Capítulo 1: A CIDADE E A PONTE

Transcrição

Capítulo 1: A CIDADE E A PONTE
Sérgio Meira
O Quixote
de Floripa
Capa da 1ª. edição, 2009
Créditos:
Fotos (por ordem):
Capa/Florianópolis/Ponte: O autor
Gigante: Henrique Schucman
Revisão
Final: O autor
Projeto gráfico:
O autor
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Capítulo 1: A CIDADE E A PONTE
Capítulo 2: NEMINHO SILVA
Capítulo 3: O MIMO DA DONZELA: O PARAFUSO
Capítulo 4: EU VOU SALVAR A PONTE
Capítulo 5: O PLANO TEM INÍCIO
Capítulo 6: A BELEZA, A BELEZA DA CIDADE E DE SUA MUSA:
A PONTE
Capítulo 7: O EDITOR-CHEFE DO NEW TIMES
Capítulo 8: O ROQUEIRO
Capítulo 9: COM O DIRETOR-PRESIDENTE
Capítulo 10: A OCASIÃO FAZ O LADRÃO
Capitulo 11: DE NOVO, A INTERNET
Capítulo 12: THE TURNING POINT
Capítulo 13: CELEBRIDADE
Capítulo 14: NEMINHO CONHECE O PLANO
Capítulo 15: PREPARANDO OS MEGAEVENTOS
Capítulo 16: NEM TUDO SÃO FLORES NA VIDA DE UM HERÓI
Capítulo 17: A CONVERSA COM O ASSESSOR DO GOVERNO
Capítulo 18: QUEBRA DE SIGILO
Capítulo 19: NEMINHO PASSA A SER OBSERVADO
Capítulo 20: O AMIGO JORNALISTA
Capítulo 21: BASTIDORES DO PODER
Capítulo 22: A REUNIÃO DA TÁVOLA QUADRADA
Capítulo 23: OS DEBATES ESQUENTAM
Capítulo 24: NEMINHO VAI À MONTANHA
Capítulo 25: O NOVO ENCONTRO COM O ASSESSOR
Capítulo 26: NEMINHO VOLTA DA MONTANHA
Capítulo 27: AS PONTES
Capítulo 28: AS RAZÕES DO ASSESSOR
Capítulo 29: O ASSESOR PRESSIONA O EDITOR-CHEFE DO NT
Capítulo 30: O PLACAR: MILHÕES A FAVOR DE NEMINHO
Capítulo 31: A GOTA D’ÁGUA
Capítulo 32: O PESADELO: O GIGANTE DEITADO SE LEVANTA
Capítulo 33: O MEGAEVENTO FINAL
Capítulo 34: NEMINHO FALA URBI ET ORBI
Capítulo 35: A ENTREGA DA VERBA
Capítulo 36: A TEIA DE ARACNE: A BUROCRACIA
Capítulo 34: O NAVIO
Capítulo 36: RECONSTRUIR
EPÍLOGO
PREFÁCIO
A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem.
A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a
coragem, a mudá-las.
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Santo Agostinho
Este texto é resultado de um exercício literário feito
com o objetivo de construir uma narrativa ficcional para
tratar de um problema real - esse foi o meu desafio inicial:
encontrar no mundo real à minha volta, que é a cidade de
Florianópolis, o tema da estória. Mas também é resultado de
uma indignação compartilhada com a população da cidade de
Florianópolis com relação ao descaso dos governantes com o
mais famoso cartão postal da cidade.
Para reforçar esse próprio real, uma segunda
condição se impôs: a estória deveria ser atual,
contemporânea, e assim colaborar para preencher uma
lacuna que considero existir na literatura local: textos de
temática urbana, que mostrem o cidadão florianopolitano
descolado das raízes regionalistas. Em resumo, o desafio era
criar uma espécie de mané moderno, que em vez da tarrafa e
da canoa acessa o wi-fi e o avião, que viaja, se desloca, que
sai pra fora da “membrana citoplasmática” em que viveu até
então nas estórias locais, como se fora da ilha não houvesse
mundo. E como sabemos que há muita vida lá fora, é,
portanto, necessário idealizar o contato desse mané com o
mundo, ainda mais num momento em que Florianópolis
começa a chamar a atenção de todo o planeta, abrindo-se
para novos contatos, novas relações e novas culturas. Diante
desses fatos, a proposta que se impôs foi criar um herói mané
moderno, ou que resumisse essa nova cidade – que, como a
1
rememorar os áureos tempos dos navegadores ilustres, vai
outra vez se tornar cosmopolita.
Para construir a estória, além do tema foi preciso
também criar um herói. Na busca para definir seu perfil,
recorri a algumas referências na literatura, mais precisamente
no romance, entendido aqui como o gênero literário que
surge dentro de um contexto histórico marcado como a
gênese do pensamento burguês, grosso modo datada no
Século XVII, quando o mundo vê surgir na cena a figura de
Dom Quixote de La Mancha, criação do espanhol Miguel de
Cervantes, que com sua criatura fez nascer o adjetivo
quixotesco, meio-irmão do adjetivo sonhador, mas que
também remete à ideia do herói. Assim, no imaginário
popular, ser Quixotesco nada mais é do que ser sonhador e
ser herói ao mesmo tempo. E, considerando que o papel do
herói é (real)izar o sonho, a partir de seu ato único, individual,
de livre iniciativa, a materialização de um sonho passa, então,
por este ato liberal do herói. Foi esse entendimento que me
levou a construir a estória que aqui será narrada e optar pelas
teorias que nela são discutidas.
Outro desafio que eu me propus foi construir uma
estória na qual as personagens não tivessem nomes
cartoriais, sendo referidas apenas pelas ações que praticam;
assim é que apenas a personagem central possui um nome:
Noêmio da Silva, que, na boca dos amigos manés - cujo falar
local, como estudos linguísticos já mostraram, tende para um
uso excessivo de diminutivos -, com o tempo vira Noeminho,
e depois Neminho, que pode ser também o diminutivo do
nome Nemo (do grego = ninguém). Com isso, o objetivo foi
criar uma estória cuja personagem central é Ninguém
(alguém é ninguém) e assim dar uma pequena mostra de
como nossa língua é rica de possibilidades, para construir as
ideias de mundo, as ideias do real, que é quando fazemos uso
2
dela (falando ou escrevendo) para materializar o que é
apenas ideia (pensamento, imaginação, sonho).
E já que as personagens não receberam nomes, por
consequência outro desafio se impôs: evitar ao máximo
qualquer descrição física delas. Tal decisão se justifica porque
a intenção do texto é mostrar que qualquer um pode se
tornar um herói (ou qualquer das outras personagens), e por
isso, por essa possibilidade de cada um, de qualquer um,
qualquer pessoa ser qualquer um (até o herói), eu preferi
optar pela ausência de referentes físicos e de nomes,
deixando essa liberdade para o leitor, tornando a leitura mais
lúdica. Assim, cada leitor pode vestir a “roupa” do herói (pois
ela “vai caber em qualquer corpo”).
No que se refere aos assuntos tratados na narrativa,
convém ressaltar que todos eles (em especial a colonização
da ilha, a livre iniciativa, a representação do Estado e algumas
ideias monetaristas) são exercícios de “liberdade poética”,
portanto não representam necessariamente uma visão
acadêmica, oficial, das teorias. Elas surgem no texto para
compor a estrutura da narrativa e espero que o leitor usufrua
o texto como obra de ficção e não científica. Da mesma forma
digo isso com relação aos temas da área de Língua e
Literatura, cuja profundidade não se poderia discutir aqui.
E neste ponto do prefácio, é preciso fazer mais uma
ressalva: que as personagens aqui presentes são mera criação
ficcional e não têm qualquer relação com nomes ou pessoas
da realidade.
Essa ressalva tão comum, mas tão necessária, deve
ser dita, pois tenho como proposta fazer o público local
refletir que, se a cidade quiser se inserir num panorama de
literatura nacional (e até mesmo mundial) precisa aprender a
“descolar” aquilo que é ficção daquilo que é realidade. Como
toda grande cidade do mundo, Florianópolis precisa aprender
3
a conviver com a ficção, com a abstração, ou seja, quando se
estiver falando de criação artística, o consumidor local desta
criação (e a cidade como um todo) precisa aprender a operar
com qualidades e relações e não com a realidade. É desse
modo que torço para que cada leitor faça esse descolamento,
e evite buscar aqui qualquer relação com nomes e pessoas do
real. Afinal, não importa a cara, nem tampouco o nome: vilão
é vilão; e infelizmente temos vários vilões nesta nossa cidade.
Feitas essas reflexões, posso dizer que esta não é,
portanto, uma obra “panfletária” no sentido político e
tampouco tem a intenção de apontar qualquer culpado com o
fato de existir o problema aqui apontado, ou mesmo dizer
que existem culpados. Nada disso! Muito menos fazer
qualquer conexão entre as personagens e a estória narrada,
com fatos ou pessoas da cidade – É chegado o momento de
abstrair!
A intenção aqui é, claramente: construir um texto de
natureza literária e a partir dele apresentar para a cidade, de
um modo artístico, na forma de uma parábola, um problema
que se insere num quadro de problemas reais da
modernidade e, a partir daí, iniciar uma discussão que precisa
ser urgentemente realizada.
Mas como discussões dessa natureza são chatas e
cansativas na opinião de muitas pessoas, quero colaborar
para o debate propondo uma abordagem do problema não a
partir de pilhas e pilhas de projetos técnicos, gráficos, mapas
etc. etc. etc., aumentando ainda mais o tecnicismo e
excluindo o cidadão leigo (pois é isso o que tem sido feito até
hoje), mas sim utilizando a arte, a literatura, a parábola, para
fazer uma discussão mais prazerosa, mais informal (ou menos
formal) do problema e desse modo incluir qualquer pessoa no
debate – e não somente aquelas que a maçonaria dos
“técnicos” permite que se manifestem.
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Por isso essa forma romanceada de tratar aqui da
saga de Neminho Silva, que deve ser recebido por todos
como um herói de natureza urbana e ecológica – e mais
nada! A intenção aqui é, apresentar ao leitor uma estória
cujas tensões, embora envolvam algumas teorias clássicas e
se manifestem no terreno político, têm como temática
principal e foco de interesse a ecologia, que é em minha
opinião, o mais urgente problema urbano que a cidade
precisa discutir e enfrentar se quiser, de verdade, tornar-se
exemplar aos olhos do mundo.
Peço, portanto, a todos que se identificarem com a
temática da obra, que, a partir dessa identificação,
redupliquem infinitamente a quixotesca vontade de lutar de
Neminho; assim estaremos colaborando para melhorar o
nosso ambiente, o mundo.
Florianópolis, 2015.
Sérgio Meira (Soma)
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Capítulo 1 - A CIDADE E A PONTE
O lócus da estória – A musa da estória: a donzela metálica
Pontes fascinam as pessoas. Pontes embelezam as
cidades e são muitas vezes uma referência, um motivo de
orgulho; basta ver quantas cidades reconhecemos apenas
olhando para a fotografia de sua ponte famosa.
É o caso da cidade de Florianópolis, localizada na ilha
de Santa Catarina, no Sul do Brasil, um dos cenários desta
estória, facilmente identificável quando olhamos para a
fotografia de sua ponte mais famosa: a Hercílio Luz.
Na foto, em primeiro plano está a parte insular da
cidade (o centro comercial). No plano central estão as pontes
que atravessam o canal de mar e fazem a conexão ilhacontinente (ou continente-ilha): a ponte Hercílio Luz é a
solitária da direita, a cada dia mais difícil de ser vista do
Morro da Cruz, quase “encoberta” pelos altos edifícios que
vão tomando conta da paisagem. Ao fundo, a parte
continental da cidade, com destaque para o bairro do
Estreito, onde habita o herói desta estória.
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A Hercílio Luz foi a primeira ponte, e surgiu na vida da
cidade em 1926, para ligar os dois lados – ilha e continente –
que cresciam separados pelo canal de mar, onde até 1920
costumavam passar os navios, tanto para o norte como para
o sul.
A travessia do canal para ambas as comunidades só
era possível através de pequenas embarcações; com a ponte
tornou-se possível a entrada de veículos na ilha, o
intercâmbio de pessoas, a passagem da adutora de água e,
conforme consta do projeto original, de uma linha férrea, a
qual se sonhou que chegaria até a Ilha, mas nunca foi
construída.
Para uma cidade insular, as pontes têm fundamental
importância. Basta dizer que, assim que a primeira ligação
entre ilha e continente foi construída, a cidade experimentou
de imediato seu primeiro boom.
As duas pontes seguintes, construídas nos anos
1970/80, marcaram a segunda onda que transformou
Florianópolis. Diferentemente da primeira, construída
totalmente com ligas de ferro, as outras duas são de concreto
armado e possuem um desenho comum, retilíneo, sem graça.
Os habitantes de Florianópolis, tanto os insulares
quanto os continentais, têm uma forte ligação com suas
pontes, pois elas acabam fazendo parte da vida de cada um,
diretamente; a ponte é a entrada e a saída, a passagem, o elo.
As pontes, quando belas, também podem se tornar
objeto de veneração, seja ela coletiva, como é o caso de
tantas cidades que têm nelas o seu principal ícone, seja ela
individual, como é o caso de tantos artistas que fazem delas
suas musas, pintando, esculpindo, fotografando ou mesmo
descrevendo em poemas as suas formas delgadas e
elegantes, sem falar ainda da veneração paternal dos
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engenheiros ou arquitetos (e das empresas) que as
constroem.
Esta é a Ponte Hercílio Luz, principal cartão-postal da
cidade de Florianópolis e “musa” inspiradora desta estória.
Com aproximados 830 m, e um vão de quase 340 m, ela
encanta, antes de tudo, pela beleza das linhas metálicas;
atualmente, é única em seu estilo, já que, das outras duas
“irmãs”, a primeira teve um fim trágico, desabando; e a
segunda foi desmontada por precaução. Assim, restou a ela a
missão de encantar pelo seu belo estilo.
Ao ficarem sabendo que ela vive hoje “solitária, sem
2
suas irmãs” , inexplicavelmente alguns, encantados, sentem
vontade de cuidar dela, de protegê-la.
A partir daqui iremos conhecer uma estória fantástica
sobre um desses encantados, que, certo dia, cansou de
esperar que o poder público – ou alguém - salvasse a sua
linda donzela metálica e resolveu dar, ele mesmo, um
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diferente rumo ao triste fado de sua musa, ameaçada de
desabar, de ruir.
Vamos, então, primeiramente, conhecer nosso herói?
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Capítulo 2 - NEMINHO SILVA
A questão da origem do povo da ilha: portugueses ou
açorianos? – Ser um homem continental/ser um homem
ilhéu – A questão da originalidade - O 5º Império de
Fernando Pessoa – De como Neminho Silva deixou (mas não
deixou) de ser soldado do 5º Império – O verdadeiro império
será o 6º, e não o 5º
Muita gente pensa que todo o povo que habita a ilha
é manezinho. Nada disso! Neminho Silva, por exemplo,
achava que ao menos um de seus quatro troncos familiares
era açoriano – por causa do nome -, mas, para sua surpresa,
quando conversara numa manhã de sábado na Praça XV com
um senhor idoso integrante de um grupo folclórico açoriano
que viera se apresentar na ilha, ficou sabendo que, das três
famílias portuguesas cujos nomes ele herdara, nenhuma era
encontrada naquelas ilhas. E foi assim que ele resolveu
investigar o assunto mais a fundo e confirmou que suas
famílias eram todas do continente: uma delas viera de
Portalegre, outra de Lisboa, outra de Braga e a última, de
nome Silva (os “da selva”), ele herdara por aqui mesmo; e era
esta que lhe dava o “coroamento”, lhe marcava o sobrenome
oficial: chamava-se Noêmio da Silva. O primeiro nome era
uma homenagem que seu pai quisera prestar a uma irmã, de
nome Noêmia, falecida quando ele estava chegando ao
mundo, mas desde bebê passou a ser chamado
carinhosamente de Noeminho, e com a síncope
metaplasmo típico do falar mané – virou o “Neminho”.
Famílias do continente! Neminho Silva gostava dessa
denominação e brincava com a analogia de morar no
continente, ser de famílias “do continente” (como o bairro
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continental do Estreito e seu correlato continental, Portugal3)
e não “da ilha” (como a ilha de Santa Catarina e suas
correlatas, as ilhas do arquipélago dos Açores). E, como
costumava lembrar ao discorrer sobre este assunto, os
primeiros portugueses que colonizaram a ilha do Desterro
(nome antigo da ilha de Santa Catarina), na maioria militares,
na verdade não habitavam na ilha, pois esta inicialmente era
um local de degredo, de desterro, uma prisão. Esses
portugueses que para cá vieram trouxeram suas famílias, mas
não eram “malucos” de mantê-las vivendo na ilha, junto dos
desterrados; as famílias decentes, “direitas”, ficavam no
continente, em São José da Terra Firme. Foi assim que a ilha
começou a existir: através das famílias dos militares
portugueses, e não dos colonos açorianos, que só chegaram
muito, mas muito depois (Neminho não entendia porque a
história, a tradição do povo local ignorava esse fato tão
explícito e insistia em proclamar sua raiz tão somente
açoriana: “eles negam parte da própria raiz, que coisa mais
estranha”, refletia ele). Seguro então naquela época era
morar no continente: na ilha ficava só a escória, a
“cacalhada”4 (os prisioneiros do governo que eram mandados
de todo o país para cá). Por isso que a ilha se chamava
Desterro ou, “para amaciar”, Nossa Senhora do Desterro,
quando passou a “receber” as famílias dos militares,
obviamente, todas cristãs.
Neminho sentia-se um homem continental, da terra,
em oposição aos ilhéus, o que, na calada, lhe dava certo sabor
de superioridade. Afinal de contas, não era um “Mané”, mas
sim um homem continental – e sentia-se como o português
universal do Fernando Pessoa, o oposto daquele português
confinado, nacionalista, que ele via nos insulares (da Ilha) de
Santa Catarina e que de certa forma - acreditava - era o que
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justificava o exacerbado bairrismo deles – o nacionalismo
açoriano, o “nacionalismo mané”.
Quem mora no continente - achava Neminho -, de
certa forma é mais aberto. Quem mora na ilha fica muito
confinado, muito bairrista; já quem mora no continente é
menos confinado, é mais cosmopolita, tem a sensação de
saída, de liberdade, de morar em quatro, cinco cidades ao
mesmo tempo e não depender de “uma única saída para
sair”, como ele gostava de dizer, para acentuar essa única
possibilidade de escapar (uma inferioridade do povo da ilha)
no caso de uma emergência. Aliás, era essa possibilidade –
escapar – que fizera com que sempre preferisse morar no
continente, de onde sair nunca seria um problema.
E assim, geograficamente localizado no continente,
mas usuário diário da ilha, desde pequeno acostumara-se a
atravessar a ponte para lá chegar. Quando criança, era a linda
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ponte de ferro , única no canal do Estreito, imponente, que
suportava todo o tráfego nas suas pistas cobertas com
pranchões de madeira, só muito mais tarde substituídos pelo
asfalto. Depois, ela foi chegando ao seu limite, aos poucos
sendo comida por um câncer chamado ferrugem e certo dia
não conseguiu mais suportar nem mesmo seu próprio peso,
sob o risco de desabar. Para tristeza geral, teve que ser
fechada e só restaram as frias pontes de concreto, feias e sem
graça, para a travessia do canal. E assim ela ficou: solitária no
mundo (pois perdera suas duas únicas “irmãs”) só para ser
vista e lembrada. Ou amada pelos encantados, uns poetas,
outros sonhadores, outros “amalucados”, alguns até lhe
fazendo versos.
Neminho sempre quis ser um escritor, mas esbarrava
naquele velho problema que Silviano Santiago já gastara
páginas e páginas a analisar, sobre a questão da dificuldade
6
de ser original hoje em dia . Neminho adorava o Dom
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Quixote, tanto o livro quanto a personagem7. Se pudesse
escrever um livro, gostaria de escrever este, ou também algo
do tipo O Pêndulo de Foucault 8, mas sabia que, se tentasse
algo assim, no máximo seria mais um Pierre Menard, do Jorge
Luis Borges9, ou poderia cair no ridículo de sofrer a pecha
pública de plagiador ao defrontar-se com a questão da
originalidade de uma obra que, por já ter sido escrita, o
impedia – e o proibia – de (re)escrevê-la, mesmo com as
modificações que resolvesse fazer para lapidar, ao seu modo,
a estória. Assim, o drama do escritor da América, do mundo
“novo” - que toda vez que escreve uma obra acaba
recebendo críticas de que seu texto parece com a obra de
fulano ou beltrano lá da Antiguidade, lá do mundo “velho” –
constituiu sempre o pavoroso impeditivo à carreira literária
do nosso “português continental”: tudo que ele escrevia, já
nascia parecendo com algo já escrito.
A depender dele como um dos guerreiros a lutar pela
consagração do 5º Império – que, conforme o sonho de
Fernando pessoa, será não o triunfo das armas, mas o
triunfo da língua portuguesa sobre todas as irmãs latinas da
Europa e, quiçá, sobre o mundo - não seria ainda dessa vez
que a língua de Dom Sebastião se firmaria no alto do pódio da
humanidade, pois, ao escolher ser professor, Neminho
acabou, de certo modo, contribuindo para retardar a
consagração do 5º Império10. Gostava de pensar sobre essa
sua “honorável desonra” sem remorso, uma vez que, ao optar
trabalhar com a gramática, também era um guerreiro (afinal,
não era também parte do sonho de Fernando Pessoa um
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império de gramáticos? ), também fazia sua parte para
solidificar o 5º Império, difundindo a língua-pátria-quereedificará-Portugal. Mas, mesmo guerreando em favor de
Portugal, Neminho costumava defender a teoria de que não
mais do que um ou dois séculos bastarão para criar um novo
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“galho” na árvore das línguas, quando então nascerá o
idioma brasileiro, filho do português e neto do latim,
surgindo, aí sim, a verdadeira Nação Brasileira, que falará o
brasileiro, língua que a representará na verdadeira essência:
haverá, enfim, um falar brasileiro.
- O 6º Império, esse sim o nosso Império, logo, logo,
mostrará seu primeiro estandarte – dizia ele. Um estandarte
que poderá conter qualquer frase escrita no idioma
“brasileiro”, a verdadeira língua nacional: On co tô? Kem co
sô? On co vô? On tu Vaz? Kés di quê? Tás tola? Tás aí? Tás
esperano oms? Ocê ta aí? Ocê ta comeno vrido minino? É pra
você ou pra mim fazer? Eu vi ela: ela tá ca cara na janela, cos
pé no sopé, cas mão no corrimão - e que todo brasileiro
reconhecerá como sua língua, plenamente compreendida,
honesta, com uma gramática da qual ninguém fugirá com
pavor. Um dia nosso idioma ainda vai impor como regra: o
mínimo de redundâncias! – defendia ele.
- Quanto menos redundâncias, mais próxima é a
língua do povo: Nós vamo na casa dos mano pra encontrá as
mina! Isso sim é língua brasileira falada. Como gramáticos
vamos ter muito trabalho, mas quem manda é a língua, a fala,
o enunciado... A vida da língua está no uso, nas ruas... Isso é
que tem de imperar! Fala culta é mais uma forma de poder,
de domínio da elite sobre as pessoas comuns – Dizia às vezes,
de maneira informal.
E para se fazer mais claro, insistia em outro exemplo,
para demonstrar a dificuldade de a língua formal dar conta da
realidade da fala no cotidiano:
- A gente é assim ou nós somos assim? Qual o certo?
E se a gente é nós, então também vale dizer “nós é” assim? –
indagava.
E ele mesmo respondia:
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- Veja que podemos dizer: nós somos assim ou a
gente é assim... e temos que assumirmo-nos assim ou e a
gente tem que se assumir assim... Em português do Brasil,
essas são formas possíveis, mas creio que com o tempo o
Brasil será apenas a língua do pronome “a gente” e não do
“nós”.
Era, portanto, em conversas desse tipo, que Neminho
defendia a sua teoria em defesa do 6º Império, que há de vir,
cheio de glória – brincava ele.
Conhecemos, assim, um pouco sobre Neminho Silva,
professor, cidadão comum, que tanto admirava Dom Quixote,
e quem, em certo dia, levando dois amigos para conhecer a
ponte Hercílio Luz bem de perto (como sempre fazia com
todos os amigos que vinham conhecer a cidade), olhou para
sua velha e amada ponte e, percebendo um pequeno detalhe
que revelava o quanto ela estava abandonada e doente,
revoltou-se com o descaso da cidade (que dela se valia para
se promover, como quem explora uma mulher bonita, mas
dela não cuida) e teve uma ideia, inspirada na “valentia” de
seu herói, tomando uma decisão que mudaria para sempre a
sua vidinha pacata.
Vamos conhecer, então, que ideia foi essa?
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Capítulo 3 - O MIMO DA DONZELA: O PARAFUSO
A importância de um pequeno detalhe – Neminho percebe o
parafuso e salta para apanhá-lo
Às vezes, como já disse o escritor angolano Ondjaki (e
tantos outros mais), numa pequena coisa podemos
encontrar as coisas grandes da vida; não é preciso muito,
basta olhar12. Assim, um pequeno detalhe, que, para a
maioria das pessoas, passa despercebido, pode se constituir
no motivo principal para alguém tomar uma atitude - e às
vezes ficamos tentando entender o que levou tal pessoa a
fazer isso ou aquilo, embora nossa percepção seja inútil para
decifrar o mistério.
No caso de Neminho, estava ele na cabeceira da
ponte com amigos turistas observando os detalhes da
estrutura e comentando justamente sobre a ferrugem visível
que a ameaça. A ponte do estilo pênsil é toda feita como uma
construção de “palitos”, que vão sendo encaixados, unidos.
Nas junções desses palitos, são colocadas placas para
reforço, fixadas com uma série de parafusos e arrebites, que
dão um estilo “blindado” à construção. Esses arrebites e
parafusos têm no mínimo a espessura de um dedo médio de
uma pessoa adulta. E foi numa dessas junções que Neminho
percebeu um dos parafusos solto, quase caindo da placa.
Para qualquer pessoa, a imagem poderia ser
simplesmente vista, como a de um reles parafuso que estava
se soltando de uma placa pela ação de uma força física
qualquer (peso, vento, corrosão etc.), mas para Neminho
aquilo dava bem a medida do problema todo: sua musa
começava a não suportar mais o próprio peso; e como aquele
parafuso, deveria haver muitos outros em igual situação. E
ficou imaginando que cada placa daquelas, contendo quase
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vinte, trinta ou cem parafusos, multiplicada por mais mil,
representava vinte, trinta, cem mil parafusos; e ficou
imaginando também as vigas de ligação, num total de quase
mil, que continham cada uma mais de duzentos arrebites; e
ficou imaginando ainda os parafusos maiores que unem o vão
inteiro a cada um dos cabos que o sustentam no ar por quase
quatrocentos metros... e os números foram se acumulando:
vinte mil, cem mil, duzentos mil, dois milhões, vinte milhões,
milhões, milhões, milhões... E de repente a imagem assumiu
proporções gigantescas e ele viu incontáveis parafusos em
situação de perigo, como pequenas feridas a denunciarem
que, por dentro, o corpo da sua amada deveria sofrer muito
mais.
- Vejam o estado de abandono em que ela se
encontra; é de dar dó, não é mesmo? – indagou tristemente
aos amigos, recebendo deles um sinal silencioso de
concordância.
E completou:
- E já faz anos e anos que essa situação persiste; e
mesmo assim eles continuam a faturar em cima da fama
dela, embora não dê mais para disfarçar o abandono, como
vocês podem ver. Uma dó!
Olhando mais uma vez o parafuso quase a cair, não
teve nenhuma dúvida em arriscar-se a saltar uma pequena
grade que impede o acesso de pessoas à pista da ponte, para
pegá-lo; e o pegou. Mal sabia ele que dali por diante aquele
parafuso faria parte de sua vida de forma tão significativa, e
só mais tarde ele compreenderia o seu real significado: um
mimo oferecido a ele por sua donzela, para que ele sempre
o carregasse junto do peito e pudesse lembrar-se dela nas
horas de luta.
E assim ocorreu: um reles parafuso, algo que para
mortais comuns é um objeto banal, foi o detalhe que tornou
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da noite para o dia o nosso “encantado” professor em
protagonista de uma peculiar estória romântica, se assim
podemos defini-la.
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Capítulo 4 - EU VOU SALVAR A PONTE
A dor ao ver sua musa sofrendo faz de Neminho um herói –
A “cafetinagem” malvada sobre a velha senhora – A decisão
de salvar a musa
O que Neminho Silva não engolia era um fato que se
explica melhor pelo seu sentimentalismo: como pode alguém
se valer tantos anos de algo tão importante como a ponte,
que marcou a vida de tanta gente, e simplesmente abandonála no caminho, jogar fora feito um bagaço imprestável aquela
que serviu de maneira tão gloriosa a um povo? A ponte não é
gente, “mas é como se fosse”, pois foi útil, ajudou, serviu,
auxiliou, colaborou, enfim, esses são todos verbos carregados
de “sentido humano”, o que a torna quase humana.
- E hoje ainda encanta, alegra o olhar, atrai gente de
muito longe para vê-la. Como pode uma coisa assim tão
importante na vida de tanta gente ser desprezada e ficar ali,
na nossa frente, todos os dias, e todos passando por ela
indiferentes? Como se ela não significasse nada... Que
desumanidade! Que maldade! Não se faz isso nem com o pior
inimigo. Como um povo podia ser assim tão mal agradecido a
algo que diz lhe ser tão caro? Que falácia! Se a ponte fosse
realmente valiosa para eles, já teriam feito alguma coisa para
salvá-la. E um povo que se diz orgulhoso dela! Putz! Comentava.
O interminável debate sobre a recuperação da ponte
só serviu para fazer a cama de meia dúzia de oportunistas
que todos os anos, em épocas eleitorais, surgiam e surgem
com propostas mirabolantes. Já é folclórica a relação dessas
propostas: que seria aberta ao tráfego geral e depois apenas
para automóveis, que sobre ela seria feita uma área de lazer,
que na cabeceira seria erguido um museu com memorial e
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centro cultural, que sobre ela construiriam um boulevard com
cafés e lojas (imagine isso com o vento que por ali passa), que
carruagens fariam o trajeto levando turistas (para lembrar os
passeios no Central Park de Nova York – Très chic!), e que
inclusive linhas de trens urbanos futuristas passariam por
ela... Isso numa cidade que sequer tem uma linha de barco ou
de trem... E, o pior, algumas dessas figuras acabaram
eleitas...
Para Neminho, isso soava como uma pura exploração
do “corpo” da velha senhora, como uma “cafetinagem
barata”.
- E isso tem que acabar!
O que contribuía para deixar Neminho mais triste era
o silêncio tanto da imprensa quanto da população, que não
cobrava das autoridades uma ação que colocasse um fim
àquela situação vergonhosa.
Mas nem tudo estava perdido, achava Neminho. Não
era o fato de hoje em dia a imprensa não se manifestar que
impediria que o assunto virasse notícia. Ele iria mostrar a
todos que sozinho, tal e qual um Dom Quixote, iria fazer um
movimento – até mundial se preciso fosse - para salvar a
ponte.
E sabia muito bem como começar a fazer isso. Se
desse certo, seria no mínimo um acontecimento digno de um
filme – idealizava ele enquanto sua mente vagava pelos
caminhos de seu mirabolante plano.
Um plano muito ma-lu-co, sorria dizendo para si,
prevendo a surpresa dos que iriam conhecer suas ideias...
20
Capítulo 5 - O PLANO TEM INÍCIO
As mil possibilidades que a internet abre para os cidadãos
dos países pobres – Os e-mails – As intenções de Neminho
ao colocar seu plano em ação - É na beleza da ponte que ele
aposta
Um fato incontestável é que a popularização mundial
da internet possibilitou novas oportunidades e facilidades na
comunicação humana, principalmente para os habitantes de
países pobres, que podem valer-se da rede mundial de
computadores para acessar conhecimento, pedir auxílio e
fugir da mesmice em qualquer local do país, seja Rio Branco,
Vitória, Belém ou mesmo Parintins, Porto Alegre do Norte,
Mossoró ou Bom Retiro. Assim sendo, a internet tem
permitido que muitos brasileiros possam buscar auxílio,
procurar novas ideias, pessoas, fazer contatos e buscar ajuda
onde bem possam imaginar.
É essa facilidade que vai permitir a Neminho colocar
seu plano em ação: enviar e-mails para os principais jornais
de todas as cidades importantes que têm como símbolo uma
ponte, como Sidney, San Francisco, Nova Iorque, Londres,
Colônia, Veneza, Montreal, Lisboa, Porto, Tóquio, Hong Kong,
e muitas outras, contando aos editores ou aos principais
jornalistas de cada um dos jornais escolhidos a tristeza de ver
sua cidade “maltratada, magoada, esquecida” pelos
governantes – sujeitos arquetípicos do sistema político do
terceiro mundo -, a tal ponto que o próprio símbolo-maior de
seu orgulho (sua ponte) tornou-se “peça de barganha
eleitoral” e nada mais, pois afinal há décadas se diz que “a
ponte será recuperada” e... NADA. E o tempo passa, a
ferrugem aumenta, o perigo cresce e o fim se aproxima. É
como ver uma musa desfigurar-se enquanto políticos que se
21
passam por poetas lhe enviam louvores e lhe tecem elogios...
Só porque ainda ela continua de pé, e eles sabem que ela
atrai, e atraindo lhes propicia ganhos – e essa exploração
“turística” vai se perpetuando... Tal situação não poderia mais
continuar assim!
É a tristeza na sua alma, ao ver tamanha maldade,
que Neminho relata nos e-mails, apelando para todas as
formas de sentimentalismo que uma ação dessa natureza
requer, visando a atingir um efetivo grau de convencimento.
Sua intenção é que lá do outro lado alguém influente possa
sensibilizar-se com uma estória maluca dessas: um homem
sozinho querendo salvar uma ponte e assim salvar o orgulho
de uma cidade inteira.
- Quixotesco demais! Isso no mínimo vai chamar a
atenção, nem que seja só como reportagem – disse ele; e
sorriu ao dar-se conta dessa imagem heroica.
Felizmente Neminho dispunha da internet, o que
baratearia em muito os custos e o tempo que teria que dispor
para montar seu projeto, anexar fotos, gráficos, planilhas de
custos... Enfim, ele poderia montar um dossiê com todos os
dados necessários para ajudar no convencimento e , devido
ao baixo custo (por ser digital), poderia reproduzir ao infinito
13
(agora ele entendia o que Walter Benjamin queria dizer
com sua tese da era da reprodutibilidade), podendo enviar
seu apelo até para pequenas cidades - coisa que ele preferiu
não fazer porque, afinal de contas, seu plano envolveria uma
vultosa soma em dinheiro.
