a apoiar as várias greves que ocorriam no México. Durante as greves, a polícia prendeu diversos líderes cromistas importantes, como Celestino Garça, Samuel Yúdico, Eduardo Moneda e Ezequiel Salcedo, marcando qualquer possibilidade de acerto entre Carranza e a CROM. (CARR, 1976, p. 93). Com a proclamação do Plano de Agua Prieta168, as forças que haviam lutado contra Carranza se agruparam em torno de Obregón, e Morones pode se juntar aos que lutavam contra Carranza, dando início à primeira relação entre um governo latinoamericano e o movimento operário com expressão política entre os trabalhadores. Com base em tais alianças, Obregón inaugurou uma forma de manipulação e controle, que seria desenvolvida e refinada em todo o país pelos generais que o sucederam. Em torno de sua figura conseguiu também a unificação da maioria dos agraristas, a quem convenceu de que sua intenção era a de significativas reformas no campo. (MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 8). No governo Obregón, a partir de 1920, os membros da CROM assumem importantes cargos no governo, sendo Celestino Gasca nomeado governador do Distrito 168 O Plano de Água Prieta (abril de 1920) foi proclamado após a indicação de Ignácio Bonilla para a sucessão presidencial. Com o plano se somaram três quartos dos militares, e Adolfo de la Huerta foi designado como presidente interino, no lugar de Carranza, morto em Tlaxcalantongo, Puebla. Após as eleições presidenciais e a destituição de antigos porfiristas mantidos por Carranza nos cargos executivos, foi eleito Álvaro Obregón, no final de 1920. 116 Federal, e Morones ocupando diversos cargos no governo, como o de secretário de Indústria e Comércio no Governo Calles, cargo equivalente ao de um ministro. O crescente espírito conservador do governo Carranza, que não conseguiu colocar seus agentes na direção dos sindicatos, logo perdeu o escasso apoio que gozava no movimento operário organizado. A CROM foi obrigada a buscar apoio em outra parte recebendo uma acolhida cordial do grupo de caudilhos revolucionários nortenhos reunidos ao redor de Álvaro Obregón, Plutarco Elías Calles e Adolfo de La Huerta. Ao contrário de Carranza, da ala conservadora do constitucionalismo, estes eram experientes na manipulação de grupos populares, pois anteriormente haviam logrado com maestria obter apoio dos camponeses e operários mediante disposições agraristas e sobre o trabalho industrial. (CARR, 1976, p. 109) O PCM havia nascido junto com a institucionalização do Estado Pósrevolucionário, e em meio à polarização do movimento operário. A CROM se aliou ao obregonismo em 1920, e no ano seguinte foi fundada a Central Geral dos Trabalhadores, que aglutinaria a parte independente do movimento operário, anarquistas e comunistas, além de membros de sindicatos sem filiação ideológica definida. Ao longo desse ano de 1921, a aliança entre anarquistas e comunistas conseguiu produzir um resultado significativo, ganhando a adesão de sindicatos e grupos que se afastaram do cromismo. Em setembro, a frente na CGT seria rompida. O motivo dessa cisão seria a polêmica entre anarquistas e comunistas acerca do rumo que a Revolução Russa estava tomando. No México, o debate seria iniciado em torno da adesão da CGT à Internacional Sindical Vermelha (ISR), ligada aos comunistas. As discussões descambaram para o tema Revolução Russa e ditadura do proletariado. Com o aumento da tensão, a Revolução Russa dividia anarquistas e comunistas, provocando a retirada dos membros da juventude comunista169, que não foi seguida por nenhum sindicato. Esse foi o início da cisão entre anarquistas e comunistas no movimento operário mexicano. Diaz Ramírez, então secretário geral do PCM, retornou do II Congresso da IC alguns dias depois desse rompimento com a CGT, e tentaria refazer a unidade e reincorporar os comunistas na CGT, mantendo a filiação da Central à ISV. Ele havia 169 Nos primeiros anos do PCM, a Juventude Comunista estava organizada de forma quase autônoma ao PCM, e foi uma das bases mais importantes de ativismo comunista entre os movimentos de massas. Entre os comunistas que se destacaram na Juventude comunista, estiveram Manuel Diaz Ramírez e Valadés, sendo que esse último sairia do partido antes de 1924. 117 estado no lugar de onde se originavam as polêmicas, inclusive havia mantido contato com Lenin, e trazia as últimas novidades da Revolução Russa e dos acontecimentos que havia visto no país dos sovietes. Foi convocada uma reunião, e Diaz Ramirez, que havia viajado como representante da CGT, deu seu informe, recebido com curiosidade pelos sindicalistas. Denunciou os sindicatos social-democratas e a atitude que tomaram frente à Guerra Mundial, além da necessidade de anarquistas, comunista e sindicalistas se agruparem contra esses traidores. Logo passou à descrição da visita à Rússia bolchevique e as atividades do Congresso da ISV. (TAIBO II, 2008, p. 245) Quando chegou à parte em que trataria as posições dos anarquistas na ISV, afirmou: “era natural que se produzisse certa excitação que se traduziu em protesto por vários delegados anarquistas quando Bukharin tratou em um mesmo plano os anarquistas presos e os bandos que seguiam o bandido Makno”. (RAMIREZ apud TAIBO II, 2008, p. 245). Com esse informe, a sede da CGT se transformou em um caos, entre gritos de defesa e ataque em relação a Makno. Na outra semana, uma nova reunião foi organizada, mas a ruptura já havia se aprofundado. Nos meses seguintes, Diaz Ramirez continuou a aproveitar os detalhes de sua viagem para fazer propaganda da Revolução Russa, inclusive escrevendo e publicando artigos. Em dezembro, é constituído um comitê para reorganizar o PCM (Ibidem, p. 248 e VERDUGO, 1985, p. 51), o qual cuidaria da preparação do 1º Congresso do PCM, que se reuniria na Cidade do México entre os dias 25 e 31 de dezembro de 1921. O secretário geral do PCM trazia de Moscou a orientação para se buscar a frente única operária170. O núcleo militante do PCM, ainda muito ligado à tradição anarquista, debateria um documento escrito por José C. Valadés, denominado “Revolución Social o Mitin Político”, em que recomendava aos trabalhadores que não tomassem nenhuma posição frente às rebeliões e motins de grupos políticos mexicanos e preparassem suas forças para a Revolução Social (VERDUGO, 1985, p. 53). Diaz Ramirez chegou com a recomendação da IC para que os comunistas participassem do pleito eleitoral. E embora essa posição fosse, segundo o próprio secretário geral do PCM, uma recomendação de Lenin, o congresso se definiu pela não participação naquelas eleições. (TAIBO II, 2008, p. 254). O congresso tratou da relação entre a juventude comunista e o PCM, já que a JC 170 A evolução da política de frente única na IC será analisada no capítulo 3. 118 tinha assumido posições independentes. Essa autonomia da juventude foi vista como uma influência anarquista, que deveria ser superada. Na resolução do Congresso, a Juventude Comunista ficava subordinada ao PCM. Em relação a CGT, o Congresso apontou para a frente única com todas as organizações operárias, inclusive a CROM, pronunciando-se pela unificação e pela luta contra a direção de ambas (TAIBO II, 2008, p. 265), a frente única pela base171. Dentre as resoluções, duas interessam particularmente à narrativa das próximas páginas. Uma que tratou da questão agrária, que Taibo II (2008, p. 254) afirma seguir a “ortodoxia” comunista da época a qual indicaria uma negação do parcelamento da terra, defendendo a coletivização. Essa “ortodoxia” a que se refere Taibo II não aparece na resolução da Questão Agrária do II Congresso da IC, como veremos mais adiante, mas a resolução define uma posição que marcaria o programa agrário do PCM ao longo da década. A segunda resolução tratava da luta contra o aumento dos aluguéis, e daria nova vida ao Partido, com a luta dos inquilinos, a principal atividade do PCM no ano de 1922172. Estou de greve, não pago aluguel! O movimento dos inquilinos teve início após um protesto de prostitutas na cidade de Veracruz contra o aumento dos aluguéis, em janeiro de 1922. O estopim foi a aprovação de um imposto adicional pela prefeitura, que foi repassado aos inquilinos, dando origem a uma crescente insatisfação popular. A prefeitura de Veracruz, dirigida pelo cromista Rafael Garcia, apoiou uma reunião na Biblioteca do Povo, pretendendo dar explicações à população. A assembleia foi dirigida pela prefeitura, mas a presença de Herón Proal, que vendia o jornal El Obrero Comunista, transformaria o sentido da reunião. (TAIBO II, 2008, p. 272). Impedido de intervir, Proal falou na rua contra a tentativa de manipulação pela prefeitura das demandas dos inquilinos, convocando um ato para o Parque Juárez, na noite seguinte. O ato reuniu mais de 3 mil inquilinos pobres de Veracruz, e ficou 171 Taibo II cita nas notas da p. 258 que essa posição da Frente Única pela base antecipava o pleno do CEIC e o IV Congresso da IC em 1922. E não explica como. 172 “A resolução mais importante do Congresso, por sua oportunidade e suas consequências sociais e políticas, consistiu em empreender uma campanha nacional contra os altos aluguéis.” (VERDUGO, 1985, p. 54). 119 decidido que se fundaria um sindicato de inquilinos (que se chamaria Sindicato Revolucionário Inquilinário – SRI). Como principal bandeira, aparecia a volta dos valores dos aluguéis praticados antes de 1910. Os meses seguintes foram de inúmeros atos organizados pelos comunistas aliados aos anarquistas espanhóis que viviam na cidade portuária. Com a palavra de ordem “Estou de Greve, não pago aluguel!”, o movimento se espalhou, dirigido pelo SRI, com Proal à frente. Como método: a simples negação do pagamento do aluguel e a bandeira vermelha na porta dos cortiços173. Ampliaram-se as táticas, e além de manifestações pelas ruas da cidade de Veracruz, o movimento dos inquilinos organizou a solidariedade contra o despejo pela polícia. O movimento ganhou força, o prefeito ordenou a prisão de Proal e vários inquilinos cercaram o local onde ele se encontrava preso, ameaçando libertá-lo à força. Proal saiu na varanda e disse que, se não o encontrassem no sindicato em 20 minutos, poderiam fazer o que quisessem. Após um tempo, a multidão o resgatou e os militares não intervieram. O movimento saiu vitorioso e a luta prosseguiria. Em junho, uma parte dos proprietários começou a ceder, e o sindicato já contava com o jornal El Frente Único. A Local174 do PCM cresceu, e os comunistas contam, pela primeira vez, com a direção de um importante movimento de massas. Proal não era do PCM, mas efetivamente o PCM teve influência decisiva nos rumos do movimento. No Distrito Federal, o isolamento dos comunistas nas centrais operárias empurrou o PCM da capital na direção de seguir o exemplo da Local de Veracruz e fundar o sindicato para a organização dos inquilinos da Cidade do México. O primeiro ato marcado pelos comunistas foi reprimido pela polícia e acabou em tiroteio. No DF, o PCM contava com o apoio dos ferroviários e com sindicatos ligados à CGT, que davam visibilidade as prisões ocorridas no ato e ajudavam a repercutir a causa inquilinária. Haviam sido presos Carrillo, Valadés, Vargas e outros comunistas, sendo notícia em vários jornais capitalinos. O movimento consegue o seu primeiro impulso e o sindicato ganha seus primeiros adeptos. Foi eleito um Comitê Central de organizações das vencidades, com Diaz Ramirez175 como secretário geral. Todos os cargos de direção 173 No México, as habitações urbanas populares do início do século recebiam o nome de vencidad, que poderia ser traduzido como vizinhança. Mas o termo que melhor expressa esse tipo de habitação no português do Brasil seria cortiço. 174 O PCM utilizou o termo Local para se referir à organização regional do Partido. No Brasil, o PCB costumou usar Comitê Regional. 175 Manuel Diaz Ramirez foi secretário geral do PCM nos primeiros anos da década de 1920. 120 do sindicato foram ocupados por comunistas, e pela primeira vez o PCM conseguia hegemonia em um importante movimento de massas na capital do país. Segundo cálculos de Taibo II (2008, p. 289), 35 mil inquilinos entraram em greve. O movimento se expandiu para outras cidades, como Guadalajara, San Luis de Potosi, Ciudad Juárez, Puebla, Tampico, Aguascalientes e Monterrey. (VERDUGO, 1985, p. 55). As imagens de um pequeno grupo de militantes intervindo incansavelmente em atos de bairros, nas esquinas, nos sindicatos, nos mercados, nas praças públicas, entrando em vencidades [cortiços] e lançando sua mensagem organizativa a milhares de trabalhadores, saltam à vista. (TAIBO II, 2008, p.295). No início de junho, os donos dos cortiços começam a exigir de maneira mais contundente a repressão policial para os despejos, e os sindicatos de inquilinos reclamam a prisão de vários de seus membros. O prefeito cromista desencadeia uma repressão limitada, enquanto os sindicalistas da CROM organizam um sindicato inqulinário amarelo, para a aceitação de negociações conforme a vontade do governo e o isolamento do sindicato dirigido pelo PCM. (TAIBO II, 2008, p. 297). Figura 11 - "Pleito de Vencidad", José Guadalupe Posada Fonte: POSADA, 2012, p. 104 121 Paco Taibo II, que foi o autor que mais se dedicou ao tema, acredita que a centralização do sindicato o tornou mais frágil para conseguir seguir a luta dos inquilinos, já que não permitiu a estruturação de um setor militante médio que possibilitasse seguir expandindo a greve. Por outro lado, a oposição da CROM e da CGT aos comunistas condenaram o movimento a um certo isolamento. Por ordens de Obregón, o governo passou a defender os proprietários. Em Veracruz, um numeroso contingente do exército avançou contra uma manifestação, com coronhadas, até que fosse disparado o primeiro tiro. Os manifestantes sacaram facas e um tenente saiu ferido gravemente. A manifestação foi dissolvida por Proal, mas o exército seguiu para prendê-lo. Um tenente atingido por um golpe de faca morreu e os soldados passaram a disparar contra os manifestantes. Proal, Sosa, Mercado, Luna e outros líderes do movimento foram presos. No dia seguinte, Veracruz amanheceu com dezenas de mortos, muitas mulheres, e vários feridos com baionetas e com tiros. (TAIBO II, 2008, p. 301-302). No DF aconteceu uma dura repressão, mas, através de despejos simultâneos, a luta inquilinária passou para a defensiva. Com acordos entre inquilinos e proprietários, forçados pela ameaça de despejo e a ameaça de repressão policial, a greve se enfraqueceu e o movimento teve um refluxo na capital, embora tenha continuado em Veracruz. Na cidade portuária, os inquilinos conquistariam uma lei em benefício dos que pagavam aluguel. A CGT ratificou a cisão entre comunistas e anarquistas ao se posicionar contra a “perseguição de anarquistas” na Rússia, e não aderir à ISV. Junto com a ruptura definitiva na CGT, saem do PCM alguns militantes que sustentavam práticas anarquistas, como Valadés, Enrique Arana, Antônio Calderón, o grupo de Melchor Ocampo e Felipe Cervantes, fundando a Juventude Comunista Anárquica. (TAIBO II, 2008, p. 322). O nascimento da Ligas Camponesas e do Agrarismo Rojo No início de 1923, no mesmo lugar onde havia surgido a luta dos inquilinos, surgiria a primeira organização camponesa que os comunistas conseguiriam influenciar diretamente, a Liga de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz (LCAEV). As rebeliões rurais no México tiveram um papel fundamental para a Revolução 122 Mexicana, com o surgimento do zapatismo, e alcançou um papel central na luta revolucionária, como descrevemos nas páginas anteriores, particularmente pelo papel programático que o movimento cumpriu. Figura 12 - Desenho de Emiliano Zapata na Revista Amauta, por Diego Rivera Fonte: Amauta,, nº9, Lima: maio 1927, p.35 Diversos historiadores procuraram definir as características das facções que lutaram na Revolução Mexicana pela composição social que constituía os grupos armados176. Por esse método, encontramos um exército quase todo de origem rural, dirigido por antigos oficiais porfiristas, e por homens de origem nas camadas médias da população, excetuando figuras como Zapata e Villa, de clara origem camponesa. Esse é um critério que trata apenas da aparência da composição social. O que melhor pode exprimir o sentido de classe de um movimento não é apenas a origem social de seus líderes, ou mesmo membros, mas o programa que os grupos ou as lideranças reivindicam e realizam. 176 FLORESCANO (2009) cita os diversos autores que procuraram identificar a composição social das facções armadas, entre eles cita: Katz, I. Jacobs, Aguilar Carmin, Barry Carr, Jean Meyer, Womack, e vários outros. Ver: FLORESCANO, Enrique. El Nuevo Pasado Mexicano. México: Cal y Arena, 2009. 123 No caso do zapatismo, o programa camponês se expressava no plano de Ayala, e suas reivindicações estavam centradas na distribuição e restituição das terras aos camponeses. O zapatismo e a própria liderança de Zapata se apegaram à aplicação desse programa como condição de composição política e negociação com outros grupos revolucionários. Carranza, a fim de atrair os camponeses, criou uma comissão agrária em 1914 e em 1915 decretou uma lei agrária que pareceu bastante radical, já que prometia a distribuição de terras. Na própria constituição de 1917, o artigo 27 tratou do uso social do solo, indicando a possibilidade de distribuição de terras. Mas, na prática, o governo carrancista restituiu diversos latifúndios que haviam sido expropriados pelas forças revolucionárias e passou a uma crescente repressão, particularmente contra as forças zapatistas, massacradas nas campanhas do general Pablo González177 em Morelos. Os novos caudilhos se dividiram em duas tendências principais: uma partidária de um poder que fizesse concessões limitadas, formulasse acordos efêmeros sem merma do princípio de autoridade, e estiveram relacionados à manipulação oligárquica tradicional; e outra, partidária de concessões e acordos que precederam e seguiram à tomada do poder, e permitiram conservá-lo, aumentando-o. Ambas tendências eram partidárias do emprego da força, mas uma se inclinava à concessão e o acordo – nacionalista – com antigas burguesias mexicanas e estrangeiras, embora registrasse a necessidade de conceder alguns benefícios às massas, e a outra à concessão e o acordo prévio com as organizações populares, devidamente comprometidas e mediadas. (GONZÁLEZ CASANOVA, 1980, p. 17). Conforme nos explica Casanova, essas facções estavam polarizadas na figura de Carranza, por um lado, e Obregón, por outro. Em 1920, quando Obregón chegou à presidência, já se acumulavam 10 anos de luta dos camponeses por suas demandas, e a política antiagrarista de Carranza nos últimos anos do seu governo já dava esperanças para os fazendeiros de que poderiam restituir todas as suas terras em Morelos, onde os camponeses haviam ocupado. (MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 9). Obregón estabelece uma série de pactos com as lideranças camponesas, “em muitos casos mediante a corrupção. Seus maiores êxitos obteve com os zapatistas e com os yakis, embora também soube vincular-se com uma série de líderes menores em todo 177 A repressão ao movimento zapatista esteve dirigida diretamente por Pablo González Garça, o sanguinário general que organizou massacres contra a população de Morelos, e inclusive foi responsável pela cilada que assassinou Zapata em 1919. Pablo González era uma figura odiada pelos agraristas, e a sua presença inviabilizava qualquer possibilidade de negociação entre o governo central e os líderes camponeses de Morelos. 124 o país”. (MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 10). Além do apoio de Morones e da CROM, Obregón também havia conseguido o apoio do Partido Nacional Agrarista (PNA), que se converteria no agrarismo oficial do governo Obregón, e estava presidido por Diaz Soto y Gama, o antigo magonista que havia trabalhado estreitamente com Zapata. (DULLES, 2003, p. 90). Soto y Gama passou a compor a base do novo governo obregonista, e, com a CROM, ficou dentro dos limites institucionais, sempre tentando alcançar alguma conquista para a base do PNA. Obregón indicou que, ainda quando aceitava os princípios agrários, insistia na necessidade de atuar com grandes preocupações para não colocar em perigo o bem-estar econômico da nação. Os legisladores, disse, não deveriam começar destruindo os latifúndios com a ideia de criar depois numerosas pequenas propriedades. Antes, deveriam seguir um procedimento mais gradual e menos destruidor. Se fosse aprovada a lei, proibindo que uma pessoa possuísse mais de 50 hectares, a propriedade e o crédito agrícola seriam imediatamente destruídos, o governo perderia bastantes ingressos por impostos e poderia iniciar-se um período de muita fome. (DULLES, 2009, p. 93). Obregón não pretendia transformar o regime de propriedade no campo, mas sabia que a manutenção da estrutura latifundiária do período porfirista nutria a tensão no campo. A solução dos caudilhos sonorenses (De La Huerta, Obregón e Calles) passava pela “modernização” das técnicas178, enquanto mantinha o movimento camponês sob controle. Com bases em tais alianças, Obregón inaugurou uma forma de manipulação e controle que seria desenvolvida e refinada em todo o país pelos governos que o sucederam. Em torno de sua figura conseguiu também a unificação da maioria dos agraristas, a quem convenceu de que sua intenção era a de significativas reformas no campo. [...] A estratégia que iniciou Obregón, depois seguida por Calles, constituiu-se em permitir, quando não havia outra possibilidade, uma certa autonomia aos movimentos locais. (MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 9). Logo que assumiu a presidência, Obregón decretou uma lei agrária, a ley de ejidos de 1921, que não alcançou uma aplicação prática devido à burocracia, mas potencializou a criação de organizações agrárias que pudessem representar os 178 Montalvo Ortega fez uma boa apresentação de como Obregón imaginava superar o conflito no campo através da mecanização. Cf.: MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 7. 125 camponeses179. (DULLES, 2009, p. 96). No início de 1923, o PNA já contava com a expressiva força, e seus militantes eram parte importante do regime obregonista. (RIVERA DE CASTRO, 1976, p. 53). Entre os dias 1º e 5 de maio, realizou-se o primeiro Congresso Nacional Agrarista, na Cidade do México, do qual participariam também os comunistas. Úrsulo Galván, o líder camponês comunista O militante comunista mais conhecido pela sua atuação no movimento camponês da década de 1920 foi Úrsulo Galván. Conforme a biografia apresentada por Reynoso (2009)180, o início da atividade de Galván entre os camponeses se iniciou com a relação entre Manuel Almanza, antigo militante libertário, que trabalhava como carpinteiro no porto de Veracruz e havia ensinado o ofício ao jovem Galván. Ao longo das batalhas da Revolução, Galván lutou ao lado das tropas carrancistas, mas, ao final da segunda década do século, decepcionou-se com a política agrária de carranza, e em 1919 retornou ao porto de Veracruz, juntando-se a Almanza para organizar os petroleiros da região Huasteca. Animado pela perspectiva aberta com a Revolução Russa, Almanza e Galván formam, juntos com outros, a local do PCM em Xalapa, que depois animou a luta dos inquilinos na cidade portenha de Veracruz. Ao final de 1922 e início de 1923, Galván e Almanza conseguem apoio financeiro do Sindicato dos Inquilinos e seguem para várias localidades do interior do Estado de Veracruz, com o intuito de organizar os camponeses pobres181. 179 A lei agrária de 1921 foi questionada pelo próprio Obregón, e o ministro da agricultura, o general Villareal (antigo membro do PLM pré-revolucionário), foi substituído por Ramon P. Negri, o qual substituiu a Ley de Ejidos, pela Lei de Regularização Agrária, de 1922, que alcançou efeitos mais concretos na restituição e dotação de terras para as comunidades. Um dos latifundiários que seriam expropriados no período Obregón seria o imenso latifúndio dos Terrazas, em Chihuahua, inimigos de Francisco Villa, que haviam recuperado suas terras com Carranza. Para maiores detalhes: RIVERA DE CASTRO, p. 37. In: SEMO, Enrique (coordenador). História de la Cuestión Agraria Mexicana. Modernización, Lucha y Poder Político (1920-1930). México, Siglo XXI, 1988; DULLES, 2003, p. 9597. 180 REYNOSO, Irving. El agrarismo radical em México en la década de 1920 – Úrsulo Galván, Primo Tapia y José Guadalupe Rodríguez (una biografía política). México: INHRM, 2009. 181 O plano de Galván seguia os seguintes objetivos: “1 – Estabelecer relações de solidariedade entre os Comitês Agrários; 2 – Fundar novos Comitês nos centros de população agrícola onde existira organização camponesa; 3 – celebrar reuniões públicas nos lugares de maior congregação camponesa; 4 – Fortalecer a comissão inquilinária com o maior número de camponeses”. In: LEAFTER AGETRO, p. 114 apud RIVERA CASTRO, op. cit, p. 89. 126 Como havia ocorrido com os inquilinos, Galván e Almanza acabam direcionando os anseios dos camponeses e começaram a agrupá-los. Em meio às possibilidades de reparto de terras, os camponeses se sentiram imediatamente atraídos. A atividade dos comunistas em meio aos camponeses não passou despercebida. Forças federais do 11º batalhão (Federico Zink), a serviço dos latifundiários do Estado, prenderiam todos os membros da comissão agrarista. (REYNOSO, 2009, p. 18). O Governador interviu e deu ordem de soltura para os camponeses, abrindo-se um período de aliança entre o Governador Adalberto Tejeda e os agraristas, potencializando o trabalho de organização dos camponeses em Veracruz. Tejeda, em função da sua disputa com o Partido Cooperativista, apoiou a criação da Liga de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz, que seria fundada em 23 de março de 1923, no Congresso Agrário ocorrido nessa data. (REYNOSO, 2009, p. 20). Com a fundação da LCAEV, Úrsulo Galván foi nomeado presidente e José Cardel e Arturo Carlón, primeiro e segundo secretários, além de Isauro Acosta como tesoureiro. O Congresso decidiu que a Liga deveria lutar pelo melhoramento e a defesa mútua das populações, conquistando os benefícios de todas as leis agrárias até então existentes para o trabalhador. (RIVERA DE CASTRO, 1988, p. 90). Também definiram quais comunidades fariam parte da organização: “sobre a denominação de núcleos de população ou comunidades agrárias, ficam compreendidas todas os pueblos, rancheiras, congregaciones e grupos de população que aspirem emancipar-se da servidão a que tem estado sujeitos”. (ACTA Constitutiva da Liga de Comunidades Agrarias e Sindicatos Campesinos del Estado de Veracruz apud RIVERA CASTRO, 1988, p. 90). Com essa orientação, cresceram os comitês agrários e o número de petições por terra, fermentando um tensionamento que levaria os latifundiários a se organizarem em várias associações opostas a LCAEV. Os comunistas combatem a rebelião delahuertista de armas na mão O rápido crescimento das Ligas que se desenvolviam influenciadas pelos comunistas em outros Estados, como Michoacán, Tamalipas e Durango, impulsionava também a compreensão dos comunistas em termos políticos, ampliando e aperfeiçoando o programa que os camponeses defendiam. No final de 1923, Úrsulo Galván viajou para Moscou como representante da 127 LCAEV no Congresso Camponês, que fundaria a Internacional Camponesa (Krestintern)182. E, a partir dessa viagem de Galván a Rússia, podemos dizer que o PCM se alinhava à orientação geral da IC para a Questão Agrária. A bibliografia mexicana183 que consultamos sobre as Ligas Camponesas dos anos de 1920 parece ter dificuldades em definir qual era a posição da IC em relação à questão camponesa. Taibo II, por exemplo, chega a afirmar que a IC defendia a coletivização das terras, e identifica ao menos 3 linhas no movimento agrarista que surgiram próximas ou sob a direção do PCM. (TAIBO II, 2008, p. 360). A política agrária que Galván encontrou na sua viagem pela URSS nos últimos meses de 1923 não estava definida com muito rigor em relação à distribuição das terras aos camponeses em oposição à coletivização. O programa agrário da Internacional, que tratou pela primeira vez as táticas dos comunistas para a questão camponesa, foi definido no II Congresso da IC em 1920, e expressou o entendimento que os bolcheviques produziram ao longo do processo revolucionário russo. A tradição socialista, muito amparada na obra de Kautsky sobre a Questão Agrária184, via o camponês (o pequeno produtor rural) como uma classe em extinção, que, com o avanço do capitalismo, seria superada pela industrialização do campo. Aos camponeses, mais pobres particularmente, cabia apenas aliarem-se ao proletariado em direção ao socialismo e à coletivização dos meios de produção, e assim perecer enquanto classe, proletarizando-se, em um sistema mais justo. Os camponeses eram um vestígio do passado, que, como nos países europeus mais industrializados, estavam condenados à proletarização, mesmo sob o regime capitalista. A visão de Lenin, que combatia a perspectiva de Kautsky em relação à expansão imperialista185, passava a explicar a expansão do capitalismo europeu a partir da divisão entre países imperialistas e países coloniais e semicoloniais (dominados), o que significava também afirmar que a expansão imperialista não levava o capitalismo enquanto força de transformação revolucionária do sistema produtivo. 182 A Internacional Camponesa, ou Krestintern no acrônimo russo, foi uma organização frentista criada pelos comunistas para aglutinar as forças camponesas relacionadas aos comunistas. Os mexicanos tiveram uma importância destacada e representaram, inclusive simbolicamente, com seus sombreiros e cartucheiras. 183 TAIBO II, 1986, p. 42; VERDUGO, 1985 e PELAEZ RAMOS, La Liga Nacional Campesina. Disponível em: <www.ihblog.nuevaradio.org/b2-img/pelaez-lnc.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014. 184 KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986. 185 Ver: LENIN. Imperislimo fase superior do capitalismo. Disponível em: <http://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oe3/lenin-obras-2-3.pdf>. Acesso em 10 mar. 2014. A posição leninista acerca do imperialismo foi tratada no primeiro capítulo deste trabalho. 128 Figura 13 - Ilustração do livreto publicado para a Convenção Agrarista de Tamaulipas (1927) Diego Rivera fez a ilustração de diversos materiais de divulgação das Ligas Agraristas ligadas ao PCM. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 131 129 Figura 14 - Ilustração interna da brochura para as ligas agraristas. Como havia muito analfabetismo entre os camponeses, o material de divulgação das Ligas Agraristas que estavam sob influência comunista possuíam muitas ilustrações e pouco texto. Fonte: Rivera fez a ilustração de diversos materiais de divulgação das Ligas Agraristas ligadas ao PCM. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p.181 Lenin chocava-se com Kautsky na contraposição da tese do imperialismo como força “civilizadora”, afirmando o caráter reacionário do imperialismo, por seu caráter monopolista. Os camponeses pobres dos países periféricos, dessa forma, não eram iguais aos dos países europeus industrializados. Se na Europa industrializada a IC tentava neutralizar os camponeses que poderiam apoiar a burguesia, e identificavam os proprietários rurais da Inglaterra como burgueses e inimigos, o mesmo não poderia ser aplicado quando se tratava dos camponeses dos países coloniais e semicoloniais, que enfrentavam o feudalismo e a miséria. No II Congresso da IC, a relação entre opressão nacional e questão camponesa era direta, e por isso a resolução sobre a questão nacional e colonial precede a questão agrária. 130 A resolução da questão agrária nesse congresso explica da seguinte forma o problema camponês: Nos países capitalistas avançados, a Internacional Comunista estima que será bom e prático manter intactas as grandes propriedades agrícolas e explorá-las da mesma forma que as “propriedades sovietistas” russas. Será bom favorecer a criação de domínios administrados pelas coletividades (Comunas). Quanto ao cultivo das terras conquistadas pelo proletariado vitorioso aos grandes proprietários rurais, na Rússia elas estavam até o presente divididas entre os camponeses, isso porque o país é muito atrasado do ponto de vista econômico. Em alguns raros casos, o governo proletário russo manteve em seu poder as propriedades rurais ditas “sovietistas” que o Estado proletário explora, transformando os antigos operários assalariados em “delegados de trabalho” ou em membros de sovietes. (Resolução sobre a Questão agrária, II Congresso da IC, 1920). Ou seja, para os países capitalistas avançados, se procederia igualmente a forma com que se tratou a grande propriedade industrial e rural na Rússia. Imediato controle das fábricas pelo Estado. Coletivização dos meios de produção. Mas onde o regime de produção não é capitalista e existem relações de trabalho servis, a terra deveria ser distribuída aos camponeses pobres ou sem-terra. Onde ainda subsistem vestígios do sistema feudal, onde os privilégios dos proprietários rurais engendram formas especiais de exploração, onde se vê ainda a “servidão” e a “parceria”, é necessário entregar aos camponeses uma parte do solo dos grandes domínios. Nos países onde os grandes domínios são em número insignificante, onde um grande número de pequenos prepostos manda nas terras, a distribuição dos grandes domínios em lotes pode ser um meio para ganhar os camponeses para a revolução, quando a conservação de alguns grandes domínios não for de nenhum interesse para as cidades, do ponto de vista do abastecimento. (Resolução sobre a Questão agrária, II Congresso da IC, 1920). Como fica claro, a IC recomendava a coletivização onde o capitalismo já havia expropriado os camponeses e construído grandes domínios capitalistas. Mas, por outro lado, em países onde havia feudalismo, ou mesmo um numeroso contingente de pequenos camponeses, a IC se preocupava com o problema das alianças, e, nessa perspectiva, o sentido prático de Lenin durante a Revolução assumiu o programa de distribuição de terras dos populistas russos186, a fim de garantir o seu apoio ao poder 186 Os populistas russos, também conhecidos como narodinikis, foram um movimento político importante que atuou em meio aos camponeses russos no final do século XIX. Defendiam um programa de luta 131 bolchevique e consolidar a aliança operária e camponesa. A experiência da Revolução Bolchevique estava expressa no trecho da resolução citada acima, e não definia uma posição pela coletivização ou não das propriedades. Quando Galván chega à URSS, os debates acerca da questão agrária haviam se desenvolvido mais, e no último congresso da IC antes de 1923, o IV Congresso, aprofundava ainda mais a importância da mobilização dos camponeses nos “países atrasados do oriente”, região que servia como referência para se entender a América Latina. O imperialismo, cujo ponto vital está em receber maiores benefícios ao menor custo, nos países atrasados, se apoia em maior grau nas formas feudais e usurárias de exploração da mão de obra. Em alguns países, como por exemplo, a Índia, se atribui ao monopólio, pertencente ao Estado feudal nativo, o desfrute das terras e transforma o imposto da terra em tributo que deve ser adicionado ao capital metropolitano e a seus funcionários, os zemindari e talukdars. Nos outros países, o imperialista se apropria da renda do solo servindo-se da organização autóctone da grande propriedade da terra (Pérsia, Marrocos, Egito, etc.). Vai daí que a luta pela supressão das barreiras e dos tributos feudais ainda existentes revestem o caráter de luta de emancipação nacional contra o imperialismo e a grande propriedade fundiária feudal. Pode-se tomar como exemplo a revolta dos moplas contra os proprietários funcionários e os ingleses, no outono de 1921, na Índia, e a revolta dos sikhs, em 1922. Só uma revolução agrária cujo objetivo seja a expropriação da grande propriedade feudal é capaz de sublevar a multidões camponesas e ter uma influência decisiva na luta contra o imperialismo. Os nacionalistas burgueses temem as bandeiras agrárias e as reprimem na medida de suas possibilidades (Índia, Pérsia, Egito), o que prova o estreito vínculo que existe entre a burguesia nativa e a grande propriedade fundiária feudal e feudo-burguesa. [...] O movimento revolucionário nos países atrasados do Oriente só pode ser coroado de êxito se basear-se na ação das multidões camponesas. Por isso os partidos revolucionários de todos países do Oriente devem traçar claramente seu programa agrário e exigir a supressão total do feudalismo e de seus abusos que acham sua expressão na grande propriedade fundiária e na coleta do imposto fundiário. [para] os fins de uma ativa participação das massas camponesas na luta pela libertação nacional, é indispensável anunciar uma modificação radical do sistema de usufruto do solo. Também é indispensável forçar os partidos burgueses nacionalistas a adotar a maior parte possível desse programa agrário revolucionário. (“Questão Agrária”. In: Resoluções do IV Congresso da IC, 1922) contra o latifúndio e o Tzarismo, em defesa da distribuição das terras, mas também valorizando a propriedade comunal tradicional, mir. A tradição dos populistas influenciaria os movimentos do início do século na Rússia, em particular em relação aos temas agrários. 132 Um aspecto do programa agrário da IC era particularmente importante para os mexicanos, o ponto 9: As classes dominantes tratam de sufocar o caráter revolucionário do movimento dos camponeses mediante reformas agrárias burguesas e repartições de terras entre os elementos dirigentes da classe camponesa. Desse modo tem conseguido provocar um refluxo temporário do movimento revolucionário do campo. Mas toda reforma agrária burguesa esbarra nas limitações do capitalismo. A terra é dada somente em forma de subsídio e a pessoas que já estão de posse dos meios de produção. Uma reforma agrária burguesa não tem nada a oferecer aos proletários ou semiproletários. As condições extremamente severas impostas aos camponeses que recebem terras por meio da reforma agrária burguesa e que em consequência não tem como resultado uma melhoria de sua situação mas, pelo contrário, os condena a escravidão do endividamento, leva apenas a um recrudescimento do movimento revolucionário e a um aprofundamento do antagonismo existente entre pequenos e médios sitiantes, assim como entre os trabalhadores agrícolas que não recebem terras e perdem a oportunidade de trabalhar no cerne da divisão das grandes propriedades. (PROGRAMA DE AÇÃO AGRÁRIA: Sugestões para a aplicação das teses do Segundo Congresso sobre a Questão Agrária. In: Resoluções do IV Congresso da IC, 1922). E, reafirmando as teses do II Congresso da IC, a tese relaciona a necessidade da revolução proletária como a única solução para os camponeses pobres. Só uma revolução proletária poderá produzir a libertação definitiva das classes trabalhadoras do campo. A revolução confiscará sem indenização a terra dos grandes latifundiários bem como todas as suas instalações, mas deixará intacta as terras cultivadas pelos camponeses, libertará estes de todos os tributos, arrendamentos, hipotecas, restrições feudais que pesam sobre eles e apoiará por todos os meios as camadas inferiores da classe camponesa. (Ibidem, s.p.). Enfim, para a Internacional, os camponeses mais pobres eram aliados naturais do proletariado, e precisavam de organização comunista, que os ajudaria a formar sindicatos e cooperativas, para o caso de proletários e semiproletários rurais. No caso dos camponeses que nos países agrários lutavam contra o domínio do latifúndio e almejavam terras, os comunistas deveriam apoiar a luta contra o latifúndio e a distribuição de terras, se esse fosse o desejo dos camponeses. Os camponeses que cultivam a terra decidirão por si mesmos a forma de exploração das terras confiscadas dos latifundiários. As teses do 2º Congresso declaram o seguinte: 133 Nos países capitalistas mais desenvolvidos, a Internacional Comunista considera que é melhor manter o máximo possível as grandes explorações agrárias e formá-las de acordo com o modelo dos sovietistas na Rússia. Também deverá apoiar a gestão da exploração coletiva (cooperativas agrárias, comunidades agrícolas). A manutenção das grandes plantações protege os interesses dos setores revolucionários da população camponesa, dos trabalhadores rurais e dos pequenos proprietários semiproletários que veem-se obrigados a ganhar a vida trabalhado uma parte de seu tempo nas grandes plantações. Além do mais, a nacionalização das grandes plantações converte para a população urbana, mesmo que parcialmente no problema do abastecimento, independentemente dos camponeses. Onde ainda existam resquícios de feudalismo, servidão ou o sistema de parceria, pode ser necessário, em determinadas circunstâncias, devolver aos camponeses parte da terra das grandes propriedades. Nos países em que as grandes plantações só desempenham um papel relativamente pequeno e onde, pelo contrário, existe uma grande quantidade de pequenos proprietários camponeses que desejam conservar a terra, a distribuição da terra das grandes propriedades é o melhor meio de conquistar os camponeses para a revolução, enquanto que a manutenção das grandes plantações não tem uma importância primordial para o abastecimento das cidades. (PROGRAMA DE AÇÃO AGRÁRIA: Sugestões para a aplicação das teses do Segundo Congresso sobre a Questão Agrária. In: RESOLUÇÕES do IV Congresso da IC, 1922, grifos nossos). Galván retorna da URSS com a palavra de ordem “Camponeses de todo o mundo, uní-vos!”, animado pela construção da Internacional Camponesa. A posição de Galván e da LCAEV não era a mais radical, já que contava com o apoio do governador Tejeda, e fazia um esforço por garantir as terras a partir de disputas legais. 134 Figura 15 - Aliança operária e camponesa, desenho de Rivera (1924) Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 63 É importante compreender que, nesse período, o governo Obregón não se colocava contra a distribuição de terras, nem contra a restituição, mas, ao contrário, defendia inclusive a existência de terras comunais. (DULLES, 2008, p.96-97)187, 188. Além de não haver um programa divergente entre comunistas e o obregonismo, ao menos em relação aos discursos, sobre Ejido e parcelamento, o IV Congresso da IC colocou ênfase na busca por uma frente única contra o crescimento da reação. Em 1922, Mussolini já havia “Marchado sobre Roma”, e os comunistas perdiam a iniciativa em diversos países. O IV Congresso da IC avaliava que os comunistas já haviam se diferenciado do reformismo o suficiente para que pudessem atuar em uma frente com a social-democracia sem diluir a posição comunista em seu meio. E essa política de frente única se estendia a possibilidades de colaboração com governos burgueses reformistas, como seria o caso do Governo Tejeda em Veracruz, e o de Obregón, em parte. O PCM, ao longo da década de 1920, não havia mantido ilusões sobre o caráter burguês do Governo Obregón, ou o de Calles. Até 1923, prevaleceu a posição que avaliava as contradições entre caudilhos como disputas entre facções burguesas que não 187 Dulles (2008) cita discursos de Obregón que reconhecem os Ejidos como estrutura fundamental da produção camponesa mexicana. 188 Spencer (2004) cita diversos trechos em que membros do governo mexicano se diziam bolcheviques, como Calles, por exemplo. Na tradição política pós-revolucionária mexicana, diferente do Brasil, foi comum ouvir de lideranças governamentais que praticavam uma política capitalista e conservadora se afirmarem como “de esquerda”, socialistas etc. 135 interessavam ao proletariado. As revoluções que transtornam periodicamente o Méxio, a Venezuela e outros países não dizem respeito diretamente às massas. Mas devem ser aproveitadas para desenvolver eficazmente o movimento das massas revolucionárias, que exprime os interesses do proletariado e do campesinato pobre. Só um movimento revolucionário deste tipo pode libertar os povos da América do Sul da opressão dos exploradores nacionais e do imperialismo americano. O socialismo [nessa época o termo era utilizado como sinônimo de social-democracia] não fez nada para desenvolver este movimento revolucionário das massas. Na América do Sul, o socialismo traiu escandalosamente os interesses das massas, não passa de uma miserável combinação ou – como no México – de um esporte semimilitar, semirrevolucionário, ao qual se dedicam alguns aventureiros (por acaso Obregón e seus sequazes também não são “socialistas”?). Desacreditar esse socialismo, aniquilar sua influência, fortalecer os elementos socialistas revolucionários com o comunismo: esta é a tarefa revolucionária urgente e essencial189. A partir do IV Congresso, a IC passou a orientar a formação de alianças. Com a Rebelião de De La Huerta, apareceu para o PCM a oportunidade de consolidação da aliança com o obregonismo em uma posição mais vantajosa para os comunistas, já que o governo se encontrava ameaçado. O general De La Huerta, que havia assumido interinamente a presidência após o Plano de Agua Prieta (1920), almejava suceder Obregón. Calles foi indicado como sucessor pelo próprio mandatário, e assim impedia o acesso de De La Huerta à presidência. O general liderou um levante contra o presidente. Em torno dele, foi se agrupando descontentes com Obregón, sem que necessariamente se pudesse definir uma clara posição ideológica que diferenciasse obregonistas e delahuertistas, embora fosse possível encontrar forças mais ligadas ao latifúndio e às classes conservadoras entre os que apoiavam a rebelião. Em Veracruz, Guadalupe Sanchez, chefe de operações militares do Estado e principal aliado dos fazendeiros, se colocou ao lado de De La Huerta. Adalberto Tejeda ficou ao lado de Obregón e o PCM se declarou a favor do governo. (REYNOSO, 2009, p. 24). Os delahuertistas tomaram as principais cidades de Veracruz, enquanto os guardas brancos dos fazendeiros investiram contra os camponeses das Ligas. As “Sobre la revolución en América latina. Llamamento a la clase obrera de las dos Americas” In:. L’Internacionale Communiste, n. 15, Moscou: jan. 1921, p. 3.311-14, 3321-24 apud LÖWY, 2006, p. 78. 189 136 lideranças ligadas ao PCM, Cardel, Caracas, Rodriguez Clara e o dirigente da CGT, José Fernandez Oca, foram assassinados. (Ibidem, p. 24). Quando ainda estava em Havana, em uma parada anterior ao Porto de Veracruz, Galván ficou sabendo da rebelião delahuertista, conseguiu armas e retornou por um barco alemão ao Porto. Chegando a Veracruz, nomeou-se Comandante-em-chefe, criou esquadrões guerrilheiros e organizou os camponeses armados em vários pontos do Estado de Veracruz. Ao final de janeiro, após alguns combates entre membros das Ligas e as forças delahuertistas, os rebeldes foram derrotados nacionalmente, e se organizou um batalhão a partir das forças camponesas, o Batalhão 86. Galván recebeu o posto de tenente-coronel e Antonio Carlón, o de capitão. (Ibidem, p.25). Irving Reynoso, em seu estudo sobre os Agraristas Rojos, cita diversos relatos acerca da força real das guerrilhas camponesas, desde 50 mil a 18 mil homens, até o número de 200 combatentes em armas. (Ibidem, p.25) Por se tratar de forças irregulares, pode-se considerar que o significado defensivo do armamento camponês é difícil de mensurar pela simples contagem do número de combatentes. A presença de camponeses armados em vários locais, mesmo que não houvesse travado batalha, possuía significado militar defensivo. Para os comunistas, a atividade das Ligas, dirigidas por Galván (membro da direção do PCM), ampliava o prestígio do Partido, consolidava a sua direção, e principalmente consolidava a aliança com o obregonismo, em uma espécie de dívida, já que o PCM havia lutado contra a ameaça delahuertista de armas na mão. Além da efetiva participação das guerrilhas agraristas de Galván na derrota da Rebelião, o certo é que as consequências deste feito tiveram repercussões muito importantes para o desenvolvimento posterior da Liga de Comunidades Agrarias de Veracruz. De fato, logo após a derrota do delahuertismo, os membros da Liga souberam explorar seu capital político para a construção de uma organização militante e coesa. A LCAEV havia se convertido em uma força militar, e a consequência direta deste fato foi a radicalização de sua ideologia, como ficou expresso no seu segundo Congresso. (REYNOSO, 2009, p. 26). Nesse Segundo Congresso Agrarista de Veracruz, do qual nos fala Reynoso, acordaram-se as principais posições que norteariam a linha agrária do PCM e garantiria a característica autonomia política que marcou a política agrária dos zapatistas até a morte de Emiliano, em 1919. Os Agraristas Rojos, como seriam conhecidos os líderes comunistas das Ligas camponesas, seriam continuadores da luta pela aplicação do 137 programa agrário, frente ao agrarismo oficial, representado pelo PNA, e o agrarismo tradicionalista, conhecido também como movimento cristero, que se opôs aos caudilhos sonorenses190. Plutarco Elias Calles (1924-1928), diferente de Obregón, via na indústria a solução de modernização para o México. O parcelamento da terra, em meio a um movimento camponês armado e organizado, foi a forma com que o presidente pretendeu cooptar e dividir os camponeses, já que oferecia terras. Assim enfraquecia a unidade das ligas, ao mesmo tempo que mantinha possibilidades, através de indenizações aos latifundiários, de não romper as alianças com os caudilhos regionais, que em muitos casos possuíam terras. A distribuição de terras foi feita, nesse contexto, onde a luta pela terra havia sido mais intensa. Rivera Castro (1988, p. 95) cita, por exemplo, o caso de Morelos, onde se entregariam mais de 120 mil hectares; e ao menos 80% das famílias tinham terra própria, “do total de 75% das terras lavráveis”. (RIVERA CASTRO, 1976, p. 97). O PCM havia percebido que a distribuição de terras individuais servia para enfraquecer as organizações camponesas, e passou a defender a propriedade coletiva da terra. Junto à defesa da propriedade coletiva, o PCM passou a incorporar a reivindicação de infraestrutura e investimento, além da manutenção das armas nas mãos dos camponeses, que haviam permanecidos armados desde a rebelião delahuertista. Podemos resumir que o programa agrário do PCM, entre os anos de 1924 e 1928, resumia-se em defender a propriedade coletiva da terra e combater o simples parcelamento com indenização para o latifundiário. Além de exigir recursos do Estado para investimentos de infraestrutura, crédito rural e a manutenção do armamento camponês, para que assim pudessem resistir às investidas das guardas brancas dos latifundiários. Durante o V Congresso da IC, em 1924, o delegado mexicano, Bertran Wolfe, havia apresentado um discurso que seria publicado no jornal do PCM, El Machete, de 4 de setembro, com o título “Nosso problema Agrário”, em que apresentava uma cronologia da questão agrária no México, e resumia ao final: 190 O Movimento cristero se opôs de armas na mão ao governo Calles, entre os anos de 1926-1928, e foi tratado como um movimento reacionário e fanático. Rivera Castro chama a atenção para a existência de demandas de terra que não estavam sendo solucionadas pelos governos Obregón e Calles, que ajudariam a marcar os cristeros com o selo do atraso religioso para encobrir a insolvência de suas políticas agrárias. (RIVERA CASTRO, 1988). Reynoso (2009) afirma que os governos manipularam as diferenças entre cristeros e comunistas, estimulando uma oposição. 138 Frente ao problema de um governo que reparte terras em pequenas parcelas, sem proporcionar implementos necessários, sem água e créditos suficientes, estamos desenvolvendo um programa baseado em um estudo das coisas concretas que os camponeses necessitam, e as quais ainda não estejam satisfeitos e baseado também no método de oposição desde baixo: Tomar as terras ao invés de recebê-las; tomar em maior extensão e em melhor qualidade; e que todos os camponeses mantenham suas armas. (EL MACHETE, nº 12, 13/03/1924). Faltava ainda a organização de uma Liga em escala nacional, de forma que se pudesse organizar os camponeses em todo o país, e influenciar outras ligas que não contavam com a direção comunista. Outras duas Ligas estaduais seriam importantes no campo do agrarismo autônomo191: a de Durango e a de Michoacán, que teriam como líderes José Guadalupe Rodriguez Favela, e Primo Tapia, respectivamente. *** Primo Tapia, como vários mexicanos michoacanos, foi buscar emprego nos EUA, trabalhando em plantações de açúcar, na mineração, ferrovias, entre outras atividades. Em meio aos trabalhadores, e em contato com a comunidade mexicana na Califórnia, conheceu Ricardo Flores Magón e o anarquismo. (REYNOSO, 2009, p. 80; RIVERA CASTRO, 1988, p. 79). Em Nebraska, EUA, após vários anos no país, Tapia ajudaria a fundar um sindicato que convocou um movimento grevista em 1920. A greve não alcançou os objetivos esperados e o jovem mexicano voltou para a sua cidade natal, Naranja. Nesta cidade, cheio de experiências na luta sindical ao lado dos operários anarquistas e sindicalistas dos EUA, Primo Tapia e Isaac Arriaga, um professor primário, começam a contatar os círculos radicais de Michoacán. Em 1921, ambos se filiaram ao PCM, e, com a ajuda da local do PCM, impulsionaram a luta agrarista no Estado. Como a LCAEV havia contado com o apoio do governador Tejeda, os agraristas michoacanos contaram com o apoio de Francisco Mujica na solução das demandas camponesas. O próprio Partido Socialista Michoacano, do qual o governador fazia parte, 191 Reynoso defende que o agrarismo influenciado pelos comunistas teve como característica a defesa da autonomia política frente aos governos, e por isso seria a corrente que melhor teria seguido em frente com as propostas e programas agrários do zapatismo. (REYNOSO, 2009). 139 tinha em seu programa a dotação dos Ejidos, o fracionamento da grande propriedade, por expropriação e a reorganização da comissão local agrária com o objetivo de torná-la mais eficiente na tramitação da terra para o povo; o trâmite gratuito para as petições indígenas e a criação de escolas agrícolas. (RIVERA CASTRO, 1988, p. 78). Devido a uma série de intrigas e da pressão dos fazendeiros locais, Mujica foi substituído por Sidronio Sanchez Piñeda, que não proporcionou o mesmo apoio aos agraristas. Tapia, por meio da federação de sindicatos operários e camponeses, convocou um congresso dos comitês agrários, formando a Liga de Comunidades e Sindicatos Agraristas do Estado de Michoacán, que se mantinha independente da estrutura estatal após o afastamento de Mujica. Essa forma de organização agrarista dirigida por Primo Tapia, independente dos comitês agrários oficiais, serviu como um modelo de organização utilizado por Galván ao formar a LCAEV. (REYNOSO, 2009, p. 84). Após a conquista de vários hectares de terras para os camponeses e o estabelecimento de relações com Galván, o movimento camponês michoacano se fortaleceu, apontando para a criação de uma Liga que unificasse nacionalmente o movimento camponês. No final de 1925, Tapia aumentou sua oposição com o governo Calles, acusando-o pelas agressões aos camponeses da Liga de Michoacán. Isso fez do líder agrarista um inimigo do governo callista. Em abril de 1926, Tapia seria detido em Naranja192, e, por ordens diretas de Calles, seria assassinado por soldados, que o torturaram e o mutilaram com baionetas. O jornal do PCM denunciou a morte de Primo Tapia e publicou um telegrama de Calles decidindo a sorte do agrarista michoacano193. Pouco mais de um mês depois do assassinato, em julho de 1926, era organizada a Primeira Conferência Nacional Camponesa, que se posicionou pela defesa do ejido, contra a propriedade privada (REYNOSO, 2009, p.31), e marcou a convocatória para o Congresso de Unificação camponesa, que seria realizado entre os dias 15 e 20 de novembro de 1926, com a participação de 158 delegados, representando mais de 310 mil camponeses. (TAIBO II, 2008, p. 502). 192 193 Hoje a cidade chama-se Naranja de Tapia em homenagem ao líder agrarista. “Asasinato de Primo Tapia” e “Quién dió la Orden?”. El Machete, México: 3 jun. 1926, p. 2. 140 Figura 16: Primo Tapia e Úrsulo Galván em 1924 Fonte: CASTELLANOS GUERRERO e LÓPEZ RIVAS, 1991 apud REYNOSO, 2009, p.87 Com o congresso foi fundada a Liga Nacional Camponesa (LNC), que teve como presidente Úrsulo Galván; Manuel P. Montes, como secretário; e José Guadalupe Rofriguez Favela, como tesoureiro. Esse último seria assassinado por ordens do Governo Emilio Portes Gil, e se tornaria um dos mais importantes mártires camponeses comunistas mexicanos, recebendo protestos em vários países, inclusive no Brasil, onde foi organizado um ato em frente ao consulado mexicano, acusando o governo Portes Gil de fascista. Em A Classe Operária de 20 de julho de 1929194, apareceu a foto de Calles, com a legenda “O traidor Calles, assassino de Guadalupe Rodríguez”, e 15 dias antes, no número 63, apareceu na 1º página uma notícia com o título “Também no México aumenta a reação. O Partido Comunista foi declarado ilegal, tendo sido fuzilado e deportado seus leaders” e “El Machete foi fechado pelo governo ‘trabalhista’”. Ilustrava o jornal dos comunistas brasileiros um desenho de Guadalupe Rodríguez feito por Diego Rivera195. 194 195 A Classe Operária, n. 65, Rio de Janeiro: 20 jul. 1929. A Classe Operária, n. 63, Rio de Janeiro: 7 jul. 1929. 141 Figura 17: Desenho de José Guadaalupez Rodriguez, feito por Diego Rivera, publicado na Classe Operária Fonte: A Classe Operária, n. 65, Rio de Janeiro: 20 jul. 1929. A LNC seguiu a linha da LCAEV. Entre 1926 e 1928, Úrsulo Galván, como presidente, esteve trabalhando pela sua construção. A Liga esteve, até que os comunistas rompessem com Tejeda, sob a direção do PCM, e foi, como afirmou Irving Reynoso (2009), a principal expressão do agrarismo autônomo da década de 1920. Sua capacidade de diálogo residiu em que compartia com o agrarismo oficial certas reivindicações (como a liquidação do latifúndio e o reparto da terra), contudo se diferenciava fundamentalmente deste porque não aceitava a subordinação ao Estado, pretendeu seguir com 142 um critério autônomo e, sobretudo, realizou importantes contribuições socialistas. (REYNOSO, 2009, p. 6). As Ligas Camponesas deram ao PCM a primeira importante experiência com o movimento de massas demograficamente mais importante do México, possibilitando o tratamento, sob uma perspectiva marxista, da análise da realidade social em que os comunistas começavam a atuar. Com as Ligas, os comunistas mexicanos experimentaram uma série de particularidades que marcariam a tática agrária do PCM, como a defesa do ejido em detrimento da distribuição simples da terra e a manutenção do armamento camponês como condição de autonomia política das Ligas Camponesas. A relação com os caudilhos que começavam a compor o Estado pós-revolucionário também ensinaria aos comunistas a dificuldade em se realizar alianças com a burguesia nativa, ensinamento que ficaria marcado pela clandestinidade do PCM entre os anos de 1929-1935. A partir de 1924, a política de massas entre os camponeses deu um resultado espetacular para a construção do PCM, e a atuação em outro grupo, os artistas modernistas, marcaria com símbolos do Movimento Comunista uma reinterpretação da autoimagem e da identidade nacional mexicana. 143 Figura 18 - Agraristas enforcados. Detalhe do Mural do Palácio do Governo, de Diego Rivera (1929-1930) Fonte: Fotografia do autor. 144 Figura 19 - Livro Fermín, divulgação agrarista ilustrada pelos muralistas. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162 Figura 20 - Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162 145 Figura 21 – Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162 Figura 22 – Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162 146 O PCM encontra os artistas, que descobrem um motivo: A Revolução Social Para os comunistas mexicanos que formaram o PCM, os artistas que começaram a se aproximar do PCM, e particularmente Diego Rivera, eram pequeno-burgueses, e não faziam parte do proletariado. Por outro lado, esses pintores, que aderiram ao Partido se viam como proletários. Todos os aspectos em torno das definições de classe teriam um papel central no debate artístico que permeou o movimento muralista na década de 1920. A luta de classes como instrumento de interpretação da realidade é o primeiro instrumento teórico marxista que os artistas reconheceram no Movimento Comunista. Inicialmente, o movimento buscou no que eles entendiam por “proletário” e revolucionário uma inspiração para criar a renovação artística mexicana, depois os debates se desenvolveriam para criar uma interpretação modernista nova e, ao longo da década de 1930 e 1940, cada artista somaria outras tantas características estéticas e ampliaria o sentido do muralismo. As obras do movimento muralista mexicano atualmente representam os mais importantes ícones da identidade nacional mexicana, e partes dos murais estão estampados nos mais variados materiais, desde capas de livros, passando por reproduções para o consumo turístico, até materiais oficiais do Estado mexicano. As imagens dos murais são quase unanimidade em relação à autoimagem do México e sua história. Pelas imagens reproduzidas dos murais, lê-se a Revolução Mexicana, as classes que compõem o povo mexicano, as classes dominantes, a ditadura porfirista, o maximato, a Greve de Cananeia, a história do movimento operário mexicano, suas influências ideológicas, a Conquista Espanhola, a Resistência Asteca, enfim, a identidade histórica nacional, que a cada momento alcançam um tom específico nas disputas pela sua memória e pelos significados políticos. 147 Figura 23: A imagem da comunista Frida Kahlo em um rótulo de cerveja mexicana196. Fonte: fotografia do autor Diferente de qualquer outro país latino-americano, com as exceções de Cuba e Nicarágua, o México tem como ícone de suas artes plásticas nacionais um movimento artístico com uma evidente e intensa crítica social. Nos últimos anos, vários autores de influência liberal trataram essa característica do muralismo como algo secundário, um aspecto menor, ou até uma excentricidade dos artistas da época. Esse revisionismo liberal da historiografia da arte tendeu a valorizar outros aspectos, como o indigenismo de Rivera, a busca pela inovação técnica de Siqueiros e a predileção de Orozco pelos bordéis e pelas prostitutas. O anacronismo e a interpretação alienada197 da obra dos muralistas mexicanos 196 Fonte: Fotografia do próprio autor. Cidade do México, 2010. O termo alienação tem sido utilizado na prática política dos movimentos de esquerda como uma forma de definir as pessoas que não compreendem a exploração e a opressão a que estão submetidas. Como uma dificuldade em perceber o seu lugar (de explorado e oprimido) no modo de produção capitalista. Segundo o dicionário de Bottomore, alienação é: “No sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma), e/ou à natureza na qual vivem, e /ou outros seres humanos, e – além de e através de também a si mesmos (às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade). E a alienação de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua própria essência e estrutura básica. [...] Marx concordava com a crítica de Feuerbach à alienação religiosa, mas ressaltava que esta é apenas uma entre as várias formas de alienação humana. O homem não só aliena parte de si mesmo na forma de Deus, como também aliena outros produtos de sua atividade espiritual na forma de filosofia, senso 197 148 são perceptíveis na forma com que hoje se trata não uma muralista exatamente, mas a companheira de Diego Rivera, Frida Kahlo198. Embora Frida não seja conhecida por pintar murais, esteve, junto com a fotógrafa e militante comunista Tina Modotti, estreitamente ligada ao movimento muralista, e com as organizações que o PCM dirigia, como os sindicatos, as Ligas camponesas, o Jornal do Partido El Machete e a Liga Antiimperialista da Américas. Os muralistas mexicanos não estiveram nem artisticamente, nem intelectualmente isolados da sociedade mexicana. Depois do movimento revolucionário de 1910-1920, desempenharam um papel central na vida cultural e social do país. Mais que uma revelação do eu individual, os murais expressam desde o princípio o caráter comunal da experiência nacional. (ROCHFORT, p. 7). Figura 24 – Autortrato com Stalin, 1954, Frida Kahlo Fonte: Museo Frida Kahlo. comum, arte, moral; aliena os produtos de sua atividade econômica na forma de mercadoria, do dinheiro, do capital; e aliena produtos de sua atividade social na forma do Estado, do direito, das instituições sociais”. In: BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista (edição eletrônica para Kindle). Rio de Janeiro: Zahar, 2013, s.p. 198 Frida Kahlo se transformou em um ícone de algo tão avesso ao que realmente fez e pintou que há pouco tempo nada menos que a “rainha do pop”, Madonna, afirmou que sua maior inspiração provinha de Frida Kahlo. Essa transformação pop da obra de Frida Kahlo está expressa no filme norte-americano que tratou a vida da pintora mexicana. Com uma centralidade em sua relação com Diego Rivera, o filme se desenrola sob uma perspectiva que pouco destaca a militância comunista de ambos, ressaltando casos amorosos extraconjugais e uma vida boêmia entre um grupo de intelectuais. A fotógrafa e militante comunista Tina Modotti, por exemplo, é apresentada em uma cena de tango sensual. Essa imagem, que tem o intuito de agradar o público norte-americano, explica a reivindicação de Frida Kahlo como a maior inspiração da vida de Madonna, bem como sua imagem em garrafas de cerveja, e outros produtos de consumo; ao mesmo tempo que também explica a estranheza de muitos ao terem notícia da profunda e assumida militância comunista de Frida. 149 Figura 25 - Pesadilla de Guerra y sueño de paz, Diego Rivera (1952)199 Fonte: RIVERA, 2007, p. 323. 199 Rivera se posicionou a favor de Trotsky e suas ideias, mas depois da Segunda Guerra retornaria ao PCM e faria uma autocrítica sobre o seu posicionamento em relação ao trotskismo. Esse mural demonstra o quanto foi importante para as obras de Rivera o seu posicionamento político. Neste mural vemos o retrato de Mao Tsetung e Stalin no canto superior esquerdo. 150 Figura 26 - Inovações técnicas de Siqueiros, o movimento no mural.200 Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia, México: SCDF, 2010, p. 265. *** Nossa investigação sobre o muralismo mexicano teve dois objetivos: buscar a relação da formação do Estado pós-revolucionário com o muralismo e, nesse contexto, o papel do movimento comunista para a obra pictórica mexicana ao longo dos anos 1920. Para entendermos como se deu a inserção das particularidades da América Latina para o movimento comunista latino-americano, o muralismo, tanto os debates que produziu em artigos como a própria obra artística revelam-nos fontes importantes. A linha de nossa pesquisa encontra similaridade com a interpretação que Héctor Jaime (2012)201 tem produzido acerca do muralismo. Segundo esse autor, a transcendência do muralismo reside exatamente no papel que o marxismo representou para esses artistas. O muralismo mexicano é um dos movimentos artísticos de maior transcendência na América Latina. Sua transcendência radica não apenas no grande legado de suas obras, os quais podem se considerar frutos diretos da Revolução Mexicana e agora patrimônios da humanidade, senão também na criação de uma arte pública, monumental e política sem precedentes na História da Arte. [...] Contudo, a temática do muralismo mexicano vem sendo abordadageralmente desde a perspectiva da crítica e história da arte, e, em outros casos, desde a perspectiva do cronista. Neste sentido, são escassos os estudos que se aproximam ao tema do muralismo desde o ponto de vista das ideias, ou seja, teórica ou filosoficamente. Por outro lado, recordemos que, ao se assumir posturas marxistas no começo do 200 Siqueiros foi o mais inventivo e inovador muralista. Experimentou muitos materiais e superfícies diferentes. Uma das técnicas que inventou foi a de dar a sensação de movimento ao espactador, inspirado pelo cinema. Na sequencia acima podemos ver um cavalo sob diversos ângulos, e na medida que o espectador avança, o cavalo caminha. Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia, México: SCDF, 2010, p. 265. 201 Jaime (2012) ressalta dois fatores que constituem os aspectos mais importantes do contexto que produziu o movimento muralista: a Revolução Mexicana e a influência ideológica e política da Revolução Russa. 151 movimento muralista, este rompeu ideologicamente com a Revolução mexicana e tratou de criar uma nova revolução, mas no âmbito estético. Desta maneira, o marxismo não é um aspecto menor ou superficial do muralismo mexicano, senão parte de sua essência política e filosófica. (JAIME, 2012, p. 15). O nacionalismo nas artes mexicanas não surgiu com a Revolução Mexicana, como poderia parecer para alguns, mas se transformou após a formação do Estado pósrevolucionário. É comum pensar que o espírito nacionalista que caracterizou o muralismo mexicano dos anos 20 provenha do descobrimento pelos muralistas da arte pré-colombiana e da arte popular; como consequência da revolução armada da década anterior, isto não é assim em primeira estância: resulta de um complexo processo que inclui o México dentro de uma visão e uma identidade cultural eurocêntrica da América tropical, que esboço nos próximos capítulos como uma collage de diversidades curiosamente conectados. (HERNER, 2004, p. 39). O texto de Herner faz, como ela mesma indica acima, um esboço dos diversos determinantes do nacionalismo mexicano antes de chegar ao Muralismo. Não vamos repeti-lo aqui, mas cabe uma breve revisão, a fim de demonstrar a transformação que o nacionalismo, particularmente aplicado às artes, sofreu durante a década de 1920 e assim apresentar a transformação qualitativa que representa o movimento muralista. Em um pequeno livro clássico que tratou Los Orígenes del Nacionalismo Mexicano, David Brading (2004)202 descreve, desde referências coloniais até posteriores à independência, os elementos que constituíram a identidade nacional mexicana, reivindicada claramente desde o século XIX. O precoce nacionalismo mexicano herdou grande parte do vocabulário ideológico do patriotismo criollo. Os principais temas – a exaltação do passado asteca, a difamação da Conquista, o ressentimento xenofóbico contra os guachupines e a devoção pela Guadalupana – surgiram a partir desta lenta, sutil e com frequência contraditória transformação, baseada em grande parte no repúdio às suas origens espanholas, e alimentada pela identificação com o passado indígena. [...] O poderoso atrativo político destes temas e suas repercussões populares foi o que distinguiu a ideologia insurgente mexicana do corpo mais convencional de ideias que utilizaram os movimentos libertários da América do Sul. Mais ainda, a reivindicação do indigenismo durante a revolução do presente século confirma seu perene atrativo sobre intelecto mexicano. (BRADING, 1988, p. 15). 202 BRADING, David. Los Orígenes del Nacionalismo Mexicano. México: ERA, 2004. 152 De forma bastante sintética, Brading aponta para essa particularidade do nacionalismo mexicano em relação ao resto da América hispânica, em que o regime pós-colonial e oligárquico acostumou-se em afirmar a identidade do Estado republicano em símbolos distantes, no passado indígena. O próprio símbolo da bandeira do México independente, a águia sobre uma palma (Opuntia ficus) e uma cobra em seu bico é uma direta referência ao mito originário dos mexicas. Diferentemente das outras repúblicas latino-americanas, por oposição à dominação espanhola, a invasão francesa (1862-1867) e até a guerra contra os EUA (1846-1848), o Estado pós-colonial no México teve a necessidade de construir uma identidade nacional, e assim incorporar o elemento indígena. Os próprios líderes liberais, como Juárez, possuíam claras feições indígenas, e se em outros países, como o Peru e Bolívia, o Estado oligárquico pôde prescindir da imagem do índio para construir sua identidade nacional, no México isso não foi possível. A Revolução Mexicana e os governos que seguiram depois de 1920 são comumente apresentados como uma antítese do que foi o porfirismo. Assim, nada mais natural que pensarmos que o porfirismo fosse avesso a um nacionalismo que se desenvolveu a partir da década de 1920, e assim imaginar que o nacionalismo, particularmente em relação à herança indígena, surgisse após a caída do governo de Porfírio Diaz. No ano de 1877, publicou-se os Anales del Museo Nacional, em que figuravam, entre outros temas, os estudos pré-hispânicos. Esse mesmo museu lançou um edital para se construir um monumento a Cuauhtémoc203 e criou a Inspeção Geral de Monumentos Arqueológicos da República. Durante o governo porfirista, formulou-se a lei de Monumentos Arqueológicos, impulsionando trabalhos de arqueologia e proteção dos sítios arqueológicos, além de ampliar as verbas para o Museu Nacional de Arqueologia, Etnografia e História. (HERNER, 2004, p. 49). Foi durante o último governo de Diaz que se inaugurou a restauração do complexo de Pirâmides de Teotihuacan, dando grande impulso à retomada da herança indígena nas novas interpretações que surgiriam da 203 Cuauhtémoc foi o último tlatoani mexica, que dirigiu a última importante resistência contra os espanhóis. Sua resistência tem um simbolismo especial para a memória identitária mexicana, já que significou uma derrota após um combate aguerrido. Na praça de Tlatelolco, local onde se deu essa batalha decisiva que selou a derrota dos nahuas frente os invasores, está escrito: “Em 13 de agosto de 1521, heroicamente defendida por Cuautemoc, caiu Tlatelolco em poder de Hernán Cortes.Não foi triunfo, nem derrota. Foi o doloroso nascimento de um povo mestiço que é o México de hoje”. 153 identidade nacional mexicana, e inspirando, na década seguinte, diversas reflexões sobre o componente indígena na formação do México. Junto ao discurso nacionalista que recomendava educar o povo sem fazê-lo, o que mais desejavam os administradores do porfiriato era captar o gosto e o reconhecimento do estrangeiro pelos tesouros nacionais. México “não era o povo ignorante, incapaz de se interessar pelo seu passado”; pelo contrário, o grupo dirigente havia assumido cabalmente a convicção de que a arqueologia “dá personalidade ao México no mundo científico”. O México era “depositário de tesouros arqueológicos que formam parte da história da humanidade”. Com o interesse pelo pré-colombiano se fomentaram e exploraram atrativos turísticos como Teotihuacan, Mitla e a Zona Maia. Durante o Governo de Diaz, o México foi duas vezes a sede do Congresso de Americanistas. O pavilhão da Exposição Internacional de Paris, em 1889, teve ornamentos inspirados em decorações astecas provenientes da “genuína civilização nacional”. (HERNER, 2004, p. 49). Seguindo o que nos apresenta Herner, podemos então concluir que a exaltação da nacionalidade mexicana foi também para o porfirismo uma necessidade do Estado, e não se contrapôs ao Estado oligárquico, e muito menos ao positivismo reinante entre os intelectuais do regime, conhecidos como científicos. Sem outro passado que o indígena e o colonial, ao porfirismo sobrava apenas o indígena, já que o colonial era contrário ao próprio Estado pós-independência, e o indígena, sua antítese natural. É desse Estado porfirista que surgirá o primeiro projeto de obras murais. Como acontecia com todos os artistas que pretendiam ingressar na carreira das artes plásticas, e serem reconhecidos em seu meio, Gerardo Murillo (1875-1964), um jovem pintor mexicano, teve a possibilidade de estudar na Europa, e particularmente em Paris. Nessa época, Paris era considerada o centro absoluto das artes mundiais, uma das capitais da “civilização”204, e o artista que quisesse aprender as técnicas e estilos da vanguarda artística mundial precisaria fazer constar em seu currículo ao menos algum tempo de estudo nas Academias de Artes Plásticas dessa cidade, bem como respirar por um tempo os debates nos cafés, conhecer as novidades em vernissages e passear pelas galerias que expunham as obras das mais novas correntes das artes mundiais. Não existia arte na periferia. Na virada do século surgiram diversas correntes do que ficou de forma Vasconcelos afirma em suas memórias: “E era costume da época que toda pessoa de qualidade, ao se aproximar da ‘metrópole espiritual do mundo’, se colocasse em atitude beatífica e exclamasse: ‘Paris, Paris, ao fim, Paris’”. (VASCONCELOS, José. La Tormenta, México: Trillas, 1998, p. 37). 204 154 generalizante conhecido como modernismo205, e em algumas dessas correntes começou uma valorização das artes populares, periféricas e de novos temas, como a indústria e os trabalhadores. Gerardo Murillo retorna da Europa em 1906, influenciado por ideias nacionalistas que havia encontrado na Itália, e funda um centro artístico com o objetivo de pintar paredes de prédios públicos. (HERNER, 2004, p. 50). Seu nacionalismo se estende aos motivos de sua pintura, passa a especializar-se em temas da geografia mexicana, particularmente os vulcões, e cria um nome artístico para si, Dr. Atl, que inclusive será o nome que ficará conhecido no meio artístico. Atl é o nome nahuatl para água. Dr. Atl conseguiu o patrocínio do governo porfirista, mas o início dos primeiros combates da Revolução impediriam que o primeiro intento de produzir o renascimento das artes mexicanas em uma superfície mural tivesse continuidade. Figura 27 – Barda Mural em homenagem ao Cinquentenário do Movimento Muralista Mexicano206 Fonte: POLYFORUM Siqueiros, El Legado de dos visionarios, México: Quarta Pared, 2012. O projeto do Dr. Atl precisava do patrocínio do Estado para se realizar, e foi a natureza Segundo Capelato (2005, p. 256): “Os movimentos modernistas latino-americanos dessa época foram tributários das experiências artísticas europeias que, a partir da primeira Guerra, introduziram elementos novos no campo das artes. O conflito mundial provocou uma crise de consciência entre intelectuais e artistas europeus que sentiram a necessidade de expressar suas ideias e sentimentos. Os movimentos denominados vanguarda se ampliaram e se fizeram acompanhar de uma profusão de escritos sobre a natureza da arte, sua finalidade e função social do artista”. 206 Esse mural faz parte do conjunto arquitetônico projetado por Siqueiros, com o nome Polyforum Siqueiros, na Cidade do México. A Barda Mural tem sessenta metros de comprimento por sei metros de altura, forma uma espécie de muro entre o edifício do Polyforum e a Avenida Insurgentes e a rua Filadelfia. A partir da ordem, da esquerda para a direita, estão as 5 figuras fundantes do muralismo mexicano, além do próprio Siqueiros, autor da obra, que não aparece: Diego Rivera, José Clemente orozco, josé Guadalupe Posada, Leopoldo Méndez e Gerardo Murillo, o Dr. Atl. Fonte: Fotografia do próprio autor, Cidade do México, 2013. Para maiores dados da obra, ver: POLYFORUM Siqueiros, El Legado de dos visionarios, México: Quarta Pared, 2012. 