A questão mitológica

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A questão mitológica
A QUESTÃO MITOLÓGICA
O que chamamos de mitologia grega? Grosso modo e essencialmente, trata-se de um
conjunto de narrativas que falam de deuses e heróis, ou seja, de dois tipos de personagens que as
cidades antigas cultuavam. Nesse sentido, a mitologia está próxima da religião: ao lado dos rituais,
de que os mitos às vezes tratam de forma muito direta, ora justificando-os no detalhe dos
procedimentos práticos, ora assinalando seus motivos e desenvolvendo seus significados, ao lado dos
diversos símbolos plásticos que, ao atribuírem aos deuses uma forma figurada, encarnam sua
presença no centro do mundo humano, a mitologia constitui, para o pensamento religioso dos gregos,
um dos modos de expressão essenciais. Se a suprimirmos, talvez façamos desaparecer o aspecto mais
apropriado para nos revelar o universo divino do politeísmo, uma sociedade com um além múltiplo,
complexo, ao mesmo tempo rica e ordenada. Isto não significa, contudo, que podemos descobrir nos
mitos, reunidos em forma de narrativas, a soma do que um grego devia saber e considerar verdadeiro
sobre seus deuses, o seu credo. A religião grega não é uma religião do livro. Afora algumas correntes
sectárias e marginais, como o orfismo, ela não conhece texto sagrado ou escrituras sagradas, nos
quais a verdade da fé se encontraria definida e depositada uma vez por todas. Não há lugar, dentro
dela, para qualquer dogmatismo. As crenças que os mitos veiculam, enquanto acarretam a adesão,
não possuem nenhum caráter de força ou de obrigação; elas não constituem um corpo de doutrinas
que fixam as raízes teóricas da piedade, assegurando aos fiéis, no plano intelectual, uma base de
certeza indiscutível.
Os mitos são outra coisa: são relatos - aceitos, entendidos, sentidos como tais desde nossos
mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem, uma dimensão de "fictício",
demonstrada pela evolução semântica do termo mythos, que acabou por designar, em oposição ao
que é da ordem do real por um lado, e da demonstração argumentada por outro, o que é do domínio
da ficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração (e de narração livre o bastante para que, sobre um
mesmo deus ou um mesmo episódio de sua gesta, versões múltiplas possam coexistir e ser
contraditórias sem escândalo) relaciona o mito grego ao que chamamos de religião, assim como ao
que é hoje para nós a literatura.
Mas vamos ser claros. Não queremos dizer que os mitos, para os antigos, pertenciam à
fantasia gratuita e que, inventados de ponta a ponta ao sabor de um imaginário individual ou coletivo,
não poderiam, no plano religioso, ter pretensões de maior seriedade ou suscitar maior credibilidade
do que contos da carochinha. Pretendemos, ao contrário, convidar o leitor, se desejar penetrar na
mitologia grega, a sair dos quadros de pensamento que lhes são costumeiros: entre a literatura e a
religião, bem como entre a narrativa fictícia e a verdade do que é contado, entre a fabulação do mito
e a autenticidade do divino implicado na narração, não existia, nos tempos arcaicos da Grécia, esse
corte, essa incompatibilidade que somos levados a estabelecer. Em um sistema religioso sem Igreja,
sem corpo sacerdotal, sem especialistas das questões divinas, sem doutrina revelada ou livro de
referência, quem poderia falar sobre os deuses - afora as tradições orais que só estão acessíveis para
nós uma vez fixadas, de uma forma ou de outra, pela escrita -, quem poderia formular o divino com
palavras, a não ser a classe de pessoas cuja função era produzir o tipo de discurso por meio do qual a
sociedade grega se expressou e se reconheceu, nas diferentes etapas de sua cultura: o canto épico
primeiro, depois as múltiplas formas de poesia lírica e coral, os hinos, as obras trágicas, as cômicas em suma, todos aqueles aos quais os gregos, com Platão, atribuem a categoria de poetas? A teologia
antiga também é, assim, essencialmente uma poesia, o discurso sobre os deuses também é uma
narrativa mítica. Ë na forma de relatos que contam suas aventuras lendárias, ao longo de
acontecimentos dramáticos que, desde seu nascimento, marcam a carreira dos deuses que as
Potências do além são visadas, expressas, pensadas, em suas relações recíprocas, nas zonas de ação
que lhes são atribuídas, nos tipos de poder que as caracterizam, em suas oposições e seus acordos, em
seus modos particulares de intervenção sobre a terra e de afinidade com os homens.
Neste sentido, ocorre com a mitologia dos gregos o mesmo que ocorre com a representação
figurada de seus deuses. Ambas operam no registro que batizamos de antropomorfismo. A
organização e o equilíbrio da sociedade divina – seu modelo de funcionamento, em suma - são
evocados por meio das rivalidades, dos conflitos que a dividem até provocar, às vezes, uma guerra
sem descanso, amizades que se criam, casamentos celebrados, nascimentos, filiações que tecem,
entre os diferentes âmbitos divinos, laços de parentesco, competições pelo poder, fracassos e vitórias,
provas de força entre rivais ou partilha das honrarias entre aliados fiéis e seguros. Entretanto, assim
como uma estátua antropomórfica de Apoio, um koûros nu, não é o retrato do deus e sim uma forma
de dar a ver, na forma do corpo humano, os valores propriamente divinos que são apanágio dos
Imortais e cujo reflexo apenas ilumina o corpo dos homens, na flor da idade, para logo apagar-se: a
juventude, a beleza, a força equilibrada, da mesma forma não devemos aceitar como certos todos os
fatos e escândalos com os quais os poetas gostam de enfeitar a gazeta do Olimpo. Porque transpõem
para a linguagem dos homens o que pertence ao domínio dos deuses, os relatos não devem ser
tomados ao pé da letra. É preciso, contudo - e é realmente preciso - levá-los a sério. Com efeito, por
mais livre que seja a transposição, ela obedece a regras suficientemente estritas para permitir, dentro
e pelo relato, dirigir-se para as Potências divinas, localizar sua posição com relação umas às outras e
seu estatuto com relação aos humanos. Um único exemplo: vamos escolhê-lo em nosso texto mais
antigo e em muitos sentidos menos "teológico", a Ilíada. Quando Homero conta o episódio dos
amores ilícitos de Ares e de Afrodite, pegos como ratos na ratoeira pela rede de Hefesto em flagrante
de adultério, na frente de todos os deuses reunidos, o poeta estabelece, com seu próprio relato, uma
distância irônica o bastante para mostrar que o está tratando no tom do jogo, até mesmo da piada; isto
significa que ele seria o primeiro a reconhecer que existem outras formas de contar a fábula e de
variar seu entrecho. Mas toda versão, como a dele, deveria traduzir, no modo cômico ou dramático,
algumas características que fazem das divindades implicadas no roteiro uma tríade de Potências
ligadas por relações definidas de oposição e de complementaridade. Hefesto, o mágico, senhor das
redes, capaz de amarrar o ser vivo em uma imobilidade de pedra bem como libertar a vida animando
a matéria inerte; o metalúrgico também, intimamente associado a Afrodite pela graça, pelo encanto,
pela kháris de sedução que a deusa encarna e cujo esplendor a habilidade do deus sabe captar para
fixá-lo em obras de arte fascinantes, cheias de vida, que sua arte consegue produzir; Ares e Afrodite,
associados igualmente, mas de outra forma, como se combinam entre os homens o amor e o ódio, o
casamento e a guerra, como se ajustam no cosmos as potências de concórdia e de conflito, de
harmonia e de luta; Hefesto e Ares, por fim, contrastando como a inteligência, a habilidade astuciosa
do artesão, e a força bruta, a violência cega do guerreiro; num, a velocidade na corrida, a rapidez do
combatente "de pés ligeiros", no outro, o mau jeito manco do estropiado, do disforme de pés retorcidos. Mas é o deus de passos ziguezagueantes, de progressão sinuosa que chega direto ao seu
objetivo: o campeão invencível na corrida é aquele que acaba, ao lado de Afrodite, imobilizado,
paralisado pêlos sortilégios escusos do manco.
Em meio ao prazer provocado por um relato totalmente humano, a ficção narrativa opera
segundo um código cujas regras, para uma determinada cultura, são rigorosas. Esse código comanda
e orienta o jogo da imaginação mítica; delimita e organiza o campo no qual ela pode se produzir,
modificar os velhos esquemas, elaborar novas versões; é tirando proveito dos limites que impõe bem
como das compatibilidades que permite, explorando a gama das direções abertas, que se efetua o
trabalho de invenção narrativa e que, pela retomada contínua da tradição, um pensamento mítico, em
uma civilização, permanece vivo.
Permanecer vivo, no entanto, não significa apenas que a mensagem veiculada pelas
narrativas continua a ser entendida, com todas as suas implicações e em todos os níveis. Quer
também dizer que o campo da mitologia está sempre constituindo o lugar onde as crenças religiosas
podem se explicitar, onde elas se perpetuam expressando-se no modo e na forma de narrativas
elaboradas. Nesse sentido, a mitologia constitui o assunto de um debate que a ultrapassa; aparece
atravessada por polêmicas que não usam, como os filósofos, as armas da discussão argumentada, da
refutação, mas operam por uma organização diferente dos materiais da fábula. Quando comparamos,
por exemplo, as teogonias órficas ao esquema hesiódico tradicional, quando confrontamos diversas
versões do mito de fundação do sacrifício, percebemos que as modificações da intriga podem corresponder a divergências fundamentais de orientação teológica. Os deslocamentos na tessitura da
narrativa, a modificação radical da ordem das seqüências traduzem às vezes atitudes contraditórias
frente ao divino, outra concepção das relações entre o homem e os deuses, a adesão a universos
religiosos diferentes que dirigem práticas de culto e modos de vida incompatíveis. A mitologia também demonstra, assim, oposições entre correntes religiosas que se confrontam, entre grupos de
crentes que competem dentro de uma mesma cultura.
21. A LONGA VIDA DOS DEUSES GREGOS
Os deuses gregos tiveram uma vida longa, foram objeto de culto durante quase dois
milênios, desde o século XV a. C., quando os escribas a serviço de senhores aqueus (os primeiros
gregos instalados na Hélade) inscreviam os nomes de alguns deles em tabuletas em linear B na
Cnossos cretense, até o século IV da era cristã, no momento em que o cristianismo, pela graça de
Constantino, tornou-se religião oficial do Império Romano. Entre estas datas tão distantes, crenças e
cultos certamente se modificaram assim como os outros componentes da vida social, mas as figuras
mais importantes do panteão permaneceram em seu lugar. Com variantes segundo os momentos, os
lugares, as cidades, a sociedade do além sempre assemelhou-se, aos olhos dos gregos, em equilíbrios
relativamente estáveis, aos membros de uma família divina cujo retraio brilhante a epopeia homérica
delineou desde o século VIII.
