- iv rea | xiii abanne

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- iv rea | xiii abanne
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte
e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.
Grupo de Trabalho: Antropologia do Cinema: entre narrativas, políticas e
poéticas
DO BAÚ DE AFETOS QUE ESTÁ A VIDA-LAZER
Vinicios Kabral Ribeiro
[email protected]
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo: Vida-lazer é o ponto de partida da tese em que estou engajado.
Surge nas personagens Tabu e Patty, de Karim Aïnouz. A primeira, em
Madame Satã (2002) deseja uma vida-lazer com seu "anjo de bondade". Patty,
em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), busca um companheiro,
alguém que a tire da prostituição e que seja um amor "reservado para ela"
.Convido essas duas personagens para uma aventura estética e conceitual.
Um exercício metodológico de pensar o cinema como formas de produção da
vida e rotas de fugas das clausuras da existência. Uma tentativa de cartografar
os artefatos visíveis e invisíveis do mundo. O tempo e o movimento do cinema.
A proposta é de enredar-me no baú de imagens afetivas de Karim Aïnouz e me
soltar pelas paisagens, encontros e viagens de suas personagens. Procuro
aproximar a experiência cinematográfica como um local de produção de
perspectivas e formas de habitar o mundo. É pelo olhar de José Renato, de
Viajo porque preciso, que iremos partir. Um geólogo deambulando pelo sertão,
analisando
rochas,
rostos
e
lugares.
Recolhendo
fragmentos,
se
redescobrindo, se modificando. Em seu caderno de pesquisas, em sua
memória afetiva, embarcaremos para os limites e fricções do real e da ficção,
não para separá-los, mas para rompê-los, e buscar na imagem algo para além
da alteridade, o que ainda não sabemos existir. E por fim, assim como nos diz
Patty, esse também é o meu desejo: "Eu desejava de ser tanta coisa na minha
vida. Mas e seja lá o que for, se for o melhor tô indo pro melhor, e se for o pior
tô indo pro pior. Eu queria ter realmente, meu sonho é tão alto nesse momento,
era uma vida-lazer pra mim e pra minha filha e mais nada"
Palavras-chaves: vida-lazer, afetos, Viajo porque preciso, volto porque te amo.
Uma máquina Singer de pedal
A vida-lazer surgiu aos meus ouvidos pela voz de Tabu. Em Madame
Satã (Karim Aïnouz, 2002), na casa de João, Laurita e Tabu, as personagens
conversam sobre os seus desejos. João deseja montar um espetáculo, se
apresentar para uma grande plateia. Laurita deseja sair da prostituição, casar e
ir ao cinema semanalmente, com vestidos diferentes. Já Tabu diz que seu
sonho, seu projeto de felicidade era: “comprar uma máquina Singer, de pedal,
pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido. E viver uma vidalazer”.
O desejo de Tabu é aparentemente simples, sem muitas exigências. Ela
deseja uma conjugalidade, um lar, ocupar um papel sexual e de gênero bem
definido. Talvez, para uma travesti da primeira metade do século XX,
conquistar seus desejos tenha muitos obstáculos. Como bem lembrado por
Lopes (2006), Madame Satã é pungente ao evidenciar as intersecções entre
classe, raça, gênero e sexualidade e as dificuldades sofridas por sujeitos que
entrecruzam estes marcadores sociais da diferença.
Tabu possivelmente era um tabu. Pobre, sem escolaridade, negra,
travesti,
puta.
Transgredir
fronteiras
sexuais
e
de
gênero
geram
desbonificações sociais, retaliações na mobilidade urbana, violência e
exclusão. Gayle Rubin (1989) constrói uma pirâmide de respeitabilidade, no
topo casais heterossexuais do hemisfério norte, brancos, com uma sexualidade
branda e com fins reprodutivos. Na base encontram-se as “Tabus”: corpos e
desejos considerados perversos e patologizados. Deste modo, casar e comprar
uma máquina de costura torna-se um gesto transgressor.