205 155 do Estado um de seus determinantes, em termos estilísticos. Embora nacionalista, reivindicando a tradição dos murais pré-hispânicos, os temas pintados relegaram aos primeiros murais indígenas uma importância menor207. Como veremos, o que daria ao muralismo sua identidade como corrente artística não estava limitado ao ato de pintar em muros. A composição das forças revolucionárias era extremamente heterogênea, sem um plano unificado, mas, para destruir a estrutura do Estado porfirista e combater as tropas federais, os revolucionários precisaram contar e conviver com tropas populares que, a partir de uma forte prédica anarquista e liberal, introduziram importantes demandas para o Estado que se institucionalizava a partir de 1917. Os camponeses armados, os operários organizados e as próprias classes médias que comandavam tropas revolucionárias não aceitariam depor as armas sem que muitas de suas reivindicações fossem atendidas. Monsivais (2011, p. 57) afirma: “Com a Revolução, e por força, a irrupção das massas amplia a órbita do simbólico (e por isso os muralistas exaltam as origens violentas do Estado)”. Assim, sob um clima de participação popular e da necessidade da elite que se conformava no Estado em negociar, aprovou-se a Constituição de 1917, em que se destacam importantes e inéditas conquistas sociais na América Latina, como os artigos 27 e 123208. Como uma reação liberal ao porfirismo, diversas reivindicações de cunho político foram acompanhadas por intentos democráticos no campo da cultura e da educação, e nesse início destacou-se o advogado maderista José Vasconcelos. Vasconcelos era um sincero liberal. Ele acreditava que através da educação se poderia transformar o México, aproximando seu país das nações “ilustradas” europeias. Vasconcelos, como muitos de sua geração, possuía uma visão liberal europeista e bastante elitista do povo mexicano. Fez parte de uma geração que possuía críticas ao imperialismo norte-americano, que nessa época já havia feito várias agressões e invasões sobre o território latino-americano. Negava o pan-americanismo para reivindicar as tradições espanholas, e, no caso de Vasconcelos, vangloriar o mestiço, la raza. Essa corrente era chamada de arielistas, em referência a obra Ariel, de Rodó209, e no México se reuniam no Ateneo da Juventude. 207 Há uma série de murais indígenas nas ruínas de Teotihuacán, além de outras ruínas. A pintura em paredes já era praticada no México muito antes da conquista, mas os primeiros murais produzidos pelos artistas vinculados ao Movimento Muralista tiveram pouca influência dessa tradição indígena. 208 Já tratamos a constituição mexicana, e esses artigos, no primeiro capítulo, p. 156 209 Ver: RODÓ, José Enrique. Ariel. Buenos Aires: Nuevo Mundo, 1967. 156 Figura 28 - Vasconcelos na Revista Amauta Fonte: Amauta, nº4, Lima: dez. 1926, p.13 Com a vitória do Plano de Agua Prieta (1920) e o governo interino de De La Huerta, Vasconcelos é convidado para ser o reitor da Universidade Nacional do México, Depois seria nomeado secretário da recém-fundada Secretaria de Educação Pública, onde começaria a realizar um entusiasmado plano educacional. O novo secretário da educação havia sido membro do Ateneo da Juventude, círculo de jovens intelectuais liberais que preconizavam uma renovação no trabalho científico e cultural mexicano e “expressavam uma modernidade entendida como registro da ciência, a abertura de vias espirituais, a insistência no conhecimento de outras culturas” (MONSIVAIS, 2011, p.32); e citando Lomabardo Toledano: A geração de 1910 refutou publicamente a base ideológica da ditadura, contra o darwinismo social e opôs o conceito do livrearbítrio, a força do sentimento de responsabilidade humana que deve presidir a conduta individual e social; contra o fetichismo da Ciência, a investigação dos “primeiros princípios”, contra a conformidade burguesa da sobrevivência dos mais adaptados, a jubilosa inconformidade cristã da vida integrada pelos miseráveis, por cultos e incultos e por soberbos e rebeldes. (TOLEDANO apud MONSIVAIS, 2011, p. 32). 157 Após a queda de Carranza, o governo interino de De la Huerta procurou ampliar a base do governo, dirimir diferenças e tratar as feridas da guerra. O general Obregón foi eleito e tomou posse em dezembro de 1920. Fez um acordo com Francisco Villa, incorporou a central sindical operária, Confederación Regional Obrera Mexicana (CROM), à estrutura estatal e buscou aliança com diversos setores da população a fim de angariar o máximo de legitimidade para o seu governo. Foi nesse contexto, da necessidade de composição e cooptação com os mais diversos setores da população, que Vasconcelos buscou estimular a atividade artística do novo México que se pretendia construir. A orientação cultural do Novo Estado se nutre, a princípio, das propostas de intelectuais e artistas que, em choque com as formas culturais características do porfirismo, buscavam uma aproximação com setores populares para que confluíssem as manifestações destes com os valores culturais humanistas [...] nos primeiros murais patrocinados pelo Estado se manifesta esta atitude humanista e populista através de José Vasconcelos. (MARICELA, 1996, p. 83-84). Conforme nos mostra Maricela, a formação do muralismo está vinculada ao contexto de institucionalização da Revolução, e às características do Estado mexicano pós-revolucionário. A utilização do termo populista, que preferimos evitar devido à sua deficiência conceitual, nos mostra o quão complexo e difícil tem sido a definição dos Estados latino-americanos a partir da década de 1920 na América Latina. E é nesse Estado complexo, inicialmente frágil institucionalmente, que precisa do caudilho para se legitimar, utilizando-se de símbolos nacionalistas e até anti-imperilistas para cooptar e conjurar as sucessivas rebeliões, que nasce o movimento muralista. Como parte do projeto de construção deste Estado pós-revolucionário, muito vinculado aos ideais positivistas, nacionalista, mas com dificuldades de negar completamente a mentalidade colonial e europeísta, e com aspirações liberais e democráticas, nascia o projeto educacional de José Vasconcelos. A primeira relação do muralismo com o Estado é seu necessário financiamento, já que pelo tamanho das obras eram necessários materiais em maiores quantidades, além de valores significativamente maiores, pois a feitura do conjunto da obra demorava meses e até anos, e, diferente de um pequeno quadro, financiado por indivíduos apreciadores da arte, a “compra de um mural” era economicamente mais difícil para um 158 indivíduo. Depois que os muralistas alcançaram fama mundial, apareceu com mais frequência a figura do “mecenas”, alguém que desejava investir dinheiro significativo em uma obra de arte mural. Seria muito difícil para os artistas sem grande fama e dinheiro conseguirem financiamento ao longo de vários anos para a realização de obras que requeriam grande gastos de material, andaimes, ajudantes, sem falar na autorização para se pintar em paredes públicas. O Estado, através de Vasconcelos, foi o primeiro e fundamental impulso para a inovação que esse grupo de artistas iria produzir, em uma relação sempre conflituosa, de alianças e unidades pouco estáveis e duradoras. A relação entre o Estado mexicano e os muralistas é peça-chave para se entender as forças que de uma forma ou de outra marcaram as obras murais210. Diego Rivera, o muralista Vasconcelos, devido ao seu trabalho à frente da Secretaria de Educação Pública, notabilizar-se-ia como o “Maestro de la Juventud”, e seu esforço em democratizar a educação no novo México seria reconhecido internacionalmente. O Ateneo havia nascido como uma tentativa da juventude intelectual liberal de tomar fôlego frente ao positivismo dos científicos que dominavam o seleto grupo de acadêmicos da República porfirista. Essa elite intelectual chegava ao início do século XX envelhecida e enrijecida com Porfírio Diaz. Mas, embora estivessem imbuídos de críticas liberais e antipositivistas, isso não afastava essa juventude de um profundo elitismo eurocêntrico frente ao povo mexicano. Vasconcelos vislumbrava “educar” o povo e assim emancipálo de seu próprio “barbarismo” e “atraso”. Além do financiamento dos murais, a Secretaria de Educação Pública tinha como objetivo levar escolas públicas para as diversas cidades mexicanas, e junto publicar os clássicos da literatura universal. Vasconcelos estabeleceu escolas, abriu bibliotecas públicas no DF e comprou impressoras nos EUA, usando-as para colocar em prática o seu antigo sonho: distribuir por toda a nação obras de Homero, Eurípedes, Platão, Dante, Goethe etc. Além disso, Siqueiros cita em suas memórias diversos conflitos entre os muralistas e o Estado. “Ao chegar Puig Casauranc à secretaria de Educação, em substituição a Vasconcelos, considerou pertinente colocar-nos, os pintores muralistas, a uma disjuntiva: ‘Se continuarem publicando se periódico El Machete, com uma linha política de ataque sistemático ao governo, que é o governo da Revolução, terei que suspender seus contratos’.” (SIQUEIROS, 1977, p. 222). Ou seja, a permissão do Estado foi algo fundamental para o muralismo nascer, e sob esta relação (Estado x artista) se desenvolveria. 210 159 comprou das editoras espanholas cópias de Dom Quixote e dicionários de espanhol para todas as escolas. (DULLES, 2003, passim). Vasconcelos não pretendia desenvolver a nacionalidade mexicana a partir da tradição popular e possuía fortes críticas ao indigenismo211. Dentre os livros que publicou e comprou pela SEP, todos tinham origem europeia, e nenhum havia sido escrito no México. E foi também nesse mesmo sentido que, ao patrocinar a renovação artística mexicana, buscou artistas que haviam estudado na Europa. Figura 29 - Almoço em que aparecem Rivera e Vasconcelos em Chapultepec (1923) Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998, p. 20. Um dos artistas convidados para pintar os muros com a história do México era Diego Rivera, que vez por outra aparecia como a notícia de “um artista mexicano em Paris” nos jornais da Cidade do México. Pintar paredes em espaços públicos não era uma ideia original de Vasconcelos e 211 Nas memórias de Vasconcelos, fica clara a relação que o antigo secretário de educação estabelecia entre violência, barbarismo e herança indígena ou azteca. “[...] o aztequismo que periodicamente renasce é o elemento de crueldade que os quatro séculos de predicação cristã-hispânica não têm conseguido destruir. O teocalli dos sacrifícios humanos é a única instituição azteca que sobrevive. Os zapatistas as traziam com o uso da metralhadora e da pistola automática. Sugerido pela maneira como o armamento moderno destroça corpos, os zapatistas haviam criado um termo símbolo de suas execuções e vinganças: ‘quebrar’ o inimigo... ‘quebra’ fulano... ‘já quebrei a Cicrano!’ Matar a tiros era quebrar, e nenhuma outra palavra teve entre o zapatismo um uso mais extenso...”. (VASCONCELOS, op. cit., p. 147). 160 muito menos de Rivera. A pintura mural já existia há muito mais tempo no próprio México. Um dos lugares que o nacionalismo emergente poderia encontrar inspiração era nos muros dos templos pré-colombianos, cheios de decoração mural, e particularmente nos murais de Teotihuacan, o complexo de pirâmides reformadas para as comemorações do centenário (1910) da independência do México, que se mantinha em efetiva evidência e interesse. Por outro lado, existiam os murais de Roma, e particularmente os murais renascentistas, muito apreciados por Rivera em sua viagem pela Itália. É a partir da contratação de Rivera e outros artistas para pintar o antigo Colégio San Ildefonso (Escola Nacional Preparatória na época) que de fato nascerá o movimento muralista mexicano. E é nesse edifício que conviverão juntos os principais expoentes do movimento muralista: os “Três grandes”, como são conhecidos José Clemente Orozo, Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. O três escreveram e publicaram suas autobiografias. Rivera escreveu sob o título de Mi arte, Mi Vida, com a colaboração de Gladys March212, Siqueiros escreveu Me Llamavan el Coronelazo213, e Orozco, Autobiografia214. Naturalmente, os autores tenderam a utilizar-se do conhecimento que tinham no momento em que escreveram suas biografias para dar significado e importância aos fatos que estavam narrando. Toda história é parcial, e representa muito do presente de quem está escrevendo. Assim, quando buscamos as influências que determinaram a obra desses muralistas em suas autobiografias e escritos, precisamos levar em consideração o período em que estão escrevendo, e suas motivações no momento, já que toda memória é seletiva, e os autores acabaram selecionando os fatos que deram maior coerência às suas trajetórias no momento em que as escreviam. Diego Rivera, o mais famoso entre os três, vincula-se a diversas influências determinantes de sua obra. Recorda-se da mulher indígena que cuidou dele, fala dos primeiros murais que rabiscou pelas paredes da casa enquanto ainda era criança, até que teve a oportunidade de estudar em San Carlos215, ainda na época porfirista, quando a arte era dominada pelo classicismo, pelo academicismo elitista e europeísta. Contudo, eu não era feliz no que fazia de arte. Quanto mais eu 212 RIVERA, Diego. Mi Arte, Mi Vida. México: Herrero, 1960. SIQUEIROS, David Alfaro. Me llamaban El Coronelazo (memórias). México: Grijalbo, 1977. 214 OROZCO, José Clemente. Autobiografia, México: SEP 1971. 215 Academia de San Carlos era a escola de artes mexicana tradicional, hoje faz parte da UNAM. Disponível em: <http://www.artesvisuales.unam.mx>. Acesso em: 27 mar 2014. 213 161 progredia nas formas acadêmicas europeias, menos eu gostava e me sentia inclinado à velha arte mexicana. Detestava em particular ter que copiar réplicas gravadas em moldes de gesso. (RIVERA, 1960, p. 34). Embora o ambiente fosse pouco propício à inovação, Rivera se recorda de alguns professores que já nessa época começavam a colocar elementos nacionais em seus trabalhos, como Felix Parra, com Episódios da Conquista (1877); e Jose Maria Velasco, que seguiu pintando índios, bosques etc. Figura 30: "Episódios da Conquista", Felix Parra, 68 x 109 cm (1877) Fonte: Museu Nacional de Artes, Cidade do México Esse primeiro estágio é apenas uma antessala para a sua viagem pela Europa, entre os anos de 1906 e 1921, onde buscou conhecer a vanguarda216 artística mundial e os mais novos experimentos. Ficou 14 anos na Europa, conheceu Picasso pessoalmente, admirou Cézanne, passou pelas obras renascentistas italianas e viveu a atmosfera artística de Paris com seus intelectuais e exilados. Rivera viu a Europa “civilizada” se autodestruir na carnificina da Primeira Citando Jorge Schwartz, Capelato afirma: “[...] a crescente politização da cultura latino-americana no final dos anos 1920, reintroduziu a discussão sobre o uso da palavra “vanguarda”, através da clássica oposição entre ‘arte pela arte’ e ‘arte engajada’, relacionando a uma controvérsia em torno do próprio estatuto da arte. Como mostra o autor, inicialmente restrito ao vocabulário militar do século XIX, o termo ‘vanguarda’ acabou adquirindo na França um sentido figurado na área política.” (CAPELATO, 2005, p. 256). 216 162 Guerra Mundial com espanto, e, como muitos outros intelectuais e artistas, voltaria para a América Latina entusiasmado com a sua própria terra, antes sinônimo de barbarismo frente à civilizadora e progressista Europa. Após a Guerra, os países da América Latina apareciam com todas as suas cores e possibilidades, vibrantes. Mas se tudo se transformava na Europa pós-guerra, particularmente a crença na Europa como modelo civilizacional, no México as transformações não eram menores e, inclusive, traziam o tema que ocuparia todos os debates no período entre guerras, a denominada, na época, Questão Social. Retomando a ideia do projeto de muralismo do Dr. Atl, somado ao projeto educativo de Vasconcelos, os primeiros murais seriam concebidos com a finalidade de ensinar a história do México que nascia da Revolução, interpretar a história nacional e aplicar as novas tendências que influenciavam os novos artistas europeus. “escrever em enormes murais públicos a história da gente iletrada que não pode lêla em livros”. (RIVERA apud MONSIVAIS, 2011, p. 96). Esse é o ponto de partida do movimento muralista, e seus primeiros intuitos podemos perceber em parte através dos primeiros murais de Orozco, Siqueiros e particularmente de Rivera, La Creación, pintado no anfiteatro Bolívar, entre princípios de 1922 e janeiro de 1923. Além de Rivera, outros pintores já estavam incumbidos pela recém-criada Secretaria de Educação Pública. Desse grupo, ainda faltava David Alfaro Siqueiros, o mais jovem entre os três grandes, que retornaria em 1922 da Europa após uma bolsa de estudos para conhecer e se aproximar da vanguarda da arte mundial, que nessa época ainda era europeia. Siqueiros, o “teórico” do muralismo Siqueiros viveu o início dos novos ares e, principalmente, o deslocamento da Europa como único referente para o mundo. Este artista tinha uma trajetória diferente de Rivera. Ao contrário dele, que havia permanecido mais de uma década na Europa, Siqueiros apenas estava de passagem, em uma Europa destruída física e moralmente pela Guerra, e antes ele mesmo havia se incorporado às tropas constitucionalistas, sob o comando do general Dieguez, combatendo em algumas importantes batalhas da Revolução Mexicana. 163 Figura 31 – Siqueiros durante o período que serviu nas forças constitucionalistas, durante a Revolução Mexicana. David Alfaro Siqueiros é o quinto, da esquerda para a direita. Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998, p.22. Logo após a caída de Porfírio Diaz e a vitória de Francisco Madero os alunos e professores da Academia de San Carlos, a principal escola de Belas Artes da época, entraram em greve. A Acadêmia ficou fechada por alguns anos e diversos jovens estudantes de arte passaram a pintar na escola de Santa Anita, onde experimentaram a pintura ao ar livre. Siqueiros se lembraria dessa experiência como a possibilidade que tiveram de romper com o academicismo ainda reinante no ensino das artes pláticas, e experimentar temas mexicanos, cores e uma outra atmosfera. Com a o Golpe de Huerta (1913), a Academia de San Carlos foi reaberta e os professores críticos ao academicismo, como o Dr. Atl, teriam um protagonismo maior. A experiência de Siqueiros como artista-soldado marcaria sua percepção política, da história mexicana e de sua atuação como militante comunista. Na Europa, enquanto aguardava o dinheiro para comprar a passagem de retorno, Siqueiros redigiu um manifesto aos artistas plásticos da América Latina, publicado em maio de 1921, em uma revista fundada por ele mesmo com o nome de Vida Americana217, administrada SIQUEIROS, David Alfaro. “3 llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana”. In: Vida Americana, revista norte centro y sudamericana de vanguardia, Barcelona, n. 1, maio 1921, p. 2-3. Disponível em: <http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/ELARCHIVO/RegistroCompleto/tabid/99/doc/801659/language/es217 164 por Ignácio L. Batiga com fundos do consulado mexicano. (HERNER, 2010, p. 81). Além de alguns artigos, Siqueiros fazia uma convocação aos jovens artistas americanos para unirem-se em busca de uma arte própria do continente americano, desenvolvendo a identidade cultural latino-americana218. Figura 32:"La Creación" de Diego Rivera, Auditório Simon Bolívar do Antíguo Colegio San Ildefonso (1923) Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998. Em suas memórias, Siqueiros relembra a expectativa com que voltou da Europa, e a decepção que teve ao encontrar os primeiros murais, particularmente La Creación219,220 de Diego Rivera, no Antigo Colégio San Ildefonso, que na época MX/Default.aspx>. Acesso em 27 mar. 2014. 218 Em 1925, Vasconcelos publicou um livro denominado La Raza Cosmica, em que teorizava uma eugenia às avessas, em que o mestiço latino-americano seria a “raça” ideal e do futuro, já que combinava características de varias raças através da mestiçagem. Ver: VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica – Misión de la Raza Iberoamericana. Madrid: Agencia Mundial de Libreria, 1925. Disponível em: <http://www.filosofia.org/aut/001/razacos.htm>. Acesso em: 27 mar. 2014. 219 Em La Creación, é possível ver no centro da obra elementos da geografia mexicana, e um leão, que ao menos simbolizava algo tropical. O centro da obra foi pintado depois que Rivera fez uma viagem com Vasconcelos pela Península de Yucatán e pelo Istmo de Tehuantepec. Nessa viagem, Rivera teria contato com os prédios públicos do Governo de Felipe Carrillo Puerto pintados de vermelho, trabalhadores sublevados contra os latifundiários da região e um governo popular que valorizava os camponeses e 165 abrigava a Escola Nacional Preparatória. Faltava-me conhecer a grande prova [...] tal era a minha impaciência, desde o momento que eu desembarquei do trem de Veracruz em que ainda mantinha uma visão comocionada pelo descobrimento plástico do México. O que havia feito Diego Rivera? O que ele havia produzido tinha que ser a materialização de nossas ideias comuns amplamente remoídas e novamente remoídas em nossas intermináveis e alucinadas conversas em Paris. [...] uma pequena caminhada que me conduziria a entrar por trás do anfiteatro e depois, a grande sala, então me pareceu enorme, com sua ornamentação colonialista talhada em pedra. Em seguida, volto a cabeça para trás e encontro o primeiro traçado do muralismo no México, meu também, mas executado com a cabeça e a pulso de Rivera. Primeira e tremenda desilusão, tal que desmantelou a minha cara. E Diego, ao notar, lançou certamente a primeira frase agressiva no que seria depois um ininterrupto debate até, inclusive, o momento de sua morte. A primeira impressão que recebi desta obra sua foi a de uma versão artificiosa, inquestionavelmente produzida por um pintor alemão bizantinista no estilo, mas com pontadas de art noveau. [...] e sobre o Mural de Orozco, disse: o que havia acontecido? Orozco havia começado a traçar uma virgem boticceliana, rodeada de anjos, todos muito loiros e, como figura central emocional um Menino Jesus certamente destinado a retratar o filhinho menor de algum alemão nórdico ou escandinavo quase lapão. (SIQUEIROS, 1977, p. 180 e 182). Esse espanto de Siqueiros, ao ver os primeiros murais em 1921, não o mobilizou para realizar algo muito diferente. O primeiro mural que pintou possuía um esforço maior por expressar a renovação artística mexicana, introduzindo temas mais indígenas e mestiços, mas não foi também expressão da revolução artística que os precursores do muralismo aspiravam criar. índios. O Partido Socialista del Sureste, do qual fazia parte Felipe Carrillo Puerto, chegou a receber um representante da IC em um de seus congressos, e era simpático aos bolcheviques. Vasconcelos registraria em suas memória o seu horror frente à postura ideológica do governo do PSS, mas Rivera retornaria decidido a marcar sua obra com as cores, a fauna, a flora e depois com os trabalhadores do México. 220 Os animais representam o tetramorfo, em que cada animal simboliza um evangelista: o leão, Marcos; o anjo, Mateus; a águia, João; o touro, Lucas. 166 Figura 33 - Alegoria de la Virgen de Guadalupe, Fermn Revueltas (1923) Primeiro mural de Fermín Revueltas, antes que se incorporasse ao Sindicato de Pintores. Muito similar em relação à temática, a técnica da encáustica utilizada por Rivera em La Creación, também de 1923. Fonte: ZURIÁN, Carla. Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p. 82. Figura 34 - Los Elementos Siqueiros (1922-23) Los Elementos foi o primeiro mural de Siqueiros, no centro Siqueiros quis representar o “anjo da Revolução. Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia, México: SCDF, 2010, p. 99 167 Vários autores atribuem aos murais da Secretaria de Educação Pública (SEP), o segundo projeto de Rivera, a partir de 1923, a inauguração do estilo, da temática e da forma do movimento muralista mexicano. O que fica evidente ao analisar o novo trabalho de Rivera na SEP é a introdução do elemento que tornaria o movimento muralista mexicano diferente dos outros movimentos artísticos modernistas que surgiram na América Latina nesse período. Esse elemento era o impacto político ideológico da Revolução Russa. Por um tempo Diego se identificou com a Revolução Russa de uma forma mais completa que nenhum outro pintor de seu tempo, e a expressou de um modo mais direto que David a Revolução Francesa. Pode-se afirmar que, de certa maneira, a Revolução Russa se converteu em seu pincel, traçando o que ele interpretou como seu significado, nos muros de duas terras muito apartadas do país onde teve sua origem. Não é o que ele tenha dado a ela, senão o que ela deu a ele, o que importa. Foi a chama que fundiu os fragmentos isolados de sua experiência e aspirações: o liberalismo de seu pai, o populismo de Posada, a rebelião estudantil na Escola de Arte, a rebelião dos boêmios em Montparnasse, a lembrança da Matança de Rio Blanco e a sangrenta semana de Barcelona, a excitação do anarquismo espanhol, o impacto do nascimento da Guerra total, no útero da civilização, a esperança de que uma revolução desse fim ao pesadelo, a ânsia de uma arte que reconquistara o direito de falar para a gente e a elevar o gosto popular até o ponto de que pudesse chegar a ser, uma vez mais, a frutífera matriz em que se incubara a grande arte. (WOLFE, 1972, p. 179). Essa influência da Revolução Russa nas artes mexicanas é tão profunda que marcou a temática e o estilo do muralismo, a ponto de sua ausência levantar a questão da impossibilidade em se classificar como muralismo mexicano uma pintura que não possua uma crítica social. O muralismo, entre outras características, deve expressar essa crítica social explícita, e esse elemento está permeado em diversos elementos que definem o movimento e suas singularidades. O movimento muralista se nutriu diretamente de duas fontes de caráter revolucionário. Por um lado se inspira no espírito da transformação político-social da Revolução Mexicana, [...] por outro lado adquiriu em seus inícios aspectos ideológicos provenientes do marxismo [...] desde a perspectiva de uma ideologia marxista, cuja a essência revolucionária consiste na eliminação das classes sociais, supressão da propriedade privada dos meios de produção, e superação da exploração e o trabalho alienado, a Revolução mexicana poderia verse como uma revolução incompleta. Daí que os muralistas tentaram radicalizar a revolução através dos murais, os quais mostrariam os 168 conflitos sociais da sociedade mexicana para gerar assim uma matriz crítica. (JAIMES, 2012, p. 23). O primeiro aspecto constitutivo do movimento muralista é, portanto, um reflexo da Revolução Mexicana e das vicissitudes da construção do Estado pós-porfirista, expressos objetivamente no esforço por se construir uma arte nacional que superasse o classicismo do século XIX e fornecesse ao novo Estado um ar de modernidade em consonância com as vanguardas europeias. Esse nacionalismo mexicano tomava grande impulso e naturalmente se dirigia para a estética modernista. Encontrar um espaço entre as diversas correntes modernistas que surgiam no início do século XX foi um debate frequente entre Rivera e Siqueiros nesses anos. Siqueiros argumenta claramente os limites que a simples transposição de temas mexicanos para as artes nacionais poderia fazer. Os pintores jovens Saturnino Herrán e Francisco de La Torre, por uma parte, e Tellez por outra parte, começaram a exercer uma poderosa influência de inclinação nacionalista em nós. [...] começaram a empregar temas exclusivamente locais, embora o faziam com um estilo particularmente germânico da época, um estilo art nouveu alemão, proveniente sobretudo da escola de Munique, e o qual podemos considerar agora como extremamente estilizado e em excesso amaneirado ou maneirista, como dizem os franceses. Uma certa sensualidade na pintura, melhor desenhada que pintada, e com uma maneira igual de reproduzir uma nuvem, uma cara ou um fruto. Pintura desprovida do sentido da matéria, que é tão fundamental na arte da pintura. E da variedade textual, que é tão fundamental na arte da pintura. (SIQUEIROS, 1977, p. 85). Figura 35 - La Catrina, as caveiras popularizadas pelo gravador José Guadalupe Posada Fonte: POSADA, 2012, p.160. 169 Figura 36 - Dia dos Mortos, Diego Rivera, Pintado na SEP (1923-4) Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998, p.22. De fato, o problema de se criar uma arte nacional incorria para eles na superação do classicismo, do estilo barroco ou do naturalismo do século XIX. Era necessário pintar o povo, suas cores e sua história. Existiam diversas formas de se incorporar a herança indígena às artes, e alguns artistas já haviam feito, mas sem que significasse uma renovação estética, uma arte nacional, limitando-se apenas em reproduzir cenas da história indígena, da herança asteca. [...] O índio, tema original da arte mexicana, se encontrava arraigado a uma epopeia do passado. Era “fonte de evocações anedóticas, puramente exteriores”. Não tinha relação com as comunidades indígenas de sobreviventes oprimidos e explorados. E mais, a mentalidade dos intelectuais das primeiras décadas do século era considerar que o defeito de ser índio desaparecia graças à magia da educação que o convertia em mestiço. A reinvindicação de uma mitologia mestiça se reconhecia em um clássico indígena, não na recuperação social, nem cultural dos indígenas de carne e osso e sua diversidade cultural. (HERNER, 2004, p. 49). Após La Creación, e mesmo no dia de sua inauguração, Rivera não estava ainda satisfeito com o seu primeiro mural. A partir dos murais da SEP, iria incorporar 170 seguidamente, até 1930, os elementos que formariam a identidade do muralismo mexicano. Para tornar inteligíveis esses elementos, destacamos aspectos relacionados à estética, à execução da obra e à motivação política. Em relação à estética, sobressaem: as figuras modernistas (as figuras gorduchas opostas às formas helenizadas do século XIX), os motivos populares e as cores; na execução das obras: o uso do macacão dos operários (no início do movimento muralista, o macacão era um adereço de afirmação ideológica, tornava os artistas mais proletários), a criação da obra artística a partir de um trabalho coletivo, a monumentalidade do mural, o pagamento por metro quadrado, a organização e o ambiente coletivo dos pintores e o papel do Estado; em relação à motivação política, destacam-se o nacionalismo anti-oligárquico, a história da Revolução mexicana a partir do protagonismo popular, a dialética alegórica, a inclusão dos elementos indígenas relacionados ao índio vivo, a crítica social, a questão agrária e a revolução popular ou socialista. Figura 37 – Orozco de macação, em cima de uma escada, uma imagem típica dos "pintores proletários" muralistas. Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998. 171 Todos esses elementos têm um profundo vínculo com a ideologia revolucionária que os comunistas defendiam, e era a necessidade de se fazer propaganda revolucionária entre o povo que fez dos murais “as artes para as massas populares”. A maioria dos muralistas, como havia acontecido com outros intelectuais marginalizados pelo Estado oligárquico latino-americano, havia vivido sem o reconhecimento dos limitados círculos que povoavam as academias, universidades e círculos artísticos. Para muitos, essa marginalização os aproximou da crítica liberal, e os mais destemidos encontraram a classe operária e o movimento radical. Esse foi o caminho de Ricardo Flores Magón, González Prada, Lima Barreto e até Euclides da Cunha. Após a Revolução Russa, a referência revolucionária migrava do anarquismo para a Revolução Russa e sua expressão política, o Partido Comunista e suas seções nacionais da Internacional Comunista. 172 Figura 38- Ilustração de Rivera na capa da revista soviética Krasnaya Niva (1928)221 Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008,p. 183. 221 Rivera esteve em 1927 na URSS e foi recebido como um grande artista mundial pelo governo bolchevique. Junto com Siqueiros e Maiakovski esteve em uma reunião com Stalin, que Siqueiros relembra em suas memórias. “No nos fue difícil hablar con Stalin. (...) Maiakovski, naturalmente, sirvió de intérprete, hablando com nosotros en perfecto francês (...) ‘Camarada Stalin: Estos compañeros mexicanos, cabezas del gran movimiento muralista mexicano, que en mi concepto constitui la mejor manifestación internacional de lo que debe ser un arte expresión del proletariado revolucionario, consideran, como yo, que el Estado soviético, la más revolucionaria manifestación del mundo, a través de su historia, en lo que se refiere al Estado, no puede seguir considerando en la práctica como su arte oficial el academismo de las escuelas gubernamentales de Bellas Artes (...) Estos camaradas pintores creen, como yo, que a la transformación revolucionaria del país en el orden de la política y de la economía, debe corresponder una revolución igualmente trascendente en el orden de la estética, pero que esta revolución no parece surgir aún em ninguna parte y en la menor proporción’ Stalin, que desde el primer momento me dio la impresión, por su físico, de un general mexicano, con sus bigotes entonces estrictamente negros, su cráneo aplastado de adelante y un poco sobresaliente de la parte de atrás, su frente más bien reducida, su actitud silenciosa, sus modales reposados, se levantó lentamente del sillón adonde se sentó inmediatamente después de nuestra entrada, encendió con lentitud su pipa, mientras se veía claramente que estaba meditando su respuesta, para después decirnos lo siguiente: ‘Es indudable que a la Revolución política del pueblo soviético deberá corresponder una equivalente revolución en el campo de la cultural., en general, y del arte, en particular. Pero, desgraciadamente, las revoluciones culturales o artísticas no se producen paralelamente a las revoluciones po!iticas. Y esto los ideólogos del marxismo, nuestra doctrina fundamental, nos lo explican hablando de la superestructura de toda sociedad. Si observamos bien lo acontecido al respecto en el mundo entero, veremos que durante un cierto tiempo, a veces durante muchos siglos, las nuevas civilizaciones continuan bebendo en orden del arte de las fuentes que han debido destruir. Tal es el caso del cristianismo.’” (SIQUEIROS, 1977, p.235) 173 A carteirinha de militante do PCM de Rivera tem o número 992, ingresso nos últimos meses de 1922 (WOLFE, 1989, p. 132), e pressupõe que 991 militantes ingressaram no PCM antes que Rivera. Esse dado não corresponde ao número de militantes do PCM na época, já que muitos haviam se desfiliado, ou mesmo podemos duvidar se o PCM utilizava a mesma contagem para cada local do partido, ou ainda, podiam utilizar uma contagem errada propositalmente, a fim de contrainformar uma possível repressão, coisa comum no movimento comunista. O fato é que 3 anos após a fundação do Partido Comunista, os artistas que ambicionavam revolucionar as artes no México entravam em bloco no Partido e logo fundariam um sindicato para organizar a sua “classe”. Desde que desembarcou de volta ao México, Rivera já havia comparecido às comemorações do 1º de Maio que os comunistas organizavam, e também nos cafés em Paris, onde havia convivido com exilados russos, já se mostrando simpático à Revolução Russa. Em 1922, a partir do contato com Rosendo Gómez, Rivera entrou para o PCM e junto com ele também Siqueiros e Xavier Guerreiro. Rosendo era um espanhol nascido nas Ilhas Canárias, que com menos de 20 anos já havia entrado para o PCM através da Juventude Comunista. Notabilizou-se na liderança da luta inquilinária na Cidade do México, sendo depois eleito para o Comitê Central do Sindicato Inquilinário. Em 1923, seria Secretário Nacional do PCM. O partido, nos primeiros anos da década de 1920, era praticamente dirigido pela Juventude Comunista. A entrada dos artistas no Partido modificou profundamente seu funcionamento, trouxe prestígio e representatividade nacional. A partir desse momento, o Partido não apenas atuava em meio aos trabalhadores proletários urbanos e jovens, mas começava a influenciar o meio intelectual mais vibrante e inovador que despontava no México. Como já expomos, podemos dizer que o primeiro documento que inaugura o muralismo é o Manifesto que Siqueiros escreve ainda na Espanha, o qual poderia ser um documento inaugural do modernismo no México, como uma proposta inovadora de mexicanidade, que pretendia ser universal e cosmopolita, exaltando Cézanne e criticando o academicismo, além de reivindicar uma maior aproximação das artes antigas americanas (maias, incas e astecas), e assim construir para uma arte genuinamente mexicana. Esse manifesto está de acordo com todo o movimento nacionalista e modernista 174 que começava a pulular pela América Latina. O segundo passo, segundo Siqueiros, foi a retomada do muralismo, abertamente relacionado com essa valorização das artes préhispânicas, já que eram bastante conhecidos os murais que haviam sido encontrados nas ruínas, e particularmente das ruínas de Teotihuacán. O salto fundamental para a criação do movimento foi a criação do Sindicato de Operários, Técnicos, Pintores e Escultores (SOTPE). O Sindicato de Operários, Técnicos, Pintores e Escultores Pois bem, para conseguirem muros, é necessário que se organizem. Por que não começam desde logo a formar uma organização? (SIQUEIROS, s.d. in JAIME, 2012, p. 17). A criação do sindicato fez parte desse entusiasmo pelo movimento operário que o contato com o PCM propiciou. Exceto Rivera e Orozco, todos os outros pintores eram bastante jovens, e logo suas aspirações por inovar tomaram a forma de um grupo, que em seus debates sairiam as principais características que marcariam o movimento muralista de 1923 em diante. Quase que instintivamente reproduziram a forma de organização mais tradicional do proletariado, o sindicato. Essa organização tinha o papel de defender os interesses dos pintores de uma forma coletiva, o que era de se esperar para uma organização sindical, mas, acima de tudo, servia para demonstrar a adesão daqueles artistas ao movimento proletário, sua filiação ideológica e suas intenções políticas. A pintura mural foi iniciada sob muito bons auspícios. Até os erros que cometeu foram úteis. Rompeu a rotina em que havia caído a pintura. Acabou com muitos preconceitos e serviu para ver os problemas sociais desde novos pontos de vista. Liquidou toda uma época de boêmia embrutecedora, de mistificação que viviam uma vida de zangões em sua “torre de marfim”, infecto tugúrio, alcoolizados, com um violão nos braços e fingindo um idealismo absurdo, mendigos de uma sociedade já muito podre e próxima de desaparecer. Os pintores e os escultores de agora seriam agora homens de ação, fortes, sãos e instruídos; dispostos a trabalhar como um bom operário, oito ou dez horas diárias. Meteram-se nas oficinas, nas universidades, nos quartéis, nas escolas, ávidos por saber e entender tudo e de ocupar o quanto antes o seu posto na criação de um mundo novo. Vestiram macacão e subiram nos andaimes. (OROZCO, 1971, p. 61). O sindicato se formou, e logo lançou um manifesto, em que expunha os 175 objetivos da organização. O Manifesto do SOTPE222 foi publicado em dezembro de 1923 e se dirigia à “raça indígena humilhada durante séculos, aos soldados convertidos em verdugo pelos pretorianos, aos operários e camponeses açoitados pela avareza dos ricos; aos intelectuais que não estejam envelhecidos pela burguesia” (SIQUEIROS et al., 1923, s.p.). Além disso, de forma entusiástica, declarava que os levantes militares de Enrique Estrada e Guadalupe Sánchez deixavam clara a situação política e social do país: “de um lado a Revolução Social mais ideologicamente organizada que nunca, e do outro lado a burguesia armada”. (Ibidem). Essa análise “clara” da situação política e social mexicana demonstra, por um lado, que os pintores dominavam pouco as teorias sociais de análise da realidade política, e, por outro, que a leitura que faziam do leninismo era ainda muito simplista e sob o prisma do sindicalismo revolucionário e do anarquismo, que mantinha, como demonstramos até aqui, a simples análise binária e dualista das sociedades periféricas: a divisão entre burgueses e proletários, sem compreender o papel das classes não proletárias no processo revolucionário. Nesse sentido, podemos também perceber que os termos utilizados no manifesto fazem parte mais da prédica liberal antioligárquica e/ou dos anarquistas que os conceitos utilizados pelo leninismo. Como veremos através da obra de Diego Rivera ao longo da década de 1920, a influência do leninismo na interpretação da história e da identidade estética mexicana se desenvolve de maneira crescente. Figura 39 - A aristocracia, de José Clemente Orozco. Fonte: ANTIGUO Colegio San Ildefonso. Conaculta, 2000 . 222 SIQUEIROS, David Alfaro et al. Manifiesto del Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores, Cidade do México, 1923. Disponível em: <http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/ELARCHIVO/RegistroCompleto/tabid/99/doc/751080/language/esMX/Default.aspx>. Acesso em: 27 mar. 1922. 176 O manifesto prossegue, após denunciar a movimentação militar, falando sobre a desaparição da velha ordem e o surgimento de uma nova, erguida pelos operários, soldados indígenas “de nossa raça como força étnica, brota [...] sua faculdade admirável e extraordinária particular de fazer beleza: a arte do povo mexicano é a manifestação espiritual maior e melhor que há no mundo. E sua tradição indígena é a melhor de todas” (Ibidem, s.p.). Depois de exaltar a raça indígena, e de onde, portanto, brota a beleza do México, explica: “e é grande porque sendo popular, é coletiva e é por isso que vosso objetivo estético fundamental radica em socializar as manifestações artísticas tendendo à desaparição absoluta do individualismo, por burguês”. Sem muita coerência teórica, o manifesto já apontava temas que seguirão sempre o movimento: a necessidade de se popularizar as artes, a inspiração nas artes populares mexicanas, relacionando a herança dos povos que viveram no território mexicano com os camponeses, índios e trabalhadores contemporâneos, e o combate ao individualismo burguês nas artes. Assim elegia o que lhes parecia o oposto ao muralismo “proletário” que pretendiam criar: a pintura “de cavalete”. Em alguns debates, a pintura de quadros pequenos “de cavelete” foi vista como uma traição ao movimento, depois esse aspecto mais relacionado à forma de se fazer a arte se esvaziou para dar lugar ao debate com mais conteúdo. Lutaremos por evitar [o governo burguês], porque sabemos que o triunfo das classes populares trará consigo um florescimento, não apenas na ordem social, senão um florescimento unânime na arte étnica, cosmogônica e historicamente transcendental na vida de nossa raça, comparável às nossas admiráveis civilizações autóctones. (MANIFESTO dos Pintores..., 1923, s/p.). Claramente os pintores estabelecem um vínculo entre estética e política, entre ideologia revolucionária e o movimento artístico que começavam a construir. O triunfo de De la Huerta, de Estrada ou de Filtres estética como socialmente seria o triunfo do gosto da mecanógrafias: A aceitação crioula e burguesa (que tudo corrompe) da música, da pintura e da literatura popular, o reino do “pitoresco”, do “kewpie” norteamericano e da implantação oficial do “l’amore e como zuchero”. O amor é como açúcar. (Ibidem, s.p.). Embora o documento expresse uma reivindicação pelo florescimento das artes a partir da tradição indígena popular, o manifesto é claro em seu posicionamento 177 ideológico, e em uma perspectiva que associa a ideologia e as interpretações da situação política com as artes, sua execução, apresentação e conteúdo. Não queremos tornar absolutas as relações entre a análise política do PCM e o muralismo, mas a obra de Diego Rivera na SEP é a melhor expressão das primeiras tentativas de se interpretar a realidade mexicana, e latino-americana, a partir da influência do marxismo-leninismo e da Revolução Russa. Do mesmo modo, os murais pintados na Universidade de Chapingopor Rivera seriam uma tentativa de expressar o programa agrário do PCM. Sabemos que as obras de arte fazem parte de uma linguagem diferente de um programa partidário, e os autores são por demais individualistas para conseguirem expressar o posicionamento partidário. Mas Rivera e outras obras murais, pela relação dos autores com o Partido, apresentam-nos aspectos do esforço interpretativo que os primeiros comunistas latino-americanos, à luz do marxismoleninismo, tentaram elaborar. Na assinatura do manifesto consta Siqueiros como Secretário Geral do Sindicato, Rivera como 1º Porta voz, e Xavier Guerrero como 2º porta-voz. Assinam também: Fermin Revueltas, José Clemente Orozco, Ramon Alva Guadarrama, German Cueto e Carlos Merida. Figura 40 - La Siembra, de Fermín Revueltas (1932) Fonte: ZURIÁN, Carla. Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p. 74. 178 Siqueiros ao longo de toda a sua vida seria o “teórico” do muralismo, e, dentre os Três Grandes, o que mais produziu em termos de debate teórico acerca das artes, do papel da ideologia e da política. Na década de 1920, seria mais atuante como dirigente sindical no PCM do que como pintor de murais. Enquanto isso, Rivera será o mais importante pintor do muralismo nessa fase, sendo a sua obra na SEP reconhecida no mundo inteiro. (WOLFE, 1989, p.146) Figura 41 – Desenho de Fermín Revueltas (1934) Fermín Revuletas (1902-1935) foi um dos precursores do muralismo mexicano, teve importantes trabalho de gravura publicados em periódicos. Morreu com apenas 34 anos de idade. Fonte: ZURIÁN, Carla. Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p.115 179 As primeiras interpretações visuais marxistas da história do México: os Murais da SEP e de Chapingo Após pintar La Creación em 1922, Rivera consegue de Vasconcelos um contrato para pintar as paredes da Secretaria de Educação Pública, na Cidade do México. Nessa obra, Rivera rompeu definitivamente com as temáticas bizantinas e a concepção que dirigiu a concepção de La Creación para definitivamente assumir unicamente a estética e os motivos mexicanos. Entre o ano de 1923 e 1930, período que recortamos nesta pesquisa, Rivera elaborou 3 importantes conjuntos murais, e inicia outro, além de colaborar com diversos desenhos e gravuras. Poucos desses trabalhos estiveram alheios à problemática social. Aliená-lo da prática política de Rivera significaria não compreender o significado e as motivações de sua obra. Figura 42 - Quetzalcóatl antimperialista A serpente emplumada (ou Quetzalcóatl) é uma importante divindade mesoamericana. Na ilustração de Rivera há uma tentativa de se aplicar diversos recursos simbólicos para um sentido político. Dois camponeses mexicanos armados com uma serpente emplumada retomam a mala de dinheiro do Tio Sam. Há também nesse desenho o recurso da oposição dialética das classes sociais (de um lado o imperialismo e de outro os camponeses e revolucionários mexicanos), recurso que depois Rivera irá desenvolver mais. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 94-95. A partir de março de 1923, Diego Rivera começou o primeiro dos seus murais na Secretaria de Educação Pública, uma série de 124 afrescos, nas paredes de três andares desse prédio, que cobrem 1.548 metros quadrados, e terminou essa obra monumental em 1929. Ao longo desses anos, o Partido Comunista Mexicano, do qual Rivera fez parte do Comitê Central, passou por diversas transformações em sua linha política, e o próprio Rivera se notabilizaria no mundo a partir dessas obras. Esses murais seriam a inauguração tão celebrada do muralismo mexicano. O 180 estilo que Rivera imprimiria a esses afrescos influenciou uma geração de muralistas, e ao longo desse trabalho Rivera aprimorou sua interpretação marxista da história e a composição de classes do México. A datação de cada mural não é simples, já que na maior parte não existe um registro na assinatura com a data. Por outro lado, mesmo nos que têm um registro de data, cada mural era composto como parte de uma obra toda, e por vezes Rivera pintava uma parte de um e logo passava para outro sem terminar o que havia começado, e logo retornava para outro que estava pintando antes. Os murais também são feitos de maneira demorada, sendo que a dinâmica da vida de Rivera também interrompia os trabalhos murais, e a própria militância impedia uma continuidade que nos possibilitasse uma datação precisa. Para estabelecer alguma lógica no desenvolvimento desta obra de Rivera, começamos datando os rascunhos dos murais. Rivera sempre fazia rascunhos (bocejos), antes de produzir os murais com grande precisão e cálculo. Os que pudemos ver não tiveram mudanças em relação aos murais, de maneira que utilizamos a data dos rascunhos como referência para organizarmos o desenvolvimento da interpretação marxista da realidade mexicana que Rivera pretendeu imprimir através de seus murais. Figura 43 - Planta do 3º andar da SEP, com a numeração dos murais. Cada número representa um mural. a superfície pintada por Rivera é impressionante: 1585,14 m². Fonte: SECRETARIA de Educación Pública. Diego Rivera: Catálogo Geral de Obra MURAL y Fotografía Personal, México: SEP e INBA, 1988. 181 Figura 44 - Rascunho para “La Cooperativa”, Diego Rivera, (1928) Fonte: RIVERA, 2007, p. 121 Figura 45 – “La Cooperativa”, Diego Rivera (1928) Fonte: RIVERA, 2007, p. 121 182 Figura 46 – “El Trabajo”, Diego Rivera, 2º andar da SEP (1924) Fonte: Fotografia do autor. Figura 47 - Mural simbolizando a aliança operária e camponesa, Diego Rivera (SEP) Fonte: fotografia do autor. 183 Nas próximas páginas, propomos alguns sentidos políticos-ideológicos para a obra de Rivera e uma correspondência com o contexto político em que Rivera atuou durante a década de 1920, basicamente em meio ao PCM. Esses murais são parte das primeiras interpretações marxistas da história latino-americana, mesmo que não exatamente como um texto, mas em murais e pinturas. Os murais da SEP e de Chapingo, por terem sido pintados ao longo dos anos em que Rivera foi formando a sua percepção marxista da história mexicana, a partir da sequência em que foi sendo produzido, podemos perceber o desenvolvimento de sua consciência política. Figura 48 – “Simbolos da Nova Ordem”, Diego Rivera, Chapingo Fonte: fotografia do autor. 184 Figura 49 – Coatlicue, deusa mexica Coatlicue é a deusa mexica da fertilidade, da vida e da morte. O monólito da gravura acima foi encontrado no século XVIII, e era uma figura conhecida na década de 1920. Provavelmente as mãos representadas por Rivera em diversos murais, em que mescla símbolos do movimento comunista com a mão espalmada fazem parte de uma tentativa de encontrar um símbolo do comunismo mexicano. A gravura está em: LEÓN Y GAMA, Antonio de. Descripción histórica y cronológica de las dos piedras: que con ocasión del empedrado que se está formando en la plaza Principal de México, se hallaron en ella el año de 1790. Impr. de F. de Zúñiga y Ontiveros, 1792 Figura 50 – Foto de Tina Modotti, representação do comunismo mexicano. Tina Modotti fazia parte do grupo de artistas do PCM, e produziu diversas fotografias que ilustraram o jornal El Machete. Essa famosa fotografia faz parte de uma tentiva de representação do comunismo mexicano a partir de uma referência tipicamente nacional, o sombreiro. Fonte: CEMOS 185 Não existem indicações exatas das datas, e, embora Rivera avançasse parede a parede, ia também retocando, e porventura modificando alguma parte já pintada. Não há registros desse tipo de intervenção. Em algumas assinaturas, Rivera colocou, além do nome seguido de uma foice e martelo, a data em que concluiu o mural. Mas por essa data não sabemos quando o painel foi pensado, indicando o momento de suas “inspirações” político-ideológicas. Uma forma de descobrir quando foi pensado e projetado cada mural seria através da datação dos rascunhos que Rivera fazia antes de cada mural, e em grande parte daqueles a que tivemos acesso, o pintor seguiu, ao menos na composição, o planejado no rascunho (bocejo) em papel. Não são todos que estão acessíveis ou que conseguimos encontrar, mas com os que existem publicado podemos traçar um sentido cronológico geral da obra de Rivera na SEP, entre 1923-1928 e extrair diversas conclusões. O prédio fica no centro da Cidade do México, em um edifício que ocupa duas quadras e tem 3 andares, divididos em 3 partes desiguais. Cada andar Rivera dividiu em duas partes, as quais denominou como “Pátio das Festas” e “Pátio do Trabalho”. Em cada parte, vê-se um estilo geral diferente, além da mudança temática. Rivera pintou do primeiro nível até o 3º. Nesse último nível, encontramos uma expressão mais acabada de sua interpretação da realidade mexicana, além de alguns avanços técnicos e definições estilísticas que marcariam a identidade dos seus trabalhos. Começando pelo Pátio do Trabalho no 1º nível, percebem-se as diversas classes que formam a sociedade mexicana, como o mineiro entrando na Mina, sendo revistado após sair, camponeses em outro mural, o capataz controlando e subjugando os trabalhadores, um trabalhador com roupa de operário, uma professora primária rural, tecelões e índias tehuanas. Na parte Pátio de Festas do 1º piso, Rivera pinta a queima de judas, o dia dos mortos, a dança do veado, além de uma cena com os camponeses colhendo milho e depois festejando. Além dos motivos pintados por Rivera já serem modernistas, pois procuravam retratar as tradições populares e as classes trabalhadoras, podemos ver nesses primeiros murais da SEP as influências político-ideológicas que se debatiam no PCM, como o assassinato de agraristas, em “la liberación del peón”, algumas foices e martelos decorando espações, e um painel denominado “Reparto de la tierra o la dotación de 186 Ejidos”, em que Rivera tenta expressar o debate que o PCM estava organizando em defesa da dotação de Ejidos, contra a partilha individual da terra, que era estimulada pelo governo Calles. O 2º nível foi todo pintado antes de 1925, e, embora existam claras referências ao movimento comunista como a foice e o martelo em algumas alegorias simbólicas representando “o trabalho” e o “produto do trabalho”, Rivera pretendeu representar iconograficamente o “trabalho intelectual”, pintando profissões como a medicina, a agrimensura, a geologia etc. No outro pátio do 2º andar, foram pintados os escudos dos Estados da federação mexicana. No 3º nível, que foi concluído em 1928, podemos encontrar uma interpretação mais elaborada das contradições da sociedade mexicana, além da simples presença alegórica do marxismo como em foice e martelos, para a representação narrativa da luta de classes no contexto histórico mexicano, apontando desde as classes sociais e suas características diretamente relacionadas ao papel de cada classe na produção até a atuação política e as perspectivas revolucionárias. Em 1928, Rivera já acumulava 5 anos de atividade política no PCM, inclusive no CC, havia estado diretamente em contato com as Ligas de Comunidades Agrárias e participava da Liga anti-imperialista da Américas, com Mella, Tina Modotti, Siqueiros, Xavier Guerrero e Galván. Em 1927, havia visitado a URSS e assistido as comemorações dos 10 anos da Revolução Russa. Esse ambiente produziu uma de suas obras mais famosas, muito popular pelo sentido que assumiu para o movimento comunista. 187 Figura 51 – “El Arsenal”, Diego Rivera, terceiro andar da SEP (1928) Neste famoso mural, Frida Kahlo distribui armas para a revolução. Atrás aparecem camponeses com uma bandeira da LNC, um operário segura a bandeira do Partido Comunista, no canto esquerdo aparece Siqueiros com um chapeu, e no canto direito, Vitorio Vidali com Tina Modotti, que distribui munições. A criança é o próprio Diego. Fonte: fotografía do autor. 188 Chapingo, os murais do problema agrário mexicano A segunda obra importante iniciada em meados da década de 1920 foi a série de afrescos e entalhes em madeira que atualmente fazem parte da Universidade Autônoma de Chapingo, onde era a antiga Escola Nacional de Agricultura. O contrato entre Rivera e a Secretaria de Agricultura do Governo Obregón foi assinado em meados de 1923, e durou até 1928, quando Rivera entregou o saguão e a escadaria do edificio principal, além da decoração da Capela, que depois seria chamada de “Capela Riveriana”. Os temas desse conjunto de murais foi a agricultura, a terra e o homem do campo. Do mesmo modo que a SEP, não houve uma sequência simples na execução da obra e por isso não é fácil estabelecer uma ordem nas pinturas. Mas podemos estabelecer alguma lógica e sentido. Figura 52 – “Reparto de tierras”, Diego Rivera, Chapingo (1924) Fonte: RIVERA, 2007, p. 144 189 No saguão do prédio principal e na escadaria, Rivera reproduziu muitos temas que também pintou na SEP. Mas se dedicou particularmente ao movimiento agrarista, a luta pela terra, aos pistoleiros, ao assassinato de agraristas e a unidade operária e camponesa, simbolizada pelo camponês e pelo operário dando as mãos e um lema escrito acima, que diz “Aquí se ensina a explorar a terra, não aos homens”. Em “El Buen Gobierno”, pintado na escadaria, aparece um camponês armado, com suas ferramentas de trabalho, junto de um militar revolucionário e um operário, de macacão e um martelo na mão. No pátio da reitoria, aparece uma cena de corte da terra entre os camponeses, em outra, um topógrafo. E, por último, a antiga capela, que tem uma série de pinturas nas abóbodas e demais estruturas que compõem aquela arquitetura. No centro, há a representação da mãe terra, pintura baseada em Lupe Marín (1897-1981) grávida, sua esposa na época, e a representação da fertilidade, os elementos como o fogo, a terra e a água, além dos frutos da terra, o vento e outras representações da natureza e dos frutos do trabalho do homem, como a eletricidade. No centro da capela, há oito painéis que representam a transformação social comparadas com as da evolução natural. O primeiro, “la formación del liderazco revolucionário”, trata o desenvolvimento da opressão contra os camponeses e operários pelo latifúndio e os capitalistas, e seus instrumentos de violência, como o capataz. O segundo grupo chamou-se “tierra oprimida”, em que aparecem os opressores do México, representado pelo “corpo-geográfico” de uma mulher (Lupe Marín) e com um militar com uma máquina de gás e espada e pistola na mão, representando a violência. Um gordo loiro, no canto esquerdo, representa o imperialista norte-americano. Em “trilogía de la revolución”, aparecem os camponeses em três painéis. O primeiro se organizando para a luta pela terra, no segundo chorando os mártires, e no terceiro o “triunfo da revolução”, com os camponeses com comidas fartas, o apoio do operário, em meio a crianças e mulheres. Na parede esquerda da Capela, aparece um homem de vermelho, apontando para uma direção, de macacão, camisa vermelha e sombreiro típicamente mexicano. Uma alusão à classe operária mexicana apontando a direção para os outros, que cruzam a foice e martelo mais abaixo, em representação da aliança operário e camponesa. Esse painel chama-se “El agitador”. Rivera depois aperfeiçoaria as suas alegorias, trabalharia de forma mais 190 complexa as composições sociais de suas obras, utilizando do artifício de caricaturas de pessoas conhecidas da história, batalhas, gestos e outros símbolos de expressão, que tornariam os murais uma espécie de história em quadrinhos, cheia de detalhes, de mensagens e intenções. Uma das primeiras formas de expresar o movimiento comunista com características mexicanas esteve em uma figura repetida em várias obras. Uma foice e um martelo com uma ou duas mãos espalmadas, em alusão à simbologia asteca, que utilizava essa mão aberta em vários monolitos, e particularmente na representação da deusa nahua da vida e da norte, Coatilicue. (figura 49) Depois Rivera abandonaria esse tipo de composição, para dar lugar às representações da história mexicana, como a pintura do Palácio Nacional. Tina Modoti fotografou uma representação do movimento comunista mexicano com uma intenção parecida à de Rivera, mas, ao invés da mão nahua, preferiu utilizar a foice e o martelo por cima de um sombrero, que representava os agraristas mexicanos. (Figura 50) Figura 53 - Porta da Capilla Riveriana, desenho de Diego Rivera, Chapingo (1929) Essa porta foi desenhada por Diego Rivera e talhada por Abraham J. Lopez y Hermanoen Fonte: fotografía do autor 191 Figura 54 - Porta da Capilla Riveriana, desenho de Diego Rivera, Chapingo (1929) Neste trabalho Rivera utiliza o recurso da oposição dialética: de um lado a foice e o martelo, e de outro o capitalismo e o latifundio. Fonte: fotografía do autor. Figura 55 - Mural de Rivera em que os trabalhadores decidem o seu destino. Fonte: fotografía do autor. 192 Figura 56 - Detalhe do Mural de Chapindo, em que o capataz dos fazendeiros seguram um papel dizendo: "eu defendo meus amos contra meus próprios irmãos" Fonte: fotografia do autor Figura 57 - Detalhe do teto da Capilla Riveriana, em Chapingo. Um dos muitos murais em que Diego Rivera procurou colocar entre as figuras o simbolo do comunismo. Fonte: fotografia do autor. 193 Figura 58 – Aliança operário e camponesa, Chapingo. Fonte: fotografia do autor. 194 A crise do Estado Brasileiro e o tenentismo O Estado oligárquico no Brasil se consolidou a partir da conhecida Política do Café com Leite, com a fórmula de alternância ente candidatos paulistas e mineiros na Presidência da República. Atualmente se questiona se essa alternância foi seguida à risca, mas o que está claro é que o Estado brasileiro estava sob hegemonia dos interesses dos fazendeiros do café, principalmente de São Paulo, que mantinham o domínio político e o controle sobre outras oligarquias regionais. (...) a oposição regional não se traduz, ao longo da Primeira República, em um conflito aberto. Pelo contrário, a fermentação em torno das candidaturas adversárias do eixo São Paulo – Minas morre com o fim dos pleitos e as oligarquias menores tratam de mostrar sua solidariedade ao novo governo. A antecipação revolucionária dos "tenentes" - sintoma gravíssimo de uma crise que se instala no aparelho do Estado - liga-se a uma dupla frustração. De um lado, a burguesia cafeeira confere ao Exército um papel subordinado; de outro, a cúpula militar aceita este papel e entra em acordo com as oligarquias. O movimento tenentista não se volta apenas contra os quadros dirigentes civis da República Velha: (FAUSTO, 1972, p.92) Com o início dos anos de 1920 começaram a aparecer as primeiras fraturas no pleito sucessório, em que São Paulo e Minas Gerais apoiaram Artur Bernardes e os Estados do Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul escolheram Nilo Peçanha. Artur Bernardes é eleito, mas com um Governo enfraquecido, abre-se espaço para que diversas insatisfações que fermentavam na classe operária e, principalmente, entre as camadas médias urbanas, emergissem. (CARONE, 1989, p.58) A faísca que acendeu a pólvora foi a Rebelião Militar de 5 de Julho de 1922, no Rio de Janeiro. Levantaram-se contra o Governo, tropas do Forte de Copacabana e da Escola Militar, que faziam parte de uma conspiração maior. Por estarem liderados por muitos tenentes, a rebelião ficaria conhecida como movimento tenentista ou tenentismo. Os tenentes marcharam do Realengo à Praia de Copacabana. Cercados, a guarnição decidiu-se pelo sacrifício e o episódio ficou conhecido como “Os 18 do Forte”, sem chance de vitória militar sob as forças legalistas. Houve processos, prisões e mais conspirações, até que no mesmo dia 5 de julho de 1924, há exatos dois anos da Rebelião, surgiu a rebelião militar comandada pelo General Isidoro Dias Lopes. A gravidade da situação era bem maior que o ocorrido dois anos antes. Os 195 combates na cidade de São Paulo duraram até 28 de julho, com a vitória das forças governistas e a retirada dos rebeldes, cerca de 3000 homens, para o Paraná. No final do ano de 1924 e início de 1925 ainda havia combates entre as forças rebeldes e governistas, até que parte dos “tenentes” capitulou em Catanduvas. (SODRÉ, s/d, s/p.)223 No final de 1924, após a rebelião da guarnição da região de Santo Angelo, comandada por Luís Carlos Prestes, foi possível agrupar cerca de 1500 homens e marchar ao encontro da Coluna Paulista. Em 14 de abril de 1925, os gaúchos conseguem encontrar os paulistas, comandados por Miguel Costa. A Coluna foi reorganizada e Prestes assumiu o comando como chefe do EstadoMaior. Prestes defendeu a posição de manter a luta em território brasileiro. Com a vitória de sua direção, supera-se as posições de alguns líderes do movimento que pretendiam buscar exílio nos países vizinhos. Figura 59 - Comando da Coluna Prestes (1925)224 Fonte: CPDOC/FGV, retirado de: FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. São Paulo: Record, 1925. Os revolucionários romperam o cerco das forças governistas, marchando em direção ao Mato Grosso e se estabelecendo em 11 de maio em Ponta-Porã. A Coluna 223 Utilizamos uma versão eletrônica de Sodré: SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes - Análise e Depoimentos. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/67132855/A-Coluna-Prestes.> Acesso em: 27 mar 2014. 224 Luis Carlos Prestes está de pernas cruzadas, o terceiro sentado da esquerda para a direita. 196 Prestes passou por Goiás, Pará, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte ao longo de pouco mais de 2 anos, cobrindo mais de 25 mil quilômetros. Em uma carta de Prestes dirigida ao General Isidoro, dizia: “A guerra no Brasil, qualquer que seja o terreno, é a guerra de movimento. Para nós revolucionários o movimento é a vitória. A guerra de reserva é a que mais convém ao governo que tem fábricas de munição, fábricas de dinheiro e bastantes analfabetos para jogar contra as nossas metralhadoras” (PRESTES, 1925 apud PRESTES, 1990, p.149) Anita Prestes (1990, p. 82) explica: Quando Luiz Carlos Prestes, à frente da Coluna que mais tarde tomou seu nome, inaugurou uma nova tática – a "guerra de movimento"– até então desconhecida dos militares brasileiros, os generais a serviço do governo ficaram perplexos, desnorteados e sem saber como agir. Seus conhecimentos de arte militar não lhes permitiam defrontar com êxito as novas formas das investidas rebeldes, de suas manobras e emboscadas. Apesar da sua superioridade em armamento, efetivos militares e apoio logístico, as forças da "legalidade" não conseguiriam derrotar a Coluna Prestes, que partiria invicta para o exílio. A ideologia que guiava os revolucionários era uma combinação de diversos inconformismos com a ordem política, sem um programa claro225, e após diversos combates e a extensa marcha pelo interior do Brasil, a Coluna decide-se por sair do país. Com cerca de 600 homens, 90 fuzis, 4 metralhadoras e desmunidos, a Coluna Prestes, no dia 3 de fevereiro de 1927, entrou em território boliviano, dissolvendo-se no exílio. Militarmente a Coluna sairia invicta, como diriam nos anos posteriores, mas o feito dos tenentes alimentou a insatisfação contra o governo, que respondeu com intermináveis Estados de Sítio, que duraram até 1927. Esse período correspondeu ao início da construção do PCB, com o retorno de Astrojildo Pereira da URSS em 1924 – com o reconhecimento do PCB pela IC – e o início da primeira tentativa de interpretação marxista da realidade brasileira. Astrojildo retornaria da URSS no ano de 1924, quando a IC aplicaria a palavra de ordem do V Congresso da IC (1924), que centrou-se na formação de frentes únicas Não iremos nos aprofundar na “ideologia” que guiava a Coluna, já que não há um impacto dessas concepções políticas no movimento comunista aqui estudado. Brandão e Astrojildo qualificavam os tenentes “pequenos-burgueses” como confusos. Para conhecer os manifestos e programas gerados pela Coluna ao longo de sua marcha, ver: PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990. O clássico sobre a Coluna, além do livro de Anita Prestes: MOREIRA LIMA, Lourenço. A Coluna Prestes – marchas e combates. São Paulo: Alfa-Omega, 1979. 225 197 (embora não apenas eleitorais) e na bolchevização dos Partidos Comunistas. Para o PCB, significaria a necessidade de organizar o Partido e estabelecer uma análise da sociedade brasileira que possibilitasse um programa que direcionasse as alianças possíveis para o PCB. As prisões e o Estado de Sítio dificultaram muito a atividade política do Partido, mas em 1925, os comunistas conseguiram traduzir pela primeira vez no Brasil o Manifesto Comunista, publicar uma série de livros clássicos do Movimento Comunista226 e fundar um jornal do Partido, o “Classe Operária”227, que correspondia à orientação do V Congresso da IC. Em 1925, entre os dias 16, 17 e 18 de maio, Astrojildo e Octávio Brandão, os dois principais dirigentes do PCB, começaram a elaborar a 1ª análise da realidade nacional, que seria depois, em 1926, publicada em um livro com o nome “Agrarismo e Industrialismo” por Octávio Brandão, mas que apareceu publicado sob o pseudônimo de Fritz Mayer228, com “edição” em Buenos Aires para despistar a polícia229. Agrarismo e industrialismo Octávio Brandão não esteve entre os fundadores que se reuniram entre os dias 25 e 26 de março de 1922 para constituir o PCB. Brandão era um jovem farmacêutico alagoano que havia entrado em contato com os grupos anarquistas após uma decisão da COB em expandir o movimento para outros Estados. Everardo Dias foi viver em Pernambuco e assim pudesse organizar o proletariado no nordeste. Dessa ida, surgiram alguns contatos, particularmente Octávio Brandão e Canellas, que depois passaram a publicar jornais para a propaganda anarquista e a organização do proletariado. “Assim, na pequena farmácia da rua General Câmara 307, a partir dos meados de 1922, pela primeira vez na vida, li em traduções francesas os livros de Marx, Engels e Lênin – os três maiores Mestres de toda a Humanidade. Comecei lendo O Estado e a Revolução, A Moléstia Infantil do ‘Esquerdismo’ no Comunismo de Lênin e o Manifesto Comunista de Marx e Engels. (BRANDÃO, 1978, p. 231) 227 “A IC escreveu ao PCB, a 10 de julho de 1923, recomendando-lhe que transformasse a revista Movimento Comunista num jornal operário de massas. Esta recomendação tornou-se uma realidade em 1925, com a fundação do jornal A Classe Operária.” (BRANDÃO, 1978, p.222) 228 Octávio Brandão utilizaria esse nome Fritz Mayer para publicar em outros órgãos da imprensa comunista, como Correspondencia Sudamericana. 229 “No meio de grandes perigos, com precauções ainda maiores, à noite, o trabalho de composição e impressão recomeçou na mesma tipografia. Finalmente, no Rio de Janeiro, em abril de 1926, sob o estado de sítio, Agrarismo e Industrialismo apareceu com o pseudônimo de Fritz Mayer e a menção de ter sido editado em Buenos Aires, a fim de desorientar a polícia.” (BRANDÃO, 1978, p.286) 226 198 Antes que viessem ao Rio de Janeiro integrar a direção comunista, Brandão chegou a escrever um livro em que, com linguagem poética procurava descrever a geologia de sua terra natal.230. Seu esforço por contribuir com as ciências nacionais e a militância revolucionária o levaram ao Rio de Janeiro, e nesta cidade procurou contribuir não apenas com a organização do PCB, mas também com a elaboração teórica e com a propaganda do Partido. Entre os anos de 1920, além dos artigos de Astrojildo, foi através da pena de Brandão que o PCB procurarou incorporar o marxismo como método de análise da realidade nacional. O estilo ousado, afirmativo e cheio de frases de efeito é uma característica do comunista alagoano, e essas peculiaridades de sua personalidade, são marcantes em “Agrarismo e Industrialismo”. O livro começou a ser escrito logo após a segunda revolta de 5 de julho, em 1924231, concluindo um mês depois a “parte fundamental”, com a qual pode debater com outros companheiros. Brandão escreveu em 1925 e 1926 as duas últimas partes. O livro está centrado na identificação das causas da revolta militar e em quais forças sociais estão em conflito. Brandão encontrou uma contradição entre “a vontade de dominação dos grandes industriais, cujos interesses muitas vezes são desprezados pelos grandes fazendeiros de café.” (BRANDÃO, 2004, p.27) Ou seja, o Brasil estava dominado pelo “agrarismo”232, que significava o atraso feudal da economia rural, marcada pelo domínio dos coronéis, particularmente pela elite cafeeira que impunha suas demandas ao país. Para acentuarmos ainda mais a Medievalite Nacional, vamos citar outras manifestações. Ficará assim fora de dúvida que o Brasil ainda é, no conjunto, um país medieval, atrasado, sob este ponto de vista, cinco séculos no mínimo. Manifestações econômicas: A miséria do povo. A igreja católica livre de imposto Manifestações políticas: O autoritarismo paterno sobre a família. Os padres, livres do serviço militar. Os bispos como intermediários nas lutas políticas - ver as atitudes do cardeal Sebastião Leme na presidência Epitácio e do arcebispo de São Paulo durante a revolta. A tendência, em Afonso Celso, para a monarquia aliada à Igreja. A tendência, em Jackson de Figueiredo, filho espiritual dos absolutistas 230 O raríssimo livro de Brandão, Canais e Lagoas, mistura poesia com naturalismo e geologia. BRANDÃO, 1978, p.284 232 A palavra agrarismo para Brandão identifica o meio rural, a atividade agrícola, em oposição a industrial. No México, agrarista é o movimento camponês que lutava por terra, do qual Emiliano Zapata é o mais importante ícone. 231 199 como José de Maistre, na França, e Pobiedonostsev, na Rússia, para a autoridade de direito divino e para a teocracia. (...) Manifestações psicológicas: A moralina. A veia poética para o amor e o misticismo - ver os minnsingers, cantores místicos do amor. A vida contemplativa, sedentária, de milhares de brasileiros. A tendência para a rotina. O gosto pelas cores berrantes, predileção característica de povo bárbaro.. (...)Manifestações sociais: O artesão, o tamanqueiro. O caudilho, forma moderna do barão de presa ou rapina. O cangaceiro, revoltado, ao mesmo tempo, degenerescência do cavaleiro mercenário. O trabalhador rural negro, proveniente do escravo, exatamente como o vilão-servo da Idade Média. (BRANDÃO, 2004, p.49-50) Definida a contradição entre as forças retrógradas agrárias e as progressistas industriais, Brandão vai agrupando outros elementos em cada polo. A disputa entre imperialismo norte-americano e imperialismo inglês na América Latina, já presente nas teses da IC233, esteve relacionada ao esquema agrarismo x industrialismo do PCB, sendo o imperialismo norte-americano, aliado dos industriais, enquanto os ingleses eram aliados dos fazendeiros do café. (BRANDÃO, 2004, p.52) Desenha-se, pois, uma luta mortal, com fluxos e refluxos, entre os dois grandes imperialismos: 1822-1914 supremacia da Inglaterra, 1914-1922 supremacia dos Estados Unidos, 1923-1924 rivalidade imperialista anglo-americana, pendendo a balança para o lado da Inglaterra. Podemos provar isto com algarismos. Em 1910-1914, a Inglaterra vendeu ao Brasil, em números redondos, 67 milhões de libras; os Estados Unidos 39. Em 1915-1919, o primeiro país vendeu-nos 46 milhões, o segundo 102. Em 1920-1921, o primeiro vendeu-nos 391, o segundo 71. Já em 1923, a Inglaterra vendeu- nos 600 mil contos, e os Estados Unidos 505 mil contos. (Ibidem, p.84) O texto de Brandão faz diversas conjecturas, cita a Índia, trechos sobre os imperialistas norte-americanos e uma infinidade de dados e fatos, que por vezes se perdem em denúncias, não ajudando em uma ordenação lógica. O texto de Brandão ainda carrega o estilo das denuncias dos jornais anarquistas do início do século, com uma forma que mais parece um discurso de agitação, que uma análise teórica. Brandão faz um grande esforço por ordenar, compartimentar e estabelecer critérios conceituais, 233 A identificação da disputa interimperialista entre Inglaterra e os EUA pelo domínio da América Latina foi afirmada no V Congresso da IC (1924), como veremos mais a frente. 200 mas claramente se perde, dificultando a apreensão do sentido que guia a exposição do texto como um todo. Quase ao final da exposição, Brandão apresenta um modelo resumido de seu raciocínio a partir do que ele entende por dialética marxista: XVI - TESE, ANTíTESE E SíNTESE Os que acreditam no Ser, no Absoluto, só vêem na revolta de 1924 um motim secundário, localizado, mumificado, uma espécie de quisto social, sem relações com o ambiente, sem significação de espécie alguma. Nós, porém, que só admitimos o Devenir, a transformação continua, vemos nessa revolta um processo, a elaboração de alguma coisa nova que quer surgir sem poder ainda: a vitória do industrialismo sobre o agrarismo; a vitória da burguesia industrial sobre os agrários; a vitória da burguesia progressista sobre os elementos rotineiros. Aplicando a dialética marxista à revolta de 1924, veremos o seguinte: Afirmação: Artur Bernardes, o grande agrário", a grande propriedade rural. Negação: Isidoro Dias Lopes, o pequeno-burguês, atrás do qual manobra o grande burguês industrial. Negação da negação: a revolução proletária, que negará Bernardes e negará Isidoro, e que, por isso, fundirá os contrários, produzindo o que, há milênios, o grego Heráclito chamava: uma harmonia. Tese, antítese e síntese. Afirmação, negação e negação da negação. A revolução proletária afirmará Bernardes porque afirmará o agrarismo, mas numa etapa superior – o agrarismo industrial, proletário. Afirmará Isidoro porque afirmará o industrialismo, mas numa etapa superior – o industrialismo proletário. Negará Bernardes porque negará o agrarismo feudal. Negará Isidoro porque negará o industrialismo burguês. E fundirá o industrialismo com o agrarismo, como também o operário com o camponês, a oficina com a seara, a cidade com o campo, o martelo com a foice. Dentro da Harmonia Proletária, desaparecerão as classes e, por conseguinte, a guerra de classes. (BRANDÃO, 2004, p. 138-139) A síntese seria “a liquidação dos dois contendores: os agrários e os industriais”. (BRANDÃO, 2004, p.139) e a vitória proletária, que viria da “vitória dos pequenos burgueses (aliados dos grandes burgueses industriais).”. “Portanto, a negação da negação não pode ser realizada por Bernardes nem por Isidoro. Por isso, a própria marcha do processo a que assistimos trará a liquidação dos dois contendores: os agrários e os industriais". Daí vem a nossa certeza de que, após a vitória dos pequenoburgueses (aliados dos grandes burgueses industriais), virá a Vitória Proletária.” (BRANDÃO, 2004, p.139, grifo nosso.) Fica claro que Brandão tinha um domínio muito esquemático da dialética, ainda muito ligada aos termos da dialética hegueliana e sem um conhecimento mais profundo 201 das análises produzidas pelos comunistas até aquele momento. Verificar inconsistências teóricas na década de 1920, quase há cem anos atrás, é a parte mais fácil. Importa-nos estabelecer quais foram as consequências mais importantes dessas primeiras interpretações “marxistas-leninistas” na prática política do PCB. Em primeiro lugar, Brandão conseguiu perceber uma disputa entre duas forças imperialistas, entre ingleses e norte-americanos, e identificar que o capital norteamericano estava em franca expansão, enquanto o inglês declinava. Esse movimento foi verificado com clareza pelos dados econômicos já estudados pela bibliografia234. Mas Brandão relacionava os “agrários” ao imperialismo inglês, enquanto que os “industriais” estariam ao lado do capital norte-americano. Essa divisão não correspondia a realidade, embora a argumentação de Octávio apresentasse vários dados. Esses “industriais” estariam também por trás de Isidoro Dias Lopes, “o pequeno burguês”, através do qual manobra o grande burguês industrial.” (BRANDÃO, 2004, p.138) Sem exatamente explicar como, e apenas se apoiando em seu “domínio” da dialética, Brandão acredita que a “Revolta pequeno-burguesa” levaria a Revolução Proletária. “Progride a proletarização da pequena burguesia. Cresce sua experiência revolucionária. Esfarelam-se muitas de suas ilusões. Avoluma-se a concentração capitalista. Acirra-se a rivalidade entre o grande burguês industrial e o fazendeiro de café. Brigam entre si os politiqueiros paulistas e mineiros. Aumenta a ascendência do proletariado...” (BRANDÃO, 2004, p.139) Os esquemas de Brandão para projetar essa vitória do proletariado não se confirmaram e não passavam de uma projeção extremamente otimista. Em uma comparação com o contexto russo, Brandão “comprovava” as perspectivas revolucionárias no Brasil. Muitos elementos da pequena-burguesia, influenciados pela vanguarda proletária, já começam a entrever que, depois da vitória do Isidoro atual ou do Isidoro futuro, haverá alguma coisa. Lembram-se de que o czar Nicolau era agrário, feudal, como Bernardes. Lembramse de Kerensky, "democrata", pequeno-burguês, como o Isidoro atual ou o futuro Isidoro. Lembram-se de que o pequeno-burguês Kerensky substituiu Nicolau, o feudalista, para depois ser derrubado pela revolução proletária... (BRANDÃO, 2004, p.144, grifo nosso.) 