As Potências principais
No topo do Olimpo, dominando o universo, encontramos Zeus soberano, senhor do Céu,
Pai dos deuses e dos homens, com sua esposa legítima, a irascível Hera, a rainha, sua própria irmã;
depois, os dois irmãos do príncipe: Posídon, senhor de todas as águas, dos rios, do mar, do rio
Oceano cujo fluxo cerca o mundo, Abalador do solo, senhor dos cavalos; e Hades, cujo destino é
reinar sobre o mundo subterrâneo e o povo dos mortos, nas Trevas que a luz do dia jamais atravessa.
Irmã de Hera e dos três deuses que partilham o mundo, Deméter fornece os frutos da terra
cultivada e os benefícios da civilização; associada, como a mãe e filha, a ^órê-Perséfone (soberana
dos Infernos ao lado de Hades), ela apadrinha os mistérios que prometem aos iniciados um destino
melhor nesta vida e na outra.
A geração seguinte traz os filhos de Zeus e de Leto: o rapaz, Apoio, profeta inspirado,
músico, purificador das máculas, dos crimes de sangue, dos pecados religiosos, deus da palavra exata
e da justa expiação, tendo em mãos o arco e a lira; a moça, Ártemis, virgem caçadora, selvagem
graciosa e inquietante: todos os animais lhe pertencem e os jovens rapazes e moças; percorrendo as
terras incultas, nos confins da cidade, ela opera sobre as margens; cuida para que sejam respeitadas,
embora ajude a ultrapassá-las, as fronteiras que separam os animais dos homens, o selvagem do
civilizado, a juventude da idade adulta. Duas outras deusas, destinadas como Ártemis a uma
castidade completa, recusam o estatuto de esposa: Atena e Héstia. Filha preferida de Zeus (surgiu,
armada, de sua cabeça), a virgem Atena triunfa em todos os trabalhos, pacíficos e guerreiros, que
exigem a prudência refletida, a reflexão sutil, o engenho: este poder mental vem de sua mãe, a
Oceânida Métis, a Inteligência astuciosa que Zeus, para assimilá-la por completo, engoliu após havêla engravidado. Irmã de Deméter e de Hera, Héstia é a terceira deusa que ficará para sempre moça;
permanece no centro de cada lar no fogo doméstico, de cada cidade no fogo comum, no Prytaneîon;
seu papel é fechar o grupo humano sobre si mesmo, família ou comunidade política, torná-lo um
centro estável, permanente, circunscrito, um "dentro" no qual se acumulam, sob a guarda da deusa, as
riquezas entesouradas no fundo do lar.
Associada a Héstia e seu contrário e complemento, Hermes, bastardo de Zeus unido a
Maia, uma ninfa, é um deus de fora, viajante, móvel, sempre se mexendo como as cabras e os
carneiros dos quais é responsável. Pastor, guia, arauto, embaixador, mensageiro, comerciante, ele
apadrinha os contatos, as trocas - de palavras e de riquezas —, as transações e transições de todo
tipo. Atravessando muros e portas, ultrapassando as fronteiras, conduz os vivos até a morada dos
mortos; faz passar da vigília ao sono; preside no quarto nupcial que transforma a virgem em mulher
casada, vigia, em um incessante ir e vir, o caminho que leva dos deuses aos homens.
Filhos legítimos de Zeus e de Hera, Hefesto e Ares não são dos melhores. Mal vindo, mal
recebido, o primeiro tem as pernas tortas, um pé retorcido, o andar oblíquo; deus artesão,
metalúrgico, senhor do Fogo, mágico, ele se une, apesar de ser todo torto, a deusas cuja beleza
lembra o brilho sedutor das maravilhas que sua maestria e sua habilidade inigualáveis produzem.
Dizem que é esposo de Afrodite, a Brilhante, a Dourada, divindade cujo poder submete ao Amor e ao
Desejo todos os seres, deuses, homens, animais, para conjugar os sexos opostos e harmonizar os
contrários. Ares é um ser irracional, um louco furioso que encarna, na guerra, a violência brutal, a
carnificina, a selvageria cega do combate; também é par de Afrodite: o deus que divide e opõe vai
encontrar no segredo um leito adúltero, a deusa que harmoniza e une.
Dioniso é um deus à parte. Filho de Zeus e de uma mortal, Semeie, ocupa até mesmo no
panteão o lugar do "estranho estrangeiro". Entre os deuses e entre os homens, assume a figura do
Outro. Ao mesmo tempo terrível e gentil com os mortais, ora os lança na loucura, na mácula, no
crime, ora lhes oferece a fuga do cotidiano, a alegria, a beatitude. Para as mulheres que impelia a
fugirem de suas casas, de suas famílias, de seus trabalhos, para entregá-las aos devaneios na montanha, oferece o delírio extático, o transe coletivo de seu tirso; aos homens, oferece o vinho, a
embriaguez, o travestimento, o carnaval, a inversão das regras comuns de conduta no cortejo
exuberante de seu kômos. É patrono do teatro onde, no palco, a ficção aparece como se fosse
verdade. Em todos os lugares onde aparece, apresentando sua presença imperiosa, confunde por sua
magia as fronteiras entre o real e o ilusório; abole a distância que separa o homem dos deuses e dos
animais: para seus fiéis, oferece a volta a um estado de comunhão bem-aventurada entre todos os
seres, para a felicidade de uma idade de ouro reencontrada; mas para quem faz pouco dele, lega a
queda na selvageria e na demência de uma confusão caótica.
Os outros deuses do panteão
Outros deuses acompanham estas potências principais: Gê ou Gaia, a Terra, Mãe universal
por sua união com Urano, o Céu, e Ponto, a Onda marinha; sua filha, a Urânida Réia, que gera na
cama de seu irmão Crono toda a linhagem dos Olímpios; duas irmãs de Réia (Têmis, princípio de
estabilidade e de ordem, na natureza e na vida social; Tétis, a esposa do Oceano, tão ondulante e
diversa quanto Têmis é fixa e constante); Asclépio, filho de Apoio, curandeiro e médico; Pa, filho de
Hermes, senhor dos pastores e dos rebanhos, de aspecto meio humano, meio caprino (persegue e
assedia as ninfas, companheiras de seu pai e de Artemis; mescla-se aos sátiros e silenos no cortejo de
Dioniso; o canto de sua siringe convida aos prazeres do amor, mas o deus-animal também pode
provocar o pavor do pânico); par de Réia, Cibele, a Grande Mãe, vinda da Ásia Menor com seus
cultos orgíacos; Héracles, por fim, herói de resistência e figura do excesso, divinizado ao cabo de
seus trabalhos. Seu culto, heróico e divino, é praticado em todas as cidades gregas.
Esta pluralidade de deuses confere ao paganismo antigo uma série de características que o
opõe às religiões monoteístas. Nenhuma divindade é todo-poderosa e onisciente; nenhuma aparece,
na perfeição de uma transcendência absoluta, como totalmente estranha e exterior ao mundo. Cada
deus ocupa, em solidariedade com os outros, seu lugar em um conjunto de poderes diferenciados,
com seu domínio e função próprios, seus modos de ação particulares. Nesse sentido, um panteão
constitui um modo de pensar, de distinguir, de classificar os fenômenos naturais, sociais, humanos,
ligando-os às diversas Potências que neles se manifestam e que os comandam. Os deuses operam
assim no mundo, cujo estrato superior ocupam e que governam conforme uma ordem cuja equidade é
garantida por Zeus e cuja permanência ele assegura. O que separa radicalmente a condição divina da
existência terrestre que homens e animais compartilham, é que ela desconhece as doenças, o
sofrimento, a velhice e a morte. Sempre vivos, sempre presentes em seu invisível esplendor, como os
astros que brilham no céu, os deuses são os bem-aventurados sempre jovens, os athánatoi, os nãomortais. O culto que os homens observam para eles traduz a submissão do fraco ao forte, do inferior
ao superior. Cumprir os ritos é, no respeito e na gratidão, honrar os deuses como o súdito deve honrar
seu senhor.
Um sagrado onipresente
Neste sistema, o religioso não está confinado em um setor à parte: exerce-se em todas as
instituições, em todas as práticas, públicas e privadas, das quais constitui a dimensão fundamental.
Assim, não existe uma oposição simples e radical entre o sagrado e o profano, mas temos um sagrado
onipresente que adota formas diversas, desde o sagrado totalmente proibido e intocável até o sagrado
cujo uso pleno dentro de limites permitidos, quando não o inteiro dispor, os deuses deixaram aos
homens. No entanto, esta religião é arredia a toda forma de revelação e não conhece profeta ou
messias. Tem raízes em uma tradição que engloba, intimamente mesclados a ela, todos os outros
elementos constitutivos da civilização helênica, desde a língua, os gestos, os modos de viver, de
sentir, de pensar, até as normas e os valores - em suma, os usos e as regras da vida co-letiva assim
como os outros componentes da cultura. Essa tradição religiosa, feita de narrativas lendárias, de atos
cultuais (particularmente os ritos sacrificiais), de representações figuradas do divino (especialmente a
grande estátua antropomórfica que encarna a presença do deus em seu templo), não tem um caráter
dogmático. Desprovida de uma casta sacerdotal, de uma Igreja ou de um clero especializado (os
sacerdócios são magistraturas e toda magistratura possui um caráter religioso), ela não conhece
nenhum livro sagrado no qual a verdade se encontraria fixada para sempre. Não implica um credo
que impõe aos fiéis um conjunto de crenças indiscutíveis.
Nos quadros da religião política própria da Grécia das cidades, crenças e cultos satisfazem
a uma dupla exigência. Correspondem, em primeiro lugar, ao particularismo de cada grupo humano
que, como cidade ligada a um território definido, coloca-se sob os auspícios de deuses e de heróis
que lhe são próprios e que lhe conferem sua fisionomia religiosa singular. Com efeito, toda cidade
possui sua ou suas divindades políadas e seus heróis enterrados in loco, cuja função é consolidar o
corpo dos cidadãos para fazer dele uma comunidade autêntica, unir em um mesmo todo o conjunto
do espaço cívico, com seu centro urbano e sua khõra, sua zona rural, cuidar enfim da integridade do
Estado - os homens e o território - frente às outras cidades. Mas trata-se, em segundo lugar, com o
desenvolvimento de uma literatura épica separada de toda raiz local, com a edificação de grandes
santuários ou oráculos comuns, como em Delfos, com a instituição dos jogos e panegíricos panhelênicos, como em Olímpia, de instaurar ou de confirmar tradições lendárias, ciclos de festas e um
panteão igualmente reconhecidos por toda a Hélade.
