“O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”: O Encontro de Memes ou

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“O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”: O Encontro de Memes ou
“O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”: O Encontro de Memes ou o Meme do Encontro?
Escrito por Guilherme Martellini Altmayer
Qui, 10 de Dezembro de 2009 10:45
O presente artigo tem por finalidade traçar uma análise do projeto “O Drama do Circo-Teatro
em Sorocaba”, realizado entre 2004 e 2007, em Sorocaba-SP, com a participação dos grupos
Manto, de teatro e Guaraciaba, de circo, responsáveis pela encenação do clássico “E o Céu
Uniu Dois Corações”, de Antenor Pimenta. Neste artigo, serão enfocadas as relações entre o
velho e o novo, à luz dos estudos científicos propostos pelo etólogo Richard Dawkins,
batizados por ele mesmo como: Memética. Será esboçado um panorama do circo-teatro, e seu
histórico de mutações, no Brasil, relacionando-o à temática antropofágica, até chegar ao
referido projeto. Buscar-se-á impressões acerca da fluência e da influência da Memética,
durante o processo de criação do espetáculo, e seus efeitos no produto final.
A Memética de Dawkins
O termo “meme” foi proposto pelo etólogo Richard Dawkins, da Universidade de Oxford,
em seu livro, “O Gene Egoísta”, 1976. Neste, o autor afirma: “O darwinismo é uma teoria
demasiado ampla para permanecer confinada ao contexto estreito do gene”
(DAWKINS:1979, 213), e sugere um novo estudo científico - o da Memética. A palavra
“Meme”, usada por Dawkins para designar essa nova entidade, vem de
Mimeme,
derivada da raiz grega
Mímesis
(imitação), reduzida a duas sílabas para que soasse parecida com “gene”.
A teoria foi desenvolvida de forma análoga aos estudos genéticos. Os genes são descartados
ou conservados pela seleção natural, tendo como único sentido e função replicarem-se, ou
seja, criar cópias de si mesmo. A teoria evolucionista de Charles Darwin, até hoje, é a
referência mais sólida no estudo da evolução humana. Porém, esta decifrou com maestria os
códigos biológicos dos seres, mas não definia claramente de que forma evoluía o mundo das
idéias.
Entra em cena a Memética, buscando mapear os princípios que regem a transmissão de
cultura. “Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: “cultura“.
(DAWKINS, 1979, p.211).
O meme seria uma unidade replicadora, assim como o gene. Um organismo vivo capaz de
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reproduzir-se e propagar, de cérebro em cérebro, tudo que é ensinado ou transmitido
socialmente. Como um “vírus de idéias”, é passado de uma pessoa para outra,
individualmente, ou pelos meios de comunicação de massa, e competem com outros memes
para determinar nosso comportamento.
Um exemplo da longevidade que pode alcançar um meme é a religião: Deus é uma idéia viva
que vem sendo reproduzida há milênios, de forma geral, sem contestação. Esse meme, ainda
que não comprovado cientificamente, adquiriu, através da tradição, status de verdade
universal. Mesmo que assumindo formas diferentes, em diferentes sociedades e períodos
históricos, a idéia de uma força superior que rege o universo, é sempre a de Deus! Dawkins
(1979, p.37-38) trata da longevidade como uma tendência evolutiva de estabilidade (uma
estratégia que os genes e os memes utilizam para permanecer no tempo), ao lado da fecundid
ade
e da
fideli
dade de cópia
. Por outro lado, face à condição pós-moderna em que vivemos, os memes também adquirem
características de efemeridade, transitoriedade etc. Os meios de comunicação de massa e a
globalização são os grandes responsáveis por essa rotatividade mêmica. A moda e seu teor
descartável é um bom exemplo.