234 Há diversos dados dessa substituição de influência econômica na América Latina em: BETHELL, Leslie. Historia de America Latina – economia y sociedade desde 1930, v.11, Barcelona: Crítica, 1994. 202 Diferente do que se pode crer apenas pelas aparências, a lógica de Brandão não via nos “industriais” a força da revolução, mas na pequena burguesia revoltosa. “Não nos iludamos, porém, com a burguesia industrial do Brasil. Após a retirada dos revoltosos, em vez de calar-se, ela declarou apoiar a legalidade.” (BRANDÃO, 2004, p.145) O motivo desta posição dos “industriais” e da burguesia comercial era, portanto, a sua origem no “agrário” e curiosamente, entre outros, cita Monteiro Lobato como exemplo de insdustrial. “Por exemplo, Monteiro... até Juiz de Fora. (p.146) Assim, para Brandão a contradição entre agrários e industriais é uma contradição interburguesa, que divide os imperialistas e com essa disputa se abre uma crise que pode ser aproveitada. “Por exemplo, Monteiro Lobato, atualmente industrial, já foi fazendeiro de café. Teodorico de Assis, agrário mineiro, está montando uma fábrica de tecidos dentro de sua própria fazenda de café, na estação de Retiro, perto de Juiz de Fora.” (BRANDÃO, 2004, p.149) De certa forma, Brandão vê os industriais como a parte progressista da burguesia, mas incapaz de transformar a ordem política, dando prosseguimento a uma revolução, e tendendo a conciliar com os “agrários”. O papel da pequena burguesia está em manter a revolução e radicalizá-la. O proletariado poderia alcançar a direção do processo e fazer a revolução proletária. Brandão acreditava, como comunista, na industrialização, mas que não seria levada à frente pelos industriais, mas pelo proletariado revolucionário. Para nós, o futuro do Brasil não está no café, na lavoura feudal. Está no petróleo do Norte, no carvão do Sul, no ferro de Minas, no manganês de Mato Grosso, na lavoura industrializada, na maquinaria que transformará a borracha e o algodão, nos trinta milhões de cavalos-vapor das cachoeiras. Especialmente no ferro e no carvão. O futuro do Brasil está na grande indústria centralizada - base objetiva da sociedade comunista. (BRANDÃO, 2004, p.160) E defendia: Pelo industrialismo! Pela revolta! Pelos militares e pequeno-burgueses revoltosos! Pelos operários, camponeses, soldados e marinheiros coligados! Pelo funcionamento das associações! Pela reabertura dos jornais suspensos! Pela legalidade do Partido Comunista do Brasil! Pela restituição dos milhares de livros e folhetos confiscados ao Partido Comunista! Pela organização e reorganização das vastas massas operárias e camponesas! 203 Contra a reação! Contra o agrarismo! Contra a grande propriedade rural feudal! Contra a política dos fazendeiros! Contra os estados de sítio! (...) Contra o imperialismo anglo-americano! Contra Rothschild, protetor de Bernardes! Contra MacOonald, que apoiou Bernardes! Contra a 2ª Internacional "socialista" - responsável pelas perseguições bernardistas aos trabalhadores do Brasil! (...) Abaixo os que hesitam entre o proletariado e a burguesia! Contra a reação agrária, pela revolta pequeno-burguesa! Mas contra a pequena burguesia, pela revolução proletária! (BRANDÃO, 2004, p.160-1) As fórmulas que Octávio Brandão utilizou no texto são uma combinação de diversas influências, manejadas por um jovem militante que ainda possuía uma compreensão muito limitada dos debates no interior do Movimento Comunista. Primeiro abraçou a ideia de que os países periféricos, como o Brasil, possuíam entraves no modo de produção para que se desenvolvesse industrialmente, opondo uma classe rural a outra industrial. Essa segunda seria a mais progressista. Nessa oposição, estaria também a oposição entre dois imperialismos, o inglês e o norte-americano. Ao longo do texto, após a reafirmação deste modelo, surge a necessidade do proletariado, ou seja, o PCB, que aparece como um suporte quase “espiritual” à pequena burguesia, que estava levando politicamente a frente a revolta contra os agraristas. Com essa interpretação, Brandão colocava a burguesia industrial como força progressista, embora admitisse que politicamente essa burguesia não era capaz de levar a frente as transformações, e criava assim a tese de uma revolução pequeno-burguesa como etapa anterior à Revolução Socialista. 204 Figura 60 - Trecho do Jornal A Nação em que aparecem analises da direção do PCB derivadas da tese Agrarismo x Industralismo. Fonte: A Nação, nº457, Rio de Janeiro: 11 ago 1927 Com essa ideia, o PCB, portador da teoria e da capacidade política superior aos “confusos” tenentes, ajudariam a pequena burguesia a transformar uma provável 3ª revolta em uma revolução pequeno-burguesa, etapa para o socialismo. Dizer que essa tese de Brandão é etapista ou que comete o mesmo erro teórico dos mencheviques, seria “chover no molhado”. O que importa nesta “primeira tentativa” dos comunistas brasileiros em elaborar um “ensaio marxista-leninista sobre a Revolta de São Paulo e a Guerra de classes no Brasil – 1924” são as suas consequências políticas, já que esse texto não era apenas um tipo de monografia de final de curso de Brandão, mas uma síntese de posições e interpretações políticas que eram debatidas no interior do jovem PCB. Ao final de 1926, com o fim do estado de sítio, foi possível aos militantes do 205 PCB, um pequeno interregno de legalidade e ampliação das possibilidades de propaganda e organização política mais ampla, que se concretizariam na formação do Bloco Operário e Camponês, que elegeu Octávio Brandão para vereador, conseguiu fazer propaganda através de um jornal diário, A Nação, e a partir de 1927, daria início a uma aproximação com Prestes e os tenentistas. Primeiro em 1927, em que Astrojildo foi a Bolívia encontrar com Prestes. Nessa oportunidade o secretário geral do PCB deixou vários livros de marxismo-leninismo com Prestes, e depois, através de Basbaum, o PCB formaria um programa comum entre Prestes e o PCB, que não seria levado à frente, e o próprio Prestes romperia com os tenentes para aderir ao movimento comunista. Figura 61 – Manchete do Jornal A Classe Operária defendendo a candidatura do BOC no pleito eleitoral235 A Classe Operária, nº85, Rio de Janeiro: 15 fev 1930. 235 206 Figura 62 – "Los Sabios", Diego Rivera, SEP, México. Representa a elite intelectual burguesa. Fonte: Fotografia do autor. Figura 63 – Detalhe da imagem ao lado, com uma lista de autores liberais e positivistas preferidos pela antiga elite intelectual porfirista Fonte: fotografia do autor 207 Figura 64 – “El que quiera comer que trabaje”, Diego Rivera, SEP (1928) Uma mulher trabalhadora, auxiliada por uma revolucionária comunista (de vermelho) varre um “intelectual burguês” de cabelos loiros, enquanto um jovem revolucionário o empurra com os pés. O intelectual e artista está representado pelos seus instrumentos (a pena, um instrumento musical e uma prancheta de pintura). A figura está curvada com uma orelha de burro. Fonte: fotografia do autor. 208 José Carlos Mariátegui e os bolcheviques A chegada do marxismo-leninismo no Peru esteve intimamente relacionado com a trajetória de José Carlos Mariátegui. Embora tenha havido muitos ecos da Revolução Russa no país – e um relativo interesse no movimento operário e entre os estudantes vinculados à Reforma Universitária –, foi apenas com o retorno de Mariátegui da Europa, em 1923, que o legado da Revolução Russa seria apropriado e transformado no que podemos definir como os primeiros passos do movimento comunista no Peru. José Carlos Mariátegui possuía uma trajetória de vida muito similar aos de outros pioneiros do movimento comunista latino-americano. Havia nascido em uma cidade do interior, Monquegua, próxima ao principal centro urbano, Lima. Devido à sua condição social de pobreza, combinada com a pouco flexível estrutura oligárquica dos países latino-americanos, Mariátegui esteve, como tantos, marginalizado dos meios influentes que monopolizavam o acesso à universidade e às carreiras liberais. Positivistas no Brasil, científicos no México e civilistas no Peru, a minúscula intelectualidade dos regimes oligárquicos não estava aberta aos jovens de origem popular, e nem mesmo à boa parte da juventude que provinha das classes médias que emergiram com o crescimento econômico dos primeiros anos do século XX. Muitos desses jovens intelectuais encontrariam na imprensa liberal, anarquista ou socialista seu espaço de expressão e de aprendizado político. Uma geração de intelectuais que alcançou importância a partir dos anos 20 e principalmente depois dos anos 1930 foi formada, praticamente “alfabetizada” politicamente, no meio das gráficas dos jornais que circulavam nos centros urbanos. No Brasil, Astrojildo Pereira, nascido na cidade de Rio Bonito, muito próxima à capital do país, filho de um pequeno agricultor, chegou ao Rio de Janeiro e aprendeu o ofício de jornalista, conheceu o movimento anarquista, passou algum tempo na Europa, vinculou-se aos protestos operários, sempre publicando em jornais antigovernistas. Com outros, o jovem anarquista brasileiro organizou o Congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922. Na virada do século, o jornal se transformaria em uma ferramenta muito importante de difusão e propaganda revolucionária. A composição e manufatura dos periódicos organizaram os mais combativos grupos de operários radicais, de forma que 209 podemos identificar os grupos a partir do título do jornal236. Do mesmo modo, o movimento anarquista peruano esteve nucleado em torno do jornal La Protesta, no qual González Prada, entre outros, escrevia. Entre os movimentos revolucionários que mais agitaram a luta contra a ditadura de Porfírio Diaz, o jornal dirigido pelos irmãos Flores Magón, Regeneración, têm quase a mesma importância orgânica que os Partidos antioligárquicos, como o Partido Liberal Mexicano. Na reunião de liberais mexicanos que daria origem ao PLM, Ricardo Flores Magón compareceu como representante do Jornal Regeneración. Os jornais tinham o papel de divulgar a doutrina revolucionária, promover o debate sobre o movimento operário, informar acontecimentos que interessavam aos revolucionários, fatos que a imprensa governista calava ou deturpava, mas, acima de tudo, eram importantes núcleos de organização política. José Carlos Mariátegui se formou como muitos jornalistas de seu tempo, à margem da universidade, variando entre o desprezo pelas instituições acadêmicas e o interesse distante pela ciência. O início da carreira jornalística de Mariátegui é no nível mais elementar do processo de composição dos jornais, como alcanzarejones (corretor de provas) no jornal diário La Prensa. Um ano depois, ascende a ajudante de linotipista e corretor de provas. Outro ano mais, aos 16 anos, escreve seu primeiro artigo, passando a ajudar na classificação dos telegramas que chegavam do interior. Passou a escrever as notas policiais e sobre a loteria, até tornar-se jornalista, redator e colaborar com artigos em outras revistas. Aos 23 anos, conseguiu alguns prêmios pelos seus artigos. A trajetória de Mariátegui, além da precocidade com que ascendeu na carreira, formou-o como um jornalista completo, conhecedor de todo o processo de produção de um jornal, desde a redação, da busca pelas notícias ordinárias, até artigos mais analíticos, ou mais apropriados para as colunas. Aprendeu a lidar com os anunciantes, com a impressão, a composição gráfica e o processo de distribuição. Como Astrojildo Pereira, Ricardo Flores Magón ou Antônio Canellas, José Carlos Mariátegui dominava o principal veículo de propaganda ideológica e de agitação política da década de 1920: o jornal. Os gráficos formaram uma das partes mais conscientes e organizadas entre os 236 Um bom exemplo do papel organizador do jornal foi o ato de Primeiro de Maio de 1918, no Rio de Janeiro. Um grupo de operários e revolucionários comemorou a vitória da Revolução Russa, e no comício falaram vários representantes dos movimentos organizadores do ato, cada um falava em nome de um jornal. 210 trabalhadores urbanos latino-americanos desde que começaram a aparecer os sindicatos. Muitos dirigentes do movimento operário saíram desse setor da classe operária. Uma das primeiras organizações operárias brasileiras foi a UTG (União dos Trabalhadores Gráficos). No Peru aconteceu o mesmo. Em 1883, uma das primeiras greves que se tem notícia foi organizada pelos tipógrafos em Lima. (DELHOM, 2001, s.p.). O jornal diário onde Mariátegui aprendeu seu ofício, La Prensa, possuía uma orientação liberal, de oposição ao civilismo. Até o ano de 1918, Mariátegui escreveu sobre tudo, mas foi se destacando na cobertura das notícias sobre o parlamento. A linha da direção do jornal permitiu ao jovem jornalista Mariátegui desenvolver sua crítica contra o civilismo decadente, e possibilitou que cada vez mais encontrasse novos ares e novidades na política, particularmente nas notícias internacionais. Por volta da metade do ano de 1916, saiu da redação de La Prensa e começou a trabalhar em El Tiempo, devido a uma mudança de direção em La Prensa. Junto com ele, foi seu companheiro de redação, Cesar Falcón, que passou a ser colunista de uma seção diária chamada “Voces”, que analisava diversos temas237. E seria em 30 de dezembro de 1917, pouco mais de um mês depois da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, que o jovem Mariátegui, com apenas 23 anos, escreveria um artigo em que se assumia como bolchevique, respondendo a uma acusação de Luis Miró-Quesada, diretor do jornal El Comercio: E se aponta a nossa casa do General La Fuente para exclamar em seguida em conjunto como o minúsculo senhor Miró-Quesada. – Ali estão os Bolcheviques! Só que nós voltamos a responder: – Ótimo! Muito bolcheviques e muito peruanos. Mas mais peruanos que bolcheviques! (MARIÁTEGUI, 1977, p. 43). Com ironia, Mariátegui estava respondendo a uma acusação tipicamente policialesca238 do diretor do jornal governista El Comercio, que havia acusado os jornalistas do jornal de serem bolcheviques. Nessa época, tanto Mariátegui quanto Cesar Falcón já haviam se interessado pelo socialismo e conheciam a agitação e a propaganda anarquista, embora soubessem pouco acerca do que realmente acontecia na Rússia. “[...] começa a ter uma superior visão do mundo que o rodeia; descobre temas mais transcendentais e os analisa, expõe com melhor critério moderno um critério mais moderno, sólido, ‘progressista’ agora; seu estilo ágil, vivo, jornalístico, em suma, no bom sentido da palavra e do ofício. A crítica seguia sendo seu forte. A política é agora sua paixão.” (CARNERO CHECA, 1980, p. 115). 238 Policialesca refere-se à polícia. Nesse caso, o jornal El Comercio colaborava com a identificação e a delação de presuntos “bolcheviques”, com o intuito de colaborar com a repressão policial. 237 211 Chang-Rodrígues considera que o trabalho de Mariátegui em El Tiempo já estava preocupado com a divulgação do socialismo. A transição, ou o amadurecimento das posições políticas de Mariátegui em direção ao socialismo, como denomina Cesar Lavano (1980, p. 28), esteve diretamente relacionado ao seu crescente contato com o movimento operário. Mais uma vez, a comparação com o outro jornalista revolucionário é inevitável. Ricardo Flores Magón, no México porfirista, fundou o seu jornal com propostas liberais e democráticas em 1900, depois de entrar em contato com o movimento operário, fator que aprofundou suas posições ideológicas e políticas, conhecendo o anarquismo e transformando o seu jornal, Regeneración, em uma tribuna de agitação radical e fermento para a luta proletária. Mariátegui encontrou o movimento operário em outra época, exatamente quando a Revolução Russa animava os mais ativos operários, e assustava as classes que dominavam o Estado peruano. Todo movimento operário combativo era acusado de “bolchevismo”, “maximalismo” ou “sovietista” pela imprensa ligada ao governo. Entre 1917 e 1919, devido à crise que assolou os países vinculados ao mercado mundial controlado pelos europeus, várias greves ajudaram a remexer a ordem civilista, e em maio de 1919 ocorreu a maior greve até então vista no Peru. A Revista Variedades noticiava da seguinte maneira: Nesta manhã de terça-feira, de surpresa, a cidade encontrou-se com sua vida normal interrompida, porque os senhores bolcheviques, maximalistas, sindicalistas, sovietistas e demais reformadores criollos, a título da carestia da vida, haviam decidido fazê-la barata, roubando aos donos de mercado os comestíveis dinheiro e ... a vida. (VARIEDADES apud LEVANO, 1977, p. 23)239. Mariátegui e Falcón, em 22 de junho de 1918, lançaram a revista Nuestra Época, “destinada às multidões”, em que tratava dos temas mais atuais: “não traz um programa socialista; mas aparece como um esforço ideológico e propagandístico nesse sentido”. (MARIÁTEGUI, “Antecedentes e desarrollo de la Accion Clasista em el Peru” apud CARNERO CHECA, p. 136). O esforço dos jovens jornalistas por dirigirem sua própria publicação e tratarem sob outra perspectiva os temas sociais os levaram a um ambicioso desafio de produzir La Razón, um jornal diário. Com a Revista Nuestra Época, que teve 239 Em 17 de janeiro, pelo apoio que deu a greve dos operários em Lima, El Tiempo foi fechado até que se terminasse o movimento paredista. O motivo: “era o temor de que El Tiempo estimulasse e solevantasse as classes trabalhadoras e fez piada sobre as ‘tendências bolcheviques’ do periódico”. (LEVANO, 1977, p. 28). 212 curtíssima duração, Mariátegui publicou apenas 2 números240. O jovem jornalista peruano estava em franca transformação. Renunciou às suas preocupações anteriores, inclusive a um pseudônimo que utilizava em artigos, Juan Croniqueur, que o havia tornado conhecido, e passou a assumir uma posição abertamente em favor do socialismo. O diário La Razón foi lançado em 14/05/1919, e logo abriu as páginas para os movimentos que emergiram nesse ano: o movimento operário e os estudantes que agitaram a Reforma Universitária. Ao longo desse ano, como eco da Revolta Estudantil de Córdova, um movimento estudantil crítico às estruturas oligárquicas na universidade começou uma agitação vigorosa no Peru. Foi um grito liberal, renovador, crítico à política mesquinha que privilegiava as relações pessoais e a burocracia em detrimento da ciência. Pela época e pela efervescência política que a Revolução Russa produziu, esse movimento reformador entre os estudantes se encontrou com outras iniciativas de intelectuais, que buscaram de alguma maneira se ligar à experiência da Revolução Russa e à onda revolucionária do pós-guerra que varreu o mundo. A referência imediata foi o grupo criado em torno de Henri Barbusse e a revista editada em Paris, Clarté, que inspiraria a criação de uma revista similar no Peru241, e em diversos países da América Latina. Tal como a Internacional Comunista, foi fundada em Moscou para organizar a Revolução Proletária Mundial. Henri Barbusse (1873-1931) falava em uma Internacional do Conhecimento, do saber, que estava representada pelos grupos Clarté, fundados em diversos países. 240 A revista Nuestra Época era produzida nas máquinas de El Tiempo, onde trabalhavam Falcón e Mariátegui. Devido a um artigo escrito por Mariátegui nesta revista, “Más tendências. O dever do exército e o dever do Estado”, em que questionava a finalidade do Exército, o jovem jornalista foi agredido por militares, após insultos, com pontapés e socos. Esse fato fez com que El Tiempo não permitisse que Nuestra Época fosse impressa em suas oficinas, terminando a publicação de Nuestra Época em seu segundo número. Mariátegui respondeu o ataque dos oficiais com um artigo nas páginas de El Tiempo, e depois se retirouu da redação do diário e junto com Casar Falcón se lançou à empreitada de construir um jornal diário independente, e de filiação socialista. “Diário que durante pouco mais de três meses dirigimos e sustentamos em 1919, Cesar Falcón e eu e que iniciada já nossa Orientação até o socialismo, combateu no flanco do proletariado com ânimo de simpatizante, nessa vigorosa mobilização de massas”. Lembraria 10 anos depois ao escrever o prólogo do livro de Ricardo Martínez de La Torre. Ver: MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. El movimiento obrero peruano 1918-1919, Lima: CRONOS, s/d. e _____. Apuntes para una Interpretación de la História Social del Peru, Lima: Editora Peruana, 1947. 241 Referimo-nos aqui à Revista Claridad. 213 Figura 65 – Retrato de Barbusse em Amauta Fonte Amauta, nº16, Lima: jul. 1928, p.16. La Razón, mais que apoiar a Reforma Universitária, apoiou o movimento operário de 1919. A greve começou em 27 de maio, pela diminuição dos preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade, além do aluguel, somando a luta pela liberdade dos líderes operários presos. A população aderiu ao movimento, levando o governo a declarar Estado de Sítio, e a formar “guardas urbanas” para proteger-se da ação do movimento popular. O diário de Cesar Falcón e Mariátegui foi vendido por 5 centavos e se transformou imediatamente em um jornal popular de defesa das reivindicações do movimento. (CARNERO CHECA, 1980, p. 148). Em julho, quando os líderes operários foram colocados em liberdade (Barba, Gutarra e Folken), uma manifestação de mais de 4 mil operários passou em frente à varanda do prédio onde se produzia La Razón e pediram para que Mariátegui se pronunciasse. Cesar Lévano (1977, p.7-41) cita esse fato como um dos importantes contatos “físicos” de Mariátegui com o movimento operário, já que parte dos biógrafos do Amauta, particularmente os apristas242, reforçam a imagem de Mariátegui como um intelectual distante das massas. “Agora era um escritor do povo, e iniciava um 242 Referimo-nos aos militantes do Partido Aprista Peruano, fundado por Haya de La Torre. 214 jornalismo de novo tipo, em um conteúdo e meta. Juan Croniqueur – quem iria dizer – havia deixado sua tertúlia literária e seu copo de ‘suisse’ para subir em uma tribuna de agitador”. (Ibidem, p. 18). La Razón deixaria de ser publicado por ordem do arcebispado de Lima, que controlava a empresa tipográfica La Tradición, local onde se imprimia o jornal. Esses foram os últimos acontecimentos da biografia de Mariátegui antes de uma definição ideológica decidida, antes da viagem pela Europa, em 8 de outubro de 1919. Mariátegui e seu aprendizado europeu Augusto Lenguía derrotou o governo civilista de José Pardo y Barreda e se instalou como presidente em 4 de julho de 1919. Esse movimento de aparente transição no Estado peruano pode ser comparado às crises, disputas e reestruturações que se deram nos Estados latino-americanos, e, embora nenhum caso represente uma revolução no sentido do termo (ruptura estrutural da ordem social), significou as várias etapas da reestruturação que viveram os Estados latino-americanos entre as décadas de 1920 até 1940. Em primeiro lugar, como parte da periferia do mercado internacional, os países latino-americanos viram suas exportações declinarem com a guerra, o custo de vida nas cidades aumentar, o desemprego assumir maiores proporções e as greves operárias explodirem. No Brasil, as greves aconteceram entre 1917 e 1918. No Peru, começaram no mesmo período, embora com o ápice em 1919, o que ajudou o enfraquecimento do Governo Pardo e a ascensão de Lenguía, que tomou o poder prometendo reformas liberais por trás de um discurso pseudonacionalista e popular. Augusto Lenguía tentou se aproximar de algumas organizações populares como a Associação Pro-indígena e os sindicatos, mas logo utilizaria diversos métodos de repressão, marcando seus 11 anos de governo, conhecidos como oncenio pela historiografia. No Brasil, as greves de 1917 não ajudaram a modificar o governo, mas o clima de insatisfação política e os anseios antioligárquicos ficaram claros com os movimentos de 1922, 1924 e finalmente com o fim da República Velha, em 1930, e uma reestruturação do Estado muito parecida à promovida por Lenguía, com o Governo Vargas. Essa tentativa de cooptação dos movimentos populares, promovida por Lenguía, chegou aos dois jovens jornalistas que dirigiam La Razón, Cesar Falcón e José Carlos Mariátegui. Como uma forma sutil de afastá-los do movimento popular, o mandatário 215 ofereceu para cada um deles uma bolsa de estudos, para que servissem de adidos da cultura peruana no velho continente a soldo do Governo, Mariátegui na Itália, e Cesar Falcón na Espanha. Ambos aceitaram. Mariátegui chegaria em novembro de 1919 na Europa243. Para muitos autores, como Paris (1981) e Löwy (1999), essa “etapa europeia” seria o aprendizado marxista de Mariátegui, o que explicaria inclusive sua originalidade, já que nessa experiência italiana pôde ter contato com um marxismo menos “ortodoxo”, que inclusive explica a mesma originalidade também em Gramsci. Dentre os autores que teriam alimentado a experiência “heterodoxa” de Mariátegui, estariam Sorel, Gobetti, Laborde, Croce e até Gramsci. Estamos de acordo que Mariátegui buscou em diversos autores referências que o ajudasse a explicar a realidade, a aprofundar seu conhecimento do socialismo, mas é necessário, para termos uma real dimensão dessas influências, avaliar o que é estrutural na concepção de Mariátegui, e o que é acessório teórico. Ao nosso ver, há um esforço interessado por valorizar o particular como essencial, e é nessa perspectiva que se tem transformado Mariátegui em “gramsciniano”, “gramiscianista”, “soreliano”, “marxiano”, “aprista” e até um tipo socialdemocrata acadêmico. Para nós, os elementos estruturantes do aprendizado marxista de Mariátegui avançaram claramente em direção ao leninismo, conforme demonstraremos analisando os documentos mais acessíveis produzidos por Mariátegui ao longo de sua viagem de 3 anos pela Europa e imediatamente após seu retorno: os artigos que o Amauta244 escreveu na Europa e as conferências sobre situação internacional ministradas nas Universidades Populares González Prada245. 243 Esse episódio é muito controvertido na historiografia peruana. Por muitos é tratado como uma capitulação de Mariátegui frente ao lenguismo, e inclusive é comparado por autores apristas a um episódio análogo em que Haya dela Torre nega um convite similar. A comparação é anacrônica, já que o significado do governo de Lenguia em 1919, alguns meses após o seu início, é diferente de quando Haya negou o convite, em 1923. 244 Amauta, além do título da Revista dirigida por Mariátegui, é uma palavra quéchua que quer dizer sábio. Esse termo foi utilizado para se referir a José Carlos Mariátegui. 245 Encontramos, dentre os inúmeros autores que trataram da obra de Mariátegui, um debate acirrado sobre suas influências e fontes, passando por tão variados adjetivos e autores que tornam o autor de Sete ensaios um tipo tão eclético que em parte explica o uso de sua obra por um número tão variado de correntes políticas, desde os comunistas, trotskistas, seguidores de Gramsci, social-democratas, apristas, bolivarianos e até a Teologia da Libertação. Ao longo desta tese, é possível encontrar diversas referências às correntes políticas estranhas ao movimento comunistas, ou até anticomunistas, que de uma forma ou de outra reivindicam o pensamento de José Carlos Mariátegui. Um exemplo curioso está no artigo, que encontra influências de Mariátegui no grupo católico Teologia da Libertação. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Papa-discretamente-recebe-o-lider-da-Teologia-da- 216 A primeira questão medular que estrutura a obra de José Carlos Mariátegui é o tempo em que viveu o seu amadurecimento político cultural. Como temos demonstrado até agora, a Primeira Guerra Mundial significou uma ruptura profunda com o velho mundo herdado do século XIX. Mariátegui fazia parte do movimento crítico a todos os elementos que compunham esse velho mundo. Em primeiro lugar, rechaçava a base ideológica positivista, cientificista e mecanicista que caracterizou a expansão imperialista entre a década de 1870 e o início da Primeira Guerra Mundial (1914). Sua crítica, seu inconformismo, sua busca por renovação esteve relacionada a tudo que se opusesse à ideologia positivista a qual legitimava a ideologia civilista que sustentava o Estado oligárquico no Peru. Sua experiência como jornalista acompanhando a atividade parlamentar peruana lhe inspirava desprezo, como ele afirmou seguidamente em diversos artigos246. Quando em 1919 ocorreu o movimento dos estudantes reformistas na Universidade de San Marcos, a identificação de Mariátegui com a juventude que pedia renovação foi automática, e, não por outro motivo, reivindicava paixão247. Nuestros catedráticos no se preocupan ostensiblemente sino de la literatura de su curso. Su vuelo mental, generalmente, no va más allá, de los ámbitos rutinarios de su cátedra. Son hombres tubulares, como diría Víctor Maúrtua; no son hombres panorámicos. No existe, entre ellos, ningún revolucionario, ningún renovador. Todos son conservadores definidos o conservadores potenciales, reaccionarios activos o reaccionarios latentes, que, en política doméstica, suspiran impotente y nostálgicamente por el viejo orden de cosas. Mediocres mentalidades de abogados, acuñadas en los alvéolos ideológicos del civilismo; temperamentos burocráticos, sin alas y sin vértebras, orgánicamente apocados, acomodaticios y poltrones; espíritus de clase media, ramplones, huachafos, limitados y desiertos, sin grandes ambiciones ni grandes ideales, forjados para el horizonte burgués de una vocalía en la Corte Suprema, de una plenipotencia o de un alto Libertacao-/4/29176>. Acesso em: 23 mar 2014. 246 Sobre o desprezo de Mariátegui frente ao Civilismo e ao Estado oligáriquico peruano, ver: MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras Populares, t. 14: Lima, Amauta, 1986. Neste tomo 14, Mariátegui trata da estrutura decadente do estado peruano ao analisar a educação no Peru. 247 “Y la juventud tiene de nuevo la sensación de frecuentar una Universidad enferma, una Universidad petrificada, una Universidad sombría, sin luz, sin salud y sin oxígeno. La juventud – al menos sus núcleos más sanos y dinámicos – siente que la Universidad de San Marcos es, en esta época de renovación mundial y de mundial inquietud ideológica, una gélida, arcaica y anémica academia, insensible a las grandes emociones actuales de la humanidad, desconectada de las ideas que agitan presentemente al mundo [...] Nuestros catedráticos parecen sin contacto, sin comunicación con la actualidad europea y americana. Parecen vivir al margen de los tiempos nuevos. Parecen ignorar a sus teóricos, a sus pensadores y a sus críticos. Tal vez algunos se hallan más o menos bien enterados, mas o menos bien informados. Pero, en este caso, la investigación no suscita en ellos inquietud. En este caso, la actualidad mundial los deja indiferentes. En este caso, la juventud tiene siempre el derecho de acusarlos de insensibilidad y de impermeabilidad.” MARIÁTEGUI, J.C. “Crisis de maestros y crisis de ideias” in Claridad, Año I, Nº 2, Lima: maio 1923, p. 3 y 4 217 cargo consultivo en una pingüe empresa capitalista. Estos intelectuales sin alta filiación ideológica, enamorados de tendencias aristocráticas y de doctrinas de élite, encariñados con reformas minúsculas y con diminutos ideales burocráticos, estos abogados, clientes, y comensales del civilismo y la plutocracia, tienen un estigma peor que el del analfabetismo; tienen el estigma de la mediocridad. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 196-7). Essa citação de Mariátegui fora do contexto histórico pode ser facilmente confundida com idealismo, romantismo ou uma tendência para a rejeição à ciência e ao marxismo, como algumas interpretações buscaram explicar, mas o fato é que a postura de Mariátegui estava exatamente acorde com a crítica revolucionária que se espalhou pelo mundo após a Primeira Guerra, e particularmente após a Revolução Russa. O que se estava negando era a ideologia legitimadora da expansão imperialista, um conjunto de ideias positivistas, com forte linguajar cientificista, estreito, insípido, com pretensão à objetividade, ao clássico, à “beleza” e às “verdades” neutras, relativista e principalmente: humanamente estéril. O movimento modernista que marcou as artes do século XX foi uma contundente crítica ao classicismo, à métrica, à “objetividade” positivista. Foi um apelo à cor, à revolução, ao humano e ao novo. Mariátegui saiu do Peru em 1919 com esse sentimento que caracterizou a crítica ao século XIX; saiu em busca do novo, e com fortes simpatias pelo socialismo e pela experiência dos sovietes na Rússia. *** Ao analisar as Cartas de Itália248 – uma série de artigos que Mariátegui escreveu para a imprensa de Lima, tratando da situação política mundial –, fica evidente quais eram os fatos que mais importavam para Mariátegui, e em que sentido ele procurava orientar sua “estadia europeia”. A primeira carta é sintomática: denomina-se “A entente e os sovietes”, publicada em 12 de fevereiro de 1920, e demonstra como Mariátegui estava vendo a Revolução Russa. “Tem-se pensado que a Rússia de Trotsky e Lenin era uma ressurreição da França napoleônica.” E sobre a paz entre Inglaterra e Rússia: “Será a paz entre o Estado Maior do capitalismo e o Estado Maior da Revolução Social”. (MARIÁTEGUI, op. cit., 1975, p. 7, t. 15). 248 MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras Completas (Populares). Lima: Minerva, 1975. t. 15. 218 Pelas palavras de Mariátegui, percebe-se que a sua visão do imediato pós-guerra era organizada pela oposição entre capitalismo e revolução social, indicando um direcionamento que não era compartilhado pela maioria dos jornalistas, e particularmente pelos que tinham relação com os governos. A chegada de Mariátegui coincide com uma ascensão do movimento operário italiano, e direcionou seu olhar para o fenômeno novo da Revolução Social. José Carlos, por aqueles dias, era um fervoroso simpatizante da Revolução Russa, do internacionalismo proletário e da III Internacional. [...] [há] um enorme influxo sobre ele da prédica internacionalista e europeizante de José Ingenieros, os contatos iniciais com os dirigentes do Partido Socialista Internacionalista Argentino (Rodolfo Ghioldi e Vittorio Codovilla), a impressão que o causara o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, principais dirigentes do grupo revolucionário alemão chamado “Spartacus” e a imagem negativa que produz nele a visita que fizera ao sindicalista norte-americano Samuel Gompers, representante da 2ª Internacional, durante sua estância em Nova Iorque. (ROILLON, 1984, s/p). Conforme as palavras de Roillon, que são confirmadas pelos artigos de Mariátegui na Europa, seu interesse estava dirigido ao socialismo como antítese do capitalismo em crise. Foi no primeiro semestre de 1920 que Mariátegui estudou de forma concentrada as principais obras disponíveis do marxismo, parte adquirida na estadia de alguns meses em Paris, local onde pôde visitar Barbusse, a redação de L’Humanité e adquirir livros sobre socialismo e marxismo. Na Itália, Mariátegui presenciou e narrou em seus artigos a ruptura entre comunistas e socialistas, e, avançando na sua compreensão dos dilemas que mobilizavam os debates no movimento operário italiano, dividiu os que, no movimento socialista, defendiam posições reformistas da 2ª Internacional e os que pretendiam seguir o caminho dos conselhos (sovietes), como substitutos dos instrumentos estatais de dominação burguesa, e defendiam a ditadura do proletariado, conforme apontava a Revolução Russa. Em março de 1921, Mariátegui publicou um artigo, “O cisma do socialismo” (Ibidem, 1975, p. 95), no qual descreveu as tendências que disputavam a direção do Partido Socialista Italiano. Na Itália – diferente do que ocorria nos outros partidos socialistas europeus, em que haviam apenas duas correntes, comunistas e socialdemocratas – haviam três, e todas elas com simpatias pela Revolução Russa e pela IC. 219 No clima de crise e pequena tradição do reformismo, se comparado à socialdemocracia alemã, era razoável que em meio às ocupações de fábricas que se espalharam pela Itália fossem as posições radicais que assumissem mais importância na condução do movimento operário. O grupo mais alinhado às posições comunistas, que defendia sem reservas a adoção das 21 condições para a filiação da IC, aprovada desde o II Congresso da IC, em 1920, era a corrente de Antônio Gramsci, e do L’Ordinere Nuovo, o jornal que nucleava a fração comunista do PSI. Junto com Cesar Falcón, entre 1920 e início de 1921, Mariátegui foi ao norte da Itália, no centro da insurreição operária italiana, onde ficavam as três cidades industriais da península, e onde o movimento operário vivia os debates político-ideológicos mais intensamente. Como correspondente do Jornal El Tiempo, os jovens peruanos participaram do Congresso de Livorno, o qual marcaria a saída da Fração Comunista, que fundaria o Partido Comunista Italiano, com Bordiga, Gramsci, Terracini, Bombacci, Reposssi, entre outros, no dia 27 de janeiro de 1921. Figura 66 – Credencial de Mariátegui no Congresso de Livorno249 Fonte: Archivo José Carlos Mariátegui 249 Fonte: Archivo José Carlos Mariátegui, Lima, Peru. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/mariategui/4434202912/in/set-72157623616144020>. Acesso em: 27 mar. 2014. 220 Roillon marca, um pouco antes do Congresso, o momento em que Mariátegui define-se como marxista-leninista. E se pode asseverar, sem eufemismo, nem precipitação alguma que, pouco antes do Congresso de Livorno, no seio do círculo de operários romanos no qual era ele um dos mais entusiastas e diligentes ativistas, abraçou as ideias marxistas. (ROILLON, 1982, s/p). Segundo Roillon, a participação de Mariátegui no Congresso de Livorno seguia uma trajetória de definição e atuação política. Em 1920, Mariátegui participava de um círculo de PSI em Roma, e posteriormente, com Falcón, Machiavello e outro jovem médico, Carlos Poe, fundariam a primeira célula comunista peruana, ainda que na Itália. (ROIULLON, 1982, s.p.)250. Segundo Roillon, é a partir dessa célula que Mariátegui começa a pensar em “colaborar com a criação do socialismo peruano”. Em março de 1921, escreveria: O Partido Comunista trabalha exclusivamente pela Revolução e para a Revolução. Esta preparação para a revolução não é como se compreende, uma preparação material. É uma preparação espiritual. (MARIÁTEGUI, 1975, s.p., t. 15) Como citamos acima, muitos autores, particularmente Paris (1981) e Carnero Checa (1980), têm desenvolvido uma tese na qual identificam inúmeras influências de Mariátegui, e seria a partir dessas tantas influências que se explicaria a “heterodoxia” do marxismo de Mariátegui. De fato, Mariátegui cita e analisa diversos autores que não faziam parte da tradição marxista, como Benedito Croce. Vanden (1975) escreveu um livro após analisar a biblioteca de Mariátegui, e no 2º capítulo, “Experiências na Europa”, dedica-se especialmente à refutação da importância das influências de Mariátegui, com Gobetti, Croce, Labriolla e até Gramsci. (VANDEN, 1975, passim) Para Vanden, Labriola e Croce são tratados em alguns poucos artigos, mas como “Por entonces Mariátegui, Falcón, Machiavello y un joven médico, Carlos Roe – quien recientemente se había unido al grupo – poseían una convicción socialista y tenían un claro enfoque de clase sobre los fenómenos de la vida social. Convertida Europa en lugar de paso para ellos, «se concertaron para la acción socialista» en el Perú fundando una célula para tal propósito. Así empezó a cruzarse por la mente de José Carlos la idea de concurrir a la creación del socialismo peruano. ‘Mariátegui y Falcón – relata Armando Bazán – solían reunirse a menudo con un cónsul peruano (Machiavello) y con un médico chalaco (Roe). Al poco tiempo, funcionario y galeno resultaron "rojos’. Las cosas llegaron a tanto que una noche de esas resolvieron formar los cuatro ¡la primera célula comunista peruana!. Muy fugaz y muy exigua fue la actuación de la célula peruana, involucrada en ese conjunto social donde los fascios adquirían cada vez más virulencia y predominio...” (ROIULLON, 1982, s.p.). 250 221 jornalista o fato de Mariátegui citar um autor não significava que ele estivesse sendo “influenciado” por ele. Por outro lado, em 1920-21, era uma etapa inicial no desenvolvimento do movimento comunista europeu que se ajustava à estratégia trançada então pela Terceira Internacional. Contudo eram formuladas algumas interpretações discrepantes. Mariátegui as examinou atentamente para elucidar a sua origem e suas projeções, como se pode apreciar através de sua ‘defensa del marxismo’. (VANDEN, 1975, p. 47). Definidos os dois campos que dividiam o mundo, Capitalismo x Revolução Social, Mariátegui faz a sua opção política por compreender e colaborar com a Revolução Social. No campo da Revolução, Mariátegui identifica a divisão entre socialismo e anarquismo, para depois da Guerra verificar que havia uma divisão no seio do movimento socialista. Essa divisão entre reformistas e revisionistas por um lado, e revolucionários por outro, inspiraria uma série de reflexões no jovem Mariátegui. O Amauta percebeu que um dos componentes ideológicos (espirituais, como chegou a dizer) mais importantes do capitalismo foram uma série de crenças liberais que ele encontraria também no marxismo da 2ª Internacional. Ele dedicou muitos artigos ao combate a ideia do progresso, conforme o positivismo do século XIX. Esse é o sentido da inspiração “soreliana” de Mariátegui, mais um aporte ao rechaço do positivismo liberal que dominava as ciências sociais do período anterior à guerra que uma adesão a uma concepção estruturante de filiação soreliana. Há uma citação conhecida e muito citada de Lenin criticando Sorel. Mas o contrário não é verdadeiro. O sindicalista francês escreveu um epílogo do seu mais importante livro, Reflexões sobre a Violência, com o título: “Ode a Lenin”251. 251 Cf.: SOREL, 1992. 222 Figura 67 - Lenin na Revista Amauta Fonte: Amauta, nº 5, jan. 1927, p. 18 A crítica soreliana teve uma relativa importância no período anterior à guerra, já que era uma contraposição à social-democracia reformista, embora não fosse exatamente um anarquista. Sorel foi um crítico da ideia do progresso que embalava a mentalidade imperialista da época. Em seus textos, Sorel enfatiza a ruptura e o conflito revolucionário como fatores de transformação, e se opôs ao evolucionismo, à racionalidade e ao conformismo. A obra leninista, embora tivesse um sentido diferente, possui inúmeros pontos de contato em relação à crítica ao reformismo da 2ª Internacional, na defesa da vontade revolucionária, e em contraposição ao desenvolvimento “natural” das forças produtivas até a sociedade sem classes. Mariátegui identificou que entre as características que diferenciam reformistas e revolucionários havia algo de “espiritual”, algo que parecia “idealista” e voluntarioso, que movimentava as mulheres e os homens em direção à luta revolucionária. O conceito de mito desenvolvido por Sorel foi o aporte soreliano que mais o inspirou. A ideia do mito instrumentalizou a crítica ao conformismo reformista, mas possibilitou uma explicação para um certo idealismo que sempre agitava o movimento revolucionário. Concedo-lhe que as tendências mais naturais das classes operárias levam-nas para o que vulgarmente se chama de reformismo; se não 223 fosse assim, como se poderia compreender os êxitos que a democracia teve na história da Antiguidade? Mas não preciso dizer-lhe que as tendências mais naturais não são as que contribuem para a moral. Por isso celebro o heroísmo dos grupos proletários... (SOREL, 1992, p. 346). Para explicar o espírito voluntarioso dos sindicalistas, Sorel apresentou a ideia do mito. O mito nada mais é que um conjunto de imagens, fundamentalmente simbólico, que coloca as pessoas em ação, que impulsiona o movimento coletivo. Em suas próprias palavras: Devemos julgar os mitos como meios de agir sobre o presente. Toda discussão sobre a maneira de aplicá-la materialmente no curso da história é desprovida de sentido. É apenas o conjunto do mito que importa; suas partes não oferecem interesse senão pelo relevo que dão a ideia contida na construção. Portanto não convém pensar nos incidentes que podem se produzir ao longo da guerra social e dos conflitos decisivos capazes de dar a vitória ao proletariado. Ainda que os revolucionários se enganem completamente, pintando um quadro fantasiado da greve geral, esse quadro pode ser, ao longo da preparação para a revolução, um elemento de força de primeira ordem, se admitir, de maneira perfeita, todas as aspirações do socialismo e se der ao conjunto dos pensamentos revolucionários uma precisão de pensar que não poderia lhes ter fornecido. (SOREL, 1992, p. 145). Assim, Sorel apresentava os objetivos do mito e uma crítica aos que pretendiam fazer uma revolução apenas com a “ciência”. Para Sorel, científico ou não, o importante era o mito, que com algo de fé movimenta os homens e pode transformar o mundo em direção ao socialismo. Portanto, para apreciar o alcance da ideia de greve geral, devemos abandonar todos os procedimentos de discussão corriqueiros entre políticos, sociólogos ou pessoas com pretensões à ciência prática. [...] Importa pouco que a greve geral seja uma realidade parcial, ou um mero produto da imaginação popular. Toda a questão está em saber se a greve geral contém exatamente tudo o que se espera a doutrina socialista do proletariado revolucionário. [...] Por intermédio deles [os revolucionários proletários], sabemos que a greve geral é exatamente o que afirmei: o mito no qual o socialismo está contido por inteiro, ou seja, um organização de imagens capazes de evocar instintivamente todos os sentimentos que correspondem às diversas manifestações da guerra travada pelo socialismo contra a sociedade moderna. (SOREL, 1992, p. 145-6). Partindo de uma análise racionalista que se pressupunha em sua época também materialista e objetiva, Sorel introduz esse elemento com forte conotação idealista. Mas 224 sua compreensão do mito não o coloca na esfera do idealismo, nem por um desprezo ao materialismo, mas elevava o mito a uma análise racionalista e objetiva. Essa é talvez a grande inovação de Sorel: construir a ideia de mito como necessidade objetiva, racionalizável na estratégia política, material em suas constituições, mas como necessidade idealista das massas. Como seus contemporâneos, em 1906, Sorel estava preocupado com a concretização das transformações socialistas, que, nessa época, jamais havia chegado a termo. Como os revolucionários derrubariam a sociedade burguesa? Sorel opunha-se ao evolucionismo. Georges Sorel, em estudos que separam e distinguem o que é essencial e substantivo do que é formal e contingente em Marx, representou, nos primeiros decênios deste século [XX], contra a degeneração evolucionista e parlamentar do socialismo, talvez mais que a reação do sentimento classista dos sindicatos; representou o retorno à concepção dinâmica e revolucionária de Marx e sua inserção na nova realidade intelectual [...]. Através de Sorel, o marxismo assimila os elementos e as aquisições substanciais das correntes filosóficas posteriores a Marx. Superando as bases racionalistas e positivistas do socialismo de sua época. (MARIÁTEGUI, 1994)252. *** Pelos artigos que Mariátegui escreveu enquanto esteve na Europa, os livros que comprou253 e depois levou em sua bagagem, fica claro que o peruano retornou ao seu país já definido pelo socialismo revolucionário. Não podemos falar em marxismoleninismo antes de 1924, pois seria apenas com a morte de Lenin que os aportes teóricos do revolucionário russo seriam sistematizados e denominados como marxismoleninismo254. Logo que retorna ao Peru, Mariátegui se coloca em contato com os jovens estudantes que animavam a Reforma Universitária, e desde 1921 haviam construído as chamadas Universidades Populares, em que ministravam cursos para os operários, 252 MARIÁTEGUI, José Carlos. Mariátegui Total. Lima: Amauta, 1994. Para conhecer a melhor lista que se dispõe da biblioteca de Mariátegui, ver: VANDEN, 1975. 254 Posteriormente, como veremos, Mariátegui já assume o marxismo com o leninismo, conforme o próprio programa do PSP, redigido por ele. “La praxis del socialismo marxista en este período es la del marxismo-leninismo. El marxismo-leninismo es el método revolucionario de la etapa del imperialismó, y de los monopoilos. El Partido socialista del Perú lo adopta como método de lucha.” (PROGRAMA do partido Socialista Peruano. Redigido por Mariátegui em outubro de 1928. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/mariateg/1928/oct/07a.htm>. Acesso em: 27 mar. 2014. 253 225 principalmente entre os operários mais ativos politicamente. As Universidades Populares González Prada (UPGP), que funcionaram em Vitarte, o bairro operário limenho, mais que servir como escola, foram um importante espaço de organização e concentração do movimento popular, unindo o movimento dos estudantes com o dos operários. Dessa experiência sairia a APRA, a Aliança Popular Revolucionária Americana, fundada no exílio de Haya de La Torre e formada principalmente por ex-professores das UPGP255. Quando Mariátegui retorna ao Peru, chegando em 17 de março de 1923 ao Porto de Callao, entrou em contato com Haya de La Torre, então reitor das UPGP. Mariátegui é convidado a ministrar uma série de conferências na UPGP, sendo apresentada no dia 15 de junho de 1923 a primeira conferência. Figura 68 - APRA na Revista Amauta Propaganda da APRA em um dos primeiros números da Revista Amauta. O símbolo que depois será usado pelo Partido Aprista Peruano na década de 1930 aparece no canto esquerdo da figura. Fonte: Amauta, nº9, Lima: maio de 1927, p. 15. 255 Trataremos dessa experiência política mais à frente. 226 Ao todo, Mariátegui apresentou 18 conferências, que depois seriam organizadas256 e publicadas no tomo 8 de suas obras completas populares. Essas conferências nos dão uma excelente dimensão de como Mariátegui retornou da Europa. O título do “curso” era História da Crise Mundial, e foi organizado para seguir um programa publicado na Revista Claridad, o órgão das UPGP, em seu número 2 257 , com o seguinte conteúdo: a guerra europeia, a Revolução Russa, A Revolução Alemã, a Revolução Húngara, a paz de Versalhes, a agitação proletária na Europa, na Itália e o fascismo, o problema das reparações, a crise da democracia e o fascismo, a paz de Sévres, a Crise filosófica (decadência do historicismo, do racionalismo, do positivismo, Einstein e Splengler), a Revolução Mexicana, a situação argentina, chilena e peruana, a função do fascismo e a NEP soviética. Figura 69 - Dzerchinsky no primeiro número de Amauta Retrato de Felix Edmundovich Dzerjinsky, o comunista polaco que se filiou ao Partido Bolchevique e dirigiu a Tcheka, uma organização de repressão do Estado Soviético. A sigla significa: Tropas para a Defesa Interna da República. Esse retrato é curioso porque na época a Tcheka já era considerada como uma das instituições da “barbárie” bolchevique pela propaganda anticomunista ocidental. Mariátegui tinha conhecimento do que significava uma imagem de Dzerjinsky em sua revista e que tipo de posicionamento estava assumindo. Fonte: Amauta, nº 1, Lima: set. 1926. 256 MARIÁTEGUI, José Carlos. História de la Crisis Mundial. Lima: Amauta, 1986. t. 8. CLARIDAD. Organo de la Federación Obrera y de la Juventud libre del Peru (edición fac-símile). Lima:Amauta, 1994. 257 227 Os temas que Mariátegui pretendia tratar eram de interesse geral do movimento popular, e as conferências, realizadas onde atualmente funciona o Parque de Exposições (antes local da sede da Federação de Estudantes Peruanos), foram bastante concorridas. O sentido dos temas é explicitamente uma leitura marxista revolucionária da crise do pós-guerra, e estava centrado nas perspectivas revolucionárias abertas após a Revolução Russa. A perspectiva de José Carlos fica clara na 1ª Conferência. A única cátedra de educação popular, com espírito revolcuionário, é está cátedra em formação da Universidade Popular. A ela cabe, por tanto, superando o modesto plano de trabalho inicial, apresentar ao povo a realidade contemporânea, explicar ao povo qie está vivendo uma das horas mais transcendentais e grandiosos da história, contagiar o ao povo da fecunda inquietude que agita atualmente aos demais povos civilizados do mundo. Nesta grande crise contemporânea, o proletariado não é um espectador; é um ator. Se vai resolver nela a sorte do propletariado mundial. Dela vai surgr, segundo todas a probabilidades e segundo todas as previsões, a civilização proletária, a civilização socialista, destinada a suceder a declinante, a decadente,a moribunda civilização capitalista, individualista e burguesa. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 15). Nesse período, o movimento anarquista já se encontrava hostil à URSS e por diversas vezes houve, em meio à Conferência, “protestos” ou ruídos entre os que assistiam. Portocarrero258, muitos anos depois, recordaria-se dessa resistência que as conferências de Mariátegui produziram entre os elementos anarquistas, mas também significaram o debate mais profundo acerca do marxismo, e do que era a experiência soviética e a ditadura do proletariado. A partir da décima terceira conferência, Mariátegui começou a tratar a realidade extraeuropeia, principalmente oriental. Até 1925, com a “primeira” revolução chinesa, o oriente ainda aparecia como parte auxiliar da Revolução Mundial. Mariátegui percebeu que a luta anticolonial, no pós-guerra, tendia a crescer, mas não a tratou ainda com a profundidade com que trataria nos últimos anos da década de 1920. A Ásia e a África querem se emancipar da tutela da Europa [...] existe, inclusive, outro motivo psicológico para a insurreição do Oriente. Até antes da guerra, as populações orientais tinham um respeito supersticioso pelas sociedades europeias, pela civilização ocidental, criadoras de tantas maravilhas e depositárias de tanta cultura. A guerra e suas consequências tem diminuído, tem debilitado muito esse 258 PORTOCARRERO, 1987, p. 119, 120 e 131. 228 respeito supersticioso [...] perderam (MARIÁTEGUI, 1975, p. 141, v. 8). sua autoridade moral. A décima sexta conferência tratou da Revolução Mexicana, a Revolução Social da América, que, nessa época, estava vivendo os conflitos entre Obregón e De La Huerta. José Vasconcelos estava em seu período áureo entre estudantes reformistas, devido ao seu trabalho na Secretaria de Educação e foi muito citado também. A notícia da Conferência, publicada em La Cronica, de 25 de dezembro, informava que, ao se mencionar Vasconcelos, se havia proposto a elaboração de uma saudação ao “Mestre da juventude”259, que seria entregue por Haya de La Torre (já no exílio na Cidade do México) a Vasconcelos. A última conferência de Mariátegui, pronunciada pouco antes de ter a perna amputada e ficar impossibilitado de se locomover sem uma cadeira de rodas, teve o título de “Elogio a Lenin”, pronunciada poucos dias após a morte do líder dos comunistas. A opção de Mariátegui e o próprio conteúdo da última conferência de Mariátegui não deixam dúvidas sobre sua inclinação, mas a percepção de Mariátegui, sobre o seu papel, é interessante. “Baseou a sua ideologia na realidade proletária, combateu o confucionismo operário, gerado pela situação política russa, lutou por diferenciar os marxistas dos que não eram.” (MARIÁTEGUI, 1986, p. 169). E cita os livros de Lenin, entre eles O Estado e a Revolução e a Ditadura do Proletariado e o renegado Kautsky, textos clássicos de Lenin que parecem ter influenciado de forma basilar a concepção de Mariátegui acerca do Estado e do combate ao revisionismo. Pelas conferências, podemos ter uma ideia de quais ferramentas teóricas Mariátegui dominava para analisar a realidade peruana. Em uma carta a Samuel Glusberg (MARIÁTEGUI, 1984, p. 330-332), por solicitação de que enviasse uma breve biografia, o próprio Mariátegui afirmava que havia iniciado o seu trabalho de investigação da realidade nacional. De fins de 1919 a meados de 1923 viajei pela Europa. Residi mais de dois anos na Itália, onde desposei uma mulher e algumas ideias. Andei pla frança, Alemanha, Austria e outros países. Minha mulher e um filho me impediram de chegar a Rússia. Desde a Europa me juntei com alguns peruanos para a 259 José Vasconcelos ficou muito popular entre os estudantes reformistas latino-americanos, e em muitas ocasiões se referiram a ele como “El maestro de la juventud”. Essa reverência durou pouco, apenas até meados da década de 1920. 229 ação socialista. Meus artigos dessa época marcam as estações de minha orientação socialista. A minha volta , 1923, em reportagens, conferências na Federação de Estudantes e a Universidade Popular, artigos expliquei a situação europeia e iniciei meu trabalho de investigação da realidade nacional, conforme o método marxista. Em 1924 estive, como já o tenho contado, a ponto de perder a vida Perdi uma perna e fiquei muito frágil. Teria certamente me curado de tudo com uma existência em repouso. Mas nem minha pobreza, nem minha inquietude intelectual consentiram. Faz seis meses que melhoro pouco a pouco. Não publiquei mais livros que os que você conhece. Tenho pronto dois e outros em projeto. Aqui está minha vida em poucas palavras. Não creio que valha a pena fazê-la notória. Mas não posso recusar de lhe enviar os dados que pede Esquecia-me: Sou um autodidata. Matriculei-me uma vez em Letras em Lima, mas com o único interesse de seguir o curso de latim de um augustino erudito. E na Europa frequentei alguns cursos livremente, mas sem nunca decidir por perder meu caráter extra-universitário. (MARIÁTEGUI, 1984, p. 331). Nada mais natural que Mariátegui passasse à aplicação do marxismo na análise da especificidade peruana, e foi no sentido dessa aplicação que Mariátegui procurou escrever a sua obra-prima, e através dela que buscaremos um “modelo por trás dos sete ensaios”. O modelo por trás dos Sete Ensaios Dentre os casos anteriores, no México e Brasil, de tentativa de aplicação do marxismo, já sob profunda influência da refundação leninista na América Latina, a obra-prima de Mariátegui, Los Siete Ensayos de Interpretação da Realidade Peruana260, foi sem dúvida a melhor análise marxista até então elaborada de uma realidade nacional na América Latina. O reconhecimento da singularidade dessa obra e a sua importância entre os clássicos das ciências humanas no continente é há tempos reconhecida. Questionáveis se tornaram as influências que esta obra sofreu, e seu legado político. 260 Para a análise da obra-prima de Mariátegui, utilizamos três versões, que, embora não sejam muito diferentes, não são idênticas. A primeira versão é uma edição fac-símile da obra de Mariátegui, publicada pelo Ministério da Cultura do Peru, em que se respeita a paginação original, bem como toda a composição da primeira edição dos Sete Ensaios. MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. Lima: Ministério de Cultura, 2011. A segunda versão é uma edição venezuelana de 1995, reimpressa em 2007 pelo Ministério pelo Poder Popular da Cultura, em que há todos os acréscimos e correções que foram incorporadas após a morte de Mariátegui pelos editores. MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. A terceira versão é a segunda tradução editada no Brasil e publicada pela Editora Expressão Popular em 2008. Essa tradução de Felipe José Lindoso não foi baseada no original, e incorporou todos os acréscimos posteriores a 1930 das ultimas edições publicadas no Peru. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. São Paulo: Expressão Popular, 2008. 230 Sete Ensaios é o livro de um autor peruano que tem o maior número de traduções, mais vendido e de importância incomparável com qualquer outro autor no seu país. (NETTO, 2009, p.45 e 46). O número de trabalhos acadêmicos dedicados ao pensamento de Mariátegui e sua obra-prima é incontável e impossível de ser revisado na totalidade. Sete Ensaios foi republicado pelo governo de Hugo Chavez na Venezuela, é leitura obrigatória dos movimentos indigenistas latino-americanos e chegou, inclusive, a aparecer nas mãos de Che Guevara no filme Diários de Motocicleta (2004)261, que retratou a viagem juvenil do revolucionário argentino pela América do Sul. Essa viagem seria um dos momentos importantes de formação de sua consciência latinoamericanista. O livro de Mariátegui aparece compondo o quadro dessa formação marxista latino-americana de Che Guevara. Os Sete Ensaios de Mariátegui foram para todos sinônimo de marxismo latinoamericano, do encontro entre indigenismo e marxismo. Mas, como já vimos ao tratar o debate sobre as influências na formação de Mariátegui, Sete Ensaios precisa também ser visto a partir do contexto histórico em que foi escrito, além da necessária análise do debate historiográfico, profundamente marcado pela luta política, primeiramente entre comunistas e apristas, depois entre acadêmicos, indigenistas e socialistas por um lado, e comunistas por outro. A obra de Mariátegui após a sua morte foi “esquecida” pelo PCP até a década de 1940, quando Jorge Del Prado262 e os filhos de Mariátegui voltaram a divulgar a obra. Desde a década de 1950, diversas correntes políticas peruanas passaram a disputar o legado de Mariátegui, e, a cada volume publicado da Coleção de Obras Populares editada pela Editora Minerva, Mariátegui era mais estudado e surgiam novos “Mariáteguis”, de acordo com a filiação do interprete, ou da moda intelectual da época. Esses trabalhos de interpretação da obra de Mariátegui levaram a um acalourado debate. Para este trabalho, interessa-nos apenas o debate do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, pois é a partir desses autores que se construiu a oposição entre Mariátegui e a Internacional Comunista, ou, ainda mais, entre Mariátegui e o marxismo-leninismo. 261 DIÁRIOS de Motocicleta, Direção: Walter Salles: 2004, 1 Filme (125m 49s). Os autores (ESCORSIN, GALINDO, ARICÓ; 2006, 1980, 1978) que narram o processo de recuperação da obra de Mariátegui citam o artigo de Jorge Del Prado, “Mariátegui, marxista-leninista fundador del Partido Comunista Peruano”, publicado em 16 de abril de 1943, como o início da recuperação da obra de Mariátegui. Aricó organizou um livro em que aparecem todos os textos importantes, até 1978, sobre o significado da obra de Mariátegui. Inclusive aparece o texto de Jorge Del Prado na íntegra. Ver ARICÓ, José (Seleção). Mariátegui y los origenes del marxismo Latinoamericano. México: pyp, 1978. 262 231 O primeiro e mais citado autor que separou Mariátegui dos comunistas foi Robert Paris (1981), já tratado anteriormente. Depois temos Alberto Flores Galindo (1980), com um livro dedicado em apontar essa contradição entre Mariátegui e a Internacional Comunista, e outros, como Antônio Melis (2011) ou Chang-Rodríguez (2007), esse último um aprista acadêmico. Outros autores se dedicaram a apontar, por outro lado, a filiação comunista de Mariátegui, como Jorge Falcón (1977,1978, 1979, 1980), Rouillon (1993) e Luna Vegas (1988). Além do debate político-ideológico que permeia essa disputa pelo legado de Mariátegui, é importante acrescentar mais um detalhe: o que era comunismo e marxismo-leninismo quando se iniciou o debate sobre a obra de Mariátegui, entre os últimos anos da década de 1970, e os primeiros anos da década de 1980. O centro do debate esteve em aumentar ou diminuir a influência do marxismoleninismo de Mariátegui. Acadêmicos liberais e socialistas diminuem, enquanto militantes comunistas destacavam a influência do marxismo-leninismo. Mas, embora esse seja um importante ponto para se começar a identificar a filiação de Mariátegui, existe um problema anterior, que é a própria definição de marxismo-leninismo, ou de comunismo que Paris, Galindo e Melis utilizam para opor, ou analisar a obra de Mariátegui. A ótica com que perceberam o marxismo-leninismo foi a de intelectuais ocidentais sufocados pelos manuais soviéticos, em uma época, após a década de 1950, em que o marxismo deixou de servir como “método de ação”, para ser canonizado em centros de Estudos do Estado Soviético, uma disciplina obrigatória a mais, uma típica doutrina de Estado, rígida, estática; um método sociológico estéril e oficial de um Estado que se desmoronaria uma década depois. Esse “marxismo-leninismo” dos manuais soviéticos é oposto ao que Mariátegui entendeu por marxismo-leninismo, e possui semelhanças com o “marxismo” da 2ª Internacional: positivista, reescrito a partir de um economicismo eurocêntrico, como um método de sociologia vulgar, sem relação com a prática revolucionária263. 263 Um dos autores famosos desses manuais soviéticos foi Afanassiev (Fundamentos da Filosofia, Moscou: Progresso, 1978) e a sua explicação da dialética, por exemplo, é esquemática, dentro dos limites hegelianos da fórmula tese, antítese e síntese, além de possuir uma série de preceitos metafísicos. Esse tipo de manual, publicado pela famosa Editora Progresso, na década de 1980, foi questionado por Che Guevara, bem como, a partir da década de 1960, pelos comunistas chineses. Uma interessante referência para se conhecer o debate entre soviéticos e chineses a partir da década de 1960 pode ser encontrada nas denominadas “Cartas Chinesas”, documentos trocados entre URSS e a República Popular da China, em que tratam as divergências político ideológicas. Segundo Löwy, citando as palavras de Che: “Esses manuais – que ele chama de ‘paralelepípedos soviéticos’ – têm o inconveniente de não deixarem pensar: o 232 O marxismo-leninismo da Internacional Comunista não é a mesma coisa que o dogma do Estado Soviético na década de 1980. O marxismo-leninismo da Internacional Comunista era dinâmico, buscou interpretar a realidade política, em meio a acalourados debates e lutas políticas. Essa é a mesma perspectiva de Mariátegui, e diferente de como tratou Paris, por exemplo, o marxismo-leninismo não se constituiu em um modelo de normas e conceitos abstratos, ou teológicos, como chegou a afirmar: “Para quem se proponha a uma leitura ‘laica’ de Mariátegui, não se trata de recolocar a teologia ‘leninista’ por um fio condutor estritamente soreliano”. (PARIS, 1978, p. 155). Não entraremos no debate acerca do método marxista em geral, ou mesmo a diferença entre ideologia, ciência ou modelo leninista. Aqui nos importa demonstrar que Paris, em polêmica contra Cesar Levano no texto acima, tem uma interpretação particular do que é marxismo-leninismo, em que vê semelhanças com uma espécie de teologia, aqui com um sentido depreciativo, em oposição à ciência. Foi nesse mesmo sentido caricato que Paris entendeu o marxismoleninismo e que Löwy também tratou qualquer marxista ligado da Internacional Comunista após 1924, no que denominou como “ortodoxia”, e algumas vezes como “stalinismo”. A caricatura do marxismo-leninismo que guiou a IC limita os autores que se propuseram a compreender as vicissitudes que movimentaram os comunistas das décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial, favoreceu algumas interpretações que vislumbraram disputas pessoais como determinantes nas lutas político-ideológicas e dificultou a apreensão das ferramentas teóricas que Mariátegui manejou em sua interpretação marxista do Peru. Logo após o agravamento da saúde de José Carlos, e a consecutiva amputação de sua perna direita, a sua intervenção política sofreu uma mudança significativa na forma, já que estava limitado por uma cadeira de rodas. Segundo Maria Wiesse (1945)264, que conviveu com Mariátegui, os momentos posteriores à amputação, tão logo Mariátegui soube de sua nova condição física, foram de profunda dor e desespero. Mariátegui encontrava-se no esplendor de sua vida, recémPartido já fez isso por você, e você tem de engolir”. (LÖWY, Michel. Che Guevara contra o modelo soviético. Le Monde Diplomatique (edição eletrônica), Brasil: set. 2011. Disponível em: <https://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=61>. Acesso em: 27 mar. 2014). Sobre as Cartas Chinesas, ver: NÚCLEO de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo. A Carta Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Belo Horizonte: Terra, 2003. 264 WIESSE, Maria. José Carlos Mariátegui: (etapas de su vida). Lima: Hora del Hombre, 1945. 233 chegado da Europa, em meio à ascensão do movimento popular, com um crescente reconhecimento das boas novas revolucionárias que trazia, conhecendo de perto o movimento operário de Lima, participando e acompanhando os Congressos Indígenas, além de ter assumido responsabilidades centrais no movimento da juventude que animava a Universidade Popular González Prada, como diretor da Revista Claridad na ausência de Victor Raul Haya de La Torre265. Do leito do hospital, enquanto aguardava uma recuperação, já começou a estruturar uma nova logística de intervenção política, que contaria com reuniões em sua casa, inicialmente no próprio hospital, uma rede de correspondência, a fundação de uma editora, uma Revista de divulgação cultural e, posteriormente, o Partido Socialista Peruano e a Central Geral dos Trabalhadores. Seria ingênuo acreditar que essa logística organizada por Mariátegui para garantir sua intervenção política e ideológica tenha sido casual. A nosso ver, tratou-se de um plano elaborado desde que conseguiu superar o primeiro choque após a amputação da perna, para assim dar continuidade ao seu plano mais ambicioso: desenvolver o movimento comunista, ou o socialismo revolucionário (como preferem alguns) no Peru. Com determinação, Mariátegui constrói os instrumentos que lhe garantiriam abrir a luta ideológica entre a “vanguarda” do movimento popular. Sob uma cadeira de rodas, a primeira coisa que Mariátegui precisava evitar era a repressão, que já o havia mantido preso. A polícia política de Leguia estava atenta a qualquer atividade comunista, bolchevique ou que inspirasse o movimento operário em direção ao exemplo soviético. O amauta utilizou artifícios típicos de um revolucionário que atua legalmente com propaganda subversiva, tratando questões de fundo do debate ideológico sem utilizar termos que chamassem a atenção da repressão. Mariátegui defendeu o legado da Revolução Russa, seu caráter universal como perspectiva para os povos do mundo. Isso foi dito abertamente nas conferências de 1923, e sua filiação apareceu escancarada, mas, após a prisão, suas posições políticas aparecem em análises mais contextualizadas, utilizando vários termos e evitando bolcheviques, comunistas e preferindo o termo socialismo. O artigo jornalístico se presta muito bem a essa necessidade de camuflar uma defesa de posição com uma aparente narrativa de uma situação ou um fato da atualidade. Quando Mariátegui foi acusado de complot 265 Haya de La Torre, como outros, se encontrava no exílio desde que o Governo Lenguía passou da tentativa de cooptação à repressão aberta contra os movimentos populares, a partir de meados de 1923. 234 comunista, em 1927, sua filiação comunista ficou evidente, pois negou em carta aberta qualquer participação em um complot, mas, embora não afirme literalmente ser comunista, o que o levaria diretamente de volta para a prisão266, tampouco negou. Na resposta sobre a acusação de complot comunista, afirmou ser “marxista convicto e confesso”. Se tivesse alguma contradição fundamental com a IC, a acusação de complot seria uma excelente oportunidade para negar a sua filiação comunista, como tantas vezes fez Haya de La Torre, por exemplo. Como foi possível perceber até aqui, ser militante comunista significava colocar a vida a serviço da Revolução, seja o esforço de jornalista e organizador do Partido, como Astrojildo Pereira, de tradutor do manifesto comunista, como fez Otávio Brandão em 1924, como artista, fazendo propaganda comunista nas paredes como fizeram os muralistas mexicanos ou fotografando, como Tina Modotti. A atividade comunista era uma atividade de toda a vida, um engajamento integral para os militantes comunistas, e é de se supor que seria igualmente para Mariátegui também. Logo que pôde superar o impacto de perder sua mobilidade, aos 30 anos, Mariátegui passou a desenvolver uma logística de atuação política, e um plano de investigação da realidade que culminaria na elaboração dos Sete Ensaios e na formação do PSP com um núcleo clandestino comunista267. Sete Ensaios, como o próprio título escolhido pelo autor sugere, está formado por 7 partes (ensaios) precedidos por uma citação de Nietzsche e uma “advertência”. Em ambos preâmbulos à obra, Mariátegui chama a atenção para o processo de produção desse livro, e para muitos de seus intérpretes, como Antônio Melis (2011), constituiu a primeira evidência do caráter espontâneo, “antidogmático” e heterodoxo da obra. A citação de Nietzsche aparece em alemão mesmo, do livro Humano, demasiado Humano (NIETZSCHE, 1986)268, em que se nega a ler um livro que tenha sido composto para ser um livro, mas, ao contrário, prefere “apenas aqueles cujos os pensamentos inadvertidamente se tornaram um livro”. Em nosso contexto atual, essa citação ilustraria uma decidida opção pelo caráter 266 A melhor maneira de identificar as intenções e a filiação ideológica que movia Mariátegui, quando não se podia afirmar com nomes próprios, é verificando se ele em algum momento chegou a criticar os comunistas, o marxismo-leninismo ou o bolchevismo. Acompanhando toda a sua obra, vemos apenas a busca por apreender a experiência soviética, ou defendê-la de seus detratores. 267 O núcleo dirigente clandestino comunista do PSP foi uma forma que Mariátegui encontrou para organizar o Partido leninista em meio a um circulo mais amplo. Essa posição será criticada pela IC, e trataremos no final do capítulo 3 deste trabalho. 268 NIETZSCHE, Frederich. Humano, demasiado Humano. México: Editores Mexicanos Unidos, 1986. 235 espontâneo e antiesquemático dos livros. Combinaria perfeitamente com a crítica aos “modelões” teóricos, particularmente aos advindos do marxismo, conforme uma certa crítica “culturalista” e “pós-moderna” que se tornou comum ao longo das década de 1990 e 2000. Mas uma simples análise contextualizada na obra de Mariátegui demonstra a real intenção crítica dessa citação. O autor de Sete Ensaios está se opondo ao academicismo escolástico que prevalecia nos estudos universitários da América Latina. Essa cultura acadêmica favorecia os estudos desligados da prática social e do estudo empírico dos casos, limitados à pomposidade, ao linguajar pedante e ao estilo aristocrático269. Na “advertência”, afirma que o livro é orgânico, e cita novamente Nietzsche: Meu trabalho se desenvolve segundo a observação de Nietzsche, que não aprecia o autor envolvido à produção intencional e deliberada de um livro, e sim aquele cujo pensamentos formavam um livro espontaneamente e inadvertidamente. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 31). O sentido dessas palavras aparece claro com o final do parágrafo: “Meu pensamento e minha vida constituem uma só coisa, um único processo. E se algum mérito espero e reclamo, é que me seja reconhecido o de – também conforme um princípio de Nietzsche – meter todo o meu sangue em minhas ideias”. (Ibidem, p.31). E ao final apresenta: Outra vez repito que não sou um crítico imparcial e objetivo. Meus juízos se nutrem de minhas ideias, de meus sentimentos, de minhas paixões. Tenho uma declarada e enérgica ambição: a de concorrer à criação do socialismo peruano. Estou o mais distante possível da técnica professoral e do espírito universitário” (MARIÁTEGUI, 1928, p.32.). Mariátegui, com essa advertência, está ligando-se diretamente à tradição bolchevique que fundou a IC, à ótica que não limita os estudos da sociedade pela racionalidade abstrata de um modelo teórico, mas condicionado pela interpretação da realidade que a luta revolucionária exigia, impulsionada pela polêmica e pela luta Mariátegui reúne, no ensaio “O processo da educação pública”, uma dura crítica ao modo estéril e pedante dos estudos na universidade peruana. O belíssimo texto “Crise de Mestres, Crise de ideias” é particularmente claro em demonstrar como Mariátegui enxergava a atividade acadêmica fechada em si, desligada da prática social. O revolucionário peruano era o contrário de um intelectual boêmio e afeito ao ensaio espontâneo. Aquilo a que Mariátegui está se opondo é ao livro planejado em um gabinete, a partir de reflexões limitadas ao conhecimento livresco, sem consequências práticas, voltados para a especialidade e a pura erudição. Ver: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Educación (Obras Populares). Lima: Amauta, 1986. v. 14. 269 236 política. Lenin produziu uma obra monumental, toda feita a partir da luta política entre os revolucionários russos e o movimento revolucionário mundial no sentido de interpretar a realidade objetiva e categoricamente para dirigir o esforço consciente do Partido e se alcançar a Revolução. Os Ensaios foram compostos de vários artigos publicados na Revista Amauta e na Revista Mundial, com significativas alterações e acréscimos, de modo que podemos considerar que o conjunto da obra não é uma compilação de artigos, mas a seleção em uma lógica única, fruto de um amadurecimento de sua investigação. O primeiro Ensaio já apresenta a base que Mariátegui pretende estruturar a obra, e é a chave para compreendermos os outros ensaios, com o sugestivo título “Esquema da Evolução Econômica”270. O que fica claro no procedimento é a inovação que Mariátegui estava promovendo. As palavras mudam de sentido com o tempo, de acordo com as contendas de cada época. Todo estudante de história do primeiro período aprendeu que, por volta dos anos de 1930, surgiu um movimento renovador nos estudos históricos que questionou a historiografia tradicional, dos grandes feitos do Estado, dos grandes homens, relegando o povo ao esquecimento. Influenciados pelo marxismo, mas não apenas por ele, esses historiadores propuseram, contra a “História Política”, uma história social, e também a estrutura, e a importância do fator econômico no processo histórico. Esse movimento, na França, inaugura uma nova corrente historiográfica, uma nova história, econômica e social, desenvolvida em torno da famosa Revista dos Annales271. Estudar a História do Peru a partir da economia fez parte de uma inovação teórica que não possuía precedentes, apenas comparável ao esforço do companheiro de Mariátegui, Martínez de La Torre, que a partir de 1928 publicou uma série de estudos sobre o movimento operário de 1918 e 1919272. Mariátegui parte de uma sistematização que encontramos nas análises do VI 270 Melis tenta refutar uma interpretação lógica deste início da obra de Mariátegui, que poderia colocá-lo próximo ao economicismo vulgar de um tipo de marxismo que alguns autores insistem em identificar com a IC, ou com Stalin (MELIS, 2011, p. IX – XIII), conforme já demonstramos anteriormente. 271 O título original da Revista, em francês, foi Annales d’histoire économique et sociale, criada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. 272 Ver: MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. El movimiento obrero peruano 1918-1919. Lima: CRONOS, s.d. e MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. Apuntes para una Interpretación de la História Social del Peru. Lima: Editora Peruana, 1947. 