Ao lado do culto cívico desenvolveram-se correntes e grupos, mais ou menos marginais e
secretos, que traduziam aspirações religiosas diferentes. Alguns foram em parte ou inteiramente
integrados às instituições da cidade, como os mistérios de Elêusis ou o dionisismo; outros, como os
cultos órficos, continuaram estranhos a ela. Todos contribuíram para abrir o caminho para um
"misticismo" grego marcado pela procura de um contato mais direto e íntimo com os deuses. Mas a
busca de uma imortalidade feliz, a esperança de libertar, já nesta vida ou após a morte, a parcela de
divino que permaneceu presente em cada criatura humana chocavam-se com a sabedoria religiosa
dos gregos, para a qual ninguém deve tentar igualar-se à divindade.
22. COSMOGONIA
Desde a alta idade arcaica, os gregos devem rn ter conhecido tradições múltiplas e
divergentes de mitos cosmogônicos. Encontramos em Homero o rastro de algumas delas. Na Ilíada,
por duas vezes, o poeta atribui a Oceano e a Tétis títulos que os qualificam como o par divino
primordial. Oceano é primeiro chamado de origem dos deuses (ou pai gerador), theõn génesis, sendo
Tétis sua mãe (XIV, 200; cf. 302); mais adiante, a mesma expressão é retomada e ampliada: Oceano
é o pai original, pántessi (XIV, 246), de todas as coisas e de todos os seres. Platão e Aristóteles já
atribuíam a esses trechos um alcance cosmogônico; antes de Tales, que faria da água o princípio do
qual tudo surgiu, Homero teria colocado, na origem dos deuses e do mundo, o elemento líquido
(Teeteto, 152 e; Metaf. A 3, 983 b, 27). Podemos pensar que, na Grécia, como em muitas outras
civilizações, esse valor "primordial" atribuído às potências aquáticas está relacionado ao caráter
duplo das águas doces: a fluidez e a ausência de forma predispõem-na em primeiro lugar a
representar o estado original do mundo onde tudo estava uniformemente diluído e confundido em
uma mesma massa homogênea; sua virtude vivificante e geradora - a vida e o amor estão
relacionados, para os gregos, ao elemento úmido - explica em segundo lugar que elas guardam em
seu seio o princípio das gerações sucessivas. Na epopéia, contudo, Oceano e Tétis não definem
apenas o estado inicial do mundo e o poder que preside a sua geração. Eles continuam a existir no
universo organizado, mas foram relegados a suas fronteiras, rechaçados para seus limites extremos.
Além disso, o casal está separado: Oceano e Tétis não dormem mais juntos (XIV, 304-306 e 205207), o que é uma forma de dizer que sua atividade de geração acabou, que o cosmos, como
sociedade divina organizada sob o reinado de Zeus, encontrou sua forma e sua estabilidade
definitivas. Deveremos concluir que o casal das divindades primordiais passa a não ter mais o que
fazer, que sua presença, nas fronteiras do mundo, serve apenas para evocar a lembrança de um
passado distante? Parece, ao contrário, que o papel que lhes é atribuído na origem da génese
determina seu lugar e sua função quando esta termina no universo diferenciado e ordenado dos
deuses Olímpios. Oceano é a corrente de água viva que circula ao redor do mundo, que o cerca de
um fluxo incessante como um rio cujas águas, após um longo percurso, voltariam às fontes das quais
nasceram para alimentá-las sem fim. Nas extremidades do cosmos, Oceano determina os peírata
gaíës (XIV, 200 e 301), os limites da terra, e estes são concebidos como laços que mantêm o
universo unido. A imagem de um rio circular fechando o mundo como um laço não funciona apenas
no plano horizontal, quando vemos todos os dias o sol e os astros emergirem de Oceano em seu curso
para mergulhar novamente nele ao se porem. Este banho coti-diano nas águas primordiais fornecelhes um vigor e uma juventude sempre renovados. Indicações míticas, na verdade fragmentárias,
mostram que as fontes, as bacias, os poços, os rios que trazem a vida para a superfície do solo
alimentam-se também nas águas de Oceano, o que supõe que estas, ou ao menos uma parte delas,
circulam no subterrâneo enquanto outras enrolam-se em torno do mundo (//. VIII, 478; Od. IV, 563;
X, 511; XI, 13 sq.; Hesíodo, Teog., 788). Além disso, podemos nos perguntar se as águas celestes
não estariam, por sua vez, ligadas ao curso de Oceano (Aristóteles, Meteor., 347 a, 10; Etym. Magn.,
821, 8), que uniria assim a totalidade do cosmos, de alto a baixo, do levante ao poente, nas redes
líquidas de seu fluxo. O desenvolvimento temporal de uma génese que faz emergir progressivamente
o mundo a partir das águas primordiais se articularia assim exatamente a partir do esquema espacial
de um universo cercado por todos os lados pelas mesmas águas de onde nasceu, sendo que seu curso
sinaliza os limites do mundo enquanto serve de reservatório inesgotável para sua vitalidade. Esse
modelo, ao mesmo tempo cosmogônico e cosmológico, embora verificado claramente em outros
lugares, não se apresenta, na tradição grega, na forma de uma exposição sistemática; percebemos
elementos esparsos, como se tradições concorrentes e paralelas tivessem deixado sobrar apenas
cacos. No próprio Homero, outro trecho parece claramente conferir a Nyx, a Noite, a autoridade e o
poder que Zeus, por mais soberano que seja, deve reconhecer a uma Potência primordial, anterior a
seu reinado (//., XIV, 258). Nas cosmogonias órficas, na verdade, Noite, como entidade original,
tomará o lugar de Oceano e de Tétis — desta forma, o tema das Trevas, onde tudo permanece
confundido antes de emergir à luz, passa a substituir o tema da fluidez das águas. Ambos os temas,
aliás, não são excludentes; possuem afinidades suficientes entre si para que se confundam às vezes.
A escuridão noturna reina na profundeza das águas, assim como a Noite é feita, para os gregos, de
uma bruma de umidade, de uma névoa sombria e opaca.
A publicação de um papiro de comentários de um poema cosmogônico de Alemã em 1957
confirma que, desde o século VII antes de nossa era, a poesia podia inspirar-se de tradições míticas já
muito sofisticadas, em que as águas primordiais encontravam-se estreitamente unidas à Noite
original. No começo do mundo, Alemã situa a Nereida Tétis, divindade marinha como Tétis, esposa
de Oceano, apresentada geralmente como sua avó. Nereida Tétis possui o mesmo poder de adotar
todas as formas, a mesma inteligência ardilosa da Oceânida Meus, promovida ao estatuto de grande
divindade primordial nas cosmogonias órficas. As duas potências divinas funcionam, em muitos
sentidos, como um par. Tenebrosa deusa dos fundos marinhos, Tétis a Sombria, Kyanéa, é associada,
em Alemã, a três entidades: Escuridão (Skótos) que reinava só no início, quando tudo permanecia
informe e indiscernível; em seguida, solidários entre si, Poros e Ték-mor, que surgem enquadrando
Tétis logo que ela aparece no seio da noite das águas primordiais — águas que representa como
deusa marinha, mas que ultrapassa devido a sua capacidade e a sua inteligência de antever o futuro
antes que ele aconteça. Poros — a via, o trajeto, a saída — e Tékmor — o sinal, o indício, a
referência - agem como princípios inteligentes de diferenciação: fazem surgir direções precisas e
diversificadas; com efeito, traçam as vias por onde o sol poderá, ao caminhar, trazer a luz do dia, e as
estrelas desenhar no céu noturno as rotas luminosas das constelações. O mundo ordena-se na medida
em que, pelo traçado visível dos movimentos celestes, pela sinalização clara das diversas partes do
horizonte, a escuridão confusa de uma massa líquida dá lugar a uma extensão organizada, delimitada,
orientada, na qual o homem, em vez de se perder, encontra o contexto e os pontos de referência para
observar, conjecturar, analisar, prever, em suma, situar-se no lugar conveniente.
Mas, com relação a essas tradições um pouco secundárias, marginais ou explodidas, o
poema teogônico de Hesíodo apresenta-se tal como nos foi transmitido em sua forma de obra
completa e sistemática, como o testemunho central, o documento mais importante de que dispomos
para entender o pensamento mítico dos gregos e suas orientações mestras no campo cosmogônico.
O primeiro problema é saber exatamente em qual registro devemos situar a leitura desse
texto. Não podemos tratá-lo como uma simples fantasia literária, embora ele se inscreva na linhagem
de uma literatura que a escrita já começou a fixar e encontremos nela uma série de elementos e
formulações tomados à tradição homérica. Podemos contudo mostrar que, até mesmo onde os
empréstimos são mais diretamente verificados, o valor das formulações - trechos de versos, versos
inteiros ou grupos de versos - é modificado por ligeiros afastamentos para produzir, ao distanciar-se
do modelo, o efeito de sentido diferencial que o projeto, não mais épico e sim teogônico, do poeta,
exige. Também não se deve ler Hesíodo à luz dos sistemas filosóficos posteriores: eles supõem a
elaboração de um vocabulário conceptual e de modos de raciocínio diferentes daquele do poeta
beócio. Seu discurso não deixa contudo de traduzir um poderoso esforço de abstração e de
sistematização, que no entanto se exerce em outro plano e segundo uma lógica diferente da filosofia.
Encontramo-nos, assim, frente a um pensamento estranho às categorias que conhecemos: ao mesmo
tempo mítico e erudito, poético e abstraio, narrativo e sistemático, tradicional e pessoal. Esta
especificidade cria a dificuldade e o interesse da Teogonia hesiódica.
Trata-se de fato de uma teogonia, posto que é a raça venerada dos deuses que Hesíodo
canta, sob inspiração das Musas que, enquanto ele pastoreava seus cordeiros aos pés do monte
Hélicon, revelaram-lhe a "Verdade", ensinaram "tudo o que foi e tudo o que será" (22 e 32). Seu
relato reproduz fielmente o canto das Musas, aquele com o qual encantam os ouvidos do soberano
dos deuses celebrando sua glória, ou seja, reatualizando incessantemente pela palavra sua genealogia,
seu nascimento, suas lutas, suas proezas, seu triunfo. A narrativa hesiódica, assim, é
indissoluvelmente uma teogonia que expõe a sequência das gerações divinas e um amplo mito de
soberania, relatando de que forma, por que combates, contra que inimigos, por que meios e com que
aliados Zeus conseguiu estabelecer sobre todo o universo uma supremacia de realeza que fundamenta
a ordem presente do mundo e que assegura sua permanência.