Ao retomar a história dos objetos de desejo e as interações entre design
e sociedade nos séculos XIX e XX, pode-se observar de onde surge a projeção
de Tabu sobre sua vida-lazer. Segundo Forty (2007), as primeiras máquinas de
costuras industriais foram criadas nos Estados Unidos, nos anos de 1850. Logo
as indústrias foram abastecidas com as máquinas de costuras e empresas,
como a Singer e Wheeler & Wilson, buscavam formas de expandir seus
negócios. A saída era dirigir tais objetos para o ambiente doméstico. Todavia,
os lares com condições de adquirir os equipamentos poderia muito bem pagar
empregados para realizar tal tarefa ou encomendá-las. Para superar a
resistência dos consumidores diversas ações foram realizadas, como reduzir o
preço, financiá-las e principalmente superar o aspecto industrial, inserindo-a
como um item de decoração e distinção no lar. Forty recupera um folheto
publicitário da Singer, do século XIX:
A grande importância da máquina de costura está em sua
influência no lar; nas incontáveis horas que ela acrescenta ao
lazer das mulheres para descanso e refinamento; no aumento
de oportunidades para a educação das crianças desde cedo,
por cuja falta tantas lamentáveis histórias se podem contar; nas
inumeráveis oportunidades que ela abre para o emprego das
mulheres; e no conforto que trouxe ao alcance de todos, e que
antes só podia ser desfrutado por poucos abastados (2007,
p.136).
Possivelmente, para Tabu, a máquina Singer seja uma maneira de não
só alcançar o lazer - ao mesmo tempo em que se somava o “descanso e
refinamento” - mas ascender socialmente. Uma vida tranquila, onde o seus
esforços trabalhistas estariam concentrados na gestão do lar, nas atividades
corriqueiras, na cozinha, na costura, a espera de seu marido/amante meganha.
Costurar as fardas do “anjo de bondade” não seria um gesto de labuta, mas
sim um senso de pertencimento e deslocamento das margens da sociedade.
Ter uma casa/vida semelhante a um casal heterossexual talvez restituísse
simbolicamente, em partes, os estigmas que a acompanhavam.
A ideia de um lar aconchegante é construída na aversão a qualquer
semelhança com o mundo do trabalho. Adrian Forty descreve essa fronteira
entre trabalho/casa como uma forma de escapar das cruezas de uma vida
laboral marcada pela opressão, jornadas exaustivas e ambientes industriais
desagradáveis. Se o mundo do trabalho pode ser entendido como o tempo
usurpado pelo sistema capitalista, as horas de descanso são percebidas como
o momento de dedicar-se a si e desfrutar das emoções domésticas.
O lar passou a ser considerado um repositório das virtudes
perdidas ou negadas no mundo exterior. Para as classes
médias do século XIX, lar significava sentimento, sinceridade,
honestidade, verdade e amor. Essa representação do lar
compreendia uma dissociação completa de todas as coisas
boas do mundo público e de todas as coisas ruins do mundo
doméstico. Era transformar o lar em um lugar de ficção, um
lugar onde florescia a ilusão (FORTY, 2007, p.140)
A vida de Tabu, assim como de um operário, era marcada por uma
desilusão com o espaço público. Se para o proletário industrial as máquinas,
alavancas, roldanas e esteiras significavam perigo e repetição, medo e
alienação, para Tabu as ruas e becos, os bares e os clientes causavam
semelhantes sentimentos. Dessa maneira o ambiente doméstico limpo, amplo
e com objetos funcionais e decorativos era o anseio e uma projeção de uma
melhor qualidade de vida. Uma recompensa pelas agruras do mundo exterior.
Se uma máquina Singer, e por extensão um lar, era o projeto de vidalazer de Tabu, seria esse desejo uma ficção? Algo circunscrito na esfera do
sonho, do utópico e do ilusório? Seria a vida-lazer uma ilusão ficcional? Mesmo
com um hiato entre o tempo vivido por Tabu e a contemporaneidade, vale
ressaltar que “muito mais difícil do que denunciar ou desmascarar como ficção
(o que parece ser) a realidade é reconhecer a parte da ficção na realidade
“real” (ZIZEK, 2003, p.34)”.