237 Congresso da IC, de 1928273, em que a Conquista e o posterior regime colonial estrangeiro representou a ruptura com uma economia nativa. “Até a conquista se desenvolveu no Peru uma economia que brotava espontaneamente e livremente do solo e da gente peruana.” (MARIÁTEGUI, 2008, p. 3). Dessa constatação, que a IC denominou como “economia deformada” pela penetração colonialista, Mariátegui opôs, do mesmo modo, a economia nativa autossuficiente e que se desenvolvia garantindo uma produtividade e um bem-estar para os que viviam sob o Império Inca. Todos os testemunhos históricos coincidem na asserção de que o povo incaico – laborioso, disciplinado, panteísta e detalhista – vivia com bem-estar material. As subsistências abundavam; a população crescia. [...] Os conquistadores espanhóis destruíram, sem poder naturalmente substituí-la, esta formidável maquina de produção. (MARIÁTEGUI, 1928, p. 8). Além de apontar para a Invasão Espanhola como a ruptura com o desenvolvimento orgânico nativo, Mariátegui identificou a base coletivista dos quéchuas, salientando o aspecto comunal da base camponesa em que se assentava o Império Inca. Mariátegui não está alimentando uma visão romântica de um retorno ao ayllu incaico, como entenderam alguns, mas buscando explicar historicamente a sobrevivência, 400 anos depois, do coletivismo do campesinato indígena. Não são os incas os coletivos e socialistas, mas os camponeses que viviam sob o Império que organizavam o trabalho produtivo coletivamente. O comunalismo como forma de organização do trabalho camponês não foi para Mariátegui uma especificidade andina, e muito menos uma constatação inovadora de Mariátegui. O que ele fez foi explicar historicamente o desenvolvimento dessa economia comunal no Peru para marcar as condições de sua sobrevivência no Peru republicano, inclusive buscando no mir274 semelhanças que ajudassem a explicar o ayllu andino. A organização coletivista, regida pelos incas, tinha tido o impulso individualista nos índios; mas havia desenvolvido extraordinariamente neles, em proveito desse regime econômico, o hábito de uma humilde 273 Como poderemos ver mais detalhadamente no próximo capítulo, as resoluções do VI Congresso da IC utilizam o mesmo modelo teórico estrutural que Mariátegui. 274 Mariátegui trata do mir russo em: MARIÁTEGUI, 2008, p. 80. 238 e religiosa obediência ao seu dever social. Os incas tiravam toda a utilidade social possível desta virtude de seu povo, valorizavam o vasto território do império construindo caminhos (estradas), canais, etc. O extendiam submetendo a sua autoridade as tribos vizinhas. O trabalho coletivo e o esforço comum eram frutiferamente empregados nos fins sociais. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 34). A economia nativa seria destruída pela conquista. Rompidos os vínculos de sua unidade, a nação se dissolveu em comunidades dispersas. O trabalho indígena deixou de funcionar de forma solidária e orgânica. [...] O vice-reinado assinala o começo do difícil e complexo processo de formação de uma nova economia. [...] Por cima das ruínas e resíduos de uma economia socialista, lançaram as bases de uma economia feudal. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 34). Seguindo uma lógica inversa ao eurocentrismo, o feudalismo europeu aparece como um fator desorganizador. Mariátegui estava de acordo com a lógica leninista que analisava o processo colonial dentro do processo de globalização, que, embora integrasse os territórios coloniais a uma economia mercantil (e, no século XIX, capitalista-imperialista), não as integrava de forma igual, senão como parte de um sistema, em que ainda prevaleciam as formas de organização feudais de trabalho, exportadas pelos conquistadores espanhóis para se efetivar a colonização do território e a exploração das minas. Essa economia criada pelos “pioneers espanhóis” tinha como objetivo a exploração do solo e das minas, sem que isso significasse um esforço de colonização que criasse uma “economia sólida e orgânica”. (Ibidem, p. 34). Faltava gente e a conquista parecia mais interessada em despovoar que colonizar. Recorreu-se ao escravo negro para as fazendas. Os espanhóis e os mestiços eram muito poucos para explorar, em vasta escala, as riquezas do território. E, como para o trabalho nas fazendas da costa se recorreu à importação de escravos negros, foram misturados, aos elementos característicos de uma sociedade feudal, elementos e características de uma sociedade escravista. (Ibidem, p. 35). Mariátegui colocava a história peruana a partir de uma perspectiva universal, questionando postulados positivistas da sociologia europeísta do século XIX, sem abrir mão de um modelo universal, ou perdendo-se em explicações fragmentárias ou tributárias a algum relativismo particularista para explicar a realidade peruana. 239 Prosseguindo na análise do processo de formação republicana, ou o processo de independência “como a primeira, a segunda etapa desta economia se inicia de um fato político e militar. A primeira etapa nasce da Conquista, a segunda se inicia com a independência”. (MARIÁTEGUI, 1928, p. 10). O autor peruano marca a continuidade da econômica colonial, mesmo sob bases políticas da República. “Mas, enquanto a conquista engendra totalmente o processo de formação de nossa economia colonial, a independência aparece determinada e dominada pelo processo.” (Ibidem, p. 10). A explicação para esse processo se desenvolve através da análise da tese historiográfica vigente e oficial na época, típica da história política tradicional, em que o processo nacional de independência é valorizado sem que signifique uma mudança econômica, e, portanto, “social”. Mariátegui, mais uma vez, reforça a sua tese de que o Peru fazia parte do “sistema ocidental”, e o processo de independência havia sido um eco na embrionária burguesia peruana, “que por causa de suas necessidades e interesses econômicos, podia e devia contagiar-se de humor revolucionário da burguesia europeia”. (Ibidem, p. 10) Após afirmar o papel da “geração heroica”, “[...] com capacidade e vontade de atuar nestes povos uma verdadeira revolução”, reafirma o papel da continuidade econômica, “mas isso não contradiz a tese da trama econômica da revolução emancipadora” (Ibidem, p. 10). A Espanha tornava-se um obstáculo para o desenvolvimento econômico capitalista. O novo colonialismo se formava sob a liderança da Inglaterra. O ritmo do fenômeno capitalista teve na elaboração da independência uma função menos aparente e ostensiva, mas, sem dúvida, muito mais decisiva e profunda que o eco da filosofia e a literatura dos enciclopedistas [...] O Império Britânico destinado a representar tão genuinamente e transcendentalmente os interesses da civilização capitalista, estava então em formação. Na Inglaterra, sede do liberalismo e do protestantismo, a indústria e a máquina preparavam o porvir do capitalismo, isto é, do fenômeno material do qual aqueles dois fenômenos, político um, religioso o outro, aparecem na história como a levedura espiritual e filosófica. (Idem, p. 11). A base da análise histórica de Mariátegui está estruturada na emergência das forças burguesas mais avançadas (Inglaterra, França e EUA) que suplantam o domínio espanhol, gradativamente, animando o rompimento das colônias espanholas que mais tarde irão compor as semicolônias da Inglaterra. A partir de então, a entrada de capitais europeus no Peru e na América Latina se 240 deu de maneira desigual, bem como a relação destes países com a Europa e a Ásia. Dessa forma, Mariátegui reafirma o caráter colonial que após a independência a economia peruana assumia. Mas esse rápido esquema de interpretação não se propõe a ilustrar nem a enfocar esses fenômenos, mas sim definir alguns traços substantivos da formação da nossa economia para melhor perceber seu caráter de economia colonial. Consideremos somente o fato econômico. (MARIÁTEGUI, 1928, p. 13). E é nesse sentido que se encontra o ciclo do Guano e do Salitre para a História peruana, “substâncias humildes e grosseiras”, que fizeram parte do centro econômico do país “ocuparam um posto desmensurado na economia peruana [...] hipotecando seu porvenir à finança inglesa” (Ibidem, p.13). Esse ciclo econômico, baseado na simples extração de matéria-prima, gerou algum crescimento para uma pequena elite do Peru, e estava definido pelas novas necessidades da metrópole capitalista, e, como veremos mais adiante, definiu a fraqueza da burguesia peruana e o desenvolvimento do capitalismo que se apoiou sob as bases feudais de produção. Os lucros do guano e do salitre criaram no Peru, onde a propriedade havia conservado até então um caráter aristocrático e feudal, os primeiros elementos sólidos de capital comercial e bancário. Os profiteurs diretos e indiretos das riquezas do litoral começaram a constituir uma classe capitalista. Formou-se no Peru uma burguesia, confundida e enraizada em sua origem e estrutura com a aristocracia, formada principalmente pelos sucessores dos encomenderos e latifundiários da colônia, mas obrigados por sua função a adotar os princípios fundamentais da economia e da política liberais. (MARIÁTEGUI, 2008, p.41) E afirma, como definição e síntese, da economia atual (de 1928): A guerra do Pacífico, consequência do guano e do salitre, não eliminou outras consequências do descobrimento e a exploração desses recursos nos revelou, tragicamente, o perigo de uma prosperidade econômica apoiada ou cimentada quase exclusivamente sobre a posse de uma riqueza natural, exposta à ambição e ao assalto de um imperialismo estrangeiro, ou à decadência de suas aplicações como resultado das contínuas mutações produzidas no campo industrial pelas invenções da ciência. Caillaux nos fala, com evidente atualidade capitalista, da instabilidade econômica e industrial engendrada pelo progresso científico. No período dominado e caracterizado pelo comércio do guano e do salitre, o processo de transformação da nossa economia, de feudal em burguesa, recebeu seu primeiro impulso enérgico. É, a meu juízo, indiscutível que, se em vez 241 da metamorfose ridícula da antiga classe dominante, houvesse operado o advento de uma classe de seiva e élan novos, esse processo teria avançado de forma mais orgânica e segura. A história do nosso pós-guerra demonstra isso. A derrota – que provocou, com a perda dos territórios do salitre, um longo colapso das forças produtivas – não deixou como compensação, nem mesmo nessa ordem de coisas, uma liquidação do passado. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 42). Com o título “caráter de nossa economia atual”, Mariátegui passa a caracterização do ultimo trecho da “evolução” da economia peruana. Após a derrota na Guerra do Pacífico e a bancarrota do ciclo do Guano e do Salitre, houve uma pequena retomada do caudilhismo275. Depois, a classe de capitalistas nascidos do guano e do salitre retomariam seu papel preponderante na condução do Estado peruano, abrindo as portas para o capital inglês novamente se reestabelecer no Peru, assumindo sua condição semicolonial. Mariátegui termina a análise do período preparatório para a estrutura econômica que será dominante na década de 1920, com a seguinte afirmação: “Seu método tributário [do presidente Pierola] e seu sistema fiscal dissipam todos os equívocos que possam criar seu discurso e sua metafísica. O que configura o princípio de que no plano econômico se percebe sempre com mais clareza que no político o sentido e o contorno da política, de seus homens e de seus fatos”. (Ibidem, p. 42). E, a partir desse ambiente criado pelo civilismo, Mariátegui identifica os elementos estruturantes da economia atual [de 1928]: 1º Indústria moderna com proletariado; 2º Surgimento do capital financeiro (consolidação da relação latifúndio e capital estrangeiro); 3º Diminuição da distância entre o Peru e a Europa/EUA (Canal do Panamá – incorporação do país à civilização ocidental); 4º Substituição do imperialismo britânico pelo dos EUA; 5º Desenvolvimento de uma classe capitalista, deixando de prevalecer a antiga aristocracia; 6º Inclusão da borracha; 7º Reforço da hegemonia da Costa na economia, superlucro europeu; 8º política de empréstimos onde os EUA substituíam a Inglaterra. E arremata afirmando: 275 Mariátegui utiliza o termo caudilhismo de forma depreciativa, como um tipo de déspota militar que, na ausência de uma classe com forças suficientes para dirigir o Estado na América Latina, assume a direção do Estado. O termo alcança uma conotação positiva em alguns contextos políticos específicos, como no México pós-revolucionário, em que o caudilho aparecia como um libertador da comunidade, um líder que lutava contra a opressão de um Estado que se voltava contra a população. Mas o termo sempre se refere a um líder, geralmente militar, que assume as funções de comando para além dos limites da institucionalidade, acima dos limites impostos pelas leis constitucionais. O caudilho comumente é a própria personificação do Estado, tanto localmente como muitas vezes de âmbito nacional. 242 No Peru atual coexistem elementos de três economias diferentes. Sob o regime de economia feudal nascido da Conquista subsistem na Serra alguns resíduos ainda vivos da economia comunista indígena. Na Costa, sobre o solo feudal, cresce uma economia burguesa que pelo menos em seu desenvolvimento mental, dá a impressão de ser uma economia retardada. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 46). O último subcapítulo versa sobre o caráter semifeudal ou feudal da economia peruana. Nesse ponto, embora Mariátegui sustente a caracterização feudal para definir a base econômica rural, particularmente na Serra, o autor peruano não fez nenhum tipo de concessões a explicações evolucionistas das quais são acusados os marxistas que se utilizam do conceito de feudalismo para definir a economia, ou parte dela, em alguns países dominados pelo imperialismo. É nesse ponto que Mariátegui esbanja coerência, e onde muitos veem incoerência, ou algum limite em seu pensamento, “falha” que justificam pelo contexto intelectual em que viveu276. Fazendo uma síntese do primeiro ensaio de Mariátegui, que trata de economia, o feudalismo deixa de se explicar como resquício e se apresenta como forma de organização da economia agrária sob a qual se apoia a economia imperialista. É retrógrada do ponto de vista da evolução humana em geral, mas compõe o sistema imperialista, demonstrando, contra qualquer perspectiva que enxergue o imperialismo como força progressista, apresentando os limites “civilizatórios” do imperialismo, que desenvolve, ao invés de novas relações de produção contemporâneas, ao contrário, apoia-se sob relações atrasadas que subsistem desde o período colonial. Segundo o modelo que Mariátegui utiliza para estruturar seus ensaios, antes da Conquista havia um império que se apoiava sob formas comunais de produção, que garantia uma integração do próprio império inca, através de uma autossuficiência material. “O império ignorou radicalmente o problema de Malthus.” (MARIÁTEGUI, 2008, p. 33). Esse desenvolvimento espontâneo e livre da economia dos incas foi rompido pela conquista. “Os espanhóis destruíram naturalmente, sem poder substituir, essa formidável máquina de produção.” (Ibidem, p. 34). A conquista, além de destruir o desenvolvimento autônomo, impôs as demandas da metrópole, sem que isso significasse o bem-estar da população indígena. Depois, com a independência houve um clima, um estado de espírito liberal influenciado pela 276 Melis, na introdução da edição fac-símile de Sete Ensaios, não encontra muita coerência, ou sentido para o uso do conceito de feudalismo por Mariátegui. Como demosntramos, esse conceito não é acessório, é fundamental para a interpretação histórica produzida nos Sete Ensaios. 243 independência dos EUA e com a Revolução Francesa, que se combinou com alguns interesses de emancipação econômica da elite criolla, sufocada pela coroa espanhola. Mas essa independência não significou uma mudança estrutural da sociedade; mantevese uma ordem social que não emancipava a população indígena. Após um período de lutas entre facções militares e caudilhos políticos, um ciclo econômico baseado na exploração do guano e do salitre criou uma burguesia que enriqueceu com a extração desta matéria-prima enviada à Inglaterra. Com a Guerra do Pacífico, e a consecutiva perda das áreas de exploração desse produto, abateu-se uma terrível crise na elite que nasceu no entorno do ciclo econômico. Com a crise, veio o aprofundamento da condição colonial peruana frente ao imperialismo inglês, com o Contrato Gracie277 e o estabelecimento do que ficaria conhecido como República oligarquica. Esse tipo de regime republicano, embora estivesse ligado ao capitalismo, à civilização ocidental ou ao imperialismo (Mariátegui utiliza esses dois termos em um sentido parecido), incorporou-se a partir de uma condição colonial, na qual se apoiava em relações e em um modo de produção feudal subjacente às relações capitalistas. A oligarquia rural perde espaço para a oligarquia que nasce atrelada à exploração capitalista. As forças capitalistas que entram no Peru não revolucionam o país, não modificam a estrutura econômica que existiu desde a colônia, mas se apoiam sobre elas para desenvolver uma economia voltada aos interesses estrangeiros e imperialistas. E é com esse sentido que Mariátegui passa para o seu segundo ensaio, sobre a questão indígena. Primeiro o autor demarca o seu posicionamento contra o indigenismo oficial ou a filantropia, termo utilizado para denominar aqueles que tratam o problema indígena como uma questão educacional, jurídica, moral ou eclesiástica. Para Mariátegui, o problema indígena é econômico-social. Todas as teses sobre o problema indígena, que ignoram ou aludem a este como problema econômico-social, são outros tantos exercícios teóricos – e às vezes apenas verbais – condenados a um descrédito absoluto. Nem a boa fé de algumas as salvam. [...] A crítica socialista o descobre e esclarece, porque busca suas causas na economia do país e não no seu mecanismo administrativo, jurídico ou eclesiástico, nem em sua dualidade ou pluralidade de raças, nem em suas condições culturais ou morais. Contrato Gracie – foi um acordo assinado entre credores ingleses e o Governo peruano, em que esse último cedia aos ingleses o direito de explorar as ferrovias no Peru, em troca da suspensão das dívidas públicas. 277 244 A questão indígena nasce de nossa economia. Tem suas raízes no regime de propriedade da terra. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 53). Mariátegui é categórico em afirmar que o problema indígena é uma questão com causas econômicas, e portanto relaciona-se à questão da terra, à questão camponesa e ao feudalismo. Qualquer tentativa de resolvê-la com medidas de administração ou polícia, com métodos de ensino ou obras de estradas, constitui um trabalho superficial ou adjetivo, enquanto subsistir o feudalismo dos gamonales. (Idem, p. 53). Para Mariátegui, o problema indígena está relacionado à questão da terra, e subsiste porque não houve uma revolução burguesa para que se pudessem distribuir terras aos camponeses. Mas para que houvesse uma distribuição de terras, uma Revolução Agrária, seria necessário destruir o gamonalismo, as bases feudais em que se assentavam as relações de propriedade e trabalho do campo peruano. Era necessário expropriar a terra do latifúndio, tarefa típica das revoluções burguesas na história europeia. A concentração capitalista foi precedida por uma etapa de livre concorrência. A grande propriedade moderna não surge, por conseguinte, da grande propriedade feudal, como provavelmente imaginam os latifundiários criollos. Muito ao contrário, para que surgisse a grande propriedade moderna, foi necessário o fracionamento, a dissolução da grande propriedade feudal. O capitalismo é um fenômeno urbano: tem o espírito do burgo industrial, manufatureiro, mercantil. Por isso, um de seus primeiros atos foi a liberação da terra, a destruição do feudo. O desenvolvimento da cidade precisa se nutrir da atividade livre do camponês. No Peru, contra o sentido da emancipação republicana, se encarregou ao espírito do feudo – antítese e negação do espírito do burgo – a criação de uma economia capitalista. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 51). Por se tratar de uma questão estrutural da economia peruana, não poderia haver mudanças significativas sem que se transformasse a economia. Com essa lógica, Mariátegui está contrapondo as teses liberais do século XIX que transpunham teorias da biologia para a análise social. Geralmente, essas teses liberais reafirmaram pressupostos racistas ao tratar a questão indígena. A suposição de que o problema indígena é um problema étnico se nutre do repertório mais envelhecido das ideias imperialistas. O 245 conceito de raças inferiores serviu ao Ocidente branco para a sua obra de expansão e conquista. Esperar a emancipação indígena de um cruzamento ativo da raça aborígine com imigrantes brancos é de uma ingenuidade antissociológica, concebível apenas na mente rudimentar de um importador de carneiros merinos. Os povos asiáticos, aos quais o povo índio não é inferior em nenhum ponto, assimilaram admiravelmente a cultura ocidental, no que esta tem mal dinâmico e criador, sem transfusões de sangue europeu. A degeneração do índio peruano é uma invenção vagabunda do leguleios feudalistas. A tendência em considerar o problema indígena como um problema moral encarna uma concepção liberal, humanitária, oitocentista, lluminista, que na ordenação política do Ocidente anima e motiva as “Ligas dos Direitos do Homem”. (Ibidem, p. 57). Originalmente, o ensaio sobre a questão indígena terminaria após tratar a contribuição de González Prada e avaliar o Papel da Associação Pró-Indígena (19091917), reafirmando os limites em se tratar o problema indígena desligado do problema da terra, como um problema moral, administrativo ou pedagógico278. Depois seria incluída uma Revisão sumária. Era uma síntese do ensaio anterior, mais preciso e afirmativo. O interessante é que Mariátegui avançou em um ponto importante de sua tese, que é o papel do liberalismo em se apropriar das terras indígenas com um discurso aparentemente em defesa de uma reforma agrária. Ao defender o parcelamento das terras, os liberais conseguem simpatia dos camponeses-indígenas, já que parecem voltar seu discurso contra o latifúndio. Depois de parceladas as terras da comunidade indígena, gradativamente o cerco da grande propriedade arruína a pequena propriedade e acaba favorecendo o latifúndio. Assim, para o autor peruano, os liberais pós-independência, por não se proporem em destruir o latifúndio, aliando-se a ele, acabaram servindo apenas para retirar as terras comunais dos indígenas para favorecer a concentração de terras e alimentar o gamonalismo. Como já vimos, esse foi um debate muito próximo ao do PCM, já apresentado anteriormente. A república significou para os índios ascensão da nova classe dominante que se apropriou sistematicamente de suas terras. Em uma raça com costume e alma agrárias, como a raça indígena, esse despojo foi a causa de uma dissolução material e moral. A terra sempre foi 278 O autor fez questão de marcar o papel de Dora Meyer e Pedro Zulen na manutenção da Associação Pró-indigena. Tanto Dora como Pedro tiveram seus artigos sobre a questão publicados na Revista Amauta. Pedro Zulen morreria precocemente, em 1925, com menos de 36 anos. As edições posteriores a morte de Mariátegui incluíram um artigo intitulado “Revisão Histórica Sumária”, que Mariátegui escreveu para The Nation, em seu número 128, depois publicado em Labour, em novembro de 1928. Esse artigo de Mariátegui foi incluído devido a uma nota do próprio autor indicando a inclusão em Sete Ensaios. 246 toda a alegria do índio. (Ibidem, p. 57). Relacionando a opressão indígena com a questão da terra, Mariátegui destaca ideias socialistas como a esperança para a questão indígena, já que, diferente das revoluções burguesas europeias, após a expansão imperialista do século XIX, o liberalismo já não promove transformações sociais e econômicas nos países periféricos, ficando para o movimento revolucionário socialista a tarefa de destruir as bases econômicas do gamonalismo com Revolução Agrária. A propagação no Peru das ideias socialistas teve como consequência um forte movimento de reivindicação indígena. A nova geração peruana sente e sabe que o progresso do Peru será fictício, ou pelo menos não será peruano, enquanto não seja a obra e não signifique o bem-estar da massa peruana, 4/5 das quais é indígena e camponesa. Esse mesmo movimento se manifesta na arte e na literatura nacionais, nas quais se nota uma crescente revalorização das formas e assuntos autóctones, antes desprezados pelo domínio de um espírito e de uma mentalidade coloniais espanholas. A literatura indigenista parece destinada a cumprir a mesma função que a literatura "mujikista" do período pré-revolucionário russo. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 64). E, quase parafraseando Marx e Engels no Manifesto Comunista, Mariátegui afirma: “A solução do problema do índio tem que ser uma solução social. Seus realizadores devem ser os próprios índios”. (Ibidem, p.65). O programa revolucionário embutido nessa análise histórica de Mariátegui é o de uma Revolução Agrária e Antifeudal, que liberasse os camponeses indígenas do regime gamonal estreitamente vinculado à dominação do imperialismo, particularmente presente nas minas e nas fazendas açucareiras da Costa. Mariátegui percebeu claramente que a falta da nacionalidade peruana está relacionada à manutenção da ordem colonial (ou de dependência econômica ao imperislismo) que se apoiava no gamonalismo e em uma burguesia fraca, incapaz de impor a sua hegemonia. Mariátegui conhece o debate entre mencheviques e bolcheviques sobre a revolução burguesa em países coloniais. Lenin defendeu que na Rússia a Revolução Burguesa, ou seja, a democratização do acesso à terra e a consecutiva destruição do latifúndio, seria levada adiante pelas forças socialistas, e não pela burguesia. Esse é o modelo pelo qual o autor de Sete Ensaios interpreta a história peruana, em toda a sua 247 amplitude, e como nos ensaios anteriores, primeiro pelo problema econômico. O terceiro ensaio é a questão da terra. O problema agrário se apresenta, antes de qualquer coisa, como o problema da liquidação do feudalismo no Peru. Essa liquidação já deveria ter sido feita pelo regime democrático-burguês [...] A antiga classe feudal – camuflada ou disfarçada de burguesia republicana – conservou suas posições. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 68). E continuando mais adiante: Os países que, depois da independência conseguiram livrar-se desse peso (o feudalismo) são os que progrediram; os que ainda não conseguiram isso são os retardatários. Já vimos como o peso do feudalismo se juntou ao peso do escravagismo. (Ibidem, p. 76). Enfim, ao longo de uma brilhante exposição da história peruana, Mariátegui apresenta o modelo antievolucionista de Lenin para os países coloniais: A Revolução Burguesa não seria obra da burguesia. A liquidação do feudalismo no Peru será+++++ obra dos indígenas-camponeses sob a influência dos ideais socialistas e do marxismo-leninismo. Não é por outro motivo que o revolucionário peruano reafirmou a frase de Valcárcel, do livro Tempestad em los Andes: “A Rebelião Indígena espera seu Lenin!”. (VALCÁRCEL, 1926)279. A comunidade indígena e a força subjetiva que movimenta a Revolução Mariátegui procurou ver o processo revolucionário em sua totalidade, não deixando de reafirmar o papel da economia como base material importante para a análise histórica. A revolução agrária antifeudal possuía uma enorme força subjetiva nas características particulares do campesinato peruano: o indígena da Serra. As forças socialistas deveriam se apoiar na comunidade que persistia na Serra, antítese do próprio 279 Cf: VALCÁRCEL, Luis. Tempestad en los Andes, Lima: Amauta, 1926. 248 gamonalismo, o Ayllu, expressão tanto do campesinato indígena e sua forma de organização coletiva como também expressão da nacionalidade incompleta que o movimento socialista poderia inspirar. Mariátegui encontrou na comunidade indígena a antítese tanto para o feudalismo quanto para o imperialismo. O Ayllu seria a própria Revolução Agrária, e também o germe, o guardião da nacionalidade peruana. As duas tarefas da revolução burguesa (agrária e antifeudal) que não haviam sido cumpridas pela fraca burguesia peruana se manifestavam no problema indígena peruano. A comunidade indígena, o Ayllu, ou a propriedade camponesa comunal, para Mariátegui, teve origem no Império Inca, que, embora autocrático, apoiou-se sob a exploração coletiva da terra. “[...] ao comunismo incaico – que não pode ser negado nem diminuído por ter se desenvolvido sob Regime autocrático dos Incas – designa-se por isso mesmo como comunismo agrário.” (MARIÁTEGUI, 2008, p.71) e cita Cesar Ugarte para definir a comunidade: Propriedade coletiva da terra cultivável pelo Ayllu ou conjunto de famílias aparentadas, ainda que dividida em lotes individuais intransferíveis; propriedade coletiva das águas, terras de pasto e bosques pela marca ou tribo, ou seja, uma federação de ayUus estabelecidos ao redor de uma mesma aldeia; cooperação em comum no trabalho; apropriação individual das colheitas e frutos. (UGARTE apud MARIÁTEGUI, 2008, p. 71). Essa economia “natural e orgânica” (Ibidem, 2008, p.72) foi desorganizada pela conquista, mas sobreveio da incapacidade do feudalismo espanhol em suplantar o ayllu. Mariátegui demonstra que, ao contrário do que possa parecer, a comunidade camponesa foi comum em outros períodos, não sendo assim um fenômeno andino. O feudalismo deixou, analogamente, que subsistissem as comunas rurais na Rússia, país com o qual é sempre interessante o paralelo porque seu processo histórico se aproxima muito mais desses países agrícolas e semifeudais que os dos países capitalistas do Ocidente. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 80). E também: “O comunismo agrário do ayllu, uma vez destruído o Estado inca, não era incompatível nem com um, nem com o outro”. (Ibidem, 2008, p. 78). O regime medieval, teórica e praticamente, conciliava a propriedade feudal com a propriedade comunitária. [...] As disposições das leis coloniais sobre a comunidade, que se mantinham sem inconveniente 249 ao seu mecanismo econômico, reformavam, em troca, e logicamente, os costumes contrários à doutrina católica (a prova matrimonial etc.) e tendiam a converter a comunidade numa roda da sua máquina administrativa e fiscal. A comunidade podia e devia subsistir, para maior glória e proveito do rei e da Igreja. (Ibidem, 2008, p.79). A república, com sua jurisdição aparentemente liberal, não foi capaz de destruir o latifúndio, o feudalismo da agricultura, mas foi eficiente para atacar a comunidade. A república opôs a propriedade individual contra a comunidade, e acabou favorecendo a concentração da terra. Onde de fato há economia capitalista e distribuição de terra, conforme o programa demo-liberal, a comunidade desapareceu. O feudalismo convive com a comunidade, enquanto que o capitalismo não. Mariátegui não vê a comunidade como uma tradição cultural, ou uma peculiaridade antropológica. Ele identifica a comunidade como uma relação de subsistência, única possível dos camponeses frente à organização feudal agrária. É na impossibilidade do feudalismo espanhol colonizador em prover subsistência do campesinato que reside a vitalidade do ayllu. Para apoiar sua tese, Mariátegui utiliza o exemplo do mir Russo: O mir não garantia aos camponeses a terra necessária para seu sustento; em troca, garantia aos proprietários a provisão indispensável de braços para o trabalho de seus latifúndios. Quando em 1861 a servidão foi abolida, os proprietários encontraram um meio de substituí-la, reduzindo os lotes concedidos a seus camponeses a uma extensão que não lhes permitia subsistir de seus próprios produtos. A agricultura russa conservou, desse modo, seu caráter feudal. O latifundiário usou a reforma em seu proveito. Havia percebido que era de seu interesse outorgar uma parcela aos camponeses, desde que esta não bastasse para sua subsistência e a de sua família. Não havia meio mais seguro para vincular o camponês à terra, limitando assim, ao mesmo tempo, ao mínimo, sua emigração. O camponês se via forçado a prestar seus serviços ao proprietário, o qual contava para obrigá-lo a trabalhar em seu latifúndio – se não bastasse a miséria a que a ínfima parcela o condenava – com o domínio de prados, bosques, moinhos, águas etc. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 80). No ensaio “O Fator Religioso”, Mariátegui desenvolve uma profunda e inovadora análise do processo de formação da religiosidade peruana a partir de um critério materialista histórico. Para uma análise marxista da religião, segundo Mariátegui, não bastava a crítica ateia, antirreligiosa. Era ainda mais importante compreender o significado que o pensamento religioso adquire na prática econômica e política dos homens e mulheres e de que modo os fatores econômicos determinavam as concepções religiosas. 250 A primeira demarcação importante que Mariátegui estabelece em seu texto é com a crítica antirreligiosa do liberalismo e também do anarquismo. Já foram definitivamente ultrapassados os tempos do apriorismo anticlerical, no qual a crítica “livre pensadora” se contentava com uma execução sumária e estéril de todos os dogmas e igrejas, a favor do dogma e da igreja de um “livre pensamento” ortodoxamente ateu, leigo e racionalista. O conceito de religião cresceu em extensão e profundidade. Já não se reduz a religião a uma igreja e a um ritual. E reconhece nas instituições e sentimentos religiosos um significado muito diferente do que ingenuamente lhe atribuíam, com um incandescente radicalismo, pessoas que identificavam religiosidade com obscurantismo. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 163). A crítica ao antireligiosismo, que não procurava ver a religião como um traço da estrutura social, está dirigida à crítica gonzalezpradista, que ao longo de toda década de 1920 influenciou ideologicamente parte do movimento operário com que Mariátegui mantém uma luta político-ideológica para superar alguns preceitos anarquistas em nome da análise marxista. O movimento radical – que teve o encargo de denunciar e condenar simultaneamente os três elementos da política peruana nos últimos lustros do século 20: civilismo, pierolismo e militarismo – constituiu de fato a primeira e efetiva agitação anticlerical. [...] nessa batalha que, se produziu, principalmente nas províncias, certo aumento da indiferença religiosa – o que não era um ganho –, não ameaçou em nada a estrutura econômico-social na qual estava profundamente enraizada toda a ordem que rejeitava. O protesto radical ou “gonzálezpradista” não foi eficaz por não ter apresentado um programa econômico e social. Seus dois lemas principais – anticentralismo e anticlericalismo – eram por si sós insuficientes para ameaçar os privilégios feudais. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 164). A superação da simples crítica antirreligiosa não significava qualquer adesão de Mariátegui a uma perspectiva idealista ou metafísica, mas a busca por desvelar alguns “enigmas” importantes da história que se relacionam com o desenvolvimento da subjetividade humana, que passaram por diversos sistemas de pensamento, muitos deles como sistemas religiosos. No Peru, o primeiro sistema, foi o do Tahuantinsuyo, em que: O povo incaico ignorou toda separação entre a religião e a política, toda diferença entre o Estado e a Igreja. Todas as suas instituições, como todas as suas crenças, coincidiam estritamente com sua economia de povo agrícola e com seu espírito de povo sedentário. A teocracia repousava sobre o comum e o empírico. (Ibidem, p. 169). 251 Mariátegui, como marxista e materialista, acreditava que o obscurantismo religioso é nocivo ao desenvolvimento social, e em momentos de desenvolvimento revolucionário das forças produtivas a religião é mais “pragmática”, “empírica”, menos “litúrgica”, menos afeita ao ritual ecumênico, mais relacionada à disciplina e à organização “espiritual” da produção. E nessa lógica, o feudalismo espanhol carregou, após a conquista – Mariátegui diferencia conquistadores e colonizadores espanhóis –, todo o germe do atraso econômico espanhol na religião católica. O catolicismo de “O vice-reinado, moleza e ócio sensual, iria trazer mais tarde ao Peru nobres letrados e doutores escolásticos, gente já totalmente de outra Espanha, a da inquisição e da decadência”. (Ibidem, p. 171). Essa igreja, com sua “liturgia suntuosa”, soube adaptar a religiosidade pragmática indígena. “O trabalho, iniciado há muitos séculos no Ocidente, de absorção dos antigos mitos e de apropriação das datas pagãs, continuou no Peru.” (Ibidem, p. 172). Mas, se a religião nativa era orgânica como a economia do império, e a religião do invasor espanhol era artificial, pomposa, com ares de decadência e escolástica, a colonização protestante dos EUA era o contrário. A religião dominante nos EUA era a prova-real de que o catolicismo estava ligado ao atraso econômico, e de certa forma, que o protestantismo se relacionava à pungência da economia capitalista. Sem simplismos economicistas, Mariátegui cita Engels: “A primeira etapa da emancipação da burguesia é, segundo Engels, a reforma protestante”. (Ibidem, p. 77). O processo da independência peruana foi uma continuidade da estrutura religiosa da colônia. “A revolução da independência, do mesmo modo que não tocou nos privilégios feudais, tampouco tocou nos privilégios eclesiásticos”. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 183). Citando Sorel, Mariátegui garantia, certamente reafirmando o papel do mito revolucionário “[...] a experiência histórica dos últimos lustros comprovou que os atuais mitos revolucionários ou sociais podem ocupar a consciência dos homens com a mesma plenitude que os antigos mitos religiosos”. (Ibidem, p. 189). A partir do 4º ensaio, as partes “O Processo da Educação Pública”, “O Fator Religioso”, o “Regionalismo e centralismo” e o último ensaio, “O Processo da Literatura”, ultrapassam a economia-política tratada nos três primeiros ensaios, 252 apontando para temas que faziam parte da luta política da época, e expressavam mais a superestrutura, que, como veremos, se relaciona à formação da nacionalidade peruana. Mariátegui, como os revolucionários comunistas da época, não levantavam barreiras rígidas entre economia (estrutura ou infraestrutura) e a superestrutura, ou, ainda, entre os aspectos mais subjetivos e não estritamente econômicos do modo de produção, e seus aspectos claramente econômicos. Mariátegui é a melhor expressão de como o marxismo que é semeado pela Revolução Russa está em oposição ao positivismo liberal, e rejeitam influências positivistas no marxismo, como havia ocorrido entre os socialistas da 2ª Internacional280. A nacionalidade em formação e o processo da literatura No último capítulo de Sete ensaios, “Processo da literatura peruana”, Mariátegui desenvolve sua análise para um desdobramento original, já que, sem abrir mão do conceito de modo de produção, não simplifica o materialismo histórico a uma interpretação economicista. Paris (1982), como também Melis (2011, p. IX-XVIII)281, explora a crítica que Mariátegui fez ao esquematismo e o “estilo do crítico literário” para colocar Mariátegui em um polo oposto ao que esses autores entenderam por marxismo-leninismo, ou ao estilo de análise elaborada pelos comunistas “ortodoxos”, como afirma também Löwy282. Mas, ao analisarmos os ensaios que Mariátegui organiza como o livro283 e particularmente este último capítulo, em busca de um modelo, mesmo que oculto, salta à vista uma estrutura coerente, marxista e até bastante “ortodoxa”, dependendo de qual sentido se queira dar a esse termo. Mariátegui, como os dirigentes comunistas que se formaram na esteira da Revolução Bolchevique, tiveram como tarefa partidária a interpretação da realidade social na qual atuavam, não por capricho, mas por uma necessidade da própria atividade revolucionária. Precisavam elaborar planos e táticas eficientes para conduzirem o 280 Conforme já demonstrado no primeiro capítulo, os últimos congressos da 2ª Internacional, antes da guerra, estiveram muito influenciados por preconceitos tipicamente colonialistas, além da defesa rígida das etapas do processo histórico que na Europa levaram ao capitalismo industrializado. Ver páginas 62-75 deste trabalho. 281 MELIS, Antonio. Hacia la construcción de la nacionalidade. In: MARIÁTEGUI, 7 Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana, Lima: Ministério de Cultura, 2011. 282 LÖWY, 2006, passim. 283 Nos referimos aos Sete Ensaios 253 processo revolucionário. Como já foi demonstrado, foi da necessidade da prática revolucionária que nasceram as primeiras interpretações marxistas da realidade latinoamericana, e Mariátegui, sem dúvida, será o mais significativo esforço de aplicação do marxismo na análise de um país latino-americano na década de 1920. O seu trabalho chegou a um ponto em que poucos conseguiram até a década de 1930. Mariátegui não apenas procurou interpretar em um sentido marxista, ou seja, a partir do materialismo histórico e dialético, o desenvolvimento econômico da sociedade peruana, com o fim de precisar o sentido tático da revolução no Peru, mas procurou tratar aspectos que ele próprio denomina como superestrutura284, como a literatura. Mariátegui, como os comunistas de seu tempo viam o modo de produção como um conceito de totalidade. A pouca análise do desenvolvimento superestrutural das sociedades latino-americanas pelos comunistas estava relacionada às limitações dos próprios militantes de origem operária, perseguidos por regimes oligárquicos e com dificuldades em estabelecer contato com os núcleos mais desenvolvidos do movimento operário internacional. As limitações estavam mais relacionadas a esses fatores que a aplicação de um método determinista ou economicista rígido de análise da realidade de seus países. Tanto Brandão como Astrojildo tentaram elaborar uma análise da literatura brasileira. Astrojildo somente conseguiu organizar alguma reflexão mais elaborada sobre a obra de Machado de Assis285 após o seu afastamento do PCB, o que, ao contrário de demonstrar uma contrariedade dos PCs com esses temas, demonstra que, em meio às tarefas partidárias, foi difícil a elaboração de uma análise de temas que demandavam tempo e não possuíam um sentido imediatamente objetivo e um caráter estruturante para a definição das táticas necessárias para a Revolução. Por ser tão profunda, a análise de Mariátegui e o seu modelo têm um papel significativo na história do pensamento social latino-americano. Primeiramente, é importante salientar que Mariátegui declara repetidas vezes sua parcialidade, sua filiação a um pensamento e até uma rejeição à crítica literária descomprometida, academicista e que tratava a literatura como algo descolado da realidade social. Mariátegui utiliza o conceito de superestrutura em diversas passagens. “Não é possível democratizar o ensino de um país sem democratizar sua economia e sem democratizar, finalmente, sua superestrutura política.” 285 Uma coletânea dos textos de Astrojildo Pereira sobre Machado de Assis foi publicada em PEREIRA, Astrijildo. Machado de Assis, ensaios e apontamentos avulsos, Brasilia: Fundação Astrojildo Pereira, 2008 284 254 Mas isso não quer dizer que considero o fenômeno literário ou artístico de pontos de vista extraestéticos, mas sim que minha concepção estética é unânime, na intimidade da minha consciência, com minhas concepções morais, políticas e religiosas e que, sem deixar de ser concepção estritamente estética, não pode operar independente ou diversamente. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 223). A sua bússola seria o desenvolvimento dos modos de produção que caracterizaram a história do Peru. Mariátegui introduziu uma ideia que muitas interpretações de sua obra286 parecem não perceber. Para Mariátegui, como para todos os marxistas-leninistas de sua geração, Estado nacional, nacionalismo e suas expressões simbólicas, artísticas etc. são obras “espirituais” (para citar um termo utilizado por Mariátegui) da burguesia. O feudalismo europeu não produziu uma literatura nacional, uma arte nacional. A atividade literária na época medieval foi religiosa e seus mitos foram outros. O florescimento das literaturas nacionais coincide, na história do Ocidente, com a afirmação política da ideia nacional. Faz parte do movimento que, por meio da reforma e do Renascimento, criou os fatores ideológicos e espirituais da revolução liberal e da ordem capitalista. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 225). No Peru não houve uma revolução liberal burguesa, ocorrendo apenas uma invasão estrangeira que, após subjugar o índio transplantou, como uma extensão da metrólope, a própria Espanha. “A literatura nacional é, no Peru, como a própria nacionalidade, de inegável filiação espanhola.” (Ibidem, p. 226). Definidas as características dessa literatura espanhola na literatura peruana, Mariátegui segue o sentido da história peruana que deu aos outros ensaios, ou seja, reafirmar que não houve ruptura com o surgimento da república, embora o Peru se tornasse formalmente independente, Nossa literatura não deixa de ser espanhola na data de fundação da república. Continua sendo ainda por muitos anos, seja em um ou outro eco tresnoitado do classicismo ou do romantismo da metrópole. De qualquer maneira, se não quisermos chamá-la de espanhola, há que chamá-la por longos anos de literatura colonial. (Ibidem, p. 229) MELIS, Antonio. “Hacia la construcción de la nacionalidad” in MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 Ensayos de Interpretacion de la Realidad Peruana (Edición facsimilar), Lima: Ministério da Cultura, 2011. 286 255 Seguindo, Mariátegui explica a relação da literatura (e podemos entender a arte também) em países periféricos no sistema de dominação imperialista: E não tentarei sistematizar este estudo segundo a classificação marxista em literatura feudal ou aristocrática, burguesa e proletária. Para não agravar a impressão de que meu arrazoado está organizado a partir de um esquema político ou classista, e em vez disso adequá-lo a um sistema de crítica e história artística, posso construí-lo com outros andaimes, sem que isso implique em nada mais que um método de explicação e ordenamento, e por nenhum motivo uma teoria que prejulgue e inspire a interpretação de obras e autores. (Ibidem, p. 30). Com esse trecho, somos induzidos a imaginar que Mariátegui estaria descartando o conceito de modo de produção para compreender a literatura, mas logo em outro parágrafo explica: Uma teoria moderna – literária, não sociológica – sobre o processo normal da literatura de um povo distingue nela três períodos: um período colonial, um período cosmopolita, um período nacional. Durante o primeiro período um povo, literariamente, não passa de uma colônia. Durante o segundo período assimila simultaneamente elementos de diversas literaturas estrangeiras. No terceiro, alcança uma expressão bem modulada de sua própria personalidade e seu próprio sentimento. Essa teoria não prevê mais nada. Mas não nos faz falta, por enquanto, um sistema mais amplo. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 230). Com isso, a classificação analítica de Mariátegui utilizava uma divisão do processo da literatura em três estágios: primeiro o colonial, depois um período cosmopolita e um terceiro, nacional. Para Mariátegui, o período nacional da literatura é também o último de uma literatura genuinamente peruana, genuinamente nacional, e não uma literatura proletária e socialista. Essa é uma diferença importante, pois é facilmente confundida em interpretações da obra de Mariátegui que não conhecem bem o universo conceitual marxista-leninista em que ele estava inserido. Por não compreenderem a lógica analítica que Mariátegui estava manejando, acreditam que Mariátegui não tem um modelo e por isso flutua sobre influências das mais ecléticas. Nacional para Mariátegui é sempre demo-liberal. O socialismo é proletário e internacional. A confusão está mais nos leitores, que no autor de 7 Ensaios. Como oposto à literatura nacional está a literatura colonial, decadente, que, se já era retrógrada no período colonial, no período republicano aprofundou sua condição. 256 A debilidade, a anemia, a flacidez de nossa literatura colonial e colonialista provêm de sua falta de raízes. A vida, como afirmava Wilson, vem da terra. A arte tem necessidade de se alimentar da seiva de uma tradição, de uma história, de um povo. E no Peru a literatura não brotou da tradição, da história, do povo indígena. Nasceu de uma importação da literatura espanhola; depois se nutriu da imitação da mesma literatura. Um cordão umbilical doentio a manteve ligada à metrópole. Por isso, pouco tivemos além do barroquismo e do culteranismo de clérigos e ouvidores, durante o período colonial; romantismo e trovadorismo mal digeridos dos bisnetos dos mesmos ouvidores e clérigos, durante a república. (Ibidem, p. 231). No Peru, o Terceiro Estado287, popular e também burguês, não existiu, e a nacionalidade não pôde nascer de uma burguesia fraca, surgida da aristocracia colonial em uma época em que a burguesia já abandonava seu conteúdo revolucionário para se tornar reacionária à época do imperialismo. A burguesia peruana foi incapaz de produzir nacionalidade, mas, em oposição ao colonialismo que repousava no feudalismo gamonal, apenas o camponês-indígena poderia inspirar nacionalidade. Assim, em oposição ao colonialismo, o nacional seria a civilização indígena que sobreviveu à conquista. Se na colônia a influência espanhola apenas gerava decadência, esterilidade, cópia e anemia na literatura, todo instante de vitalidade artística era devido ao índio, ao povo, que, como um guardião da nacionalidade peruana, esperava as transformações sociais para poder expressar com toda sua pungência o espírito nacional peruano. Os poucos literatos vitais, nessa pantanosa e anêmica procissão de cansados e amarrotados escribas, são os que, de alguma maneira, traduziram o povo. A literatura peruana é uma rapsódia pesada e indigesta da literatura espanhola, em todas as obras nas quais ignora o Peru vivo e verdadeiro. O gemido indígena, a pirueta mulata, são as notas mais animadas e verazes dessa literatura sem asas e vértebras. (Ibidem, p. 234). Acompanhando o próprio processo da literatura do qual fez parte, Mariátegui introduz a etapa cosmopolita da literatura, um momento intermediário do processo de formação nacional, em que a partir da influência das transformações revolucionárias do mundo se produz uma crítica aberta à literatura colonial e se prepara a verdadeira literatura nacional. Como expressões dessa literatura cosmopolita, encontram-se 287 Aqui fazemos uma referência ao Terceiro Estado da Revolução Francesa, uma referência clássica da revolução burguesa, utilizada no debate dos revolucionários da década de 1920. 257 González Prada e Ricardo Palma288: O autor de páginas libres aparece como um escritor de espírito ocidental e de cultura europeia. Mas, dentro de uma peruanidade ainda por se definir, ainda por se precisar, por que considerá-lo como o menos peruano dos homens de letras que traduzem essa peruanidade? Por ser o menos espanhol? Por não ser colonial? A razão termina por ser paradoxal. Por ser a menos espanhola, por não ser colonial, sua literatura anuncia precisamente a possibilidade de uma literatura peruana. É a libertação da metrópole. É, finalmente, a ruptura com o vice-reinado. (Ibidem, p. 242-3). E marca os limites do cosmopolitismo. González Prada não interpretou esse povo, não esclareceu seus problemas, não chegou a um programa para a geração que deveria vir depois dele. Mas representa, de qualquer maneira, um instante – o primeiro momento lúcido – da consciência do Peru. Federico More diz que ele é um precursor do Peru novo, do Peru integral. Mas Prada, a esse respeito, foi mais que um precursor. Na prosa de Páginas libres, entre sentenças alambicadas e retóricas, encontra-se o germe do novo espírito nacional. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 243). Mas se o cosmopolitismo era esse momento de crítica e ruptura com a metrópole, com o espírito colonial, não era ainda, tampouco, a literatura peruana. Para Mariátegui, a literatura nacional não era produto de um gênio, de um intérprete com qualidades maiores, mas uma síntese de toda uma luta pela formação da nacionalidade, e esse processo ainda não havia culminado em uma obra-prima. Também não cabe duvidar de sua vitalidade pelo fato de que até agora não produziu uma obra-prima. Obra-prima não floresce a não ser em um terreno já muito adubado por uma multidão anônima e obscura de obras medíocres. O artista genial não é geralmente um princípio, e sim uma conclusão. Aparece, normalmente, como o resultado de uma vasta experiência. (Ibidem, p. 312). Mas, se a literatura peruana ainda não havia se formado, já dava seus primeiros passos, com César Vallejo, Magda Portal e o indigenismo. 288 Manuel Ricardo Palma Carrillo (1833-1919) foi um escritor peruano que ficou famoso por escrever Tradiciones peruanas, uma série de contos de ficção histórica que valorizava a história popular, a linguagem popular, uma certa informalidade, entre outros atributos renovadores na literatura peruana. 258 3º Capítulo – Tensões com os nacionalistas “pequeno-burgueses” e a ruptura da frente única. Otra actitud frecuente de los intelectuales que se entretienen en roer la bibliografía marxista, es la de exagerar interesadamente el determinismo de Marx y su escuela con el objeto de declararlos, también desde este punto de vista, un producto de la mentalidad mecanicista del siglo XIX, incompatible con la concepción heroica, voluntarista de la vida, a que se inclina el mundo moderno, después de la Guerra. […] En sustancia, el neo-revisionismo adopta, aunque con discretas enmiendas, la crítica idealista que reivindica la acción de la voluntad y del espíritu. Pero esta crítica concierne sólo a la ortodoxia socialdemocrática que como ya está establecido, no es ni ha sido marxista sino lasalliana, hecho probado hasta por el vigor con que se difunde hoy en la social-democracia tudesca esta palabra de orden: "el retorno a Lasalle". Para que esta crítica fuera válida habría que empezar por probar que el marxismo es la social-democracia, trabajo que Henri de Man se guarda de intentar. Reconoce por el contrario en la III Internacional la heredera de la Asociación Internacional de Trabajadores, en cuyas asambleas alentaba un misticismo muy próximo al de la cristiandad de las catacumbas, […] El marxismo, donde se ha mostrado revolucionario -vale decir donde ha sido marxismo- no ha obedecido nunca a un determinismo pasivo y rígido. Los reformistas resistieron a la Revolución, durante la agitación revolucionaria post-bélica, con razones del más rudimentario determinismo económico. Razones que, en el fondo, se identificaban con las de la burguesía conservadora, y que denunciaban el carácter absolutamente burgués, y no socialista, de ese determinismo. A la mayoría de sus críticos, la Revolución rusa aparece, en cambio como una tentativa racionalista, romántica, antihistórica, de utopistas fanáticos. Los reformistas de todo calibre, en primer término, reprueban en los revolucionarios su tendencia a forzar la historia, tachando de "blanquista" y "putschista" la táctica de los partidos de la III Internacional. (MARIÁTEGUI, 1976, p.72-3)289 MARIÁTEGUI, José Carlos. Defensa del Marxismo – Polemica Revolucionaria, Lima: Amauta, 1976, p.72-3 289 259 O V Congresso da Internacional Comunista, bolchevização dos partidos comunistas e construção de frentes únicas para ganhar as amplas massas A Internacional Comunista havia nascido na esteira da Revolução Russa de Outubro, como fórum dos Partidos revolucionários que organizariam a Revolução Proletária Mundial, rompendo com as posições conciliadoras dos Partidos Socialistas durante a Primeira Guerra Mundial. Com a vitória do Partido Bolchevique na conquista do poder, a IC pôde sustentar uma posição revolucionária no mundo, modificando, inclusive, o nome dos partidos para se diferenciarem do antigo movimento socialdemocrata europeu. A Internacional era Comunista e reunia partidos comunistas para conquistar o poder e fazer a Revolução que levaria o mundo ao comunismo. Ao longo dos dois primeiros congressos, a IC teve como centro de suas preocupações a reafirmação do caminho revolucionário contra o caminho reformista, que via no Estado demo-liberal um espaço para a transição do capitalismo ao socialismo. Essa foi a tese defendida no “Estado e a Revolução”290 de Lenin e nas 21 condições291 para a admissão de Partidos na IC. Esses dois congressos trataram de definir a posição marxista revolucionária, contra a social-democracia, mas também em combater a posição anarquista que se opunha à ditadura do proletariado. Os dois primeiros congressos foram de definição de campo entre comunistas e socialdemocratas. A partir de 1921 também se definiria comunistas e o anarquismo. A Internacional Comunista, reunida no III Congresso (1921), assumiu que existia uma recuperação relativa do capitalismo, e chegava ao fim a Guerra Civil na Rússia dando início à NEP (Nova Política Econômica), a política econômica proposta por Lenin que permitia elementos da economia capitalista a fim de favorecer um crescimento da economia russa destruída pela Guerra Civil. Esse foi um momento de combate às posições “esquerdistas” no movimento comunista, e o reconhecimento, pela primeira vez, de que a Revolução Proletária não seria um processo rápido e contínuo. A burguesia imperialista tinha capacidade de retomar a iniciativa econômica e alcançar uma estabilidade, mesmo que momentânea. Trotsky e Varga redigiram as resoluções aprovadas no III Congresso da IC, anunciando a nova situação mundial: 290 Ver o capítulo 1 deste trabalho. As “21 condições de admissão na Internacional Comunista” foi um documento aprovado do II Congresso da IC (1920), que estabelecia condições para que os partidos aderissem à organização. 291 260 Foi precisamente este desenvolvimento econômico de 1919-1920, que ao suavizar o período mais agudo de finalização da guerra, assegurou um extraordinário recrudescimento da segurança burguesa e suscitou a questão do advento de uma nova época orgânica de desenvolvimento capitalista. (INTERNACIONAL..., 2008, p. 226)292. Essa definição abria a possibilidade de haver um crescimento das posições mais à direita, já que, para se impor, era necessário combater os mais esquerdistas. O III Congresso da IC fez uma avaliação de que pela primeira vez o impulso revolucionário estava contido, mas, até por ser o próprio Trotsky um dos futuros representantes da tendência “esquerdista” na IC, o tom principal da resolução redigida por ele e Varga não foi claro na verificação da estabilização da burguesia e na redução do ritmo da marcha da Revolução Proletária Mundial. A identificação de um recuo na onda revolucionária inaugurada em 1917 levava à necessidade de se buscar novas forças para se continuar avançando na Revolução Mundial. A solução era uma política de frente única que fortalecesse as organizações proletárias dos ataques da reação burguesa. Procurou-se uma aliança com a 2ª Internacional e a União de Partidos Socialistas para a Ação Internacional, também conhecida como a Internacional 2 e 1/2, que, depois de dezembro de 1923, se fundiria com a 2ª Internacional293, mantendo críticas ao governo soviético e à ditadura do proletariado. Os anarquistas, a partir de 1921, já não defendiam mais a Revolução Russa, e tinham críticas sérias contra o governo soviético. Esses debates e cisões no movimento operário internacional não ocorriam de forma abstrata. Desenrolavam-se na própria experiência revolucionária, que entre 1917 e 1924 ocorria com grande velocidade, marcando com episódios clássicos a luta política em torno do caminho que o movimento revolucionário deveria tomar, como Kronstadt e o exército de Makno, a 292 INTERNACIONAL COMUNISTA. Los Cuatro Primeros Congresos de la Internacional Comunista, Izquierda Revolucionária (edição digital), 2008. 293 Em 1920, a 2ª Internacional (fundada em 1889) foi reorganizada pelos partidos social-democratas que não estavam de acordo com a Internacional Comunista. Em 1921, alguns partidos que não estavam de acordo com os social-democratas, mas tinham reservas com a Internacional Comunista, fundaram a União de Partidos Socialistas para a Ação Internacional (UPSAI) em Viena. Entre 2 e 5 de abril de 1922, os Comitês Executivos das três Internacionais se reuniram em Berlim, mas não entram em nenhum acordo para o restabelecimento da unidade do movimento operário. Entre os dias 21 e 25 de maio de 1923, foi fundada a Internacional Operária e Socialista em Hamburgo, que reuniria os Partidos da 2ª Internacional e a Internacional de Viena. Dessa Internacional, deriva-se a atual Internacional Socialista, da qual faz parte o Partido Aprista Peruano, o PDT no Brasil, SPD na Alemanha, o Fatah palestino, o PRD e o PRI no México, a Frelimo, o CNA sul-africano, o MPLA, sociais-democratas dos países nórdicos e outras organizações que compõem diversos governos atualmente no mundo. 261 Revolução Húngara, a questão polonesa, a Revolução na Alemanha (1919 e 1923), as tomadas de fábrica na Itália etc. A partir das experiências concretas e das lutas políticas em torno dos erros e novos caminhos para a revolução, definiam-se as resoluções e as posições dos revolucionários, ajustando planos e consignas. Nesse processo, definia-se também o papel de cada dirigente no processo revolucionário que a IC pretendia dirigir. O IV Congresso da IC em 1922 intensificou a posição de que a Revolução Mundial demoraria mais do que inicialmente se havia imaginado, e a URSS teria de conviver com os países capitalistas por um tempo. (CARR, 1975, p. 5). A avaliação de um recuo da Revolução Proletária Mundial, uma reestruturação da reação burguesa, colocava como necessidade a adoção de uma ampla política de frente única para manter a influência comunista e se preparar para novas ondas revolucionárias. A situação de recuo da Revolução aparecia politicamente para a IC em um aumento da reação burguesa. Em novembro de 1922, essa reação havia demonstrado que poderia assumir um nível de violência e importância política maior com a Marcha de Mussolini sobre Roma. O V Congresso da IC (1924) aprofundaria a avaliação de que havia uma reestruturação do capitalismo, e que o passo da revolução seria mais lento, obrigando os comunistas a se prepararem para um período de indefinição entre as forças burguesas e proletárias. Na abertura do Congresso, as palavras de Zinoviev são claras ao admitir o recuo da onda revolucionária: “Todos estamos descontentes em comprovar que a vitória não chegou ainda e não parece ter pressa em chegar. Aguardávamos a Revolução Alemã, e não chegou: Tudo anda com demasiada lentidão”. (V CONGRESSO..., 1975, p. 58). Como fruto do aprofundamento dessa avaliação, o debate mais significativo do encontro dizia respeito a como os comunistas deveriam se organizar e mobilizar as massas – herdariam o debate acerca da frente única do IV Congresso – e aprofundariam o entendimento de como precisariam organizar os partidos comunistas. Lenin havia morrido em 21 de janeiro de 1924. Havia se tornado o líder incontestável do processo revolucionário russo, figura central da Internacional Comunista, e seu prestígio havia ajudado a unificar os comunistas ao longo das lutas políticas que a IC viveu desde a fundação. Com a morte de Lenin, as lutas tendiam a abrir fraturas maiores, e as posições em disputa, a assumirem contornos mais personificados em outros líderes do movimento comunista internacional, e 262 principalmente do PC russo. O V Congresso abria sua sessão inaugural em 17 de julho de 1924, lembrando a perda de Lenin: “Nossa primeira recordação devemos consagrar ao grande chefe da Revolução Mundial: Lenin”. Após reafirmar o compromisso com o caminho de Lenin, foi tratado o problema que guiaria o debate do congresso: a derrota da “Revolução Alemã” em outubro de 1923. Seria a partir desse debate que se aprofundariam as diferenças entre a maioria do CC do PC da Rússia e Trotsky, e se desenvolveria a luta política ao longo do final da década de 1920. O diagnóstico para essa derrota foi dado pela maioria da direção do próprio PC da Alemanha, que afirmava ser fruto de um desvio direitista “brandleriano”294 e foi apoiado por Zinoviev e a CEIC. (CARR, 1975, p. 6). A Alemanha era a grande referência do movimento operário mundial desde a ruptura com a 2ª Internacional. Era o país de Rosa Luxemburgo e Karl Liebckneck, assassinados em 1918, de uma gigantesca classe operária de um país altamente industrializado. Os russos haviam alcançado o poder, mas ainda dirigiam um país atrasado, em uma sociedade majoritariamente camponesa. O centro da Revolução Mundial era por definição a Alemanha, onde o proletariado havia alcançado o maior grau de organização, era o país do marxismo por excelência, e era natural que a quebra de um elo fraco, a atrasada Rússia, significasse apenas uma indicação da crise do imperialismo mundial, não o centro da Revolução Mundial. A derrota dos comunistas na Alemanha forçava uma discussão mais profunda sobre os rumos da Revolução Mundial. O presentes no Congresso concluíam que os alemães não haviam conquistado o poder, com a tática de frente única que estabeleceram na Saxônia e na Turingia, porque haviam sido traídos pelos social-democratas que impuseram a ilegalidade ao Partido Comunista Alemão. Era a avaliação de que a aliança com os social-democratas não daria o fruto imaginado. Somado a essa derrota política sofrida no país em que se imaginava a próxima revolução comunista estava o informe sobre a situação econômica por Varga, o especialista no assunto. Ele afirmava que o capitalismo gestava uma crise, particularmente uma crise na agricultura, e nos EUA: “Nos encontramos no começo de uma das mais graves crises dos Estados Unidos [...] acreditamos que vamos a uma crise mundial geral. A social-democracia rebate com toda a sua energia nossa opinião”. 294 O termo se refere a Heinrich Brandler (1881-1967), dirigente comunista alemão. 263 (VARGA. In: V CONGRESSO..., 1975, p. 97). A análise de dados, por demais extensa para expormos aqui, apresenta uma série de dados e estatísticas da economia mundial que apontavam para uma recuperação econômica relativa, mas ainda com uma perspectiva de crise breve. Nesse ensejo, a burguesia não conseguia manter seu poder como antes da guerra, não podia organizar o Estado a partir das formas que utilizava antes, e passava a utilizar outras formas de dominação como meio de manter-se no poder. A aristocracia operária e a pequena burguesia têm-se convertido em social-democratas, em parte integrante indispensável dos governos burgueses. É um progresso também. Certamente são contrarrevolucionários e traidores. Mas desde o ponto de vista objetivo, se trata de um passo adiante, pois é um sintoma da desagregação da burguesia. (ZINOVIEV. In: V CONGRESSO, 1975, p. 58). O raciocínio de Zinoviev relacionava diretamente a entrega de governos dos Estados capitalistas à social-democracia como última medida para que a burguesia não perdesse o poder para a Revolução, como havia ocorrido na Rússia. E por isso os socialdemocratas cumpriam um papel contrarrevolucionário, já que colaboravam na manutenção da ordem capitalista, ao mesmo tempo que abrandavam o ímpeto revolucionário da classe operária. Mas, se por um lado a tendência revolucionária ainda estava na ordem do dia, estava claro que havia um recuo político, e seria necessário, como foi definido no IV Congresso da IC, manter uma política de frente única com a social-democracia, já que se estavam formando diversos governos de coalizão que indicavam uma tentativa de estabilização política por parte da burguesia. Algumas mudanças em alguns governos demonstravam essa tendência de formação de governos de coalizão. A burguesia já não pode governar como antes, um poder francamente, puramente ou, melhor dizendo, sujamente burguês já não é mais possível. A burguesia está obrigada a recorrer a truques: daí o governo “operário” da Inglaterra e o bloco das esquerdas com os socialistas na França. (Ibidem, p. 63). A vitória inédita dos trabalhistas ingleses, com a eleição de Ramsay MacDonald (1866-1937) ao cargo de Primeiro Ministro em 1923 (que duraria menos de 1 ano), e o estabelecimento de relações diplomáticas entre a URSS e a Inglaterra levaram as atenções da IC para a unidade com a social-democracia nas TUC. Como a derrota na 264 Alemanha foi avaliada como se tratando de um desvio de direita no manejo da frente única, ou seja, na colocação de demasiada importância na formação do “governo operário”, que significava a construção da frente única a partir da formação de coalizões eleitorais, o debate sobre o tratamento da frente com os trabalhistas ingleses passou a estar delimitado por uma fórmula que ficará popular no debate do movimento comunista da época: “frentes únicas por baixo e por cima”. Com essa consigna, o V Congresso ia reafirmando a necessidade de manter a política de frente única, mas, devido aos erros de condução da Revolução Alemã em 1923, que colocaram muita importância na aliança “por cima”, ou seja, com os líderes da social-democracia, que depois os trairiam, a “frente única por baixo” indicava a necessidade de se construir uma frente a partir das bases e assim impor melhores condições nesta aliança. A tática de frente única. Não temos que debatê-la como um “objeto em si”. A tática de frente única segue sendo justa, mas é necessário examiná-la corretamente em cada país. [...] em 1921-22 começamos a compreender que não temos a maioria da classe operária; em seguida, que a social-democracia ainda era forte; em terceiro lugar que nos encontrávamos na ofensiva enquanto o inimigo ataca (por exemplo, as greves do ano passado, como as da Inglaterra, têm sido em sua maioria defensivas); e em quarto lugar, que os combates decisivos não estão na ordem do dia. Depois dos primeiros combates ficou clara a relação real de forças e tivemos consciência de não sermos mais que uma minoria. Tem-se aí uma base da tática de frente única (ZINOVIEV In: V CONGRESSO, 1975, p. 70). O ajuste da frente única foi um dos principais temas que conduziram a luta política e as intervenções do V Congresso. Por um lado, debatia-se a necessidade de se manter uma politica de frente única, e não simplesmente abandoná-la, como queria uma parte dos contendores no Congresso. No final de 1923, a tentativa de unidade entre as três internacionais havia falhado em Berlim, e a Internacional que agrupava alguns partidos chamados de “esquerda da social-democracia”, que compunham a chamada Internacional 2 e meia, havia se fundido com a 2ª Internacional. No IV Congresso da Internacional (1922), os comunistas precisavam lidar com uma social-democracia dividida. Já no V Congresso (1924), a social-democracia se organizava em uma mesma internacional, e mantinha as críticas à URSS. A política de alianças se tornava mais complexa e estreita. O debate centrava-se em recolher ensinamentos acerca de como se deveria constituir a Frente Única. 265 Bertran Wolfe, representante do Partido Comunista do México no V Congresso da IC, preparou um informe para o III Congresso do PCM em 1925, em que narrava as novas posições resolvidas no Congresso295. No seu informe, Wolfe faz uma retrospectiva dos quatro Congressos anteriores ao quinto, em que aponta o avanço da consigna acerca do problema da frente única, a qual desde o III Congresso 296 está marcada pela ideia de que a Frente Única é uma tática para “Ir às Massas!”. Quando comparamos o informe de Wolfe com o informe inicial de Zinoviev, percebemos que o delegado do PCM havia estudado as linhas gerais do CEIC, e estava tentando pensar a situação mexicana à luz do Congresso da IC. Até a ordem de colocação das questões segue uma ordem muito parecida. Sobre a Frente Única, disse: O terrível fracasso da revolução alemã, que estava muito próxima do êxito, se deve em parte ao mal entendimento da tática de frente única e o Quinto Congresso teve que analisar a dita tática e explicar o que é o que. [...] Existem três maneiras de estabelecer a Frente Única: com os líderes, ou desde cima, com as massas ou desde abaixo, e a partir de cima e com as massas ao mesmo tempo. Quando nosso comitê executivo anterior foi convidar Morones e companhia para participar do Sindicato de Inquilinos e entra na Casa do Povo, essa foi a Frente Única com os líderes e o resultado foi a perda da Casa do Povo. Quando foi Diego Rivera, o secretário político do executivo anterior, ver Calles e oferecer nosso programa como condição de apoio, também foi Frente Única com os líderes. O quinto Congresso proíbe, e com toda razão, a que todos os Partidos Comunistas entrem em negociações desta espécie. (WOLFE In; III Congresso do PCM, 1925, s.p.). Se por um lado era importante organizar a frente única, dando sustentação pelas massas, e não através de negociações com os líderes, que porventura pudessem trair a unidade com os comunistas, a outra ponta da orientação política, surgida no V Congresso, dizia respeito ao que ficaria conhecido como bolchevização dos partidos comunistas. 295 Wolfe narrou também as peripécias que precisou enfrentar para chegar a Moscou. Com dinheiro emprestado por Diego Rivera e outros simpatizantes, além de um empréstimo do Sindicato de Pintores (225 pesos), chegou a Nova Iorque, onde conseguiu dinheiro emprestado, e que somado a um dinheiro que ganhou trabalhando no barco conseguiu chegar com a sua esposa em Copenhague, e por fim a Moscou. Conseguiu inserir o “problema da América Latina” na Ordem do dia, em meio ao tema sobre colônias e semicolônias, e, ao que tudo indica, deu importantes colaborações para o debate sobre os países periféricos. Ver: TERCEIRO Congresso Nacional do partido Comunista de México. Orden del Dia, 13 dez. 1924. CEMOS: Caixa 2, Pasta 8. 296 TERCEIRO Congresso Nacional do partido Comunista de México. Orden del Dia, 13 dez. 1924. CEMOS: Caixa 2, Pasta 8. 266 Embora Lenin possuísse um enorme prestígio na Internacional Comunista, o Partido Comunista Russo, a organização bolchevique liderada por Lenin, não era a única referência entre os Partidos que compunham a Internacional. O Partido Comunista da Alemanha até 1923 possuía um papel importante, herdeiro da tradição de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e até então o futuro líder da próxima revolução proletária. A derrota do PCA direcionou o debate para o reconhecimento cada vez maior de que o modelo de Partido que foi vitorioso na Rússia era um dos elementos que conduziriam a vitória comunista em outros países. No V Congresso, surgiu a consigna da bolchevização de todos os partidos comunistas, ou seja, a partir daquela data, começava a ficar claro que o tipo de organização que havia conquistado o poder na Rússia, o Partido Bolchevique, era o modelo que os comunistas deveriam seguir em todos os países para alcançar a vitória da Revolução. Desde o II Congresso da IC, com a aprovação das 21 Condições para o Ingresso dos Partidos na IC, foram estipuladas algumas características obrigatórias para que os Partidos pudessem se filiar à IC. O objetivo era claramente diferenciar a IC da 2ª Internacional, colocando exigências que ajudassem a separar o recém-organizado movimento comunista da herança social-democrata. Se por um lado se reafirmava a importância de manter uma política de frente única ampla, “por baixo e por cima”, por outro lado, a IC debatia a organização dos comunistas, o Partido. Definir como deveria ser o PC era fundamental para a aplicação da tática de frente única, já que se por um lado os comunistas pretendiam utilizar a frente para influenciar uma parte do proletariado, que não estava sob direção marxistaleninista, por outro lado existia uma tendência de os comunistas perderem as suas características e se diluírem na Frente. Particularmente em momentos de paz e de estabilização, os partidos comunistas corriam o risco de incorporarem as práticas e perspectivas dos aliados, perdendo a perspectiva revolucionária e comunista. Discípulos de Marx e Lenin, aos melhores cérebros, aos melhores organizadores. Mas uma vez constituído o órgão reitor, composto pelos melhores comunistas de todo o mundo, não devemos estabelecer uma disciplina formal: deve reinar uma verdadeira disciplina comunista e proletária. [...] Necessitamos de um órgão reitor de ferro, porque devemos juntá-lo as grandes lutas. Quem de nós havia pensado que no IV Congresso que em outubro de 1923 teríamos que examinar seriamente o problema da Revolução Alemã. E, contudo, os acontecimentos estavam próximos. Os acontecimentos amadurecem com maior rapidez que suponhamos [...] Está claro que entre o V e o 267 VI congresso teremos que afrontar combates decisivos em muitos pontos do globo. Devemos estar preparados para nos converter, não só de palavra, senão em realidade, em um verdadeiro Partido Comunista mundial e invencível. (V CONGRESSO..., 1975, p. 88). E, nas resoluções, definiam o que era bolchevização e também o que significava o legado de Lenin, que ficaria conhecido como marxismo-leninismo. A bolchevização das seções da Internacional Comunista consiste em estudar e aplicar na ação as experiências adquiridas pelo Partido Comunista Russo no curso das três revoluções e, também, corretamente entendidas as experiências de todas as outras seções que tenham tido lutas sérias. À luz destas experiências as seções da Internacional devem compreender as tarefas que os incumbe e generalizar as suas próprias experiências. Mas seria um erro imenso pretender transportar mecanicamente a experiência russa a outros países, um erro contra o qual Lenin mesmo nos colocou em guarda. Há na Revolução Russa muitas experiências que têm um caráter mundial. [...] o leninismo enriqueceu o marxismo antes de mais nada pelas teorias sobre: 1. O imperialismo e a Revolução Proletária; 2. As condições e a forma de realização da Ditadura do proletariado; 3. As relações entre o proletariado e o campesinato; 4. A importância da questão nacional em geral; 5. A importância dos movimentos nacionais, especialmente nos países coloniais e semicoloniais, para a revolução proletária mundial; 6. O rol do Partido; 7. A tática do proletariado na época das guerras imperialistas. 8. O papel do Estado Proletário no período de transição; 9. O regime soviético, modelo concreto de Estado para este período; 10. A divisão do proletariado em camadas sociais, fonte da cisão do movimento operário em tendências oportunistas e revolucionárias, e etc.; 11. Meios para derrotar as tendências de direita socialdemocrata e as desviações de esquerda no movimento comunista. (V CONGRESSO...1975, p. 188). A bolchevização na América Latina Os debates e lutas políticas que se desenvolviam no centro da Internacional Comunista e em suas seções europeias iam ganhando ressonância nos países periféricos de maneira desigual e inicialmente sem muita profundidade. O V Congresso, por suas resoluções acerca da ampliação da propaganda e da tática de frente única, impulsionou a preparação efetiva das seções nacionais da IC. Para a América Latina, decidiu-se criar uma Secretaria Sul-americana297, que funcionaria a partir de 1925 com sede em Buenos Aires. Seria dirigida pelos comunistas 297 O Secretariado Sul-americano (Birô Sul-americano) da Internacional Comunista (1925-1935) foi fundado em fevereiro de 1925 por decisão do presidium do CEIC para ter sede em Buenos Aires (19251930) e depois funcionaria em Montevidéu (1930-1935). (JEIFETS et al., 2004, p. 27). 