Mas esta palavra de louvor, para ser plenamente eficaz, deve buscar a gesta divina em seu
início, remontando à origem primeira, ex arkhês (45); ela se enraíza então em um tempo em que Zeus
e os outros deuses Olímpios, objetos do culto, ainda não existiam. O relato começa com a evocação
de Potências divinas cujos nomes, o lugar, o papel marcam o significado cósmico. Estes deuses "primordiais" ainda estão bastante envolvidos nas realidades físicas que evocam para que não se possa
separá-los do que chamaríamos hoje de forças ou elementos "naturais". Antes do universo se tornar
cena de lutas pela soberania entre os deuses propriamente ditos, é preciso que o quadro em que estes
combates vão se desenrolar seja elaborado, o cenário deve ser colocado. É essa parte do texto de
Hesíodo, prelúdio da entrada em cena dos Titãs, primeiros deuses "da realeza", que constitui o estrato
propriamente cosmogônico no seio da Teogonia.
"Então antes de tudo veio a ser Nada (Kháos), escreve Hesíodo, mas depois Terra de ancas
largas (Gaia eurysternos), base para sempre segura para os Imortais que ocupam o topo do Olimpo
nevado e o Tártaro de bruma sombria, nas profundezas do subsolo de amplas estradas - e também
Amor (Eros), o mais belo dos deuses imortais, aquele que fatiga os membros" (116-121). Caos,
Terra, Amor: esta é a tríade de potências cuja génese antecede e introduz todo o processo de organização cosmogônica.
Como devemos entender este Kháos que Hesíodo faz nascer primeiro? Foi interpretado —
e já pêlos antigos — em termos de filosofia: viu-se nele ora o vazio, o espaço como puro receptáculo,
a abstração do lugar privado de corpo (Aris-tóteles, Phys., 208 b, 26-33)1, ora, como os estóicos, um
estado de confusão, uma massa na qual se encontram indistintamente mesclados todos os elementos
constitutivos do universo, uma sygkhysis stoikheíõn, aproximando Caos de khéesthai: verter,
espalhar. Mas estas duas interpretações pecam por anacronismo. Além disso, se Caos define o vazio,
a pura negatividade, como admitir que este nada possa nascer (géneto)l Em uma perspectiva
semelhante, fez-se de Caos o equivalente do que a epopeia chama de aër, ou seja, uma bruma, úmida,
sombria, não compacta. Ninguém discordará que estes aspectos encontram-se presentes em Caos.
Mas identificar Caos com o aér enquanto elemento, no sentido que este termo adota, com
Anaxímenes, nas cosmogonias jónicas, cria diversas dificuldades. Em primeiro lugar, o próprio
Hesíodo distingue aér de Caos (697-700); depois, Érebo e Nyx, mais próximos dos valores de aér,
nascem precisamente de Caos, que é assim, tanto lógica como cronologicamente, anterior.
Podemos tentar também uma interpretação "mítica" - e de diversas formas. Caos designaria
o espaço entre o céu e a terra2; ao nomeá-lo para começar, Hesíodo anteciparia a seqüência de seu
relato no qual, mutilado pelo golpe de foice castrador deferido por seu filho Crono, Urano-Céu
afasta-se para sempre de Gaia-Terra. O espaço aéreo seria assim evocado duas vezes ao longo do
texto: no começo, antes mesmo do surgimento de Gaia; depois, após a criação de Gaia e de Urano
separados um do outro, como intervalo que se abre entre eles. Mas o que poderia ser o espaço entre
céu e terra quando ainda não existiam céu e terra?
Deveríamos então imaginar Caos como um buraco sem fundo, um espaço de errância
indefinida, de queda ininterrupta semelhante ao imenso abismo, o mêga khásma do verso 740, na
descrição do Tártaro: desta abertura imensa, dizem que não se chegaria ao fundo, nem ao cabo de um
ano, mas que não deixaríamos de sermos levados de um lado, depois de outro, em todos os sentidos,
por ventanias cujos sopros misturados confundem todas as direções do espaço.
Na verdade, para entender o advento de Caos, é preciso situá-lo em suas relações de
oposição e de complementaridade com Gaia, expressas na formulação prõtista... autàr épeita: "no
início [era Caos]... mas depois [Terra]". O termo caos está ligado, do ponto de vista etimológico, a
kháskõ, khandánõ, bocejar, abrir-se. A Abertura que nasce antes de todas as coisas não tem fundo
como não tem pico: é ausência de estabilidade, ausência de forma, ausência de densidade, ausência
de cheio. Enquanto "cavidade" é menos um lugar abstraio - o vazio - do que um abismo, um
turbilhão de vertigem que se abre indefinidamente, sem direção, sem orientação. Entretanto, como
"abertura", desemboca no que, ligado a ela, é também seu contrário. Gaia é uma base sólida para
andar, uma base em que se apoiar; tem formas cheias e densas, uma altura de montanha, uma
profundidade subterrânea; não é apenas o solo a partir do qual o edifício do mundo vai se construir; é
a mãe, a anciã que gerou tudo o que existe, sob todas as formas e em todos os lugares, com exceção
de Caos e de sua linhagem, que constituem uma família de Potências inteiramente separadas das
outras.
A vocação estabilizadora, geradora e organizadora de Gaia, se traduz por qualificativos que
lhe são atribuídos desde o início: é uma sede para sempre sólida para os Imortais; primeiro por seus
montes que ergue para cima em direção ao céu (sede dos Olímpios); em seguida por suas
profundezas que a prolongam para baixo (sede dos Titãs, deuses subterrâneos, hypokhthónioi).
Estável e segura em sua vasta superfície, estendendo-se verticalmente nos dois sentidos, Gaia não é
apenas o contrário, a réplica positiva do sombrio Caos; é também seu par. Do lado do céu, é coroada
pela branca luminosidade das neves; mas para baixo, mergulha, para enraizar-se nelas, nas trevas
escuras do Tártaro que representa em seu fundamento, no plano espacial, a mesma abertura original,
o mesmo abismo vertiginoso, a partir do qual e contra o qual ela se constituiu no início dos tempos.
Logo que é nomeada, Gaia apresenta-se, em sua função de base para os deuses, estirada entre os dois
pólos do alto e do baixo, estendida entre seus claros picos nevados e seu sombrio fundo subterrâneo.
Da mesma forma, Caos, assim que aparece, gera dois pares de entidades contrárias: Érebo (Érebos) e
negra Noite (Nyx) primeiro, e depois seus filhos, Éter (Aithër) e Luz do dia (Hemera). Nesse grupo
de quatro, a disposição não é casual. Em cada um dos pares, o primeiro nomeado situa-se da mesma
forma com relação ao segundo: Érebos é para Nyx o que Aithér é para Hêméra. De um lado, um
escuro e um claro, isolados no absoluto de sua natureza; do outro, um escuro e um claro reunidos em
sua mútua rela tividade. Com efeito, Noite e Dia não são dissociáveis; conjugam-se em sua oposição,
cada um implicando a existência do outro, que lhe sucede segundo uma alternância regular. Em
contraste com a claridade e a escuridão relativas de um Dia e de uma Noite que se combinam para
formar a trama do tempo na superfície da terra, Érebo e Éter correspondem às formas extremas e
exclusivas de um Branco e de um Preto que reinam sem divisão no mais alto e no mais baixo. Éter é
o brilho de um céu constantemente iluminado, ignorando tanto a sombra das nuvens como a da noite,
a residência dos deuses bem-aventurados em que o no-turno não tem lugar. Érebo são as Trevas
completas e permanentes, a Noite total que os raios do sol jamais atingirão, a escuridão radical à qual
são destinados, em sua prisão cósmica, os deuses reprovados, além do lugar em que mora Noite
(744), lugar frente ao qual, precisamente, Dia e Noite se encontram, conversam, trocam suas
posições, ajustam-se um ao outro para equilibrar exatamente seu percurso (748-757).
Se de Caos nascem, ao lado de Érebo que é como que seu prolongamento direto, uma Noite
que já está próxima da luz diurna, e principalmente a pura luminosidade de Éter assim como aquela,
mais mesclada, de Dia, não é possível reduzi-lo, como o faz H. Fraenkel, ao não-ser que se opõe ao
ser, ao outro frente ao mesmo ou, como Paula Philippson3, à não-forma, em suma, à pura negatividade. É certo que, se quisermos traduzir em termos filosóficos o problema que imaginamos
subjacente ao discurso cosmogônico de Hesíodo, deveremos formulá-lo, como H. Fraenkel, da forma
seguinte: "Tudo o que é existe pelo fato segundo o qual, espacial, temporal e logicamente repousa
sobre um vazio que não é; ele é determinado pelo que é, ao se definir contra o que não é: o vazio.
Assim, a totalidade do mundo e todas as coisas do mundo, cada qual em seu lugar, tem limites em
que se choca contra o vazio"4. Expressar assim já é interpretar, forçar o texto hesiódico iluminando-o
com a luz conceptual. Dizer que a questão não se coloca nestes termos na Teogonia não seria
suficiente; na verdade, esta questão não é colocada de forma nenhuma. Hesíodo não responde a uma
dificuldade teórica prévia. Convida-nos a reviver um nascimento; conta um processo de génese (géneto). O que vem ao ser é primeiro Abertura e depois Terra. Estas duas Potências estão relacionadas,
não só como os dois aspectos sucessivos de um único e mesmo processo de génese, mas porque a
relação de tensão que as opõe e as une na origem jamais deixa de mantê-las atadas uma à outra. No
universo diferenciado e ordenado, Gaia ainda "está ligada" a Caos que permanece presente, em sua
maior profundidade, em seu centro, como uma realidade contra a qual precisou e ainda precisa se
estabelecer - dando à palavra contra seus dois sentidos: primeiro em oposição a uma Abertura,
afastada, isolada, trancada por um monte de portas, de muros, de muralhas, de tábuas, de pedras
seladas, de porteira de bronze inabalável; mas também apoiando-se em uma Abertura da qual Terra
não pode prescindir tanto para subsistir quanto para nascer.
Assim, a dependência de Gaia frente a Caos é muito mais complexa do que a do ser frente
ao não-ser. Caos não é simplesmente o negativo de Gaia. Ele produz a luz sem a qual nenhuma forma
seria visível. Inversamente, Gaia, que gera tudo o que tem densidade e figura, é também qualificada
de dnopherá (736), epíteto de Nyx (101): é a terra escura, a terra preta. Entre as duas entidades
primordiais, existem passagens, caminhos, encontros que aparecem mais fortes na medida em que
ambas desenvolvem esta dinâmica da gênese que carregam em si devido a seu poder de geração.