A memética é uma ciência que dá seus primeiros passos rumo a uma comprovação e um
consenso científico, portanto ainda não se pode chegar a conclusões determinantes. Todavia,
a teoria do meme parece encontrar respaldo na pós-modernidade. Cabe explicar que o uso do
termo pós-modernidade, nesta pesquisa, refere-se ao que Harvey (2002) denomina “condição
pós-moderna”: o modo como as pessoas sentem e representam para si mesmas o mundo onde
vivem. Assim sendo, quando utilizadas expressões relacionadas ao “pós-moderno”,
pretende-se apenas falar sobre essa “condição”, e não definir se é uma exacerbação da
Modernidade, se é um modismo, ou uma Escola; o termo, por enquanto, é indefinível. Esse
homem “pós-moderno” é uma máquina capacitada a conservar fortes memes tradicionais
coexistindo em harmonia com os “memes novos”, superficiais e efêmeros.
Tradição e Ruptura
“O circo não morre nem morrerá nunca, porque é tradição e estas não morrem jamais”.
Antolim Garcia (Circo Garcia)
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O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, na década de 20, já profetizava, no
Movimento Modernista, o homem pós-moderno. Talvez o traço mais marcante de brasilidade
seja mesmo a característica antropofágica, de deglutir outras culturas, transformando-as em
um produto híbrido e brasileiro. Nosso país é um laboratório, onde a fusão memética pode ser
comprovada pela miscigenação, pelo multiculturalismo e pelo sincretismo religioso. Esse fato é
evidente em toda manifestação cultural brasileira, seja no cinema, na música e, também, no
circo-teatro, objeto de estudo do presente artigo.
O circo-teatro é uma manifestação cultural genuinamente brasileira. As fontes mais seguras
atribuem a paternidade do circo-teatro a Benjamim de Oliveira, o primeiro palhaço negro do
Brasil, que, em 1918, propôs a estruturação do gênero. Essa migração do teatro para o circo (e
vice-versa) já vinha se esboçando de forma mêmica. Benjamim de Oliveira captou a
necessidade de organizar essas idéias dispersas, e juntá-las em um projeto único, coeso e
ordenado, como um sistema. A essa “operação”, Benjamim denominou: circo-teatro. E o vírus
se propagou.
A trajetória do gênero através dos tempos é feita de sucessivas rupturas, que se fundem com
princípios tradicionais. Os números exclusivamente circenses permaneceram inalterados;
mudam alguns detalhes estéticos, mas a matriz é um “meme forte” (como o de Deus). Com
novas roupagens, acrobatas, malabaristas, palhaços, continuam exercendo as mesmas
funções desde o surgimento do circo como o conhecemos, até hoje. Mas agora, pós Benjamim
de Oliveira, o espetáculo se divide em dois blocos: no primeiro são demonstradas habilidades
circenses variadas; no segundo, é apresentada uma peça teatral.
De início, os artistas do picadeiro se faziam atores improvisados. Com o decorrer do tempo,
tornou-se necessário um aprimoramento, um cuidado maior com o cenário, figurino,
interpretação. Os textos nasciam da leitura de clássicos, como Shakespeare, ou romances
franceses, adaptados para os Melodramas, de forma bem simples, sem uma preocupação
maior com a fidelidade à essência do tema, às técnicas teatrais ou à receptividade do público.
Na verdade, essa adaptação “simplória”, era intencional. Visava atender a um público com
praticamente nenhum conhecimento teatral. Do mesmo modo, os encenadores não tinham
nem experiência em teatro, nem tampouco conheciam os clássicos. O que, teoricamente,
soaria muito improvável, ao contrário, caiu como uma luva, no gosto popular. Foi um meme
plantado em terreno fértil. A popularização dos clássicos consolidou e disseminou o meme do
circo-teatro, no país, a partir do início do século XX.
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Com o passar do tempo, paralelamente às mudanças ocorridas na sociedade brasileira, o
circo-teatro também vai se remodelando tematicamente. Em lugar dos clássicos, na década de
30, surge uma segunda geração do circo-teatro. Os adaptadores de obras de outros autores,
agora passam a escrever textos próprios, criando uma dramaturgia original, com um estilo de
linguagem próprio: O melodrama circense. Essa é a fase mais importante do circo-teatro, que
agora adquire maturidade, possui identidade própria.