268 do PC da Argentina, a seção mais antiga da IC no subcontinente. Além da estruturação orgânica dos diversos grupos que existiam, a secretaria tinha como tarefa desenvolver o trabalho de propaganda comunista na região, traduzindo, editando e publicando a literatura comunista, estimulando a atividade de propaganda nas seções nacionais e publicando uma revista do Secretariado Sul-americano da IC, que, similar ao órgão central editado pelo CEIC, Correspondência Internacional, denominaria-se, na América Latina, Correspondencia Sudamericana. O México e o Caribe, partes fundamentais da América Latina, estiveram incluídos nas preocupações do Secretariado Sul-americano, mas possuíam uma dinâmica própria, centralizados na direção do PCM. A Correspondencia Sudamericana se encontra atualmente acessível nos arquivos do ASMOB298 e é uma importante fonte para estudarmos a atividade de propaganda da IC na América Latina. Comparativamente ao conteúdo dos jornais dos PCs da região, podemos dimensionar o processo assimilação da propaganda comunista nas seções nacionais, e a influência que essa propaganda alcançou em grupos próximos ou simpáticos ao marxismo-leninismo, como a Revista Amauta no Peru e José Carlos Mariátegui. Para a direção do PCB, a importância do secretariado da IC era grande, e nitidamente se desenvolvia em torno de uma relação orgânica e constante. O PCB se dirigia ao secretariado como a um órgão de direção, prestando informes regulares, quase como um relatório das atividades do partido299. O primeiro número da Correspondencia Suadamericana, além da reprodução de parte do texto “As três fontes constitutivas do marxismo”300, uma sistematização do legado marxista escrito por Lenin, trazia também um artigo de Octavio Brandão, em que buscava sintetizar a construção do PCB até então. Durante anos o movimento revolucionário proletário do Brasil foi guiado pelos anarquistas ao estilo de Kropotkin. Em 1917, com a Revolução Russa, começou a surgir uma certa diferenciação no seio dos anarquistas. Acentuando-se cada vez mais essa separação ideológica terminou com a formação, de um lado de anarquistas quimicamente puros, e de outro lado de anarco-bolchevistas, em contato com as massas combatendo ao lado delas. (CORRESPONDÊNCIA..., 1926, p. 21). 298 Ver a lista de arquivos do movimento operário no final deste trabalho. Há diversos relatórios da atividade do PCB publicados na Correspondencia Sudamericana. 300 Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, ano 1, n. 1, 15 abr. 1926. 299 269 Após definir o governo Epitácio como agente do imperialismo ianque, afirma que doze companheiros fundaram o grupo do Rio em 7 de novembro de 1921, que depois se transformaria em Partido Comunista, no Primeiro Congresso em 25 de março de 1922 (Ibidem, p. 22)301. Por se tratar do primeiro número após o mês de março, em que se comemora o mês da mulher trabalhadora, a revista estava dedicada à participação da mulher na luta revolucionária, e entre os temas aparecem a aplicação da política de frente única e a busca, ao menos em termos de propaganda, da efetivação da aliança com os camponeses, ratificada no V Congresso da IC. Figura 70 - Artigo de Martínez de La Torre em Amauta, sobre a estabilização capitalista. O primeiro texto apresenta as motivações da revista Correspondencia Sudamericana, abrindo com uma citação de Lenin em defesa da importância da teoria revolucionária para o movimento e justificando, assim, o conteúdo da publicação. Desde o V Congresso e a reafirmação da necessidade da política de Frente 301 BRANDÃO, Octavio. O Partido Comunista del Brasil. Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, ano 1, n. 1, 15 abr. 1926. 270 Única, colocou-se para a IC a importância de não apenas estimular a atividade sindical, animar as lutas dos trabalhadores, mas também em se aprofundar na compreensão da arte de se fazer política. As sucessivas derrotas que a IC sofreu após a Revolução Russa (Hungria, Alemanha, Polônia, Itália etc.) impunham uma reflexão sobre os instrumentos políticos (Partido Comunista, Frente Única), que os comunistas necessitariam manejar para romper a estabilização capitalista e a reação fascista para retomar a iniciativa e alcançar o poder. Além da bolchevização dos Partidos e a formação das frentes únicas para ligar os comunistas às amplas massas, os debates avançaram para a percepção de que se formassem melhor os quadros e dirigentes dos partidos comunistas, de maneira que melhor manejassem o marxismo-leninismo, e pudessem analisar a realidade social de seus países. Podemos afirmar que o ano de 1924 é um importante marco para o início de um debate acerca da realidade nacional de cada país a que temos nos dedicado a estudar, impulsionado pela necessidade dos comunistas em se formar frentes únicas com as outras classes não-proletárias nos países periféricos (coloniais, semicoloniais e dependentes302) e em romper com o isolamento urbano do qual a tradição sindicalista centrada no proletariado impunha. No capítulo anterior, apresentamos as primeiras e mais importantes tentativas de análise marxista produzidas por militantes revolucionários comunistas do México, Brasil e Peru. Em todos esses casos, a análise respondia à necessidade de se aliar às classes não proletárias, que possuíam contradição com o regime latifundiário latinoamericano e com o imperialismo norte-americano, além das lutas urbanas dirigidas pelo proletariado. A partir de 1925 e 1926, a intervenção política e ideológica da IC será cada vez mais efetiva e a Correspondencia Sudamericana demonstrará tanto o esforço por propagandear a literatura teórica comunista como em analisar a realidade de cada país. Inaugura-se de maneira mais sistemática as tentativas de interpretação e sistematização da realidade nacional a partir do marxismo-leninismo, e que, como veremos adiante, influencia diretamente as interpretações mais originais produzidas pelos comunistas do Brasil, Peru e México, bem como as perspectivas formuladas pelos militantes desses países influem na visão da IC acerca da América Latina, particularmente no VI 302 Como veremos mais à frente, até um certo momento se definiam alguns países como dependentes. Depois, esse termo desapareceria, ficando apenas países coloniais e semicoloniais. 271 Congresso da IC, em 1928. A análise desses materiais é bastante clara em demonstrar que ao invés de uma simples transposição mecânica, imposta, de categorias importadas da URSS, houve um esforço frutífero por compreender a realidade em que os comunistas atuavam para organizar a revolução como parte da revolução proletária mundial, objetivo último da IC. No 3º número da Correspondencia Sudamericana, um artigo assinado por B.D. (do Rio de Janeiro) tentava se debruçar na análise da realidade política após a vitória de Washington Luís para a Presidência. O autor identifica entre as classes a oligarquia cafeeira e os “pobres escravos” que viviam no campo, denunciando o sistema eleitoral que garantia a sucessão dos latifundiários. O artigo se volta ao movimento operário de São Paulo e Rio Janeiro, tratando as disputas ideológicas com o sindicalismo-anarquista e as esperanças em se conquistar da classe operária para se derrubar a burguesia303. O que se verifica gradualmente é o tratamento de duas questões essenciais na periferia do capitalismo: a questão agrária ou camponesa e a luta contra o imperialismo. Gradativamente, o secretariado tentava tratar essas duas questões que fugiam do problema apenas proletário e podiam explicar aspectos nacionais mais amplos, particularmente em países onde a classe operária era proporcionalmente muito pequena, como na América Latina, e o próprio capitalismo havia seguido um desenvolvimento distinto dos países europeus de economia mais avançada. No nº 4, aparece um artigo assinado por Pedro Romo, “O problema camponês na Argentina”, em que tratava o problema camponês a partir de algumas particularidades argentinas: o cultivo extensivo e o trabalho assalariado304, que “tiram todo caráter de indústria familiar, para rodear de muitos dos aspectos próprios da grande produção industrial”. Mas existem diversos “tipos de produtor agrícola: proprietários de terra que exploram a si mesmos com o auxílio do trabalho assalariado; arrendatários e ‘meeiros’, que também apelam ao trabalho assalariado para a exploração agrícola”. O que Romo considerava mais importante na Argentina era o arrendatário, “o agricultor típico da Argentina”, um “pequeno capitalista”. Citando Kautsky, conclui que essa classe estaria condenada a desaparecer devido à lógica de concentração do capitalismo, que engole a pequena propriedade em favor da grande. 303 Carta del Brasil. Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, ano 1, n. 3, 15 maio 1926, p. 11 e 12. ROMO, Pedro. O problema campesino em la Argentina. Correspondencia, n. 4, p. 23, 30 maio 1926, p. 23. 304 272 A leitura de Kautsky305 é superficial, mas é um importante avanço para orientar a preocupação que aparece logo depois: Desde o ponto de vista comunista, é lógico que interessa, em primeiro lugar, o assalariado, pela sua condição de mais explorado, de proletário genuíno e porque constitui uma maioria. A posição do peão agrícola frente ao agricultor é exatamente a mesma que a de qualquer outro explorado frente a seu patrão. Quer dizer que deve totalmente a situação do agricultor? [...]. Por esta causa e porque é um elemento útil para a revolução – já que pode ser um valioso aliado ou um poderoso inimigo – como tem demonstrado a experiência russa e como é fácil deduzir a respeito de nosso próprio país. [...] Os agricultores podem representar em prol ou contra qualquer causa, é que não podemos prescindir de sua situação presente, sobretudo, de sua conquista para a causa posterior do proletariado. (Ibidem, p. 24). A questão camponesa cada vez mais apareceria dentro das interpretações das realidades nacionais de cada país latino-americano, e a exemplo do texto de Romo, citado acima, o tratamento da questão agrária fazia parte de um importante processo de superação da tradição anarquista ou sindicalista entre os militantes dos PCs latinoamericanos. Já apontamos essa diferença anteriormente, mas quando, a partir de 1924, se inicia a construção dos PCs latino-americanos diretamente ligados à IC, as rupturas com o sindicalismo se acentuam, e surge todo um outro universo teórico para se compreender a realidade de cada país. Para a prédica anarquista e sindicalista, a humanidade se dividia entre os oprimidos e opressores, e os camponeses entravam, de acordo com o seu grau de miséria material, dentro de um ou outro. A revolução social não continha etapas, fases ou sentido histórico, conforme ocorria com tradição marxista. Coube ao leninismo aprofundar a questão camponesa sob uma perspectiva revolucionária, mas também dentro da perspectiva histórica desenvolvida pelo marxismo. Para o leninismo, a questão camponesa aparecia relacionada à revolução burguesa, que também se ligava diretamente à construção do Estado nacional, e, de maneira direta, a todos elementos que possamos considerar como relativos a construção da nacionalidade. O fator complicador para esse modelo de marxismo utilizado pelos socialdemocratas alemães e mencheviques aos quais Lenin se opôs estava centrado no papel 305 Ver no início do segundo capítulo, em que explicamos de forma sintética a tese de Kautsky sobre a questão agrária. 273 do imperialismo e em como a expansão imperialista do capitalismo alterava as etapas históricas que haviam marcado os processos de desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental industrializada. A expansão do capitalismo, em sua fase imperialista, não proporcionava o desenvolvimento de uma burguesia nativa que dirigisse o processo de construção da nacionalidade; ao contrário, limitava o desenvolvimento nacional e, assim, também uma parte fundamental do processo que coroou a formação dos países capitalistas europeus, a destruição da ordem nobiliárquica e a distribuição de terras aos camponeses, programa tradicionalmente defendido pelos liberais contra os conservadores na América Latina. Esse modelo apontava para uma substituição da burguesia, como força revolucionária para a construção de nacionalidade na América Latina, já que essa classe já não era, nos países dominados, capaz de enfrentar o imperialismo. Cabia à Revolução Proletária Mundial ajudar e impulsionar a luta anti-imperialista nos países dominados. A luta dos comunistas assumia nos países oprimidos pelo imperialismo não apenas a luta do proletariado contra a burguesia, mas também uma luta de libertação antiimperialista que tinha a tarefa de construção nacional e democratização da terra. Dentre os três núcleos comunistas estudados neste trabalho, foi no Peru em que esse debate teórico e a sua aplicação na interpretação da realidade se tornou mais profundo. No México, foram os exilados e estrangeiros que dentro no PCM deram as maiores contribuições, talvez exatamente por carregarem uma condição naturalmente mais internacional. No Brasil, o PCB teria muita dificuldade em se desprender da análise sindical, centrada no movimento operário, para se debruçar na realidade nacional. A dificuldade em se compreender o tenentismo e a resistência posterior em se incorporar Luís Carlos Prestes no PCB nos anos 1930 são algumas indicações de como a discussão do programa revolucionário para a realidade brasileira possuía insuficiências fundamentais em relação às discussões teóricas que já se faziam para outras realidades da América Latina. No Brasil, a incorporação dos camponeses no programa revolucionário comunista foi, até a década de 1930, pelo menos, formal306 e apenas apareceu por insistência da IC. Já a partir dos primeiros dias de 1927, o tema da luta anti-imperialista começou a assumir um crescente protagonismo nas preocupações do secretariado sul-americano da 306 Praticamente não existiu nenhuma relação entre o PCB e os camponeses até a década de 1930. Mas o nome Bloco Operário, criado como uma frente pelo PCB, foi alterado para Bloco Operário e Camponês, por sugestão da IC. 274 IC em Buenos Aires, abrindo um debate que marcaria os anos seguintes, conforme podemos acompanhar pelas páginas da Correspondencia Sudamericana, e também na Revista Amauta, bem como no órgão informativo da Liga Anti-imperialista das Américas, com sede na Cidade do México, El Libertador. A frente anti-imperialista e os partidos comunistas da América Latina O anti-imperialismo na América Latina não havia sido criado pelos comunistas. Já existia desde antes de José Marti, e se relacionava diretamente a resistência à expansão imperialista norte-americana sobre a América Latina, ainda no século XIX. Desde o finado século, já era motivo para a formação de organizações, protestos e atos, principalmente no México e em Cuba. A primeira dessas organizações a entrar na órbita da Internacional Comunista foi a Aliança Popular Revolucionária Americana, animada pela figura de seu líder, Victor Raul Haya de La Torre, e promovida por diversos intelectuais peruanos exilados pelo governo Lenguia, desde 1923. Haya de La Torre, estudante da Universidade de San Marcos, havia participado do movimento Reformista Universitário de 1918-19, e havia se ligado diretamente ao movimento operário, que naquela época conduzia a luta pelas 8 horas de trabalho. Influenciados pelos ventos renovadores do pós-guerra, os estudantes propuseram a formação de universidades populares que consolidassem a unidade entre trabalhadores manuais e intelectuais. Essa juventude, animada pelo radicalismo do movimento operário, organizou uma manifestação contra a consagração do Peru ao Coração de Jesus, uma cerimônia que aprofundava os vínculos da Igreja com o Estado Lenguista. Após o protesto, o mandatário abriu um período de crescente perseguição aos elementos que se opunham ao Governo. Haya de La Torre era o reitor das universidades populares criadas pelos estudantes, dirigia a Revista Claridad e em 1923 disputou contra Manuel Seoane a presidência da Federação de Estudantes do Peru. Enquanto ainda se realizavam as eleições, os estudantes receberam a notícia da prisão de Haya de La Torre, elegendo-o como Presidente da FEP, e Seoane como vice-presidente. Haya iniciou uma greve de fome na prisão e conseguiu ser desterrado para o Panamá no dia 9 de outubro de 1923. A partir desse exílio, teve início uma peregrinação que torna o nome de Haya de La Torre conhecido entre os movimentos juvenis e anti-imperialistas do mundo. A 275 primeira escala de Haya, após o Panamá, é em Havana, onde conheceria o presidente da Federação de Estudantes de Cuba, Julio Mella. Logo depois, Haya partiria para o México, onde passaria a trabalhar com José Vasconcelos, então Secretário de Educação, de tendências liberais, e discurso latino-americanista. Nesse período em que Haya trabalhou na Secretaria de Educação, Vasconcelos estava envolto nas suas teses sobre a raça cósmica e o latinoamericanismo. Como veremos mais adiante, as ideias de Vasconcelos influenciaram Haya de La Torre, que em maio de 1924 organizou com outros estudantes mexicanos uma cerimônia de “entrega da bandeira da nova geração hispano-americana”. Essa cerimônia não propôs a organização clara da APRA, mas é considerada pelos apristas como o evento fundador de seu movimento. Juntando à ideia de uma “nova geração”, muito proclamada pelos estudantes reformistas com o hispanoamericanismo muito elistista307 de Vasconcelos, Haya diria: O afã de unidade dos povos de nossa raça foi em Bolivar um sonho [...] mais tarde, tema de discursos diplomáticos, e agora fé, credo, sonho de luta de nossa geração. Com orgulho podemos afirmar que nada tem sido mais eficaz ao propósito generoso de fundir em um só os 21 povos indo-americanos – dispersos pelo nacionalismo estreito das velhas políticas. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 7). E após descrever a bandeira, que depois seria o símbolo do Partido Aprista Peruano, disse: “Entrego-lhes, camaradas estudantes do México, porque vós sois os que desde esta terra heroica, que hoje observa atenta e devota nossa América, tens o direito de levá-la. Porque sois os filhos do povo que mais galhardamente defende a liberdade da raça”. (Ibidem, p. 8). Após a pomposa cerimônia, Haya seguiria para Moscou e participaria como expectador visitante ao V Congresso da Internacional Comunista (1924), fato que marcaria profundamente sua perspectiva e o conteúdo que posteriormente assumirá a APRA. Um livro de Haya, publicado posteriormente, nos mostra as impressões que o futuro líder aprista teria da URSS e do próprio V Congresso da IC. Como demonstrado em páginas anteriores, esse congresso marcou grandes esperanças na aplicação da tática de frente única, e estimulou a participação dos comunistas em duas frentes, que pareciam abertas e importantes para que os comunistas expandissem sua influência no movimento popular: o movimento trabalhista inglês e o movimento nacionalista da 307 Tratamos o pensamento de Vasconcelos com mais detalhes no capítulo 2. 276 China. A TUC foi entendida como uma dessas frentes, e Haya de La Torre escreve elogiosas palavras sobre o papel da classe operária inglesa e sua capacidade de organização: A primeira e mais importante de todas é a lição de solidariedade operária que 4 milhões de proletários ofereceram ao mundo, apresentando-se sólidos como um homem – palavras de ordem daqueles dias memoráveis – ao comando único do Congresso das Trade-Unions (TUC), sua autoridade suprema. A disciplina, a organização, a consciência de classe da gente operária inglesa se manifesta nesta unidade. O proletário inglês tem compreendido que dividir-se é desbaratar seu movimento. Por isso na hora da luta, todas as diferenças ficaram suspensas e cada proletário ocupou seu rosto como um soldado. Deter uma máquina tão complicada, tão enorme como a da indústria inglesa; paralisar as comunicações e ameaçar a ordem política de uma nação de quarenta milhões de habitantes, pela resolução de 4 milhões deles sem uma ideia clara do poder operário, quando, consciente e leal à causa de sua classe, atua disciplinadamente. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 381, v. 2). Com esse espírito, o estudante peruano havia chegado à URSS e descrito o V Congresso anos antes: Não me esquecerei daquela manhã em que cruzamos os últimos campos da Lapônia, passamos antes o último posto militar da pequena república e logo após paramos na zona neutra, entramos nas terras da republica de operários e camponeses. Um grito alegre ressoou por vários compartimentos do trem. Estamos nas portas da Rússia. Um grande arco de madeira levantado sobre a via suporta uma grande bandeira vermelha. No arco há inscrições em vários idiomas que dizem estas palavras. “Bem-vindo a todos os trabalhadores do mundo!”, “Trabalhadores do mundo: uni-vos!” (Ibidem, p. 423). Após descrições detalhadas da arquitetura russa, Haya passou à descrição do Congresso, que parece ter lhe impressionado muito. Desde as dez da manhã a animação é incessante. Os delegados ocupam cadeiras correntes de mesas paralelas ao largo do imenso salão. Na frente de cada delegação está o nome do país a que corresponde, escrito em francês. Quase todos os países do mundo estão ali. (Ibidem, p. 425). Ao que parece, Haya buscava com esse texto informar aos revolucionários peruanos sobre sua experiência. Durante o Congresso, os pontos mais interessantes se referem ao 277 tratamento sobre o movimento comunista de Hamburgo e sobre a nova organização do partido ou sua bolchevização como a chama Zinoviev [...] No debate sobre o movimento de Hamburgo sobre a crítica das atividades do partido nos últimos anos, Zinoviev foi implacável. Os assomos do direitismo trotskista que seis meses depois do Congresso produziram novas polêmicas são atacadas por Zinoviev com rudeza. [...] Pela tribuna dos oradores têm passado figuras muito interessantes: Clara Zetkin, a avó da revolução, [...] Radek, chispeante e satírico, se defendeu das críticas certeiras de Zinoviev; Bukharim, risonho, tranquilo, mais professor que agitador, desenvolveu sua tese do Marxismo teórico; Manuelisky fez ironia com um fino francês, sem deixar de acariciar a barbicha; Larkin estremeceu a fala imperial falando do nacionalismo revolucionário irlandês [...] Ruth Ficher fez críticas severas da ação revolucionária de Hamburgo. (Ibidem, p.4278). Todos que iam para o país dos sovietes narravam o que viam e eram lidos com muito interesse pelo movimento operário. Astrojildo Pereira escreveu diversos relatos de sua viagem em 1924, e depois, em 1929 em Moscou. Nessas crônicas, fica evidente o quanto de simpatia o jovem peruano tinha pela URSS, o que nos oferece um excelente ponto de partida para compreendermos a posterior ruptura entre apristas e comunistas, bem como os termos do debate. Em seu cenário dourado [a sala San Andrés do Kremlin], discorre agora uma multidão de homens simples, ressoa a voz dos oradores engradecida pelos aurífonos, debatem grupos de gentes de todas as raças em torno das mesas de trabalho, estalando mil máquinas de escrever, e ao fim da cada sessão ressoam os aplausos ao último orador do dia. Enquanto delegados e participantes abandonam o palácio, ficam neles os ecos triunfais da A Internacional. (Ibidem, p. 428). E sobre a juventude russa, afirmaria: Vendo aquele espetáculo, um correspondente francês me dizia que, indubitavelmente, a Revolução Russa está dando ao mundo uma nova juventude: coincidimos. [...] As impressões que eu tenho recolhido e ordenado para um livro, me detenho em este ponto, que é para mim o de mais interessante e significativo que tenho podido observar na Rússia: no novo tipo de juventude que tem dado a Revolução. [...] na Rússia, a simples transformação das condições econômicas, a simples educação do trabalho sem o ideal do peso e do dólar tem criado uma moralidade revolucionária admirável. (Ibidem, 429,430). Esses comentários de Haya de La Torre, considerando tratar-se de um posterior anticomunista, demonstram-nos as simpatias nutridas pelo fundador da APRA frente à 278 URSS, e podemos considerar que Haya foi um simpatizante do comunismo nos pouco mais de dois anos que se seguiram ao V Congresso da IC. As referências chinesas para a realidade latino-americana Ao longo de 1925 e já no final de 1926, as lutas anti-imperialistas e anticoloniais começaram a tomar um protagonismo crescente e a China de Sun Yat Sen assumiria um importante papel para a IC. Na América Latina, o exemplo chinês trazia esperanças de que não apenas no continente europeu poderia se desenvolver uma revolução, mas também na periferia. Na edição de número 3, de meados de maio de 1926, a Correspondencia Sudamericana reproduzia o discurso de Zinoviev realizado na seção do Comitê Executivo ampliado de 17 de fevereiro de 1926. Além da ordem do dia que guiou os debates, coube destaque à saudação de um delegado chinês presente, aplaudido após informar que o PC chinês contava com 10 mil membros e que o Kuomitang se somava à Revolução Mundial da Internacional Comunista: Não há mais que uma Revolução Internacional, da qual a Revolução Chinesa é uma parte. A consigna de nosso grande chefe Sun Yat Sen está de acordo com a consigna do marxismo e do leninismo. Já não se acredita na II Internacional. A influência da III Internacional tem crescido consideravelmente na China nestes últimos tempos. O movimento compreende tanto aos intelectuais como às grandes massas de operários e camponeses. A consigna do Kuomintang [Guomindan no original] é: pelas massas populares, ou seja, com os operários e camponeses, pela tomada do poder político. Todas essas consignas concordam com a política da III Internacional. Esta é o estado maior da Revolução. O Kuomintang, na pessoa de um de seus líderes, está aqui pela primeira vez junto aos chefes da revolução e nesta qualidade, saúdo a Internacional Comunista. (Grandes aplausos acolheram seu discurso). (Correspondencia Sudamericana, n. 3, p. 11, 15 jun. 1926). Essa intervenção do delegado do Kuomintang, Hun-Hang-Ming, indicava, inclusive para os comunistas latino-americanos, excelentes possibilidades políticas para os países dominados, através da formação de frentes únicas que unissem revolucionários nacionalistas com os comunistas, em luta contra o imperialismo, em direção à Revolução Proletária Mundial. E a partir de 1926 o material de propaganda comunista na América Latina se encheria de interesse e esperança pelo desenvolvimento 279 da luta na China, e pelas perspectivas de uma aliança com nacionalistas em países dominados. Ao longo do ano de 1925 e 1926, a Internacional havia trabalhado pela consolidação das frentes únicas onde havia sido possível. As Trade-Unions haviam se transformado em modelo de análise do problema das frentes no movimento operário dos países industrializados e o Kuomintang cada vez mais aparecia como um modelo de unidade e frente única nos países coloniais e semicoloniais. Se por um lado a IC encontrava reveses no front europeu da Revolução Mundial, nos países coloniais a luta anti-imperialista aproximava nacionalistas e comunistas, chamando a atenção de todos para os acontecimentos do “Oriente”. Contudo, na periferia colonial e neocolonial do Ocidente, a transição política ficava fora da agenda. China, Turquia, Índia, Egito, Marrocos, México e Nicarágua configuravam um cenário complexo e tempestuoso, proclive aos desbordos anti-imperialistas e revolucionários. Durante esse processo, os cominterinistas haviam voltado seus olhares e esforços sobre o que então abarcava o “Oriente”, ou seja, Ásia, África e América Latina.” (MELGAR BAO, 2000, p. 125)308 Tendo como referência uma liga anti-imperialista fundada em julho de 1924 na China, a IC decide impulsionar a criação de organizações frentistas anti-imperialistas e de solidariedade aos perseguidos políticos. O Socorro Internacional Operário, depois Socorro Vermelho Internacional, que mais tarde será responsável pelas campanhas de libertação de diversos revolucionários presos pelos fascistas, foi criado nessa época. 308 MELGAR BAO, Ricardo. El Universo Simbólico de una Revista Cominternista: Diego Rivera y El Libertador, Convergencia, México, n. 21, jan./abr. 2000. Disponível em: <http://ru.ffyl.unam.mx:8080/jspui/bitstream/10391/914/9/melgar_el_libertador_introduccion%20.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2014. 280 Figura 71 - Desenho de Rivera para o Congresso de Bruxelas (1927)309 Fonte: El Libertador, nº12, México: jun. 1927, capa. Willi Müenzenberg310 se tornaria o organizador de frente de solidariedade internacional por excelência, e daria os primeiros impulsos às ligas anti-imperialistas que se reuniram em um congresso, em Bruxelas, no início de 1927. O estímulo frentista da IC teve um momento de importante expansão, que na América Latina teria como 309 Diego Rivera ilustra o número 12 de El Libertador, que iria publicar parte das resoluções do Congresso de Bruxelas. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 110. 310 Willi Müenzenberg (1889-1940) foi um comunista alemão conhecido pela sua capacidade em organizar o aparato de propaganda comunista. Foi responsável pela criação de muitas iniciativas editoriais importantes, membro do CC do PC da Alemanha e importante dirigente do movimento comunista. Em 1940 foi morto por nazistas. 281 expressão orgânica a fundação das Ligas Anti-Imperialistas Pan-Americanas (depois mudaria de nome) em meados de 1925 na Cidade do México, organizadas diretamente por militantes do PCM. Entre os organizadores da Liga Anti-Imperialista, estiveram Diego Riviera, Ursulo Galván, Bertrand e Ella Wolfe, além de Siqueiros, Enrique Flores Magón311 e comunistas estrangeiros, que viviam na Capital Mexicana, como Julio Mella e Tina Modotti. O primeiro número do órgão de propaganda da Liga Anti-imperialista Americana apareceu em agosto de 1925 e denunciava a ameaça que vinha do governo dos EUA em seu editorial: Um perigo ameaça a América Latina – o perigo da morte – Cuba, Panamá, Haiti, Santo Domingo, Nicarágua, Veracruz. [...] passos sucessivos na agonia de um continente. A Doutrina Monroe e o Tratado Lamont-De La Huerta nos privam de nossa soberania. [...] A marinha norte-americana ocupa o Caribe e seus soldados pisoteiam os direitos da América Central e o resto da América Latina dorme embalado pelo absurdo “patriótico” de minúsculos caudilhos. (El Libertador, n. 1,mar. 1925). A situação chinesa e a frente única expressa no Kuomitang foram se transformando em uma espécie de situação política e organização frentista modelo para os países não europeus. Em 1925, a Liga Anti-imperialista da Américas LADLA explicava que: [...] o imperialismo tem levado a rebelião à China. Desde a invasão de diversas potências em 1900, a China está subjugada pela finança internacional. O imperialismo japonês a obrigou a entregar a exploração de suas ferrovias, os ingleses os envenenaram com ópio, os alemães arrebataram Khiau Chaw, os franceses a Indochina. Um saque diabólico se exerceu sobre o indefeso país, corroído interiormente pelo câncer da dominação imperial. O despertar da China é um aspecto pavoroso para os imperialistas e para o inglês sobretudo. [...] Mas o despertar da China trará consigo o despertar de centenas de milhões de homens, sua incorporação à luta contra o imperialismo escravista, e sua solidariedade com os demais povos dominados pelo imperialismo. Unidas as enormes massas do extremo oriente à Rússia libertada, afugentaria definitivamente da metade da terra a exploração espantosa que atualmente sofrem esses desgraçados povos. (El Libertador, n. 4, jul. 1925, p. 1). Em uma seção do CE ampliado da IC, Zinoviev falou a seguinte análise do problema da Revolução no Oriente: 311 Embora possua o mesmo nome, não se trata do irmão de Ricardo Flores Magón. 282 Nossos êxitos são enormes. A Primeira Internacional, a de Marx, não tinha ousado pensar em uma relação desta com o Oriente. Se o partido do Kuomintang, que se eleva a 400.000 membros, se esse partido que a história levará amanhã ao poder em toda a China, está ideologicamente solidário conosco, é já um grande êxito. [...] Se podemos falar de novos fatores mundiais e históricos, é da união em nossa época do movimento nacional revolucionário com o movimento proletário. Esta fusão de duas correntes revolucionárias nos assegura a vitória. (Correspondência Sudamericana, n. 6, 30 jun. 1926, p. 31). E conclui, sobre o Oriente: “Se conseguimos conquistar as colônias ao socialismo, e arrastá-las atrás de nós antes que amadureça e se reforce a sua burguesia, entraremos então na etapa capitalista nas colônias”. (Ibidem, p. 32). O Kuomintang tornou-se uma referência, e a organização das frentes nacionais compostas por simpatizantes dos comunistas e nacionalistas animaram o movimento anti-imperialista na América Latina, especialmente dando possibilidade de organização à Aliança Popular Revolucionária Americana, a qual Haya de La Torre havia tentado dar vida desde 1924, quando no México havia organizado a cerimônia de entrega da bandeira. Após o tempo em que esteve na URSS, Haya de La Torre peregrinou pela Suíça, devido a problemas de saúde, passando pela Itália, pela França e convivendo com Ingenieros, Vasconcelos, Ugarte, Ortega y Gasset e outros. Em uma dessas oportunidades, participou de uma assembleia anti-imperialista, em que falava em nome do que ele denominava como a frente única de trabalhadores manuais e intelectuais da América, que seria a APRA. Em nome da nova geração revolucionária e anti-imperialista da América Latina, saúdo neste instante memorável o valoroso povo mexicano, as suas organizações de camponeses e operários, cuja obra não havia terminado ainda, mas que aponta o mais avançado e o mais apreciável exemplo para todos os oprimidos de nossa América. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 79, v. 1). Em novembro de 1926, ao saber da criação da Revista Amauta por Mariátegui no Peru, enviou uma carta, desde Londres, que seria publicada na própria revista, e na qual Haya demonstra que compreende que a Revista Amauta fazia parte desta frente, tal como o próprio Haya foi definindo a APRA. Ao voltar esta noite de Paris, onde está fundado e em pleno trabalho o 283 grupo de jovens peruanos que vão dirigir as atividades do APRA na Europa, me deparei com o primeiro número de Amauta que é a melhor mensagem que eu podia ter desejado por parte da seção dos trabalhadores intelectuais do Peru, militantes na nossa grande frente de ação, que, com os trabalhadores manuais, vai conquistar para o país os caminhos da justiça. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 115, v. 1). E, em dezembro de 1926, certamente acreditando ser capaz de dar forma para a sua organização, Haya de La Torre, em nome da APRA, publica em inglês o primeiro documento programático com o título em português: “O que é a APRA?”, publicado na The Labour Monthly, em Londres. A organização da luta anti-imperialista na América Latina, por meio de uma frente única internacional de trabalhadores manuais e intelectuais (operários, estudantes, camponeses, intelectuais, etc.) com um programa comum de ação política, isso é o APRA. (ALIANÇA Popular Revolucionária, 1926, s.p.). E logo definia o Programa Internacional da APRA: “1ª ação contra o imperialismo yanque; 2ª pela unidade política da América Latina; 3ª pela nacionalização de terras e indústrias; 4ª pela internacionalização do Canal do Panamá; 5ª pela solidariedade com os povos e classes oprimidas do mundo” (Ibidem, s.p.). E descreve a APRA como um partido revolucionário anti-imperialista latinoamericano, que já contava com uma vasta secção no Peru, células no México, na Argentina e América Central, com subseções na Alemanha, Espanha e Inglaterra. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 130). Após a divulgação desse programa da APRA, Haya organiza o que seria a seção da Apra em Paris, com grande parte dos estudantes e intelectuais que estavam exilados pelo Governo Lenguia, entre eles: Felipe Cossio del Pomar (1888-1981), Cesar Vallejo (1892-1938), Rafael e Alfredo Gonzalez Willis, Gonzalo Gamarra, José Toribio Ochoa, Edgardo e Wilfredo Pozas. (CHANG RODRIGUEZ, 2007, p. 335). A referência seria o Kuomintang chinês e Haya de La Torre se utilizaria da reputação da organização nacionalista fundada por Sun Yat Sen para dar legitimidade à APRA e ganhar adeptos. Para nós, povos latino-americanos, a China jovem é um exemplo extraordinário. A China renasce por si mesma e a liberdade do povo chinês é obra dos próprios chineses. As figuras da juventude revolucionária chinesa dirigem a ação, que lutam em batalhas, que governam as seções do país conquistadas pela revolução, são os 284 homens que encarnam profundamente a consciência em rebelião de seu povo e que, tomando a inspiração estrangeira, se aproveitam dela sem deixar-se aproveitar por ela. Até hoje, a China havia sido aproveitada pelos estrangeiros. O movimento do Kuomintang (Kuo = nacional, min = popular, tang = partido) representa justamente um movimento de independência de toda sujeição, visando para esse fim de todos os meios e de todas as forças. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 140, v. 2). Entre finais de 1926 e a primeira metade de 1927, a Revolução Chinesa tomaria destaque em todos os círculos revolucionários latino-americanos, era a esperança da Revolução do Oriente. No Brasil, debatia-se no PCB a frente única com referências no Kuomintang. Do mesmo modo ocorria no México, e especialmente entre os peruanos, na maioria exilados, que identificavam a APRA com o Kuomintang. O entendimento que se tinha do que ocorria na China e o interesse pelo tema entre os revolucionários latino-americanos pode ser compreendido quando lemos um artigo de José Carlos Mariátegui publicado em fevereiro de 1927, com o título de “O problema da China”. (MARIÁTEGUI, 1982, p. 186). O jovem jornalista peruano esperava o ataque das forças nacionalistas que se encontravam concentradas em Cantão, reunindo forças para atacar Shangai no centro da China, onde ficava o centro do Imperialismo na China. A Grã-Bretanha prepara-se para o combate, organizando um desembarque militar em Shangai com o objetivo, segundo sua linguagem oficial, de defender a vida e a propriedade dos súditos britânicos. E, considerando o perigo de uma vitória dos nacionalistas, denunciados como bolcheviques, esforça-se por mobilizar contra a China revolucionária e nacionalista todas as grandes potências. (MARIÁTEGUI, 1984, p. 186). E explicava mais adiante: Mas é tão forte o movimento revolucionário, que nenhuma organização capitalista ou militar, estrangeira ou nacional, pode detêlo ou paralisá-lo. O governo de Cantão repousa sobre sólidas fundações populares. [...] Com a China revolucionária e renascida estão todas as forças progressistas e renovadoras, de cujo sucesso final espera o mundo novo a realização de seus ideais presentes. (MARIÁTEGUI, 1982, p. 188). O número 8 da Revista Amauta também trouxe um artigo detalhado sobre a 285 situação política chinesa, assinando por Marcel Fourrier (1895-1966)312, com o título “Panorama de la Revolución Mexicana”, e o subtítulo: “A liberação da China marcará a decadência do imperialismo e abrirá a era das revoluções”, em que dizia: “simplificando extremamente, se pode dizer que as contradições imperialistas no mundo se relacionam com as que opõem aos EUA, a Grã-Bretanha e o Japão”313. E o artigo termina: “Será a revolução chinesa que colocará fogo na pólvora?” (Ibidem, p. 40). A Revolução Chinesa mereceu até uma poesia de Armando Bazán, estudante membro do grupo de Lima que se agrupou em torno de Mariátegui para dar origem ao Partido Comunista do Peru: Na Ásia as mãos amarelas levantam bandeiras vermelhas [...] sobre o cansaço letal de Buda estalam como duas chicotadas as proclamas de Lenin e Sun Yat Sem. Explode outra vez A DINAMITE que abre caminhos virgens: – incêndio de novos horizontes – A REVOLUÇÃO E desde Cantão até Marrocos tremem as bases do mundo Na torre mais alta da inquietação se ergue a atenção do mundo E há milhões de gritos que sacodem as Muralhas de Pequim. (BAZAN in AMAUTA, 1927, p. 7). A aplicação tática da frente única parecia estar dando resultados aos que acompanhavam o desenrolar do Kuomitang. A frente anti-imperialista mundial, animada pela Internacional Comunista, tinha um novo impulso com a organização de um Congresso Mundial organizado em Bruxelas, que contaria com diversas personalidades da luta anticolonial e anti-imperialista. No nº 9/10 de El Libertador, em setembro/outubro de 1926, anunciava o Congresso: A Liga Internacional Ant-imperialista, que é dirigida por Barbusse, o eminente escritor e revolucionário francês; Einstein, o grande gênio científico da época; Kuo Meng, reitor de uma célebre universidade chinesa; Leibeur, líder do Partido Socialista Independente da Alemanha; Skalavala, delegado pela Índia ao Parlamento Britânico e outros célebres revolucionários e intelectuais tem decidido organizar 312 313 Marcel Fourrier foi membro do PCF e editor do jornal L’Humanité. FOURRIER. Panorama de la Revolución Mexicana. Amauta, Lima, n. 8, abr. 1927, p. 5. 286 uma conferência mundial que compreenda as representações de todos países coloniais, semicoloniais e as de todas aquelas forças revolucionárias que sintam a necessidade de lutar contra o imperialismo mundial das grandes oligarquias financeiras. (EL LIBERTADOR, n. 9 e 10, out. 1926, p. 10). Figura 72 - Artigo da Revista Amauta acompanhando os acontecimentos na China. (1928) Fonte: Amauta, n. 17, Lima: set 1928, p. 21. E ao citar as organizações que estarão presentes, a primeira a ser citada, o Kuomintang, “o poderoso partido que realizou a Revolução Nacional Chinesa contra o imperialismo, que é o governo de Cantão e conta com meio milhão de afiliados”. (Ibidem, p. 10). Após reafirmar a importância dessa Conferência para os anti-imperialistas da América Latina, lista-se uma série de organizações do continente que fariam parte do Congresso, ressaltando uma mensagem de saudação do governo Calles. Os pontos do Congresso eram: Investigação do trabalho em países submetidos ao imperialismo. a) Movimento internacional – sua organização – contra a opressão nas colônias e contra todos os atropelos dos imperialistas. b) Organização de forças para prestar apoio moral e material aos povos ameaçados pelo imperialismo e às organizações que lutem contra o imperialismo internacional. 287 c) Estabelecimento de relações permanentes entre todas as forças que lutam contra o imperialismo. (Ibidem, p. 10). O Congresso seria realizado em Bruxelas, no Palácio de Egmont, em 10 de fevereiro de 1927. Estiveram presentes diversos líderes que teriam importância na luta anticolonial, como Nehru, Ho Chi Minh, além de importantes intelectuais e personalidades políticas, como: Henri Barbousse, Romain Rolland, George Lansbury, Máximo Gorki, Alfons Goldschimidt, Vasconcelos, a esposa de Sun Yat Sen, Carlos Quijano e Roger Baldwin. Todos os presentes destacariam que os debates haviam sido marcados por 3 questões: a Revolução Chinesa e as grandes perspectivas que se tinha em relação ao Kuomintang, as invasões norte-americanas na América Latina e a questão Negra. Esse congresso anti-imperialista pode ser considerado o ponto mais alto alcançado pela política de frente única, em termos internacionais alcançados pela IC, até então. No manifesto, o problema da frente única é central: “O imperialismo, a forma mais brutal parasitária do capitalismo, tem conseguido a fim de provocar, pelos seus crimes e despojos, a FRENTE ÚNICA de todas suas vítimas”. (EL LIBERTADOR, n. 12, 1 jun. 1927). No congresso anti-imperialista de Bruxelas, congregaram-se representações de todas as raças oprimidas, dos povos conquistados, dos trabalhadores explorados, de toda a humanidade laboriosa, forte e sofrida, dessa humanidade rebelde, que começa a despertar, amedronta os seus opressores e de cujo trabalho vive em vergonhoso ócio o pequeno grupo de magnatas que governa o mundo. (Ibidem, p. 3). Quando as resoluções começam a ser publicadas no órgão da Liga Antiimperialista das Américas, El Libertador, a partir do nº 12, já havia ocorrido o golpe de Chang Kai Shek na direção do Kuomintang e os comunistas estavam sendo perseguidos, desde 12 de abril, após a entrada das tropas nacionalistas em Shangai. A perseguição implacável contra os comunistas traz um elemento fundamental para a concepção de frente única pensada pela IC. Do mesmo modo que havia ocorrido com os sociais-democratas em outros episódios na Europa, a unidade podia ser rompida unilateralmente pelos nacionalistas quando estes alcançassem o poder. Chang Kai Shek seria considerado o símbolo da traição da unidade nacional, e os comunistas sempre o 288 tratariam como o oposto a Sun Yat Sen314, um honrado nacionalista com o qual se poderia ter mantido uma frente anti-imperialista e antifeudal. Jamais a tática de frente única anti-imperialista será negada pelos comunistas chineses, mas o significado dessa ruptura traria consequências para a compreensão que se tinha da frente com os nacionalistas em países dominados. O aprendizado com a derrota na China não seria incorporada imediatamente, e El Libertador, em julho, ainda publicaria nas páginas do nº 12 elogiosas palavras ao Kuomintang: “Temos hoje no Partido Nacionalista Chinês (Kuo Min Tang) o mais alto grau de desenvolvimento de um movimento nacionalista revolucionário, empenhado em sua luta final”. (El Libertador, n. 12, jun. 1927). E, embora ressalve que “o exemplo da China nos revela também, que os países oprimidos pelo imperialismo, se encontram classes dispostas a aliar-se à opressão imperialista, traindo a causa da libertação nacional”. (Ibidem). No entanto, a resolução ainda afirma: O movimento nacional revolucionário chinês serve de protótipo aos outros povos oprimidos pelo fato de que tem conseguido formar um forte exército nacional que permita combater com êxito contra as forças contrarrevolucionárias. Esse exército se compõe de operários e camponeses unidos por um mesmo espírito revolucionário. A aparição do exército de Cantão serve para apoiar a organização livre dos camponeses, operários, comerciantes e outras camadas sociais oprimidas economicamente e politicamente. É dever de todos que intentam seriamente a libertação de seu país, de formar associações de combate parecidas e fazer com que compreendam os seus compatriotas, obrigados a servir nas organizações armadas do imperialismo, seus deveres nacional-revolucionários. (EL LIBERTADOR, n. 12, jun. 1927, p. 3). A cisão entre comunistas e nacionalistas após o massacre de Shangai em abril de 1927 começou a ter seus reflexos na concepção de frente única nos países periféricos, mas seria após agosto, com a derrota definitiva do PC da China pelas tropas do Kuomintang, que os comunistas em todo mundo começariam a tirar lições. Em agosto mesmo, na El Libertador nº 13, já se publicava um artigo assinado por Michael315. A Revolução Chinesa entrou em uma nova fase. A revolução nacional contra os privilégios ilimitados do imperialismo despertaram em sua 314 Sun Yat Sen foi o grande líder e fundador do Kuomitang. Foi a partir de sua liderança que os nacionalistas chineses se aliaram com o governo soviético. 315 Possivelmente esse nome se refira à mexicana Concepción Michel. (JEIFETS, 2004, p. 212). 289 marcha vitoriosa a todo o país, arrastando para um movimento gigantesco de emancipação não só a burguesia nacional, como também todas as massas operárias e camponesas. Fez-se a frente única anti-imperialista, organizando-se sob a direção do governo de Cantão a luta contra os generais reacionários e contra o governo de Pequim, sustentadas pelas forças unidas das potências imperialistas. Contudo essa frente única, conjunta de classes e camadas sociais diferentes, alojava já em seu seio às forças motrizes essencialmente contraditórias e opostas umas as outras. A primeira, representando os interesses da burguesia nacional. Lutava pela destruição das prerrogativas de que gozavam a indústria e o comércio estrangeiro, em prejuízo do capital nacional. A segunda, operária e camponesa, luta pela terra e a liberdade, contra uma situação de fome, de miséria e de exploração espantosa. Marchando junto com as massas proletárias até o norte, a burguesia nacional desempenhou um papel revolucionário, infringindo derrotas contínuas aos exércitos de Chang Tso-Lin. Mas o desenvolvimento da revolução empurrou as massas operárias e camponesas até a conquista dos seus interesses, interesses próprios da classe proletária. A revolução, em princípio essencialmente nacionalista, se transformou em revolução social, pedindo não só a anulação das prerrogativas estrangeiras e o estabelecimento de um governo protetor dos interesses nacionais, senão a destruição do sistema feudal, a repartição da terra, a supressão dos impostos asfixiantes, a jornada de oito horas, salários justos e direitos políticos que até agora tem sido privilégio das classes endinheiradas. A massa proletária, cada dia mais potente e organizada, sob a direção dos elementos avançados em poderosos sindicatos e ligas camponesas, chegou a pôr em perigo não só os interesses do imperialismo, senão também o capital nacional. Foi então quando Chang Kai Shek trai, iniciando a luta contra a esquerda do Kuomintang e buscando o entendimento com o governo de Pequim e as potências estrangeiras. (EL LIBERTADOR, n. 13, ago. 1927, p. 14). A longa transcrição desse texto se justifica porque sintetiza a primeira forma com que serão compreendidos os acontecimentos na China. Paralelamente, e acompanhando os embates internacionais, estavam os comunistas latino-americanos, que na maior parte dos países já organizavam frentes anti-imperialistas com elementos não comunistas. Otávio Brandão, por exemplo, cita com entusiasmo em um artigo publicado na Revista Correspondencia Sudamericana, de julho de 1927: Aproveitando esta conjuntura de poder atuar legalmente, o partido desenvolveu grandes atividades, levou sua propaganda e agitação a todos os terrenos e começou a tarefa de organização [...] existência de um PC homogêneo, existência de um forte bloco operário [...] apoia a frente única proletária, a unidade sindical, o PC e o trabalho 290 incompatível do diário La Nación316. Embora o PCB ainda se mantivesse limitado à atividade sindical, com apenas influências pequenas em outros setores sociais, como entre os donos do jornal A Nação, no Peru e no México o debate acerca da frente única e luta anti-imperialista alcançava outros patamares. Em meados de 1927, como fruto do impulso que a luta anti-imperialista havia alcançado com o Congresso de Bruxelas, Mariátegui dedicou o nº 9 da Revista Amauta para tratar do imperialismo norte-americano. Essa publicação lhe rendeu uma prisão e o fechamento de Amauta por alguns meses, determinado por Lenguia e sob influência da embaixada dos EUA no Peru317. Na América Latina, os debates acerca das táticas que os comunistas deviam utilizar haviam se encontrado pela primeira vez no Congresso Anti-imperialista de Bruxelas, e se definiram as táticas da luta anti-imperialista no subcontinente. Estavam presentes: Victorio Codovilla pelo Socorro Operário Internacional; pelo Peru, Eudócio Ravines e Haya de La Torre; pelo Panamá, pela Liga Anti-imperialista do México e pela Liga Nacional Camponesa, Júlio Mella; por Porto Rico, Vasconcelos; Alfonso Goldschimid e Carlos Quijano representaram a Venezuela, entre outros. Esse congresso marcou o início das definições ideológicas mais efetivas para os setores que gravitavam de alguma maneira no entorno da política de frente única animada pela IC. Na América Latina, desde a fundação das ligas anti-imperialistas, os comunistas haviam conseguido garantir a simpatia de inúmeros intelectuais latinoamericanos, em parte transferindo para a frente anti-imperialista a energia que havia agrupada antes em torno dos grupos Clarté e revistas como Claridad. À medida que os partidos comunistas latino-americanos se construíam e o próprio processo de definição ideológica avançava nos grupos que haviam se organizado com simpatias à Revolução Russa, a hegemonia que os comunistas alcançavam na frente passava a ser questionada, e foi a partir dessa Conferência em Bruxelas, no início de 1927, que teria início uma separação entre comunistas e os movimentos nacionalistas latino-americanos. A polêmica teria início com a APRA e Haya de La Torre. BRANDÃO, Octávio. “Progressos do Movimento Comunista Brasileiro” In: Correspondencia Sudamericana, n. 25, Buenos Aires: jun 1927, p. 26. 317 Cf. ROIULLON, 1982, passim. 316 291 Ao longo do congresso, Haya apresentou uma série de posições contrárias às teses defendidas pelos comunistas, abrindo uma polêmica particular com Júlio Antônio Mella, o cubano exilado no México que era muito atuante nos temas relacionados à luta anti-imperialista. Uma parte das teses de Haya de La Torre foi aprovada318, mas ao longo do ano de 1927 e início de 1928 se desenvolveu a ruptura definitiva entre os seguidores de Haya de La Torre (futuros apristas) e os comunistas. Conceitualmente, os debates seguiram em paralelo com o amadurecimento das polêmicas em torno do que ocorria na China. A perseguição em abril de 1927 havia deixado os comunistas latino-americanos atentos para uma possível traição da pequena burguesia nacionalista, que Haya parecia representar. A crítica do líder da APRA questionava a hegemonia dos comunistas na Liga Anti-imperialista, defendendo uma “autonomia” política dos não comunistas na frente. O debate girava em torno do que seria uma frente e o que seria um partido, ao mesmo tempo que se discutiam etapas da revolução, a diferença entre América Latina e Europa, entre outros temas. A ruptura entre Haya de La Torre e os comunistas Quando acompanhamos essa luta política, inicialmente entre Haya de La Torre e Júlio Mella e o Secretariado Sul-americano da IC, percebe-se que a profundidade das análises de Mariátegui tem relação direta com os termos dessa contradição, e a conceitualização está marcada pelos modelos marxistas-leninistas que organizavam a conceitualização da luta política na IC. O próprio Haya de La Torre, no livro “resposta” aos comunistas, anos depois, narra: Propagando pela frente única livre de inexorável controlador de Moscou e por uma ação realista, nós apristas iniciamos tenacíssima campanha pela imprensa e pela tribuna. Foi então que Julio Mella, estudante desterrado de Cuba e militante comunista, publicou um violento folheto contra a APRA [...] mas os debates de Bruxelas, em que refutei e consegui o rechaço de seu projeto de resolução sobre as condições econômicas e políticas da Indoamérica, nos distanciaram definitivamente. [...] Mella, recémchegado de sua visita a Rússia, se encontrava possuído de um juvenil fanatismo bolchevique, intransigente e ardido. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 13, v. 4). 318 Ver: Correspondencia Sudamericana, n. 20, Buenos Aires: 15 mar. 1927. 292 Haya de La Torre apresenta a contenda de uma forma pessoal que desqualifica a polêmica pelo temperamento de Julio Mella. Como o cubano havia ganhado um imenso prestígio, devido ao seu assassinato covarde no México, Haya mantém um tom amistoso, que não seria o mesmo quando se referia aos comunistas que o atacaram através dos periódicos do México e de Buenos Aires, “Os órgãos da imprensa estalinista de Buenos Aires e México”. (Ibidem, p. 12). Esses órgãos eram La Correspondencia Sudamerica e El Libertador. Um primeiro sinal da ruptura entre aprista e comunistas veio em um artigo de julho de 1927, que abriu a capa de Correspondencia Sudamericana com o título “La lucha antimperialista”, em que reforçava a necessidade de se reforçar as ligas como “organizações de massas”. Sem citar a APRA, falava que: Ultimamente surgiram diversos organismos com distintas apelações, que reclamando-se do pensamento anti-imperialista, contribuem para achicar e dividir; na prática as forças anti-imperialistas. Como é natural, esses organismos não podem assumir a responsabilidade da sua criação sem atentar contra o prestígio e a vida das ligas antiimperialistas. É o que, em forma mais ou menos clandestina, vem se fazendo. [...] A liga anti-imperialista não é um partido político, é uma frente única orgânica, permanentemente, que agrupa em suas fileiras a todos os militantes anti-imperialistas que adotam a sua plataforma de ação, qualquer que seja sua procedência social ou sua filiação ideológica. Para ingressar na liga anti-imperialista não se pergunta se participa de tal ou qual concepção política, se padece ou comparte esta ou aquela religião, esta ou aquela religião, esta ou aquela filosofia. A única condição que se exige ao que deseje intervir na liga como aderente é que comparta sua plataforma, ou seja, que deseje lutar contra o imperialismo. [...] Fica dito, igualmente, que a liga anti-imperialista deve ser o oposto do sectarismo. (La Correspondencia Sudamericana, n. 28, 31 jul. 1927). E no nº 29, 15 dias depois, o texto da capa já tratava de forma aberta a polêmica com a APRA. Chegou o momento de pontuar claramente os diversos aspectos do problema que coloca as modalidades, estrutura e fins dessa nova organização para advertir qual é sua posição frente ao problema revolucionário e por fim, ao Partido Comunista, a terapia internacional319. 319 Contra el Partido Comunista?, Correspondencia Sudamericana, n. 29, Buenos Aires: 31 jul. 1927. 293 O ponto que importava no debate para o Secretariado Sudamericano era a posição de Haya de La Torre sobre as forças motrizes da revolução e o papel das classes médias nas revoluções latino-americanas. “[...] o resultado era que os estudantes constituiriam a vanguarda do movimento revolucionário anti-imperialista.” (Ibidem, p. 1). Para os que pudessem imaginar que se tratava de uma questão secundária, o artigo citava o livro “Por la emancipação de America Latina”320, em que o autor publicava vários artigos em que defendia a necessidade de uma frente única para agrupar várias classes que vivem a opressão da dominação imperialista, mas deixava pouco claro qual o papel de cada classe, e sobre essa questão nascia a primeira importante divergência que oporia comunistas e o aprismo. Haya dava muita importância à “nova geração”, que era claramente uma referência aos estudantes da reforma universitária. “Haya de La Torre superestima indevidamente as forças universitárias no movimento anti-imperialista.” (Ibidem, p. 2). E questionava: “se a APRA é uma frente anti-imperialista, por que se constitui separada da liga anti-imperialista que realiza precisamente essa frente? Por que tem tido a necessidade de uma organização especial?”. (Ibidem, p. 2). E logo passava para a questão que marcaria a ruptura entre apristas e comunistas no Peru, e entre os exilados peruanos que estavam no exterior: A diferença entre um partido revolucionário e uma frente. Desde o texto de 1926, “O que é a APRA?”, o estudante peruano já escrevia a palavra Frente junto com Partido Revolucionário, aparentando uma confusão em relação aos termos que para os comunistas representavam formas de organização muito diferentes321. Além disso, Haya falava de frente única e partido, fazendo inclusive paralelo com o Kuomintang chinês: “O movimento do Kuomintang (Kuo: nacional, ming: popular, tang: partido) representa justamente um movimento de independência de toda sujeição usando para esse fim de todos os meios e de todas as ajudas”. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 140, v. 1). A lógica que Haya estava começando a incorporar para justificar suas posições 320 Ver: HAYA DE LA TORRE, 1984, v. 1. “A organização de luta anti-imperialista na América Latina, por meio de uma frente única internacional de trabalhadores manuais e intelectuais (operários, estudantes, camponeses, intelectuais, etc.) com um programa comum de ação política, isso é o APRA. [...] O APRA – que vem a ser o Partido Revolucionário Anti-imperialista Latino-Americano.” (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 130, v. 1). 321 294 frente aos comunistas havia sido escrita em fevereiro de 1927, em tempos de entusiasmo dos comunistas pelo Kuomintang. “A realidade da América Latina não é a realidade da Europa” (Ibidem, p. 136-141), em que afirmava que “nossos revolucionários não têm até hoje senão tratado de inventar um ambiente europeu em uma realidade americana que jamais descobriram. [...] formam as “burocracias revolucionárias” da América Latina.” (Ibidem, p. 137) Afirmando a necessidade de uma teoria latino-americana revolucionária, e também de um partido revolucionário latino-americano, o estudante peruano justificava a sua separação da órbita da Internacional Comunista, que nesses termos passava a ser tratado como um órgão europeu e suas soluções revolucionárias não serviriam para o continente latino-americano. Após a perseguição aos comunistas em abril, o modelo de frente com os nacionalistas passaram a ser vistos com mais atenção, e certamente a traição de Chang Kai Shek motivaria uma revisão da relação dos comunistas com a APRA, que denominava a si como o “Kuomintang latino-americano”. Com os acontecimentos se Shangai, houve uma tendência crescente em se debater a composição de classe da frente única nos países coloniais e semicoloniais. O papel do partido comunista na frente e que parte da burguesia nacional poderia se aliar ao proletariado, ou seja, ao partido comunista, na luta anti-imperialista. No artigo da Correspondencia Sudamericana citado, explicava que diferença entre frente e partido é que [...] o Partido tem uma base social precisa, homogênea, uma ideologia única, uma concepção homogênea de todas as questões. No partido, qualquer que seja sua procedência social, está a elite de sua classe, sua parte mais resoluta e avançada, sua fração mais consciente. No bloco de frente única, integrado por forças sociais distintas (nesse caso, operários, camponeses das diversas camadas, estudantes, profissionais, pequenos comerciantes e industriais, médios-burgueses, grande burguesia em determinadas condições, etc.), o característico não é a homogeneidade e função de partido, senão a concentração de um momento de massas. (CORRESPONDENCIA..., n. 29, 15 ago. 1927). A partir dessa definição, a pergunta que se fazia à APRA era que papel pretendia cumprir, já que, com os mesmos objetivos, para o partido revolucionário havia o Partido Comunista e para a frente as Ligas Anti-imperialistas. “Haya de La Torre não pode deixar de compreender que o é indispensável esclarecer é qual a posição do APRA 295 frente ao Partido Comunista, já que, como frente única ou como partido da nova geração, se substitui de fato, o Partido Comunista.” (Ibidem, p. 5). E mais adiante completa com uma citação de Stalin: É impossível acelerar a revolução e conquistar a independência completa das colônias e dos países vassalos adiantados sem isolar a burguesia nacional conciliadora, sem submeter as massas revolucionárias burguesas da influência desta burguesia, sem realizar a hegemonia do proletariado, sem organizar os elementos avançados da classe operária em um Partido Comunista independente. (Ibidem, p. 5). Figura 73 – A Revista Amautta aderiu a campanha internacional em defesa da vida dos anarquistas Sacco e Vanzetti (1927) 296 O que é o ARPA? Após essa abertura da crítica pública aos posicionamentos de Haya de La Torre, um artigo escrito por Julio Antônio Mella, com o título irônico de “O que é o ARPA?”, selava a ruptura que, inclusive, agudizou-se na medida em que a traição de Chang Kai Shek322 na direção do Kuomintang significou a perseguição e a morte dos comunistas chineses. O artigo de Mella, publicado em abril de 1928, na Cidade do México, afirmava: Se somente fossemos responder ao ARPA, não haveríamos escrito este trabalho. Mas o importante é que o ARPA representa as intenções de organização do “Oportunismo” e do “Reformismo” latino-americano. Responder ao ARPA é um meio de responder a todos os oportunistas e reformistas traidores que sustentam iguais ou similares ideologias, ainda que neguem ter vínculos. Declarada essa intenção, Julio Mella redigiu o longo artigo em que demarca os pontos que nortearam a ruptura entre Haya e os comunistas. Mas, antes de passarmos para o conteúdo do próprio texto, que doutrinariamente é o que nos importa mais, cabe apresentar uma manobra política de Haya que ajudou os comunistas, através do artigo de Mella, a romper definitivamente com a APRA. Ao que tudo indica, o esforço pela unidade com Haya havia sido buscado pelos comunistas desde que ele havia colocado reservas para assinar a resolução do Congresso de Bruxelas, no início de 1927323. Em tom irônico, Mella justifica: Verdadeiramente foi um crime imperdoável dos organizadores do Congresso (lutadores proletários e socialistas da Europa, unidos a revolucionários nacionalistas da China e da Índia) não terem ouvido falar antes do ARPA e seu líder máximo [...] Quando chegaram os delegados latino-americanos a Bruxelas, pediram por “cortesia” revolucionária que se convidasse o “desgostoso” “líder” do ARPA [...] O fato real foi que o ARPA, ou seus membros ali presentes, foram realizar um trabalho divisionista [...] depois de assistir a uma só sessão se retiraram e disseram que firmavam com reservas e que explicariam. ¿QUÉ ES EL ARPA?. In: MELLA, Julio. Julio Antonio Mella – Selección de textos. Panamá: Ruth Libros, s.d., p. 80-118. 323 Mella narra em episódio em que Haya havia se incomodado por não terem o convidado de maneira especial: “Seu representante máximo não quis assistir ao Congresso de Bruxelas porque haviam esquecido de fazer um convite especial, pessoal”. (MELLA, s.d., p. 106). Mas que depois seria superado com algumas diligências que garantissem a presença de Haya. Mella cita isso para marcar um traço vaidoso da personalidade do chefe da APRA, que segundo o revolucionário cubano estaria por trás da posição dele contra os comunistas. 322 297 Estas reservas nunca foram explicadas. (MELLA, s.d., p. 107). Com essas “reservas”, os comunistas lançaram-se na busca por sanar e debater as divergências, até que, em janeiro de 1928, apareceu um manifesto, conhecido como Plano do México, em que Haya e outros membros da célula da APRA da capital mexicana lançavam um Partido Nacional Revolucionário que aplicaria no Peru o programa da APRA, colocando Haya de La Torre como chefe supremo do organismo político militar. Fica estabelecido que o órgão único (que terá que realizar a revolução libertadora do Peru) será o Partido Nacionalista Libertador do Peru, organismo político militar revolucionário, que reconhece como fundador e chefe supremo, em ambos, ordens de Victor Raúl Haya de La Torre e que estará dirigido por um Comitê Central com sede temporária no México. (PLAN de México apud Martinez de La Torre, 1974, p. 290). Mella, que vivia na Cidade do México, de onde partia o plano aprista, questionou alguns elementos do programa aprista, como o combate ao imperialismo norte-americano, sem fazer menção ao imperialismo inglês, ainda muito presente na América Latina. Ao final do artigo, Mella vai sugerir que Haya, que viveu um longo período na Inglaterra, acabava favorecendo o imperialismo inglês. A defesa da internacionalização do Canal do Panamá era outra questão que apontava para esse antiimperialismo exclusivo aos Estados Unidos, já que a internacionalização seria muito bem recebida pelos ingleses, prejudicando apenas os Estados Unidos. (MELLA, s.d., p. 82). Mas se eram anti-imperialistas e “a favor de todos os povos oprimidos do mundo”, como aparecia no programa da APRA, por que não eram a favor dos povos da URSS? Mella questionava um “simpatizante” do movimento comunista, já que, até então, como o Kuomintang até 1927, Haya de La Torre havia participado do V Congresso da Internacional Comunista em 1924, utilizava a linguagem e a metodologia de análise marxista-leninista, circulava entre as organizações de frente única que orbitavam sob a influência comunista. Os artigos que Haya havia publicado até então não indicavam contradições com os comunistas, ao contrário, que se pese o estilo, Haya parecia um sincero simpatizante da Revolução Russa e da perspectiva revolucionária comunista. O vínculo entre os fundadores da APRA e o movimento comunista era tão 298 grande que, como aconteceu o Kuomintang, a linguagem política destas duas organizações, mesmo depois da ruptura com os comunistas, permaneceu sendo uma terminologia marxista-leninista. Assim, as questões que Mella se propunha a tratar no artigo estão direcionadas aos apristas e comunistas, que debatiam naqueles termos: “Marx e Engels como lutadores do proletariado não necessitam enganar ninguém para galgar o poder. Eles sempre permaneceram na idade viril em que, segundo o renegado italiano Papini, se agarra o touro pelos chifres e se chama as coisas pelo seu nome”. (MELLA, s.d., p. 85). Chamando as coisas pelo nome, Mella defendia uma definição mais clara do que era uma frente e um partido, e, como o artigo já citado de Correspondencia Sudamericana nº 29, questionava o motivo em não se organizar no partido, que já existe, o Partido Comunista e na Frente anti-imperialista, que já existia, a Liga anti-imperialista: “O que é a frente única? São as alianças e fusões do proletariado com as demais classes. Como vamos ver, o conceito marxista e leninista de frente única não tem nada a ver com a fanfarronice arpista sobre esta matéria”. (Ibidem, p.87). A frente única deveria ter a hegemonia de uma classe, que deveria ser o proletariado324. Segundo uma teoria que já vinha defendendo há um tempo, inclusive com a publicação sugestiva de um artigo sob o título de “Sobre o papel das classes médias na luta pela independência econômica na América latina”, em maio de 1927 na Revista Amauta de Mariátegui, Haya de La Torre ia gradativamente sugerindo que as classes médias, ou a “nova geração”, ou seja, os estudantes e intelectuais teriam o papel de vanguarda na luta anti-imperialista, relegando menor importância ao proletariado. Com essa manobra teórica, o chefe aprista ia construindo uma perspectiva teórica cada vez mais inconciliável com os comunistas, e que justificaria o seu papel central como líder do movimento anti-imperialista. A justificativa para a predominância das classes médias, ao invés do proletariado, relacionaria-se à formação particular da América Latina, que seria diferente da Europa e respondia a táticas também diferentes. Mella responderia afirmando que o imperialismo é um fenômeno mundial. “Em nenhuma parte aparece o princípio fundamental na luta social: A hegemonia do proletariado e a aplicação da ditadura para a realização do socialismo. Isto é aceito, ainda que teoricamente, até pelos partidos da Segunda Internacional, se considera demasiado revolucionário, demasiado “comunista” e um tanto inoportuno pelos seus novos ideólogos na América Latina.” (Ibidem, p. 88). 324 299 O imperialismo é um fenômeno internacional e suas características fundamentais (o imperialismo, fase superior do capitalismo, N. Lenin) são iguais na América e na Ásia. Os povos coloniais também apresentam traços semelhantes na Ásia e na América. Os restos das sociedades bárbaras e feudais nos países coloniais são modificados de maneira muito semelhante pela penetração do capitalismo imperialista, ora seja inglês, ora ianque ou o francês. Logo a aplicação da tática irá diferir nos detalhes e na oportunidade histórica. Mas as generalidades (papel de classes, base da frente única, desenvolvimento do imperialismo e do proletariado, etc.) são invariáveis à luz do marxismo e de sua adaptação à época moderna do imperialismo: o leninismo. [...] Mas a América não é um continente de Júpiter, senão da terra. E é uma coisa elementar para todos os que se dizem marxistas – como os do “Partido Revolucionário Continental Antiimperialista” – que a aplicação de seus princípios é universal, já que a sociedade imperialista é também universal. (MELLA, s.d. p. 89). Mella cita a traição das burguesias nacionais325 como consequência da necessidade que esta tem em defender a propriedade privada, e que acaba por lançá-las em solidariedade com as burguesias imperialistas contra o proletariado. Nas formulações mais comuns do período, a pequena burguesia aparece como aliada do proletariado, mas Mella, provavelmente imbuído daa necessidade de combater um oportunismo com origens pequeno-burguesas, define essa classe como reacionária, apenas com alguns indivíduos revolucionários. Essa era uma posição restritiva na frente única, mas que seria comum após o VI Congresso da Internacional Comunista, particularmente na América Latina. Depois, seria ajustada próximo ao VII Congresso da IC, em 1935, que faria críticas à política de alianças esquerdistas no início da década de 1930. Em que se pese a tendência, pós-perseguição do Kuomintang em Shangai, em se desconfiar das alianças não proletárias, Mella questiona: Afirmar que os “trabalhadores intelectuais” são, em conjunto, uma base para a revolução, é entregar o movimento nas mãos dos charlatões e políticos profissionais, Maquiavéis da traição revolucionária. Contudo, os comunistas não estão contra os 325 Autores como Löwy (2006) acreditam que essa posição de Mella em relação à burguesia nacional explicava uma possível adesão dele ao trotskismo. Apenas olhando as resoluções do VI Congresso (1928), já sem a participação de Trotski, percebe-se que a IC não estava formulando alianças com a burguesia nacional. Foram exatamente as dificuldades com o Kuomitang que tornariam a aliança com a burguesia nacional em países periféricos algo complexo, que variou em relação as formulação ao longo do tempo, da situação política e diversos outros fatores. De modo que tratar a defesa da aliança com a burguesia nacional como algo característico do “stalinismo”, e a negação dessa aliança, o “trotskismo”, é uma simplificação grosseira. 300 verdadeiros trabalhadores intelectuais, a quem consideram, em sua imensa maioria, uns explorados. Mas a história dos partidos socialistas e comunistas, assim como a da Revolução Russa, indica que aos “trabalhadores intelectuais” lhes gosta mais uma esmola da burguesia capitalista que ir às filas dos revolucionários”. (MELLA, s/d., p.9394). E mais adiante afirma: “seu gosto por ser eternos estudantes e andar pelos ateneus e escolas e não pelos sindicatos e oficinas, demonstra que para eles o ser intelectual (e isto o que é?) constitui o ideal máximo da vida?” (Ibidem, p. 105) Ao fim, Mella apresenta uma série de fatos que demonstram o oportunismo de Haya e do ARPA, entre eles o bleff do plano do México e algumas declarações de apoio a uma organização mexicana que defendia a deportação de chineses, que alimentava o ódio racial em nome da defesa dos nacionais. Mella conclui: “depois de ter terminado esta polêmica, necessária somente para precaver aos incautos...”. Dessa forma, ficaria sem retorno a ruptura entre a APRA e a Liga Anti-imperialista do México e o Secretariado Sulamericano da IC em Buenos Aires. O artigo de Mella seria sucedido por uma série de artigos publicados na imprensa sob influência comunista na América Latina, aprofundando diversos aspectos da tática de frente única e do papel do Partido Comunista, mas seria no Peru, entre os colaboradores da Revista Amauta que a ruptura definiria posições que depois gerariam as duas principais correntes do movimento popular peruano, o aprismo e o comunismo. Julio Mella havia sido torturado pelo governo Machado antes de sair exilado para o México. Seria um dos principais organizadores das Ligas anti-imperialistas, chegando a ser secretário-geral interino do PCM no final da década de 1920. O círculo de revolucionários comunistas que colaboraram no final da década no México agrupava personalidades que ficaram famosas no mundo. Entre esses militantes, estavam Xavier Guerreiro, Diego Rivera, Frida Kahlo, Victório Vidali, David Alfaro Siqueiros, Tina Modotti, Bertran Wolfe, Rafael Carrillo e outros comunistas que se destacariam em diversas áreas das artes. Julio Mella e Tina Modotti se apaixonariam, viveriam um romance em meio às atividades partidárias, que seria interrompido pelo assassinato dele enquanto caminhava com Tina Modotti na Avenida Abrahan Gonzalez, próximo ao centro da Cidade do México. O crime foi executado por agentes de Machado326, mas a imprensa 326 Por mais incrível que possa parecer, alguns autores sustentam que a morte de Julio Mella foi obra de 301 anticomunista tentou relacionar o crime a Tina Modotti, que seria injuriada em uma das campanhas de difamação mais terríveis ocorridas no México, associando a sua figura à promiscuidade e como pivô de um crime passional. Tina Modotti seria expulsa do México e colaboraria de forma decisiva em várias seções do Socorro Vermelho Internacional, tendo um papel destacado na assistência às vítimas do fascismo franquista durante a Guerra Civil Espanhola. Ficaria lembrada pelos sobreviventes como a camarada Maria. A Revista Amauta A Revista Amauta surgiu a partir da Revista Claridad, editada pela Universidade Popular Gonzalez Prada, e tinha como inspiração o grupo Clarté, de intelectuais simpáticos à Revolução Russa, que aos poucos assumiam outras formas de organização, à medida que a IC se transformava, e a própria dinâmica da luta de classes no mundo assumia novas composições e cenários de batalha. A Revista Amauta nasceu com uma composição muito parecida ao Movimento Clarté, abertamente simpática à Revolução Russa, sem ser um órgão de propaganda comunista. Diversos autores ressaltam a abrangência de temas, e também de autores. No Peru, a historiografia está muito influenciada pelo aprismo, havendo uma tendência em se ressaltar as influências nacionalistas, literárias, indigenistas dessa revista. Mas, para o leitor que nos acompanhou até aqui, fica claro que se tratava de um espaço de aglutinação de intelectuais, dentre os mais proeminentes da juventude revolucionária que estivessem solidários à força do novo espírito da época: a crítica ao liberalismo com fortes simpatias pela novidade bolchevique. O sentido inicial da Revista Amauta era muito parecido com o da APRA, desde 1924, tanto em relação à tentativa de agrupar a “nova geração” latino-americana. Mariátegui já havia dirigido a Revista Claridad, que representava a frente dos jovens da Stalin. (BRUE, 2007, p. 629). O que não tem fundamento em nenhum documento ou evidência. Os argumentos são apenas circunstanciais e colocam como uma manobra de Vitorio Vadali para eliminar um elemento “simpático” aos trotskistas russos. Segundo Bruê, isso estaria comprovado nos textos de Mella, que manifestariam similaridade com as posições de Trotsky. Nossa investigação revela exatamente o contrário. Mella é um dos grandes defensores das teses que seriam aprovadas no VI Congresso da Internacional Comunista. No verbete, “Julio Mella”, da Wikipedia em espanhol, a História do assassinato de Mella assume contornos mais fantasiosos, supondo ter sido realizado por Vidali, e inclusive conclui que Tina Modotti havia sido também assassinada, em 1942, e não teria morrido de ataque cardíaco. Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Julio_Antonio_Mella>. Acesso em: 27 mar. 2014. 302 reforma universitária com os operários de Lima, e apenas não prosseguiu com ela devido à sua amputação da perna e à prisão de diversos ativistas das Universidades Populares Gonzalez Prada. A partir de 1926, já anunciava a publicação de Amauta, mas o primeiro número só saiu em setembro de 1926. A revista abriu suas páginas para José Vasconcelos, Haya de La Torre, para os muralistas mexicanos, poetas, intelectuais provincianos, socialistas, figuras como Barbusse, Shaw, Chaplin, Freud, Sorel e autores soviéticos ou comunistas. Mariátegui claramente tinha interesse em ampliar a extensão da influência da publicação. Alguns autores interpretaram a variedade de autores da Revista Amauta como se tratasse da expressão da “heterodoxia” de Mariátegui. A publicação seguia mais o sentido da frente única pensada pelos comunistas desde o IV Congresso. Embora tenhamos o depoimento de César Falcón de que Mariátegui acompanhava a publicação das resoluções dos Congressos da IC para comprar nos pontos de venda de L’Humanite327 enquanto esteve na França, seria leviano afirmar que Mariátegui seguiu estritamente as resoluções da Internacional Comunista. Vanden (1975, passim), em sua lista de livros da biblioteca de Mariátegui328, cita as resoluções do V Congresso, inclusive com anotações de Mariátegui. Independente de qual nível de inflexão que as resoluções da Internacional Comunista provocavam em Mariátegui, é claro que ele se mantinha na órbita de influência da Internacional Comunista, que desde 1922 havia superado os desvios esquerdistas e estava trabalhando com as frentes políticas mais amplas, vide a relação com o Kuomintang e com o trabalhismo inglês. “Poco después, estando todavía en Turín, los tres amigos habrían de leer las noticias provenientes de Rusia Soviética sobre el desarrollo y las resoluciones del Segundo Congreso de la III Internacional, realizado en Moscú (del 19 de julio al 7 de agosto de 1920), publicadas por el semanario «L'Ordine Nuovo» con fecha 21 de agosto de ese mismo año.” (ROUILLON, 1993, p. 51, v. 3) e também: “Y los dos amigos inseparables se reunieron esta vez, en París. Ahí, antes de materializar sus audaces sueños uno y otro compañero, fueron a aprovisionarse de publicaciones marxistas – vertidas al francés – en las librerías del Partido y, también, en las que se hallaban ubicadas a lo largo de las riberas del Sena. La curiosidad de ambos jóvenes se volcaba pues, por esos días, sobre toda la documentación que les ofreciera una versión auténtica acerca del movimiento revolucionario de posguerra, caracterizado – según las conclusiones del III Congreso del Comintern de 1921 – por la presión espontánea de las masas, por la deformidad de los métodos y objetivos y por el pánico de las clases gobernantes (que parecía haber terminado en medida considerable).” (Ibidem, p. 81). 