O desejo de uma vida-lazer, para Tabu, também pode ser entendido
como uma escolha estético-poética de Karim Aïnouz. A vida-lazer estava
virtualmente contida em uma espécide de baú afetivo do diretor. Em um dos
seus primeiros trabalhos, Seams (1993), Karim – em um tom confessional e de
proximidade – entrevista as mulheres que conviveu desde a infância. O título
do filme pode ser traduzido como costuras. E a vida-lazer assim é: formar
costuras de imagens, coser sonhos e vidas que se abrem em sulcos.
É possível que os desejos e lembranças dessas personagens femininas
tenham reverberado no cineasta. Elas, em parte, não acreditavam no amor. O
ambiente doméstico, afetuoso, de cumplicidade e de costuras, destoava do
espaço público machista. Talvez o desencanto com seus amores repousassem
na cultura sexista predominante em nosso país. As tias e a avó, em Seams,
não escolheram seus parceiros. Aceitaram os arranjos matrimoniais, sem
resiliência. E se a vida-lazer dessas mulheres não estava em seus
casamentos, outros instantes poderiam dar vazão aos seus sonhos.
Ilca, por exemplo, vangloria-se de nunca ter tido uma desilusão ou uma
decepção, especialmente em seu casamento. No entanto, ela ressalta que a
ausência de infortúnios em seu casamento se deu justamente em abrir mão de
seus desejos, pois o que ela deveria ter vivido já se passou em sua
“mocidade”. Ela não se casou por vontade ou paixão, e sim para ter a sua
casa. E Ilca, em outro momento, relembra que aos dezesseis ou dezessete
anos, uma moça que não estivesse casada era considerada velha. Zélia não
quis se casar, sonhava em ser freira, mas abandonou o sonho para cuidar de
sua mãe.
Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (Karim Aïnouz e Marcelo
Gomes, 2009), Patrícia Simone da Silva formula sua vida-lazer. Ela diz:
Eu desejava de ser tanta coisa na minha vida. Mas e seja lá o
que for, se for o melhor tô indo pro melhor, e se for o pior tô
indo pro pior. Eu queria ter realmente, meu sonho é tão alto
nesse momento, era uma vida- lazer pra mim e pra minha filha
e mais nada. [...] Uma vida lazer é assim: eu na minha casa, eu
e a minha filha, o companheiro que eu tiver ao meu lado, pra
esquecer esses momentos todos porque não dá certo. É triste
a pessoa gostar sem ser gostada.
Patty quer um amor. Quer sair da prostituição, quer uma casa pra viver
com a filha. O encontro com os cineastas e Patty se deu em 1999, em algum
momento dos 40 dias que Karim Aïnouz e Marcelo Gomes gravaram imagens
pelos sertões nordestinos. A primeira montagem dessas imagens resultou no
curta-metragem Sertão acrílico azul piscina (2004). Este curta apresenta uma
justaposição de imagens, ora lugares ermos ora pequenas vilas e cidades.
Sobretudo, imagens-paisagens, superfícies afetivas em movimento. Imagens
que professam e se interconectam a paisagens transculturais, em uma trama
de “translocalidades” (Lopes, 2012; Appadurai, 2001).
Aqui, falamos de uma vida-lazer urbana contemporânea (global). Ela
pode se deslocar pelo deserto, estradas e cruzar fronteiras; mas privilegiará as
sociabilidades citadinas em um mundo transcultural. Patty é quase uma
resposta à pergunta lançada por Bhabha: “quem são os novos sujeitos
históricos que permanecem irrepresentados na invisibilidade mais ampla dessa
totalidade transnacional? (2007, p. 303)”.
Na nova ficcionalização dos diretores - em Viajo porque preciso - Patty,
a partir das imagens de seu corpo, pode ser muitas: a prostituta, a mulher
negra, a jovem sonhadora, a nordestina, a excluída do sistema formal de
ensino. Contudo, há uma variação em seus pensamentos. Há uma produção
de conceitos e de imagens em constante reinvenção que ultrapassam seus
marcadores sociais da diferença. Patty se incorpora ao corpo-paisagem do
sertão-cidade. Dança ao som do forró, transita entre a porta da delegacia e
uma loja de colchões de chita. Põe-se a conversar com seu interlocutor, José
Renato, em uma feira. Ela não sabe o nome do “setor”, tampouco o nome da
rua. Para ela é um lugar qualquer, sem vínculos afetivos de longo prazo. Um
lugar de passagem, de trânsito. Como dito acima, Patty deseja deixar esse
lugar, partir em busca de uma vida-lazer.