- E o dinheiro está na cidades grande! – sabia ele.
Após formular o projeto, ele passa a falar de seu
objetivo: pedir que um jornalista influente abrace sua ideia e
o ajude a pedir socorro a todas as cidades do mundo que
tenham orgulho de suas pontes, para que façam um
movimento destinado a salvar a ponte que é o orgulho de
22
uma cidade pobre, distante, lá de um país do terceiro mundo,
com todas as mazelas que isso possa significar.
É em nome da beleza que ele vê na ponte de sua
cidade que ele quer lutar, para impedir que a magnífica obra
acabe ruindo e se perca, virando apenas lembranças. Essa sua
luta se traduz numa ideia: fazer um movimento para angariar
fundos e salvar o orgulho da “pobre cidade do terceiro
mundo”. É na possibilidade de criar uma “corrente mundial
de solidariedade” (o que num mundo tão violento tem um
significado muito forte, como a lembrar de que nem tudo
está perdido, que a humanidade ainda tem solução etc. etc.
etc. – ou seja, uma ação global politicamente correta) que
Neminho aposta.
- Quixotesco demais!
23
Capítulo 6 - A BELEZA, A BELEZA DA CIDADE E DE SUA MUSA:
A PONTE
O que disse Neminho em seus e-mails para convencer os
jornalistas de sua intenção? – O maior atributo da donzela é
a beleza - A mini Golden Gate inspirou a Califórnia brasileira
– A frustração de quem quer passar na ponte, mas não
pode, porque ela está, há muitos anos, “doente”
O que disse Neminho em seus e-mails para convencer
os jornalistas de sua intenção? Sabemos que ele teria que
apelar para toda forma de convencimento e a primeira que
lhe veio à mente foi falar daquele atributo que geralmente
nos romances ocupa o primeiro lugar quando falamos da
musa: a beleza. A beleza é inerente à musa e é por ela que o
herói inebria-se. Há outros atributos, como o caráter, a
“virgindade”, a discrição, mas a beleza é sempre o atributo
que atrai mais o herói romanesco. Assim, para apresentar sua
musa e sua cidade, Neminho valeu-se então de um discurso
mais ou menos no tom que segue:
“As pessoas devem à sua autoestima muito daquilo
que espelham com orgulho. Assim, uma mulher bela
estampará orgulhosa sua face na rua. Um homem belo
também. Ambos cuidarão de seu corpo e seu rosto com
extremo cuidado, pois a beleza pede toda uma preocupação
com seu entorno (saúde, higiene, caráter, comportamento,
atributos...). Assim como as pessoas, uma cidade bela
também precisa manter sua autoestima; e se houver algo que
eclipse, que manche sua beleza, isso terá um peso grande na
manutenção desse orgulho.
Minha cidade é belíssima, e se orgulha disso.
Florianópolis (também chamada de Floripa) é um pedaço
privilegiado de mundo. Uns dizem que temos a beleza da Baía
24
de Nápoles, outros, que parece Nova Zelândia, outros, que é
San Francisco... Enfim, vivo num lindo lugar (em Anexo
seguem links com páginas sobre a cidade para todos
conhecerem).
Floripa, por estar localizada numa ilha, chamada de
ilha de Santa Catarina, é identificada por seu principal ícone:
uma ponte, chamada Hercílio Luz14. Uma linda estrutura
pênsil que só foi erguida de forma similar em mais dois locais
no mundo e que hoje está solitária (uma desabou e outra foi
desmontada por segurança), o que a torna ainda mais
preciosa, a tal ponto que, entre diversas estórias que não se
sabe se são ou não verdadeiras, corre “à boca-pequena” que
a própria empresa que a construiu tentou recomprá-la, para
tê-la como sua joia preciosa. É uma mini Golden Gate de San
Francisco, uma mini Verrazano Narrows de Nova Iorque, com
toda a elegância e leveza que marca o desenho dessa forma
de ponte onde quer que seja construída – e dificilmente não
ficamos encantados ao olhar uma delas. É reconhecidamente
a musa da cidade e aqui também digo que ela é a minha
musa, motivo desse meu ato em seu favor.
A ponte da minha cidade é assim: amada por todos, a
tal ponto de ter sido elevada a ícone principal, marca
característica da cidade para o mundo. Para mim, é a minha
donzela metálica. E foi graças a ela que a cidade se fez
(re)conhecida e atrai gente de todo lugar para conhecê-la,
bem como as lindas praias da ilha. Foi também graças ao fato
de ela parecer a Golden Gate que a cidade um dia se
imaginou uma San Francisco brasileira; e aí veio por extensão
o Califórnian way of life com todos os seus mitos e também
por extensão o surf, que fez da cidade sua capital nacional.
E como o espírito da Califórnia acabou imperando, a
cidade é o paraíso de quem quer uma vida boa, alternativa,
ecológica; e também tornou-se o paraíso para os esotéricos,
25
gente estranha e muito boa que deu uma nova cara à ilha.
Assim temos desde freudianos e lacanianos, leitoras de todo
tipo de cartas e sortilégios, bruxas e diversos ritos célticos,
até pós-apocalípticos, ateus e anarquistas de toda a espécie,
mas todos convivendo em espírito proativo. A ilha é um
verdadeiro “caldeirão de bruxa” e toda essa população
esotérica (que não é pequena) colabora para o reforço do
mito da “ilha da magia”, que é como a cidade se tornou
conhecida. Mas também tem o seu lado Califórnia-chic,
Malibu, o que atrai todos aqueles que querem viver com
qualidade.
E tem, evidentemente, toda a espécie de maluco no
sentido “californiano” (pós-Carlos Castañeda, se me
entendem). Isso explica porque em Floripa raramente se toca
axé music e se toca tanto reggae e rock and roll. Depois da
cidade de São Luiz, no Estado do Maranhão (esta sim, por ser
próxima do Caribe, justifica a preferência local pelo som
caribenho), Floripa é o lugar do país onde mais se escuta
reggae, com a curiosidade de que a cidade está a 5.000 km do
Caribe, e a 5.000 km da Terra do Fogo, o fim do mundo – um
fenômeno de abrangência da música da Jamaica, ainda mais
se pensarmos que a cidade é terra de branco, já que a maioria
de sua população é descendente de europeus.
A cidade tem mesmo uma magia: quem a conhece
não quer sair mais...
Um dia acredito que todo o mundo vai ouvir falar
muito daqui.
Mas a ponte que fez a fama da cidade certo dia
apresentou um problema estrutural15 e foi interditada; após
anos e anos de discussão, num interminável conclave técnicoburocrático, nenhuma solução para sua recuperação foi
adotada e ela encontra-se lá, abandonada, à espera de sua
recuperação pelos que mais deveriam cuidar dela: o governo
26
e uma gigantesca rede de industriais e comerciantes do
turismo e das imobiliárias, que exploram há anos a sua
imagem e nada fizeram para evitar a sua decadência.
Hoje todos os que vêm à cidade chegam com a
expectativa de passar na ponte, mas ficam frustrados ao
saber que este passeio está proibido.
E assim arrastam-se os anos... Muitos anos, décadas,
e a beleza da musa está cada vez mais desgastada...
Agora, para piorar, ela pode ruir, pois sofre com um
câncer corrosivo que acabará por provocar a sua queda, o
que será muito triste, principalmente para a autoestima da
minha cidade.
E é isso que estou tentando evitar ao pedir socorro a
todas as cidades que tenham orgulho de sua ponte, para que
se juntem num movimento para arrecadar fundos para salvar
a “musa de um autoproclamado Quixote da cidade de
Florianópolis, Floripa, no sul do Brasil”, porque entendo que
só há um jeito de resolver esse impasse: é conseguir dinheiro
para assim desmascarar o álibi do governo, que se alicerça na
falta de verba para nada fazer, e obrigá-lo a restaurar a glória
da imponente donzela metálica.
Ajudem-me a salvar a minha musa!”
E foi mais ou menos esse texto que diversos editores
jornalísticos em todo o mundo leram assim que abriram suas
caixas de e-mails nos dias seguintes.
A sorte estava lançada!
Agora era aguardar, para ver de onde poderia vir o
auxílio.
27
Capítulo 7 - O EDITOR-CHEFE DO NEW TIMES16
O Editor-Chefe do NT lê o e-mail de Neminho Silva e fica
sabendo de sua estória - Ao meio-dia, ele já aceitava que a
estória em si tinha elementos para se transformar num
grande happening - Isso bem explorado “vai vender muito
jornal”
Ao abrir a sua caixa de e-mails naquela manhã, o
Editor-Chefe do prestigiado jornal New Times, seguiu sua
rotina: deteve-se primeiro na leitura das mensagens enviadas
pelos seus contatos mais diretos, respondendo-as ou
encaminhando-as conforme a urgência; depois, fez a leitura
dos e-mails comerciais, respondendo a alguns, e por último
tratou de ler as mensagens encaminhadas por leitores ao
editor, com os mais diversos temas, para selecionar aquelas
que seriam publicadas na próxima edição.
Entre essas mensagens estava o e-mail enviado por
Neminho, e foi com crescente atenção que o Editor-Chefe
começou a inteirar-se da estória. O que ali estava sendo
contado era algo inusitado, pensou ele, à medida que se
enredava na leitura da trama arquitetada pelo nosso herói. E
precisou ler novamente o texto, o que fez, ainda com mais
atenção.
Era uma estória realmente curiosa: um homem
sozinho resolve insurgir-se contra o Estado incompetente e,
por livre iniciativa, quer salvar uma ponte e com ela o
orgulho de uma pequena cidade. E mais curiosa ainda é a
forma que esse homem encontra para fazer isso: pedir
socorro às cidades que se orgulham de uma ponte e com
isso criar uma corrente mundial para salvar sua pequena
musa. O Editor-Chefe pensou que aquela atitude quixotesca,
no mínimo, renderia uma curiosa matéria no caderno de
28
domingo. Mas lá pelas onze da manhã aquela estória ainda
não lhe saíra da cabeça e ele já tinha articulado diversas
ideias como solução para o caso. Ao meio-dia, ele já aceitava
que a estória em si tinha elementos para se transformar num
grande happening, numa grande ideia de marketing para uma
ação global, e, além disso, num grande “espetáculo”: cidades
ricas que se orgulham de suas pontes movimentando-se
numa ação solidária para salvar o orgulho de uma pobre e
pequena cidade do terceiro mundo:
- Isso é puro Woodstock, é puro “paz e amor” –
pensou ele -, vai na contracorrente desse marasmo em que
está esse planeta. Eu e meus concorrentes estamos focados
praticamente em notícias de morte, terrorismo, crise,
aniquilamento, concorrência, difamação, violência... E no
meio de tudo isso um cara sozinho declarando seu amor por
uma ponte e querendo salvá-la da ruína! Isso é amor! Não é
fácil encontrar estórias reais assim facilmente no mundo. E
como isso é raro na mídia... Acho que tenho aqui uma grande
ideia, que pode valer muito e bem explorada vai vender
muito jornal.
E lá pelas quatro da tarde ele já se encontrava
esboçando um projeto de mídia onde relacionava as várias
alternativas para conseguir a quantia que o heroico cidadão
dizia precisar para salvar sua ponte: doações de parceiros
comerciais, possíveis patrocínios e – o que parecia lhe agradar
mais como ideia de marketing – uma série de megaeventos
musicais nas grandes cidades para arrecadar o dinheiro; e já
ia longe a tarde quando ele deu o trabalho por encerrado e
dirigiu-se à rua.
29
Capítulo 8 - O ROQUEIRO
O encontro do Editor-Chefe com o astro de rock no Wheel17
Bar – Ele fala sobre o e-mail e pede uma opinião ao amigo
roqueiro - Um projeto começa a ser esboçado –
Coincidências
Ah, o universo conspira a favor – disse alegre o EditorChefe quando encontrou casualmente seu velho amigo
roqueiro.
- E aí ... Que alegria é essa? O que tá pegando?
- Tem tempo para ouvir uma história?
- Todo o tempo, meu amigo... Vamos ali no Wheel?
Entraram no Wheel Bar, que ficava próximo ao jornal,
um boteco já com ares decadentes, mas que ninguém “da
roda” deixara de frequentar, mesmo que raramente. O
Editor-Chefe considerava aquele o melhor local no centro
para encontrar pessoas quando se quisesse ter uma conversa
mais reservada – e para a conversa de hoje, que pedia o
máximo sigilo, não havia outro melhor. Foi nesse cenário que
ele contou ao amigo roqueiro sobre o e-mail que havia
recebido e as ideias que começava a ter.
Ao conhecer a história relatada pelo amigo, bem
como as alternativas em que ele havia pensado,
especialmente os megaeventos musicais, o roqueiro de
imediato interessou-se:
- Cara, isso é demais! E como você pensa produzir
tudo isso? Vai ser através de concertos? Com que bandas,
produção, datas, enfim, como vai se realizar tudo isso? Você é
quem vai ser o produtor? Ou vai fazer pelo jornal?
- Eu mesmo vou produzir, mas será através do jornal,
pois a intenção é fazer tudo num período curto, talvez em seis
meses, numa média de dois eventos por semana, e aí você
30
sabe que é necessária uma mídia forte, no que somos
imbatíveis. Mas eu resolvi conversar com você porque,
primeiro, preciso de uma opinião profissional e segundo
porque pensei em contar com você para fazer a produção
musical dos eventos.
- Acho que eu posso fazer um pouco mais que isso... –
disse o roqueiro
- De que maneira?
- Como você acha que tem sido minha vida nesses
últimos quinze anos, depois do fim da banda? Vou te dizer:
um ma...ras...mo. Conhece essa palavra? Tédio, meu amigo.
Vontade de fazer tudo para matar a sensação de não estar
fazendo nada. Vontade de chutar o balde. Vontade de virar
Hare Krishna, Mohamad, alpinista... Um marasmo! Só
lembranças, homenagens, entrevistas saudosistas em talkshows, gente na porta pedindo cessão de direitos... E mais
nada acontece. E você sabe, meu amigo, que eu só vivo no
palco... Só tenho tesão ali. Foi o único lugar do mundo onde
tive meus orgasmos de verdade! Às vezes eu acho que a pior
coisa que fiz foi ter parado com a banda. Ganhei muito
dinheiro, é verdade, mas o pessoal não aguentava mais tanta
pauleira e quis parar; mas a única coisa ruim de parar é
quando você não quer parar... Tenho uma ideia... Ainda vou
amadurecer para depois apresentar a você, mas por ora já
posso adiantar: que tal eu conversar com o pessoal e reunir a
banda para promover pelo mundo uma série de shows? E se a
banda se reunisse somente para essa causa? – Falou isso
sorrindo dando a impressão de estar fazendo piada.
- Oh... Isso é sério? Ou é brincadeira? – Indagou o
Editor-Chefe.
- Preciso de “algo novo na veia” meu amigo... E dessa
vez o que tá faltando na veia eu sei o que é: é rock-and-roll....
Ehe! Maluco, maluco, ma-lu-co! Vamos fazer algo maluco...
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Finalmente algo maluco... ma... lu... co. Cara... Algo maluco de
novo!! Uhuuu!
Ao final daquele dia, já em casa, o Editor-Chefe estava
indo tomar um banho quando o celular tocou; no visor estava
o número do amigo. Ao atender, ouviu o grito feliz do outro
lado:
- Rock and roll!! Uhuuu!
A roda começava a girar....
Um segundo telefonema do roqueiro logo depois
seria ainda mais emblemático:
- Escuta essa: você acreditaria se eu dissesse que falei
com o Rod Stewart e ele disse que já tocou lá naquela cidade?
E quer saber quem mais? O Eric Clapton! Até o Eric já tocou
lá.... Coisa maluca!!! É como você diz: o universo conspira a
favor!
32
Capítulo 9 - COM O DIRETOR-PRESIDENTE
O Editor-Chefe tem a primeira conversa sobre seu projeto
com o Diretor-Presidente do jornal - A apresentação do
produto
Na manhã seguinte o Editor-Chefe chegou ao
trabalho com uma decisão já tomada e dez minutos depois
batia na porta da sala do Diretor-Presidente, com quem tinha
uma relação bem informal:
- Bom dia! Preciso ter uma conversa com você, mas
primeiro peço que leia este e-mail que eu recebi ontem e
assim que terminar me ligue que eu volto aqui – disse o
Editor-Chefe, e foi para sua sala esperar que o Diretor desse o
sinal, o que não demorou mais do que meia hora.
- E então? O que você achou dessa história? –
indagou o Editor-Chefe.
- Curiosa, mas só isso. O que você está querendo me
dizer?
- Você lembra da nossa conversa nas últimas férias
sobre a falta que anda fazendo uma história interessante para
vender jornal? Algo completamente diferente? Pois bem,
meu caro. Quais são as nossas notícias nos últimos dez anos?
Violência, terrorismo, corrupção política, crise econômica,
acidentes, tragédias, ou seja, é uma mesmice só; cada edição
de jornal é puro deja-vú. A mídia toda está presa a um
marasmo interminável, só apresentando assuntos que todos
os dias parecem se repetir e matam os leitores de tédio.
- Mas esse não é um problema apenas nosso. É de
toda a concorrência, inclusive – disse o Diretor-Presidente.
- Concordo com você. Mas podemos nos diferenciar
mais uma vez da concorrência – declarou o Editor-Chefe –
Afinal, quantas vezes fizemos isso? Várias, não é verdade?
33
- O que você tem em mente? Indagou o outro.
- Imagina uma história como essa que temos na mão:
no meio de tanta violência e terrorismo, de tanta corrupção e
crises, de tantas tragédias, vem um sujeito lá de uma cidade
do terceiro mundo pedir socorro à humanidade para salvar
não uma vida, mas... Uma ponte... E o orgulho de uma
cidade... Isso não existe mais, meu caro, e bem explorada
essa história pode fazer com que vendamos novamente
jornais como água. As pessoas estão precisando de uma
estória inacreditável, maluca, como um conto de fadas. E
acho que temos aqui exatamente o que nos faltava para que
isso acontecesse: uma estória! E, o que é melhor: uma estória
real, que está acontecendo, é fato, não foi inventada! É um
produto e tanto, meu amigo, não pode ser desprezado.
- Mas de que modo podemos fazer disso um produto
vendável? Concordo que é uma história interessante, mas,
mostre-me: como fazê-la rentável? – indagou o Diretor.
- Ora, você me conhece o suficiente para saber que
isso é uma questão de pura estratégia, de puro planejamento,
coisa que dominamos bem; afinal, quantas campanhas de
sucesso fizemos juntos? Você bem sabe que temos público –
e muito público – para ajudar num projeto dessa natureza.
- Isso é verdade! – concordou o Diretor-Presidente.
- Dê-me mais algumas horas – disse o outro -, pois
preciso fazer alguns contatos, amarrar alguns pontos e checar
as possibilidades de executar o projeto que tenho em mente.
Voltaremos a conversar amanhã, ok?
- Ok. Até amanhã. Pelo que vejo, percebo que você
está bastante empolgado – observou o Diretor.
- Para lhe dizer francamente, eu já andava meio
assustado com a falta de uma boa ideia. Afinal, faz quase três
anos desde nossa última campanha. Preciso dar um alô para
34
os concorrentes, senão eles acabam “esquecendo de mim” –
disse sorrindo.
- Como se eles pudessem esquecer você! – emendou
o Diretor, também sorrindo.
O Editor-Chefe saiu apressado para sua sala. Estava
eufórico com o plano que acabara de idealizar e já no
caminho fazia seguidas alterações na sua ideia inicial.
- Ok, Dom Quixote de Floripa. Acho que está
chegando a sua hora!
35
Capítulo 10 - A OCASIÃO FAZ O LADRÃO
Tudo é uma questão de estar no lugar e na hora certos – A
ideia de Neminho era apenas uma ideia que teve a sorte de
ter um leitor certo – Já para o Editor-Chefe, ela era um mero
golpe de sorte
Alguém por certo está a indagar:
- Mas as coisas aconteceram assim, simplesmente, de
maneira tão fácil? Isso é impossível! As coisas não acontecem
desse jeito!
Posso até concordar com o leitor, mas nada impede
que as coisas também aconteçam desse jeito, como estão
sendo contadas. A questão é que em certos momentos aquilo
que parece não ter nenhuma utilidade, não fazer nenhum
sentido, assume uma dada importância para a estratégia de
alguém (lembram do parafuso?). E, neste caso, aquilo que
parecia uma simples atitude de um amalucado sonhador de
um lugar distante e pobre assumia uma importância
imagética fundamental para as pretensões de um homem de
mídia, acostumado, portanto, a ver em pequenas coisas para muita gente coisas até mesmo bobas, “estúpidas”, como
essa atitude do nosso herói - uma potencialidade incrível de
fazer (e ganhar) dinheiro.
Sim, ganhar dinheiro. Porque ninguém pense que,
vivendo a vida atribulada que o Editor-Chefe vivia, ainda mais
numa cidade grande e rica como aquela e com um cargo
profissional de tamanha importância para manter, ele fosse
um “romântico sonhador” qualquer, como “parece ser” o
Neminho. Ao contrário, tinha a sensibilidade para captar
oportunidades e inclusive sabia – pelo domínio que tinha no
uso do texto – como atingir a sensibilidade do público; era
isso que havia feito dele o Editor-Chefe do maior jornal da
36
maior cidade do maior país etc. etc. etc. E é dessa forma que
se pode justificar aqui tamanho interesse de um sujeito tão
importante por aquela história, a princípio tão simplória, tão
non sense, para alguns até mesmo bizarra. O que havia de
aproveitável nela eram alguns poucos ingredientes que ele
farejava, farejava e não encontrava na mídia ultimamente; e
era com isso que ele sabia trabalhar bem: com aquilo que
estava faltando, com aquilo que pegava o público de surpresa
– e ele bem sabia que aquele público avidamente esperava e
pagava (bem) para ver.
Era assim que ele vendia jornal, era assim que ele se
sustentava no cargo, era assim que ele era um homem de
mídia e granjeara respeito entre os profissionais (e os
mercados) do mundo todo: explorando a emoção do público.
Afinal, de que vive a mídia senão do impacto emocional que
ela causa em tudo que se mostra? Se olhamos para a tela da
TV, do cinema, do celular, se olhamos para a página do jornal,
do livro, é porque a mídia nos chamou a atenção, cutucou
nosso lado emocional. À exceção do celular, não olhamos
para a TV ou para o livro porque eles nos fazem “ei, psiu, olhe
aqui”. Olhamos para eles sempre que a mídia atiça nosso lado
emocional, seja ele na forma de interesse, curiosidade,
muitas vezes mórbida, compaixão, pavor ou surpresa. Enfim,
onde quer que a mídia nos chame a atenção, ela nos chama
pelo viés da emoção. Agora, fica mais fácil compreender
como um sujeito chamado Chico Mendes, que vivia lá no
interior da selva, da noite para o dia virou celebridade
mundial. Sua “sorte” foi apresentar o problema certo para a
pessoa certa, supostamente um jornalista de prestígio, que
estava atrás de uma grande história de fundo ecológico, atrás
de um herói ecológico; daí para frente tudo foi um grande
trabalho de mídia e o que vimos foi uma das mais belas
histórias da luta ambientalista mundial, infelizmente com um
37
final trágico, que foi a morte daquele grande defensor dos
povos da floresta.
Eram histórias assim, de criação de heróis, bemsucedidas, que faziam o Editor-Chefe analisar com tamanha
seriedade aquela história que “caíra de paraquedas” na sua
caixa de e-mails. Era o seu “cavalo encilhado”, assim como
era também o de Neminho Silva. Ambos eram mutuamente a
matéria-prima para a empreitada do outro, eram problema e
solução para o outro; era esse pequeno - mas principal,
importantíssimo - detalhe que os unia, que fazia um dar
importância ao outro. O valente, mas fraco Neminho, contava
com a força do cavaleiro do poderoso reino para vencer sua
luta, e este cavaleiro precisava de uma causa para manter-se
cavaleiro. Sem uma história, sem um enredo, o cavaleiro não
poderia brilhar, não se constituiria num herói; então, sem o
fraco não haveria o forte. E, de outro lado, sem o forte o fraco
não venceria. O Editor-Chefe sabia muito bem disso. Neminho
também sabia muito bem disso.
É possível então concluir que não havia nada de
espetacular, de inusitado no interesse do jornalista pela causa
de nosso herói. A sorte de Neminho foi que a sua história
preenchia os requisitos para aquilo que o jornalista
considerava mais uma excelente cartada profissional, com a
qual outra vez surpreenderia o mercado, fazendo jus à sua
fama de criador de sucessos. O Editor-Chefe era um homem
de ideias. Seu maior prazer era gerar ideias; e esmerava-se
para que todas elas fossem bem-sucedidas. Afinal, iria pegar
uma história simplória, romântica, transformá-la num fato
jornalístico, sensibilizar milhares de pessoas e por fim
transformar a personagem central num bom produto, tão
bom que, no fim das contas, após todos os eventos, todas as
vendas, renderia a cada empresa jornalística envolvida um
faturamento no mínimo em torno de dez milhões de dólares.
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Assim, calculando que a “singela” história apresentava
potencial para movimentar, nas cinquenta cidades que
viessem a encampar a sua ideia, meio bilhão de dólares num
período de seis meses, ele resistiu a esboçar um leve sorriso
ao imaginar a cifra, que era grande em qualquer mercado. Era
desse tipo de emoção que ele gostava: emoção que gera
dinheiro; essa sim bem ao seu gosto capitalista. Quanto ao
sucesso, ele como bom nova-iorquino sabia que o produto
“ponte” é altamente vendável em Nova Iorque, portanto o
risco de um erro de avaliação era muito baixo.
E havia ainda que considerar o lado não econômico
de todo esse interesse, mas que também apresentava
potencial para enormes ganhos: prêmios jornalísticos,
prêmios sociais, destaque nas diversas mídias, aprovação
social da causa, interesse emocional pela história, sem contar
as diversas e inusitadas manifestações vindas dos mais
diversos locais e níveis sociais que um case assim acaba
motivando. Esse tipo de lucro não tinha como ser mensurado;
estava acima de qualquer valor monetário. E no caso do
Editor-Chefe, que já tinha sua vida econômica para lá de bem
resolvida, o lucro que o interessava mais era este: do
reconhecimento, do prestígio social e profissional.
Daí, portanto, que ninguém conclua apressadamente
que ele fazia tudo isso por simples bondade; ele também
tinha seus interesses. Como todos no mundo têm os seus.
E foi mais ou menos dessa maneira que aquela
inusitada história lançada ao léu na internet por um solitário
e quixotesco professor de gramática acabou virando uma
grande ideia de marketing que originou uma campanha
humanitária há tempos não vista na mídia.
39
Capítulo 11 - DE NOVO, A INTERNET
As mil possibilidades que a internet abre também para os
cidadãos ricos dos países ricos – O lado Produtor do EditorChefe do NT - Os e-mails apresentando o plano de mídia –
Um nome com credibilidade sempre pesa na balança
A internet, da mesma forma que auxilia sujeitos
pobres, como Neminho Silva, também auxilia sujeitos ricos,
como o nosso jornalista. E é pela rede que ele vai encaminhar
um e-mail para diversos jornalistas amigos que também são
editores-chefes dos principais jornais nas principais cidades
da Europa, Ásia e Oriente Médio, pessoas que ele confia e
considera importantes colaboradores, caso o seu projeto se
torne viável.
No e-mail, ele apresenta aos amigos a ideia que
pretende pôr em prática, pedindo a cada um deles que
mantivesse o assunto por enquanto em sigilo. Sua intenção
inicial era saber se um projeto dessa natureza poderia ser
encampado pelas empresas em que eles atuavam, embora já
desse isso como certo; afinal, seu nome impunha respeito.
Como bom produtor, o Editor-Chefe do NT se
preocupava muito com a apresentação de uma ideia, para ele
o momento certo para deixar a marca: – a primeira impressão
é a que conta! Tendo em consideração essa certeza, ele
monta um pequeno dossiê contendo um relato introdutório
sobre o e-mail recebido e a história nele contida, anexando
informações sobre a cidade e a ponte, e escreve um breve
artigo comentando o impacto positivo que lhe causou aquela
história e mostrando as possibilidades de ela tornar-se uma
grande matéria jornalística (e por extensão uma grande ideia
de marketing para uma campanha). Afinal, não era todo dia
que aparecia um herói de natureza tão quixotesca quanto
40
este e com uma proposta tão mirabolante: salvar uma ponte;
um fato inusitado que – devidamente trabalhado pelos
profissionais de mídia – poderia tornar-se uma causa, uma
campanha, gerando um movimento em escala global, já que
era preciso envolver diversas cidades para que o sonho do
Quixote de Floripa se tornasse realidade. Assim, ele tinha
convicção de que estava diante de um fato que poderia
render – e muito – em termos de mídia e de finanças para as
redes jornalísticas envolvidas.
E diz ele em certa parte do texto:
“O que está fazendo falta no mundo é atitude, mas
atitude com fundamento, com filosofia! E uma história dessas
é mais que romance; é filosofia, mexe com o que está mais
escondido hoje em dia na alma do homem e raramente
aparece na mídia: o seu lado bom. E é de histórias que falem
desse lado bom que as pessoas mais estão sentindo falta!
Terror, ódio, racismo, crises e violência, temos às pencas; já
histórias do bem, são cada vez mais raras.”
Quanto aos aspectos econômicos dos eventos, o
Editor-Chefe apresenta diversos argumentos positivos. Sobre
o principal deles, conseguir a verba para salvar a ponte, cada
cidade se encarregaria de arrecadar um valor estipulado
inicialmente em três milhões de dólares, valor fácil de
conseguir nas grandes cidades do mundo: bastariam 100 mil
pessoas pagando trinta dólares cada, um preço considerado
bem baixo, para atrair um grande público, cinco milhões de
pessoas num total de cinquenta eventos. O excedente das
verbas geradas com a publicidade e a realização de cada
evento ficaria com a empresa jornalística promotora (e este
era o argumento que o Editor-Chefe insistia aos amigos para
usarem nas reuniões com suas diretorias, para convencê-las
de que poderiam lucrar – e muito – com o evento).
41
Além disso, a temática da campanha era por demais
interessante: as pontes sempre chamaram a atenção das
pessoas em todo mundo, fazem o orgulho das populações de
milhares de cidades em todo o planeta; e principalmente as
maiores cidades, o que significa grandes populações, milhões
de pessoas precisando consumir avidamente histórias
interessantes e dispostas a pagar muito dinheiro por isso. E
dificilmente as pessoas em todo o mundo não se comoveriam
com essa atitude “romântica” de um cidadão solitário de uma
pequena cidade lá da “pobre” América do Sul. O tema abriria
um leque gigantesco de oportunidades para lucro: além de
CDs e DVDs dos concertos, venda de ingressos, venda de
transmissão, venda de publicidade, de roupas, séries de
souvenirs poderiam ser fabricadas para a campanha
(imaginem só o quanto venderia um “kit de colecionador”
contendo as 50 miniaturas das pontes das cidades onde
acontecessem os megaeventos). Enfim, se a questão fosse
“ganhar dinheiro”, ideias e argumentos para convencer os
departamentos de finanças dos jornais por certo não
faltariam.
Como aquele era um primeiro contato, apenas para
testar a factibilidade da proposta, o jornalista tratou de ser
econômico e – inclusive para salvaguardar sua ideia adicionou mais alguns tópicos de forma genérica, com a
intenção de esclarecer detalhadamente cada dúvida à medida
que as respostas fossem chegando. Quanto a um teste
público do produto, ele iria ser feito em breve, inicialmente
para o público de Nova Iorque e depois para todos os jornais
envolvidos no projeto.
E, como se a roda do destino estivesse girando
claramente a seu favor, não demorou mais do que cinco dias
para que quase todas as empresas jornalísticas respondessem
42
mostrando-se avidamente interessadas no projeto e
dispostas a conversar para torná-lo realidade.
Londres, Sidney, San Francisco, Lisboa, Hong Kong,
Tóquio, ...
O Editor-Chefe vibrou na solidão de sua sala.
Imprimiu alguns dos e-mails e ligou para o Diretor-Presidente,
comunicando o interesse das empresas e pedindo para lhe
falar. Meia hora depois deixava a sala do Diretor já autorizado
por este a apresentar uma versão definitiva do seu projeto
para aprovar na próxima reunião.
Voltou para sua sala e resolveu então que era hora de
fazer o primeiro contato com o nosso herói:
- Agora sim, é hora de o mundo conhecer você,
senhor Quixote de Floripa!
43
Capítulo 12 - THE TURNING POINT
Neminho recebe o e-mail do Editor-Chefe do NT e leva um
susto – O dia em que o nome de Neminho deu no New
Times
A primeira sensação de Neminho Silva ao abrir sua
caixa de e-mails e deparar com a mensagem do Editor-Chefe
do NT foi de susto. Era certo que ele passara as últimas
semanas em total expectativa de resposta a um de seus emails, mas receber uma resposta do Editor-Chefe daquele
jornal superava todas as expectativas.
E foi desse modo que Neminho ficou sabendo da
existência do jornalista que ficara encantado com sua história
e que estivera nesses dias envolvido em contatos com
diversos jornalistas no mundo todo para encontrar uma
forma de ajudá-lo a salvar a sua musa. Como era um primeiro
contato, o jornalista achou melhor omitir os detalhes do
projeto que estava arquitetando, mas comunicou a Neminho
que estava disposto a fazer uma espécie de “teste de
produto”, publicando sua história, para ver qual seria a
reação do público ao conhecer sua luta e, aí sim, partir para a
elaboração de um projeto visando arrecadar o dinheiro
necessário. A mensagem terminava com um convite para uma
entrevista e instruções de contato com a sucursal brasileira
do jornal, que providenciaria tudo para realizar a matéria.
Para Neminho, foi um susto, com toda a certeza.
Naquele momento veio de dentro do corpo um calafrio que
ele nunca sentira. Pela primeira vez teve consciência de que
decidira ser um herói e que agora chegara a hora de sê-lo
verdadeiramente. Teria coragem de ser esse herói?
Conseguiria realizar seu objetivo? Sentiu que chegara o seu
momento de decisão, o seu turning point, e recuar justo
44
agora que a primeira porta estava se abrindo não fazia o
menor sentido. Afinal, não quisera a vida toda fazer um gesto
heroico, ser um cavaleiro que salva a sua donzela? Pois
chegara, enfim, a hora!
Ainda padecia desses temores quando ligou para o
contato brasileiro do jornal, comunicando estar pronto para
ser entrevistado. Era tudo ou nada: a roda iria começar a
girar. Marcou a entrevista, que se realizou alguns dias depois.