328 Ver: VANDEN, 1975. 327 303 Figura 74 - Capa da Revista Amauta, com uma gravura indigenista de Sabogal. A Revista Amauta respira esse clima de unidade entre nacionalismo, socialismo e bolchevismo. As ligas anti-imperialistas eram a realização dessa unidade em nível mundial, mesmo que a unidade com a Segunda Internacional houvesse fracassado. E logo após o Congresso de Bruxelas, na medida que os temas anti-imperialistas tomavam corpo, Mariátegui aumentava o espaço para a publicação da temática antiimperialista na Revista Amauta. O nº 9 da Revista Amauta publicava uma série de artigos anti-imperialistas, de autores envolvidos na luta contra o governo de Lenguia, como Haya de La Torre. Segundo Roillon, e diversos outros autores, esse número havia provocado de maneira frontal duas importantes questões no Governo de Lenguia. Primeiro confrontava o aliado do governo, e provocava a embaixada americana329. Em segundo lugar, dava voz aos exilados do regime, que estavam fazendo barulho e manchando a imagem do 329 Já citamos anteriormente esse fato. 304 governo no exterior. A Revista Amauta foi fechada, e Mariátegui ficou preso. Esse fato não ficou imperceptível, e inclusive foi denunciado em vários órgãos democráticos no mundo. Segundo Portocarrero (1987), o grupo de Mariátegui estabeleceria uma relação orgânica com a IC após a ida de Miguel Coutreras a Lima, com um convite para que enviassem delegados peruanos ao Congresso da Internacional Sindical Vermelha. “Mariátegui me deu o contato para eu encontrar com Contreras, o enviado da Argentina, e me daria um sinal de como ia aparecer: com a lapela levantada, ou um lenço.” (PORTOCARRERO, 1987, p. 137). Após uma conferida com outros companheiros de Portocarrero, sobre a sua atuação no movimento operário, o jovem peruano embarcaria rumo à Rússia, junto com Armando Baizán. Ambos faziam parte do pequeno grupo mais próximo de José Carlos Mariátegui, que depois fundaria o Partido Socialista Peruano, futuro PCP. No caminho para Moscou, Portocarrero e Bazán encontram em Paris o grupo da APRA de daquela cidade, e os estudantes exilados, Heysen e Ravines. Com Ravines, preparam o informe que iriam apresentar no IV Congresso da ISV. As memórias de Portocarrero são ricas em descrever a Rússia, os teatros, a neve e a sua impressão de tudo aquilo, mas muito pobres em termos do debate político-ideológico330 . Após uma viagem pela Rússia, houve a Conferência Sindical dos Latinoamericanos, que reuniu pela primeira vez um contingente expressivo de latinoamericanos em um evento ligado à Internacional Comunista. O trabalho de organização dos comunistas latino-americanos, iniciado pelos primeiros emissários, nos primeiros anos da Internacional Comunista, teve um impulso significativo com a organização do secretariado sul-americano. O primeiro resultado seria a reunião de vários latinoamericanos em uma conferência que deiberou a organização da 1ª Conferência Sindical Latino-americana, que ocorreria em maio de 1929, em Montevidéu. 330 Os fatos do Congresso que mais foram recordados por Portocarrero dizem respeito a um documento que pretendiam ler contra André Nin e Tomsky. Portocarrero “não se lembra bem do conteúdo, mas era para tirá-los” da direção da ISV. Portocarrero estava mais concentrado na forma com que procediam, e, sem compreender o conteúdo, negou-se a ratificar o documento. Essa negativa chegaria a Losovsky (líder da ISV), movimentaria outros delegados, e Portocarrero assinaria uma declaração de solidariedade com os trabalhadores russos, sem intervir na polêmica com André Nin. O balanço do Congresso é muito amistoso, e diria: “tudo isso me serviu para conhecer coisas que eu não teria oportunidade de ver e aprender antes. Por isso que ao termino do Congresso recolhi os materiais. Mas com esses materiais não pude estudar, nem tampouco trazê-los. Sabia como ia ser o meu regresso: não iam permitir que os materiais entrassem no Peru. Eu não trouxe nenhum documento do Congresso. Esses documentos chegaram ao conhecimento de Mariátegui certamente através do Comitê que se formou para organizar a Confederação Sindical Latino-americana”. (PORTOCARRERO, 1987, p. 150). 305 Nessa conferência em Moscou, estavam Rivera, Siqueiros, Orozco, Rafael Carrillo, o famoso equatoriano331 Paredes, entre vários outros latino-americanos. E, em uma reunião dessa Conferência, Portocarrero ficou sabendo das diferenças da IC com Haya de La Torre, após o rompimento com o Kuomintang: Houve uma repressão muito forte contra eles e os operários, e, portanto, veio o rompimento do Partido Comunista com Chang Kai Shek, que estava à frente do Kuomintang e era presidente da China por essa época. A colocação de Haya de criar um partido como o Kuomintang certamente que não lhe caía bem. (PORTOCARRERO, 1987, p. 150). Portocarrero resistiu às críticas que a Internacional Comunista fazia contra Haya. Para Portocarrero, era importante manter a unidade. Losovski leu uma carta que havia recebido de Haya, em que o estudante peruano defendia ser mais importante manter entendimentos com o senador Borah, um republicano dos EUA, que com os trabalhadores norte-americanos. Como uma maneira de fazer uma composição que não desagradasse o delegado peruano, Losowsky propõe que o próprio Portocarrero encontrasse Haya de la Torre em Paris, e o trouxesse de volta a Moscou para que se mantivesse a unidade, e assim se chegasse a algum entendimento. Portocarrero retornou a Paris, encontrou Ravines, que enviou mensagens para Haya, e não obteve resposta. Após um mês, de volta a Lima, Portocarrero encontrou Martinez de La Torre, e ficou sabendo que Haya de La Torre e Mariátegui haviam rompido. (PORTOCARRERO, 1987, p. 154-155). No início de 1928, Haya de La Torre havia lançado o Plano do México, conforme citado acima, e havia aparecido alguns panfletos com esse manifesto dos apristas do México. Para Mariátegui e a Internacional Comunista, havia ficado claro que Haya pretendia lançar uma “convocatória revolucionária” e com isso tentar aproveitar o resultado. Como foi muito característico de sua personalidade, certamente imaginava alguma adesão, ou repercussão que lhe possibilitasse entrar na ordem política peruana ou negociar seu retorno, talvez uma candidatura eleitoral, como depois tentaria. Mas, como a base social de seu movimento era muito limitada, o movimento foi tratado como um blefe, a semelhança da jogada que simula boas cartas no pôquer, e a consequência 331 Esse delegado equatoriano questionaria as fórmulas de países coloniais e semicoloniais, além das táticas de revolução nos países periféricos formulados pela maioria da IC no VI Congresso, e seria muito citado pela bibliografia como se tratando de um dissidente. 306 imediata foi um questionamento por parte dos outros grupos que compunham a APRA. O grupo de Lima escreveu uma carta em 16 de abril de 1928, “aos companheiros da célula México”, após esperar em vão que Haya lhes comunicasse a transformação da APRA em partido. (LUNA VEGAS,1988, p. 57). “[...] Eu li um segundo manifesto do Comitê Central do Partido Nacionalista Peruano residente em Abancay332 e sua leitura me entristeceu profundamente: primeiro porque como peça política pertence à mais detestável literatura eleitoreira do velho regime; segundo porque demonstra uma tendência por cimentar – cuja força maior era até agora a verdade – em um “bleff” e na mentira. Não há ali uma só vez a palavra socialismo. Tudo é declamação estrepitosa e oca de antigo estilo [...] oponho-me a todo erro. Oponho-me a um movimento ideológico que, por justificação histórica, por sua inteligência e a abnegação de seus militantes, pela altura e nobreza de sua doutrina ganhará, se nós mesmos não destruamos, a consciência da maior parte do país, aborte miseravelmente em uma vulgaríssima agitação eleitoral. A carta do grupo de Lima demorou para ser respondida, mas selou a ruptura entre a APRA e Mariátegui. Nessa carta, em tom de ironia, Haya de La Torre formulou alguns dos argumentos que utilizaria para justificar a sua ruptura com os comunistas, que já havia ensaiado em alguns artigos ao longo do ano de 1927. O eixo da linha de Victor Raul Haya de La Torre é a defesa de que deveria haver uma teoria revolucionária para uma realidade não europeia, como a América Latina. Segundo seus argumentos, o marxismo da Internacional Comunista era uma teoria europeia, e necessitava ser adaptada à América Latina. A operação teórica que Haya tentava construir era nitidamente uma argumentação retórica, a qual escondia uma tendência oportunista, que, vendo seu papel ficando secundário na estrutura dos partidos comunistas e até pela proeminência de outros dirigentes melhor capacitados, iniciou a construção de uma teoria sui generis. A partir da “constatação” de que a Internacional está imbuída de um “mal europeísta”, lançou a APRA como a solução revolucionária para a América Latina. Como necessitava justificar suas ações para o grupo de “apristas” que gravitavam sob a sua influência, buscou desde o Congresso de Bruxelas uma explicação que justificasse a sua separação das ligas anti-imperialistas e da URSS. Haya de La Torre desenvolveria uma arte de adaptação teórico-política de 332 MARIÁTEGUI, 1928 apud LUNA VEGAS, 1988, p. 58. 307 criatividade inigualável, capaz de justificar com malabarismos teóricos dos mais variados os mais diversos tipos de aliança e estratégias, de modo que encontrar um sentido lógico e uma estrutura de pensamento no aprismo é quase impossível. A carta enviada para Mariátegui contém elementos da argumentação que ajudam a esclarecer, em alguma medida, alguns pressupostos que guiaram a ruptura entre comunistas e apristas. Você está cheio de europeísmo. Que distinto efeito a Europa produziu em você e em mim! Agora aprecio as diferenças e vejo que tinha razão quando ri cordialmente da oposição de você ao acreditar que o 23 de maio333 não era um movimento praticamente aproveitável. [...] Os próprios diplomatas do soviet, que conhecem suas linhas centrais [da APRA], admitem que coloca toda uma revolução ideológica. O APRA é partido, aliança e frente. Impossível? Verás que sim! Não é porque na Europa não tem nada parecido que não poderá deixar de haver na América. Na Europa tampouco havia arranha-céus nem há antropófagos [...] Você clama pela palavra socialismo. ‘Nem uma vez a menciona’ Words, words and words! Tens aqui a nossa característica: a palavra. Vocês, segundo vi em ‘Amauta’ não falou em Vitarte, mas sim lançou três vivas sonoros. Nem um deles foi para a revolução anti-imperialista. A única possível, a única imediata destes tempos. [...] Já sei que está contra nós sem mencionar o socialismo, mas [estaremos] repartindo as terras e lutando contra o imperialismo. (HAYA DE LA TORRE, 1928 apud LUNA VEGAS, 1988, p. 59). Haya ainda desenvolveria mais suas teses. Esses argumentos são apenas iniciais, e, curiosamente, ele estava tão influenciado pelas ferramentas teóricas que se desenvolviam a partir da experiência soviética que a partir da “negativa” do europeísmo do movimento comunista Haya vai desenvolver uma teoria própria. Em primeiro lugar, vai aplicar a crítica antipositivista muito comum após a primeira guerra ao marxismoleninismo. O marxismo-leninismo não seria uma teoria universal que poderia ser aplicada na análise das realidades não europeias. Na carta para Mariátegui, apenas nega o “europeísmo” de maneira vaga, mas anos depois, com a publicação de O antiimperialismo e o APRA334, Haya tentaria desenvolver alguns questionamentos teóricos colocados por Mella, feitos meia década antes. Todas justificativas estavam baseadas na premissa de que na realidade latino-americana não se podia utilizar o marxismoleninismo da URSS, uma teoria e prática que servia apenas para aquela realidade. O debate sobre partido e frente única expressa bem a típica forma de 333 Refere-se ao ato organizado pelos estudantes peruanos em 1923, que seria o motivo da prisão de Haya de la Torre, meses depois. 334 Ver: HAYA DE LA TORRE, 1984, v. 1. 308 argumentação de Haya, e, ao menos enquanto teoria política, nunca foi encarada com seriedade fora da área de influência política de Haya de La Torre, o próprio Peru335. Para responder às objeções sobre partido e frente única, Haya escreve: Um partido anti-imperialista indo-americano com sentido de nossa realidade social não pode ser um partido exclusivo de classe. Menos um partido de remendo ou decalque europeu. E menos, ainda, um partido submetido à direção estrangeira. (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 99, v. 4). Se não podia ser o capitalismo o exemplo para a APRA, já que estava tentando convencer os revolucionários com ideias socialistas, tampouco podia ser o comunismo. Para criar sua teoria, Haya elabora uma tese, que, dizendo-se crítica ao “marxismo europeísta”, reproduzia a maior manifestação de europeísmo no marxismo, que é a argumentação sob a lógica de um determinismo típico da argumentação menchevique na Rússia. O socialismo não era possível na América Latina, porque, diferentemente da realidade europeia, na indoamérica, como gostava de denominar o subcontinente, ainda não havíamos passado pela etapa capitalista. Em resumo, a APRA se tornava o partido-frente de diversas classes, dirigidas pela classe média, para se realizar uma revolução anti-imperialista, e construir um capitalismo de Estado, com alguma perspectiva socializante abstrata. A III Internacional defendia o contrário. Mais tarde, os apristas desenvolveriam outras questões, como uma “tese do espaço-tempo histórico”, que dava suporte à sua premissa (até então, sem uma base de argumentação razoável) de que cada lugar geográfico precisava de sua própria estrutura teórica revolucionária, e qualquer pretensão teórica universal não passava de uma tentativa de escamotear um “europeísmo”. Para isso, Haya de La Torre mistura Einsten, com Lenin, Marx, Splenger e outros teóricos que lhe servissem. Haya de La Torre, depois da 2ª Guerra Mundial, encontrou excelentes “modelos ideais” de sociedade nos países nórdicos e utilizou-os para poder formar sua argumentação contra o adversário do momento. O lugar que melhor poderíamos encaixar Haya de La Torre é como expressão de um tipo de partido, que em alguns países comporia os Estados latino-americanos, e foi por muitos denominado com o Conforme podemos perceber ao revisar os textos teóricos de Haya, o termo “ortodoxia” comunista, muito utilizado pela bibliografia que tratou Mariátegui para se referir à Internacional Comunista, foi também muito utilizado por Haya, apresentando uma possível origem para o termo, e muitas vezes um coincidente sentido crítico também. “A Carta de Lozowsky era, pois, bastante vaga e repetia conhecidas frases feitas da ortodoxia marxista.” (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 84, v. 4). 335 309 termo “populista”. Haya de La Torre seria um líder que pretendia ocupar esse papel no Peru, foi exímio “malabarista” teórico, sempre criando soluções teóricas para justificar seus acordos. Foi uma figura central na política peruana, sempre disputando o movimento de massas com os comunistas, mas não alcançou a presidência. Seus adversários sempre utilizaram o seu passado no movimento comunista para dificultarem seu acesso à direção do Estado e o cargo mais alto que ocupou foi o da presidência da Constituinte, em 1978, morrendo um ano depois. A APRA elegeria Alan Garcia para presidente, responsável pelo massacre de prisioneiros comunistas em El Frontón, Lurigancho y Santa Bárbara, no ano de 1986, talvez o maior massacre de comunistas presos após a Guerra Mundial. Para o grupo de Lima, em resposta à carta ofensiva de Haya de La Torre, foi enviada uma carta coletiva, em que tentavam manter a unidade com a célula do México. Como referência para que se mantivesse a unidade, o grupo de Lima afirmava: A experiência do Kuomintang é preciosa no movimento antiimperialista da Indo-América, com a condição de que se a aproveite integralmente. [...] Estas considerações nos levam a submeter vocês às seguintes conclusões: 1 – O APRA deve ser oficial e categoricamente definido como uma aliança ou frente única e não como partido; 2 – Os elementos da esquerda que no Peru concorrem à sua formação – organizando formalmente um partido socialista, de filiação ou orientação definidas que, colaborando dentro do movimento com elementos liberais ou revolucionários da pequena burguesia e ainda da burguesia que aceitem os seus pontos de vista, trabalhe por dirigir as massas até as ideias socialistas. É evidente que, com estas conclusões, não é possível prestar nossa cooperação à criação do Partido Nacionalista que chegam pelas comunicações de alguns companheiros, anunciando como uma decisão do grupo do México. Esse partido pode fundar-se dentro do APRA; mas ainda assim nos parece que sua biologia natural exige que se decida a sua oportunidade e necessidade no Peru e não desde o México, sua organização foca em todo caso elementos da pequenaburguesia que queiram dar vida a um partido próprio [...] O procedimento do bleff sistemático levará ao descrédito da nossa causa. (GRUPO de Lima, 1928 apud LUNA VEGAS, 1988, p. 64). Portocarrero retorna de Moscou logo após a carta de Haya de La Torre, e participa do processo que viverá o Grupo de Lima em direção a uma definição programática e uma estruturação mais orgânica daqueles revolucionários que se agruparam em torno de Mariátegui. A carta do Grupo de Lima ajuda a definir posições em outras células apristas, 310 dividindo seguidores de Haya e futuros comunistas. Na célula de Paris, Eudocio Ravines, Juan Jacinto Paiva e Armando Baizán, que haviam retornado da Rússia junto com Portocarrero, mas haviam ficado em Paris, assinaram um documento conhecido como “Informe da Minoria” (LUNA VEGAS, 1988, p. 65). Neste documento, defenderam a visão do Grupo de Lima, que seguia a lógica da Internacional Comunista, a separação do Partido e da Frente, e manifestavam uma inclinação por fundar um partido proletário, ou seja, um partido comunista. Em setembro de 1928, o nº 17 da Amauta saía com um editorial que oficializava a ruptura com Haya e avançava em definir-se ideologicamente. Imediatamente depois, no dia 7 de outubro de 1928, constituía-se um “bureau” do Partido Socialista do Peru. No programa desse Partido, são aprovados alguns pontos que são importantes serem destacados: 4.-El capitalismo se encuentra en su estadio imperialista. Es el capitalismo de los monopolios, del capital financiero, de las guerras imperialistas por el acaparamiento de los mercados y de las fuentes de materias brutas. La praxis del socialismo marxista en este período es la del marxismo-leninismo. El marxismo-leninismo es el método revolucionario de la etapa del imperialismó, y de los monopoilos. El Partido socialista del Perú lo adopta como método de lucha. (PROGRAMA DO PARTIDO SOCIALISTADO PERU apud MARIÁTEGUI, 1994.s.p.) Em 29 de dezembro de 1928, Ravines, Bazán e Paiva, membros da célula da APRA de Paris, aderem ao PSP em Paris. “A ideologia que adotamos é a do marxismo e a do leninismo militantes revolucionários”, assinam também Cesar Vallejo, Jorge Seoane e Demetrio Tello. A partir do final de 1928, a célula de Paris, a primeira da APRA, estava dissolvida e transformada em parte, em uma célula do PSP. Mariátegui deu uma direção cada vez mais definida ao grupo que se mantinha no seu entorno e agora compunha o PSP. A separação estava encerrada. Comunistas de um lado (embora não se definissem abertamente com esse termo) e apristas, ou seguidores de Haya, do outro lado. Uma carta de Mariátegui para Ravines, então Secretário-Geral da Célula de Paris do PSP, era clara: [...] [nós] intelectuais que temos nos entregado ao socialismo, temos a obrigação de reivindicar o direito da classe operária em organizar-se em um partido autônomo. Por parte de Haya e os amigos do México há um desvio evidente. Negar-se a admiti-lo por motivos puramente sentimentais, seria não só indigno de uma inteligência crítica, senão 311 até de uma elementar honradez. Haya sofre demasiado o demônio do caudilhismo e do personalismo. (CÉLULA do PSP em Paris apud LUNA VEGAS, 1988, p. 65). Estava assinada a ruptura e Mariátegui teria apenas pouco mais de 2 anos para continuar a sua obra, que teria como fruto a organização do Partido Comunista do Peru, a partir do PSP, e a organização do núcleo de operários que daria ânimo à fundação da Central Geral dos Trabalhadores. Mariátegui ajudaria a fundamentar os programas e a direcionar o embrionário movimento comunista peruano, nascido a partir de suas conferências, em um sistemático trabalho de organização e elaboração teórica. O VI Congresso da IC e os comunistas latino-americanos Os debates e resoluções do VI Congresso da IC foram todos taquigrafados e amplamente divulgados. Parte dos debates, que trataram da América Latina, foram publicados em forma de livro na década de 1970 pelos Cuadernos del Pasado y Presente, mas foram pouco consultados. Por um lado, a historiografia liberal tendeu a subestimar a importância das formulações doutrinárias para o movimento comunista, priorizando explicações muitas vezes relacionadas a conspirações, desentendimentos pessoais e “disputas pelo poder” nos organismos dirigentes dos partidos comunistas latino-americanos. Embora ser dirigente comunista carregasse na intimidade dos militantes o sentimento de pertencimento à historia, é difícil explicar o movimento comunista por essa lógica, já que geralmente o custo pessoal por militar em organizações comunistas era exatamente a falta de reconhecimento público, a perseguição, problemas familiares, financeiros, prisão e até a morte. Considerando que na maioria das vezes os militantes comunistas eram bons oradores, bons escritores e capazes de organizar pessoas, qualquer outra atividade não relacionada à subversão comunista renderia mais frutos pessoais que ser um dirigente comunista. Essa forma de ver a luta política no meio do movimento comunista, ao menos dos partidos que não haviam conquistado o poder de Estado, é apenas uma reprodução da vida política dos partidos oficiais nos países capitalistas, que não nos ajuda a explicar e entender nada da História do Movimento Comunista Internacional, e muito menos dos pequenos partidos comunistas latino-americanos. No VI Congresso da IC, realizado entre os dias de 1928, foi declarado por 312 Bukharin que a IC havia “descoberto a América Latina”336. O motivo para esse entusiasmo foi o significativo número de latino-americanos presentes no Congresso. Mas embora uma parte significativa da bibliografia marque nesse congresso, e nas palavras de Bukharin, o início da relação entre IC e os Partidos e grupos comunistas da América Latina, o número de latino-americanos no Congresso é fruto de um trabalho sistemático que teve origem orgânica a partir do V Congresso da IC337. Figura 75 – “Família Russa”, Diego Rivera (1928) Propostas de Rivera para se criar uma estética que expressasse a nacionalidade russa. Fonte: RIVERA, 2007, p. 153. Com o V Congresso, a partir de uma proposta de sessão que tratasse da América Latina, Bertran Wolfe, representante do PCM, influenciou significativamente a percepção da IC acerca da importância que o imperialismo norte-americano passou a ter após a Primeira Guerra Mundial, e a América Latina como território em disputa com o imperialismo inglês. Essa percepção de como se desenvolvia o imperialismo norte-americano influenciou os esforços do CEIC para a criação do Secretariado Sulamericano. O 336 Ver: V CONGRESO DE LA INTERNACIONAL Comunista. Cuaderno 55 e 56. México: PyP, 1975. O V Congresso impulsiona a formação dos PCs, a formação das Ligas anti-imperialistas, camponesas, publicação de jornais de propaganda e a formação do Secretariado Sul-americano em Buenos Aires. 337 313 trabalho dos militantes do secretariado, especi338almente os comunistas argentinos, Codovilla e Contreras, foram juntando as pontas em diversos grupos no sentido de organizar partidos comunistas e ligá-los a Internacional Comunista. Por um lado, estimulavam a organização das frentes únicas, e, por outro, a organização dos partidos comunistas, na forma leninista, com a consigna de Bolchevização dos Partidos Comunistas”. Não se tratava de um trabalho de organização apenas conspirativo, mas de definição política e ideológica. Codovilla, dirigente do PCA, foi quem conduziu o processo de organização política e de transformação dos “grupos de propaganda”339, em partidos comunistas na forma política e ideológica que adquiriram ao longo das década de 1930, 40 e 50. Uma das formas que a CEIC utilizou amplamente para aproximar simpatizantes da Revolução Russa foi convidando-os para Participar de Congressos e eventos na URSS. Dessa forma, imersos no debate comunista, dentro da URSS, os jovens simpatizantes poderiam aprofundar os vínculos com a IC e colaborar de forma efetiva na construção dos PCs. Como já narramos até aqui, os vínculos foram crescendo, desde o “Cometa de Manchester”, a viagem de Borodin e outros encontros com emissários que apareceram na América Latina. Na América do Sul, o contato entre a IC e os outros partidos e grupos de simpatizantes se deu através do PCA, enquanto na América Central e no México foi o PCM que intermediou o contato entre latino-americanos e a IC. Com a Revista La Correspondencia Sudamericana, a partir de 1926, desenvolveu-se a propaganda ideológica sistemática da IC, e a organização e progressiva centralização dos grupos latino-americanos. Em 1927, diversos líderes do movimento operário foram convidados a participar do Congresso da Internacional Sindical Vermelha, em Moscou, e das comemorações do 10º aniversário da Revolução Russa em novembro de 1927. Podemos afirmar que o ano de 1927 foi a concretização do trabalho de organização iniciado em 1925 pelo Secretariado Sulamericano, e mobilizaria uma grande delegação latino-americana para 338 Diferente do que parece para uma parte da bibliografia que viu no Secretariado Sulamericano uma espécie de estrutura de “espionagem” ou de “agentes da IC”, a organização dos partidos comunistas seguia a diretriz do V Congresso. 339 No V Congresso, debateu-se a transformação dos “grupos de propaganda” em “verdadeiros Partidos comunistas”. Essa era parte da orientação acerca da bolchevização nos Partidos pequenos, como os da América Latina. Ver: V CONGRESO DE LA INTERNACIONAL Comunista, Informes (segunda parte). Caderno 55. México: PyP, 1975. 314 o VI Congresso que ocorreu em 1928. Figura 76 – Ilustração de Rivera no livro Fermín comemorando os 10 anos da Revolução Russa Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p.162 Explicar o papel desse congresso no movimento comunista latino-americano não é uma tarefa simples, e é necessário dividi-la em dois prismas, ao menos para dimensionarmos o papel desse congresso na América Latina. O primeiro é o significado do Congresso em relação ao movimento comunista internacional, o segundo, qual a influência teve nas organizações do subcontinente. Em relação ao significado que o VI Congresso da IC possui para o movimento comunista, o tema é altamente controverso na bibliografia. Como tendência geral, a historiografia produzida na década de 1980340 tendeu a ver esse congresso como uma coroação do “stalinismo”, ou a antessala do X Pleno da CEIC, que definiria o “esquerdismo” da “burocracia”, do “autoritarismo” e da “centralização”. Em que pese o sentido pejorativo desses adjetivos, o VI Congresso tem um papel significativo na reafirmação da política de bolchevização dos PCs, o que significava a aplicação dos princípios de centralização e organização de Lenin, expressos no livro O que fazer?. Para se compreender o significado dessa bolchevização e inclusive compreender também os motivo que levou os comunistas a aceitarem essa diretriz, é importante relembrarmos o sentido, o objetivo dos comunistas e dos que se simpatizavam com o legado da Revolução Russa. 340 Autores que trataram o VI Congresso da IC: ANTUNES; GALINDO; CARONE; LÖWY; CRESPO; DEL ROIO; 1995, 1994, 1989, 2006, 2007, 1990. 315 A organização da Internacional Comunista e do Partidos tinha como objetivo organizar a Revolução Mundial. Os bolcheviques foram opostos à constituinte e à formação de governos liberais. A Revolução Russa, que cada vez mais se tornou a referência para todo o movimento comunista, não defendeu uma “democracia participativa”; sequer utilizava esse termo “democracia”. Mariátegui, por exemplo, utilizava o termo “democracia” para se referir ao Estado liberal-burguês. A forma política que o capitalismo assumia era a antítese do socialismo. Dessa maneira, o movimento comunista nasceu como o oposto ao Estado liberal em crise na Primeira Guerra Mundial. Toda estrutura erguida para expandir a Revolução Proletária Mundial era uma negação da democracia liberal. Isso também não significa que defendessem a imposição de politicas a partir do centro comunista. Na verdade, o problema da representatividade, para os comunistas, não estava relacionado a um debate típico da democracia como expressão da liberdade política e individual, mas à capacidade do movimento comunista em alcançar influência e adeptos, e assim alcançar a ditadura do proletariado, e, futuramente, o comunismo. A democracia enquanto sistema representativo de Estado não era um fim, como aparece em teorias liberais clássicas. A democracia era uma necessidade para que houvesse legitimidade do programa comunista entre massas populares. O objetivo era a sociedade sem classes, e, a curto prazo, a Revolução. A democracia real seria alcançada na sociedade sem classes. Até lá, a democracia era apenas uma forma de se fazer representar simpatizantes ou de organizar possíveis divergências entre os próprios comunistas. Com o VI Congresso da IC e depois do X pleno, o Partido Comunista se tornou a estrutura política que serviria como uma espécie de Estado Maior da Revolução em cada país, o centro ideológico que coordenaria a atividade comunista no sentido da derrubada do capitalismo, e, portanto, da democracia burguesa. O VI Congresso reafirmou a necessidade de se organizar partidos comunistas bolchevizados, conforme o V Congresso da IC, mas introduziu uma questão como centro do debate acerca do problema do Partido Comunista, que já havia sido defendido em outras oportunidades, mas que após os acontecimentos de Shangai haviam se tornado central: a hegemonia do proletariado na frente única. 316 Figura 77 - Retrato de Stalin em Amauta341 Fonte: Amauta, nº6, Lima: fev. 1927. 341 Retrato de Stalin na Revista Amauta, com o retrato de Lenin no fundo. Diferente do que se tem dito, Mariátegui se posicionou com simpatias por Stalin enquanto acompanhava a luta política de Stalin e Trotsky. Acreditava que Stalin seria importante em um momento em que se deveria consolidar o poder soviético.“Pero, hasta este momento, los hechos no dan la razón al trotskismo desde el punto de vista de su aptitud para reemplazar a Stalin en el poder, con mayor capacidad objetiva de realización del programa marxista. La parte esencial de la plataforma de la oposición trotskista es su parte crítica. Pero en la estimación de los elementos que pueden insidiar la política soviética, ni Stalin ni Bukharin andan muy lejos de suscribir la mayor parte de los conceptos fundamentales de Trotsky y sus adeptos. Las proposiciones, las soluciones trotskistas no tienen, en cambio, la misma solidez. En la mayor parte de lo que concierne a la política agraria e industrial, a la lucha contra el burocratismo y el espíritu Nep, el trotskismo sabe de un radicalismo teórico que no logra condensarse en fórmulas concretas y precisas. En este terreno, Stalin y la mayoría, junto con la responsabilidad de la administración, poseen un sentido más real de las posibilidades. (...)El partido bolchevique, por tanto, no es ni puede ser una apacible y unánime academia. Lenin le impuso hasta poco antes de su muerte su dirección genial; pero ni aún bajo la inmensa y única autoridad de este jefe extraordinario, escasearon dentro del partido los debates violentos. Lenin ganó su autoridad con sus propias fuerzas; la mantuvo, luego, con la superioridad y clarividencia de su pensamiento. Sus puntos de vista prevalecían siempre por ser los que mejor correspondían a la realidad.. (...)Pero con Trotsky en el puesto de comando, la oposición en poco tiempo ha tomado un tono insurreccional y combativo al cual la mayoría y el gobierno no podían ser indiferentes. Trotsky, por otra parte, es un hombre de cosmópolis. Zinoviev lo acusaba en otro tiempo, en un congreso comunista, de ignorar y negligir demasiado al campesino. Tiene, en todo caso, un sentido internacional de la revolución socialista. Sus notables escritos sobre la transitoria estabilización del capitalismo, lo colocan entre los más alertas y sagaces críticos de la época. Pero este mismo sentido internacional de la revolución, que le otorga tanto prestigio en la escena mundial, le quita fuerza momentáneamente en la práctica de la política rusa. La revolución rusa está en un período de organización nacional. No se trata, por el momento, de establecer el socialismo en el mundo, sino de realizarlo en una nación que, aunque es una nación de ciento treinta millones de habitantes que se desbordan sobre dos continentes, no deja de constituir por eso, geográfica e históricamente, una unidad. Es lógico que en esta etapa, la revolución rusa esté representada por los hombres que más hondamente siente su carácter y sus problemas nacionales. Stalin, eslavo puro, es de estos hombres. Pertenece a una falanje de revolucionarios que se mantuvo siempre arraigada al suelo ruso. Mientras tanto Trotsky, como Radek, como Rakovsky, pertenece a una falanje que pasó la mayor parte de su vida en el destierro.” Mariátegui, J.C.”El exílio de Trotsky” in Variedades, Lima: 23 fev. 1929 317 O VI Congresso partia de uma importante derrota na China e de um rompimento na relação inicialmente amistosa com o trabalhismo inglês, dois fatores que animaram a política de frente única que havia apontado o V Congresso (1924). A historiografia em geral ressalta outro aspecto do VI Congresso da IC, além da intensificação da “bolchevização”, que marcaram os debates: “Contudo, pode-se dizer que nenhum desses motivos [não os cita quais] pode por si provocar uma mudança tão séria. Um dos mais importantes foi o fato, já lembrado, de que a política de frente única não deu os frutos que esperava a Comintern”. (HAYEK, 1975, p.7) A 2ª Internacional havia se dirigido a uma política de direita. O PPS (Partido Socialista Polonês) havia colaborado com o governo Pilsudski, o qual havia reprimido violentamente os comunistas. Em maio de 1927, o governo britânico rompeu relação com a URSS; na Itália, a ditadura fascista havia dissolvido todos os partidos antifascistas; em Viena, em junho de 1927, ocorreram várias repressões sangrentas, e a social-democracia austríaca se retirou da luta. Enfim, a tática de aliança com os líderes da social-democracia europeia e com os nacionalistas nos países periféricos – mesmo com a ressalva do V Congresso da IC, com a frente única por baixo e por cima – não havia produzido bons resultados e precisaria ser reajustada. A social-democracia europeia, quando não estava em governos que reprimiam comunistas, na oposição não era capaz de esboçar resistência, de maneira que fazia da aliança com os líderes da social-democracia, algo cada vez mais dispensável. A avaliação do V Congresso da IC, em que se afirmava que a social-democracia, era o “braço esquerdo” da burguesia, enquanto o fascismo seria o braço direito, daria lugar à avaliação de que ambas as forças estavam do mesmo lado, ou de que a social-democracia atuava como os fascistas, e, a partir de 1929, surgiria o termo social-fascismo342, para se referir aos partidos socialdemocratas que utilizavam a repressão política como forma de manter a ordem. O longo informe de Bukharin é claro em relação ao entendimento da socialdemocracia: 342 O termo social-fascismo é tratado por alguns autores, especialmente os que têm uma leitura trotskysta da história soviética, como uma clara demonstração do sectarismo do período posterior a 1928, e o motivo da ruptura entre comunistas e socialistas que abriria espaço para a vitória do nazismo, particularmente na Alemanha. Essa é uma simplificação, já que os comunistas haviam buscado aliança com os socialistas, até pelo menos 1927. Seria uma série de medidas repressivas contra os comunistas, dirigidas por governos “socialistas”, que imporia uma série de debates acerca do significado da socialdemocracia e da aliança com governos “socialistas”. É absurdo culpar os comunistas pela ascensão do nazismo, já que foram os que mais os combateram. O termo teria um uso maior a partir de 1929, até pelo menos 1935, quando a tática das alianças antifascistas do VII Congresso procura fortalecer as alianças com todos os setores antifascistas, inclusive parte da social-democracia. 318 Habitualmente colocamos o problema das raízes do oportunismo em conexão com o problema das colônias, dos superlucros extraídos das colônias pelos capitalistas, lucros que permitem à burguesia corromper os setores superiores da classe operária. Mas a situação em que se encontrava o mundo, de estabilização relativa, o superlucro derivado de novas técnicas, como o fordismo, alimentava a base social da social-democracia no movimento operário. (BUKHARIN in VI CONGRESSO, 1976, p.29) Mas “as contradições internas da estabilização em cada país capitalista agudiza a luta de classes. [...] essas contradições internas transformam toda a greve mais ou menos importante em um acontecimento político de grande importância”. (Idem, p. 30). [...] Ao longo desses últimos anos a social-democracia realizou uma profunda evolução. Seria um erro considerá-la como seguiria sendo na atualidade o que era em 1914. [...] A ideologia atual da socialdemocracia perdeu os restos de suas frases quase-marxistas. [...] Em agosto de 1914 a social-democracia traiu o marxismo, assumindo a defesa da pátria capitalista. Em nossa época, a social-democracia é uma força ativa que constrói conscientemente a sociedade capitalista. [...] O partido trabalhista [...] nos exclui, nos ataca. Se nestas condições mantemos nossas consignas precedentes e conservamos nossas relações anteriores para não estragarmos a frente comum do proletariado organizado, estamos perdidos. Perderemos a nossa fisionomia política [...] Por isso nossa mudança de tática está em relação com a mudança objetiva da situação. [...] A intensificação da luta contra a social-democracia e a orientação política devem ser adotadas também pelo VI Congresso. [...] não significa de nenhum modo uma renúncia à tática de frente única como pensam alguns camaradas [...] devemos colocar com força o problema da conquista das massas. [...] Só os idiotas podem pensar que, porque abrimos uma luta encarniçada contra a social-democracia, é inútil conversar com os operários social-democratas. (BUKHARIN, 1976, p. 36). Conforme apresentou o problema, a IC concluía de forma incisiva a política de frente única, para apenas estabelecer frentes por baixo, ou seja, com as organizações de massas, e não com partidos, coligações de governos e alianças eleitorais. A historiografia costuma tratar a posição do VI Congresso em relação à socialdemocracia como um grave erro, que levou a um isolamento da IC no movimento operário, e inclusive seria uma das explicações para a ascensão do nazifascismo, já que o movimento operário estaria dividido para combater o nazismo. Na realidade, a situação era mais complexa, já que a tentativa de alianças, desde o V Congresso, não havia tido êxito, rompidas pela social-democracia. Houve a retomada de iniciativa política das forças anticomunistas após o susto de 1917, a 319 propaganda antissoviética estava mais elaborada e os comunistas perdiam espaço. (HAJEK, 1976). A negativa total em se estabelecer relações com os líderes da social-democracia seria um erro que levaria a políticas isoladas em alguns momentos da década de 1930, e seria elaborada uma crítica ao exagero da tática de frente única apenas pelas bases no VII Congresso, em 1935. É importante compreendermos a linha do VI Congresso para as colônias semicolônias, que atingiam diretamente os Partidos da América Latina. Em primeiro lugar, é importante ter em mente que não existia social-democracia nas colônias e semicolônias. O problema das frentes únicas nos países periféricos se manifestava em relação aos nacionalistas revolucionários e em termos nacionais, e com grupos “trabalhistas” do reduzido movimento operário. A morte dos comunistas na China havia demonstrado que os nacionalistas também não eram confiáveis, e, ao contrário de se submeterem às organizações frentistas, como o Kuomintang, os comunistas precisavam controlar a sua direção efetivamente. Conforme pode ser visto na citação acima, ruptura com qualquer ilusão de aliança com os líderes da social-democracia significava também uma nova interpretação de como se manifestava a ideologia do proletariado no movimento operário. A IC passava a não reconhecer mais um movimento proletário com várias correntes ou “interpretações”. Desde o VI Congresso, os comunistas entendiam que existia apenas uma ideologia do proletariado, e os debates se dirigiam no sentido de encontrar essa posição marxista-leninista correta. Aparentemente, essa forma de tratar as ideias aparece muito pouco propensa ao debate e à própria liberdade de ideias necessárias para o próprio avanço do marxismo. Para os comunistas, a aplicação “correta” do marxismo-leninismo se expressava na aplicação do programa revolucionário. E em torno dessa aplicação do programa se dava a luta política, que mantinha o debate intenso, mas superava alguns preceitos típicos do liberalismo343. A partir do VI Congresso, o debate e a luta política teriam como centro a aplicação do programa revolucionário comunista. A aplicação do programa comunista 343 Zizek, em um texto recente, debate a perspectiva que se tem da tolerância associada ao pluralismo. Ver: ZIZEK, Slavov. En defensa de la intolerancia. Buenos Aires: Sequitur, 2008. 320 nas colônias e semicolônias seguiu um debate significativo, com informes e intervenções dos delegados latino-americanos. Marcos Del Roio, em um dos poucos trabalhos de pesquisa em que são consideradas as formulações teóricas da IC como algo constituído de sentido e como umafonte significativa para se compreender o movimento comunista, ressalta o avanço da IC em relação ao entendimento do problema colonial, se comparada à 2ª Internacional. Mas, na sua avaliação, a IC ainda persistia em um certo “eurocentrismo”. (DEL ROIO, 1990, p. 87). Esse “certo eurocentrismo”, embora não esteja explícito, refere-se à centralidade que a IC dava à Europa. Para os críticos, espelhava de alguma maneira a própria visão imperialista. Se esse raciocínio serve para percebemos resquícios colonialistas no marxismo positivista da 2ª Internacional, ele não pode ser estendido para a IC. De fato, a IC entendia que a Europa estava no centro do mundo e, até que Mao Tsé-Tung formulasse a estratégia do “campo cerca a cidade” para um espectro maior na estratégia da Revolução Mundial, os comunistas perceberam a Europa como o centro mundial. Não se tratava de admitir a superioridade da “civilização europeia”, mas, ao contrário, de incorporar a tese sobre o “imperialismo, fase superior do capitalismo”, como fator analítico das realidades periféricas. Para os comunistas, o processo de expansão do capitalismo no mundo havia atingido uma fase monopolista, utilizando os Estados nacionais como força beligerante a serviço da burguesia dos países imperialistas. Até a Primeira Guerra Mundial, todos os países haviam entrado neste sistema mundial, mas diferente do que imaginavam os marxistas da 2ª Internacional, o capitalismo monopolista não levava à civilização, mas apenas impunha aos países periféricos uma relação de submissão aos interesses econômicos do imperialismo, que na maioria das vezes interrompia ou desorganizava qualquer desenvolvimento nacional para dar lugar aos interesses específicos da produção capitalista. Essa invasão imperialista se associava às classes dominantes locais, ao invés de promover transformações sociais em direção a uma típica relação capitalista de produção. Del Roio subestima essa interpretação e denomina as análises das classes nos países coloniais e semicoloniais como uma visão “dogmática e instrumentalista” (DEL ROIO, 1990, p. 93). Mas, se nos aprofundarmos no sentido desse “europeísmo”, percebemos que, ao menos em seu sentido pejorativo, denomina uma forma de 321 interpretar a história que reconhece haver na Europa superioridade. O que os comunistas reconheciam não era uma superioridade europeia, mas a existência de relações desiguais entre Estados, em que a Europa industrializada ocupava o centro de um sistema produtivo global, enquanto que os outros Estados, independente do grau de autonomia formal, estavam em uma relação de submissão. Ao contrário de um “europeísmo”, o reconhecimento da questão econômica como fator central de explicação das relações desiguais entre Estados negava qualquer possibilidade de explicar o desenvolvimento industrial (e a capacidade técnica) de um país a partir de preconceitos de raça ou cultura. Mas, se para os que viviam na periferia do capitalismo era fácil identificar a agressão imperialista, não era simples o reconhecimento da situação de submissão política dos Estados periféricos. Uma das grandes controvérsias que existe na bibliografia que tratou do movimento comunista esteve relacionada a questões derivadas dessa perspectiva. Podemos perceber até aqui que os anarquistas desenvolveram pouco acerca da dominação imperialista e a questão colonial. Para eles, a burguesia era uma mesma coisa, igualmente opressiva, e, do mesmo modo, o inimigo a ser abatido. Não há diferenças entre latifundiários ou industriais. Todos são opressores inimigos dos oprimidos. Se na Europa industrializada essa formulação oferecia instrumentos de análise da realidade, na própria Rússia a existência de uma burguesia em contradição com a autocracia tzarista com aspirações liberais forçava debates mais complexos sobre o papel dessa burguesia na Revolução, e, como já apontamos, foi tema da luta política que dividiu bolcheviques e mencheviques no Partido Socialdemocrata Russo. Ao assumir que existiam relações desiguais entre Estados e uma transformação no capitalismo, para uma fase imperialista, admitia-se também que as classes em cada país não se comportavam da mesma maneira, e o imperialismo europeu, depois também o norte-americano e depois o japonês, tinha um papel fundamental no desenvolvimento de cada país. Muito se falou da uniformidade que a formulação da IC acabou impondo às diversidades nacionais, com um modelo teórico rígido que ajudava na interpretação das realidades nacionais. Nossa pesquisa tem demonstrado um sentido contrário. No VI Congresso, definitivamente a IC se voltava aos países periféricos. Antes os comunistas 322 já haviam percebido a existência de setores não-proletários (camponeses pobres e pequena burguesia, principalmente), que poderiam se tornar aliados do movimento comunista na luta contra o imperialismo. Seguiram-se as teses do Problema Colonial do II Congresso da IC, que já abria diversas questões que superavam a dicotomia “burguesia x proletariado” para as realidades coloniais. O VI Congresso da IC se debruçou sobre a questão colonial de maneira inédita, e definiu alguns conceitos que serviriam de modelo analítico. A primeira questão é reafirmar que o mundo se encontra dominado por Estados imperialistas, e essa dominação gera dois tipos de relação colonial: as colônias e as semicolônias. Essa divisão diz respeito tanto à dominação política quanto à econômica. As semicolônias eram politicamente ou formalmente independentes, embora economicamente dependentes. O VI Congresso não reconhecia a independência real denenhum país que não estivesse entre os Estados sede do imperialismo. Essa era uma premissa compartilhada por Lenin, como também por Mariátegui. Em sua análise da ocupação do Ruhr, o Amauta peruano falava em situação semicolonial imposta à Alemanha após a Guerra. Essa relação imperialismo x periferia impunha um ordenamento das classes sociais desses países e sobre essa composição de classes passava-se a debater as políticas de cada PC em cada realidade específica. A nosso ver, seria a partir desses debates acerca da composição de classes em cada realidade nacional, e sua relação com o mundo, que se dariam as primeiras interpretações marxistas das realidades não europeias, e seria nesse esteio que se produziria uma tradição marxista no pensamento social latino-americano. Ao contrário de “esquematismos” e abstrações teóricas, o VI Congresso da IC trouxe para os partidos comunistas latino-americanos instrumentos teóricos preciosos, que superavam conceitos ainda insuficientes, como “esquerda” e “direita”: Bukharin, em seu informe, questiona o uso desses conceitos: Operando com termos de esquerda, direita, etc. Podemos dizer que na França e na Inglaterra se operou uma mudança à “esquerda” e na China à direita. Devo contudo formular uma reserva: Não sou muito afeito a esta terminologia. Convém pouco e não explica nada. (BUKHARIN, 1976, p. 37). E nesse sentido os comunistas já estavam substituindo os conceitos vagos de 323 “direita” e “esquerda”, para associar a uma classe, fração de classe e uma determinada linha política que se expressasse em um programa. Não é por outro motivo que o primeiro importante texto de Mao Tsé-Tung, Análise das Classes na Sociedade Chinesa344, publicado em 1926, e, como seria corrente em outros lugares, os comunistas procurariam identificar as classes em cada país, estabelecer um programa adequado às forças de classe de cada realidade e identificar quais dessas forças poderiam estar ao lado do proletariado, elaborando, assim, táticas que possibilitassem alianças efetivas e programáticas do proletariado com as outras classes que nos países periféricos são a imensa maioria, e sem as quais não haveria possibilidade de o proletariado (o Partido Comunista) chegar ao poder. A classe social se define a partir desse referencial, e se expressa no programa que cada partido defende e trabalha para aplicar na realidade345. Após o informe de Bukharin sobre a situação internacional, em que expôs os elementos que norteariam os debates, parte expostos acima, abre-se para que as delegações pudessem intervir, e, entre os latino-americanos, Lacerda (Brasil), Carrillo (México) e Sala (Uruguai) intervêm. As primeiras frases de Lacerda foram discordando de parte do informe de Bukharin, sobre a afirmativa de que o movimento comunista chegava pela primeira vez na América Latina. “Camaradas, isso não é muito exato. Não é o movimento comunista que chegou pela primeira vez na América Latina, é a Internacional Comunista que pela primeira vez se interessou pelo movimento comunista na América Latina” (VI CONGRESSO da IC, 1978, p. 82). O próprio Lacerda, após a crítica, assinala o motivo que trazia importância para a América Latina. Os EUA passavam a ter um papel central entre os países imperialistas, e na América Latina seria o hinterland: da mais poderosa burguesia do mundo. Todos os camaradas assinalaram que os EUA governam hoje o mundo, mas desfruta dessa supremacia em boa parte graças à base econômica da América Latina. [...] O capital dos EUA investido na América Latina representa 46% do total de capitais colocados no exterior. (Ibidem, p. 82). 344 MAO TSETUNG. Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Tomo I, Pequim: 1975, p. 1-18. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/mao/1926/03/classes.htm>. Acesso em: 14 mar. 2014. 345 Bukharin, em seu informe, dizia: “Mas isto nos impõe a tarefa essencial de agrupar as massas a fim de privar progressivamente o inimigo da possibilidade de destruir fisicamente nosso exército proletário [...] exige do Partido abandonar a posição favorável à realização imediata da insurreição para adotar uma preparação das massas”. (BUKHARIN, 1976, p. 38). 324 A intervenção do delegado mexicano, entre outras coisas, chamou a atenção para a questão agrária. É preciso dizer algo mais. Não podemos desencadear em nossos países uma luta séria enquanto não tenhamos conseguido mobilizar as massas camponesas. Temos milhões de camponeses pobres e de camponeses sem terra para os quais a luta pela terra é o primeiro ponto na ordem do dia do movimento revolucionário da América Latina. E acrescenta um aspecto importante da realidade mexicana. Nossos camponeses vivem em condições tão miseráveis, tem meios de produção tão primitivos que é impossível considerá-los como uma classe possuidora, como pequena burguesia; é uma massa numerosa da qual milhões de indivíduos pertencem ao semiproletariado, que nós devemos só neutralizar, senão converter em nossos aliados diretos. Não existe um só país da América Latina, onde os camponeses não constituem a grande maioria da população. Portanto a posição de nosso partido a respeito do problema agrário e ao movimento camponês é decisivo para a sua função na Revolução. (VI CONGRESSO da IC, 1978, p. 84). Carrillo ressaltaria também a importância da Liga Antimperialista na América Latina e critica o Partido Comunista dos EUA por não formar a Liga Anti-imperialista em seu país. Uma das questões combatidas na intervenção de Carrillo foi o “desvio de direita”, ou seja, de que só apenas destruído o Imperialismo Norte-americano se poderia conquistar o poder na América Latina. Sobre a conjuntura mexicana, Carrillo já sabia do assassinato de Alvaro Obregón, em julho de 1928. Para os mexicanos, esse assassinato abriria um novo momento de Guerra Civil no país, e avaliavam que esses distúrbios tinham origem na importância do México para o imperialismo norte-americano, e apenas “haverá uma situação normal quando os operários e camponeses tenham tomado o poder” (VI CONGRESSO da IC, 1978, p. 87). Essa avaliação de Carrilo era o ponto alto das interpretações da situação política mexicana elaborada até então pelo PCM. Da análise anarquizante, da simples divisão entre opressores e oprimidos, o PCM havia passado a dividir a sociedade em outras classes, com interesses distintos e papéis diferentes. Não apenas o proletariado era a classe revolucionária, o campesinato adquiria importância central, e principalmente a burguesia era vista a partir de frações e não apenas como uma só que se dividia em caudilhos. 325 O que os comunistas mexicanos e de certa forma a própria internacional comunista ainda não conheciam era a forma institucional que a estabilização política geraria. Ao contrário do que previa o PCM, a morte de Obregón não simplificaria a abertura de uma crise revolucionária mais aguda, mas o início da construção das instituições do Estado pós-revolucionário mexicano, com o maximato, e depois através do período cardenista, que cristalizará um modelo de Estado, surgido da crise do sistema oligárquico, estruturado no sentido de conter, reprimir e cooptar os movimentos populares, e na perspectiva comunista, com um sentido contrarrevolucionário. A intervenção de Salas comunga do otimismo do informe de Carrillo, ao prever situações revolucionárias no Brasil, na Venezuela e Colômbia, às vésperas de uma revolução democrático-burguesa. [...] Se no transcurso da Revolução, a classe e sua vanguarda, o Partido Comunista, são capazes de assumir a hegemonia sobre o movimento revolucionário, será possível transformar esta revolução democráticoburguesa em uma revolução operária e camponesa. (Ibidem, p. 88). Na intervenção de Bukharin, fechando a sessão, ele reafirmou a importância da questão camponesa na América do Sul (que, para a IC, muitas vezes era sinônimo de América Latina): Devemos dar uma atenção especial à questão camponesa também nos países sul-americanos. Em quase todos os países da América do Sul há uma estrutura específica de poder estatal (são os grandes proprietários [tierrateniente no original], os possuidores dos latifúndios, os que estão no poder nos países). Em uma parte desses países há latifúndios que se encontram sob um regime misto de exploração capitalista e de métodos feudais escravistas. (VI CONGRESSO da IC, 1978, p. 120). E, após reafirmar a importância de se organizar os camponeses, Bukharin tratou da polêmica em relação à formação de um Partido camponês para se organizar os camponeses. Bukharin rebate essa ideia, a qual era fruto de como se via a frente única desenvolvida a partir do V Congresso, que assinalava que cada classe estivesse representada por um partido, e o PC era o representante do proletariado. Estimular um partido camponês para organizar os camponeses era uma maneira de gerar um organismo concorrente ao Partido Comunista, e por isso faria mais sentido organizar os camponeses em sindicatos, sendo que esses sim iriam compor a frente única. O delegado mexicano Ramirez reafirma que se desenvolve uma guerra entre a 326 Inglaterra e os EUA, que seria repetido por Gonzalez, do Brasil. Figura 78 - A revista Amauta publicou notícias do Plano Quinquenal soviético. A Primeira Conferência Comunista Latino-Americana de Buenos Aires A partir dessa conferência, embora não apenas como resultado dela, grande parte dos PCs sofreram mudanças bruscas, tanto em suas diretrizes como entre os militantes que compunham as direções partidárias. A ICCLA aconteceu em meio às mudanças do “terceiro período” da Internacional Comunista e a chamada política de “classes contra 327 classes” definidas no VI Congresso da Internacional Comunista. Analisando os documentos relativos à ICCLA e ao VI Congresso da IC (1928), tornou-se possível constatar qual foi a dinâmica dos debates que orientaram a luta política nos PP CC da América Latina. Esse “modelo” esteve associado aos conceitos de colônia, semicolônia, feudalismo, economia nacional “deformada” pelo imperialismo, burguesia nacional, entre outros. Imaginamos ser esse debate sobre o “problema de tática” a chave para compreendermos como se expressou, no plano da interpretação teórica, a luta política no interior das sessões nacionais da IC na América Latina logo após o ICCLA, e também a dinâmica dos debates ocorridos nesse conclave. Uma das teses mais conhecidas entre as que foram apresentadas na ICCLA, e geralmente a única divulgada, foi o informe da delegação peruana escrito por José Carlos Mariátegui (1994-1930) e Hugo Pesce346 (1900-1969) e intitulado “El Problema de las Razas en America Latina”347. A ICCLA costuma figurar na historiografia a partir de abordagens que trataram desse documento e, muitas vezes, esse texto é apresentado como se tratasse de uma evidência das posições contraditórias entre a delegação peruana, Mariátegui e as posições dos dirigentes da IC. Nessa perspectiva, a tese peruana estaria em desacordo com a linha que a IC pretendia impor, ou, além, apresentava elementos muito originais e “heterodoxos” em relação às teses em voga na IC. Encontramos no que concerne à estrutura dessa tese peruana uma adesão explícita às resoluções aprovadas no VI Congresso da IC, conforme demonstraremos adiante. Utilizamos as transcrições dos debates e resoluções do VI Congresso da IC348, 349 ; os números da Revista La Correspondência Sudamericana, publicados em 1929, pelo Secretariado Sudamericano da Internacional Comunista (SSA da IC), em que foram publicadas a convocação da ICCLA a “Ordem do Dia”, as teses que seriam debatidas e, finalmente, as resoluções e atas taquigrafadas da ICCLA. Essas atas foram 346 O Médico Hugo Pesce teve participação importante no Partido Comunista do Peru entre os anos de 1928 e 1939. Em 1952, Pesce encontrou Ernesto “Che” Guevara quando o guerrilheiro argentino fez a sua viagem juvenil pela selva peruana. (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional Comunista y América Latina, 1919-1943 – Diccionário Biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 259). 347 MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras Completas. Lima: Minerva, 1994. Disponível em: <http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/index.html>. Acesso em: 25 abr. 2012. 348 Todos os documentos citados nessa comunicação, exceto a bibliografia e as resoluções e debates do V e VI Congressos da IC que foram publicados pelas edições Pasado y Presente, estão disponíveis no portal Memória Vermelha/Roja. Disponível em: <http://www.memoriavermelha.com>. Acesso em: 23 mar 2014. 349 VI CONGRESSO DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA. Primera Parte. Cuadernos de Pasado y Presente. México: Pasado y Presente, 1977. v. 66. 328 publicadas em formato de livro, que depois seria distribuído pelo SSA350 entre as seções da IC na América Latina para serem estudadas e debatidas. A América Latina na Revolução Mundial e o “Problema da Tática dos Partidos Comunistas” A particularidade da revolução latino-americana no VI Congresso da IC se inscreve dentro do problema colonial e semicolonial. Ou seja, as revoluções nos países latino-americanos não seguiam o modelo tradicional da revolução socialista (e proletária) imaginada, por exemplo, para a Inglaterra ou para a Alemanha. Para os países coloniais e semicoloniais, faltava um elemento fundamental, o proletariado. Os revolucionários do Partido Comunista da União Soviética haviam enfrentado essa questão, já que a Rússia não possuía um desenvolvimento clássico do capitalismo e abundavam as relações servis e feudais de produção. A facção menchevique 351 do Partido Social-democrata Russo, como outros marxistas da social-democracia europeia, acreditavam que nos países periféricos seria necessário esperar o desenvolvimento de uma revolução democrático-burguesa, que impulsionasse o capitalismo, para que as condições de uma revolução socialista (e proletária) estivessem maduras. Essa perspectiva imprimia na atividade do partido uma atitude passiva e reformista, já que aos que lutavam pelo socialismo restava apenas esperar a burguesia fazer a sua revolução e implantar um regime demo-liberal. Somente depois começaria a revolução socialista. Lênin e os futuros fundadores da IC romperam com essa perspectiva progressivista entre os marxistas. A primeira revolução triunfaria na atrasada Rússia, mas a Internacional Comunista continuaria mais atenta ao ocidente capitalista como vanguarda da 350 O Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista foi fundado em fevereiro de 1925, com sede em Buenos Aires, e a partir de 1930 foi transferido para Montevidéu até 1935. (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional Comunista y América Latina, 1919-1943 – Diccionário Biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 27). 351 “Os mencheviques acreditavam que sua missão consistia em estruturar as ações da classe operária russa de modo tal que as fizesse aceitáveis para a burguesia, enquanto consideravam esta como o único fundamento possível de um futuro desenvolvimento do país, ainda subdesenvolvido. Por assim dizer, se devia obrigar a burguesia a realização de seu próprio programa de classe. Com esta concepção os mencheviques impediram o pleno desenvolvimento da Revolução de 1905 e naufragaram logo, quando passada a Revolução de fevereiro, a burguesia se aliou a reação; é por esse motivo que a maioria da classe operária seguiu a direção bolchevique.” (SCHILESINGLER, Rudolf. La Internacional Comunista y el Problema Colonial. Cuadernos de Pasado y Presente, México, n. 52, Pasado y Presente, 1977, p. 37). 329 Revolução Proletária Mundial, até que a derrota das insurreições alemã e húngara e o crescimento do movimento revolucionário na China impusessem o problema colonial de forma significativa na estratégia da Revolução Mundial. A América Latina demorou para surgir na pauta dos congressos da IC. Foi apenas em 1926352 que o subcontinente passou a ser um ponto específico a ser tratado pela direção da IC e, como outros países periféricos, foi tratado dentro do problema colonial e semicolonial. A preocupação crescente do CEIC (Comitê Executivo da Internacional Comunista) com a América Latina foi expressa organicamente com a iniciativa de criar um Secretariado Sul-americano, que, com sede em um dos países da região, no caso Buenos Aires, pudesse coordenar a atividade comunista e fortalecer os laços dos jovens partidos comunistas com a direção da IC. A partir do V Congresso da IC (1924) e principalmente após o VI Congresso (1928), a realidade latino-americana foi sistematicamente enquadrada em um “modelo” de análise da realidade colonial, na qual a interpretação das alianças da frente única (o problema da tática) cumpre um papel-chave para compreendermos a política comunista desse período. Em primeiro lugar, era importante convencer os militantes comunistas latinoamericanos de que viviam em países coloniais ou semicoloniais dependentes (ou dominados) pelo imperialismo inglês ou do norte-americano. Isso não era uma tarefa difícil, já que pululavam evidências da influência inglesa ou norte-americana nos países latino-americanos, e encontrar dados econômicos e políticos que comprovassem essa situação foi ainda mais fácil. A Revista La Correspondência Sudamericana, órgão do SSA (Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista), apresentou diversos desses dados. A própria invasão da Nicarágua e a situação de Cuba já eram fatos imponentes para a comprovação da situação colonial ou semicolonial. A resistência recaía sobre a situação de alguns casos específicos como o do México, que, pela participação de elementos pequeno-burgueses com discurso nacionalista no governo pós-revolucionário, pareciam praticar uma política soberana, embora todos destacassem 352 Carone cita a Reunião Ampliada do CE da IC de fevereiro e março de 1926 como uma das primeiras manifestações de interesse da IC pela América Latina. (CARONE, Edgar. Classes Sociais e Movimento Operário, São Paulo: Ática, 1989, p. 243). Na introdução do dicionário elaborado por Jeifets e Huber, existe uma ressalva a esta datação de Carone, citando Mothes e partindo dos arquivos acessíveis desde 1992 em Moscou. Os autores afirmam que a preocupação da IC com a América Latina foi significativa desde princípio da década de 1920. (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional Comunista y América Latina, 1919-1943 – Diccionário Biográfico, Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 11-12). 330 a influência econômica dos EUA. Antes de qualquer coisa, há uma questão preliminar de grande importância, que quando nos encontramos com os companheiros procedentes da América Latina, a primeira discussão que surge, frequentemente muito viva, diz respeito ao caráter semicolonial da América Latina. Em geral, em seu primeiro contato conosco, quando lhes dizemos: a situação dos seus países é a de uma semicolônia, e em consequência devemos considerar os problemas que lhes concerne desde o ponto de vista de nossa tática colonial ou semicolonial, nossos companheiros da América Latina se indignam e afirmam que seus países são independentes, estão representados na Liga das Nações, têm diplomatas, seus consulados, etc. Lembro-me das dificuldades que tivemos com o representante do Partido Comunista de Cuba, isto é, de uma das mais típicas colônias do imperialismo ianque: se opôs tenazmente a nosso ponto de vista de que Cuba era uma semicolônia dos Estados Unidos. (HUMBERT-DROZ, 1928, p. 301). Definidos os países como coloniais e semicoloniais, a estratégia da Revolução na América Latina passava também a ser enquadrada no rol das Revoluções Democrático-Burguesas, e não entre as Revoluções Proletárias. A lógica era simples, nos países imperialistas de desenvolvimento pleno do capitalismo e com um proletariado numeroso, como a Inglaterra e a Alemanha, a Revolução seria proletária. Nos países coloniais com um pequeno ou inexistente proletariado e com uma maioria camponesa, a revolução seria democrático-burguesa, antifeudal e anti-imperialista. Simples, mas precisava nortear a interpretação de uma realidade complexa. A caracterização da revolução como democrático-burguesa foi mal compreendida e essa incompreensão dificultou o entendimento da dinâmica dos debates comunistas por muitos autores que trataram da história dos comunistas nos países coloniais. Os dirigentes da IC formulavam seus esquemas teóricos como forma de tornar inteligíveis suas estratégias políticas em busca da Revolução Mundial. A partir desses esquemas teóricos353, os generais comunistas movimentavam suas tropas, os militantes buscavam alianças com os setores da sociedade e exaustivamente debatiam nas inúmeras células a inserção dos militantes nos mais diversos movimentos sociais. O debate sobre o “caráter da revolução” não se relacionava, portanto, a uma etapa capitalista do progresso humano, mas à definição de um programa mínimo que pudesse 353 O debate sobre tática e revolução democrático-burguesa era tão importante que, após a conquista do poder pelo Partido Comunista da China em 1949, a bandeira oficial da República Popular da China representaria a frente única de classes revolucionárias nas cinco estrelas amarelas. A maior representa o Partido Comunista da China que dirige a frente única revolucionária, e as outras quatro as classes que compõem a frente única: os operários, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional. 331 contemplar os interesses de classes não proletárias com as quais os comunistas (representando o proletariado) pretendiam se aliar. Humbert-Droz, o dirigente da IC na ICCLA, não opunha o caráter democráticoburguês ao socialista, mas via que na América Latina “a revolução democráticoburguesa não alcançará plenamente seus objetivos (distribuição de terras aos camponeses, liberação do imperialismo) enquanto não se transforme em revolução socialista sob a hegemonia do proletariado”.354 (VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA, 1978, p. 315). Não se tratava de colocar uma etapa capitalista antes da revolução socialista, mas de construir um programa de frente única capaz de mobilizar as massas que compunham a maioria da população nos países coloniais e semicoloniais: os camponeses e parte da pequena burguesia ou da burguesia nacional355 em aliança com o proletariado. As propostas de tese para a ICCLA foram publicadas para um debate prévio em La Correspondência Sudamericana, nº 26, em maio de 1929, e definia o programa democrático-burguês do governo de operários e camponeses com os seguintes termos: 1) Expropriação sem indenização e nacionalização do subsolo. Entrega da terra aos que trabalham para a sua exploração coletiva por comunas agrícolas, onde existe a comunidade agrária e o trabalho 354 Durante esse Congresso, foi apresentada por Travin (Codinome de Serguei Ivanovich Gusev) uma fórmula alternativa para a classificação do caráter da revolução na América Latina, questionando os aspectos do sustentado por Droz. “Ao invés de aplicar a estes movimentos fórmulas já existentes, tais como ‘revolução democrático-burguesa’, ou ‘revolução socialista’, melhor seria considerar esses movimentos em seu verdadeiro aspecto. Mas qual é atualmente este aspecto? Em minha tese eu descrevo circunstancialmente estes movimentos baseando-me na experiência da revolução mexicana. [...] esses movimentos revolucionários começam como movimentos camponeses ‘democrático-burgueses’ para obter terras, mas por causa das relações de classe existentes no interior desses países, por efeito também do caráter colonial da América Latina, estes movimentos adquirem desde o início traços que não são absolutamente democrático-burgueses, senão que os aproximam mais da revolução socialista. [...] me limito a descrever o movimento tal como se produz. Se querem que lhe dê uma definição, lhes direi que se trata de um ‘movimento espontâneo dos operários e camponeses, de natureza socialista’ [...] Já indiquei que na América Latina não existirá propriedade privada. Muito pelo contrário, existem tradições bastante fortes de comunismo primitivo na economia rural. Os camponeses mexicanos não procuravam repartir as terras entre eles e transformá-la em propriedade privada: se apoderam da terra para transformá-la em propriedade coletiva e cultivá-la em comum.” (VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA. Informes y Discusiones. Cuadernos de Pasado y Presente, México, Pasado y Presente, 1978, p. 333. v. 67). 355 Em outros momentos na “frente única de classes revolucionárias” aparece a burguesia nacional. A pequena burguesia pode fazer parte da burguesia nacional, ou aparecer separada. Isso dependeu de como os comunistas viram a aliança com uma dessas classes. Se não acreditavam ser possível uma aliança com a burguesia nacional, como nas resoluções do VI Congresso, a pequena burguesia aparecia como aliada e a burguesia nacional como inimiga da revolução democrático-burguesa. Quando a burguesia nacional apareceu como aliada do proletariado, a separação entre pequena burguesia e burguesia nacional não foi necessária, e por muitas vezes a pequena burguesia apareceu como parte integrante da burguesia nacional. 332 coletivo do solo. Nas grandes plantações, nos latifúndios, entrega da terra em usufruto aos camponeses, aos colonos, onde o trabalho da terra se faça sob regime de trabalho individual. 2) Confiscação e nacionalização das empresas estrangeiras (minas, transporte, empresas industriais, bancos, etc.). 3) Anulação das dividas de Estado e de toda forma de controle do país pelo imperialismo. 4) Jornada de 8 horas e supressão das condições semiescravistas de trabalho, seguro social. 5) Armamento dos camponeses e transformação do exército em uma milícia operária e camponesa. 6) Abolição do poder dos grandes latifundiários e da Igreja e organização do poder dos conselhos de operários, camponeses e soldados. (LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA, 1929, ns. 12,13 e 14, p. 13). Mesmo antes do VI Congresso da IC356, os comunistas latino-americanos se esforçaram por construir frentes únicas, desde a experiência do Bloco Operário e Camponês no Brasil até a participação na APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) no Peru e no México. O PCM (Partido Comunista do México) participou da formação da Liga Nacional Camponesa (LNC) e procurava aliar-se aos movimentos radicais das mais diferentes matizes. A participação dos comunistas nessas organizações frentistas e não necessariamente comunistas ampliaram o raio de influência política dos militantes comunistas, comprovando o que parecia ser o acerto da caracterização da Revolução na América Latina como democrático-burguesa, já que eram exatamente os temas anti-imperialistas e da revolução agrária os que mais mobilizavam e mais ampliavam a influencia dos PP CC. Mas a tática de frente única com as classes não proletárias possuía um problema: o risco dos comunistas perderem o controle do movimento. O PP CC aceitava demandas do programa antifeudal e anti-imperialista, que seriam o programa democrático-burguês, conseguiam se aproximar da população camponesa e de setores da pequena burguesia radicalizada. Por outro lado, precisavam lutar para manter a hegemonia do proletariado, o que significava que a frente precisava seguir a direção dos PP CC. Esse foi o problema enfrentado por Humbert-Droz e Codovilla na ICCLA357: fazer com que os grupos comunistas e jovens PP CC 356 O caráter da revolução, se socialista ou democrático-burguesa, esteve intimamente ligado ao problema da tática, a necessidade em se formar uma frente única. A frente única nasceu no “refluxo” do movimento operário europeu, quando as derrotas dos comunistas alemães demonstraram o fim de uma onda revolucionária aberta desde 1917 e que obrigava os comunistas a fazer alianças para resistir a contrarrevolução. A frente única estava relacionada à necessidade de “ir às massas” e ampliar o raio de influencia comunista, conforme as consignas do III Congresso da IC (1921). (LOS QUATRO PRIMEIROS CONGRESSOS DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA, Izquierda Revolucionária, 2008, p. 375 Disponível em: <www.marxismo.org>. Acesso em: 25 abr. 2012). 357 Como veremos mais adiante, Codovilla e Humbert-Droz, esse último um destacado dirigente da IC, foram os responsáveis por convencer os PP CC latino-americanos das posições do VI Congresso da IC. 333 participassem dos movimentos de massas de seus países (particularmente entre os camponeses e os pequeno-burgueses anti-imperialistas), ao mesmo tempo em que garantiam a hegemonia comunista nas organizações populares e até no interior dos próprios PP CC. Essa hegemonia era constantemente ameaçada pela influência de elementos que os comunistas identificavam como pequeno-burgueses, como o líder aprista Victor Raul Haya de La Torre (1895-1979) e o governador Adalberto Tejeda (1883-1960), por exemplo. Como conclusão dos debates desse período, produziram-se inúmeras rupturas. Em alguns momentos, essas rupturas se deram em meio a organizações com influência real, e até armada, no movimento de massas. Foi o caso da ruptura do PCM com a LNC e Úrsulo Galván. Em outras circunstâncias, o entendimento da hegemonia do proletariado na frente única e a proletarização dos PP CC significaram afastar os elementos de origem pequeno-burguesa das direções partidárias, colocando em seus lugares militantes de origem operária. Esse foi o caso do PCB, onde quase toda a direção partidária foi substituída358. O Método de interpretação da realidade colonial e semicolonial para a América Latina (1929) A convocação da ICCLA foi feita para junho de 1929 e devia coincidir com a Conferência Sindical Latino-americana, onde se reuniriam os delegados que representavam as mais diversas organizações sindicais da América Latina para formar a Central Sindical Latino-americana. Os comunistas dirigiam diretamente várias dessas organizações e atuavam como fração comunista359 nessa frente sindical latinoamericana. Essa organização de frente única no continente estava projetada para funcionar conforme o modelo aprovado pelo VI Congresso da IC, frente única pelas bases360, agrupando organizações de massas e não partidos organizados. A Conferência Carone explica a “política obrerista” que marcará o PCB nos anos posteriores a 1930 como consequência da má interpretação do VI Congresso da IC. Como consequência, toda a direção partidária, inclusive Astrojildo Pereira, será afastada. (CARONE, op. cit., p. 280). 359 Os comunistas, de forma organizada pelo PP CC, atuavam em bloco dentro dos sindicatos, ligas camponesas, ligas anti-imperialistas e demais organizações que compunham a frente única. Esse grupo partidário era denominado pelos comunistas como a fração vermelha ou fração comunista. Era através desse grupo organizado que os comunistas procuravam a hegemonia na organização de massa. 