Estão ligadas, mas não se unem. Nenhum filho da descendência de Caos dormirá com um filho de
Gaia. São dois estratos que se envolvem e se apóiam reciprocamente sem nunca se mesclar. E se
acontecer de as mesmas entidades se encontrarem em duas linhagens diferentes (como Apátê,
Engano, e Philótês, Carinho amoroso), nunca é fruto de uma mestiçagem e sim marca de que, apesar
de seu contraste, pode haver, de uma Potência primordial a outra, efeitos de ressonância e como que
uma espécie de oscilação.
A presença de Eros, ao lado de Caos e de Gaia, na tríade primordial, não deixa de colocar
alguns problemas. Eros não pode figurar a potência de atração que reúne os contrários, que une o
macho e a fêmea na procriação de um novo ser diferente daqueles que o geraram: Caos e Gaia não se
unem e as gerações que cada um deles produzirá, no início da génese, efetuam-se sem união sexual;
Caos e Gaia tiram de si mesmos os filhos que trazem ao ser. Ademais, quando Hesíodo explicita que
uma divindade dá a luz após ter-se unido sexualmente ou fora desta união, não está dizendo que o
filho foi concebido com a ajuda de Eros ou sem ele, e sim com ou sem philótês (125, 132). Enfim, o
nascimento de Afrodite marca o momento em que o processo gerador passa a ser submetido a regras
estritas, em que acontecerá, sem confusão e sem excesso, pela união momentânea de dois princípios
contrários, masculino e feminino, aproximados pelo desejo mas mantidos à distância pela oposição
de sua natureza. Logo que Afrodite nasce, Hímeros (Desejo) e Eros ajustam-se à deusa que irá
doravante presidir à união sexual, postulada como condição necessária de toda procriação normal.
Mais velho do que Afrodite, à qual se adapta e se associa quando chega a hora, Eros representa uma
potência geradora anterior à divisão dos sexos e à oposição dos contrários. Trata-se de um Eros
primordial como o dos órficos - no sentido em que traduz a potência de renovação que atua no
próprio processo da gênese, o movimento que leva primeiro Caos e Gaia a emergirem
sucessivamente para o ser e depois, assim que nasceram, a produzirem a partir deles mesmos algo
diferente que, embora os prolongue, coloca-se à sua frente - ao mesmo tempo seu reflexo e seu
contrário. Assim se constitui um mundo onde existem, associados e confrontados, parceiros que vão
dar à génese, à medida que se prossegue, um curso dramático, feito de casamentos, de procriações,
de rivalidades entre gerações sucessivas, de alianças e de hostilidade, combates, fracassos e vitórias.
Mas antes que o poema cosmogônico desemboque no relato da grande gesta divina, é
preciso que Gaia, por seu poder de geração, termine de produzir tudo o que ainda falta no mundo
para fazer dele um verdadeiro universo. Gaia dá primeiro a luz ao Céu estrelado (Ouranòs asteróeis);
ela o produz "semelhante a ela" para que ele a cubra e a envolva por todo lugar (126-127). O
desdobramento de Gaia põe, à sua frente, um parceiro masculino que aparece, por sua vez, como a
própria Terra e como Caos, estirado entre a escuridão e a luz: trata-se do sombrio Céu noturno, mas
constelado de estrelas. Este duplo aspecto corresponde ao papel que o Céu será levado a adotar
quando se terá definitivamente distanciado de Gaia: refletir, em claro ou em tenebroso, a alternância
do dia e da noite que se sucedem no intervalo entre a terra e o céu. Porque é igual a Gaia-Terra,
Urano-Céu a recobre exatamente quando se estende sobre ela; talvez seja até mesmo preciso entender
esta igualdade no sentido em que ele a envolve até em suas profundezas estendendo-se em torno
dela. Seja o que for, à tensão primitiva Abertura-Terra, sucede-se um equilíbrio Terra-Céu, cuja
simetria completa faz do mundo um conjunto organizado e fechado sobre si mesmo, um cosmos. Os
deuses bem-aventurados podem habitá-lo como a um palácio com toda segurança (128), cada qual no
lugar que lhe foi reservado. Gaia gera então as altas montanhas que marcam sua afinidade com o
filho Céu que acaba de produzir. Mas quem diz montanhas também diz vales (não existe montanha
sem vale, assim como não existe caos sem terra, terra sem céu, escuridão sem luz). Esses vales
servirão de morada para uma categoria particular de divindades: as Ninfas. Assim como produziu o
Céu estrelado, Gaia gera, enfim, a partir dela mesma, seu duplo e seu contrário líquido, Ponto, Onda
marinha, cujas águas são ora de uma claridade límpida (atrygetos), ora escurecidas por caóticas
tempestades.
Assim se encerra a primeira fase da cosmogonia. Até esse momento, as Potências que
vieram ao ser apresentam-se como forças ou elementos fundamentais da natureza (cf. 106-110). O
teatro do mundo está agora pronto para a entrada em cena de atores divinos de tipo diferente. Gaia
não os produz mais tirando-os de seu próprio fundo. Ela se une com amor a um parceiro masculino
para gerá-los. De um modo de procriação ao outro, a mudança é comparável àquela que faz Gaia
nascer de Caos; em ambos os casos, mesma fórmula do que para expressar a mutação: autàr épeita,
"mas em seguida" (116 e 132).
Dos abraços de Urano, Gaia engendra três séries de filhos: os doze Titãs e Titânides, os três
Ciclopes, os três Cem-Braços (Hekatógkheires). A ninhada dos Titãs compreende seis meninos e seis
meninas. Crono, o mais novo, rival direto de Zeus na luta pelo reino do céu, é nomeado à parte, por
último. O conjunto dos outros encontra-se como enquadrado de um lado por Oceano, citado em
primeiro lugar (logo depois da evocação de Ponto, ao qual se opõe por sua dupla origem: tanto
celeste quanto terrestre), do outro por Tétis, mencionada no final da lista, logo antes de Crono. A
primeira geração dos deuses filhos de Terra e de Céu, enquanto já representam o conjunto do
cosmos, estão como que incluídos no casal Oceano-Tétis. Associada a Febe, a Brilhante, Coiós está
sem dúvida ligado à abóbada celeste, assim como Febe, sua irmã e companheira, à luz celeste. Creias
(ou Crio s), que evoca a superioridade, a supremacia, desposará uma filha de Ponto, Euríbia (375377), Ampla violência, e seu filho Palas gerará com Styx, a Oceânida, as duas Potências que, ligadas
à pessoa de Zeus, assegurarão sua soberania, Krátos, o Poder, e B ia, a Força violenta (385-388).
Hipérion, Aquele que vai para o alto, une-se a sua irmã Teia, a Luminosa ou a Visível, que põe no
mundo o Sol, a Lua, e por fim a Aurora (Eõs), mãe dos astros, da estrela da manhã, dos ventos
regulares. Em certo sentido, Hipérion e Teia lembram Poros e Tékmor, da cosmogonia de Alemã.
Como estes, traduzem, no céu, os aspectos de rotação regular, de traçados luminosos, de
configurações astrais bem delimitadas, que fazem da abóbada celeste um espaço diferenciado e
orientado. Jápeto, unido a Clímene, filha de Oceano, é pai de uma linhagem de rebeldes, Atlas,
Menécio, Prometeu, Epimeteu, todos excessivos em suas ambições, sua força, sua sutileza ou sua
imprevidência. Todos agem à margem da ordem contra a qual se revoltam. Os dois últimos, em suas
brigas com Zeus, causarão a infelicidade dos seres humanos. Têmis e Mnemósine têm mais afinidade
com a terra do que com o céu. Têmis representa o que é fixo e fixado; é uma potência ora-cular:
conta o futuro como já estabelecido. Mnemósine, Memória, mãe das Musas (54), conhece e canta o
passado como se ainda estivesse presente. Ambas, por seu casamento com Zeus, trazem-lhe a visão
total do tempo, a copresença em mente do que foi, do que é e do que será - da qual precisa para
reinar. Réia, companheira de Crono, está muito próxima de Gaia. É uma Mãe, ligada a seus filhos e
pronta a defendê-los até mesmo contra o pai que os gerou. É uma potência de astúcia que detém,
como Gaia, uma espécie de saber primordial.
Os Titãs estão assim repartidos entre a terra e o céu, às vezes mais de um lado, às vezes
mais do outro. Nenhum deles é uma potência física simples como Urano ou Gaia. Entretanto, sua
personagem de deus não está inteiramente separada das forças elementares. Guardam aspectos
primordiais, mas já correspondem a um universo mais complexo e melhor organizado: os pares
Coios-Febe, Hipérion-Téia são mais particularizados, melhor delimitados do que Céu estrelado;
Têmis, Mnemósine, Réia especificam e tornam mais precisas determinadas características de Gaia.
Todos os Titãs e Titânides não lutarão contra Zeus. Alguns ficarão neutros; outros passarão para o
seu lado para dar-lhe o apoio dos poderes e saberes primordiais de que ele não poderia prescindir.
Mas, considerados em seu conjunto como o grupo de divindades gerado por Urano e Gaia, constituem a primeira geração dos deuses senhores do céu, os primeiros deuses com vocação para a
realeza. Sob a direção de Crono, que os representa e conduz, aparecem como adversários diretos dos
deuses da segunda geração, os Olímpios, contra os quais iniciam uma batalha cujo trofeu será, com a
soberania do mundo, a repartição das prerrogativas e das honrarias devidas a cada potência divina, ou
seja, a ordenação definitiva do universo.
Irmãos dos Titãs, Ciclopes e Hecatônquiros (Cem-Braços) têm em comum, além das
feições monstruosas, a brutalidade e a violência de seres totalmente primitivos. Muito diferentes dos
pastores selvagens da Odisséia, os Ciclopes de Hesíodo, com seu olho único no meio da testa,
reúnem à sua força sem igual muitas habilidades, os engenhosos manejos de metalúrgicos hábeis
(mëkhanaí, 146). Do fogo bruto, que Gaia dissimula em suas profundezas, criarão, ao formá-lo, um
instrumento usável, a arma absoluta da vitória: o raio. Em seus nomes: Brontes (Tonitruante),
Estéropes (Estouro), Arges (Iluminante), ouve-se o alarido, vê-se brilhar o esplendor da arma que
entregarão a Zeus e que se aparenta à potência mágica de um olhar fulgurante.
Assim como os Ciclopes entregam a Zeus, na época certa, o privilégio da supremacia do
olhar pelo flamejar de um olho de raios, os Hecatônquiros trazem-lhe, no momento decisivo, a
extrema potência da mão e do braço. Por seus membros prodigiosamente multiplicados, que saem
com flexibilidade em torno de seus ombros, Cotos, Briareu e Giges (ou Gies) são combatentes
invencíveis, guerreiros possuidores do segredo de ataques imprevisíveis, capazes de impor a qualquer
inimigo o domínio de seu terrível punho.