Mas, em uma época na qual a sociedade começa a diversificar seus interesses, o gênero
circo-teatro também se vê na necessidade de diversificar. Isso gera novas rupturas e obriga as
trupes a incorporar novos memes trazidos pela modernidade. O circo-teatro assume o seu
caráter antropofágico.
Nesse momento, o circo-teatro encontrava-se em uma fase muito rica. Havia temas múltiplos,
utilizados como base para a encenação: sagas bíblicas, épicos, peças originais (específicas),
adaptações dos clássicos teatrais, dentre outros, coexistindo e recebendo o mesmo grau de
aceitação por parte do público.
O advento do cinema foi outro fator determinante para essa nova fase. As companhias
circenses montavam, a seu modo, os grandes lançamentos do cinema mundial, e levavam às
pessoas que não tinham acesso às telas, seja por motivo econômico ou social. Cabe lembrar
que, nessa época, o cinema era privilégio da burguesia. O mais importante é que o circo-teatro
levava esses espetáculos a cidades longínquas, onde não existiam salas de cinema. Muitas
cidades do Brasil ainda não as têm.
De forma paradoxal, o circo-teatro foi beneficiado pelo cinema, como também perdeu público
para este, no momento em que familiarizou o povo mais simples com a diferente linguagem,
desmitificando-a.
Nova ruptura. O gênero precisa, novamente, se adaptar. São transladadas para o circo-teatro,
músicas populares da época, dramatizadas no picadeiro. Um bom exemplo é “O Ébrio”, de
Vicente Celestino, que fez muito sucesso no rádio, no circo, e até no cinema. É importante se
deter nesse episódio, que reafirma um traço pós-moderno, que já é nato no Brasil. Trata-se de
um único texto “falado” em três linguagens diferentes. Um meme original, que se replica em
novos memes, não menos originais.
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Assim como o circo-teatro vinha procurando aglutinar e disseminar seus memes, outros
segmentos artísticos também perceberam a urgência em fazê-lo. As novidades e o avanço
tecnológico foram prevalecendo. O circo-teatro, enfraquecido, busca novas alternativas.
Em uma terceira geração do circo-teatro, a partir do final da década de 50, várias crises
financeiras - que tiveram seu auge nas décadas de 60 e 70 - fizeram com que o circo-teatro
fosse perdendo bons atores para a televisão, ou pelas mudanças no perfil e gosto do público.
Muitas companhias decidiram suspender a parte teatral, voltando a investir no circo tradicional.
Alguns atores desses circos acabaram comprando o material cênico e os figurinos de suas
antigas companhias, fundando circos destinados quase exclusivamente às encenações
teatrais. São os famosos cirquinhos, existentes até hoje, onde, pela falta de dinheiro para
contratar profissionais do circo, e a falta de habilidade para executarem os números
acrobáticos, apresentam uma primeira parte reduzida a uns três ou quatro números circenses
muito simples, e uma segunda parte com uma peça, baseada nos dramas tradicionais ou
chanchadas.
Na década de 70, para incrementar os espetáculos, os circos passam a contratar shows de
cantores populares, como é o caso de Roberto Carlos, Chitãozinho e Chororó, e esses shows
acabam se tornando as principais atrações dos cirquinhos. O circo-teatro acaba sendo
relegado a uma condição socialmente “menor”. Fixa residência no interior, e lá permanece até
seu quase desaparecimento.
A trajetória do circo-teatro brasileiro ilustra muito bem o quanto os memes podem ser
maleáveis, recicláveis, descartáveis, ou seja, mutantes. Até mesmo os memes resilientes dos
mitos, usam da metamorfose como forma de sobrevivência. O meme do circo-teatro, não
pretendendo a patente de Deus, de metamorfose em metamorfose, mantém-se, ainda, como
organismo vivo, mais como memória, que como corpo ativo; e busca uma brecha, em meio à
era dos excessos.