360 Durante o VI Congresso da IC, foi debatido o tema frente única sob o impacto de derrotas importantes para a atuação dos comunistas nestas frentes. Um desses fatos esteve ligado à vitória dos trabalhistas na Inglaterra, mas, para os países coloniais e semicoloniais, o fato mais importante havia sido a perseguição do Kuomitang ao Partido Comunista da China, sinalizando limites para as alianças com governos 358 334 Sindical Latino-Americana seria realizada em maio de 1929 e a ICCLA seria realizada logo depois, em junho. A ICCLA seguiria uma lógica clara, do geral ao particular, como era o costume das reuniões da IC. Os temas da “Orden del dia” estavam divididos em nove tópicos, começando pela situação internacional, indicando um informe de Victorio Codovilla. O segundo ponto tratava da luta anti-imperialista e os problemas de tática dos PPCC da América Latina. Por tática estava implícito o problema das alianças com outras classes, a questão da frente única. Mas, para que não houvesse dúvidas, as linhas abaixo do título do tópico explicavam o tema que seria tratado: “O caráter da Revolução; Bloco Operário e Camponês; aliados do proletariado”. Dentre todos os tópicos citados, apenas esse segundo ponto, que tratava dos “problemas de tática” aparecia com uma “nota explicativa”. O tópico estava planejado para ser apresentado por Rodolfo J. Ghioldi do Partido Comunista da Argentina, junto com dois coinformantes, um do México e outro da Colômbia. Durante a ICCLA, o informe seria mudado e o tópico seria apresentado por Humbert-Droz, sob o codinome de Luis, o mais experimentado dentre os comunistas presentes. A mudança de informante e a “nota explicativa” demonstram a importância que essa questão adquiria para os dirigentes da IC. Esses dois primeiros tópicos, situação internacional e os problemas da tática, estruturaram a forma com que a IC via a revolução na América Latina. Os outros tópicos estariam subordinados à lógica apresentada nos dois primeiros e poderiam ser recheados pelas particularidades da região e as peculiaridades do desenvolvimento político de cada país. No terceiro tópico, aparecia a questão camponesa. A experiência camponesa mais rica naquele momento havia sido indiscutivelmente a mexicana e o informe, portanto, estava sob responsabilidade do PCM, com o Brasil e a Argentina como coinformantes. O quarto ponto foi incluído pouco antes, por solicitação de Humbert-Droz, e trataria do “problema das raças na América Latina”. Como informante, aparecia o Peru; Brasil e Cuba figuravam como coinformantes. Conforme as memórias de Eudócio Ravines, que esteve em Moscou durante o ano de 1929, Humbert-Droz e até Zinoviev pequeno-burgueses e nacionalistas. Desde o V Congresso, havia começado a surgir a tese da frente única pelas bases, o que significava não fazer alianças com os líderes de outras correntes políticas e somente permitir “massas” nos sindicatos em que os comunistas atuavam. Assim, as organizações de massas estavam compostas por “massas” (trabalhadores sem partido) e a fração vermelha, o grupo comunista que procurava manter a direção das organizações. 335 haviam manifestado muita simpatia por José Carlos Mariátegui361. É difícil afirmar até que ponto o relato de Ravines foi verdadeiro, mas, pela importância que Humbert-Droz dedicou a esse tema, é de se supor que apreciasse e tenha lido com interesse alguns números da Revista Amauta que Mariátegui dirigia, e que tratava com importância significativa o problema indígena na América Latina. Não é por outro motivo que Mariátegui seria convidado, conforme carta enviada ao peruano por Codovilla362, para elaborar um informe sobre a questão de raças na América Latina. Os outros dois coinformantes, Brasil e Cuba, foram escolhidos por representarem outros dois países onde a “questão de raças” se apresentava especialmente problemática, nesses dois últimos casos em relação à questão negra. Nos outros tópicos, apareciam: o trabalho da liga anti-imperialista, com informe da delegação mexicana e coinforme da Argentina; depois a questão sindical, o movimento da juventude comunista, questões de organização e, por último, o tópico IX, trabalho do SSA com um informe de Victorio Codovilla. Logo após a fundação da Confederação Sindical Latino-Americana em Montevidéu, os vários representantes dos grupos e partidos comunistas latinoamericanos cruzaram o Rio da Prata e desembarcaram em Buenos Aires. Entre eles, estava o conhecido fundador do muralismo mexicano, David Alfaro Siqueiros. Embora não se conheça a identidade de todos os participantes da Conferência, os que conhecemos indicam que os enviados para essa ICCLA eram jovens, como as organizações que representavam. O delegado brasileiro, Leôncio Basbaum, líder da delegação brasileira e responsável pelo coinforme sobre a “Questão de Raças na América Latina” tinha apenas 21 anos363. A delegação peruana, com Julio Portocarrero e o médico Hugo Pesce, possuíam ambos, menos de 30 anos e o próprio Codovilla tinha 35 anos. Embora jovens, muitos dos presentes já haviam organizado importantes movimentos em seus países e traziam dessa experiência diversos elementos que seriam debatidos ao longo dos 12 dias que durou a ICCLA. 361 RAVINES, Eudócio. La penetración Del Kremlin en Iberoamerica. México: Diana, 1981, p. 148-52. Em uma carta de Victório Codovilla enviada a Mariátegui, datada em 29 de março de 1929, o dirigente da SSA pedia para que Mariátegui participasse da Conferência e apresentasse um documento para o debate sobre a situação indígena. (BECKER, Marc. “Mariátegui y el problema de las Razas en América Latina”, Revista Andina, Lima, n. 35, jul. 2002, p. 201). 363 Basbaum, com 21, anos não era apenas o responsável pela delegação do PCB; ele também tinha a missão de contatar Luis Carlos Prestes durante os dias que permaneceu em Buenos Aires, e assim estabelecer parâmetros programáticos de unidade entre o PCB e a Coluna Prestes. O encontro entre Prestes e Basbaum foi narrado em suas memórias. In: BASBAUM, Leôncio, uma vida em seis tempos. São Paulo: Alfa Omega, 1976, p. 70. 362 336 Abertos os trabalhos da Conferência no dia 1° de junho, cantou-se a Internacional e foram lembrados os comunistas assassinados, Júlio Mella e José Guadalupe Rodríguez. Seguindo a linha do VI Congresso da IC e as teses publicadas em La Correspondencia Sudamericana364, Codovilla apresentou, representando o SSA, uma longa explicação sobre a situação internacional. Em síntese, Codovilla explicaria que o capitalismo passava por um momento de agravamento das contradições interimperialistas, fruto da crise de superprodução que a “racionalização” (que conhecemos como fordismo) estaria provocando. A disputa interimperialista por mercados e matéria-prima levava ao acirramento das contradições que conduziam inevitavelmente à guerra. A importância da América Latina estava exatamente em estar no centro de um dos cenários de disputa interimperialista, em que se chocavam o imperialismo inglês e o norte-americano. Hoje nós sabemos que os EUA e a Inglaterra não entraram em guerra na América Latina, mas também sabemos que a influência inglesa foi gradativamente sendo substituída pelos capitais norte-americanos durante a 1ª metade do século XX e, portanto, embora com prognósticos errados, os dados apresentados nas publicações comunistas sobre a substituição da influência inglesa pela norte-americana estavam corretos. Expressões da iminência dessa “guerra inevitável entre os imperialistas norteamericanos e ingleses” se manifestavam no conflito entre Bolívia e Paraguai, na greve bananeira na Colômbia, no conflito pela possessão do petróleo colombiano, nas ações armadas no México, Nicarágua e as greves no Brasil, Argentina. (EL MOVIMIENTO..., 1929, p. 7-31)365. O aprofundamento da disputa interimperialista criaria instabilidades políticas as quais poderiam servir aos comunistas para organizar as frentes anti-imperialistas, que transformariam a guerra imperialista em uma guerra civil revolucionária. O informe insistia na inevitabilidade da guerra interimperialista e na necessidade de os comunistas oporem-se à guerra, através da fórmula internacionalista utilizada na Primeira Guerra pelos bolcheviques, em que o internacionalismo proletário sobrepõe-se ao nacionalismo chauvinista. Essa era uma tese facilmente aceita pelos presentes, exceto quando se tratava de 364 LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el Secretariado Sudamericano de la Internacional Comunista, Buenos Aires, n. 9, maio 1929. 365 EL MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINO AMERICANO. Versiones de la Primera Conferencia Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929. 337 questões políticas objetivas como a questão de Tacna e Arica, em que a crítica aos comunistas peruanos pela não intervenção junto a um plebiscito abriu um debate acerca do significado deste fato para as massas peruanas. (Ibidem, p. 52). Esse avanço do imperialismo norte-americano não gerava um desenvolvimento ou representava uma força progressista, “senão que tem servido para deformar a vida econômica destes países; não tem desenvolvido as relações capitalistas, mantendo a exploração semifeudal e semiescravista das massas trabalhadoras”. (Ibidem, p. 21). Essa parte é significativa, pois é o elo que liga a penetração imperialista com o atraso das relações não capitalistas. É a partir dessa conclusão que o informe de Codovilla irá definir o caráter da revolução como democrático-burguesa. Revolução democrático-burguesa para mobilizar os camponeses A frente única que na Europa tratava da aliança com outras organizações, principalmente com os social-democratas, na América Latina estava relacionada, objetivamente, ao nacionalismo revolucionário. Era nessa política de alianças que os dirigentes da IC pretendiam intervir, já que diversas experiências de bloco de classes haviam chegado a resultados negativos. No Brasil, o bloco havia conduzido a uma política muito ampla que desviou em “parlamentarismo”, fazendo do Partido Comunista um apêndice da frente única e não a sua força dirigente366. No México, Úrsulo Galván, o principal líder dos camponeses e membros da direção do PCM, era dragado pelo agrarismo e para a aliança com o governo de Adalberto Tejeda em oposição ao Partido367. No Peru, a atuação dos comunistas na APRA e a própria formulação de PSP (Partido Socialista Peruano), como organização ampla e com características de frente de classes, não se adequavam à solução que o VI Congresso havia encontrado para a frente única e o papel dirigente do Partido 366 Carone reproduz o balanço de Droz sobre os problemas do BOC (CARONE, op. cit. p. 272). Droz, em seu informe, afirmaria que: “O perigo não é unicamente de uma degenerescência parlamentária da qual temos tido manifestações evidentes no Brasil, mas, também, de uma transformação do Bloco em um partido político ligado a esta degenerescência parlamentária e que se produzirá se o Partido Comunista cessa sua ação própria, se limita a desenvolver-se como uma espécie de facção ilegal do Bloco”. (EL MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINO AMERICANO. Versiones de la Primera Conferencia Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929, p. 101). 367 Enquanto ocorria a ICCLA, Úrsulo Galván rompia relações com o PCM e era oficialmente expulso da Internacional Camponesa (Krestintern). (REINOSO, Irving. El Agrarismo Radical em México en la Década de 20 – Ursulo Galván, Primo Tapia y José Guadalupe Rodríguez (Una Biografía Política). México: Edição digital, 2009, p. 35). 338 Comunista na revolução. A posição de Siqueiros é interessante, pois revela uma contrariedade pelo debate teórico nos moldes que a direção da IC pretendia tratar. Camaradas, considero que está exato o informe do companheiro Codovilla, mas notam-se algumas falhas de detalhe, especialmente no que se refere aos meios práticos de luta. Por isso quero colocar ante todos os companheiros algumas questões para que de aqui deem as resoluções para seguir lutando [...] necessitamos, companheiros, que nos deem consignas práticas para combater com êxito contra o inimigo [...] Devemos, então, tomar posição e elaborar uma tática para extrair, por meio de planos concretos, todo o êxito possível destes acontecimentos. (EL MOVIMIENTO..., 1929, p. 56). A primeira intervenção de Siqueiros valorizou a ação revolucionária. De uma forma sutil, ele criticou o debate analítico sobre o caráter da Revolução, as alianças de classe e os esquemas táticos apresentados por Codovilla e Humbert-Droz. Para o muralista mexicano, a tática que deveria ser aplicada pelo PCM estava relacionada à ousadia e à objetividade e não a esquemas, que para ele soavam muito abstratos. Siqueiros havia lutado durante a Revolução Mexicana de 1910 e era um ativo militante sindical. Em sua avaliação, os motivos que explicavam a perseguição que Kuomitang fazia contra os comunistas na China estavam relacionados à falta de iniciativa dos militantes do Partido Comunista da China368. Essa era uma posição isolada e pessoal de Siqueiros, mas revela que, embora houvesse inúmeras declarações confirmando um acordo formal com a linha da IC, muitos dos presentes na ICCLA não dominavam aqueles debates acerca da tática e do caráter da Revolução nos países coloniais e semicoloniais. São importantes algumas ressalvas quando se trata de definir as oposições à linha do VI Congresso, já que muitos podiam não compreender os meandros do debate que a IC propunha e como ela analisava as realidades de cada país. Siqueiros é um bom exemplo de como se desenvolvia o processo de convencimento e ajuste dos delegados presentes nessas conferências e congressos em relação às diretrizes mais gerais da IC. Ao longo dos debates, as intervenções de Siqueiros foram se tornando mais ajustadas aos parâmetros que os dirigentes da IC tentavam imprimir e suas intervenções foram mais analíticas e preocupadas em colocar os conceitos da análise de classes nos fatos e perspectivas históricas. 368 Cf.: EL MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINOAMERICANO. Versiones de la Primera Conferencia Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929. 339 Siqueiros iniciaria sua apresentação sobre a “questão camponesa” com um fato já exposto nas outras intervenções: o problema camponês não estava sendo tratado pelos PP CC da América Latina. Esse era um problema bastante pertinente, já que PCs como o do Brasil sequer podiam dizer que possuíam trabalho político entre os camponeses e o próprio Basbaum em suas memórias, ao tratar da ICCLA, relembra esse problema. Algumas coisas já sabíamos, não podíamos cogitar de “revolução proletária”; era indispensável conquistar uma boa base entre os camponeses e nem todos os que trabalhavam no campo eram camponeses. No Brasil, por exemplo, tínhamos, sobretudo, “trabalhadores agrícolas”. A aliança com os camponeses ou trabalhadores agrícolas era indispensável e, no Brasil, mal tínhamos olhado para eles, até agora. (BASBAUM, 1976, p. 69). O Informe detalhava as classes do campo divididas em oito tópicos: Latifundiários, La gran Hacienda, arrendatário, meeiros, camponeses pobres, comunidades agrícolas, ejidos e a comunidade agrária mexicana. O latifundiário era o remanescente do antigo sistema de exploração colonial, predominantemente feudal. O informe comparava a Idade Média com o atraso que o latifúndio impunha. Mas o que caracterizava o feudalismo eram as relações servis que teriam sobrevivido à independência e vinham desde o período colonial espanhol, e não a semelhança com outra realidade historicamente datada na Idade Média europeia369. A tática de luta era a aplicação do programa democrático-burguês, ou seja: A causa geral destes levantamentos em massa é a aspiração por terra e dão o sangue para chegar a este estado [...] Considero necessário que todos os Partidos penetrem nessa massa e que se agitem sempre consignas ou reivindicações imediatas de acordo a cada situação específica, mas sempre incluindo nelas, como ponto central, a entrega das terras aos que nela trabalham. Esta é a consigna fundamental. (EL MOVIMENTO... 1929, p. 234). La Gran Hacienda é o termo utilizado para definir o tipo de estrutura produtiva que estava crescendo na América Latina, quase que exclusivamente de capital estrangeiro e vinculado diretamente ao mercado exterior. O informe chamava a atenção Löwy defende a ideia de que existiu uma oposição entre uma linha “europeísta” e outra “latinoamericana” entre os primeiros comunistas da América Latina. Os “europeístas” estariam associados ao “stalinismo” da IC pós-VI Congresso e à tese da revolução democrático-burguesa. O que justificaria o qualificativo “europeísta” seria exatamente a incorporação de conceitos como feudalismo e semifeudalismo, que fariam referência a uma realidade medieval europeia. No outro polo, entre os “latino-americanos”, estariam Mariátegui e Mella. (LÖWY, 2006, p. 18-23). 369 340 para o fato de serem “verdadeiras empresas industrializadas” e citava a United Fruit na Colômbia como exemplo. A penetração dessas empresas criava uma série de mudanças e, como havia sido informado por Droz, ao invés de trazer o progresso e o desenvolvimento para as economias latino-americanas, significava uma deformação das economias latino-americanas. Os trabalhadores dessas empresas eram muitas vezes assalariados e, portanto, “operários agrícolas”, o que exigia que se colocasse na agitação e na propaganda reivindicações típicas do movimento operário. Mas, por essas empresas recrutarem trabalhadores entre os camponeses despojados de suas terras, as restituições das antigas propriedades deveriam figurar nas consignas que pretendiam mobilizar os trabalhadores deste setor. O informe de Droz via na relação entre o operário agrícola e sua antiga situação de camponês pobre a consumação da aliança operário-camponesa na América Latina. A penetração imperialista, através das empresas, pressionava as relações de propriedade da terra e estava diretamente ligada aos arrendatários “camponeses que perderam” suas terras e necessitavam arrendar em “espécie ou em dinheiro (sic)”. (EL MOVIMENTO..., 1929, p. 235). O informe seguia analisando a categoria de “parceiros”, que seriam uma espécie de assalariados agrícolas e geralmente pagavam metade da colheita ao patrão. A categoria não está muito clara no informe e termina muito próxima da definição de arrendatário, já que ele define como um tipo de “meeiro”. Parece uma confusão do próprio Siqueiros, pois no informe de Droz as características dos operários agrícolas eram principalmente receberem salários. Nas resoluções da ICCLA, as categorias ficaram mais bem definidas: “há que entender por camponês o pequeno proprietário da terra ou ao arrendatário, e por operário agrícola o assalariado em suas diversas formas, não colocando este último na denominação de camponês, como se tem feito até o presente”. (Ibidem, p. 235). Os camponeses estavam enquadrados não pela relação salarial, mas em relação às formas de apropriação e arrendamento da terra. Por serem, ou almejarem se tornar proprietários, os camponeses estavam sob disputa, ora tendiam ao burguês, ora ao proletariado. Os proprietários mais pobres eram os aliados do proletariado. Os operários agrícolas eram proletários e, portanto, não eram aliados, mas a própria classe operária no meio rural. Por último, as comunidades indígenas, para as quais Siqueiros chama a atenção pela pouca importância dada a essa categoria pelos PP 341 CC. Ele fala sobre a opressão do Governo Diaz contra os Yakes e a luta dos índios que seguiram desde a conquista em defesa de suas terras. Chama a atenção para o papel importante que as comunidades indígenas representaram para a Revolução democráticoburguesa no México370 (assim definiu a Revolução Mexicana de 1910). Depois da intervenção de Siqueiros, seguiu o informe de Romo pelo PCA em que detalhou as particularidades do campo argentino e uruguaio, com inúmeros dados da penetração imperialista na indústria frigorífica, o histórico dessa penetração, a produção de gado e o trabalho de propaganda no campo. Após os informes, houve um debate em que ainda foram apresentadas algumas particularidades para outras realidades, como no caso do Equador, com as categorias: trabalhador arrendatário, semeador e pequeno produtor. Foi lida uma carta sobre a luta dos camponeses guatemaltecos reprimidos e torturados barbaramente. O outro delegado do PCM presente era um dos militantes da Liga de Comunidades Agrárias de Veracruz, a mais importante base do agrarismo que esteve sob influência comunista, e sua intervenção tratou de forma específica e breve dos problemas que ele vivia imediatamente. Sua intervenção tratou da aplicação do artigo 23 da constituição mexicana, que dizia respeito à reforma agrária. Siqueiros ainda interviria novamente para reforçar a importância da luta pela “devolução das terras roubadas e confiscadas”. Essa era a reivindicação que havia mobilizado os camponeses mexicanos durante a Revolução de 1910 e era parte importante do Plano de Ayala de Emiliano Zapata. A décima quarta seção, em que ocorreram os debates citados acima, terminou com o problema dos imigrantes. Os trabalhadores chineses, ou mesmo de outros países latino-americanos, como Haiti e Jamaica, estavam sendo usados como mão de obra ainda mais barata fora de seus países. O governo mexicano, para “defender” os trabalhadores nacionais, havia iniciado uma política de restrição aos imigrantes. Era uma posição que encontrava apoio entre os trabalhadores mexicanos, mas os comunistas 370 Existiu uma posição minoritária sobre a caracterização da Revolução no México, expressa na intervenção de Travin durante o VI Congresso, mas na ICCLA a caracterização aceita por todos os participantes era a de que a Revolução Mexicana havia sido uma revolução democrático-burguesa, e estava sendo dirigida pela pequena burguesia, que alternava entre os interesses nacionais aos interesses do imperialismo. “O governo pequeno-burguês do México passa do nacional-reformismo ao nacionalfascismo.” (Ibidem, p. 22). A partir do Pleno do CC do PCM em julho de 1929, essa definição irá mudar e a direção pequeno-burguesa do governo terá avançado para se tornar um governo fascista e servir ao imperialismo. (Cf.: LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el Secretariado Sudamericano de la Internacional Comunista, Buenos Aires, n. 21, 20 nov. 1929). 342 mantinham uma posição internacionalista e tentavam fazer oposição a tais medidas. Pela dificuldade em se defender a posição internacionalista entre os trabalhadores mexicanos, o tema ainda voltaria na próxima sessão sobre a questão de raças. O problema das raças na América Latina na linha do VI Congresso da Internacional Comunista O tópico “O problema de raças na América Latina”, redigido por Hugo Pesce em conjunto com José Carlos Mariátegui, tem sido o principal tópico explorado pela historiografia que tratou da ICCAL. Entre os diversos autores371 que exploraram esse tema, sobressaem-se as interpretações que opõem o informe apresentado pela delegação peruana (e Mariátegui) com a linha apresentada pelos representantes da IC, que tentavam aplicar as resoluções do VI Congresso da IC na América Latina. Essas resoluções foram representadas pelos informes de Codovilla e Humbert-Droz, embora todos os presentes na ICCLA tenham recebido cópias das resoluções do VI Congresso e conheçam seu conteúdo. Nossa análise dos documentos relativos à ICCAL não encontrou nenhuma evidência dessa oposição. Encontramos evidências – se entendemos a lógica da revolução democrático-burguesa conforme o VI Congresso da IC e o “problema tático” – de que todos ali reunidos falavam da mesma coisa e através de uma mesma lógica. As divergências foram pontuais e estiveram relacionadas à aplicação da linha do VI Congresso para países coloniais e semicoloniais nas particularidades do continente. Mariátegui, embora não tenha estado presente, conhecia as resoluções do VI Congresso, como todos os delegados do conclave, e é de se imaginar que as tenha estudado para escrever o informe de sua delegação. Esse fato é facilmente demonstrado quando lemos o informe da delegação peruana em relação às resoluções do VI Congresso da IC. Primeiro Hugo Pasce relaciona a questão de raças à situação feudal, retirando qualquer possibilidade, em voga na época, de naturalizar as diferenças raciais em explicações que não se originassem de uma situação econômica e social. Logo depois, 371 Vários autores opõem Mariátegui a IC. Entre os trabalhos em que se pode encontrar essa interpretação: LÖWY, Michael (Org.). O Marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Tradução de C. Schilling e Luís C. Borges. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999; FLORES GALINDO, Alberto. La agonia de Mariátegui. In:_______. Obras Completas. Lima: SUR, 1994; MARC BECKER, Mariátegui y el problema de las razas en América Latina, Revista Andina, Lima, n. 35, jul. 2002, p. 191-22. 343 Pesce relaciona o problema da “inferioridade” de alguns povos com a necessidade dos colonialistas e imperialistas de justificarem a sua dominação. E completa: “a exploração dos indígenas na América Latina trata também de justificar-se com o pretexto de que serve a redenção cultural e moral das raças oprimidas” (MOVIMENTO..., 1929, p. 163). Como o informe de Siqueiros sobre a questão camponesa e os próprios debatedores do VI Congresso, os peruanos rejeitaram a ideia do progressivismo e analisaram a conquista e o domínio imperialista como um retrocesso. Nos Sete Ensaios372, Mariátegui fala claramente que o feudalismo espanhol havia significado um retrocesso, uma interrupção do desenvolvimento do Peru nativo. As teses apresentadas por Codovilla e Humbert-Droz comungavam de uma perspectiva similar, e utilizavam a palavra “deformação” para qualificar a penetração imperialista. Por “deformação”, ficava implícita a ideia de que as economias nativas haviam sido interrompidas e “deformadas” pela intervenção estrangeira, não sendo possível seguir pelo caminho “clássico” que o capitalismo havia trilhado nos países da Europa Ocidental. A revolução democrático-burguesa, dirigida pelo proletariado, fazia parte de um programa mínimo, imediato, que mobilizaria as massas camponesas (e indígenas) em aliança com setores radicalizados da pequena burguesia, para se alcançar o socialismo. Não eram duas revoluções, mas uma que começava com reivindicações democrático-burguesas (liquidação do feudalismo e libertação do imperialismo) e logo passava para as medidas de transformação socialista373. Alguns autores que trataram a obra de José Carlos Mariátegui confundiram a perspectiva progressivista e o tratamento eurocêntrico que alguns membros da II Internacional desenvolveram em relação ao tema colonial, com a tese da revolução democrático-burguesa expressa pela Internacional Comunista374. Para esses autores, a simples existência do termo feudalismo ou servidão automaticamente relaciona a uma 372 MARIÁTEGUI. Siete Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana. In: _______. Mariátegui Total. Lima: Minerva, 1994. 373 Nas resoluções do VI Congresso da IC, estão publicados alguns fatores necessários para a transição da fase democrático-burguesa para a socialista na revolução em países coloniais e semicoloniais: “A transição da revolução à fase socialista requer a existência de um mínimo de pressupostos, como, por exemplo, certo nível de desenvolvimento industrial do país, de desenvolvimento sindical do proletariado e um forte PC” (VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA, 1977, p. 206). 374 Löwy cita na introdução de seu livro Marxismo na América Latina, que no final dos anos 20 as “teses stalinistas”, “evolucionistas” e “etapistas” estavam começando a se disseminar na América Latina, e que, por outro lado, Mariátegui “insistia implicitamente na fusão histórica entre as tarefas socialistas e democráticas no Peru”. (LÖWY, 2006, p. 19). 344 perspectiva “etapista”, positivista e evolucionista da história, em que os modos de produção seguem uma lógica simplista, rígida e estática, na sequência: escravismo, feudalismo e capitalismo375. Como Mariátegui, a IC chegava ao final da década de 1920 com a ideia de que o imperialismo representava o atraso, aliava-se às classes mais retrógradas (o feudalismo) dos países coloniais e semicoloniais, e “deformavam” o desenvolvimento das sociedades periféricas com empresas (rurais ou urbanas) que, embora se relacionassem com o mercado capitalista internacional, reproduziam formas de trabalho retrógradas, servis e ainda mais opressivas que as existentes nas colônias antes da chegada dos europeus. No informe de Siqueiros, anteriormente tratado neste texto, essas empresas eram denominadas como a “Gran Hacienda” e foram tratadas sob a mesma lógica que a delegação peruana. No informe de Hugo Pesce, o problema indígena se relacionava ao problema feudal do altiplano andino. “Chamamos problema indígena a exploração feudal dos nativos na grande propriedade agrária.” (MOVIMENTO..., 1929, p. 267). Por ser a questão racial e indígena um problema que se relacionava à condição de classe dos camponeses (ou servos) da grande fazenda (gamonal) feudal, a solução estava pautada pelo mesmo programa que atendia a questão camponesa, a revolução agrária (ou seja, a liquidação do feudalismo), parte da revolução democrático-burguesa, nos moldes do IV Congresso da IC. O papel importante que as comunidades indígenas poderiam cumprir para avançar mais rapidamente ao socialismo é retirado do VI Congresso, segundo Pesce. O VI Congresso da IC tem assinalado uma vez mais a possibilidade, para os povos de economia rudimentar, de iniciar diretamente uma organização econômica coletiva, sem sofrer uma larga evolução pela qual tem passado outros povos. Nós acreditamos que, entre as populações “atrasadas”, nenhuma como a população indígena incásica reúne condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e em um profundo espírito coletivista, se transforme, sob a hegemonia da classe proletária, em uma das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista. (Ibidem, p. 279). 375 Para muitos autores, a equação constando: socialismo peruano revolução democrático-burguesa, Ayllu andino e feudalismo gamonal foram imprecisões e resquícios de diversas influências, sem uma relação plena e estrutural no pensamento de José Carlos Mariátegui. Esse tema precisa ser mais bem explorado pela historiografia, já que existem muitas confusões acerca do que Mariátegui entendia por revolução democrático-burguesa e revolução socialista. 345 O informe apresentado pela delegação peruana refletia também a luta política que o grupo do Partido Socialista Peruano (futuro PCP) enfrentava no Peru. Por manter muitos vínculos com intelectuais, participarem dos congressos indigenistas e terem se originado em meio a APRA, o debate em torno da questão indígena precisava marcar seu aspecto classista em oposição às soluções liberais, institucionais (filantrópicas, como denominava Mariátegui) ou de valorização folclórica da cultura indígena. Esse era um debate particular dos peruanos com os intelectuais democráticos de seu país. Mariátegui insistia com a posição de que o problema dos índios, e também da população negra que vivia na pobreza em outros países, era uma questão de classe, fruto da opressão feudal e capitalista, sobre as classes trabalhadoras, que em determinadas condições assumia aparência de raça. O informe seguia descrevendo e diferenciando o problema de raças em algumas categorias, como índios “incásicos e astecas”, “silvícolas”, “negros” e concluía afirmando que “os indígenas e negros estão, em sua grande maioria, incluídos na classe dos operários e camponeses explorados, e formam quase a totalidade da mesma.” (Ibidem, p. 269). Não vamos tratar o conjunto dos informes em seus detalhes, que são muito longos e estenderia demasiadamente este trabalho, mas cabe destacar que o restante do tratou de uma análise histórica da formação do problema das raças no subcontinente, detalhando a situação econômica dos indígenas negros e mestiços e o caráter desta luta. Ao fim, conclui e aponta as tarefas para o movimento comunista latino-americano. O informe destaca que a questão indígena se relaciona ao problema da terra e que no caso das comunidades “os índios têm arraigado hábitos de cooperação, mesmo que da propriedade comunitária se passe à propriedade individual”. (EL MOVIMIENTO, 1929, p. 263). O destaque para o papel socializador das comunidades indígenas não era uma novidade dos peruanos. A crença de que a prática comunal de algumas populações camponesas e/ou indígenas podia ajudar e inspirar o socialismo pode ser encontrada em Marx, Rosa Luxemburgo, Ricardo Flores Magón, mas também no VI Congresso da IC, em que foi destacada essa possibilidade de se aproveitar as tradições comunais na passagem da revolução democrático-burguesa ao socialismo376. As resoluções da ICCLA destacaram a possibilidade de se aproveitar o espírito coletivo dos camponeses e indígenas para a sociedade socialista. 376 A intervenção da delegação latino-americana e a de Humbert-Droz trataram do comunalismo agrário dos camponeses e indígenas latino-americanos no VI Congresso. Cf.: VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA, 1978. 346 [...] existe muito arraigado um hábito de trabalho e a repartição em comum dos produtos. É essa, repetimos, uma condição favorável e nossa propaganda deve encaminhar-se a estender o sentimento de exploração coletiva todas às camadas camponesas, já que essa será a forma que deverá influenciar a exploração agrícola dentro de um regime proletário. (LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA, ago. 1929, p. 21). O debate sobre o informe da delegação peruana levantou uma polêmica a partir da intervenção de Peters, que enxergou na intervenção da delegação peruana uma subestimação do aspecto nacional do problema das raças. Segundo algumas interpretações, a intervenção de Peters representaria a posição da IC em relação à questão de raças e estaria oposta uma posição peruana que teria visto o problema de raças como um problema de classes. Examinando os meandros do debate em relação às formulações que foram aprovadas na ICCLA, podemos perceber que, embora a intervenção de Humbert-Droz ressalte a importância deste debate sobre nacionalidade e classes no debate sobre as raças, essa foi uma falsa polêmica, e, embora exista a posição de Peters, esta não representava as resoluções da IC. Humbert-Droz, que representava na ICCLA o CEIC, faria uma composição, afirmando que: Camaradas, é a primeira vez que abordamos o problema de raças em uma conferência da IC. Quando nossos delegados da América Latina estiveram em Moscou, ao se discutir os problemas de seus respectivos países, havíamos colocado sempre o problema das raças. Intuíamos, na América Latina, um complicado problema das raças, e por isso nosso interesse em nos documentar sobre suas características. Mas quase todos os companheiros respondiam a nossas demandas com o argumento sempre repetido, de que na América Latina não havia conflitos de raça. [...] afirmando que nas repúblicas latino-americanas não existiam os prejuízos raciais que se manifestavam nos Estados Unidos e na África do Sul. [...] Os debates do Congresso Sindical de Montevidéu, e, sobretudo, os desta Conferência, nos demonstraram claramente, não só que existe na América Latina o problema de raças, senão que é de uma extrema complexidade: intimamente ligado ao problema social da terra, ao passado histórico da América Latina, realizado sob a base de uma conquista violenta, da escravidão e da servidão, do problema de idiomas e das diversas nacionalidades indígenas das diferentes regiões, da existência de três raças e de um número considerável de mestiços e de “criollos”, da pérfida política do imperialismo que fomenta as debilidades entre as raças, para poder explorar melhor. Existe então o problema social, o nacional e o racial propriamente dito. (EL MOVIMIENTO, 1929, p. 311). 347 A posição dos peruanos não foi contra, por princípio, à luta dos indígenas por sua autodeterminação, desde que estivessem dentro de um desenvolvimento histórico e em uma real unidade nacional, que para eles não seria o caso dos indígenas da Sierra peruana. (Ibidem, p. 313). Por outro lado, não encontramos nas resoluções do VI Congresso da IC nenhuma tese que aponte, categoricamente, para a questão indígena na América Latina como questão nacional. Embora, como na questão negra nos EUA e na África do Sul, as resoluções admitam que se lute por autodeterminação e até pela formação de um Estado negro independente377. O Informe de Hugo Pesce contou com adendos do delegado brasileiro (Leôncio Basbaum), que reproduziu um erro comum entre os movimentos da esquerda brasileira até a década de 1980: subestimar o racismo contra os negros como se tratasse de uma questão de classe, apenas378. Humbert-Droz, percebendo as dificuldades em se estabelecer uma linha clara para o problema de raças, sendo essa questão tratada pela primeira vez nessa conferência, propôs que não se votasse uma resolução definitiva, e se publicassem as teses em La Correspondência Sudamericana e assim continuassem o debate. A tese da delegação peruana foi publicada em La Correspondencia Sudamericana379, e nas resoluções da ICLA foi elaborado um texto, assinado por Droz, em que apresentava a questão de raças sem opor nenhuma das posições debatidas durante a ICCLA. “Devido à carência de estudo prévio da maioria dos PCs sobre o problema das raças, não foi possível elaborar uma tese de caráter continental com a amplitude e precisão que tão fundamental problema requer.” A partir do pressuposto de que o problema racial se assentava na condição semicolonial e feudal dos países latino377 Cf. VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA. Informes y Discusiones, Cuadernos de Pasado y Presente. México: Pasado y Presente, 1978. v. 67; VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA. Primera Parte. Cuadernos de Pasado y Presente. México: Pasado y Presente, 1977. v. 66. 378 Essa subestimação sempre esteve fundamentada pela comparação com o racismo ostensivo estadunidense ou sul-africano, em que existiam leis e medidas oficiais de segregação. De fato, no Brasil não existiram desde a tardia “abolição” da escravidão, em 1888, leis de segregação. Mas todos nós, brasileiros, sabemos que até que se popularizassem as leis antirracistas e que as manifestações de racismo explícito fossem criminalizadas, já no século XXI, zeladores dos prédios das áreas nobres da cidade do Rio de Janeiro indicavam o elevador de serviço aos negros, bem como foi comum xingarem negros com palavras como macaco e coisas do gênero. Até hoje, o cabelo crespo dos negros é o “cabelo ruim” e segue sendo alisado com agressivos produtos químicos baseados em formol. 379 LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el Secretariado Sudamericano de la Internacional Comunista: Buenos Aires. nº 15, Ago 1929. Disponível em: <www.memoriavermelha.com>. Acesso em: 25 fev. 2012. 348 americanos, seguia colocando o problema dentro da tática para os países coloniais e semicoloniais: Ao encarar este problema afirmamos o direito da raça indígena e negra ao livre desenvolvimento de sua cultura racial própria; mas afirmamos em primeiro lugar a necessidade de uma luta de reivindicações econômicas, em particular, agrárias, e o dever que os PP CC têm de orientá-la no sentido da luta de classes, a fim de que no curso das revoluções democrático-burguesas massas indígenas ou negras, camponesas e proletárias, lutem ao lado do proletariado mestiço ou branco pela abolição da feudalidade, o abatimento total do imperialismo e preparem o advento ao poder dos operários e camponeses. (HUMBERT-DROZ, 1929, p. 26)380. Como fica claro nessa síntese de Humbert-Droz, cumpre um papel-chave, para compreendermos o debate dos comunistas, a lógica da tática de aliança com as classes não proletárias para a revolução democrático-burguesa, e como os comunistas imaginavam passar dessa fase à revolução socialista. Esse modelo é válido do final da década de 1920, até pelo menos o início do período das frentes populares antifascistas em meados da década de 1930. Através dos debates sobre as alianças e as composições de classe que se desenvolveram as lutas políticas do início da década de 1930, construíram-se as organizações dirigidas pelos comunistas e se planejou a Revolução na América Latina. Figura 79 - Capa do Jornal El Machete expondo a ruptura entre comunistas e Sandino. 380 HUMEBERT-DROZ, Jules. Proyecto de Tesis sobre el problema de las razas. LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA, Quincenal editada por el Secretariado Sudamericano de la Internacional Comunista, 2ª época, Buenos Aires, n. 15, ago. 1929, p. 26. 349 Conclusão Ao nosso ver, estudar o movimento comunista na América Latina, e particularmente no Brasil, cumpre um sentido mais amplo que simplesmente apresentar a história das organizações que fizeram parte da história dos países em questão. Estudar o movimento comunista na década de 1920, a primeira década do marxismo-leninismo no continente, quiçá, verdadeiramente a primeira década do próprio marxismo na região, já que os grupos marxistas antes de 1917 foram efêmeros, e não produziram análises das realidades nacionais importante, significa estudar as primeiras interpretações marxistas das realidades latino-americanas381. É inegável que o marxismo é o método de análise da realidade mais significativo e influente do século XX, que, junto com o liberalismo, dominou todo a atmosfera intelectual e política de nossa época. É impossível entender o século XX sem minimamente compreender diversos conceitos e a própria metodologia que os marxistas empregaram para compreender a realidade em que viveram. Os próprios livros de história didáticos são tributários, em maior ou menor grau, a uma perspectiva marxista da história. Para o terceiro mundo, e particularmente para a América Latina, o marxismo chegou após a agitação anarquista-sindicalista, e com todos os elementos que fundamentam a utilização do termo marxismo-leninismo. Ou seja, o marxismo na América Latina é o marxismo refundado pela experiência da Revolução Russa, é o marxismo-leninismo. Nosso trabalho procurou demonstrar como o marxismo-leninismo se construiu na América Latina, e como os primeiros comunistas se apropriaram do método para compreender as suas realidades. Toda nossa pesquisa buscou colocar os homens com os seus nomes no contexto das lutas políticas em que estavam inseridos, e dessa maneira, partindo dessa realidade, como esses homens foram produzindo as primeiras interpretações marxistas da realidade latino-americana. A primeira tarefa que nosso trabalho de pesquisa buscou enfrentar foi elevar a capacidade de acesso e controle das fontes, já que desde a primeira década do século 381 Temos pleno conhecimento da produção de Manuel Bonfim, de Juan Justo, ou mesmo de outros socialistas latino-americanos, mas consideramos que, embora sejam considerados como primeiros marxistas na América Latina, seus trabalhos não se perduraram ou influenciaram as gerações posteriores em relação ao conteúdo, propriamente dito. 350 XXI ao menos, contamos com a possibilidade de digitalização e compartilhamento de muitos materiais antes restritos às grandes empreitadas, financiadas com bolsas quase inacessíveis para o pesquisador comum, ou bastante restritas. Buscamos dominar todo o processo de digitalização, entramos em contato com diversos centros de memória operária em diversos países. Fomos à Holanda, no Instituto de História Social, passamos pela Rússia, ficamos vários meses no México, estivemos por três vezes no Peru, particularmente na Casa Museu Mariátegui, e por diversos centros de memória operária do Brasil, como o AMORJ, o CEDEM e o Arquivo Edgard Leuenroth em Campinas. Com esse trabalho com as fontes, começamos a organizar as fontes cronologicamente e por assunto, de forma que, a partir desse material, pudéssemos encontrar algum modelo explicativo para tornar o contexto de produção das primeiras interpretações da realidade latino-americana inteligível. Inicialmente, Löwy, Aricó, Paris, Verdugo, Del Roio e outros autores conhecidos por tratarem do tema Comunismo na América Latina figuraram como nossas principais referências para a estruturação de um modelo que explicasse como se construíram as primeiras interpretações marxistas da América Latina, centradas no Brasil, México e especialmente no Peru de José Carlos Mariátegui. Obviamente, diversos textos desses autores nos serviram de base para nos situar nas fontes, na cronologia e assim conseguir organizar a imensidão de materiais que havíamos recolhido, e, ao longo do processo de análise das fontes, diversas hipóteses foram se confirmando, outras, caindo por terra, apontando dúvidas e questionamentos sobre os modelos explicativos utilizados pela historiografia citada acima. A primeira questão fundamental que nossa tese precisava resolver era explicar os antecedentes dessas primeiras interpretações marxistas. Primeiramente, tentamos encontrar a “originalidade”, particularmente de Mariátegui, em autores indigenistas, em tradições camponesas, quéchuas, astecas, aimarás etc. O muralismo parecia conter esse mesmo elemento cultural “original” que elevava a importância da obra de Mariátegui na bibliografia consultada. Esse elemento “nativo” da América Latina era uma sedutora explicação para as particularidades latino-americanas entre os primeiros marxistas da década de 1920. Essa interpretação de Mariátegui, e também do muralismo, estava muito na moda quando começamos a pesquisa, e nos debruçamos sobre a história peruana e mexicana para encontrar os laços que uniam marxismo com tradições nativas. Encontramos muito pouco, e as próprias propostas de análise nesse sentido não eram 351 consistentes em explicar a partir de um elemento cultural ou das tradições a particularidade do marxismo latino-americano. Embora fosse possível perceber uma estética indigenista nas ilustrações de Amauta, ou mesmo um conjunto simbólico surgido com o agrarismo mexicano presente nas fotos de Tina Modotti, ou mesmo nos murais de Diego Rivera, os elementos culturais não possibilitavam a construção de um modelo explicativo para aquele conjunto de interpretações marxistas da realidade latinoamericana. Uma das possibilidades que poderiam demonstrar um forte aspecto particular latino-americano era um típico e resistente comunalismo latino-americano, o ayllu nos Andes, e o ejido no México. Parecia estar aí o elemento de singularidade que uniria essas primeiras interpretações marxistas da América Latina, e ambas as formas comunais de organização dos camponeses tinham relações de hereditariedade com um tipo de comunalismo pré-colombiano, que daria toda uma lógica antieurocêntrica para a “heterodoxia” que Löwy, Paris, Aricó e Galindo tanto identificavam em Mariátegui. Esse caminho latino-americano do marxismo era muito sedutor, uma possibilidade muito estimulada pela nova “esquerda”, que na primeira década do século XXI crescia na América do Sul e, particularmente, no Brasil, após a chegada do PT na presidência. A tese do comunalismo tradicional já possuía alguns intérpretes que exploravam o movimento revolucionário liderado por Zapata em Morelos, a partir da defesa da comunidade, da propriedade ejidal, tradicional e indígena, como motivador da rebelião. Womack (1999)382, um dos mais importantes autores que trataram do tema Zapata em Morelos, inicia o seu livro com um trecho que nos indica a defesa do passado como motivador inicial da rebelião. Ao ler o conteúdo do livro, vai se percebendo que, embora Womack encontre na situação política regional de Morelos o estopim da rebelião zapatista, seu texto está longe de relacionar o zapatismo com os Calpullis ou com os Ejidos. Mas existiram outros artigos, que embalados pelo que entendiam sobre o fenômeno zapatista em Chiapas, relacionavam Emiliano Zapata com indigenismo, defesa da propriedade comunal, o ejido383. Não era absolutamente falsa essa linha de explicação, já que o próprio agrarismo mexicano oficial foi um grande promotor da ideia do ejido como 382 WOMACK JR., John. Zapata y la Revolución Mexicana. México DF: Siglo Veintiuno, 1999. Uma informação pouco citada pelos que veem na questão agrária latino-americana um tradicionalismo indígena e relacionam rebelião camponesa com herança indígena: o ejido é um termo espanhol, e não mesoamericano, e, mesmo que ressignificado na América, a existência do termo demonstra que o comunalismo foi comum durante o período medieval-moderno espanhol. 383 352 forma de propriedade camponesa revolucionária. No Peru, o retorno ao Império Inca também animou muitas das lutas camponesas anteriores ao movimento comunista, colocando a defesa da terra comunal, os indígenas e o Ayllu como um elemento muito interessante para se pensar uma possível originalidade para as primeiras interpretações do marxismo latino-americano, algo bastante “heterodoxo”, e que confrontado com as teses exportadas da Europa valorizariam nossos primeiros marxistas latino-americanos, trazendo à tona a origem do estupendo valor de suas teses, particularmente do Amauta peruano, José Carlos Mariátegui. Embora parecesse promissor encontrar uma prática “comunista” entre os indígenas latino-americanos, e logo perceber que os primeiros marxistas do continente se ligaram a essa tradição comunal como fonte de inspiração para as suas primeiras interpretações marxistas da realidade latino-americana, as fontes negavam essa premissa. Quanto mais líamos e relíamos os textos “ortodoxos” do movimento comunista, as orientações da Internacional Comunista, as interpretações que gradativamente foram formuladas nos partidos comunistas, mais similaridades encontrávamos com os mais “heterodoxos” marxistas latino-americanos, particularmente os agraristas vermelhos da Liga Nacional Camponesa, os murais de Diego Rivera e Siqueiros, e, principalmente, a obra de Mariátegui. Cada vez mais nos parecia que a bibliografia em que estávamos nos baseando estava mais envolvida em rechaçar o que ela imaginava como sendo a “ortodoxia stalinista”, mais preocupada em opor Mariátegui, Rivera, Tina Modotti ou Julio Mella aos “burocratas da Comintern” que em compreender o debate no movimento comunista e o conteúdo teórico produzido por esses primeiros marxistas latino-americanos. Enquanto avançávamos na pesquisa, tornava-se mais claro que existiam pouquíssimos estudos comparativos entre duas ou mais seções da Internacional Comunista. Cada autor estudava seu país, ou um país a sua escolha, e geralmente estava envolvido com alguma posição na esquerda, que naturalmente o levava a realçar alguns aspectos do processo de formação dos partidos comunistas latino-americanos384. 384 Verdugo (1985), por exemplo, foi dirigente durante anos do PCM, e ao final da década de 1970 o PCM estava promovendo alianças amplas com os partidos que compunham o Estado mexicano. O seu livro, História do comunismo mexicano, encontrava um aliado estratégico importante para os comunistas, que ele denominava com o conceito de “democratas-revolucionários”, que agruparia, por exemplo, Adalberto Tejeda, o governador de Veracruz, um dos motivos de ruptura entre Galván e a direção do PCM que seguiu a linha da Internacional Comunista. Verdugo, antes de publicar esse livro, era secretário-geral do 353 Desse modo, nossa pesquisa se voltou novamente para o movimento comunista e o modelo que se utilizava para explicar a sociedade latino-americana. Muitos artigos simplesmente taxavam a “ortodoxia”, o “sectarismo”, o “positivismo” e o “eurocentrismo” destas formulações, de modo que, sem se compreender exatamente a lógica do modelo “stalinista” da Internacional Comunista, já se afastava qualquer possibilidade de que houvesse uma relação entre teoria e prática comunista, e essa relação fosse uma importante fonte para se explicar a dinâmica dos partidos comunistas. Fazendo um caminho distinto da bibliografia mais conhecida e citada, procuramos as fontes primárias mais básicas do movimento comunista, as teses e os textos clássicos do marxismo-leninismo, os que eram divulgados na América Latina, as resoluções, debates, análises e programas dos Congressos da IC e os documentos da IC dirigidos aos partidos comunistas latino-americanos, entre 1919 e 1930. Para a nossa surpresa, essas fontes haviam sido muito pouco exploradas com seriedade. Ao começar a organizar a cronologia do movimento comunista, organizando as lutas políticas, o significado dos conceitos e os fatos, diversos autores muito citados erravam grosseiramente. Um bom exemplo é o tradicional conceito de burguesia nacional, conceito fundamental no movimento comunista para explicar as táticas em países periféricos. Não se pode citar uma declaração de Prestes em 1946 sobre a aliança com a burguesia nacional e sua composição social e compará-la com a análise de burguesia nacional que se fez durante a perseguição de comunistas em Shangai em 1927. Tanto a realidade nacional chinesa é diferente da brasileira como os contextos são diferentes, e a própria Internacional Comunista fez diversas retificações ao longo do tempo em relação ao conceito de burguesia nacional. Enfim, os conceitos são dinâmicos e fazem parte de uma luta política circunscrita a determinadas situações. Se não tratarmos com seriedade os debates do movimento comunista, corremos o risco de enormes erros de anacronismo. E o anacronismo foi muito comum, particularmente pelos autores que procuraram estudar o movimento comunista imbuídos de uma motivação ideológica típica da época da Guerra Fria, e que tratava a atividade comunista como espionagem russa. Não é por outro motivo que alguns autores, como William Waack, denominem os comunistas como “agentes da Comintern”385 e sempre PCM, e seria o líder do processo de dissolvição do Partido Comunista no Partido da Revolução Democrática, legenda eleitoral formada pela chamada “ala esquerda” do Partido Revolucionário Institucional, com outras organizações socialistas e o que havia sobrado do PCM. 385 William Wack escreveu um livro sobre o Levante de 1935, e participou do filme O Velho, que trata da 354 tratem a documentação disponibilizada nos Arquivos Russos como se tratassem de segredos de um tipo de agência de espionagem, quando, na verdade, a Internacional Comunista era mais um órgão de orientação ideológica, política e também, naturalmente, de conspiração revolucionária. Mas, sem entender o debate políticoideológico no interior da IC, tende-se a cair em um jogo de “revelações” dos “arquivos secretos”, que lembram mais os ufólogos em busca dos segredos dos Ovnis nos arquivos da Cia que um trabalho histórico de investigação sobre o movimento comunista. O conceito de “stalinismo”, “stalinização” e até “staliniano”386 é utilizado sem que se tenha a mínima preocupação em se definir exatamente ao que esse conceito se refere, de modo que, com referência à URSS da década de 1980, tentou-se compreender a “burocracia stalinista” do V Congresso da IC, em 1924. Em meio a tanta injúria, o movimento comunista se torna algo tão caricaturesco que nem sequer merece uma análise do debate que reuniu Congressos, plenos, milhares de reuniões e publicações. Em meio a caricaturas, a lógica doutrinária produzida pela IC vai perdendo sentido para qualquer pesquisador. Tudo se transforma em um simples “reducionismo-europeístatotalitário-positivista-stalinista”, que se resume em termos como “ortodoxia”. Ao fim, o historiador desatento acaba sendo levado a supor que todos os debates da Internacional Comunista, todos os conceitos e definições programáticas não passaram de instrumentos bastante abstratos com que se dava a disputa pelo poder no Partido Comunista da URSS. Ao fim, todos os debates serviam apenas para que Stalin e os “stalinistas” manejassem os expurgos e os assassinatos dos líderes mais democráticos do movimento comunista, até que a tirania e o totalitarismo dominassem todos os poros do movimento vida de Luiz Carlos Prestes. Nesse documentário, ele utiliza a expressão “agentes” seguidamente, para se referir aos comunistas. A Doutrina de Segurança Nacional criada pela Ditadura Militar no Brasil costumou utilizar esse termo, “agentes” do comunismo, para justificar a repressão política. Waack foi recentemente apontado em alguns cables publicados pelo Wikileeks como um contato importante do governo dos EUA no Brasil. Ver: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: 27 out. 2011. Disponível em: <http://www.jb.com.br/informe-jb/noticias/2011/10/27/wikileaks-william-waack-da-globo-e-citado-tresvezes-como-informante-dos-eua.> Acesso em: 23 mar. 2014 e também SOUZA, Hugo. “WikiLeaks mostra mídia brasileira a serviço do USA” In A Nova Democracia, ano X, nº80, Rio de Janeiro: ago 2011. Disponível em <http://www.anovademocracia.com.br/no-80/3596-wikileaks-mostra-midia-brasileira-aservico-do-usa> Acesso em 27 mar. 2014, 386 Ricardo Antunes, em um artigo, utiliza o termo “staliniano”, junto com “stalinista”, sem apresentar alguma justificativa para essa diferenciação. Supomos que stalinista se refira ao próprio Stalin, e staliniano aos seus seguidores. Ver: ANTUNES, Ricardo. “Os comunistas no Brasil: as repercussões do VI Congresso da Internacional Comunista e a Primeira inflexão stalinista no Partido Comunista do Brasil (PCB)” In Cadernos do AEL, nº2, Campinas: 1995. 355 comunista. Essa perspectiva é tão forte na historiografia latino-americana que a investigação sobre a lógica doutrinária do movimento comunista acabou ficando em um plano secundário para qualquer modelo explicativo. Nossa pesquisa foi gradativamente se libertando desse pressuposto de que havia disputas pessoais que determinavam o debate no interior do movimento comunista, e nos debruçamos cada vez mais sobre os modelos teóricos que os comunistas manejavam em cada momento, levando a sério seu esforço de compreensão da realidade que procuravam transformar. E, a cada vez que uma peça do quebra-cabeça ia se encaixando, percebíamos que embora fosse uma peça grande, disponível entre as outras, parecia esquecida em um canto pela historiografia que tratou do movimento comunista e que dominava o tema nas universidades ocidentais desde a década de 1980. Decidimos trilhar por um caminho que outros já haviam trilhado, mas um caminho que desde a queda do muro de Berlin e o fim da URSS havia sido abandonado pela historiografia. Não iríamos repetir qualquer história política limitada pela crítica à propaganda soviética da década de 1980. Logo no primeiro capítulo, introduzimos uma premissa um pouco diferente da historiografia dos partidos comunistas do Brasil, Peru e México, ao negar qualquer busca de hereditariedade entre o movimento comunista latino-americano e a 2ª Internacional, ou, genericamente, o socialismo. Comparando os três países, ficou claro que a hipótese muito repetida na historiografia brasileira, de que a formação do PCB havia sido diferente da experiência de formação dos PCs em outros países latinoamericanos pela influência do anarquismo e do sindicalismo estava incompleta e não explicava-se. Os três países estudados haviam passado por uma experiência muito parecida em relação à formação inicial do Partido Comunista. No Brasil, era claro que os primeiros comunistas provinham de um movimento operário muito influenciado pela agitação sindicalista e anarquista, bastante eclético, é verdade, mas não poderíamos afirmar que os mais entusiasmados com a Revolução Russa provinham do movimento socialista. Como afirma em suas memórias Everardo Dias387, diziam-se revolucionários, e, naquele período, revolucionário era uma amálgama de influências da agitação anarquista, e não socialista. No Peru, os grandes animadores das lutas do movimento operário eram 387 DIAS, 1977, p. 34-5 356 anarquistas, muitos influenciados pelas ideias propagadas no jornal anarquista La Protesta. No México, onde a estrutura inicial havia sido organizada a partir de um Congresso Socialista, que havia sido convocado pelo Partido Socialista, tinha-se tudo para apresentar um processo distinto do PCB e do PCP, ou seja, ao menos no México haviam sido os socialistas que teriam criado o PCM. Quando nos aprofundamos um pouco mais, percebemos que a dinâmica de organização, mobilização e a forma com que receberam a Revolução Russa não tinha nenhuma relação com o socialismo da 2ª Internacional, mas expressava as organizações com as mesmas perspectivas que animavam os anarquistas fluminenses da COB, ou o movimento operário de Lima. Foi então que passamos a compreender as diferenças entre anarquistas (ou revolucionários, como se autodenominavam os ativistas da COB no Rio de Janeiro) e os socialistas. E Aricó nos fornecia a explicação mais lúcida para essa proeminência do anarquismo em detrimento do socialismo na América Latina. Denominamos como “A hipótese de Aricó”, ou seja, a predominância do anarquismo se explicava pela estrutura oligárquica dos Estados latino-americanos, que, impossibilitando qualquer acesso ou participação política das classes populares, acabava favorecendo os anarquistas em detrimento dos reformistas no movimento operário, particularmente em momentos de crise e entre os mais ativos trabalhadores. O socialismo pré-leninista388 se limitou a uma parte da intelectualidade de maneira restrita a uma atividade sociológica e quase limitada a um tipo acadêmico. Como doutrina antioligárquica e moderna, prevaleceu desde o principio do século o liberalismo, e, através dos imigrantes e do movimento operário, chegou-se ao anarquismo de inspiração em autores como Kropotkin e Bakunin389. A partir da primeira década do século XX, começam a aparecer importantes rebeliões na América Latina, que foram tratadas com termos pejorativos pela historiografia dominante (“milenaristas”, “fanáticos” etc.). Tratavam-se de rebeliões rurais, geralmente de caráter local e guiadas por um apelo religioso forte. No Brasil, foram guiadas por líderes religiosos, como Antônio Conselheiro (Canudos) e José Maria (Contestado). Essas rebeliões rurais latino-americanas foram tratadas pela obra de Rui 388 Aqui nos referimos a realidade latino-americana. Dentro da 2ª Internacional existiam marxistas revolucionários, como Rosa Luxemburgo e os que fundaram o KPD alemão, e particularmente os bolcheviques. 389 É importante salientar que muitos anarquistas bakunisnistas e prodhonistas veem Kropotkin como um anarquista revisionista e não consideram o anarco-sindicalismo como uma corrente genuinamente anarquista. 357 Facó390 como uma resistência à desorganização social promovida a partir do impacto econômico, fruto da expansão do imperialismo, ou seja, a exploração de produtos como a borracha, madeira, café e a construção da infraestrutura necessária para o escoamento dessas mercadorias. No Peru e no México, ocorreram rebeliões rurais similares, e foram tratados como antimodernas, arcaicas e medievais pelos contemporâneos urbanos que faziam oposição aos governos oligárquicos desde uma perspectiva liberal. Os camponeses pobres latino-americanos não podiam encontrar alento nos críticos liberais, já que o discurso dessa oposição costumava se relacionar mais à crítica à falta de liberdades políticas que à transformação econômica da realidade de miséria dos camponeses. Os liberais que trataram do problema agrário geralmente defendiam a distribuição e o parcelamento das terras, ou o desenvolvimento técnico da produção agrícola como solução para o problema agrário, e, no caso mexicano, havia sido a própria legislação liberal utilizada para parcelar as propriedades tradicionais e favorecer a concentração de terras391. A modernização da expansão do capitalismo europeu chegou à América Latina desorganizando antigas formas de produção, legitimando-se a partir do discurso do “moderno” e do “progresso”, e encubando rebeliões rurais que, sem aliados entre os grupos marginalizados das cidades, se expressaram através de símbolos e demandas “tradicionalistas”. No Brasil, Conselheiro defendeu a monarquia e a Igreja contra a república, no Peru ressurgiu a busca pelo retorno dos Incas, e no México os investimentos eram maiores e o Estado Oligárquico mais forte. A rebelião camponesa somou diversas derrotas e repressões, até que explodisse na Revolução Mexicana, tornando os pequenos camponeses ou sem-terras um elemento central na situação política nacional, e no Estado pós-revolucionário. Apoiamo-nos em diversos estudos que relacionam expansão imperialista europeia e dos EUA com o Estado Oligárquico392 latino-americano, a desorganização do campo e as rebeliões rurais “milenaristas”. A partir do início do século XX, com o funcionamento das primeiras indústrias latino-americanas, começa a formação dos primeiros núcleos da classe operária 390 FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Gênese e lutas, Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. No caso do Estado de Morelos, o desenvolvimento da produção açucareira no período porfirista foi detalhadamente estudado por Horácio Crespo, e nos fornece uma importante análise das transformações econômicas dessa indústria, que somam-se a outras análises da situação política morelense, como a obra de Woomack e Katz, que nos ajudam a explicar a rebelião zapatista a partir de 1910. Ver: CRESPO, Horácio. Modernización y Conflicto Social. La Hacienda Azucarera em el Estaado de Morelos, 18801913. México: INEHRM, 2009. 392 Para a definição de Estado Oligárquico, entre outros, nos utilizamos de Cotler (2006) e Ansaldi (1992). 391 358 industrial nas principais cidades do subcontinente. Com o predomínio de trabalhadores imigrantes, muitos italianos, espanhóis, portugueses, poloneses e alemães chegam também, de maneira mais significativa, às ideologias que animavam a luta da classe operária europeia. O anarquismo ganharia parte da intelectualidade marginalizada nas repúblicas latino-americanas, potencializando a crítica e a agitação revolucionária em meio aos diversos setores descontentes destas sociedades. O proletariado latino-americano e urbano careceu de uma identidade regional, como todo o movimento operário. Seria do encontro entre anarquismo e o movimento camponês rebelado que surgiriam reflexões críticas acerca da realidade social no México e no Peru. Nossa investigação acerca das primeiras reflexões acerca da realidade mexicana e peruana a partir de uma crítica revolucionária do domínio oligárquico chegou aos dois primeiros críticos da ordem oligárquica, Ricardo Flores Magón, e, principalmente, Manuel González Prada, com o texto “Nuestros Indios”393. Embora imbuídos de um internacionalismo característico da tradição anarquista, foi a posição crítica radical desses dois anarquistas que possibilitou a primeira análise moderna do problema indígena no Peru associado ao problema nacional, e o tratamento do Estado Oligárquico e sua estrutura agrária como essenciais para a compreensão dos problemas nacionais mexicanos. No Brasil, os grupos anarquistas não tiveram nenhuma relação com as rebeliões rurais; no caso do Contestado, que aconteceu já na década de 1910, sequer encontramos alguma referência nos inúmeros periódicos do movimento operário. Em geral, o movimento operário radical brasileiro, antes da década de 1930, desprezou o campo e os camponeses, e sempre enxergou nessa população o atraso. Para um movimento extremamente anticlerical, nada mais atrasado que o campo brasileiro. Essa visão demoraria para ser superada. As ideologias radicais modernas aparecem na cidade, mas logo alcançam a luta camponesa e animam as rebeliões indígenas no Peru, bem como podem vincular-se, em termos gerais, à combatividade zapatista, particularmente em relação ao seu antiestatismo e autonomismo. Desenvolvemos essa ideia em relação à forma com que o Exército Libertador do Sul se relacionou com as várias esferas do Estado, e com sua desconfiança constante em relação ao poder, seu caráter corruptor e opressor. Quando as primeiras notícias da Revolução Russa chegam à América Latina, são 393 No primeiro capítulo, apresentamos todas as referências desse texto e González Prada. 359 recebidas de forma muito parecida. Primeiro com uma desinformação interessada através das agências de notícias europeias e norte-americanas, que noticiavam a queda do Tzar como uma revolução de cunho liberal, muito elogiosa à figura de Kerenski, e logo começaria a surgir o nome de Lenin, como um agente alemão. Por uma tradução francesa da época, os bolcheviques serão conhecidos nos países de língua latina como “maximalistas”, e começam a aparecer grupos e uniões de “maximalistas” por todas as partes. No Brasil, embalados pela ideia da tomada do poder, os revolucionários da COB que organizaram as greves de 1917, conspiram um “assalto ao poder”, que fracassa, e muitos são presos. A partir de 1921, os anarquistas vão se tornando cada vez mais críticos ao governo bolchevique, forçando definições no movimento operário, separando simpatizantes da Revolução Russa e críticos da ditadura do proletariado. Formam-se os primeiros partidos comunistas, a partir das 21 condições definidas no II Congresso da IC, as primeiras obras marxistas vão aparecendo no movimento operário, e o movimento operário vai vivendo momentos de descenso, enquanto trava batalhas ideológicas em torno de temas como “ditadura do proletariado”, participação no parlamento, formação de partidos comunistas etc. A partir de 1922 e principalmente 1924, há uma abertura política da política da IC em direção à formação de frentes únicas, que na América Latina iria se expressar não apenas na frente única no movimento operário, mas também na frente única com setores não proletários, principalmente os camponeses pobres e sem-terra e os setores médios da população (intelectuais, profissionais liberais, pequenos comerciantes, funcionários públicos e militares de baixa patente), que representavam a maioria da população na América Latina. Essa perspectiva frentista trazia para o jovem movimento comunista uma série de questões que ampliavam o universo analítico que se propunham a entender, e colocavam em uma perspectiva nacional a Revolução Social. Essa revolução não dizia respeito apenas à luta entre oprimidos contra os opressores, mas precisava compreender a realidade nacional, a composição das classes em cada realidade, as possibilidades de aliança, a um programa mínimo (que depois seria denominado como tática394). Em um primeiro momento, os primeiros comunistas latino-americanos se 394 Ao longo da década de 1920 os termos programa mínimo e programa máximo, se transformarão em tática e estratégia. Ou seja, o programa mínimo seria a tática e o programa máximo a estratégia na terminologia dos PCs. 360 preocuparam muito com a forma política das organizações que estavam criando. A primeira medida de definição do PCB, por exemplo, foi criar um estatuto para normatizar a vida do Partido. Mais tarde, com a superação do tradição anarquista de seus militantes, seriam aprovados os primeiros programas, e desses programas surgiriam as primeiras interpretações da história de cada país à luz do marxismo. Como é conhecido na historiografia, os textos de Marx apareceram muito tarde no Brasil, em português. A divulgação seria obra do próprio PCB. O Manifesto Comunista seria traduzido apenas em 1924. No México, as obras marxistas em espanhol estavam mais disponíveis, e o próprio Capital apareceria antes mesmo da virada do século395. De fato, o marxismo chegaria a partir da Revolução Russa, e seriam os próprios militantes comunistas os principais divulgadores da literatura marxista na América Latina e os primeiros a tentar utilizar o marxismo como método de análise da situação nacional e internacional. Essas interpretações não seguiram a trajetória dos estudos acadêmicos e foram sendo sistematizadas em meio à luta política que se dava no movimento operário internacional e às lutas que a própria dinâmica de construção dos grupos e partidos comunistas impunham. A luta por organizar o movimento comunista e lidar com os movimentos de massas foi impondo temas, debates, rupturas e expulsões. Em meio a essa tensa dinâmica política, que se desenvolve em um movimento de agrupamento e rupturas, produziram-se algumas das primeiras sínteses de interpretação das “particularidades latino-americanas”, e se analisou pela primeira vez a história latino-americana sob o prisma do marxismo. O segundo capítulo deste trabalho tratou destas interpretações da realidade mexicana nos contextos em que elas foram produzidas, primeiramente as duas principais experiências para além do proletariado no México, o movimento camponês influenciado pelos comunistas, denominado como Agrarismo Rojo (Vermelho), e o Movimento Muralista, a mais importante expressão artística modernista da América Latina, ao menos no período anterior à Segunda Guerra. Com a atuação nas Ligas 395 A primeira tradução em espanhol do Primeiro volume do Capital de Marx data de 1886, por Pablo Correa y Zafrilla, na Espanha. Essa tradução é pouco conhecida. Na América Latina, Juan Justo traduziria o Capital para o espanhol, e essa versão seria mais comum durante muitos anos. Um artigo de Pedro Ribas, “La primera tradicccion castellana de El Capital (1886-1887)”, esclarece a história do capital em espanhol. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/24684955335572617422202/210290_0057.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2014. 361 Camponesas, os comunistas precisaram tratar o problema agrário de uma forma mais detalhada; não seria apenas uma luta contra os opressores em aliança com os operários da cidade. Os comunistas precisavam formular um programa para a questão camponesa, e em meio aos primeiros governos pós-revolucionários. No México, a política comunista para os camponeses era particularmente complexa. Procuramos analisar os programas, contextualizá-los e explicar a dinâmica dos comunistas em meio a Liga Nacional Camponesa, e assim apresentar como foram sendo construídas as primeiras formulações marxistas acerca da realidade mexicana. Foram produzidos muitos textos que tentaram definir a complexidade da situação política nacional mexicana, mas não se produziu uma “obra síntese”, como aconteceria no Peru, com Mariátegui. Nesse sentido, foi criada a primeira interpretação artística modernista diretamente influenciada pela interpretação marxista da história, com a obra de Diego Rivera, na Secretaria de Educação Pública (SEP), entre os anos de 1923-1928, além das pinturas na Universidade de Chapingo e parte do plano da Obra do Palácio do Governo. A obra de outros muralistas, particularmente de Siqueiros e das irmãs Greenwood, poderiam servir como importantes fontes para analisarmos a interpretação marxista da história mexicana, mas foram produzidas na década de 1930, e por esse motivo nos limitamos aos murais de Diego Rivera produzidos entre 1922 a 1930, corte temporal deste trabalho. No Brasil, os dois principais dirigentes do PCB nos anos 1920, Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, escreveram o programa do PCB para o II Congresso, em 1925, e grande parte dessas teses foi sistematizada no livro de Octávio Brandão, Agrarismo e Industrialismo, com diversas limitações em relação ao manejo dos conceitos marxistas, reproduzindo superadas versões hegelianas da dialética marxista, mas o primeiro esforço de interpretação marxista da realidade brasileira. Com essa tese do agrarismo e industrialismo, o PCB começou a estabelecer as bases de sua aliança com os setores não proletários, mas que lutavam contra o estado oligárquico brasileiro. Os comunistas procurariam contato com o tenentismo, encontrando com Prestes por duas vezes antes da chamada “Revolução” de 30, que seria o primeiro passo para a cooptação desse que seria o principal líder comunista do Brasil, até ao menos a década de 1960. A comparação do movimento comunista mexicano e peruano com o brasileiro é interessante para demonstrar como o persistente obreirismo influenciou a direção 362 política do PCB, e como a aplicação de uma política de frente única com as classes não proletárias havia sido tentada sem que um programa claro para o conjunto do país pudesse colocar o PCB como uma alternativa para todas as classes marginalizadas pelo Estado Oligárquico. No Peru, procuramos compreender a trajetória de formação político-ideológica de Mariátegui, que trouxe o marxismo-leninismo ao Peru e que nos anos 1920 é responsável pela mais importante interpretação marxista da história de um país latinoamericano. Procuramos identificar o modelo interpretativo usado por Mariátegui em sua mais importante obra, Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana, publicado em 1928, e que pode ser considerada a primeira síntese elaborada pelo autor, posteriormente desenvolvida em dois textos que foram enviados para a I Conferência Comunista Latino-Americana, realizada em Buenos Aires, em 1929. A partir desses três eixos que podem ser considerados as primeiras interpretações marxistas no Brasil, no Peru e no México, estabelecemos algumas bases para compreendermos o debate mais complexo, que se deu no final da década de 1920, e marcou a intervenção mais efetiva da IC nas seções latino-americanas, e as rupturas que essa intervenção derivou. Esse processo foi, como já apontamos acima, simplificado com pejorativos anticomunistas, ou sob a explicação “da burocracia stalinista”, e a lógica doutrinária, minimizada, como se tratasse de uma simples imposição de esquemas e fórmulas retiradas de uma realidade europeia (ou russa), aplicada de maneira dogmática e mecânica, cheia de simplificações e imposições autoritárias. Procuramos compreender o significado dos V e VI Congressos da IC no que se refere à interpretação da realidade latino-americana, seu significado político, e desse entendimento procuramos identificar a natureza das rupturas dos anos 1928-30. A APRA de Haya de La Torre é o caso mais significativo, porque acabou tratando de questões de fundo pouco elucidadas pela historiografia, particularmente no Brasil. Confunde-se a tese de frente única com frente de partidos de “esquerda”, e frente com a social-democracia (que era uma questão europeia). Por outro lado, mistura-se o significado político do termo burguesia nacional antes de 1950, e depois, quando esse termo serviu para justificar alianças com os mais variados governos. Tentamos retomar as investigações que levavam a sério as polêmicas do movimento comunista, e particularmente o impacto da traição de Chang Kai Chek, em 1927, para o movimento 363 comunista e a forma com que compreendia suas alianças com os revolucionários nacionalistas dos países periféricos. Nossa pesquisa buscou compreender a dinâmica dos debates em torno da influência da IC, identificando o seu sentido e a forma com que cada seção latinoamericana estudada interpretou as “novidades” que chegavam pelos militantes latinoamericanos que desde 1927 participavam de encontros, congressos e eventos na URSS. É inegável que houve uma transformação radical nos partidos comunistas de todos os países a partir de 1929-30, que se consolidaria ao longo da década de 1930. Como referência, tivemos o próprio projeto do movimento comunista, ou seja, até que ponto o interferência da IC nos jovens PCs latino-americanos contribuíram com o desenvolvimento da Revolução Proletária Mundial no continente, e até que ponto significou uma política isolada, ineficaz e incorreta. Insistimos com essa referência, já que o teor das análises existentes na bibliografia geralmente julga negativamente esse período, mas muitas vezes esquece de determinar quais critérios estão sendo utilizados para julgar a política da IC. Deve-se colocar como referência a eficácia desses partido, o objetivos desses comunistas, e não o projeto e a concepção política do autor que escreve a história dos comunistas. Pode parecer secundário, mas sem termos claro que os comunistas não acreditavam na “democracia burguesa”, não tinham como objetivo a “aliança das esquerdas”, e queriam conquistar o poder para implantar a ditadura do proletariado, podemos estabelecer avaliações confusas acerca de diversos aspectos da História do Movimento Comunista. O que nos pareceu mais significativo em relação às dificuldades que os comunistas encontraram em seu caminho por conquistar o poder, estabelecer a ditadura do proletariado e colaborar com a Revolução Proletária Mundial – na seção nacional em que atuavam os comunistas peruanos, brasileiros e mexicanos – foi não conseguirem compreender a reestruturação dos Estados latino-americanos ao longo da década de 1920, no México, e ao longo das décadas de 1930, no Brasil e no Peru. Desde o surgimento dos primeiros Partidos Comunista da região, até 1930, há uma significativa mudança no Estado latino-americano e nas formas de organização da dominação política e da representatividade. O Estado mexicano é o primeiro a sofrer uma reestruturação, incorporando demandas populares, ao mesmo tempo em que os 364 caudilhos administravam o sistema de cooptação, corporativização e repressão, consolidando o poder e a institucionalização. Não foi raro, por isso, que os comunistas oscilassem, ora em uma política de ruptura com o Estado, ora em uma política de participação nas eleições e aliança com grupos das mais variadas matizes, a fim de ganhar espaço para a aplicação de um programa socializante. Toda conclusão de um trabalho, que nesse caso nos tomou quase 5 anos de reflexões e pesquisas, deve não apenas apresentar uma explicação conclusiva do assunto, mas também deve apontar para novas perguntas, e trazer novos desafios para futuras pesquisas. A nosso ver, o que de mais intrigante pode surgir desta tese para inspirar novas investigações é o problema da reestruturação dos Estados latinoamericanos a partir da década de 1920, e como os comunistas avaliaram a sua composição de classe, as possibilidades de aliança e disputa da hegemonia, e principalmente com quais ferramentas teóricas os marxistas contaram para compreender a nova realidade política que se abria nesse início do século. A Era Vargas, o Maximato e o Cardenismo, além do oncênio e os governo de Sanchez Cerro e Benavides traziam novas formas de dominação política, novas maneiras de lidar e controlar o movimento operário, e compreender essa nova realidade política seria chave para os comunistas alcançarem êxito. 