O Editor-Chefe encaminhou de Nova Iorque as perguntas que
necessitava fazer para elaborar sua matéria.
E foi assim que o nome de Neminho Silva, herói
quixotesco que quer salvar uma ponte, deu no New Times e
deixou Nova Iorque encantada com aquele simpático
“manezinho” – palavra difícil de pronunciar para o povo de lá,
que desconhece o sufixo que mais caracteriza o falar de
Florianópolis: o diminutivo “inho” – e sua inusitada luta para
salvar uma ponte e, por extensão, o orgulho de uma cidade
inteira. Como as pontes são a marca de Nova Iorque, e as
pessoas lá têm uma ligação muito sentimental com elas, não
é difícil imaginar como a população reagiu à história, que
ocupou três páginas na edição de domingo. Basta dizer que
foi, naquele ano, a terceira reportagem do jornal que mais
recebeu manifestações dos leitores, na sua grande maioria
querendo saber como poderiam ajudar o “pobre Quixote” do
terceiro mundo a salvar sua donzela.
Na tarde da segunda-feira, após o almoço, ao chegar
na redação o Editor-Chefe foi chamado na sala do DiretorPresidente do jornal, que queria inicialmente lhe comunicar
sobre a grande repercussão da reportagem e da entrevista e
lhe autorizar a colocar de vez em andamento seu projeto dos
megaeventos:
- A emoção está de volta! Você fez as pessoas se
emocionarem meu amigo; e é isso que qualquer empresa de
45
mídia quer atingir hoje em dia: o coração das pessoas.
Sensibilidade e simplicidade. Há muito tempo este jornal não
recebia tantas mensagens e com tamanha carga emocional.
Todos querem ajudar, todos querem engajar-se. Temos um
grande filão aí, meu amigo. Um grande filão. Vamos levar o
projeto adiante. E já que temos um herói, é hora de
apresentá-lo para o mundo.
E foi dessa forma que Neminho Silva, de uma hora
para outra, virou celebridade.
46
Capítulo 13 - CELEBRIDADE
Neminho Silva é convidado para ir a Nova Iorque e conhece
o Editor-Chefe – Num voo panorâmico Neminho conhece as
pontes da cidade e se emociona
A repercussão da matéria foi o suficiente para o
Editor-Chefe confirmar que estava com um excelente produto
nas mãos. Neminho Silva era esse produto e agira certo ao
investir nele. Era prioridade agora criar a infraestrutura para
vender esse produto, fazê-lo dar o retorno financeiro
esperado e, se possível, superar as expectativas.
Como bom jornalista, sabia que manter o foco na
figura de seu herói, mantê-lo em evidência na mídia era o
mais importante. Enquanto a luz estivesse acesa sobre
Neminho, ele seria consumido e esse consumo faria com que
fosse cada vez mais valorizado e, por extensão, o seu criador
(este o tipo de lucro mais importante para o jornalista).
Portanto, era necessário conhecer primeiramente (e bem)
seu produto, ver suas capacidades, suas qualidades, seu
potencial, enfim, era preciso ficar frente a frente com
Neminho, conhecê-lo, saber de suas reais intenções e,
evidentemente, estabelecer as regras para o projeto que
ambos iriam encaminhar dali para frente.
Para Neminho, o projeto era uma história de vida,
mas para o Editor-Chefe o projeto era antes de tudo mais
uma empreitada comercial e, por isso mesmo, ele sabia que
não poderia apostar errado, não poderia cometer qualquer
erro por mais primário que fosse.
E foi com essa intenção que o jornalista resolveu de
imediato convidar Neminho Silva para um encontro,
determinando ao seu staff que providenciasse a sua ida a
47
Nova Iorque. Nosso herói recebeu o convite e foi finalmente
conhecê-lo.
Ao chegar a Nova Iorque, Neminho foi tratado com
todas as honras, uma exigência do próprio Diretor-Presidente
do jornal, que já via no singelo brasileiro uma nova
celebridade.
Após conhecer a sede do jornal, bem como diversas
pessoas da equipe que fizera a reportagem sobre ele, foi
levado a uma sala no topo do edifício, para então ser
apresentado ao Editor-Chefe e ao Diretor-Presidente, que o
trataram com visível cortesia e simpatia.
Neminho fala um inglês razoável, mas mesmo assim
havia sido providenciado um tradutor para a conversa, que
não teve quase nada que fazer, pois os dois nova-iorquinos
falam também espanhol e a conversa se desenrolou
tranquilamente, com raros momentos de dúvidas, estas mais
com relação ao vocabulário, quando então o tradutor podia
intervir e cumprir seu papel.
Na conversa Neminho pôde contar com mais detalhes
toda a sua história e, aos poucos, alguns pontos que ainda
estavam em dúvida foram sendo explicados para os
jornalistas, causando neles ainda mais interesse.
Esse primeiro encontro era de caráter social e
Neminho recebeu alguns presentes, entre eles um voo
panorâmico de helicóptero para que pudesse conhecer o que
a equipe do jornal julgou ser do maior interesse do visitante:
as diversas pontes da cidade. Sua reunião de trabalho com o
Editor-Chefe seria somente no dia seguinte e assim ele tratou
de aproveitar bem seu passeio. Afinal, estava na cidade do
mundo que mais ama e valoriza suas pontes. Desnecessário
dizer que a emoção dominou Neminho durante todo o trajeto
do voo. A paisagem é de uma beleza indescritível, pois, além
de seu gigantismo, a cidade toda cresceu na foz de grandes
48
rios, dentro de ilhas, na beira do oceano, e a água é ali uma
presença marcante. Com o crescimento, a cidade precisou
estabelecer uma rede de ligações entre seus intermináveis
bairros e distritos, optando pelas pontes, e o que se vê é um
número interminável delas, cada uma com sua beleza
arquitetônica singular, uma mais espetacular que a outra, de
tal maneira que Neminho não sabia qual delas era a mais
admirável. Mas sua grande emoção foi sobrevoar a ponte
Verrazano Narrows, pois durante muitos anos ele sonhou
poder vê-la de perto imaginando que nunca a conheceria,
muito menos num voo panorâmico; e agora isso tudo
acontecia... E ele se emocionou fortemente com a beleza da
arquitetura daquela maravilhosa travessia. Para ele, a
Verrazano parecia uma “irmã maior” de sua amada. E toda
aquela imponência só fazia aumentar nele o desejo de que
sua amada também voltasse a figurar assim, linda, na
paisagem de sua cidade, cumprindo sua gloriosa função como
ponte, como travessia. Naquele momento, ele mais uma vez
jurou que ela voltaria, sim, a essa condição.
À noite Neminho foi convidado para um jantar
informal com o Editor-Chefe e alguns amigos deste, pessoas
que ele selecionara para conhecer seu novo motivo de
interesse, como dissera brincando, mas de forma maliciosa,
um desses convidados num comentário entre os amigos. O
jantar foi agradável e Neminho, evidentemente, foi o centro
das atenções. Praticamente todos conversaram com ele, já
que a maioria falava espanhol ou português, e assim ele pôde
mais uma vez falar com bastante desenvoltura sobre o que
pretendia.
O acontecimento mais importante de sua viagem era,
com certeza, a reunião que teria com o Editor-Chefe no dia
seguinte para tratar diretamente do projeto; e diante de
tamanha expectativa (e das duas horas de diferença no fuso
49
horário), ele decidiu retirar-se mais cedo e foi levado para o
hotel. Estava muito curioso para conhecer os planos do
jornalista e isso causava uma certa excitação. Ele estava cheio
de dúvidas e incertezas sobre o que lhe seria proposto; afinal,
dali por diante passaria a pisar em um terreno
completamente novo, minado, o terreno da mídia, e isso o
deixara bastante reticente quanto às reais intenções do
Editor-Chefe.
Neminho tinha suas razões, pois não estava
acostumado com a magnitude e a velocidade dos fatos que
estavam acontecendo em sua vida, de um momento para
outro: tornar-se conhecido por tantas pessoas, fazer viagens
internacionais, viajar de helicóptero... Ele tinha uma noção de
que, nesse mundo da mídia, as coisas se tornam possíveis dos
modos mais inacreditáveis, e de uma hora para outra a vida
de alguém sofre uma reviravolta e a pessoa passa a ser o
centro das atenções; e tinha também a noção de que nesse
meio muitas empreitadas acabavam malsucedidas, e por isso
precisava conhecer tão logo as intenções do norte-americano,
que lhe parecera ser um sujeito de boa índole, embora isso
não fosse nenhuma garantia, pois também deveria ter seus
interesses nessa ajuda.
E no meio dessas dúvidas ele foi se distraindo,
distraindo, e adormeceu. Dormiu um sono bom e acordou
naturalmente, no dia seguinte: ainda era cedo e ele pôde
admirar da janela do hotel a luz dourada da manhã incidindo
sobre a torre da Brooklyn Bridge.
50
Capítulo 14 - NEMINHO CONHECE O PLANO
A reunião com o Editor-Chefe - O diálogo franco entre
ambos – O plano de Mídia - Questões profissionais são
discutidas e Neminho fala de seus temores – Neminho
torna-se um produto
A reunião teve início pontualmente às nove horas da
manhã. Ao chegar no edifício do jornal, Neminho foi conhecer
a redação e lá foi recebido por um outro grupo de jornalistas,
além de uma equipe de televisão que fora convidada para
fazer a cobertura da visita, ocasião em que respondeu a
algumas perguntas, sendo depois encaminhado à sala do
Editor-Chefe, que lhe recebeu cordialmente.
Ele iniciou a conversa contando a Neminho sua
surpresa quando recebeu o e-mail e ficou a par da sua
história - uma boa causa para noticiar -, o que foi motivo para
idealizar de imediato um projeto de mídia, cujos detalhes ele
gostaria de discutir mais adiante. Antes, porém, disse que
gostaria de saber um pouco mais da biografia de Neminho e
direcionou a conversa para inteirar-se mais detalhadamente
da sua vida e das reais condições em que surgiu a ideia de
tomar uma atitude tão inusitada como aquela.
Neminho fez um pequeno relato de sua origem
humilde, de sua carreira profissional, e contou da relação
muito forte que estabeleceu com a cidade natal, com sua bela
paisagem e com a ponte, pois desde criança sempre fora
fascinado pela portentosa construção metálica, passando por
ali tantas vezes que com os anos ela tornou-se parte
integrante de seu cotidiano... Até o terrível dia em que foi
oficialmente impedido de passar nela, como alguém que da
noite para o dia se vê separado, por uma barreira, dos seus
entes queridos, do convívio com o outro lado da cidade.
51
- Foi o meu muro de Berlim – disse ele,
metaforicamente.
A ponte deixara uma forte marca em sua vida e ele só
se deu conta disso após ser impedido de passar por ela; foi
então que começou a perceber que, ano após ano, o governo,
responsável por sua manutenção, não dava sinais de que tão
cedo – ou mesmo nunca – a ponte seria restaurada,
retornando à função para a qual fora criada: ser ponte, ser
ligação, local de passagem e comunicação entre pessoas. E,
além de tão bela função, ainda há a beleza da estrutura, que
por si só mereceria todos os cuidados e honras da cidade,
mas esta parece ver a ponte apenas como cartão postal; e
assim ela foi ficando lá, sem função, servindo apenas de
modelo para fotografias... triste fim! Foi contra esse descaso
dos governantes e da indústria turística que explora a cidade
(e que não é pequena) e a favor da restauração da ponte em
toda a sua magnitude que ele resolveu então insurgir-se e
denunciar para o mundo o que estava acontecendo lá.
- E não há nenhum movimento local pela restauração
com que você pudesse se aliar? Sabe, aquela coisa de unir
forças... – Sugeriu o jornalista.
- Já fizeram algumas campanhas, o assunto já foi
discutido à exaustão diversas vezes, principalmente quando é
época eleitoral, mas aí, como o senhor deve saber, essas
discussões são permeadas por uma série de interesses
(principalmente os econômicos) e, na luta para impor sua
solução, cada grupo esmera-se em barrar as intenções dos
demais... E aí nada avança, não se chega a um consenso... E
nesse meio tempo, a única coisa que avança é a ferrugem. E
ainda há uma agravante: esses grupos de interesses são ou
muito técnicos ou nada técnicos, e aí cria-se um fosso entre
ambos que não permite que se estabeleça um diálogo que
leve a soluções concretas. Assim, ou se entra no jogo como
52
técnico e, portanto, representando interesses de
construtores, ou apenas se fica do lado de fora esperneando,
sem ser levado a sério. É desse modo que são tratadas as
coisas no nível do coletivo em países onde não avançou a
cidadania, o senhor sabe – disse Neminho lamentoso.
- Compreendo. Já presenciei casos semelhantes nos
tempos em que fui correspondente. E os custos para a
restauração que constam de seu e-mail são atualizados? A
partir de que fontes você chegou a esse valor? – indagou o
Editor-Chefe. - Pergunto isso para o caso de você conseguir os
recursos e posteriormente eles não serem suficientes –
explicou.
- Fiz todo um levantamento baseado nos cálculos dos
especialistas em engenharia que foram publicados na
imprensa – esclareceu Neminho; claro que são cálculos com
valores que variam (embora não posso deixar de dizer que
duvido que sejam “realmente” verdadeiros), e por isso
precisei estabelecer uma média dos valores mais altos, o que
acabou ficando em torno de cento e cinquenta milhões de
dólares.
- Cento e cinquenta milhões... Uau! – disse o EditorChefe, os olhos voltados para o alto, como alguém que calcula
mentalmente quanto isso representa.
Continuaram conversando sobre uma série de
detalhes técnicos e Neminho teve a oportunidade de
esclarecer as diversas dúvidas que trouxera na bagagem,
motivo para muitos receios: como fazer para levantar
tamanha quantia? E de que maneira seria arrecadada? Era
preciso criar uma empresa para gerenciar o dinheiro? Ele
teria que ficar em Nova Iorque ou teria que viajar? Quem se
responsabilizaria por todo o dinheiro? E como lhe seria
entregue para repassar ao governo?
53
O jornalista tranquilizou Neminho, dizendo que ele,
como produtor, já dispunha de toda uma estrutura para dar o
suporte necessário às ações executivas e legais do projeto, e
que portanto ele não se incomodasse por ora com essas
questões. Quanto à presença do herói nos eventos de
campanha, pediu que Neminho o escutasse atentamente e
refletisse sobre o que ele iria lhe dizer:
- Uma coisa deve ficar bem clara nesta nossa
conversa, meu amigo. Estamos em Nova Iorque, e, mais
ainda, estamos na sede do grande jornal da cidade. Não
chegamos até aqui apostando na sorte, mas sim através de
uma sequência de estratégias bem elaboradas e bemsucedidas, o que nos garante respeito e credibilidade perante
milhões e milhões de pessoas e organizações. Diante disso, é
preciso ficar bem claro que você torna-se a partir de agora
parte de uma de nossas estratégias e, portanto, há certas
condições que terão que ser cumpridas para que possamos
ser bem-sucedidos.
- E que condições são essas? – indagou curioso
Neminho.
- Na verdade não são condições, porque num caso
desses o simples estabelecimento de condições nada garante.
Eu poderia fazer você assinar um contrato com um milhão de
cláusulas, mas como você conseguirá cumprir pelo menos
uma delas se você não tiver a convicção do que quer, se não
tiver a convicção da sua luta, enfim, se não tiver a gana e o
talento para chegar lá? Compreende aonde quero chegar?
- Em parte – respondeu Neminho, curioso.
- Nosso plano só dará certo se você sentir-se parte
dele, ou mais ainda, se você se sentir o próprio plano. E isso
implica em dedicação, implica em doação de seu tempo para
viagens, em participação nos eventos, reuniões, debates,
enfim, há toda uma agenda a cumprir e da qual você não
54
poderá esquivar-se, pois tudo vai passar a girar em torno do
seu nome e todas as luzes vão estar sobre você. Assim, adeus
aos amigos, adeus à vida calma, adeus à privacidade. Enfim,
você se tornará um produto e em todos os lugares haverá um
público ávido para consumi-lo. Então, se amanhã houver um
show em Londres, ou em Hong Kong, todos estarão
esperando por você lá, e você terá que estar lá; portanto,
muito da sua atual rotina poderá repentinamente ser
alterada. Compreende a dimensão do que estou lhe
propondo?
- Posso fazer uma ideia, embora não consiga
dimensionar o quanto – respondeu Neminho.
- Por isso você precisa estar convicto antes de decidir;
e eu espero, torço, para que você já tenha essa certeza. Você
se tornará um produto, repito, pois isso deve ficar bem claro,
e essa condição implica assumir uma série de posturas, de
comportamentos, de falas de acordo com nosso objetivo, que
nada mais é do que levantar o dinheiro que você necessita
para realizar seu sonho. Portanto, nada poderá sair do script
que traçarmos para realizarmos nosso plano de mídia e você
será doravante orientado tanto para relacionar-se com a
imprensa quanto para receber homenagens. Não pense que
você será transformado num mero robô; nada disso. A
questão aqui é de estratégia, e para que ela funcione, temos
que seguir rigorosamente os passos traçados. Por isso exijo
daqueles com quem trabalho, acima de tudo, talento – sim,
talento, pois corro muito menos risco de ser surpreendido no
caminho; os talentosos dificilmente erram.
O Editor-Chefe percebeu que Neminho o observava
com os olhos acesos, preocupado, completamente atento ao
que ele dizia, e com receio de estar sendo muito
contundente, tratou de suavizar o clima:
55
- Mas você me parece ser do tipo que está
plenamente convicto do que pretende.
- Acredito que sim – disse Neminho, relaxando um
pouco.
- Pode ser que você ache cruel o que eu vou lhe dizer
agora, mas precisamos focar no objetivo e no nosso caso o
objetivo, como já frisei, é arrecadar o dinheiro que você
precisa. Portanto, para usar uma força de expressão, “pouco
me importa” a sua cidade, a sua ponte, o seu governo. E da
mesma forma que pouco me importa, também pouco
importa para as pessoas que irão lhe ajudar. As pessoas estão
distantes do seu drama e irão continuar distantes dele por
toda a vida. O que elas querem é vivenciar uma experiência
de ajudar, de participar, o que elas querem é ver você num
palco na cidade delas para que depois possam dizer para os
amigos: “eu vi o Neminho, eu estava lá”; elas jamais falarão
com você, pois serão atraídas para lá aos milhares, mas não
por outra causa que não seja apenas ver você, já que estão
cientes que não conseguirão tocar no pop star “da vez”, como
nunca tocaram em nenhum dos outros astros que viram nos
outros concertos; mas foram lá vê-los, fielmente. Assim, basta
que você esteja lá; e é isso que é meu trabalho: providenciar
para que você esteja lá, para que esse “lá” se constitua num
evento, numa realização, para que os que pagarem por ele se
sintam recompensados pelo gasto e os que souberem do
evento fiquem aguardando pelo próximo.
Assim, daqui por diante há muita coisa que você terá
que repensar, seja no que diz, no que faz, enfim, precisamos
garantir que você tenha uma imagem impecável, de forma
que nenhum jornalista possa vir a descobrir qualquer podre
da sua pessoa e com isso “melar” todo o nosso projeto. Você
tem a sua ficha limpa? Já prejudicou alguém? Usa algum tipo
de droga?
56
Tais perguntas pegaram Neminho de surpresa:
- Não. Por que você me perguntou isso?
- Suponha que você usasse e fosse fotografado com
um baseado na boca num fim de tarde numa praia da sua
cidade. Você acha que um jornalista mal intencionado não iria
de imediato ligar a sua droga ao dinheiro que você estaria
arrecadando com o nosso jornal?
- Credo! É assim o nível de maldade? - Indagou
Neminho.
- Maldade? Não se trata disso, mas de concorrência.
Bem-vindo ao mundo da mídia. Acho que agora você
conseguiu dimensionar o problema que estou lhe colocando.
É por isso que precisamos falar abertamente, jogar limpo, e
se você tiver algum podre é hora de conversarmos sobre ele;
um bom produto não tem defeitos... e se os tiver têm que ser
eliminados... ou muito, muito bem maquilados. Agora quero
dar uma pausa, tomar um café, ou um drink, deixar você
pensar um pouco. Mas, para que você fique desde já mais
tranquilo, deixe-me dizer, de antemão, que à primeira vista
considero você um bom produto, e acredito que você tem o
talento necessário para tocarmos esse seu projeto.
Aquele comentário foi decisivo para Neminho aceitar
os termos da ajuda.
Após a pausa, retornaram para a sala, e o EditorChefe, antes de receber o “sim” de Neminho, apresentou em
forma de minuta os detalhes do projeto, que compreenderia
uma série de cinquenta megaconcertos, em cidades cuja lista
– embora incompleta - ele agora lhe mostrava, obedecendo a
um determinado cronograma que previa dois megaconcertos
por semana, iniciando por San Francisco e Nova Iorque, com a
participação de diversos artistas, cujos nomes, também numa
lista prévia, Neminho reconhecia, maravilhado, e – o
principal – o retorno aos palcos da banda do velho roqueiro,
57
que resolveu voltar a tocar somente pela causa. Neminho
surpreendeu-se com a quantidade de detalhes do projeto, a
enormidade de compromissos, e principalmente a
enormidade dos valores envolvidos, mas no fim das contas
ficou feliz de saber que estava nas mãos de alguém
completamente profissional, que superava todas as suas
expectativas. E pela primeira vez teve a sensação de que
estava saindo da esfera do sonho para a da realidade.
Após o “sim” de Neminho, o Editor-Chefe lhe
apresentou um contrato de compromisso pro-forma, que
Neminho assinou, após esclarecer mais algumas dúvidas que
ainda tinha, e por fim cuidaram de mais alguns detalhes para
dar início ao projeto; coisas pendentes seriam resolvidas no
andamento dos eventos. Encerrada a reunião, ele foi
convidado para um almoço.
No almoço, Neminho ficou sabendo que a equipe do
NT lhe preparara uma surpresa: no jornal da noite, no canal
de notícias do grupo, de grande audiência, uma matéria que
fora gravada na sua visita à redação do jornal naquela manhã
anunciaria à população de Nova Iorque que seu ilustre
visitante estava na cidade.
- Já que estamos juntos, não vamos perder tempo –
explicou o Editor-Chefe – Portanto, é hora da fama! – disse
sorrindo.
E, por causa dessa celebridade repentina, Neminho
Silva ficou mais dois dias na cidade cumprindo seus primeiros
compromissos da nova agenda, que iam desde sessões de
fotos até uma entrevista coletiva.
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Capítulo 15 - PREPARANDO OS MEGAEVENTOS
As reuniões com os editores-chefes e com o roqueiro –
Como o Editor-Chefe articulou o projeto – O roqueiro
declara que a banda vai se reunir pela causa – Começam os
preparativos para os Megaeventos
Era bem do estilo do Editor-Chefe do NT não perder
tempo, seja como jornalista, seja como produtor de eventos.
Ele era famoso no seu meio pela objetividade de suas ações.
Todos sabiam que para trabalhar com ele era necessário
muito profissionalismo. E como profissional atrai profissional,
ele possuía à disposição uma excelente equipe que, em
poucos dias, já havia organizado o cronograma das reuniões
com todas as equipes dos jornais participantes, para elaborar
o calendário dos eventos.
Havia muita coisa a organizar: fechar a lista de
cidades participantes, fechar o calendário geral dos eventos,
fazer os contratos com os artistas fixos e elaborar a lista (e
contratos) dos artistas convidados, já que muitos queriam
participar (cada cidade poderia sugerir um grande artista de
sua preferência), aprovar e definir as logomarcas da
campanha para uso padronizado em todos os tipos de
impressos, bem como em camisetas, bottons, acessórios de
moda, DVDs e uma infinidade de outros produtos para venda
nos megaeventos, sem contar outra infinidade de
contratações de profissionais que já constavam das listas de
fornecedores da equipe e que atendiam prontamente ao
serem chamados pela produção do evento para prestar
serviços de apoio; afinal, trabalhar com aquela equipe, como
dissemos, dava prestígio.
E graças a todo esse profissionalismo, em menos de
trinta dias todo o cronograma já estava completo, as
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contratações já estavam em fase final, o grupo de artistas já
estava definido (alguns apenas dependendo de ajustes nas
suas agendas) e o jornal pode finalmente fazer o lançamento
da campanha em favor de Neminho Silva – O Quixote de
Floripa, nome que o Editor-Chefe escolheu para tornar
famoso o nosso mané.
A reportagem de duas páginas era anunciada na
primeira página com a chamada de capa O velho e bom rock
and roll retorna para salvar uma ponte. Destacando a volta do
velho roqueiro aos palcos, trazia todas as notícias da
campanha, com a lista das cidades, dos artistas, preços de
ingresso, formas de colaborar, sites de apoio, enfim, todo o
chamado “serviço” para a informação dos leitores e, é claro,
uma entrevista com o astro do rock, na qual ele comunicava
que se sentira emocionado com a história do Quixote e
resolvera reunir a banda, mas frisando: apenas pela causa. A
oportunidade única de rever o grande astro no palco criava
uma expectativa ainda maior quanto ao sucesso da
campanha, o que não tardou a acontecer: assim que foi
anunciado que os cem mil ingressos de San Francisco e os
cento e trinta mil de Nova Iorque estavam à venda, os sites de
compra tiveram grandes problemas de tráfego pelo excesso
simultâneo de acessos dos compradores interessados.
Começavam também a chegar pedidos e mais pedidos de
lojistas interessados em adquirir os produtos promocionais da
campanha.
O Editor-Produtor acertara mais uma vez.
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Capítulo 16 - NEM TUDO SÃO FLORES NA VIDA DE UM HERÓI
Neminho torna-se o centro das atenções da mídia – O
estrago causado pelo jornalista ao usar a expressão
“cafetões da ponte” – A surpresa e a irritação das
autoridades – Neminho conhece sua primeira dificuldade
Com a publicação da matéria no famoso jornal,
Neminho Silva tornou-se o centro das atenções da mídia
internacional, nacional e, principalmente, da sua cidade. A
entrevista publicada no New Times repetiu-se em diversas
revistas e jornais do Brasil e de Santa Catarina; ele era
convidado para todo tipo de programas na televisão (até
aqueles de culinária) para contar a sua história, a sua luta.
Entrevistas sucediam-se e ele podia explicitar claramente suas
intenções a um público ávido de conhecer todos os detalhes.
O assunto virou notícia e dominava todas as conversas. O
lançamento da campanha aumentara ainda mais sua fama.
A fama de Neminho Silva cresceu, então, de forma
meteórica, para sua surpresa, para a surpresa da população
de Florianópolis e principalmente para a surpresa dos
governantes da cidade, que não gostaram nada de serem
pegos “de surpresa”, ainda mais que a reportagem os
colocava numa situação contra a parede, já que expunha o
seu descaso e incompetência para com a cidade ao protelar
por anos e anos a restauração; e não havia nada que se
pudesse fazer para reparar esse fato: a ponte estava lá,
abandonada, doente, vítima de anos e anos do descaso dos
governantes - e não havia como negar o que era óbvio.
E, para piorar a situação, durante a entrevista
Neminho desavisadamente comentara com o jornalista da
sucursal que o ouvia (e acreditando que estava falando em
“off”, ou seja, quando o microfone está desligado) que o fato
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dos turistas ficarem frustrados ao chegarem na ponte,
atraídos por ela, e descobrirem que não podem atravessá-la,
“usá-la”, faz lembrar aquelas histórias de cafetões que
anunciam suas moças para os clientes e estes, ao chegarem
no quarto, descobrem que a tal moça “não funciona”, não é
tudo aquilo que foi propagandeado. E completou:
- Sob todos os pontos de vista, é uma burrice - dizia
Neminho - vender uma imagem de que a ponte funciona, pois
logo, logo, o turista descobre que foi vítima de uma
propaganda enganosa; e irá com toda certeza avisar a outros
para não cair mais no “golpe da foto”. Deixando a ponte
chegar ao que chegou, o governo está matando a sua galinha
dos ovos de ouro!
O que ele não imaginava é que o jornalista iria valerse da expressão cafetões e explorá-la com destaque na
reportagem. Assim, aquilo que Neminho jamais ousaria fazer
publicamente, ou seja, atacar o governo de maneira chula,
deselegante (pois ele sempre valorizara o tratamento
educado a todos, mesmo os adversários), acabou sendo feito
justamente em seu nome e, pior, no New Times. Seu susto foi
grande, principalmente ao imaginar a situação desconfortável
das autoridades do governo perante o ridículo a que a
expressão os expunha.
E não foi diferente do que ele imaginava.
Entre os homens do governo, a reportagem caiu
como uma bomba, e o corre-corre de assessores e
autoridades no Palácio naquela manhã dava bem uma
dimensão do estrago.
- E todo esse ridículo causado por um sujeito? E
sozinho? Quem é este fulano que se acha no direito de tomar
uma decisão que deveria ser de competência exclusiva nossa?
- indagava irritado o todo poderoso e temido Assessor do
governo.
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O Estado18 estava ali para representar o cidadão (essa
era a lei) e este cidadão estava querendo passar por cima da
representação do Estado: isso era inadmissível para os
membros do governo local.
- Quem ele pensa que é para nos colocar numa
situação de ridículo perante todo o mundo? Isso é
inadmissível! – declarou irado o Assessor. E completou:
- Temos que trazer esse sujeito aqui para uma
reunião o mais depressa, para que ele saiba o estrago que
causou e responda por isso.
O Assessor não via com bons olhos aquela situação,
pois, mais do que ser embaraçosa, ela colocava em pauta
uma série de problemas pendentes e ele sabia que essas
pendências poderiam ser exploradas pelos adversários (e com
toda a certeza seriam, apostava). Assim, enquanto alguns no
governo ainda estavam apenas surpresos pelos recentes
acontecimentos, sem medir a dimensão dos perigos ao
projeto político de seu partido, o Assessor colocava, dali por
diante, no topo da sua lista de prioridades o problema criado
pelo herói mané.
Naquele momento, só ele sabia o quanto de perigo
aquele acontecimento representava para a continuidade no
poder da sua ala política. Precisava então agir o mais
rapidamente possível e sua estratégia seria mudar o governo
da condição de adversário para a condição de aliado do novo
herói local; era preciso então trazê-lo para seu lado, cooptá-lo
urgentemente.
Trataram de contatar Neminho, mas este, devido a
uma semana de compromissos no exterior, só retornaria à
cidade duas semanas depois; e a espera pelo cidadão foi um
período árduo para o Assessor, uma vez que a reportagem
municiara a oposição, que fazia gato e sapato do governo,
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cuja incompetência – diziam os oposicionistas - era tamanha
que já virara assunto até em Nova Iorque.
E foi desta forma que Neminho Silva conheceu a
primeira dificuldade na sua trajetória heroica para salvar a
sua donzela.
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Capítulo 17 - A CONVERSA COM O ASSESSOR DO GOVERNO
Neminho fica sabendo que o governo está incomodado com
sua ação – A teoria da livre iniciativa do cidadão frente à
teoria da representação do Estado
Passados vinte dias, a conversa com o Assessor do
governo foi marcada para uma tarde da semana seguinte ao
retorno de Neminho, no seu Gabinete; Neminho chegou lá
meia hora antes. Estava apreensivo; afinal, aquele convite
poderia significar duas coisas: uma solução para o seu
problema ou alguma reclamação pela imagem do governo
apresentada na matéria. Mas, fosse o que fosse, estava
preparado. Sabia que aquele momento chegaria; sonhara
sempre com isso, com uma oportunidade de estar cara-a-cara
com o governo e cobrar diretamente uma atitude, uma
solução que livrasse sua donzela daquela maldição de morte;
por isso, sentia-se feliz ao ver que a roda do destino estava
girando. Aquela reunião teria que resultar em algo.
Nosso herói adentrou à sala do Assessor após ser
anunciado e o primeiro olhar que recebeu do funcionário foi
um típico olhar “burocrático”, que não estampava nem
alegria nem raiva pela sua presença.
- Muito prazer...
Os cinco primeiros minutos foram de formalidades: o
funcionário se apresentando, dizendo que estava ali em nome
do governo, que este, por um lado, estava feliz com a
repercussão e a notoriedade do gesto do cidadão, mas, por
outro lado, estava surpreso e não tinha gostado nada de ser
colocado numa situação de ridículo etc. etc. etc. E que essa
reunião havia sido convocada com o único propósito de saber
de Neminho quais eram suas verdadeiras intenções com
aquela atitude: era um protesto, era uma ação efetiva, era
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um projeto político, era uma jogada de marketing para algum
produto, era um movimento popular, político, enfim... O que
desejava o cidadão? E aonde aquilo tudo iria chegar, agora
que o caso ganhara destaque até internacional? Afinal,
embora talvez o cidadão não tivesse percebido, havia mexido
com algo muito delicado, que envolvia uma série de
interesses e agora o governo encontrava-se numa situação
constrangedora:
- O governo entende sua atitude romântica, embora
não deixe de reconhecer que ela foi extremada. E então meu
caro senhor, o que tem a dizer?
Neminho olhou calmamente o funcionário e falou:
- Não há muito que dizer, pois toda a história já foi
dita; o que importava ser colocado a público já foi feito pelos
jornais. Minhas intenções estão bastante claras para quem
leu as diversas reportagens que a imprensa fez sobre o
assunto: salvar a ponte, já que o governo demonstrou
claramente sua incompetência durante anos e anos para
solucionar essa questão; e se o Estado falhou, se é
incompetente para tal, resolvi eu mesmo tomar as rédeas do
destino dessa interminável novela, que até aqui só tem um
saldo negativo. Se o Estado falhou ao não dar a devida
atenção ao problema, isso é um problema de imagem para o
governo resolver, não é mesmo?
- Mas o senhor há de convir que a forma como o
problema está sendo colocado na mídia fere frontalmente
diversos princípios. Afinal de contas, a ponte é uma coisa
pública, não pertence a uma só pessoa, ou seja, não é de
interesse individual, mas patrimônio coletivo, e compete ao
governo gerenciar qualquer assunto relativo a ela. Assim
considerando, qualquer atitude que envolva a coisa pública
precisa de representação coletiva e não individual, concorda?
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- Concordo em parte – respondeu Neminho. Admito
que o governo é quem cuida das coisas coletivas, mas, se ele
vier a falhar na gerência dessas coisas, nada deve impedir o
cidadão de se manifestar ou mesmo tomar uma atitude para
buscar uma solução se este cidadão tiver argumentos ou
ideias que sejam comprovadamente muito mais efetivas que
a do Governo. Afinal de contas, a lei nos permite a livre
iniciativa neste país, não é mesmo?