Que pode Patty e sua vida-lazer? Que pode o cinema? A máquina
cinematográfica coloca movimento nas imagens e no espírito. Desde modo, o
cinema é um território de pensamentos, o filme pensa, fala e nos diz algo. Cada
filme (cada vida) é uma singularidade, com suas questões e formas de
responder ao mundo. O território do cinema, o espaço, ele não é, ele se
constrói. Não é um atributo, e sim uma qualidade. A vida-lazer se acomoda
nesse interstício do espaço: no excesso ou na rarefação, nos pontos de vistas
humanos e não-humanos. A vida-lazer se circunscreve na modulação. A vidalazer é uma modulação (Brasil, 2008)?
Já não importa saber onde surgiu o conceito de vida-lazer, mas entendêlo como um detalhe que interfere no quadro, na composição de cena, no roteiro
e na relação de imagem e arte. Um detalhe localizável na obra de um autor e
que desencadeia uma trama de relações. Um detalhe como um gesto que pode
ser alcançado por meio da montagem. A vida-lazer é movimento, vivemos no
movimento.
A vida-lazer, a priori, pode ser entendida como esse detalhe. Ela é
enunciada por Patty e por Tabu. Transita por Madame Satã, Seams, Sertão
acrílico e Viajo porque preciso. Nesse ponto é pertinente destacar dois
caminhos que se cruzarão futuramente na tese: de um lado saber como uma
vida-lazer se apresenta discursivamente e de outro, como ela se traduz
esteticamente.
Primeiramente, escrevo vida-lazer com hífen, e esse sinal de pontuação
é mais que o elemento conector de palavras. Ele é, também, o indicador de
ausências em um intervalo. “O hífen é, aliás, neste sentido, o mais dialético dos
sinais de pontuação, porque une só na medida em que distingue e vice-versa
(AGAMBEN, 2000a, p. 171)”. A vida-lazer com hífen é em si lazer. Quando não
sobrar mais nada, quando a busca acabar e o movimento cessar, ainda há
lazer. Posteriormente desenvolverei as imbricações de vida e lazer, pensando
a vida como imanência e o lazer como uma redistribuição política e social do
tempo e da vida.
O grande desafio é articular as construções e conceituações de uma
vida-lazer no campo das imagens, especialmente na máquina de signos
cinematográfica. A vida-lazer como potência estética será uma das grandes
questões dessa tese que inicio e permeará as construções e debates futuros.
Assim como o engendramento estético e discursivo de uma vida cotidiana. Por
ora, nas pistas de Deleuze, assumo a vida-lazer como produção de conceitos
nos domínios não-filosóficos e como perspectivas de habitar o mundo.
Vidas-lazer
1- Vida.
A imanência é uma vida:
Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada mais.
Ela não é imanência à vida, mas a imanência não está em
nada e é em si mesma uma vida. Uma vida é a imanência de
uma imanência, a imanência absoluta: ela é potência e
beatitudes completas (Deleuze, 2002, p. 40).
O plano de imanência de uma vida-lazer pode ser esse território ilimitado
de imagens do pensamento. A vida-lazer escorrega e desliza pela imanência
da vida. A vida-lazer, como conceito, é uma das formas de colocar movimento
no pensamento. É esse ato violento de pensar, de rachar as coisas, de se
conectar em uma máquina mutável de imagens. Territorializando e se
desterritorializando, a vida-lazer se faz no cinema, que nada mais é que essa
intensidade do real que não aparece nas outras artes. Na vida-lazer devo
buscar meus intercessores para “relacionar filosofia e arte, criação de conceitos
e invenção de imagens (Vasconcellos, 2005, p. 1225)”. Intercessão com os
personagens-conceituais para (me) interrogar sobre as possibilidades de uma
vida-lazer, sobre os limites dessas vidas-lazer.