365 Cronologia396: 1914 Junho – Assassinato do arquiduque da Áustria Francisco Ferdinando, marcando o início da Primeira Guerra Mundial 16-17/Julho – Fracassa a tentativa de unificação dos social-democratas russos em uma conferência 1-3/Agosto – Início da Guerra entre Alemanha e Rússia, depois entre França e Alemanha Outubro – Começo da Guerra nas trincheiras. 2/Dezembro – Liebknecht vota sozinho no Reichtag contra os créditos de guerra. 1915 Janeiro - Entrada de Pancho Villa e Emiliano Zapata na Cidade do México. Fevereiro – Pacto de Veracruz, a Casa del Obrero Mundial cria os Batallones Rojos para lutar ao lado dos constitucionalistas contra as tropas zapatistas. 10-13/fevereiro – Deputados Bolcheviques condenados ao exílio na Sibéria. 18/Fevereiro – Rosa Luxemburgo é presa. 28/Maio – Liebknecht distribui o panfleto “O inimigo está dentro de nosso país” Julho – Marines ocupam o Haiti 5-8/Agosto – Conferência Socialista Internacional em Zimerwald 25-29/Dezembro – Congresso do PS Francês aprova a política de União Sagrada na Guerra 1917 5 de fevereiro – Aprovação da Constituição do México (artigos 3, 27 e 123 são de conteúdo social inédito na América Latina) 8-12 de março – Choque nas ruas de Petrogrado entre operários e a polícia. 12 de março – Nasce o Soviete de Operários e Camponeses de Petrogrado. 15 de março - Abdicação do Tzar na Rússia. 16 de abril – Lenin retorna a Petrogrado e publica as Teses de Abril. 396 Essa cronologia foi composta a partir de outras cronologias encontradas na bibliografia, além da pesquisa em fontes primárias. Entre as referências utilizadas, destacam-se: BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista (1919-1943), T.I e II, trad. Fernando Ferrone, São Paulo: Sundermann, 2007; CARONE, Edgard. Movimento Operário no Brasil (1877-1944), São Paulo: Difel,1984; _____. Classes Sociais e Movimento Operário, São Paulo: Ática, 1989; MARQUEZ FUENTES, Manuel e RODRÍGUEZ ARAUJO, Octávio, El Partido Comunista (en el periodo de la Internacional Comunista 1919-1943), México: Cabalito, 1973; MCKENZIE, Kermit E. Comintern and World Revolution, 1928-1943: The Shaping of Doctrine, Columbia: University Press, 1964; MELGAR BAO, Ricardo. El Movimento Obrero Latinoamericano – Historia de una Clase Subalterna, México: Alianza, 1988; MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O Ano Vermelho, a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1967; RAMA, Carlos. Historia del Movimiento Obrero y Social Latinoamericano Contemporaneo, Barcelona: Laia, 1976; ROUILLON, Guillermo. La Creación Heroica de José Carlos Mariátegui, 3 volumes, Lima: A. Picón, 1993; TAIBO II, Paco ignácio. Bolcheviques, una Historia Narrativa del Origen del Comunismo en México. México: Ediciones B, 2008; VANDEN, Harry E. Mariátegui, Influencias en su formación ideológica. Lima: Amauta, 1975. 366 6 de maio – EUA entra na Primeira Guerra Mundial. 10 de junho - Começa em São Paulo a grande greve de 1917. Ela nasce numa fábrica na Mooca, espalha-se pela cidade e pelo Estado de São Paulo, e se estende depois pelos principais centros industriais brasileiros. 16-17 de julho – Manifestação armada contra o Governo Provisório em Petrogrado, em favor de “todo poder aos sovietes” 13 de agosto – Manifestações em Turim, Itália em solidariedade aos sovietes. 15-18 de agosto – Greve Geral na Espanha. 7 de setembro – Levante do General Kornilov. 22 de setembro – Os Bolcheviques tem maioria no soviete de Petrogrado. 25 de outubro – O Soviete de Petrogrado cria o seu Comitê Militar Revolucionário 7 de novembro – Insurreição dirigida pelo CMR, apoiado pelo Soviete de Petrogrado. Revolucionários dirigidos pelos bolcheviques tomam o Palácio de Inverno e o Governo Provisório foge. 8-16 de novembro – Decreto do governo revolucionário russo sobre a democratização do acesso à terra. 26 de novembro – Decreto do governo revolucionário russo estabelece a jornada máxima de 8 horas e a criação de uma milícia operária (Guarda Vermelha). 27 de novembro – Aprovado no México a Lei de Juntas, Conciliação e Arbitragem. 28 de novembro – Declaração dos direitos do povos trabalhadores pelo governo revolucionário russo. 7 de dezembro – Manifestação contra a guerra em Viena. 17 de dezembro – Assinatura dos tratados de armistício de Brest-Litovsk 30 de dezembro - Mariátegui publica um artigo no jornal El Tiempo criticando Luis Miro Quesada por acusar os jornalistas do jornal de “bolchevismo”. 1918 1 de fevereiro – Alvarado é expulso da península de Yucatán. 14 de fevereiro – Emiliano Zapata escreve a carta sobre sua simpatia com a Revolução Russa. 16 de março – Ricardo Flores Magón escreve sobre a Revolução Russa. 22 de março – Governador de Coahuila, México, patrocina o Congresso Operário que posteriormente dará origem a CROM (Central Regional Obrera Mexicana). 12 de maio – Constituição do Partido Socialista de Yucatán, liderado por Felipe Carrillo Puerto. 12 de maio – Em um Congresso Operário constitui-se a CROM. Adota-se a tática da Ação Múltipla em oposição à ação direta anarquista. Eleito Luis N. Morones como secretário geral. 22 de Junho – José Carlos Mariátegui, Cesar Falcón e Félix Del Valle iniciam a publicação da Revista Nuestra Época, de tendência socialista. Por causa de um artigo publicado nesta revista Mariátegui será agredido por militares. O artigo era denominado: “Más tendências. O dever do exército e o dever do Estado”. 22 de julho – Morre aos 70 anos Manuel Gonzalez Prada em Lima 367 11 de novembro – Armistício marca o final da Primeira Guerra Mundial. 13/novembro – Confederação Operária em Laredo, Texas, funda-se a COPA (Confederação Operária Pan-americana), com a participação da CROM. 15 de novembro – Mariátegui ingressa no Comitê de Propaganda Socialista criado em Lima. 1919 15 de janeiro. – Morrem assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. 24 de janeiro – Convocação para um Congresso de fundação de uma nova Internacional em Moscou. 31 de janeiro – 70 mil grevistas em Glasgow pelas 40 horas são atacados e vários saem feridos. 1º fevereiro – Abre-se a primeira Rabfak em Moscou (Universidade Operária aberta aos trabalhadores). 02 de março – I Congresso da Internacional Comunista em Moscou. 9 de março – No Rio de Janeiro é criado um Partido Comunista do Brasil, diretamente influenciado pela Revolução Russa, mas ainda sob uma perspectiva anarquista. Logo se dissolve. 31 de março – Greve Geral na Região do Ruhr. 10 de abril – Emiliano Zapata é assassinado em Chinameca, Morelos. 10 de abril – Fundação do Partido Comunista da Holanda. 20-23 de abril – Fundação do Partido Comunista Iugoslavo. 1º de maio – Publicado o primeiro número da Revista La Internacional, periódico oficial da Internacional Comunista. 1º de maio – Greve Geral na França reúne mais de 500 mil em Paris. 1º de maio – É lançado em Turim o jornal L’Ordine Nuovo. 1º de maio – Mariátegui se separa do Comitê de Propaganda Socialista, por seus membros manifestarem a intenção de fundar um Partido Socialista e o filiarem a 2º Internacional. 4 de maio – Estudantes chineses fazem grandes manifestações contra os tratados e o imperialismo. 5 de maio – Mariátegui após se retirar do jornal El Tiempo, publica, junto com Falcón, o diário La Razón. O diário é publicado até 12 de agosto. 12 de maio. – Movimento de greve de professores do DF, México, é reprimido pelo governo Carranza. 17 de maio. – Greve Geral em Tampico, México. Governo intervém e 4 operários morrem. Os dirigentes são acusados de bolchevismo. Junho – Criada a Organização Internacional do Trabalho na Liga das Nações Unidas (Essa organização será formada por governos, empresários e empregados, sendo um dos pilares para a forma com que os Estados pós-guerra lidaram com o movimento operário. 10 de junho – Álvaro Obregón declara-se candidato a presidência apoiado pelo Partido Liberal Constitucionalista. 368 28 de junho – Assinatura do Tratado de Versalhes. 4 de julho – Augusto Lenguia depõe o Presidente José Pardo e inicia o seu governo, que durará até 1930, período conhecido como Oncenio pela historiografia peruana. 21 de julho – O Partido Socialista Único da Hungria (comunistas e socialistas) conquista o poder e cria a República Soviética da Hungria. O governo liderado por Bela Kun controla o poder por 133 dias. 6 de agosto. – Pacto secreto entre Obregón e a CROM, selando o acordo entre sindicalistas e o governo para as próximas eleições no México. 25 de agosto a 4 de setembro – Primeiro Congresso Nacional Socialista no DF, México. 31 de agosto – Fundação do Partido Comunista dos EUA. 7 de setembro – Linn A. Gale, funda separadamente do PNS o Partido Comunista do México. 16 de setembro – Funda-se a Federação de Jovens Comunistas, México. 8 de outubro – Mariátegui embarca no porto de El Callao em direção a França, via Nova Iorque com uma bolsa de estudos e adido cultural do Peru na Itália. 12 de outubro – Iudenitch, com tanques britânicos, chega as portas de Petrogrado para derrubar o governo soviético. É barrado em 21 de outubro pelo exército vermelho a cerca de 15 km de Petrogrado. 13 de outubro – Denikin conrola Orel. Os comunistas retomam no dia 23 o controle da região. E o exército de Denikin se retira. 13 de outubro – Fundação do Partido Comunista da Índia, em Tashkent, por N.M.Roy e outros. Outubro – Borodin chega ao México. Novembro – Funda-se clandestinamente em Berlin a Internacional da Juventude Comunista, e se constitui como secção da IC. 8 de novembro – Comunistas são executados em Budapeste. 14 de Novembro – Comunistas tomam o controle de Omsk 1º de novembro – Fundada em Porto Alegre a União Maximalista, que em 1921 se transformou no Grupo Comunista de Porto Alegre. 24 de novembro. – A reunião do Partido Nacional Socialista no México resolve mudar o nome para Partido Comunista Mexicano. 26 de novembro – É fuzilado o militar villista Felipe Ángeles, general revolucionário da Divisão do Norte, divisão liderada por Pancho Villa durante a Revolução Mexicana. Ángeles havia se declarado socialista. 8 de dezembro. – Fundado, por iniciativa do PCM, o Birô Latino-americano da IC. Dezembro – Borodin retorna a Rússia. 20 de dezembro – Mariátegui, após permanecer alguns dias em Paris, onde se encontrou com Henri Barbusse, seguiu para a Itália. 29 de dezembro – Luis N. Morones cria o Partido Laborista Mexicano e apoia a candidatura de Obregón. 1920 Janeiro – Início de uma série de greves na Itália. 369 13 de janeiro – Manifestação operária no Reichtag alemão reivindica as leis sobre os Conselhos Operários. 42 manifestantes são mortos. Fevereiro – Greve de mineiros na África do Sul se coloca contra a discriminação racial. Abril – Crise econômica nos EUA. Aumentaram as greves e a repressão. Abril – Greve em Sonora, México reprimida por Carranza. Abril – Voitinsky, Yang Mingzhai e Gogonovkin estabelecem contatos com Li Dazhao e Chen Duxiu. 5-7 de abril – Greve Geral na Irlanda consegue a libertação de cem prisioneiros. 16 de abril – Fundação do Partido Comunista Operário Espanhol, em Madri. 23 de abril – Fundação do Partido Comunista da Indonésia. 23 de abril – Plano de Agua Prieta. Levante contra Carranza, em duas semanas de luta vence o triunvirato de Sonora. (Obregón-De La Huerta-Calles). 25-30 de abril – Saudação ao proletariado russo e a III Internacional no 3º Congresso da Confederação Operária Brasileira (COB) 5 de maio – Prisão dos anarquistas Sacco e Vanzetti. 8 de maio – Poloneses entram em Kiev, na Ucrânia. Retiram-se no dia 13 de junho. 20 de maio – Marinheiros britânicos descobrem armas e munição para a Polônia. Estivadores entram em greve e inicia a campanha: Tirem as mãos da Rússia soviética! 20 de maio – Proclamada a República soviética da Pérsia, em Ghilan. 21 de maio – Carranza é assassinado em Tlaxcalatongo. 1º de junho – De la Huerta presidente interino até novembro. José Vasconcelos é designado reitor da Universidade de México. 13 de junho. – Criado o Partido Nacional Agrarista, dirigido por Soto y Gama, Rodríguez Gómez, Felipe Santibañez e Octávio Paz. 6 de junho – Wrangel lança uma ofensiva contra o governo soviético na Criméia, apoiado e armado pelo exército francês. 22 de junho – Fundação do Partido Comunista iraniano. No dia 30 os iranianos se levantam contra o domínio colonial inglês. 15 de julho – Fundação da Liga da Juventude Comunista na China. 17 de julho a 7 de agosto. – Segundo Congresso da IC (Petrogrado e Moscou) 28 de julho – Francisco Villa depõe as armas. 20 de agosto – Sun Yat Sen envia uma mensagem a Tchitcherin de apoio a Revolução Russa. 1º a 7 de setembro – Congresso dos Povos do Oriente, em Baku. 10 de setembro – Fundação do Partido Comunista Turco. 19 de setembro – Assembleia constitutiva da FCPM (Federación Comunista del Proletariado Mexicano) 26 de setembro. – Manifestação na Cidade do México contra a carestia. Foi chamada pelos jornais de “Manifestação Bolchevique”. Falaram ante o Presidente De La Huerta: Diaz Soto y Gama, Carrillo Puerto (com palavras contra o governo e o clero) e Morones. Morones chamou o povo para fazer barricadas na rua. Hastearam uma bandeira vermelha no Palácio Nacional. A FCPM não participou, fez um ato à parte. 1º-14 de setembro – Ocupações de Fábrica pelos operários em greve na Itália. Outubro – Mariátegui retorna a Roma após uma viagem pelas cidades italianas de Florença 370 (junho e julho), Gênova (agosto), Veneza (setembro) 12 de outubro – Armistício Russo-Polonês após derrota do Exército Vermelho na Polônia. Novembro – Membros do Partido Socialista de Yucatán e das Ligas de Resistência tem choques armados contra membros do PLC. Calles ordena a distribuição de armas às Ligas. Vencem os socialistas. O PLC representava os latifundiários. 7 de novembro – O PCM comemora pela primeira vez o aniversário da Revolução Russa de 1917, no Teatro Hidalgo. 1º dezembro – Obregón assume a Presidência, e Adalberto Tejeda assume o governo de Veracruz. Dezembro – Chen Duxiu cria o Grupo Comunista de Shangai. 14 de dezembro – A derrota dos exércitos de Wrangel na Criméia marca o fim da Guerra Civil na Rússia. 1921 Janeiro - Acontece na Cidade do México o 3º Congresso da COPA, no DF, México. Recomendou-se a filiação na seção trabalhista da Liga das Nações. 1º de janeiro – Juan Escudeiro assume o governo de Acapulco, no México. 10 de janeiro – PCM ataca o Congresso da COPA no jornal Boletín Comunista. 15-20 de janeiro – Congresso Nacional do Partido Socialista Italiano em Livorno 21 de janeiro – Criação do Secretariado do Extremo Oriente na Internacional Comunista em Irkutsk, para onde vai Zhang Tailei. 15 de fevereiro – Congresso Nacional Operário constituí a Confederação Geral dos Trabalhadores no México 19 de fevereiro – Greve de ferroviários não é reconhecida pela CROM e a Federación de Trabajadores de Fuerza Motriz abandona a CROM. Greve dirigida pela CGT e o PCM, Obregón aceita as petições dos trabalhadores. 22 de fevereiro – É fundada a “segunda e meia Internacional” em Viena, com 11 Partidos socialistas. 2 de março – Levante de Kronstadt. Terminará no dia 17. 05 de março – Obregón e organizações operárias solicitam a liberdade de Ricardo Flores Magón, no Texas, a solicitação é negada. 8-16 de março – X Congresso do PCUS. Aprova-se a Nova Política Econômica e a proibição de frações dentro do PCUS. 4 de abril – A CGT solicita ingresso na ISV, antes que ela estivesse organizada. 11 de abril – Katayama, em nome do CE da IC solicita a unificação dos Partidos Comunistas no México 01 de abril – Um grupo de operários manifestantes içam a bandeira vermelha e preta na catedral do México. 8 de maio – Fundação do Partido Comunista Romeno. 14-16 de maio - Fundação do Partido Comunista tcheco-eslovaco. 19 de maio – O Governo Obregón começa uma repressão contra as organizações de esquerda, expulsando José Allen, Linn Gale e Katayama. 371 03 de junho – Se forma em Moscou a Internacional Sindical Vermelha: 380 delegados, 41 países, 17 milhões de operários representados. (para serem aceitos, os sindicatos deveriam aceitar os seguintes princípios: luta de classes, necessidade da revolução social e da ditadura do proletariado). 16 de junho – Obregón em reunião com o comitê internacional de banqueiros se compromete a não aumentar o imposto sobre a exploração petroleira. 18 de junho – É assassinado o dirigente petroleiro, Bernardo Simoneen, em Manatítlan, Veracruz. 22 de junho – III Congresso da IC, 605 delegados de 103 organizações de 52 países. Pelo PCM foi Manuel Diaz Ramírez, que participou de uma reunião com Lenin. Não houve outros delegados latino-americanos. 1º de julho – Fundação do Partido Comunista da China. 20 de julho – Segundo Congresso do Partido Socialista do Sureste, em Izamal, Yucatán. Junta com o Partido Agrário de Campeche e concordam em pedir ingresso na IC. 1º de agosto – Fascistas na Itália de armas em punho lançam ofensiva contra grevistas e incendeiam o jornal socialista Avanti. 10 de setembro – Primeiro Congresso da CGT, comunistas e anarquistas se enfrentam e o Congresso vota pela não filiação na Internacional Sindical Vermelha. Os comunistas se retiram. A CGT adere a AIT anarquista. 10 de outubro – Vasconcelos é nomeado Secretário de Educação Pública. A Universidade Nacional do México, da qual era reitor, ficou como parte da SEP. 7 de novembro – Comemoração da Revolução Russa na Cidade do México. Diego Rivera assiste esse evento. 7 de novembro – Fundação do Grupo Comunista do Rio de Janeiro. 22 de novembro – O congresso da União decretou um regramento sobre o problema agrário, abandonando as expropriações de terra. Dezembro – A Local Comunista de Veracruz publica o diário El Frente Único, sob a direção de Manuel Almanza. Dezembro – Congresso dos Povos do Oriente com 35 delegados chineses, em Irkutsk. 21- 31 de dezembro – Primeiro Congresso do PCM. 1922 Janeiro - O Grupo Comunista do Rio de Janeiro publica a Revista Movimento Comunista, o primeiro periódico da imprensa comunista no Brasil. 1º de janeiro – Fundado o Grupo Comunista de Recife. 1º de fevereiro – Chega ao Governo de Yucatán, Felipe Carrillo Puerto. 13-17 de fevereiro – Início da Semana de Arte Moderna de São Paulo, evento que marca o início da influência do movimento modernista no Brasil. 21 de fevereiro – Seção ampliada do CE da IC, participam mais de 100 pessoas de 36 países: Palavra de ordem desta reunião: Impulsionar a frente única. Março – Greve Geral inquinaria na Cidade do México, dirigida pelo PCM. Em Veracruz Herón Proal teve um papel fundamental. 372 11 de março – O Palácio Municipal de Acapulco é tomado por tropas federais e Juan Escudeiro é ferido gravemente. 22 de março – Herón Proal é encarcerado, a população de Veracruz o retira da prisão. 25 de março – É constituído no Rio de Janeiro, o Partido Comunista do Brasil (A reunião que fundou o PCB, se iniciou em 25 de março no Rio de Janeiro, mas a partir do dia 26 e 27 foi realizada, clandestinamente, na cidade de Niterói, capital do antigo Estado da Guanabara. O Rio de Janeiro era a capital federal). Abílio de Nequete é eleito secretário-geral. Abril – Em Guadalajara é formada a Confederação Nacional Católica do Trabalho, e publica o jornal La Paz Social. 3 de abril – Stalin se torna secretário geral do Partido Comunista Russo no XI Congresso do Partido. Maio – Herón Proal é preso novamente. Maio – Mariátegui e Cesar Falcón, juntos a outros peruanos organizam uma célula comunista em Gênova. 1º de maio - O PCM e a CGT organizam greves e atos. Os grevistas recebem tiros da Associação Católica de Jovens Mexicanos. 21 de maio – A Segunda Internacional e a 2ª e 1/2 concordam em convocar uma Conferencia geral sem os comunistas. Junho – Acordos entre EUA e México, em que o México reconhece uma dívida externa e o governo dos EUA reconhece o Governo Obregón. Junho – Mariátegui deixa a Itália e viaja pela França (julho-agosto), Bélgica, Alemanha, Áustria, Tchecoslováquia e Hungria (agosto até janeiro de 1923). O jornalista peruano conhece Máximo Gorki em Saarow Ost, junto de Cesar Falcón e outros peruanos. 1º de junho – Congresso Pan-chinês do Trabalho, uma central sindical chinesa que reuniu 300 mil membros. 7 de junho – A CEIC decide, mesmo com o fracasso de acordos com os social-democratas, a manter a posição de frente única. 5 de julho – Revolta do Forte de Copacabana (18 do Forte). Essa revolta marca o início do movimento tenentista no Brasil. 6 de julho – Abílio de Nequete, preso em consequência da repressão desencadeada após a Revolta do Forte de Copacabana, renuncia à secretaria geral do Partido Comunista do Brasil. Astrojildo Pereira é eleito para substituí-lo como secretário-geral do PCB. 6 de julho – Matança em Veracruz devido à luta inquinaria. 150 mortos, 140 presos. Agosto – Reunião do CC do PCCh decide pela adesão dos comunistas no Kuomitang. 1º de agosto – Manifestação do PCM em solidariedade com o movimento grevista de ferroviários norte-americanos. 15 de setembro – Fundada a Universidade Obrera no México, com reitor Brito Foucher, e o assessor Vicente Lombardo Toledano. Obregón será o “padrinho” da Universidade. Outubro – Manifestação contra a prisão de vários operários têxteis, Celestino Gasca , membro da CROM dispara contra os manifestantes. 20 de outubro – Mussolini chega ao Poder em Roma, após o episódio conhecido como “Marcha sobre Roma”. 1º de novembro – Mustafá Kemal proclama a República Turca 373 5 de novembro – IV Congresso da IC, 408 delegados, 66 partidos e 58 países, realizado em Petrogrado e Moscou. Como delegados comparecem pelo México: Edgar Woog e o PCB envia Antônio Canellas como seu representante. Sua atuação não é aprovada pela direção da IC, e o PCB adere à IC apenas na condição de Partido simpatizante. Esse Congresso confirma a orientação de que os comunistas deveriam promover a Frente Única. 8 de novembro – Greves em várias cidades mexicanas em favor da libertação de Ricardo Flores Magón. 21 de novembro. Morre Ricardo Flores Magón na prisão norte-americana de Leavenworth. Ele havia sido condenado a 20 anos de prisão em 1918, por sua oposição a Guerra Imperialistas de 1914-18. O corpo de Magón é enterrado na Cidade do México, após atravessar o território mexicano e ser homenageado pelos operários. 1923 Janeiro – PCM dirige a greve de motoristas do DF junto com a CGT. A CROM condena a greve e organizou “esquiroles”. Celestino Gasca, Governador do DF enviou o exército para reprimir o movimento. Fevereiro – Úrsulo Galván e outros dirigentes camponeses são presos por forças federais e o Governador Adalberto Tejeda os coloca em liberdade. 11 de fevereiro – Mariátegui embarca no navio Negada em Amberes em direção ao Peru, a viagem duraria 34 dias, contando as paradas em portos intermediários. Chega Março – Mariátegui viaja de regresso ao Peru 9 de março – Constitui-se a Agrupação Comunista de Havana, Cuba. 17 de março – Mariátegui chega ao porto de Callao, no Peru. 23 de março – Nasce a Liga de Comunidade Agrária do Estado de Veracruz, sob a direção de Manuel Almanza e Úrsulo Galván, membros do PCM. Abril – Mariátegui estabelece contato com Haya de La Torre e as Universidades Populares González Prada, por intermédio de Fausto Posadas, antigo redator de assuntos operários do jornal La Razón. Abril – 2º Congresso do PCM. Rivera, Manuel Diaz Ramírez, Rosendo Gómez Lorenzo, Úrsulo Galván e Carlos Palácios são os dirigentes eleitos. Maio – Conferências de Bucareli, no México, que tiveram como resultado a redação da Lei do Petróleo em benefício das empresas estrangeiras. 23 de maio – Manifestação em Lima contra a Consagração do Peru ao Coração de Jesus (Essa consagração simbolizava um ataque do governo lenguista ao Estado laico) 1º de maio – Primeiro Congresso Nacional Agrarista, na Cidade do México. Obregón fez o discurso final. 2 de maio – Tejeda publica a Lei do Inquilinato, como resultado da greve. Obregón foi contra, mas a lei permaneceu até 1937. Os presos são soltos e o Sindicato de Inquilinos ganha um outro local para funcionar. Maio – É publicado o primeiro número da Revista Claridad no Peru. 16 de maio – Úrsulo Galván solicita armas para os ejidatários de Paso de Ovejas, que necessitam se defender dos latifundiários e guardas brancas. 374 Junho – Lenin publica: “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. Junho – Mariátegui inicia suas exposições na Universidade Popular González Prada. Serão 18 Conferências, intituladas “História da Vida Mundial”. Terminarão em janeiro de 1924, com uma última conferência dedicada a Lenin. 8 de junho – Golpe de Estado na Bulgária. 12 de junho – 3º Pleno ampliado da CEIC. 15 de junho – Mariátegui apresenta a Primeira de suas conferências sobre a “Crise Mundial” Essas conferências foram organizadas em um tomo de suas obras populares. Julho – reorganização do Comitê Nacional do PCM. 20 de julho – Francisco Pancho Villa morre crivado de balas em Hidalgo del Parral, Chihuahua. Muitos atribuem o assassinato a Obregón. 26 de julho – Chang Kaichek vai para Moscou em uma estadia que durou seis meses. 9 de agosto – Se inicia a greve de trabalhadores eletricistas do Porto de Veracruz 30 de agosto – Greve na Escola Nacional Preparatória, onde os pintores faziam os primeiros murais do movimento muralista. 31 de agosto – Os EUA reconhecem o Governo de Obregón, depois de assinados os tratados de Bucareli. Setembro – Mariátegui inicia sua coluna na Revista Variedades, sob o nome de “Figuras e aspectos da Vida Mundial” 9 de setembro – O PCM declara que apoiará a candidatura que reúna a maioria das corporações camponesas e operária. 12 de setembro – Polícia prende mais de 2 mil comunistas na Bulgária. Os comunistas decidem organizar a insurreição e no dia 28 a resistência comunista é derrotada e o Comitê Revolucionário atravessa a fronteira. 20 de setembro – A CROM, na V Conferência Nacional aprova uma resolução para a expulsão de comunistas, por se tratarem de “elementos subordinados ao governo russo”. 2 de Outubro – Haya de La Torre é preso, e após uma greve de fome é deportado pelo Governo Lenguia. Oscar Herrera assume a reitoria da UPGP, e Mariátegui a direção da Revista Claridad, da órgão das UPGP. Após passar por Cuba, Haya de La Torre alcança a Cidade do México Outubro – Constituição da Internacional Camponesa. Úrsulo Galván participa como delegado das Ligas de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz. 8 de outubro – O PC alemão convoca a população para substituir o poder do Reichtag, pelo governo soviético alemão. São violentamente reprimidos. 10-16 de Outubro – Congresso de fundação da Internacional Sindical Vermelha (Profintern), em Moscou. 23-24 de outubro – Insurreição em Hamburgo. Novembro – Mariátegui e Félix Del Valle anunciam o lançamento de uma revista com o nome de Vanguarda “Revista Semanal de Renovação Ideológica. Voz dos Novos Tempos”. 9 de novembro – Hitler fracassa no golpe em Munique. 12 de novembro – Diaz Ramírez convoca o PCM a recolher fundos para um periódico oficial, que depois será El Machete. Dezembro – Tem início a luta política entre Stalin e Trotsky no seio do PCUS. 375 06 de dezembro –Tem início a insurreição de Adolfo De la Huerta no porto de Veracruz. Camponeses das Ligas organizam guerrilhas para combater às tropas delahuertistas. Os delahuertistas assassinam muitos comunistas. Úrsulo Galvan chega de Moscou e lidera os camponeses, morreram 7 mil homens nos combates. 21 de dezembro – Juan Escudeiro é assassinado por tropas delahuertistas. 1924 03 de janeiro – Morre assassinado Felipe Carrilllo Puerto por tropas delahuertistas. 16-18 de janeiro – XIII Conferência do PCUS condena a oposição de Trotsky. 21 de janeiro – Morre Lenin. 23 de janeiro – É assassinado o senador Field Jurado, e sequestrado os senadores Ildefonso Vazquez, Francisco J. Trejo e Enrique Del Castillo, que se opunham a aprovação dos Tratados de Bucarelli. 1 de fevereiro – EUA pressiona o Governo Obregón negando-lhe o fornecimento de armas para combater os sublevados. 1º de fevereiro – A Grã-Bretanha reconhece a URSS. 20 de fevereiro – Manifesto do PCM: “Em direção ao governo Operário e Camponês” 15 de março – 1º número de El Machete, como órgão do Sindicato de Pintores e Escultores. 25 de abril – Conferencia do PCM, dura 6 dias. Com informes dos delegados da Internacional Camponesa e da Internacional da Juventude Comunista. Publicado no El Machete de 11 a 18 de setembro de 1924. nº13. Maio – Mariátegui amputa a perna direita. 1º de maio – Manifestação de 100 mil em Shangai e 200 mil em Cantão. 1º de maio – Criação da Academia Militar de Whampoa, com instrutores soviéticos. O diretor é Jiang Jieshi e Chu Enlai. 12 de maio - Úrsulo Galván é preso em Veracruz. 24 de maio – O PCM lança a acta do partido para fins eleitorais. 17 de junho – Início do V Congresso da IC, Moscou. Compareceram 504 delegados, de 49 Partidos Comunistas presentes. Terminou em 8 de julho. 5 de julho – Tem início um novo levante militar no Brasil, no mesmo dia que o primeiro levante tenentista, em 5 de julho de 1922. Julho – Pacto de solidariedade entre as Ligas de Michoacán, Veracruz, Morelos, etc. 23 de julho – Levante tenentista em Manaus. 4 de agosto – Obregón estabelece relações diplomáticas com a URSS. Agosto – O PCM começa a organizar a Liga Antimperialista das Américas. 15 de agosto – Adalberto Tejeda recomenda Galván como o agrarista mais consciente e que em 1923 havia sido o primeiro a iniciar a luta contra De la Huerta. 21 de agosto – Na ISV, em Moscou, o delegado mexicano reivindica uma publicação em espanhol. Setembro – Mariátegui começa a colaborar para a revista Mundial. 20 de outubro – Desembarca no porto de Veracruz o diplomata soviético, Stanslan Petskovsky. 376 28 de outubro – Levante tenentista no Rio Grande do Sul, origem da Coluna Prestes que atravessará o Brasil sem nenhuma derrota em batalha contra as forças do exército legalista. Novembro – Segunda convenção da Liga de Comunidades e sindicatos agraristas de Michoacán. 7 de novembro – Comemoração do Aniversário na Revolução Russa na ENP. Discursou Luis Monzón, senador, por San Luis de Potosi, e membro do PCM. 27 de novembro – Publicado o primeiro Programa do PCM. Dezembro – Congresso da CROM, Morones ataca os comunistas e os exclui do Congresso. 1º de dezembro – Calles assume a presidência até 30 de novembro de 1928. 1925 22 de fevereiro – Conferência do PCB, com delegados do Rio e Niterói. Discute-se a organização das bases do Partido, particularmente nas fábricas. É aprovado a publicação de um jornal pelo Partido. Março – Kemal proíbe a imprensa comunista na Turquia. Março – Começa a ser publicado o jornal da Liga Antimperialista das Américas El Libertador. 10 de março – Inicia a atividade do banco de Crédito Ejidal no México. Abril – Comunistas búlgaros são mortos, Chablin é queimado vivo. Abril – Greve dos trabalhadores do salitre no Chile. Abril – Organiza-se a Liga Antimperialista das Américas. Funcionará até 1929. 7 de abril – 3º Congresso Nacional do Partido Comunista Mexicano. 11 de abril – As tropas rebeldes do Rio Grande do Sul e São Paulo se juntam no Paraná, dando início a Coluna Prestes. Maio – Cria-se a Liga Católica de Defesa das Liberdades Religiosas. 1º de maio – É Lançado o jornal A Classe Operária, órgão oficial do Partido Comunista do Brasil. A publicação será interrompida pela repressão em 18 de julho. 30 de maio – Manifestações na China após o assassinato de um operário. Doze estudantes são mortos em Shangai. Início do “Movimento 30 de maio” 23 de junho – 52 mortos em Cantão. Greve de Boicote Cantão-Hong Kong.. 25 de julho – Reunião da célula da APRA em Paris. Com César Vallejo, Felipe Cossío del Pomar, os irmãos Rozas (Gregorio y Wilfredo) e os irmãos González Willis (Rafael y Alfredo), entre outros. 29 de junho – Bertran Wolfe, militante do PCM, é expulso do México. 1º de agosto – O dirigente comunista egípcio, Antun Marun, morre em uma greve de fome no Egito. 16 de agosto – Funda-se o Partido Comunista de Cuba. Havia 7500 comunistas na América Latina. Julio Mella é detido e torturado pela ditadura cubana. 1º de setembro – Calles decreta uma Lei Agrária que divide os ejidos entre os camponeses, entregando-lhes a propriedade individual da terra. 10 de setembro – Reza Khan assume o poder no Irã e ataca o movimento operário. 25 de setembro – Julio Mella é expulso da Universidade. 377 18-31 de outubro – XIV Congresso do PCUS. 27 de novembro – Julio Mella é preso em Cuba e inicia uma greve de fome que durará 16 dias, sendo liberado, mas expulso de Cuba em 13 de dezembro. 1926 Janeiro – O PCB lança a Revista Proletária, órgão teórico do Partido. 7 de janeiro – Arcebispo do México, Mora Del Rio, declara que empreenderá uma campanha contra qualquer intenção de aplicar artigos constitucionais lesivos aos interesses da igreja. Fevereiro – Chega como exilado político ao México, Julio Antonio Mella, com 23 anos. 7 de fevereiro - VI Pleno Ampliado da IC. Ser afirma a tática de Frente Única. Abril – Aparece o livro de Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo, sob o pseudônimo de Fritz Mayer. 27 de Abril – O dirigente Camponês de Michoacán Primo Tápia é assassinado. 4 de maio – Greve geral na Inglaterra. Chegaram a participar do movimento, 4 milhões de operários. 12 de maio – Golpe de Pilsudski, na Polônia. 21-27 de maio – VI Congresso do PCM. 3 de junho – Camponeses das Ligas de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz são baleados e mortos em Paso Bobo, Veracruz. 14 de junho – Calles aprova uma Lei Anticlerical. 20 de junho – Julio Mella, Olivia Zaldívar, Susana González, Rosálio Blackwell e Carlos Becerra são presos em uma manifestação pela Liberdade de Sacco e Vanzetti. 4 de julho – Nova Manifestação em prol da liberdade de Sacco e Vanzetti, na Cidade do México. Essas manifestações cresceriam em 30 de julho e 10 de agosto. Setembro – Grupos Católicos levantam-se em armas no México. Ficaram conhecidos como Cristeros, e mantiveram-se armados até 1929. 15-20 de novembro – I Congresso de Unificação das Organizações Camponesas da República. 158 delegados presentes, representando 30 mil camponeses. Funda-se a Liga Nacional Camponesa. (LNC) 25 de outubro – O presidium do CEIC retira Zinoviev da direção e Bukharin passa a atuar na direção da IC. Novembro – Marines dos EUA desembarcam na Nicarágua para combater Sandino. O presidente mexicano, Calles, envia duas expedições a Nicarágua para apoiar os liberais. Retornam após acordos com os norte-americanos, que tinham Manágua sitiada. 8 de novembro – Antônio Gramsci, dirigente comunista do PCI e da IC é preso na Itália. Morreria em abril de 1937, pouco antes da data em que seria solto. 10 de novembro – Acontece o III Congresso de Ferroviários do México, que consegue construir uma Confederação de trabalhadores dos transportes e das comunicações. 22 de novembro – VII Pleno Ampliado da IC: Condenação da oposição trotskista. Destituem Zinoviev da CEIC. 19 de dezembro – o Senado mexicano aprova a reforma da Constituição para retirar o princípio de não-reeleição. 378 1927 Janeiro – Chega ao México como embaixadora da URSS, Alessandra Kollontai 1º de janeiro – Fim do Estado de Sítio no Brasil. O PCB torna-se legal por 8 meses. 3 de janeiro – O PCB dirige a publicação do jornal diário A Nação. O jornal circulará até agosto, quando o PCB retorna a ilegalidade. 7 de janeiro – Desembarque de tropas dos EUA na Nicarágua. 1º de fevereiro – Em uma tentativa de formar uma frente única, é constituído o Bloco Operário, depois denominado BOC, Bloco Operário e Camponês, que acabará servindo mais como legenda para o PCB, que como uma frente de classes. 3 de fevereiro – A Coluna Prestes entra na Bolívia, após 25 mil quilômetros por dois anos e meio, sem nenhuma derrota às tropas legalistas. 10 de fevereiro – Ocorre o I Congresso Mundial contra o Imperialismo e a Opressão Colonial. Participam: José Vasconcelos, Ismael Martínez (pela CROM), Julio Mella pela LNC e pela Liga Antimperialista das Américas, e Eddo Fimmeb pela CROM, entre os representantes do México. Victório Codovilla, Eudócio Ravines participam deste congresso. 24 de fevereiro – Azevedo Lima é eleito para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), Hernán Laborde é preso pela sua atuação na greve dos ferroviários no México. Começa uma greve de fome. 15 de março – O CEIC envia uma carta ao CC do PCM com críticas ao governo Calles (governo da pequena-burguesia), orientando o PCM a ter uma posição ativa nas eleições de 1928 e a construir um Partido de massas. 27 de abril – É fundado no Rio de Janeiro a Confederação Geral dos Trabalhadores. 4 de Maio – A Suprema Corte Mexicana se pronuncia a favor das reivindicações das empresas petroleiras 18 de maio – VIII Pleno do CEIC tratou da Revolução Chinesa e da luta do proletariado Inglês. Falou da ameaça bélica contra a URSS. 27 de junho – Aprova-se um Programa Agrário da LNC. Julho – Conferência Nacional do PCM – Confusão sobre Obregón e burguesia nacional. Se aprovou a atuação na CROM. Julho – Mariátegui é preso acusado de participar de um “complot” comunista. Em um artigo negou fazer maquinações golpistas, não se definiu como comunista, mas também não negaou. A Correspondencia Sudamericana publica a carta de denúncia de Mariátegui. 2 de julho – Cria-se a Frente Única pró Sacco e Vanzetti, dirigida por Luiz Monzón. Julho – Pleno do CC do PCM decide apoiar a reeleição de Obregón para a Presidência da República, no México. 1° de agosto – Formação do Exército Vermelho na China. Fundação da Juventude Comunista do Brasil (JCB). 10 de agosto – Há greves operárias em todo o México em protesto pela defesa de Sacco e Vanzetti. 12 de agosto – A "Lei Celerada" coloca o Partido Comunista do Brasil na ilegalidade, junto com o jornal diário A Nação, que deixa de circular. 23 de agosto – São assassinados Sacco e Vanzetti na Cadeira Elétrica, em Denham, 379 Massachussets. 29 de agosto – Forças policiais assassinam o comunista Manuel Montes, em Puebla. 27 de setembro – O presidium da CEIC expulsa Trotsky da IC. 2 de outubro – Os generais Francisco R. Serrano e Arnulfo R. Gomez, candidatos antireelecionistas a presidência da república iniciam um movimento contra Calles. Ambos são mortos pouco depois. 7 de novembro – Congresso dos Amigos da URSS. 10 anos da Revolução Bolchevique. Assistem ao congresso em Moscou, J. Guadalupe Rodríguez, Diego Rivera, Julio Antonio Mella, David Alfaro Siqueiros, Graciela Amador e vários outros latino-americanos. Dezembro – A CCE do PCB decide procurar os tenentes da Coluna Prestes. Astrojildo encontra Prestes na Bolívia e deixa vários livros marxistas com ele. Insurreição operária em Cantão, brutalmente reprimida. 11 de dezembro – Fundação do Secretariado Sindical da América Latina com representantes de 8 países, Heitor Ferreira Lima representou o PCB, Portocarrero o PSP. 1928 Janeiro – 23 mil cristeiros armados no México. Janeiro – Haya de La Torre difunde o “plan de México” para fundar um Partido Nacional Libertador. 18 de janeiro – Formação do Comitê Mãos fora da Nicarágua, no México. 9 de fevereiro – IX Pleno da CEIC 19 de fevereiro – Fundação do Partido Comunista do Paraguai. 21 de fevereiro – Ato de solidariedade com Sandino na Cidade do México. Julio Mella intervém neste ato. 2 de abril – V Conferência do PCM. Novo CC e a expulsão dos trotskistas no Partido. Se derrota a tendência de uma nova central operária e se analisou a greve ferroviária. 6-10 de abril – É criada a Conferência Sindical Latino-Americana, em Montevideo. Por iniciativa da ISV. 1º de maio – O jornal A Classe Operária, fechado pela polícia em 1925, volta a circular, em sua segunda fase. 10 de maio – CC do PCM se pronuncia sobre a APRA 16 de junho – Ato do PCM defende o armamento de operários e camponeses ameaçados por milícias cristeiras. 30 de junho – Pleno do CC do PCM, Júlio Mella é nomeado secretário geral interino do Partido. 17 de julho – Obregón é assassinado por León Toral, fanático religioso. Morones é acusado de ligação com o crime. 21 de julho – Morones e membros da CROM renunciam aos seus postos no governo. 17 de julho a 1º de setembro – VI Congresso da IC, em Moscou. Participam pelo PCM: Carrillo, M.D. Ramírez e Carlos Contreras (Victório Vidalli); pelo PCB: Paulo Lacerda, Heitor Ferreira Lima e Mario Grazini Agosto-setembro – Congresso do Partido Comunista da China em Moscou. 380 Setembro – “Grupo de Buenos Aires”, ligado a APRA, escreve uma carta ao “grupo de Lima” propondo a formação de um Partido Socialista. Setembro – Thälmann, Presidente do Partido Comunista da Alemanha, é envolvido no caso de desvio de dinheiro de campanha eleitoral, feito por John Wittorf. O caso Wittorf terá notoriedade na imprensa e será utilizado na luta política que vivia o movimento comunista. Depois de afastado, Thälmann será reabilitado por intervenção da IC no PCA. Thälmann seria preso em 1933, e morreria fuzilado, depois de 11 anos de prisão no Campo de Concentração de Buchenwald, por ordens diretas de Hitler. 16 de setembro – Reunião em La Herradura para discutir a formação do Partido Socialista (presentes: Portocarrero, Avelino Navarro, Hinojosa y Borja, Martínez de La Torre e Bernardo Regman. 14-25 de setembro – CC do PCM, com Mella como secretário geral interino avalia: “A burguesia mexicana perde a sua fisionomia e adere o imperialismo.” 25 de setembro – O Congresso mexicano designa Portes Gil para a presidência. 29 de setembro – É publicado em El Machete, o projeto de Programa Agrário do PCM. Outubro – Mariátegui redige o Programa do Partido Socialista Peruano, em que define o como “marxista-leninista”. 28 de outubro – O Bloco Operário, agora transformado em Bloco Operário e Camponês (BOC), elege Octávio Brandão e Minervino de Oliveira para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 3 de novembro – Fundação da Liga pela Independência da Índia. 11 de novembro – Greve nos bananais da United Fruit na Colômbia. Mais de mil mortos e 3 mil feridos. Dezembro – O CC do PCM discute o informe do VI Congresso da IC e decide organizar o Bloco Operário e Camponês (BOC) Dezembro – Forma-se a célula do PSP de Paris, presidida por Eudócio Ravines 29 de dezembro – III Congresso do PCB, em Niterói 1929 4 de janeiro – É realizado o 1º Congresso da Juventude Comunista Brasileira, em que é criada a Federação da Juventude Comunista do Brasil (FJCB). 10 de janeiro – Julio Mella é assassinado por agentes do ditador cubano, Machado. O funeral se transforma em uma grande manifestação. Tina Modotti sofre uma campanha de difamação e depois é expulsa do México. 22-24 de janeiro – O PCM e a LNC formam o Bloco Operário e Camponês, postulam Tirana para presidente. 26-30 de fevereiro – Assembleia de Unificação Operária e Camponesa, em que será formada a Confederação Sindical Unitária Mexicana (CSUM) Mella é eleito como secretário geral honorário e David Siqueiros, como Secretário Geral. Valentim Campa, Elias Barrios, Macario Rivas, Rodolfo Fuentes López, entre outros formaram o Comitê Executivo. Fevereiro – Astrojildo Pereira viaja a Moscou, onde fica até janeiro de 1930; Cristiano Cordeiro assume interinamente a secretaria geral do Partido. 381 Fevereiro – Cria-se o Bloco Operário e Camponês, no México, que lança Pedro Rodriguez Triana como candidato à presidência. 18 de fevereiro – Trotsky é expulso da URSS. 23 de fevereiro – Mariátegui publica em Variedades o artigo “O exílio de Trotsky”, em que reconhece a posição de Stalin como a mais consequente para o futuro da Revolução Russa. 1º de março – Fundação do Partido Nacional Revolucionário no México. É a institucionalização do primeiro Partido do Estado Pós-revolucionário. 3 de março – Início da Rebelião Escobarista no México, a sublevação atinge quase 30% do exército mexicano. 5 de março – PCM se opõe a Rebelião Escobarista e convoca os operários e camponeses para formar destacamentos armados para combater os rebeldes. Abril – Paulo de Lacerda assume interinamente a secretaria geral do PCB 26 de abril – Manifestação organizada pela CSUM é reprimida com violência pela polícia. Rafael Carrillo, Secretário Geral do PCM é preso 14 de maio – José Guadalupe Rodriguez é assassinado em Durango, membro do CC do PCM e da Liga Nacional Camponesa. Foi assassinado logo após retornar da luta contra a Rebelião Escobarista. 23-29 de Abril – XVI Conferência do PCUS adota o Primeiro Plano Quinquenal. A Revista Amauta de Mariátegui repercute a adoção do plano quinquenal. Maio – Greve Geral dos estudantes do DF pela autonomia universitária. Portes Gil outorga a autonomia. 18 de maio – Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-americana, em Montevideo. Siqueiros e Elias Barrios como representantes da CSUM. 5-6 de junho – O Governo Portes Gil fecha a sede do CC do PCM e a redação do El Machete. O PCM entra no período de ilegalidade, até 1935. 10 de junho – O Partido Nacional Agrarista lança a candidatura de José Vasconcelos a presidência. 1º - 12 de junho – Primeira Conferencia Comunista da América Latina. 38 de legados de 14 Partidos. Participam pelo PCM: Siqueiros e Rodriguez Cerrillo; PSP: Hugo Pesce e Portocarrero; pelo PCB: Basbaum e Grazzini. 22 de junho – Acordos entre governo e igreja no México colocam fim ao conflito com os cristeiros. No conflito foram mortos mais de 80 mil pessoas. 25 de junho – Sandino chega ao México como exilado político. 6 de julho – Pleno do CC do PCM – se reafirma a expulsão de Úrsulo Galván e se expulsa Diego Rivera, entre outros. 15 de julho – O líder guerrilheiro comunista Hipólito Landero é assassinado em Veracruz. Agosto – Encontro de Prestes com um emissário da direção do Partido Comunista do Brasil em Buenos Aires, Basbaum, para tratar de uma aliança entre tenentistas e proletários, ou a Coluna Prestes e o PCB. 29 de Agosto – A gráfica de El Machete é saqueada pela polícia e por bombeiros. 27 de setembro – O CC do PCM decide expulsar Diego Rivera, Luiz G. Monzón, Enrique Flores Magón, Federico Bach, e outros por direitismo. 24 de outubro – Início da quebra da Bolsa de Nova York, marcando o início da Grande 382 Depressão. Novembro – Governo Lenguista invade a casa de Mariátegui e fecham Labor. Acusam-no de “complot judeu”. 7 de novembro – O BOC lança a candidatura de Minervino de Oliveira para a presidência da República no Brasil. A campanha sofre repressão e os votos são roubados. Dezembro – Stalin declara-se favorável ao início da coletivização dos campos.. 2 de dezembro – Hernán Laborde é eleito secretário Geral do PCM pelo CC, em substituição a Carrillo. 18 de dezembro – Comemora-se em Moscou o 50º Aniversário de Stalin. 19-20 de dezembro – Portes Gil lança uma perseguição generalizada contra os comunistas. 1930 17 de fevereiro – Resolução da Internacional Comunista sobre o Brasil condena o BOC e as conclusões do 3º Congresso do Partido Comunista do Brasil. 1º de março – Eleições gerais; Minervino de Oliveira é candidato à presidência da República pelo Partido Comunista do Brasil. 16 de abril – Morre José Carlos Mariátegui em Lima. Abril-Maio – Pleno Ampliado do SSA da IC, em Buenos Aires. Se critica a política de frente única do PCB. 22 de maio – É publicado na International Press Correspondence, a crítica à política de frente única do PCB. 29 de maio – Luiz Carlos Prestes divulga manifesto de adesão ao marxismo e repúdio à Aliança Liberal. Julho – Bolsa de Nova Iorque tem nova baixa após breve recuperação, e seguiria declinando até o ano de 1934. O índice Dow Jones apenas marcaria os valores anteriores a outubro de 1929 após a década de 1960. 14 de setembro – Nazistas conseguem expressiva votação na eleições alemães. 3 de outubro –Início da “Revolução” de 30, a partir do Rio Grande do Sul. O Partido Comunista do Brasil não apoia o movimento revolucionário. Novembro – Astrojildo Pereira é afastado da secretaria geral, por desvios na condução da “proletarização”. O CC do PCB interpreta a proletarização dos PCs como a promoção de uma direção de militantes de origem operária. Luiz Carlos Prestes solicita filiação ao PCB, mas é recusado. 1931 Janeiro – Heitor Ferreira Lima é eleito Secretário Geral do PCB. 12 de março – Prestes de declara comunista em carta escrita desde o exílio no Uruguai. Maio – Arthur Ewert encontra Prestes no Uruguai. Junho – Fernando Lacerda substitui Heitor Ferreira Lima na direção do PCB, que é transferido para o nordeste. Junho – Octávio Brandão e sua família são deportados para Alemanha. 1º de outubro – Luis Carlos Prestes viaja para Moscou. 383 Arquivos e bibliotecas consultadas: Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ) Arquivo Geral da Nação (México) Arquivo Nacional (Rio de Janeiro) Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro Biblioteca "Samuel Ramos", Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM (México) Biblioteca Central da Universidade Nacional Autônoma do México. Biblioteca do Colégio de México (Colmex) Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) Biblioteca Pedro Zulen da Universidade Nacional de San Marcos (Peru) Casa Estudio Diego Rivera (México) Casa Museu de Frida Kahlo (México) Casa Museu José Carlos Mariátegui. Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP Centro de Estudos do Movimento Operário e Socialista (CEMOS) Centro de Estudos Estéticos da UNAM (México) Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV-RJ) Instituto Internacional de Historia Social (Amsterdam) Museu Diego Rivera – Anahuac (México) Fontes Periódicos consultados 5 de Julho – Jornal dirigido por Antonio Canelas A Classe Operária – Órgão Central do Partido Comunista do Brasil A Nação – Jornal de Leônidas de Rezende e Maurício de Lacerda. Órgão de propaganda do PCB em 1927 A Plebe – Jornal colunista-libertário de São Paulo Acción – Órgão da CROM Amauta – Revista Mensal de Doctrina, Literatura, Arte, Polemica 384 Autocrítica. Tribuna de Debates do 3. ° Congresso do PCB. La Correspondecia Sudamericana – Órgão do Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista El Comunista – Órgão do PCM (1919-1920) El Libertador – Órgão da Liga Antimperialista Latino-americana El Machete – Organo del Partido Comunista de México El Soviet - Órgão do Grupo Hermanos Rojos (1919) Gale 's Magazine – Cidade do México. (1918-1921) La Correspondence Internacionale – Órgão da Internacional Comunista em francês Movimento Comunista – Mensário de Doutrina e Informação Internacional. Revista Claridad – Organo de la Juventud Libre del Peru Revista Nuestra Época – Revista Política e Literária Spartacus. Semanário anarquista do Rio de Janeiro Voz Cosmopolita – Órgão dos trabalhadores em hotéis, restaurantes, cafés e Voz do Povo – Órgão da Confederação Operária Brasileira. Rio de Janeiro. 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Para chegar ao resultado prático da tomada de possessão de terras e dos instrumentos de trabalho no México não se necessitou de “leaders”, de “amigos” da classe trabalhadora, nem faltaram “decretos paternais”, “leis sábias”, nem nada disso. A ação faz e está fazendo tudo. O México marcha até o comunismo mais depressa do que esperávamos os mais exaltados dos revolucionários, e o governo e a burguesia se encontram agora sem saber o que fazer na presença de fatos que acreditavam muito distantes, ainda que já se realizassem. Não faz ainda três meses que Juan Sarabia398, em uma extensa e fastidiosa carta aberta dirigida a mim, e que foi publicada por quase toda a imprensa burguesa do México, dizia que a classe trabalhadora não entendia o que predicamos e que o povo estava satisfeito com a conquista da revolta de Madero: a cédula eleitoral. Os fatos vão demonstrando que nós liberais não somos uns iludidos e que lutamos convencidos de que nossa ação e nossa propaganda respondem as necessidades e ao modo de pensar da classe pobre do México. O povo mexicano odeia, por instinto, a Autoridade e a burguesia. Todo aquele que tenha vivido no México haverá comprovado que não há indivíduo mais cordialmente odiado que o gendarme399; que a palavra governo, cheia de intranquilidade às pessoas simples; que o soldado, em todas as partes admirado e aplaudido, é visto com Traduzido do espanhol por Felipe Deveza de: FLORES MAGÓN, Ricardo, “El Pueblo Mexicano es apto para el comunismo”, Regeneración, nº 53, Los Angeles: 2 set. 1911. 398 Juan Sarabia foi um dos fundadores do PLM (Partido Liberal Mexicano), conhecido como um dos “precursores” da Revolução Mexicana, como são denominados os componentes do núcleo inicial do PLM pela historiografia que trata a Revolução Mexicana. O PLM se dividiria entre os que abraçariam o anarquismo e radicalizariam a luta, como Ricardo Flores Magón e os que depois se aliariam a Francisco Madero, e vislumbravam apenas reformas liberais, como Juan Sarabia. 399 Gendarme aqui se refere a polícia, a força de repressão do Estado, mas tem uma conotação política, já que está em francês, que em 1911 era a principal referência em termos de Revolução, tanto por causa da Revolução Francesa, como pela Comuna de Paris (1871). 397 409 antipatia e desprezo; que toda pessoa que não ganha o sustento com o trabalho de suas mãos é odiada. Isto já é suficiente para uma revolução social de caráter econômico e antiautoritário, mas existe mais. No México vivem quatro milhões de índios que até vinte ou vinte cinco anos viviam em comunidades possuindo em comum as terras, as águas e os bosques. O apoio mútuo era a regra nessas comunidades em que a Autoridade só era sentida quando o agente da arrecadação de rendas fazia sua aparição periódica ou quando os rurales400 chegavam em busca de varões para fazê-los ingressar pela força no Exército. Nessas comunidades não havia juízes, nem alcaides401, nem carcereiros, nem nenhuma porcaria402 dessa classe. Todos tinham direito à terra, à água para a irrigação e ao bosque para a lenha e a madeira para construir os jacales403. Os arados andavam de mão em mão, assim como as juntas de bois. Cada família lavrava a extensão de terreno que calculava ser suficiente para produzir o necessário, o trabalho de semeadura e colheitas se fazia em comum, reunindo-se toda a comunidade, hoje para fazer a colheita de Pedro, amanhã para colher a de João e assim sucessivamente. Para fabricar um jacal, colocavam mãos à obra todos os membros da comunidade. Estes simples costumes duraram até que, forte a Autoridade pela pacificação completa do país, pôde garantir à burguesia a prosperidade de seus negócios. Os generais das revoltas políticas receberam grandes extensões de terrenos; os fazendeiros alargaram os limites dos seus feudos, os mais vis polítiqueiros404 obtinham terrenos imensos como baldios, e os aventureiros estrangeiros obtiveram concessões de terras, bosques, águas, de tudo, em fim, ficando nossos irmãos índios sem um palmo de terra, sem direito a pegar do bosque nem o menor galho de uma árvore, na miséria mais abjeta, despojados de tudo o que era deles. Enquanto a população mestiça, que é a que forma a maioria dos habitantes da 400 Rurales é o nome popular da polícia rural durante o Governo de Porfírio Diaz, odiada pelos camponeses e geralmente à serviço dos latifundiários da região em que atuava. 401 Alcaides é um cargo público comum em toda a América Latina espanhola, similar ao prefeito. 402 O termo original utilizado por Magón foi polilla, no dicionário refere-se a traça, mariposa, traduzimos para porcaria, que não necessariamente refere-se a envelhecido, como poderia parecer se relacionássemos a traça. 403 Jacal provém do nahuátl, xahcalli. Refere-se a casa simples, popular. “jacal. m. Vivienda pequeña generalmente de un solo cuarto, construida con adobe, carrizos u otros materiales semejantes, y con techo de paja. Xah-calli. De xámitl, adobe, calli, casa.” MONTEMAYOR, Carlos. Diccionario del Náhuatl en Español del México. México: UNAM, 2009, p.76. 404 Originalmente politicastros em espanhol. 410 República Mexicana, com exceção da que habitava as grandes cidades e os povoados de alguma importância, contava igualmente com terras comunais, bosques e águas livres da mesma maneira que a população indígena. O apoio mútuo era igualmente a regra; as casas se fabricavam em comum; a moeda quase não era necessária, porque havia intercambio de produtos; mas se fez a paz, a Autoridade se robusteceu e os bandidos da política e do dinheiro roubaram descaradamente as terras, os bosques, tudo. Não faz quatro anos ainda podia-se ver nos jornais de oposição que o americano X ou o alemão Y ou o espanhol Z haviam fechado a população inteira nos limites de “sua” propriedade com a ajuda da Autoridade. Vê-se, pois, que o povo mexicano é apto para chegar ao comunismo, porque o tem praticado, ao menos em parte, desde faz séculos, e isso explica porque até quando na sua maioria é analfabeta, compreende que melhor que fazer parte em farsas eleitorais para elevar verdugos, é preferível tomar posse da terra, e a está tomando com grande escândalo da ladrona burguesia. Agora, só resta que o operário tome posse da fábrica, da oficina, da mina da fundição, da estrada de ferro, do barco, de tudo, em uma palavra; que não se reconheçam amos de nenhuma classe e esse será o final do presente movimento. Adiante, Camaradas! Ricardo Flores Magón ANEXO B - Trechos das Resoluções 2º Congresso da Internacional Comunista: “Teses e Acréscimos sobre as Questões Nacional e Colonial” A - Teses 1º) A posição abstrata e formal da questão da igualdade - a igualdade das nacionalidades inclui-se aí - é própria da democracia burguesa sob a forma da igualdade das pessoas em geral; a democracia burguesa proclama a igualdade formal ou jurídica do proletário, do explorador e do explorado, induzindo assim as classes oprimidas ao mais profundo erro. A ideia da igualdade, que não é outra coisa que o reflexo das relações criadas pela produção para o comércio, torna-se, nas mãos da burguesia, uma arma contra a abolição das classes em nome da igualdade absoluta das pessoas humanas. Quanto à significação verdadeira da reivindicação igualitária, ela reside apenas na vontade de abolir as classes; 411 2º) Em conformidade com seu objetivo essencial - a luta contra a democracia burguesa, na qual se trata de desmascarar a hipocrisia - o Partido comunista, intérprete consciente do proletariado em luta contra o jogo da burguesia, deve considerar como formando a chave de abóbada da (questão nacional, não os princípios abstratos e formais, mas: 1º - uma noção clara das circunstâncias históricas e econômicas; 2º - a dissociação precisa dos interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos explorados, com rejeição à concepção geral dos pretensos interesses nacionais, que significam, na realidade, os interesses das classes dominantes; 3º - a divisão mais clara e precisa das nações oprimidas, dependentes, protegidas, e opressoras e exploradoras, gozando de todos os direitos, contrariamente a hipocrisia burguesa e democrática que dissimula a submissão (própria da época do capital financeiro e do imperialismo), pelo poder financeiro e colonialista, da imensa maioria das populações do globo a uma minoria de ricos países capitalistas. 3º) A guerra imperialista de 1914-1918 colocou em evidência diante de todas as nações e todas as classes oprimidas do mundo a falsidade dos fraseados democráticos e burgueses - o tratado de Versalhes, ditado pelas famosas democracias ocidentais, sancionou, em relação às nações fracas, as violências mais covardes e mais cínicas do que aquelas dos junkers e do kaiser em Brest-Litowsk. A Liga das Nações e a política da Entente em seu conjunto apenas confirmam este fato e põem em andamento a ação revolucionária do proletariado dos países avançados e das massas laboriosas dos países coloniais ou dominados, levando assim à bancarrota as ilusões nacionais da pequena burguesia quanto à possibilidade de uma vizinhança pacífica de uma igualdade verdadeira das nações sob o regime capitalista; 4º) Resulta do que precede que a pedra angular da política da Internacional Comunista, nas questões colonial e nacional, deve ser a reaproximação dos proletários e trabalhadores de todas as nações e de todos os países para a luta comum contra os proprietários e a burguesia. Pois essa reaproximação é a única garantia de nossa vitória sobre o capitalismo, sem a qual não podem ser abolidas nem a opressão nacional, nem a desigualdade; 5º) A atual conjuntura política mundial coloca na ordem do dia a ditadura do proletariado; e todos os eventos da política mundial se concentram inevitavelmente em torno de um centro de gravidade: a luta da burguesia internacional contra a República dos Sovietes, que deve agrupar ao redor de si, de uma parte, os movimentos sovietistas 412 dos trabalhadores avançados de todos os países e, de outro lado, todos os movimentos de emancipação nacional das colônias e das nacionalidades oprimidas que uma dura experiência convenceu que não é saudável para elas ficarem fora de uma aliança com o proletariado revolucionário e com o poder sovietista vitorioso sobre o imperialismo mundial; 6º) Não se pode mais deixar de reconhecer ou proclamar a aproximação dos trabalhadores de todos os países. Doravante é necessário perseguir a realização da união mais estreita de todos os movimentos emancipatórios nacionais e coloniais com a Rússia dos Sovietes, dando a esta união as formas correspondentes ao grau de evolução do movimento proletário de cada pus, OU do movimento de emancipação democráticoburguês entre os operários e os camponeses dos países atrasados ou das nacionalidades atrasadas; 7º) O princípio federativo aparece para nós como uma forma transitória em direção à unidade completa dos trabalhadores de todos os países. O princípio federativo já mostrou praticamente sua conformidade com o objetivo perseguido, tanto no curso das relações entre a República Socialista Federativa dos Sovietes russos e as outras repúblicas dos Sovietes (Hungria, Finlândia, Letônia, no passado; Azerbaidjão e Ucrânia, atualmente), como no próprio seio da República russa, em relação à nacionalidade que não tinham antes nem Estado, nem existência autônoma (exemplo: as repúblicas autônomas dos Bashkirs e dos Tártaros, criadas na Rússia soviética em 1919 e 1920); 8º) A tarefa da Internacional Comunista é estudar e verificar a experiência (e o desenvolvimento ulterior) dessas novas federações baseadas na forma sovietista e sobre o movimento sovietista. Considerando a federação como uma forma transitória em direção à unidade completa, é necessário para nós buscar uma união federativa cada vez mais estreita, levando em conta: 1º - a impossibilidade de defender, sem a mais estreita união entre elas, as repúblicas soviéticas cercadas de inimigos imperialistas infinitamente superiores por seu poderio militar; 2º - a necessidade de uma estreita união econômica das repúblicas soviéticas, sem a qual a reedificação das forças produtivas destruídas pelo imperialismo, a segurança e o bem-estar dos trabalhadores não podem ser assegurados; 3º - a tendência à realização de um plano econômico universal cuja aplicação regular será controlada pelo proletariado de todos os países, tendência que se manifestou com evidência sob o regime capitalista e certamente deve 413 continuar seu desenvolvimento e chegar à perfeição no regime socialista; 9º) No domínio das relações sociais no interior dos Estados constituídos, a Internacional Comunista não pode fazer o reconhecimento formal, puramente oficial e sem consequências práticas, da igualdade das nações, com o que se contentam os democratas burgueses que se intitulam socialistas. Não é suficiente denunciar incansavelmente em toda propaganda a agitação dos Partidos Comunistas - e do alto da tribuna parlamentar e fora dela -, as violações constantes do princípio da igualdade das nacionalidades e dos direitos das minorias nacionais, em todos os Estados capitalistas (a despeito de suas "constituições democráticas) e necessário também demonstrar incessantemente que o governo dos Sovietes só pode realizar a igualdade das nacionalidades, primeiro unindo os proletários depois, o conjunto dos trabalhadores na luta contra a burguesia é necessário também demonstrar que o regime dos sovietes assegura uma colaboração direta, por intermédio do Partido Comunista a todos os movimentos revolucionários dos países dependentes ou lesados em seus direitos (por exemplo, a Irlanda, os negros da América etc...) e as colônias. Sem esta condição particularmente importante da luta contra a opressão dos países escravizados ou colonizados, o reconhecimento oficial de seu direito à autonomia é apenas uma mentira, como vimos na 2ª Internacional. 10º) É a prática habitual não apenas dos partidos do centro da 2ª Internacional, mas também dos que abandonaram esta Internacional para reconhecer o internacionalismo em palavras e para substitui-lo, na realidade, na propaganda, na agitação e na prática, pelo nacionalismo e pelo pacifismo pequeno-burgueses. Isto se verifica também entre os partidos que hoje se intitulam comunistas. A luta contra este mal e contra os preconceitos pequeno-burgueses mais profundamente consolidados (que se manifestam sob formas variadas, tais como a diferença entre as raças, o antagonismo nacional e o antissemitismo) adquire uma importância cada vez maior no problema da transformação da ditadura proletária nacional que não existe apenas num país e que, por consequência, é incapaz de exercer uma influência sobre a política mundial) em ditadura proletária internacional (aquela que realizarão vários países avançados e que serão capazes de exercer unia influência decisiva sobre a política mundial) se torna cada vez mais atual. O nacionalismo pequeno-burguês restringe o internacionalismo ao reconhecimento do princípio da igualdade das nações e (sem insistir sobre seu caráter 414 puramente verbal conserva intacto o egoísmo nacional, ao passo que o internacionalismo proletário exige: 1º - A subordinação dos interesses da luta proletária em um pais ao interesse desta luta no mundo inteiro; 2º - Da parte das nações que venceram a burguesia, o consentimento para os maiores sacrifícios nacionais em função da derrubada do capital internacional. No país onde o capitalismo já se desenvolveu completamente, onde existem partidos operários formando a vanguarda do proletariado, a luta contra as deformações oportunistas e pacifistas do internacionalismo, pela pequena burguesia, é também um dever imediato dos mais importantes; 11º) Com relação aos Estados e países mais atrasados onde predominam instituições feudais ou patriarcais-rurais, convém ter em vista: 1º - A necessidade da colaboração de todos os partidos comunistas com os movimentos revolucionários de emancipação nesses países, colaboração que deve ser verdadeiramente ativa e cuja forma deve ser determinada pelo partido comunista do país, se ele existe no país em questão. A obrigação de sustentar ativamente esse movimento cabe naturalmente, em primeiro lugar, aos trabalhadores da metrópole ou do país em cuja dependência financeira se encontra o povo em questão; 2º - A necessidade de combater a influência reacionária e medieval do clero, das missões Cristãs e outros elementos; 3º - É também necessário combater o pan-islamismo, o pan-asiatismo e outros movimentos similares que tratam de utilizar a luta de emancipação contra o imperialismo europeu e americano para tornar mais forte o poder dos imperialistas turcos e japoneses, da nobreza, dos grandes proprietários de terras, do clero etc.; 4º - E de uma importância toda especial sustentar o movimento camponês nos países atrasados contra os proprietários rurais, contra os resquícios OU manifestações do espírito feudal; deve-se, antes de tudo, fazer um esforço para dar ao movimento camponês um caráter revolucionário, para organizar, em todos os lugares onde seja possível, os camponeses, e todos os oprimidos, em Sovietes e assim criar uma ligação bastante estreita do proletariado comunista europeu com o movimento revolucionário camponês do Oriente, das colônias e dos países atrasados em geral; 5º - É necessário combater energicamente as tentativas feitas pelos movimentos emancipatórios que não são na realidade comunistas, nem revolucionários, para agitar 415 as bandeiras comunistas a Internacional Comunista deve sustentar os movimentos revolucionários nas colônias e países atrasados apenas com a condição de que os elementos mais puros dos partidos comunistas – comunistas de fato – sejam agrupados e instruídos sobre suas tarefas particulares, isto é, sobre sua missão de combater o movimento burguês e democrático. A Internacional Comunista deve estabelecer relações temporárias e formar também uniões com os movimentos revolucionários nas colônias e países atrasados, Sem todavia fundir-se com eles, e conservando sempre o caráter independente de movimento proletário ainda que em sua forma embrionária; 6º - É necessário desmascarar-se para as massas laboriosas todos os países, e sobretudo dos países e nações atrasadas a mentira organizada pelas potências imperialistas, com a ajuda das classes privilegiadas - nos países oprimidos as quais sempre apelam para a existência dos Estados politicamente independentes que, na realidade, são vassalos -, do ponto de vista econômico, financeiro e militar. Como exemplo gritante das mentiras praticadas com relação a classe trabalhadora nos países subjugados pelos esforços combinados do imperialismo dos aliados e da burguesia desta ou daquela nação, podemos citar o caso dos sionistas na Palestina, onde sob pretexto de criar um Estado judeu, num país onde os judeus são em número insignificante, o sionismo abandonou a população de trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra. Na conjuntura internacional atual não há saída possível para os povos fracos e subjugados fora da federação das repúblicas soviéticas. 12º) A oposição secular das pequenas nações e das colônias às potências imperialistas fez nascer, entre as massas trabalhadoras dos países oprimidos, não somente um sentimento de rancor para com as nações opressoras cm geral, mas também um sentimento de desconfiança em relação ao proletariado dos países opressores. A infame traição dos chefes oficiais da maioria socialista em 1914-1919, quando o socialismo chauvinista qualificou de "defesa nacional" a defesa dos "direitos" de "sua burguesia", a submissão das colônias e dos países financeiramente dependentes, só pode tornar essa desconfiança completamente legítima. Os preconceitos só podem desaparecer com o desaparecimento do capitalismo e do imperialismo nos países avançados, e depois da transformação radical da vida econômica dos países atrasados, sua extinção será muito lenta, de onde o dever do proletariado consciente de todos os países de se mostrar particularmente circunspecto diante dos resíduos de sentimento nacional dos países oprimidos durante um longo tempo, e de fazer também algumas 416 concessões úteis a fim de promover o desaparecimento desses preconceitos e dessa desconfiança. A vitória sobre o capitalismo está condicionada pela boa vontade de entendimento do proletariado cm primeiro lugar, e depois das massas laboriosas de todos os países do mundo e de todas as nações. B - Tese Suplementares 1º) A fixação exata das relações da Internacional Comunista com o movimento revolucionário nos países que são dominados pelo imperialismo capitalista, em particular da China, é uma das questões mais importantes para o 2º Congresso da Internacional Comunista. A revolução mundial entra num período para o qual é necessário um conhecimento exato dessas relações. A grande guerra europeia e seus resultados mostraram muito claramente que as massas dos países subjugados fora da Europa estão ligadas de uma maneira absoluta ao movimento proletário da Europa, e isto é unia consequência inevitável do capitalismo mundial centralizado; 2º) As colônias constituem uma das principais fontes de força do capitalismo europeu. Sem a possessão dos grandes mercados e dos grandes territórios de exploração nas colônias, as potências capitalistas da Europa não poderão se manter por longo tempo. A Inglaterra, fortaleza do imperialismo, sofre de superprodução há mais de um século. Apenas conquistando territórios coloniais, mercados suplementares para a venda da superprodução e fontes de matérias-primas para sua indústria crescente, a Inglaterra consegue manter, apesar dos problemas, seu regime capitalista. É pela escravidão de centenas de milhões de habitantes da Ásia e da África que o imperialismo inglês chegou a manter até o presente momento o proletariado britânico sob a dominação burguesa. 3º) A mais-valia obtida pela exploração das colônias é um dos apoios do capitalismo moderno. Durante muito tempo essa fonte de benefícios não será suprimida, e será difícil para a classe operária vencer o capitalismo. Graças à possibilidade de explorar intensamente a mão-de-obra e as fontes naturais de matérias-primas das colônias, as nações capitalistas da Europa procuraram, não sem sucesso, evitar por esses meios sua bancarrota iminente. O imperialismo europeu conseguiu em seus próprios países fazer concessões 417 sempre maiores a aristocracia operária. Procurando sempre, de um lado, manter as condições de vida dos operários nos países subjugados a um nível muito baixo, ele não recua diante de nenhum sacrifício e consente em sacrificar a mais-valia em seu próprio país; os trabalhadores das colônias podem esperar. 4º) A supressão pela revolução proletária do poderio colonial da Europa derrotará o capitalismo europeu. A revolução proletária e a revolução das colônias devem concorrer, em certa medida, para o resultado vitorioso da luta. A Internacional Comunista deve então estender o círculo de sua atividade. Ela deve nutrir relações com as forças revolucionárias que lutam pela destruição do imperialismo nos países econômica e politicamente dominados; 5º) A Internacional Comunista concentra a vontade do proletariado revolucionário mundial. Sua tarefa é organizar a classe operária do mundo inteiro para a derrubada da ordem capitalista e o estabelecimento do comunismo. A Internacional Comunista é um instrumento de luta que tem por tarefa agrupar todas as forças revolucionárias do mundo. A 2ª Internacional, dirigida por um grupo de políticos e penetrada de concepções burguesas, não dá nenhuma importância à questão colonial. O mundo não existe para além dos limites da Europa. Ela não viu a necessidade de unir o movimento revolucionário dos outros continentes. Em vez de prestar ajuda material e moral ao movimento revolucionário das colônias, os membros da 2º Internacional se tornaram imperialistas. 6º) O imperialismo estrangeiro que pesa sobre os povos orientais impede-os de se desenvolverem social e economicamente, simultaneamente com as classes da Europa e da América. Graças à política imperialista que entravou o desenvolvimento industrial das colônias, uma classe proletária no sentido próprio da palavra não pôde surgir, ainda que nos últimos tempos os teares hindus tenham destruído pela concorrência os produtos das indústrias centralizadas dos países imperialistas. A consequência disso foi que a grande maioria do povo retornou para o campo e foi obrigada a se consagrar ao trabalho agrícola e à produção de matérias-primas para exportação. Outra consequência foi uma rápida concentração da propriedade agraria nas mãos de grandes proprietários rurais ou do Estado. Desta maneira, se criou uma massa 418 poderosa de camponeses sem terra. E a grande massa da população se mantém na ignorância. O resultado desta política é que, nesses países onde o espírito revolucionário se manifesta, ele encontra expressão apenas na classe média culta. A dominação estrangeira impede o livre desenvolvimento das forças econômicas. Por isso, sua destruição é o primeiro passo da revolução nas colônias e, portanto, a ajuda prestada à destruição da dominação estrangeira nas colônias não é, na realidade, uma ajuda prestada ao movimento nacionalista da burguesia hindu, mas a abertura de caminhos para o proletariado oprimido. 7º) Nos países oprimidos existem dois movimentos que, a cada dia, se separaram mais: o primeiro é o movimento burguês democrático nacionalista que tem um programa de independência política e de ordem burguesa; o outro é aquele dos camponeses e dos operários ignorantes e pobres por sua emancipação de toda espécie de exploração. O primeiro tenta dirigir o segundo e nisso tem sucesso em certa medida. Mas a Internacional Comunista e os partidos que a ela pertencem devem combater esta tendência e procurar desenvolver o sentimento de classe independente nas massas operárias das colônias. Uma das maiores tareias para atingir esse fim é a formação de Partidos Comunistas que organizem os operários e os camponeses e os conduzam à revolução e ao estabelecimento da República sovietista. 8º) As forças do movimento de emancipação nas colônias não estão limitadas ao pequeno círculo do nacionalismo burguês democrático. Na maioria das colônias já existe um movimento social-revolucionário ou dos partidos comunistas em estreita relação com as massas operárias. As relações da Internacional Comunista com o movimento revolucionário das colônias devem servir a esses partidos ou grupos, pois eles são a vanguarda da classe operária. Se eles são frágeis hoje, eles representam, contudo, a vontade das massas e as massas os seguirão no caminho revolucionário. Os partidos comunistas dos diferentes países imperialistas devem trabalhar em contato com esses partidos proletários das colônias e prestar-lhes ajuda material e moral. 9º) A revolução nas colônias, em seu primeiro estágio, não pode ser uma revolução comunista, mas se desde o seu início a direção estiver nas mãos de uma vanguarda comunista, as massas não estarão dispersas e, nos diferentes períodos do 419 movimento, sua experiência revolucionária só fará crescer. Seria certamente um grande erro desejar aplicar imediatamente nos países orientais os princípios comunistas à questão agrária. Em seu primeiro estágio, a revolução nas colônias deve ter um programa que comporte reformas pequenoburguesas, tais como a divisão das terras. Mas não decorre necessariamente que a direção da revolução deva ser abandonada à democracia burguesa. O partido proletário deve, ao contrário, desenvolver unia propaganda poderosa e sistemática em favor dos Sovietes e organizar Sovietes de camponeses e operários. Esses Sovietes deverão trabalhar em estreita colaboração com as repúblicas sovietistas dos países capitalistas avançados para chegar à vitória final sobre o capitalismo no mundo inteiro. Também as massas dos países atrasados, conduzidas pelo proletariado consciente dos países capitalistas desenvolvidos, chegarão ao comunismo sem passar pelos diferentes estágios do desenvolvimento capitalista. 420