Memes Circenses
Maio de 2004. Um grupo formado por jovens atores (Grupo Manto) encontra-se com uma
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“veterana” família circense (Família Guaraciaba), para - em uma parceria inédita - através do
projeto “O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”, reviver os tempos áureos do circo-teatro.
Lançaremos um olhar mais critico, direcionado ao período que precede a estréia do espetáculo,
quando do encontro propriamente dito. O encontro de gerações, de experiências distintas e,
principalmente, de idéias diversas.
A primeira dificuldade detectada no trabalho foi o confronto de memes: Guaraciaba X Manto. O
estopim foi o texto. Enquanto o Grupo Manto pretendia fazer uma transcriação da obra original,
a Família Guaraciaba não abria mão de montar “E o Céu Uniu Dois Corações”, na íntegra, sem
pôr nem tirar uma única vírgula redigida por Antenor Pimenta, seu autor. Enquanto os atores
visavam uma apresentação bucólica, em memória ao circo-teatro, os circenses entendiam o
projeto como uma retomada das atividades profissionais, tal qual exerciam anteriormente.
A Família Guaraciaba mantinha o meme do circo-teatro, gravado em suas personalidades.
Através da citação de Hudi Rocha: ”Já está tudo no sangue!”, o circense veterano,
apresenta-nos uma configuração memética muito forte. Realmente um meme alimentado por
muitas décadas age mesmo, de forma análoga, como combustível na corrente sangüínea.
Esse meme (fecundado culturalmente, de geração em geração), era tão arraigado em seus
corpos, que formava uma barreira contra o novo.
Por outro lado, nós, atores “pós-modernos”, acostumados a transitar de meme em meme,
sentíamos dificuldade em assimilar suas técnicas dramatúrgicas, sua recusa aos ensaios.
Víamo-nos despreparados para deglutir um “meme forte”.
Estava estabelecida uma situação de conflito. A partir dela, precisava-se chegar a uma
solução. Então ocorreu um processo de aceitação. Concordando, ou não, com o meme do
próximo, fazia-se necessário ceder, em prol de um bem comum.
Uma vez estabelecida a harmonia entre os grupos, o espetáculo aconteceu. A bem da verdade,
com um aspecto dúbio, não ocorrendo a - ingenuamente pretendida- fusão dos memes da
tradição e da ruptura.
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A Família Guaraciaba (1946) [1] representou, no palco, segundo sua tradição. O Grupo Manto,
por sua vez, permaneceu fiel aos seus referenciais. Em uma análise posterior, porém, pode-se
avaliar que ambas as partes foram infectadas, de algum modo, com memes alheios; estes
replicados e retransmitidos, dando continuidade ao seu ciclo. Em alguns corpos, a “infecção” foi
indelével, mas noutros a unidade mêmica, literalmente, “colou”, como diria Dawkins. Alguns
dos componentes do projeto acolheram memes que, definitivamente, irão fazer parte do seu
repertório de memes. Salvo as devidas proporções, nestes, o vírus também passa a “habitar a
corrente sangüínea”. Este artigo é prova disto!
O projeto culminou em um grande sucesso de público e crítica. O que parecia ser o maior
problema - a não homogeneidade dos memes - veio a se tornar o ponto alto do produto final,
que se constituiu num belo mosaico de técnicas distintas, comprovando a nossa - já referida natureza antropofágica, onde um meme X, respeitando o espaço de um meme Y, é capaz de
produzir um significativo quadro pós-moderno. O novo não precisa, necessariamente, derrubar
o velho; se houver consenso mútuo quanto a espaço e aceitação, criar-se-á um novo meme:
X+Y=Z.
O Circo-Teatro Guaraciaba, foi inaugurado em 26 de junho de 1946, no bairro Jaçanã, em São
Paulo.Seus
fundadores foram Antonio Malhone ( famoso palhaço Pirulito) e Adalberto Fernandes. A
Família Guaraciaba permaneceu em atividade até a de 80.
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