Vidas-lazer não são estáticas, estão em constante reinvenção. As vidas-lazer
são vidas banais. Elas nos falam e colocam movimento no pensamento, vidas
em movimento. A vida-lazer é uma potencialidade de um plano de imanência?
É um devir?
Como inventar uma vida-lazer? Em Viajo porque preciso, quase
dormindo, José Renato deseja: “Eu quero uma vida-lazer”. A questão, José
Renato, é: qual sua vida-lazer? Nesse ponto, no filme, é discernível que a vidalazer não esteja em Patty (ou apenas nela). Mas contida nos deslocamentos de
José Renato, em sua viagem, na errância.
2. Lazer
Entendo uma hipótese de vida-lazer que se configure como espaços de
liberdade nas redes de poder. A vida como um sopro; um respirar ora calmo
ora turbulento, um gesto errante pelo mundo. Finalmente, Corroboro com a
discussão proposta por Gustavo Gutierrez (2001), onde o prazer e o lazer
devem ser reavaliados sobre novas perspectivas, distantes das concepções
herdadas de um modelo industrial, pautadas em um binarismo trabalho/lazer.
Prazer-lazer articulados com a política, intimidade, trabalho. “Uma política
dirigida à extensão e redistribuição do tempo livre, no qual o lazer como busca
do prazer possa ser perseguido e reivindicado como bem fundamental e
imprescindível à vida humana (GUTIERREZ, 2001, p.108).”
A vida-lazer é individual e coletiva. É colaborativa, é política, econômica,
ecológica. É a intimidade, a amizade, os arranjos afetivos. É um projeto de
felicidade e prazer.
A vida-lazer é romântica:
Eu queria ter um amor, assim, que seja reservado só pra mim.
Todo instante, toda hora que eu chegar, encontrar ele,
encontrar aquela pessoa só pra mim. Eu acho romântico.
Apesar de todos os preconceitos que a gente tem que
aguentar, bafo de cachaça, cigarro e de outras coisas. Mas o
que importa é que a gente tem que dar valor e dar lazer a
quem dá a gente (Viajo porque preciso, volto porque te amo,
PATTY, 2009).
Nesse momento retomo a viagem de José Renato. Volto em seu
caminho antes do encontro com Patty e a definição de uma vida-lazer. Em
companhia de melodias de Odair José, Lairton e seus teclados, Peninha, Noel
Rosa... Observamos o esboço de um sujeito em busca de sua vida-lazer. Em
sua jornada pelo sertão nordestino, em um estudo para a transposição de um
rio, ele nos deixa embalar pela saudade de sua paixão:
Galega bom dia, bom dia meu amor. Hoje é dia 28 de outubro,
dia do funcionário público. Em Fortaleza ninguém trabalha na
repartição e eu aqui nesse torrão seco, dando um duro danado.
Faltam 27 dias e 12 horas pra acabar a viagem, parece uma
eternidade. Do dia que eu sai de Fortaleza até aqui quase num
vi ninguém aqui na estrada. Fico com o rádio ligado, pensando
em você a viagem toda, e só. Chega me cansa de tanto pensar
em ti. Hoje parei num posto e vi uma coisa pintada na parede,
meio hippie, nem tinha reparado. Quando sai é que me caiu a
ficha da frase que tava escrito: viajo porque preciso volto
porque te amo (Viajo porque preciso, volto porque te amo,
2009).
José Renato faz jus ao título do filme: ele viaja porque precisa. Para
além de suas atribuições laborais, vamos pouco a pouco entendendo a
amargura e secura daquele sujeito. Suas palavras doces dirigidas à galega, o
ar blasé para a paisagem, os encontros esporádicos com moradores da região,
permitem em determinado momento perceber que o geólogo vivencia um
abandono afetivo. Sua galega, bióloga apaixonada por plantas, lhe plantou um
pé na bunda. Abandonos...