- Concordo em parte... – Retrucou o Assessor. Existe a
livre iniciativa, mas antes dela existe uma lei que garante a
competência do Estado para representar cada cidadão,
individualmente. Assim, acho que o senhor não percebeu que
sua atitude fere frontalmente esse princípio da representação
legal do Estado, não acha?
- Concordo que o Estado deva representar o cidadão,
mas discordo totalmente dessa representação, se o Estado se
mostrar menos competente para gerir um problema do que
um cidadão comum. Aqui em nosso caso, acho que minha
atitude é simples: coloquei em prática um projeto que com
toda a certeza conseguirá em torno de cinco meses um valor
de cento e cinquenta milhões de dólares, coisa que o governo
em anos e anos diz que não conseguiu. O que isso tem de
errado, se o objetivo é cuidar do patrimônio coletivo? Onde
há crime nisso? O Estado foi menos competente que um só
cidadão. É isso que está incomodando? Há algum crime
nisso?
- Não estamos caracterizando sua atitude como um
crime; não é esse o caso, ainda – disse o Assessor.
- Ainda? – indagou surpreso Neminho.
- A questão é que estamos em terreno delicado a
partir de sua atitude. Um grande estrago já foi feito e
estamos aqui conversando para ver como se poderá resolver
essa questão de forma benéfica para todos. Não vim criticar
67
seu comportamento; aliás, no governo há pessoas que
admiram a sua atitude e torcem mesmo para uma solução,
mas é claro que o senhor irá compreender que daqui para
frente é melhor deixar que alguém dos nossos lhe dê uma
assessoria para conduzir seu movimento... De forma discreta,
bem entendido; afinal, não queremos que daqui a pouco
venha alguém da oposição dizer que isso é uma “armação do
governo e da imprensa que o apoia para conseguir
dinheiro”... Por isso o chamamos aqui: para chegarmos a um
acordo.
Ao ouvir aquilo, Neminho percebeu claramente que
estava ali para ser cooptado, e isso o deixou furioso, no
entanto controlou-se para parecer calmo:
- Acordo? Eu ouvi bem? Vamos recomeçar. Agora sou
eu quem pergunta: quais são as suas intenções com essa
conversa?
- Minhas intenções são claras: consertar um estrago
imenso na imagem do governo causada pelo senhor com sua
– para usar um termo que o senhor mesmo usou – “livre
iniciativa”. Mesmo sendo livre, toda iniciativa tem um limite,
não concorda?
- Em parte meu senhor, em parte – respondeu
Neminho. Sou um cidadão que respeita a lei, pois a considero
fundamental para qualquer projeto coletivo, mas sou nascido
e criado num país que optou pelo capitalismo e se o senhor
sabe bem o que isso significa, basta lembrar Adam Smith19,
basta lembrar sua tese da livre iniciativa. Se eu não defender
esse princípio, como viver aqui? Estou errado em defender tal
princípio?
- Mas quando o senhor fala de livre iniciativa, esquece
que o Sr. Smith estava falando de uma empresa, não da
pessoa – lembrou o Assessor.
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- Mas se a questão é conceitual, o que o senhor acha
que eu sou, além de pessoa? O que acha que significa a
minha empreitada? Não sou também uma espécie de
organização, com uma missão, um objetivo? Não sou também
uma espécie de produto, que irá gerar um valor significativo
de dinheiro? Sou ou não sou também uma empresa, senhor
Assessor?
- Não posso afirmar categoricamente... Teoricamente,
o senhor tem toda a liberdade para agir por conta própria,
por livre iniciativa, mas há situações em que somente o
Estado pode representar o cidadão, como essa agora que
estamos discutindo.
- O senhor então está me dizendo que estou
impossibilitado de levar minha luta adiante somente porque o
governo não concorda? Não há algo ditatorial aqui?
- Não estou afirmando que o senhor está
impossibilitado – disse o Assessor. Apenas estamos querendo
dar um tratamento mais “profissional” à questão. Afinal de
contas, é um projeto ousado, que envolve muito dinheiro,
muitos interesses comerciais...
- Profissional? O senhor não me faça rir. A única coisa
que faltou nesses anos todos de descaso foi exatamente isso:
profissionalismo, competência da máquina, inteirinha, do
governo. E agora o senhor vai querer me falar de
profissionalismo? Não me faça rir...
- O senhor está sendo apressado em seu julgamento...
Não vamos entrar em terrenos que não interessam aqui...
Estou falando de interesses, meu senhor. E aqui há muitos
em jogo para tudo ficar na mão de uma só pessoa. É até uma
questão de segurança, se é que o senhor consegue perceber.
Sua ação é bonita, louvável, mas o senhor foi mexer com algo
grandioso e é importante que daqui para frente o governo
assuma o comando. O próprio mandatário-mor fez questão
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de me pedir para lhe dizer que ele próprio deseja trabalhar
em conjunto com o senhor nessa empreitada...
- Pergunte então a ele duas coisas: a primeira é se ele
realmente professa os ideais da livre iniciativa, e a segunda é
se ele já leu Dom Quixote, se sabe o que é um herói, se sabe
que o herói dos romances representa a figura de um homem
que luta sozinho, agindo por livre iniciativa, contra a
incompetência dos que o governam, buscando melhoras para
todos etc. etc. etc. Não sou burguês e nem defendo a
burguesia, mas ela “inventou” – e mantém cada vez mais
vivo - o romance para ter a figura do herói com a clara
intenção de manter viva a principal bandeira de sua luta: a
livre iniciativa. É também para isso que existe o herói: para
que toda criança que cresça lendo um romance saiba que é
possível, sim, lutar sozinha, dizer “basta”, ter livre iniciativa:
quem sabe faz a hora, não espera acontecer (que ironia,
pensou Neminho, usar essa frase justamente numa situação
oposta: - me perdoe, Geraldo Vandré20). O herói existe para
isso, para manter vivo esse mito de que é possível, sim, um
cidadão, sozinho, desmascarar o poder, o Estado, se este
Estado se mostrar menos competente do que ele, cidadão.
Não vim aqui dizer que sou um herói e tampouco defender a
burguesia, mas com certeza vim aqui lhe dizer claramente
que tenho todo direito, pela constituição, de agir por livre
iniciativa. E por isso coloco minha defesa da teoria da livre
iniciativa frente à sua teoria da representação do Estado.
- Bem, se o senhor quiser ir por esse caminho... –
Disse o Assessor.
- A questão não é que eu queira ir... A questão é que
esse é o caminho. Estamos ou não estamos no Ocidente?
Somos ou não somos republicanos? Há algo mais burguês
hoje em dia do que o conceito de República? Acredito que
não. E por isso lhe digo que tudo aqui tem que se resolver
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dentro do terreno exclusivo da liberdade. Não estou num
estado comunista, mas numa terra de pessoas de livre
iniciativa. Por isso só há um caminho, só há um vetor aqui a
ser discutido: tenho ou não tenho liberdade para me julgar
competente, como venho demonstrando, e resolver um
problema que considero o Estado incompetente para fazê-lo?
É isso que está “pegando”? É isso que vocês não querem
aceitar?
- Nossa conversa está tomando um rumo muito
teórico, meu senhor – lembrou o Assessor.
- De forma alguma. Estamos falando de princípios, de
fundamentos. E não há nada que eu goste mais de respeitar –
ipsis litteris – do que os princípios estabelecidos, e estou
convicto de que estou até agora agindo completamente
dentro dos princípios da sociedade em que vivo.
- Se o senhor vê as coisas por esse prisma, devo
lembrar-lhe que é também a lei que garante ao Estado o ato
de representar. Assim, acredito que nossa conversa chegou a
um ponto em que talvez seja melhor consultar uma
assessoria jurídica para nos esclarecer melhor quem está
infringindo leis aqui... E pode não ser o governo.
- Isso parece ameaça... – Atalhou Neminho.
- Não estou aqui ameaçando o senhor. Acredito que
não chegaremos a um nível desses, uma vez que o governo
espera a sua colaboração; e essa é uma conversa cordial...
- Mas eu prefiro terminá-la aqui. – Neminho sentia-se
desconfortável com o rumo da conversa e achou que toda
aquela pressão exigia dele um melhor preparo.
Assim, decidiu encerrar o assunto e ficou de dar uma
resposta em breve. Nesse tempo, conversaria com algumas
pessoas amigas para orientar-se, pois sentia que as coisas
poderiam complicar-se no futuro, já que, intimamente, sabia
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desde já que sua resposta seria um claríssimo “não” a
qualquer tentativa de cooptação do governo.
- Eu tomei sozinho a iniciativa... E acho que sozinho
eu vou até o fim – pensou enquanto levantava-se e despediase do Assessor.
Na saída do Gabinete, invocou:
- Que me protejam todos os heróis de todos os
romances! E o Adam Smith também! Hehehe...
Na solidão da sala, ao observar Neminho saindo, de
modo quase arrogante, o Assessor já sabia exatamente qual
era a resposta que aquele lhe daria.
E estava coberto de razão, porque, como veremos,
não tardou muito a saber que não haveria qualquer parceria
possível entre ele e Neminho Silva.
E essa certeza lhe confirmava que agira certo ao não
ficar parado esperando pela resposta...
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Capítulo 18 - QUEBRA DE SIGILO
A secretária indiscreta – O telefonema do Editor-Chefe da
Gazeta de Notícias – Neminho desmente que haja pressões
do governo para que ele desista - O segredo faz o herói!
Dar uma resposta negativa às pretensões do governo
não tinha sido a única das preocupações de Neminho naquele
momento. Afinal, sua vida havia mudado bastante nas últimas
semanas e ele já sentia o peso de uma agenda carregada de
compromissos e da falta de tempo, cada vez mais escasso,
para dar conta deles.
As viagens já eram muitas, para fazer a promoção da
campanha, e logo começariam os concertos, nos quais ele
deveria marcar presença. Em consequência, sua caixa de emails vivia abarrotada e ele se via na obrigação de responder
a cada um deles, obrigação que, pela impossibilidade de ser
cumprida, foi transferida para uma jovem estudante que
estava atrás de algum dinheiro extra e aceitou trabalhar para
ele, auxiliando-o em sua correspondência.
Infeliz escolha foi aquela! A moça, a princípio
parecendo ser discreta e atenciosa, permanecia em sua volta
grande parte do tempo e Neminho sequer apercebeu-se de
que ela era boa ouvinte e, portanto, não imaginaria que ela
falava demais, o que só foi constatar mais tarde, quando
recebeu um telefonema confidencial do Editor-Chefe da
Gazeta de Notícias, lhe perguntando se era verdade que
pessoas do governo não gostaram nada do que saíra na
reportagem e mandaram chamá-lo ao Gabinete para tirar
satisfações, e que estavam querendo proibir a campanha,
pela humilhação sofrida com a matéria do New Times etc.
etc. etc. Neminho precisou apenas de um tempo em silêncio
para concluir que a notícia só poderia ter vazado graças à
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estudante, já que ele bem lembrava que ela ouvia
constantemente as conversas dele ao telefone,
principalmente com seu amigo mais próximo, um jornalista
amigo de infância, testemunha fiel de toda a trajetória vivida
pelo herói até aqui; ele com toda certeza não teria cometido
essa indiscrição! Quanto a ela, bastou ser pressionada para
confessar ter contado para um cunhado jornalista da Gazeta
de Notícias diversos fatos que ela ouvira ali sobre o que
estava passando entre Neminho e as autoridades.
Nas suas perguntas o jornalista deixava claro que já
sabia da entrevista de Neminho com o Assessor e sabia
também que ele andava atrás de assessoria jurídica.
- Por que você está procurando assessoria jurídica?
Você sofreu alguma acusação? O governo está lhe
pressionando? Porque se isso estiver acontecendo você pode
fazer uma declaração; nós abrimos o espaço que você
precisar. Você bem sabe que nosso jornal não goza da
simpatia desse governo, mas também não temos simpatia por
eles; aliás, nem mesmo temos qualquer conta do governo
aqui. E portanto nos consideramos isentos e prontos para lhe
dar apoio se precisar.
Neminho tremeu. Um fato dessa natureza significava
claramente que as coisas poderiam sair do controle se ele não
pusesse um freio nas especulações. E assim tratou de ser
cordial com o jornalista, agradeceu o apoio, negou qualquer
conversa daquele tipo entre ele e o governo e disse que não
desejava fazer, portanto, qualquer declaração sobre o fato,
terminando ali a conversa. O jornalista ainda tentou fazer
mais algumas perguntas, porém Neminho desconversou
rapidamente e despediu-se.
Na manhã seguinte, assim que a jovem estudante
chegou para o trabalho foi respeitosa e rapidamente
despedida.
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Neminho não perdoava quebra de sigilo; fosse o que
fosse, segredo era segredo. E para ele o segredo é a arma do
herói, algo que é ensinado deste a Antiguidade: foi o segredo
que permitiu a Ulisses montar secretamente seu ardil para
destruir seus inimigos e recuperar seu reino.
- Se o segredo tivesse sido quebrado e alguém tivesse
avisado aos pretendentes da Penélope, que viviam como
parasitas em Ítaca, sobre o massacre que Ulisses preparava, a
Odisseia teria o fim que teve? – Indagava ele em pensamento
enquanto preparava-se para mais um compromisso, dessa
vez um prazeroso encontro com seu amigo do Jornal da
Cidade.
Decidiu que precisava ter mais cuidado com o que
diria dali para frente na presença de estranhos, fossem quem
fossem.
- O segredo faz o herói!
Foi essa a máxima que ele criou e passou a respeitar.
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Capítulo 19 - NEMINHO PASSA A SER OBSERVADO
O jornalista não se convence e segue Neminho – A
importância da rede de amigos para um jornalista - O
informante conta sobre o ríspido encontro no Gabinete – A
manchete e o editorial a favor de Neminho
O Editor-Chefe da Gazeta, que indagara a Neminho
sobre suas tensões com o governo, evidentemente, como
bom jornalista de faro afinado, não se sentiu satisfeito com as
respostas e supôs que ali naquela fumaça com certeza
deveria haver também fogo, o que bastou para que
designasse alguém para seguir os passos do nosso herói e lhe
trazer diariamente um relato contando onde Neminho havia
ido, com quem tinha conversado, enfim, qualquer informação
relevante:
- E até não relevante, se estiver fora da ordem!
E foi assim que já no dia seguinte o jornalista ficou
sabendo que Neminho saiu de casa às quatro da tarde,
dirigiu-se à redação do Jornal da Cidade e lá ficou por quase
duas horas, saindo com o Editor-Chefe até sua casa, com
quem jantou e conversou até quase onze da noite.
- Filho da puta, vai entregar o ouro só pro pessoal do
Jornal da Cidade! - Exclamou irado ao saber do encontro.
Então havia alguma coisa acontecendo, com toda
certeza e ele iria descobrir o que era:
- Tem alguma armação nisso aí, mas eu vou descobrir.
No mundo da imprensa, ai daquele jornalista que não
tem uma boa rede de informantes; dificilmente saberá das
coisas com a mesma rapidez que seus concorrentes. O EditorChefe da Gazeta de Notícias respeitava essa máxima acima de
tudo na sua profissão e em todos esses anos construíra uma
considerável rede de amigos, grandes auxiliares nas horas
76
mais importantes em que ele precisava das informações
valiosas, dos furos jornalísticos que fizeram a sua fama e o
colocaram na chefia do jornal.
E, por julgar que essa era uma hora importante, ligou
para um desses amigos, informante fiel de tudo que se
passava nos corredores do palácio, e logo ficou sabendo que
o encontro entre Neminho e o Assessor não tinha sido dos
melhores, que o cidadão estava sendo pressionado para
concordar que dali para frente o governo assumisse junto
com ele a condução da campanha etc. etc. etc., o que a
princípio não concordou, criando um impasse de tal modo
que pelo visto a coisa só se resolveria na esfera jurídica. Mas
uma coisa já era certa: Neminho iria bater de frente com o
governo e pelo visto não iria aceitar a parceria.
E foram essas informações que os leitores da Gazeta
de Notícias compartilharam na edição da manhã seguinte,
pegando de surpresa tanto Neminho quanto o Assessor do
governo, que praguejou irado:
- Quem foi o filho da puta que deixou vazar a
conversa?
Aquele, com toda a certeza, não seria um bom dia no
Gabinete.
Para piorar, ao lado de uma manchete em letras
grandes – Governo quer que Neminho desista de salvar a
ponte – havia um editorial que expressava repúdio total do
jornal a qualquer tipo de pressão que o governo tivesse feito
ou viesse a fazer sobre o ilustre cidadão Neminho Silva para
que desista de sua romântica empreitada, já que “não há
autoridade moral da parte do poder público para condenar a
sua livre atitude”.
E completava: o que o governo não quer aceitar é o
fato de um cidadão sozinho ter posto a nu toda a
incompetência de um Estado inteiro para gerenciar um
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problema, a princípio, tão fácil de ter sido resolvido já há
muitos anos. É isso que parece estar incomodando nossas
autoridades.
Foi desse modo que Neminho Silva se viu no centro
de um debate, porque no dia seguinte a manchete do Jornal
da Cidade – Entre Neminho Silva e o governo, a ponte é um
assunto público ou um assunto privado? - estampava no seu
duplo sentido uma crítica à indiscrição da Gazeta, por colocar
na rua um assunto até então reservado apenas ao cidadão e
ao governo, ao mesmo tempo em que questionava se a
salvação da ponte poderia ser mesmo uma ação de natureza
privada, se aí não estaria havendo uma ingerência do cidadão
Neminho Silva num campo que era reservado ao Estado,
portanto, público.
Utilizando um texto claramente a favor da posição do
governo, o Jornal da Cidade levantava uma série de
questionamentos que iam desde o fato de, sozinho, Neminho
Silva ter dificuldades em participar dos eventos, até receber e
gerenciar as verbas, viajar seguidamente para cidades após
cidades, sem sequer ter tempo para si, quanto mais para
tratar de um assunto público de tamanha ordem, o qual “este
jornal, embora claramente um jornal liberal, entendia ser de
competência apenas do Estado” etc. etc. etc.
E perguntava ainda o Jornal da Cidade: “quando a
verba chegar, quem contratará os serviços, quem pagará
pelos serviços, quem garantirá a qualidade desses serviços?
Como se escolherá a empresa de engenharia para fazer a
obra? E quem garantirá a segurança da obra? Chamar um
arquiteto para fazer sua casa é fácil para qualquer pai de
família, mas aqui estamos falando de uma ponte, de uma
obra gigantesca, que precisa no mínimo de uma organização
para administrá-la. Isso não pode ficar na mão de uma só
pessoa. E no caso do romântico cidadão, como agravante, ele
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é formado numa área completamente alheia aos números, o
que, convenhamos, se constitui numa incerteza quanto aos
destinos financeiros do que for arrecadado”.
As perguntas se sucediam nessa direção para afinal o
jornal apontar que, no fim das contas, Neminho teria que
ceder ao governo a gerência da recuperação da obra; e se no
fim das contas iria ter que ceder, por que já não o fazia desde
já e deixava o governo assumir o comando das ações?
Desnecessário dizer que, no dia seguinte, a Gazeta de
Notícias novamente voltou à questão da incompetência do
Estado, que o cidadão tinha todo direito de ir sozinho até o
final, “pelo menos para lavar a alma da população pobre,
vítima direta do descaso de nossas autoridades, e que vê na
ponte degradada e abandonada a imagem perfeita de como
vem sendo tratada a coisa pública na cidade e no Estado” etc.
etc. etc.
E finalizava declarando que esperava que o exemplar
cidadão “siga solitário, tal qual um Quixote, como já é
conhecido no mundo, e salve sua amada das mãos malvadas
dos seus “cafetões”, como bem intitulou o Times. Viva
Neminho Silva. Viva o Quixote de Floripa!” – brado “de
guerra” que o jornal estava publicando pela primeira vez e
que iria se repetir numa série de vezes dali por diante.
E foi isso que um estarrecido Neminho leu na
primeira página da Gazeta. Seu maior temor – e isso já era
quase uma certeza – é que ele acabasse numa desconfortável
situação de joguete entre duas ideologias que brigavam por
anos e anos na cidade, e que acabariam por desvirtuar o foco
da questão principal - salvar a ponte – e transformar o fato
em luta política.
Nosso herói estava coberto de razões ao ficar
preocupado: briga ideológica sempre era briga inflamada, e,
como veremos adiante, Florianópolis já havia provado o sabor
79
amargo dessas horas difíceis. Mas antes vamos acompanhar
Neminho num encontro com seu amigo, que, este sim, vivia
uma situação incômoda, já que, por ser o Editor-Chefe do
Jornal da Cidade, tinha que privilegiar o discurso de seu
grande cliente, o governo local, e publicar a posição deste nas
páginas de seu jornal, posição que ia contra o romantismo
que toda aquela inesperada história inspirava e que punha
em cheque toda uma relação de amizade que ele tinha com
Neminho Silva.
Mas, como dito, a amizade entre ambos era forte, um
detalhe muito importante nesse momento.
80
Capítulo 20 - O AMIGO JORNALISTA
O amigo de infância vê surgir em Neminho a obsessão pela
ponte e o prepara para “enfrentar as feras” – Neminho cria
o hábito de dizer frases curtas
Vimos que o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias ficou
bastante irritado ao ver Neminho Silva conversando
reservadamente com seu concorrente do Jornal da Cidade,
mas o que ele ainda não sabia é que ambos eram amigos
desde os tempos do colégio e tinham constituído uma sólida
relação de confiança, a tal ponto de Neminho ter
confidenciado apenas para ele as suas intenções.
Na primeira vez que o amigo confidente ouviu o
projeto de Neminho, considerou aquilo apenas conversa de
bar, que logo seria esquecida, mas com o passar do tempo
percebeu que nosso herói falava sério, que dia a dia o assunto
voltava à tona e já era uma coisa meio obsessiva, “demente”,
como dizia brincando. Aos poucos ele foi se tornando o
ouvinte fiel de Neminho e convenceu-se de que o amigo
estava realmente decidido a ir adiante. E como amigo é essa
coisa de estar junto, pegar junto, caminhar junto, concluiu
que era melhor assessorá-lo, já que ao menos daquele
universo chamado mídia ele entendia um pouco e assim
tornava-se de grande valor o seu conhecimento para auxiliar
nosso Quixote na caminhada.
Era com ele que Neminho se preparava cada vez que
tinha que ser “atirado às feras”, que era como gostava de
dizer quando ia dar uma entrevista, participar de um
programa de TV ou de um evento público.
Esses momentos se constituíam num verdadeiro
“estado de alerta”, pois os jornalistas normalmente iniciavam
suas entrevistas com perguntas acerca da sua atitude
81
quixotesca, da reportagem no famoso jornal americano e sua
repentina celebridade, sobre como seria a campanha para
arrecadar os fundos, em que cidades ocorreriam realmente
os concertos que a mídia já anunciava, enfim, perguntas
triviais, normais para aquele momento, mas logo a seguir
insistiam em lhe fazer perguntas geralmente querendo provar
que estava ocorrendo algum embate entre ele e o governo...
e manter esse segredo não era fácil.
Por isso o jornalista sentia que seu apoio devia ser
mais do que mera amizade, precisava ser profissional, voltado
a transformar o amigo numa pessoa preparada para
“enfrentar as feras”, que não eram poucas e cujos interesses
– saber o máximo de tudo – lhe obrigavam a manter-se
constantemente em alerta, medindo as palavras para não dar
margens a interpretações distorcidas.
E foi com esse amigo que Neminho aos poucos
acabou perdendo o medo das câmeras, dos microfones, das
perguntas incisivas dos repórteres. Seu discurso amador,
demorado, cheio de particularidades (técnicas, históricas,
sociais etc.) foi se tornando ágil, com frases objetivas, diretas,
pois passara a compreender a noção de tempo e o quanto
este vale no universo da mídia. E compreendeu tanto, que
criou o hábito de dizer frases curtas, de forma direta, com o
mínimo de elementos possível, e com isso conseguir falar
tudo que precisava no menor tempo. Assim, ele resolvia dois
problemas: se o tempo da entrevista fosse curto ele não
deixaria de dizer o que precisava ser dito e, caso o jornalista
resolvesse editar a matéria, ficava difícil tirar qualquer frase,
já que todas eram muito objetivas e, portanto, necessárias
para esclarecer o leitor, ou ouvinte, além de evitar, ou pelo
menos minimizar, os mal-entendidos – o que convenhamos
era muito importante num debate, ainda mais acirrado, como
estava ficando aquele, insuflado pela imprensa.
82
Por diversas vezes Neminho visitara seu amigo na
redação do Jornal da Cidade, fosse para um café, para irem
almoçar ou mesmo para uma simples visita, mas, com o
desenrolar dos acontecimentos, os encontros entre eles
passaram a ser bastante discretos. Os almoços, por exemplo,
raramente ocorriam e atualmente seus encontros se davam
mais em jantares em sua casa, quando ele recebia o amigo
para as suas “aulas”.
Na “aula” daquela noite eles tratariam de um assunto
mais sério: a entrevista que Neminho teria que dar
brevemente, quando declararia publicamente seu “não” à
parceria do governo.
83
Capítulo 21 - BASTIDORES DO PODER
O sonho de poder do Assessor – O mandatário-mor é sua
criação maior e ele não admite que algo possa sair errado
Assessores são a personificação da “última barreira”
para se chegar ao poder. Quando intentamos falar com o
presidente de uma organização, de um país, ou com uma
autoridade investida de alto poder de decisão, geralmente
teremos que vencer essa última barreira, o que pode ser um
ato vitorioso ou não, dependendo aí de fatores que vão desde
as simpatias que o Assessor possa ter para conosco até as
antipatias.
É claro que, em certas esferas de poder, basta termos
chegado nessa última barreira para não sermos mais
impedidos, haja vista que o Assessor esta lá apenas e
somente como um facilitador das decisões da autoridade;
nesse caso, essa barreira cai naturalmente, porque se
chegamos até ali é porque algo de importante precisa ser
discutido nas esferas mais altas.
Já em outras esferas, muitas vezes é tamanho o poder
do Assessor para decidir sobre o que deve ou não ser do
conhecimento da autoridade, que ele acaba acumulando mais
conhecimento que a própria autoridade acerca do que se está
decidindo; e situações assim haviam permitido a certos
assessores estabelecerem redes de poder paralelo que os
tornavam praticamente mais influentes no jogo político do
que muitas das autoridades às quais assessoravam.
O Assessor do mandatário-mor era um desses casos,
exemplar bem acabado de um poder paralelo que há muito
vinha dominando o governo local, de tal forma que não era
segredo para ninguém que quem mandava era ele. Assim,
todos aqueles que precisavam de algum favor nos altos
84
escalões ou mesmo aqueles que tinham relações econômicas
com o governo, geralmente negociavam direto com ele ou
alguém de sua confiança. Até mesmo chefes de outros
partidos assumiam à boca pequena que discutiam muitas das
decisões políticas diretamente com ele.
A fama do Assessor fez dele uma figura
extremamente forte na política local. Os seus adversários e
inimigos políticos costumavam dizer que o mandatário-mor
era uma mera figura protocolar, e que vinha ao Gabinete
praticamente para assinar os documentos, pois quem
mandava de fato era o Assessor. Colaborava para aumentar
essa fama um fato notório nas cerimônias, quando ele era
visto acompanhando o mandatário-mor, mas com
comportamentos tão maternais que lembravam mesmo uma
mãe austera, daquelas que ficam o tempo inteiro arrumando
o filho, que tem que agir conforme suas ordens e sobre o qual
elas têm poder absoluto.
Os discursos lidos pelo mandatário-mor – de uma
forma pretensamente inflamada, vibrante, como convém a
um líder - não combinavam com seu estilo, sua oratória – pois
ele era visivelmente tímido e de pouco vocabulário - e ficava
evidente que falava um texto alheio, deixando a clara
impressão de que era outra das imposições do Assessor.
Este sabia de sua fama na capital, mas dissimulava
seu poder e em público costumava alegar, ao ser indagado se
não pensava em candidatar-se, que nascera para servir e,
portanto, seu trabalho era como uma missão, que ele tinha
de cumprir e da qual não podia desfazer-se.
Afirmações desse tipo não convenciam muita gente e
eram lenha na fogueira da oposição e do jornal a Gazeta, que
costumavam afirmar que, espertamente, o Assessor queria
exercer o poder de decidir, mas jamais assumir
responsabilidades; deter o poder mas não dar a cara para
85
bater. No comentário jocoso de um articulista, ele era a
verdadeira cara da “lojinha número 1 da cidade”, numa
alusão maliciosa às conexões maçônicas do assessor, que,
tipicamente como um bom “membro da loja”, só agia “na
surdina”, dando as ordens sempre “por trás”. Desnecessário
dizer que ele não nutria muitas simpatias pelo citado jornal.
De fato, na calada do seu quarto, o Assessor gastava
todas as noites um bom tempo para refletir sobre as decisões
do dia seguinte, que determinaria ao mandatário-mor. Ele
encontrava-se no centro de uma negociação e havia pressões
do bloco de apoio ao governo, o que lhe custara três dias
seguidos de reuniões, mas ele já sabia como articular o
resultado a seu favor.
Tomou um banho, bebeu um conhaque e enquanto
fazia isso lembrou mais uma vez, como vinha fazendo nesses
últimos dias, do encontro com o cidadão que chamavam
Quixote. Riu:
- Quixote! Porra, não tinha um nome melhor? Dom
Quixote era um magrelo e até que combina com aquele
sujeito, mas... O que será que ele está pretendendo...? Sim,
porque tem algo por trás disso tudo... Um sujeito que não
quer nenhum tipo de acordo com nossa ala. Se ele fosse
qualquer um, não teria uma cobertura tamanha da imprensa.
Além do mais, se é verdade o que estão dizendo, o dinheiro
arrecadado será de cento e cinquenta milhões de dólares.
Cento e cinquenta milhões... Só para recuperar uma ponte
que nem mesmo vale tudo isso! É um bom dinheiro, e tanto
dinheiro não surge assim do nada. Tem gente grande por trás
disso, tem um projeto maior nisso tudo, ah, tem sim; e eu
preciso descobrir para não ser pego de surpresa. Só me falta
vir um sujeitinho embolar meu meio de campo justamente
quando a cidade começa a ficar famosa, quando toda a mídia
começa a prestar atenção em nós; isso eu não vou permitir!
86
Preciso me inteirar totalmente do que está acontecendo!
Tem algo maior aí, que pode melar todo o nosso projeto, e já
é hora de saber o que é! – considerou.
O Assessor decidiu marcar uma reunião com os
profissionais da imprensa que considerava de confiança para
analisar os fatos, conhecer suas opiniões e formar uma
estratégia de ação a partir das perspectivas que aqueles
profissionais apresentassem. Ele sempre teve em mente que
a melhor informação vem dos profissionais da imprensa, da
mídia, e em todos esses anos tratou de estabelecer uma rede
confiável de amigos nesse campo. Era notório que o Assessor
tratava com todas as gentilezas aqueles que gozavam de sua
confiança, e com todo o desprezo e aspereza os que o
criticavam, ou a sua criatura, o mandatário-mor, e mesmo o
partido, fosse pelo que fosse. Ele acreditava que agindo assim
expunha publicamente os próprios jornalistas que o
apoiavam, para os demais colegas, e desse modo os atrelava
ao seu círculo de poder; mas essa exposição incomodava
muitos jornalistas, que não gostavam de manifestar
publicamente suas posições políticas - e alguns deles só
concordaram em apoiá-lo se ele os tratasse em público com
uma “certa indiferença”, o que ele estrategicamente
concordou e cumpriu. E assim surgiu a brincadeira maliciosa
de chamar de Reuniões da Távola Redonda a todos esses
encontros bastante discretos entre o Assessor e seus homens
de confiança, encontros que eram comunicados diretamente
a todos por ele. A reunião da manhã seguinte seria uma
dessas e ele tratou de avisar a cada um antes de ir dormir.
- E depois eu vou cuidar daqueles filhos da puta da
Gazeta. Mas dessa vez eu preciso ir com cautela, pois há um
fato novo no ar, que há tempos eu não via: a cidade está
dividida não entre esquerda e direita, mas entre dois
pensamentos de direita, entre a burocracia e a livre iniciativa:
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se é o Estado liberal quem manda ou se é o cidadão liberal
quem decide; e isso é o perigo, pois a direita não deve ficar
dividida... é prejudicial para o meu projeto... Que a esquerda
viva dividida é um problema dela... Mas aqui precisamos de
uma direita forte, que não rache, não se divida, ao contrário,
se alie nas horas decisivas, como sempre foi. Isso só aumenta
o cacife da oposição e dá mais dinheiro para esses “esquerdas
de merda” da Gazeta.
E com essa certeza de que no fim de tudo sua ala
política acabaria sempre unida e mais forte, ele deitou-se,
confiante de que no dia seguinte iniciaria mais um de seus
vitoriosos embates. Afinal, era ele o principal homem naquele
governo, havia conquistado essa posição e nada iria mudar tal
condição. Essa era a sua única ideologia. Sorriu e dormiu.
88
Capítulo 22 - A REUNIÃO DA TÁVOLA QUADRADA
A sabatina com os jornalistas – A discussão entre o Assessor
e o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias
Se os encontros reservados entre o Assessor e os
homens de mídia de confiança eram chamadas de Reuniões
da Távola Redonda, os encontros coletivos dos quais
participavam todos os demais jornalistas, inclusive os
opositores, passaram a ser jocosamente chamados de
Reuniões da Távola Quadrada; e assim bastava saber que o
Assessor estava numa reunião dessas para deduzir que o
encontro não lhe era nada agradável, uma vez que isso
sempre significava passar por sabatinas carregadas de
perguntas ardilosas, para as quais precisava ter respostas
rápidas sem comprometer-se, enfim, negociar com o inimigo,
algo que ele não engolia desde jovem, mas que aprendera a
suportar e, com o tempo, dominar, tudo em nome de sua
estratégia de poder - e embora lhe causassem certo asco, ele
até que encarava bem esses momentos, pois, afinal de
contas, era um negociador por excelência.
Ao chegar na sala de imprensa, já era aguardado por
um expressivo número de jornalistas, em sua maioria
opositores de seu governo, alguns que vinham de jornais e tvs
de menor importância e com os quais bastava uma conversa
com a promessa de um bom patrocínio para convencê-los a
apoiar qualquer causa, além de alguns jornalistas
correspondentes de jornais nacionais, que também passaram
a se interessar pelo que estava ocorrendo em Florianópolis.