Com a tríplice descendência de Urano e de Gaia, estão dados os atores que desempenharão
o último episódio do processo cosmogônico. Urano, na simplicidade de sua potência primitiva, não
conhece nenhuma outra atividade a não ser a sexual. Largado sobre Gaia, cobre-a por inteiro e se
esparrama dentro dela, incessantemente, em uma noite interminável. Esse excesso amoroso constante
faz de Urano aquele que "esconde"; esconde Gaia sobre a qual acaba de deitar-se; esconde seus filhos
no próprio lugar em que os concebeu, no ventre de Gaia que geme, incomodada em suas profundezas
com o fardo de seus filhos. Urano, o genitor, bloqueia o curso das gerações impedindo seus filhos de
alcançar a luz do dia assim como impede o dia de alternar-se com a noite. Perdido de amor, colado a
Gaia, cheio de ódio por seus filhos que poderiam erguer-se entre ela e ele se crescessem, rejeita
aqueles que gerou para as trevas anteriores ao nascimento, no próprio seio de Gaia. O excesso de sua
potência sexual desordenada imobiliza a gênese. Nenhuma nova "geração" pode aparecer enquanto
se perpetuar essa geração incessante que Urano realiza sem descanso permanecendo unido a Gaia.
Ele não dá lugar a um espaço acima de Gaia, nem a uma duração que fizesse nascer, uma após a
outra, as linhagens de divindades novas. O mundo teria permanecido congelado nesse estado se Gaia,
indignada com uma existência tão reduzida, não tivesse imaginado um estratagema pérfido que iria
mudar a face das coisas. Criou o branco metal do aço e fez uma foice; exortou seus filhos a castigar
seu pai. Todos hesitaram e tremeram, menos o mais moço, Crono, o Titã de coração audacioso e de
astúcia escusa. Gaia o escondeu, colocou-o em emboscada; quando Urano esparramou-se sobre ela
na noite, Crono cortou com um golpe de foice suas partes sexuais. Este ato de violência terá
conseqüências cósmicas decisivas. Separou para sempre o Céu da Terra e fixou-o no topo do mundo
como o teto do edifício cósmico. Urano não se uniria mais a Gaia para produzir seres primordiais. O
espaço abriu-se e este corte permitiu à diversidade dos seres adotar sua forma e encontrar seu lugar
na extensão e no tempo. A gênese foi desbloqueada, o mundo é povoado e organizado.
Entretanto, esse gesto libertador é ao mesmo tempo uma horrível façanha, uma rebelião
contra o Céu-Pai. Tudo acontece como se a ordem cósmica, com as hierarquias de poder, as
diferenciações de competência que supõe entre os deuses, só pudesse ser instituída por meio de uma
violência culposa, de uma perfídia cujo preço será preciso pagar. Urano mutilado, afastado,
impotente, lança contra seus filhos uma maldição que institui para todo o futuro a lei do talião que
Crono será o primeiro a experimentar, ele que foi promovido a soberano do céu graças a sua audácia
escusa. A luta, a violência e a fraude entraram na cena do mundo com o golpe de foice de Crono. O
próprio Zeus não conseguirá suprimi-lo assim como Gaia não pôde prescindir de Caos: poderá
apenas afastá-los dos deuses, distanciá-los, chegando a entregá-los, se preciso, aos homens.
Antes de fechar a cortina sobre a parte cosmogônica do poema de Hesíodo e de abrir a cena
para as grandes batalhas divinas pela realeza do mundo, duas últimas seqüências ilustram esta
inscrição necessária da guerra, da astúcia, da vingança, do castigo e, de forma mais geral, das
Potências negativas no próprio fundamento do universo organizado: o nascimento de Afrodite e os
filhos da Noite.
Em primeiro lugar, o nascimento de Afrodite. Crono segura em sua mão esquerda o sexo de
Urano que cortou com um golpe de foice, com sua mão direita. Logo se livra dele, jogando os restos
sangrentos por cima do ombro, sem olhar, para afastar a maldição. Não adianta. As gotas do sangue
celeste caem sobre Gaia, a Terra negra, que as recebe todas em seu seio. O sexo, lançado mais longe,
acaba caindo nas ondas líquidas de Ponto, que o carrega para alto-mar. Urano, castrado, não pode
mais se reproduzir; mas, ao lançar sua semente sobre Terra e Onda, seu órgão genitor realizará a
maldição que lançou sobre seus filhos: que o futuro vingaria seu crime (210). Sobre Terra, as gotas
de sangue darão à luz a três grupos de potências divinas: aquelas que são encarregadas de perseguir a
vingança, a punição dos crimes cometidos sobre os pais (Erínias), aquelas que apadrinham os
empreendimentos guerreiros, as atividades de luta, as provas de força (Gigantes e Ninfas dos freixos,
Melíades). Em longa gestação no seio de Gaia (184), essas Potências, durante um determinado tempo
doravante desbloqueado, irão amadurecer; lançar-se-ão sobre o mundo no dia em que Zeus estará em
estado (493) de vingar Urano fazendo Crono pagar "a dívida devida às Erínias de seu pai" (472);
então abrir-se-á no mundo um conflito sem trégua, uma guerra inex-piável, a prova de força que o
dividirá contra si mesmo.
Por muito tempo carregado sobre as vagas espumantes de Onda, o sexo cortado de Urano
mescla à espuma marinha que o cerca a espuma do esperma saído de sua carne. Desta espuma
(aphrós) nasce uma filha que deuses e homens chamam de Afrodite. Assim que põe os pés em
Chipre, onde aporta, Amor e Desejo (Eros, Hímeros) fazem seu cortejo. Sua atribuição, entre os
mortais e os Imortais, são as conversas de meninas, os sorrisos, os ardis (exapátaï), o prazer, a união
amorosa (philótës).
A castração de Urano engendra, assim, sobre Terra e sobre Onda, duas ordens de
conseqüências, inseparáveis em sua oposição: de um lado, violência, ódio, guerra; do outro,
suavidade, concórdia, amor. Esta complementaridade necessária das potências de conflito e das
potências de união, igualmente oriundas das partes sexuais de Urano, é marcada primeiro no regime
das procriações que a mutilação do deus inaugurou. Quando Urano se unia a Gaia, em um abraço
indefinidamente repetido, o ato de amor, por falta de distância entre os parceiros, dava em certa
confusão, em uma identificação que não deixava lugar para filhos. Doravante, com Afrodite, o amor
é feito pela união de princípios que permanecem, em sua própria aproximação, distintos e opostos.
Os contrários se ajustam e con cordam, mas não se fundem. Como que esquartejada, a potência
primordial de Eros se exerce pela diferenciação dos sexos. Eros associa-se a Éris, Luta, a mesma Éris
que, em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo situaria "nas raízes da terra".
Assim, o mundo vai se organizar por mescla dos contrário, por mediação entre os opostos.
Mas, neste universo de mistos em que se equilibram potências de conflito e potências de concórdia, a
linha divisória não se estabelece entre o bem e o mal, o positivo e o negativo. As forças da guerra e
as do amor também possuem seus aspectos claros e seus aspectos sombrios, benéficos e maléficos. A
relação de tensão que as mantém afastadas umas das outras manifesta-se igualmente em cada uma, na
forma de uma polaridade, de uma ambiguidade imanente a sua própria natureza.
Aterrorizantes, implacáveis, as Erínias também são indispensáveis auxiliares da Justiça,
logo que esta é violada. O ardor guerreiro das Melíades e dos Gigantes "de armas rutilantes, de
longas azagaias" é aquele que os Cem-Braços colocarão a serviço de Zeus para que este faça triunfar
a ordem. Por seu lado, embora Afrodite não conheça a violência vingadora ou a brutalidade
guerreira, a ardilosa deusa cria armas não menos eficazes ou perigosas: o encanto dos sorrisos, as
tolices das conversas femininas, o atrativo perigoso do prazer e todos os enganos da sedução.
Entende-se então por que a sequência dos filhos da Noite vem imediatamente encadear-se
ao episódio da castração de Urano, com o nascimento, frente aos terrestres Erínias, Gigantes e
Melíades, da Afrodite marinha - episódio que termina com a maldição do deus-Céu sobre seus filhos.
Filha de Caos, Noite gera, sem se unir a ninguém, como emanações que tira de seu próprio
fundo, todas as forças da escuridão, da desgraça, da desordem e da privação que atuam no mundo.
Essas entidades provam, por sua existência, a necessária inclusão, no seio do universo organizado, de
elementos "caóticos". São o reverso da ordem, o preço a pagar para assegurar a emergência de um
cosmos diferenciado, a individualização precisa dos seres e de suas formas.
Sem entrar no detalhe de uma série de Potências que concernem, essencialmente, ao mundo
dos homens - mundo da mistura em que todo bem tem seu avesso, em que vida e morte estão ligadas,
assim como Dia e Noite -, observaremos que, fora Morte que, com um nome tríplice, abre a lista,
associado a Sono e à raça dos Sonhos, a maioria destas entidades estão divididas em dois grupos que
espelham, no registro do escuro e do caótico, as duas categorias de divindades oriundas, por Terra e
Onda, da genitália cortada de Urano. Às Erínias correspondem exatamente Nêmesis e as Keres,
implacáveis vingadoras, que perseguem as faltas contra os deuses e os homens, deusas cuja ira não
descansa enquanto os culpados não receberam seu castigo. Aos Gigantes e Ninfas dos freixos fazem
eco, em um modo plenamente sinistro, a odiosa Luta, Éris stygerë, com seu cortejo de Brigas,
Combates, Assassinatos e Matanças. A própria Afrodite, a Afrodite de ouro (mas também existe uma
Afrodite negra, Melainís) encontra, entre os filhos de Noite, as Potências que encarnam seus poderes,
seus meios de ação, seus privilégios de deusa. As conversas de moças (parthénioi óamï), os ardis
(exapátaï), a união amorosa (philótës) que tem como atributos foram reproduzidas por Noite,
cortando no tecido da escuridão as sombrias feiticeiras que se chamam Palavras mentirosas
(Pseudéa), Traição (Apátê), união amorosa (Philótës).
No final de um processo cosmogônico, o ato de violência que afastou Urano abriu espaço
entre céu e terra, desbloqueou o curso do tempo, equilibrou os contrários na procriação, é também o
ato no qual convergem e como que se confundem a obscura potência primordial de Caos e as jovens
divindades cujo nascimento marca o advento de uma nova ordem do mundo. Pelo crime de Crono crime que coloca a rebelião e a desordem como fundamentos da ordem -, os filhos de Noite se
espalham até o mundo divino; pelas necessidades da vingança, eles se entregam, em plena gestação,
à luta e à guerra, à astúcia e ao engano. Será tarefa de Zeus expulsar a instância noturna para fora das
regiões etéreas, lançá-la para longe da residência luminosa dos deuses Olímpios exilando-a longe,
junto aos homens, assim como será preciso que, por sua ordem, com suas portas de bronze, Posídon
tranque os Titãs, isole-os para sempre do cosmos, no abismo aberto e caótico do Tártaro.