A viagem de José Renato cai como uma luva em suas calejadas mãos e
em seu atordoado coração. Viajar para esquecer, elaborar a perda, o laço que
se rompe. Viajar para entender que a promessa de vida-lazer não se cumpriu e
que agora o “nós” a que ele estava habituado com sua galega, volta a ser o
“eu”.
Como notado por Clifford (1997) a viagem age como uma modificação.
Mais ainda, possibilita a aparição de outras noções de pertencimento. Nela
estamos em movimento, desdobramos nossos sentimentos, nossas paixões.
Sentimos saudades do lar, dos amigos, do que fomos ao deixarmos nosso
território. E nesse pêndulo pelo mundo, no incessante fluxo de paisagens e
passagens, podemos nos questionar “o que é uma volta para casa? (hooks,
2009)”. Deixamos histórias e vamos à busca de histórias. Há quem diga que o
melhor da viagem é compartilhar as experiências acumuladas com os que
ficaram. O viajante pode ser nômade, e mesmo assim não sair do lugar
(Deleuze, 2010). Viajar é se soltar pelo pensamento, encontrar o outro, a nós
mesmos. Viajar é um dos princípios de uma vida-lazer.
Cecília Meirelles difere o turista do viajante. O primeiro é um acumulador
de experiências, de fotografias, cartões-postais. Quase uma atividade
profissional, com metas, traçados, percursos. Planejamento estratégico, gestão
das experiências. Enquanto o
viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos,
todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa,
descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do
caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas
almas do passado, do presente até o futuro – um futuro que ele
nem conhecerá (MEIRELES, 1999, p.101).
A vida-lazer de um turista é quase uma vitrine. A vida-lazer de um viajante é
morada.
Acredito que de maneira mesmo inconsciente, José Renato corresponda
ao viajante e sua vida-lazer está no movimento e na errância. Sua atribuição é
produzir um relatório sobre a viabilidade de transposição de um rio. Mas sua
viagem-trabalho é também viagem-lazer. A cada encontro, a cada folha seca e
tronco retorcido, é possível atinar para as potências afetivas insurgentes do seu
olhar. Ele, assim como nos diz Cecília Meireles, se enreda em uma trama
afetiva. Recolhendo, como bem específico da sua profissão, fragmentos e
sinais de sua vida-lazer. O geólogo observa o casal de idosos, que nunca se
separou. O rapaz que faz colchão de chita, viril e tem cara de quem não
brocha. Carlos e Selma “que passaram a noite namorando na bilheteria do
circo”. Nessa paisagem afetiva, José Renato se modifica na viagem. Contorna
suas dores. E mesmo às avessas, e mesmo com a máscara de amargura, ele é
afetado “porque precisa, porque ama”. Ele sonha com sua vida-lazer.
Imagens e afetos que tomam o mundo
A ideia de uma vida-lazer levanta questões que conclamam uma
reflexão detida para a possibilidade de uma visada ao cinema a partir do afeto,
imbricada numa imaginação afetiva que permeia o cotidiano. Assim como em
aproximações e urdiduras de expressões artísticas que tornam o afeto como
uma possibilidade de experiência (Ramalho, 2010), uma forma de se conhecer
e se aventurar pelo mundo.
O afeto como intensidade é uma maneira de aproximação do campo
cinematográfico e de análise da imagem considerando o corpo, tanto o
imaterial que desliza nas telas quanto o espectorial, dos sujeitos que se põe
frente a essas imagens. Nesse sentido, Del Rio (2008) investe seus esforços
para uma questão levantada por Espinosa, atualizada por Deleuze e urgente
para a contemporaneidade: o que pode o corpo? Ainda para a autora, Deleuze
compreende o corpo como um conjunto de forças que afetam e são afetadas
em consonância com uma gama de outras forças e devolve ao corpo o seu
campo de intensidades anuladas nos modelos de representação.
Elena Del Rio (2008) sustenta que essa força corporal e essa
capacidade de afetar são extremamente criativas e performativas. E esse
poder de afecção e imanência criativa dos corpos contribui nos processos
geradores da existência. O corpo como performativo, como força da e na
cultura. O corpo que não se encerra em um molde de representação. Um corpo
que conclama o outro, o toque, o encontro. Corpos vibráteis. O corpo como
lócus de criatividade anárquica, e por sua visão performativa como um meio de
passagem do afeto, das emoções, dos sentimentos.