Num relance, o Assessor viu quem estava na sala e na mesma
hora fez uma avaliação de como iria agir para debater o
assunto do encontro. Ele sabia que precisava convencer o
maior número de jornalistas para torná-los favoráveis à
89
postura do governo no caso; e já nas primeiras perguntas
sobre como o governo estava encarando a situação vexatória
a que tinha sido exposto, passou a insistir na incapacidade do
cidadão Neminho Silva para, sozinho, gerenciar uma ação de
tamanha monta, e daí entender que o melhor seria o cidadão
aceitar a consultoria de um profissional do governo para
administrar a campanha em favor da ponte. E antes que
novas perguntas surgissem para saber o que faria o governo,
tema sobre o qual o Assessor não gostaria de continuar a dar
explicações, decidiu que a melhor estratégia seria desviar o
foco de interesse da conversa. E assim lembrou de imediato
que devia ser levado em consideração o aspecto legal da
empreitada do cidadão chamado Quixote, que, no seu
entender, estava se constituindo num caso de insubordinação
civil, uma vez que ele negava que o governo assumisse os
compromissos de gerenciamento da campanha para salvar
um patrimônio público, que estava sendo levada pelo mundo
afora, mas “à revelia”, sem qualquer participação do Estado
que cuida desse patrimônio, colocando em cheque uma série
de instituições e passando dos limites que a lei garante a um
cidadão.
Devido à importância do assunto daquela entrevista,
o próprio Editor-Chefe da Gazeta de Notícias resolvera
comparecer. Fizera bem ao decidir estar ali, e sua intervenção
demonstrava bem isso:
- Ora – atalhou – mas é justamente esse o sentido da
campanha do Quixote: provar a inoperância do Estado e
dessas instituições nesses anos e anos, e provar que um
cidadão sozinho pode muito mais do que o Estado. Nada mais
liberal que isso! É o fato de colocar a nu a incapacidade
estatal para a gerência pública, que está incomodando o
governo? – perguntou com um ar irônico e cravou os olhos
nos olhos do Assessor, que não teve como desviá-los.
90
- Não se trata de capacidade ou não. Trata-se de
legalidade, de representação. Um cidadão sozinho não pode
simplesmente apossar-se de um problema de natureza
pública e achar-se dono da solução, tomar as rédeas da
decisão. Se fosse assim com tudo o que é público, seria um
caos – disse o Assessor.
- Mas temos que admitir que Neminho Silva está
dando um baile no governo e isso deve incomodar, não é
mesmo? E quanto à legalidade ou não, antes de tudo é
preciso considerar que a atitude do cidadão não tem nada de
irregular, bem pelo contrário, é um ato em favor de toda uma
cidade. Não tem ele todo o direito de julgar o governo
incompetente e, por isso mesmo, decidir agir sozinho para
solucionar o problema? – insistiu o jornalista.
- Ora, mas temos lei, temos representação, há um
Estado para representar o cidadão e este não tem o direito
legal de decidir em paralelo, de tomar para si aquilo que é
público, mesmo que isso seja um problema e ele tenha a
solução.
- Mas se ele tem a solução, não é isso que importa?
- Convenhamos que sim - disse o Assessor -, mas eu
insisto: há regras de legalidade, regras de representação,
regras essas que foram quebradas pelo cidadão. É isso que
estamos tentando evitar, porque amanhã a população vai
perguntar sobre quem vai receber a verba da campanha,
quem vai administrar essa verba, quem vai pagar pelos
serviços, e isso tem de ser feito na legalidade. É por isso que
insisto que é hora do Sr. Neminho Silva aceitar o serviço
profissional de um assessor do governo para que tudo seja
feito dentro da mais completa legalidade.
- Mas pelo visto essa não é a intenção do Neminho...
No que já se pode antever, ele irá receber sozinho o dinheiro
de toda a campanha, para provar que sozinho ele pode fazer
91
muito mais – e em menos tempo - do que todo o Estado, e só
depois passar a verba ao governo – insistiu maliciosamente o
Editor-Chefe da Gazeta.
O Assessor parecia querer fuzilá-lo com os olhos. De
todos os que estavam ali presentes, aquele era sem dúvida o
seu mais ferrenho opositor. Já tinha praticamente feito
acordos tácitos (como ele gostava de chamar) em diversas
situações com vários dos jornalistas naquela sala, mas o
Editor-Chefe da Gazeta de Notícias não se dobrava e parecia a
cada dia demonstrar uma antipatia maior por ele.
- Bem, o governo ainda não considera como definitiva
a negativa de parceria do famoso cidadão, mas espera que
ele seja guiado pelo bom senso e entenda que há limites para
os sonhos; e que esse limite chama-se lei.
- Correção, senhor Assessor. A frase correta é: não há
limites para os sonhos – atalhou o jornalista.
- Se o senhor entende assim, devo relembrar: existem
as leis para ordenar nossas ações – contrapôs o Assessor.
- Mas lembre-se também de que o objetivo do herói é
fazer a justiça. E nesse caso, o abandono do Estado em
relação à ponte nesses anos todos bem merecia uma
condenação; acho que Neminho Silva é o justiceiro, é a justiça
popular que veio condenar o Estado, chamá-lo de
incompetente, de incapaz de gerenciar um problema que
nem mesmo é tão grande. Neminho veio cobrar a ação que
não houve. E veio cobrar da forma mais humilhante: pagando
para isso. Acho que é hora do Estado entender a metáfora
que há por trás dessa atitude: que há anos todos vêm
pagando ao Estado para agir, mas este nada vem fazendo.
Neminho Silva veio cobrar em nosso nome, veio nos redimir,
liberar essa amarra que é a burocracia estatal, esse labirinto
onde nos jogam para que nunca achemos a saída, o caminho
92
mais rápido para as soluções – e assim ficarmos para sempre
nas mãos dos burocratas, dos assessores.
As palavras do Editor-Chefe da Gazeta de Notícias
feriram direto o Assessor, e esse ferimento era pior para ele
porque sabia que todos ali concordavam com a verdade do
discurso do jornalista; o governo realmente falhara em não
dar uma solução há muito para o problema da ponte e agora
se encontrava nessa situação vexatória.
Sentindo que não iria sair vitorioso naquele
momento, o Assessor resolveu que era hora de dar a
entrevista por encerrada, e para evitar novas perguntas
comprometeu-se a um novo encontro em breve.
Antes de sair, ainda lançou mais um olhar de ódio
para o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias e encontrou o rosto
deste voltado para ele, os olhos a observá-lo e na boca do
jornalista aquele sorriso irônico que ele odiava mais que tudo,
porque sabia bem o que significava. Afinal, desde a primeira
vez que o jornalista pronunciara aquela frase, na primeira
discussão que tiveram em todos esses anos de tensa relação,
ela nunca mais deixara de ecoar a cada vez que se
encontravam:
- Eu sei muito bem qual é o seu jogo! Eu sei muito
bem qual é o seu jogo! Eu sei muito bem...
93
Capítulo 23 - OS DEBATES ESQUENTAM
Começam os megaeventos - Neminho precisa viajar e
demora a dar uma resposta ao governo – Com a demora, os
debates esquentam – A homenagem dos cariocas
A demora de Neminho em aceitar a parceria com
gente do governo só fez acirrar os debates, cada dia mais
acalorados, em torno do assunto, o que fazia a alegria dos
proprietários dos jornais, que aumentavam o número de
páginas e a tiragem de acordo com a manchete que
estampavam em cada edição e a importância do entrevistado
naquele dia.
Um fato novo veio deixar os donos dos jornais ainda
mais alegres. É que os primeiros megaeventos começavam a
acontecer e Neminho precisou ausentar-se mais duas
semanas da cidade. Enquanto viajava, assuntos envolvendo o
seu nome não faltavam, bem como continuava a surgir em
cena todo tipo de especialistas para discutir sua atitude:
juristas das mais diversas correntes e interpretações
ocupavam páginas e páginas de política para darem razão ora
ao Estado, ora ao cidadão; engenheiros, arquitetos,
ambientalistas urbanistas e técnicos de áreas afins ocupavam
também páginas e páginas para discutir as (im)possibilidades
estruturais para a recuperação, as alternativas da engenharia,
os perigos do impacto ambiental da obra, as diversas soluções
etc. etc. etc.; psicólogos e sociólogos não ficavam de fora do
debate e discutiam desde o perfil psicológico do quixotesco
cidadão até as questões sociais que levam um simples
cidadão a uma atitude “rebelde”, como dissera um desses
especialistas; colunistas e fofoqueiros de plantão tratavam de
pôr os admiradores de Neminho a par de seus sucesso no
exterior, acompanhando suas viagens para participar dos
94
megaconcertos, onde era presença obrigatória, aplaudido
como um verdadeiro pop star; e até as páginas esportivas não
ficavam imunes ao assunto, pois muitos ídolos esportivos
locais faziam questão de manifestar apoio ao ilustre Quixote
mané.
Na outra ponta, pessoas que normalmente não
tinham o hábito de ler – quando muito, liam um pequeno
livro ou uma ou outra notícia num jornal – passaram a
comprar diariamente não só o exemplar do jornal que mais se
aproximava de sua opção ideológica, mas também o
exemplar do jornal adversário, para saber “o que um
respondeu ao outro”. E curiosamente, de uma hora para
outra, os leitores da cidade ascenderam a um status nunca
visto na quase totalidade das cidades brasileiras: ler dois
jornais diários.
Os proprietários dos jornais estavam exultantes e
bastavam palavras mágicas como Neminho, Megaeventos e
Ponte para concordarem imediatamente com o aumento das
tiragens.
E o fenômeno não atingia somente os dois diários
envolvidos na disputa: nos programas de rádio multiplicavamse as enquetes diárias do tipo “você acha que Neminho Silva
está certo em não permitir que o governo represente a
cidade nos megaeventos?”, ou ainda “o que você faria para
tornar-se um herói?”; e nas estações de TV especialistas
repetiam as entrevistas que davam para os jornais,
aumentando em muito o trabalho das equipes de produção
local, que viviam correndo atrás das figuras mais em
evidência na semana para aumentar a audiência de seus
programas.
Quando Neminho retornou da viagem, foi recebido
por uma enxurrada de repórteres que o perseguiam desde o
aeroporto até sua casa, na busca da melhor informação. Aliás,
95
com o desenrolar dos megaeventos, os dois dias após cada
viagem, acabaram se tornando dias terríveis para sua
tranquilidade e ele já tentara as mais diversas artimanhas
para ficar sozinho ao menos para recuperar-se da viagem, o
jet lag, mas não tinha jeito. Assim, a conselho de seu amigo,
resolveu que a cada retorno faria sempre uma entrevista
coletiva e, se não precisasse viajar para algum compromisso
dentro do país (pois era sempre notícia na mídia nacional e
convidado para diversos eventos), aceitaria dar uma ou outra
entrevista exclusiva; e não eram poucos os pedidos.
O que mais exigia dele era estar sempre atento ao
tipo de público para o qual estava se dirigindo nessas
ocasiões. Afinal, haviam se multiplicado os grupos de
admiradores de sua causa e era preciso ter um discurso para
cada situação, falar especificamente para cada público, tarefa
delicada.
Além disso, muitos desses grupos lançavam-se de
maneira autônoma em ações de apoio a Neminho e, quando
ele menos esperava, recebia convites de um grupo de jovens
lá de Natal ou de Cuiabá para participar de shows voltados a
arrecadar dinheiro para a sua causa, o que ele não queria que
acontecesse, porque as verbas viriam do exterior e ele não
queria que os brasileiros, já vivendo em tanta dificuldade,
sacrificassem o pouco que ganham para a sua causa. Essa era
uma decisão que ele havia tomado desde o início: pedir
socorro lá fora, não aqui.
- Quero pedir somente para quem tem bastante, e
não a quem tem pouco ou quase nada! – era seu
compromisso diversas vezes declarado nas entrevistas.
Mas era difícil conter tantas ações solidárias e ele
acabou cedendo a algumas colaborações, como foi o caso da
campanha que os cariocas fizeram e que foi notícia em toda a
mídia mundial: cada carro que atravessasse a ponte Rio-
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Niterói num dia de sábado previamente marcado, iria doar a
quantia simbólica de R$ 1,00 para ajudar na campanha. Os
organizadores achavam que aproximadamente cem mil
automóveis iriam cruzar a ponte naquele dia, o que seria
normal, mas inexplicavelmente lá pelas dez horas da manhã
todo o sistema de acesso à ponte estava paralisado pelo
maior congestionamento que a cidade já vira desde a sua
inauguração e quase um milhão de motoristas queriam a
todo custo atravessar a ponte e “marcar presença”. Era uma
cena espetacular: um engarrafamento em que todos faziam
questão de entrar e pouco ligavam quanto à hora que iriam
sair. Foi o dia em que o Rio de Janeiro fez questão de dizer
para todo mundo (literalmente) que amava e orgulhava-se
também de sua bela ponte, tal qual o Cristo, o Pão de Açúcar
e o Maracanã.
E então Neminho, pela primeira vez em toda essa
jornada, não se conteve e, emocionado, chorou.
Aproveitando uma escala no Rio de Janeiro algumas semanas
depois, fez questão de ir até a ponte e chegando lá, ajoelhouse respeitoso e deu um beijo no asfalto – a foto deste beijo
correu mundo afora.
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Capítulo 24 - NEMINHO VAI À MONTANHA
A situação ameaça sair do controle - Neminho teme uma
divisão da cidade – O episódio da revolta da Ponte do
Vinagre
A enxurrada de debates em torno de seu nome, das
suas intenções e das suas atitudes, até mesmo levantando
dúvidas quanto a sua honestidade, causava desconforto em
Neminho, pois ele achava que deveria haver um limite entre o
que é produto e o que é pessoa.
Uma questão que também preocupava muito nosso
Quixote era não ter o controle total sobre a situação na
cidade, o principal lugar de toda aquela contenda, portanto, o
único terreno que ele não gostaria que estivesse minado,
para (pelo menos ali) poder pisar, andar, com tranquilidade
naqueles dias tão tensos, tão cheios de assuntos para cuidar.
Esse sim era o maior e mais imediato problema: aquela sua
luta romântica crescera além da conta, invadira territórios
que não eram seu objetivo, e agora corria o risco de
transformar-se numa peleja ideológica entre duas correntes,
peleja antiga, já desde os tempos do império.
E como Neminho sabia que os fatos envolvendo seu
nome fizeram nascer um sentimento de comoção muito forte
na população, ele temia que a Gazeta de Notícias e o Jornal
da Cidade, na defesa radical de suas ideologias, acabassem
colocando uma parte da população contra outra, dividindo a
cidade em dois lados – como era visível pelo discurso
inflamado de cada editorial e das matérias e comentários que
os dois jornais publicavam dia após dia sobre a campanha - e
com isso acabassem revivendo os ingratos dias da “Revolta do
Vinagre”, a primeira vez em que a cidade esteve realmente
dividida. Aquele falatório da imprensa parecia uma volta às
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antigas querelas que colocaram as duas correntes do poder
local em lados antagônicos: os maçons, que aderiram ao
Partido Liberal, e os comerciantes, que apoiaram o Partido
Conservador. No meio, como massa de manobra, a “plebe”,21
acusada por um lado e defendida por outro, mas sem
qualquer poder decisório na briga... Como ainda é, hoje,
infelizmente...
Convém falar um pouco desse episódio.
O Mercado Público tem sua origem em barracas e
quitandas construídas pelo governo da Capitania de Santa
Catarina, nos fins do século XVIII, que eram alugadas por
pequenos comerciantes. O aluguel era recebido
primeiramente pelo governo da capitania, e após a
Independência do Brasil, pelo governo da Província.
As pessoas que vendiam seus produtos nas barracas
eram em sua maioria escravos de ganho, forros e brancos
pobres. Os principais frequentadores das lojas eram escravos,
forros, marinheiros, militares, viajantes e a população local,
em geral.
Em 1838, o governo da província autorizou a
construção de uma Praça de Mercado, que deveria ficar entre
22
as ruas Livramento e Ouvidor , em um local de terreno de
marinha, fora do Largo da Matriz.
Dois grupos políticos locais entraram em disputa pela
escolha do local que o Mercado Público deveria ser
construído: os grandes comerciantes locais queriam que as
barracas continuassem no Largo da Matriz, o que atraía
clientes para suas lojas, que ficavam na rua do Comércio,
atual Conselheiro Mafra. A maioria destes grandes
comerciantes tinha familiares em todas as irmandades
religiosas encontradas na Ilha de Santa Catarina.
O outro grupo político era formado por pessoas que
moravam em outros lugares da Ilha, de outras províncias, ou
99
mesmo de outros países. Muitos pertenciam à loja maçônica
Concórdia, e à Sociedade Patriótica, ambas fundadas por
Jeronymo Coelho em Desterro. Estes desejavam instalar as
barracas e quitandas fora do perímetro urbano, para lá ou
próximo da Ponte do Vinagre.
Em 1845, a visita de Dom Pedro II e do Bispo do Rio
de Janeiro levou a Câmara de Desterro a aprovar a mudança
de lugar das barracas e quitandas. O centro urbano foi
higienizado, e as barraquinhas foram removidas para as
proximidades do Largo Santa Bárbara, junto à Ponte do
Vinagre, fora do perímetro urbano.
Os grandes comerciantes desejavam que as barracas
e quitandas voltassem para o Largo da Matriz, enquanto os
maçônicos e a Sociedade Patriótica desejavam que
continuassem na região da Ponte do Vinagre, alegando
principalmente questões sanitárias.
Por fim, o primeiro prédio do Mercado Público foi
construído em 1851, situava-se ao sul do Largo da Matriz,
junto ao mar. Em 5 de fevereiro de 1899, o prédio foi
transferido para a localização atual, na época também à
beira-mar, possuindo apenas uma ala. A segunda ala só veio a
ser entregue trinta e dois anos depois.
Isso conta a história oficial, mas, evidentemente,
pode-se imaginar que os fatos não devem ter acontecido de
forma tão pacífica. Afinal, quem morava pra lá da Ponte do
Vinagre, ou seja, em direção ao Hospital de Caridade, eram os
menos prestigiados, que aos poucos estavam sendo
empurrados para aquela região, por causa das políticas
higienizadoras do governo imperial, que, ao mesmo tempo
em que garantia um emprego público para os recémformados doutores de Coimbra, filhos de famílias ilustres que
lá iam estudar e voltavam ao Brasil requisitando um bom
emprego, colocava na ilegalidade toda sorte de benzedeiras,
100
médiuns, parteiras, curandeiras, enfim, todos aqueles que
não tivessem um diploma, que não professassem a chamada
medicina “legal”. É assim que a região da Prainha, nos baixos
do hospital de Caridade, na época conhecida como bairro da
Tronqueira, ou, como se dizia, pra lá da Ponte do Vinagre, foi
se tornando, a partir da metade do Século XIX, uma região
desprestigiada, habitada e frequentada por toda a sorte de
“ilegais” e discriminados, os primeiros “bruxólicos” que tanta
fama deram (e dão) à ilha. Nos anos seguintes a Prainha
cresceu, o Morro do Mocotó foi totalmente ocupado por
invasões e ali nasceu e cresceu um amontoado de gente
pobre que por muitos e muitos anos sobreviveu à margem
dos assistencialismos e fez a fama de diversos políticos locais,
como ainda ocorre.
Essa população pobre que habitava do outro lado da
Ponte do Vinagre, ao ser desprestigiada pela população que
habitava a Figueira (como era chamada a região central), o
Mato Grosso (região da Chácara do Espanha e da Praça
Getúlio Vargas) e a Praia de Fora (atual avenida Beira-mar),
sentiu-se magoada e resolveu fazer uma espécie de “greve
branca”, dificultando as relações fornecedores/clientes com o
pessoal da cidade - suas mercadorias, por exemplo, só vinham
até a ponte e dali eles se recusavam a prosseguir até o centro,
complicando o abastecimento de gêneros necessários, como
temperos e pequenos animais, e complicando, por
consequência, a vida das donas de casa da cidade. Já que eles,
pobres, não tinham o direito de literalmente vender seu peixe
no centro da cidade; também os boêmios, os jovens da elite,
os pequenos comerciantes e toda a sorte de homens à
procura de algumas horas de alegria com as “meninas da
Tronqueira” teriam a partir daquele dia tratamento igual ao
que o povo simples recebera da elite na cidade, ou seja, a
Tronqueira virava uma espécie de zona proibida para os de
101
fora. E assim, para desespero da macharada local e também
das elegantes senhoras da cidade que adoravam procurar as
curandeiras, as benzedeiras e as sortistas, que moravam para
aqueles lados, a “fronteira foi fechada” por vários dias. Era o
“troco” dos pobres à arrogância das elites, a revolta da “ralé”:
a revolta do Vinagre23.
Para finalizar, basta dizer que o tempo esquentou, os
debates em torno da volta ou não do povo ao centro da
cidade acirraram-se e a disputa, por fim, provocou marcas tão
profundas que dali para frente, a cidade dividiu-se entre o
Partido Conservador, dos grandes comerciantes locais, e o
Partido Liberal, que pertencia principalmente aos maçônicos
e aos grupos ligados à Sociedade Patriótica. E foi mais ou
menos desse modo que Florianópolis viveu a sua pequena
“guerra civil”.
Agora podemos entender a preocupação de nosso
herói com o rumo que as coisas estavam tomando. Afinal de
contas, não era nenhum inocente e sabia muito bem que
naquela altura dos acontecimentos ele tornara-se uma
simples peça no jogo que travavam os dois grupos políticos,
que tinham nos dois principais jornais da cidade, cada qual
posicionado de um lado, os porta-vozes de seus interesses.
Diferentemente daquela época da revolta do Vinagre,
agora não havia apoio explícito dos comerciantes locais a
nenhum movimento popular; era alguém do povo que se
insurgia e cobrava do governo mais cuidado no trato da coisa
pública. Comerciantes e burocratas estavam “oficialmente”
lado a lado, embora no discurso cada uma das partes
costumava culpar a outra; e nenhuma delas assumia nada.
A discussão entre eles era de fundo: a intenção de
cada grupo se sobrepor ao outro. Havia sido sempre assim: a
eterna luta de poder se travava entre comerciantes e
burocratas. O povo raramente ameaçava o poder; e Neminho
102
sabia que era isso que incomodava o Assessor, pois para este
a grande ameaça ao seu poder não vinha do povo, das
esquerdas, mas poderia vir da condenação da “outra parte”
da direita, dos comerciantes, motivados pela ação do Quixote.
E, o que era pior, estes tinham condições de chegar
facilmente ao poder... e derrubá-lo.
Para os populares, o que Neminho fizera estava
correto e, se o governo não demonstrara competência maior
do que a de um único cidadão, quem devia pedir as contas
era ele, governo. Foi sob esse veredito que a Gazeta de
Notícias estampou em letras grandes uma série contínua de
manchetes manifestando total apoio à ação anarquista do
quixotesco cidadão.
E era esse adjetivo, anarquista, um dos motivos da
preocupação de Neminho. Afinal de contas, quem conhece
um pouco da história dos movimentos sociais, sabe muito
bem que o adjetivo anarquista tem um sentido altamente
positivo no âmbito da arte, ética, heroísmo, livre iniciativa,
mas, visto pela ótica de uma sociedade assentada no Estado e
na política partidária, o sentido pode ser o contrário. E o que
Neminho menos desejava, era que sua atitude fosse vista
como política, ainda mais partidária. Era um anarquista sim,
mas um anarquista romântico ou anarquista na hora de
defender o único conceito que o fazia lutar nas fileiras do
Ocidente: o da liberdade, mesmo que não fosse aquela
liberdade sonhada, idealizada, mas que ele sabia ser muito
melhor do que a segurança de um estado totalitário
comunista, onde sua ação seria considerada no mínimo como
inadmissível, motivo para uma prisão perpétua. A vida era
dura em qualquer lugar, mas pelo menos no lado capitalista
ele tinha a liberdade de agir; e para um cara simples, sem
dinheiro, mas disposto a um heroísmo, isso significava muito.
Por isso ele se sentia bem, sem culpas, sendo um misto de
103
anarquista ao rejeitar pertencer a qualquer partido; e
capitalista por defender acima de tudo a sua liberdade, o seu
direito de contestar abertamente. Mas seu medo era que os
jornais distorcessem completamente essa sua liberdade e
vissem nela um ato anarquista meramente político; aí sim ele
sabia que poderia perder o apoio de muita gente,
principalmente do povo, que maciçamente agora estava do
seu lado e engordava diariamente a conta da Gazeta, cuja
tiragem subia a cada nova manchete explorando a saga do
Quixote de Floripa.
Se a conta da Gazeta de Notícias engordava, também
engordava a conta do Jornal da Cidade, cujas manchetes
eram claramente a favor da posição do governo e atacavam a
ação do nosso herói, não raras vezes usando o adjetivo
anarquista. Embora ambos os jornais focassem suas
manchetes inicialmente em Neminho e na questão central da
disputa – podia ou não um cidadão ser mais competente que
um Estado inteiro e ter direito a fazer aquilo que o Estado não
conseguira – com o passar do tempo essas manchetes mais
pareciam respostas de cada jornal à manchete da edição
anterior do concorrente. E foi isso que fez Neminho perceber
que ele estava se transformando numa mera peça do jogo
entre dois grupos, em nome do povo e do Estado. E não fora
para isso que ele chegara até aqui.
Seu ideal sempre fora um ideal romântico e foi em
nome desse romantismo que ele decidiu que já era hora de
tomar uma posição pública, de fazer a cidade saber que sua
luta era somente dele. Era preciso dar um basta naquela
disputa de interesses que não eram os seus; ele não tinha
nada com os Liberais nem tampouco com os Conservadores;
não tinha nada com a direita nem com a esquerda; não tinha
nada com os burocratas nem com os comerciantes; e também
não tinha nada com o povo, pois, afinal de contas, por que
104
este povo nunca cobrara radicalmente do governo a cura
daquela doença de que padecia sua musa, o fim daquela
situação deplorável?
E foi com a decisão tomada - e apertando em sua mão
o mimo da donzela que ele guardara - que Neminho ligou
para o seu amigo Editor-Chefe do Jornal da Cidade e avisou
que desejava falar, mas que iria falar na presença de toda a
imprensa e na presença, se possível, das autoridades.
A entrevista coletiva foi marcada para dali a dois dias.
Nas horas seguintes, Neminho recolheu-se e recusouse a atender a maioria das ligações que recebeu. Oficialmente
sumiu. Precisava ficar só. Precisava meditar, pensar, ordenar
tudo calmamente:
- Todo homem precisa de quarenta dias na
montanha! – Tantas vezes dissera essa frase para outros e
agora era a sua vez de valer-se dessa verdade.
Então, Neminho subiu a montanha e meditou
profundamente sobre o que iria dizer.
105
Capítulo 25 - O NOVO ENCONTRO COM O ASSESSOR
O Assessor reúne-se novamente com Neminho - A última
cartada
Assim que soube, naquele mesmo dia, que Neminho
marcara uma entrevista coletiva, e já antevendo o que ele iria
dizer, o Assessor o convidou para se reunirem uma segunda
vez a portas fechadas antes da entrevista coletiva, devido à
delicadeza do assunto que gostaria de tratar.
Neminho pensou em negar o pedido, mas considerou
que seria a chance ideal de dizer um não definitivo na cara do
governo e poder gozar dessa vitória olhando nos olhos
daquele homem que já há anos ignorava cinicamente o
sofrimento de sua donzela sem nada fazer por ela. Agora era
a vez dele, Neminho: não mais pedir, mas mandá-lo fazer – e
dessa vez tendo que fazer porque simplesmente milhões e
milhões de olhos atentos somados a uma mídia poderosa
estarão a observar tudo e ele não terá como ludibriar mais a
ninguém, como vem fazendo nesses anos com a população
local. Foi mais ou menos isso que se passava na cabeça de
nosso herói enquanto ele dizia “sim”, atendendo ao pedido
do Assessor.
No dia seguinte, uma sala reservada no Gabinete,
com uma grande mesa de reuniões e cadeiras bastante
confortáveis, serviu de cenário para o encontro de Neminho
com o Assessor.
Os cumprimentos foram protocolares, mas o Assessor
forçava uma simpatia visivelmente ensaiada e tinha na boca
um sorriso quase insistente que não combinava em nada com
seu estilo. Neminho percebeu nessa simpatia forçada um
indício da estratégia do Assessor, voltada a cooptá-lo para
algo que seria do interesse do burocrata.
106
As suspeitas foram se confirmando com o desenrolar
do diálogo e não demorou muito para o Assessor ir direto ao
ponto que realmente desejava: conversar com Neminho
sobre o volume de dinheiro que estava em jogo e insistir
numa associação entre ambos.
- Afinal, de que adianta você lutar sozinho e depois
entregar para o governo toda a verba? Você será logo
esquecido, as pessoas em breve não se lembrarão mais do
que você fez pela cidade. Mas se você aceitar agora a nossa
parceria poderá seguir junto, conosco, até a conclusão da
reforma. Tenho inclusive a ideia de criarmos uma Fundação
para que você dirija e que tenha como finalidade a
restauração...
- Calma lá! – atalhou Neminho. - Criar mais uma
Fundação? E para eu dirigir? Não me faça rir. Acha que eu
concordaria em dirigir uma Fundação depois de toda essa
luta? Acha que eu estou fazendo disso degrau para alcançar
um cargo público? Acredito que o senhor sempre fez uma
ideia muito errada de mim.
Neminho ameaçou levantar-se, mas o Assessor
insistiu para que ele permanecesse mais um pouco e voltou a
falar:
- O que eu quero dizer é que, em agradecimento
pelos seus serviços, o governo poderia lhe convidar para
dirigir as obras da restauração da ponte e assim o senhor ter
certeza da aplicação das verbas.
- Mas isso vai contra diversos princípios que defendo.
Primeiro, eu não sou o mais indicado nem o melhor
preparado para um cargo desses e, como há pessoas muito
mais preparadas, são elas que devem ocupar os cargos dessa
natureza e não os “amiguinhos do governo”, como seus
amigos médicos que dirigem companhias de águas,
engenheiros que se tornam secretários de agricultura,
107
advogados que dirigem hidrelétricas etc. etc. etc., fato
comum no seu governo; segundo, que não estou procurando
emprego; e terceiro, que prefiro ficar do lado dos que pagam
para cobrar, pois assim têm todo o direito de cobrar. O
horrível da burocracia é que ela desaparece com nosso
dinheiro e serve tão somente para alimentar um exército de
gente que só consegue sobreviver em seu meio; e a partir daí,
quando tentamos cobrar, saber o que fizeram com nosso
dinheiro, vamos descobrir a força que tem esse exército para
nos confundir, confundir, confundir até que desistamos de
saber onde foi parar nosso dinheiro. E é isso que o exército
dos burocratas quer: que desistamos de procurar saber onde
puseram o dinheiro do coletivo, pois o dia em que
conseguirmos saber onde ele está poderemos requisitar sua
devolução ou sua aplicação em algo útil. E é isso que eu quero
evitar que aconteça: que esse dinheiro entre na burocracia e
lá desapareça. Por isso não aceito o Estado, pois, para que ele
atue, vai precisar criar uma série de portarias, vai precisar
aprovar sabe lá quantos projetos de lei e para isso vai
negociar, negociar e negociar e acatar todo tipo de interesses
que existem nessas negociações. E quando aprovar algo vai
ter que estabelecer convênios e convênios e para isso vai
novamente negociar, negociar e negociar e acatar mais uma
leva de interesses e aí o tempo vai passar e a verba vai se
diluir e quando se perceber terá tudo novamente sido em
vão... Não, meu senhor, a minha intenção é outra: quero mais
do que denunciar a incompetência desse Estado; quero
publicamente comprometer esse Estado, quero que pela
primeira vez ele não consiga se esconder, quero que pela
primeira vez ele tenha de agir com correção e sob total
vigilância da população, impossibilitado de sumir com a verba
pública; quero que minha atitude provoque reflexões de que
algo de muito, mas muito ruim, ocorre nesse governo e que
108
precisa ser discutido. É isso, senhor Assessor, que deve ficar
bem claro aqui em nossa conversa, a qual acho que deve
terminar por aqui.
- Eu lamento muito que você tenha essa opinião.
Afinal, poderíamos aproveitar esse momento em que toda a
mídia olha para nossa cidade e ganhar muito mais prestígio se
nos uníssemos, passando uma imagem de que o herói da
causa é também um amigo do governo, que acredita nele e
conta com ele para acabar – agora que há verbas suficientes –
com o drama que padece a ponte. Acho que merecemos uma
chance também, não concorda? – Indagou o Assessor.
- Compreendo bem seu interesse na minha
associação com o governo: de um lado, o que o senhor quer é
que eu assuma a responsabilidade que deve ser do governo
para tocar a obra e assim, se algo der errado, este ter com
quem dividir a culpa; e de outro, com nossa parceria eu
absolveria vocês das culpas passadas e o elevaria também a
condição de “herói”. Nada disso! Sem parcerias. A partir do
momento em que a verba for conseguida, saiba que ela irá
ser oficialmente entregue para o governo. A partir daí, serão
cinquenta cidades gigantescas da terra que ficarão de olho,
dia após dia, hora após hora, no cumprimento do
compromisso de tornar a ponte novamente àquilo para o
qual ela foi construída: uma ponte útil, que embeleze a
cidade, mas que sirva ao tráfego, pois foi para isso que ela foi
criada, e não para simples passeios de pedestres saudosos;
uma estrutura tão linda e gigantesca não foi criada para
passeios de charretes e pedestres. O que eu quero é devolver
a ela o seu verdadeiro elemento: o fluxo, o seu sangue, do
qual ela precisa para justificar-se como ponte. E isso não é
sonho. É tecnologia. Recuperam-se pontes no mundo todo,
todos os dias; basta ter vontade e dinheiro. O Estado teve
sempre dinheiro, mas nunca teve vontade e por isso nada fez;
109
eu tive sempre vontade, mas nunca tive dinheiro, o que me
impossibilitou de fazer algo por ela. Mas agora eu estou
lutando pela parte que falta, o dinheiro, e tão logo consiga a
verba farei prevalecer a minha vontade: vontade de fazer,
senhor Assessor, que é o que faz as coisas acontecerem. É
isso que este Estado não teve até aqui: vontade de fazer. Eu
lamento se os episódios acabaram colocando às claras essa
falta de vontade, mas com certeza não tive qualquer parcela
de culpa; bastava o governo ter feito para não ter que passar
pelo vexame público de ser chamado de incompetente. Por
isso vou seguir só.
Por fim, completou:
- E sinto muito se eu acabei invertendo a lógica da
equação, ou seja, antes era só o Estado paternalista, dono do
dinheiro, e portanto o único com poder de mando, frente ao
povo, sem dinheiro e agora surge alguém do povo, sem
espírito paternalista, com dinheiro, e portanto também com
poder de mando, frente ao Estado, aparentemente sem
dinheiro. É engraçado, não é mesmo senhor Assessor? O
Estado sempre a mandar e, de repente, sendo mandado... E
policiado pelo povo! Irônico, não é mesmo? Antes eram só os
comerciantes que mandavam no governo e agora é alguém
do povo que chega e diz: faça! Irônico, não? É isso que lhe
incomoda? Saber que agora alguém do povo também tem
dinheiro, também tem “argumentos” para mandar?