23. TEOGONIA
A fase cosmogônica da Teogonia, tal como a canta Hesíodo, termina com a mutilação de
Urano e suas consequências: a separação entre o céu e a terra, o advento da nova geração dos deuses
Titãs, o surgimento das Potências de conflito, de vingança, de guerra e, em contrapartida, o
nascimento de Afrodite, senhora das uniões amorosas.
Nesse estágio, quais são as divindades que compõem o universo? Primeiro temos Gaia,
com suas montanhas elevadas, suas profundezas subterrâneas e, em sua maior profundeza, o lugar
tartárico que, como um umbigo, liga o conjunto do edifício cósmico ao caos primordial de onde saiu.
Em seguida temos Urano, agora imobilizado no cimo etéreo do mundo: de suas alturas, os novos
deuses, senhores do céu, poderão vigiar tudo o que acontece até os últimos confins de seu império.
Por fim temos Ponto, Onda salgada, inesgotável massa líquida, em perpétuo movimento, desafiando
as prisões, rebelde ao entrave das formas. Ponto gera Nereu, o Velho do mar, no qual se concentram
todas as virtudes benéficas, toda a sutileza fluida das águas marinhas. Dóris, a Oceânida, dá a Nereu
cinqüenta filhas, as Nereidas, que traduzem, à imagem de seu pai, aspectos do mar, da navegação, do
saber inteligente, da lealdade, da justiça. Em compensação, em sua união com Gaia, Ponto manifesta
a outra face do elemento marinho: a ausência de forma; o casal dá à luz a uma linhagem de seres
monstruosos, híbridos meio-homens, meio-serpentes, mulheres-pássaros, intocáveis, rápidas,
violentas como os ventos.
Mas são os filhos de Urano e de Gaia que passam a ocupar a cena, especialmente o mais
jovem, o mais audacioso, o mais astucioso, Crono, o da astúcia ardilosa. Ao retirar-se de Gaia, Urano
deixou-lhes o campo livre. Não se encontram mais bloqueados nas entranhas da terra. Cada qual se
instala, se associa com uma de suas irmãs ou escolhe uma companheira entre suas primas e
sobrinhas, criando assim, entre as linhagens oriundas de Gaia, de Urano, de Ponto, uma série de
alianças que tecem, de um domínio cósmico a outro, uma rede mais cerrada de conexões. Oceano e
Tétis produzem, na forma dos rios, das fontes, das correntes subterrâneas, todas as águas nutrizes,
que dispensam a vida. Hipérion e Teia geram Hélio (Sol), Selene (Lua), Éos (Aurora): potências
celestes, luminosas, regradas. Coiós e Febe têm duas filhas; a primeira, Leto, toda suave, procriará
Zeus Apoio e Ártemis; a segunda, Astéria, é mãe de Hécate que ocupa, aos olhos de Hesíodo, na
economia do mundo divino, um lugar à parte: sua potência se exerce tanto na terra e no mar quanto
no céu; suas honrarias e seus privilégios, unanimamente reconhecidos pêlos deuses, jamais serão
questionados, por nenhum dos dois lados, durante a grande guerra em que se enfrentam os filhos de
Urano e os de Crono: Hécate situa-se à margem e acima do conflito entre Titãs e Olímpios. A estes
três primeiros casais de irmãos e irmãs, é preciso acrescentar dois Titãs. Primeiro Jápeto que, unido à
Oceânida Clímene, dá origem a uma linhagem de rebeldes; em seguida Crios, a quem a filha de
Ponto, Euríbia, dá rapazes que unem à superioridade da força a retidão da ação: Astreu, pai dos
ventos regulares, devido à sua união com Éos; Perses, esposo de Astéria e pai de Hécate, Palas a
quem a Oceânida Styx (Estige) dá Krátos e Bía, Poder e Força: ambos passarão, quando chegar a
hora, para o lado de Zeus. Duas Titânias, por sua vez, não se casam com seus irmãos: Têmis e
Mnemósine. Ao leito de Zeus, a primeira trará as Horas (Estações) e as Moïrai (Destinos), a
segunda, as Moüsai (Musas). O último casal de Titãs é formado por Crono e sua irmã Réia. Único de
todos os irmãos a ter ousado, instigado por Gaia, castrar Urano, Crono não conquistou apenas a
liberdade: com o acordo e o apoio dos outros Titãs, é o senhor de um universo doravante constituído,
o soberano do mundo, o rei dos deuses. Primeiro monarca - segundo a tradição hesiódica -, Crono é
muito diferente de seu pai Urano, e os problemas que precisa enfrentar são diferentes. Urano
entregava-se sem limites a seus apetites sexuais; não via nada além do ventre de Gaia. Crono não é
uma potência transbordando uma vitalidade excessiva como seu pai, é um príncipe violento, ardiloso
e desconfiado, sempre em estado de alerta, sempre prestando atenção. Reinando sobre um império
diferenciado, hierarquizado, sua supremacia é objeto de todos os seus cuidados e de suas
preocupações. A façanha - feita de audácia e de ardil — que lhe abriu o caminho do poder inaugurou
entre os deuses a história dos problemas da soberania. A questão que estava no centro dos mitos
cosmogônicos era a das relações entre desordem e ordem; com a instauração de um primeiro rei do
céu e as lutas que seguiram pela hegemonia divina, o problema se desloca: doravante o assunto passa
a ser as relações entre ordem e poder.
Os exageros sexuais de Urano, ao impedir seus filhos de nascer, bloqueavam o curso da
génese. A conduta de Crono para com os seus, embora não seja melhor, baseia-se em razões
estritamente "políticas": trata-se de impedir que um de seus filhos consiga obter em seu lugar "a
honra real entre os Imortais" (461-462). Ao relato de uma génese substitui-se um mito de sucessão do
poder. Como o monarca, mesmo divino, pode evitar, ao longo dos anos, o desgaste, o envelhecimento de sua autoridade? Crono ergueu-se ao trono atacando seu pai. A soberania que fundou
repousa sobre um ato de violência, uma traição para com seu "ancião", que o amaldiçoou. Não
deverá ele sofrer, da parte de seu filho, o mesmo tratamento que deu a seu pai?
Se a instauração da supremacia, pela prova de força que supõe, promove uma injustiça com
outro, uma limitação imposta por uma mescla de brutalidade e de astúcia, a luta pela dominação não
está fadada a renascer e a voltar em cada geração nova sem que a soberania possa jamais escapar a
essa engrenagem do crime e do castigo que Crono inaugurou no dia em que, ao mutilar Urano, tomou
o poder? E, nesse caso, a ordem do mundo que cada soberano dos deuses institui em seu advento não
corre o risco de ser indefinidamente questionada? Este é o problema ao qual responde o relato da
guerra entre os deuses e o da vitória de Zeus.
Réia teve com Crono, um depois do outro, seis filhos: Héstia, Deméter, Hera, Hades,
Posídon e o caçula, Zeus mëtióeis, Zeus, o Astuto. Logo que dá à luz a um deles, Crono, que a
espera, o toma para devorá-lo. Urano rechaçava seus filhos para dentro do ventre de Gaia. Avisado
por seus pais de que seu destino era sucumbir um dia frente a seu próprio filho, Crono tranca sua
descendência, para maior segurança, dentro do seu próprio ventre. Com Gaia e Urano, Réia planeja
uma astúcia, uma mëtis, para que Zeus, último filho, escape ao destino de seus precursores. Aos
cuidados vigilantes de Crono escapam as manobras secretas de sua esposa: ela dá à luz
clandestinamente, esconde seu filho em Creta, camufla uma pedra nas roupas; oferta-a, sob a
aparência enganosa de um recém-nascido, à voracidade de Crono que não desconfia de nada. E esta
astúcia, tramada por sua esposa e seus pais, ao enganar a astúcia ardilosa do primeiro soberano,
permite a seu jovem caçula conservar a vida sem o conhecimento de seu pai para logo, à força,
expulsá-lo do trono e reinar em seu lugar sobre os Imortais (489-491).
O tema da inteligência astuciosa, da astúcia vigilante (mëtis), arma necessária para garantir
a um deus, em todas as circunstâncias, sejam quais forem as condições da luta e o poder do
adversário, a vitória e a dominação sobre os outros, segue como um fio vermelho por toda a trama
dos mitos gregos de soberania.
Apenas a superioridade em mõtis aparece como capaz de conferir a uma supremacia a
universalidade e a permanência que fazem dela um poder verdadeiramente soberano. O rei do céu
deve dispor, fora e além da força bruta, de uma inteligência hábil para prever o futuro, para maquinar
tudo antes, para combinar, em sua prudência, meios e fins até o menor detalhe, de forma que o tempo
da ação não comporte acasos, que o futuro não traga surpresas, fazendo com que nada e ninguém
possa pegar o deus de surpresa ou encontrá-lo indefeso.
A rivalidade entre Crono e Zeus, Titãs e Olímpios, traduz-se, no campo de batalha, em uma
prova de força, mas o segredo do êxito está em outro lugar: como o diz o Prometeu de Esquilo, a
vitória devia pertencer "a quem triunfasse, não por força e violência, mas por astúcia" (212-213). E,
na perspectiva da tragédia, quem entrega a Zeus o estratagema de que seu campo necessita é
Prometeu, o aiolomëtis, o prodigioso astuto, "capaz, mesmo no inextricável, de encontrar uma saída",
o desembaraçado fértil em invenções. Na versão de Hesíodo, a marcha de Zeus rumo ao poder
coloca-se igualmente, desde a partida, sob o signo da astúcia, da habilidade, do ardil, e seu triunfo se
achará como que consagrado por suas primeiras núpcias com a Oceânida Métis, a ondulante e astuta
deusa, prote-tora da inteligência sagaz.
Na Biblioteca do Pseudo-Apolodoro, é precisamente Métis quem faz Crono beber um filtro
(phármakon) que o força a vomitar, junto com a pedra engolida no lugar de Zeus, todo o restante dos
irmãos e irmãs que vão apoiar o Olímpico em sua luta contra os Titãs. Em Hesíodo, Métis não é
nomeada: trata-se apenas de uma astúcia, urdida sob instigação de Gaia, para fazer com que Crono
regurgite toda sua descendência.