Mas de que falamos, pois, quando falamos, dos afetos, da vida-lazer e
das emoções? Aos modos de Espinosa o afeto é potência de agir. As emoções
seriam a interpretação e codificação cultural das afecções, os sentimentos,
como a raiva, a alegria, a tristeza. Os filmes, que irei visitar e dialogar na tese,
nos falam de encontros, laços ora frágeis ora intensos, abandonos e
despedidas; acima de tudo encontros. Como pensar esses encontros de outra
maneira que não recaia nos recorrentes discursos de fragmentação,
individualidade, obsolescência e tantos outros sintomas de uma dita pósmodernidade? Como esses encontros são capazes de potencializar nossas
afecções? E de que maneira conduzir a discussão e a pertinência do afeto nos
corpos de imagem que tomam o mundo? (Ramalho, 2010).
Ramalho (2010) recupera Elena Del Rio (2008) para problematizar as
maneiras em que ocorre uma sobreposição entre o narrativo e o afetivo no
cinema, tendo o afeto uma potência de afetar e mobilizar a narração do filme.
E, assim, considerar não só o corpo encenado, o corpo-coletivo e corpoespectorial, mas todo o conjunto de corpos que se imbricam e potencializam o
agir. Um afetivo-performativo comandado por corpos-vivos: simbiose de todos
os corpos possíveis. Acredito que essa noção de afetivo-performativo pode ser
um ponto de partida futuro para situar e contextualizar personagens como Patty
e Tabu.
Essa retomada afetiva é, também, a possibilidade do afeto emergir como
potência estética, conceitual e contemporânea de compreensão da experiência
humana. Quebrar os muros que separam as produções artísticas, os saberes,
as formas de se conhecer e experimentar o mundo. Buscar nas imagens mais
que suas dimensões técnicas e aspectos formais de elaboração, e sim seus
vestígios, suas partilhas, sensibilidades e vibrações. Por fim, corroboro com a
ideia de Ramalho: “e se, enfim, as imagens que veiculamos têm o poder de
afetar aqueles que as confrontam, podemos então discernir uma forma de
articular a estética e a política, e sustentar que o conceito de afeto pode nos
dizer mais do mundo visivo e das imagens em circulação do que simplesmente
qualificar um conjunto de procedimentos, uma forma de registro ou uma
“tendência contemporânea (2010, p.9-10)”.
É necessário definir estritamente o que seria um afeto? Ganhamos ao
pensar no afeto como possibilidades plurais? O afeto como sinônimo de
medos, de emoções, de potências de agir, da efemeridade do instante? De que
maneira pensar os afetos como potências aglutinadoras de vidas comuns,
singulares, lazeres? De que modo se pode entender os afetos como
contribuintes para uma ética, estética e política na possibilidade de se viver
juntos em um espaço heterogêneo, reconhecendo a profundidade do outro? E
qual o espaço da amizade (Foucault, 1981), dos arranjos para além de dados
genéticos, propulsados pelo encontro, pelas viagens, pelo corpo?
Jeudy (2002), ao retomar aos estudos de Deleuze sobre Espinoza,
também recupera a questão “que pode o corpo?” e logo garante que “nenhuma
pessoa tem condições de sabê-lo, pois ninguém conhece os limites de nossas
afecções
(JEUDY,
2002,
p.
109)”.
Portanto,
é
sobre
esse
terreno
desconhecido, em saber o que pode o corpo, é que podemos relacionar as
possibilidades de experimentação, de ativação de potências, de sensibilidades
vibráteis (Deleuze, 2010). Nesses terrenos onde também podemos perguntar
quem são esses e essas que habitam as vidas-lazer?