E ditas essas palavras, Neminho comunicou que
considerava a reunião encerrada e encaminhou-se para a
porta. Já ia saindo quando o Assessor ainda tentou
contemporizar:
- Gostaria que o senhor pensasse ainda um pouco
mais antes de comunicar publicamente a sua decisão. E
também de lembrar que muitas vezes nossas atitudes têm
consequências por demais desastrosas.
110
Embora já saindo, Neminho prestou bastante atenção
nas palavras e achou melhor precaver-se dali por diante, pois
algo lhe dizia que o Assessor tentaria atrapalhar o sucesso de
sua empreitada.
Já em casa, considerou mais uma vez as palavras do
Assessor e tratou de enviar um e-mail ao Editor-Chefe do NT
reportando os fatos ocorridos nos últimos dias e que punham
sob tensão o projeto de ambos. Leu e respondeu mais alguns
e-mails e foi pesquisar na internet sobre a história da Ponte
Charles, de Praga, já que o próximo megaconcerto estava
marcado para a capital Tcheca, e ele adquirira o hábito de
conhecer sempre a história da ponte de cada cidade que era
convidado a visitar.
111
Capítulo 26 - NEMINHO VOLTA DA MONTANHA
A negativa pública ao governo
Ao descer da montanha Neminho já estava mais
tranquilo, pois havia enfim tomado uma decisão: iria
caminhar sozinho. Afinal, contava com o apoio de um grande
e famoso jornal, sua atitude havia, portanto, sido aprovada
pelas maiores cabeças da mídia mundial, cidades e cidades
inteiras, como os primeiros megaconcertos já tinham
demonstrado, mostravam-se dispostas a ajudá-lo e eram
avalistas irrecusáveis para o sucesso de sua empreitada, além
do que sua imagem pública gozava de prestígio no mundo
todo. Tudo isso só podia justificar que ele estava certo na sua
decisão, e, portanto, não iria deixar-se abater por picuinhas
locais, muito inferiores à grandeza de sua empreitada.
Neminho então se dirigiu ao local da entrevista para
comunicar aos jornalistas e à população que ele já tinha uma
resposta. A sua fala era esperada com expectativa, pois os
ânimos tinham ficado exaltados com os fatos publicados pela
Gazeta de Notícias e deixaram mais da metade da população
irritada com o governo.
A entrevista estava marcada para as treze horas e as
redes de TV locais decidiram transmitir ao vivo o
acontecimento.
Desnecessário dizer, mas após o almoço a cidade
praticamente esvaziou; e só houve retorno de trabalhadores
para aqueles escritórios e lojas que possuíam aparelhos de
TV, porque, na grande maioria, as pessoas preferiram assistir
à transmissão nos restaurantes onde estavam almoçando, e
estes ficaram cheios até mais tarde.
A entrevista começou pontualmente. De imediato,
vários jornalistas queriam fazer as mesmas perguntas: se era
112
verdade que havia pressões do governo para ele desistir da
campanha, se era verdade que o governo não iria aceitar a
oferta do dinheiro arrecadado e estaria tentando inclusive
impedir junto aos organizadores a realização dos eventos só
porque Neminho não queria fazer uma parceria com as
autoridades; e outras perguntas desse teor.
Neminho já esperava pelas perguntas, aliás, era para
respondê-las que ele resolvera marcar esse encontro com a
imprensa.
Era um momento decisivo e ele precisava avançar; e,
para avançar, sabia que as barreiras teriam que ser
derrubadas, única possibilidade para ir em frente. Assim,
embora tivesse prometido manter sigilo de suas conversas
com o Assessor, a conversa vazara e acabara por trazer ao
público aquilo que deveria ter ficado reservado, nos
bastidores, condição, aliás, imposta não por ele, mas pelo
Assessor; e, portanto, estranhava que assuntos nas altas
esferas vazassem tão facilmente.
- O Assessor deve ter uma secretária que nem aquela
minha – pensou e riu ao imaginar o Assessor descobrindo que
sua secretária comenta, de maneira indiscreta com os amigos
e parentes, tudo o que acontece diariamente no Gabinete.
Neminho não estava muito longe da verdade, pois a
coisa vazara mais ou menos como no seu caso: um Assessor
de menor escalão ouvira por acaso as conversas entre o
Assessor e Neminho e passara as informações ao seu amigo
jornalista na Gazeta, que acabou colocando a notícia na rua.
Assim, Neminho Silva respondeu à pergunta para a
qual todos de certa forma já tinham a resposta: que havia sim
pressões do governo, mas que ele seguiria sozinho na sua
empreitada e nada tinha a declarar sobre as posições do
governo; e que deste só esperava que não se negasse, ao final
da campanha, a receber o dinheiro e tratasse logo em seguida
113
de fazer o correto uso dele, recuperando a ponte; seu
objetivo era apenas este: conseguir recuperar a ponte.
O recado estava, portanto, publicamente dado à
imprensa, ao Estado e ao povo: a campanha iria seguir do
jeito que ele inicialmente planejara.
O povo e a imprensa concordaram com a negativa de
Neminho. Já o governo...
114
Capítulo 27 - AS PONTES
Neminho adquire o hábito de estudar a história das pontes
que visita - Um kit de colecionador com miniaturas das
cinquenta pontes é vendido aos milhares em todo o planeta
Como já foi dito, Neminho adquirira o hábito de
estudar a história de cada ponte das cidades do roteiro dos
shows, para evitar passar por algum constrangimento quando
um jornalista lhe perguntasse acerca da ponte da cidade em
questão.
Ele tomou essa decisão já no primeiro megaconcerto,
realizado em San Francisco, para o qual foi convidado. Na
cidade, em uma entrevista coletiva um repórter lhe
perguntou se ele conhecia a história da sua ponte do coração,
a Golden Gate, prima famosa da musa de Neminho. Por um
desses raros lances de sorte, na semana em que ele
preparava-se para a viagem, resolvera dar uma olhada na
Internet e conhecera mais alguns dados além dos que já sabia
sobre a ponte da Califórnia, o que lhe foi de grande valia e o
evitou passar por um constrangimento. O fato de ele
conhecer a história da ponte demonstrou seu interesse por
ela e repercutiu favoravelmente na imprensa local.
E daquele dia em diante, a cada viagem ele tratava de
inteirar-se da história da ponte do local aonde iria. Depois da
Golden Gate, que imperou como a maior ponte pênsil do
mundo até 1964, ele acabou conhecendo a história da
Verrazano Narrows, de Nova York, a nova rainha, que depois
acabou superada em 1997 pela Ponte Tsung Ma, de Hong
Kong, e esta logo no ano seguinte, pela Ponte Akashi-Kaikyo,
no Japão.
E foi assim também que ele ficou conhecendo outro
rol de nomes estranhos que designavam maravilhas da
115
engenharia humana e serviam de orgulho para as populações
das cidades onde sucessivamente eram realizados os
concertos: a ponte Estaiada de Sevilha; a Ponte Vasco da
Gama, de Lisboa; a Tower Bridge, de Londres; a Ponte
Vecchio, de Florença e a Ponte dos Suspiros, de Veneza (estas
duas, embora tendo pontes famosas, mas para pedestres,
mesmo assim insistiram em participar da campanha, como
São Paulo, que ficou dividida entre o Viaduto do Chá, sua
“ponte” mais famosa, e a ponte Estaiada, novo orgulho da
cidade); a Ponte Oresund Bridge, que liga Copenhaguen a
Malmo, na Suécia; a Ponte Erasmusbrug, de Rotterdam,
apelidada de O Cisne, a Ponte do Bósforo, em Istambul, que
liga a Europa a Ásia; as Pontes Neuf e Alexandre III, em Paris;
a Ponte de Niejmegen, na Holanda; a Ponte de Colônia, na
Alemanha; as três pontes de Porto (D. Luis I, do Infante e D.
Maria); a Ponte Magdeburg Water Bridge, na Alemanha, que
inverte toda a lógica, pois nela a água é quem passa por cima
da ponte; as pontes de Roma, como a Sant’Angelo, a Flaminio
e a Della Magliana; a ponte Tsing Ma, de Hong Kong; a Ponte
Akashi-Kaikyo, no Japão, ou ainda as 1.539 pontes de
Amsterdam, na Holanda, e até mesmo viadutos famosos,
como o Viaduto Austerlitz, o novo orgulho francês.
Conforme o Editor-Chefe havia sugerido, foi lançado
um kit de colecionador contendo as miniaturas das pontes
das cinquenta cidades onde ocorriam os concertos, que era
vendido aos milhares em todo o planeta, até mesmo em
cidades que não estavam no roteiro dos megaeventos. Por
ser um produto considerado kitsch, foi uma surpresa a
quantidade de interessados em sua compra, fato que se
explicava pela vontade de todos em contribuir de alguma
forma para a campanha. É certo que versões piratas
apareceram, mas isso não atrapalhou as vendas dos produtos
originais, que passaram a valer também muito dinheiro,
116
principalmente no mercado de colecionadores dos países em
que não ocorreram os concertos.
Nessas viagens, os jornalistas queriam sempre saber
histórias e detalhes da sua musa, a Ponte Hercílio Luz, e era
tamanha a frequência dessa pergunta que Neminho já tinha
respostas praticamente decoradas, embora falar de sua ponte
sempre lhe causava uma nova emoção, como também lhe
causava uma forte impressão esse grande interesse das
pessoas pelo assunto.
117
Capítulo 28 - AS RAZÕES DO ASSESSOR
No caso do Assessor, o que ele jamais aceitou, é que alguém
pudesse lhe dizer: “eu sempre achei que uma hora você iria
perder” – Entre os comerciantes, havia muitos que o
culpavam
Um mero detalhe – às vezes, um mero detalhe - faz as
pessoas tomarem decisões políticas que nos surpreendem.
Veja o caso de ministros que bebem e perdem a cabeça em
público; candidatos que matam adversários em plena
campanha, quando o crime se torna óbvio, já que todos os
focos da mídia estão sobre eles; homens de moral inatacável
flagrados em esquemas de drogas e corrupção; ou desviando
dinheiro etc. Ficamos surpresos, pois até então apostávamos
tudo nessas pessoas.
No caso do Assessor, o que ele jamais aceitou, em
hipótese alguma, é que alguém pudesse vir a ter motivos para
lhe dizer: “eu sempre achei que uma hora você iria perder”,
ou ainda, “chegou a sua hora de conhecer o gosto da
derrota”. Frases desse tipo sempre lhe causaram arrepio e
para evitá-las a todo custo, o Assessor cuidara sempre de
manter uma imagem de homem forte, rígido, para evitar que
qualquer adversário tentasse atacá-lo, principalmente nas
horas em que precisasse fazer valer seu poder e influência.
Ele sabia – e temia – que nada é mais prejudicial para um
homem de poder do que demonstrar fraqueza; e esse temor
moldou todas as suas atitudes na carreira e nos seus
relacionamentos: a imagem de homem forte e astuto
negociador espalhou-se no meio político e fez dele um
adversário a ser respeitado. Era essa imagem de homem
respeitado, inatacável, sem máculas, que o Assessor, custasse
o que custasse, tratou sempre de conservar - e com toda
118
certeza faria qualquer coisa para manter essa fama, porque –
até mesmo por timidez - não suportaria sofrer qualquer
execração pública, ter seu nome envolvido em escândalos
públicos; isso era coisa para amadores, para gatos pequenos.
Afinal de contas, ele havia investido muitos anos de
sua vida em sua carreira – o seu principal investimento na
vida - e sentia-se coroado de êxitos, já que se encontrava
numa posição de poder – e, o que era melhor, sem
necessariamente ter que prestar contas ao público desse
poder. Esse havia sido seu projeto, pois, como se disse,
sempre fora um sujeito tímido, meio avesso à exposição, e
decidira que, já que amava a política, em vez de se expor
diretamente ao público, melhor seria ficar nos bastidores do
poder, onde poderia usufruir de todas as benesses sem
necessariamente ter que sofrer as amarguras da exposição
pública. Assim, em vez de ser também um mandatário-mor,
tratou de criar e preparar políticos para as situações de
poder, poder que na verdade ficava em sua mão, vindo daí
sua fama de ser o principal manipulador do jogo político local,
algo que ele sempre dissimulara, respondendo com sua já
folclórica frase: Minha função aqui é só servir!
Visto assim, pode-se compreender as razões do
Assessor para estar indignado com a situação. Nesses anos
todos, havia realizado um jogo político efetivo, cujos
resultados tinham mantido seu grupo político seguidamente
no poder, o que lhe permitiu manter-se como principal
articulador por um grande tempo (cargo que sempre preferira
nas partições de poder), tornando-se presidente do partido.
O Assessor gozava, portanto, do respeito (ou temor)
de toda a classe política, principalmente daquela que lhe
interessava: a dos grupos mais próximos do poder. E essa
condição ele creditava tão somente ao seu esforço na vida;
por isso ele lutaria com todas as armas para defender aquilo
119
que conseguira. E era isso que estava em jogo agora, pela
situação criada com a atitude anarquista do mané
continental.
O que incomodava o Assessor é que ele sabia que
entre os comerciantes havia muitos que o culpavam por não
ter feito a restauração quando deveria ser feita; e isso agora
era motivo para o projeto turístico da cidade (idealizado pelos
comerciantes e com a promessa de ser realizado pelo
governo) ser atacado pela oposição.
- Merda! E isso lá era hora de me aparecer um mané
desses e com um problema desse tamanho? - Indagou a si,
irritado.
Porém, como sempre fizera nas muitas horas difíceis
que já enfrentara na carreira política, tratou de pensar numa
estratégia para contra-atacar o adversário, algo que já era
tempo de fazer. Decidiu procurar primeiramente aquele que
parecia ser o mentor intelectual de toda aquela história, o
jornalista norte-americano, que, com certeza, deveria saber
as razões que levaram o cidadão Noêmio da Silva a bancar o
herói, algo que ele desejava a todo custo saber, pois em sua
opinião havia “algo maior” naquilo tudo; era muito estranho
um simples desejo romântico de um anônimo cidadão ter
tanta cobertura da imprensa, ainda mais dos maiores jornais
do planeta.
Será que eram os comerciantes que estavam
tramando toda essa situação para puni-lo por não ter feito a
obra de restauro? – pensou.
O que estava acontecendo não era algo tão simplório
assim, havia algo maior, com certeza, e o Editor-Chefe do
New Times é quem lhe esclareceria o que estava realmente
sendo arquitetado. Decidiu que viajaria até Nova Iorque para
encontrar o jornalista e ter com ele uma conversa franca, “de
profissional para profissional”, como gostava de dizer.
120
121
Capítulo 29 - O ASSESOR PRESSIONA O EDITOR-CHEFE DO NT
O Assessor vai à Nova Iorque conversar com o Editor-Chefe
do NT e apresenta suas razões – E pede que imponha limites
a Neminho
Uma secretária que repetiu insistentemente a
chamada finalmente conseguiu marcar uma reunião entre o
Assessor e o Editor-Chefe do NT.
A chegada do Assessor a Nova Iorque foi na manhã do
dia da reunião, que ocorreria após o almoço no edifício do
jornal. A reunião tinha caráter de urgência, como ele pedira à
secretária para ressaltar. Foi recebido próximo ao meio-dia e
ao entrar na sala lá estava o Editor-Chefe e o DiretorPresidente do jornal, que fora convidado a permanecer, mas
alegara compromissos anteriores e logo após a recepção ao
visitante deixou a sala.
O Assessor, como bom profissional, sabia que estava
diante de outro e, portanto, tratou de aproveitar ao máximo
o tempo do encontro - afinal, viera de muito longe – e foi
direto ao assunto:
- Acredito que o senhor deve saber as razões da
minha visita, mas de qualquer modo eu quero lhe esclarecer
que estou aqui pela impossibilidade de um acordo com o
cidadão que o senhor tornou uma celebridade, o que colocou
o governo do meu Estado numa situação constrangedora, e
agora estou tratando de evitar um mal maior.
- Vamos partir do início. Gostaria de saber as razões
de sua visita.
- Pois bem. A atitude do cidadão Noêmio da Silva,
embora eu compreenda que possa ser revestida de todo o
heroísmo que a imprensa tem destacado, até como um fato
romântico, acabou por colocar meu governo numa situação
122
vexatória e constrangedora. Ao resolver colocar a restauração
da ponte em destaque, o cidadão acabou criando um
problema para o governo, que não tinha esta restauração
entre suas prioridades mais imediatas. O senhor compreende.
Venho de um país em desenvolvimento, onde a verba pública
tem destinações mais urgentes, e, portanto, nosso orçamento
havia previsto no máximo a restauração para a passagem de
pessoas, mas nada com a magnitude de uma restauração que
permitisse o retorno do tráfego de automóveis. É impossível
agora... E de repente somos pegos de surpresa por essa
história de um herói que resolveu por conta própria “salvar” a
cidade (se é que é por conta própria, o que certas horas
chego a duvidar). Só que resolveu isso sem consultar sequer a
sua própria cidade, saber se ela estava disposta a encarar um
problema de tal magnitude. E resolveu salvar a ponte de uma
maneira aventureira, pois quem garante que ao final desses
eventos ele conseguirá a verba suficiente para uma obra
dessa natureza? E agora, o que estamos perguntando é: e se
não conseguir? E se conseguir apenas uma parte do dinheiro?
Aí como é que iremos “bancar” o término dessa aventura
impensada? Compreende o senhor a situação em que o
governo se encontra?
E antes que o Editor-Chefe pudesse lhe dizer algo, o
Assessor continuou:
- Tentamos fazer o senhor Noêmio ver que uma
aventura dessas poderia ter um final feliz, mas também
poderia não ter, colocando tanto a cidade numa situação
constrangedora perante o mundo quanto o governo numa
situação constrangedora perante o povo. E diante desse fato
propusemos a ele que deveria haver alguém do governo ao
seu lado, assessorando-o nas questões, bem como deveria ele
sair de sua postura individualista e assumir junto com o
governo a campanha de arrecadação, porque em nível local a
123
imprensa tem explorado demais o fato de o cidadão ter agido
solitariamente e por isso têm dado voz a toda uma série de
opositores que apostam na anarquia para ver o projeto
governamental fracassar, o que me fez inclusive supor que
essa história possa mesmo ser um lance político da oposição
para desmoralizar meu grupo.
E continuou o Assessor relatando que Neminho havia
sido “adocicado” pela imprensa da oposição, que o tornara
um herói de forma irresponsável, pois, ao torná-lo herói por
sua atitude anárquica, individualista, punha em xeque todo
um pensamento liberal de representação estatal do qual ele
era defensor; portanto, era muito perigoso esse sucesso
individual do cidadão e, na qualidade de representante do
governo, ele tinha vindo solicitar ao Editor-Chefe que
reconsiderasse a imagem que estava sendo passada, ou seja,
a de Neminho como um herói e a do governo como um vilão.
Ademais, o jornalista já deveria saber o estrago que o adjetivo
“cafetinagem” havia feito no governo e na sociedade local e,
portanto, poderia fazer uma ideia da situação em que o
governo se encontrava.
O Editor-Chefe deixou passar um intervalo de tempo
após as últimas palavras do Assessor para depois perguntar:
- E de que forma isso deveria ser feito?
Respondeu o Assessor:
- Veja, senhor, que a questão é mero marketing. O
que está ocorrendo? Ao fazer uma campanha solitária,
conseguir sozinho as verbas necessárias e entregá-las sozinho
ao governo, Neminho apenas estará sendo um elo de
passagem entre um dinheiro que vem de outros para um
destinatário que não é ele, mas um Estado, porém sua
posição solitária estará revestida de uma aura que poderá ser
interpretada como a supremacia do cidadão sobre o Estado,
como a capacidade de um sobre a capacidade do todo, do
124
coletivo, que é o que o Estado representa. E no caso de uma
sociedade pobre como a nossa, o senhor sabe que o Estado,
como organização, ainda é quem tem peso maior; por isso
gestos de livre iniciativa como os do cidadão Noêmio, embora
até louváveis do ponto de vista ideológico, passam a ter um
valor anárquico e, utilizados por grupos que detém a
informação, acabam se tornando até mesmo uma ameaça ao
nosso grupo no poder.
- Ora, ora, ora, senhor Assessor. Pelo visto agora
temos aqui um problema ideológico, de ocupação de espaço,
de posições... E também pelo visto começamos a conversar
dentro do meu terreno favorito, o mercado – disse o EditorChefe.
- Ótimo, pois assim irei mais diretamente ao assunto.
Temos que considerar tanto ideologia quanto mercado, sim.
No caso da ideologia, temos um projeto de governo a manter.
Faz algumas décadas que dominamos a política local, já que a
oposição é completamente incompetente para administrar,
pois não tem quadros. Assim, durante esses anos todos ela se
valeu da única prática que sabe bem dominar: falar mal do
governo, torcer para quanto pior, melhor, buscar inutilmente
denegrir a imagem das autoridades, enfim, encontrar
qualquer coisa que ponha em xeque nosso projeto de poder.
Nesse tempo todo sempre soubemos como lidar com ela.
Mas, repentinamente, surge em cena o conhecido Quixote e
aí passamos a ter realmente um problema sério.
- Qual seja...? - interrompeu curioso o Editor-Chefe.
- A relação de forças de poder aqui sempre oscilou
entre os burocratas e os comerciantes. Nunca fomos
colocados em xeque por alguém que disponha de efetivo
poder, seja político ou econômico fora dessas duas forças. As
pressões, portanto, sempre foram no sentido das prioridades
e interesses, mas nunca ideológicas, já que os dois grupos,
125
mesmo discordando das prioridades, nunca deixaram de
apoiar-se na manutenção do poder local. E, se as coisas
correrem como estão projetadas, logo estaremos diante de
uma situação completamente nova: um cidadão chegará com
uma verba e nos obrigará a executar uma obra, execução esta
que não nos trará qualquer dividendo político, já que
atenderemos a uma obrigação, a uma imposição de fora dos
dois grupos.
E é esse o fato que tem causado o maior estrago ao
nosso projeto, uma vez que a oposição tem usado Neminho
como figura central para seu marketing político contra o
governo, a quem acusa de incompetente por nunca ter
realizado a restauração nesses anos todos.
E – o que menos eu poderia esperar – uma forte ala
dos comerciantes, que culpa o governo por não ter cumprido
sua parte no acordo, atrapalhando o projeto turístico deles,
viu em Neminho uma oportunidade para punir o governo, e
com isso colocar nosso poder em cheque; eles sabem que a
verba de Neminho irá forçar o governo a colocar a ponte
entre as prioridades; e é isso que eles querem que aconteça.
Como o senhor vê, estamos numa verdadeira sinuca, pois se
para incluirmos a ponte nas prioridades temos que tirar
outras obras da lista – e isso incomoda a minha ala, que sabe
que será prejudicada em seus interesses, coisa que não
querem aceitar. Eu apostei na possibilidade de fazer um
acordo com o senhor Neminho, para trabalharmos em
conjunto como forma de estabelecer um cronograma mais
para frente, mas sua intransigência em não aceitar estender o
prazo do restauro mais para frente é que tem causado toda
essa crise, da qual estou tentando sair, pois pedem a minha
cabeça tanto de um lado quanto de outro, sem contar o povo,
que já a pede há anos.
126
Como pode ver, tenho problemas mais do que
mercadológicos; e o que eu vim aqui fazer foi conversar com
o senhor para que encontremos uma saída que permita que
todos esses anos dedicados a um projeto não sejam agora
destruídos por um simples cidadão. Para isso eu vim aqui, não
para barrá-lo em seu projeto, mas, ao contrário, para
conseguir transformar Neminho de adversário em parceiro,
se é que me faço entender.
O Editor-Chefe começou a perceber onde o Assessor
estava querendo chegar com seu discurso, mas precisava ter
certeza, e perguntou:
- O que você propõe?
– O que proponho é que você consiga convencer
Neminho a aceitar a presença do governo na sua campanha,
ao invés de seguir sozinho e vir apenas repassar um dinheiro.
Pense bem, senhor: a entrega dessa verba nos obrigará
imediatamente a parar todas as obras que estamos fazendo
para nos dedicarmos ao cumprimento de uma meta não
prevista, tudo para atender a pressão de uma mídia que
estará forçosamente cobrando a execução imediata da obra;
e não temos estrutura para isso, não temos condições de
bancar uma obra dessa magnitude nesse momento, sem falar
que perderemos importantes apoios políticos. Assim, se
Neminho consentisse, poderia aceitar que o governo
participasse e assim poderíamos ganhar algum tempo, seja
criando uma fundação para administrar a verba, seja o
convidando para ocupá-la, constituir sua equipe, enfim...
Precisamos ganhar ao menos um ano... Coisa que o nosso
cidadão não quer aceitar... Muito menos participar de uma
equipe... E o que quer ele? Simples. Arrumar a verba e passar
toda e qualquer responsabilidade para o Estado. Assim, por
decisão única dele, sem fazer qualquer consulta seja ao povo,
aos partidos, ao parlamento, ele simplesmente decide pela
127
restauração de uma ponte, uma obra gigantesca, e quer que a
executemos de imediato. Fica complicado aceitar tudo isso
assim passivamente, meu caro senhor. Como vê, temos um
problema sério. Nosso governo não tem uma estrutura que
permita obras dessa natureza sem um planejamento feito
com bastante antecedência.
A conversa durou mais alguns minutos, com o mesmo
teor, e ao final, o Editor-Chefe indagou mais alguns
pormenores sobre a repercussão da campanha junto à
população, e por fim tentou fazer o Assessor compreender
que não era sua intenção opinar sobre questões que ele não
entendia completamente por viver distante da realidade da
cidade, do governo e de Neminho.
- O que o senhor precisa compreender, disse o
jornalista, é que eu estou apoiando uma causa, e, mais ainda,
num terreno chamado mídia. Para mim, o que interessa aqui
é um fato que, de tão inusitado, de uma hora para outra se
tornou assunto de interesse de muitas pessoas; e pessoas que
pensam de maneira igual ao Senhor Neminho, com certeza,
pois estão dispostas a pagar para possibilitar a realização do
quixotesco sonho dele. Essas pessoas vivem espalhadas pelo
mundo, em muitos países, distantes umas das outras, mas
cada uma delas tem uma opinião acerca das coisas e precisa
externar essa opinião, algo praticamente impossível num
mundo em que se fazer ouvir sozinho é cada vez mais difícil. É
por isso então que surgem campanhas como essas em favor
do senhor Neminho: para que essas pessoas sinalizem umas
para as outras que estão aí, que também ainda são solidárias,
que também têm sentimentos, que querem o bem, que
amam os sonhos e a paz, e que tudo aquilo que possam fazer
será feito por cada uma delas; e é dessa certeza que cada
uma delas vive. E é por isso que precisam existir histórias
128
como a do Quixote de Floripa: para que existam campanhas
assim. É essa a minha parte nessa história, senhor Assessor.
Sob o olhar atento do visitante, prosseguiu:
- O que o senhor também precisa compreender é que
não estou aqui apoiando a luta de um cidadão que se insurge
contra um governo, mas algo bem diferente: estou lutando
para valorizar o cidadão que luta, que acredita em seu
heroísmo, que se vale da livre iniciativa para fazer girar o
mundo. Este cidadão é o cidadão livre, é o cidadão que se
encaixa na ideologia que defendo e sempre defenderei; os
Estados Unidos cultivam o mito do herói, o senhor bem sabe;
é um país feito de heróis, e eu não poderia jamais lutar contra
um mito, ainda mais quando esse mito é a personificação dos
ideais da livre iniciativa.
E continuou:
- Espero, portanto, que o senhor compreenda que se
há um problema entre o seu governo e o cidadão Neminho
Silva, esse é um problema que só pode ser resolvido na esfera
do local, pois é lá que o senhor está verificando que há um
perigo para sua imagem, e não aqui em Nova Iorque. Aqui,
sua imagem é desconhecida; aqui estamos preocupados com
um excelente produto de mídia chamado Neminho Silva, que
deverá movimentar um volume de dinheiro, nos próximos
oito meses, em torno de quinhentos milhões a um ou até dois
bilhões de dólares, valores que são grandiosos em qualquer
mercado.
O Assessor continuava em silêncio, ouvindo. O EditorChefe tomou um gole de água e disse:
- Aqui em Nova Iorque, senhor Assessor, não
interessa às pessoas que seu governo tenha sido arranhado
pela atitude do cidadão em defesa do patrimônio; essa crise
entre Estado que nada faz e cidadão que cobra o serviço pelo
imposto pago é antiga, vem desde os tempos de Robin Hood,
129
e não interessa a mais ninguém. O que interessa às pessoas é
que ainda existem figuras quixotescas como o cidadão
Neminho, capazes de se expor aos maiores ridículos,
desacreditadas, mas ferrenhamente presas a uma ideia, por
mais absurda que essa possa parecer; e neste caso, é essa
ideia, o amor de um homem por uma ponte e sua luta para
salvá-la, o que está chamando a atenção das pessoas; é isso
que elas querem saber no que vai dar; é isso que elas estão
pagando para ver realizar-se: esse amor, amor que refaz, que
reergue, que reconstrói, que é capaz de materializar-se; neste
caso a devolução da ponte à vida é a materialização desse
amor. Essas pessoas precisam de histórias desse tipo e
precisamos volta e meia dar a elas o que pedem.
E continuou o Editor-Chefe:
- Sou um produtor de sonhos! Espero que agora o
senhor compreenda que o meu papel como homem de mídia
é tão somente viabilizar, tornar factível essa história
romântica; alguém tem que organizar tudo isso, canalizar
tudo isso de maneira profissional para que todos os esforços,
toda a organização, todo o dinheiro, cumpram com o
planejado e atinjam o objetivo esperado. Assim, meu
compromisso com o senhor Neminho Silva encerra-se no
momento em que for atingido o objetivo da campanha e eu
entregar-lhe os cento e cinquenta milhões de dólares que ele
diz serem suficientes para restaurar a ponte. Minha função só
vai até aí. Quanto ao que está ocorrendo entre o seu governo
e o cidadão Neminho, e se isto está repercutindo
negativamente para o senhor frente à sua população, eu
espero que compreenda que nada posso fazer e portanto
depende de seu governo fazer uma autocrítica, ver onde
errou e realizar junto à mídia local um bom trabalho de
recuperação de sua imagem. Já com relação a parar a
campanha com o senhor Neminho, isso nem se coloca em
130
discussão; como bem lhe disse, Neminho tem potencial para
levantar grandes volumes em poucos meses... E esse é um
produto do qual não abrirei mão de forma alguma.
Após um breve silêncio, o Assessor ainda pensou em
contemporizar, mas achou melhor não se estender muito,
disse que iria mais uma vez tentar junto de Neminho Silva um
acordo que permitisse uma saída para melhorar a imagem do
seu governo, o que o Editor-Chefe disse torcer para dar certo,
e partiu para os agradecimentos pela acolhida do jornalista,
falou mais uma meia dúzia de frases de cortesia, deixando
logo a seguir apressadamente a sala, o edifício, a rua, o
aeroporto, a cidade. Estava ansioso para retornar, pois já
decidira como agir.
O Editor-Chefe, ainda surpreso com a ousadia do
Assessor em procurá-lo, vindo de tão longe, com a proposta
de cancelar seu projeto, com o passar do restante das horas
naquele dia foi ficando indignado, pensando em quantas
pessoas pelo mundo viviam sob pressão de governantes ao
tentarem fazer qualquer coisa para melhorar a vida do
coletivo e com isso ferir interesses e egos dos grupos
dominantes. Tal indignação resultou na ideia de escrever um
belo editorial acerca da luta ingrata dessas pessoas; e,
evidentemente, usou como exemplo a história de Neminho
Silva e as pressões que ele vinha sofrendo, denunciando
inclusive a tentativa do Assessor do governo local de cooptar
o jornal para que este parasse com a campanha em favor da
recuperação da ponte.
Era tudo que o Assessor não gostaria que ocorresse, e
seu ódio explodiu ao saber da publicação. A ala dos
comerciantes iria trucidá-lo por tanto primarismo; era humilhação
demais para ele.
- Mas nem pense, senhor Quixote, que você venceu
este jogo... Nem pense!
131
Capítulo 30 – O PLACAR: MILHÕES A FAVOR DE NEMINHO
A negativa do Editor-Chefe do NT revela que houve novas
pressões do governo – A Gazeta de Notícias lança nova
campanha em favor de Neminho – O placar
A matéria divulgada no New Times foi uma resposta
de seu Editor-Chefe às pressões do representante do
governo.
Uma posição contrária do jornal norte-americano às
pressões do Assessor revelava um fato: que o governo tinha
realmente feito pressões até em Nova Iorque para barrar a
campanha de Neminho – e isso era tudo o que a imprensa
local queria para desencadear com toda a virulência uma
nova série de acusações ao governo de estar tentando
maldosamente e a todo custo atrapalhar a campanha solitária
do cidadão para arrecadar fundos.
A negativa do Editor-Chefe do NT pegou tão mal que
no Legislativo a própria ala governista, que até então tinha se
mantido unida na defesa do Assessor, não conseguiu mais
evitar as dissidências: os políticos que eram apoiados pelos
comerciantes criticavam claramente as “burrices” do Assessor
e, para temor deste, pediam a sua cabeça a todo instante.
Como se não bastassem as matérias que incitavam a
população a favor de Neminho e contra o governo, a Gazeta
de Notícias alardeou uma nova campanha publicitária em
favor do Quixote de Floripa, com a instituição de um placar,
que estamparia a cada semana na primeira página, dados e
informações sobre cada concerto realizado até ali e o quanto
de verba Neminho já havia arrecadado, placar que se
constituiu em motivo de mais irritação para o Assessor, que
toda semana via o cavaleiro em ação na primeira página da
Gazeta, com novos números da arrecadação crescendo
132
substancialmente a cada megaconcerto realizado. E
manchetes ao lado do placar reforçavam as informações nele
constantes:
- Neminho arrecada mais três milhões! Neminho
chega aos quinze milhões! Mais uma vitória de Neminho:
arrecadação atinge vinte e quatro milhões!
Evidentemente que não só a Gazeta de Notícias
beneficiava-se das boas notícias geradas pela campanha de
Neminho; o Jornal da Cidade também fazia a sua parte para
manter seu público informado, mas nas páginas internas
continuavam a ocupar muito espaço os que estavam a favor
do governo e atacavam Neminho, questionando ainda a
legalidade ou não de sua campanha; outros acreditavam que
ele não conseguiria seu intento, em matérias que levantavam
dúvidas e deixavam clara a posição pró-governista do jornal.