Liberta do ventre de seu pai, a jovem linhagem dos Crônidas enfrenta no monte Olimpo os
Titãs montados sobre o monte Órtris. A guerra inicia-se e prossegue, indecisa, durante dez anos. Mas
Gaia revelou a Zeus quais seriam as condições para sua vitória: ele precisa dispor da arma fulgurante
que os hábeis Ciclopes detêm e garantir a ajuda, no combate, dos terríveis Cem-Braços, com sua
força sem igual. Ou seja, a derrota dos Titãs passa por uma aliança com a causa dos novos deuses de
divindades próximas aos antigos por sua filiação, sua natureza e sua idade. Zeus só pode esperar
triunfar com o auxílio de Potências que encarnam a mesma vitalidade original, o mesmo vigor
cósmico primordial que ele se esforça em regular ao submeter os Titãs. Para instituir a ordem, é
preciso um poder capaz de se impor às forças da desordem; mas para se impor, em quais fontes de
energia o poder regulador deveria alimentar-se se não naquelas das quais se nutre, na origem, a
dinâmica da desordem?
Ciclopes e Cem-Braços, irmãos dos Titãs, tornar-se-ão traidores e passarão para o campo
olímpico. Isto é necessário. Detentores da arma absoluta que é o raio, senhores dos golpes
indefensáveis e dos laços infrangíveis, são os auxiliares indispensáveis da soberania. Para justificar
sua adesão a Zeus, o mito conta que Crono os deixara, ou voltara a lançá-los, após o afastamento de
seu pai e carcereiro comum Urano, em um estado de servidão do qual apenas Zeus deveria libertálos. Mal ele os liberta de suas correntes, o Olímpio oferece aos Cem-Braços néctar e ambrósia,
consagrando assim sua plena ascensão às honrarias do estatuto divino. Como reconhecimento por sua
ajuda, Ciclopes e Cem-Braços põem à disposição de Zeus uma habilidade e uma força aparentadas às
das duas entidades cósmicas de onde provém. Não aparecem mais, doravante, como monstros
primordiais, e sim como guardas fiéis de Zeus; da mesma forma, Krátos e Bía, Poder e Força
violenta, filhos de Styx, aconselhados pelo velho Oceano, seu avô, foram os primeiros a correr para o
Olimpo com sua mãe para se colocarem a serviço de Zeus de quem, em nenhum momento, se
afastariam (Teog., 385 sq.).
A partir daí, as coisas acontecerão muito rápido. Os Titãs serão fulminados por Zeus,
enterrados sob as pedras pêlos Cem-Braços que os enviam, acorrentados, para o Tártaro brumoso
onde Posídon cerra sobre eles as portas de bronze, frente às quais os três Cem-Braços, em nome de
Zeus, montam a guarda.
Desta vez a questão parece estar resolvida. Mas Gaia, unida a Tártaro, gera um último
filho, Tifeu ou Tífon, monstro de braços poderosos, de pés incansáveis, de cem cabeças de serpente
cujos olhos lançam luzes de chama. Esse monstro, cuja voz mutante imita ora a dos deuses, ora a dos
animais selvagens, ora a das forças da natureza, encarna o poder elementar da desordem. Ultimo
filho de Gaia, representa, no mundo organizado, o retorno ao caos primordial para onde todas as
coisas voltariam se ele triunfasse. A vitória do monstro caótico não ocorrerá. Seus olhos de chamas
múltiplas nada podem contra o olhar vigilante de Zeus que não se deixa surpreender, que o vê a
tempo e o fulmina. O Olímpio lança Tífon no Tártaro: de seus despojos saem os ventos de tempestade, fogosos, imprevisíveis que, ao contrário dos ventos regulares gerados por Aurora e Astraios,
abatem-se em borrascas de um lado e, do outro, entregam o espaço humano à arbitrariedade de uma
desordem pura.
Em Hesíodo, a derrota de Tífon marca o fim das lutas pela soberania. Os Olímpios pedem a
Zeus que assuma o poder e o trono dos Imortais. O novo rei dos deuses, o segundo soberano, reparte
então entre eles honrarias e privilégios. Sua supremacia, sequência da supremacia de Crono
derrubado, não a repete contudo: endireita-a. Zeus reúne em sua pessoa, de fato, o maior poder e o
respeito escrupuloso pelo direito justo; sua soberania reconcilia a superioridade da força e a exata
repartição das honrarias, a violência guerreira e a fidelidade ao contra to, o vigor dos membros e
todas as formas da astúcia inteligente. A ordem e o poder, associados em seu reinado, serão
doravante inseparáveis.
Outra tradição, cujo eco encontramos particularmente no Pseudo-Apolodoro, acrescentava
um capítulo à história das batalhas pela realeza do céu. Os Olímpios deveriam ainda enfrentar o
assalto dos Gigantes, representantes de uma ordem: a dos combatentes, uma faixa etária: os jovens na
flor de sua virilidade, uma função: a da guerra. O estatuto dos Gigantes parece equívoco, no limiar da
batalha. A derrota os entregará à morte ou o sucesso os fará alcançar a imortalidade divina? Zeus foi
avisado de que, para vencê-los, precisa de um ser menor do que ele: os Gigantes deverão morrer pela
mão de um mortal. Héracles, que ainda não foi endeusado, cumprirá a tarefa. Entretanto, a Terra,
mãe dos Gigantes, prepara uma armadilha. Ela procura uma erva de imortalidade que preservaria
seus filhos. Novamente, a previdência de Zeus anula os planos de seus adversários. Adiantando-se
astuciosamente à Terra, ele mesmo colhe e corta a erva da não-morte. Nenhuma força mais pode
impedir os Gigantes de perecer e a função guerreira de se submeter a uma soberania que tem o dever
de apoiar sem jamais combatê-la.
O relato da luta contra Tífon foi igualmente enriquecido para dramatizar os perigos que
cercam a soberania e ressaltar o lugar que a astúcia ocupa em seu exercício. No Pseudo-Apolodoro,
em seu primeiro combate, Tífon leva vantagem sobre seu adversário real; desarma-o, corta os nervos
de seus braços e pernas, entrega-o, paralisado, à guarda de uma mulher-serpente, Delfine. A salvação
virá na forma de dois comparsas espertos, o astuto Hermes auxiliado por um cúmplice, Egipã. Sem
serem vistos, roubam os nervos de Zeus e os recolocam em seu lugar. O combate recomeça, e teria
continuado indeciso se uma segunda traição maquinada pelas Moiras não tivesse vencido as forças
do monstro. As filhas de Zeus convencem Tífon a engolir uma pretensa droga da invencibilidade;
mas este phármakon, longe de trazer-lhe um acréscimo de energia, é um alimento "efêmero", que não
se pode prová-lo sem conhecer, como os homens, o desgaste das forças, o cansaço e a morte.
Em Nonnos, nas Dionisíacas, Tífon, candidato à realeza da desordem, consegue pôr as
mãos no raio e nos nervos de Zeus; apavorados, os deuses abandonam o céu. Zeus combina então
com Eros o plano astucioso que o engenhoso Cadmos deve realizar, com a ajuda de Pa, para enganar
o poder bruto. Cadmos adormece sua violência com o som da flauta. Tífon, encantado, deseja fazer
do jovem o cantor oficial de seu reinado. Cadmos pede, para colocar em sua lira, os nervos roubados
a Zeus. Aproveitando o sono em que a música mergulhou o monstro, Zeus recupera, com seus
nervos, sua arma fulgurante. Quando Tífon acorda, tudo mudou. Zeus envolve seu inimigo no rastro
incandescente de seu raio.
Esses desenvolvimentos tardios do mito não são gratuitos. Com uma fantasia um pouco
barroca, ilustram um tema que já ocupava, em Hesíodo, além do casamento de Zeus e Métis, um
lugar central. Na Teogonia, logo que é promovido a rei dos deuses, Zeus une-se, em seu primeiro
casamento, com Métis, filha do Oceano, deusa "que sabe mais do que qualquer deus ou homem
mortal". Esta união apenas reconhece os serviços que a inteligência astuciosa prestou ao deus, em sua
ascensão ao trono. Ilustra a necessária presença de Métis no fundamento de uma soberania que não
pode, sem ela, ser conquistada, exercida ou conservada. Ao herdar de sua mãe o mesmo tipo de
astúcia ardilosa que a caracteriza, os filhos da deusa não deixariam de ser invencíveis e de vencer seu
pai. Assim, Zeus encontra-se ameaçado pelo casamento que o consagra rei dos deuses, de ter o
mesmo destino que reservou ao soberano anterior: cair sob os golpes de seu próprio filho. Mas Zeus
não é um soberano como os outros. Crono, ao engolir seus filhos, deixava subsistir fora dele as
Potências de astúcia superior à sua. Zeus chega à raiz do perigo. Volta contra Métis as próprias armas
da deusa: a astúcia, a traição, a surpresa. Acalentando-a com palavras doces, ele a engole antes que
ela dê à luz a Atena para evitar que, depois de sua filha, ela ainda carregue um filho, que, fatalmente,
teria sido rei dos homens e dos deuses. Ao desposar, dominar e engolir Métis, Zeus torna-se mais do
que um simples monarca: ele se torna a própria Soberania. Alertado pela deusa, do fundo de suas
entranhas, sobre tudo o que deve acontecer, Zeus não é mais apenas um deus astuto, como Crono, ele
é o metíeta, o deus todo Astúcia. Nada mais pode surpreendê-lo, enganar sua vigilância, contradizer
seus desígnios. Entre o projeto e a realização, não conhece mais a distância pela qual surgem, na vida
dos outros deuses, as armadilhas do imprevisto. A soberania deixa de ser, assim, o motivo de uma
luta sempre recomeçada. Tornou-se, na pessoa de Zeus, um estado estável e permanente. A ordem
não está apenas fundada no poder supremo que distribui as honrarias. Está definitivamente
estabelecida.
As potências noturnas de vingança, de guerra, de fraude, espalhadas pelo crime de Crono,
não encontram mais seu lugar no mundo divino. Se acontecer de alguma disputa ainda ocorrer entre
divindades, de uma delas, por sua vez criminosa, cometer o perjúrio de uma promessa mentirosa, ela
é imediatamente expulsa da morada dos deuses, banida de seu conselho e de seus banquetes, privada
do néctar e da ambrósia pelo procedimento quase jurídico que Zeus instituiu com a água do Estige.
Sob o reinado de Zeus, o exílio imediato do deus culpado de ter entrado em contato, nem que fosse
por um único momento, com um dos filhos da Noite, corresponde ao exílio dos Titãs, lançados para
as fronteiras do mundo, nos confins da Abertura, onde o cosmos se adapta a Caos e se protege
solidamente dele.
BIBLIOGRAFIA:
VERNANT, Jean- Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Murachco. 2ª ed.. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
Subsídio para estudo e aprofundamento.
Professor: Sandro Luiz Bazzanella

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