Perspectivas de vidas-lazer
A inconstância da alma selvagem (Viveiros de Castro, 1996) e a ideia de
uma vida-lazer. Como aproximar duas expressões belas e singulares? O que
há de inconstante numa vida-lazer e lazer numa alma selvagem? Antes de
tudo, concorda-se que o perspectivismo ameríndio apresentado por Viveiros de
Castro é uma forma intercambiável de apreensão do mundo, de ser sujeito e
uma produção de subjetividade relacional. Um ponto de vista que produz
sujeitos, onde esses sujeitos criam seus mundos das mesmas maneiras,
diferindo apenas na forma de ver esse mundo.
Vamos ver mais de perto:
O embaralhamento conceitual da cosmologia de muitos povos
ameríndios não diz respeito a um mundo dado, nomeado, cartesiano e erigido
na dicotomia natureza X cultura. Ao contrário, se dá na emergência dos
perceptos. Aos modos espinosista e deleuziano, os perceptos são seres que
valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Se a obra de arte é uma
sensação, é plausível que uma visão perspectivada e uma vida-lazer sejam
seres/sujeitos/espaços de sensações.
No corpo estão as linhas que conectam e reconectam afectos e
perceptos. No corpo, no nosso corpo, no corpo da onça, na raiz da mandioca,
na mão que costura, no pote de farinha, na chuva que enche o rio e forma a
cachoeira correm sensações e elaborações inconstantes da vida, da alma, do
próprio corpo. Nas afecções que nos tomam (ações e paixões numa relação
com o corpo explodindo no conatus) deflagra nossa potência em afetar e ser
afetado. A vida-lazer está no corpo, o ponto de vista está no corpo. Que pode o
corpo, já se perguntava Espinosa? O corpo é um espectro de sensações,
multiforme, matéria moldável. O corpo nos repele ou nos aproximas, as
afecções são chamas de uma comunicação proxêmica.
Mas de que maneira se diluem na vida e no mundo os afectos e
perceptos? Para determinadas culturas ameríndias a figura do xamã é
responsável pelo trânsito de mundos, são porta-vozes de uma comunicação
inter-humana (Viveiros de Castro, 1996). São agentes em flutuação num
campo sociocôsmico. São eles que narram estórias, transmitem mitos, afectos
e perceptos. Para nós, seriam xamãs os artistas contemporâneos e
realizadores do audiovisual? Se assumirmos e entendermos que a obra de arte
é um ser de sensação (Deleuze) e são esses grupos que transitam entre
mundo, narram estórias, constroem blocos de sensação, não me parece
absurdo perceber a arte como o xamanismo de nossa cultura. A câmera, a
instalação de arte, o artefato fotográfico, a performance são narrativas de
mundos relacionais, imagens-desejo, imagens maquínicas. São máquinas de
guerras nômade que:
cria uma nova circulação de afetos, expõe o virtual presente no
atual, gera saberes inesperados. A dificuldade é que esses
saberes passam como fluxos, não são identificáveis segundo
os hábitos acadêmicos de pensamento. Eles não têm uma
identidade. Não se trata, aí, da produção de uma nova
identidade, muito pelo contrário. São criadas novas
intensidades, sim, às vezes evanescentes (como os quarks na
física atômica), às vezes duráveis (GAUTHIER, 1999)
.
Por fim, metodologicamente, começo a perceber a vida-lazer como
errância, costuras, talvez como nomadismo. A vida-lazer é relacional e
perspectivada na medida em que só acontece no encontro dos corpos. E nesse
ponto, vale relembrar que o corpo que deve estar em relação não é
necessariamente o corpo humano, mas as teias e fluxos de afecções. A vidalazer é também a aparição de uma imagem-afecção. Vida-lazer e a alma
selvagem estão em um campo onde a imanência é uma vida. A ideia de uma
vida-lazer e de uma visão perspectivista é parecida com a noção de potência:
uma dimensão arriscada do acontecimento, uma ação descontrolada.
Vidas-lazer onde as pessoas/personagens são inscritas em uma lógica
de
visibilidade
das
práticas
comuns
e
do
banal
(Rancière,
2009).
Personagens/pessoas que se diluem no fluxo das grandes cidades, no espaço
doméstico, no cotidiano. Formas-de-vida (Agamben, 2000b), tomadas de
potencialidades, singularidades, criatividade. Formas de individuação em
constantes reinvenções.
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