Alheio a tudo isso, Neminho agora concentrava todos
os seus esforços em cumprir a extensa agenda determinada
pela produção dos megaeventos, que o obrigava a viajar
constantemente, passando muito pouco tempo na ilha. Isso
em parte era bom, pois o mantinha afastado das discussões,
mas não o livrava de certas irritações quando ainda via seu
nome descaradamente utilizado pelos dois grupos que se
batiam com interesses políticos, como foi o caso do placar
eletrônico, a gota d’água para o Assessor do governo e, na
opinião de muita gente na cidade, o motivo que fez com que
ele cometesse a insanidade que cometeu... Embora
oficialmente diga que não a tenha cometido.
133
Capítulo 31 - A GOTA D’ÁGUA
O editorial da Gazeta de Notícias - O placar eletrônico – A
“gota d’água”
O editorial da Gazeta de Notícias para comemorar o
vigésimo concerto, que havia sido realizado em Budapeste,
anunciava que na próxima semana o jornal iria colocar na
fachada do seu edifício um placar eletrônico para transmitir
notícias e dados, além de imagens diretas de alguns dos
concertos que iriam acontecer nos próximos meses, com um
relógio com contagem regressiva para marcar quantos
minutos faltavam para o grande megaevento em
Florianópolis, que encerraria a campanha.
O que a princípio parecia um simples jogo de
marketing do jornal na verdade era mais uma cartada do
grupo da oposição, que vira no lançamento do placar mais um
lance para abalar as estruturas dos governistas; e assim, o
grupo convidou o diretor da Gazeta de Notícias para uma
reunião fechada e lá ficou acertada a utilização daquela
mídia.
A surpresa de Neminho quando viu o placar que
ocupava grande parte da fachada do edifício da Gazeta de
Notícias, com quase duzentos metros quadrados, foi
inevitável. No meio do painel, em destaque, foram colocados
três telões: o primeiro informava o valor total arrecadado, o
segundo o valor do último megaevento e o terceiro informava
os eventos que faltavam.
Encimando os três telões, uma foto ampliada de
Neminho foi o que mais lhe causou espanto, pois, além de
não ter sido autorizada, a foto tinha uma legenda que dava a
impressão de que era Neminho quem dizia a frase: ESTÁ
CHEGANDO A HORA DE O GOVERNO TER QUE FAZER!
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NEMINHO ESTÁ CHEGANDO! E mais uma pequena frase em
letras bem pequenas informava sobre o Grande Megaevento
na cidade no dia 13 de maio, data de aniversário da ponte, e
mostrava as logomarcas do jornal Gazeta de Notícias e dos
patrocinadores.
E abaixo dos três telões, um painel numérico digital
informava minuto a minuto, de forma regressiva, o tempo
que faltava para o dia do megaevento na cidade, ladeado por
outros dois telões que eram utilizados nas transmissões de
alguns dos shows.
Neminho tremeu ao ver aquela imagem “justiceira”
que o jornal estava fazendo dele, e tratou de protestar,
declarando em entrevista ao Jornal da Cidade que não
concordava com aquele painel colocado na sede da Gazeta de
Notícias; mas foi em vão.
O mais irritante naquele episódio é que a publicidade
fora idealizada e colocada naquele local com intenções
claramente políticas, uma vez que o prédio central da Gazeta
de Notícias ficava próximo ao Gabinete do Assessor do
governo, e de lá ele podia ver claramente o painel, o que lhe
causaria com certeza muita irritação. E para chamar a sua
atenção, os idealizadores ainda tiveram a malvada ideia de
instalar um efeito sonoro no painel, uma espécie de clarim de
cavalaria, mas em toque digital, que era acionado a cada
hora, o que lhe obrigava automaticamente a olhar para o
painel. Com o passar dos dias, das semanas, aquela repetição,
ritmada, como o barulho de uma gota d’água que cai
incessantemente numa poça, começou a lhe irritar mais
ainda, levando-o quase a um desequilíbrio emocional: ele
estava angustiado, como se sentisse cobaia de uma
experiência de condicionamento animal do famoso doutor
Pavlov.
135
E para piorar, a cada dia que passava aumentava - no
legislativo, nas repartições do governo e nas ruas -, o número
de comentários maldosos e anedotas que envolviam a figura
do Assessor. Ele, que tanto lutara para parecer um homem de
respeito, bem-sucedido, sem qualquer arranhão na sua
imagem, repentinamente via-se colocado numa vala comum,
tratado como um daqueles reles políticos do interior que
acabam famosos por terem seus nomes atrelados a um
extenso anedotário, motivo de piadas, como foi o Odorico
Paraguaçu24. Era humilhação demais!
E foi assim, fera ferida, que o Assessor teve aquela
ideia que não deveria ter tido, que lhe causou um sorriso
meio maligno, mas lhe trouxe à boca um gosto de vitória, algo
que já fazia uns bons meses que ele não sentia. Isso o
revigorou. Voltou a pensar na sua ideia e seu sorriso alargouse, ao pensar nos resultados. E ficou mais revigorado ainda.
Ele sabia que no final venceria. Do seu jeito, mas venceria.
136
Capítulo 32 - O PESADELO: O GIGANTE DEITADO SE LEVANTA
Se na realidade do dia a paisagem é bonita, na irrealidade
do sonho ela pode tornar-se terrível - O que aquele sonho
queria dizer?
Certa noite Neminho teve um pesadelo que lhe
marcou muito e foi motivo de uma sensação muito estranha
que o perseguiu pelos dias seguintes. Para compreender
melhor o que se passou, é preciso falar primeiro do Gigante
Deitado.
Quem é nativo da ilha ou mora em locais onde se
avista o Morro do Cambirela, sabe que as montanhas que
ficam ao seu lado e que se estendem para o sul até a praia da
Gamboa, em Garopaba, constituem uma forma cuja imagem
lembra um gigante deitado; assim, qualquer criança que
tenha pai ou avô mané, geralmente, saberá reconhecer o
gigante, que faz do Cambirela seu “travesseiro”.
Olhando a paisagem, ela impressiona pela sua beleza,
ainda mais se avistada pela manhã, quando os raios do sol
batem de frente nos paredões do Tabuleiro e deixam à
mostra um relevo com um desenho que só faz aumentar a
imponência do lugar. É quando se avista melhor o gigante,
que parece ainda dormir naquela hora, aumentando o
realismo da cena.
Se na realidade do dia a paisagem é bonita assim
como se descreve, na irrealidade do sonho ela pode tornar-se
terrível, virar cenário de um pesadelo.
Foi o que Neminho acabou descobrindo e lhe
provocou um susto tão grande que acordou completamente
molhado de tanto suar. No seu pesadelo, o gigante levantavase e passava a caminhar pela baía sul em direção ao canal do
Estreito. A cada passo que dava, seus pés afundavam
137
fortemente na água e provocavam ondas gigantes, como um
imenso maremoto, que inundavam todos os bairros que se
localizam nas margens da baía, causando destruição e morte.
O gigante andava como se ainda estivesse sonolento
e não atinava onde pisava. Caminhando quase às cegas, não
percebeu as pontes de concreto em seu caminho, mas,
felizmente, nenhum dos seus pés acabou pisando sobre elas,
que permaneceram intactas. Neminho casualmente estava
próximo da sua ponte observando aterrorizado que o gigante
dela se aproximava; e ao perceber a tragédia anunciada,
começou a gritar na tentativa de se fazer ouvido pelo gigante,
alertá-lo, mas sua voz era inaudível. Ao perceber a inutilidade
de seu gesto ele se desesperava, e tentava gritar mais e mais,
inutilmente. Nessa agonia, ele vê o gigante pisar com um dos
pés exatamente sobre a pista do vão central... E a ponte não
resiste, desabando.
A agonia e o desespero aumentam e ele desperta
apavorado.
O resto da noite passou em claro, fortemente
impressionado.
O que aquele sonho queria lhe dizer?
138
Capítulo 33 - O MEGAEVENTO FINAL
Chega o grande dia – Neminho é ovacionado no show
E assim passaram-se as semanas...
Finalmente chegou o grande dia. O último
megaevento, marcado para o dia 13 de maio, aniversário da
ponte, embora acontecendo numa cidade relativamente
pequena, reuniu, como era de se esperar, o maior de todos os
públicos, uma vez que ficara decidido pelos produtores que
na cidade da donzela de ferro – a grande homenageada - não
haveria cobrança de ingresso; e assim quase quatrocentas mil
pessoas começaram a chegar desde cedo e concentraram-se
no trecho entre a rodoviária e a ponte. Com o acúmulo cada
vez maior de pessoas, o trânsito teve que ser fechado em
toda a área, que, com o passar das horas, foi se tornando o
principal local de atenção de todos os habitantes - quem não
fosse até lá, certamente estaria assistindo pela televisão. Às
quatro horas da tarde começou o show porque os
organizadores queriam que o pôr do sol, que ali naquele local
é o mais bonito na cidade, fizesse parte do show.
O velho roqueiro estava exultante e maravilhado. Era
o último concerto de toda a temporada e ele sentia-se meio
melancólico por um lado, mas por outro, era impossível não
sentir toda aquela vibração das pessoas ali presentes. Era
outra energia, afinal estava no Brasil, e ele sabia que aqui
seria diferente, seja pela importância que aquele show tinha
para todos na cidade, seja pela própria energia de estar
tocando no Brasil, que ele já ouvira falar ser completamente
diferente dos demais lugares, mas que nunca experimentara
em todos os anos de carreira. E maravilhava-se ainda mais
com a paisagem e com aquela luz espetacular do outono,
139
que, soube depois, era a luz da estação em que Florianópolis
ficava ainda mais bonita.
- O verão é demais, mas nada é mais lindo do que
visitar a cidade nos meses de maio e junho, por causa dessa
luz que só tem aqui! – lhe dissera mais de uma pessoa. E
agora o astro entendia in loco o sentido do comentário.
Muita gente importante veio para o show: artistas,
políticos, o pessoal da ação afirmativa, todos os alternativos e
todos os normais, sem contar os milhares de emergentes que
disputavam seus cinco minutos de fama, mas ninguém do
governo estava lá. O mandatário-mor, alegando
compromissos anteriores, viajara para uma feira na
Alemanha. Neminho dissera durante a semana que não se
importaria com a presença de autoridades lá, mas como
também não fizera um convite público, o governo adotou a
política do distanciamento, o que todos na cidade já
esperavam – afinal, estava claro para todo mundo que
Neminho Silva e o Assessor encontravam-se em lados opostos
e assim não havia porque este comparecer a um evento que
até aqui só lhe trouxera dor de cabeça. Se o senhor Neminho
quisesse entregar dinheiro para o governo, que fosse ao
Palácio, pois ele não se arrastaria até o local do megaevento
para fazer a figura do bufão da festa:
- Isso é que não – pensara ele.
Mas Neminho não queria pensar nisso agora. Estava
feliz. Antes de o show começar, ele subiu discretamente no
palco, olhou todo aquele mar de gente e ficou maravilhado
de ver tantas pessoas ali reunidas, alegres, bonitas, pela sua
causa. Lembrou-se das primeiras vezes em que pensara em
fazer algo pela ponte e fora desacreditado pelos amigos ao
comentar o assunto. Agora, passados esses anos de tanta
angústia e luta, e principalmente passados esses últimos
meses, nos quais a sua vida havia mudado completamente,
140
emocionou-se com sua vitória, uma vitória em que ele
sempre acreditara e pela qual lutara. Ele sabia que um dia
assim teria de chegar depois de tanta luta e dedicação. Ouvira
a vida inteira pessoas dizerem que “quem luta consegue”,
“que o importante é lutar por um sonho” e foi acreditando
nessas máximas que chegara aonde chegou. Esse mar de
gente era a sua certeza, e ele emocionou-se.
A chegada do Editor-Chefe do NT ao local do
megaevento, vindo num helicóptero, causou certo furor, pois
sinalizou a todos que era o momento de começar o show;
chegava finalmente o homem com o dinheiro para ser
entregue a Neminho. Uma grande salva de palmas e gritos
alegres ecoaram pelo local, ofuscando o som que saía das
pick-ups do DJ convidado para fazer o aquecimento. Foi o
primeiro desses momentos, que iriam ocorrer várias vezes
durante o show, marcados por muita emoção. Diversos
artistas se revezaram no palco, mas foi o show do roqueiro
que causou um furor geral nos fãs, que não acreditavam que
um dia iriam ver um show que já era considerado impossível
de acontecer; e ainda mais no Brasil; e ainda mais em
Florianópolis; e ainda mais sendo de graça; era demais!
E foi mesmo um tremendo show, marcado por muitos
momentos de emoção. O velho astro tocou uma primeira
parte e deixou a plateia em delírio durante uma hora. Essa
primeira parte estava prevista para acabar um pouco antes
do pôr do sol, quando então seria feita a cerimônia de
entrega oficial, pelo Editor-Chefe do NT, dos cento e
cinquenta milhões de dólares para as obras da restauração.
Essa cerimônia se daria justamente na hora do poente, como
se marcasse definitivamente o fim de um longo e
interminável dia de luta, de espera pela vitória, como um
adeus à desesperança. A segunda parte do show começaria
com a chegada da noite, ali pelas seis ou sete horas, quando a
141
ponte despontasse, totalmente iluminada, na paisagem
noturna, embelezando o cenário da festa. E assim foi:
felizmente, graças ao profissionalismo da equipe, tudo
ocorreu na mais perfeita sincronia e a natureza e as luzes da
ponte deram um verdadeiro show.
Mas nada se comparou em emoção ao momento da
entrega do dinheiro arrecadado. Os primeiros sinais disso já
se fizeram notar quando o jornalista norte-americano foi
chamado ao palco e foi ovacionado pelo público durante
quase três minutos (para quem tem ideia do tempo, algo
considerável em se tratando de aplausos em lugares abertos),
além de gritarem várias vezes, em coro, seu nome.
Ele agradeceu a todos, falou em espanhol e se disse
feliz e realizado por propiciar a realização de um sonho,
motivo maior de sua ajuda a Neminho, e que agora, olhando
para aquela ponte ali a sua frente, podia compreender
porque o nosso herói se enchera de amor por ela.
- Palavra de nova-iorquino! – Metáfora que todo
mundo demonstrou entender porque mais uma vez ele foi
longamente aplaudido.
O roqueiro, que estava no palco para a cerimônia, fez
questão de dizer num espanhol arrastado, mas que todo
mundo compreendeu, que agora Neminho teria que tomar
muito cuidado porque a sua ponte ganhara um novo
namorado e admirador: ele; e todo mundo riu e foi outra
ovação.
Ele brincou mais um pouco com o público e chamou
Neminho ao palco para receber simbolicamente o dinheiro
arrecado. A plateia vibrou e o coração de Neminho sentiu um
aperto, como uma sensação de medo, mas tratou de
recuperar a calma e subiu as escadas. Sua entrada no palco
foi triunfal, iluminada por um potente canhão, enquanto o
142
barulho da maior ovação até aquele momento invadia a
noite.
Os dois nova-iorquinos colocaram-se lado a lado de
Neminho e ficaram olhando, silenciosos e maravilhados, a
multidão que parecia não ter nenhuma pressa em parar de
aplaudir os três. Foi uma emoção até para o velho roqueiro,
que começou a chorar. O Editor-Chefe também não escapou
de sentir uma emoção forte, e como estava longe de Nova
Iorque, distante de seus críticos, relaxou e sentiu o gostinho
salgado de uma lágrima de felicidade que rolou pela face
abaixo e deslizou pelo meio dos seus lábios.
Aos poucos os aplausos foram cessando e um silêncio
foi imperando sobre a multidão, já alertada pelo locutor do
evento que Neminho Silva gostaria de dizer algumas palavras
a todos.
E Noêmio da Silva, popular Neminho Silva, nestes
últimos meses conhecido como o Quixote de Floripa,
finalmente pôde falar de uma única vez para a cidade e para o
mundo – sem intermediários.
143
Capítulo 34 - NEMINHO FALA URBI ET ORBI25
Neminho fala ao povo (sem intermediários)
Após o silêncio que se fez, Neminho falou:,
“- Cidade amada: estou aqui somente para agradecer;
acho até que nem deveria dizer mais nada, somente
obrigado, obrigado, obrigado infinitamente, mas algo em mim
é mais forte e preciso responder a cada uma das pessoas que
aqui e lá fora me ajudaram. Por isso preciso aproveitar essa
oportunidade e me explicar, responder a todos por que tomei
as atitudes que tomei e da forma como as tomei, bem como
explicar o que me motivou a agir assim. Tudo que eu fiz teve
um sentido. E esse sentido quero partilhar com todos, aqui,
nesta noite. Portanto, é deste sentido que quero falar.
Imaginem como era este lugar quando foi avistado
pela primeira vez. Imaginem de um lado a ilha e do outro o
continente, separados por um canal de mar limpo e de águas
tranquilas. Imaginem agora a vastidão de verde que se
estendia até às praias e cobria todos esses pequenos morros
que se avizinham do mar e que dão este contorno fantástico
à paisagem, seja de que lado estejamos observando-a.
Imaginaram? Imaginem agora que o mar daquela época era
totalmente limpo, e assim a ilha permitia uma qualidade a
mais: em vez de possuir apenas suas vinte, trinta, praias de
mar grosso, ou seja, daquele mar de Oceano que banha a
parte da ilha voltada para o Atlântico, o local ainda nos
oferecia, somando o lado de dentro da ilha e a costa
continental voltada para ela, formando as baías norte e sul,
quase cem pequenas praias, que iam, uma após outra, desde
a Praia do Antenor, na Costeira da Armação de Governador
Celso Ramos, ponta norte do continente, até o Pontal, na
Palhoça, ponta sul do continente, e na ilha, desde a praia da
144
Daniela, no norte, até a Praia da Caieira da Barra do Sul, na
ponta sul. Mais de cem praias! Imaginaram? Agora imaginem
que, pelo fato de nesta região ser comum ventar muito pouco
antes do meio-dia, todas essas cem praias são verdadeiras
piscinas, que permitiriam a cada morador que habita uma
dessas praias acordar de manhã e usufruir daquele mar sem
ondas, calmo, para tomar um banho relaxante, ou nadar, ou
remar numa canoazinha, pescar uma tainhota, até mesmo
ganhar a subsistência, enfim, usufruir daqueles quase cem
pedaços de paraíso como convém a qualquer um que tenha a
felicidade de morar num lugar assim.
Enquanto a parte continental e a parte da ilha não se
comunicavam, por não haver a ponte, a região ainda
conseguiu suportar o impacto da poluição, mas após a
construção da ponte, o acesso fácil às praias oceânicas fez
com que todo mundo passasse a desdenhar do mar das baías,
do mar interior, que é o mar da cidade, pois é frente a este
mar calmo que se encontram os centros de Florianópolis, São
José, Biguaçu e Palhoça, sem contar as Freguesias de Santo
Antônio e Ribeirão; é este mar que está à nossa frente agora.
Quando a ponte chegou, as pessoas encontraram um
jeito literal de passar por cima desse mar e, abandonado, fora
de moda, ele virou o que virou: uma imensa lata de lixo, uma
imensa patente; um crime ambiental que, no Brasil, acredito
esteja entre os cinco maiores. Dezenas de praias destruídas,
dezenas de praias “do cagão”, como jocosamente são
chamadas. E as populações que habitam nas baías e que
fizeram a fama e a fortuna dessa região toda, hoje, vivendo
frente a esta linda paisagem, a todo este mar, sequer podem
pisar nele, não usufruem dele para nada e não têm sequer a
capacidade de fazer uma autocrítica, ver a vergonhosa
situação ambiental que provocaram, e assim fazer algo para
frear esse crime, exigir uma solução, uma limpeza, um
145
retorno aos tempos em que o ar e o mar eram limpos. Xô
Cocô! Xô Cocô! É isso que precisam gritar, tirar toda essa
merda do mar e impedir que mais merda entre nele. De que
adianta dizer que a cidade é linda se está na borda de um
grande sopão de fezes? Dói ouvir isso? Pois tenho algo ainda
mais doído para dizer.
A ponte nasceu da necessidade de as pessoas do
continente se comunicarem com as da ilha, e vice-versa, e
permitiu aos continentais conhecerem a ilha e descobrirem
suas belezas. A sua estratégica localização propiciou a
concentração de pessoas no seu entorno e fez do centro a
região importante que é hoje. Só que a partir do momento
em que novas necessidades surgiram e ela não deu conta,
como suportar o grande tráfego que havia entre o continente
e a ilha, e a cidade construiu a ponte de concreto, que deu
mais fluidez, a velha ponte passou de caminho útil a cartãopostal, pois trafegando pela ponte de concreto as pessoas
começaram a ver de novos ângulos a maravilhosa arquitetura
que é uma ponte pênsil.
Porém, um fato novo veio fazer com que ela
precisasse ser fechada e foi por esse detalhe, ficar fechada,
tornar-se inútil, tornar-se desnecessária, que ela aos poucos
foi deixando de ser vista como ponte e passou a ser cada vez
mais vista como figura de cartão postal. E assim, do mesmo
modo que as pessoas fascinadas pelo mar grosso esqueceram
do mar calmo das baías, deixando que a poluição tomasse
conta dele, os fascinados pela modernidade esqueceram da
velha ponte; e em vez de sua restauração, em vez de torná-la
novamente útil, a cidade optou por mais uma ponte de
concreto. E se com essa opção ficava claro que nada se faria
de imediato para recuperar a ponte, um fato agravante
entrou em cena; o tempo implacável de espera não evitara o
146
crescimento da pior das doenças para uma ponte desse tipo:
a ferrugem.
A ferrugem e o cocô! Duas poluições que espelham
bem o descaso da população pela paisagem. Alardeamos que
somos uma ilha de beleza, de saúde, de bem viver, de
qualidade de vida, de água limpa, de comida natural, mas
insistimos em não discutir o que é obvio: que nosso mar
principal está podre, assim como nosso cartão postal está
podre. Se eu posso usar uma metáfora, a ferrugem nada mais
é do que o cocô que subiu do mar “do cagão” e contaminou a
ponte. Ambos são vítimas da mesma e cruel poluição. Se a
ponte está abandonada é porque o povo a abandonou, assim
como abandonou o mar que poderia ser o maior motivo de
orgulho da cidade. Imaginem as pessoas chegando aqui e
descobrindo que podem usufruir das águas limpas das duas
baías? Mar no centro de uma cidade? Isso é pedir demais?
Por que só as pessoas que habitam a face oceânica da ilha
podem ter praia, se a grande parte da população vive no
outro lado, onde só tem cocô? Por que um absurdo desses?
Por que toda essa gente não faz algo para acabar com esse
absurdo?
Eu sozinho não poderia limpar todo esse mar, nem
sozinho eu poderia limpar a ponte, tirar a sujeira dos dois, e
por isso eu quis chamar a atenção de todos para que
refletissem, para que olhassem com os olhos da
racionalidade, para ver aquilo que é evidente, que está aí,
que precisa ser encarado. Não adianta dizer que temos
orgulho dessa beleza se não cuidamos dela, como não adianta
dizer que a ponte é nosso orgulho se não cuidamos dela. Ou
temos orgulho e demonstramos isso ou devemos
imediatamente parar com essa falácia. É preciso haver
rigidez, é preciso, como eu gosto de dizer, haver uma ética
protestante nesse capitalismo de exploração. Não adianta
147
mentirmos, principalmente para nós. Se o turista cai no golpe
da ilha das cem praias, não podemos ser estúpidos e cair
também no golpe; isso é conversa de político, pois ao
alardear que a ilha tem cem praias o sentido é também iludir
o morador daqui de que essas cem praias existem. E elas não
existem mais, pois grande parte delas virou mar de cocô,
praia “do cagão”.
Então, o que temos que fazer? Deixar de nos
comportamos como turistas, como gente de fora, que não
tem nada a ver com essa tragédia, e encarar esses dois
grandes problemas, chamar todo mundo, quem polui e quem
quer despoluir, colocar o problema à mesa. Se quisermos ter
orgulho de verdade da nossa cidade, então é melhor
começarmos a falar a verdade; e se dizemos lá fora que
temos cem praias limpas, é chegada a hora de mostrar isso,
sem propaganda enganosa, é chegada a hora de ter de volta
as praias limpas, que estão faltando para fechar o total
alardeado nos folhetos de turismo. Chega de propaganda
enganosa! Xô Ferrugem... Xô Cocô!
Os aplausos ecoaram com toda a força por mais de
um minuto, e em seguida Neminho continuou a falar:
- Foi para desmascarar essa hipocrisia que eu me
lancei numa empreitada para salvar a ponte, ou ao menos
para chamar a atenção sobre o problema da poluição, da
ferrugem, mas inicialmente eu sequer imaginava que tal
gesto iria ter a repercussão que teve. Eu confesso que não
estava preparado para isso e muito menos imaginei que
acabaria criando um problema como o que estão me
acusando de causar. O que me moveu foi o fato de achar o
governo – que nunca tem verba, mas vive gastando incompetente para solucionar o problema, que já se arrasta
por décadas, mas o que eu busquei sempre foi uma solução, e
não importando de que forma ela poderia vir, desde que
148
viesse. E aconteceu de ela vir dessa forma que todos vocês
têm acompanhado. Eu tive a sorte de contar com grandes
apoios e é por causa deles que tudo está dando certo, é por
causa deles que ao menos o primeiro problema vai ter
solução. Ocorre que certas pessoas, principalmente do
governo, não aceitam esse meu “golpe de sorte”, se assim
posso chamar, e insistem que eu estou colocando-os numa
situação vexatória ao vir entregar uma verba, como se
estivesse chegando com a arrogância de quem tem dinheiro,
por isso podendo pagar, e dizendo “faça”, colocando o
governo numa situação de serviçal. A imagem que estão
tentando fazer de meu gesto é essa, mas quero deixar bem
claro que não tenho nenhuma arrogância em minha atitude,
embora evidentemente não serei hipócrita em negar que, ao
entregar a verba para o governo, estou fazendo isso não mais
em meu nome, mas em nome de muita gente nesse mundo e
portanto espero que a velha alegação de falta de verbas não
seja mais o empecilho para a negação de soluções urgentes,
como é esse caso. Assim, não serei eu quem vai cobrar do
governo, mas populações de grandes cidades em todo
mundo, a imprensa de todo o mundo e principalmente aquela
que esteve envolvida na arrecadação dos fundos. É isso que
eu acho que está incomodando o governo: o fato de ser
cobrado, o fato de que ao receber essa verba não terá como
diluí-la na sua burocracia, pois terá que prestar contas, o que
é pior, não só para a pequena cidade a qual sempre soube
como manipular, mas dessa vez para muita gente em todo o
mundo, e com um grande poder de fogo. Dessa vez, toda a
ação terá que ser transparente. Eu acho que é isso que anda
incomodando o governo: ter que ser transparente.
Eu pensei bastante antes de falar tudo isso para a
população, mas precisava dizer, principalmente em respeito a
todas as pessoas de boa índole por esse mundo afora que de
149
coração aberto resolveram ajudar sem sequer nos conhecer;
essas sim são as pessoas bonitas do mundo, pessoas que
querem o bem e acreditam num sonho possível chamado
humanidade, que no fim das contas é o que importa.
Minha luta é a luta de todos aqueles que sonham
mudar algo e seguem adiante, sem medo, sabendo que estão
sozinhos, mas acreditando na sua própria força! Como já
disse Santo Agostinho, a esperança tem duas filhas lindas: a
indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não
aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las. Se
alguém tiver que tirar alguma lição do que aconteceu aqui,
que seja esta: acredite na sua luta e vá em frente!
Não tenho nada de heroico em ser assim; o que tive
sempre foi fé no meu sonho, fé na minha certeza, fé na minha
vitória... E força de vontade pra levar a luta adiante! E muito
obrigado a todos os que tiveram fé no que eu fiz. Obrigado,
obrigado, obrigado.”
Os aplausos ecoaram e duraram quase cinco minutos.
O roqueiro aproveitou toda aquela vibração e gritou:
- A banda só é banda se tocar; a ponte só é ponte se
pontear.
O público vibrou.
E a banda voltou a tocar para delírio geral, enquanto
um monte de gente famosa chegava ao palco para abraçar
Neminho, num grand finale para deixar saudades. Foi um
showzaço, como disse alguém na hora de ir embora.
150
Capítulo 35 - A ENTREGA DA VERBA
A frieza do governo ao receber a verba – Neminho vê nisso
um mau sinal
O evento, como era de se esperar, repercutiu em
toda a imprensa mundial. A vitoriosa campanha do Quixote
de Floripa – mais um espetacular lance de mídia do EditorChefe do NT – foi a capa da edição dominical do jornal novaiorquino e Neminho Silva foi mais uma vez homenageado
pela sua vitoriosa empreitada.
Já em Florianópolis, a grande preocupação da
imprensa era cobrir a cerimônia em que Neminho Silva
entregaria ao governo a verba arrecadada, marcada para dali
a três dias.
Embora toda a imprensa lá estivesse para registrar o
fato, o governo não disfarçou sua indiferença com a
solenidade e designou um funcionário de segundo escalão
para receber a verba, fato condenado por todos os jornais no
dia seguinte.
O funcionário encarregado, colocado numa
verdadeira “saia justa”, tentava dar uma explicação
convincente para a ausência do principal escalão do governo,
lembrando que “compromissos anteriormente assumidos
impediram a presença deles ali”, mas suas explicações eram
em vão, e a imprensa, ao comentar o fato no dia seguinte,
não poupou severas críticas.
De qualquer modo, o funcionário prometeu que, tão
logo voltasse, o governo receberia o senhor Neminho Silva
para agradecer-lhe pessoalmente e fazer uma declaração
sobre o processo da restauração, e deu por encerrado o
encontro.
151
Neminho Silva viu nessa indiferença do governo um
mau sinal, mas mantinha as esperanças de ser recebido
brevemente pelas autoridades, se não para receber delas um
agradecimento, pelo menos para dar encaminhamento ao
projeto de restauração.
E ficou esperando dias e dias e mais dias...
152
Capítulo 36 - A TEIA DE ARACNE26: A BUROCRACIA
O Assessor tenta ganhar tempo – Ele espera que as luzes
sobre Neminho esfriem para poder agir - A teia de relações
Ao ver a cidade da janela do avião, uns vinte
quilômetros à frente e abaixo, uma sensação de mal estar
invadiu o Assessor. Retornar a cidade implicava ter que
enfrentar uma imprensa curiosa para saber qual seria a
posição do governo agora que Neminho Silva havia entregado
o dinheiro, quando as obras começariam, qual seria a solução
adotada, como é que seriam os critérios de contratação da
obra, enfim, era preciso responder à população uma série de
questões; e essa obrigação é que causava a azia no Assessor.
Ele sabia que ganhar tempo era o melhor a fazer e
logo que chegou na cidade, comunicou que precisaria
retornar a Brasília no dia seguinte e que, por causa do
compromisso, faria qualquer declaração somente quando
retornasse, dali a quatro ou cinco dias depois, tempo que ele
achava suficiente para que o assunto esfriasse mais um pouco
na mídia.
O Assessor, como bom homem de mídia, sabia que
sua melhor estratégia nesse momento era esperar que as
luzes que estiveram todo esse tempo focando Neminho,
recém-apagadas, portanto ainda quentes, fossem aos poucos
esfriando; e isso só se daria com o passar dos dias. Ele sabia
que era assim no mundo da mídia. Veja o caso das novelas:
passados dez, quinze dias, pouca gente fala do último capítulo
da novela que dominou os assuntos nos últimos oito meses
de suas vidas. Era com esse esquecimento que ele contava
para ter êxito em sua estratégia:
153
- Se aquele americano filho da puta pensa que
entende de mídia, eu vou mostrar pra ele porque fiquei todos
esses anos mandando no jogo...
Ele estava realmente magoado, humilhado, ferido,
mas o fato de sentir-se ainda ameaçado em seu poder é que o
incomodava mais que tudo. Mágoa, humilhação, eram
sentimentos que, mesmo deixando marcas, ele saberia
suportar, dar à volta por cima; eram assuntos pessoais, de
foro íntimo, como se diz no jargão político-jurídico, e ele os
superaria com certeza. O perigo iminente estava naquilo que
não era assunto exclusivo dele, mas de foro público, pois
envolvia a permanência de todo o seu grupo político no
poder. Não iria ser fácil negociar com a ala rebelde dos
comerciantes, que agora estavam claramente do lado de
Neminho Silva, exigindo que a obra fosse realizada de
imediato, porque, afinal, a ponte era a cara da cidade – e a
indústria do turismo precisava dela em todo o seu esplendor
para chamar mais e mais fregueses e nunca mais praticar
propaganda enganosa. O que colocava a obra – agora que
não havia mais o álibi da falta de verba – como prioridade.
Ao pensar nas prioridades que ele já tinha elegido
para atender aos interesses de seu grupo, e que diante dos
fatos teriam que ter seu calendário modificado, ele
estremeceu, porque sabia que iria contrariar muita gente
próxima do poder, e via nisso uma potencial ameaça à sua
permanência no topo da situação. Inverter a ordem de
prioridades mexia com questões de logística, de contratos,
jurídicas, mas, principalmente, mexia com os bolsos de muitos
daqueles que sempre o apoiaram e que veriam nisso uma
traição. E ele não aceitaria jamais conviver com essa pecha,
pois nunca traíra aqueles que o apoiaram; isso todos
respeitavam nele: sua fidelidade canina aos amigos políticos,
demonstrada em diversos episódios quando ele chegara até a
154
superar a timidez e colocara a cara para bater, enfrentando
toda a opinião pública para apoiar um amigo político
colocado numa dada situação de dificuldade. Traidor: disso
nunca ele seria chamado!
Foi tamanha a insistência – de Neminho, dos
comerciantes, da oposição, da imprensa... - Em falar de
prioridade, prioridade, prioridade, que a pressão do discurso
acabou dando nos nervos do Assessor, de tal modo que ele
teve aquela ideia que, como já dissemos, ele nunca deveria
ter tido:
- Pois bem, eu vou mostrar pra vocês o que é
prioridade!
Ele sabia que somente mudando o foco do problema
poderia criar uma nova situação e dessa forma modificar
novamente as prioridades de acordo com seus interesses,
para poder manter-se e manter seu grupo por mais um bom
tempo no poder. O discurso da falta de verba tinha
funcionado durante todos esses anos como justificativa para
o não cumprimento de sua parte no acordo com os
comerciantes, e estes - impossibilitados de cobrar dele o
compromisso – nunca constituíram uma ameaça real ao seu
poder - até agora! Assim, ele teve aquele raciocínio que
brotou lá do fundo da fera ferida que ele era naquele exatoinstante-já-da-coisa e que precisava a todo custo sobreviver.
E para sobreviver, ele sabia que precisava mais uma vez
reviver o mesmo discurso que fora efetivo como desculpa até
a entrega pelo Quixote daqueles malditos cento e cinquenta
milhões:
- Pois bem senhor Quixote. Você insistiu que
bastavam cento e cinquenta milhões para priorizar e curar o
mal da sua donzela amada? Então vou lhe mostrar que o mal
da sua donzela precisa de muito, mas de muito mais dinheiro
para ser priorizado e curado...
155
E foi assim: tal qual a um aracnídeo, que domina a
ciência da construção da teia e por isso sabe qual a força
exata de cada um dos pontos que a compõem, o Assessor
procurou na sua agenda o nome de um desses pontos, cuja
força e influência ele esperava contar para tornar realidade
aquela sua ideia que ele passou dias e dias dizendo para
todos que não teve, até todos pararem de perguntar.
Encontrado o número do telefone, ele de imediato
fez uma ligação. Passava das oito da noite, mas quando o
telefone celular tocou numa das salas do setor de
administração do Porto de Itajaí algumas pessoas ainda lá
estavam. O dono do celular prontamente atendeu ao
chamado e reconheceu a voz do outro lado. Fazia um bom
tempo que ambos não se falavam e aquela ligação era tão
surpreendente quanto o pedido que o funcionário ouviu...
Agora tudo dependia da habilidade do Assessor em
ganhar tempo, protelando encontrar o cidadão Neminho e
com isso protelando também uma resposta oficial ao projeto
de restauro da ponte – e protelar era uma arte que ele
dominava com esmero.
Com essa certeza, ele deu o dia de trabalho por
encerrado e foi para casa. Agora que tudo estava resolvido,
ele podia finalmente descansar.
Entre uma viagem e outra, somadas a “compromissos
de última hora que impediram o Assessor de estar aqui hoje”
(como dizia mecanicamente a secretária), quase um mês se
passou, e as luzes sobre Neminho, como prevera o Assessor,
já estavam bastante frias... Porém, como a imprensa ainda
fazia cobranças o Assessor, “para não fazer feio”, finalmente
marcou um encontro com o cidadão, mas, somente para dali
a uma semana... Semana que ele ansiosamente aguardara...
156
Capítulo 37 - O NAVIO
Um fato surpreendente, que não acontecia desde 1920 – As
pessoas pareciam duvidar do que estavam presenciando
Dona Lurdes, lá da praia da Daniela, não viu; seo
Haroldo também não. Nem tampouco seo Hipólito, seo Nico e
dona Maria, lá do Sambaqui, seo Belarmino, lá de São Miguel,
seo Aderbal e seo Arnoldo, lá da Serraria, seo Aurino, lá de
Barreiros, sempre tão atento a olhar o mar, ou seo Nôca, lá
do Cacupé. Ninguém viu.
Ninguém viu é maneira de falar, mas o certo é que o
ocorrido era tão espantoso, tão inesperado, tão espetacular
do ponto de vista de sua grandeza, que se alguém viu, depois
teve medo de falar.
- Em assunto de peixe grande, é melhor não se meter
– reza a sabedoria mané.
Aquele era um fato completamente surpreendente,
que não acontecia desde 1920, e justamente logo depois de
todos aqueles recentes acontecimentos envolvendo a ponte
que haviam marcado a cidade nos dois últimos meses.
- Credo! Parece “coisa feita!” – era o consenso geral.
A partir do instante em que as pessoas começavam a
saber do ocorrido, de imediato voltavam sua atenção para o
Estreito e tratavam de para lá se dirigir; era assim com todo
mundo e, aos poucos, os bairros foram ficando vazios, e os
moradores, como se fossem sugados por um grande imã,
convergiam todos para aquele mesmo ponto. E ao chegarem
lá, o que viam era inacreditável.
O que sucedera?
Ocorrera algo completamente impensável, sob todos
os pontos de vista, mas principalmente num momento em
157
que as atenções da mídia ainda estavam voltadas para a
cidade.
Próximo das onze horas da noite, um grande navio
cargueiro, vindo da direção de Itajaí, errou a rota – conforme
declarou depois seu comandante - e costeou a ponta norte da
ilha, entrando na baía norte. Passou em frente às praias do
Forte, da Daniela, do Toló, do Sambaqui, de Santo Antônio e
do Cacupé, do lado da ilha, e de Tijuquinhas, São Miguel,
Biguaçu, Barreiros e Ponta do Leal, no continente, sem que
ninguém conseguisse avistá-lo e avisar a Capitania dos Portos
de tão estranha e inusitada presença. Houve até um grupo de
pescadores que depois declararam ter avistado o navio, mas
não puderam avisar a Capitania porque nenhum deles tinha
um telefone.
O fato é que o cargueiro, carregado de geladeiras
para o Uruguai, “desconhecendo” a existência da ponte no
centro do canal, continuou avançando em sua rota na direção
sul, na esperança de sair para o mar aberto após atravessar a
extensão longitudinal da ilha.
E por um desses acasos que ninguém explica, o
cargueiro foi avançando na noite, avançando, e foi grande o
susto da tripulação, já preparada para dormir, quando soou o
alarme de colisão, mas já era tarde demais.
A proa do navio era bastante alta, mas mesmo assim
passou sob o vão central da ponte. Porém no convés do navio
havia pilhas de seis contêineres sobrepostos, de considerável
altura, e após estas ficava o edifício da cabine de comando do
cargueiro, que possuía altura idêntica a das pilhas. É preciso
colocar as coisas nesta ordem para se ter uma dimensão da
colisão e da imagem que resultou dela.
O que se via nitidamente é que a proa passara sob o
vão, mas a pilha de cima dos contêineres esbarrou
violentamente nas pistas, bem na área do vão central, bem
158
no meio do semicírculo que começa (e acaba) nas torres e
sustenta a pista no ar, o chamado “meio da ponte”, bem
onde ela parece mais vulnerável. O estrondo da pancada foi
ouvido longe e começou sobre o convés um
desmoronamento sequencial das pilhas de contêineres,
muitos deles caindo no mar, outros amassando ruidosamente
pela força da colisão, e outros perigosamente lançando-se na
direção da casa de comando. Como esta é uma estrutura
muito bem fixada no convés do navio, resistiu à pressão dos
contêineres, e estes, impedidos de derrubar a cabine, por
efeito da inércia, acabaram por pressionar ainda mais a
estrutura do vão central, que não resistiu e desabou,
deixando cair sobre o canal quase cento e cinquenta metros
de pista.
Foi uma cena dantesca e as pessoas pareciam duvidar
do que estavam presenciando: entalado sob a pista destruída
da ponte, um navio cargueiro com um convés cheio de caixas
retorcidas, desordenadamente empilhadas, e muitas delas
boiando no canal enquanto afundavam lentamente. Ao
olharem para a ponte, as pessoas viam estarrecidas, as vigas
metálicas (aquelas que saem do semicírculo e sustentam no
ar o vão central) pendendo no ar, balançando ruidosamente
sob efeito do forte vento que batia (afunilado ali, por efeito
da geografia). Algumas das vigas ameaçavam despencar e
comprometiam ainda mais a segurança no local, porém,
mesmo com os riscos, seguidamente surgiam pessoas que,
embora surpresas, ofereciam ajuda. Mas tirando o trabalho
de salvar vidas, que já havia sido assumido pelas brigadas
militares de socorro, o que mais se poderia fazer naquele
momento a não ser lamentar?
E assim naquela noite, quem morava ali próximo do
canal não conseguiu dormir, seja pelo próprio espanto
causado pelo fato, seja pelo barulho das centenas de sirenes,
159
que vinham da terra, do ar e do mar, seja pelo trânsito
infernal provocado pela curiosidade dos habitantes, que fez
muita gente na madrugada se dirigir para lá, ou seja pela
própria curiosidade que não deixava ninguém sair dali e ir
para a cama dormir; afinal, era um acidente espetacular.
À medida que as horas passavam e a claridade
aumentava, também aumentava o número de pessoas que
chegavam ao local da tragédia, alertadas pelos noticiários das
rádios e TVs, todos praticamente transmitidos direto dali.
Quando clareou de vez o dia é que as pessoas puderam ter
uma noção exata do tamanho do acidente: era uma cena
triste, digna da palavra desastre.
Ao chegar lá e dar de cara com aquele terrível
espetáculo, Neminho Silva pôde então compreender o quão
premonitório havia sido aquele pesadelo terrível que tivera
com o gigante deitado.
160
Capítulo 38 - RECONSTRUIR
O Assessor estava certo em sua estratégia – Neminho ouviu
tudo sentindo um misto de espanto e torpor
O Assessor estava certo em sua estratégia: a comoção
mundial com o que ocorrera na cidade foi tamanha que o
governo decidiu eleger como prioridade, numero um, a obra
de reconstrução da ponte. Assim, a sua bancada no
Legislativo estaria apresentando na semana seguinte um
projeto do Executivo solicitando autorização para a
contratação de empréstimos junto a bancos e instituições de
crédito no país e no exterior para execução da obra. Na
mensagem o governo lamentava que - justamente agora que,
graças a campanha do cidadão Neminho Silva, a cidade tinha
conseguido a verba para poder realizar a restauração – um
destino tão trágico viesse entristecer a população. Porém, se
aquela magnífica campanha visara a restauração da ponte,
agora a missão era maior, pois era hora da reconstrução da
magnífica donzela, para que o sonho do seu cavaleiro se
realizasse; e portanto todos deveriam envidar o máximo de
esforços para isso ocorrer.
Diante dessa tragédia, o governo torcia para ver o
projeto ser brevemente aprovado, permitindo assim que, tão
logo fosse possível, as obras tivessem início; portanto pedia
inclusive à oposição que entendesse as razões do governo e
não colocasse entraves à aprovação do projeto – estratégia
adotada pelo Assessor considerando que toda a mídia
naquele momento manifestava-se a favor da reconstrução.
Reconstrução. O Assessor deixou vazar um sorriso
silencioso ao ler o termo na redação do projeto, antes de
encaminhá-lo para votação.
161
Enquanto o projeto era encaminhado e iniciava sua
tramitação, ele finalmente recebeu Neminho Silva no
Gabinete. A imprensa estava toda lá e o Assessor fez questão
de que os primeiros dez minutos fossem reservados para as
fotografias e as declarações oficiais. No seu pronunciamento
público, o Assessor ficou o tempo todo ao lado de Neminho e
disse lamentar que o destino tivesse pregado uma peça tão
trágica, ceifando todo o esforço que o heroico cidadão tivera
nos últimos dez meses, mas ao mesmo tempo informava que
a verba conseguida pelo cidadão e repassada ao governo não
estava perdida; ela faria parte do Fundo para a Reconstrução
da Ponte, criado para administrar as verbas que viriam dos
novos contratos de empréstimos que o governo em breve
estaria assinando.
Neminho ouviu tudo sentindo um misto de espanto e
torpor; não podia acreditar que aquilo estava acontecendo.
Tanto tempo lutara contra a burocracia, para livrar-se
definitivamente das suas amarras e levar adiante o seu
projeto, e agora via todo o seu esforço sendo engolido por
ela: - Fundo para a reconstrução. Meu Deus! Tremeu só de
pensar em todo o dinheiro levantado na sua campanha sendo
desviado por labirintos intermináveis até não poder mais ser
rastreado, desaparecendo... E a sensação de que nunca veria
sua donzela metálica recuperada foi virando certeza e
apossou-se dele um sentimento terrível, misto de dor,
tristeza e raiva.
O Assessor deu por terminada a primeira parte do
encontro e convidou Neminho para se reunirem a portas
fechadas, passando os dois a uma sala reservada que ficava
ao lado.
Neminho estava trêmulo com o que acabara de ouvir
e foi direto à pergunta que gostaria de fazer:
162
- Foi o senhor que tramou aquele acidente, não é
mesmo?
- Por que o senhor me acusa de algo que deve ser
creditado exclusivamente ao acaso? O que eu ganharia com
aquele acidente? – indagou o Assessor.
- O senhor nunca admitiu que eu prosseguisse com a
minha campanha sozinho e causou a destruição da ponte
para que o dinheiro que eu arrecadei não fosse mais
suficiente para o restauro da ponte. E agora, vai deixá-la
como está, destruída, balançando ao vento sul?
- Ora meu caro senhor. Enquanto necessitava de
restauração, a ponte não se constituía em prioridade para o
governo. Bastava deixá-la pintada, bem iluminada, para que
ela cumprisse as funções de cartão-postal; isso já era
suficiente para a propaganda turística, como vinha sendo
feito há muitos anos, daí não se impondo a necessidade de
restaurá-la; foi sua paixão exacerbada pelo monumento, e
com ela os seus interesses individualistas, que provocou toda
essa confusão, invertendo prioridades e ameaçando uma
série de outros interesses, colocando em risco toda uma
estrutura de poder. E o senhor, cego de paixão, sequer
conseguiu perceber o que acabou provocando.
Por isso que eu lhe procurei, lhe propondo uma
parceria. O que eu tentava lhe fazer ver é que havia um
caminho, sim, como o senhor bem o disse, só que esse
caminho era um caminho chamado legalidade; e a legalidade
é o Estado; é ele quem tem o direito de representar. Mas o
senhor preferiu ir sozinho, preferiu a livre-iniciativa de quem
não aceita que há um coletivo que se impõe legalmente.
Legalmente, Senhor Neminho. Por isso que nunca dei um
passo no terreno do sonho, preferindo sempre o terreno do
real, do legal.
163
Veja o próprio caso do senhor e do seu patrono
americano. Veja quanto tempo vocês lutaram pela
restauração; acho que oito meses, dez, quase um ano entre
articular, criar, desenvolver e concluir. E veja quantas pessoas
tiveram que envolver. Mil profissionais e artistas e cinco
milhões de pessoas pagando para ver tudo. E arrecadaram
quanto? Cento e cinquenta milhões? Cento e cinquenta
merrequinhas? Só? Tiveram tanto trabalho e gastaram tanto
tempo em sensibilizar todo o mundo com a suave doença da
donzela para arrecadar só cento e cinquenta milhões de
merrequinhas? – indagou jocosamente o Assessor.
Agora veja o meu caso, veja só que ideia eu tive para
o meu plano de arrecadação e conclua se eu não fui mais
efetivo: eu apresento a donzela ainda mais doente,
precisando até regenerar pedaços inteiros de seu corpo, o
que pede muito, mas muito mais dinheiro. E uma cidade
comovida por um desastre desses é capaz de fazer qualquer
coisa para voltar à situação anterior o mais depressa possível,
inclusive pressionar os políticos da oposição a votarem
favoravelmente à captação de todo o dinheiro necessário.
Pronto, senhor Neminho: eis como consigo, sem grandes
esforços e sem grande dispêndio de tempo, os milhões de
que preciso para movimentar a máquina. Portanto, não será
o senhor e nem tampouco seu patrono americano que me
ensinarão como se consegue recursos; isso eu sei muito bem
fazer. E o faço pela via burocrática, pois sempre considerei
esta a melhor, mais eficiente e mais rápida forma de
arrecadar dinheiro, mesmo que todos digam o contrário. Para
mim o seu erro foi negar esse caminho como o melhor dos
caminhos.
Fique sabendo o senhor que quando eu for cobrado
pelos administradores dos recursos injetados pela sua
campanha no meu caixa, farei questão de responder
164
burocraticamente dentro da mais completa legalidade, como
convém a um Estado organizado, e eles serão devidamente
informados da utilização de sua verba, que estará
contabilizada entre as demais que servirão para custear as
obras de reconstrução. E reconstruir uma ponte não é assim
né? O que isso quer dizer? Simples. Quer dizer que agora
surge uma nova era, um novo momento que se inicia,
chamado não mais de restauração, mas de reconstrução, do
qual a sua ajuda valiosa tornou-se parte... E agradecemos
muito por isso. Portanto, não cobre mais do governo a sua
restauração; a história do Quixote de Floripa extinguiu-se
com o imprevisível desastre que destruiu parte da ponte,
surgindo uma nova prioridade: sua reconstrução; e essa é
outra história.
Neminho compreendeu então que fora enganado
pelas artimanhas do Assessor e diante de si surgiu a imagem
de um gigantesco ralo pelo qual escoavam notas e notas de
dinheiro até atingir a cifra de cento e cinquenta milhões: era
o seu sonho indo pelo ralo abaixo. Foi muito triste para ele, e
uma sensação nauseante tomou conta de seu corpo fazendo
com que ele desejasse sair dali correndo. E foi o que ele fez,
para espanto do Assessor e dos jornalistas que aguardavam o
desfecho do encontro na sala ao lado. Como Neminho não
ficou para responder a nenhuma pergunta e também o
Assessor saiu pela porta de trás, só restou à imprensa
especular no dia seguinte que alguma desavença entre ambos
estava ainda ocorrendo.
E diante do silêncio do governo e do sumiço
repentino de Neminho, só restou à imprensa continuar
especulando, especulando, até que o assunto esfriou. Afinal,
o governo era o foco das atenções com o lançamento do
projeto de reconstrução, para o qual a parcela inicial de
quinhentos milhões já havia sido aprovada, para a alegria dos
165
empresários locais, que iriam fornecer pessoas, tecnologia e
material para as obras. Para não ficar esquecido, Neminho
tentou se fazer notar e procurou a imprensa para denunciar a
forma meramente contábil, burocrática que o governo havia
dado ao seu suado dinheiro, mas os jornalistas lhe disseram
que a essa altura dos fatos a reconstrução era mais
importante e as pessoas em sua maioria iriam concordar com
o que o governo fizesse.
Neminho enviou e-mails por diversas vezes para o
Editor-Chefe do NT, relatando os fatos e pedindo que este
cobrasse mais ação do governo, porém as respostas
raramente vinham, e ficaram cada vez mais escassas,
principalmente após ele ser comunicado que o jornalista
estava às voltas com mais uma campanha, dessa vez
envolvendo um grupo de cegos de Ruanda, que insistiam no
sagrado direito de aprender a ler em kinyarwanda, a língua
tribal oficial do país, enquanto o governo, apoiado por
europeus, lhes proibia o acesso a impressos em braile neste
idioma, apenas permitindo publicações em inglês e francês,
que ignoravam a cultura local – e atualmente ele ficava pouco
em Nova Iorque, mas iria ver o que poderia fazer etc. etc. etc.
Com o passar dos dias, Neminho começou a perceber que o
Editor-Chefe estava cada vez mais econômico nos e-mails e
concluiu que o produto Quixote de Floripa já não tinha lá
tanto peso para seu criador. E compreendeu finalmente – e
de modo cruel - o que era ter se tornado um produto, bem
como percebeu que a sua campanha de vendas havia
terminado.
166
EPÍLOGO
No canal do Estreito, onde se localiza a ponte,
costuma bater um forte vento sul, afunilado pela geografia,
que nas noites frias de inverno chega a doer na alma. Isso faz
com que ali raramente alguém circule à noite, ainda mais
recentemente, porque grande parte da calçada foi fechada
pelos riscos de alguma peça da ponte desabar causando
algum acidente fatal. As partes que ficaram suspensas no ar
devido à colisão e ainda não retiradas, nessas noites de vento
frio balançam perigosamente e este balançar provoca
rangidos que são ouvidos de longe, dando um ar sinistro ao
cenário da tragédia que, passados já alguns anos, ainda
parece o mesmo daquele fatal dia.
O local, antes um cenário de encantamento e
paisagem para fotos de milhares de turistas, agora é
fantasmagórico, triste. O navio já foi retirado, mas a ferida
deixada pela proa na pista da ponte ainda está lá. Aquela
visão tétrica da pista central que acaba no ar, ladeada e
encimada por quase uma centena de vigas metálicas que
continuam balançando penduradas no ar enquanto as
companhias seguradoras não terminam seus laudos periciais,
causa tristeza em qualquer pessoa que se depare com a cena.
É uma visão completamente oposta àquela que todos se
habituaram a ter do belo local. À noite, então, é pior ainda. E
nos embates entre as seguradoras e seus laudos, os
engenheiros e seus laudos, os advogados e seus laudos, e
mais laudos e laudos e laudos, os anos vão se arrastando e
todos começam a duvidar quando a reconstrução será
reiniciada, fazendo surgir mais uma leva de políticos com
novas promessas de soluções mirabolantes (e convém ir ao
167
dicionário para ter uma dimensão do que significa essa
palavra), na busca do voto dos incautos.
E mesmo com tantos anos já passados, nessas noites
de frio, ainda percebe-se um vulto às vezes que circula por ali.
A maioria das pessoas que passam apressadas nos carros pela
avenida sequer imagina de quem se trata, mas os raros
noctívagos que ali transitam sabem que se trata de Neminho
Silva, que continua a aparecer , para admirar sua musa, fazerlhe uma visita, como quem visita um doente.
Neminho agora é um sujeito muito triste. Pensando
bem, voltou a ser triste, porque já vivia triste quando sua vida
sofreu toda aquela reviravolta. Mas ele não se incomoda mais
de estar triste. Tornou-se melancólico e essa melancolia, em
vez de diminuir, aumenta dia a dia o azedume do fígado,
aquele fel, que corrói sua alegria e lhe causa ainda mais dor
na alma.
Desencantado com tudo o que lhe aconteceu, com o
uso que fizeram dele, anda infeliz e pensando até mesmo em
se matar, embora se matar diz que não vai, porque como
bom cristão que é não vai fazer tal besteira; só que a ideia
não lhe sai da cabeça.
Talvez vá viajar um pouco, ou mesmo resolva deixar a
cidade. Ainda não sabe. Pensando bem, desapontado, não
sabe nada.
Ele só consegue vagar na calada da noite e quando
menos espera está lá, diante da sua donzela, lamentando
noites e noites seguidas sua dor, sua feia aparência que
espera ansiosa o cirurgião que virá restaurar sua beleza. Mas
o cirurgião parece demorar cada vez mais, e às vezes ele se
desespera e aperta na mão o parafuso-mimo com tanta força,
rezando por um milagre, que seus dedos chegam a ficar
marcados.
168
É de dar dó ver aquela cena, saber que aquele
espectro que vagueia por ali é ele, justo ele, que sonhara um
sonho romântico de um dia salvar a ponte e com isso
devolver o orgulho de uma cidade inteira...
169
Notas:
1
Cf. Aurélio Agostinho, Bispo de Hipona (354-430 d.C.). Filósofo e Teólogo
cristão nascido em Tagaste, no Norte da África. Sua morte, em 430 d.C.,
marca o início da idade das trevas na Europa. É considerado santo pelos
católicos.
Disponível
em
http://www.superviadigital.com.br/obldv/principal.htm. Acesso em abr.
2009.
2
Cf. COELHO, Mário César. Imagens em perspectiva da ponte pênsil de
Florianópolis/SC, p. 2. Disponível em
<http: //departamentos.unican.es/digteg/ingegraf/cd/ponencias/153.pdf>
Acessado em 26 fev.2009. As duas pontes gêmeas construídas depois da
Ponte Hercílio Luz, nos Estados Unidos foram a Silver Bridge em 1928, que
desabou em 1967, e a St. Mary’s Bridge de 1929, que foi desmontada, em
seguida ao desastre. Apesar de serem menores, eram estruturas muito
semelhantes quanto ao sistema de sustentação. Ver também informações
com
diversos
números
sobre
a
ponte
no
sitio
<http://WWW.ihgsc.org.br/destaque3.htm> A foto das pontes sobre o
canal é do fotógrafo Pedro Rocha e encontra-se também neste sítio.
Acessado em mar.2009.
3
No município de Florianópolis, morar “no continente” significa,
principalmente, morar no bairro continental do Estreito e seus arredores.
Da mesma forma, os açorianos chamam os portugueses que habitam o
território do país de moradores do “continente”. Na metáfora da
personagem, há um secreto orgulho, uma certa superioridade em ser
português “continental” com relação a ser português insular (açorianos).
4
No jargão mané, um sujeito caco designa alguém de vida errada, de má
índole.
5
A ponte Hercílio Luz.
6
Cf. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre
dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Ver o Capítulo 1: O
entre-lugar do discurso latino-americano.
7
Dom Quixote é a obra do espanhol Miguel de Cervantes, publicada pela
primeira vez em duas partes: 1605 e 1615.
8
Cf. ECO, Humberto. O Pêndulo de Foucault. São Paulo: Record, 1989. O
livro tem como pano de fundo o meio editorial e o universo dos cavaleiros
templários.
9
Cf. BORGES, Jorge Luis. Em O Quixote de Pierre Menard, o escritor
argentino Jorge Luis Borges faz, entre outras, uma reflexão sobre a autoria
170
e a originalidade de um texto. Pierre Menard, a personagem central, certo
dia começa a (re)escrever o mesmo livro que Cervantes originalmente
escrevera. Ele quer chegar ao Dom Quixote não como Cervantes, mas como
ele mesmo, Pierre Menard, autor do Quixote. BORGES, Jorge Luis. Ficções.
(Tradução Carlos Nejar). São Paulo: Ed. Globo, 2001.
10
Cf. PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. São Paulo: Ed. O Estado de S.
Paulo/Klick Editora, 1997. p. 155. No livro Mensagem, no poema O Quinto
Império, Fernando Pessoa cita Grécia, Roma, a Cristandade e a Europa
como os primeiros quatro impérios e Portugal como o quinto: o sonho de
D. Sebastião, que justifica a expressão “homem continental”, uma metáfora
para a expansão (e domínio) da língua portuguesa sobre todo o continente
europeu. Este mito surgiu na batalha de Alcácer-Quibir, onde os
portugueses sofreram uma derrota humilhante do sultão Ahmed
Mohammed de Fez, perdendo boa parte do seu exército. O rei Sebastião,
provavelmente morreu na batalha ou foi morto depois desta. Este desastre
teria as piores consequências para o país (financeiras, inclusive), colocando
em perigo a sua independência. Mas para o povo português, o rei havia
apenas desaparecido, dúvida que persiste até hoje e gerou a lenda do "rei
dormente" (ou um Messias) que vai regressar para ajudar Portugal nas suas
horas mais sombrias, tal qual o Rei Artur,da InInglaterra. O sonho de
Sebastião era dominar a Espanha, unindo toda a península ibérica. A
metáfora deste sonho pode ser entendida como a vitória de um rei cristão
sobre os tiranos mouros que ainda tinham, à epoca, poder na península.
Talvez por isso Fernando Pessoa, no citado poema, compare D. Sebastião a
Galaaz, cavaleiro Cristão associado ao mito da Espada Excalibur e do Santo
Graal. No Brasil, em fins do século XIX, o mito de D. Sebastião vai ser
resgatado por Antônio Conselheiro e culminar no episódio da Guerra de
Canudos, que envolveu tropas do governo contra os lavradores
sebastianistas no sertão da Bahia, os quais acreditavam que o rei iria
regressar para ajudá-los na luta contra a “república (ateia) brasileira”.
Disponivel em < http://www.insite.com.br/art/pessoa/mensage3.html>.
Consultar
também
os
sítios
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Alc%C3%A1cer-Quibir>
e
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal> Acessado em
20 fev.2009.
11
Na metáfora criada por Fernando Pessoa, em vez de Portugal vencer
pelas armas (algo difícil na realidade do século XX) poderia restaurar a sua
171
grandeza sobre toda a Europa (e além-mar) pela língua. A pátria portuguesa
estaria então onde estivesse sua língua (“a língua é minha pátria”, como
nos lembra o verso da música Língua, de Caetano Veloso); e assim, quanto
mais difundida, maior a grandeza do “5º Império”. Os soldados desse novo
império seriam os poetas e os gramáticos.
12
Cf. ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006. p. 79
13
Ver o artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política (vol.
1). 7 ed. 10ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996.
14
Cf. COELHO, Mário César. Imagens em perspectiva da ponte pênsil de
Florianópolis/SC, p. 2. Disponível em
<http: //departamentos.unican.es/digteg/ingegraf/cd/ponencias/153.pdf>
Acessado em 26 fev.2009. Diz o autor: “Falar da cidade de Florianópolis
sem a ponte é como um ato incompleto, sem o personagem principal. As
imagens do monumento identificam a cidade. Ela é uma referência visual,
simbólica e afetiva assimilada pela população. Isto fica evidente pela
quantidade de reproduções gráficas. A fonte documental sobre a Ponte
Hercílio Luz em forma de imagens é muito ampla, formando uma espécie
de caleidoscópio, onde a cada momento se acrescenta nova informação
visual” (p. 3).
15
Ibid. A ponte foi interditada em 1982 por um problema estrutural na
barra de olhal. De lá para cá, passou-se a discutir constantemente as
formas de sua recuperação.
16
Grafia “livre”, inspirada no famoso Jornal da cidade de Nova Iorque, EUA.
17
Aqui faço minha homenagem saudosa ao Roda Bar, localizado por muitos
anos na Rua Trajano, um excelente bar que existiu no centro da cidade
(embora, para outros, foi o Meu Cantinho, na rua Jerônimo Coelho, já
fechado, e a Quibelândia, o único que restou), que tinha o espírito do bar
narrado na estória. O Roda fechou suas portas na década de 1980.
Coincidentemente, numa viagem a Amsterdam fiquei hospedado num
apartamento ao lado de um boteco que tem este mesmo nome; e essa
coincidência parece ter sido o “sinal” para republicar esta estória. Não
precisava dizer isso aqui (da viagem), mas o faço para homenagear o citado
boteco holandês – que homenageia, por sua vez, o bar da minha estória.
18
O termo Estado aqui tem o uso livre, com o significado de governo. É que
a ponte pode ser vista como um assunto municipal, estadual ou federal, o
que justifica a opção pelo termo mandatário-mor para designar o chefe do
172
governo, como se verá adiante, sem vinculação direta a qualquer das três
esferas.
19
Adam Smith, acreditava que a iniciativa privada deveria ser deixada agir
livremente, com pouca ou nenhuma intervenção governamental. [...] e
advogava o que ele descreveu como liberdade natural, cuja principal
característica é a liberdade individual de cada um de competir com outro,
com a mínima intervenção do Estado, que apenas deve garantir um sistema
de justiça. Segundo Smith, todo o homem, desde que não viole as leis da
justiça, tem direito de lutar pelos seus interesses como melhor entender e
entrar em concorrência. [...] Para ele, cada indivíduo ao tentar satisfazer o
seu próprio interesse, promove, de um modo mais eficaz, o interesse da
sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Apesar de cada
indivíduo ter na mente o seu próprio interesse e não o interesse da
sociedade, o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente, ao
melhor para sociedade. [...] Smith, como pai do liberalismo que é, confia no
individualismo, nas virtudes do sistema de liberdade natural. [...] O egoísmo
surge aqui como um elemento positivo, desde que a perseguição do
interesse de cada um não impeça outro de perseguir igualmente o seu
interesse. A. Smith considera que existe um sistema de liberdade individual
que passa por o governo não interferir com as atividades produtivas da
população.
Disponível
em
http://www.administradores.com.br/artigos/adam_smith_karl_marx_e_ke
ynes_estao_se_revirando_nos_tumulos/25719/> Acesso em 27 jan.2009.
Ver
também
BRAGANÇA,
Wilson.
Disponível
em
http://desenvolvimentostp.blogspot.com/2008/02/anlise-da-teoria-doEstado-de-adam.html Acesso em 27 jan.2009.
20
Cf. VANDRE, Geraldo. Música: Pra não dizer que não falei de flores. In A
Era dos festivais. São Paulo: Universal, 2003 (Versão em CD – Compact
Disc).
21
Para que não paire dúvidas, o uso dos termos “plebe”, e mais adiante
“ralé”, aqui nesta obra tem o sentido brincalhão de fazer uma referência ao
“povo, galera, massa, plebe, ralé” – é nesse sentido que deve, portanto, ser
lido.
22
Denominação antiga das ruas do centro da cidade, atuais ruas Trajano e
Deodoro. O Largo Santa Bárbara era próximo à Ponte do Vinagre,
possivelmente o atual Centro Cívico.
173
23
É também nessa leva higienista que o Hospital Militar - que ficava no
centro da cidade, num grande terreno, onde hoje se localiza a Faculdade de
Educação, a antiga Academia de Comércio e parte do Instituto Estadual de
Educação - acabou sendo “expulso” para o local onde se encontra. Na
Guerra do Paraguai, era tamanho o número de soldados para cá enviados
que a população, assustada com tanta gente doente no centro da cidade,
exigiu a transferência do Hospital, visto como pestilento, para uma área
mais afastada. Para saber mais detalhes sobre os episódios narrados neste
capítulo, recomenda-se a leitura de dois trabalhos: MORAES, Laura do
Nascimento Rótolo de. Cães, vento sul e urubus: higienização e cura em
Desterro/ Florianópolis. Porto Alegre, 1999. 333 f. Tese (Doutorado em
História) - PUCRS, Inst. de Filosofia e Ciências Humanas; e LANER, Carla.
Emanações Perniciosas Moralidade Corrosiva: Os desdobramentos do
discurso científico no centro urbano de Nossa Senhora do Desterro. (18311864). Florianópolis; Dissertação (UFSC), 2006. Como trabalhei fazendo
serviços de revisão e preparação de originais para o trabalho da
pesquisadora Laura Rótolo,quero aqui lhe fazer uma homenagem, in
memoriam, por ter me levado a refletir sobre muitos fatos da história
cidade em nossas conversas de trabalho, permitindo que eu vislumbrasse
um cotidiano que a história oficial não retratou da Florianópolis do século
XIX. A história aqui narrada - diga-se: de forma literária - é, em parte, fruto
desse vislumbre. Obrigado, mestra!
24
Criação do escritor e novelista Dias Gomes, o personagem central da
novela O Bem Amado, é um prefeito cujo estilo corrupto de (falar e de)
fazer política o atrelou a um extenso anedotário que fez sua fama. Por
extensão, muitos prefeitos no Brasil foram apelidados de Odorico
Paraguaçu (ou comparados a ele). No livro A história das telenovelas, ele é
apresentado como prefeito da fictícia cidade de Sucupira, político
desonesto, mau caráter, anti-herói tragicômico. (REDE GLOBO. A história
das telenovelas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1980).
25
Expressão latina: à cidade e ao mundo.
26
Palavra que remonta ao mito da tecelã lídia Aracne, que, ao desafiar
Atena para uma competição de tecelagem, reproduziu em sua tela os
amores dos deuses. A sua presunção e escolha do tema irritaram a Deusa,
que rasgou a tela e a espancou. Desesperada, Aracne enforcou-se, mas
Atena transformou-a numa aranha (Arakne, em grego). HARVEY, P.
174
Dicionário Oxford de Literatura Clássica e Latina. Trad. De Mário da Gama
Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 50.

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